Continente #012 - Walt Disney

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Multicultural

Especial – Walt Disney A personalidade do criador de um universo infantil, que refletia em seu trabalho a ideologia norte-americana

Dossiê –

Brasil

Cabeças pensantes de diversos setores da sociedade tentam fazer um diagnóstico que desenhe o rosto real do país

Século 21 –

Poder e terror

O governo americano sofre as conseqüências por serem os Estados Unidos a maior potência mundial

Artes plásticas –

CONTEÚDO

Continente

Consagração

Conto –

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Esfinge

Raimundo Carrero revela como o excesso de beleza pode gerar sentimentos contraditórios como a dúvida e a angústia

Crítica –

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Literatura histórica

Affonso Romano de Sant’Anna analisa o intrigante livro escrito pelo Frei Manuel Calado sobre a guerra contra os holandeses

Diário de uma Víbora –

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Reportagem –

Millôr

O humorista carioca diz que é o profissional mais “demitível” da imprensa nacional e conta como foi o início de sua carreira

Entremez –

Palco

Desde os primórdios da humanidade o teatro é utilizado pelos povos para celebrar festas religiosas e aproximar culturas

Giro – Estréia

Página 42

Literatura –

Inéditos

Trechos de cartas, diários e cadernetas de viagens de Guimarães Rosa no período em que trabalhou fora do país

Antologia – Druida A poetisa carioca/pernambucana Lucila Nogueira mostra poemas inéditos escritos na França

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56 62

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ROBERT ZUCKERMAN / DIVULGAÇÃO

A partir deste número o leitor conta com um roteiro de eventos e fatos culturais que estão acontecendo ou vão acontecer

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Resposta

Joel Silveira conta como uma garota pobre surpreendeu um experiente pintor que lhe fazia perguntas clichês DIVULGAÇÃO

Salão de Artes de João Pessoa se consolida ao completar dez anos revelando jovens talentos de todo o território nacional

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Cena do filme Fantasia, dos Estúdios Disney

Página 72

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Últimas palavras – Jardim O cronista comemora o primeiro ano da revista Continente Multicultural mandando flores para todos

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira

Arte Luiz Arrais

Editoração Eletrônica André Fellows

Ilustradores Lin e Zenival

Colaboradores: Aderbal Brandão, Affonso Romano de Sant´Anna, Alberto da Cunha Melo, Alexandre Belém, Carlos Costa, Edvaldo Rodrigues, Fábio Lucas, Fernando Monteiro, Fernando Sampaio, Geyson Magno, Gustavo Moura, Ivana Borges, Jarbas, Joedson Alves, Joel Silveira, Kleber Mendonça Filho, Lucila Nogueira, Luiz Carlos Monteiro, Marcelino Freire, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Maria da Paz Ribeiro Dantas, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Marina Malheiros, Marlene Wurfel, Mascaro, Raimundo Carrero, Ricardo Fernandes, Rivaldo Paiva, Robert Zuckerman, Rogério Reis, Ronaldo Correia de Brito, Vieira de Queiroz, Wilson Pedrosa, Wilton Montenegro Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 - Fone: 0800 81 1201 - Ligação gratuita e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Emoção e lucidez A inteligência dos que fazem a revista Continente me fascina. Uma teia de sensibilidade, onde opiniões lúcidas deixam o leitor pleno. O artigo, da edição de setembro, de Ronaldo Correia de Brito, sobre o personagem Diadorim, do mestre Rosa, é inteiramente válido. Outro sexo para Diadorim não diminuiria a grandeza do personagem. Enfim, Continente é linguagem animada pela emoção e lucidez. Parabéns! Badida Campos – Recife – PE Entusiasmo Despertaram-me grande entusiasmo os exemplares da Continente Multicultural que vi. Parabenizo seus editores pela belíssima revista. Faço votos que tenha vida longa e todo o sucesso de que é merecedora. Yolanda Gadelha Theophilo – Fortaleza – CE Sugestão Gostaria de sugerir uma matéria relacionada à cultura popular, com os emboladores e repentistas Pinto & Rouxinol. Seria lembrar duas pessoas que estão há vinte anos na batalha e que lançaram pela Polysom, com distribuição nacional da Sony Music, o CD “Super Duelo”, ao lado da dupla Caju e Castanha. Rodon Freire Barreto – Recife – PE Satisfação Como assinante desta revista, manifesto minha satisfação pela acertada escolha que fiz, pois, em todos os exemplares sou levada a uma viagem mágica e maravilhosa através das fotos espetaculares, primorosas; e pela leitura agradável da primeira à última página. A cultura brasileira merece uma revista com esta qualidade. Parabéns, continuem assim. Marilene Velozo – Salvador – BH Xucuru Gostaria, em princípio, de parabenizar a todos os que fazem a tão estimada Continente, que vem se mostrando, com as seguidas edições, um espaço democrático e amplo para as discussões que gravitam na tão espaçosa órbita da cultura e das ciências sociais e humanas como um todo. Porém, como assíduo e atento leitor


desta publicação, não pude deixar de notar um erro na utilização da grafia da etnia Xucuru, na matéria “Festa de nossa senhora das montanhas”, na edição de outubro de 2001, que, de antemão, nos traz excelente exposição fotográfica da tribo Xucuru em sua comemoração. O erro, está em que se tratando de etnias (no caso, uma tribo indígena) a formação de seu plural não deve apresentar modificação do substantivo próprio, mas, tão somente do artigo a este anteposto, ficando assim, na matéria: Os Xucuru, nos lugares em que se liam Os Xucurus. Augusto Noronha – Olinda – PE NOTA DA REDAÇÃO: Na página 110 da Gramática, de Faraco & Moura (Editora Ática) lê-se exemplos de etnias com plural do substantivo: “Xavantes, Carajás, Xerentes”, etc. Na página 1800 do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Editora Nova Fronteira), lê-se como definição de xucuru: “Indivíduo dos xucurus, tribo indígena que habitou o N.E. e cujos descendentes habitam hoje as terras do posto indígena Xucuru, no município de Pesqueira (PE)”. Finalmente, na página 129 da Moderna Gramática Portuguesa – Edição Revista e Ampliada, de Evanildo Bechara (Editora Lucerna), lê-se: “Etnônimo é o nome que se aplica à denominação dos povos, das tribos, das castas ou de agrupamentos outros em que prevalece o conceito de etnia. Estes nomes utilizados na língua comum admitem a forma plural, como os outros: os brasileiros (...) os botocudos, os tupis, os tamoios, etc. Por convenção internacional de etnólogos, está há anos acertado que, em trabalhos científicos, os etnônimos que não sejam de origem vernácula (...) não serão alterados na forma plural, sendo a flexão indicada pelo artigo plural: os tupi, os nambiquara”, etc (grifos nossos). Como a matéria em questão não é de informação científica específica para etnólogos, e como a Continente é uma revista de jornalismo cultural, isto é, para o público em geral, a grafia Xucurus está correta. Parabéns

hecimento. Fará parte da nossa Biblioteca para consulta dos rondonienses. Senador Amir Lando – Porto Velho – Rondônia Clementina Adoro a revista pelo seu multiculturalismo sem o bairrismo brega. Muito interessante a matéria sobre a pernambucaníssima Clementina Duarte, embora faça restrições a algumas posições da entrevista de Cláudio de Moura Castro. Aqui em Brasília, um grupo de alunos do Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) está fazendo uma oficina para avaliar a revista. Adriana Lucena – Brasília – DF Megaípe Reconheço, e nisso não estou sozinho, o alto nível de qualidade gráfica da revista, mas, vejo-me na obrigação de fazer algumas ressalvas quanto à maneira como foi publicado o meu artigo, sobre a casa-grande do engenho Megaípe, justamente porque tudo devemos fazer para preservar as boas qualidades dessa revista. 1 – A primeira diz respeito às ilustrações. Enviei uma quantidade maior de ilustrações do que a que foi publicada. Houve cortes de ilustrações e, nesse caso, o autor poderia ter sido consultado para que a compreensão do texto não fosse prejudicada. 2 – No terceiro parágrafo da página 58: “Desde que a campanha tradicionalista de arte brasileira refletiu-se em Pernambuco ouço falar comovidamente em Megaípe” deveria ter sido impresso em itálico, pois é um texto de José Mariano Filho e não de minha autoria, pois eu não existia na década de 30 do século 20. 3 – O quadro que aparece na página 61, como sendo de Frans Post, pintor holandês do século 17, na realidade, é de Mário Nunes, artista pernambucano que o pintou no início do século 20. O original dessa imagem, um cromo de 35mm, não tinha boa definição, o que sugeria sua reprodução com menores dimensões. Geraldo Gomes – Recife – PE Pintura de Mário Nunes de um engenho pernambucano

Em primeiro lugar, parabéns pela excelência gráfica da revista Continente. Apenas folhear suas páginas já é um prazer visual. Em segundo lugar, parabéns por rejeitar o provincianismo (tão comum aqui em São Paulo) de só falar do próprio umbigo: a revista fala de nomes nacionais e locais democraticamente, de igual pra igual, como deve ser. Finalmente, parabéns pela diversidade de assuntos. No número que vi (Novembro): da entrevista sobre educação com mestre Cláudio de Moura Castro, à cultura pop, com Gil, e, principalmente, à tão necessária discussão sobre a responsabilidade social das empresas em relação à cultura. Mais uma vez: parabéns! Maria Rosângela do Nascimento – São Paulo – SP Consulta A revista Continente Multicultural amplia a democratização da cultura em seu Estado e no País, e vem enriquecer o nosso con-

NOTA DA REDAÇÃO: O articulista tem razão quanto aos itens 2 e 3.

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AnĂşncio

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EDITORIAL

ALEXANDRE BELÉM / TITULAR

Um ano de cultura em revista

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m dezembro do ano passado, a Companhia Editora de Pernambuco lançou o número inaugural desta revista. O que para muitos poderia parecer somente uma aventura era um começo de viagem pelos vários e fascinantes continentes da cultura. Num mundo cada vez mais complexo. Multicultural, não multiculturalista. Escancaradamente pernambucano, sem fixações bairristas ou regionalistas. Evidentemente, desafios são assim tão diversos quanto a pluralidade dos seus propósitos. Reconhecê-los com realismo e modéstia é ainda tão fundamental quanto a consciência de que, nesta primeira etapa, foram superados os ceticismos que costumam enfrentar esse tipo de publicação. Isto implica, muitas vezes, em superar expectativas. É um exemplo simples de que Pernambuco sabe enfrentar desafios e vencê-los. Nessa viagem – e toda grande viagem é um ato de coragem, como querem os poetas – a revista

veio reproduzindo alguns dos melhores momentos da excelência pernambucana e refletindo temas da cultura contemporânea em diversos continentes. Sempre cuidando de ir além das geografias, sem esquecer de suas origens, dos seus sotaques. O trabalho de aprendizagem e de aperfeiçoamento é desafio e motivação constante. A cada mês, há o propósito de oferecer aos seus leitores informações cada vez mais dinâmicas, críticas, leves e atualizadas. Assim é que, cumprindo o seu projeto original, a revista estréia o seu roteiro, com um giro pelo acontece de melhor nos eventos e lançamentos no mundo das artes e do entretenimento. Marcando esses dozes meses de viagem, a Companhia Editora de Pernambuco lança, também, neste mês, um especial: Continente Turismo, mostrando o quanto a riqueza natural de Pernambuco é tão exuberante quanto a cultural. Marcelo Maciel Continente Multicultural 5


REPRODUÇÃO

Um hom

ESPECIAL


em ou um rato?

W

alter Elias Disney nasceu em Chicago, no dia 5 de dezembro de 1901, quarto filho de Elias e Flora Disney. Ou teria sido filho do espanhol José Guirao, casado, e sua amante, Isabel Zamora, mais tarde adotado? Mickey Mouse, o seu personagem mais famoso, seria criação de outro? O seu corpo foi cremado imediatamente após a morte ou ainda se encontra congelado em algum castelo da Disney World? Era Walt Disney um nazista? Como é freqüente ocorrer com os mitos, há a vida real e há várias biografias do personagem Walt Disney. A partir de certo momento, tanto já se falou sobre o biografado que a verdade, que vem com as contradições, os boatos e as declarações apócrifas, se aplica mais ao mito que à pessoa. Talvez Walt Disney não tenha criado o Mickey: a versão oficial conta que ele desenhou os esboços do personagem e que Ub Iwerks, colega da vida inteira e reconhecidamente o melhor desenhista da dupla, executou o traço final. O quanto Iwerks teria aproveitado dos esboços de Disney é o detalhe que dá margem à versão da “autoria secreta”. Seja como for, Mickey tornou-se ícone de entretenimento, da própria cultura americana e de sua expansão mundial. Iwerks não faz parte do mito. Walter Elias Disney, o homem, também não. Parece escapar a alguns críticos – os que procuram as implicações ideológicas dos desenhos animados nos traços da personalidade e atitudes políticas do homem – a pergunta: o quanto de Disney há na Disney?

Walt Disney morreu em 1966. Desde então, a Disney conseguiu sucessos como A Pequena Sereia (1989, cuja bilheteria revitalizou o gênero desenho animado); A Bela e a Fera (1991, com técnicas revolucionárias de animação, é o único desenho a ter sido indicado ao Oscar de Melhor Filme); e Toy Story (1995, o primeiro filme totalmente criado no computador). Qualquer análise que leve em igual consideração os filmes Branca de Neve e os Sete Anões (1937) e O Rei Leão (1994), por exemplo, não pode estar se referindo ao pensamento de Disney, mas à orientação de uma empresa. Ademais, se os fatos na vida de Walt Disney são incertos, não se prestam ao tipo de interpretação que aqui nos referimos. Não se pode concluir, por exemplo, que a temática da ausência de um dos pais em filmes como Branca de Neve, Bambi e Cinderela seja resultado da suspeita que Disney tinha de que era adotado. Esta é a versão que conta Marc Eliot, autor de Walt Disney: O Príncipe Negro de Hollywood. Ao tentar se alistar no exército americano durante a Primeira Guerra, Disney teria descoberto que não existia registro algum do seu nascimento. Mais tarde, isso lhe teria feito pedir ajuda a John Edgar Hoover para averiguar a sua origem; dando início a uma afamada colaboração de Disney com o FBI. Mais recentemente, surgiu a hipótese de que ele teria nascido do relacionamento extra-conjugal entre José Guirao e Isabel Zamora, espanhóis da região de Mojácar, Almería. A biografia autorizada confirma que não havia o registro do nascimento, e os arquivos públicos do governo norte-americano provam que Disney depôs no Comitê de Atividades Anti-Americanas da Continente Multicultural 7


Casa Branca, nomeando pelo menos quatro pessoas como possíveis comunistas. Tudo mais é especulação. Inclusive a dúvida que Disney teria ou não sentido sobre os seus pais, e que estaria na raiz de alguns dos seus filmes. Tomar o mito Disney pelo homem é ainda maior equívoco, considerando que os desenhos se prestam a interpretações distintas e por vezes opostas. A julgar por tudo o que foi dito a respeito do mito, Walt Disney, o homem, poderia ser satânico, pagão, nazista, misógino, promíscuo, moralista, imoral, ou simplesmente, alguém que dominou a arte do entretenimento. Um certo pastor Josué Yron, da Igreja Pentecostal norte-americana, teria obtido provas conclusivas de que cada fita de vídeo da Disney é “conjurada e amaldiçoada na igreja de Satanás” antes de ser lançada no mercado. Os boatos refletem o pensamento de parte dos cristãos norte-americanos de que há mensagens subliminares e significados implícitos nos desenhos da Disney. Um menino de quatro anos teria percebido, por exemplo, que numa cena de O Rei Leão em que o personagem Simba golpeia o solo, uma nuvem de poeira formaria as letras S-EX. Ainda para os que crêem na idéia, os personagens femininos de Disney estariam cada vez mais femininos e erotizados; a fada Sininho, de Peter Pan, seria uma miniatura de dançarina de cabaré. E não é surpresa o desagrado que causa ao grupo o fato de que a Disney estendeu os benefícios médicos aos com-

panheiros de trabalhadores homossexuais, nem que anualmente se comemore o Dia do Gay e da Lésbica no Walt Disney World. As acusações de que Walt Disney era nazista existem apesar de os estúdios Disney terem colaborado com os EUA na Segunda Guerra, produzindo desenhos instrutivos aos soldados e campanhas em prol da arrecadação de impostos para a guerra. Não falta quem identifique suásticas numa poça d’água de um quadrinho específico de um determinado gibi. Há os que observam nos desenhos animados um moralismo quase fascista e a face perversa do capitalismo. No já célebre Para Ler o Pato Donald – comunicação de massa e colonialismo (1976), os escritores Ariel Dorfman e Armand Mattelart fazem uma crítica confessadamente parcial e sectária. “Todos os personagens compram, todos vendem, todos consomem, mas nenhum desses produtos parece ter custado qualquer esforço”, escrevem, identificando o símbolo da exploração imperialista. Sobre o tratamento dado aos personagens femininos – pas- VAL I sivos e submissos – temos o próprio texto da ZEN Marlene Wurfel, O Verdadeiro Amor de Walt Disney, nas páginas seguintes.

Uma vida a serviço da ideologia americana O primeiro filme a que assistiu foi Branca de Neve, com a atriz Marguerite Clark. Bem mais tarde, Disney realizaria o primeiro desenho animado em longa-metragem da história, Branca de Neve e os Sete Anões (1937). Já no final da Primeira Guerra Mundial, serviu ao exército norte-americano como motorista da Cruz Vermelha. Ficou na mesma companhia em que estava lotado Ray Kroc, um jovem de 17 anos que mais tarde se tornaria o fundador da rede McDonald’s de fastfood. O seu primeiro personagem de sucesso foi Oswald, o coelho sortudo, que chegou a ganhar popularidade nacional em desenhos curtos para o cine8 Continente Multicultural

ma, mas devido a um contrato de má fé, Oswald foi roubado pelo distribuidor Charles Mintz. Em 1928, criou Mickey Mouse. O camundongo participou de dois filmes mal sucedidos (Crazy Plane e Galloping Gaucho) até alcançar a fama com o primeiro desenho animado sonoro da história, Steamboat Willie. Em 1930, Mickey já era traduzido no México (El Miguelito Ratón), França (Michel Souris), Japão (Mikki Kuchi), Rússia (Mikki Maus), Brasil e Itália (onde a Fiat batizou o seu primeiro carro pequeno de Topolino, como se chamava o personagem). O cineasta russo Sergei Eisenstein diria que Mickey foi a mais ori-


“Um bando de comunistas” Walt Disney fala sobre uma greve nos seus estúdios, comandada por Herbert K. Sorrell, numa audiência do Comitê de Atividades Anti-Americanas da Casa Branca, em 24 de outubro de 1947 O Sr. se lembra de ter tido qualquer conversa com Mr. Sorrell sobre comunismo? Sim, eu me lembro. Quer relatar essa conversa? Bem, ele obviamente soube que eu os chamei um bando de comunistas – e eu acredito que sejam. Na reunião ele se inclinou e disse “Você acha que eu sou um comunista, não?”, e eu disse que tudo o que eu sabia era o que eu tinha ouvido e visto. O Sr. pode identificar algum outro indivíduo durante a greve que o Sr. acredita ser comunista? Bem, eu acredito que haja um artista na minha empresa, que chegou por volta de 1938, e ele meio que ficou escondido, não era muito ativo, mas era o cérebro por trás das coisas, e eu acredito que era comunista. Seu nome era David Hilberman. Como se escreve? H-i-l-b-e-r-m-a-n, eu acredito. Eu chequei os seus arquivos e descobri que, número 1, ele não tinha religião e, número 2, que ele tinha passado tempo considerável no Moscow Art Theatre estudando direção de arte, ou algo do tipo. Algum outro, Sr. Disney? Bem, acho que Sorrell está com certeza ligado a eles. Se ele não é comunista, deveria ser. O Sr. se lembra do nome William Pomerance, ele tinha algo a ver com isso? Sim, senhor. Ele veio depois. Sorrell o colocou como gerente de negócios dos desenhistas e mais tarde ele foi ao Screen Actors como o agente de negócios deles, e colocou no seu lugar um homem de nome Maurice Howard, o atual agente de negócios. E todos eles estão ligados à mesma organização. ginal contribuição cultural da América, e o escultor Ernest Trova elogiaria o design do personagem, considerando-o páreo apenas para o da Coca-cola e o da Suástica Nazista.

Viajou ao Brasil, Argentina, Chile e Peru, e terminou produzindo o filme Saludos Amigos (1942), em que o personagem Zé Carioca (em sua primeira aparição) servia de guia turístico para o Pato Donald.

Em 1931, lançou Flores e Árvores, o primeiro desenho animado em cores da história. Foi o primeiro da série Silly Symphonies, em que Disney começou a experimentar a utilização de música clássica nos desenhos animados. Culminaria na realização de Fantasia (1940); considerado um fracasso na época, ganharia força na década de 60, com o movimento hippie – acreditavam que os realizadores do filme deviam estar sob efeito de alucinógenos para fazê-lo. Hoje, é considerado um dos seus maiores clássicos.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os estúdios Disney foram usados como alojamento militar. Os artistas da empresa passaram a produzir desenhos instrutivos aos soldados, campanhas em prol da arrecadação de impostos para a guerra, e o desenho Der Füehrer´s Face (A face do Füehrer, 43) recebeu um Oscar. Mickey, Donald, Pateta e outros personagens eram pintados em aviões e tanques de guerra americanos.

Em 1941, serviu de embaixador da Boa Vontade na América do Sul, como parte da política de Franklin Delano Roosevelt de integração das Américas.

A Disneylândia seria inaugurada na Califórnia em 1955, abrindo o filão dos parques temáticos no mundo inteiro. O Walt Disney World, na Flórida, seria inaugurado em 1971, já depois da morte de Disney. Continente Multicultural 9


O verd amor

Cena do filme Pocahontas: no final, a 铆ndia troca a sua tribo pela Europa, por amor e para salvar a pr贸pria vida

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AFP

adeiro de A Disney faz dinheiro explorando a imagem da submissão feminina; promovendo a eugenia; e anulando a luta de classes Marlene Wurfel

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uão passivas, submissas e insípidas as jovens devem se esforçar para ser? A julgar pela Disney, devem almejar entrar em coma – preferivelmente desafiando as leis da decomposição, num caixão de vidro em algum lugar – ou ficar catalépticas, com os cabelos dourados bem arrumados sobre um travesseiro, num reino encantado. A imagem que a Disney passa do significado de ser jovem e mulher é desconcertantemente misógina. A mensagem é muito clara: boa + bonita + passiva + virginal + comatosa + branca e/ou abnegada + sofredora = um príncipe encantado. Verdade seja dita, a Disney oferece uma alternativa. Se você insistir em nascer mulher, você pode também se tornar ativa, agressiva, egoísta, arteira, independente, horrivelmente feia, torturada e destrutiva. Se você escolher esse caminho, pode usar sombra roxa e mantas negras, mas ninguém a amará, e com razão. Você será malvada. As histórias da Disney, comercializadas em massa, têm objetivos muito óbvios. A Disney doutrina mentes jovens de uma forma compatível com as normas e valores dominantes de uma sociedade capitalista e patriarcal. Isso é do maior interesse da Disney porque, é evidente, o que importa é o dinheiro. A Disney serve a quem tem o dólar. O mercado das “menininhas” é, em essência, o mercado dos pais das menininhas, e por isso os filmes são produzidos de acordo com as preferências sexuais e os valores conservadores da classe dominante na América. A Disney não tem os interesses da menininha em mente. Menininhas se tornam consumidoras passivas e deslumbradas de um pesadelo capitalista e patriarcal porque ele é cheio de sapatinhos de cristal e castelos brilhantes. Essas são recompensas materiais que adoçam o remédio (sweeten the punch). A Disney se esforça para disfarçar o banquete moral servindo-o numa bandeja dourada. Ela incute nos seus filmes a idéia de que as histórias são governadas por leis naturais, e cria a perversa impressão de que os contos são atemporais. As histórias da Disney “eram uma vez, num reino muito, muito distante”. Elas partem da premissa de que não é a Disney que as está contando;

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que a Disney está simplesmente recontando uma bela história que tem sido amada e adorada por várias épocas, e que não tem idade porque fala de verdades universais, das quais adquire apelo universal. Essa é uma premissa falsa e revoltante. As histórias que a Disney apresenta não são contos arcaicos e anônimos expressando verdades universais; antes, são produto de uma agenda específica e atual, são projeções correntes de valores e normas endossadas por Walt Disney. Em Fairy Tales and The Art of Subversion: The Classical Genre for Children and the Process of Civilization, um notável estudioso dos contos de fada, Jack Zipes, desanca completamente o mito da atemporalidade no que concerne às versões de Disney dos contos que conhecemos. Zipes conta uma história entusiástica e abonadora para o gênero dos contos de fada. Os contos de fada vêm de uma longa e venerável tradição popular. Na Europa e no resto do mundo, as mulheres têm contado histórias e desfiado narrativas. Essas formas de expressão datam dos lares dos artesãos e camponeses pré-capitalistas, onde as crianças ouviam os contos das suas mães, avós e bisavós. Por séculos e séculos, os contos populares permaneceram uma tradição oral e matriarcal adorada. O conto de fadas tornou-se escrito primeiramente na Europa, para que uma classe mais inteligente e culta pudesse gerenciar melhor a vasta tradição oral da burguesia. Os contos populares eram discutidos entre aristocratas que podiam separar o joio do trigo apropriadamente; o trigo sendo as normas e valores da elite “civilizada”, o joio sendo qualquer indício de rebelião de classes, das funções fisiológicas do corpo humano, ou de iniciativa feminina. Eles entravam num discurso aristocrático sobre costumes, valores e maneiras, para que pudessem me12 Continente Multicultural

Pela abnegação (a Pequena Sereia troca a voz por um par de pernas), pela repulsa ao que for da classe baixa, e por um privilégio de nascença divino, os escolhidos emergirão das massas lhor informar as crianças sobre como se comportar civilizadamente. Neste momento, no século 17, era entendido que o propósito dos contos era doutrinar as crianças em sistemas de crença culturalmente específicos, e não apenas diverti-las. De alguma forma, nos tornamos insensíveis à idéia, e adotamos a crença de que os contos são “agradáveis”, “divertidos”, e nem poderiam ser estudados e criticados num contexto sócio-político sem prejuízo da “mágica” das histórias. Entretanto, desde quando foram escritos pela primeira vez, compreendeu-se que os contos tinham conseqüências poderosas nas mentes jovens. São ferramentas que ensinam às crianças as conseqüências de ações específicas. Os contos de fada determinam papéis e recompensas a certos padrões comportamentais, enquanto punem alguns outros. Charles Perrault, no final do século 17, foi um dos primeiros autores a escrever contos de fadas na França. Podemos agradecer a ele por Chapeuzinho Vermelho. Ele merece especial condenação pelo seu final maravilhosamente criativo. Na versão popular original, a menina elabora um plano inteligente para fugir do lobo. Na versão de Perrault, a intervenção generosa de um lenhador heróico é necessária para salvar a menina da sua própria estupidez. Brutalmente, um conto antigo sobre uma esperta menina foi transformado numa lição de vulnerabilidade, estupidez e desamparo femininos. Também podemos agradecer a Perrault por começar a transformar a Cinderela, de um personagem ativo, rebelde e seguro, na idiota passiva da pequena nobreza que conhecemos hoje. Perrault veio antes dos irmãos Grimm, que fizeram antologias de seus contos na Alemanha do século 19. Os Grimm buscaram sanear completamente os contos alemães e europeus da tradição popular, de forma que se tornassem apropriados para o consumo das crianças burguesas. Os irmãos Grimm


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entendiam que eles estavam transformando contos divertidos em contos educativos. Tinham objetivos conscientes de perpetuar normas aristocráticas e sistemas de valores. É exatamente por isso que os contos, que nunca haviam sido contados por, para ou sobre a elite cultural, se tornaram cheios de castelos, reis, coroas douradas, vestidos de baile, cortesãos e doces princesas esperando pela salvação de um príncipe num cavalo branco como o leite. Tal parafernália aristocrática foi imposta ao conto de fadas, e não é intrínseca ao gênero em absoluto. Mesmo considerando o processo de patriarcalização e seleção dos contos de fadas pela história européia, é um erro presumir que a Disney só poderia escolher entre as sobras de uma já pervertida tradição popular. Na verdade, mesmo os contos dos Grimm contêm algumas idéias que a Disney consideraria “radicalmente feministas” e “socialistas”. A Cinderela dos Grimm, por mais tolhida e fraca, ainda pareceria espirituosa perto da beleza saneada e de joelhos de Disney. Os contos de fadas na Europa passaram por um expurgo vitoriano. Ainda assim, Walt Disney ganha a disputa. O tratamento que Disney lhes dá é mais melindroso, misógino, esterilizado e, em suma, mais “vitoriano” do que as versões vitorianas. Uma tradição secular e feminina foi tão completamente aculturada pelo mercado de massa da

Disney, que os contos de fadas da Disney são os únicos que conhecemos. Outra falácia que a Disney perpetua é que os contos revelam uma lei inevitável e natural. A Disney professa um sistema de recompensas e punições baseado numa hierarquia divina, uma que não pode ser contrariada. É claro que a Branca de Neve é recompensada; ela é boa. É claro que a sua madrasta é punida; ela é má. A Disney não mede esforços para fazer crer que essas recompensas são “espirituais”; elas sempre são monetárias, recompensas de poder e fama. Sabemos que Cinderela irá superar a sua pobreza e escravidão, não porque ela é diligente e revolucionária convicta, mas porque ela tão bonitinha, tão apagadinha, ela sofre tão quietinha, e tem uns pezinhos tão pequenininhos. A Disney abusa desse enredo “do lixo ao luxo”, do qual Hans Christian Andersen foi um ávido perpetuador. Das ótimas histórias de Andersen, como A Pequena Sereia e O Patinho Feio, podemos deduzir que uns poucos selecionados nascem para subir ao poder. Pela cuidadosa abnegação (a Pequena Sereia troca a sua voz por um par de pernas), pela repulsa a tudo o que for da classe baixa, e por um privilégio de nascença divino, os escolhidos emergirão das massas. A Twentieh Century Fox quis rivalizar com a Disney, produzindo Anastásia. Até onde eu sei, entretanto, a história segue exatamente a fórmula DisCena do filme Branca de Neve e os Sete Anões: a protagonista conversa com os bichos, prova de sua conformidade com a “ordem natural das coisas”


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Daí que a Disney está caminhando para uma imagem mais racialmente inclusiva, para que não percam o público-não-racista. A Disney nos traz a princesa Jasmine, que é infeliz com o seu quinhão da aristocracia árabe. Ela se disfarça de cidadã comum para andar no meio das massas. É claro que a incompetente se mete em problemas e é resgatada pelo mais descolado Aladim. A inevitável ascensão de Aladim ao poder (ele é um dos escolhidos, compreendam) devolve Jasmine, feliz, ao mundo do privilégio, porque também ela é uma dos escolhidos: o macaco de Aladim gosta mesmo dela, ela é muito REPRODUÇÃO

ney como em Aladim ou A Pequena Sereia. O que vemos em Anastásia é que algumas pessoas são boas e nobres por natureza, resultado da sua excelente ascendência, de uma ordem natural, absolutista e biológica. Circunstâncias podem levar esses poucos escolhidos a ser negligenciados por um momento; a pobre princesa Anastásia ficou órfã durante a Revolução Russa, caracterizada por bolcheviques gordos, rosados e dançantes. Apesar desta desagradável revolução, que roubou de Anastásia a sua nobreza, ela inevitavelmente reergueu-se para tomar o seu lugar no seio da elite dominante. Tão certo quanto uma princesa se incomodar com uma ervilha embaixo de cem colchões, tão certo quanto Aladim ser reconhecido pela montanha falante como “um diamante bruto”, os poucos escolhidos sempre se erguerão para tomar os seus lugares de direito entre os privilegiados. Obrigado, Disney, por voltar à eugenia e ao determinismo racial do século 19, idéias que de outra forma seriam compreendidas como fora de moda e perigosas, se não fossem tão charmosamente repensadas pelos seus rolos brilhantes de celulóide. No Rei Leão, a Disney se apropria do “reino” animal africano e fala por ele. Os animais no filme são tristes, porque reconhecem que um líder divinamente escolhido entre eles é absolutamente necessário para o seu bem-estar. Eles devem convencer o Rei Leão a aceitar o seu destino de fascista carinhoso, ou o caos irá se instaurar, com gnus selvagens exalando anarquia. E todos sabemos que hienas não têm condições de assumir o comando. Elas são uma espécie por demais feia e moralmente depravada. Não, tem que ser um leão, tem que ser um leão macho, e tem que ser Simba: O Rei Leão. Tão certo quanto uma hierarquia ser parte da ordem natural das coisas, também os papéis sexuais são “naturalmente” determinados. Pocahontas, como tantas heroínas da Disney, é uma filha da natureza. Pássaros, guaxinins, veados e outros animais selvagens buscam a sua companhia. Em Branca de Neve e Cinderela, animais, que estão invariavelmente e perfeitamente em sintonia com a ordem natural das coisas, são capazes de sentir a bondade nata da heroína. É uma prova de que a heroína passiva, apagada, bonita e submissa está em completa concordância com a lei natural. Disney foi criticado por ser racista pelo simples e óbvio fato de que a cor branca é sempre usada para representar o bem, e a cor preta conota o mal.

bonita, muito preciosa e incapaz de sobreviver a menos que esteja por cima das massas bárbaras. Em Pocahontas, a Disney sutilmente reconstrói a agradável donzela de uma das interpretações mais perversas da história colonial americana. Pocahontas conduz a sua canoa pelas águas rápidas e graciosas do “pragmatismo”. Pragmatismo sendo, é claro, a recusa ao povo da sua Primeira Nação e a sua entrega voluntária aos colonizadores europeus. Ela faz isso por amor a um inglês robusto chamado John. No final do filme, a vida de Pocahontas está


em perigo. Ela está gravemente doente, e tanto os colonizadores quanto o povo de sua tribo entendem que o único remédio poderoso o bastante para salvála é um remédio europeu. Então, para impedir a sua morte prematura entre os índios americanos medicamente incompetentes, ela parte num barco veloz através do oceano Atlântico para a sua salvação. A mensagem da Disney de harmonia interracial é clara. Não importa a cor da sua pele. Não há saída. O que importa é que você seja bonita, boa, submissa, abnegada, materialista e esteja disposta a entrar neste jogo. Se você não for branca, você pode

ser uma princesa “no seu próprio país”, ou pode se conformar. Uma das duas opções, sempre celebrando a sua deferência à ordem natural das coisas com músicas. A condescendência interesseira da Disney à alteridade racial é particularmente sinistra. E não porque a Disney não seja racialmente inclusiva, ou porque a Branca de Neve seja tão, tão branca, mas porque a fórmula da Disney age na premissa de uma deferência a uma lei natural, superior. Jack Zipes aponta que “o próprio fato de os nazistas reconhecerem a necessidade de criar uma

política com respeito aos contos populares e de fadas demonstra uma consciência geral sobre o impacto cultural destes contos sobre as crianças e adultos igualmente”. Sim, o Terceiro Reich lutou para tornar os contos de fadas dos Grimm numa tradição ariana pura, numa arma ideológica, numa resposta hostil aos contos modernos e socialistas, criados pelos escritores subversivos daqueles dias. Os contos tornaram-se apropriados para provar e ilustrar os ideais racistas. Arquétipos como o príncipe corajoso, a mãe passiva e sacrificada, a virgem submissa e o poderoso rei eram ideais para ilustrar os constituintes de uma família ariana (Zipes). Eis como um nazista, G. Grenz, interpreta Cinderela: “A natureza não se deixa enganar. Ela se abre para a pessoa pura e devota... Ela une os indivíduos compatíveis da mesma espécie... E o príncipe encontra a noiva genuína, valorosa, porque o seu instinto indestrutível o conduz, porque a voz do seu sangue lhe diz que ela é a certa”. Já foi dito que contos de fadas têm “estruturas familiares não-tradicionais”. Verdade, em cada conto de fadas há um pai ou mãe mortos, ausentes, enfeitiçados ou substituídos por uma madrasta má. As famílias dos protagonistas são sempre partidas. Por quê? Para que possamos seguir a heroína na sua busca por restaurar a família, porque uma família nuclear é a tarefa mais importante de todas. Um príncipe corajoso deve resgatar uma heroína submissa para que os escolhidos possam se casar e viver felizes para sempre num castelo encantado e mágico, é claro. Num mundo fantástico de castelos, fadas, sonhos eróticos de necrófilos, e de bruxas que não são queimadas na fogueira, mas que espontaneamente se auto-destroem em deferência às leis naturais: quase qualquer coisa é possível. Mas nada jamais acontece que esteja fora das fronteiras da ideologia classista, racista e sexista. Mas tudo é apenas coisa de criança, certo? Nada é feito para ferir ninguém, certo? “Algum dia meu príncipe virá” (Someday my prince will come), a Branca de Neve canta arrebatadamente. Ela se importa de algum dia gozar? (Does she care if she ever comes?) Não, mas essa compreensão se perde nas crianças, certo?

A Bela Adormecida, outra personagem de Disney: a passividade ensinada às meninas beira a catalepsia

Esse texto da autora Marlene Wurfel foi reproduzidoda revista Z Magazine

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REPRODUÇÃO

O canto fraterno e pansexual de Walt Whitman atraiu autores como Fernando Pessoa e García Lorca, e fez dele o poeta por excelência de todas as américas Mário Hélio

Um cosmos, filh

Q

uem seria o poeta americano por excelência? Depende da América que interessa. Edgar Allan Poe nunca foi muito valorizado nos Estados Unidos como poeta. Mario Praz, no excelente artigo Poe, gênio de exportação, mostra os altos e baixos do autor de O Corvo. Mas foi ele que fascinou os franceses, e talvez nenhum americano tenha tido mais vida de poeta – no sentido romântico, é claro – que ele. Os americanos preferiam poetas menos ousados, como Longfellow, e os de hoje talvez prefiram nomes até desconhecidos. Nada de Ginsberg nem de outros malditos da Beat Generation. Muito menos Pound, que chegou a ser preso como colaborador dos fascistas. Resta Eliot. Mas, este se definia como um inglês clássico e católico. E Whitman? Sim, 16 Continente Multicultural

Whitman é o poeta por excelência da América, de todas as Américas. Da América-todos-os-continentes. O seu canto fraterno e pansexual atraiu autores como Fernando Pessoa e Lorca, que andando por uma “Nueva York de cieno,/ Nueva York de alambre y de muerte”, quando estudante da Universidade de Columbia, lembrou-se de Whitman, a quem achava um velho irresistivelmente belo, como o disse numa ode. Mas, até hoje, a sua obra – de um livro só e imenso, Leaves of Grass – nunca foi toda traduzida no Brasil. O que sempre aparece são os fragmentos desses grandes cantos. Geraldino Brasil, irmão espiritual de Whitman, há seis anos, não propriamente o traduziu, o incorporou, geraldinizou os seus versos. Numa das partes de sua versão, alguém poderia ver algo de premonitória resposta aos ataques de 11 de setembro:


o de Manhattan “Sonhei num sonho que eu vi uma cidade invencível,/ indomada aos ataques de todos do resto da terra.” Mas antes que alguém se apresse em encontrar correlações bélicas, deve-se logo deixar claro de que cidade se trata, não de uma Nova Iorque, mas de uma metáfora: “Sonhei que era a nova cidade dos Amigos./ Lá nada era mais importante do que a qualidade adorável do amor que era muito forte./ Ela vencia o restante./ Era vista a todo momento a bonita ação daqueles homens da nova cidade. E todos se olhavam e se falavam.” Sim, o poeta se definia como filho de Manhatan, mas começa por dizer-se “cosmos”. A mais nova tradução de Whitman vem de Brasília, e nasce póstuma. É de Ramsés Ramos (1962-1998). Nos treze pequenos poemas do livro Folhas da Relva, encontra-se novamente o virtuosismo do poeta, mas também do tradutor. Como numa

carta a um amigo, ele envia uma mensagem de fraternidade da América que interessa “a terras estrangeiras”: “Ouvi dizer que você pediu provas desse quebra-cabeça, o novo mundo,/ E definições de América, sua vigorosa Democracia,/ Então mandolhe meus poemas para que encontre neles o que procurava.” De fato, os seus poemas talvez sejam a melhor mensagem de fraternidade jamais escrita por algum poeta. Era ele um enorme sim, talvez o único poeta feliz do mundo, que um dia imaginou a visão de um homem que cruzasse de barco o Brooklyn: “Ah, what can ever be more stately and admirable to me than masthemm'd Manhattan?”

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N

ova Iorque, Londres e Paris fazem parte de uma trindade especial de grandes cidades do mundo que já integram o nosso (in)consciente coletivo, o nosso olhar. Mas o que separa Nova Iorque de Londres e Paris é a intensidade e a freqüência com as quais a cidade americana tem sido visualmente esmiuçada ao longo do século 20, tornando-se, mais do que qualquer outra cidade, um organismo vivo da imagem e do som que coloniza e subsidia olhares à distância. Por estar à frente de uma cultura que soube desenvolver a imagem como indústria, Nova Iorque é naturalmente vitrine, uma top-model dessa cultura e exemplo maior de que o mundo olha sem necessariamente ter visto coisa alguma. Esse olhar termina sendo colonizado e oferece informação aos que nunca a viram. Pelo cinema e televisão, é possível saber que os táxis lá são amarelos, que as ruas são numeradas e que a Ponte do Brooklyn, o World Trade Center, o Central Park e o edifício Empire State são marcos da cidade, ganhando imediatamente um sistema de valores junto à cultura mundial. É provável que se os ataques terroristas do 11 de setembro tivessem ocorrido em arranha-céus

da pouco conhecida Atlanta, Geórgia, o grau de espanto e terror do olhar fosse consideravelmente menor. De alguma forma, a difusão visual e cultural daquela paisagem familiar certamente aumentou o choque de valor da destruição e da carnificina. Esta sensação visual transmitida pelas imagens do 11 de setembro parece dialogar com o simples fato de se ir ao cinema em Nova Iorque. Tal ato é bastante ilustrativo dessa tendência do olhar sem necessariamente ver, uma vez que lá o espectador passa a receber uma estranha tarefa de identificar a linha que separa fantasia de realidade ao olharmos estritamente para a imagem como principal evidência. Essa linha está geralmente traçada na porta de entrada da sala e deve ser cruzada mais uma vez ao final de cada sessão,

Imagem de vida, Kléber Mendonça Filho 18 Continente Multicultural


muito embora autores talentosos da imagem, nascidos e criados em Nova Iorque, como Spike Lee, Woody Allen e Martin Scorsese, pareçam lutar para que suas visões da cidade nos acompanhem pelas ruas, metrô e calçadas. O que fazer ao ver um filme parcialmente filmado em Times Square – a central de entretenimento e da diversão de Manhattan – num cinema localizado na própria Times Square? É metalinguagem ao vivo e há a sensação de que o simples fato de estarmos em Manhattan contém algo de cinematográfico, de irrealidade. Foi estranho, por exemplo, ter ido ver Febre da Selva em Nova Iorque e sentir a homenagem de Spike Lee à iconografia urbana da sua cidade, a mesma iconografia que aguardava a platéia ao sair do cinema. Nova Iorque torna-se também um objeto nu e cru de desejo nas mãos de Allen

(Manhattan, em especial) e Scorsese (Taxi Driver e Vivendo no Limite). Scorsese, aliás, é capaz de imprimir nas suas imagens uma qualidade que sangra e cheira mal, tom sensorial raramente transmitido pelo cinema e TV, mas que parece estar em voga. Lembra o comentário impressionante ouvido na CNN, no dia 11 de setembro, de que “Nova Iorque estava com forte cheiro de querosene”. Num artigo recente da revista Esquire, um sobrevivente disse: “Nunca pensei que o World Trade Center inteiro viesse parar dentro do meu nariz”. Minha prima Heloísa, que mora em Manhattan desde 1975, disse que semanas após a tragédia de 11 de setembro, o humor e o astral dos nova-iorquinos mudavam de acordo com o vento, e não mais com as imagens. Quando a corrente de um ar que deveria ser fresco soprava na direção downtown/uptown, sentia-se o cheiro de queimado vindo lá do fundo da ilha, onde jazia o que ficou popularmente conhecido como “a pilha” do que antes era o World Trade Center. “A Pilha”, montanha de aço, cimento e carniça, transformou o olfato da cidade num sensor aguçado de morte e destruição. De repente, Nova Iorque, cidade da imagem, virou capital mundial do cheiro de morte. Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema

cheiro de morte Continente Multicultural 19


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DOSSIÊ Gustavo Moura Sonho 2 – Menção Honrosa, categoria fotografia, do X Salão Municipal de Artes Plásticas, João Pessoa – PB, 2000

Que país é o Brasil deste início de século? O eterno país do futuro? Uma nação improvável? Roberto DaMatta, Cristovam Buarque, Hélio Jaguaribe, Ivanildo 22 Continente Multicultural


RETRATOS DO BRASIL Vila Nova, Olavo de Carvalho e Gustavo Krause traçam um painel com múltiplas visões do Brasil contemporâneo. Por Homero Fonseca e Fábio Lucas Continente Multicultural 23


Um dilema chamado Brasil

A dicotomia entre o espaço público – a rua – e o espaço privado – a casa – explica o dilema brasileiro O Sr. afirma que a transição da sociedade patrimonialista para uma sociedade liberal traz problemas inevitáveis. No caso do Brasil, o Estado mudou ou está mudando, mas a sociedade não internalizou novas regras. Com a vulnerabilidade cambial, instabilidade econômica, a crise energética e as denúncias de corrupção, há ameaça de algum tipo de ruptura no tecido sóciopolítico? Veja bem. Eu não sou versado nem em economia nem em ciência política, de modo que o que fiz foi contrastar uma sociedade cujas práticas sociais eram personalistas e fundadas em hierarquias (às vezes eu falo em sociedade “hierarquizante”); uma coletividade na qual a verticalidade e um centro (ou um “dono”, conforme falamos coloquialmente) tem um papel importante; em contraste com uma vertente igualitária (o termo “liberal” é mais complicado, porque ele comporta combinações diversas de igualdade, liberdade e mercado). Essa foi a oposição que tratei de armar, no intuito de desempacotar o tal hibridismo ou a mestiçagem brasileira falada por todos os intérpretes do Brasil. Uma mestiçagem que acaba reificada e essencializada, como se uma mistura de “raças” (um termo que eu não uso, mas que balizou muitos livros sobre o Brasil, sempre dividido entre as “três raças”: branco, índio e negro) fosse capaz de engendrar, no 24 Continente Multicultural

plano sociológico e cultural, uma heterogeneidade política e institucional. Ocorre que essa vertente igualitária tem sido encampada, querendo ou não, pelas tendências modernizadoras do Estado brasileiro desde a Proclamação da República. Temos então uma sociedade dilemática, constituída por redes de pessoas e nomes de família, cujo foco é a casa, e leis e normas universais (válidas teoricamente para todos), no nível do mundo público ou exterior. Um dos pontos mais notáveis desta equação, um ponto que Gilberto Freyre denunciou em sua vasta e originalíssima obra, foi o descompasso entre o Estado e a sociedade. O Estado tende a mudar e muda (sempre para “salvar” o Brasil), mas – dizia Gilberto – não prepara a sociedade para as mudanças que realiza. Num ensaio que escrevi recentemente e que devo reunir em livro, eu tento entender essa dissonância. Uma resposta possível vem da tradição do Estado no mundo Ibérico, conforme demonstrou Faoro. Com ela, descobre-se porque o Estado permanece até hoje como o centro das esperanças de mudança quando, de fato, Estado e sociedade são as duas faces de uma mesma moeda. Como há esse espaço entre sociedade e Estado, eu penso que a sociedade ficou sempre protegida dos enganos estatais. Uma mudança notável ocorrida nesses últimos oito anos foi a aproximação da sociedade e do

CENA DO FILME DOMÉSTICAS / DIVULGAÇÃO

FERNANDO SAMPAIO / AE

ROBERTO DAMATTA


A YB REIS / T ROGÉRIO

ROGÉRIO REIS / TYBA

Futebol e Carnaval são coisas sérias, mas desprezadas pelos intelectuais – segundo DaMatta Empregados domésticos: relação entre superiores e inferiores é de complementaridade

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Estado, engendrada pela estabilidade monetária e pela garantia das liberdades constitucionais. É isso que está na base das demandas de moralização das instituições públicas, por exemplo. Como está na base de uma busca mais ponderada de administradores públicos que o povo, sabiamente, distingue dos “políticos”. Acho que poderia haver ruptura se um novo governo destruísse, por incompetência, por exemplo, a estabilidade monetária que tem ligado e aproximado o Estado da sociedade, de uma forma fora do comum no caso da história do Brasil. Também vejo possibilidade de revolta se um novo governo optasse pela destruição da agenda liberal mínima: igualdade de todos perante as leis, eleições livres, liberdade ampla de opinião, punição dos ladrões do erário público, isolamento ideológico e por aí vai… O povo brasileiro está com raiva. Antes, dizia-sse que, se uma pessoa fosse assaltada e não reagisse, resultaria fisicamente incólume. Agora, isso não é mais garantia de sobrevivência. Mas não só os

funcionar com dezenas de empregados de vários tipos. E quem ali trabalha deve lealdade e recebe proteção. Há um elo de complementaridade que perpassa o nosso sistema de cabo a rabo. É isso que tipifica o poder e o prestígio à brasileira. Claro que há isolamento, exploração e mais-valia. Mas essas dimensões assumem formas particulares que eu tentei elucidar na minha obra. A vida americana em geral se funda nessa idéia do “igual, mas separado”. Esse moto implementa a igualdade e a compartimentalização (cada macaco no seu galho, todo mundo tem seu espaço e sua propriedade) e foi esse o moto crítico da segregação racial americana. É um teorema social que salienta a autonomia e a compartimentalização, reitero, como estilo de vida social. No Brasil, vivemos realizando – permita-me repetir o exagero – o oposto. Entre nós, os escravos não viviam somente nos campos, mas também nas casas do mundo rural e, esse é um dado importante, no mundo urbano. Estávamos “juntos” com os escravos, como hoje estamos dos nossos empregados que representam nossas pessoas de cabeça para bai-

Como Marx e Derrida não falam em carnaval ou futebol, os caras também não falam bandidos estão banalizando a morte. Os vizinhos se matam por insignificâncias. Estamos vivendo numa sociedade estressada? Eu não penso assim. Não vejo essa raiva. Vejo, é claro, os riscos e a incúria policial, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. Mas não vejo essa banalização da morte que você fala. Vejo também um grande esforço para dar conta do recado, ainda que esse esforço esteja muito aquém do que se quer. O Sr. conceituou a sociedade brasileira como “Diferentes, mas juntos”, em contraposição ao padrão norte-aamericano (“Iguais, mas separados”). A disseminação da violência e da insegurança, levando as camadas privilegiadas a se isolarem cada vez mais em redomas protegidas (condomínios quase bunkers, com guarda privada, vigilância eletrônica etc.), estaria afetando o éthos brasileiro? Sim, mas note bem: os bunkers dos ricos não operam como os daqui dos Estados Unidos, onde os milionários têm muito menos empregados domésticos. Essas residências fechadas só podem bem 26 Continente Multicultural

xo. Ou seja, no nosso mundo, o superior é complementado pelo inferior. Hoje começamos a pensar em ordenar nossas relações sociais de modo paralelo e não de modo hierárquico e complementar. Ainda somos uma “sociedade de múltiplas éticas” ou a desilusão, o cansaço, a desesperança estão conduzindo a uma exacerbação do individualismo, à aceitação sem restrições da divisa “levar vantagem em tudo”, isto é, a uma sociedade sem ética alguma? As múltiplas éticas têm a ver com o que Max Weber escreveu na sua obra. Em suma, eu dizia que o Brasil tinha uma ética no mundo da casa, outra no mundo da rua e ainda uma outra relativa ao outro mundo, ao sobrenatural. Ora, o protestantismo moderno liquidou essa diversidade e esse particularismo. Nele, só há uma ética: a do mundo público, que engloba tudo. Nos Estados Unidos jamais uma pessoa deixa de ser cidadão, o que tem vantagens e desvantagens, tornando o sistema mais rígido. Mesmo na cama com sua mulher, ele está sujeito às normas do individualismo e da igualdade.


No Brasil, somos esquerdistas na rua, espaço onde lutamos pelo progresso sob qualquer ordem, somos cidadãos igualitários, feministas e igualitários, sobretudo com as mulheres e os empregados dos nossos inimigos. Mas em casa, no meio da família e com os empregados e amigos, somos patriarcais, reacionários e, tomando partido da cautela e da calma, somos pelo progresso com muita ordem. O levar vantagem em tudo não denota uma ausência de ética. Pelo contrário, revela a moralidade da pessoa que se sente tão importante que decide aproveitar-se e, com isso, passa por cima de normas gerais. Revela também a motivação pela iniciativa de ganhar dinheiro e enriquecer. E se, no caso do Brasil, era o Estado e o governo que ofereciam essas oportunidades, pelo descontrole administrativo e pela ética do roubo da coisa pública que não era de ninguém, porque não “tirar” do Estado se outro vai fazer isso de qualquer modo? Experiências como o sambódromo (o Carnaval como espetáculo) e seus desdobramentos nos

ra popular” que as dondocas transformadas em Secretárias de Cultura vêem condescendentemente como “baixa” manifestação de arte, em oposição à “alta cultura”, exibida nas galerias de arte e nos teatros municipais. Se, como minha obra demonstra claramente, as coisas mais sérias do povo brasileiro são o jogo do bicho, a cachaça, o Carnaval e o futebol, e se os nossos intelectuais sempre olharam para fora (ou, o que dá no mesmo, para dentro, com os óculos de fora), eles jamais poderiam estudar, filmar, pintar ou escrever sobre essas coisas! Tanto que meu trabalho foi recebido com frieza, senão desprezo, pelos intelectuais nacionais. Não penso que seja alienação, não. É burrice e falta de sensibilidade mesmo. Os caras aplicam o que aprendem lá fora aqui dentro mecanicamente. E como Marx e Derrida não falam em carnaval ou futebol, eles também não falam. “A culpa é do governo”. As pessoas atribuem quase tudo à instância governamental. Entretanto, jogam lixo na rua, subornam pequenos funcionários, furam filas e almejam empregos públicos sem con-

No Brasil, somos esquerdistas, feministas e igualitários na rua e patriarcais e reacionários em casa “carnavais fora de época”, com a divisão física dos espaços em camarotes, arquibancadas e até os “excluídos” da festa, seriam uma negação da nossa tendência para a carnavalização? Sim. O sambódromo arregimentou e ordenou a tendência anticarnavalizante, porque ele fixou os atores num espaço e os espectadores em outro. Se carnavalização diz respeito, precisamente, se eu bem li o meu Bakhtin, à possibilidade de trocar de lugar (na realização da catarse ou purgação hierárquica), então essa demarcação ancorou irremediavelmente o desfile e aproximou o desfile carnavalesco dos espetáculos tradicionais da Broadway, tirando dele uma fantástica energia comunicativa totalizante. Por que o futebol, tão importante e tão presente em nossa vida social, está tão parcamente retratado em nossa literatura, nosso cinema e até em nossa música, sem falar de trabalhos e estudos acadêmicos? Seria uma forma de “alienação” de nossos artistas e intelectuais? Os intelectuais nacionais, como você sabe, têm horror ao Brasil e abominam a chamada “cultu-

curso. Que estradas precisamos percorrer para chegarmos à cidadania? A estrada que as sociedades de massa percorreram: fazer campanhas, discutir problemas, apresentar modelos de comportamento no cinema, na TV e no rádio. Escrever, abrir-se à critica e à alternativa. Enfim, perseverar no caminho da democracia: de ouvir o outro, de confiar nos outros, de não pensar que se tem o monopólio da verdade e, mais importante que isso, não acreditar que há uma verdade única e exclusiva para os problemas. Qual o futuro que nos espera? O Sr. é otimista ou pessimista com nossos rumos? Eu tenho oito netos. Tenho que ser otimista. Acho que o Brasil tem muitos problemas, mas precisa acima de tudo de paciência e de honestidade. E de amor. (HF) Roberto Da Matta é antropólogo, professor da Universidade Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos, e autor de uma obra em que se incluem Carnavais, Malandros e Heróis (1979), O que faz o brasil, Brasil? (1984), A Casa & a Rua (1985) e Explorações: Ensaios de Sociologia Interpretativa (1996).

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WILSON PEDROSA / AE

CRISTOVAM BUARQUE

Por uma nova Abolição

A apartação social faz do Brasil um país dividido que ainda não se construiu como uma nação O que é o Brasil? Uma promessa de futuro (Stefen Zweig) eternamente frustrada? Uma metaraça (Freyre) ou um povo mestiço (Darcy Ribeiro) capaz de encontrar novos caminhos como nação? Ou um enigma incapaz de ser decifrado por sua própria elite? Borges costumava dizer que toda classificação deforma. Você pode dizer que o Brasil é aquilo que você quiser dizer, mas ele é um fenômeno social muito mais complexo do que quaisquer destas categorias acima. Eu diria que o Brasil é um território com uma sociedade que, nestes 500 anos de sua formação, conseguiu se fazer um País, mas ainda não conseguiu ser uma Nação porque é dividido, sem um propósito comum. O Sr. criou o termo apartação, traduzindo o conceito de “apartheid” social, e tem-sse notabilizado por suas candentes denúncias da situação dos excluídos do Brasil. Entretanto, pensar o Brasil como uma sociedade dividida em dois grupos – Incluídos e Excluídos – não é simplificar demasiadamente uma sociedade vasta, complexa e contraditória como a brasileira? Sem dúvida é uma simplificação. O Brasil, como qualquer sociedade, é muito mais complexo. Mas o importante do conceito é que indica a possibilidade de um desenvolvimento em separado, por 28 Continente Multicultural

grupos sociais. Até recentemente se dizia que o nosso desenvolvimento era dual, com dois setores, um moderno e um atrasado. Mas a idéia era de que o atrasado se uniria ao moderno. O que comecei a apontar, ainda no começo dos anos 80, foi que não se caminhava para esta unidade, e sim, para a separação em um sistema de apartheid social, que depois passei a chamar de apartação, para diferenciar o desenvolvimento separado por raças, como na África do Sul, daquele separado por grupo social, como no Brasil. Hoje em dia o conceito é bem mais aceito, mas no começo a resistência foi muito forte. Sobretudo porque eu disse, na época, pelo jornal Folha de S. Paulo, que a única diferença entre a elite branca da África do Sul e a elite rica do Brasil era a hipocrisia desta última. “A culpa é do governo”. As pessoas atribuem quase tudo à instância governamental, ao mesmo tempo em que se eximem de algumas responsabilidades da cidadania. Isso não embute uma concepção autoritária ou, no mínimo, paternalista do Estado? Não pode levar a aventuras salvacionistas? Sem dúvida, a culpa é das direções nacionais, do aparelho de governo, mas nele devemos colocar os que estão no governo, as oposições políticas, os grupos sociais, como sindicatos e outras associações de classe, e a sociedade civil organiza-


FOTOS: ACERVO DO CENTRO JOSUÉ DE CASTRO

Os pobres ficam mais pobres e os ricos mais ricos: apartação social

da. A culpa é de todos nós. Mas não há como mudar o país sem o governo. Nós somos os culpados do rumo dos governos, mas eles são os culpados das tragédias que vivemos. Hoje em dia eu sou uma pessoa do chamado terceiro setor, mas tenho consciência de que a abrangência de nosso papel é limitada, não consegue dar a dimensão que o país precisa para suas propostas.

não espera o amanhã para colocar comida em casa. Ela não espera o emprego e o salário, vai direto para soluções imediatas. É isso que defendo com os incentivos sociais, tipo Bolsa-Escola. São investimentos públicos empregando a população pobre para que produza o que necessita para sair da pobreza, ganhando, além disso, uma renda para comprar a parte que precisa obter no mercado.

O Sr. defende a feminização da economia, ou seja, a busca de resultados imediatos para os problemas da pobreza, como manda a lógica da economia doméstica. Em que grau o Sr. enxerga uma feminização (ou sua necessidade) da sociedade no Brasil contemporâneo? Todos querem erradicar a pobreza, mas há um pacto de espera entre a direita, que propõe esta erradicação através do crescimento econômico, e a esquerda, que propõe através do papel do estado depois de uma mudança radical de modelo econômico. Enquanto isso, o povo continua pobre e reproduzindo a pobreza nas gerações que estão crescendo. O conceito de feminização da economia que lancei é uma metáfora para indicar a urgência na solução do problema da pobreza. A lógica feminina

O Sr. já denunciou que a elite brasileira sente orgulho de suas vergonhas. Por outro lado, os pobres – especialmente os jovens excluídos – se vêem sufocados pelo desalento e pela desesperança. Qual o papel de quem pensa o Brasil diante dessa aparente falta de perspectivas? Este é o maior de nossos problemas ao lado do problema do que fazer com as grandes cidades. Qual a mística a oferecer aos jovens em um tempo sem propostas sociais, com egoísmo e consumismo atraindo eles? Defendo duas coisas. Primeiro, que a luta pela erradicação da pobreza possa ser a mística, como há 100 anos, foi a abolição da escravidão. Segundo, um programa dirigido aos jovens pobres, incorporando dois milhões deles por ano em um serviço cívico, provavelmente coordenado Continente Multicultural 29


Todos querem erradicar a pobreza, mas há um pacto de espera entre a direita e a esquerda. Enquanto isso, o povo continua pobre e reproduzindo a pobreza pelas Forças Armadas, onde estes jovens, além de uma renda, receberiam um ofício, exercícios físicos, noções de civismo e amigos. Isto custaria 2,4 bilhões de reais por ano, pagando por mês 10 reais a cada jovem e 100 reais para a instituição que administre o programa.

EDVALDO RODRIGUES / DP

Num horizonte mais amplo, que passos o Brasil necessita dar para safar-sse das armadilhas da globalização? Ela é inevitável ou haverá uma nova via? Quais são os futuros possíveis para o Brasil? A integração internacional é inevitável e, ao mesmo tempo, positiva, não há porque ter medo dela. O que não podemos tolerar é a integração dos ricos brasileiros internacionalmente, às custas da desintegração interna. Nosso desafio não é ficar con-

tra a globalização, mas saber como administrá-la, conseguindo eliminar a exclusão social interna. Isso é possível. Como houve uma lei áurea da Abolição da escravidão, podemos ter um programa áureo da erradicação da pobreza. Isso pode ser feito sem mudar nada nas bases econômicas da globalização. O Brasil já dispõe dos recursos necessários, financeiros, intelectuais, econômicos. Este é o nosso desafio: formular e aprovar um programa áureo para os próximos anos. (HF) Cristovam Buarque é economista e escritor, ex-reitor da Universidade de Brasília, ex-governador do Distrito Federal, autor, entre outras obras, de A Ressurreição do General Sanchez (1982), A Desordem do Progresso (1990), O Colapso da Modernidade Brasileira (1991) e Admirável Mundo Atual (2001)

IVANILDO VILA NOVA

O que é o Brasil? Um país de paisagens contrastantes Que apesar dos pesares, vive em paz De imensas riquezas naturais Carregadas pra cantos bem distantes Paraíso de muitos imigrantes Que aqui construíram residência Submisso, podendo ser potência Leva fama de americanizado Que se um dia for bem gerenciado Poderá alcançar a independência.

O que espero do Brasil

Ivanildo Vila Nova, natural de Caruaru, considerado, pelos admiradores e por seus próprios pares, o maior violeiro vivo do Nordeste, respondeu em versos as questões da reportagem

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Do Brasil eu espero firmemente Que consiga encontrar novos caminhos Para não dar as costas aos seus vizinhos Frutos vivos do mesmo continente Um futuro melhor que o presente Reparando os malfeitos do passado Pelo seu bem-estar tenha cuidado Com a música, cultura, tradição Trate um dia o Nordeste como irmão Não um simples moleque de recado.


MARINA MALHEIROS / AE

HÉLIO JAGUARIBE

O nosso prazo é 20 anos Exigências internacionais obrigam-nos a buscar rapidamente o consenso por um projeto nacional

Como o Brasil se coloca diante das novas realidades globais? O status quo brasileiro não tem viabilidade. O Brasil está diante da opção de, se mantiver o status quo, entrar em declínio vertiginoso. E, por outro lado, se quiser progredir, se desenvolver, tem de optar por certas metas fundamentais que devem comandar um amplo consenso nacional. A grande questão que parece se opor ao desenvolvimento brasileiro é o fato de que o processo de globalização, de um lado, e a hegemonia quase universal americana, de outro, vão conduzir a uma redução extremamente drástica e bastante acelerada do que eu chamo de “margem de permissibilidade internacional” dos países periféricos. De sorte que a capacidade que o Brasil tem de decidir por conta própria, em função de suas próprias condições, de seu próprio povo, vai se reduzir muito drasticamente e eu creio que, na melhor das hipóteses, nós temos um prazo de 20 anos para poder executar um esforço que nos conduza à superação do subdesenvolvimento. Se conseguirmos, no prazo de 20 anos, atingir o nível de desenvolvimento econômico e tecnológico comparável ao da Itália e um nível social comparável ao da Espanha, o Brasil se tornará um país dotado de condições de sobrevivência num bom nível internacional.

Quais são as condições necessárias para o Brasil dar esse salto? As condições necessárias apresentam diversos níveis, conforme a maior ou menor generalização da exposição. Num nível mais geral, elas consistem na formação, entre as principais correntes políticas do Brasil, de um consenso a respeito de macrometas a serem atingidas dentro de determinado prazo – certas metas econômicas, certas metas sociais, certas metas tecnológicas, certas metas de PIB. Feita essa opção de macrometas, o segundo passo será definir quais são as condições sine qua non para que essas metas sejam atingidas. Seria um estudo mais técnico a respeito dessas metas, mas submetido a um processo de consciência. Havendo consciência sobre as macrometas, havendo consciência sobre as condições mínimas necessárias para que essas macrometas sejam atingidas, a partir daí, os partidos e as candidaturas devem travar a disputa democrática. Não se trata de formar um pensamento único, uma candidatura única, nada disso, isso não funciona. Trata-se de ter um consenso daquilo que todos desejam, no fundamental. Cada um procurará atingir a seu modo, sob sua liderança. Aí haverá uma disputa democrática das modalidades de fazer isso e de quem faz. Mas havendo um consenso do que é que se vai fazer. Continente Multicultural 31


JOEDSO N ALVES / AE

RICARDO FERNANDES / DP

Greve de professores em Brasília: manifestação do “baixo clero”

Meninos de rua no Recife: Jaguaribe lamenta a “geração perdida”

A era que estamos iniciando é a era do conhecimento e todos sabem que o Brasil tem uma defasagem muito grande nessa área. Como enfrentar a questão do fosso tecnológico? Na verdade, isso exige um trabalho de pinça, em que se faça, como está sendo feito, um grande esforço de educação de base, que possa garantir a inserção da totalidade das crianças na escola e uma melhoria gradual do nível da escola pública, e, por outro lado, a criação, dentro das universidades, de centros de excelência. O problema da universidade brasileira é muito complexo. As universidades são autônomas, o governo tem uma capacidade de ingerência bastante limitada, e é verdade que se diga que, em virtude de várias circunstâncias, entre 32 Continente Multicultural

as quais notadamente um aviltamento do salário do professor universitário, as universidades hoje são majoritariamente povoadas por pessoas de competência modesta. E esse baixo clero domina politicamente as universidades e impede reformas sérias. Por outro lado, esse baixo clero, dispondo de estabilidade, não gera condições que autorizem aumentos significativos de salários. Na verdade, um numeroso grupo de professores está ganhando aquilo que merece. Como corrigir isso, a curto prazo? Só vejo uma forma: criar dentro das universidades centros de excelência, com requisitos muito especiais de ingresso por concurso, permitindo que esses centros de excelências tenham salários adequados e fundos para pesquisa.


Isso significa que teremos uma resposta num determinado prazo, até que os resultados apareçam. Nesse intervalo, o que fazer, diante da horda de gente despreparada e fora do ambiente tecnológico? Essa questão tem dois aspectos diferentes. O aspecto relacionado a toda uma população, que me deixa profundamente preocupado, de jovens entre 13 e 20 e poucos anos, que não tem escolaridade, não tem treino profissional e não quer trabalhar – não quer nada – é realmente uma geração perdida, que é candidata à droga, ao crime e à mendicância. É uma coisa extremamente grave, são milhões de pessoas. Por outro lado, existe a possibilidade de, com certa velocidade, se criarem centros de excelência. Então, o gap tecnológico pode ser reduzido de uma maneira significativa num prazo relativamente curto, se houver decisão de fazê-lo. Agora, o que me

tido de responsabilidade individual. A sociedade ocidental foi conduzida, a partir do século 16, a uma grande dicotomização. Aquelas que geraram personalidades individualistas com grande senso de responsabilidade pessoal, que foram muito influenciadas, nesse processo, pela religião protestante, e aquelas que, ao contrário, permanecendo na religião católica, acentuaram a delegação de funções à autoridade superior religiosa ou civil. Então, cria de um lado Adam Smith e de outro, Colbert, na França. Colbert é o símbolo da sociedade que delega ao poder transcendental as responsabilidades. Aconteceu com a França, a Itália, a Espanha, com Portugal, e nós somos herdeiros da sociedade colbertiana. Então, nós temos tendência a atribuir ao Estado e ao Governo uma responsabilidade primordial. Por outro lado, na medida em que o Estado, em vez de se

O Estado, em vez de se depauperar, como o neoliberalismo estupidamente propõe, deve vertebrar a sociedade preocupa é o que fazer com a geração perdida. Eu acho que essa coisa é de tal complexidade que eu não sei dar uma resposta. Só sei dizer o seguinte: é preciso fazer um estudo dessa gente, estudo detalhado, empírico, determinando exatamente onde estão essas pessoas, fazendo um perfil dessa gente e a partir daí encontrar uma solução que combine emprego garantido pelo Estado, com educação compulsória e aplicação de penas contra a ociosidade – a ociosidade pode se tornar um delito no momento em que o Estado garanta emprego para todo mundo. Com a acelerada urbanização ocorrida nos últimos 30 anos no Brasil, os valores tradicionais foram pulverizados. E não se construíram novos valores... Ah!, mas isso é um problema da sociedade de consumo intransitivo. O problema da sociedade de consumo intransitivo é isso. Essa sociedade não tem solução. O mundo não terá condições de sobreviver se não gerar valores alternativos aos tradicionais. As sociedades não se mantêm pelo puro consumismo. Quanto à cidadania, há no Brasil uma visão que atribuiu tudo ao Estado, com raízes antiqüíssimas. Qual o papel da sociedade na autotransformação do País? Na verdade, entra aí a necessidade de aumentar, nas sociedades que eu chamo colbertianas, o sen-

depauperar, como o neoliberalismo estupidamente propõe, assuma as novas responsabilidades que as condições contemporâneas estão requerendo dele, ele passa a poder vertebrar a sociedade. A sociedade brasileira tem de ser vertebrada a partir do Estado. O Sr. coloca de maneira muito clara as condições para o Brasil se transformar. A seu ver, quais são as nossas chances? Bem, eu acho que elas estão assim meio a meio, pra ser objetivo. O Brasil pode encontrar dificuldade de um consenso em torno de um projeto nacional. Pode acontecer que as disparidades sociais, regionais etc. operem de uma forma disruptiva, não permitam a formação daquela unidade mínima que conduza a essa solução. E nesse caso, o Brasil vai mal. Agora, eu confesso que acho que não. Embora em termos puramente estatísticos as chances sejam 50 a 50, eu sou levado a crer que há na sociedade brasileira importantíssimos aspectos que a conduzem a querer o seu desenvolvimento, a querer uma solução positiva. A sociedade brasileira tende a conestar os caminhos que conduzem a isso. (HF) Hélio Jaguaribe é historiador e sociólogo, ex-ministro da Ciência e da Tecnologia (1992) e autor, entre outras obras, de Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político (1962), Alternativas do Brasil (1989), Brasil: Reforma ou Caos (1989) e Estudo Crítico da História (2001)

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DIVULGAÇÃO

OLAVO DE CARVALHO

“Precisamos de um banho de realidade” Excesso de ideologia dificulta compreensão da nossa realidade

Qual a distância entre a elite cultural e o povo no Brasil? O que fundamenta essa distância? Que conseqüências acarreta para o país? Nenhum intelectual pode estar realmente próximo do seu povo quando sua definição de “povo” provém de um estereótipo sociológico – quando não ideológico – e não de uma elaboração abstrativa feita a partir dos dados da vivência pessoal. A vivência pessoal, por sua vez, não liga o indivíduo ao “povo”, assim genericamente, mas se dá através da família, do bairro, da cidade, das raízes pessoais enfim. Por isto, dentre os intelectuais, aqueles que melhor expressaram os sentimentos do povo brasileiro chegaram até ele por meio de suas recordações pessoais, como o fizeram José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Antônio de Alcântara Machado e Gilberto Freyre. Já se você aborda o povo por meio de idéias como “classe”, “revolução” ou “cidadania” etc, você só enxerga as partes dele que se encaixam, mais ou menos por mera coincidência, em esquemas produzidos pela casta intelectual, condutora das revoluções. Um povo, em si, não é nunca revolucionário, não é nem sequer progressista. Um povo é sempre conservador, apegado a recordações e tradições. Quem não valoriza o passado e as tradições não pode conhecer o povo, porque não sente como ele. A 34 Continente Multicultural

vida popular é feita de emoções simples e milenares. A vida de família, por exemplo, é o coração da vivência popular. Quem não ama essas coisas não pode compreender o povo. Jovens letrados revoltados contra a “repressão familiar”, intelectuais que têm ódio ao passado e aos símbolos nacionais não podem compreender o povo. Como seria a visão freyriana do Brasil de hoje? Que continuidades e que rupturas o Sr. poderia indicar, a partir dela? Em primeiro lugar, a miscigenação aumentou. O Brasil aproxima-se a passos velozes do “Brasil mulato” previsto por Gilberto Freyre e Darci Ribeiro. Ao mesmo tempo, no entanto, o senso de unidade cultural brasileira se enfraqueceu muito, na medida em que, sob a influência da ideologia terceiro-mundista, perdíamos contato com as raízes portuguesas e exagerávamos demagogicamente a importância das contribuições negra e indígena. A forma geral da cultura brasileira é inconfundivelmente lusa – na língua, nos sentimentos, nos símbolos, nos valores – e, se ela é neutralizada, os elementos soltos negros e indígenas, incapazes de organizar-se a si mesmos numa escala civilizacional compatível com o presente nível histórico, podem facilmente ser encaixados numa nova forma importada e postiça,


VIEIRA DE QUEIRÓZ / TYBA

Nacionalismo: a formação brasileira foi essencialmente militar

criada pela intelectualidade militante norte-americana ou francesa. Isso de fato vem acontecendo e, pior, acontecendo sob pretextos nacionalistas. É o supra-sumo da alienação. A conta de nossas desigualdades é normalmente debitada às nossas classes dominantes. Recentemente, o Sr. escreveu que não temos mais classe dominante, vivemos um momento de transição. Isso não deveria significar que o país está melhorando? Veja, por exemplo, o que acontece no Congresso. Ele tem uma altíssima taxa de renovação periódica. A cada eleição, a leva de novos políticos é maior. Ao mesmo tempo, sobem as taxas de corrupção e ninguém quer ver que uma coisa está ligada à outra. Todo mundo aposta no mito da “renovação da classe política”, como se a experiência histórica não demonstrasse, bem ao contrário, que as classes dominantes mais antigas e mais estabilizadas são geralmente mais honestas e mais conscientes de seus deveres para com a sociedade do que os emergentes e arrivistas. O crescimento econômico já traz consigo, inevitavelmente, sua quota de arrivistas. Seria preciso dificultar em vez de facilitar o acesso dessa gente ao poder político. Que se contentem em ser ricos, não precisam acrescentar, aos benefícios da riqueza, os da autoridade política. Outro ponto importante: graças a tradições que vêm do Império e que receberam novo impulso com a fundação do Dasp, no tempo de Getúlio Var-

gas, o Brasil tem uma pequena elite de altos funcionários públicos que está entre as melhores e mais preparadas do mundo. Para ver isso basta, por exemplo, comparar os diplomatas brasileiros com os estrangeiros. Mas essa gente não está sendo reciclada e, cada vez mais, dependemos de universidades estrangeiras para formar nossa alta burocracia. Isso é suicídio, é um retorno ao Brasil-Colônia. Glauber Rocha disse há duas décadas que o único nacionalismo existente no Brasil era o dos militares. O Sr. já revalidou esse veredicto para a nossa época. Qual a importância do nacionalismo, das Forças Armadas e do nacionalismo militar para o Brasil do século 21? Todo patriotismo nasce da consciência valorativa de experiências passadas vividas em comum. No Brasil, só os militares têm isso, porque a formação do Brasil foi essencialmente militar. Nos EUA, cada cidade ou vilarejo se ergueu em torno de uma igreja protestante. Aqui, foi em volta de um quartel, fortaleza ou destacamento militar. A primeira tomada de consciência da identidade nacional foi a batalha dos Guararapes; a segunda, as guerras da independência, a terceira, a Guerra do Paraguai. Só vim a perceber essas coisas por acaso, quando fui contratado para trabalhar numa pesquisa de história militar. Foi como se caíssem escamas dos meus olhos: vi que até então não havia compreendido nada do Brasil. Para o militar, “Brasil” é o nome de uma realidade humana, é o fruto de esforços seculares Continente Multicultural 35


que se conservam vivos na memória. Para todas as demais classes, “Brasil” é uma abstração política ou um estereótipo midiático (Carnaval, samba, etc.). Então criam um ersatz de patriotismo, constituído de puro anti-americanismo, isto é, um nacionalismo de negação, um nacionalismo de inveja, que só nos rebaixa e humilha ainda mais. O Brasil é tido como um país de ambigüidades, onde a estabilidade convive com uma legalidade frouxa, e o conservadorismo se mantém ativo ao lado de uma boa dose de maleabilidade moral. O Sr. concorda com essa noção de ambigüidade brasileira? A que a atribui? Friedrich Carl von Savigny assinalava, já no começo do século 19, que todos os valores consagrados no Direito, no Ocidente, não eram senão

que, excluídos da espiritualidade, não têm como encontrar por si mesmos o caminho da moralidade. Se a direita é fisiológica e a esquerda, mentirosa, qual a saída política para o Brasil? É inútil e perverso sugerir uma “terceira via”. Direita e esquerda permanecem conceitos válidos e o Brasil não encontrará seu rumo enquanto não conseguir criar uma esquerda e uma direita que prestem. Idealmente, direita e esquerda representariam, respectivamente, as forças de conservação e de mudança, cujo equilíbrio tensional é necessário à saúde do corpo político. Mas a condição desse equilíbrio é que ambas as facções respeitem certos valores comuns que serão o fiel da balança. Esses valores comuns dependem da história, da tradição, dos símbolos conservados no imaginário.

O fundo de valores morais herdado da sociedade patriarcal não sobreviveu ao capitalismo de arrivistas e à demagogia socialista adaptações mais ou menos contingentes da herança cristã. Quase ao mesmo tempo, Adam Smith dizia que a economia de mercado requeria um ambiente de moralidade que ela própria não poderia criar. Da primeira dessas observações pode-se concluir que, se a raiz cristã de um país ocidental é pobre ou deficiente, pobre e deficiente será, nele, o império do Direito. Da segunda, pode-se concluir que, erigido sobre essa base deficiente, o capitalismo moderno nunca passará de corrupção modernizada e, quanto mais modernizada, mais corrupta. Não há civilização sem fundo religioso e o nosso fundo religioso é ralo, puramente ornamental e folclórico, sem o mínimo sentido da vivência espiritual efetiva. Nossa religiosidade é apenas “crença”, no sentido mais pejorativo da palavra. Portanto, ficamos sem o lastro cristão a que se referia Savigny e em seguida sem a base moral da economia de mercado. Alguns liberais e conservadores, que têm uma visão idealizada da economia de mercado, acham que a simples liberação da economia vai melhorar as coisas, porque acham que toda corrupção vem do Estado. Outros imaginam que o socialismo pode nos salvar, porque acham que o mal vem das empresas e porque, conhecendo-se muito mal, se imaginam melhores do que os atuais detentores do poder. Mas a corrupção não vem do Estado nem do capitalismo: vem dos seres humanos reais e concretos 36 Continente Multicultural

Fizemos 500 anos discretamente, como um adolescente inseguro que não sabe ainda o que se reserva para “o país do futuro”. Será que precisamos de uma definição ideológica? Eu não diria ideológica, porque entendo sempre ideologia no sentido clássico de “vestido de idéias”, de um discurso pretextual feito para embelezar ou camuflar objetivos que, consciente ou inconscientemente, são bem diversos dos proclamados. O que há na praça, neste país, não é falta, mas excesso de ideologia. Você sabe que aqui, quando um liberal clama pela liberdade de mercado, o que ele quer é apenas um tipo de controle estatal que favoreça os seus negócios, e, quando um esquerdista diz que luta pela democracia, o que ele quer é uma ditadura de tipo cubano. O que o Brasil necessita é uma autodefinição civilizacional e moral, mas isto não será possível enquanto não conseguirmos encarar a nossa história na escala da história humana como um todo. Nas presentes circunstâncias – em que a nossa consciência histórica não remonta além do Iluminismo –, tudo o que temos conseguido fazer é apegar-nos a ideologias, no sentido acima, isto é, a pretextos. Precisamos de um banho de realidade. (FL) Olavo de Carvalho é filósofo e polemista, autor de O Jardim das Aflições (1995) e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (1996), entre outras obras


GEYSON MAGNO / LUMIAR

GUSTAVO KRAUSE

“Somos um país adolescente” Formar um auto-retrato do país exige atenção para os mitos e cuidado com as generalizações

“No meu esforço pessoal de compreender o Brasil, não só mediante as leituras, juntando as experiências e refletindo sobre elas, tenho procurado identificar alguns mitos. Por exemplo, o mito fundador do Brasil, que era a imagem do Brasil dos colonizadores, o mito do chamado “paraíso perdido”, quando os nossos cronistas e os nossos intérpretes começam a falar de uma certa sensualidade. Criaram-se alguns estereótipos, visões preconceituosas, porque esses traços eram demarcados com muita ênfase, até literária e poética. Ascenso Ferreira dizia: “Na hora de comer, comer; na hora de trabalhar, pernas pro ar”. Essa não deixa de ser uma manifestação literária sobre uma possível indolência que vem não sei de onde. Isso não é determinante, mas não é desprezível. E é importante que a gente preste atenção a esses mitos. O mito do “paraíso perdido”, o mito do “eldorado”, um país onde as pessoas chegaram aqui querendo logo encontrar a riqueza à flor da terra. E aí chega Sérgio Buarque de Hollanda e diz uma coisa muito interessante: que se criou aquela tendência de querer se obter o fruto antes de plantar a árvore. Essas percepções vão formando um auto-retrato e um quebra-cabeça. Que, no meu entender, não induzem necessariamente a uma generalização.

Outro instrumento muito interessante são as personagens da literatura brasileira. Gabriela, Capitu. Gabriela, que cheirava a cravo e tinha cor de canela, reflete uma sociedade com características eróticas, aquela coisa da força instintual, das relações baseadas na afetividade, relações extrovertidas, sensuais mesmo. E o desenho sociológico de Ilhéus em Jorge Amado bem mostra que tipo de sociedade caracterizava o Brasil. Outro personagem interessantíssimo é Macunaíma. Isso não permite dizer que sejamos todos macunaímicos. Mas autoriza dizer que no auto-retrato brasileiro existem pedaços macunaímicos, de Gabriela, de Capitu, de Riobaldo, do jagunço recatado, do mineiro esperto, do gaúcho com faca na bota. Podemos fazer esse mosaico, com algumas dominâncias. Esses personagens refletiam um tipo de Brasil, um tipo de relação que se projetou no presente. Inclusive no campo da superestrutura política. Porque numa sociedade baseada nesse personalismo, com esses personagens, se amplia, por exemplo, o círculo familiar. Quando isso ocorre, do ponto de vista político, se confunde a res publica com a res privata. Aí você tem um personagem que é um personagem presente: o ser que está na gestão da coisa pública, mas exercita o patrimonialismo dessa época. Continente Multicultural 37


VIEIRA DE QUEIRÓZ / TYBA

Grande Otelo/ Macunaíma: apenas uma das facetas do nosso caráter

Quando se fala no brasileiro intuitivo, afetivo, todas essas coisas que podem ser estereótipos, o “homem cordial” que em Sérgio Buarque de Hollanda era um conceito diferente do conceito em Cassiano Ricardo, enquanto Sérgio Buarque não caracterizava essa cordialidade como generosidade, e sim, como coisas vindas do coração, Cassiano Ricardo caracterizava. Só para ter uma idéia de como isso é perigoso, colocar esses estereótipos. Roberto DaMatta não concorda, mas podemos falar de uma certa intuitividade, na predominância dos sentimentos em relação ao logos, formando o nosso auto-retrato do ponto de vista histórico, com projeções na esfera política. Que é o que conduz para um projeto de sociedade. Uma personagem como Gabriela, inserida naquele quadro de Ilhéus, demonstra claramente uma sociedade baseada no coronelismo, no personalismo, até em relações cruéis do ponto de vista patriarcal. E aí tem um outro Brasil que surge ali, um elemento inovador que é Mundinho Falcão, quando chega querendo transformar Ilhéus num porto exportador. Estou falando em Gabriela porque reli recentemente. É importante reler as coisas num certo momento da vida da gente. Isto contribui para algumas características do nosso estilo de fazer política, que dá o padrão de fazer política e que Jurandir Freire Costa chama de “cultura da razão cínica”: o exagerado uso do “jeito”, o exagerado uso da Lei de Gérson. No fundo é o desrespeito à impessoalidade do que é legal, do que é abstrato, do que é racional. Esse estilo de fazer política e esse desenho da cultura da razão cínica se reflete em algumas expressões, como por exemplo:

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DIVULGAÇÃO / AJB

Sônia Braga/Gabriela: sensualidade e sociologia

“Quem tem padrinho não morre pagão; Para os amigos, tudo, para os indiferentes, nada, para os inimigos, a lei; Sabe com quem está falando?; Aquele cara é muito chato, é muito caxias no trabalho”. Esse é um pedaço do auto-retrato, mais nostálgico, mas que tem influência no quadro das relações políticas. E existe um vetor de modernização, mais afeito à cidadania, à impessoalidade nas relações, ao respeito ao outro e à legalidade, que é a base estruturadora de uma civilização. Isto começa a se formar no Brasil. O auto-retrato do país é um retrato adolescente, em formação. Não é uma heresia dizer que o Brasil é um país adolescente. Ele é adolescente não só no tempo, mas na formação. Por isso que ele é dado – e isso é muito parecido com um adolescente – a ciclos de euforia e de depressão, de otimismo e de pessimismo, a essa labilidade de perspectivas e de sentimentos. Meu sonho de uma criatura brasileira do futuro: eu gostaria que ela carregasse todos esses vetores da modernidade, mas que não perdesse, lá no fundo da alma, da personalidade, a capacidade de gargalhar, de fazer humor consigo próprio. Que não perdesse algumas coisas que são consideradas negativas, como a delicadeza. Às vezes a delicadeza é im-


própria, mas na maioria das vezes é uma maneira de dizer verdades. Alguém coloca isso no plano político e diz que a delicadeza chega ao ponto de tratar qualquer cafajeste como Vossa Excelência; que o nosso familismo é tão forte que a maior coragem de um político é enfrentar a própria família ou as demandas da própria família. Mas eu quero dizer o seguinte: este ser lógico, este ser racional que parece que é a cultura do mundo moderno, me assusta. Eu não gostaria de ser este ser, a ponto de pegar os meus pais velhinhos, colocar num asilo e falar com eles de mês em mês. Eu estaria trocando a felicidade nacional bruta por um produto interno bruto quantificado, grande. Eu não quero trocar isso, é uma visão pessoal minha. Eu gostaria de que este ser tivesse algumas inflexibilidades. Por exemplo: no trato da coisa pública. Que ele conseguisse combinar, até porque so-

Eu gostaria que o Brasil fosse uma civilização mestiça mais feliz do que rica ou tão rica quanto feliz. E não uma civilização que se jacta e se gaba de só ter dez dias de férias. E não venham me dizer que isso é indolência e preguiça. Até porque um cara que está na moda, o Domenico Masi, quando esteve aqui, disse: “Esta é a sociedade, é o país que tem características básicas de uma civilização do terceiro milênio”. Uma coisa que não tenha aquela sensação neurotizante das civilizações, que você tem que competir e só competir, tem que ganhar. Recentemente, Peter Drucker, numa entrevista no Valor, disse uma coisa fantástica. O jornalista perguntou sobre o confronto entre a qualidade de vida e as demandas do mundo corporativo por mais trabalho. Ele contou que, quando tinha 26 anos, estava saindo do trabalho e o sócio, que tinha 70 anos, o viu cheio de pastas indo para casa, às cinco

Gabriela, Macunaíma, Capitu, Riobaldo: esses personagens refletiam um tipo de relação que se projeta no presente mos mestiços etnicamente, já que somos sincréticos religiosamente, já que somos duais, eu gostaria que existisse esse lado moderno, da impessoalidade, do reconhecimento da esfera pública, do cidadão. Mas que não perdêssemos jamais o sentido afetivo, essa coisa um pouco pegajosa que os anglo-saxões podem detestar e alguns brasileiros de formação anglosaxã detestam, criticam, que o brasileiro abraça demais, toca demais. Não estou propondo aqui uma civilização baseada em Eros, nem só na afetividade. Não. Estou dizendo que o ser humano, individual ou coletivamente, é suficientemente complexo para fazer com que essas coisas convirjam. Temos possibilidade de construir uma civilização – e aí estou partindo de alguns pressupostos objetivos: falar nisso com o aprofundamento da miséria brasileira, não dá. Estou falando num quadro em que a mobilidade seja para cima. Se continuarmos com o apartheid de hoje, não pode. Estou partindo do pressuposto de que seremos capazes de superar obstáculos e problemas básicos, como saneamento. O brasileiro do futuro deve ser alguém que consiga manejar os mecanismos da modernidade e da modernização, mas que não renegue essas marcas, esses traços que caracterizam o intuitivo, o afetivo, o erótico, o sentimento transbordante.

da tarde, e disse: “Vai fazer o quê?” Drucker respondeu: “Estou levando estas pastas para trabalhar em casa.” “O senhor está demitido. Se o senhor não consegue fazer das oito às cinco o que tem que fazer, é que o senhor está jogando tempo fora. Está fazendo coisas desimportantes.” É o meu modelo e acho que o Brasil tem condições pra isso, porque tem esse background. Talvez o capitalismo aqui tenha chegado um pouco atrasado, como a democracia, mas pode ser que isso dê uma maior consistência na formação de uma civilização, mais adiante, do tipo mestiço, amplamente mestiço, de coisas modernas e de nostalgia. De ambição por um patamar de bem-estar material, mas também de felicidade pessoal, de qualidade, de harmonia. Com um pouco de poesia na vida. Esse é o meu sonho. Uma civilização brasileira com bases materiais sólidas e com bases afetivas e emocionais, onde as pessoas não só passem na vida, mas vivam um pouco.” (Depoimento a Fábio Lucas)

Gustavo Krause é advogado e consultor de empresas, ex-governador de Pernambuco, ex-ministro da Fazenda (1992) e do Meio-Ambiente (1995-98), autor de Poder Humor (1984), Perdidos & Achados (1989) e O Dia em que a Inflação Acabou (1992).

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SÉCULO 21

Desde o dia 11 de setembro, os EUA têm conhecido o perigo de ser a única superpotência mundial

Sofrem os EUA da doença da vitória?

O

s ataques terroristas que mataram quase três mil inocentes, devastaram as torres gêmeas do Centro do Comércio Mundial e os edifícios ao seu redor; explodiram parte do cérebro militar norteamericano, o Pentágono, e paralisaram o país colocando o Estado de Nova Iorque e a capital Washington em estado de sítio só encontram paralelo na guerra civil ocorrida cento e quarenta anos atrás. Pior, desde a guerra de independência nenhum ataque em solo continental foi realizado com tal impacto. O Congresso norte-americano jamais havia sido evacuado, nem fechado e desinfetado como ocorreu com a contaminação por antraz. Nunca o povo americano teve a ameaça do terror introduzida em seu cotidiano, nem seu vice-presidente teve que se esconder em local secreto por várias vezes. Pearl Harbor foi um ataque realizado em uma base militar milhares de quilômetros do continente. A crise dos mísseis em Cuba produziu um grande medo de se iniciar uma guerra nuclear, mas nada físico se passou, e no final ficou evidente que os EUA e a URSS estavam prontos para negociar e ceder. Pela primeira vez não existe com quem negociar, o inimigo é quase virtual e absolutamente letal. O cogumelo que se projetou pelo céu de Manhat-

tan fecha a era nuclear e das guerras européias que conhecemos no século anterior. Inacreditável foi a palavra mais pronunciada no dia 11 de setembro de 2001. Inacreditável foi a palavra mais ouvida nos dias que seguiram a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia em 1917, marcando o início da história do século 20. A história do século 21 começa em 11 de setembro não por causa dos ataques em si, mas devido às suas conseqüências. Fundamentalmente, a constatação de que a opção de definir geograficamente o interesse nacional dos EUA foi posta a pique como a Grande Guerra européia de 1914-18 colocou a pique a concepção da balança de poderes entre os estados europeus. Se os interesses nacionais dos EUA definiam o mundo exterior como seu objeto; agora ele é sujeito. Os problemas da destruição do meio ambiente e da ascensão do crime global só poderão ser verdadeiramente derrotados com a edificação de uma aliança hegemônica em torno do princípio de que os grandes problemas mundiais exigem soluções conjuntas e globais. A doença da vitória? Desde a última década do século 20 os EUA têm sido o único país a combinar superioridade nos poderes militar, financeiro e tecnológico, em outras palavras, têm vivido como a única superpotência mundial. Esta condição tem levado alguns estrategis-

Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 40 Continente Multicultural


tas americanos a buscar a solução para a chamada “doença da vitória”, que segundo eles contaminara sua liderança. O primeiro sintoma desta doença é o sentimento de invencibilidade. O remédio para este sintoma estaria em evitar que o resto do mundo se una para contrabalançar e se opor à superioridade americana. O que fazer para que o país não se apaixone, como Narciso, por sua imagem, e permita sua autodestruição? Para uns, o segredo estaria no pragmatismo e na incoerência. Evitar revelar as intenções de consolidar sua supremacia adotando uma política radicalmente conjuntural e imediatista. Ser duro ao defender os interesses internos e ao mesmo tempo adotar iniciativas conjuntas com países aliados e com as Nações Unidas para revelar sua disposição para cooperação. Ajudar e atrair a Rússia e a China, evitando que elas se aliem, e isolando os países considerados inimigos como o Iraque. Para outros, a solução estaria em exercer plenamente e coerentemente este poder e moldar o mundo segundo os interesses americanos. O segundo sintoma é a não-adaptação às novas demandas e à nova realidade da defesa e segurança nacional. Devem os EUA continuar considerando a guerra militar convencional e a guerra nuclear como a ameaça principal ao país? Ou existe um novo contexto mundial que favoreça o estopim de guerras localizadas e curtas ou mesmo de guerras envolvendo grupos e organizações terroristas quase invisíveis? As soluções para este dilema são complexas. Qual das duas ameaças seria a principal? Como neu-

tralizá-las? Devem os EUA manter a estratégia que os fizeram vitoriosos nas guerras do século 20, ou devem apoiar novas abordagens e instituições internacionais para enfrentar a nova realidade? Um terceiro sintoma é o da ausência de objetivos. Uma vez vitoriosa e sem adversário à altura, o que deve uma nação fazer para continuar no topo? Deve ela fazer tudo que imagina poder fazer, ou precisa estabelecer metas e limites? Deve ter um exército capaz de enfrentar duas guerras ao mesmo tempo? Deve promover a integração regional, ou a liberalização global de comércio? Todas essas perguntas têm povoado o debate sobre as políticas de segurança externa norte-americanas desde o governo de George W. Bush pai. De certa forma, o remédio definitivo e as respostas têm sido postergadas por um país dividido entre o exercício de uma hegemonia difusa e consensual e o exercício do poder americano; entre Democratas e Republicanos. Mas os acontecimentos do dia 11 de setembro exigem respostas à maioria dessas perguntas. Os EUA não podem mais adiá-las, sob o risco de serem considerados não mais a superpotência. Cabe a George W. Bush filho responder a este gigante desafio. A resposta certa produzirá um século de paz e prosperidade. Mas se for produzida uma resposta errada, estaremos todos sentados nas muralhas da Terra contemplando o surgimento das preliminares para grandes conflitos globais.

Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com

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O Samap é um exemplo de que, menos que o tamanho, importa a decisão política de manter a cultura “em alta”

Os premiados Obra de Antonio Coutinho (PB), prêmio Artista Promissor

Silvia Pantano: as suas pinturas incorporam a linguagem do desenho num plano chapado com a intervenção do traço a lembrar tanto a arte primitiva quanto o refinamento de um Chagall concentrado num “assunto” central que domina os quadros. Silvio Toledo: o seu vídeo mostrou que não há limites para a criatividade, quer em Campina Grande, Paraíba (onde o artista tem seus estúdios de animação), quer em Burbank, EUA (onde se comemora, neste dezembro, o centenário de nascimento de Walt Disney). Cristina Câmara: a sua fotografia é ao mesmo tempo sensual, crua e delicada – principalmente nesses pés metidos na boca de peixes que parecem

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arfar, sufocados, e sugar, encantadamente. Algo entre a exuberância de Henry Miller e a contenção de Ansel Adams. DIVULGAÇÃO

ARTES PLÁSTICAS

Dez anos do Salão de João Pessoa

A

primeira semana de novembro foi mais uma vez marcada, em João Pessoa, pela inauguração do Salão de Artes Plásticas – Samap – que a prefeitura da capital paraibana mantém há dez anos, sem interrupção, com o intuito de descobrir novos talentos e reunir o que há de novo na arte brasileira. É um exemplo para outras cidades até maiores. Menos que o tamanho, importa a decisão política de manter a cultura “em alta” e a arte incorporada ao processo de humanização das cidades. Mais de duzentos artistas – de Roraima ao Rio Grande do Sul – se inscreveram para concorrer a prêmios no valor total de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), e quarenta e três deles foram escolhidos pelo júri formado pelos pintores Flávio Tavares e Fred Svendsen, pelo crítico de arte (revista BRAVO!) Fernando Monteiro e pela professora de história da arte Madalena Záccara, a partir de indicações dos artistas e da Fundação Cultural de João Pessoa – que organiza o evento. No ano passado, foram selecionados setenta artistas. Em 2001, se impôs a necessidade de uma redução, tendo em vista o espaço da exposição – um dos problemas do Samap. Ele é organizado pela Fundação Cultural de João Pessoa, que ainda não encontrou o melhor lugar para a mostra, numa cidade culturalmente agitada como é João Pessoa. Neste


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Pintura de Sílvia Pantano (PE) 1º lugar

Fotografia de Gustavo Moura (PB) Menção honrosa

Antônio Coutinho: seus Retratos em Revista “invadem” as imagens com pinceladas que não hesitam – fazendo concentrar a expressão do rosto num olhar ou num ângulo de visão de um rosto acentuado ou “deformado” pela intervenção da tinta. Walton Hoffmann: o artista apresentou sua linguagem gráfica e livre, em pinturas sobre tecido e madeira de impacto visual já conhecido. Gustavo Moura: o fotógrafo é um dos mestres brasileiros da captação de ima-

gens limpas e diretas, que ele consegue transfigurar artisticamente. Seu sertanejo com um gadget de plástico em forma de TV une o arcaico ao admirável mundo novo (que nem é tão “admirável” assim). Ocione Fernandes: um escultor no pleno domínio do seu meio expressivo. Foi o único que restou – da categoria “escultura” – da fase de seleção dos trabalhos (uma vez que a escultura é, talvez, a linguagem artística mais equivocadamente abordada pelos novos artistas), mas sua presença é a de um mestre escultor na fronteira entre o popular e o erudito.

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multimeios e as técnicas já praticadas (pois só assim se ajusta a inclusão dessas obras em categoria própria e afim com as novas linguagens etc). O Salão Municipal de Artes Plásticas é patrocinado pela Lei Municipal Viva Cultura, que prevê incentivo fiscal para as empresas investidoras na cultura e na arte de João Pessoa. Na reunião final, o júri contou com mais um jurado – o crítico de arte Marcelo Khans, de São Paulo –, e foram premiados a pintora pernambucana Silvia Pantano, o videasta paraibano Silvio Toledo e a fotógrafa carioca Cristina Câmara, nos três primeiros lugares. O prêmio “artista promissor” – que, pelo regulamento, vai para artista de João Pessoa – foi para Antônio Coutinho, e o prêmio especial do júri foi conferido ao carioca Walton Hoffmann, tendo sido conferidas duas menções especiais (com prêmio) respectivamente ao fotógrafo Gustavo Moura e ao escultor Ocione Fernandes.

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ano, um casarão na praça Dom Adauto – no centro da cidade – foi alugado para abrigar o X Salão, mas é claro que se torna urgente encontrar o espaço definitivo para atrair o público e colocar em debate questões trazidas de ano a ano, sobre linguagens velhas e novas. O próprio casarão onde se acha instalado o X Salão seria uma boa opção, como espaço definitivo. O júri de seleção, este ano, se viu a braços, por exemplo, com um bom número de inscrições de trabalhos situados na modalidade – indefinida – dos “novos meios”, não prevista nas categorias abertas às inscrições (pintura, desenho, gravura, escultura, instalação, fotografia e vídeo). Imagens digitalizadas, suportes fotográficos híbridos – mas todos com passagem pelo computador – forçam a que se dê entrada a uma categoria localizada na fronteira entre os

Da esquerda para a direita: Obra de Walton Hoffmann (RJ), prêmio especial do júri. Escultura de Ocione Fernandes (PB), menção honrosa. Fotografia de Cristina Câmara, 3º lugar.

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OS INÉDITOS DE

GUIMARÃES ROSA Carlos Costa

São textos de cadernetas de viagens à Itália, aos sertões da Bahia e Minas, um diário escrito na Alemanha nazista e correspondências com tradutores, que chegarão no mercado a partir do ano que vem

ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

LITERATURA

O

s admiradores e estudiosos do escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908/67) terão a inusitada oportunidade de conhecer textos inéditos do autor que revolucionou a literatura brasileira. A editora Nova Fronteira pretende lançar, a partir de março de 2002, uma série de livros, contendo material que, por enquanto, permanece restrito ao meio acadêmico, em acervos da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). São um diário escrito na Alemanha durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial (em 39 e 41), cadernetas de viagens – à Itália (em 49 e 50) e ao sertão da Bahia e Minas Gerais (em 52) – e correspondências com os tradutores de sua obra para o alemão (Kurt Meyer Clason), inglês (Henriet De Onis) e italiano (Edoardo Bizarre). Segundo Izabel Aleixo, da editora Nova Fronteira, a proposta é editar na íntegra os textos de Guimarães Rosa, junto com observações de críticos e especialistas que facilitem a compreensão e leitura. Dentre os textos, o diário alemão tem fama mística e deve despertar muito interesse no público geral. Os originais desapareceram durante anos, até que, em 1997, uma cópia foi encontrada na UFMG. Agora, o material está sendo traduzido pelo professor da universidade, Georg Otte. No livro, o escritor comentava fatos e lembranças do cotidiano, assuntos de trabalho e colava recortes de reportagens de jornais sobre a Segunda Guerra e suas conseqüências. Tema que inevitavelmente surge nos textos do próprio Rosa no diário. O material revela, sobretudo, a poética do escritor e sua constante experimentação com a linguagem. Além de curiosidades, como textos nos quais comenta outros escritores, a exemplo do carioca Machado de Assis, do alemão Goethe e do poeta francês Charles Baudelaire. “A maior parte dos escritos é em português e relatam atividades profissionais de Rosa no consulado. O trabalho de tradução surge na hora das matérias de jornal e dos muitos ditados e expressões que aparecem nas páginas do diário”, explica Otte. O professor observa ainda que o escritor mineiro passa nos textos um sentimento de grande decepção diante da barbárie nazista. Comenta com pesar e ironia alguns dos recortes, como o que relata um misterioso incêndio que destruiu um depósi-


to de bens confiscados de judeus. Ou mesmo um simples passeio no parque, num dia ensolarado, que termina com a triste constatação do preconceito dos nazistas, que proibiam a entrada de judeus em áreas de lazer. “A situação da Alemanha nazista levou Guimarães Rosa a questionar a cultura alemã. Ele viveu um confronto entre dois mundos, o de Goethe e o de Hitler”, observa. Fatos da vida íntima ou opiniões mais pessoais sobre a postura do governo brasileiro diante da Guerra não aparecem nos textos. Nem nada que comprove histórias que se contam que Rosa e sua esposa, na época, ajudaram judeus a fugir da Alemanha. Nada de revelador ou indiscreto. Apenas as belezas do mundo que o escritor criou em sua literatura. Descreve paisagens, as mudanças das estações, os movimentos dos animais, anota o nome de plantas, copia palavras e expressões da língua alemã e outras da região. Os constantes ataques e bombardeios à Alemanha são sempre anotados no diário, na maioria das vezes com a palavra alarma, se referindo ao alarme que soava na hora das bombas. Viagens à Itália As duas cadernetas italianas serviram de tema para dois trabalhos acadêmicos já concluídos. O mais antigo é da professora Maria Neuma Cavalcante, da USP, que, em 1997, preparou o material das duas viagens de Rosa à Itália para publicação. O escritor realizou por dois anos consecutivos uma viagem com o mesmo roteiro, passando pelas principais cidades italianas. As cadernetas trazem observações sobre as paisagens, os costumes e a fala dos italianos, além dos cardápios de restaurantes pelos quais passou. O pesquisador italiano Gian Luigi De Rosa, do Istituto de Studi Latino Americani (Isla), desenvolveu trabalho similar ao de Neuma, comparando os textos das duas cadernetas. As viagens à Itália aconteceram quando Guimarães Rosa trabalhava no consulado brasileiro em Paris, França, nos anos de 49 e 50. O percurso das viagens são quase idênticos, partindo de Milão e passando por Veneza, Florença, Roma, Nápoles e pela Costa Amalfitana. Os dois pesquisadores observaram a diferença entre o teor das anotações das duas cadernetas. “Na primeira, Rosa escreve como um mero viajante, que fotografa tudo que vê. Na segunda, é mais criterioso com o roteiro da viagem e mais elaborado nas anotações”, explica Neuma. Continente Multicultural 45


REPRODUÇÃO

Trechos 24/11/1939, Alemanha “Seria como se fossem dois céos estrelados: o de cima e o de baixo. Um preto, outro azul. E a gente no meio do céu, perto de estrelas ridículas.” 09/11/1941, Alemanha “Bombas: vi a luz branca, terrível, dos trabalhos de dessoterramento, na Hagemannstrasse e na Duntzigerstrasse. Medo... Estava de auto, com Ara. Havia um incêndio, na Hauptbahnhof. Um gato zunzado: pêlo feio como uma escova. A cauda como a cauda de uma raposa.” 25/10/1949, Itália “Estamos em Santa Lucia. Em frente do restaurante Zi`Teresa.

Acima, dois alemães sentados em um banco de praça onde se lê “Proibido para judeus”

Luigi De Rosa observa que as anotações sobre regionalismos da língua italiana e sobre os cardápios dos restaurantes por onde passava são uma constante nas cadernetas. “Os regionalismos chamam a atenção até de italianos como eu. Há, por exemplo, uma cuidadosa seleção de diferentes palavras usadas em regiões diversas para se referir a prostitutas”, exemplifica. Assim como no diário alemão, as cadernetas de viagem são repletas de desenhos simples feitos pelo escritor e pontuadas por símbolos que Guimarães Rosa gostava de usar. Com por exemplo o M%, que surge em várias páginas sem nenhum significado aparente. Sertões e cartas Da USP, que possui no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) o maior número de manuscritos de Rosa, também saíram trabalhos de diferentes pesquisadores sobre a caderneta da viagem aos sertões e as correspondências com os três

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Rosa passa nos textos um sentimento de grande decepção diante da barbárie nazista. Com pesar e ironia, comenta um simples passeio no parque, num dia ensolarado, onde constata o preconceito dos nazistas, ao proibirem a entrada de judeus em áreas de lazer


O mar, diante. Tráfego de automóveis na rua. Uma bahia, ou enseada, ao Norte, com suas luzes. Estrelas no céu. A lua vermelha, de brasa, enorme, está baixa, quase afundada no mar, na ponte de Terra (Possillipo?). Parece uma mulher numa rêde.” 21/09/1950, Itália “Um navio entra, do Norte, suspenso de sua fumaça grande, curva, escura. Ele é branco (ou, pelo menos, claro). Sumiu-se agora, atrás do Burgo do Ovo. Sua fumaça, sozinha, perdura, se fazendo cordilheira (...) Lua no céu, lua no dia. Sobre as nuvens imensas que limitam o mar. Lua que é uma simples branca meia-hóstia, recortada da mesma matéria das nuvens. Os cachos de uva azul, pesados na parreiras. Posillipo! Que côres de nuvens, que azuis! (...) Que delicados rôxos! O mar parece um leite. E o rosa... (de outra parte do céu) é projetado nessa lisura trêmula, leitosa.” (Trechos reproduzidos segundo a grafia presente nos diários de Guimarães Rosa)

tradutores. A viagem aos sertões é tema de um trabalho de Crítica Genética, que encontrou nos manuscritos diversas anotações usadas no romance e em contos do escritor. Entre elas estão relatos de conversas com o vaqueiro Zito, que deram origem a histórias dos livros Tutaméia e Estas Histórias e a trechos de Grande Sertão: Veredas. Segundo a professora Neuma Cavalcante, o material da viagem aos sertões se diferencia do diário e das cadernetas italianas, pois foi quase todo datilografado por Rosa antes de sua morte. Os demais são manuscritos feitos à mão. A viagem aos sertões durou dez dias, acompanhada por um séqüito de 52 vaqueiros. O material escrito pelo autor que está no acervo do IEB é uma caderneta de 30 páginas e outras cem folhas datilografadas. A correspondência com o tradutor italiano é, desses, o único material que já foi editado, numa publicação acadêmica esgotada. Carlos Costa é jornalista

Miguilins dão vida nova à obra de JGR

A

s crianças, de sensibilidade e percepção aguçadas, impregnam a ficção de Guimarães Rosa. Há cerca de cinco anos, uma prima em segundo grau do escritor, Calina Guimarães, 76 anos, começou um trabalho de ensinar a meninos e meninas de Cordisburgo – cidade natal de Rosa, interior de Minas Gerais – quem foi o escritor e algumas de suas histórias. Era o primeiro passo para a criação do grupo Contadores de Histórias Miguilim, hoje com 50 crianças e adolescentes, que se apresentam pelo Brasil narrando trechos da obra do autor. “Foi tudo meio casual. Minha casa sempre chamou atenção de quem passa, principalmente das crianças. Às que entravam, eu sempre oferecia um lanche, conversava, e geralmente perguntava se conheciam Guimarães Rosa; ao que respondiam que não. Aí eu começava a contar tudo”, lembra Calina. Informalmente, o grupo estava sendo criado. Em 1995, com ajuda da prefeitura da cidade, ela começou a reformar o Museu Casa de Guimarães Rosa e resolveu convidar os meninos mais afiados para contar histórias aos visitantes. “Hoje, tem gente que chega lá, atrás dos meninos. Eles também são chamados para festas, seminários e outros eventos em São Paulo, no Rio de Janeiro e outras cidades”, comemora. Atualmente, 30 crianças já receberam a formação e outras 20 estão aprendendo a contar histórias. Apresentam-se em qualquer tipo de evento, desde que devidamente convidadas e transportadas. Cobram R$50,00 por apresentação, cada contador, além de transporte e hospedagem, e dão impressionante vida aos textos do escritor, que parecem ser não muito apropriados para a leitura oral, mas se transformam na fala natural dos meninos. Continente Multicultural 47


ANTOLOGIA

Lucila Nogueira OS ESTRANGEIROS Os que chegam de longe quem sabe adivinhar quem vê a sua dor Na língua emudecida Quem sabe a sua história os golpes que sofreram quem sabe porque veio uma face longínqua rios mares e ilhas sonâmbulos seguindo mimetizados do espelho reclinado Os que chegam de longe o que buscam no cais quem os cobre na noite exaustos no castelo

os estrangeiros seu coração emparedada a sua voz amargurada de onde vem pressurosa desde além vão cruzando a solidão no magnetismo sob o sol os estrangeiros e no partir quem os deita de Merlin?

Quem lhes dá filhos quem povoa o seu sonho quem lhes canta canções e adormece em seu colo Quem lhes diz belos versos em papéis que eles guardam quem por eles espera e os reboca em silêncio Quem lhes toca na mão e interfere em seus sonhos quem lhes dá um romance asas conchas e luz Quem ama de verdade sonhando em seu sotaque quem busca uma raiz para ajudá-los Os que chegam de longe O que trazem no peito Regressarão na data nunca mais voltarão

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para seu desejo no menir quem lhes dá beijos sem sentir? e os escreve ao voltar passarela quando vão? quem fica íntimo com a voz de presente cristais de sal? os estrangeiros onde eles vão melhor que o vinho em seus corações? são sozinhos? ao viajar? ou sem aviso para o seu lar?


NA TÁVOLA REDONDA A sombra do camelo enfrenta uma proposta nossos gestos em torno de uma távola plataforma vulcânica caminhamos os três e o coração tem gosto

ARQUIVO PESSOAL

distante ou perto

no deserto de oceano são teclas de piano redonda do sonho por sobre a concha doce e estranho não nos abandona

AS BRUXAS E SEU MUNDO O Graal se encontra mas não se procura Cada um deve morrer três vezes antes de descansar. O corpo escreveu a palavra antes a atravessou o dito e o interdito como o silêncio dócil de Essomeriq em Honfleur ou o sorriso ambíguo da Monalisa pintado no rosto azul de Paraguaçu. Moro no mar cinzento do penhasco escuro poções de esquecimento sobre o vidro te esperam na almofada de cetim. Entre brumas se escreve o vaticínio que há de fazer-te escravo aos meus desígnios enquanto satisfaço os teus caprichos entre brumas o monte e o precipício as bruxas e seu mundo desde o início.

Lucila Nogueira é poeta, crítica e tradutora. Ensina Literatura Portuguesa, Brasileira e Teoria Literária na UFPE. Publicou Almenara (Civilização Brasileira, 1979), Peito Aberto (José Olympio, 1983), Quasar (Cepe, 1987), A dama de Alicante (Oficina do Livro, 1990), Livro do Desencanto (Saveria, 1991) e Zinganares (Árion, Lisboa, 1998). Dedicou-se à elaboração de uma tetralogia ibérica, em que realiza um diálogo intercultural ibero-brasileiro, a partir das raízes galegas e lusitanas dessa autora carioca/pernambucana. Ainadamar (Oficina do Livro, 1996), Ilaiana (Pacífica, 1997), Imilce (Pacífica, 1999) e Amaya (Bagaço, 2001) integram essa tetralogia, sendo que o último já aponta para a nova proposta em sua trajetória que trabalha a fusão dos gêneros, fazendo atuar a lírica na narrativa e a narrativa na lírica, mesclando com ambigüidade as figuras do autor/narrador/personagem. A Quarta Forma do Delírio – do qual fazem parte os poemas inéditos aqui publicados – foi produzido quando esteve como escritora residente na Casa do Escritor Estrangeiro de Saint-Nazaire, na França (1999), projeto do qual participaram no Brasil Milton Hatoun e Caio Fernando Abreu. O livro reúne poemas, contos, crônicas, cartas e citações. Sua índole fragmentária resgata algo da estrutura dos antigos diários, devendo ser publicado no Brasil ainda este ano.

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ILUSTRAÇÃO: LIN

CONTO

Reunião

de ternuras e afetos Para Osman Lins, no segredo do sangue

S

Raimundo Carrero

audade antiga, remoente e melancólica, de um rosto no tempo tão remoto que se tornara difícil localizá-lo – antes da vida, muito antes da vida, de sua inquieta vida: um rosto que existia para todos, mas que para ele era impreciso. Aliás, não apenas impreciso, vago, distante: inexistente. Algo que lhe provocava dor e agonia. Sem qualquer espécie de esperança. Vitório pensava tocando os dedos no espelho. Em busca do rosto – adivinhando olhos, testa, boca, nariz, queixo. Dentes? Alvos e brilhantes, os dentes? Procurando contornos, sinais, marcas. A cor dos 50 Continente Multicultural

olhos, as maçãs da face, os traços das sobrancelhas. Os dedos, no entanto, corriam apenas na superfície lisa e fria, sem encontrar formas e saliências. Ela, a mãe, tinha um rosto feito o seu, no espelho? Com certeza, tinha mãe. E, se era assim, a mãe também tinha um rosto, ou não? Tarefa cruel e incessante: procurar o rosto da mãe. Encontrá-lo, nem fotografias nem pinturas. As mulheres o cercavam: tias, empregadas e vizinhas que cantavam preces e novenas; e que diziam no soluço da noite dorme, menino, dorme. Tia Norma e Tia Dora eram destinos e não apenas nomes; a primeira, luz e rotina; a segunda, lamentos e lágrimas.


Daí porque lhe vinha a certeza de que não era apenas saudade, mas inquieta procura, busca, terna busca e desesperada procura, de quem necessita descobrir a mãe. Pois não foi assim desde que conheceu as desventuras do mundo? Aquelas mulheres estavam sempre ali, prestativas e solícitas, derramando-se em atenções, criaturas de amor e de carinho. Criança ainda, procurava a mãe na luz do dia e na treva da noite. Muito, muito cedo, na intuição do sangue, percebeu: ninguém lhe disse, não ouviu uma palavra: no entanto, observava, nenhuma daquelas mulheres era, em verdade, a mãe. E era certeza definitiva. Podia jurar na solidão da infância: a mãe nunca cruzou aquelas portas. Jamais se debruçou sobre o berço. Sentia o carinhoso roçar dos longos cabelos femininos no pequeno corpo frágil, a delícia das vozes sussurradas nas noites de febre alta, o afago de braços ternos nos soluços magoados, as cantigas encantadas nas tardes de calor voraz, carícia de beijos úmidos nas manhãs de muita chuva – reunião de ternuras e afetos. Descobria no segredo da alma: nenhuma delas era a mãe. Absolutamente. Faltavam-lhes o cheiro, a música nos cabelos, a alegria no sangue, a inquietação na pele, a doçura na voz. Percebeu o abismo, e que profundo abismo, entre aquelas mu-

lheres que o cercavam e a ausência da mãe. Sentimento de vento noturno soprando numa casa que não tivesse telhado nem caibro. Só noite. Pode-se viver com uma ausência? Vitório perguntava-se, e tanto perguntava que cravara convicção, sim, uma ausência que nem mesmo fora presença. Na juventude, chegara a compor um verso: Estou só: Eu e tua ausência. E celebrava a ausência da mãe. De quem não conhecera sequer a face. Não vira sorrisos nem gestos. Devia ser tão bela quanto suave. Disseram-lhe na infância que ela fora, verdadeiramente, uma dessas mulheres tão bonitas que se transformam em mimo. Delicadeza de azul celeste. Plena flor de açucena. Maciez de rosa orvalhada. Para os mais exigentes e óbvios: deusa encantada de mistérios. Mas tudo isso lhe provocava mágoa, mágoa e leve irritação – mãe é para o altar e não para os olhos. E por que não existia dela uma só e única fotografia? Ainda que fosse remota fotografia do passado, amarela, com traços brancos, esfumaçada, quebrada, feito vira em muitos lugares, contudo que fosse fotografia. É possível um menino crescer, na consciência de pernas e braços, de cabelos escorrendo pelos ombros, sem saber a forma do nariz da mãe? Todo menino tem uma mãe, não tem? Perguntara ao pai, os dois sentados no terraço, preenchendo brisa da tarde. Tem, o pai respondera. Demonstrava mesmo algum tipo de irritação quando ele, Vitório, voltava ao assunto. E todo pai tem uma mulher, não tem? Tem, o homem tossira, impaciente. E por que nós dois fomos escolhidos para carregar ausências? O pai beijou-lhe na face, Vitório acrescentou acho que um pássaro abriu, com o bico, uma chaga no meu peito. Bem em cima do coração. Sou ape-


nas mágoa. Os dois continuaram conversando e o menino insistia sempre em saber por que não havia fotografias. O homem foi definitivo dizendo porque ela pagava promessa dessas desesperadas. Desesperada? Mãe de doçura não tem desespero. Vitório sentiu o grito na garganta, estrangulado por uma mera frase de menino aflito. Uma palavra? Não queria gritar com o pai. Só o sentimento de ofensa, sem raiva, sem ódio, essas coisas de criança. Está bem, ele acrescentou, está muito bem, já chegou a hora de lhe dizer a verdade, você está taludo demais, pois que suporte. E falou. Nevinha, eis o nome da sua mãe, Maria das Neves, Mariíssima, para o pai, seu avô, Mariazinha, para a mãe, sua avó, havia até quem a chamasse de: Floco de Neve, tão encantadora figura. Assim, bela de calendário, estampa de beleza, entretanto, tanta beleza afastava os pretendentes. Beleza de ar52 Continente Multicultural

rancar susto. Beleza terna, suave, meiga. Dava medo tocá-la. Ele mesmo, o pai, confessava, ao invés de admiração, sentia medo. Essa beleza tem abismos, repetia cheio de amor. Por isso, Nevinha, Mariíssima, Floco de Neve foi ficando só. O sorriso, semelhante ao cântico dos pássaros, começou a sumir. Os homens todos enfeitiçadamente apaixonados, e sem coragem de dizer te amo. Ela enfrentou soluço e solidão, lágrimas no bordado, vazio de alma encantada. Queria casar, queria muito casar – casar e casar igual a todas as outras amigas, como todas as mulheres daqui e dos confins. Mandou buscar feitiços, meizinhas, banhos, orações. O mundo contrariado. Resolveu fazer promessas. Dessas que os santos entendem, mesmo os santos meninos. Jurou, e jurou cruzado nos dedos, disse o pai que ouvira a confidência no sacrossanto quarto de dormidas e investidas, que se achasse um marido por aqueles dias, jamais permitiria que o rosto fosse exposto em fotos, ela que nunca tirara uma foto, nem mesmo para ver o passarinho. Não podendo ostentar feiúra, se contentaria com a abstenção da beleza. Da vaidade, sobretudo. Mostraria seu verdadeiro rosto, celebrado nas sombras do lar, apenas ao marido. Para sempre. Único e definitivo. Esse único e definitivo, para sempre, meu pai, é o senhor? Viu uma nesga de vaidade saltando nos olhos do homem. E poderia ser de outra forma, meu filho? Não é pergunta abusada demais? Vitório se desculpou, não queria enredar suspeitas. E pai mesmo só aceitava aquele, o senhor é o forte sangue que carrego nas entranhas. Fico satisfeito, acrescentou o pai, mas me causou muita agonia enfrentar os olhos de sua mãe, menino. Venci o medo, casei-me. E revelou que antes da festa do casamento, pela primeira vez, Mariíssima procurou-lhe para dizer, segura e decisiva, que as bodas não teriam fotógrafo. Conversaram manso, discutiram. Faça festa, comemorações, celebre, ela estava falando, só não bata foto. O homem concordou. O abismo da beleza estava se aprofundando. A família inteira lamentava. Houve sinos, cânticos, banda de música – entretanto, parecia que a festa toda tinha sido feita de silêncio. O constrangimen-


cia no sangue? Vou lhe dizer uma coisa: o senhor devia ter batido as fotos nem que fosse escondido. Foi muito injusto comigo. Sossegue, meu filho. Sabe do que ela morreu? De beleza. Beleza demais para caber numa fotografia. Agora, ali sentado diante do espelho, Vitório estava procurando um rosto. Que não era o seu, decididamente. Até porque não era belo, um homem belo, mas um ser convencional. Não parecia ter um único traço da mãe. Ninguém lhe falava em sutilezas nos olhos, nas curvas dos lábios, na ternura da boca. Jamais fora um lírio com medo do vento.

ALCIONE FERREIRA / DP

to da não-foto. Os convidados contrariados. Casamento sem foto é sinal de coração vazio, diziam, tem medo do registro, e, acrescentavam, quer negar a própria sorte. Pelo contrário, fotografia prende a sorte, crava figura no papel, vou viver para sempre em liberdade, Maria das Neves contava, arrastando o vestido de noiva pelo terraço da casa, alargando sorriso no rosto, um sol de verão encantado e resplandecente. Você é o corpo da felicidade, disse-lhe o marido, um lago de alegria, respondeu-lhe. Fizeram silêncio. Os dois – pai e filho – se olhando, conversando na suspeição das palavras. Naquela hora da tarde, o sol desaparecia, deixando as sombras se derramando pelo terraço, criaturas vivas de lembranças e de esperas. Cada um respeitando o sangue entristecido do outro. Ouviam apenas arrastados de chinelos e tosses. Na gravidez, Das Neves se transformou num lírio com medo do vento. Magra e bela, de uma beleza que crescia e atormentava, o pai falando: voz e brandura. Os meses passavam e ela era mais do que uma mãe: suave forma de sorriso, encanto de fragilidade, meu filho, uma maneira tranqüila e doce de dizer amor. O senhor, meu pai, viu o amor? E ele respondendo: O amor, meu filho, eu vivi com o amor, um corpo que se pode beijar e acariciar, com certeza. Pois eu tenho é inveja, meu pai, porque se existisse uma foto, pelo menos o amor eu podia carregar na carteira ou embaixo do travesseiro, Vitório falava, magoado. Menino, a tristeza, que já não era apenas tristeza, criou teias quando a sua mãe morreu. Morreu? Minha mãe morreu? O susto não cabia no corpo, feito recebesse a notícia pela primeira vez. Sim, você sabe, sua mãe morreu quando você veio ao mundo. Seu choro se multiplicava no silêncio dela. Um silêncio que se adensava e torturava, o silêncio para o jamais e o nunca. Sua mãe morreu no exato instante em que você nasceu. E chorou. Ainda hoje choro, meu pai, ainda hoje. Quando estou calado, estou chorando. E quando estou falando, a minha voz lacrimeja. Quando estou chorando, sou um rosário de prantos. E quando estou soluçando, sou um enxame de tormenta. O senhor sabe o que é carregar essa ausên-

Raimundo Carrero é autor de 11 livros, entre eles As Sombrias Ruínas da Alma (Jabuti, 2000, de melhor volume de contos e crônicas do Brasil). Conquistou, ainda, os prêmios Associação Paulista de Críticos de Arte e Machado de Assis, com o romance Somos Pedras Que Se Consomem, 95, e Revelação do Ano (87), em Porto Alegre, RS, com Viagem no Ventre da Baleia. Em 1990, a novela A Dupla Face do Baralho foi traduzida para o inglês pelo professor Arthur Brakel. A nova edição de Sombra Severa, publicada pela Iluminuras, tem recebido resenhas da Veja, Folha de S. Paulo (caderno Mais), Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e destaque da revista Cult. É, atualmente, colaborador do Diario de Pernambuco e Assessor de Comunicação da Emlurb. Continente Multicultural 53


AnĂşncio

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AnĂşncio

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CRÍTICA Na obra do Frei Manuel Calado, João Fernandes Vieira vê a imagem de Santo Antônio, exortando-o a ir para a guerra contra os holandeses

O Valeroso Lucideno:

um caso de arqueologia literária O Valeroso Lucideno, de Frei Manuel Calado, é uma intrigante obra em prosa e verso que beatifica João Fernandes Vieira na expulsão dos holandeses Affonso Romano de Sant’Anna

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ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

J

á está passando da hora de a universidade e a crítica acordarem e começarem a estudar uma das obras mais singulares e ricas do período colonial. Refiro-me a O Valeroso Lucideno, escrita pelo frei Manuel Calado, conhecido também como Manuel Salvador e, às vezes, como frei Manuel dos Óculos. O Valeroso Lucideno é uma intrigante obra em prosa e verso, publicada geralmente em dois volumes, descrevendo a luta de portugueses e brasileiros contra o domínio holandês (1630-1654) em Pernambuco. Embora haja aí louvores a vários heróis, como o negro André Vidal de Negreiros e o índio

Felipe Camarão, o destaque é para João Fernandes Vieira – o Lucideno. No entanto, mesmo Maurício de Nassau – o adversário holandês – é tratado com respeito e admiração. O autor, frei Manuel Calado, nasceu em Portugal (Vila Viçosa, 1584?), viveu no Brasil por 22 anos (1624-1646?) e, de volta ao seu país, aí expirou em 1654. No Brasil, participou de muitos combates contra a Holanda, num misto de capelão, negociador político e correspondente de guerra. Em sua curiosa biografia destaca-se o fato de que foi confessor de Calabar. No Cap. II do Livro Primeiro, por exemplo, relatando os últimos momentos daquele que uns consideram traidor e outros, herói, conta a maneira atroz como ele foi garroteado e esquartejado. Por outro lado, Manuel Calado tinha trânsito e mobilidade entre os luso-brasileiros e os holandeses, mantendo uma certa amizade com Maurício de Nassau, com quem conversava em latim. O Valeroso Lucideno foi escrito entre setembro de 1645 e julho de 1646, durante a guerra testemunhada por Manuel Calado, e quando foi publicado, em 1648, em Lisboa, o conflito ainda não havia terminado. Era propósito de Manuel Calado compor uma segunda parte dessa epopéia histórica, o que não se verificou. Neste ensaio, interessa-nos, além de uma revalorização literária, trazer à tona uma obra importante para o conhecimento dos enlaces e desenlaces da cultura luso-brasileira no período colonial. Essa obra, do ponto de vista historiográfico, fornece elementos para se compreender melhor as complexas relações entre o Brasil, Portugal, Espanha e Holanda durante o domínio espanhol. Havia um verdadeiro jogo de xadrez nessas relações e o sistema de alianças se modificava constantemente. Há de surpreender o leitor, por exemplo, o fato de Maurício de Nassau ter celebrado jubilosamente ao lado dos brasileiros e portugueses, em 1641, a aclamação de D. João IV (Cap. II, Livro Segundo). Nessa ocasião, mandou o governante holandês construir teatros de madeira para “representar comédia em língua francesa”, “escreveu cartas a todos os homens mancebos e bons cavaleiros”, convidando-os para “jogos de canas”, “escaramuças”, e fez soar as trombetas, disparou “toda a artilharia assim da terra, como do mar”, e com a presença de “lindas damas, e as mais graves mulheres, Holandesas, Francesas e Inglesas, que em Pernambuco havia”, realizou torneios e bailes em honra ao rei de Portugal. Continente Multicultural 57


O mítico personagem Antônio Camarão, índio parceiro dos portugueses, teria feito questão de degolar o chefe dos índios inimigos

Por outro lado, aqueles que viriam se bater contra o príncipe holandês eram pessoas que também privaram de sua intimidade. O autor mesmo diz que “João Maurício tinha três grandes amigos Portugueses com os quais de contínuo tratava: a saber, um Frade chamado Frei Manuel do Salvador, e o segundo João Fernandes Vieira, e o terceiro Gaspar Dias Ferreira”. No flanco externo, nas relações internacionais, as nuances não eram menores. Perceberá assim o leitor mais claramente que a invasão do Brasil por parte dos holandeses foi mais um resultado da querela entre Espanha e Holanda. Brasil e Portugal eram peças no meio do conflito. Por isto não estranha que, em oposição aos espanhóis que os dominavam, os brasileiros vissem os holandeses às vezes

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com bons olhos. Sendo aquele um conflito colonial, possessões portuguesas na África foram também invadidas e passaram por semelhantes provações. Isto torna, por exemplo, a história do Nordeste brasileiro mais próxima da história de Angola; e Calado narra em vários trechos a conseqüente circulação de tropas lusas, holandesas e espanholas entre Europa, África e Brasil. Ademais, aquele era um conflito internacional peculiar, porque havia mercenários franceses, ingleses e italianos, esses vindos de Nápoles, reino ligado à Espanha. Revalorização literária Quando um autor como Manuel Calado, sacerdote culto, se dispõe a escrever, ele mobiliza um certo acervo de conhecimentos retóricos que vinha


ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

dos clássicos gregos e romanos. Mas, curiosamente, ele não obedece, nem se preocupa em se encaixar nos gêneros literários existentes. Dá-se uma liberdade de composição, transitando entre vários gêneros, como o faria um autor moderno ou pós-moderno. Ele tinha vários objetivos. E um deles, bastante literário, era delectare (deleitar) e movere (emocionar) seu leitor. Por isto, não se limitou a fazer apenas uma obra histórica. Teve uma intenção literária, que não se conteve na prosa e extravasou para a poesia. Ao escolher a poesia como um dos suportes de seu texto, quis claramente, como revela em vários trechos, introduzir um elemento de sedução do leitor. Já não se limitava a relatar, a ser apenas o cronista – conforme destacou Capistrano de Abreu. Já não era apenas o correspondente de guerra, como assinalou Charles Boxer; seu texto já era algo mais que um depoimento ou esforço para manter o moral da tropa, conforme assinalou José Antônio Gonsalves de Mello. Com efeito, no Cap. II do Livro Quarto, interrompendo a narrativa e introduzindo cerca de 15 páginas de poesia em oitava rima camoniana, Manuel Calado adianta que vai dizer em poesia o que já disse em prosa, porque “quero torná-la a escrever

amostra da estratégia literária de Manuel Calado. Esse trecho poético não agrega dados novos à narrativa da guerra. Também não é isto que ele quer. É uma paráfrase da parte anterior em prosa. Mas como uma voluta barroco-poética, dobrando-se sobre si mesma, redizendo o já dito, ornamenta, seduz e qualifica os eventos. Narra como o seu herói – João Fernandes Vieira – ao dormir, teve um sonho em que Santo Antônio lhe apareceu urgindo para que fosse batalhar contra o “fero Holandês” ou os “feros Belgas carniceiros”. Dessa empreitada participa outro herói da restauração pernambucana – André Vidal de Negreiros, que Varnhagen considerava ser mais importante que o Vieira (ou Lucideno). A luta é das mais terríveis. Os holandeses ficam acuados em sua “casa forte” incendiada, e todos os índios que combateram ao lado dos holandeses são degolados, tendo o mítico Antônio Camarão, índio do lado luso-brasileiro, feito questão de degolar, ele mesmo, o chefe dos índios inimigos. Sobre as ruínas, o fogo e os cadáveres, arrastam-se “duzentos e cinco prisioneiros”, enquanto fugiam pelos matos, “os mais (que) por mãos de negros foram mortos”. Observa-se nesta parte um efeito recorrente em outros trechos da obra – a invocação à Virgem.

O Frei Manuel Calado tinha vários objetivos, um deles, bastante literário, era delectare (deleitar) e movere (emocionar) seu leitor. Por isto, não se limitou a fazer apenas uma obra histórica em verso, para mais alívio, e entretenimento dos leitores”. Já no Cap. I desse Livro Quarto, havia desenvolvido dez páginas de poesia “para que ao curioso leitor seja mais agradável o que quero escrever por maior em verso, refrescando na memória a curiosidade da poesia, a que no princípio de minha mocidade fui algum tanto inclinado”. Afasta-se, portanto, de uma maneira declarada das obrigações referenciais do historiador e do cronista da guerra. Está seguindo o preceito clássico de “deleitar” o leitor, de seduzi-lo, de recrear seu espírito. Na verdade, está usando também a poesia como um recurso barroco persuasivo, no plano emocional. O mencionado excerto, entre as páginas 50 e 64, do Cap. II, Livro Quarto, serve-nos como uma

Como diz Wilson Martins, “Frei Manuel quer escrever o que parecia impossível a Boileau, isto é, uma epopéia cristã”. E transformando a “Virgem Maria em décima Musa”, roga à santa que, se favorecido em sua inspiração, poderá cantar mais “docemente”, “em voz suave, com saudoso acento, agudo e grave”. Estrela matutina é tempo agora/ Que a cítara me deis, para que cante/ Vossos favores, cristalina Aurora,/ Que do incriado Sol vindes distante;/ Se me favoreceis, Virgem Senhora,/ Das escuras quadrilhas triunfante,/ Cantarei docemente, em voz suave,/ Com saudoso acento, agudo, e grave. Feita essa invocação e descrita a batalha, esse trecho encerra-se com uma volta à Virgem. Nesse e noutros momentos da obra de Calado há uma ferContinente Multicultural 59


ILUS TRA ÇÃO :

ZEN

IVAL

“O Valeroso Lucideno” João Fernandes Vieira, em desenho de Zenival

vorosa utilização da Virgem, que “pólvora e balas dava aos portugueses”, numa guerra não só econômica, mas religiosa contra os holandeses protestantes e os judeus. Poder-se-ia dizer, dentro da retórica clássica, que o texto de Manuel Calado, como um louvor contínuo aos reis e governantes portugueses, exercita, sobretudo na figura do herói José Fernandes Vieira – o Lucideno – o atributo retórico da sublimitas (sublimidade). Exagerando suas qualidades e virtudes, inventando-as até, angeliza a figura do soldado e beatifica suas façanhas, mitologizando seu personagem. A intencionalidade literária e artística do autor, aliás, pode ser assinalada já no próprio título da obra. Não usa um título objetivo, referencial, explícito, mas recorre a uma imagem, a uma metáfora. Não a intitula, por exemplo, A Vida de João Fernandes Vieira ou João Vieira e a Guerra Contra os Holandeses. O título intensifica o caráter alegórico de sua escrita. O que significa Lucideno? Que personagem foi esse? Curiosamente, não há em nenhum dos estudos feitos sobre a obra e nem mesmo dentro dela uma indicação sobre o sentido do termo Lucideno. Que herói seria este, a que mitologia pertenceria? Há uma conotação evidente com luz e lucidez, o que angeliza ainda mais o personagem. Utilizando, de uma maneira livre e ousada, o modelo da epopéia, o Livro Primeiro inicia-se com uma Aclamação que contém a “proposição” e a “invocação” em estilo clássico camoniano. A esse propósito, Wilson Martins chega a fazer um paralelo: “Onde Camões procurava mostrar

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o que havia de histórico na epopéia, Frei Manuel Calado mostra o que há de épico na História”. E citando trechos, chega a dizer também que “na descrição dos combates seria injusto dizer que Frei Manuel é inferior a Camões”. Assinale-se ainda que na “proposição” e “invocação”, ao invés de invocar entidades pagãs como outros épicos, ele, sacerdote, revela que, “tendo a intacta Virgem por Mecenas”, não tem o que invejar em outros bardos – “nem de Homero invejo a fértil veia”. De resto, apresenta-se nessa parte introdutória como “Escritor”, com letra maiúscula: “Este humilde Escritor a vós se achega”.


Que herói seria este Lucideno, a que mitologia pertenceria? Há uma conotação evidente com luz e lucidez, o que angeliza ainda mais o personagem Mescla de recursos É de se destacar que nos textos que guarnecem a introdução do livro, conforme a tradição, vários autores fazem versos de louvor a Manuel Calado e sua obra. Nos sonetos introdutórios feitos por outros em louvor do autor de O Valeroso Lucideno, este é comparado ora a Tito Lívio, ora a Tácito, mas – reforçando a intencionalidade literária da obra – também a Homero, Camões, Petrarca, Garcilaso e Ovídio. Portanto, mais que um modelo historiográfico, existe um modelo poético encaminhando o texto em prosa e poesia. A maestria poética de Frei Calado não consiste em tentar inserir em meio ao seu relato um modelo camoniano simplesmente, como o fizeram, comprometendo suas obras, Bento Teixeira (Prosopopéia) e Santa Rita Durão (Caramuru). Ele tenta formas métricas outras, como a demonstrar quão livre se sentia em sua composição heterodoxa. Ele tem também uma clareza de linguagem e uma agilidade narrativa que chegam a ser raras dentro do período barroco. Assim é que no Livro Quinto mescla versos de seis sílabas com decassílabos: Os Belgas assanhados/ Morrem todos, escapam só com vida/ Dois ligeiros soldados,/ Que a morte embravecida/ Os fez virar as costas de corrida./ Quinze Brasilianos/ Também ficaram mortos neste assalto,/ Os mais temendo os danos,/ Dando um, e outro salto,/ Se arrojam (por salvar-se) no mar alto. Já no início desse Livro Quinto, fizera algo insólito compondo também em versos de seis e dez sílabas poéticas, misturando português e latim. Às vezes as estrofes podem estar em latim, outras vezes em português, ou numa mesma estrofe exercitar rimas em português com rimas em latim: Pois o Holandês pretende/ Tirar-me a vida, ou ofuscar-me a Fé./ Quid Regis Israel, intende:/ Qui ut

ovem ducis Joseph/ Et ne in furore tuo arguas me.// Porque o efeito não chegue/ O que o perverso Herege determina/ E todo a ti me entregue,/ Aberta a mão benigna/ Domine ad adjuvandum me festina. Se à primeira vista O Valeroso Lucideno chama a atenção pela insólita utilização da prosa e da poesia, outros elementos comprovam uma mescla estilística, mostrando a despreocupação do autor em se encaixar nos delimitados gêneros literários da época. Pode-se, neste sentido, localizar no texto, por exemplo, a inserção de autênticos sermões. É como se o autor, tentando de toda forma persuadir e deleitar seu leitor, apelasse para outros recursos formais que lhe eram tão familiares. Neste sentido, o primeiro capítulo (“Da origem da destruição, e ruína de Pernambuco”) lembra a estratégia encontrada no sermonário da época, e tantas vezes usada por Padre Antônio Vieira. O livro começa como se fosse um sermão, parafraseando a Bíblia. Já que o autor destacará a figura militar e heróica de João Fernandes Veira, biblicamente começa narrando a história de um outro militar e líder, o israelita Josué, a quem chama também de “Capitão”, em busca da Terra Prometida. Essa técnica retórica, conhecida como comparatio (comparação), tem como objetivo elevar o personagem modelo, mitologizando-o. Só que a situação histórica aqui é de algum modo invertida. O “terreal paraíso”, segundo Calado, já existia em Pernambuco antes da chegada dos holandeses, e a missão do novo Josué seria reconquistá-lo. A estratégia estilística da utilização de sermões se repetirá outras vezes, como nas abertura do Livro Segundo e no Livro Quinto. E nelas o autor exercita a inventio (invenção), a dispositio (disposição), a elocutio (elocução) e a memória. Um dos trechos mais ilustrativos da argúcia conceitista barroca está no Cap. III do Livro Segundo no qual, tal um padre Vieira, Manuel Calado tenta convencer Maurício de Nassau de que não houve agravo algum por ter sido chamado de Vossa Senhoria pelo governador e Capitão-Geral do Brasil Antônio Teles Silva. Os habilidosos jogos que faz entre Eminência, Alteza, Majestade, Senhoria, Excelência são um legítimo exercício de silogismo retórico barroco para tranqüilizar Nassau.

Affonso Romano de Sant´Anna é poeta e ensaísta

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA

A resposta da cacula Joel Silveira

1.

Nem papai nem mamae

Não apenas curiosa, mas edificante, esta historinha contada pelo saudoso Paulo Mendes Campos: – O pintor Augusto Rodrigues viajava pelo sertão de Pernambuco quando sofreu um contratempo no automóvel – ou no carro-de-boi. Enquanto esperava, entrou numa tapera, passando a entreter a caçula de numerosa família. A certa altura, fez aquela pergunta clássica: “De quem você gosta mais? Do papai ou da mamãe?”. A resposta da menininha raquítica: “Gosto mais é de carne”.

2.

Nos, os martires

Deu no jornal: “Papa beatifica trinta mártires brasileiros”. Por que somente trinta? Por que não cento e sessenta milhões?

3.

Um seculo

Depois do impacto de Paulo Coelho, a inteligência brasileira vai levar pelo menos um século para se recuperar.

4.

Cantilena

Que Executivo! Que Legislativo! Que calor! Que fedor! Que país! 62 Continente Multicultural

5.

Nota demografica

Uma boa notícia que nos dá o IBGE: “Nos próximos anos, declinará a taxa de natalidade no Brasil”. E outra má: “Nascerão mais baianos na próxima década”.

6.

Medidas provisorias

Se somadas, todas as Medidas Provisórias decretadas até a semana passada pelo atual governo dariam folgadamente para fazer três Constituições federais e cinco piauienses.


7.

Duplas sertanejas

Se Chitãozinho e Xororó resolvessem abandonar a vida artística, só iriam restar no Brasil 2.153 duplas sertanejas.

8.

Criacao de bodes

Segundo confidenciou a pessoa de sua intimidade, ao deixar o governo o sr. Fernando Henrique Cardoso pretende retirar-se para sua fazenda, onde irá dedicar-se exclusivamente à criação de bodes expiatórios.

9.

Boa noticia!

Leio, vinda de Washington, uma notícia que me lavou a alma. Diz ela: “Pesquisas publicadas nos Estados Unidos pelo Journal of Personality and Social Psichology fazem uma relação entre temperamento e longevidade. Segundo as pesquisas, as pessoas sisudas, mal-humoradas e pessimistas vivem mais”. Viva eu!

10.

O maior romancista

Para José Sarney, Jorge Amado foi “o maior romancista brasileiro de todos os tempos”. Recomendamos ao escritor literato reler Machado de Assis.

11. 12.

Conclusao definitiva

O problema da seleção é Galvão Bueno.

O Sermao da Montanha

Num jornalão: “Banqueiros dizem que o discurso da esquerda é o mesmo há mais de um ano”. E daí? O Sermão da Montanha tem dois mil anos.

13.

Grande novidade...

Os astrônomos só agora descobriram que o Universo é chato. Chato? Chatíssimo. Joel Silveira, ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.

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REPORTAGEM

E O SEU BOM HUMOR INSUPORTÁVEL

“O profissional mais demitível da imprensa brasileira” fala de mulheres, poder e censura, e diz que não é humorista. Marcelino Freire 64 Continente Multicultural


LÔR

lhos também: “Que conselho o senhor dá pra gente?” Pedir conselho logo para o Millôr, só rindo. Ele fuzilou para os meninos: “Tenham sorte”. Millôr defende isso: “A sua sorte começa quando você nasce”. Aos vinte anos, ele já ganhava um dos maiores salários da imprensa, comprou carro, alugou uma casa para as irmãs, viajou pelo mundo. Esteve na Disney e no Egito. Já foi campeão de pesca de salmão no Canadá, sei lá. Nasceu no bairro do Méier, no ano de 1924. Seu nome verdadeiro é Milton: “Descobri, aos 18 anos, o nome Millôr na minha certidão de nascimento. A letra do homem do cartório era tão desenhada, que você lê, facilmente, Millôr em vez de Milton Fernandes”. Perdeu o pai não tinha nem dois anos, a mãe aos sete. Disse que já passou fome – de leve –, comeu pastel, morou longe pra xexéu. Lembra de tudo isso e não reclama. Costuma dizer que acorda às seis horas, “com um bom humor insuportável”. Teve muita sorte, principalmente com as mulheres – e não foi só na cama: “Começou com a minha avó. A minha vida foi cercada por mulheres. Eu devo a minha vida às mulheres. Devo a elas todo o meu sucesso”. Conquistado à custa de muito trabalho. É considerado um dos maiores intelectuais brasileiros dos últimos tempos. Jornalista, humorista, cronista, desenhista, pintor, poeta, teatrólogo, tradutor, roteirista etc. Discorda: “Humorista, eu não sou. Por acaso, o que escrevo é que tem humor. Só quem tem humor é que sabe escrever sério”. E escancara: “O humor é a quintessência da seriedade”. Recusa também o título de poeta. “Poeta é Manoel de Barros. Ele, sim, é um poeta.” E completa: “Eu só sou um cara que anda na rua”. ILUSTRAÇÃO: MIL

“Fale ou fax.” É a voz do Millôr na secretária. Millôr não está, não atende. Ou corre para atender, de repente. Simpático e boa-tarde. Parece querer dizer “Diga logo o que você quer, seja breve, pentelho”. Aqui, no Rio de Janeiro, o telefone não pára, ocupado. O Redentor não vive de braços cruzados. Consegui marcar com o Millôr. Fiz uma ponte aérea. “Você carrega algum objeto pontiagudo, senhor?”, perguntou a atendente, no checking. Carrego uma caneta. E a língua do gravador. Sexta, 21 de setembro. Dez dias depois do ataque aos Estados Unidos. Encontrei Millôr em frente à TV, no seu escritório de cobertura em Ipanema. Millôr fala rápido e giratório. Eram vinte horas e alguns minutos. No Jornal Nacional, Bush desembucha um discurso de fim de Primeiro Mundo. Millôr reclama, diz que o William não é nada Bonner, que prefere assistir à BBC de Londres. Acompanha noticiários de todo o mundo, fala inglês, francês e italiano. É considerado um dos melhores tradutores de Shakespeare. Como é que é, Millôr, traduzir o autor de Hamlet? “É só escrever melhor que ele” e pronto. Melhor que Tchecov, Fassbinder, Racine, Molière etc. Em cima do seu televisor, há a cabeça da Estátua da Liberdade. Não a prêmio, mas num pôster. Minha guerra com o Millôr começou. Por onde o fio da conversa? Onde está Wally bin Laden? Millôr dispara, sério: “Ele é o grande vilão da história. O mundo todo contra um homem só”. O americano entrou pelo cano. Quem ri por último ri amarelo. Tudo ao redor do Millôr é vermelho. Estantes, quadros, as persianas vermelhas, poltronas. Livros e revistas espalhadamente organizados. Diz que um dia chegaram uns estudantes e perguntaram para ele, verme-

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Anda e todos o cumprimentam. Millôr é boa praça. Tem um apartamento onde mora em frente à praia. Millôr é o Rio de Janeiro. É só fazer sambar três letras de seu nome. O Rio aparece sem tirar nem pôr, como um sol no Arpoador. Millôr também é Miró. É só abrir o acento. Mas nem sei se ele gosta do pintor espanhol. Na entrada da cobertura, vi um pôster de Picasso. A porta, também vermelha – não lembro – parecia a do palácio de Salvador Dalí. Um gênio. “Não gosto de ser chamado de gênio. Eu não sei fazer nada. Eu faço as coisas o melhor possível com medo de que as pessoas achem uma merda. Então talvez seja por isso que eu faço muito melhor, entende?” Fomos continuar nossa conversa em um restaurante. Foram mais de duas horas gravadas. Os garçons sabem o que o Millôr come, já providenciam o pão – “com cara de pão” – que ele gosta. “Niemeyer acabou de sair, perguntou pelo senhor”, disse o maître, no melhor humor. Acompanhe, a seguir, um pouco mais desse encontro. No final, Millôr pagou a conta. Fiquei sem graça, mas tudo bem. Sou um homem de sorte ou não sou?

O profissional Eu sou apenas um bom profissional. E quando você é profissional, você ganha com o fato de os outros serem muito ruins.

A piscina Morei no subúrbio quinze anos. Eu não tinha dinheiro para comer, comia um pastel e acabou. Eu trabalhava durante o dia, também aos sábados. Estudava à noite. Assim que terminava o colégio, eu pegava um bonde, um trem. A gente chamava isso de “piscina”. Pelo seguinte: quando você mora muito longe é assim, você chega em casa meia-noite, uma hora, duas, bate com a mão na parede e volta. Já está na hora de trabalhar de novo.

A censura Eu sempre escrevi o que quis, ninguém nunca se meteu. Fui processado algumas vezes. Pelo Newton Cruz, pela Polícia Militar de São Paulo. 66 Continente Multicultural

Sou o profissional mais demitível da imprensa brasileira. Um dia chegou um diretor novo na revista O Cruzeiro, me chamou e disse: “Millôr, eu quero que você saiba que eu te dou toda liberdade”. Eu disse: “Olha, fulano, você não pode me dar toda liberdade. Liberdade não se dá, você pode tirar. Agora, dar, você não pode, não”.

O homem Eu costumo dizer que sou um homem comum levado às suas extremas conseqüências.

As mulheres Minha avó era apaixonada por mim. A minha vida eu devo às mulheres. Começou com a minha avó. Sempre fui cercado de muito carinho. Depois conheci umas garotas quando morei numa pensão. Eu tinha 16 anos. Até hoje há mulheres que me procuram. Não é paixão passageira, não. É paixão de 20, 30 anos. Eu sou o guru delas, entende?

O poder Eu tenho horror do poder, horror. Eu não sou atraído por ser isso, aquilo. Eu não quero comprar iate, carro do ano. Eu não quero exatamente mais nada. Tenho horror à sociedade de consumo. Uma coisa que eu digo: “Eu sou indecentemente feliz”.

A literatura Faço tudo como profissional. Nunca sentei para ser escritor nem nada, não. Eu não teria a confiança, a intenção, a ambição de dizer “vou escrever agora um livro, vou sentar e escrever um romance”. No fundo, no fundo, eu acho literatura uma babaquice. Bom é viver.

O Barbeiro de Sevilha Fui amigo do João Cabral, sim. Estive em Sevilha quando ele esteve por lá. Eu que dei o apelido de “O Barbeiro de Sevilha” para ele. Também conheci o Manuel Bandeira, mas ele era muito fechado, reservado, vivia na dele.


ILUSTRAÇÃO: MILLÔR

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Estive no Recife para ver a estréia da minha peça É. Fui com uma namorada minha, na época. Ela comentou: “Como o povo tem o sotaque carregado aqui, não?”. Eu falei pra ela: “Querida, se alguém tem sotaque aqui, somos nós”.

A saúde Antônio Houaiss escreveu uma coisa interessante: “Millôr tem um orgulho da sua saúde”. Nunca fui a um médico. Se eu tiver que ir ao hospital, eu me despeço dos amigos, porque eu não vou sair mais.

A família Somos em quatro filhos. Meu pai era imigrante espanhol. Era formado em engenharia. Nossa vida era confortável. Morávamos bem. Quando ele morreu, descemos para o nível proletário. Minha mãe costurou para fora. Aí ela morreu também. Ela morreu e nos fodemos.

Os números Eu trabalhei a vida inteira e todos os dias. Talento é trabalho. Principalmente trabalho. Fiz mais de 100 peças para teatro, entre originais, adaptações e traduções. Traduzi até dialeto napolitano. Fiz desenhos. Eu devo ter uns 400 haicais. Fábulas, então, são mais de duzentas – mais do que La Fontaine. A Bíblia do Caos, que reúne 5.142 pensamentos, preceitos, máximas, devaneios, elucubrações, é só a metade do meu verdadeiro caos.

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O que eu mais gosto é tudo.

O humorismo é a quintessência da seriedade.

Quando um chato vai embora, que presença de espírito!

O sotaque

Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos muito bem.

A vida é um suicídio bem devagarinho.

No aeroporto cheio/ Eu filo/ O adeus alheio.

Marcelino Freire é escritor

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AnĂşncio

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ENTREMEZ

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tradição popular nos ensinou que São Francisco de Assis foi o primeiro a encenar um auto natalino, com os temas pastoris que chegaram até os dias de hoje. Isto pode ser verdade para a representação teatral. Conhecemos vários registros mais antigos da Cena da Natividade, todos com influências pagãs, evidenciando o interesse que tinha a Igreja da época em conquistar os rebanhos desgarrados. Numa cerâmica do século 4, sobre o nascimento de Jesus, encontramos dois animais bem comuns nas lapinhas: o boi e o jumento. As pessoas daquela época sabiam que eles simbolizavam os irmãos inimigos, Seth e Osíris. Segundo a mitologia egípcia, Seth havia assassinado Osíris para vingar-se de uma afronta. A intenção de colocá-los juntos naquele cenário era a de afirmar que em Cristo os opostos se reconciliam. No mesmo presépio de barro, três reis se curvam diante do Menino: Tendo, pois, nascido Jesus em Belém de Judá, reinando o rei Herodes, eis que uns Magos chegaram do Oriente a Jerusalém, dizendo: Onde está o rei dos Judeus, que acaba de nascer? Porque nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. (Mateus, 2-1) Afirma-se que os evangelhos foram ditados por Deus e que os homens são os seus meros escribas. Suspeitamos, no entanto, que os textos sagrados foram adaptados aos interesses da Igreja e dos seus pregadores. Chamamos a atenção para um outro detalhe da cerâmica. Os três reis Magos ostentam chapéus frígios, uma indumentária característica do deus persa Mitra, que junto com os seus seguidores eram terríveis rivais do cristianismo. Há uma intenção evidente, por parte da Igreja do séc. 4, em mostrar os símbolos das mitologias orientais curvados aos pés daquele que seria a encarnação histórica do único e verdadeiro Deus. Quando São Mateus escreve sobre o nascimento de Jesus, se refere aos três reis Magos como tendo vindo do Oriente. Isto é afirmar que Belém não fica no Oriente? Ou que está a Ocidente, embora se situe no que chamamos hoje de Oriente Médio? Insisto nessas questões geográficas porque o cris-

A estrela e (Cristãos e muçulmanos c As representações populares re sangrentas e propõem rec tianismo judaico, religião que se ocidentaliza com o passar dos séculos, agravou essa ruptura. No Gênesis, Abraão é pai de dois filhos: Isaac, com a esposa Sara, da mesma raça e estirpe; e Ismael, com a escrava egípcia, Agar. As incompatibilidades entre esposas se manifestam e Sara exige que Abraão expulse a escrava com o seu filho indesejado. Ismael e a mãe são abandonados no deserto, mas o Deus de Abraão se compadece do menino e promete fazer de sua descendência um grande povo. Está escrito que Ismael habitou o deserto de Faran e sua mãe tomou para ele uma mulher do país do Egito. Com um pouco de imaginação poética seria possível acreditar que o boi e o jumento da nossa cerâmica representam também os dois irmãos inimigos Isaac e Ismael. Não é de surpreender que as grandes religiões que se espalharam pelo mundo tenham surgi-

Ronaldo Correia de Brito 70 Continente Multicultural


o crescente ombatem na vida e no palco) memoram vestígios de guerras onciliação entre os inimigos do no Oriente. Lá, começa a trajetória do homem, o seu registro em escrita. A Europa e o chamado mundo ocidental, com exceção da Grécia, têm uma história mais recente. É compreensível que o pregador cristão, São Paulo, embora sendo cidadão romano, comece o seu apostolado na cidade de Antioquia, na Síria, ponto de partida e retorno das suas viagens. Numa das suas aparições, Cristo havia-lhe ordenado: Vai porque eu te enviarei às nações remotas. Só mais tarde, São Paulo se dedica à catequese de Roma. Há, de início, um movimento pacífico de conquista do Oriente para a fé cristã, em que as únicas armas usadas são as palavras e os atos apostólicos, bem diferentes do que seriam mais tarde as cruzadas e os tribunais de inquisição. No século 7, quando Maomé funda o Islã, o cristianismo já é a religião oficial do império romano e se encontra difundido por todo o Oriente, con-

vivendo em muitos países e cidades com o judaísmo, o zoroastrismo, resquícios do paganismo grego e romano, e crenças locais. O islamismo surge como um levante do mundo árabe, num tempo em que a igreja de Cristo passa por várias divisões. Segundo a tradição, rabinos judeus, monges cristãos e adivinhos árabes previam o advento de um profeta. Maomé é o “Anunciado” e adota a linha dos profetas da tradição judaica e cristã. O Islã reivindica os direitos à ancestralidade de Abraão, fundador de uma fé monoteísta, comum não apenas a judeus e cristãos, mas também aos muçulmanos. Com a universalização da doutrina islâmica, os vínculos com essas religiões se desfazem. As orações, antes proferidas com os fiéis voltados para Jerusalém, agora são recitadas na direção de Meca. Os judeus, habituados a um convívio pacífico na Arábia, são perseguidos e mortos. Os descendentes do pai comum Abraão beligeram. O Profeta declara em uma de suas últimas mensagens que todos os muçulmanos são irmãos e que devem combater todos os homens, até que digam: Só há um Deus, Alá. As encenações populares guardam significados nem sempre perceptíveis a um observador desatento. No auto de reisados, homens vestidos de vermelho e azul, enfileirados em dois cordões, representam mouros e cristãos em seus combates. Armados de espadas, eles se desafiam recitando embaixadas que rememoram lidas medievais. Podemos perguntar como e para que se guardou essa memória. Talvez as lutas entre muçulmanos e cristãos tenham sido tão sangrentas, que as suas marcas não se desfizeram. O teatro tem a função de rememorálas, para que os erros não se repitam. Orientais e ocidentais já se mataram bastante. Agora, basta-nos a simbolização das guerras. Os historiadores lêem na cena do presépio de cerâmica que o Oriente se dobra ao Ocidente. É bem provável que a intenção do artista anônimo que o fabricou fosse de um gesto de paz. Como na humilde brincadeira do pastoril, em que uma menina, a Diana, veste-se com as duas cores rivais, o vermelho e o azul, propondo a reconciliação dos inimigos. Será que apenas na arte é possível o encontro da Estrela com o Crescente? Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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A VIDA C ARIOC A DE FERREIR A GULL AR


Biblioteca: George Moura escreve biografia de Ferreira Gullar; Alberto da Cunha Melo analisa Comunicação Alternativa, de Pedro Vicente Olho sobre telas: A arte conceitual de Cildo Meireles e retrospectiva de Guita Charifker no Mamam Almanaque: Os 150 anos do historiador Pereira da Costa e os 100 anos do escritor e desenhista Luís Jardim Quadro a quadro: O Senhor dos Anéis estréia no primeira dia do ano, e Denzel Washington faz um vilão em Dia de Treinamento Sabores Pernambucanos: A ocasião é de festa e de tomar champanhe, bebida que simboliza uma tradição secular Boca de cena: O diretor teatral Moncho Rodriguez reúne artistas de quatro estados nordestinos para viajarem em espetáculo itinerante Continente Multicultural 73


REPRODUÇÃO

BIBLIOTECA

A S SETE VIDA S

DO G AL O

O jornalista George Moura vive no Rio há seis anos, mas ainda se considera um “pernambucano federativo”. Talvez por isso, tenha se identificado tanto com o personagem do seu mais recente livro: Ferreira Gullar, que mesmo morando, há 50 anos, no Rio de Janeiro conserva o jeito de “nordestino forte e valente como um galo de briga”. O livro, que leva o nome do poeta, está sendo lançado neste mês, e faz parte da coleção Perfis do Rio, que a editora Relume Dumará começou a publicar há cinco anos. Nesta entrevista, o autor explica a sua fascinação pelo escritor maranhense e adianta informações inéditas que o livro traz.

T

eatro e TV sempre foram suas ocupações. O que representa esta nova incursão pela biografia? Um prolongamento de talento já esboçado na sua análise do Paulo Francis? Sim. Foi curioso constatar que o poeta Ferreira Gullar tinha estado preso na mesma cela que o jornalista Paulo Francis, em dezembro de 1968, ambos acusados de serem subversivos pelo regime militar brasileiro. Esta mesma história e outras uniam os dois personagens. Mas o que mais me fascina como jornalista é a possibilidade de contar histórias de pessoas apaixonadas pelo que fazem, como é o caso do Francis e agora o Gullar. Ao escrever sobre o que nos fascina em quem admiramos, estamos de certa maneira falando de nossos desejos mais secretos. Escrever sobre Gullar é falar de um poeta que eu – um dia – quis ser e não fui. A coleção Perfis do Rio já vai em vários volumes. Por que você escolheu o Gullar? Escolhi Gullar porque sou leitor há pelo menos vinte anos. Desde os tempos em que, ain-

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da no Recife, cheguei a me aventurar e lancei dois livros de poesia – a bem da verdade, de péssima poesia –, eu tinha admiração por tudo o que Gullar escrevia. João Cabral disse, num poema, que Manuel Bandeira, pernambucano, falava, no Rio, um carioca federativo, havendo perdido todo o sotaque. O que há de maranhense no carioca Ferreira Gullar? Ao olhar Ferreira Gullar frente a frente, com seu rosto vincado de índio, sua pele escura, corpo magro e peito aberto para enfrentar a vida, sente-se claramente que se está diante de um nordestino forte e valente como um galo de briga. E se lermos a obra de Gullar, vamos encontrar no seu poema mais importante, o Poema Sujo, uma ode à sua infância em São Luís do Maranhão. Ao ler as quase 60 páginas deste poema, conseguimos sentir o cheiro da cidade. O “sotaque” poético de Gullar continua o mesmo de sempre. Ele é um poeta que precisa se espantar para escrever sobre a vida. E uma cidade como o Rio, que ele adotou, é sempre um bom motivo para um novo poema.

UÇÃO REPROD

Que fatos surpreendentes ou inéditos você traz sobre o Gullar e o Rio neste perfil? Surpreendente é a própria vida dele, um homem que parece ter um fôlego de gato e viveu tantas coisas, como se tivesse já existido em sete vidas. No livro, conto as alegrias, os sofrimentos e sobretudo narro fatos sobre a integridade de caráter de Gullar, que até hoje, aos 71 anos, está lúcido, produtivo, amando e com uma vontade de viver como se fosse um menino. De inédito trago um poema nunca antes publicado em livro – O Galo – que serviu como uma espécie de passaporte para a escolha do Rio de Janeiro como nova morada de Gullar, ao partir de São Luís do Maranhão, em agosto de 1951. Além também da história de amor entre Gullar e a poeta Cláudia Ahimsa que começou na Alemanha, numa feira de livros, está viva até hoje e ainda não tinha sido contada. Ferreira Gullar, de George Moura. Coleção Perfis do Rio, Relume Dumará, 2001 Preço: R$ 20,00

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MARCO ZERO

Um sociólogo na Amazônia Pedro Vicente fala de olhos enxutos, num livro que parece minado por lágrimas subterrâneas, sobre a ocupação predatória da Amazônia

A

inda atordoado pela sóbria e laminar denúncia que constitui o âmago do livro Comunicação Alternativa – Movimentos Sociais na Amazônia Ocidental – do grande sociólogo brasileiro Pedro Vicente Costa Sobrinho (Ed. Universitária, João Pessoa, 2001), que acabara de ler, pularam-me da memória algumas palavras alheias de leitura antiga, que poderiam definir, melhor do que eu, este sentimento diante de um dos mais significativos ensaios de natureza histórico-sociológica da realidade brasileira.

Alberto da Cunha Melo 76 Continente Multicultural


E fui buscar na estante a única tradução das Odes de Horácio que me vem deslumbrando até hoje, a do padre português José Agostinho de Macedo, um setecentista com o espírito guerreiro de um Frei Caneca. É no autoprefácio de sua magnífica tradução que estão as palavras que podem caracterizar a linguagem de Pedro Vicente Costa Sobrinho, em seu importante livro. Senti, ao lê-lo, mais uma vez, aquela, como diz o padre, “majestosa simplicidade, que é o caráter dos grandes homens, e das grandes obras”. Confesso que não saberia elaborar para a linguagem modesta, precisa e grandiosa do autor, uma definição mais honrosa e condizente. Ah, se a metodologia científica e a beleza verbal se encontrassem mais vezes, neste mundo compartimentado! Comunicação Alternativa, conforme o autor, é “uma versão modificada da tese de doutoramento que defendi na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo”. Essa “modificação” significou, certamente, varrer para longe do terraço do discurso substantivo, tanto os jargões funcionalistas (papéis, status etc.), quanto os marxistas (modo de produção, formação social etc.). E, mais, deixar que a realidade falasse mais alto. Qual seria essa realidade? O livro de Pedro Vicente tem como personagens centrais dois humildes jornais do Estado do Acre, na década de setenta do século passado. Dois jornaizinhos criados pela ala “progressista” da Igreja Católica, naquele extremo da Amazônia Ocidental. São eles: Nós Irmãos, que era, segundo o autor, “a imagem e semelhança das Comunidades Eclesiais de Base”, e Varadouro, mais bem elaborado, com a participação de jornalistas profissionais, e que completava o trabalho do outro periódico, exercendo papel importante na denúncia da indiferença com que a Funai sempre tratou as comunidades indígenas acreanas. Com uma visão ampla da realidade brasileira, o sociólogo Pedro Vicente, no início de cada capítulo, faz retrospectivas históricas sobre a ocupação re-

gional e traça a conjuntura político-econômica na qual se inclui, indefesa, a população representada pelos índios, seringueiros, posseiros e colonos, e, ofensivamente, os chamados “paulistas” (capitalistas do Sul-Sudeste), tais como fazendeiros, seringalistas e novos e truculentos bandeirantes, protegidos pelos matadores de aluguel, jagunços, policiais, tabeliões, advogados, políticos e até juízes. Para o autor, essa ocupação predatória (através de derrubadas de árvores e queimadas) e genocida (com massacre de índios: dos 30 mil antes localizados, sobram, apenas, 5 mil, hoje, de seringueiros, posseiros, agricultores, e líderes extraordinários como Chico Mendes) culminou numa concentração vertiginosa da terra, a ponto de os latifúndios “ocuparem 94% da área territorial do Estado do Acre”. A incursão do autor pela mídia impressa alternativa, em certos grandes momentos do seu livro, parece transformar-se em mero pretexto para a análise histórica de um processo fraudulento de ocupação da Amazônia, com o beneplácito e os gordos financiamentos do poder central, na ditadura militar. Ele fala de olhos enxutos, mas parece todo o seu livro minado por lágrimas subterrâneas, enquanto vai narrando, ao coro dos dois jornais alternativos, o ataque brutal dos “paulistas” às formas tradicionais de vivência e convivência na Amazônia Ocidental. Depois da leitura deste livro de Pedro Vicente, sobe no ar uma pergunta: como um governo neoliberal, que privilegia o capital especulativo em detrimento do trabalho, pode oferecer uma resposta não-concentracionista e ecologicamente correta para salvar a Amazônia Brasileira da fúria devastadora e muito mais impiedosa dos novos bandeirantes? O sociólogo Pedro Vicente Costa Sobrinho consolidou as denúncias e, subjacente a elas, está uma seca advertência. Como cientista, fez a sua parte. Cabe aos políticos honrados fazerem a sua. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo


REPRODUÇÃO

HUMOR FINO E IRONIA CRUEL

Somerset Maugham permanece sendo reeditado, apesar de nunca ter tido o reconhecimento da crítica

Certos autores têm encontrado na crítica uma resistência proporcional ao seu êxito junto ao público. No Brasil, Érico Veríssimo e Jorge Amado foram vítimas desse descompasso e tiveram que esperar na confirmação do tempo a permanência de suas obras. O mesmo aconteceu com o britânico W. Somerset Maugham que, apesar de ter vários livros seus transformados em filmes e da tradução de seus livros em várias línguas do mundo, morreu sem ser reconhecido como bom escritor e com maior reputação no exterior do que em sua terra natal, a Inglaterra. Agora, 36 anos depois da morte de Maugham, seus livros começam a ser relançados, e sua obra máxima, Servidão Humana continua sendo reeditada. Dentro desta tendência, a Globo está colocando no mercado O Destino de um Homem, história de escritores, contada por um escritor, entre escritores. O autor, um brilhante criador de enredos, narra a vida pitoresca de um colega famoso, Edward Driffield, cuja vida esteve

N O TA S

REPRODUÇÃO

DOIS PONTOS

entrelaçada a Rosie, uma mulher fascinante mas absolutamente sem moral. Muita gente viu no romance uma referência à vida de Thomas Hardy, um dos maiores escritores ingleses, autor de obras-primas como Tess e Judas, o Obscuro. Maugham rechaça a interpretação. Não importa. O humor finíssimo que perpassa toda a obra, a ironia cruel mas não ofensiva, o estilo leve e elegante justificam a leitura. Sem falar na presença marcante de Rosie, um personagem feminino inesquecível.

MUSIC AIS

NANÁ

LENINE

DOLORES

Naná Vasconcelos está gravando disco novo no Recife. O CD faz parte de um projeto em parceria com o Estúdio Fábrica (que, aliás, está criando o selo independente Fábrica Music) A idéia do percursionista pernambucano neste novo rebento é fazer um trabalho que transite entre o orgânico e o eletrônico, criando ritmos e sonoridades híbridos.

Durante a passagem da peça Cambaio, de João e Adriana Falcão, por Recife, Lenine, diretor musical do espetáculo, aproveitou para registrar com os músicos/atores o que virá a ser uma das faixas do seu novo disco, com previsão para ser lançado até o final do ano. Além da gravação básica, Lenine promete incrementar a faixa com outros elementos.

Deverá ser lançado pela Candeeiro Record em janeiro próximo o novo CD do DJ Dolores, junto com a Orchestra Santa Massa. Presentes Isaar França (Comadre Florzinha), KSB (DJ pioneiro do hip hop pernambucano), Fábio Trummer (guitarrista da banda Eddie), Spyder (vocalista da Incógnita Rap), Maciel Salu (rabequeiro) e o baixista Júnior Areia.

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OLHO SOBRE TELAS

A ARTE R ADIC AL DE CILDO MEIRELES O artista carioca realiza no Mamam a exposição Geografia do Brasil, onde mostra uma arte radicalmente crítica e ao mesmo tempo poética Marco Polo Continente Multicultural 79


Desenhos Africanos (1967) – Técnica mista sobre papel 50 x 70cm

C

WILTON MONTENEGRO

ildo Meireles, um dos mais importantes artistas conceituais do país, conhecido por obras que questionam o poder e o próprio objeto da arte, traz para o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) a exposição Geografia do Brasil, uma viagem pela cartografia poética e crítica do Brasil. A exposição registra a experiência existencial do artista em lugares onde trabalhou, como Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul; em Goiás e Brasília, onde viveu, e no Rio de Janeiro, onde nasceu, em 1948, estabelecendo uma relação entre a trajetória nacional com a cultura e a paisagem humana de cada localidade. Estarão presentes algumas das obras emblemáticas de Cildo Meireles, como Cruzeiro do Sul, um cubo de pinho e carvalho, de 9 x 9 x 9mm. A obra faz referência à complexa divindade que os índios viam no pinho e no carvalho que, friccionados, produziam o fogo, a chama mágica, e que foi traduzida pelos jesuítas como Tupã, numa redução simplista e desqualificadora. Deve ser exibido num espaço amplo, onde fique ressaltada sua “insignificância”, para que se evidencie como uma sociedade dita “superior” vê outras que considera “primitivas e bárbaras” ou, em outra palavra, “inferiores”. Cildo Meireles começou a se dedicar às artes em 1967, produzindo desenhos expressionistas, numa visão muito pessoal da arte africana. No mesmo período começa a fazer explorações formais do espaço, desenhando e executando projetos de objetos. A partir de 70, intensifica seu lado conceitual. Adotando os preceitos cria-

WILTON MONTENEGRO

Sal sem Carne (1975) – LP 33 rpm, 30 x 30cm

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dos por Marcel Duchamp (França, 1887/1968) – que, ao assinar objetos industriais e exibi-los como arte provocava o deslocamento do foco de interesse do objeto físico da obra para o próprio conceito de arte – Cildo criou o projeto Inserções em Circuitos Ideológicos, que consistia em carimbar cédulas de dinheiro com a frase “Quem matou Herzog” (uma referência ao jornalista Wladimir Herzog, morto em tortura nos porões da ditadura e oficialmente dado com suicida) e garrafas de Coca-Cola com a frase “Yankees go home”. Obras que foram expostas na mostra Information, uma das primeiras exposições mundiais de arte conceitual, no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque). Daí para a frente criou obras polêmicas como Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político, performance do mesmo ano de 70 em que queimou dez galinhas vivas, em Belo Horizonte. Ou a confecção de fichas telefônicas em barro, no ano seguinte. Ou, ainda, o Zero Cruzeiro, nota que perde seu valor de dinheiro para valer como obra de arte, tendo, como ilustração, ao invés da fotografia de celebridades, fotos de índios e débeis mentais, dois dos mais indefesos segmentos da nossa sociedade. Uma de suas obras mais conhecidas é Desvio para o Vermelho, de 1967/1984, instalação em forma de U na qual uma sala branca, Impregnação, é recoberta com móveis, roupas, objetos diversos, obras de arte e até comida, tudo na cor vermelha; noutra, Entorno, uma pequena garrafa entorna uma quantidade desmesurada de líquido vermelho; e uma final, Desvio, no qual uma pia inclinada recebe um jorro vermelho que sai da torneira. O espectador tem que caminhar por dentro deste ambiente saturado de vermelho, como num útero sanguinolento. Para a crítica de arte Lisette Lagnado, Desvio


WILTON MONTENEGRO

Malhas da Liberdade III (1977) – Ferro 120 x 120cm e vidro 40 x 120cm

Exposição Geografia do Brasil, de Cildo Meireles Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães Rua da Aurora, 265. Boa Vista. Recife - PE Fones: (81) 3423.2095/2761 Visitação de Terça-Feira a Domingo, das 12 às 17h.

WILTON MONTENEGRO

para o Vermelho corresponde a “uma metáfora da violência armada”. Apesar de seu engajamento, Cildo Meireles tem reafirmado que embora o artista possa – e até deva – ser político, é fundamental que não descuide do aspecto formal e estético da sua obra. Daí o viés poético que também lhe é atribuído, ao lado da crítica de caráter social. Ao mesmo tempo que estava criando obras de compromisso com o momento político, também realizava projetos de exploração da linguagem. “Sempre defendi que a arte é um dos últimos territórios onde se pode exercer a utopia da liberdade”, diz o artista. Sobre a questão da arte conceitual Cildo também se posiciona de modo particular: “Não me considero um artista conceitual, embora tenha muitos trabalhos que tangenciem questões conceituais. Uma das razões porque é difícil para o público lidar com a arte conceitual é o seu notório excesso de retórica verbal. Em geral as pessoas não estão dispostas a ir a galerias para ler explicações”. E conclui: “O conceitual se tornou uma coisa muito árida, muito dependente da legenda. A obra de arte deve exercer o seqüestro do espectador, deslocá-lo daquele lugar. A sedução, a meu ver, deveria estar sempre presente na obra”.

Cruzeiro do Sul (1969-70) – Cubo de madeira em pinho e carvalho 9 x 9 x 9mm

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ADERBAL BRANDÃO

TRAÇOS

Guita Charifker tem exposição e livro este mês

VIVA GUITA Uma exposição e um livro marcam a vida da artista plástica Guita Charifker, numa retrospectiva de sua obra. A exposição Viva a Vida, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), mostra a trajetória da artista, que começou aos 16 anos, em 1954, no Atelier Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife, primeiro desenhando, até que em 1980, ao participar da Bienal do México, descobriu a aquarela, à qual vem se dedicando desde então. O público poderá também ver aspectos poucos conhecidos de seu

trabalho, como as pinturas a óleo e gravuras em metal. Integra o projeto o lançamento do livro homônimo, que contém ensaios de Olívio Tavares de Araújo e Ronaldo Correia de Brito, além de textos dos críticos Casimiro Xavier de Mendonça, Roberto Pontual, Frederico de Morais e Joaquim de Arruda Falcão, entre outros. A mostra ficará aberta ao público até o dia 17 de fevereiro. O livro poderá ser adquirido no mesmo local.

Vasco Cuínas Del Mangue, lavador de convés da esquadra de Pedro Álvares Cabral, entra em contato com os nativos brasileiros e ingere uma infusão que o leva numa viagem pelo tempo através dos primeiros 500 anos do Brasil. Esse é o enredo geral da exposição Pindorama – A Outra História do Brasil, do cartunista Lailson, na Torre Malakoff, até o dia 3 de fevereiro. A História do Brasil em quadrinhos é contada com humor e visão crítica, de modo a atrair as novas gerações, mais voltadas para formas de comunicação dinâmicas como revistas de HQ, vídeos, videogames e produtos multimídia. A mostra ocupa toda a torre. No térreo fica a apresentação da obra e do personagem con82 Continente Multicultural

dutor da história. No primeiro andar estão painéis sobre o trabalho e a sala Viagem no Tempo. No terceiro é exibido um vídeo de animação. Exposição Pindorama – A Outra História do Brasil, de Lailson Torre Malakoff – Praça do Arsenal – Bairro do Recife Antigo – PE – Fone: (81) 3424.8704 Visitação de Terça-Feira a Domingo, de 15 às 20h

LAILSON

HISTÓRIA PARA RIR E REFLETIR


ALMANAQUE

Pereira da Costa tinha obsessão por pesquisar e arquivar tudo o que dissesse respeito a Pernambuco, desde a anedota do folclore à informação precisa, do poema de domínio público ao relato administrativo Luiz Carlos Monteiro

O COLECIONADOR

DE PERNAMBUCOS

F

rancisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923) representa, para os dias de hoje, um modelo raro de intelectual. No âmbito da cultura, exerceu solitariamente os ofícios de historiador autodidata e pesquisador do folclore. O seu interesse pela pesquisa e o conhecimento histórico remonta aos tempos iniciais de sua vida. Em 1867, forçado a interromper os estudos para ajudar no sustento da família, empregase numa livraria recifense. Durante quatro anos, tem sua curiosidade literária acesa e constantemente renovada no manuseio diário de livros a que ironicamente não tinha acesso para usufruto particular. Além disso, serve-lhe de estímulo o conhecimento de alguns autores importantes da época que freqüentavam a livraria, a exemplo do romancista Franklin Távora. Na biografia de Pereira da Costa, Um Brasileiro Singular (1964), escrita por seu neto, Attilio Joffily, encontra-se esse

testemunho: “Da roda ilustre da Livraria da Rua do Imperador a figura que mais o impressionou foi, indubitavelmente, a do general e historiógrafo Abreu e Lima, autor do primeiro livro de História por ele adquirido”. Após esse tempo da livraria, em 1871 uma outra perspectiva de vida enseja-se para Pereira da Costa, com o ingresso no serviço público. Ele trabalhará, em épocas diferentes, em secretarias estaduais e na Câmara dos Deputados. Nesta nova condição de funcionário público – um expediente secular de sobrevivência a que sempre recorreram os intelectuais brasileiros –, transitará mais livremente junto às instituições oficiais e culturais pernambucanas. O que dará um maior impulso às suas inclinações de cronista e historiador, facilitando a tarefa de pesquisador e documentarista. Esta obsessão por manuscritos, documentos e jornais recentes ou antigos leva-o a esboçar um relato geral sobre Pernambuco, atingindo esferas diversas da vida oficial e cultural. Continente Multicultural 83


IVANA BORGES

ou alongado, de configuração densa ou superficial. Para o leitor comum, inviabiliza-se a leitura dos Anais por inteiro, apesar da elasticidade imposta à formulação e dimensão dos verbetes e da organização bastante flexibilizada de seus escritos. Tais escritos abrangem assuntos da mais variada amplitude e interesse – abolicionismo e meteorologia, viaturas coloniais e ruas recifenses, a carta de Pero Vaz de Caminha e a poesia na Revolução de 1817, o teatro, a imprensa, a Inquisição e as artes em Pernambuco. No Folclore Pernambucano (1908), cuja primeira edição é do Instituto Histórico Brasileiro, compõe um texto misto sobre o Diabo, situado na fronteira entre o ensaio curto e o verbete longo. Recorre a localidades e nomes de França e Inglaterra ou próximos como a Bahia, flagrando o Diabo na mitologia clássica e na religião, entre os índios, os negros e a gente do povo. Apela para um conto de Eça de Queiroz, para lendas vulgarizadas pelo sermonista Antônio Vieira e por Frei Vicente de Salvador, autor da primeira História do Brasil. Pereira da Costa é autor mais citado e referenciado isoladamente do que propriamente lido e estudado no seu todo. De Euclides da Cunha a Ronald de Carvalho, de Gilberto Freyre a Luís da Câmara Cascudo, de Mário Souto Maior a Vamireh Chacon, de Wilson Martins a Evaldo Cabral de Mello, o reconhecimento a ele se dá nos moldes da citação indispensável à argumentação desenvolvida em algum ponto da obra desses e outros autores. Em tempos já tardios de sua vida, tratou de defender interesses literários vilipendiados. Naquele prólogo dos Anais, não mais se reconhecia o bom, o modesto, o humilde, o excêntrico Pereira da Costa, como muita gente costumava classificá-lo. Esse outro que sempre fora, cedeu lugar ao autor, mais que ao político, plenamente consciente de seu esforço intelectual e da importância de sua contribuição aos estudos históricos e folclóricos regionais, largamente enriquecidos a partir dele.

O historiador José Antonio Gonsalves de Mello adicionou notas e correções à segunda versão dos Anais Pernambucanos

Configuram-se aí as inscrições, instaurações, inaugurações, atos, leis e decretos da provínia. E comparecem também eventos de outra marca, mais ligados à vida cotidiana da população, com a narrativa de seus costumes, hábitos e modos de vida, envolvendo tanto a elite como as classes populares. A quantidade de informações exclusivas que vai coligindo e publicando, decerto facilitará, no fortuito da ocasião, a cópia ou o plágio por terceiros. Ele mesmo denuncia, em 1923, no “Prólogo” aos Anais, a rapinagem de um vasto material seu. Foi feita uma devassa em trabalhos que publicou em jornais, revistas, livros e folhetos sob a forma de artigos, conferências, relatórios, estudos e monografias. Mais ainda: inacreditavelmente, certos materiais que lhe foram tomados de empréstimo, em confiança, apareceram num Dicionário Histórico e Corográfico de Pernambuco, de Sebastião de Vasconcelos Galvão, cujo primeiro volume é de 1897. Daí o abandono do projeto do Dicionário Histórico e Geográfico Pernambucano pelo dos Anais Pernambucanos, inclusive com a mudança da ordem alfabética pela cronológica. Não é inoportuno lembrar da carência que padeciam os métodos e técnicas de pesquisa na segunda metade do século 19. A indefinição de metodologia científica ou a ausência de algum critério histórico universitário, assim observados em sua obra, não anulam a contribuição histórica efetiva que empreendeu. Ele concentra seu trabalho em verbetes e notas, no texto curto

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Luiz Carlos Monteiro é crítico literário


AUTO-RETRATO

LUÍS JARDIM, ARCAICO E MÍTICO Maria da Paz Ribeiro Dantas

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uís Jardim produziu importante obra no campo da literatura infantil e no romance mas tem também destacada atuação como contista. Nesse gênero, construiu um universo cuja matéria prima são os medos ancestrais, as superstições, as crenças, tudo o que povoa o imaginário do homem sertanejo, e se manifesta em situações de tensão psicológica ou existencial, oriundas de uma visão de mundo primitiva na qual o Nordeste ganha uma dimensão mítica semelhante à do Sertão Universo de Guimarães Rosa; com o qual, aliás, competiu vitorioso no concurso literário Humberto de Campos, em 1938, quando o seu livro de contos Maria Perigosa se defrontou com nada mais nada menos que Sagarana (em sua primeira versão). O clima criado por Luís Jardim em suas estórias de medo e de assombração ocorre no bojo de um universo noturno. O trabalho da imaginação tem como aliado os signos da superstição, entre eles a coruja e o bacurau como aves agourentas – associados à crença popular de uma pretensa ligação dos mesmos com o sobrenatural. Coisas da noite é um conto no qual a figura do cavalo, como montaria, ocupa a função de segunda pessoa do discurso, sendo uma espécie de interlocutor mudo em face da personagem principal, o narrador: “Cavalo cansado, estás me ouvindo? Eu continuo falando sozinho. Responde qualquer coisa , homem!” O ladrão de cavalo tece o suspense criado em torno da captura de um ladrão de cavalos, o famoso Manoel Três Braças. A figura oponente – o decifrador das artimanhas e ardis com que o ladrão procura encobrir o roubo dos animais –, é o

rastejador. Num enrolar e desenrolar, encobrir desencobrir que caracteriza essa atividade arcaica do interior, constrói-se a narrativa, feita de humor e surpresa, revelando a riqueza do imaginário popular ao qual Luís Jardim recorre. O livro compõe-se de treze contos que, não obstante explorando situações ou motivos típicos como a vaquejada, as relações de poder entre as autoridades constituídas e o cidadão comum, o rastejador de animais roubados, o domínio irracional do patriarca sobre os filhos, as imagens do medo no escuro das noite, numa estrada deserta, a loucura associada à fantasia, não se reduzem ao pitoresco, ao localismo, apontando ao invés para a revelação uma espécie de inocência cósmica da morte, mostrando até que ponto a normalidade convive – ou não – com a loucura, com o estranho, o enigmático de que muitas vezes a condição humana se reveste. Luís Inácio de Miranda Jardim nasceu em Garanhuns, Pernambuco, em 8 de dezembro de 1901. Em 1923, já no Recife, colaborou em periódicos importantes naquela década, como A Província, dirigida por Gilberto Freyre. Freqüentou, junto com Joaquim Cardozo, Ascenso Ferreira, José Maria de Albuquerque Melo e outros, a Esquina Lafayete, na Rua do Imperador, ponto de irradiação em Pernambuco das tendências modernistas nas artes. No Rio, onde passou a residir, após uma exposição de suas aquarelas, trabalhou ilustrando livros para a Editora José Olympio. Maria da Paz Ribeiro Dantas é autora de Luis Jardim: ficção e vida (Companhia Editora de Pernambuco, 1989)

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QUADRO A QUADRO

Cate Blanchett (rainha Galadriel) e Elijah Wood (o hobbit Frodo) em cena do filme O Senhor dos Anéis: a sociedade do anel

O PRIMEIRO FILME DO ANO O Senhor dos Anéis chega às telas brasileiras dando início a uma trilogia que vai até 2003

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m 1º de janeiro de 2002, chega às telas brasileiras o primeiro filme da trilogia O Senhor dos Anéis. A Sociedade do Anel, escrito, dirigido e produzido por Peter Jackson (Almas Gêmeas, Os Espíritos), foi filmado como uma enorme saga que será dividida em três longas-metragens, e demorou sete anos para ficar pronto. A produção é baseada na obra de 1947 do britânico J. R. R. Tolkien, considerada um marco da literatura fantástica e eleita em inúmeras votações como o “Livro do Século”. A história tem como pano de fundo a luta maniqueísta do bem e do mal, em um mundo criado por Tolkien, que descreve uma realidade detalhada e verossímil. A Terra Média é um tipo de universo vivo por trás da nossa história, formada por povos de estilos e costumes próprios. Os hobbits, por exemplo, são criaturas gentis e infantis com altura média de 1m; os magos, extremamente poderosos, e os elfos são elegantes


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Apesar da trama ser rodeada de magia, a história desenvolve-se totalmente em cima de temas dos dramas humanos, como o valor de uma amizade, a luta contra a corrupção e até mesmo o confronto entre a natureza e a máquina. Bons argumentos para a sustentação de um filme, ou mesmo de uma trilogia.

A mitologia que Tolkien criou para O Senhor dos Anéis é povoada de seres fantásticos, como hobbits, elfos, anões, magos e orcs

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O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel Produção: New Line Productions Direção: Peter Jackson Roteiro: David Ayer Elenco: Elijah Wood, Ian McKellen, Viggo Mortensen, Liv Tyler, Cate Blanchett, Ian Holm Lançamento previsto: 1º de janeiro.

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e nobres seres mágicos. Os homens são retratados como uma espécie recém surgida, ainda em busca de seu caminho. Todos juntos numa trama que se inicia quando um anel mágico, responsável pelo equilíbrio do poder, cai nas mãos do hobbit Frodo (Elijah Wood – O Anjo Malvado, A Árvore dos Sonhos), que tem que destruir o anel para impedir o domínio do Mal. Para a conclusão de O Senhor dos Anéis foram necessários 18 meses de filmagem e quatro anos de pré e pós-produção. Mais de 100 locações fizeram parte do filme, todas na Nova Zelândia, o que facilitou bastante o trabalho dos produtores. O país foi escolhido pela sua paisagem primitiva e pelas altas montanhas e colinas verdes, o que se aproximava bastante da Terra Média. Para composição artística do filme, o diretor procurou um detalhamento profundo para criar uma fantasia de forma realista. Contou com a ajuda da empresa de efeitos especiais WETA Limited e de uma equipe que chegou a ser formada por 2.400 pessoas, entre técnicos e criadores. Além disso, a trilogia reuniu 114 personagens com falas e 20.602 extras. O elenco do primeiro filme é encabeçado por nomes como Ian McKellen (Deuses e Monstros), Cate Blanchett (Elizabeth) e Liv Tyler (Beleza Roubada). A Sociedade do Anel é uma ficção científica amarrada por uma superprodução, mas que promete agradar não somente aos fãs do gênero.

O ator John Rhys-Davies interpreta o anão Gimli e dá um toque de humor ao filme


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D U R O APRENDIZADO Ethan Hawke tem que aprender a realidade das ruas da pior maneira: sob as ordens de Denzel Washington

Denzel Washington se delicia com uma performance exagerada no papel de um policial corrupto, em Dia de Treinamento

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m Dia de Treinamento (Training Day), a violenta realidade de Los Angeles é personificada por Alonzo Harris, um policial corrupto e raivoso interpretado por Denzel Washington, que tem nas mãos o jovem policial Jake Hoyt (Ethan Hawke), um aprendiz que sonha em ser promovido para o esquadrão de elite da Narcóticos. Com o lema “Se você não intimidar a rua, a rua te mata”, Alonzo circula pelas ruas da cidade em seu caddilac confiscado, coletando impostos e acumulando subornos. O que vai de encontro aos preceitos de Jake, que ainda acredita no velho ideal da polícia americana: “Servir e proteger”.


PIPOCAS

O que vem por aí nos cinemas:

Ocean’s Eleven

Danny Ocean (George Clooney) é um ex-penitenciário que acaba de cumprir pena e, em menos de 24 horas depois de sair da prisão, já planeja a sua próxima ação. Para isso, monta uma equipe de 11 especialistas em diferentes áreas – interpretados, entre outros nomes, por Brad Pitt, Matt Damon e Don Cheadle. O filme é dirigido por Steven Soderbergh. Julia Roberts, como ex-mulher de Danny, e Andy Garcia também fazem parte do elenco.

Sob a direção de Antoine Fuqua, o resultado do encontro desses personagens é um enredo com muita energia, onde Denzel Washington parece se deliciar com o radicalismo e a fúria de Alonzo, numa performance exagerada que em nada se parece com os personagens simpáticos que geralmente interpreta. E Ethan Hawke convence como o policial em crise com o estilo do seu mentor. Para o crítico norte-americano Roger Ebert, muitos sairão do cinema se perguntando sobre a plausibilidade dos últimos quinze minutos. Ele confessa que, em alguns momentos, distraiu-se da ação da tela pela necessidade de repassar o roteiro para tentar juntar as peças e entender “como os eventos puderam dar tão errados”. Mas Ebert afirma que o roteiro de David Ayer é engenhoso na forma como deixa pistas e as arremata de maneiras inesperadas. E embora ache que “o filme poderia ter sido melhor se ficasse mais próximo da realidade”, diz que não era essa a intenção dos realizadores.

Do Inferno

Dirigido por Albert Hughes e Allen Hughes, Do Inferno é um filme ambientado no ano de 1888. Johnny Depp é um investigador, que, com um instinto fortíssimo, tenta desvendar crimes estranhos que começam a acontecer. Heather Graham é Mary Kelly, uma prostituta passível de ser uma das vítimas do assassino Jack, o Estripador. O ícone do gênero “terror” volta às telas, deixando um rastro de mulheres mortas, com o abdômen aberto e os intestinos à mostra, o que causa pânico entre os moradores da cidade.

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Dia de Treinamento Produção: Warner Bros. Direção: Antoine Fuqua Roteiro: David Ayer Elenco: Denzel Washington, Ethan Hawke, Tom Berenger, Scott Glenn e Macy Gray. Lançamento previsto: janeiro.

A atriz Eva Mendes faz o papel da mulher do policial Jake (Ethan Hawke)

Hearts in Atlantis

Anthony Hopkins estrela o mais recente filme baseado em obra de Stephen King. Ele interpreta Ted Brautigan, o inquilino que aluga um quarto na casa do menino Bobby Garfield, com quem desenvolve uma grande amizade e troca segredos: Ted tem poderes especiais que o tornam alvo de perseguidores mortais. Hope Davis e David Morse também estão no elenco.


SABORES PERNAMBUCANOS

Champanhe, ou a arte de beber estrelas A única bebida que “conserva a mulher bela depois de bebê-lo” faz a festa no mundo inteiro “Espelho, amigo verdadeiro, Tu refletes as minhas rugas, ... O menino que todos os anos, na véspera do Natal, Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta”

O

vinho continuava ácido. Quase um pecado. Foi quando o encarregado das adegas da Abadia de Hautvillers, o monge beneditino Dom Pérignon, depois de ter tentado tudo para lhe tornar aceitável, decidiu colocá-lo em garrafas de vidro para uma segunda fermentação – à época, uma heresia. Anos depois, provando o resultado de sua excentricidade, afinal compreendeu que havia sido perdoado pelos deuses: “Venham todos! Depressa! Venham! Estou bebendo estrelas!” Corria o século 17 e estava começando a história do champanhe. Depois nosso Dom ainda teve que desvendar o mistério de estopas que teimavam em pular dos gargalos das garrafas. E acabou inventando a rolha de cortiça – na verdade, apenas adaptação de velho costume camponês da Península Ibérica; que, desde a colonização romana, já se usava ali essa cortiça extraída de sobreiros para fazer sapatos, cochos e tachos de cozinha. Mas as explosões noturnas – agora de rolhas – só findaram mesmo quando o velho monge inventou grampos de arame para

Manuel Bandeira (Versos de Natal)

prendê-las, conhecidos como muselet. Pena que Dom Pérignon tenha morrido sem compreender a razão pela qual a bebida que inventou era, na adega, tão diferente das outras. Porque só um século depois Pasteur desvendaria o segredo das leveduras, na fermentação; e Lavoisier explicaria como essa fermentação transformava açúcar em álcool e gás carbônico – de quebra ainda formulando o primeiro princípio da química moderna, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Mas essas são outras histórias. Passa o tempo. E o champanhe está hoje fortemente associado às grandes comemorações. Especialmente Natal e Ano Novo. Mas nem sempre foi assim. Remontando a origem dessas festas à celebração romana do solstício de inverno, no hemisfério norte. Comemorado a pão e vinho – homenageando Saturno, deus da fartura. Tradição, depois, seguida pelos cristãos, com pão e vinho passando então a simbolizar o corpo e o sangue do próprio Cristo. Ano Novo foi criação pagã, do imperador Júlio César, prestigiando o calendário egípcio de sua Cleópatra. Mas Natal teve as bênçãos do papa Júlio I, que o instituiu em 350, fixando 25 de dezembro como data de nascimento do Salvador, aquele que veio ao mundo para redimir nossos pecados. A região de Champagne, durante muito tempo, foi apenas passagem de invasores hostis. Como

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Átila, rei dos Hunos – aquele que, segundo a lenda, sob as patas de seu cavalo nem grama nascia. Ou o Imperador Juliano – que não acreditou nessa lenda e ali plantou vinhedos. Depois, pouco a pouco, os muitos monastérios da região se encarregaram de fazer nascer os primeiros vinhedos – embora os vinhos que produziam fossem banais, sem muito futuro. Até que se difundiu a invenção de Dom Pérignon, e tudo mudou. Mas nem só de acasos se fez o champanhe. Seu processo de fabricação obedece a regras rigorosíssimas. As uvas empregadas são, necessariamente, Pinot Noir, Pinot Meunier e Chardonnay – todas colhidas e manipuladas na própria região de Champagne. Com lei francesa de 1927 determinando só possa ser denominado de champanhe os vinhos ali produzidos. Razão pela qual, quando fabricado em outras regiões, ganha outros nomes: no resto da França, vin mousseux; na Itália, spumante ou prosecco; na Alemanha, sekt; na Espanha, cava; em Portugal e no Brasil, espumante. Algumas marcas fizeram história. Como a Moet & Chandon, preferida de Napoleão, do Czar Alexandre I e de Madame Pompadour (amante de Louis XV), para quem “o champanhe é o único vinho que conserva uma mulher bela depois de bebê-lo”. A casa prestou inclusive homenagem ao inventor da

bebida – que está enterrado na abadia de Hautvillers, dentro de sua propriedade – dando a um de seus melhores champanhes o nome de Cuvée Dom Perignon. Ou como a Veuve Clicquot Ponsardin, de Nicole Ponsardin, que com mãos de ferro assumiu a direção da casa aos 27 anos de idade, quando enviuvou – a “viúva Clicquot”. Tendo ainda conseguido clarear a bebida, até então um vinho escuro e rústico por causa dos resíduos da uva, inventando, para isto, a remuage – método logo adotado por todos os outros fabricantes. Ou como a Cristal, fabricada desde 1876 pela casa Louis Roederer, inspirada em um de seus clientes, o Czar Alexandre II da Rússia – que recomendava fosse o champanhe colocado em garrafas de cristal verdadeiro. Faltando só lembrar que, no Brasil, nossos melhores espumantes são Chandon, De Greville, Casa Valdugo. Uma última recomendação a quem se prepare para beber estrelas. Nunca balance a garrafa, para ver a rolha atirada longe. Isso só funciona em musicais americanos. Ou na Fórmula 1. Que, na vida real, esse chacoalhar dispersa o gás, alterando o sabor da bebida. E é prova de mau gosto. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

COMO FABRICAR CHAMPANHE Se o leitor quiser produzir um verdadeiro champanhe, primeiro deve tentar comprar algum pedaço de terra na região homônima. A 500 mil dólares o hectare, se tiver sorte. E, depois, cumprir à risca todas as etapas de sua produção: 1. Pressurage: espremer as uvas, logo após a colheita. 2. Débourbage: deixar o suco (mosto) em repouso para decantar, adicionando sulphourous anhydride (sulfitage) para facilitar a decantação e evitar a oxidação. 3. 1ª Fermentação: armazenar em tonéis de carvalho, de preferência feitos à mão (embora já hoje se usem tonéis de aço inoxidável), por três semanas, e extrair as impurezas (sourtirage). 4. Assemblage: misturar com outros vinhos feitos apenas das uvas permitidas (outra invenção de Dom Pérignon). 5. Tirage: colocar os vinhos de volta aos barris, na primavera, adicionando leveduras naturais e o liqueur de tirage, feito com açúcar de cana (24gr. por litro) e vinho. 6. 2ª Fermentação: colocar o vinho em garrafas para descansar, nas adegas, em posição horizontal, por 3 a 4 anos. 7. Remuage: colocar as garrafas em pranchetas, inclinadas em 60º, e rodá-las, todos os dias, em giros curtos, para provocar a precipitação dos resíduos no gargalo - entre 5 semanas a 3 meses. 8. Dégorgement: colocar os gargalos das garrafas em recipientes com temperatura de -20o (vinte graus negativos) e remover, depois, rolhas e sedimentos nela presos. 9. Dosage: ajustar o volume nas garrafas, inserindo um liqueur de dosage feito de açúcar de cana e vinho. A quantidade vai determinar o tipo de champanhe, que pode ser: a) Extra-brut, Brut nature ou Brut sauvage (muito secos), que não recebem adição de nenhum licor. São raros. b) Brut (seco), que recebe 1% de licor (é a categoria mais vendida). c) Extra Sec, que recebe de 1% a 3% de licor. d) Demi Sec, que recebe de 3% a 5% de licor. e) Doux, que recebe de 8% a 15% de licor. 10. Colocação de rolhas: devendo, antes de introduzidas nas garrafas, ser amaciadas em banho morno. 11. Envelhecer o champanhe nas caves. 12. Servir sempre entre 6 e 8 graus Celcius. Saúde!

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BOCA DE CENA

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diretor teatral Moncho Rodriguez pertence a uma só nação: a nação ibérica, à qual os autos populares do Nordeste brasileiro funcionam como um braço além do oceano. Os espetáculos deste espanhol costumam reviver as heranças medievais da Commedia dell’Arte e de todo o teatro itinerante que teria se transformado, através do tempo, nos

OS CAMINHOS DO TEATRO pastoris e bumbas-meu-boi de hoje. Seu atual projeto é Ditirambos, grupo que reúne profissionais de Pernambuco, Sergipe, Paraíba e Rio Grande do Norte e que, desde novembro, viaja pelo interior nordestino a encenar as peças O Romance da Donzela Theodora e A Louvação ao Menino Deus, de Lourdes Ramalho. Aqui, o diretor defende um teatro menos preocupado com retorno financeiro e mais com uma renovação de público.


Que objetivos cumpre a peregrinação dos ditirambos pelo interior? O principal objetivo é ensaiar a possibilidade de criação de um Circuito de Descentralização Teatral em regiões carentes dos estados do Nordeste. Não há uma política cultural definida, objetiva, que possa assegurar a participação e o contato do homem nordestino do interior com a arte e a cultura contemporânea. Quando se pensa em teatro, criação, pesquisa e contemporaneidade, voltam-se os olhos e as atenções para um público determinado, como se elite fosse o espectador dos grandes centros e das capitais. Como a arte já não consegue viver longe da mídia, que faz de tudo um espetáculo, um show, dificilmente o espectador das cidades adormecidas no tempo, nos confins onde se guardam as memórias mais puras desta nossa cultura, serão privilegiados por um espetáculo ou por programas específicos que possam atender às suas necessidades. Para a grande maioria dos criadores contemporâneos esse público não interessa ou simplesmente não existe. O teatro só pode existir com o ator e o espectador. Prefiro ditirambar em praças, ruas, ruínas, terreiros do sertão, com centenas de espectadores à volta, sentindo e emocionando-se com o espetáculo, criando uma cumplicidade que aponta para a continuidade deste e de outros projetos, do que ficar a espera de que o “espectador mídia” faça o favor de sair da sua comodidade para vir ao teatro.

A Arte não se produz ou se cria para os subsídios, mas, sim, para que possa chegar ao espectador. O que hoje se está a implantar é um esquema totalmente pervertido. Tornou-se prioridade o aprovar projetos para assegurar o lado econômico, independente da qualidade ou objetivo artístico da produção. Não se pensa mais no público, no ator e no espectador. O importante é conseguir ser aprovado por uma lei qualquer de cultura e receber um certificado oficial de pedinte para “captar” recursos. Importa-me captar espectadores. Público. Sentir e vivenciar este novo espectador do sertão é uma experiência enriquecedora para qualquer criador que procura uma linguagem renovadora e contemporânea. Portugueses e espanhóis sempre preferiram o litoral, a costa brasileira. Você prefere o sertão? Prefiro o Nordeste como um todo. Não posso admitir que existam distinções onde se privilegiem espectadores por zonas economicamente mais ou menos fortalecidas. Não podem existir espectadores de primeira ou de segunda classe. Nesse caso, nós (o Nordeste) seríamos a segunda classe para as produções sulistas? Isso seria abominável. Imaginem como se sentem os espectadores, o público, homens e mulheres deste interior esquecido e abandonado por todos. Então, neste momento acredito que é necessário chamar as atenções para este público menos privilegiado, para as possibilidades que


eles podem oferecer como alternativas de consumo e de participação na evolução do teatro e da arte do Nordeste como um todo. Ainda é possível uma revolução teatral, como o épico ou o da crueldade, que notabilizaram Brecht e Artaud? Para que haja uma revolução artística é necessário que exista a vontade política de uma revolução na educação, o que significa uma reviravolta acrobática na sociedade contemporânea. Que seria o mesmo que dizer: o ressurgir de uma consciência humana na classe política e administrativa das sociedades. A Arte não faz revolução. A arte pode ser uma parte dessa utópica revolução. A Arte empresa – está a limitar, estrangular as possibilidades de experiências de linguagens novas. Continuamos a assistir produções e produções de um teatro de mentirinha, feito para não incomodar, produzido com todas as precauções para não ofender, ou seja, um Teatro com Preservativo. Com camisinha. Só quando a arte se libertar da produção comercial, vamos poder falar de revoluções artísticas e estéticas. Para já, vamos continuar a admirar os nossos mestres e o seu teatro de 100 anos.

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Que novas aventuras e surpresas apronta Moncho para a próxima temporada? O resultado desta experiência deverá apontar os caminhos para novos riscos. A implantação desse circuito de descentralização é necessária para que novas experiências possam existir e assegurar que o teatro volte ao ator e ao espectador. Ditirambos é só um princípio. O encontro com músicos, cantores, poetas populares, pode apontar novas criações. Esperamos poder continuar a contar com o apoio de parceiros que acreditam neste nosso projeto. A fundação José Augusto e o Centro Experimental de Formação e Pesquisa Teatral de Natal têm encontrado neste curto percurso importantes parceiros, tais como: as secretarias de Cultura da Cidade do Recife, da Paraíba, de Sergipe, do Ceará. Então conseguimos um feito inédito e muito importante que pode trazer novas e boas conseqüências para o teatro do Nordeste: parceiros! Que acreditam nesta necessidade de descentralização, de um teatro fundamentado na linguagem popular e sem fronteiras. Num novo teatro do Nordeste. É a nossa aposta! Centro Experimental de Formação e Pesquisa Teatral Fone: (84) 212.1663


HUMOR

Jarbas

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endo este um momento de apreensão para todos os povos, irrequietamente surdos às agruras de uma guerra rouca, resolvi regar um vasto jardim tanto de paz quanto de saudade para oferece-lo à esperança de positivos, assim melhores fluxos para todo mundo. Tipo nenhum de arrependimento – arre maldades ou injúrias. Nada de mensagem espetada por cardos de folhas mortas, mas colorida de flores maduras com cheiro do néctar dos deuses – daquele de botar no lenço. É hora de repensar o que passou e sonhar com tempos de mais tardes, de manhãs compridas e noites iluminadas. Tudo isso em razão de podermos esfriar o sol, aquecendo a lua e as estrelas – nunca dias infensos ao encanto. Gostaria de que nada acontecesse em detrimento do direito e deveres de ninguém – clama-se muito pelos direitos humanos e se esquecem dos deveres. Estilhaços da violência desenfreada sacodem os quatro cantos da Terra, mormente os povos famintos do Afeganistão e de outros recantos esquecidos. Mandemos, pois, flores para os deuses da guerra de Tolland, para os sempre sofridos sertane-

ILUSTRAÇÃO: LIN

ÚLTIMAS PALAVRAS

Flores para todo mundo jos da seca, aos puídos sonhos das crianças dos arredores de Biafra e para a desertificação dos espíritos que se dizem cristãos nas terras áridas dos sem fins. Para os resbutos da Índia e Paquistão; o rescaldo de Nova York e a dor de vingança dos americanos; ao que resta de fé dos judeus e palestinos. E também à literatura que enobrece o conforto do saber – grandes escribas que fizeram mudar muitos conceitos desde um passado recente. Sem gotejamentos de adrenalina para vascolejar vasculares, despacho amaikans amarelas das cordilheiras chilenas me lembrando dos caminhos trilhados por Neruda, cujas pétalas esvoaçadas ainda coroam as notícias dos cem anos de solidão de García Márquez, nunca aposentado. Lírios para Érico Veríssimo seriam na medida de se olhar os campos. Eça se contentará com as hortênsias do padre Amaro e Oliveira Lima se deliciará com os brotos de cerejeiras derramados ao longo do Potomac. Um passeio pela nação de Apipucos e saúdo Gilberto Freyre com jasmins roxos, seus preferidos, ainda perseverantes ao redor da casa grande, caldeados em seus quintais às pitangueiras que enfeitam oitões de remodeladas senzalas. Como também sou dos jasmins (principalmente os de cheiro – sejam laranjas, brancos ou roxos) e bogaris, exalto o amor, e faço com que seus gomos chovam sobre todas as pessoas de boa vontade, bem mais fortes que os broqueis de espinhos protetores dos desesperantes. Aos queridos leitores que me acompanharam mensalmente durante esse primeiro ano das Últimas Palavras, guardei as rosas para os agradecimentos – rosas brancas, amarelas e vermelhas. Rosas da concórdia, do carinho e da necessária discordância de idéias; do apreço, da crítica útil, da solidariedade, da independência, do saudosismo e da lealdade e que confeitam o prazer de ler. Ao 2º ano do novo Milênio, rogo a paz nunca esquecida e ternamente embrulhada num rosário de alegres crisântemos e margaridas, recheado por intrometidas dálias dobradas. Romântico ontem, lépidas palavras, canto de vida, risos-do-prado.

Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural




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