Continente #011 - Gilberto Gil

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Multicultural

Especial – A banda de pífanos do Sgt. Peppers

06

Em entrevista exclusiva, Gilberto Gil diz que Tropicalismo é mistura de Caruaru e Liverpool

Piada de mau gosto

Como o pacifismo do brasileiro, diante do terror no mundo, embota a percepção das coisas

Antropologia –

Sexo na colônia

Duas ilustrações do século 16 mostram a moral corrompida das colônias portuguesas na Ásia

Conto –

Fora do quarto à noite

Nelson de Oliveira escreve sobre um bombeiro e o fogo que lhe persegue desde o início dos tempos

Antologia –

Deborah Brennand

Conversa franca – Educação Cláudio de Moura Castro faz diagnóstico positivo do ensino no Brasil e critica movimento estudantil

Mecenato

Políticas de responsabilidade social são cada vez mais prioridade entre as empresas brasileiras

Festival –

Palhaçada

Encontro mundial de palhaços, em João Pessoa, reúne os melhores talentos da comédia circense

Arquitetura –

Marco zero –

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Patrimônio

A casa-grande que seria tombada como patrimônio histórico, mas que foi demolida antes

Maomé, o censor

O Alcorão contém passagens que condenam os poetas que satirizavam o Islamismo

Lição de arte –

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Jóia brasileira

Clementina Duarte fala de como se tornou uma das mais famosas designers de jóias do mundo

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Comportamento – Couvert artístico

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Os cantores da noite fazem carreira profissional cantando em bares e restaurantes da cidade

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Diário de uma víbora – Algo sobreviveu Joel Silveira explica como todos os dinossauros foram extintos, menos um: ele mesmo

Mil palavras –

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Estética

O mangue como mote para diversas manifestações culturais, de Josué de Castro a Chico Science

Crônica –

Sarapatel

O porco, presença forte no cardápio português, é dos primeiros animais domesticados pelo homem

Política cultural –

Foto: TYBA

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Poetisa fala de sombras e luzes, espaços e momentos, em linguagem pessoal e elíptica

Sabores pernambucanos –

Gilberto Gil

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Silêncio de ouro

Fernando Menezes escreve de um último encontro, e de coisas que jamais serão ditas

História –

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O declínio da barcaça

Como os vapores da Cia. Pernambucana e as jangadas prejudicaram o reinado das barcaças

Entremez –

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Literatura –

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Os Viventes

César Leal analisa a poesia de Carlos Nejar como uma resposta à teoria do fim da arte

Humor –

Página 56

76 78 83 85

Shakespeares brasileiros

As novelas de rádio e TV compõem dramaturgia popular semelhante à do teatro elizabetano

Miguel

Últimas palavras –

90 92

95 Fim do mundo

A guerra entre judeus e palestinos faz pensar sobre as horas que faltam para o apocalipse REPRODUÇÃO

Século 21 –

CONTEÚDO

Continente

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes

Tive a grata oportunidade de conhecer a revista Continente Multicultural, enviada para mim pela minha irmã que reside no Recife. Gostei muito do seu conteúdo. Marcos Barreto de Melo – Salvador – BA Conteúdo II

Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira

Arte Luiz Arrais

Editoração Eletrônica André Fellows

Ilustradores Lin e Zenival

Colaboradores: Alberto da Cunha Melo, César Leal, Deborah Brennand, Edson Nery da Fonseca, Ernst van den Boogaart, Evaldo Cabral de Mello, Fernando Menezes, Fernando Oliva, Geneton Moraes Neto, Geraldo Gomes, Joana Aquino, Joana Rodrigues, Joel Silveira, Luiz Augusto Falcão, Mascaro, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Miguel, Nelson de Oliveira, Ral, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Tatiana Resende Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 - Fone: 0800 81 1201 - Ligação gratuita e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

2 Continente Multicultural

Conteúdo

Há muito que me não vinha do Nordeste uma revista assim, tão bonita e tão cheia de... conteúdo. Como diria Mário de Andrade, “daqui para diante!” Diz-se que é próprio das revistas culturais serem efêmeras; gostaria que esta, multicultural, durasse muito, e que por ela continuasse a vir do Recife o que alguns, até nordestinos, só esperam de São Paulo e do Rio. Arnaldo Saraiva – Porto – Portugal Distribuição Primeiramente gostaria de parabenizá-los pela excelente qualidade desta publicação. Tanto no que se refere ao conteúdo das matérias quanto na sua parte gráfica e diagramação. Sou nordestino (natural de Aracaju, SE), radicado há 12 anos no Rio de Janeiro, e confesso que jamais vi uma proposta tão ambiciosa e ao mesmo tempo renovadora de padrões como esta revista. Fico ainda mais feliz em saber que ela é oriunda do Nordeste, mais especificamente, do Recife. Mais impressionante é ver a revista chegar até o Rio de Janeiro – numa livraria do Leblon, onde moro – o que comprova uma boa capacidade de distribuição que outras publicações – às vezes até de boa qualidade – infelizmente não possuem. Portanto, parabéns em dobro! Antônio Agenor de Melo Barbosa – Rio de Janeiro – RJ Novos horizontes Tive a oportunidade de ler um exemplar de Continente Multicultural e gostaria de parabenizá-los pela excelente apresentação gráfica e seu estimulante conteúdo editorial. Sua leitura servirá como proveitosa fonte para ampliar novos horizontes. Paulo Roberto de Camargo Barros – São Paulo – SP Ineditismo Uma das características que tenho observado na revista Continente Multicultural é a de operar abordagens inéditas em temas já estudados. Tomo como exemplo o artigo Morte do Desejado precipita domínio espanhol (Edição de julho de 2001). Nele, o mito do


sebastianismo é despido das roupagens solenes em que costuma ser apresentado, e mostrado como é de fato: mais um messianismo explorado por charlatães de todo calibre e que deve ser tratado com salutar e profilático sarcasmo. Augusto Prado – Recife – PE Substanciosa Continente é sintética e bonita, no ponto para se ler. Refeição substanciosa e rápida, apropriada a gente sequiosa de cultura e que não tem tempo a perder. Olha o Brasil e o Mundo, do lado de baixo do Equador, ou seja, de um ponto de vista equatorial, e isto já é muita coisa, porque nos revela um viés cultural que as publicações convencionais são incapazes de mostrar. Agora é caprichar na circulação. Oswald Barroso – Fortaleza – CE

li um deles e fiquei maravilhosamente surpreso com a revista. Fui à CEPE, comprei os números atrasados e fiz uma assinatura. Há anos que não tinha uma leitura tão prazerosa e instrutiva. Continente Multicultural me tem proporcionado horas felizes de reencontro (mesmo à distância) com as coisas de minha terra. Sem dúvida, nossa revista (já é minha também) está entre as melhores publicadas atualmente no Brasil. Permaneçam assim, com este elevado padrão, e não se deixem vencer por quaisquer dificuldades que venham a surgir. Invistam na divulgação; façam campanhas de assinaturas, para consolidar a posição da revista. Parabéns, muitos parabéns! Saudações cordiais de um pernambucano exilado na Paulicéia de Mário de Andrade! Elias Costa Lima – São Paulo – SP

Caetano Estou fascinada pela revista Continente Multicultural, desde o primeiro número que li, que foi o 7o. Aliás, comecei a ler pela ordem decrescente: de 7 a 1. Chegando ao número 1, me encantei com o conteúdo desta revista. Fiquei maravilhada com a entrevista de Caetano Veloso e me apaixonei por Joaquim Nabuco, pelo jeito com que trataram a escravidão no Brasil. Espero ansiosa pelo próximo número da revista. Recebo-a na Escola São Vicente de Paulo, da qual sou diretora. Sim, a revista é ótima para pesquisa de alunos e professores. Parabéns a todos! Stella – Triunfo – PE Descoberta Só agora tomei conhecimento da existência da revista Continente Multicultural. Produzida no Nordeste! De início fiquei besta. Depois vi que estava incorrendo em preconceito. Por que o Nordeste não seria capaz de produzir uma revista assim tão boa, capaz de disputar com qualquer outra do País? Não foi do Nordeste que vieram nomes como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, João Câmara, Gilvan Samico, Francisco Brennand, Marlos Nobre e tantos mais!? Espero que este continente se consolide para reafirmar sempre o poder desta maravilhosa terra brasileira nordestina. Suelly Gomes Caillois – Brasília – DF Orgulho Parabenizo todos que constituem Continente. Não há muito que dizer, já o fez o respeitável mestre da PUC-RJ, Sr. Affonso Romano de Sant'Anna. Orgulha-me como pernambucano o conteúdo de alto nível dessa revista. Reginaldo do Carmo Alves – Paulista – PE Reencontro

Desagravo Como fã de Cecília Meireles e da revista Continente Multicultural, adorei o número de outubro, pela beleza gráfica e conteúdo. Mas fiquei contristada com a infeliz idéia de dividir em duas páginas (6 e 7) foto muito expressiva de Cecília Meireles, cortando-a pelo meio à altura do nariz. Horrível. Cecília merece desagravo, com a republicação da foto “desmutilada” (mesmo em tamanho menor), na próxima edição. Também lamentei que não houvessem reproduzido um só poema dela como parte da cobertura do seu centenário de nascimento. Comentários de quem quer ver o Continente Multicultural cada vez melhor. Tereza Halliday – Recife – PE Errata Na edição anterior (outubro, 2001), o título da entrevista com o historiador inglês Paul Johnson saiu como “Picasso era imoral. permoral e péssimo artista”, devido a erro de cadernização. O título correto é “Picasso é imoral, perverso e péssimo artista”.

Estava de férias no Recife, quando um amigo me deu os dois primeiros números de Continente Multicultural. Ainda no hotel

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EDITORIAL

O fascínio do

super-homem comum

U

m das conquistas da tal modernidade é a descoberta de um novo tipo de heroísmo: o do homem comum. Um exemplo claro disso é o livro Ulisses, do irlandês James Joyce, publicado em 1922. O romance exacerbava uma idéia que já vinha do Romantismo: o enfrentamento das pequenas lutas cotidianas têm um interesse épico às vezes maior do que as peripécias do famoso grego, às voltas com o seu destino. Isso foi a nota dominante de toda a criação artística do século vinte. A exaltação da vida de cada dia, até a “vida besta”, referida em famoso texto de Carlos Drummond de Andrade. Ou, como bem disse outro poeta, Ferreira Gullar: “Não se trata do poema e sim do homem/ e sua vida/ – a mentida, a ferida, a consentida/ vida já ganha e já perdida e ganha/ outra vez./ Não se trata do poema e sim da fome/ de vida, o sôfrego pulsar entre constelações/ e embrulhos, entre engulhos.” Ou como diz, ainda melhor, noutro texto: “Sou um homem comum/ de carne e de memória/ de osso e esquecimento./ Ando a pé, e ônibus, de táxi, de avião/ e a vida sopra dentro de mim/ pânica/ feito a chama de um maçarico/ e pode/ subitamente/ cessar. (...) Mas somos muitos milhões de homens/ comuns/ e podemos formar uma muralha/ com nossos corpos de sonho e margaridas.” O cantor e compositor baiano Gilberto Gil – exilado como Gullar, nos tempos da ditadura militar no Brasil – realizou com a sua arte uma das melhores sínteses brasileiras dessa vocação para a vida e para as coisas de cada dia. O seu “super-homem” é o que todos os homens e mulheres são: sujeitos a dores e a alegrias e, apesar de todas os pesares, ainda crédulos em utopias. Na longa entrevista que concedeu ao repórter Geneton Moraes Neto, Gil fala muito mais do que dessas coisas da filosofia de cada dia, conta os bastidores da criação do Tropicalismo, para quem a união de uma banda de pífano aos Beatles foi uma mistura que deu pé, ou de como Caruaru e Liverpool juntos não fazem uma rima pobre. Continente Multicultural 5


JULIANO TOLEDO / AE

ESPECIAL

Gilberto Gil diz que Tropicalismo antecipou a globalização Geneton Moraes Neto

g

A receita secreta do Tropicalism uma mistura de Caruaru com

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Q

uem? Gilberto Gil. O quê? Viajou. Quando: 1967. Para onde: Caruaru. Por quê? Queria conhecer o som torto da Banda de Pífanos. O resultado do encontro entre Gil e a sonoridade rústica da Banda pode ter mudado o rumo da MPB. Quase quatro décadas depois, Gilberto Gil confessa, nesta entrevista inédita, que quer ser lembrado, na história da MPB, como aquele que propôs a Caetano Veloso a junção entre a Banda de Pífanos de Caruaru e os Beatles. Dessa mistura, nasceu o Tropicalismo. O resto é história. Assim que voltou de Londres, Gilberto Gil escolheu o Recife como palco de um dos seus primeiros shows pós-exílio. O disco que marcou a volta de Gil ao Brasil começa – não por acaso – com uma gravação da Banda de Pífanos de Caruaru tocando Pipoca Moderna.

il o: Liverpool

Qual seria a primeira frase de um livro de Gilberto Gil sobre Gilberto Gil? Eu, brasileiro, confesso minha culpa, meu degredo... Cabelo branco é sinal de cansaço ou sabedoria? Meu pai com 40 anos já tinha a cabeça toda branca. A minha não ficou toda branca. Ainda não estou tão cansado – nem tão sábio assim. Você, há alguns anos, citava Jean-P Paul Sartre para dizer: “Já não serei um grande homem, mas serei um homem de bem”. O desejo continua? Com o tempo, o desejo de ser “grande homem” vai se esvaindo. Ao realizar o que é possível, a gente se defronta com as limitações. Você não vai ser o maior. Não vai ser o melhor. Vai ser simplesmente o bom (risos). Ser um homem de bem é uma bela coisa, porque significa uma autoconciliação: você já equilibrou a noção do pecado com a noção da redenção, já se redimiu. Só precisa ficar atento ao comportamento, porque ainda pode incorrer em pecado. Afinal, as regras ainda existem. Mas o auto-eequilíbrio já ficou mais bem realizado. Falo do bem não no sentido maniqueísta. O bem é uma bela utopia, realizável. O desejo de ser apenas um homem de bem me faz lembrar uma canção do Caetano Veloso, em que ele diz: “Sou homem comum/ ninguém é comum”. Quer dizer: ser um homem de bem, ninguém é de bem. Não quero ser nada excepcional. Basta ser comum, basta ser igual a todos: um pouco bom, um pouco mau, um pouco quieto, um pouco inquieto, um pouco tudo, um pouco nada. Acho que basta. Ser grande é ser fora do comum. Para mim, basta ser um homem de bem. Sou um homem de bem, mas ninguém é de bem. Que papel você atribui a Gilberto Gil no cenário da música popular brasileira na segunda metade do século 20? Qual terá sido a maior contribuição? A contribuição foi levar a Banda de Pífanos de Caruaru para a música popular. Na verdade, foi propor a Caetano Veloso que a gente juntasse a Banda de Pífanos com a Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (álbum dos Beatles lançado em 1967). É uma contribuição que, no fim das contas, veio dar em Chico Science, veio dar nessas coisas todas. Minha grande conquista foi ter conhecido Caetano Veloso. Continente Multicultural 7


Você teve um encontro com John Lennon, em Londres, durante o exílio, você na platéia, ele no palco. Aquele show deixou marcas em você? Eu estava na platéia, e John Lennon estava com Yoko Ono, no palco do Liceum, uma casa prestigiosa. Eu era amigo de Alan Watts, que hoje é do Yes e na época tocava com a Plastic Ono Band, a banda que acompanhava Lennon. Era uma véspera de natal. O show, muito interessante, tinha um ar de happening: Yoko, por exemplo, saía de dentro de um saco, o que ainda não era usual em concertos da época. Yoko tinha todo aquele trabalho de artes plásticas. Lennon tinha deixado os Beatles há pouco tempo. Por essa razão, o show foi muito marcante. Minha

Já se disse que 1968 foi “o ano que não terminou”. Qual foi o fato que você viveu em 68 que nunca pôde ou nunca quis contar? Mil novecentos e sessenta e oito foi um ano marcado por uma paranóia muito grande de minha parte. O ano marcava o final, o canto do cisne do Tropicalismo. Vejo em 68 o ano básico das grandes indisposições com colegas que se mostraram reticentes – alguns mais do que reticentes – resistentes, mesmo, ao esforço, ao esboço e ao empenho tropicalista. Naquele ano, tive pela primeira – e última vez – um problema sério de desavença com Caetano, exatamente no dia da apresentação do programa tropicalista que o Zé Celso Martinez Correia dirigiu. grande

conquista,

Da mistura da Banda de Pífanos de Caruaru com o álbum Sgt. Peppers, dos Beatles, nasceu a Tropicália

Tanto tempo depois da na verdade, volta do exílio, o que ficou de bom e o que ficou de ruim dafoi ter conhecido quela temporada em Londres? Caetano Veloso “É como se ter ido fosse necessário para voltar, tanto mais vivo de vida, vivida, dividida, pra lá e pra cá...” (Gil cita a letra de Back in Bahia, uma das músicas do disco que ele lançou ao voltar para o Brasil, em 1971). Ainda ontem estava pensando sobre essa música: exatamente na palavra “dividida” e no que ela queria dizer. O que diria hoje, para mim, esse sentido de dividir? O que me dividiu? Eu me dividi mesmo ao ir para Londres? A divisão significou uma ruptura ou tudo se dividiu como se dividem as moléculas, as células? Tenho a impressão de que a divisão ocorreu mais nesse sentido: não houve traumas; não fiquei com marcas negativas da passagem por Londres. Aprendi a tocar guitarra em Londres, assim como foi em Londres que me tornei um band leader – como diria Jorge Ben na Banda do Zé Pretinho – nesse sentido pop, moderno. Gosto disso. Aprendi inglês. Meu filho Pedro nasceu em Londres. Não tenho queixas. O exílio teve coisas boas e coisas ruins. Uma cena magnífica – que nunca esqueço – foi o dia da vitória do Brasil sobre a Inglaterra, por um a zero, na Copa do Mundo de 70. Os ingleses tinham vencido a Copa de 66. A expectativa na Inglaterra inteira era de que eles ganhassem do Brasil e partissem para o bicampeonato. Conseguimos ganhar aquela partida. Um dia depois, no bairro de Chelsea, onde eu morava, as paredes estavam todas pichadas: “Rivelino Revelation”. Uma maravilha.

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A “primeira e última” desavença com Caetano Veloso foi de natureza estética?


AG. LUMIAR

funcionava para você, na década de Fiquei com medo de me apreFHC soube sessenta, como símbolo do futuro e sentar. Tinha havido um incidente com o Vicente Celestino – que veio a teorizar o povo divisor de águas? morrer naquela noite, durante um Vários dos traços utópicos que brasileiro. ensaio. Eu tinha ficado nervoso e se enxergavam no símbolo 2000 Agora, com medo. Já vinha vivendo uma confirmaram-se ou foram definitivaaprendeu a paranóia grande: o programa era sismente arquivados. Por exemplo: a tematicamente rejeitado pelas donas fazer política new age, a aproximação entre a ciênde casa do interior de São Paulo. Recia e o misticismo, toda aquela perscebemos cartas de prefeitos, a sociedade civil toda re- pectiva anunciada pelos hippies, pela ligação indiana, belada contra nós. Eu morria de medo daquilo tudo. pelos Beatles e pelos beatniks, aquilo tudo de uma Quando saímos do ensaio para voltar para casa, eu certa forma se confirma; em outros aspectos, se dilui disse a Caetano: “Não estou com vontade de fazer definitivamente. esse programa. Não vou fazer”. Caetano, então, fiQuando se falava em futuro no Brasil, o símcou bravo, reclamou muito comigo, a gente discutiu. bolo era sempre o ano 2000. O Brasil, que sempre Acabou me convencendo a fazer o programa. foi citado como o país do futuro, lhe dará mais aleVocê falava, no início dos anos setenta, do ano grias ou mais tristezas nesse começo de milênio? 2000, na música Expresso 2222 – regravada há O Brasil já vem me dando um pouco mais de pouco por João Bosco, num songbook. O ano 2000 alegrias. O país vem se configurando definitivamente como um país real de uma sociedade real. É um país novo, proposto e criado na esteira dos descobrimentos, com toda aquela tragédia da vertente ameríndia. Igualmente, a tragédia africana também se desenvolveu aqui. Por todos esses motivos, é um país com um traço trágico muito profundo. Agora, pela primeira vez, o país vive com uma certa consciência desse traço trágico, sem aqueles arroubos de uma quimera paradisíaca que viria em algum tempo. Hoje, o que temos é um país real – que precisa pagar todo dia pela superação de seus problemas. Há uma sombra enorme deixada pela herança européia sobre nós. Aos poucos, vai se resgatando esse traço europeu, a alma-mãe indígena e a mãe africana. Quando você explodiu, com Caetano Veloso, vocês representaram o vigor e a energia da juventude em busca de mudanças e de transformação do país. Qual foi a grande utopia que fracassou? Que utopia fracassada dói particularmente em você? A utopia brasileira que fracassou não era apenas brasileira. Era uma utopia do planeta todo, especialmente de áreas secundarizadas, aquelas em que vivem os povos chamados subdesenvolvidos: a utopia socialista, a utopia da Revolução. É uma utopia que varreu a África e a América Latina, além de se insinuar também em países europeus como a França e na Alemanha e se esboçar fortemente no Leste Europeu e na China. Formaram-se duas grandes repúContinente Multicultural 9


blicas socialistas no mundo. Houve a revolução cubana – a nossa versão tropical, cativante, interessante. Digo que essa foi a grande utopia não realizada. Em 1977, você chamou os socialistas de beócios, o que provocou uma reação da esquerda na época. Já naquela época o Muro de Berlim incomodava você? Eu me formei na universidade em 1964, justamente o ano do golpe – o momento em que desmoronou a utopia revolucionária. Era secretário de cultura do centro acadêmico da minha escola. O centro

América Latina e sobre o mundo. Basta lembrar dos estudos comparativos que ele fez sobre América, Europa e Brasil, sob o ponto de vista da sociedade. É uma coincidência boa o fato de o Brasil ter Fernando Henrique como presidente numa época de transição violenta por que passa a sociedade mundial. O presidente é um homem que aprendeu muito sobre como teorizar, como analisar o povo e a sociedade brasileira, nas vertentes econômicas e sociais. Agora, aprendeu a fazer política. Aprendeu mais depois que foi ministro de Itamar Franco e presidente. O Brasil nunca esteve tão bem servido.

Da esquerda para a direita: John Lennon, Fernando Henrique Cardoso, Jomard Muniz de Britto, Jean-Paul Sartre, Karl Marx, Darcy Ribeiro

era, evidentemente, dominado pelas esquerdas, assim como todos os outros centros. Havia dois ou três representantes de centro, mas, basicamente os integrantes eram de grupos de esquerda como a Ação Popular (AP), um braço do movimento católico. Já naquela época, nas discussões com esses colegas, eu dizia: “Não sei se essa utopia socialista é realizável; não sei se a realidade da vida humana permite que ela se instale”. Os colegas brigavam comigo: “Você é um fracote!” Sempre discuti com as esquerdas em relação a esse dado do sonho utópico: eu já desconfiava de que não dava. Você prefere o professor ou o presidente Fernando Henrique Cardoso? Gosto muito do fato dos dois – o professor e o presidente – poderem coincidir. É uma coincidência interessante, porque Fernando Henrique é um homem que tem uma visão sobre o Brasil, sobre a 10 Continente Multicultural

Dos encontros que você teve com ele, qual foi a impressão mais marcante que ele deixou em você? Do que eu mais me lembro é de uma situação em que ele concordou comigo. Em 1987, 1988, ele era senador quando se estava preparando a nova Constituição. Eu pretendia ser prefeito de Salvador. Fernando Henrique era do PMDB. Eu também. Numa visita que fiz a Brasília, estive no gabinete de Ulysses Guimarães, falei com vários deputados e senadores, acabei no gabinete do Fernando Henrique. Terminamos conversando sobre a Constituição. Eu – que, evidentemente, estava ali muito mais para aprender, porque não tinha nada a ensinar a ele – disse: “Senador, tenho medo de que essa Constituição fique muito corporativa...” E ele: “É mesmo!” Para mim, aquela concordância foi sintomática e interessante. Porque – de certa maneira – a suspeita de que a Constituição fosse corporativa terminou se confirmando na presidência do próprio FHC.


Por que você não consegue cantar Cálice em público, quando esta é uma de suas raras parcerias com Chico Buarque? Cálice me remete à idéia de sofrimento. A música nasceu uma sexta-feira da Paixão. Chico Buarque tinha ido assistir na véspera a um show meu, para a gente pensar na realização de uma música. Fiquei em casa na sexta-feira da Paixão, meditando, meditando, até que a dificuldade de fazer a música me fez lembrar do sofrimento do Cristo no Horto das Oliveiras. Tive então a idéia da primeira frase: “Pai, afasta de mim esse cálice/ Afasta de mim

nasce do fundo do poço. Aquilo que tiramos lá do fundo da cacimba nos parece mais precioso. A dor é assim: obriga-nos a descer aos infernos da alma.

esse cálice/ de vinho tinto de sangue”. Um dia depois, no sábado de Aleluia, levei a frase para a casa de Chico – que morava ali na Lagoa. Daí é que surgiu a frase que vem mais adiante: “Ver emergir o monstro da Lagoa”. Porque Chico, como eu disse, morava ali defronte. A música foi feita num período difícil, em meio à censura, à ditadura, à perseguição em cima da gente, numa louca sexta-feira da Paixão.

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Você uma vez confessou que entendia por que John Lennon dizia que a dor era o “substrato básico da criação”. Se você concorda com esse raciocínio, então por que noventa e cinco por cento de suas músicas são alegres? Porque a alegria não leva a gente a descer aos infernos. A alegria bóia, tranqüila, fagueira, no brilho dos raios do Sol sobre a superfície das águas. O que sai desse tipo de criação é uma coisa leve. Já a dor leva a uma profundidade que nos impressiona mais. Não é que a dor seja melhor ou mais bonita ou mais interessante. Nós é que valorizamos mais o que

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O caso mais doloroso de música que você compôs foi Cálice (“Pai, afasta de mim esse cálice/ afasta de mim esse cálice/ de vinho tinto de sangue”). Pouca gente sabe que é uma parceria de Gilberto Gil com Chico Buarque. Você diria que Cálice é a música mais dolorosa que você fez? Em Cálice há dois aspectos: uma dor pessoal e uma dor exterior. Sobre a dor pessoal, há outras músicas: Drão, por exemplo, é uma música de separação. Além de sofrer muito, eu acompanhava de perto o sofrimento de Sandra, minha mulher – de quem eu estava me separando. Já Cálice traduz, num nível pessoal, o sentido genérico da dor. Ali, aparece a dor numa expressão maior: era a dor do calvário, a tradução de uma dor genérica.

Cálice era, portanto, mais uma dor política do que uma dor pessoal. Das músicas de Caetano Veloso, existe alguma música que desperte ciúme autoral em você? Há várias! Qual é aquela que dá inveja em você, a que você gostaria de ter escrito? Coração Vagabundo. Continente Multicultural 11


Representantes ou porta-vvozes de um pensamento intelectual brasileiro – como Paulo Francis fazia, por exemplo – reclamam de que a imprensa brasileira e o público dão uma importância excessiva aos músicos populares do Brasil. Em algum momento você chegou a concordar com essa opinião? Isso é inveja, é bobagem. O que a gente vai fazer? O destaque que os músicos populares desfrutam no Brasil é uma escolha do povo, uma escolha da alma. Diz respeito a uma carência verdadeira: o povo precisa desse ungüento. A atividade da música e da poesia popular – em que se transmitem sentimentos através das canções – é mais balsâmica do que qualquer outra coisa. Desempenha uma função curativa sobre as pessoas, maior do que outras áreas de produção cultural: maior que os livros, maior que o cinema, maior que a novela, até. A música continua a ser essa manifestação mais direta, mais imediata. Como é que a gente vai contrariar o público? O peso dado à música no Brasil não é uma escolha nossa, não é uma imposição, não é uma conseqüência da mecânica capitalista ou do processo industrial, em que se pode dizer: “Investiu-se mais na área dos artistas e eles ficaram mais populares”. Não é assim! Os jogadores de futebol – por exemplo – recebem o mesmo grau de idolatria, porque o que eles fazem também preenche uma necessidade. Não se pode brigar contra esse mistério da subjetividade. Suas músicas mais recentes falam de ciência. Você, como artista, considera a ciência superior à arte como instrumento de busca da verdade, ou as duas podem se completar? As duas se completam. O físico César Lates disse que a ciência é irmã bastarda da arte. Num encontro que tivemos em Campinas, ele me disse que a sociedade dos cientistas tinha ficado aborrecida 12 Continente Multicultural

GEYSON MAGNO / AG. LUMIAR

Entre os seus amigos – que foram personagens importantes da cultura brasileira, como Glauber Rocha e Darcy Ribeiro – quem é que faz mais falta ao Brasil de hoje? A complexidade do Brasil faz com que sejam necessários todos os ângulos de visão. Mas, hoje, sinto muito a falta de Darcy Ribeiro. Há no Brasil a sombra projetada pelo colonialismo e pela invasão européia. É terrível a supressão da mãe índia. Darcy Ribeiro é o intelectual brasileiro que foi mais fundo nessa questão.

Vejo em 68 o ano básico das gran ao esboço e ao empenho tropicalist e última vez também – um problem exatamente no dia da apresentaç o Zé Celso Martin


ndes indisposições com o esforço, ta. Naquele ano, tive pela primeira – ma sério de desavença com Caetano, ção do programa tropicalista que nez Correia dirigiu

PAULO PINTO / AE

com essa declaração. Eu não chegaria a tanto: não poria a arte num plano de superioridade, mas num plano de complementaridade em relação à ciência. Parto do seguinte princípio: em toda ciência, para descobrir e conceituar qualquer coisa, você precisa da arte. Precisa cumprir processos que, no fim, são artísticos: a arte de fazer isso, arte de fazer aquilo. Tudo é a “arte”: a arte de pensar, arte de fazer, arte de dizer. Talvez a arte tenha, então, uma precedência – não uma superioridade. A arte precede qualquer conquista humana. Tudo o que o homem fez foi arte: descobrir o fogo e a roda, desenhar nas cavernas, utilizar a pedra. Toda descoberta implica em arte – inclusive as da ciência. O que aconteceu foi que a ciência acabou se separando da arte: achou um nicho no cérebro, terminou se transformando numa área específica de conhecimento. Criou-se, então, a idéia de superioridade da ciência, mas acho que a arte tem um precedência em relação à ciência. O futebol, tão importante na vida do brasileiro, é quase ausente na música popular. Por que a música não trata mais do futebol, já que o brasileiro gosta tanto de futebol e de música? Não precisa. O futebol e a música são paixões gêmeas. Uma e outra são gêmeas no afeto e na celebração popular. Uma não precisa ficar cantando a outra. Você já escreveu sobre futebol, entre outras músicas, em Meio de Campo, aquela que cita o jogador Afonsinho... Aquele Abraço fala de futebol. Jorge Ben tem várias músicas que falam de futebol, como a que ele fez para Zico, a que fala nos goleiros, além de Fio Maravilha. O futebol já tem tanto realce em nossa alma que a gente não precisa ficar falando dele. O povo já conhece – e muito – o espírito embriagador do futebol. A música não precisa ficar revelando esse encantamento. A missão da poesia popular talvez seja a de chamar a atenção para um encantamento que ainda não esteja suficientemente explícito e revelado. Mas acho que, no caso do futebol, não existe esta necessidade: todo brasileiro entende a alma da bola, sabe tudo sobre ela. Você falou sobre a resistência que houve em áreas da MPB ao projeto dos tropicalistas. Você estava se referindo especificamente ao grupo que era identificado com a Bossa Nova, na época? Continente Multicultural 13


Quem resistia começava a se identificar não necessariamente com a Bossa Nova, mas com o embrião do que veio a se chamar de MPB. A música popular – que tinha passado pela Bossa Nova, pelo samba de morro, pelo Opinião, por Zé Keti, por Nara Leão, pelo Rosa de Ouro, por toda aquela recuperação de uma visão aristocrática do samba no Rio de Janeiro – era contrária, evidentemente, a nossa atitude, porque o que nós propúnhamos era uma horizontalização democrática, aberta a tudo, inclusive à música estrangeira. Ora, a música estrangeira era vista como associada ao imperialismo, ao colonialismo. Nós, no entanto, a redimíamos. Tudo estava ligado também à resistência política. Todos estávamos ligados a uma luta política antiimperialista. Mas parecia que o movimento tropicalista era de concessão imperialista, porque deixava entrar o elemento estrangeiro, o rock, o jazz. Passávamos a reverenciar essas coisas, em pé de igualdade com as manifestações locais. Todo esse quadro causou uma complicação na cabeça da esquerda. Foto histórica (1967): Grupo Momento-4, Caetano Veloso, Beat Boys, MPB-4, Nara Leão, Sidney Miller, Os Mutantes, Marília Medalha, Edu Lobo, Chico Buarque, Nana Caymmi, Geraldo Vandré, Roberto Carlos e Sérgio Ricardo

Você acha que o grande equívoco em relação ao Tropicalismo foi acharem que ele era um movimento “entreguista”, numa época tão ideologizada quanto aquela? Sem dúvida, era um equívoco. O Tropicalismo, na verdade, era uma premonição da situação em que a gente vive hoje, com a globalização e a pluralização internacionalista. Ou seja: era mais o jovem Marx do que o velho Marx. A esquerda naquela época, como se sabe, era toda o velho Marx: viviase a fase do socialismo institucional, leninista, já pósmarxista. Já o tropicalismo era internacionalismo juvenil do jovem Marx.

pai civil. Não existe um pai salvador. Ao contrário: o que existe é um país civil dramaticamente entregue ao conjunto de suas interações, ao vazio atomístico de suas realidades. É complicado. Mas aos poucos, o quadro vai se refazendo: o país toma consciência da realidade. O Brasil é hoje um país, sem dúvida, mais maduro.

Durante os governos militares, havia uma grande expectativa sobre o que ocorreria no dia em que o Brasil voltasse à vida civil. Hoje, há um certo sentimento de frustração, porque expectativas não se confirmaram. O destaque de Você concorda com isso? A projeção de expectativas que gozam os foi demasiada. Projetou-se demais. músicos no Brasil De novo, parecia que o país estava precisando de um pai civil. Era co- é escolha da alma. mo se estivéssemos abrindo mão O povo precisa de um pai militar para receber um desse ungüento 14 Continente Multicultural

Nada é tão simples quanto parecia... Nada é tão simples: não se pode remeter ao governo a responsabilidade pela solução de todos os problemas. A política, ineficiente e ineficaz, é responsável por todos os males. Quando ela for supereficaz, vai ser responsável por todas as so-


REPRODUÇÃO / MANCHETE PRESS

torcedor de todas essas coisas, torcedor do Brasil, torcedor do destino, autêntico, sonhador, apostador do sonho brasileiro, tropicalista da primeira hora. Sobre Jomard não se pode falar: ele é só aquele vozeirão. Maravilhoso.

Trabalhei muito para me livrar da dor que a política me deu. A política pode virar angina

Você diria que o exercício da política fez bem ou mal ao ex-vvereador Gilberto Gil? A gente se recupera, mas, durante mandato de vereador, naquele período todo na Bahia, comecei a desenvolver uma dor no peito. Tive que trabalhar muito, caminhar, fazer exercícios, acalmar a cabeça, a mente e o coração, para poder me livrar da dor que a política me deu. A política pode virar angina. O que você diria hoje aos presidenciáveis que sonham em subir a rampa do Planalto? Como é que se pode inverter essa usura exagerada com que trabalha o capital selvagem no Brasil? Qual é o segredo para dobrar esse pessoal? O que se pode fazer para que se tenha um gesto mais generoso com essa nação e com esse povo? Peço a eles que meditem.

luções. Mas ela não adquire essa eficácia porque se exerce no meio dos homens: o jogo dos interesses continua. Os interesses mais fortes continuam mais fortes. Tendem, portanto, a prevalecer a médio e a longo prazo sobre outros interesses – que são da maioria, mas possuem menos força. De qualquer maneira, as coisas estão se equilibrando um pouco melhor. Mas o idealismo da solução ideal vem caindo por terra. O que significa para você o Jomard Muniz de Britto sessentão, ele que foi um dos precursores do Tropicalismo no Nordeste? Quero partilhar, no contexto de minha geração, no forno do meu fogão existencial, desse pão de farinha nordestina que é Jomard Muniz de Britto. É bardo, professor, amigo, entusiasta, cultuador, fã,

Você já foi guru de muita gente. Quem é o guru de Gilberto Gil hoje? Hoje, meu guru é o silêncio. Quando consigo calar a voz do pensamento, quando consigo conciliar o som, quando consigo esquecer a poesia, a filosofia, as alegorias e os ditames da cidadania, quando consigo ter sono, dormir, me aquietar e silenciar, aí eu tenho uma espécie de mestre. Você ainda é um brasileiro esperançoso? Sou otimista, porque não vejo vantagem no pessimismo. A letra de uma música minha chamada É diz: “A violência, a injustiça e a traição ainda podem perturbar meu coração/ mas já não podem abalar minha fé/ porque eu sou e Deus é/ e disso é que resulta toda a criação.

Geneton Moraes Neto é jornalista

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Gil chora Muitas lágrimas na visita a Pernambuco em que o compositor descobriu a Banda de Pífanos e reencontrou um momento de sua infância Joana Rodrigues

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P

ARQUIVO DO COMPOSITOR

or volta de 1967, o Recife vivia uma efervescência cultural extremamente singular, diferente das que haviam ficado no passado. Nas ruas da capital pernambucana existia uma necessidade de renovação, uma vontade de criar novos sons e firmar uma identidade. Em meio a esse momento, intelectuais e artistas pernambucanos costumavam marcar encontros em locais onde pudessem promover debates e encontrar pessoas com campos de interesse semelhantes aos seus. O Teatro Popular do Nordeste, de Hermilo Borba Filho, funcionava conjuntamente a uma livraria e a um bar. Assim, sempre depois de assistir às apresentações no palco do TPN, diversas pessoas reuniam-se, fosse na mesa do bar ou entre livros, para discutir idéias e dividir experiências no campo da arte, política e literatura. E foi justamente nessa época que Gilberto Gil veio fazer um show no TPN. Era uma temporada em que ele trazia um pouco do seu som a Pernambuco e, como o teatro era pequeno e comportava um reduzido público de 100 pessoas por noite, Gil passou cerca de um mês apresentando-se no refúgio da intelectualidade pernambucana. Ele havia acabado de gravar o seu primeiro LP, com músicas hoje muito conhecidas, como Louvação, que dá nome ao disco, Maria e Procissão. A temporada no Recife foi acompanhada por uma banda local e causou um interesse realmente grande no público pernambucano, que assistia sempre maravilhado a cada apresentação daquele jovem baiano. Foi, então, já no fim desta passagem pelo Recife, que Gilberto Gil manifestou interesse de ver o trabalho da Banda de Pífanos de Caruaru. Havia escutado falar da musicalidade e apego ao regionalismo da banda e queria conhecê-la de perto. Para isso, procurou dentre os amigos que aqui fez, e que não foram poucos, uma indicação de quem o poderia levar a Caruaru. Por estar sempre envolvido com cultura, ter trabalhado com teatro e, principalmente, ser um compositor com um grande conhecimento musical, Carlos Fernando, com outros amigos, foi o cicerone de Gil em sua visita a Caruaru.

Conta Carlos Fernando que nessa viagem, estavam ele, Jomard Muniz de Britto, Geraldo Azevedo, Mário Florêncio, Souza Pepeu e Gil. Todos para assistir a uma apresentação da Banda de Pífanos, de Sebastião Biano. Para marcar o encontro, Carlos Fernando entrou em contato com Clóvis Cursino, um gerente de um banco em Caruaru que agia como uma espécie de mecenas na região. Sempre muito interessado em todo tipo de manifestação artística, Clóvis entrou em contato com a banda e a reunião foi confirmada no Clube Intermunicipal de Caruaru. Gil, ao chegar à feira, encantou-se com o artesanato regional e viu a beleza que podem ter coisas extremamente simples do cotidiano nordestino. Vagueou por entre as barracas, comprou um sino de carneiro como lembrança para um percursionista de sua banda e dirigiu-se a uma barraca onde se vendiam bonecas. Curiosamente, como relata o compositor Carlos Fernando, ao defrontar-se com as bonecas, Gil desatou a chorar. E não falava nada, apenas chorava, olhando para as grandes bonecas de pano. Todos entreolharam-se com um ar interrogativo e, em seguida, Gil explicou o pequeno-grande motivo de suas lágrimas: lembranças. Quando criança, e no período da Segunda Guerra, seu pai havia comprado duas bonecas, iguais às da feira, para presentear suas irmãs e colocou nelas o nome de Aliados. Voltar a um momento tão forte do passado causou-lhe muita emoção. Comprou as bonecas de pano e seguiram adiante, visitando a feira. Terminado o primeiro programa, seguiram para o Clube Intermunicipal de Caruaru, onde aconteceria o esperado encontro.

O compositor Carlos Fernando (ao lado de sua filha Joana), cicerone de Gilberto Gil na sua visita a Caruaru


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Capa do disco Jóia (1975), de Caetano Veloso, cuja faixa Pipoca Moderna tem música da Banda de Pífanos e letra de Veloso

Encontraram a Banda de Pífanos no local e juntaram-se a eles em uma reunião informal e agradável. Para dar início à farra, a banda de Sebastião Biano começou a tocar, enquanto Roberto Santana, que acompanhava Gil, gravava trechos do repertório da banda. Mostraram o seu trabalho durante algum tempo e, enquanto tocavam, Gilberto Gil ficou extremamente emocionado. Chorou novamente e disse que o trabalho deles era belo e impressionante. “Eles conhecem dissonâncias, fazem coisas que os Beatles fazem”, comentou com os colegas. Passando a tarde, já no término do encontro, Gil pede o violão e canta as músicas do seu LP. Foi, então, a vez dele fazer o show. Impressionado com a Banda de Pífanos de Caruaru, Gilberto Gil volta ao Recife para continuar as apresentações. No último dia do espetáculo na cidade, a platéia do TPN estava cheia. Muitos dos que não puderam ver o show antes não perderam a oportunidade e pessoas que já haviam assistido, voltaram para rever. Foi, então, nesta casa lotada, que Gil fez uma grande homenagem à banda de Sebastião Biano. Contou ao público toda a história do encontro em Caruaru e agradeceu profundamente aos seus cicerones pela oportunidade. Aproveitando a emoção com que falou do encontro, Gil faz uma denúncia à crueldade do uso de napalm e fala com in18 Continente Multicultural

dignação sobre o absurdo da guerra do Vietnã. Pedindo o fim da violência, chora pela terceira e última vez, agora no palco do TPN. Em apresentação no Rio de Janeiro, tempos depois, Gilberto Gil ainda fala muito da Banda de Pífanos de Caruaru. Tece muitos elogios que, inclusive, ajudaram bastante na divulgação da banda no Sul e Sudeste do país. Ao encontrar-se com Caetano, Gil mostra-lhe a fita gravada durante aquela tarde de sábado no Clube Intermunicipal de Caruaru, e dela surge Pipoca Moderna, música da Banda de Pífanos letrada por Caetano Veloso no disco Jóia, em 1975. No aniversário do Tropicalismo, Gil reconheceu a importância das influências que recebeu no Recife, “tudo isso num momento em que se gestava o Tropicalismo”. O acontecimento foi importantíssimo, segundo o próprio Gil, para a estruturação musical desse movimento que surgia. E em suas palavras: “O que influenciou o Tropicalismo foi a Banda de Pífanos e os Beatles”. Em Pernambuco, Gilberto Gil achou muito mais do que pessoas que, como ele, sentiam a necessidade de mudanças e do arejamento de idéias. Ele encontrou na Banda de Pífanos de Caruaru a musicalidade que o acompanharia durante toda a sua história e seria fundamental para a realização do movimento que guiou a sua obra, o Tropicalismo.


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SÉCULO 21

O terror, o povo guerreiro e o povo pacífico O Brasil é como um planeta distante, onde o terror será sempre uma piada de mau gosto

A

guerra do Golfo havia começado. A Inglaterra se preparava para represálias terroristas. Na universidade onde eu estudava havia um considerável número de alunos muçulmanos. Um grupo deles foi preso e expulso do país. Por uma razão que ainda desconheço, decidiram que os brasileiros iriam dividir a mesma sala com o líder da comunidade islâmica, o nigeriano Mohammed. Quase todos os dias havia uma reunião barulhenta na sede da sociedade deles, bem na porta em frente.

Mohammed parecia um estudante, pai e líder dedicado. Seu país estava sob o domínio de uma ditadura militar, e a escalada dos conflitos internos entre ingleses e a comunidade muçulmana preocupava a todos. Um dia, fomos convidados para celebrar o fim do Ramadã, festa regada a muita comida e conversa alegre. Os homens e mulheres ficaram em salas separadas, assim como em qualquer festa no Brasil onde os homens ficam em um canto falando de mulher e futebol, e as mulheres, no outro, falando de novelas e compras. A Inglaterra é, para a grande comunidade muçulmana que ali reside, a opção de esperança frente à miséria e ao totalitarismo de seus países de origem. Um bem precioso para esta comunidade é a simples liberdade, que lhes é negada na sua terra, de poder ganhar o pão e lutar contra a discriminação e o preconceito. Havia um estudante iraquiano de Literatura que deixara a família em Bagdá e passava o tempo a lamentar seu destino e a se embebedar com arak. Havia um brasileiro perseguido em Heathrow e confundido como possível suspeito. Havia o medo. Devido ao pavor e ao medo do terrorismo, a escuta telefônica sempre foi aceita na Inglaterra. Na época da guerra do Golfo dava para perceber a polícia secreta em torno do campus e a maneira

Marcos Aurélio Guedes de Oliveira


quase unânime com que a população se unia em favor do governo. O terrorismo é uma realidade antiga e vivida na Londres de onde um dia o mundo foi desenhado e governado segundo a vontade de um punhado de pessoas. Mas os dias da guerra foram de pânico. Bastava a denúncia de bomba nas linhas dos trens que levam ao centro nervoso de Londres para imobilizar a metade do país. E isto ocorreu por várias e repetidas vezes. O pavor de bombas explodindo em supermercados e lojas de revistas fez com que mesmo pequenas cidades como Colchester fossem paralisadas por dias. O alarme tocava constantemente na universidade. A evacuação dos prédios era rotina. Quando os mísseis Scud começaram a cair em Israel, Londres lembrou-se das bombas voadoras alemãs, e o medo de que armas químicas fossem lançadas no país se tornara real. Não se deixavam pacotes ou bolsas desacompanhadas em lugar algum. Os aeroportos eram detalhadamente vigiados. Eu pensava no Brasil e em como seria ver a guerra de longe. Para nós, a Inglaterra é um país guerreiro. O Brasil não? O Brasil é um país pacífico cujas elites apostam apenas na força do direito internacional. O futebol é nossa maior arma diplomática. Pelé, nosso Kissinger. Nós não temos inimigos externos. Participamos apenas de missões de paz. A prisão, no aeroporto de Nova Iorque, de um brasileiro que, para aliviar a tensão posterior aos ataques de 11 de setembro, declarou carregar dois revólveres e uma dinamite na mala, e a cobertura colegial de considerável parte da imprensa brasileira sobre os atentados nos EUA, refletem as dificuldades da mente brasileira de entender o que de fato se passa no mundo do século 21. A emoção determina a informação. Ora os americanos são apresentados como fervorosos patriotas prontos a iniciar uma guerra mundial contra os países do Golfo, ora transparece um sorriso sardônico favorável a um golpe terrorista bem-sucedido que pôs a nu a fragilidade da segurança

americana. Alguns parecem fingir acreditar que os terroristas defendem a paz antiimperialista com a mesma ingenuidade de quem acredita que o seqüestrador da filha de Sílvio Santos queria distribuir cestas básicas e reduzir as desigualdades sociais. O tratamento deformado e preconceituoso que se condena existir contra os árabes se reproduz contra os americanos. E os brasileiros mortos no atentado? E os brasileiros que perderão seu emprego devido à crise que se instala? E a educação dos brasileiros sobre política internacional? E os novos desafios para a defesa do Brasil? Seria o Maracanã um alvo terrorista? Parece faltar competência para se colocar a crise segundo os interesses do Brasil e dos brasileiros. Ela parece se perder entre o discurso ideológico antiamericano do século passado e o sensacionalismo da notícia-espetáculo. Na pesquisa encomendada pela imprensa sobre a causa do conflito, a principal pergunta induz à ingênua resposta de que a interferência dos EUA em outros países é o motivo da guerra. Ora, foi exatamente a atitude do novo governo Bush de se preocupar mais com os interesses internos do que com questões internacionais que agravou a crise. Qualquer manual de relações internacionais indica a necessidade da participação das potências nos problemas globais. A paz mundial é fruto da ação dos interesses mundiais, o isolamento gera a desconfiança e a guerra. Ha ainda um sentimento de que a guerra se dará entre “eles”. O Brasil é como um planeta distante onde o terror será sempre um chiste, uma piada de mau gosto de algum menino que liga para um aeroporto qualquer e diz haver ali uma bomba. Superar o maniqueísmo do guerreiro e do pacífico é a prova para se entender de frente o terror e estabelecer uma comunicação que revele as essências e favoreça relações de igualdade entre as culturas. Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com

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ANTROPOLOGIA

Ae o mercado Moralna Goa de Jan Huygen van Linschoten

Devassidão e tabus religiosos na moral dos colonizadores portugueses na Ásia

N

o relato de suas viagens, Itine- de de representantes das nações asiáticas, incluindo rário, o holandês Jan Huygen os portugueses que viviam entre eles. O propósito van Linschoten revelou o im- das imagens era só parcialmente informar os europério marítimo português na peus sobre a aparência externa, características físicas Ásia para os norte-europeus. e vestuário dos habitantes das Índias Ocidentais. O Escreveu por experiência. Ele principal esforço visava apresentar as qualidades inesteve no seu centro comercial teriores das sociedades asiáticas. Que importância os e administrativo, a cidade de Goa, na costa oeste da povos da Ásia atribuíam às virtudes cavaleirescas? Índia, de 1583 até 1588, como secretário do arcebis- Quais eram as suas atitudes para com o cultivo das po. Após o seu retorno à Holanda, descreveu todas artes e das ciências e – relacionado a isso – para com as partes da Ásia onde os portugueses faziam comér- a criação de uma vida confortável? Como eles avaliacio. O texto foi publicado em Amsterdã, em 1596, vam uma vida familiar estável e a contenção das painuma edição holandesa e, em 1599, numa versão em xões? As lâminas dão informações sobre cada um latim. O trabalho foi traduzido para o inglês em destes tópicos. Elas também remetem o leitor aos 1598 e para o francês em 1610. Provavelmente tor- textos que as acompanham, onde esses assuntos são nou-se mais conhecido na Europa pelas edições em mais extensivamente tratados. As lâminas contêm alemão e latim publicadas pelos irmãos De Bry em uma instrução visual para se fazer uma comparação Frankfurt, entre 1598 e 1601. Todas essas edições metódica entre o ethos predominante em quatro soeram fartamente ilustradas. Mais do que o texto, as ciedades asiáticas em particular: China, Goa portutrinta e seis lâminas da edição original holandesa guesa, Bijapur e Malabar. As lâminas dão uma claseram uma contribuição bastante original para o en- sificação ordenada de tópicos, o texto provê dados contro intelectual entre Europa e Ásia, no final do detalhados. primeiro século de contatos intensivos pela rota marítima ao redor do Cabo da Boa Esperança. O Mercado de Goa e a Vila próxima a Goa são As lâminas do Itinerário as peças centrais da série de lâmostram uma ampla varieda- Ernst van den Boogaart minas e as duas que serão dis22 Continente Multicultural


cutidas neste artigo. O formato excepcionalmente grande do Mercado de Goa estabelece a sua importância na série. O leitor é alertado a prestar a esta lâmina a sua particular atenção. O que ela mostra? A fileira de casas, a maioria de primeiro andar, algumas janelas, uma varanda e um telhado de tijolos, compõe a decoração urbana do mercado. As principais cenas são arranjadas em um arco que corre do canto esquerdo inferior da figura, atravessa o meio e segue ao canto direito inferior, criando uma divisão entre primeiro plano e segundo plano. No canto esquerdo inferior nós vemos dois pingues – carregadores indianos das vilas vizinhas – entrando no mercado com uma enorme cacimba cheia de água potável, o suficiente para matar a sede do mercado inteiro. Eles encaram um grupo de portugueses reunidos em volta de um leiloeiro com uma corrente, que está vendendo uma escrava escura mal vestida e sua criança. Eles se protegem do calor do sol matinal com largos guarda-sóis. À direita desta cena, um grupo de muitos personagens é apresentado em volta de uma grande mesa à qual três portugueses estão sentados sob guarda-sóis. Eles estão supervisionando outro leiloeiro com uma corrente que conduz a venda de todo tipo de mercadoria de um baú aberto em frente à mesa. Em cada lado deles há uma multidão

interessada, principalmente portugueses, mas incluindo dois mercadores asiáticos. No canto direito inferior da figura, um nobre português a cavalo e uma nobre portuguesa numa padiola fechada passam pela Misericórdia ao deixar o mercado, cercados pelos seus servos asiáticos ou africanos. No primeiro plano, um mercador asiático está vendendo um cavalo árabe. Um português portando ostensivamente um rosário parece ser o possível comprador. Próxima a esta cena, no primeiro plano, há uma ama-de-leite com um bebê. Ela aponta para a venda da escrava com a sua mão direita. À sua esquerda há uma mulher mal vestida com uma jarra na cabeça. Ela aponta para o bebê que a ama-de-leite traz no colo. Essas duas mulheres estão cercadas por filhotes de cachorro brincando. No fundo da figura, à esquerda, um operador de câmbio (xaroffo) está sentado a uma mesa, e um grupo de quatro mulheres asiáticas vende produtos em cestos nos seus colos. No lado oposto, à direita, um português está sentado numa cadeira bebendo de uma garrafa sem tocá-la com os lábios. Uma bem vestida mulher asiática se inclina para ele. À distância, vemos um português sentado sob um guardasol, enquanto um outro segura um objeto circular (um espelho?) à sua frente. Próximo a ele há uma figura que parece ser outro xaroffo.

O Mercado de Goa, lâmina presente em Itinerário (1596), relato de viagens de Jan Huygen van Linschoten

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Detalhes de Mercado de Goa. Acima, uma ama-de-leite e uma carregadora de água A venda de objetos de um baú, a terceira cena proeminente no centro, é a venda das posses de uma pessoa morta. Linschoten explica: “Todo ano há uma grande quantidade de produtos vendidos dentro da cidade, vez que ali morrem muitos homens da região, por efeito de suas vidas desregradas e do calor da terra”. A Misericórdia – o hospital onde os homens portugueses terminavam prematuramente as suas vidas devassas – também é referência a esta extremamente alta taxa de mortalidade. Os portugueses na Ásia tropical sofriam de uma sede insaciável. Os homens à esquerda estão carregando grande quantidade de água para aplacar esta sede. A posição desta cena, oposta à da Misericórdia, sugere que a sede também é de natureza sexual. Considerava-se que o calor tropical encorajava o apetite sexual. O Mercado de Goa pinta a corrupção moral dos portugueses, particularmente a sua moral familiar corrompida. O Mercado de Goa forma um par com a Vila próxima a Goa. A combinação entre uma cena de cidade e uma de vila era familiar aos holandeses do século 16 que conheciam a literatura e a pintura do seu tempo. Mercados urbanos eram geralmente contrastados com feiras de vila para mostrar a civilidade superior dos citadinos em comparação com as maneiras rudes dos aldeãos. Poderia ser o caso aqui? As pequenas cabanas de barro cobertas de estrume são mostradas na impressão com telhados de palha e sem janelas, mas são generosas em suas pro-

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Goa ganhou posição como um empório de pedras preciosas, tecidos e especiarias caras. Mas não é o que vemos à venda neste mercado. O operador de câmbio asiático é a alusão mais explícita ao caráter internacional do mercado em Goa, mas ele é colocado muito longe, em segundo plano. As quatro mulheres asiáticas com cestos, que também estão em segundo plano, podem estar oferecendo produtos comuns aos quais o texto se refere, como geléias e conservas. Elas parecem contribuir apenas com uma cor mais local. As três cenas de comércio que figuram proeminentemente ao meio caracterizam não as ricas transações do empório de Goa, mas os comportamentos dominantes entre os portugueses, especialmente os seus hábitos sexuais e o modo como cuidam das suas famílias. A venda de uma escrava e sua criança e a do cavalo árabe ilustram o que Linschoten escreveu sobre a venda diária de escravos. Jovens e velhos são leiloados “como bestas são vendidas entre nós” (i.e. na Holanda). Esta lâmina pode bem ser a mais antiga representação ocidental de uma venda de escravos a um comprador europeu. A transação é mostrada como desumanizadora; homens são tratados como animais. O texto faz alusão aos efeitos de rompimento que a escravidão traz para a vida familiar dos escravos. Pais e filhos podiam ser separados pela venda. Mas a vida familiar dos mestres, os portugueses, não era menos afetada pela escravidão. As duas mulheres ao centro da cena são uma referência a isto. A mulher com uma cacimba se parece muito com a escrava que está sendo vendida e é bem provável que seja uma escrava, ela própria. O texto menciona que os mestres mandavam as suas escravas sustentá-los de algum modo. Elas o faziam pela venda de todos os tipos de mercadorias, inclusive os seus próprios corpos. A tarefa da mulher com a cacimba era matar a sede dos homens. Muitos portugueses mantinham as suas famílias com o que eles ganhavam de suas escravas prostitutas. A ama-de-leite próxima à mulher com a cacimba é outra alusão aos frouxos laços familiares entre os portugueses. Era comum que portugueses se casassem com mulheres asiáticas. Linschoten se referia a essas filhas do sol tropical como extremamente licenciosas. Elas se interessavam mais por amantes do que por bebês, que eram confiados a amas-deleite. A criança – um mestiço ou meio-sangue – bebia os vícios da Ásia junto com o leite.


Acima, a venda de um cavalo chama atenção para o fato de que, no mercado, tudo é comercializado, inclusive homens e animais porções, o que reduz o contraste, encontrado no texto, com as casas de muitos andares da cidade, com seus telhados de tijolo. A principal atividade nas vilas, o cultivo de palmas de coqueiro, foi relegado ao fundo da ilustração, assim como outras atividades, como amassar arroz ou tirar água de poço. Não fica claro o que os dois homens à esquerda estão fazendo. Como na cena do mercado, o ponto central é ocupado por duas mulheres da vila, uma mulher nua e uma mal vestida que está derramando água sobre a companheira. Em cada lado das mulheres ao centro acompanha uma cena de igual importância: à direita, a mulher de cócoras que está pegando água com sua mão esquerda para se lavar entre as pernas, e à esquerda, uma vaca, um carneiro de rabo espesso e um leitão são mostrados. A predominância de mulheres nativas nuas ou seminuas nesta cena forma um contraste com o mercado da cidade, freqüentado principalmente por homens bem vestidos de diferentes países, mas o sentido permanece muito implícito. O texto do Itinerário esclarece. As três mulheres em primeiro plano servem de ilustração razoavelmente acurada de uma passagem do texto sobre os aldeãos: “Eles são muito limpos com seus corpos, pois todo dia se lavam de corpo inteiro, tão freqüentemente quanto evacuam ou urinam, tanto os homens quanto as mulheres, como os mouros ou maometanos. Eles se lavam com a mão esquerda, porque comem com a direita, e não usam colheres”. A menção à colher põe o banho regular e a purificação com a mão esquerda em relação com a grande

pobreza dos Canarins, como os aldeãos eram chamados. A mensagem parece ser: eles são extraordinariamente pobres e têm pouca roupa, e ainda assim mantêm seus corpos escrupulosamente limpos. A sua pureza era uma das poucas qualidades daqueles canarins miseráveis e miseravelmente vestidos. A vaca, o porco e o carneiro são provavelmente outra referência às suas condições de vida material aviltantes, exacerbadas pelos tabus religiosos sobre comida. Linschoten conta enfaticamente como os canarins comiam pouco e como eram magros, apesar de isto não estar refletido na ilustração. Eles criavam gado, carneiros e porcos, mas sua religião os proibia de comer a carne desses animais. À primeira vista, pode-se pensar que o contraste sobre o qual essas duas lâminas estão construídas é o contraste entre a pobreza dos agricultores canarins nas vilas e a maior riqueza dos muitos outros grupos étnicos que tinham atividades no mercado e no artesanato da cidade. Contudo, o texto sugere que a ênfase na qualidade extraordinariamente baixa de vida dos canarins refere-se antes à visão de Linschoten sobre as qualidades da vila como uma comunidade moral. Ele não considerava a pobreza uma virtude. A pobreza extrema, ele escreveu, conduz ao comportamento servil. Outros vícios podem também estar implícitos na gravura. A posição proeminente da mulher nua se banhando e da mulher se lavando com a mão esquerda pode ser uma referência à sem-vergonhice e à devassidão, embora nada haja no texto que sugira isso. Nem devemos esquecer que o limite do vergonhoso em relação ao banho nu em público e às funções naturais do corpo ainda era menor na Europa do século 16. Apesar de toda pureza externa, o status moral dos aldeãos representados por aquelas mulheres parece dúbio. Embora as lâminas apresentem um contraste externo entre cidade e campo, a mensagem das ilustrações parece ser a de que eles têm algo em comum: eram ambas comunidades moralmente corrompidas. O Mercado de Goa e a Vila próxima a Goa são formalmente relacionadas a outras lâminas com cenas de larga escala, todas contendo alusões ao comportamento prescrito pelas regras religiosas. Parece, portanto, legítimo perguntar se isso também é verdadeiro para essas duas lâminas e se a análise apresentada acima pode ser estendida. Segundo o texto, o banho diário de corpo inteiro e o uso da mão esContinente Multicultural 25


REPRODUÇÃO

Vila Próxima a Goa, outra das lâminas do Itinerário, que mostra o modo de vida dos aldeãos, em contraste ao dos citadinos

querda para se lavar estavam entre os rituais fixos dos aldeões. O pagão sempre os executava, a cada novo dia. Os rituais estão provavelmente ilustrados aqui para mostrar que o pagão indiano cumpria meticulosamente as obrigações religiosas que não faziam sentido algum aos europeus. O mesmo se aplica à representação dos tabus alimentares. Os animais na cena da vila se referem ao estrito cumprimento das dietas religiosas apesar da grande pobreza. A obediência estrita às regras pagãs tinha um efeito negativo sobre a prosperidade dos lares terrenos. Na cidade, os portugueses não seguiam as suas regras religiosas tão severamente. A cena do mercado mostrava as falhas diárias no comportamento civil e cristão dos portugueses. Todo dia um leilão acontecia com as posses dos muitos que haviam navegado aos trópicos para fazer fortuna e morrido pela falta de castidade e pelo clima quente. Vendas diárias de escravos indicavam que a comercialização era desmedida e que a busca por riquezas não conhecia limites. Seres humanos tornavam-se objetos de comércio. A escravidão rompia os vínculos elementares da sociedade, os vínculos entre maridos e esposas e entre pais e filhos. Causava um espetáculo diário de degradação humana. O mercado tinha penetrado em áreas da vida que não deveriam ser comercializadas, como a família, e tinha fatalmente enfraquecido as prescrições religiosas, mas também racionais. Nesta interpretação, as lâminas apresentam um contraste: entre o cumprimento estrito dos comandos irracionais, pagãos, e o cumprimento frouxo das regras de comportamento racionais, cristãs. Nem o texto nem as lâminas indicam um interesse em explicar a diferença no cumprimento 26 Continente Multicultural

das regras religiosas por pagãos, como os hindus, e por portugueses. O propósito da série instrutiva de imagens não era a explicação causal, mas antes a metódica classificação dos costumes e avaliação moral. O Mercado de Goa e a Vila próxima a Goa mostram – com os textos que os acompanham – que naquela parte da Ásia a ação econômica era sujeita a outras regras éticas e religiosas, diferentes da Europa. A avaliação dos costumes dos portugueses e dos canarins era altamente crítica. Mas a deficiência moral não caracterizava a Ásia como um todo. As imagens e os textos em outra parte da série mostram que na China a virtude e o comércio eram relacionados satisfatoriamente. Através de metódica comparação e avaliação dos costumes dos asiáticos, como representados nas lâminas e nos textos, os leitores aprendiam que os asiáticos viviam suas vidas sob regras diferentes – para os olhos europeus, geralmente regras reprováveis. Os comerciantes ocidentais na Ásia deviam perceber que eles não só seriam confrontados com oportunidades atrativas de negócio, como também com escolhas morais difíceis. Esta era a mensagem desta antiga representação do encontro europeu com os modos asiáticos de comportamento dentro e fora do mercado.

Ernst van den Boogart (1943) é historiador e vive em Amsterdã. Em 1979, organizou a exibição sobre o Brasil holandês para o Gabinete Real de Pinturas The Mauritshuis, em Haia. Ele tem escrito mais sobre a expansão holandesa sobre o Atlântico durante o século 17. Seu mais recente livro é Jan Huygen van Linschoten e o Mapa Moral da Ásia (Jan Huygen van Linschoten and the Moral Map of Ásia), Londres, 1999, publicado para a sociedade bibliófila The Roxburghe Club. (Tradução Alexandre Bandeira).


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CONTO

Fora do quarto à noite

O

segundo relâmpago em menos de meio minuto. Chove? Não. Nem sinal de chuva. Todo o céu, exceto uma pequena região mais ao norte, continua transparente, limpo. Meio tonto, de fogo, Edgar sobe os degraus da pensão onde está hospedado, queimando tudo ao seu redor. Diante da porta de vidro, dia após dia, a mesma imagem refletida: um clarão contínuo espalhado em sua roupa, no rosto, em todo o corpo. Onde quer que vá, as chamas o perseguem. Um minuto de silêncio. Deixa a garrafa perto do capacho. Antes de abrir a porta certifica-se de que não vai chover. Parado, olhando para o alto, não, nada de chuva. É apenas um blefe. Talvez na semana que vem. Contra o fundo negro aparece a silhueta do edifício velho e escuro, onde Edgar não só passa as noites, mas também onde lava suas roupas e faz todas as refeições. Pelo menos provisoriamente, até que sua antiga casa, destruída por um incêndio, volte a ficar em pé. Ainda olhando para o alto, começa a se sentir fraco. Por um instante se apóia na maçaneta da porta. Nessa posição consegue ver melhor a silhueta do prédio, mas a luz dos postes ainda é insuficiente e a sua própria luz, compacta. Ambas deixam surgir apenas uma muralha alta e indefinida, metida entre uma dezena de outras muralhas, todas iguais, pontilhadas por aberturas regulares. Portas e janelas, janelas e portas. Edgar sente a maçaneta derretendo em sua mão. Decide entrar. Dentro, começa a subir a escada do hall, ora apoiando-se na parede, ora no corrimão. Mas o corrimão geme, não se sabe muito bem se devido ao seu peso, ao movimento de vaivém dos degraus, ou ao toque incandescente dos dedos na madeira. Isso o deixa irritado. Por precaução passa a subir um pouco mais devagar, escolhendo melhor os pontos onde se apoiar. No alto, fica olhando a rua através do vidro da porta lá embaixo. Quente, muito quente. A noite está perdida, pensa, e em seguida, sonolento, continua a andar. O assoalho do corredor também geme.

Nelson de Oliveira


Quarto vinte e dois. Diante da porta, Edgar ainda se demora alguns minutos procurando a chave. Onde está essa maldita chave?!? Com os dedos abertos, procura no interior dos bolsos, contorcendo-se e espalhando faíscas pelo chão. Se me encontrarem neste estado vão pensar que estou bêbado. Alisa os cabelos emaranhados. Após entrar, vai mecanicamente até a cozinha, abre a geladeira, pega várias fatias de queijo. Vinho? Por que não? Mas não há vinho em casa. Apenas queijo. Conformado, divide as fatias no prato, cuidando pra que não derretam entre os dedos. Mas não chega a prová-las. Da porta da cozinha olha para o quarto e percebe que o fogo já está à sua espera, na forma de uma pequena labareda queimando sobre a cama. Olhando-se num pedaço de espelho largado em cima da pia, Edgar não se reconhece. A luz da cozinha é fraca, mal intencionada. Seu corpo inteiro, ao contrário, queima, possui luz própria. Mesmo assim, compreende, jamais poderá unir-se àquele outro incêndio no quarto. Pois aquele é, sempre foi, um fragmento indissolúvel da fagulha demoníaca, da forma fugaz que deu origem a todos os incêndios já ocorridos na face da terra, desde os dias da Criação. Um pedaço da fagulha ancestral, primeva, aquela. Além do mais, todo o fogo que não vem de mim mesmo, pensa ele, é em essência impenetrável.

Mas de onde teria vindo? O que estaria fazendo aqui? – Acredito realmente que isso não passa de uma brincadeira. Uma brincadeira, de fato. Ou um engano. Nada mais fácil do que a ocorrência de um engano, num prédio tão grande. Sim, muito grande. Contudo, você deve se defender, diz a si mesmo. Não se deixe levar pela beleza lasciva do fogo eterno. Caso contrário, as pessoas não vão ter a mínima idéia da verdade. Edgar torna a guardar as fatias de queijo. Quando fecha a porta da geladeira, a lufada de ar frio se interrompe. Então percebe que o cheiro de lençol queimado já está impregnando boa parte da cozinha, comprometendo de maneira irremediável o frescor dos legumes em cima da pia. Novamente a idéia de um engano perambulando pela cozinha, pela sala, pelo quarto. Um pequeno fantasma. Nada muito real, compreende? Apreensivo, Edgar se pergunta se esse tipo de preferência – a fagulha primordial sempre no seu encalço – teria a ver com o fato de ele, Edgar, ser o chefe do corpo de bombeiros. Aposentado, sim. Mas ainda chefe! Atravessa o pequeno corredor. Anda até o quarto. Ali o fogo queima. Não é real, também não é sonho. Onde quer que Edgar vá – e ele, na idade a que chegou, já esteve em vários lugares – o fogo


queima. Hoje sobre a cama. Há duas semanas dentro do armário. Nada muito exagerado, a princípio. Apenas uma labareda fria e insignificante. Nem sólida nem líquida. Queimando há vinte bilhões de anos. Uma nuvem baixa e malcheirosa faz com que seus olhos comecem a arder. As janelas estão fechadas. Talvez não fosse má idéia abrir a porta do apartamento. Os vizinhos compreenderiam. Mesmo que toda essa neblina começasse a incomodá-los. Edgar abre a porta. A neblina sai do quarto direto para o corredor, rasteira. Na escada mal consegue preencher os primeiros degraus. Mesmo assim já penetra nos apartamentos vizinhos, passando pelo vão das portas. Um tapete finíssimo e acinzentado. Pensando bem, cogita, não seria melhor avisar a todos pra que deixem o edifício? Com o nó dos dedos Edgar pam-pam-pam várias vezes na porta ao lado. Victor, você está aí? Nenhuma resposta. Edgar volta a bater, vamos, acorda. Estaria ausente? Claro que não. Raramente sai, esse rapaz, o Victor. Talvez esteja se escondendo. Edgar perde a paciência. Victor deve-lhe dinheiro, muito dinheiro. Porém, isso não é razão pra que não abra a porta, grita ele, olhando pelo buraco da fechadura. Agora não está batendo com tanta calma. As pancadas são fortes, precisas. Vão deixando marcas 30 Continente Multicultural

de queimado na madeira e fazem-se ouvir até nos andares inferiores. Aos poucos, como a fumaça, o pam-pam-pam vai caindo pela escada, quicando nos degraus, nas paredes. – Boa noite, senhor bombeiro. Edgar dá meia-volta. Semelhante a um espectro, uma velha surge no corredor escuro, cuja lâmpada sabe-se lá por que ainda não havia sido acendida – ou estaria quebrada? –, e permanece em pé, sobre uma tábua do assoalho que balança imperceptivelmente. – Olá. Boa noite, senhora Olaf. – Algum problema com o senhor? Não consegue dormir? Ouvi passos... O senhor compreende? Passos no corredor. Atrás de Edgar, o fogo aos poucos vai preenchendo o quarto. Ocupa boa parte da cama, amarrota o lençol, a fronha do travesseiro, o próprio travesseiro. Invade o colchão. Desce pelo estrado e cai no tapete. Espalha-se pelo assoalho, pelas cortinas, chamuscando o globo de luz no teto. Janelas. Todas muito bem trancadas. Completamente à prova de roubo. – O senhor Victor não está em casa. Saiu hoje de manhã e ainda não voltou. Edgar percebe que a velha traz entre os dedos uma caneca vazia. Sempre a mesma caneca. Talvez queira um pouco de café. Talvez apenas açúcar. Mas ela não diz nada e ele se sente mais aliviado assim. Por nada desse mundo entraria novamente no seu apartamento. Muito menos por uma caneca de açúcar.


a senhora Olaf, respingando fogo aqui e ali, como quem diz: – O senhor é o bombeiro, não é? Então faça algo, não fique aí parado – isso ou qualquer outra coisa semelhante. Edgar, no entanto, não chega a compreendêla. A cera derretida nos ouvidos aumentou, e com ela a surdez. – Boa noite, senhora Olaf. Mais conformada, a velha senhora Olaf virase, dá um passo, dá outro passo, e começa a afundar no interior da escuridão. Quando a porta de seu apartamento se fecha, dentro inicia-se uma áspera discussão que logo é concluída. Fora, todo sinal da sua presença desaparece, exceto uma trilha incandescente deixada no corredor.

COMPANHIA DAS LETRAS / DIVULGAÇÃO

– Anita, venha pra cama. Já passa das duas! O senhor Olaf. Do fundo do quarto sua voz vem fraca, mas carregada de ansiedade. Nisso o fogo já se espalha pelo resto da sala, invadindo o corredor. Uma bola de luz dilui a silhueta de ambos, quase derretendo-as. Edgar sente certo constrangimento, seu rosto enrubesce: – Fique tranqüila, senhora Olaf. Não é nada demais. Sempre acontece quando estou fora de casa. Ele me segue por toda a parte, percebe? Alguém se engana a meu respeito, compreende? Tudo isso não passa de um mal-entendido. A senhora Olaf, prestes a se ver incendiada, está tranqüila, muito tranqüila, mas um pouco arrependida por ter saído de seu apartamento. Encostada na porta, o fogo sobe por suas pernas, pelas meias de lã, devorando palmo a palmo também o seu velhíssimo pijama de algodão, seus lábios, seu cabelo. Edgar, um pouco aborrecido, tenta salvá-la das chamas, dá um passo à frente, as mãos pra trás, um gemido rouco preso na garganta, mas então, antes de se contaminar com o toque da mulher, recua. A senhora Olaf, visivelmente contrariada, volta a esconder a caneca no bolso do pijama. Nada de açúcar esta noite. Digam o que disserem as mexeriqueiras de plantão, o que mais a incomoda não é o calor que a envolve, não são as chamas que, devagar, vão derretendo sua aliança de casamento. O que mais a incomoda nesse momento é a presença de Edgar, suas feições de ostra, seu hálito impregnado de álcool, sua voz roufenha. Também a exaspera nesse homem a total indiferença no modo como se veste, na maneira como se dirige aos outros, na forma como articula vogais e consoantes. Irrita-a a freqüência com que coça o cabelo ensebado. E o bafo! Ao falar, ele tem o hábito de aproximar tanto o rosto que é difícil não sentir repulsa. – Anita! O senhor Olaf já a espera na porta, impaciente. É tarde e ele ainda não voltou a se deitar porque o cheiro de queimado lhe é insuportável, corrompendo tudo ao seu redor, parede, armário, tapetes. – É melhor que eu o deixe a sós. Tenha o senhor uma boa noite – despede-se de maneira azeda

Nelson de Oliveira nasceu em 1966, em Guaíra (SP). Diretor de arte, publicou Fábulas (contos, 1995), Os Saltitantes Seres da Lua (contos, 1997), Naquela Época Tínhamos um Gato (contos, 1998), Treze (contos, 1999), Subsolo Infinito (romance, 2000), Às Moscas, Armas! (contos, 2000) e O Filho do Crucificado (novela, 2001). Organizou a antologia Geração 90: Manuscritos de Computador (2001), com os melhores contistas brasileiros que estrearam no final do século 20. Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas (1995) e o da Fundação Cultural da Bahia (1996). Continente Multicultural 31


ANTOLOGIA

Deborah Brennand Feliz é o vento

Agora

Solto nos espinhais indo e voltando entre cardos alheio ao sangue de chagas.

Nas margens, águas salobras embaçam o roxo triste da salsa.

no cimo das pedras sem ninguém embaixo do céu saber a quem afaga. vergando as ramagens jamais lembrando no escuro ou no claro coração e alma. que finda a noite e começo do sol sem lágrimas e sem pedir perdão

O vento

O vento

O vento

Ver a brisa astuta nas sebes sem cicatrizes, gemer enganando as folhas. Ou sentir o odor de laranjais florindo, quando clarões são negros, no fim da tarde

do que faz.

Aquilo tudo

com um olho de sol vítreo e mort

Na soleira de nuvens

Foi só uma união de flores em agosto

Ele se debruça e os seus cabelos cacheados de luz soltos no ar

ramo esfacelado por cega tesoura aquilo foi

tão longos são que alcançam o vale onde o vento é louco e cobre de folhas

o desatino de raízes soltas na terra foi aquilo

o cristal das águas, lá onde a sua imagem surgia faiscando em findo azul

um nunca acontecido de flores, ramos e raízes clamando por um céu

ainda mais bela que a de Narciso. alvo na noite.

32 Continente Multicultural

Inútil é ouvir, tão longe, o balir de uma ovelha sem saber onde.


to.

.

ARQUIVO DA POETA

A fresta Na fresta da janela nasce uma flor negra. Isso não pode acontecer. Mas... aconteceu. Chamem só os que entendem de tão frias paredes. Por que tanta frieza? É janeiro. A luz caiu de vez nas fronhas do meu leito o linho se incendeia. Assim, quem pode adormecer?

Aquarela A luz se compraz em cair do céu amarela. No fim do bosque pássaros voam asas azuis. Da cesta vêm ao chão ramos de samambaias verdes.

Deborah Vasconcelos Brennand nasceu em 1927, no Engenho Lagoa do Ramo, município de Nazaré da Mata, em Pernambuco. Filha única de D. Helena de Moura Vasconcelos e do médico Dr. Antônio Vieira de Vasconcelos, transferiu-se do interior para o Recife onde realizou os seus estudos. Casouse em 1948 com o pintor Francisco Brennand, de cuja união nasceram Maria da Conceição e Maria Helena. A maior parte de sua vida passou no Engenho São Francisco, cercada de pomares e sombras, onde se dedicou à pecuária, às atividades rurais e à poesia. Tem, publicados, os livros O Punhal Tingido ou O Livro das Horas de D. Rosa de Aragão, Gráfica Jornal do Commercio, 1965; Noite de Sol ou As Viagens do Sonho, Gráfica Jornal do Commercio, 1966; O Cadeado Negro, Editora da UFPE, 1971; Pomar de Sombras, Editora da UFPE, 1995; Claridade, Edições Bagaço, 1996; Maçãs Negras, Edições Bagaço, 2001. A sair, ainda este mês, Letras Verdes, Editora da UFPE.

Oculto em pilares o tempo rói a caliça cinza. Só do coração a cor não serve ele que se pinte vermelho em tela. Continente Multicultural 33


O professor Cláudio de Moura Castro chama o movimento estudantil brasileiro de messiânico, defende o provão e diz que a produção acadêmica é feita para ninguém entender Luiz Augusto Falcão

E

xiste um país do Terceiro Mundo onde quase não há crianças fora da escola, os recursos para o ensino são de bom tamanho e a universidade exibe estatísticas de nações ricas. É surpreendente que esse país exista. Mais surpreendente: esse país é o Brasil. Essas informações são do professor Cláudio de Moura Castro e servem de base para uma análise, entretanto, nem sempre plenamente otimista do ensino brasileiro. “Conseguimos botar todo mundo na escola, mas não conseguimos dar uma educação de qualidade”, observa Moura Castro. O problema, portanto, não é de quantidade. Segundo ele, são descompassos de várias espécies que têm conspirado, ao longo da história, contra a formação escolar no país. Dois exemplos: – Durante os anos 70, em pleno milagre econômico, apostou-se numa fórmula que soaria absurda nos dias de hoje – o crescimento sem educação. Deu certo durante poucos anos e, exatamente por causa disso, influiu para que muita coisa desse errada nas duas décadas seguintes.

34 Continente Multicultural

– Em 1993, havia mais vagas nas universidades do que graduados no segundo grau. “Faltou matéria-prima”, resume o professor. Para ele, a distorção torna-se ainda mais grave se for levado em conta que o Brasil é campeão mundial de gastos públicos per capita com o ensino superior. Formado em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com pós-graduação em Berkeley e Vanderbilt (EUA), Cláudio de Moura Castro foi diretor-geral da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e atualmente é presidente do Conselho Consultivo da Faculdade Pitágoras, em Belo Horizonte. Nesta entrevista à Continente Multicultural, Moura Castro aponta falhas e méritos ao discorrer sobre o longo caminho entre o primeiro grau e a universidade. Nesse percurso, se contrapõe, às vezes, a correntes de pensamento bem estabelecidas. Trata com ceticismo o uso de computadores nas salas de aula – “a experiência para um programa de massa não funcionou em nenhum lugar do mundo” –, fustiga o movimento estudantil – seus integrantes não teriam competência para falar sobre temas como o FMI e a globalização.

PAULO JARES / ABRIL IMAGENS

CONVERSA FRANCA

O quadro verde (e amarelo) da educacao:


MARCOS SIMARDI / AE

Houve um crescimento econômico nos anos 70 que não foi acompanhado de um progresso da educação. Seria possível nos dias de hoje fazer o mesmo? Eu costumo dizer que o “Milagre Brasileiro” foi o Brasil ser um dos países que mais cresceu no século passado, comparado com qualquer outro país, e, ao mesmo tempo, ser paupérrimo em matéria de educação. Não é só na década de 70. O Brasil é um país que tem indicadores de educação parecidos com os da Bolívia e Paraguai, apesar de ter se tornado uma economia relativamente bem-sucedida, sobretudo comparado ao que era. Esse é que é o milagre. Como foi possível? Graças à indústria grande, à divisão do trabalho, à produção em massa e ao uso bastante inteligente dos poucos bem educados. Agora, acontece que os processos modernos dependem muito mais de uma horizontalização do processo decisório, ou seja, nas empresas grandes e modernas, aqueles que estão lá embaixo na hierarquia têm que tomar mais decisões. Ao mesmo tempo a pequena indústria se torna, digamos, a locomotiva da criação de emprego. E a pequena indústria não tem as vantagens da divisão de trabalho da grande. Quer dizer, numa indústria grande você pega uma pessoa superlativamente bem educada e essa pessoa tem repercussões até o último nível hierárquico da empresa. Numa empresa pequena, não, você tem uma necessidade muito maior de educação. E o Brasil não tem o tanto de gente com uma educação de qualidade que seria requerido para distribuir isso por pequenas empresas.

De que modo a educação pode influir na produtividade das indústrias? Vamos pegar um exemplo simples, o controle de qualidade. Numa indústria automatizada tradicional, você tinha um departamento de controle de qualidade no fim da linha, e só na porteira final alguém pegava a falta de qualidade, o defeito. Hoje, o processo do controle de qualidade foi transferido para o operário individual. Cada operário é responsável pela qualidade da produção da empresa. Então, o grau de conceitualização para um operário identificar um problema de má qualidade, de perda, de defeito, significa que ele tem que ter um grau de educação maior. Para operar a máquina, pode ser um analfabeto, mas, para ler os boletins de qualidade, para o acompanhamento de perda de produtividade, tem que ter segundo grau completo. Então, a mudança é radical. Algumas avaliações do governo, e também de alguns setores fora do governo, dizem que a educação no ensino básico tem melhorado. Inclusive, foi feito um balanço relativamente otimista sobre o desempenho do primeiro e segundo graus na década de 90. Noventa e sete por cento da população, de sete a catorze anos, estariam freqüentando a escola, e o país, enfim, teria deixado de fabricar analfabetos. O que é preciso para avançar nesse setor, pelo menos para manter esse ritmo, se ele realmente existe? Hoje o problema é só de qualidade. Ou seja, os dados mostraram que nós colocamos na escola todo mundo que tínhamos que colocar. As pessoas ficam um colosso de tempo na escola, só que elas aprendem pouco e vão embora após quase dez anos de escolarização, em média, sem atingir os níveis de escolaridade que seriam desejados. Portanto, o que era um problema de quantidade, no ensino médio – nós tínhamos um

Crianças usam o computador para aprender: “As escolas não estão preparadas”


ensino médio diminuto – na verdade é um problema de qualidade no ensino de primeiro grau, porque as pessoas encalhavam no meio do primeiro grau. E isso gerava o problema de quantidade no ensino médio. E isso é o resultado do grande êxito do Brasil em criar um sistema enorme em que todo mundo entra e em que todo mundo fica um tempão. Quer dizer, é uma questão de evolução, há um ciclo, um processo evolutivo: nós conseguimos botar todo mundo na escola, mas não conseguimos oferecer uma educação de qualidade. O desafio agora é qualidade, só. A Internet, da década de 90 para cá, deve ter modificado alguns hábitos do ensino médio. De que forma a Internet ajuda ou atrapalha o aprendizado? Veja bem, há uma grande diferença entre o potencial da Internet e a realidade da Internet, a realidade do computador em geral. Todos os experimentos bem controlados que foram avaliados mostram resultados extraordinários, extraordinariamente promissores. Quase todo o experimento de implantação de computador em massa mostra resultados muito pobres. Ou seja, a transição de um experimento para um programa de massa não tem funcionado praticamente em nenhum lugar do mundo. Não há um país em que a gente possa dizer que foi bem-sucedido ao usar computador em sala de aula. Você poderia apresentar alguns exemplos de bons experimentos? A grande criatividade do computador está em fazer coisas que são muito diferentes da rotina da escola. A escola é disciplinar, o computador propõe jogos educativos, alternativas, atividades que são interdisciplinares, e a escola não sabe jogar com isso. Os usos criativos do computador não se resolvem bem com uma aula de cinqüenta ou quarenta e cinco minutos, que pára, muda tudo, entra outro professor. Ele requer uma organização do tempo diferente, não se acomoda bem com os currículos oficiais. Então, na verdade, o uso criativo do computador requer uma revolução tão grande na sala de aula, para a qual as escolas não estão preparadas. As escolas realmente recusam o uso revolucionário do computador e amansam, domesticam o computador, para ser usado naquilo que elas vêm fazendo e sabem fazer. Existem modelos onde funciona essa integração entre a escola e o computador? 36 Continente Multicultural

Existem escolas, não sistemas. Talvez um dos países que tenha avançado mais seja Israel, com um programa ainda um pouco experimental, mas que está se difundindo, de uso do computador nas escolas para utilidades múltiplas. Enquanto são feitas algumas avaliações positivas na área do ensino de primeiro e segundo graus, parece que existe muita gente achando que a universidade está no processo de sucateamento. O que está ocorrendo nessa área? Não. A universidade é abastecida por um sistema ruim. Portanto, quem chega à universidade chega com uma preparação muito variada. Aqueles que vieram de escolas muito bem manejadas vêm muito bem preparados, e os outros vêm mal preparados. Mas isso é uma contingência, a universidade não pode se recusar a crescer por causa disso. Ela tem que aceitar a qualidade do aluno que ela recebe e tem que tratar esse aluno pelo que ele é, e não pelo que ela gostaria que ele fosse. A idéia de que a universidade está sucateada é um slogan. O que significa isso, na prática? Na verdade, a parte mais nobre da universidade pública é a pós-graduação, e mais ou menos a cada dois anos o Brasil passa na frente de um outro país em matéria de produção científica. Ora, uma universidade sucateada não pode passar na frente de outros países em matéria de produção científica. A pós-graduação não está sucateada, ela está funcionando muito bem. Já a graduação funciona, de modo geral, com regras ruins. O que garante a quali-


REPRODUÇÃO

dade é o idealismo e o esforço dos professores, e não o mecanismo de estímulos e de sanções, ou seja, o puxão de orelhas. A universidade no nível de graduação é, lamentavelmente, arrumada de forma a premiar qualidade e punir ou puxar a orelha de quem funciona mal. Agora nós estamos melhorando. Existe uma escravidão a um modelo único da Universidade de Pesquisa. Nós pensamos em ensino superior como se ensino superior pudesse ser ou devesse ser a universidade que faz ensino, pesquisa e extensão. Nos EUA, só três por cento fazem pesquisa de forma sistemática. As outras fazem ensino e têm como objetivo oferecer o melhor ensino possível. E mais ainda: o melhor ensino possível depende do aluno. O melhor ensino para um aluno é diferente do melhor ensino para um outro aluno. Quer dizer, se você tomar alunos de Harvard e colocar num college, num curso de qualquer coisa, de mecânica ou de como fazer botas sob medida, que são cursos de nível superior nos EUA, o aluno vai achar aquilo um horror. Agora, se você pegar os alunos do college e puser em Harvard, eles vão achar que é um bando de “porra-louca” dizendo coisas absolutamente idiotas da estratosfera, incompreensíveis, desorganizados, sem didática, sem nenhum atendimento ao aluno, com arrogância, com má vontade, uma coisa horrorosa. Quer dizer, não existe ensino bom que seja bom para todo o aluno. Então, o ensino bom para o aluno que chega semi-analfabeto é o ensino que alfabetiza esse aluno. Se o aluno está chegando semi-analfabeto, essa é a realidade, então a primeira coisa, antes de ensinar o que quer que seja, é realmente alfabetizar esse aluno.

O movimento estudantil defende interesses particulares, ou salta daí para os grandes temas, da globalização, do Fundo Monetário, assuntos dos quais estes alunos não têm a menor competência para falar

Flagrante de confronto entre estudantes da Faculdade de Filosofia da USP e do Mackenzie, São Paulo, 1968

Mas o processo de pós-ggraduação também é um pouco longo e alguns programas precisam ser redirecionados... A pós-graduação nossa é uma cópia da americana. Felizmente, porque se copiássemos a européia estaríamos copiando um sistema que já é totalmente obsoleto. Toda a vez que a pós-graduação européia se moderniza é pra ficar mais parecida com a americana. Enfim, se nós copiamos a pós-graduação americana, dar uma olhada nela de vez em quando é interessante, porque nós vamos ver as coisas que lá não funcionaram, enfim, há um certo referencial. Nós criamos mestrados nas áreas científicas, e foi uma política inteligente, porque essa era uma boa maneira de aprender a trabalhar até que amadurecesse o doutorado. Ou seja, o nosso mestrado era Continente Multicultural 37


REPRODUÇÃO

Operários numa linha de produção: “Hoje, o processo do controle de qualidade foi transferido para o operário individual”

um aprendiz de doutorado. No momento em que o nosso doutorado amadureceu, a idéia era que o mestrado tinha que desaparecer. Ele era um processo de aprendizado, de amadurecimento. Não existe, nos EUA, mestrado científico, mestrado em biologia, em economia, em química, e física, em nada disso. Os mestrados que existem nos EUA são nas áreas profissionais ou de serviço. Administração, engenharia, enfermagem. E o que foi que aconteceu? Nós criamos o mestrado, criamos o doutorado e esquecemos de “descriar” o mestrado. Então, ficou o mestrado e em seguida o doutorado. Tem o pós-ddoutorado também. Mas o pós-doutorado é basicamente uma reciclagem, uma volta a uma oportunidade de ler, de escrever, de se desvincular das suas obrigações e de arejar um pouco no exterior. Então nós acabamos com a pós-graduação mais longa do mundo, o que é muito fácil de resolver, é só acabar com o mestrado científico de um dia para o outro, e não precisa forçar nenhuma universidade a acabar, é só tirar as bolsas e fazer o que existe em todos os lugares, que é o mestrado profissional. E qual o papel dos nossos pós-ggraduados? Eu acho que eles estão contribuindo muito. A melhoria de qualidade resultante da disciplina de fa-

38 Continente Multicultural

zer um curso de mestrado, de doutorado, durante anos a fio, é inegável. Quer dizer, as pessoas saem com uma capacidade analítica muito maior, com uma capacidade de definir problemas, de colocar no papel idéias, com uma cultura geral muito maior. O que quer que elas venham fazer, elas estarão muito mais bem preparadas. A pós-graduação, o mestrado e o doutorado no Brasil fazem o papel do curso de graduação de elite nos países como a França, EUA e assim por diante. Alguns setores dos meios acadêmicos tratam como uma coisa incestuosa a relação entre empresa e universidade, já na graduação. Existe isso ainda ou essa cultura tem sido afastada, de certa forma? Há um avanço. Isso nunca será uma coisa tranqüila. A interferência de fatores externos na universidade tem potenciais e tem perigos, obviamente. Um departamento de engenharia tem, definitivamente, que ser quase governado pelas empresas. Quer dizer, são as empresas que sabem em que direção a tecnologia está andando; são as empresas que sabem o que é que se precisa, o tipo de formação que corresponde às suas necessidades. Agora, a empresa não tem nada que dar palpite no departamento de sociologia, de filosofia. Quer dizer, é uma questão de coerência.


No movimento estudantil, existe uma tendência a priorizar as questões políticas nacionais ou internacionais em detrimento do cotidiano do ensino, dos próprios assuntos curriculares da universidade... Como o senhor vê esse comportamento? Isso é clássico de países subdesenvolvidos. Se você for ver por que os estudantes da Europa estão brigando e se você vir por que estão brigando os dos países subdesenvolvidos, vai ver que são os grandes temas messiânicos que estão polarizando os estudantes dos países mais intelectualmente imaturos. Ou então temos muito de interesse privado, quer dizer, houve uma privatização dos temas públicos. O que é que os estudantes vão defender? O restaurante que está caro, que resolveu aumentar de um para dois reais. Isso não é assunto de educação. Isso é a defesa de um privilégio particular. Ou então saltam daí para os grandes temas, da globalização, do Fundo Monetário Internacional, assuntos dos quais estes alunos não têm a menor competência para falar, porque são assuntos que se tornaram muito complicados.

Com o provão, não precisamos saber como o aluno aprendeu, contanto que tenha aprendido. Se foi Deus que botou o conhecimento na cabeça dele ou se foi o professor fazendo força, não interessa

Que avaliação faz o senhor do “provão”? E o que acha dos argumentos contra o “provão”? Quando o time perde, a primeira providência é dizer que o juiz roubou. Há uma reação natural do avaliado. Todo mundo quer avaliar os outros, mas ninguém quer ser avaliado. E como o sistema brasileiro passou muito tempo sem ser avaliado, essa reação foi muito forte no início. Mas, na verdade, o que é o provão? É um sistema de navegação muito interessante, porque permite a quem administra a educação superior, das universidades públicas ou privadas, ou o MEC, não intervir diretamente, quer dizer, reduzir a sua intervenção direta no processo de escolarização e simplesmente controlar o resultado final. Porque a alternativa é você controlar o processo, que é uma coisa horrível, você saber se a aula é grande, se a sala é pequena, se tem isso, se tem aquilo, se o professor é assim, se o professor é assado. Com o provão você não precisa saber nada, se o aluno aprendeu você lava as mãos e não quer saber como é que aprendeu. Se foi Deus que botou o conhecimento na cabeça do aluno ou se foi o professor fazendo força, não interessa. Se o aluno não aprendeu, aí você tem que ver por que é que ele não aprendeu, tem que ir à escola pra ver esse resultado ruim. O provão permite um acompanhamento de qualidade sem uma interferência direta. Portanto, é um instruContinente Multicultural 39


As diferenças regionais teriam algum efeito no provão, de alguém ter uma avaliação única para uma faculdade que fica no interior do Mato Grosso e outra de São Paulo, por exemplo? Seria uma coisa correta ou precisaria de algumas adaptações? Quando eu era diretor da Capes, o pessoal do Nordeste vinha reclamar que o critério de avaliação da Capes era o mesmo para o Nordeste e para o Sul, e a minha resposta era a mesma e é a mesma para o provão. Quando você está com muita febre, o médico não vem com um termômetro diferente: coitadinha, ela está com tanta febre que nós precisamos de um termômetro diferente. Febre nordestina. É. Então a idéia é a seguinte: o termômetro tem que ser o mesmo, mas o diagnóstico é diferente e a terapia é diferente. Quando uma universidade no interior do Nordeste consegue uma nota C você diz: “Universidade boa, hein? Os caras tão fazendo um serviço direito”. Por quê? Porque a disponibilidade de professores é muito menor, a disponibilidade de recursos é muito menor, o que os alunos chegam sabendo é muito menos e eles conseguiram tirar uma nota que corresponde à média nacional. Então esse é o diagnóstico. Se uma universidade no Rio de Janeiro e São Paulo conseguir C, não há vantagem nenhuma porque são os melhores sistemas educativos, é a maior disponibilidade de recursos humanos e professores. Então, o diagnóstico é diferente e a terapia, conseqüentemente, tem que ser diferente. Uma tem que ser cumprimentada, a outra tem que levar um puxão de orelha. A dicotomia entre a produção universitária e a produção cultural feita fora da universidade existe no Brasil? Eu acho que a produção tem que ser avaliada intrinsecamente e não pela sua origem. A universidade claramente tem os seus cacoetes, quer dizer, o professor raramente acha que pode escrever coisa que todo mundo entende. Daí que a produção universitária tende a ser muito hermética, muito preocupada em mostrar erudição e ter uma transmissão das idéias muito difícil. Quer dizer, professor universitário não dá bom jornalista. Luiz Augusto Falcão é jornalista

40 Continente Multicultural

ANISIO TEIXE Edson Nery da Fonseca

“M

uito da inspiração do que vimos procurando fazer vem do que aprendemos com você e com sua obra.” Estas palavras, dirigidas por Anísio Teixeira a Gilberto Freyre, citadas por Maria Lúcia Pallares-Burke em artigo para a Folha de S. Paulo, animam-me a tentar um paralelo entre os dois grandes pensadores brasileiros. A primeira aproximação é de natureza geracional. “Os da mesma geração – escreveu Gilberto Freyre em 1924 – somos como compatriotas ligados uns aos outros pelos destinos comuns e pelos deveres de lealdade recíproca”. Anísio e Gilberto nasceram em 1900. Ambos foram marcados, na primeira mocidade, pela crise religiosa. Gilberto, pelo Cristianismo evangélico, e Anísio, pela espiritualidade inaciana. Gilberto queria ser missionário batista na Amazônia. Anísio desejava ser jesuíta. Duas juventudes voltadas para o ideal religioso. Queriam, como Cristo, viver para servir e não para serem servidos. É certo que não chegaram a concretizar o sonho religioso da juventude. Gilberto perdeu o ideal evangélico em plena universidade batista na qual seguia o curso de bacharelado em artes: decepcionarao o aburguesamento dos batistas e sua cumplicidade com o racismo. Com Anísio ocorreu um drama semeREPRODUÇÃO

mento que dá um potencial de autonomia muito grande à escola.


EIRA E

GILBERTO FREYRE

Ambos deram grande contribuição para a educação brasileira, mais tarde prejudicada pelo regime militar o regionalismo freyriano não se restringia à exaltação dos valores da culinária nordestina, como dizem alguns críticos. Mesmo que fosse apenas isso, já mereceria nosso apoio, pois, como escreveu o famoso Brillat-Savarin, “o destino dos povos depende da maneira como eles se alimentam”, observação completada por nosso Eduardo Prado quando escreveu: “O paladar é talvez o último reduto do espírito nacional; quando ele se desnacionaliza está desnacionalizando tudo mais”. Entretanto, o regionalismo freyriano era muito mais abrangente: era todo um ideário metapolítico. O que Freyre queria era um Brasil administrado regionalmente, isto é, fiel à grande variedade ecológica e cultural de seu imenso território. Por isso acreditamos ter sido o regionalismo freyriano que levou Anísio Teixeira a criar os centros regionais de pesquisas educacionais em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e Recife, coordenados pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais na então Capital da República. Era natural que Anísio convidasse Gilberto para dirigir o Centro Regional de Pesquisas Educacionais sediado no Recife, inaugurado em novembro de 1957. Gilberto cercou-se, no Centro, de jovens e esclarecidos educadores, sem esquecer os mais velhos, convidados a falar de suas experiências em escolas recifenses de vários graus. O fechamento manu militari dos centros brasileiros e regionais de pesquisas educacionais foi uma grande estupidez, um golpe no regionalismo freyriano. A educação brasileira regrediu com sua volta ao centralismo dirigido por burocratas de Brasília.

Na página oposta, Anísio Teixeira Abaixo, Gilberto Freyre

Edson Nery da Fonseca é professor emérito da Universidade de Brasília – UnB

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REPRODUÇÃO

lhante ao de Simone de Beauvoir, comentado por um teólogo da Ordem dos Pregadores: a mensagem religiosa que receberam em colégios católicos era tão infantil que a vomitaram ao se tornarem adultos. Mas nem Gilberto nem Anísio traíram seus ideais de juventude. Apenas os secularizaram. Gilberto aprofundou-se no estudo da formação social do Brasil para melhor compreendê-la e interpretá-la; Anísio, “trocando a Religião pela Educação”, como assinalou Alceu Amoroso Lima. Não deixa de ser interessante lembrar que o drama religioso de ambos ocorreu nos Estados Unidos: o de Gilberto, na Universidade Baylor, entre 1918 e 1920; o de Anísio, na Universidade Columbia, de 1928 a 1929. Gilberto aproximou-se da Igreja Católica através de Oliveira Lima e da leitura de grandes convertidos como o cardeal Newman; Anísio foi influenciado pelo pragmatismo de John Dewey. Sem terem sido políticos partidários, Gilberto e Anísio foram vítimas da Revolução de 30. Anísio como diretor da Instrução Pública da Bahia no governo de Francisco Marques de Góis Calmon; Gilberto como secretário particular do governador Estácio de Albuquerque Coimbra. Conheceram-se na Bahia, na casa de Góis Calmon, quando ambos exerciam atividades quase políticas. Em 1935, eles voltaram a se encontrar, desta vez no Rio de Janeiro, sendo Anísio reitor da Universidade do Distrito Federal. Criada por sugestão sua, essa universidade foi, segundo Gilberto Freyre, “o exemplo mais alto e mais puro de organização universitária que se realizou em nosso país”. Na Universidade do Distrito Federal, Gilberto dirigiu, a convite de Anísio, um curso de sociologia e de antropologia do qual resultaria o livro Sociologia: Introdução ao Estudo dos seus Princípios, prefaciado por Anísio a partir da segunda edição. Foi certamente o regionalismo de Gilberto Freyre que levou Anísio Teixeira a fazer a declaração recolhida por Maria Lúcia Pallares-Burke. Porque


SABORES PERNAMBUCANOS

De sarrabulho e sarapatel “Deixa a tristeza para lá. Vem comer, vem jantar sarapatel, caruru, tucupi, tacacá...” Chico Buarque

Os romanos comiam-lhe as vulvas e as tetas; os alemães, os joelhos; e os portugueses comprovam que, do porco, tudo se aproveita

A

colonização portuguesa foi, sobretudo, uma tentativa de reproduzir, no além-mar, os ambientes da terra-mãe – curral, quintal e horta. Os imigrantes trouxeram, com eles, porco domesticado, carneiro, bode, galinha, pombo, pato, ganso. Além do cão, claro. Plantaram coqueiros nas praias, com matrizes vindas da África. Plantaram cidra, figo, laranja, lima, limão, melão, melancia, maçã, marmelo, pêra, pêssego, romã. E também acelga, agrião, alface, berinjela, cenoura, coentro, cebolinha, couve, endro, espinafre, funcho, gengibre, hortelã, nabo, manjericão, pepino, salsa. Semearam arroz. Sem esquecer alho, cebola e cominho – que pelo mundo acompanharam o colonizador português, como a mostarda acompanhou o colonizador inglês. Caso exemplar de sucesso, na entronização de novos hábitos culturais, foi o do porco. Por várias razões. Primeiro, porque seus similares nativos eram todos selvagens – antas, caititus, capivaras, queixadas e outros porcos-do-mato; enquanto o “porco rosa”

já chegou por aqui domesticado por civilizações milenares. Não por acaso, segundo a arqueologia contemporânea, ele foi dos primeiros animais a serem criados pelo homem. Depois da ovelha, do cão e da cabra, é certo. Mas antes da vaca, do burro, do cavalo e do dromedário. Segundo, porque a carne magra, escura, fibrosa e perfumada dos animais selvagens passou rapidamente a ser menos apreciada que aquela carne nova, mais clara, mais gorda e mais tenra. E, finalmente, porque, enquanto os similares nativos davam (quase todos) apenas uma cria por ano, o porco domesticado tinha ninhadas de até 12 filhotes. Ele era, simplesmente, mais eficiente como reprodutor. Era mais econômico. Era mais apto. Sinais primeiros de uma globalização que, 500 anos depois, ameaçaria um animal muito mais rústico que o porco – o próprio homem. O cardápio português é pródigo em porco e derivados. Na dieta dos doentes se prescrevia porquinho novo, “carne sem pecado”. Por ser adequado aos primeiros dias de luto, era também conhecido como “comida de dó”. Em comunidades, podese matar cabrito, ovelha ou vaca e não convidar os

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 42 Continente Multicultural


vizinhos. Mas com o porco é diferente. Porque, de todas as carnes, é talvez a que melhor exprima a dimensão social da confraternização. Para além de seus atributos culinários, o porco também exerceu forte papel simbólico por toda a Europa. Inclusive distinguindo cristãos, que podiam consumi-la, de judeus e mouros, para quem era comida proibida. Tudo segundo textos sacros. Para judeus, o Levítico (11, 2 a 8): “Entre todos os animais da Terra, eis os que podereis comer: podereis comer todo animal que tem a unha fendida e o casco dividido, e que rumina. Mas não comereis aqueles que só ruminam ou só têm a unha fendida... como o porco, que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina; tê-lo-eis por impuro. Não comereis da sua carne e não tocareis nos seus cadáveres...” Para mouros, o Alcorão (2, 168): “E estas coisas Ele te proibiu: carniça, sangue e carne de porco”. A história do porco é marcada por amores e desamores. Os egípcios achavam que ele transmitia lepra; não sendo, por isso, pintado nas tumbas dos faraós. O mesmo para os hebreus. Em contrapartida, acabou sendo muito apreciado por romanos e gregos – não havendo banquete, por lá, em que não se encontrassem vulvas e tetas de porca. Homero se refere, na Odisséia, a um “divino porqueiro” (aquele que trata dos porcos); e foi em casa deste que Ulisses se abrigou, no retorno a Ítaca e à sua Penélope. Não perdeu importância na Idade Média. Havendo registro de sua presença em banquetes da aristocracia da França (quase sempre no Louvre); nos de Henrique IV, da Inglaterra; e nos de D. Maria I, de Portugal. Sem esquecer que, segundo as más lín-

SARAPATEL • 2 kg de sarapatel (fígado, coração, rins, língua, sangue e toucinho de porco) • 5 dentes de alho socados • 3 cebolas grandes raladas • 4 tomates, cortados em pedaços, sem peles e sem sementes • 1 pimentão cortado em tiras • Coentro e cebolinha • Sal, pimenta do reino e pimenta de cheiro, a gosto • 3 folhas de louro • 4 colheres de sopa de vinagre • ½ xícara de óleo ou banha do porco

Preparo: • Escalde o sarapatel com água fervendo. Depois, pique, reservando uma parte do sangue. Tempere com todos os ingredientes. • Leve ao fogo óleo ou banha. Junte o sarapatel e os temperos. Refogue bastante. • Aos poucos vá acrescentando água até que fique bem cozido. • Junte o sangue restante, para engrossar o molho. Deixe cozinhar por mais tempo.

guas, Buda morreu de uma indigestão. Empanturrado com carne de porco. Desse animal, tudo se aproveita: lombo, filé, carrê, costela, pernil, paleta, pá, pé, barriga (de onde se extrai a banha), joelho (usado para fazer um prato típico alemão, o eisbein). Do pernil se faz presunto. Talvez por isso ao porco chamavam também chacim – sendo chacinado, nos primórdios, apenas um porco defumado. Já os enchidos portugueses são tradição herdada de celtas, visigodos, godos, ostrogodos e vândalos, que aprenderam a conservar carne com sal, durante o inverno. Os romanos também usaram a técnica – mas só depois, quando Júlio César conquistou a Gália (ou apenas uma pequena parte dela, segundo franceses ortodoxos). De tripas, fígado e sangue, em Portugal, se faz o sarrabulho. Especialmente papas e arroz. É prato típico do Minho. E acabou sendo a origem do nosso sarapatel. Apesar disso, há os que continuam acreditando ter ele vindo de Goa, na Índia. Talvez esquecendo que a região foi possessão portuguesa, de 1510 a 1961; produzindo, tão longa dominação, uma cozinha que mistura hábitos de colonizadores e colonizados. Mas, para quem já provou dos pratos, não é boa aposta. Que o sarapatel de Goa, além de quase nunca usar sangue, leva temperos que não usamos – açafrão, cravo, cominho, gengibre e água de tamarindo. Enquanto o nosso, brasileiro, acabou tendo os cheiros e os gostos dos preparados em Portugal, nos últimos 500 anos. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

SARRABULHO • 1 kg de carne de porco magra, 250 gr de gordura dos folhos (a que liga as tripas), 100 gr de banha, 250 gr de fígado, 250 gr de tripa, 250 gr de sangue cozido. • 6 dentes de alho • 1 cebola • 1 copo de vinho branco • 2 colheres de sopa de azeite • Sal, pimenta e cominho

Preparo: • Corte as carnes em pedaços regulares, temperando com alho, vinho, sal, pimenta e cominho. • Derreta, suavemente, a gordura dos folhos. • Junte as carnes e deixe alourar, até que estejam bem macias. Acrescente a marinada e deixe evaporar. • Separadamente, derreta a banha, doure a cebola e junte as tripas cortadas e o fígado. • Junte tudo num mesmo recipiente. Tempere com mais sal, pimenta e cominho, se necessário. • Depois de pronto, acrescente um fio de azeite.

Continente Multicultural 43


política cultural

Investir em cultura é um bom negócio Doze empresários e produtores culturais brasileiros pensam o tema responsabilidade social, centrando a discussão no investimento em cultura 44 Continente Multicultural


A

consciência cada vez maior entre o empresariado da necessidade de colocar em termos concretos a sua responsabilidade social, o que engloba também a questão cultural, tem instigado a discussão em torno do mecenato. A relação entre o empresariado e a cultura, na forma de patrocínio, seja de forma direta, seja através das leis de cultura, tem tomado espaço na pauta de questões a serem bem solucionadas. Tal preocupação tem levado algumas empresas e entidades empresariais a criar departamentos de estudo sobre o assunto e a projetar modos sistemáticos de atender às necessidades da produção de cultura. Afinal, a empresa, principalmente a de grande porte, não é apenas um negócio, é também um

ente comunitário, inserido num contexto com o qual pode e deve contribuir. Para que a discussão dê frutos, é preciso que, de um lado, os empresários percebam que o patrocínio é uma poderosa ferramenta de marketing, e um conhecimento melhor das leis de incentivo à cultura pode facilitar sua ação; mas, do outro, é necessário, também, que os produtores culturais ofereçam produtos de boa qualidade e tenham uma postura profissional na relação com as empresas, procurando enfatizar na mídia o retorno que elas esperam. Afinal, investimento em cultura é, antes de tudo, investimento. A revista Continente Multicultural elencou um grupo de empresários e produtores culturais para falar sobre o assunto, em depoimentos aos jornalistas Fernando Oliva (SP) e Tatiana Resende (PE). Continente Multicultural 45


MILTON MICHIDA / AE

“Um agente d Armando Monteiro Ne

Armando Monteiro Neto, presidente da Fiepe

O

bibliófilo e empresário José Mindlin, um dos fundadores da Metal Leve nos anos 50, e seu presidente até 1996, começa discordando do termo mecenato, palavra que “carrega idéia de favor”. Segundo ele, “a contribuição do empresário, como de qualquer cidadão, é um obrigação social, em que não cabe um papel de agradecimento”. Para Mindlin, de um lado está a possibilidade de investir, mas de outro deve existir a consciência de que isso é importante para o País. “É claro que os incentivos podem ajudar”, prossegue ele, “mas a cultura não pode depender apenas desses estímulos, e sim, estar atrelada a um reconhecimento, por parte de toda a sociedade, de que isso é um dever social e uma necessidade para o desenvolvimento cultural do Brasil”. O empresário acredita que a companhia não deve se transformar em um objetivo em si, mas em instrumento de desenvolvimento social e apoio à cultura. Na comparação com os países desenvolvidos, ressalva: “Nos EUA, por exemplo, é antiga a tradição de fomento, só que ela foi se sedimentando por meio de poderosos incentivos, cuja utilização foi criando o hábito de apoiar a cultura”. Outro grande engano é atribuir apenas ao Estado a responsabilidade pelo crescimento cultural de um país. Ele lembra, ainda, que na questão do mecenato, não se pode falar em “empresário brasileiro, como um todo”, já que existe uma diferença “de 180 graus entre as companhias, tanto de postura em relação à cultura, quanto de capacidade de investir”. “Tenho sempre frisado que acredito na propagação de idéias para a formação da mentalidade. E tenho conseguido resultados.” Quando esteve à frente da Metal Leve, promoveu a edição de dezenas de obras literárias e artísticas, como Drummond Frente e Verso, Homenagem a Manuel Bandeira e Gravuras e Desenhos de Lasar Segall. (FO)

46 Continente Multicultural

“T

udo aquilo que faz uma empresa levar a informação, o entretenimento, aprimorar e desenvolver a formação das pessoas reverte para a melhoria do ambiente em que a empresa atua.” É a opinião de Armando Monteiro Neto, presidente da Fiepe – Federação da Indústria do Estado de Pernambuco. Para Monteiro, argumentos como esse ajudam a suprir uma carência de investimentos em cultura, não apenas da parte do empresariado pernambucano, como de todo o Brasil. “A empresa brasileira sempre viveu confrontada com as dificuldades inerentes ao seu próprio dia-a-dia, como financiamento, acesso a mercado e o próprio regime tributário a que está submetida”, diz ele, explicando porque a cultura não podia ser uma prioridade. “Mas a partir do momento em IMACRO

José Mindlin, na sua biblioteca


e mudanças” to, presidente da Fiepe que a empresa passa a ter uma estabilidade e se firma no mercado em que atua, quando ela começa a ter um grau de profissionalização maior, modernização administrativa, normalmente passa a se preocupar mais com as questões ligadas à responsabilidade social.” A empresa, segundo Monteiro, seria um agente de mudanças, investindo na educação dos seus funcionários e familiares, na preservação do meio ambiente, num crescimento sustentável. Ele nota esta atitude não apenas em empresas de grande porte ou naquelas ligadas a multinacionais, mas também nas de porte médio. Para incentivar toda essa mudança de orientação, Monteiro acha que é preciso mais do que incentivos fiscais. “É preciso que a própria comunidade valorize mais essa participação das empresas. Toda vez que a empresa faz uma ação nessa área, é preciso que haja uma retribuição da sociedade traduzida na forma da manifestação de reconhecimento por essa ação”. Além da sociedade, o Estado seria outro ator crucial no processo. “O Estado tem estruturas próprias. Tem, por exemplo, os instrumentos operacionais para poder atuar nessa área. Cada Secretaria de Cultura é uma base para que você também possa promover a cultura. Quando o Estado assume como uma política pública essa questão do apoio à cultura, é necessário também que o próprio Estado dê exemplos concretos de como ele pode atuar nessa promoção.” Quanto à escassez de recursos estatais, ele lembra que a época é de parcerias, em que é fundamental que se busque a participação das empresas e de outros entes, como Organizações Não Governamentais. A Fiepe tem a idéia de estruturar um banco de projetos, para que se faça a aproximação entre o produtor cultural e o empresário. Seria feita uma triagem e depois identificado um investidor local. A Fiepe tem 40 sindicatos patronais associados, representando, portanto, mais de duas mil empresas. (TR)

D

os 34 projetos culturais aprovados pela Prefeitura da Cidade do Recife, em 2000, dez tiveram apoio do Hospital Santa Joana e um do Memorial São José (ambos do Grupo Fernandes Vieira), totalizando uma verba destinada de R$ 254 mil. Eustácio Vieira Filho, diretor do hospital, fala das leis de incentivo com ponderação. “Poucos são os governos que estão dispostos a abrir mão das suas receitas tributárias parta investir na cultura. Na lei municipal, a renúncia total do Município era de R$ 1 milhão, com limite de R$ 50 mil por projeto, o que é muito pouco, impedindo, por exemplo, que se faça um filme.” Mas concorda que a lei é a melhor iniciação para o empresariado, que não tem por quê não investir, vez que o mesmo recurso iria para o Fisco. Vieira vê os resultados de um investimento em cultura como “algo muito mais subliminar, que fica na base da simpatia e atinge um público restrito”, mas que são necessários para restaurar valores perdidos na sociedade. Entre outros projetos, o Hospital Santa Joana investiu no Evaldo 90 anos, que tem como objetivo salvar a memória do filósofo Evaldo Coutinho; o vídeodocumentário Vassourinhas, a Música Mais Tocada do Século, de Ionaldo Santana; as exposições de esculturas e relevos de Emanoel Araújo e do acervo do Mamam em homenagem a Bajado; o CD Inventário do Amor, do compositor Antônio Madureira com poesias musicadas do pernambucano Jacy Bezerra. (TR)

F

ernando Arronte, presidente da Celpe, acredita que está na sintonia entre os projetos financiados e as prioridades culturais da empresa a chave para uma boa política de incentivo. Por isso defende que os empresários não fiquem só esperando os projetos já estruturados, e apontem as próprias idéias. Também diz que “não parece razoável que uma só empresa atomize demais as suas participações em diferentes planos culturais”, diz. “A diversificação em nada contribui para assinalar uma presença.” Para Arronte, ao vincular a sua logomarca em iniciativas culturais, as empresas são acolhidas como partícipes de valores que sensibilizam pessoas. A disposição das empresas em investir em cultura, segundo ele, foi estimulada pelas leis de incentivo a ponto de resultar em investimentos voluntários. Um dos investimentos recentes da Celpe foi o lançamento do livro Coisas do Recife, de Fernando Menezes, cuja edição foi esgotada. (TR) Continente Multicultural 47


E

duardo Falcão é o gerente de marketing da BCP, empresa que tem priorizado patrocinar shows musicais e festas como o Carnaval, São João, a Paixão de Cristo e o Festival de Inverno. “Buscamos vínculos com a região.” Sobre a globalização, considera que “fez aumentar a consciência sobre preservação ambiental. Por que não contribuir também na preservação cultural? Capitalismo e cultura não se opõem, pelo contrário, podem ser fortes aliados.” (TR) O presidente do Bandepe, Celso Antunes

O

presidente da Philips na América Latina, Marcos Magalhães, acha que investimentos em cultura devem ser “uma via de duas mãos: uma boa proposição sempre encontrará alguém disposto a colaborar”. Para ele, o melhor estímulo para empresas que não investem em cultura é o bom resultado que as que investem já conseguiram. A principal contribuição à cultura da Philips tem sido a iluminação de edifícios, pontes e monumentos históricos no país, como o Obelisco do Ibirapuera em São Paulo. (TR)

“Ponto de se

P

A

FOLHA IMAGEM

A promotora cultural Isabella Prata, ajudou a divulgar o Bal Masquê, que aconteceu no Joquei Club, para arrecadar fundos para o MAM-SP

produtora cultural Isabella Prata não acredita em mecenato, mas em “investimento com resultado”. “O patrocinador tem uma verba de marketing e promoção, e quer ver o seu dinheiro multiplicado”, resume. Como diretora do Núcleo Contemporâneo do MAM-SP, Isabella realizou no ano passado o Baile de Máscaras, que conseguiu levantar fundos para a aquisição de obras de oito artistas contemporâneos para o acervo do museu, nomes do porte de Vik Muniz, José Damasceno e Cabelo. “Não há uma fórmula para atrair investidores”, ensina. “Sempre procuro promover um casamento ideal de imagem, entre o tipo de projeto cultural e o perfil da empresa.” (FO)

Celso Antunes, pres

ara o presidente do Bandepe, Celso Antunes, qualquer empresa pernambucana tem um bom motivo para investir em cultura: “Pelo que conheço de Brasil, Pernambuco é o estado em que a cultura é mais evidente. São manifestações artísticas bastante fortes. Quando uma empresa se preocupa com isso, acho que ela atinge um ponto de sensibilidade da população, abrindo as portas para um diálogo mais produtivo”. Além do quê, no caso específico do Bandepe, o marketing pode ser feito exclusivamente com motivos regionais, o que garante um trunfo: “Uma empresa que tem sede em São Paulo ou Brasília, por exemplo, tem dificuldade em fazer alguma coisa com a cara de um estado”, explica Antunes. “Tem que fazer algo que sirva para o Brasil inteiro. Como o Bandepe é o único banco com sede em Pernambuco, eu consigo fazer um cartão de crédito com um passista de frevo, uma campanha de poupança com um locutor de vaquejada. Queremos aproveitar essa vantagem”. Na opinião de Antunes, o investimento em cultura toca mais fundo no público-alvo do que uma propaganda de TV, mesmo que o resultado venha mais lento. “Se você faz um trabalho sério, bonito, até os hotéis passam a citar como referência, indicar para os turistas. Acaba entrando no roteiro”. Aos produtores culturais, Antunes aconselha: tem que ter um pouco de visão empresarial. “Não pode ser só artista. Os artistas são fantásticos, mas são bons negociantes. O artista precisa sempre ter junto alguém que entenda do negócio e possa avaliar para quem o


KATHIA TAMANAHA / AE

LAERTE RODRIGUES

nsibilidade” idente do Bandepe trabalho pode interessar”. O Instituto Cultural Bandepe ajuda aos artistas neste sentido, realizando palestras e seminários sobre como realizar exposições, curadoria, gestão de instituições culturais e patrimônio. Sempre com a idéia de torná-los mais profissionais. Quanto a uma maior participação estatal nos investimentos em cultura, Antunes contemporiza: os governos teriam prioridades mais básicas do que a cultura, que seria, por isso, de maior responsabilidade privada. “Não adianta tentar divulgar a cultura se há crianças com fome, sem escola, sem ter onde dormir”, diz Antunes. “Se o governo direcionar bem os recursos para as áreas prioritárias, já está de bom tamanho”. O Instituto Cultural Bandepe foi criado em 1993 (como Espaço Cultural Bandepe), em comemoração aos 55 anos do banco, quando ainda era uma estatal. Fechado em 97, foi reaberto, já na gestão privada, em abril de 2000. Entre outras, promoveu a exposição O Brasil e os Holandeses, no ano passado; uma mostra da artista plástica Badida, deste ano; e está apresentando a exposição Arte Popular de Pernambuco. Para o início de dezembro, está planejada outra exposição, sobre as variações da imagem de Papai Noel pelo mundo. O Instituto ainda tem um projeto com a Fundação Roberto Marinho e outros parceiros ainda não definidos para colocar a TV Pernambuco de volta ao ar, com transmissão exclusiva da TV Futura. “Será a primeira TV aberta a fazer isso”, diz Antunes, que lembra que o apoio do governo foi fundamental para reestruturar a tecnologia da TV Pernambuco. (TR)

O

presidente da Bienal de São Paulo, Carlos Bratke, é outro executivo da área cultural que acredita estar na visibilidade e consolidação da marca institucional, no retorno de marketing, o maior interesse do empresariado brasileiro hoje. Ele lembra que as leis de incentivo são uma novidade no Brasil, e ainda não tiveram tempo de se consolidar como alternativa de investimento seguro e eficiente. “A alíquota para cálculo do abatimento do IR pessoa jurídica precisa ser ainda maior, a fim de seduzir e conquistar, de maneira duradoura, os empresários para a causa da cultura.” Como presidente da Bienal, Bratke diz que é necessário entrar pessoalmente em ação, indo até a possível empresa financiadora para conversar com o seu presidente. (FO)

O presidente da Bienal de São Paulo, Carlos Bratke, no topo do prédio onde fica o seu escritório, no Brooklin, NY

E

manoel Araújo, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, também se empenha pessoalmente na conquista de investidores. “Não há segredo. Procuro estabelecer uma relação franca, não como negócio pura e simplesmente, mas como ligação afetiva e um compromisso cultural.” Compromisso de todos, ressalta: Estado, povo e iniciativa privada. Sobre a aversão do brasileiro a investir em cultura, Araújo não faz distinção entre o empresariado americano, europeu e o nosso. “É tudo uma questão de política cultural e compromisso com esta utopia.” (FO)

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gerente de Relações Exteriores da TIM, Cláudio Simões, acha um equívoco apoiar a cultura esperando resultados imediatos. “O incentivo cultural não é como publicidade. São ações contínuas que acabam naturalmente fortalecendo a imagem da empresa.” (TR) Continente Multicultural 49


“O embrião da novidade” Marcos Weinstock, diretor do Instituto Takano de Projetos

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DIVULGAÇÃO

O diretor do Instituto Takano de Projetos, Marcos Weinstock

om larga experiência acumulada no corpo a corpo com os empresários brasileiros – foi por muito tempo o responsável pelo relacionamento da Bienal de São Paulo com o empresariado – o diretor do Instituto Takano de Projetos, Marcos Weinstock, dá sua receita de como “dobrar” um executivo e cooptá-lo para a causa da cultura: “A primeira coisa a fazer é convencê-lo de que, além do imposto que ele deixa de pagar, por meio da Lei Rouanet, o maior retorno que se pode ter é a valorização da sua marca, no sentido da relação com sua cadeia de consumidores. Ele investe, e em troca terá visibilidade institucional, para usar da maneira que quiser, baseado no seu público-alvo e sua comunicação estratégica. A grande diferença é como se atua na comunidade. O consumidor hoje quer saber, mais do que se o produto é bom ou ruim, como certos grupos, certas cadeias de empresários atuam na sociedade.” Para ele, o empresário que fica apenas vendendo seu produto não representa muito para a sociedade brasileira. “Ela já ultrapassou este limite, e espera que o empresário se torne um elo positivo na cadeia social. A maneira de ele efetivar sua atuação é investir, basicamente, em educação e cultura. Desta forma, além de ajudar o País, ele potencializa sua marca institucional.” Questionado sobre a falta de tradição no investimento à cultura, Weinstock lembra o contexto de formação cultural precária do empresário nacional. “Por isso é importante criar relações fortes de cidadania e cultura. Este hábito não existe, mas está sendo criado. E acho legal que está sendo construído muito rapidamente. O Brasil tem esta vantagem: tudo aqui é superlativo. Então quando as coisas viram moda, elas acontecem muito mais rápido”, aposta ele. “Se por um lado é uma desvantagem não termos tido uma formação cultural sólida”, continua,

“agora isto está se abrindo de uma maneira vertiginosamente rápida. O empresário brasileiro está mudando, quando se fala com eles, percebe-se que estão cada vez mais abertos para este tipo de ação. É um processo natural de amadurecimento. O que se pode fazer é isso que estamos fazendo agora: a Continente faz uma reportagem sobre a importância de investir, o empreendedor lê e se dá conta que precisa de mais visibilidade para sua empresa na mídia, precisa ficar em pé de igualdade com seu concorrente que já fomenta a cultura. Quanto às manifestações culturais mais atraentes para se investir no Brasil, Weinstock afirma que, “apesar de parecer inacreditável”, as artes plásticas são mais vantajosas para o patrocinador: “É incrível o fascínio que o empresário tem para investir em artes plásticas. O motivo é que nesta área você corre menos riscos. Se você liga sua marca a projetos no teatro, cinema ou literatura, arrisca-se a não controlar a produção e o resultado. De ser dito algo que lhe desagrade como empresa”. Weinstock aconselha os produtores culturais que vão procurar uma empresa em busca de subsídio: “A ‘dica’ é apenas uma: tenha um bom projeto. Se você não está convencido de que tem em mãos um superprojeto, nem adianta bater à porta do empresário. E neste caso também não adianta ter ligações, boas relações de amizade”. E o que é, hoje, um bom projeto? “É aquele que carrega o embrião da novidade, esta coisa da inquietação da arte, que contenha um olhar diferente, uma visão nova, que traga uma maneira especial de falar sobre algo já conhecido”, explica ele. “E que, além disso, contemple o investidor, dê a ele o que ele precisa: visibilidade. Não adianta você realizar um trabalho de primeiríssima qualidade se o seu investidor não conseguir a projeção esperada.” (FO)


Leis de incentivo: pior sem elas

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onhecer as leis de incentivo é fundamental para que os empresários possam escolher a melhor forma de patrocinar projetos culturais. No âmbito federal, a renúncia é de uma porcentagem do Imposto de Renda (IR), em duas vertentes: a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual. Já os Estados e municípios têm seus respectivos sistemas de incentivo à cultura, com renúncia sobre o Imposto Sobre Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto Sobre Serviços (ISS), respectivamente. “Segundo pesquisas, 80% dos recursos obtidos com o mecenato federal vão para a região Sudeste”, revela José Arnaldo Guimarães, advogado e diretor de planejamento e projetos do Instituto Brasileiro do Direito Moderno. A região Nordeste vem em 3º lugar no ranking, atrás do Sul, com uma fatia referente a apenas 3%. Mesmo para quem consegue aprovar o projeto, nada está garantido já que, segundo dados da delegacia regional do Ministério da Cultura, em 95% dos casos, os produtores nordestinos não conseguem captar os recursos necessários para a sua execução. No Brasil, o número também não é animador: 80%. Na Lei Rouanet, os produtores podem aprovar projetos pelo mecenato ou Fundo Nacional de Cultura. Esse último pode ser usado por pessoas jurídicas, entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos e que tenham natureza cultural prevista no estatuto. Com recursos de emendas dos parlamentares e do or-

çamento do Ministério da Cultura, o Governo paga 80% do projeto e o restante fica por conta do proponente, seja por meio de dinheiro, equipamentos ou recursos humanos. No ano passado, o Governo investiu aproximadamente R$ 220 milhões no Fundo. Esse ano, os números ainda não foram divulgados. No mecenato, se a empresa optar pelo patrocínio, poderá abater 30% do valor que está sendo aplicado no projeto. Por exemplo, se ele custa R$ 100 mil, a empresa pode abater R$ 30 mil. Esse montante tem que corresponder a, no máximo, 4% do total do Imposto de Renda devido pela empresa. Se em vez de patrocínio, a opção for pela doação, a porcentagem sobe para 40%, mas, nesse caso, a marca da empresa não pode aparecer. Já que as grandes empresas ficam no Sudeste e os projetos que dão mais retorno publicitário também, Guimarães propõe uma alternativa para driblar a desvantagem do Nordeste. “O Governo Federal deveria reformular a lei para que as empresas que investissem nas outras regiões obtivessem um abatimento maior no IR”, sugere. Uma medida semelhante foi tomada para ajudar as áreas consideradas os primospobres das artes: bibliotecas, museus, músicas erudita e instrumental, edição de livros, artes plásticas, memoriais e arquivos. Nesses casos, em vez dos 30% e 40%, as empresas podem abater 100%. Em média, o Governo tem renunciado a cerca de R$ 240 milhões anualmente com o mecenato, com Continente Multicultural 51


um orçamento estipulado pelo Ministério da Fazenda e pela Secretaria do Tesouro Nacional com base nas previsões de arrecadação. Em 2001, no entanto, o valor foi de R$ 110 milhões devido à implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal. A Lei do Audiovisual tem sido bastante usada pelos cineastas de média e longas-metragens. “Há uma comercialização de cotas de patrocínio na bolsa de valores, que passam a ser vendidas em operações semelhantes a ações de empresas”, explica Guimarães, afirmando que o Estado renuncia a cerca de R$ 150 milhões por ano com esse incentivo. Com o Sistema de Incentivo à Cultura (SIC) Estadual, o Governo de Pernambuco tem renunciado, em média, a R$ 10 milhões do dinheiro arrecadado com o ICMS por ano. No mecenato, as empresas que pagam até R$ 500 mil de ICMS podem abater 50% do valor do patrocínio. “Caso ele custe R$ 100 mil, o empresário terá um bônus de R$ 50 mil para ser descontado no ICMS do mês seguinte”, explica Guimarães. Se o valor pago do ICMS for superior a R$ 500 mil, a porcentagem é de 5% e as empresas ainda têm que dar uma contrapartida de 10% para o Fundo de Incentivo à Cultura Estadual. “Isso quer dizer que

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se o projeto custa R$ 100 mil, a empresa vai abater R$ 5 mil, além de dar R$ 10 mil de contrapartida ao Fundo”, exemplifica Guimarães. Apesar de estar provocando controvérsias entre os produtores culturais e as grandes empresas – já que na legislação anterior a porcentagem era de 3% para todos –, o advogado considera boas as mudanças na lei. “Agora, micros, pequenas e médias empresas podem usufruir da legislação, aumentando bastante o leque de patrocinadores”, ressalta. Além dos 10% de contrapartida, o Fundo de Incentivo à Cultura é mantido com recursos do orçamento estadual, doações de empresas privadas e de pessoas físicas. Ao contrário da lei federal, na Lei de Pernambuco, o empréstimo tem que ser todo pago. A única exceção é para os projetos que fracassaram. Nesses casos, o devedor pode abater até 95% do valor. No SIC de Recife, a Prefeitura tem abdicado de cerca de R$ 800 mil por ano do ISS, valor que corresponde a 1% do total arrecadado. Já as empresas podem abater dos projetos que escolherem até 20% do ISS que pagam mensalmente. No Fundo de Incentivo, 80% do valor é financiado com recursos da própria Prefeitura. Vale destacar que em nenhuma das leis há limites estipulados para cada projeto. Com exceção da Lei Rouanet, no entanto, algumas médias vêm sendo mantidas pelas comissões deliberativas. Na Lei do Audiovisual, os aprovados chegam até R$ 5 milhões. No SIC de Pernambuco, o valor era de R$ 300 mil até o início do ano, mas a Comissão Estadual decidiu baixar para R$ 150 mil na última reunião. Já na legislação recifense, o valor tem sido R$ 50 mil. (TR)


FESTIVAL

A maior palhaçada do mundo Cerca de 1000 profissionais do riso, do mundo inteiro, se reúnem em encontro inédito

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orrir é um ato cultural exclusivo da A idéia surgiu a partir de ounatureza humana, e, grande parte tros encontros promovidos na das vezes, o riso está intimamente própria João Pessoa pela Escola ligado à felicidade e à satisfação, de Piollin, organização sem fins que, para alguns filósofos em parti- lucrativos que desenvolve projetos cular e para muita gente em geral, educativos, sociais e culturais dessão as maiores e melhores metas a de 1977. A escola já tinha realizaserem perseguidas pelo ser humano. do dois pequenos festivais com o Entre as manifestações da cultura popular, a que intuito de reunir nomes do humor mais evoca e contempla a alegria é o circo, influência brasileiro. O primeiro ocorreu em de tantos outros segmentos de manifestações artísti- 1983, e o segundo somente em cas, como a música, o teatro e a dança. Hoje, o circo 1997, já contando com mais de faz parte da cultura de países do mundo inteiro e se 300 participantes. Foi quando a manifesta tanto em apresentações mambembes quan- organização planejou o Riso da to em espetáculos de alto teor tecnológico, refletindo o Terra, desta vez com projeção leque de possibilidades típico do atual mundo globali- mundial. zado. Em qualquer um deles, entretanto, permanece Entre os profissionais precomo ponto alto a tradicional escola dos artistas do ri- sentes no evento estão palhaços, so, os responsáveis pela graça e descontração de crian- pesquisadores, artistas plástiças e adultos. cos, psicólogos, professores e Um encontro pioneiro no país, reunindo profis- músicos. Todos desenvolvensionais da alegria das mais variadas tendências e vin- do um trabalho ligado à comidos de todo o Brasil e do mundo, vai acontecer em cidade, ironia ou alegria. A João Pessoa, Paraíba, de 18 de novembro a 2 de de- valorização cultural é acenzembro. É o Festival Riso da Terra, que, entre outras tuada com apresentações de coisas, terá o Encontro Mundial de Pagrupos folclólhaços, com cerca de 1000 participantes. Joana Aquino ricos brasileiContinente Multicultural 53


ros, como caboclinhos, cocos, cirandas, reisados e ursos. Mas o que mais chama atenção em toda a programação do Festival é mesmo o Encontro Mundial de Palhaços, que reúne nomes entre os que seguem uma linha tradicional popular, como os bacamarteiros, folias de reis, e os caretas, e os que trabalham com novas tendências da cena cômica mundial, como os grupos La Mínima, La Scarpetta e Firulichi Espetáculos de Clowns. Esta nova geração busca unir a mais pura tradição do circo – onde o ofício da graça é transmitido de pai para filho – às novas técnicas de dramaturgia. O festival traz ainda quatro dos cinco maiores palhaços do mundo, entro os quais brilha o norteamericano Jango Edwards, além de grupos de destaque, como é o caso do Monoxide, da Austrália. “O importante deste evento é justamente colocar em contato quem faz esta arte de forma tradicional e de forma atual, como o clown e os anarquistas, responsáveis por coisas surpreendentes, ousadas e inovadoras”, afirma o curador e coordenador José Carlos Vasconcelos. Ele acredita que o Brasil tem muito que aprender com estas novas tendências e muito que ensinar a partir da sua tradição. Além das apresentações, o festival proporciona vinte e cinco oficinas, ideais para aqueles artistas iniciantes que têm interesse em aprender os mistérios dos gêneros e estilos de quem faz humor em todo o mundo. As oficinas são ministradas por nomes consagrados da arte cômica mundial, como os Doutores da Alegria, grupo de palhaços que trabalha em hospitais, levando um toque de descontração aos pacientes. A oficina inclui os workshops “O Hospital Pelos Olhos do Clown” e “Clowneando no Hospital”, além de possíveis visitações a hospitais, lideradas por clowns. Felicity Simpson, da Inglaterra, coordena a oficina sobre técnica de monociclo, equilíbrio em bicicleta de uma única roda. O organizador Luiz Vasconcelos ensina técnicas de palhaçada baseadas, sobretudo, na improvisação. Está aí, aliás, a diferença entre palhaços e atores, que moldam seus personagens de acordo com o texto. Já os primeiros, assumem seu trabalho como uma segunda identidade, fazendo funcionar as piadas e textos de acordo com suas características próprias, o local e o momento. Outras oficinas são a de Hector Fábio Cobo, da Colômbia, com aulas de 54 Continente Multicultural

pernas-de-pau e a de Seu Cícero (PB), Seu Toninho (MG) e Wanderley (SP), de percussão. Outra atração do festival é o Fórum Internacional do Riso, que traz a apresentação de trabalhos de personalidades do mundo acadêmico, artístico e científico. A programação inclui debates com o dramaturgo Ronaldo Brito; Altimar Pimentel, dramaturgo e pesquisador da arte popular brasileira; Jerusa Pires Ferreira, professora da Escola de Comunicações e Arte da UFF/RJ e Lélia Parreira Duarte, diretora da Cespuc da PUC/Minas e pesquisadora de Ironia


e Humor, entre outros. “O mais gratificante é saber que todos os pesquisadores estão reconhecendo a importância de um evento como este”, diz Vasconcelos. O cientista francês Jean Duvignaud, por exemplo, cancelou todas as suas viagens por motivos de saúde, mas quando soube do Riso da Terra, fez questão de mandar seu filho para registrar tudo sobre este encontro.

Faz parte ainda das programações do evento a Feira de Arte Popular. Nela, foram montadas várias barracas para a venda de objetos humorísticos vindos de todo o país, havendo também espaço reservado para exposições temáticas, comidas típicas, shows musicais, desfiles etc. O Riso da Terra, além de tudo, quer deixar um marco para os que fazem a arte cômica sobreviver. Através da Carta da Paraíba, alguns artistas presentes no final do evento são responsáveis pela proposta de um manifesto da profissão de fazer rir no Brasil, país onde o meio artístico nem sempre é devidamente valorizado. As origens do circo – Nas paredes das pirâmides egípcias já existiam pinturas de malabaristas e paradistas. Nos grandes desfiles militares dos faraós, exibiam-se animais ferozes das terras conquistadas, caracterizando os primeiros domadores. Na China, a acrobacia era uma forma de treinamento para os guerreiros de quem se exigia agilidade, flexibilidade e força, somando-se, mais tarde, a graça, a beleza e a harmonia. As atividades circenses se desenvolveram na Grécia Antiga através das modalidades olímpicas. Em 40 a.C., os espetáculos eram procissões solenes de celebração à volta das guerras, nas quais os homens desfilavam ao lado de animais exóticos. Os anfiteatros do Império Romano já demonstravam nas apresentações excentricidades, como engolidores de fogos e gladiadores. Entre 54 e 68 d.C., as arenas passaram a ser ocupadas por espetáculos sangrentos, o que diminuiu o interesse pelas artes circenses. Os artistas passaram a se apresentar nas ruas e, aos poucos, números mágicos, malabarismos e palhaços foram incorporados aos espetáculos. No século 17, grupos de saltimbancos já percorriam toda a Europa. Festival Riso da Terra Locais: João Pessoa, PB. 1º Semana – Centro Histórico (Praça Pedro Américo, Teatro Santa Rosa, Praça Antenor Navarro); 2º Semana – Centro da Cidade (Lagoa e Praça da Independência); Escola de Piollin (Rua Professor Sizenando Costa, s/n). Data: 18 de novembro a 2 de dezembro Inscrições e mais informações: www.risodaterra.com.br

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ARQUITETURA

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Fachada principal da casa-grande do engenho Megaípe

m 1928, o Governo do Estado de Pernambuco, para aplicar uma lei que criara visando à preservação de seus monumentos, elaborou uma lista de edifícios aos quais atribuiu valores históricos e artísticos. A casa-grande do engenho Megaípe constava dessa primeira lista. O senhor desse engenho, ao saber da inclusão de sua propriedade na referida lista, antecipando-se à iniciativa oficial e equivocado quanto aos propósitos do governo estadual, não vacilou em destruir completamente a secular casa. A imprensa pernambucana não deu muita atenção à demolição da antiga casa-grande. Botaram abaixo a casa de Megahype. Lia-se num artigo do jornal A Província, de 14 de setembro de 1928. Desapareceu assim de Pernambuco uma das mais interessantes expressões da arte colonial no Brasil. Fora levantado no século dezesseis. Atravessara o período de lutas com os holandeses no século dezessete. Adquirira um ar de permanência, que se sentia atravez das paredes meio pensas e do abalcoado meio podre, na expressão tranqüila das velhas linhas coloniais. Megaípe era um símbolo agonizante do passado já longínquo em que os nobres senhores de engenho tinham, em seus domínios, poderes absolutos. A usina já chegara desde fins do século 19 e se firmara na região como a nova força econômica e política. E foi a usina que derrubou a casa, como pensou e cantou Ascenso Ferreira, em poema dedicado à Casa-Grande de Megaípe.

N

ão resta dúvida quanto à vetustez da casa-grande de Megaípe, embora não tenham sido encontrados documentos que se refiram a ela senão no século 20. Em um documento holandês datado de 1638 aparece um engenho com um nome semelhante nas proximidades do local onde existiu a casa demolida em 1928: Engenhos da freguesia de Muribeca ....................................................... 45. Engenho Mogoaipe. Pertenceu a Luís Marreiros, ausente. Confiscado, mas não vendido; está muito arruinado e não mói; é engenho de bois.

Geraldo Gomes 56 Continente Multicultural

A casa que foi demolida em de uma arquitetura que desafia

MEG

a mais ilustre e polêmica das


1928 ainda guarda o fascínio interpretações sobre a sua origem

AÍPE, REPRODUÇÃO / FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO

casas-grandes desaparecidas

Em outro documento, também holandês, datado de 1640, aparece, na mesma freguesia de Muribeca, um engenho que pode ser o mesmo, embora com grafia diferente. 48. Engenho Megoapa, pertencente a Diogo d’Araújo d’Azevedo, é engenho de bois. São lavradores. Teria havido um segundo engenho com nome semelhante, segundo Pereira da Costa. Havendo assim dois engenhos com o mesmo nome de Mogoaipe, o primeiro mencionado, e mais antigo, tomou então a denominação de Megaípe de Baixo, como assim já era chamado em 1680, quando o seu proprietário, o capitão-mór Luis Marreiros, instituiu o vínculo do mesmo nome e do qual fazia parte a ilha Capim Assu. A capela da propriedade, sob a invocação de S. Filipe e S. Tiago, é antiga, e talvez de construção contemporânea à do engenho. O documento holandês de 1638 diz que o engenho havia pertencido a Luís Marreiros. Supõese que ele tenha sido incendiado, até pelo próprio Marreiros ou pelos portugueses em fuga, com a chegada dos holandeses. Mas o fato de ter existido um engenho com o mesmo nome, na primeira metade do século 17, não é suficiente para comprovar a existência da respectiva casa-grande. A iconografia holandesa mostra uma considerável variedade de partidos arquitetônicos das casas de vivenda, assim designadas nos inventários até o século 19, e variedade também de dimensões nessas mesmas casas. Algumas dessas casas não eram tão grandes e poderiam ter sido abrigos provisórios dos senhores de engenho residentes nas vilas. Em outro documento holandês, datado de 1636, para um total de 46 engenhos, sobre os quais há referências sobre as técnicas construtivas dos edifícios ali encontrados, só existem três casas de vivenda, ainda assim em ruínas. Na realidade, o complexo arquitetônico do engenho não foi o mesmo desde o início da cultura da cana e fabricação do açúcar em Pernambuco. O senhor de engenho era, sem dúvida, quem tinha maiores poderes e posses, mas nem toda a cana que moía era de sua propriedade, pois, já no início do século 17, a figura do lavrador, isto é, aquele que se limitava a plantar e colher a cana, era muito comum em toda a região. As casas retratadas pelos holandeses podem ter sido de senhores de engenho ou de simples lavradores, o que poderia explicar a singeleza e pequenas dimensões de algumas delas. O próContinente Multicultural 57


prio senhor de engenho poderia não ter meios ou interesse em investir na construção de casas de vivenda requintadas e atípicas.

A

discussão sobre a excelência arquitetônica de Megaípe se estendeu além de sua existência. Desde que a campanha tradicionalista de arte brasileira refletiu-se em Pernambuco, ouço falar comovidamente em Megaípe. Houve mesmo quem propuzesse para Pernambuco um estilo arquitetônico à parte, sob a denominação de Estilo Megahype. Mas o essencial não se fez: salvar aquela relíquia histórica. Escreveu José Mariano, que repelia, então, a pernambucanidade que apenas se esboçava e, em outro artigo, levantaria uma hipótese sobre as origens da arquitetura da casa-grande de Megaípe.

sido posteriormente dominado pelo telhado atual, provavelmente para ampliação da área habitável do edifício Se em Pernambuco houvesse cultura artística, Megahype seria expropriado, e carinhosamente reconstruído. Ele não é a mais bela habitação do Estado. As casas dos Engenhos Anjos e Noruega lhe são superiores em significação artística e compreensão de planta, apesar de que Megahype tem um ar de dignidade, de compostura, que eu só vim encontrar mais tarde em algumas casas nobres de Ouro Preto. As semelhanças da casa de Megaípe com as casas rurais italianas não são tantas, mas é verdade que Palladio adotou soluções semelhantes em suas villas, soluções essas que já faziam parte de uma tradição medieval italiana. É difícil precisar a origem de certos modelos arquiteturais. As dificuldades crescem devido à natureza da arquitetura em foco – a arquitetura sem

Convém ficarmos alertas para algumas armadilhas da iconografia holandesa. Muitas daquelas gravuras foram executadas na Europa, e contêm representações convencionais Todos quantos se interessam pela arquitetura chamada colonial apresentam Megahype como modelo de um gênero desaparecido. Os que assim pensam não estão suficientemente informados, a menos que não pretendam, com a expressão colonial, filiar a velha casa à arquitetura tradicional brasileira (de origem portuguesa). A casa de Megahype não tem parentesco com as casas alentejanas, suas contemporâneas, que se construíam nos engenhos de cana. Ela podia estar na Lombardia, na Toscana, em Lucca ou Anticoli. Suas tôrres quadradas angulares (campanile) ligadas por um corpo alongado, de um só pavimento, à frente do qual desenvolve-se uma escada externa, de alvenaria, em dois lances. Os balcões cobertos com tejadilhos em cortina (os portugueses fariam invariavelmente em três águas) são tratados com balaústres recortados. Grandes arcos romanos sem moldura de qualquer espécie abrem-se lateralmente sobre o rez do chão. Os telhados são de pouco ponto, como em geral os das habitações populares italianas, porém não possuem o “açoitamento” típico dos telhados portugueses (reminiscência da sanca dos telhados dos pagodes coreanos e índicos). Estudando com atenção as fachadas da velha casa de Megahype (através de fotografias e desenhos em perspectiva) chego à conclusão de que a planta original comportava um páteo retangular (impluvium) de seis metros por dez aproximadamente. Esse páteo primitivo deve ter 58 Continente Multicultural

autor – a arquitetura típica que se caracteriza pela utilização de modelos cuja origem está muito mais na praxis da sociedade do que na cabeça privilegiada de um único artista. No século dos descobrimentos, Portugal recebeu arquitetos estrangeiros, principalmente italianos e franceses, com participação conhecida em projetos de arquitetura monumental, quer seja oficial ou religiosa. Contudo, ao nosso ver, a solução arquitetônica da casa de Megaípe se filia aos solares portugueses contemporâneos, que, por sua vez, poderiam ter sofrido influências italianas. Esses solares portugueses poderiam ter inspirado a arquitetura holandesa realizada no Recife. Em Tempo dos Flamengos, José Antonio Gonsalves de Mello registrava: O palácio da Boa Vista não teve porém a grandiosidade do outro: [refere-se ao de Friburgo] já salientamos os traços de influência portuguesa nesse palácio, cujo torreão central muito se assemelha ao da casa do engenho Megahype anterior ao período holandês. É muito pouco provável que a construção da casa de Megaípe seja anterior à ocupação holandesa. Uma verga de pedra datada de 1698 foi salva da destruição da casa. É bem verdade que esta verga


ção da planta. Embora se encontrem na tradição brasileira o torreão central e na tradição da arquitetura militar os torreões dos cunhais, dificilmente se encontraria uma outra explicação para o partido dessa residência, sem uma aproximação dela com a construção flamenga do Recife. Nem Saia nem o jovem arquiteto paulista referido por ele devem ter visto a casa de Megaípe de pé, demolida 30 anos antes da apresentação da tese. Talvez não tenham visto sequer as suas ruínas, pois, nesse caso, poderiam ter feito o levantamento dos alicerces da casa. As plantas que Saia apresenta em sua tese, como sendo do pavimento térreo e do pavimento superior, na realidade devem se referir aos 2º e 3º pavimentos. Megaípe tinha três pavimentos. O seu pavimento térreo, todo em arcos nas fachadas laterais, talvez se destinasse a depósito, como era comum nas casas-grandes de Pernambuco, e estava todo abaixo do pavimento superior, pois o terreno onde se assentava a casa era plano e elevado em relação ao entorno imediato. Quanto à comparação com o palácio da Boa Vista convém ficarmos alertas para algumas armadilhas da iconografia holandesa. Muitas das gravuras holandesas foram executadas na Europa, a partir de esboços feitos no Brasil, e contêm representações convencionais. Assim, existem gravuras que retraREPRODUÇÃO

poderia estar marcando uma reforma posterior, mas não há provas da existência da casa em data anterior. Por outro lado, se a tese de José Mariano sobre a cobertura posterior do que teria sido o pátio interno invalida o parentesco que José Antonio Gonsalves de Mello sugeria em 1947, Luís Saia, em 1958, o inverte: Enquanto algumas, como a residência do Engenho Poço Comprido, se filiam à tradição dos engenhos litorâneos (e possivelmente dos engenhos dos ilhéus), especialmente no tratamento plástico, outras parecem representar uma tradução rural de residências urbanas, uma delas – a casa-grande do Engenho Megahype – é duplamente interessante. Primeiro, porque entrou para a história da arquitetura tradicional brasileira exatamente com a sua destruição, pois o proprietário, temeroso de prejuízos com a sua transformação em monumento nacional, num rasgo retardatário de senhor feudal, mandou dinamitá-la; segundo, porque parece ter sido inspirada, pelo menos no seu partido se não na sua expressão plástica, pela morada que Nassau mandou edificar na Boa Vista, para recreio. O difícil trabalho de levantamento de sua planta e da identificação da data de sua construção – 1698 – somente poude ser levado a cabo com a colaboração inteligente de jovem arquiteto paulista, que conseguiu interpretar os restos encontrados e colher, juntamente com a verga datada da porta principal, os dados fundamentais para a reconstru-

Engenho Noruega, em pintura de Cícero Dias

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FOTO DO AUTOR

Solar dos Bertiandos, em Ponte de Lima, Portugal

tam Olinda com igrejas góticas, inclusive com deambulatórios, arcos botantes e torres pontiagudas, elementos estranhos à arquitetura brasileira dos séculos 16 e 17. Na hipótese de a gravura holandesa do palácio da Boa Vista ser fiel à realidade, a diferença entre as torres dos dois edifícios é evidente. Enquanto as torres do palácio são em número de quatro, pequenas, com telhados piramidais de acentuada inclinação, uma em cada canto de uma planta que se supõe tender para o quadrado e parecem ter sido acrescentadas ao corpo principal do edifício, Megaípe tinha somente duas torres, volumosas, cobertas com telhados acachapados e que faziam parte integrante do corpo do edifício. A outra afirmação de Saia, sobre a tradução rural das residências urbanas, também é discutível. A tradição portuguesa de casas com torre, originalmente com função defensiva e posteriormente como símbolo nobiliárquico, se manifestou também no Brasil. Se recorrermos à iconografia holandesa não convencional de Frans Post, verificaremos a existência de casas de vivenda com uma torre e outras com duas mais baixas, que se filiam às suas congêneres portuguesas e que eram, na origem, rurais. Não temos dúvidas em filiar a casa de Megaípe às suas antecessoras portuguesas. 60 Continente Multicultural

Convém repetir que em Portugal também se fez sentir a influência de tipos arquitetônicos vindos da Itália e de outros países europeus. Em outras palavras, os tipos que os portugueses trouxeram para o Brasil podem não ter surgido em Portugal. A propósito, existem ainda no Norte de Portugal, de onde veio a maior parte dos colonizadores portugueses, casas rurais que lembram a volumetria da casa de Megaípe, como, por exemplo, o Solar dos Bertiandos, em Ponte de Lima. Quanto à técnica construtiva de Megaípe, a julgar pelas fotografias existentes, pode-se verificar que se tratava de alvenaria de tijolos, percebidos em alguns trechos das paredes que haviam perdido seus revestimentos. Notamos, também, que as suas torres não são blocos inteiriços e suficiente maciços para garantir as suas condições de estabilidade. Pode-se observar nas fachadas laterais da casa que as torres se apóiam parcialmente em arcos. O que é notável e diferente do que conhecemos da iconografia holandesa é a escada externa em alvenaria. Esse elemento viria a surgir, comprovadamente, no século 18. Quanto às plantas levantadas pelo auxiliar de Luís Saia, o jovem arquiteto paulista, não são integralmente fiéis ao original, e não poderia ter ocorrido de


REPRODUÇÃO

outra maneira, considerando as aproximações que se fizeram para chegar a um resultado somente aceitável. Mas a sua leitura nos mostra que deveria ter havido, de fato, um núcleo central que se elevava acima do segundo pavimento e que no pavimento térreo era ladeado por duas séries de arcos plenos de alvenaria de tijolos. Tampouco sabemos se esses arcos teriam existido também na fachada principal (a escada pode ter sido posterior) e na dos fundos. Também não sabemos se o próprio núcleo central estaria apoiado em arcos, mas ele existiu e pode ratificar a tese de Terwen para a arquitetura nos trópicos quando se refere a um cômodo central que seria protegido dos rigores do clima por outros aposentos ao seu redor Embora a casa-grande de Megaípe tenha suscitado tanta polêmica, não foi possível ainda caracterizá-la como um caso típico ou excepcional de arquitetura. A documentação iconográfica sobre os engenhos de açúcar pernambucanos referente aos três séculos do período colonial resume-se às três décadas do século 17 e se deve aos invasores holandeses. Não há registro iconográfico algum sobre o mesmo tema no século 16, na segunda metade do século 17 e por todo o século 18. Neste fato reside a

maior dificuldade em atribuir tipicidade ou excepcionalidade aos exemplares de arquitetura supostamente antigos e que chegaram até nossos dias. De qualquer forma, o tipo da casa-grande de Megaípe não era estranho a Pernambuco, pois o Palácio dos Bispos em Olinda, em 1821, foi reformado ganhando duas torres nas extremidades da fachada principal. Como a nossa história escrita tem tantos hiatos, é possível complementá-la através da análise dos programas arquitetônicos dos edifícios que ainda existem e de prospecções arqueológicas nos restos de nossa arquitetura. Megaípe teria servido a esse fim, assim como os edifícios desaparecidos do engenho Noruega, que, pelas mãos de Cícero Dias, serviu de ilustração para Casa-Grande & Senzala, a casagrande do engenho Anjos, cuja destruição já havia sido lamentada por José Mariano Filho, e as casasgrandes dos engenhos Contendas e Matapiruna, essas destruídas nos últimos cinco anos, somente para citar as mais famosas. Geraldo Gomes é arquiteto Pintura de Frans Post de um engenho pernambucano

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A expulsão dos poetas da “república” de Maomé Na fase inicial do Islamismo, Maomé não podia aceitar ser alvo de sátiras e instituiu uma censura estética

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inda assustado com as notícias sobre terrorismo, retaliações militares e preconceitos contra o Islamismo, encontro no setor de obras raras da Biblioteca Estadual de Pernambuco uma magnífica edição do Alcorão, traduzido diretamente do árabe para o francês por um tal de M. Kasimirski, que na época da publicação (1852) era intérprete da Legação da França na Pérsia (Irã). Le Koran é enriquecido por oportunas e eruditas notas de pé de página do tradutor. Eu tinha lido esse livro sagrado há uns trinta anos, quando compunha o meu poema Dual. Mas só agora, nesta segunda leitura, me dei conta de uma surata intitulada Os Poetas, a de nº XXVI. O interessante é que ela tem 228 versículos, mas os poetas só são diretamente referidos nos quatro últimos. No versículo 224, o profeta diz que os bardos só são seguidos pelos desorientados. No de nº 225,

ele pergunta: “Não vês que eles vagam por todas as rotas, como os insensatos?” Ao comentar esse versículo, Kasimirski afirma que ele se refere ao fato de os poetas se abandonarem à imaginação. Mais adiante, um versículo declara que eles “dizem o que não fazem”, e o seguinte faz uma exceção: “Salvo aqueles que crêem e praticam o bem, e repetem sem cessar o nome de Deus”. Para o comentarista, a ressalva de Maomé é para os poetas que “tinham abraçado o Islamismo, tais como Lebid, Hassan e Caab”. A má vontade do profeta para com os poetas, numa época (séc. 7) em que a poesia árabe ainda era uma das mais esplêndidas do mundo civilizado, é explicada por Kasimirski de modo bastante convincente. Diz ele que “os árabes do deserto, em geral, e entre eles os poetas, gostavam muito pouco do novo culto”. Mais adiante, os descreve como “afeitos aos prazeres da vida nômade e acostumados aos seus rigores, independentes, indóceis em relação a qualquer jugo, bravos, generosos, mas fiéis e

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vingativos”. Daí porque Maomé começou a vê-los como “um grande obstáculo ao desenvolvimento de sua doutrina moral e religiosa, e os condena”. No entanto, o que deve ter irritado mesmo o projeta é que ele próprio começou a ser alvo da veia satírica dos bardos. Isso a ponto de dizer: “(...) juro por aquele que tem minha alma em suas mãos que as sátiras fazem mais mal que as flechas”. Mas Maomé, ao combater os poetas, não ficou apenas nas palavras. Ele extinguiu a feira anual de Okadh, que durava um mês, e misturava comércio com festival poético, “para onde os poetas acorriam de todos os pontos da Arábia, a fim de declamar seus poemas (kasidah), cantar suas proezas e suas aventuras, a disputar sobre quem glosava melhor os temas. Tratava-se de um torneio poético, onde numerosos ouvintes, citadinos e beduínos, eram os juízes”. Pela descrição estamos diante de algo bastante semelhante a uma peleja ou desafio de cantadores do Nordeste brasileiro. Nas minhas superficiais pesquisas sobre a influência da poética árabe na Europa medieval, principalmente na Península Ibérica, e a extensão dessa influência na formação da poética do repentismo no Nordeste brasileiro, no rastro do pesquisador Luis Soler, tenho-me deparado com análises históricas que dividem a poesia árabe em dois períodos: o préislâmico e o islâmico. O posicionamento de Maomé em relação à poesia e aos poetas do seu tempo teria levado à decadência da poesia árabe que, antes dele, no chamado período sabeo-himyari (800 a.C – 500 d.C.) segundo o Diccionário de la Literatura Universal, “era fabulosa”. Embora o excelente dicionário tenha dito que “o aparecimento de Maomé e do livro sagrado, O Alcorão (Quran), em prosa rimada, inicia a decadência da poesia árabe, que havia alcançado a sua per-

feição muito antes que fossem formadas as línguas românicas e independente por completo da poesia greco-latina”, tenho minhas dúvidas, embora não tenha o direito de tê-las. Suspeito, no mínimo, que essa poesia rejuvenesceu depois da invasão árabe na Europa. Se for provada a hipótese dos arabistas, que atribuem à poética árabe (principalmente a de vertente popular) o surgimento do próprio trovadorismo, e até mesmo do trovadorismo provençal, poderemos supor que longe de Meca os poetas resolveram soltar-se, abandonar-se à imaginação ou, como condenava o profeta, vagar por todas as rotas, “como os insensatos”. Que após o Alcorão e o fim da feira anual de Okadh tenha havido uma espécie de caça às bruxas aos poetas não islâmicos, e a atividade poética tenha entrado em declínio no Oriente Médio, isso é mais do que provável, embora eu não tenha lido nenhuma obra específica sobre o assunto. O que me parece mais grave é a valorização da poesia engajada, seja através do engajamento político ou religioso. Como um dos maiores líderes religiosos de toda a história da humanidade, Maomé não poderia aceitar tranqüilamente ser alvo de sátiras dos poetas do deserto, estes homens acostumados às grandes amplidões, a uma liberdade sem fim. Acredito que, na fase inicial do Islamismo, a censura estética, dirigida aos poetas não comprometidos com a nova religião, deveria ser mais efetiva em cidades como Meca e Medina e, por extensão, em todo o Oriente Médio. É possível, portanto, que nas regiões invadidas pelos árabes, em outros continentes, essa censura se tenha tornado mais suave e, talvez, quase inexistente. Eis outro tema para uma pesquisa histórica de natureza acadêmica. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo

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LIÇÃO DE ARTE

A mais ilustre designer de jóias do Brasil faz com que a natureza brasileira se torne universal, misturando arte com muito conhecimento

Clementina

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ADERBAL FILHO / RECIFE PRESS

IARA VENANZI

E

A alquimia de

Duarte

ra uma vez uma menina que adorava desenhar, e um pai que era engenheiro químico e geólogo. Essa é a história de Clementina Duarte, a mais ilustre designer de jóias do Brasil. É história que combina a exuberância da natureza brasileira com a sobriedade do desenho modernista. Uma perfeição quase surreal com as imperfeições que tornam uma esmeralda única e irreprodutível. Ciência com arte, arte com moda. Clementina foi aluna da primeira Escola de Arquitetura do Recife, onde teve o privilégio de estudar com professores de ampla formação em história da arte, filosofia, estética. Como Evaldo Coutinho. Evaldo foi a pessoa que atribuiu caráter filosófico à arquitetura, num livro lido por poucos, O Espaço da Arquitetura. Nele, o professor teoriza que um edifício teria a propriedade de aprisionar o tempo em seu interior; que um visitante, ao adentrar uma catedral gótica, repetiria o comportamento dos antepassados e seria, ele próprio, gótico. Como uma lição bem aprendida, as jóias de Clementina parecem ter a mesma qualidade. A artista busca o “mistério da eternidade”, que só encontra nas matérias-primas da natureza. Prefere as esmeraldas, que com os diamantes são as únicas pedras preciosas encontradas em solo brasileiro. Das semipreciosas, destaca os topázios – amarelos, laranjas, fumê – e as turmalinas bicolores, que vão de um verde intenso a um rosa, em degradé.

Na página anterior, Coleção Brasil, colar em ouro, diamantes e rubis

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“Como ficariam lindos os colares de Clementina no pescoço das mulheres de Modigliani!” Oscar Niemeyer


REPRODUÇÃO

IARA VENANZI

A natureza brasileira é a sua principal fonte de inspiração, “é a maior lição de arte do mundo”. Dela, Clementina aproveitou a luminosidade e, principalmente, as curvas. Gilberto Freyre dizia que era como se cada uma de suas jóias “se enroscasse no pescoço ou no braço ou se agarrasse a uma orelha de mulher com a graça, a fluidez, a flexibilidade de uma ágil serpentezinha de metal”. Magia e sensualidade que seriam notadas por mais de uma análise crítica, em suas criações. Por igualmente ter recusado o ângulo reto, já foi chamada de o “Oscar Niemeyer das jóias”, ela, que em 1964 foi fazer mestrado e ensinar História da Arquitetura na então incipiente Universidade de Brasília, cujo diretor era Oscar Niemeyer. O arquiteto se tornaria um dos admiradores do trabalho da colega, sendo dele a célebre frase “Como ficariam lindos os colares de Clementina no pescoço das mulheres de Modigliani!” As curvas também lhe renderam uma filiação ao barroco, mas isso é algo que deve ser relativizado. A exuberância das formas retorcidas se apresenta nas suas jóias antes como motivo, e não como uma escolha deliberada de estilo. Até porque, Clementina

faz questão de ressaltar, não é intenção da artista se prender a um estilo. “Tem épocas em que sou barroca; em outras, não”, explica. “Na natureza não há só exuberância. Se eu tomo de maneira isolada cada elemento, um cipó, uma folha, eu posso admirar a natureza de uma maneira minimalista”. Foi de uma folha, aliás, que Clementina criou um símbolo do Brasil. Na coleção Positivo/Negativo, de 1980, desenhou pares de brincos complementares: um era uma lâmina em forma de folha, o outro era apenas o contorno da folha, vazado. “Tentei representar o país na sua dualidade: o Brasil idealizado, pródigo e paradisíaco, e o Brasil real, injusto”, diz Clementina. Ela veio a desenvolver a sua concepção de Brasil depois de passar alguns anos fora do país. Em 1966, conseguiu uma bolsa de estudos na França sobre História da Arquitetura Medieval e Filosofia da Arte. Simultaneamente, passou a freqüentar as aulas de design de jóias com o professor Jean Prouvé. Foi neste curso que Clementina criou a sua primeira jóia, pela qual ouviu o vaticínio do professor: “Você é uma profissional, não pode parar”. Fez tanto sucesso que logo estava enfeitando, com as suas cri-

Coleção Brasil, colar em ouro branco, diamantes e esmeralda central

Na página anterior, montagem com A Ruiva com Pingente, de Amedeo Modigliani. Coleção Clássica, colar em ouro e ônix

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IARA VENANZI

Pares de brincos da Coleção Positivo/Negativo

ações, a coleção primavera/verão da grife Pierre Cardin, de quem recebeu uma proposta de emprego fixo. Clementina recusou: estava na hora de voltar ao Brasil, estudar a fundo a cultura do próprio país, e criar a jóia brasileira. Era 1968. Domínio público Se, de lá para cá, as jóias de Clementina parecem nunca ter saído de moda, há uma razão: ela não faz moda, faz arte. Mais do que isso, faz arte fundada em muitos estudos. “Se um artista tem uma filosofia por trás do seu trabalho, ele ganha perenidade”, diz ela. Clementina acha que o termo design foi vulgarizado e hoje serve para qualificar qualquer um que desenhe jóias ou outro produto. Mas ela faz a distinção: “O design é a ciência por trás da arte, é a formação do artista agregada à inspiração”. Ouvindo-a falar, notam-se a propriedade de uma mestra e a paixão da menina que aprendeu com o pai a ver beleza na ciência. “Hoje, a formação de designer de jóias está ganhando mais espaço nas escolas de desenho industrial”, comemora. “Na Escola Superior de Desenho Industrial há um mestrado específico para a profissão.” O sucesso tornou Clementina internacional, e os clientes famosos foram se acumulando. Na verdade, a lista de celebridades começara desde as suas primeiras criações, ainda na Europa. A artista havia encontrado a atriz francesa Jeanne Moureau, numa livraria em Saint Tropez, e esta teria elogiado a jóia que Clementina estivera usando, perguntando-lhe onde a havia comprado. “Eu a reconheci imediatamente”, lembra Clementina, “e depois de explicar que era de minha autoria dei-lhe de presente”.

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Com a coleção Positivo/Negativo, Clementina tentou representar o país na sua dualidade: o Brasil idealizado, pródigo e paradisíaco, e o Brasil real, injusto IARA VENANZI

Harmonie, da Coleção Passion, conjunto de anel, brincos e colar em ouro, diamantes e topázio.

E desde que o governo brasileiro elegeu as peças de Clementina para servir de presentes oficiais, a lista cresceu. Hoje, também já usaram as suas jóias a rainha Elizabeth II; a princesa Diana; as primeiras-damas Rosalynn Carter e Hillary Clinton, dos Estados Unidos; Danielle Miterrand, da França; e Maria de Jesus Barroso Soares, de Portugal; o imperador Akihito do Japão; o rei Juan Carlos, da Espanha; a princesa Irene, da Holanda; a primeira-dama, Ruth Cardoso, e a senhora do vice-presidente Ana Maria Maciel, do Brasil. A lista de prêmios recebidos também é longa: 1º prêmio do Melhor Desenho de Jóias da I Bienal Brasileira de Design; 1º prêmio de Desenho de Jóias da XI Bienal de São Paulo; 1º prêmio do Objeto Símbolo dos 50 anos do Senai; o Fine Jewerly Design, em Nova York; recebeu a Ordem do Rio Branco, pelo Itamaraty; a Ordem do Mérito dos Guararapes, pelo Governo de Pernambuco; o Diploma do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco; e a Menção Honrosa do Prêmio CNI Gestão do Design, no âmbito do Programa Brasileiro do Design. Clementina tem escritórios no Recife, Rio, São Paulo, Brasília e Washington.


Redescoberta “Considero minhas criações iniciais como uma descoberta do Brasil. Agora, passo a enxergar um novo aspecto do país, que é a globalização. Desde o descobrimento e da colonização somos um país formado por várias culturas. É isso o que busco retratar nas minhas jóias, no momento.” Ela se refere especificamente à coleção Passion, a sua primeira desde que voltou de um “exílio” de 12 anos nos EUA. Clementina fala de um Brasil dividido ao explicar as jóias que compõem a coleção, que joga com a joalheria portuguesa, a arquitetura francesa e outras influências estrangeiras. A artista se permite agora ousar nos detalhes, em jóias mais elaboradas que fogem da simplicidade que um dia já foi o seu objetivo. Passion acaba de ser exposta no Palácio do Jaburu em outubro deste ano.

Trevo, da Coleção Passion II, de uso cotidiano, conjunto de colares e brincos em ouro

IARA VENANZI

As cópias vieram naturalmente. “Eu torneime domínio público”, diz, com bom humor e orgulho. Ela não se preocupa: como nunca seguiu tendências, sempre as antecipou, sabe que as imitações vão ficando para trás. Hoje, ela se dedica a uma nova fase do seu trabalho, com novas reflexões sobre um Brasil diferente.

Serviço: As jóias de Clementina Duarte podem ser encontradas nos endereços: • Shopping Center Recife: (81) 3463.7961 • Plaza Shopping Casa Forte: (81) 3268.1647 • Deck Brasil Mall SHIS CL QI 11, Lago Sul, Brasília (61) 248.6846 • The NMWA Shop, Washington DC, USA (202) 783.7994 E-mail: cduarte@hotlink.com.br e clementinaduarte@bol.com.br

Encontro inédito reúne designers de jóias no Rio de Janeiro

D

e 29 de novembro a 1º de dezembro, no Rio de Janeiro, estará acontecendo um evento inédito na área do design de jóias brasileiro. É o I Simdesign, um encontro onde os maiores designers do país discutirão sobre a profissão e lançarão tendências para as coleções de 2002. O principal tema em debate serão os certificados de gemologia, cada vez mais exigidos como prova de qualidade de uma jóia, onde constam a titularidade do metal, a procedência da pedra, país de origem, pureza do material, entre outros itens que agregam valor à marca do produto. O I Simdesign tem patrocínio da empresa de pérolas do governo do Taiti e apoio da Amsterdam Sauer, e há a expectativa de receber 10 mil pessoas, com investimentos na ordem de R$ 600

mil. Durante o encontro será realizado também, pela primeira vez na América Latina, o I Leilão de Projetos de Jóias voltado à indústria joalheira.

Serviço:

I Simdesign 2001 Local: Marina da Glória, Rio de Janeiro Data: 29/11, 30/11 e 01/12 (quinta, sexta e sábado) Inscrições: www.simdesign2001.com.br - até 30 de outubro. Após esta data, pelos telefones (21) 2426.4297 / 2445.4828 Organização: OKASION Escritório: Centro Empresarial Cittá América Av. das Américas, 700 / Bl. 01 / Cob. 309 - tel. (21) 3803.7305 - Barra da Tijuca Simdesign2001@aol.com Continente Multicultural 69


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COMPORTAMENTO

O som da noite

A forrozeira Cylene Araújo cantou por 50 horas seguidas. Atraiu a mídia e entrou para o Guinness Book

Em busca da gravação do primeiro disco ou já na estrada há algum tempo, cantoras e cantores estão dispostos a encarar todo tipo de desafio para alcançar seus objetivos

V

era Tavares canta porque cantar a faz feliz. Não aspira ao grande sucesso, porque “hoje para fazer sucesso você tem que cantar música brega”. Jura Figueiredo acha que o destino pode ser diferente. Seu primeiro CD já vendeu mais de setenta mil cópias. Ângela Barreto também gravou um disco, Por um triz..., e está na batalha da divulgação. Cylene Araújo interpreta músicas de Luiz Gonzaga, incluindo uma inédita. Hugo Esteves confessa que sente-se gratificado apresentando-se em bares e boates com a banda Expresso 60. São os cantores da noite recifense. Apaixonados pela música, dispostos a encarar todo tipo de platéia, até poder gravar seu primeiro disco e sonhar com o estrelato. Um caminho que, além da paixão e talento, exige muita persistência. E alguma sorte. Ângela Barreto começou a cantar aos três anos de idade. Sua especialidade: Lá na Serra, de 72 Continente Multicultural

Capiba. “A música era maior do que eu”, conta ela, rindo. Vendo o talento da menina, uma conhecida da família, Ridete, tia-avó do cantor e compositor Lula Queiroga, começou a levá-la aos programas de auditório das rádios recifenses. Ia escondida da mãe, mas chegou a participar de diversos concursos de calouros infantis, ganhando vários prêmios, o que confirmaria o seu talento. Algum tempo depois, quando já tinha doze anos, uma prima sua que, na época, namorava o compositor Carlos Lyra chegou ao Recife e apresentou a Ângela a Bossa nova. Foi amor à primeira vista. Ângela começou a estudar violão e, logo, passou a se apresentar nas festinhas de colégio. Em 1963, entretanto, um acontecimento interromperia a sua carreira. Ela conheceu um rapaz, começou a namorar e logo estava noiva. Casou em 68 e, até 76, quando se divorciou, manteve-se afastada dos palcos, porque o marido não gostava de vê-la se apresentando em público.


ARQUIVO DA CANTORA

Cylene Araújo gravou uma música inédita de Luiz Gonzaga. Vera Tavares diz que cantar melhora seu astral. Ângela Barreto investiu forte no CD Por um triz...

Vera Tavares gravou o CD independente Vera para os amigos e já prepara o segundo volume

PAULO C A

RVALHO

A retomada da carreira musical deu-se logo depois, com um show em parceria com o compositor Ricardo Wolfy. Daí para diante, foi uma sucessão de experiências em bares, restaurantes, teatros, até Brasil com S, primeiro show profissional da cantora, inaugurando em Boa Viagem a boate Ballantine’s. Como estava na “era Collor” e a revolta contra o presidente era grande, foi um show de protesto, com repertório e textos reivindicando um Brasil melhor. Daí para a frente, Ângela Barreto percebeu a importância dos shows temáticos, fazendo Leão do Norte, só com músicas pernambucanas; Leva e Traz Jobim, com músicas do compositor carioca; Desde que o Samba é Samba, sobre o samba; e, grande sucesso, o Maria Maria, que acompanhava a maneira como a mulher é tratada no cancioneiro nacional, através dos tempos, num espetáculo que misturava crítica e humor. No ano passado, veio o convite para participar do Sesi in Concert e a oportunidade de realizar o sonho de todo cantor: gravar o primeiro CD. Por um triz... tem músicas de compositores contemporâneos, como Lenine e Dudu Falcão. A batalha agora é a divulgação do disco, que já começa a tocar nas rádios. Quem também já realizou o sonho do primeiro disco foi Vera Tavares, que acaba de fazer uma temporada na boate Cave, do Monte Hotel, no Recife, e já tem shows agendados em Maceió e no interior de Pernambuco. Ano passado, com arranjos e

execução dos músicos do Quinteto Violado, e com recursos da Lei de Incentivo à Cultura Estadual, gravou o CD Vera para os amigos, que já alcança o número de três mil cópias vendidas. O sucesso é tanto que ela já prepara o Vera para os amigos – 2. Vera canta músicas de Cartola, Antônio Maria, Noel Rosa, Chico Buarque e Dolores Duran, entre outras, todas a pedidos dos fãs. “Sempre gostei de cantar. Melhora meu astral”, diz ela, afirmando que a maior recompensa que espera é o prazer de cantar. Diz que não aspira ao grande sucesso porque sabe que isso implicaria em fazer concessões no repertório, o que ela não aceita. Vera tem tido a sorte de cantar para platéias seletas. “Quando as pessoas sabem que vou cantar em determinado lugar vão para lá. Então, estou sempre cantando para os amigos. E isso gratifica”. Cylene Araújo é outra que começou a cantar menina, aos oito anos. “Estudava canto lírico e interpretava trechos de ópera”, conta ela. Daí não parou mais e em 81 tornouse cantora profissional. De lá para cá, já gravou dez discos, sendo o último Cylene Araújo canta Luiz Gonzaga, pela Companhia Editora de Pernambuco. Já se apresentou em todo o Brasil e, hoje, passa a maior parte do ano em São Paulo. Ela se apresenta em todo tipo de lugar: bares, restaurantes, boates, teatros, praias, praças. “Tanto faz o local. O palco é minha casa e nele eu me realizo”, revela.

Ângela Barreto fez o Sesi in Concert, gravando um CD bem-cuidado, com músicas de pernambucanos

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REPRODUÇÃO

Dono de uma bela voz, Jura Figueiredo já vendeu mais de 70 mil cópias do seu primeiro CD

Cylene Araújo estava com data marcada para se apresentar nos EUA, mas os acontecimentos trágicos de 11 de setembro adiaram a viagem por tempo ainda indeterminado. A próxima viagem para fora do país deverá acontecer em janeiro próximo, para a cidade de Nagoya, no Japão, onde ela tem até fãclube. “Eles vivem me mandando roupas, presentes, e agora resolveram patrocinar esta viagem”, diz. Em maio, deverá ir para Nova Iorque, onde pretende quebrar o recorde que lhe deu direito a registro no Guinness Book: 50 horas de cantoria. O acontecimento deu-se no Centro de Lazer Patativa, em São Paulo. Foram dois dias e duas horas cantando 600 músicas, com músicos se revezando de quatro em quatro horas. Para a maratona, Cylene preparou-se por três meses, com exercícios e alimentação especial. O feito chamou a atenção da mídia e, por conta disso, a cantora já se apresentou em programas como Fantástico e Programa do Jô. Também rendeu um livro onde ela conta como tudo aconteceu, incluindo as receitas dos sucos energéticos que tomou. O primeiro CD de Jura Figueiredo, Sucessos de Barzinho, gravado no ano passado pela Comdil e distribuído pela Sony, já vai em mais de 70 mil cópias vendidas. O que já garantiu o lançamento de Sucessos de Barzinho – Vol. 2, que será gravado em janeiro próximo. “Gravei as músicas de que todo mundo gosta”, revela Jura, que está na noite desde 1975. Descoberta a facilidade para o violão, Jura começou a “tirar” de ouvido até música clássica. Foi então chamado para tocar em um “conjunto de baile”, como se dizia na época. “Mas os caras brigavam muito”, recorda. Ainda chegou a integrar outros grupos como o Som e Arte e Os Tártaros, mas decidiu que seria melhor continuar sozinho. Um dia, no Circo Derby, faltou uma das bandas programadas para a noite. Jura entrou com sua voz e seu violão e fez o maior sucesso. Estava decidida a carreira.

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TOINHO MELCOP

Hugo Esteves canta à frente da banda Expresso 60

Depois de muita estrada, cantando principalmente em bares, começou a desejar o primeiro disco. “Não tinha a vaidade de querer fazer ‘o meu disco’, como outros músicos. Queria fazer algo que vendesse. Sempre sonhei com o sucesso. Quem não gostaria de jogar na Seleção?”, confessa. Mas não queria investir em disco independente. “Vejo o pessoal vender carro, se endividar, e depois? Não distribui, não toca, não vende. Se dependesse deste esquema eu não ia gravar nunca”, revela. Felizmente, a gravadora Comdil revolveu convidá-lo para um projeto de discos de cantores locais. Foi quando surgiu o CD. Segundo Jura, o disco já foi encontrado na França, na Bélgica, na Inglaterra e nos EUA. “Já soube do disco tocando tanto em São Paulo quanto em Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte”, conta, rindo. E acrescenta: “Já tem até versão pirata!” Por conta do sucesso, Jura tem sido convidado para grandes eventos como o Circuito do Frio e o Festival de Inverno de Garanhuns. Em Taquaritinga do Norte, foi abrir um show de Fafá de Belém. A cantora atrasou e isso rendeu a Jura uma apresentação de mais de duas horas. “Cantei durante uma hora, depois disse: Peçam que eu toco. É um desafio, não é? Mas eu confio no meu repertório”, diz ele. O amor pela música também atinge Hugo Esteves. Profissional ligado à Rede Globo, sempre manteve uma atividade artística paralela. Em 1988 era vocalista da banda Ciência Cínica. Com ela che-


gou a gravar fitas demos. Mas a banda se desfez e Hugo resolveu experimentar o teatro. “Não deu. Sem querer fazer trocadilho, a música tocou mais forte”, diz ele. Há um ano, a convite do baterista Wilson, ex-Os Tártaros, entrou para a banda Expresso 60. “Hoje, estou profissional”, diz. A banda, que tem, além de Hugo como cantor, a vocalista Tina, é formada por Gerson (baixo), Valter (guitarra), Wilson (bateria), Reinaldo (teclado) e Marquinhos (trompete). No repertório, um pouco de tudo, de pagode a funk, de forró a pop rock. Tanto que estão pretendendo tirar o “60” do

nome, porque dá a impressão de que só tocam música dos anos 60. Atualmente se apresentam na Uisqueria, em Boa Viagem, às sextas-feiras, e na Fashion Club, aos sábados. No início, na Uisqueria, o movimento ainda era fraco. Agora, eles começam a tocar às 23h, mas, uma hora antes, o bar já está repleto. O sucesso também está acontecendo no Fashion Hall, uma área da Fashion Club dedicada ao público com mais de trinta anos. Em janeiro, Hugo Esteves e a banda Expresso 60 vão gravar o seu primeiro CD.

A noite é uma escola Dos cantores da noite talvez nenhum tenha dado mais certo do que Milton Nascimento, hoje um intérprete respeitado no mundo todo. Muita gente não sabe, mas o mineiro animou bailes, bares e boates no início de carreira. No entanto, sempre manteve a fé de que um dia seria reconhecido como um valor a mais no cenário da MPB. A seguir, o depoimento exclusivo de Milton: Quando você cantava na noite, qual a sua maior satisfação? Tudo, para mim, era ótimo, principalmente os diversos estilos e línguas em que tinha que cantar. E o que me deixava feliz totalmente era quando cantava com quem realmente tinha a ver comigo: grupos, pianistas etc... Você se incomodava com as pessoas conversando enquanto você cantava, como normalmente acontece em bares e boates? As conversas das pessoas não me incomodavam muito. Eu sabia o que era um baile. E muitas vezes faziam silêncio e aplaudiam depois. Você tinha convicção de que um dia faria sucesso e aquilo servia apenas como uma espécie de ensaio?

Eu sempre tive certeza de que um dia me destacaria como cantor. Houve até uma vez em que estava no último andar de um edifício em Belo Horizonte, chamei um músico amigo e lhe disse: “Vai haver um dia que até aquela ultima luz da cidade vai saber de minha existência”. E, sem saber, a noite estava virando uma escola pra mim. Se você tivesse que continuar eternamente como cantor de boate, você continuaria? Eu nunca tive dúvida de que a música regia minha vida. Nunca pensei em parar. Pelo contrário, aquilo me alegrava em cada lugar que eu ia. Fazia arranjos para me acompanharem. E tinha um parceiro muito forte: Wagner Tiso. Um já sabia o que o outro queria, então, o que inventávamos já estava escrito dentro de nossas almas. Continente Multicultural 75


DIÁRIO DE UMA VÍBORA

O ultimo dinossauro Joel Silveira

1.

Tolos

Para os que aqui no Brasil (e no resto do mundo) se costumavam chamar de “inocentes úteis” do comunismo, Stalin tinha uma definição mais precisa e mais cruel: “tolos honestos”.

3.

Porto

Como me alegra o apito de navio se despedindo. É como se eu estivesse dentro dele.

4.

Filosofia

É o que sempre digo: bocejo, logo, existo.

2.

Uma varanda

Do que eu gostaria mesmo agora, neste fim de caminho? De uma ampla varanda campestre, só minha, e aberta para o vazio.

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5.

Dinossauro

Há cinqüenta e cinco milhões de anos, como é sabido, um asteróide chocou-se com a Terra e matou todos os dinossauros. Todos, não. Eu escapei.

6.

O conselho

No gelado janeiro de 1945, no bar do Alberto della Cittá, na Via Sistina, em Roma, Herber L. Matthews, que mais tarde seria por quase vinte anos editor-chefe do New York Times, me dava o seguinte conselho, mais lição do que conselho: – O repórter deve ser antes de tudo humilde e paciente. Não sei se em todos esses longos anos segui o conselho, mas a lição, nunca a esqueci.

7.

Advertencia

Meu amigo me comunica, jurando por Deus e por todos os santos, neles já incluindo Frei Damião e Madre Teresa, que deixou de fumar e de beber. – Definitivamente. E já tem mais de quatro anos. Acrescenta: – Meu vício agora é outro. – Qual? Crack? Maconha? Cocaína? – Nada disso. Infarto. Nos últimos dois anos, já tive três.

8.

A posicao

O desagradável no suicídio é que o corpo raramente tomba numa posição decente.

9.

Nada

Já notaram como aquele famoso cronista está escrevendo cada vez mais sobre coisa nenhuma? Às vezes, nem se dá ao trabalho de escrever – apenas assovia.

10.

O corredor

Coleciono minhas venturas e desventuras – e vou aos poucos fazendo do mundo um casarão que nunca será construído de todo, que já nasce velho e sem conforto – não como aqueles casarões da infância, onde o sol do quintal incendeia bananeiras e laranjais, mas um outro bem diferente, soturnamente diferente, de corredores sem fim por onde um vento viciado corre como por um túnel; em cujas paredes dormem quadros que ninguém mais olha e onde existe, no salão maior, um piano que ninguém mais toca – e talvez já não guarde um único som.

Joel Silveira, ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.

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Estética

MIL PALAVRAS


do mangue Várias manifestações culturais surgiram tendo o mangue como mote: desde os estudos sociológicos de Josué de Castro, até os poemas de João Cabral de Melo Neto, passando pelo Movimento Mangue de Chico Science

Fotos de Pedro Rampazzo

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R

ecife ainda preserva áreas com características significativas de matas, mangues e açudes, apesar da destruição de áreas de valor ecológico, mesmo sob proteção legal. Entre elas, os mangues se sobressaem, tendo servido de mote para diversas manifestações culturais. Desde o enfoque sociológico dado pelo médico e cientista social Josué de Castro, de cujas

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teorias surgiu o conceito de “homem-caranguejo”, até a forte poesia de João Cabral de Melo Neto, falando do homem que busca na lama o seu sustento, passando pelo Movimento Mangue, capitaneado pelo cantor e compositor Chico Science, e que terminou derivando uma série de variações, como a “moda mangue”, a “literatura mangue” e o “cinema mangue”, além da música “mangue beat”. Essa estética, tipicamente nordestina e, mais especificamente, pernambucana, tem rodado o


mundo e influenciado artistas de todo quilate. O fotógrafo Pedro Rampazzo gravou cenas características dos manguezais, um dos ecossistemas de maior produtividade da natureza, que fornece grande e diversificada quantidade de alimentos para a fauna aquática, sendo sua existência vital para a sobrevivência e reprodução de peixes, crustáceos e moluscos, além de sua própria fauna. Sem falar no homem, é claro.

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Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar na lama, com goiamuns, e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo. Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim, vestido negro de lama, voltar a pescar siris; e vejo-o, ainda maior, pelo imenso lamarão fazendo dos dedos iscas para pescar camarão. João Cabral de Melo Neto, in Morte e Vida Severina

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O mangue é um dos ecossistemas de maior produtividade da natureza, fornecendo alimentos para a fauna aquática, sendo vital para a sobrevivência e reprodução de peixes, crustáceos e moluscos, além do próprio homem


Fernando Menezes

D

esta vez seria diferente. A última vez pode ser igual às outras quando não se sabe que é a última. A tarde quente, o coração latindo no peito, a opressão das lembranças, a sensação de perda sufocante. Sim, seria a última. O mormaço juntava-se ao suor pegajoso, de angústia, nem lembrança dos outros encontros, nem um alívio, só o peso da tensão. Os carros, as pessoas, as árvores, tudo parecia mover-se em câmera lenta, como nos filmes, imagens fluidas, como fumaça tênue e quente. Nem uma sombra. Escolhera mal o lugar, só pode ter sido a pressa. Mas estava ali, os minutos escorriam com o suor, lentos, só o coração acelerado, latindo alto. De repente, Tereza, como uma visão saindo do mormaço. Sabia que talvez nunca mais tornasse a vê-la. O rosto sereno, de traços finos, o cabelo longo, a boca perfeita, os dentes alvos, a voz suave, quase sussurros. E a primeira surpresa, Tereza estava formal, sem os jeans ligados, sem a camiseta alegre. De vestido azul, decotado, brincos que faiscavam, estava bonita, mas parecia outra (em breve seria mesmo). Então, o inesperado resolveu presidir a cena. A calma voltou insuspeitada, revigorante. – Eu preferia um vento suavemente Norte. – Pra quê? – Pra acompanhar sua partida. – Que bobagem, eu vou de qualquer forma.

– Só achei bonito, na verdade, nem sei se vento Norte é bom ou ruim. – Você diz coisas tolas. – Pois é, isso sempre me acontece, fico sem ter o que dizer e acabo dizendo bobagens. – Por que não fica calado? – Acho que me lembro daquela frase idiota – “o silêncio é de ouro” – e prefiro falar, pelo menos, você me responde. – Estou aqui porque quis. Ficar calada seria grosseiro. – Então, você vai ficar por lá para sempre? – Para sempre é muito tempo, detesto rotina, não fico para sempre em lugar nenhum. – É mesmo, ficar para sempre é coisa de pedra, de paisagem, as pessoas têm sentimentos e por isso mudam e se mudam. – Mudar de lugar não é mudar de sentimentos, você precisa aprender a pensar mais simples, pode ser apenas uma aventura, vontade de ver outros lugares. – Mas você não vai sozinha, vai dividir outros lugares com outra pessoa. – Ah, isso é muito chato, parece aula ou sessão de psicanálise, ainda não houve nada. Fale de outra coisa. – Mas eu vim me despedir; vou falar de quê? – Sei lá, de você, o que vai fazer agora? – Só sei que vou ficar; não posso mudar nada. Ah, eu preciso corrigir a frase sobre o vento, é de um poeta amigo meu, ele diz que o vento é amavelmente Norte. – Continua não tendo importância.

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CRÔNICA

Sexta-feira


– Mas é bonito, não precisa ter importância. E ficaram ali, no mormaço sufocante. Vicente tornou a falar sobre o vento, talvez o calor fosse o responsável. Que vento ela preferia que soprasse na hora da partida? Tereza fez outra surpresa, não cortou

a pergunta, disse que preferia o que soprava nas tardes de abril. Para quem não entende de vento, já é um bom começo, pensou. As tardes de abril lembram alguma coisa (mas ele só a conheceu em julho). – Por quê você lembra as tardes de abril? – Não quero falar disso. – Está bem, vamos sair daqui, está quente, vamos tomar alguma coisa. – Não quero, bebida puxa cigarro, ando fumando demais. – Por quê? Você sempre foi tão decidida. – Nada, só estou fumando demais, isso não tem nada a ver com a viagem. – Tereza, fique mais uns dias, quem sabe, tudo pode mudar (O apelo feriu fundo, nunca tinha desabado assim). Mal ouvia as palavras que saíam rápidas, duras, negativas. – Nada vai mudar; você sabe disso. Era quase uma acusação. (Que lugar infeliz, carros, pessoas que parecem fantasmas, um calor insuportável). Fez um esforço e ouviu o resto das frases: – A cidade me oprime, estou cheia disso tudo, o cheiro das ruas, a miséria, as 84 Continente Multicultural

lembranças, tudo me oprime, quero ir embora. Eu só quero sair; ninguém tem culpa, será que você não entende? – Não. – Vamos tomar um café e fumar um cigarro. – Não quero mais, vou lhe levar pra

casa, pelo menos saímos deste mormaço. – Não precisa, estou de carro. Olha, Vicente, não gosto de drama, quando você telefonou, eu já estava de saída, com as malas no carro. O Franco está ali me esperando, tenho que ir; o avião sai daqui a pouco. – Franco ou o seu namorado? – Vicente, por favor; eu só vim porque lhe estimo muito, aprendi muito com você, mas quero ir, pare com isso, já é chato ter que dizer adeus. O mormaço bateu mais forte, Tereza deu as costas e caminhou, como nos filmes, em câmera lenta, flutuando no ar quente. Uma lembrança chegou de repente, engraçado, outro flash do poeta amigo, só que era diferente o cenário, era um parque, cheio de sombras, quem sabe, numa tarde de abril: “Aí ela parou e eu disse: Vera! E saímos de mãos dadas pelo parque sem fim”. – Tereza! Ela nem olhou pra trás, nem ouviu. Desapareceu no tráfego pesado de uma sexta-feira infeliz. Fernando Menezes é jornalista


A vitória da barcaça

N

A barcaça cede lugar às jangadas e aos vapores da Companhia Pernambucana

a segunda metade do século guam no canal, o Tromba-las-águas, o Araripe e o 19, a barcaça tornou-se oni- Tejucopapo. Na ilha de Itamaracá, as barcaças navepresente, de Alagoas ao Rio gavam o Jaguaribe em busca do seu sal; e a norte da Grande do Norte. Dadas as barra de Catuama, o Itapessoca e o Abiaí. No Paraídificuldades de navegação do ba, fundeavam no varadouro da cidade e subiam os rio Igaraçu, Itapissuma, sobre principais afluentes. O Cunhaú era freqüentado em o canal da Santa Cruz, que se- extensão de cinco léguas; o Potengi, na de quatro. A para a ilha de Itamaracá do continente, “porto de ausência ou raridade de barcaças em certos portos da mar excelentíssimo para navios e sumacas”, já era costa decorria não de condições físicas, mas da falta descrito num relato de fins do século 17, acerca do de carga decorrente da inexistência de boas estradas governo de Câmara Coutinho, como “o verdadeiro ou da pouca importância produtiva da área adjaporto do termo de Igaraçu”. Segundo Vital de Oli- cente, como nas barras de Pau Amarelo, São José, veira, ali acorria “quantidade imensa de barcaças e do Rio Doce ou do rio Tapado, ao Norte de Olinda. canoas”, que freqüentavam os Em lugares tais, só ancoriachos e braços de mar que desá- Evaldo Cabral de Mello ravam à procura de escala Continente Multicultural 85


tranqüila para o pernoite ou para fugir de alguma tempestade. Seria impossível imaginar o tráfego de barcaças sem o rosário de povoações litorâneas que lhe serviam de escala. Ao Sul do Recife, o Pirapama, que, como o Jaboatão, desemboca em Barra de Jangada, era trafegado por canoas e barcaças até o engenho Velho, mais de duas léguas da foz. No Jaboatão, porém, o assoreamento só permitia o acesso de canoas. Pela Barra de Jangada transitava boa parte da carga procedente da freguesia do Cabo, de modo a evitar as atribulações da estrada que a ligava ao Recife. Dos quatro rios que deságuam em Suape, apenas o Ipojuca era regularmente utilizado por barcaças, que alcançavam o engenho Trapiche sem necessidade da maré; os outros bifurcavam-se em riachos que, embora utilíssimos aos engenhos, eram inaptos para a navegação. No rio Formoso, barcaças e canoas chegavam até a cidade homônima, cerca de légua e meia acima da foz, que oferecia as facilidades de duas grandes camboas. No Una, evitando as pedras do seu leito, as barcaças navegavam em extensão de duas léguas. Daí por diante, as dificuldades provinham da topografia, pois a um quarto de léguas, o relevo começava a dar lugar a pequenas quedas d’água. No litoral alagoano, as barcaças subiam na preamar o rio Manguaba ou das Pedras até à vila de Porto Calvo, seis léguas da foz. O Camaragibe lançava um braço ao norte, outro ao sul, o Meirim, este navegável até o passo de Camaragibe. Ao Sul da Jaraguá, a “barra velha” dava acesso às barcaças que carregavam, na margem das lagoas, açúcar, algodão e madeiras. No São Miguel, barcaças e sumaquinhas alcançavam a vila ou iam mais além. No Coruripe, preferiam ancorar na enseada ao sul do pontal, para onde também se trazia a carga. Ancoradouros marítimos, como o Porto Francês, outrora freqüentados por sumacas, foram abandonados em função das facilidades de acesso da barcaça. O reino da barcaça circuncreveu-se à costa do barlavento. Ao Norte do cabo de São Roque, ela ficou reduzida à função de assegurar o transporte de mercadorias no porto de Fortaleza ou entre o Aracati e a barra de Jaguaripe. No Apodi, navegava por espaço de léguas, mas não era utilizada no Açu. Devido às grandes distâncias, não lhe foi possível sustentar a concorrência da grande cabotagem, especialmente dos vapores das companhias maranhense e pernambucana. Ao contrário da organização espacial predominante na mata açucareira, a economia 86 Continente Multicultural

de ribeiras caracterizavase pela concentração das atividades de transporte naqueles pontos do litoral cearense e riograndense (o Acaraú, Fortaleza, o Aracati) que drenavam o interior pastoril e algodoeiro, estimulando embarcações de maior porte. Na costa do Sertão, a barcaça não teve, por conseguinte, a fortuna da sumaca. Quando ela se generalizou na Mata, o comércio cearense já escapara em boa parte à dominação do entreposto recifense, o que não ocorrera, entretanto, com os centro salineiros de Mossoró e Macau, cujas comunicações marítimas com o Recife ela assenhoreou. Nos anos cinqüenta, as barcaças de sal constituíam categoria à parte, tendo direito a espaço próprio no porto do Recife. Quanto ao limite sul da barcaça, ele coincide grosso modo com o São Francisco, passando a dominar, abaixo dele, as embarcações de pequena cabotagem típica do recôncavo baiano; e a montante, da navegação do baixo São Francisco. A geografia da barcaça correspondeu, assim, à área do entreposto recifense em meados do século 19, de Mossoró a Penedo. Sabe-se que o sistema hidrográfico da “mataseca” ao Norte do Recife e seus prolongamentos

Apesar de oferecer a melhor solução a uma área de rede hidrográfica diversificada, mas modesta, a barcaça teve de competir com barcos inferiores no tocante à capacidade de carga e à sua proteção


paraibano e riograndense não têm a diversificação da “mata-úmida” ao Sul e da sua extensão alagoana. Nem dispunham da oferta de madeira abundante. Foi, portanto, nesta última subárea, especialmente em Alagoas, que se concentraram os estaleiros de barcaças. A disponibilidade de madeira apropriada à construção naval já constituía importante vantagem competitiva nos meados do século 19, quando ela já rareava na região costeira. A proximidade de matas ricas em madeiras nobres e a possibilidade de transportá-las por via fluvial tornaram a antiga comarca pernambucana o centro natural de fabricação de pequenos barcos, escavandose ali, no século 18, canoas não de pau-carga ou de amarelo, como em Pernambuco, mas vinhático, madeira reservada ao mobiliário das casas da gente de prol. Em vez das canoas monóxilas ou das jangadas, a barcaça exigia uma variedade de madeirame, como o angelim amargoso e o amarelo ou a maçaranduba para mastreação; a oiticica, o pau carga, o cedro, o vinhático, a peroba para tabuados; a sucupira para cavernas ou vãos; o barabu e a batinga para cavilhas; o jenipapo, a oiticica, o paudarco para liames; o louro-de-cheiro verdadeiro para forro. Onde obter tal variedade a preços razoáveis senão nas cercanias da faixa de matas que se estendia do Sul de Pernambuco a Alagoas? Daí a possibilidade de que a barcaça tenha sido concebida e originalmente executada no litoral alagoano, de onde se irradiou para o Norte. Sua maior adaptação, ecológica e econômica, às fainas da pequena cabotagem ao longo do litoral de Pernambuco, da Paraíba e de Alagoas, habilitoua a sobreviver à concorrência, que deveria ter sido esmagadora, dos navios a vapor da Companhia Pernambucana. Para a barcaça, a competição mortal adveio não do “vapor de mar”, mas do “vapor de ter-

ra”. Entre 1885 e 1910, sua participação no transporte de açúcar declinou de mais de 1/3 a menos de 1/5, embora continuasse a representar, como indicou Peter L. Eisenberg, “o principal transporte alternativo”. Por outro lado, e a despeito de oferecer, do ponto de vista de transporte por água, a melhor solução a uma área de rede hidrográfica diversificada, mas modesta, e de produção distribuída por faixa relativamente estreita, ela teve de competir com barcos inferiores no tocante à capacidade de carga e à sua proteção. As “canoas do alto” resistiram por algum tempo. Nos anos cinqüenta, para 189 barcaças, nada menos de 149 canoas à vela estavam registradas na Capitania dos Portos de Pernambuco. Mas nos anos setenta haviam sido eliminadas, as jangadas constituindo o segundo tipo de barco empregado pela pequena cabotagem. Quanto à sua contraparte, as canoas de rio, sobreviveram no serviço das barcaças e em outros. No Paraíba, ao passo que estas se detinham no varadouro, as canoas subiam até o Pilar. No Pirapama, as barcaças ficavam no engenho Velho, sendo revezadas a partir daí pelas canoas; e no Ipojuca, no engenho Salgado, onde rendiam-nas as canoas que subiam até Escada. As descrições da canoa do alto datam dos últimos anos trinta, primeiros quarenta do século 19, descrições que coincidem notavelmente, sugerindo tratar-se de tipo bastante caracterizado. A canoa do alto em que viajou Kidder era a menor, medindo 7,5m de comprimento por 2m de largura; e ele mesmo registra haver cruzado com canoas mais longas. As dimensões das canoas de Gardner e de Vauthier eram próximas: 12m por 0,90m, uma; 10 a 13m por 1m, a outra. Todas ainda eram monóxilas num período em que a palavra canoa, mesmo no caso das menores, de rio, já se modificava sensivelmente no sentido de incluir o barco encavilhado. A disposição interna era simples: cabines na proa e na popa (a de Vauthier apenas na proa), deixando-se aberto todo o espaço intermediário, destinado à carga ou aos passageiros. A mastreação compunha-se de vela triangular e de bujarrona. Para evitar a adernagem, dispunham de “embonos”, paus de jangada atados longitudinalmente ao seu bordo superior, donde a expressão “canoa de embono” com que também se designavam. “O leme [aduz Vauthier] é um remo largo com que se pode mover e dirigir a embarcação.” Kidder menciona a tripulação composta de mestre e dois auxiliares. Havendo feito percurso mais longo, Gardner reContinente Multicultural 87


Mauritius – J. Vingboons, 1637

gistrou particularidades da navegação, como a de que preferiam singrar entre a praia e a linha de arrecifes. A etapa do Recife a Jaraguá (Maceió) foi vencida em cinco dias, velejando-se de dia e pernoitando-se em povoações praieiras ou na própria embarcação ancorada em alguma enseada remansosa. Eram em balsas que os moradores do Sul da capitania de Pernambuco comerciavam com o Recife nos derradeiros decênios do século 18. Por balsas, designavam-se as jangadas maiores, em que a carga era posta sobre estrado suspenso à altura de meio metro e protegida por esteiras. Elas podiam ser construídas mediante a adição de jangadas, à maneira das “canoas de ajoujo” do São Francisco. Na travessia dos rios, eram movidas a remo ou à vara. Uma gravura de Koster no-la apresenta: “A sela [do cavalo] é colocada sobre ela e o cavalo nada ao lado, enquanto o cavaleiro, de pé sobre a balsa, segura as rédeas”. Segundo o autor, “as balsas empregadas em pequenos rios são de construção similar à daquelas já descritas anteriormente [i.e, as jangadas], exceto que sua feitura é ainda menos cuidada”. Mas o cavalo nem sempre era obrigado a nadar. As tropas de algodão recorriam a essas jangadas fluviais, cada

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uma com capacidade para dois ou três fardos. Quanto à lancha, empregada sobretudo no tráfego portuário, trata-se de expressão equívoca. Uma pintura do último quartel do século 18, representando o porto da Madeira (Recife), identifica três embarcações como “lanchas com madeiras para terra”, uma movida a remo, outra a varejão e um veleiro de mastro único. Mas desde o século 17, a palavra era também utilizada para designar uma pequena embarcação à vela. Gardner avistou-as numerosas na lagoa Manguaba, “um pequeno tipo de veleiro de fundo chato”. Mas foi no sentido de embarcação portuária que Vital de Oliveira e os registros de embarcações do porto do Recife empregaram a palavra. Ela nada tinha a ver, por conseguinte, com a lancha baiana, que se assemelhava ao barco baiano na mastreação e na construção, com a diferença de ter a popa fechada. Que este tipo de lancha era invulgar no Nordeste, infere-se da sua designação de “lancha da Bahia”. Ademais do seu uso preferencial na pesca litorânea, a jangada foi o ersatz universal, a embarcação que substituía, quando necessário, todas as outras. Em 1881, mais de trinta anos depois que a barcaça se havia apossado dos percursos regionais, a


REPRODUÇÃO

jangada era caracterizada como “o segundo elemento de nossa pequena cabotagem entre as províncias da Paraíba e Alagoas”. Em começos do século 19, o açúcar dos engenhos do Cabo era, em parte, transportado em jangadas, do Pontal ao Recife. Pela mesma época, elas serviam ao transporte de algodão como também do pau-brasil pertencente ao monopólio régio. A carga era colocada sobre um estrado, de modo a preservá-la das ondas. Aires do Casal notava que, em jangadas, “passageiros transportam-se com sua mobília dum para outro porto”. Para conforto do viajante, usava-se o girau, uma “cabine suspensa” e móvel, que podia ser retirada. Na descrição de Kidder: “A uma altura de cerca de 45 centímetros do piso da jangada, amarram-se dois fortes esteios, cujas extremidades opostas descansam sobre os toros da jangada, junto ao mastro. Sobre esses esteios, colocam-se tábuas no sentido transversal, de maneira a formar um soalho. Por sobre isso, vai uma armação para sustentar o toldo, parecida com o dos carretões de viagem, de maneira que o passageiro dispõe de um espaço de 90 centímetros de altura por 1m20 de largura para se abrigar. Sobre as táboas, vai uma

esteira grossa, que serve de cima, sobre a armação, outra que serve de teto, sobre a qual atiram um encerado quando chove”. Foi num desses giraus que Gardner e um amigo fizeram a viagem do Recife a Itamaracá. Também em jangada, seguiu de Maceió a Peba, ponto obrigatório de desembarque de vez que a embarcação não podia vencer o quebramar do São Francisco. No Piaçabuçu, o botânico inglês arranjou canoa que o levou a Penedo. No retorno a Maceió, o percurso foi feito em ordem inversa: em canoa até o Piaçabuçu; e a partir de Peba, novamente em jangada, “uma ótima e grande jangada que nunca navegara”, em cujo girau, ecologicamente coberto de palha de coqueiro e não de vulgar encerado, defendeu-se confortavelmente de prolongado aguaceiro. A jangada teve também função fluvial. Em meados do século 19, ela transportava o algodão do Aracati barra afora, onde era baldeado para os navios. Nos portos, havia jangadas de até 20 paus, expressamente construídas para as fainas da carga e descarga das embarcações maiores. Mercê o girau, eram igualmente usadas no embarque e desembarque de passageiros, como em Fortaleza e na porta do Genipapo (Natal), e pelos práticos dos portos, embora no Recife, como medida contra o contrabando, estivessem proibidas de abordar os navios. A esses usos rotineiros, somavam-se os excepcionais. Foi em jangada que o presidente da Confederação do Equador, Manuel de Carvalho Pais Andrade, refugiou-se a bordo de fragata inglesa. Mais do que a barcaça, a jangada prestou-se à fuga de escravos ou à transmissão de comunicações oficiais. Durante a guerra holandesa, já fora utilíssima. Para os corsários desejosos de se inteirarem das condições de defesa do litoral, os jangadeiros constituíam a principal fonte de informações. Reciprocamente, serviram de espia às autoridades coloniais à cata de notícia sobre movimentos ou indivíduos suspeitos; e no combate ao contrabando, o governador Luís do Rego Barreto (1817-1821) organizou um serviço de jangadas nos portos da capitania. A despeito da sua fragilidade, a jangada foi empregada em operações militares, transporte de mantimentos e de auxílio bélico; e mesmo em ações ofensivas de guerrilha naval: incêndio de naus inimigas e abordagens temerárias. Evaldo Cabral de Mello é historiador

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ENTREMEZ

O gênio da raça No Brasil, não tratamos com seriedade a dramaturgia construída no rádio e na televisão

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e você quer ser culto e bem informado, veja novelas – diz o subtexto de uma campanha publicitária da TV Globo. É o sinal verde para mim. Agora, eu posso revelar a minha verdadeira formação cultural. Confesso a vocês, que além da fastidiosa literatura romântica brasileira, eu recebi uma verdadeira lavagem cerebral das novelas de rádio. Não podia ser diferente. Depois de ter lido os poucos livros da Biblioteca Municipal do Crato, quase todos sobre vidas exemplares de santos, só me sobrou o rádio, já que eu era péssimo no futebol e nunca acertei rodar um pião de ponteira.

Meu pai foi quem me iniciou no vício. Ele levou o primeiro rádio para o Sertão dos Inhamuns, onde nasci. Um Philips alimentado à bateria de carro. Vinha gente de toda a redondeza conferir aquela caixa mágica, falante e cantante. Ninguém se atrevia a falar mal de meu pai, com medo que as intrigas fossem captadas no nosso aparelho. Eu ouvia e declamava feito um papagaio tudo o que o rádio transmitia. Cheguei a ganhar dinheiro para repetir os “reclames” do sabonete Palmolive e do Melhoral. E as novelas? Viciei-me cedo, quando fomos morar no Crato. Sintonizávamos a Rádio Clube de Pernambuco, A Difusora do Maranhão, a Nacional... Lembro as músicas de abertura, diálogos in-

Ronaldo Correia de Brito 90 Continente Multicultural


teiros e os títulos mirabolantes: Brumas do Passado; Ódio que Mata; Ângela, a Moreninha de Ânzio; O Xeique de Agadir; Eu Compro Essa Mulher; O Direito de Nascer; Jerônimo, o Herói do Sertão; A Vingança do Infeliz. Só agora descubro que atirei para um baú velho e esquecido o melhor conteúdo da minha formação: as novelas. No sítio de minha avó, onde eu costumava passar as férias, só existia um rádio. Quando as pilhas estavam fracas, elegiam uma pessoa para escutar a novela, com o ouvido colado à caixa de som. O eleito transmitia para os outros circunstantes os acontecimentos mais importantes da trama. Minha prima era sempre a escolhida. Talvez ela tivesse as orelhas maiores do que as minhas. Com voz acelerada ela passava o enredo para minha tia, que passava para minha avó, que gritava para mim. Era uma técnica precária. As vozes se misturavam, eu não conseguia compor os cenários, minha avó berrava feito uma louca, o rádio emudecia. As novelas mal ouvidas e os livros parcialmente comidos pelas traças são o meu esteio cultural. A dramaturgia italiana, a francesa e a inglesa se construíram sobre uma dramaturgia menor, de origem popular, ou melhor dizendo, popularesca. O maior de todos os gênios, Shakespeare, criava seus textos às pressas, colando tramas de domínio público ou reescrevendo peças de vários dramaturgos, esquecidos pela história. Hábito comum, num tempo em que não se falava em plágio e direito autoral. O teatro elisabetano não se encenava apenas para a nobreza e intelectuais. O público que assistia aos espetáculos de pé, na platéia, era formado de comerciantes, artesãos e da plebe de Londres. A poesia shakespeariana também foi escrita para o povo. Goldoni, em Veneza, quebrou os modelos rígidos do teatro de commedia dell’arte, em que o texto é pretexto para os improvisos de Pantaleão, Arlequim, Pierrô e Capitão, inaugurando uma escrita que tem como lastro uma dramaturgia tipicamente popular e italiana. O mesmo fez Molière na França, partindo de um modelo italiano adaptado pelos franceses. No Brasil, não tratamos com seriedade a dramaturgia construída no rádio e na televisão. Os intelectuais torcem o nariz para o produto mais popularmente brasileiro: as novelas. Ninguém consegue

ser gênio escrevendo trinta laudas diárias, durante seis meses, num esforço sobre-humano e supra-artístico. Os tempos são outros, a linguagem é outra, os meios são outros. Mas, guardadas as proporções, há alguma semelhança entre a feérica produção veneziana, que tinha por único fim o entretenimento de uma burguesia consumidora de teatro, e o que é produzido na televisão brasileira. O que emergirá do meio dessa torrente de falas e personagens criados para a televisão? Não esperemos um Shakespeare, nem um Goldoni, nem um Molière. Mas será que um dia, ao molde do teatro elisabetano, teremos a reescrita dessa dramaturgia caótica, onde uma cultura brasileira subjacente ameaça insinuar-se? Ou esta já é a nossa dramaturgia final? Vocês estão querendo me dizer que Manoel Carlos é o gênio da raça? Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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RESENHA

A poesia de Carlos Nejar resiste à tese de que a arte teria chegado ao seu fim

A invenção contínua

O autor de Os Viventes, em bico-de-pena de Iberê Camargo

Mitos, pessoas e animais formam o núcleo de Os Viventes, de Carlos Nejar. Sendo um escritor com acentuada consciência de seu tempo, não parece disposto a contaminar-se pelos postulados teóricos dos que falam de poesia em extinção. Portanto, não submisso ao profetismo hegeliano que, no século 19, anunciou o fim da arte, tese frustrada por Baudelaire, ao dar-lhe adequada resposta teórica, não só em sua praxis poética, mas também em seus estudos de estética que lhe permitiram retirar do limbo os materiais e as formas fundadoras da poesia da modernidade. Carlos Nejar, poeta que não demonstra nenhuma adoração aos ídolos da era técnica, resiste à idéia de que a arte, em particular a poesia, venha a desaparecer. As linguagens criadas pela cultura são monumentos, e os monumentos, ensina-nos Ernst Cassirer, costumam “durar”, pois não dependem de transmissibilidade hereditária. Daí acreditar – como Eliot, e eu também acredito – que a cultura não se herda: conquista-se com muito esforço. E uma vez conquistada, não se deixa hipnotizar, como ocorre com largos segmentos das César 92 Continente Multicultural

massas humanas, pela mídia sofisticada, repressiva, ignorante, desidiosa, inepta e que domina os modernos meios de comunicação, a serviço de interesses políticos e da economia de mercado. O poeta de Os Viventes resiste à elástica simplicidade dos que, embora se julgando artistas, são incapazes de distinguir a arte da não-arte, o falso do verdadeiro. Carlos Drummond de Andrade, ao escrever sobre o livro de Nejar, por ocasião de seu aparecimento em 1979, afirmou que Os Viventes é uma criação onde o próprio Drummond sentia o calor existencial. “É obra que, sucedendo ao canto, anterior, e antecipando o canto que continuará extraindo de sua mina poética, nos dá um belo exemplo de permanência e invenção contínua”, escreveu o autor de O Sentimento do Mundo ao proclamar a importância desse livro. Os Viventes se dividem em oito partes, a começar com o Anel do Vento e terminando com O Livro das Bestas. Entre essa coordenada bipolar estão os grandes poemas bíblicos, os profetas, Moisés, Lázaro, os pequenos e os grandes do Velho e do Novo Testamento. No canto inicial, se lê que nos Viventes tudo é julgado, ou é julgamento in Leal progress.


Viventes o que sabeis – que mundo o poema! – ? Em sua terra nada se queima. Viventes o que sabeis da morte e o resto se nem sabemos de nós no anel do vento?

REPRODUÇÃO

A linguagem de Carlos Nejar, em Os Viventes, não é a expressão de um temperamento romântico, quando fala em Mafalda, Paulo, Sadi. “Onde Paulo e Sadi?” – indaga, e ele próprio responde: “Estão correndo e era o pátio com os curvos pessegueiros. Cristina, Graça, Mira, a Rosa sobre o ventre das janelas verdes”, palavras suficientes, necessárias, não excessivas, pois quando se usa a linguagem com precisão ela nunca é excesso. A economia da linguagem não engrandece a língua. É antes um maneirismo, já que não enriquece o idioma como sistema social nem como língua poética. É por isso que se deve recordar Murilo Mendes, um latifundiário de palavras. Palavras produtivas, como produtiva é a palavra em todo poeta forte. Não esqueçam Shakespeare, que usava demasiadamente as palavras, nem Malherbe, que as economizava em demasia. Façam uma reflexão sobre os dois e digam – não é preciso

indagar a ninguém – quem foi o vencedor. A língua criadora de “monumentos” é rica em palavras, símbolos e alegorias, como em Dante, ou plena de imagens e metáforas, como em Shakespeare. Quem mais contribuiu para a grandeza da língua inglesa no século 17 foi Shakespeare, porque a usou como se fosse a correnteza de um imenso rio de imagens e de metáforas. Engana-se quem diz que Dante foi econômico no uso da linguagem. Como? Se foi ele quem mobilizou todas as palavras, todos os dialetos, todos os recursos que lhe possibilitaram criar um novo idioma, em uma época em que o latim era por ele próprio considerado uma língua criada por sábios? Ao falar sobre Ofícios Terrestres e Divinos, Nejar põe na boca de Samuel estas palavras: Além de mim, Prosseguirão plantando. Prosseguirão nogueiras e planetas. E gerações. dizer:

Ou ainda, como na parte V – Baldeações – ao A senha é a porta. Não haverá outra. O tempo está posto nos remos.

César Leal é poeta e crítico literário. Esta resenha é um trecho de um ensaio maior O escritor gaúcho Carlos Nejar, em noite de autógrafos

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HUMOR

Miguel

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ÚLTIMAS PALAVRAS

O relógio do Apocalipse

V

ivemos um momento, não mais somente da motivação excitante e fantasiosa das aparições estranhas, dos fenômenos físicos intrigantes, das ocorrências inacreditáveis, do tudo ou nada do inexplicável, mas de uma nova era de criação e destruição: o temor que rondou os druidas pela queda dos céus sobre suas cabeças – uma coreografia oriunda do respingo da Dança do Universo, de Marcelo Gleiser, consignando o fim da terra e do céu. Não deixa de ser uma espécie de dança das horas e dias, em que marcamos o ritmo das batidas despertadoras e açambarcadas do suspense típico das trilhas sonoras de horror – que nos promete para breve, bem ligeiro, um jocoso espetáculo de irracionalidade religiosa e étnica. Um fatalismo protagonizado por bestas beligerantes, sempre inconvenientes à razão do ser ou não ser, do egocentrismo, da arrogância fanática pelo extremismo das idéias, da pouca importância para a humanidade e para com os ponteiros do Apocalipse. Sabemos da postura mandonista dos Estados Unidos, imposta a todos os países pobres do mundo – republiquetas de bananas, nanicas e insignificantes, chefiadas quase sempre por presidentes fardados de máculas e sem glórias – na eterna troca de proteção capitalista por uma subserviência social e econômica. Entretanto, nada explica a terrível agressão sofrida pelo seu povo, tampouco se deve desprezar a história, que chamou aquele insidioso ato – a começar pelo hediondo confronto entre judeus, árabes e palestinos. De um lado Yasser Arafat (hoje mais maduro então moderado), com suas guerrilhas e atentados aos judeus; e do outro o branquelo do Ariel Sharon que bem poderia extrair um pouco de compreensão à bondade (se é que tem alguma) em seu constante mau humor e usá-lo a favor da paz com os seus desafetos (pois são da mesma origem), e não ficar ruminando seu passado belicista, por ironia um

tanto nazista, quando permitiu os massacres de Sabra e Chatila, matando milhares de civis, sem pena nem vela. Argumenta a defesa do seu território, esquecendo dos nacos de terras surrupiados dos seus vizinhos, também contemplados (por resolução da ONU em 1947), desmontando todos os conceitos de respeito internacional. Até os Estados Unidos e, de trivela, os frios britânicos, seus protetores, já concluíram pelo imediato reconhecimento do Estado Palestino. Mesmo assim Sharon continua esbanjando a sua soberba, também, sem dúvida, terrorista. Todos somos espetantes da paz, embora alarmados pelos gases e bactérias letais que a ciência criou – pois ela sempre teve o dever moral de alertar para a luz da resolução dos males do mundo, mostrando, com isso, também, que ela provoca vários desses males... Antraz, sarin, varíola... A bubônica! São os agressores fantasmas à la bin Laden, gerando uma histeria coletiva direta nos norte-americanos, tal as acontecidas em 1933 e 1945, quando os lendários gaseadores loucos de Botetourt (Virgínia) e de Mattoon (Illinois), respectivamente, espalharam pavor por várias outras regiões do país. Assim, baldeados de chiliques, os ianques construíram o “Relógio do Fim do Mundo”, que fica na Universidade de Chicago e tem seus ponteiros freqüentemente reajustados – simbolizando os graus de ameaça de apocalipse nuclear, segundo a Bulletin of Atomics Scientists. E quando chegar a hora dele disparar seu carrilhão, melhor que soe com o eco sonoro de um Big Ben elegante e intergaláctico de Brian Greene, anunciando o Big Bang cósmico – o colapso das últimas estrelas. Eles nos lembrarão, por certo, tal Jerome Clark, que o mundo é um mistério... E de que nós mesmos somos um mistério.

Rivaldo Paiva - escritor 96 Continente Multicultural




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