Continente #013 - Alceu Valença

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Multicultural

Música – Alceu Valença Cantor fala sobre a sua independência como artista, as amizades com Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, e o polêmico apoio ao PFL de Pernambuco

Século 21 –

Com mil demônios

De base social dividida, o brasileiro é um povo entre demônios que o induzem ao erro de ser resignado ou ser ufanista

Crônica –

Tentativa e erro

Geneton Moraes Neto lembra personalidades com quem conversou, ou tentou conversar: entrevistas que poderiam ter sido e que não foram

Antropologia –

CONTEÚDO

Continente

Carnaval

Alceu Valença: foto: Rogerio Cassimiro/ Folha Imagem

Antologia –

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Teatro –

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Preservação –

Linguagem – O povo fala O gramático Evanildo Bechara defende a “língua errada do povo, língua certa do povo”

Diário de uma víbora –

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Ojeriza

Joel Silveira diz qual a condição para assistir a um show de João Gilberto: que ele nem cante nem toque

Comportamento – Moda

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REPRODUÇÃO

Artigos e entrevista revelam as funções sociais e a sedução da arte de encarnar personagens no teatro do cotidiano

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Independência dos pampas

O Rio Grande do Sul revela-se um dos estados que mais incentivam a própria literatura, com autores fora do eixo editorial hegemônico

Conto –

Negros e índios

Tombamento do saber

Joaquim de Arruda Falcão discute a idéia de Patrimônio Imaterial, e ensina como tirar proveito da globalização

Literatura –

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Antropólogo desenterra raízes do teatro brasileiro nas performances dos negros e dos nativos, anteriores aos autos do Padre Anchieta

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Página 26

Guerras

Poemas de Moniz Bandeira entrecruzam cenas de batalhas entre brasileiros e holandeses e entre vietcongs e norte-americanos

REPRODUÇÃO

O escritor Affonso Romano de Sant’Anna relaciona Carnaval com guerra, morte e política no seu mais recente livro

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Em poucas palavras

Dois minicontos do escritor João Gilberto Noll, sobre o sentido da existência e a presença da morte

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Página 58

Entremez – João Câmara e Mestre Salu Os riscos que os artistas populares correm ao adaptar a sua tradição para agradar a um grande público, e as relações entre o popular e o erudito

Giro – Nelson Ferreira O centenário de um dos maiores compositores do Carnaval pernambucano, que chegou a acreditar que não sabia compor frevo

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Últimas palavras – Tristes mudanças Um lamento pela transformação de colombinas com fantasias ornamentais em dançarinas seminuas executando “coreografias glúteas”

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira

Arte Luiz Arrais

Editoração Eletrônica André Fellows

Ilustradores Lin e Zenival

Colaboradores: Alberto da Cunha Melo, Alcione Ferreira, Alexandre Belém, Bruno Bernardes, Carol Garcia, Célio Jr., Claudia Rangel, Eli Reed, Geneton Moraes Neto, Geyson Magno, Gil Vicente, Gilberto Lima, Gilmar, João Gilberto Noll, João Paulo Engelbrecht, Joel Silveira, José Francisco Diorio, Leonardo Dantas Silva, Luciano Trigo, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Marcelino Freire, Marco Antônio Teixeira, Marco Aurélio Guedes de Oliveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mascaro, Milton Michida, Otávio Magalhães, Renato Filho, Rivaldo Paiva, Roberto Rômulo, Ronaldo Correia de Brito, Vládia Lima, Zeca Ligiéro Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 - Fone: 0800 81 1201 - Ligação gratuita e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Conteúdo Estou lhe enviando um exemplar do caderno Magazine Cultura, publicado pelo jornal Magazine, aqui de Divinópolis, e no qual editei um texto sobre a revista Continente Multicultural. Achei excelente a publicação, principalmente pelo “conteúdo”, algo raro nas revistas editadas no Brasil. Os textos são analíticos, críticos, informativos... A diagramação é belíssima! Enfim, é uma revista completa, de “encher os olhos” mesmo. Elvis Gomes – Divinópolis – MG Pernambuco Sugiro que continuem da mesma forma, levando Pernambuco para o mundo e não trazendo o mundo para Pernambuco, pois já estou de saco cheio com São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iorque e Londres. Hildemar Bezerra P. Júnior – Recife – PE Poesia Que tal um ensaio sobre a poesia pernambucana atual? Cícero Melo do Nascimento – Recife – PE Mais poesia Sugiro mais espaço para literatura, com destaque para a poesia: crítica, entrevistas, processo criador etc. Estava cem por cento a entrevista em tópicos com João Alexandre Barbosa (edição de Outubro). Vital Corrêa de Araújo – Recife – PE Temas regionais Gostaria de ver na revista uma maior presença de temas regionais ou locais. José Aragão Bezerra Cavalcanti – Recife- PE


Programação visual Devido a uma imensa paixão por Chico Buarque, em Julho um cartaz da capa de uma revista com a imagem dele cantando me chamou a atenção. Tratava-se da revista à qual mando esse e-mail. Fui para casa pensando em comprá-la, para ler a reportagem e, por coincidência, depois de dois dias, lá estava ela em cima do centro de minha sala. Meu pai, também admirador do grande cantor e compositor, a havia comprado e, assim como eu, depois de ler as outras reportagens, achou-a extremamente interessante e fez a assinatura. Tenho 16 anos, sou estudante, e no ano de 2002 estarei cursando o 3º ano do Ensino Médio. Gosto de me atualizar e sou apaixonada pela minha cidade e sua cultura. Gosto muito da questão imagem-realce, o que me fez pensar em tentar Desenho Industrial/Programação Visual, no Vestibular. Acontece que comecei a perceber que o mercado para os programadores visuais e para os designers está muito fechado no Recife e então estava desistindo dessa profissão, até porque muitas pessoas chegaram a me falar que o curso da UFPE (única universidade com o curso) é muito fraco. Perdão por tantas informações, mas onde estou querendo chegar é que fiquei admirada com o trabalho artístico da revista, com toda a produção de imagens. Digo até que “devorando-a” tive muitas inspirações e me acendeu uma pontinha de esperança de que projetos como esse (minhas pretensões de trabalho) possam surgir cada vez mais em Pernambuco. Estou muito interessada em conhecer a produção da revista, a fim de conhecer melhor a área e, quem sabe, me decidir sobre o meu futuro. Ainda me pergunto por que uma revista de excelente qualidade, com ilustres pessoas, espetaculares reportagens e informações não tem a devida divulgação. Marina Andrade – Recife – PE

concordo quando ele diz que a juventude se rebela visando o futuro da sua geração. Isto pode ser verdade em algumas situações, mas não em todas. A maior parte da rebeldia juvenil é pura sintomatologia de idade. Em muitos casos, o jovem se rebela mais fixado no presente que qualquer preocupação futura. É preciso muita reflexão para se afirmar com certeza que a juventude que promove movimentos políticos ideológicos vise ao futuro de seus filhos. Na minha opinião, isto não passa de um comportamento adolescente. Muitas vezes, os jovens não possuem o verdadeiro conhecimento dos mitos que cultuam, o que vale mais nestes casos é a pura vontade de ser rebelde e de extravasar suas revoltas. Um grande exemplo disso é o número cada vez maior de camisas com a figura de Che Guevara. Muitos têm a causa comunista no peito, mas poucos sabem o que significou realmente o comunismo na história do mundo. Carlos Eduardo Pimentel – Recife – PE

Tropicalismo Gosto muito da revista Continente. Fiquei particularmente contente com a entrevista de Gilberto Gil (edição de Novembro). É fascinante saber que o movimento Tropicalista nasceu da idéia de juntar o som dos Beatles com o da Banda de Pífanos de Caruaru, ou seja, o regional com o universal. Caio César Borges – Bonito – PE Admiração Essa revista, tão logo nasceu, já conquistou a admiração do público pela qualidade gráfica e pelas matérias públicadas. Tercina Maria Lustosa Barros Bezerra – Recife – PE Orgulho

Comportamento adolescente O artigo do professsor Marcos Guedes, Juventude contra a globalização na edição de Outubro, me chamou a atenção. Não

A revista Continente Multicultural é motivo de orgulho para todos os pernambucanos. Pela qualidade das matérias e pelo visual, que é muito bonito. Pernambuco está de parabéns. Maria Cristina do Nascimento – Petrolina – PE

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EDITORIAL

JOSE FRANCISCO DIORIO / AE

Evoé, Alceu! Evoé, Nelson!

H

á trinta anos, Alceu Valença faz valer o seu nome de poeta e a alma dionisíaca pintando de sinestesias a música popular do Brasil. Um dos marcos da sua trajetória é o primeiro disco, gravado em 1972, em parceria com Geraldo Azevedo. Para além das cronologias, o que importa mesmo é a exuberância de uma música entranhada nas raízes da cultura pernambucana e em sintonia com um mundo tão vasto quanto o coração da arte que o impregna desde a infância. Como ele mesmo diz na entrevista exclusiva que publicamos: “O que me chamou a atenção a princípio foram os sons primais: o som da viola de meu avô, o som dos aboiadores na fazenda de meu pai, o som dos coquistas na feira de São Bento do Una, o som dos violeiros.” Nascido no dia 1° de julho de 1946, em São Bento do Una, Alceu Valença é um dos exemplos

felizes de uma característica muito pernambucana: conservando-se fiel às suas origens, incorpora tudo o que lhe interessa da arte do mundo. Dessas boas contaminações vibra uma música que suplanta as fronteiras. A vocação brasileira para a mestiçagem encontra no uso que faz dos ritmos e das fontes populares e de reinvenções de estilos em voga um dos seus resultados mais bem-sucedidos. Alceu Valença é um dos símbolos da diversidade e riqueza do Carnaval de Pernambuco. Foi ele com os seus parceiros um dos responsáveis pela universalização desse Carnaval, que tem em Capiba e Nelson Ferreira os ícones mais altos da sua tradição. Além da entrevista exclusiva com Alceu Valença, esta edição traz um presente especial para os leitores: um CD com uma seleção de 11 músicas de Nelson Ferreira, saindo na frente no bloco das comemorações do seu centenário de nascimento.

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MÚSICA

“Quem dá o tom Alceu Valença festeja trinta anos de carreira com um novo disco e pensa em estrear como roteirista e diretor de cinema Bruno Bernardes

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GIL VICENTE / DP

sou eu�

O cantor e compositor na varanda da sua casa, em Olinda, animando o Carnaval

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O

Caricatura de Fernando Pessoa, citado como um dos autores prediletos de Alceu Valença

espantalho sobreviveu aos corvos. Em 30 anos de carreira, Alceu Valença se orgulha de nunca ter cedido às pressões do mercado para alcançar o sucesso. Compositor profícuo (“Tenho umas 300 canções dentro de um baú”, afirma), o menino que cresceu ouvindo o cantos dos aboiadores na fazenda do pai não se arrepende de absolutamente nada do que fez ou disse neste longo percurso. Alceu proclama-se um artista independente. Independência que fez questão de manter, mesmo quando teve que pagar caro por ela: o cantor não esconde a mágoa pela patrulha ideológica que sofreu quando resolveu apoiar Joaquim Francisco, candidato a governador de Pernambuco pelo PFL, em 1991: “Apanhei mais do que os ladrões crucificados ao lado de Cristo”, diz. Os detalhes desta perseguição ele promete revelar num livro de memórias: “Eu vou abrir o meu verbo”, anuncia. Alceu Valença recebeu Continente Multicultural para esta entrevista em sua cobertura no Leblon, Rio de Janeiro. De bermuda e sem camisa, o cantor relembrou episódios destes 30 anos, como a frustrante conversa com Rubem Braga, a briga com Zé Ramalho, o primeiro encontro que teve com Geraldo Azevedo. Falou sobre a curta carreira de jornalista e advogado e repudiou veementemente a afirmação de que teria sido influenciado pelo Ave Sangria, grupo underground pernambucano da década de 70. Os corvos sobrevoam, mas o espantalho continua com os pés fincados na terra, defendendo sua música.

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Rubem Braga se sensibilizou de uma crônica dele numa um jantar comigo, mas Aos quatro anos de idade, você cantou num concurso no Cine Teatro Rex, em São Bento do Una, mas ficou em segundo lugar. Começou então a dar cambalhotas pelo palco, para roubar a cena do vencedor. Hoje, 52 anos depois, você ainda se considera um exibicionista? Todo artista é exibicionista. O artista dizer que é tímido é uma outra forma de exibicionismo. Eu subi ao palco porque o aplauso me chamava. Eu me senti como se estivesse no paraíso. Na hora, as pessoas me aplaudiram por causa das cambalhotas, mas depois elas me aplaudiriam por causa de minha música. Aquilo foi uma anunciação do que eu viria a ser. O que despertou primeiro o seu interesse, a poesia ou a música? O que me chamou atenção a princípio foram os sons primais: o som da viola de meu avô, o som dos aboiadores na fazenda de meu pai, o som dos coquistas na feira de São Bento do Una, o som dos violeiros. Eu sei imitar boi, vaca, carneiro, passari-


nho, sei cantar como cantavam os aboiadores. Na minha adolescência, ou seja, quando comecei a raciocinar melhor, menos infantilmente, eu descobri a poesia, os romances e as crônicas. Foi fazendo o clássico que eu comecei a ler muito. Na literatura, gostava de Guimarães Rosa, Eça de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Os poetas que mais fizeram minha cabeça foram João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Ascenso Ferreira e Fernando Pessoa. Que verso de Fernando Pessoa você escolheria para definir sua personalidade? “Não sou nada, não quero ser nada, apenas tenho em mim todo o sentimento do mundo”. (N.R.: Alceu mistura versos de Pessoa – “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” – e Drummond – “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo”.)

CELIO JR / AE

quando soube que eu falava canção e mandou marcar eu, timidamente, não fui

Você já disse em entrevista que considera Rubem Braga o maior cronista do Brasil, mas parece que decepcionou-sse ao conversar com ele... Eu tenho uma paixão por Rubem Braga. Meu tio Lívio me apresentou a um livro chamado Um Pé de Milho. Daí em diante li todos os livros, vim carregando Rubem Braga dentro do meu “depositário literário” e sei quase suas crônicas todas decoradas. Compus uma canção chamada Na Primeira Manhã e dediquei a ele, porque na música eu falava sobre o Conde e o Passarinho, que é o nome de uma crônica dele. Ele se sensibilizou quando soube disso e mandou marcar um jantar comigo, queria me conhecer. Mas eu, timidamente, não fui. Poucos dias depois, eu dei uma entrevista aqui no Rio de Janeiro, não me lembro para qual jornal, e falei sobre a influência da obra de Rubem Braga no meu trabalho. Citei Eu e Bebu na Hora Neutra da Madrugada. E então, o jornalista escreveu tudo errado. Eu disse: “Vou ligar hoje para Rubem Braga”. E liguei. Mas nesse dia, ele estava carrancudo, taciturno (risos). Eu então conversava com ele, e ele monossilábico. Eu pedia desculpas, e ele monossilábico. Eu ia me desculpando e ele ia me dizendo que “não tinha importância”. Eu botei o rabo entre as pernas, dei boa noite e parei de incomodar meu ídolo. Mas eu não fiquei decepcionado com ele, não. Logo depois, eu soube que ele era assim mesmo. Se você fosse o protagonista de Eu e Bebu na Hora Neutra da Madrugada, o que diria ao demônio? Eu diria: “Você vá conversar com Rubem Braga que lá você arranja uma crônica melhor” (risos).

O escritor Rubem Braga, ídolo de Alceu Valença: “Ele me recebeu carrancudo”

É verdade que você fingiu-sse de corcunda para fugir do serviço militar? É. Um amigo meu, chamado Tomás, foi jogador de basquete comigo no Clube Náutico Capibaribe. Quando eu fiz 18 anos, teria de servir o Exército, e ele me falou que tinha um amigo, um tenente, que poderia quebrar meu galho. Pegou meu nome completo e entregou para esse tenente, conhecido como Canavelo. Ele me disse: “Serão formadas duas filas na frente do Forte das Cinco Pontas e ele vai estar na fila do lado direito. Ele vai quebrar teu galho. Você vai dizer ‘Alceu Valença’ e ele vai te ajudar”. Eu fiquei do lado direito, mas, de repente, veio um cabo ou sargento e disse que a fila da direita estava muito grande – talvez porque esse tenente quebrasse o gaContinente Multicultural 9


Geraldo Azevedo, parceiro de Alceu Valença no seu primeiro disco, em 1972

lho de muita gente (risos). Ele disse: “Todo mundo vai passar para a fila da esquerda”. Eu tentei enrolar e ficar na minha fila mesmo. Passei para o lado esquerdo e depois voltei para o lado da direita. Aí eu me lasquei, o camarada deu um esporro em mim e eu fiquei na fila que não era a do tenente Canavelo. Quando eu entrei para fazer o exame, nu, comecei a ficar corcunda. Quando o camarada me mediu – eu tinha 1,76m – deu quase 1,70m. O homem disse: “Fique direito, levante essas costas!” Eu disse: “Eu não posso”. Ele perguntou: “O que aconteceu?” Eu respondi: “Foi uma queda, faz uns dez anos” (risos). Quando eu vi, estava escrito letra “D”: incapaz para o serviço militar. Você formou-sse em Direito pela Faculdade do Recife, mas fracassou como advogado. O que aconteceu? Eu não fracassei, porque nem comecei. Estava me preparando para a grande batalha nos fóruns. Já tinha trazido dos EUA um paletó preto, tinha ga-

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nhado dos hippies uma gravata preta e branca e um lenço. Tinha uma cabeleira grande e uma barba preta. Um rapaz super elegante (risos). A minha noiva na época, Eneida de Lemos, era filha de um advogado, chamado Prudenciano de Lemos. Ele tinha uma vontade muito grande que eu permanecesse jornalista ou advogado, porque ele sabia que eu já estava me encaminhando para a música. Fui convidado para trabalhar no escritório dele. Meu primo Clávio Valença conseguiu umas cobranças judiciais de uma firma chamada Prolar, uma loja de eletrodomésticos. Então mandavam as cartas para os devedores da empresa, convocando para irem ao escritório saldar suas dívidas ou então serem acionados na Justiça. Eu nunca tinha recebido nenhum cliente no escritório. Até que chega o primeiro devedor. Dei uma rodadinha na cadeira e fiz de conta que estava datilografando, para fazer suspense. Depois, dirigi-me a ele e perguntei o que ele queria. Ele me disse que era “televizinho” e tinha comprado a televisão porque o plano que tinha sido apresentado a ele seria muito fácil de


ALEXANDRE BELEM / TITULAR

Commercio de que os comerciantes de Itaiobim, Minas Gerais, do setor de carnes, estavam comprando os jumentos do Nordeste, levando para Itaiobim, abatendo e mandando para o Japão. Eu “filei” a reportagem e disse que esse fato tinha acontecido na cidade de São Bento do Una, quando um comerciante tentou comprar o animal de carga de um feirante. O feirante se recusou e ele fez uma oferta maior. O feirante se recusou mais uma vez a vendê-lo e o comerciante fez uma oferta ainda maior. Então o feirante disse a ele que não vendia aquele animal de carga porque ele serviu a Maria e a José na fuga do Egito. E aquele traçozinho que havia no lombo do bicho, uma mancha, foi o xixi de Nosso Senhor Jesus Cristo quando era criança, na fuga do Egito. Mais uma vez o comerciante mineiro aumentou a oferta e então o cara falou: “É melhor o senhor voltar para o ramo de bonde mesmo, porque o meu jumento o senhor não leva, não”. Pois bem: cinco dias depois, o Jornal do Commercio, “filou” a matéria inventada por mim no JB. Só que saiu assim: “É melhor o senhor voltar para o ramo de bode” (risos).

pagar. Eu digo: “Mas por que o senhor não pagou?” Ele disse: “Não paguei porque sou gari da prefeitura, se eu tirar essa prestação meus filhos vão morrer de fome, eu tenho dez filhos para dar de comer”. Então, eu disse: “Meu amigo, o senhor foi induzido pela Prolar e pela propaganda da televisão. Por favor, não pague. Não sou eu que vou lhe cobrar”. Dei um dinheiro para ele pegar um ônibus. Logo atrás dele saiu aquele jovem advogado que nunca mais voltaria a nenhum escritório de advocacia. Você trabalhou também na imprensa, mas disse numa entrevista que era um “jornalista mentiroso”. Qual foi a maior mentira de sua curta carreira de repórter? Minha mentira era sobretudo colocar São Bento do Una no mundo. Tudo o que acontecia em Pernambuco, eu dizia que tinha acontecido em São Bento do Una. Na época, eu trabalhava na sucursal do Jornal do Brasil, e a gente tinha o direito de “filar” os jornais do Recife. Houve uma notícia no Jornal do

Em 72, você gravou seu primeiro disco, em parceria com Geraldo Azevedo. Você se lembra do primeiro encontro com ele? Meu primeiro encontro com ele foi na casa de um amigo em comum chamado Wilson Lira, aqui no Leblon. Geraldinho Azevedo, com seus cabelos anelados, parecia um carneiro. E eu, Alceu Valença, com minha cabeleira grande e minha barba, parecia um bode patriarcal. Eu vinha muito tímido, porque estava deixando o jornalismo e não sabia muito bem se eu tinha capacidade de furar o bloqueio das gravadoras. Nos Estados Unidos, eu adquiri uma vontade muito grande de fazer uma música moderna, mas com uma raiz pernambucana, usando os maracatus, as cirandas, o som da banda de pífanos. Eu tinha essas composições todas, mas não sabia se eu ia ser aceito. Até que encontrei com Geraldo e ele disse: “Você faz uma música bacana”. Fiquei lisonjeado, porque ele harmonizava muito bem, era um músico maravilhoso. Nesse momento ele estava vindo de uma prisão, na época da ditadura, e eu comecei a chamar ele: “Você precisa cantar”. Ele estava fazendo desenho industrial e eu disse: “Deixa isso, vamos fazer música”. Continente Multicultural 11


MILTON MICHIDA / AE

Zé Ramalho, amigo que já entrou em atritos com Alceu

viajava pelo Brasil com meu violão, fazendo show em tudo que é canto. Daí em diante, eu não tive mais tempo para ter parceiro. E eu sou uma pessoa que faz música e letra. Eu tenho umas 300 canções dentro de um baú. Faço música toda hora. Quando vou fazer um disco, já tenho canções de sobra. E os meus discos têm unidade, são quase uma suíte. Cada disco tem um timbre, uma história. Isso pelo fato de eu ser autor e compositor.

Zé Ramalho tentou agredi-llo com um violão num show em São Paulo, na década de 70. Qual foi o motivo da briga? Eu nunca briguei com Zé Ramalho, Zé Ramalho é que estava brigando consigo mesmo. Ele queria fazer uma carreira solo, com todo o direito. Eu dava a maior força. Ele tinha um talento muito grande, tocava viola e fazia canções. Dentro do meu show, eu abria um espaço para ele cantar suas músicas. O show foi o maior sucesso no Rio de Janeiro. Acabou a temporada e ele voltou para a Paraíba, queria ficar lá. Eu o substituí por um outro violeiro, que na hora h enlouqueceu e não quis ir para São Eu nunca briguei com Zé Ramalho, Paulo, onde seria a nova temporada. Foram chamar Zé Ramalho, mais uma Zé Ramalho é que estava brigando vez: ele veio, mas não estava com vonconsigo mesmo. Ele queria fazer tade. Não queria mais acompanhar nincarreira solo, com todo o direito guém. Já chegou doidão, tinha tomado ácido com o Paulinho Rafael, e começou Alguns críticos dizem que você é melhor no a esculhambar a produção, dizendo que não prestapalco, enquanto Geraldo Azevedo se sobressai em va, que bom era o show do Jards Macalé, que a prodisco. Você concorda com esta comparação? dução estava uma bosta. Começou o show. Ele canNão, porque nós somos absolutamente dife- tava um música em homenagem à mãe dele, Jacarerentes. Geraldo faz o disco dele e eu faço o meu. Ge- paguá Blues. Quando chegou a hora, ele cantou uma raldo tem a postura dele no palco e eu tenho a minha. outra música. Os músicos saíram apavorados, porNo primeiro disco, você vê que ele tem um estilo e eu que não sabiam acompanhar, não conheciam a hartenho outro. monia. Mas eu deixei. No intervalo, perguntou se eu tinha visto o que ele tinha feito. Eu disse que sim. Ele Você tem dificuldades em dividir suas com- perguntou se eu tinha gostado. Eu respondi: “Zé, eu posições com parceiros? gostei, mas quem não gostou foram os músicos, que Eu não divido composições porque eu não te- passaram vergonha”. Aí ele disse: “O culpado de tunho tempo para parceiros. Moraes Moreira dizia do isso é você, que me trouxe para essa terra dos deque parceria é um casamento. Você tem que conviver, mônios. Você quer que eu volte para tocar?” Eu resnão é uma coisa fria, distante. Houve um determina- pondi: “Zé, você volta se quiser”. Quando eu estava do momento em que eu tive um grande parceiro, cantando, ele entrou sem camisa, com um turbante. Vicente Barreto, maravilhoso, músico fantástico. Alguém da platéia disse: “Zé, fique de frente, senão Com Geraldinho, nós fizemos essas três ou quatro você desaparece. Está muito magro”. Ele puxou a canções, e depois eu caí no mundo, na estrada. Ge- viola e anunciou: “Zé Ramalho, da Paraíba, vai fazer raldo ficou muito mais tempo no Rio, enquanto eu uma homenagem a Sérgio Ricardo” – que era uma 12 Continente Multicultural


cara que tinha quebrado o violão num festival. Quebrou o violão. O show era tão maluco que eu bati palmas e o público pensou que fazia parte do espetáculo e aplaudiu também.

ARTE SOBRE REPRODUÇÃO / AE

Glauber Rocha, cineasta que sofreu patrulha ideológica

Você sempre misturou ritmos regionais com o rock e o pop. Hoje, é venerado pelos novos grupos de forró, como o Falamansa. Você acha que esta nova geração é sua sucessora ou concorrente? Nem sucessora nem concorrente, porque nós estamos na estrada juntos. No fundo, tenho uma satisfação muito grande de ver as pessoas que estão trilhando um caminho que eu já trilhei, ou seja, o caminho da valorização da cultura popular. Cultura que está morrendo, que é anciã hoje, em virtude da falta de vontade política dos ministérios de cultura que se sucedem, ou da falta de curador que o Brasil tem. No Brasil, tudo o que “presta” é o que vem de fora, o que pareça com algo de fora. Não concorro com ninguém, porque sou diferente. Quando você tem uma música original, que sai de dentro de você, não se é maior nem menor que ninguém. Na arte o que interessa é a diferencialidade.

Quem mais apanhou da imprensa e das elites ditas democráticas por exercer a cidadania no Brasil foram Glauber Rocha e Alceu Valença. Conseguiram talvez matar o Glauber, mas o Alceu, não

Dizem que, ao ver o show do Ave Sangria, no Recife, você teve exatamente a idéia do caminho que queria seguir como músico. Você reconhece a influência do Ave Sangria em sua carreira? Não (categórico). No Recife, existe uma coisa muito interessante: nunca ninguém é influenciado por Alceu Valença, mas Alceu Valença é sempre influenciado pelas bandas do Recife. Eu simplesmente usei os músicos do Ave Sangria para uma música que é minha, absolutamente minha. Procure ver o disco do Ave Sangria e procure ver o meu. Procure ver o que eu já fazia com Planetário. O Ave Sangria era muito mais ligado a Beatles e Rolling Stones. Eu não, eu usava as guitarras elétricas em função de uma música nordestina, tradicional. Quem dá o tom do meu trabalho sou eu, Alceu Valença. Os músicos vão passando. Ficou Paulinho Rafael, que veio do Ave Sangria, e foi orientado por mim em relação à música do Nordeste. Vão passando os músicos, mas a música de Alceu Valença é a mesma, mudando de acordo com seu tempo, mas com sua originalidade e com seu diferencial.

Ainda faz sentido a briga do frevo baiano contra o frevo pernambucano? Não existe sentido nenhum na briga de música com música. O frevo pernambucano usa sobretudo metais, é quase sempre feito por músicos de orquestra, que sabem ler partitura. O frevo baiano é calcado em guitarras elétricas e marchinhas, é muito influenciado pelas marchinhas cariocas. São dois sotaques absolutamente diferentes. A Bahia faz uma outra música, também maravilhosa, mas não se confunde. Eu talvez colocasse o nome nessa música baiana de “trevo”. Sua experiência em cinema começou e terminou com o filme A Noite do Espantalho. Por que não deu continuidade à carreira de ator? Porque era sempre convidado para fazer o mesmo papel (risos). Eu fiz o papel do espantalho no filme e isso foi um impulso muito grande para minha Continente Multicultural 13


carreira. Os críticos me viram atuando, e babaram. Procuraram-me para fazer outros filmes, mas o papel era sempre meio parecido com aquele. O Paulo Ubiratan, pouco antes de morrer, me chamou para fazer um papel numa novela. Talvez eu tivesse aceitado, mas o meu problema são os shows, faço uma média de dez por mês.

AE

Há dois anos, você sofreu uma cirurgia de coração. Chegou a ensaiar suas últimas palavras? As últimas palavras que gritei, antes de entrar para a sala de cirurgia, foi: “Viva a pátria brasileira!” Pensei simplesmente numa palavra: “fragilidade”. “Como tudo é frágil”, fiquei pensando, calado no meu canto, na UTI.

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Vão passando os músicos, mas a música de Alceu Valença é a mesma, mudando de acordo com seu tempo, mas com sua originalidade e com seu diferencial


Em trinta anos de carreira, do que você mais se orgulha e mais se arrepende de ter feito? Não me arrependo de absolutamente nada. Orgulho-me de ter resistido a todas as solicitações do mercado, a todas as solicitações das gravadoras para eu fazer outro tipo de música. Tenho orgulho de fazer o que faço, do jeito que eu faço, e de ser dono do meu nariz. Nunca fiz concessão antes de fazer sucesso, avalie se vou fazer agora. Os discos que fiz seriam assinados hoje em dia. Você está satisfeito com a vendagem de seus discos? Quantos são vendidos hoje? Meus discos vendem aos pouquinhos. Eu não gosto de falar isso porque é uma besteira, mas um disco sem tocar uma vez no rádio, como Forró Lunar, vendeu 250 mil cópias. Sem nenhum apoio da gravadora, sem nenhuma música no rádio. Só pelo fato de tocar nos forrós, de comprarem no meu show. Mas eu não me incomodo muito com números. O que você está preparando para 2002? Eu tenho o roteiro de um filme. É um cordel virtual acerca da inveja, da fama e do tempo. Talvez eu mesmo dirija. É o primeiro roteiro que eu faço. Tenho também diversas músicas, e devo sair com um disco. Não sei até agora qual é que eu escolho. Eu tenho disco que gravei na França, em 79, que nunca saiu aqui. Eu tenho um disco de Carnaval que gravei. Tem um disco de São João que posso vir a fazer. São vários projetos.

Você se ressente da polêmica que se criou por causa de seu apoio a Joaquim Francisco, em 91? Eu acho política uma coisa um tanto quanto perigosa de se fazer quando se é independente. A maior bobagem que eu fiz na política de Pernambuco foi tentar ser livre, ir de acordo com o meu momento e a minha visão de futuro. Eu estava querendo mostrar em Pernambuco que a política não é feita por blocos monolíticos. Hoje eu vejo o Lula dizendo que precisa fazer alianças, inclusive com o PL. Eu fui tão massacrado em Pernambuco por causa de meu apoio a Joaquim Francisco e vejo Joaquim Francisco e Jarbas Vasconcelos no mesmo palanque. Naquele momento, eu falava sobre uma nova maneira de se fazer política no Brasil, porque nós já não estávamos dentro de uma ditadura. E eu sofri mais do que os ladrões crucificados ao lado de Cristo. As pessoas que mais apanharam da imprensa e das elites ditas democráticas por exercer a cidadania no Brasil foram Glauber Rocha e Alceu Valença. Eles conseguiram talvez matar o Glauber Rocha, mas o Alceu Valença, não. Eles podem ter entupido várias artérias do meu coração, mas consegui sobreviver para comprovar. Isso é uma dívida muito grande que as pessoas têm comigo, inclusive pelo direito e pela oportunidade de hoje exercerem o que elas querem politicamente. Aquilo foi a maior sacanagem que fizeram comigo. Um dia eu vou contar tintim por tintim essa história em um livro. Eu vou abrir o meu verbo. Eu passei muito tempo calado com relação a isso. Eu apanhei calado. Contavam toda sorte de mentira com relação a minha vida pessoal, queimaram meus livros e discos. Eu vou comentar de peito aberto essa história num livro de memórias. Mais um vez, continuo sendo uma pessoa que pensa independente. Se me acham anarquista, eu digo: “Anarquista, graças a Deus”. Luciano Trigo é jornalista

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SÉCULO 21

Os demônios do ser brasileiro Cada nação, cada povo tem seus demônios falando escondidos nos rituais do cotidiano coletivo

O

s religiosos explicam o desequilíbrio individual pela presença de demônios nos corpos e mentes das pessoas; para Freud os demônios vivem dentro dos sujeitos e são obra de sua história sexual infantil; os sociólogos encontram os demônios da sociedade humana nos fatos sociais, enquanto os marxistas na cultura individualista e capital-acumuladora. Os demônios estão sempre presentes, são invisíveis e nos levam ao erro, a ignorar os conflitos no nível do falar e do fazer, do ver e do traduzir, do ser e do querer ser. Cada nação, cada povo tem seus demônios falando escondidos nos rituais do cotidiano coletivo. Dois demônios da cultura do ser brasileiro existem em pontos radicais. Como a favela que divide o espaço com os condomínios, cada um possui suas formas, valores e leis. Não são contrastes, são oposições que nascem, fixam-se em extremidades e

estabelecem um dialogo funcional, mas excludente e violento. São oposições dualistas apenas nas leituras superficiais. Como numa sucessão de caixas dentro de caixas, na verdade, são multi-dimensionais. Não é mais apenas o conflito entre o pai e filho, o patrão e o operário, é também entre a mãe e o pai, os que trabalham e os desempregados, entre os com-terra com os sem-terra. O irmão mata o irmão rico não mais pelos bens, mas apenas pelo ego. O menino de rua que vai à escola mata o menino de rua que trabalha ou trafica não pela ordem, mas pela inveja. Esta base social dividida em extremos produz uma cultura radicalmente desequilibrada. “Independência ou Morte” foi a verbalização do pecado original. Depois vieram muitas outras como “Ame-o ou Deixe-o”, sendo “Exportar ou Morrer” o último exemplo. A visão do país produzida neste estado de ausência de identidade sã é, de um lado, de um país superpotência, Brasil Imperial, Gigante Adormecido capaz de se impor ao resto do mundo. Por outro lado, é de um pais eternamente subdesenvolvido, explorado pelos estrangeiros e mergulhado para sempre na injustiça e corrução.

Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 16 Continente Multicultural


Ser ufanista e querer ser o melhor do mundo e ao mesmo tempo lamentar a situação de ser subdesenvolvido e explorado como mero objeto pelos poderosos no mundo. Entre o voluntarismo e a resignação inexiste meio termo. Quem não tem pecado que atire a primeira pedra. Denunciar a prática do abuso do bem público quando na oposição, e abusá-lo quando no poder. Fugir do Brasil e viver longe, com saudade e declarando que não existe melhor lugar no mundo que este aqui; ou negá-lo vivendo no Brasil, mesmo considerando-o inviável, e sonhar com a Europa ou América do Norte como modelo. Um demônio acusa o outro sem face; o sem face se esconde por trás de heróis. Como em toda cultura autoritária as figuras do bode expiatório e do herói são a base da percepção política. Os portugueses, os ingleses, os americanos, a escravidão, os políticos, os empresários, o negro e o índio, o povo, todas entidades sem rosto são responsáveis pelas desgraças do pais, nunca os sujeitos. Mas os sujeitos também se escondem por trás dos heróis. Antônio Conselheiro ou Caxias, Prestes ou Vargas, Fernando ou Lula. Salvem o Brasil ou tornem-se mitos que um dia tentaram salvá-lo! Onde estão as biografias honestas destes cavalheiros? Quando existem, estão perdidas no oceano de elogios ou críticas pouco fundamentadas. Na vida não se perdoa a derrota. Se a seleção perde, então vestiremos a camisa do adversário. Se a oposição perde é por que é incompetente e não

tem condições para administrar o governo. O nosso conforto depende da nossa retórica em por a culpa no outro. Se no mundo dos brasileiros vivos dois demônios reinam, o mundo dos mortos pertence aos santos. Com a morte tudo será perdoado. Então todas as críticas e todos os crimes são esquecidos e os jornais farão obituários falsos e as editoras encomendarão biografias heróicas. Os que sabem ler e podem consumir torcerão por um final digno e feliz, como quando se acompanha uma novela de televisão. E, finalmente, cai o manto do descrédito e ignorância sobre o inocente que levanta uma dúvida, sobre o pesquisador que percebe uma falha, sobre o menino de rua que grita: Olhem, o Rei está nu ! O querer ser, o coração não deixa lugar para a razão nem para o cidadão, homem e mulher comuns. Estes devem aceitar e repetir os dogmas de seus “intelectuais”. O cidadão é mero transmissor dos demônios, tramas e covardias de suas elites. E assim passamos os dias a discutir qual colonizador poderia ter melhor nos beneficiado, o holandês ou o português, o anglo-americano ou o soviético, ou a falar de Brasil Grande e Global Trader, ou mesmo flanar sobre se tal ou qual personagem caudilhesca poderia ou ainda poderá salvar o Brasil. Assim, esquecemos o que somos, nos perdemos entre dois demônios, não discutimos o que queremos ser. Marcos Guedes é ensaísta e professor da UFPE e-mail: guedes@hotmail.com


CRÔNICA

Memórias P Eis os personagens do livro que não foi escrito: Woody Allen, Mikhail Gorbachev, Margareth Thatcher, Paul McCartney, Yoko Ono, Princesa Diana. Geneton Moraes Neto

eço licença aos sócios do meu restritíssimo clube de leitores para escrever na primeira pessoa. Faço um passeio anárquico pelo Museu da Memória, em busca de personagens que cruzaram o caminho do repórter. Todos foram protagonistas de cenas de bastidores – que ficaram de fora das reportagens. Folheio mentalmente a minha Pequena Enciclopédia de Celebridades – um livro que jamais foi escrito. As imagens, nítidas, vão se sucedendo. Ei-las:

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Allen, Woody A máquina de relações públicas da distribuidora encarregada de lançar um filme de Woody Allen oferece uma entrevista exclusiva com o ator e diretor, na suíte de um hotel plantado às margens do Hyde Park, em Londres. Tento ser britanicamente pontual: chego na hora. A assessora me leva para uma ante-sala. Vai embora. Um minuto depois, chega o astro. É igual ao que se vê no cinema: tímido, esfrega as mãos enquanto fala, olha para o

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chão, solta tiradas geniais. É pálido como um boneco de cera. Pergunto se ele admira algum brasileiro. Tenho certeza de que Woody Allen – fanático por esportes – vai citar Pelé ou Romário ou Ronaldinho. Quebro a cara. Allen se declara apaixonado por Machado de Assis. Ganhou de presente uma versão inglesa de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Lá pelas tantas, diz que precisa fazer um filme atrás do outro, para não olhar para a “nuvem negra” que paira vinte e quatro horas sobre seus ombros – a morte. Tento consolá-lo. Digo que os filmes que ele faz serão estudados daqui a 50 anos, nas cinematecas. Woody Allen responde que não quer a imortalidade no futuro. “Quero agora, já, no meu apartamento”. Infelizmente, não posso ajudar.

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Ono, Yoko Yoko Ono dá uma longa entrevista para falar sobre a exposição que fará em Brasília. São instalações de vanguarda – obras de arte que jamais serão degustadas pelo povaréu. O assessor (que também é namorado da viúva mais famosa do mundo) controla o tempo da entrevista. Fez-se um acordo prévio: nada de perguntas sobre vida pessoal. Deixo para o final uma pergunta sobre Lennon. Yoko Ono pousa a mão sobre minha perna, esboça um sorriso, diz que “numa próxima oportunidade” falará sobre o assunto. Gentilmente, dá por encerrada a entrevista. Não resisto à tentação de pedir um autógrafo. A única foto que encontrei mostra Yoko e John diante do Dakota – o prédio.

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prévias Em que o ex-beatle foi assassinado na noite do dia 8 de dezembro de 1980. Quando vê a foto, Yoko suspira, baixinho, algo como God... (“Deus...”). Termina assinando. Por um instante, involuntariamente, devo ter trazido uma péssima lembrança à superviúva. Sorry about that.

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Gorbachev, Mikhail Pouquíssimos estadistas podem dizer que mudaram o mundo. Mikhail Sergueivich Gorbachev faz parte dessa confraria. Bem ou mal, ele deflagrou o processo de abertura política e econômica que virou a União Soviética de pernas para o ar. O mundo mudou a partir do dia em que Gorbachev pronunciou pela primeira vez as palavras glasnost e perestroika diante das muralhas do Kremlim. Dizem que ele entende – e fala – perfeitamente o inglês. Mas, diante de repórteres estrangeiros, só fala russo. Faço a pergunta providencialmenContinente Multicultural 19


te traduzida por uma intérprete: “Os seus admiradores dizem que o senhor mudou o mundo”. Gorbatchev ouve com ar satisfeito. Quando a intérprete transmite a ele a segunda parte da pergunta – “mas seus detratores dizem que o senhor traiu os ideais do socialismo” – Gorbatchev franze a testa, como se estivesse fazendo um leve sinal de reprovação. Intimamente, espero pelo pior. Se estivesse de mau humor, Gorbatchev poderia acabar ali a breve entrevista. Mas não: prefere dar uma resposta aos detratores. Diz que a história, um dia, fará justiça aos que, como ele, apostaram na liberdade. Tenho vontade de pronunciar um “absolutamente certo!” como complemento à resposta do homem, mas me contenho. Um a zero, Gorbachev.

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McCartney, Paul O ex-beatle Paul McCartney, apontado pelo vetusto Daily Telegraph como o mais importante compositor de música popular do século vinte,

vai dar uma coletiva no Royal Albert Hall, numa manhã gelada, em Londres, para falar sobre a peça clássica que estava lançando em disco. Faço uma combinação com o cinegrafista. Em vez de nos dirigirmos ao auditório que servirá de palco para a coletiva, ficaremos do lado de fora, próximos à entrada principal do Royal Albert Hall. Quem sabe, num golpe de sorte, não conseguimos uma declaração exclusiva do homem. Fãs capazes de qualquer sacrifício descobrem, não se sabe como, que Paul falará aos jornalistas. Lá estão elas, indiferentes ao frio de rachar, num canto da calçada, à espreita. De repente, noto que um magrelo vestido de preto começa a falar discretamente num walkie-talkie. Faço um sinal para o cinegrafista. A celebridade deve estar chegando. Um carrão preto, com vidros indevassáveis, se aproxima lentamente da entrada do prédio. Quando notam, as fãs se agitam. O carro pára. Quem desce do banco traseiro? Só podia ser: Sir Paul McCartney, recém-condecorado pela Rainha. Avanço em dire-

Quando digo a Gorbachev que os seus detratores o criticam por ter traído os ideais do socialismo, ele franze a testa. Intimamente, espero pelo pior.

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ção à presa, com o microfone em punho. Fãs soltam gritos. Os brutamontes – popularmente conhecidos como seguranças – entram em ação para afastar todo e qualquer intruso – eu, inclusive. Paul acena para a turba. A única declaração que consigo captar é um monossílado – Hi! – versão inglesa para “Olá!” Em questão de segundos, ele desaparece dentro do prédio, cercado de seguranças por todos os lados. É uma luta inglória: enfrentar um daqueles brutamontes corresponde a desafiar Mike Tyson para um duelo, no meio da rua, numa manhã de inverno. Faltam-me proteínas para tanto. Lá dentro, na coletiva, Paul aponta aleatoriamente para um ou outro jornalista – que, bafejado pela sorte, pode balbuciar uma pergunta. Supercelebridade é assim. O dedo indicador do beatle me desconhece solenemente. Fica para a próxima. Além das declarações que o astro fez na coletiva, volto para a redação com a entrevista mais sucinta das tantas que tive a chance de tentar. “Olá.” E ponto final.

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Ray, James Earl Depois de negociações via fax com a direção do presídio de segurança máxima, consigo uma entrevista com um dos assassinos mais célebres da história dos Estados Unidos – o homem que matou o pastor Martin Luther King. Chama-se James Earl Ray. Cumpria pena de prisão perpétua numa penitenciária em Memphis, Tennessee. Uma pequena odisséia precede o encontro. Somos obrigados a fazer uma lista minuciosa de todo o equipamento que estamos conduzindo (fios, microfones, baterias). Depois, o guarda nos ordena que deixemos numa caixa todas as cédulas, moedas e talões de cheque que tivermos nos bolsos. O dinheiro é trancafiado num cofre. Vai ser devolvido na saída. Motivo: evitar que se faça qualquer pagamento ao prisioneiro em troca da entrevista. Depois, passamos por pelo menos cinco portões que isolam os detentos do resto do mundo. O próximo portão só se abre quando o anterior se fecha. Cercas eletrificadas completam o aparato. Penso comigo: é tecnicamente impossível escapar desse inferno. James Earl Ray chega para a entrevista mascando chicletes. Os olhos azulíssimos são espertos. O homem é articulado: fala bem, concatena com clareza suas idéias. Faço a pergunta que ele com certeza ouve há anos: você matou Martin Luther King? A resposta é su-

cinta: “Não”. Mas as provas são conclusivas: as impressões de James Earl Ray estavam no rifle usado para matar King em abril de 1968, na varanda de um hotel de Memphis. Martin Luther King tinha um sonho: acabar com o preconceito racial. James Earl Ray tinha um rifle. Termina a entrevista. Vacilo intimamente: devo ou não pedir um autógrafo ao assassino? Confesso que minha porção fútil venceu. Peço que ele autografe um livro sobre o assassinato. James Earl Ray me deseja, por escrito, “os melhores votos”. Resisti até hoje a vender o livro num desses leilões exóticos que povoam a Internet.

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Thatcher, Margareth A fila na noite de autógrafos é enorme. Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, que enContinente Multicultural 21


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trou para a história política como a primeira mulher a governar a Grã-Bretanha, tinha sido aplaudida de pé, por pelo menos cinco minutos, pela platéia que lotara o anfiteatro no centro de Londres para ouvir suas perorações contra a excessiva intromissão do Estado na vida dos cidadãos. Encerrada a conferência, ela desaparece nos bastidores, provavelmente para irrigar a garganta fatigada por tanto discurso. Mas volta logo ao palco, para uma sessão de autógrafos. Cercada por agentes de segurança, ela troca cumprimentos formais com os leitores enquanto assina os exemplares da autobiografia. Quem consegue o autógrafo é gentilmente convocado por uma assessora a desaparecer do mapa o mais rápido possível, porque ali não é lugar de puxar conversa com a Dama de Ferro. Penso com meus velhos botões: a hora do autógrafo pode ser, quem sabe, a chance ideal de arrancar uma minientrevista. Fora dali, Margareth Thatcher é tecnicamente inacessível, pelo menos para repórteres vindos do Brasil, esta república que, aos olhos dos ingleses, é um território quente, distante e exótico. Chega a minha vez. Vista a um palmo de distância, Margareth Thatcher é um monumento à palidez. A maquiagem só acentua a brancura. Faz movimentos espaçados com a boca, como se estivesse mastigando ar (um espírito de porco diria que os movimentos lembram o de alguém desprovido de dentes). Faço um pedido no instante em que ela saca a caneta para pingar o autógrafo no calhamaço: “Se Margareth Thatcher fosse definir Margareth Thatcher em uma só palavra, qual seria ela? A senhora se importaria de escrever esta palavra junto do autógrafo?” 22 Continente Multicultural

Por um instante, os olhos azuis da Dama de Ferro me fitam, inquisidores. A fera dá a impressão de estar vasculhando mentalmente o dicionário em busca da palavra mágica. Mas a palavra mágica não vem. A Dama de Ferro diz: “Desculpe, mas não posso me definir em uma palavra apenas. Vou lhe dar o autógrafo. Muito obrigado. Boa noite”. A mão estendida é sinal de que minha miniaudiência com Miss Thatcher estava encerrada. Dos males, o menor: volto para casa com duas frases no meu caderno de anotações. É um avanço considerável, se comparado com o “olá!” de Sir Paul McCartney.

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Diana Não há outro pensamento possível: fico ruminando sobre o absurdo da vida ao ver o caixão passar a dois passos de onde estou, numa alameda nas proximidades do Palácio de Buckingham, numa manhã de setembro. Há apenas uma semana, a Princesa Diana, linda, ilustrava a capa de uma revista numa foto deslumbrante em preto e branco. Agora, a Princesa é um corpo – invisível – desfilando diante de uma multidão de súditos em estado de choque. Crianças pregam nas árvores folhas de papel com mensagens e desenhos que a Princesa jamais verá. Os príncipes William e Harry caminham em companhia do pai, o Príncipe Charles, herdeiro direto do trono, logo atrás do caixão. De vez em quando, o Príncipe Charles faz movimentos quase imperceptíveis com a cabeça, como se agradecesse a presença da multidão. Cabisbaixos, seus dois filhos não tiram os olhos do chão. A multidão não emite um ruído sequer. Só se ouvem dois ruídos. Um é o som do trote dos cavalos que transportam a carruagem fúnebre. O outro é o badalo compassado do sino da Catedral de Westminster. Com intervalos regulares, o sino enche a manhã de um som solene, triste, trágico. A visão da multidão em silêncio, o som compassado do trote dos cavalos e o toque estranhamente assustador do sino da Catedral dão à cena ares de uma tragédia shakespeariana. Perto dali, uma cena inacreditável: um bêbado trajando luto pronuncia palavras incompreensíveis diante da estátua de Charles Chaplin, na Leicester Square. São onze da manhã. A conversa do bêbado com Carlitos completa a sucessão de cenas absurdas naquele setembro inesquecível.


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A multidão em silêncio, o trote dos cavalos e o toque estranhamente assustador do sino da Catedral dão ao funeral de Diana ares de tragédia shakespeariana

Que segredos o bêbado terá confiado ao Vagabundo?

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Best, Pete Não pode haver ninguém tão azarado sob o sol da sede do ex-Império Britânico. Durante dois anos, um baterista de Liverpool chamado Pete Best tocou com Paul McCartney, John Lennon e George Harrison num grupo recém-formado chamado The Beatles. Um dia, o empresário dos Beatles chama Pete Best para avisar que, a partir daquele momento, o grupo terá outro baterista, um certo Ringo Starr. Ironia das ironias: enquanto os Beatles conquistavam fama mundial, Pete Best amargava os dias como funcionário público numa agência de empregos de Liverpool. As tentativas de fazer uma carreira solo naufragaram. É lá que vou encontrá-lo, depois de uma primeira abordagem telefônica. O ex-beatle me faz uma surpresa. Quando já estou na Inglaterra, ele diz que costuma cobrar um cachê por entrevistas – exatas 500 libras, o que corresponde a 800 dólares. Cumpro a exigência, para não perder a viagem. Durante a entrevista, ele comete confidências sobre as farras homéricas que fez em companhia dos outros beatles, nas excursões a Hamburgo, na Alemanha, no início da carreira. Em companhia de Lennon, tentou roubar a carteira de um marinheiro na saída de um show num clube noturno. Fãs afoitas freqüentavam em sistema de rodízio as camas dos Quatro Cavaleiros de Liverpool, num alojamento nos fundos de um cinema decadente. Continente Multicultural 23


Terminada a entrevista, Pete Best convida-nos para tomar um chope num pub na Mathew Street – a ruela de Liverpool onde os Beatles fizeram suas primeiras apresentações, no célebre Cavern Club. Lá pelas tantas, depois de inspecionar o ambiente com um olhar demorado, faz uma confissão: assim que soube que tinha sido dispensado do grupo, dirigiu-se exatamente a este pub, para tomar um porre homérico. Trinta e tantos anos depois, ele revive a cena, em companhia de um forasteiro sul-americano. Meninos, eu vi: por um breve fim de tarde, um ex-beatle afogou suas mágoas em minha companhia, diante de copos de chope morno. Assim caminha a humanidade.

Oswald esperou com um rifle nas mãos a passagem da comitiva presidencial. Chego ao encontro na hora marcada. Como identificar James Tague? Noto que um texano típico – devidamente paramentado com botas de cowboy – caminha de um lado para outro na calçada do Depósito de Livros. De vez em quando, me olha, como se quisesse adivinhar quem sou. Fico imaginando se aquele cowboy é o meu personagem. Faço a pergunta: “Mister Tague?” O cowboy estende a mão, abre o sorriso, diz que estava desconfiado de que eu era o tal repórter brasileiro que marcara o encontro por telefone. Depois de apontar para a janela de onde saíram

Quando pergunto se ele acha que um dia o “Crime do Século” será definitivamente esclarecido, o cowboy responde com uma palavra: “Não” os tiros, caminha até uma cerca – que, segundo os crentes em teorias conspiratórias, serviu de esconderijo para o segundo atirador, jamais encontrado. O cowboy vendedor de carros usados engrossa o coro dos que dizem que Lee Oswald foi o único assassino, mas deixa em aberto um pequeno espaço para a dúvida. Quando pergunto se ele acha que um dia o “Crime do Século” será definitivamente esclarecido, o cowboy responde com uma palavra: “Não”. Depois, troca cumprimentos, diz que precisa voltar ao trabalho e desaparece no começo da tarde de Dallas. Por um desses acasos que só acontecem uma vez num século, o anônimo cowboy texano foi testemunha e coadjuvante de um dos maiores crimes da história. REPRODUÇÃO

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Tague, James O assassinato do presidente John Kennedy, ao meio-dia e meia da sexta-feira 22 de novembro de 1963, teve uma vítima desconhecida: um passante – que só parou para ver a passagem da comitiva porque o trânsito estava engarrafado – foi ferido na bochecha pelo estilhaço de uma das balas disparadas pelo ex-fuzileiro naval Lee Oswald contra o presidente. Nome da vítima: James Tague. É citado no relatório oficial sobre a morte do Presidente. Hoje, ele é comerciante de carros usados. Dá uma resposta afirmativa ao meu pedido de entrevista, feito por telefone. O encontro fica marcado para o único endereço que conheço em Dallas: o célebre Depósito de Livros Escolares do Texas. De uma janela, no sexto andar do Depósito de Livros, Lee


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Francis, Paulo Sábado à tarde numa livraria em Piccadilly Circus, no centro de Londres. Folheio ao acaso livros na seção de obras clássicas de uma livraria. De repente, um tapa nas costas me assusta. Viro-me. Ei-lo: Paulo Francis. Sorridente, diz que ficou satisfeito em me ver ali, porque eu estava na única “seção que presta”: a dos clássicos. Fico pensando que fui salvo pelo gongo. Por puro acaso, estava na seção dos clássicos, entre gigantes da literatura universal. Minutos antes, estava folheando livros ilustrados sobre futebol – obras de peso intelectual zero. Devo ter dado a Francis a impressão – errônea – de que era um freqüentador habitual da seção das obras-primas de todos os tempos. Como o equívoco era a meu favor, não me animei a corrigi-lo. Um dia antes, Francis tinha repassado comigo uma possível lista de entrevistas que ele poderia fazer para a TV. Já tinha gravado uma com Martin Amis. Agora, faria com a escritora de romances policiais P. D. James. Animado, citei vários nomes de escritores acessíveis. Por que não fazer com Paul Johnson? Que tal J. G. Ballard – que tinha publicado há pouco um livro de ensaios? Diante deste nome, reagiu com moderação.

Ao notar meu entusiasmo na escalação de possíveis entrevistados (eu não dizia, mas, na verdade, estava saboreando ali a chance de discutir pautas com um dos meus ídolos jornalísticos), Francis fez o seguinte comentário, típico de um velho lobo certamente desiludido com o Estado Geral das Coisas: – Você viu aquele filme Se7en? Você se lembra do que o personagem de Morgan Freeman diz no final do filme? Depois de citar uma frase de Ernest Hemingway – “O mundo é um belo lugar para viver; vale a pena lutar por ele” – Morgan Freeman diz o seguinte: “Concordo com a segunda parte”. Pelo jeito, você parece que concorda também... Aquele foi o penúltimo encontro com Francis, o autoproclamado “lobo hidrófobo”. A última frase que ele escreveu, no último livro que publicou (Trinta Anos Esta Noite), foi tristemente profética: – Nos esforçamos, contra a corrente, que nos traz incessantemente para o passado. Vemos a luz verde, o futuro orgiástico, que ano a ano reflui, sempre elusivo, sempre ao nosso alcance, intangível, até que no meio de uma frase nos dêem um ponto final...

Geneton Moraes Neto é jornalista


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ANTROPOLOGIA

Do Carna REPRODUÇÃO

Depois de décadas de pesquisa e estudo, o poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna está se preparando para pôr o ponto final no seu livro mais ambicioso, ainda sem título: trata-se de uma investigação profunda sobre a carnavalização e seu papel na conformação da identidade e do temperamento nacionais. O ensaio servirá também para concluir uma trilogia sobre a a alma brasileira, da qual O canibalismo amoroso e Barroco – Do quadrado à elipse constituíram os dois primeiros volumes. O conceito de carnavalização foi lançado pelo teórico Bakhtin num texto sobre a poética de Dostoiévski, mas ganha novas dimensões nas mãos de Affonso, que não só o atualiza e adapta para nossa realidade como também mapeia as diversas manifestações do espírito carnavalizado em nossa sociedade – não somente manifestações culturais, mas também políticas e econômicas. Nesta entrevista exclusiva, concedida em seu apartamento em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro, Affonso apresenta pela primeira vez, de forma sistemática, as idéias e temas de seu próximo livro. 26 Continente Multicultural


GILBERTO LIMA / AE

Affonso Romano de Sant’Anna fala, pela primeira vez de forma sistemática, sobre seu novo livro, que trata da carnavalização e seu papel na conformação do temperamento nacional Luciano Trigo

val limpo e ordeiro ao caos dionisíaco e parodístico Seu livro Paródia, Paráfrase & Cia já tinha um capítulo intitulado “Carnavalização”. O ensaio que você está escrevendo prolonga e complementa aquele texto? Ou sua visão do tema mudou? Em que sentido? Aquele livrinho foi escrito nos anos 70 para instrumentalizar estudantes de Letras e Comunicação. Ali estão algumas sementes do livro futuro. A partir dos anos 80, publiquei uma série de longos artigos e poemas no Jornal do Brasil, posteriormente reunidos no livro Política e Paixão (editora Rocco, 1984), expondo e praticando a carnavalização não só em prosa, mas em verso. Lembro-me de que no ensaio Carnaval & Carnavalização, alertei: “Carnavalização é uma palavra de entrada recente em nossa língua. O dicionário Aurélio sequer a registra”. O resultado é que, na edição seguinte, o Aurélio emplacou o termo, usando como exem-

plo uma frase minha – o que, é claro, me deixou lisonjeado. Você já orientou mais de 30 teses sobre carnavalização. Que contribuições esta experiência trouxe para a sua reflexão sobre o tema? As teses geralmente nasciam de sugestões de pesquisa que os alunos colhiam nas salas de aula. Um professor não pode tratar exaustivamente de todos os aspectos que levanta. Daí que surgiram teses enfocando este assunto não apenas em Mário de Andrade, mas em Erico Veríssimo, Dalton Trevisan, Nelson Rodrigues, Augusto dos Anjos, Murilo Mendes, Jorge Amado, Roberto Drummond, Anibal Machado e, às vezes, no estudo das letras de música popular, na literatura de cordel e até em análises específicas de um ritual como a Octoberfest, que os alemães realizam em Santa Catarina. Continente Multicultural 27


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ção, incorporando-se Niestzsche, Freud, Marcuse e O’Brown pode-se ver como Eros e Tanatos se tensionam. Pode-se estudar aquele ritual do dia dos mortos, no México, quando as pessoas vão fazer piquenique na sepultura dos parentes e as crianças comem doces em forma de caveira; também se pode estudar sob esse prisma a filmografia de Fellini, um grande carnavalizador. Você já escreveu: “Dizem que o Brasil é o país do Carnaval. Outros povos e os turistas ficam perplexos ao ver como o país com as mais dolorosas e gritantes diferenças sociais do planeta pode esbanjar tanta vitalidade e alegria como se estivéssemos no melhor dos mundos”. Dá para sintetizar em poucas linhas a relação entre festa e rebelião, entre sexuali-

Em que medida o conceito de carnavalização é útil para se investigar a identidade cultural e o inconsciente social do país? Sua pergunta encaminha bem uma antiga perplexidade minha. O livro Que País é Este?, de 1980, já manifestava essa A carnavalização não me é só uma ânsia de saber se é possível configurar uma identidade brasileira. Ânsia que preocupação acadêmica, é uma surgiu complementarmente nessa in- maneira de sentir e expressar a vida terminável pesquisa sobre carnavali- em prosa e verso zação. Aliás, tanto este livro de poemas quanto A grande fala do índio guarani têm momentos de carnavalização explícita. Ou dade e fantasia, que se processa no Carnaval? O que seja, a carnavalização não me é só uma preocupação determinou que este fosse um fenômeno comportaacadêmica, é uma maneira de sentir e expressar a vida mental e estético tão tipicamente brasileiro? Por que em prosa e verso. Por isto digo que o conceito de car- gostamos tanto de transformar tragédia em comédia? navalização é fecundo e serve para se investigar a Onde se verifica – além, obviamente, do Carnaval – identidade de qualquer país e pode ajudar as pessoas a sobreposição do sacro e do profano, demolindo as a se verem melhor em suas culturas. Paralelizar o regras de interdição? Um dos tópicos que desenvolvo nesses estuCarnaval de Basel, na Suíça, com o Carnaval baiano nos ajuda a entender as diferenças entre uma cultura dos é justamente a relação entre Carnaval e guerra, calvinista repressora, que produz um carnaval limpo festa e rebelião, ou seja, essa passagem da festa à e ordeiro – um Carnaval da paráfrase – em oposição guerra e da guerra à festa. Neste sentido, é possível ao caos dionisíaco e parodístico dos trópicos. Neste ver a carnavalização fora do Carnaval, no dia-a-dia. sentido, meus estudos extrapolam necessariamente a Seja nas rebeliões de presídio ou no fenômeno dos caras-pintadas, que depuseram Collor. Mostrei isto em literatura, são interdisciplinares. Política e Paixão: de como a chegada dos exilados, em O Carnaval pode ser entendido como um es- 1980, e a emblemática sunga do Gabeira, carnavalizaram a política; em textos espalhados nos sete livros tado psicológico do brasileiro? Quanto à relação entre o Carnaval e a psicolo- de crônicas já publicados, analiso a figura de Collor gia do brasileiro, é possível fazer uma série de obser- como um coringa – peça solta e enlouquecida – na vações. Mas é bom que se esclareça que o fenômeno política nacional, ou mesmo a morte de Tancredo e a da carnavalização está em todas as culturas, é algo posse de Sarney como fenômenos de entronização e próprio do ser humano, está ligado ao “homo lu- desentronização, típicos das festas carnavalescas. Fesdens” de que falava Huizinga. Veja só o que ocorreu tas como o Triunfo Eucarístico, no século 18 em Mino Afeganistão: a alegria das crianças, mulheres e nas, ou o Círio de Nazaré, que vindo daquele século homens quando foi restabelecido o jogo, a festa e riso ampliou-se nos nossos dias, ficam mais significativas após a desentronização do Taliban. Pela carnavaliza- através da ótica da carnavalização. 28 Continente Multicultural


Em Roma, na ĂŠpoca do Carnaval, retirava-se uma pedra que tampava um buraco que, presumidamente, conectava ao mundo dos mortos. As caveiras no Carnaval sĂŁo uma referĂŞncia a isto


E fora do Brasil? Fora do Brasil é claro que também há muitos exemplos. O movimento de maio 68 na França, foi carnavalizador, o movimento hippie californiano, idem. Até os patéticos episódios do embalsamamento de Evita Perón e a função do seu cadáver na História argentina, também podem ser vistos pela ótica da carnavalização.

Que outras contribuições originais seu livro apresenta? Também aprofundo as questões do grotesco, estudando-o em confronto com o sublime. Os estudos sobre a morte e as pompas fúnebres em diversas culturas são fundamentais. Faço uma reinserção da literatura picaresca. Entro também pelo cinema – Carlito, Grouxo Max, Três Patetas e outros – reanaliso o futurismo e a arte moderna como 30 Continente Multicultural

episódios carnavalizadores da cultura e passo necessariamente pela contracultura, pelos hippies e pelo rock, tentando redefinir o que é esse “homem cordial” brasileiro, que é tão bem encarnado nos bicheiros e sua ambígua figura na vida brasileira. Você já disse que, originariamente, entre os gregos, a paródia era o canto que se desenvolvia ao lado de outro, contradizendo-oo. A paródia hoje funciona como um discurso crítico, que inverte o sentido de outro discurso. Que outro discurso seria esse? Como a paródia atua no Brasil de hoje? O Tropicalismo, por exemplo, foi um movimento carnavalizador. Virava o discurso oficial pelo avesso. Tomava as frases e expressões comuns da ideologia e as recortava paradisticamente. Atualmente, o rap tem muito a nos dizer sobre isto, seja com Gabriel o Pensador ou outros grupos até mais agressivos que surgem nas periferias. No cinema recente, tanto Caramuru, quando o Auto da Compadecida mostraram a força da paródia. Ariano Suassuna, aliás, ao buscar nossas raízes no teatro clássico e na Idade Média, retoma a linha carnavalizadora. Nelson Rodrigues está aí o tempo todo fazendo a crítica tragicômica da sociedade. Um dos meus alunos, Ricardo Oiticica, fez uma brilhante tese REPRODUÇÃO

Você utiliza o conceito de carnavalização tal como ele foi proposto por Bakhtin em seu livro sobre a poética de Dostoiévski? Ou atualiza e adapta para a realidade brasileira este conceito? O que você acrescenta de original à teoria crítica da carnavalização de Bakhtin? Bakhtin foi o grande marco. E pensar que ele escreveu seu livro em 1928, quando Mário de Andrade, sem lê-lo – pois ele seria traduzido para o Ocidente somente em 1970 – escrevia o carnavalizado Macunaíma. Aliás, Mário é o protótico do intelectual carnavalizador. Não é à toa que vivia se chamando de arlequim. Tinha uma visão arlequinal diante da vida. Aliás, este é um dos aspectos que desenvolvo e que não está em Bakhtin: a figura do arlequim. É fascinante rastrear o seu surgimento. Antes de configurar-se na Commedia dell’arte, já no folclore de vários países existia um personagem com um nome parecido. Só que era um guerreiro infernal – o Hallequin, que, no inverno, surgia com sua horda tribal invadindo vilas, saqueando e estuprando. Sua roupa era feita de farrapos, que semioticamente se metamorfosearam nos losangos do arlequim da Commedia dell’arte, da mesma forma que o violador se converteu no sedutor. É uma análise fascinante, que mostra a ambigüidade de muitas figuras. Ambigüidade que está na estrutura mesmo da carnavalização. Não dá para explicar aqui, mas até mesmo a figura do Papai Noel tem a ver com os ancestrais do arlequim.


REPRODUÇÃO

mo paradigma até hoje. O cinema brasileiro não perde isto de vista, tanto hoje quanto no tempo da Atlântida. Aliás, as novelas da Globo também. Algumas delas são tão fantásticas quanto as sátiras menipéias dos gregos a que aludia Bakhtin. É importante, a esta altura, no entanto, esclarecer o seguinte: não se trata hora nenhuma de catalogar autores e obras como sendo carnavalizadores ou não. Não se trata de fazer fichas ou criar escaninhos. A carnavalização não é um ponto de chegada, é um ponto de partida. É um instrumento para alargar a pesquisa, não para aprisionar obras em modelos. De resto, estaria traindo a si mesma como teoria.

Que textos da literatura brasileira e que músicos e artistas contemporâneos mais se aproximam da carnavalização? Em outras palavras, que autores mostram a nossa cultura em seus efeitos cômicos e grotescos, retratando seus rituais de máscaras, suas festas e orgias? Bastava tomar o que ocorre na música popular, que hoje resume a cultura do espetáculo, exibindo máscaras e fantasias, explorando a bissexualidade ou simplesmente a inversão sexual. Noutro espaço, um Antônio Nóbrega faz uma síntese retomando o clown, o trikster, o coringa, o malandro medieval e folclórico, através do qual se reconta a história do país. O primeiro Caetano, até no tratamento arlequinal da bissexualidade, andou por aí, assim como Ney Mattogrosso. O rei da vela, do José Celso Martinez Correa, continua co-

O Carnaval é festa, desbordamento, mas ao mesmo tempo segue uma disciplina rígida, é preparado em seus mínimos detalhes. Não é contraditório que essa metamorfose, rejeição e inversão da realidade, que essa quebra da rotina siga algumas regras? A ausência total de regras é a apoteose da barbárie. Se, como diz a antropologia, a cultura surgiu para nós no dia em que estabelecemos as primeiras regras de convívio social, o Carnaval, em si, é uma amena memória ancestral do que se passava na horda primitiva. O Carnaval é um parênteses consentido. E necessário. Mas não se pode viver em clima permanente de Carnaval (embora os REPRODUÇÃO

sobre suas crônicas de futebol, mostrando como Nelson carnavalizava tanto o futebol quanto a literatura. A pintura de Glauco Rodrigues, misturando índios com banhistas de biquini, ou o trabalho de Siron Franco, expondo esculturas e obras críticas na Praça dos Três Poderes, “comentando” a questão dos Sem Terra, inserem-se nessa linha. Isto para não falar num Bye Bye Brasil, do Cacá Diegues, entre outros filmes.

O mundo às avessas da carnavalização também se manfesta na nossa política e na nossa economia? Em que sentido? É importante que você mencione o tópico mundo às avessas, que Ernest Curtius botou em circulação há muito. Na verdade, o mundo sempre esteve meio às avessas. Aquela frase do famoso bandido dos anos 70, Lúcio Flávio: “Polícia é polícia, bandido é bandido” é sintomática. Nem sempre o é. Às vezes, traficantes e bandidos podem estar no Congresso Nacional, e recentemente vários deles foram cassados. Certa vez assisti nos Estados Unidos e depois na França a um episódio curioso: tanto num país quanto noutro dois cômicos famosos resolveram se candidatar à Presidência. E o ibope deles estava subindo de tal modo que tiveram que renunciar, se não o povo, num típico ato de carnavalização, era capaz de votar neles. É como essa coisa do Enéas ou de um bicho do zoológico que é lançado como candidato e tem muitos votos.

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“Ao fazer sua opção preferencial pelo espetáculo, a arte barroca abre as portas para a carnavalização e a desordem”. Seu último livro foi sobre o barroco. O Carnaval, com seus corpos nus e fantasias, sua dança coletiva, é uma invenção e uma experiência barroca? É fascinante, mas é delicada a aproximação entre o Barroco e o Carnaval. Se considerarmos o Barroco como a apologia do sensorial, do desbordamento racional renascentista, como o arrebatamento da espiral e da elipse, como a agitação de grandes massas, como uma visão desestabilizadora, veremos uma vizinhança entre os dois elementos. E poderemos ver nos autos que conduziam hereges à fogueira um autêntico Carnaval da fé. A pintura de um Bosch ou de um Brueghel é também carnavalizadora. E, na modernidade, a fusão entre Carnaval e religião ficou clara através de vários enredos de escolas de samba, que tematizaram figuras e festas religiosas – como o Círio de Nazaré, a imagem de Cristo – e acabaram merecendo a censura da Igreja. É como se a Igreja quisesse alertar para os limites entre uma coisa e outra. Mas não é sem razão que o Carnaval teve um grande impulso em Roma e em muitos momentos a festa da fé e a apostasia se misturaram. O Carnaval, por outro lado, tem desde suas origens uma marca sobrenatural. Em Roma, no mês de fevereiro, na época do carnaval, retirava-se uma pedra que tampava um buraco na terra, buraco que presumidamente conectava o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. As caveiras no Carnaval são uma referência a isto. E nas igrejas cristãs, posteriormente, ocorriam as “liberdades de dezembro”, quando se carnavalizava o próprio ritual da missa entregue 32 Continente Multicultural

às crianças. E há um instigante estudo de um teólogo protestante, que ousadamente estuda a figura de Cristo e a questão da festa e do riso, comparando-o não ao clássico e tristonho pierrô, mas ao luminoso arlequim. Em Música popular e moderna poesia brasileira, você escreveu: “O Carnaval é como a passagem da banda. vive-sse aí o instante de utopia. Cria-sse o estado de exceção. (...) Essa utopia musical tem uma função contra-iideológica evidente” e: “A música faz falar o que o cotidiano silenciou”. Na época da ditadura, a carnavalização pode ter sido um recurso de compensação para a repressão. Numa democracia, ela serve para compensar o quê? Não há cultura sem festa. Aliás, sejamos mais humildes: os animais também brincam, é uma necessidade biológica e anímica. Democracia não elimina a festa. Ao contrário, deveria potencializá-la. Estou me lembrando de que hoje existem dezenas de escolas de samba tanto nos países nórdicos quanto no Japão. Na Dinamarca, certa feita, houve um desfile de uma escola de samba onde as baianas eram aquelas loironas que saíam requebrando como podiam pelas ruas. Por outro lado, o calendário está cheio de momentos carnavalizadores: as festas de fim de ano, momentos decisivos de disputas esportivas ou até mesmo certas manifestações políticas. As próprias olimpíadas e as Copas do Mundo têm instantes de liberação carnavalizadora. De resto, a democracia é o regime onde há um jogo politico, ela é o lugar onde o homo ludens ou o homem carnavalesco tem o seu lugar natural. REPRODUÇÃO

baianos o tentem), nem permanentemente num regime forçado de trabalho. Uma hora a casa cai.

Luciano Trigo é jornalista


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PATRIMÔNIO

Como tirar proveito dos embates da globalização para preservar e vender os valores da cultura

O vice-presidente de dois institutos culturais, Joaquim de Arruda Falcão, defende a proteção do patrimônio intangível do Brasil

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MARCO ANTÔNIO TEIXEIRA / AGÊNCIA O GLOBO

O patrimôn


Q

uando se fala em tombamento, a primeira idéia que vem à mente é a de coisas e lugares. Tudo bem palpável, material. No entanto, no bojo da globalização, em diversas partes do mundo cresce um movimento pela preservação das essências e medulas da cultura: valores, costumes e uma infinidade de “monumentos” rigorosamente intangíveis. Desse modo, um tipo de música pode ser tão importante quanto uma catedral. O vice-presidente dos institutos Ricardo Brennand e Cultural Itaú, e membro do conselho diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Joaquim de Arruda Falcão, é um dos principais teóricos e articuladores dessa nova visão de patrimônio no Brasil. Nesta entrevista exclusiva, ele discute o assunto em seus conceitos fundamentais e diz como a cultura e a economia do país podem se beneficiar da globalização.

io imaterial Patrimônio imaterial, abstrato. O que é isso e quais as tendências do patrimônio mundial hoje? No âmbito da relação entre globalização e cultura é que vai surgir a importância do patrimônio que se chama intangível. O quadro conceitual é o seguinte: a globalização é um projeto empresarial dos países mais desenvolvidos, que tem três tripés: acesso ao capital, desenvolvimento da tecnologia, e controle dos mercados de consumo, o que implica numa mundialização do consumo. Uma empresa para ser global ela tem que ter escala; para ter escala, ela tem que vender, no Brasil, na Europa, no Paquistão, na África; para vender, o consumidor tem que comprar seus produtos. Ao comprar, das duas uma: ou o produto se adapta ao modo de vida do consumidor ou o consumidor se adapta ao modo de vida do produto. Daí é que a questão cultural é fundamental, porque a cultura é que molda o cotidiano das pessoas, determina hábitos, padrões, valores, o que elas vão comer, vestir, com o que vão ficar contentes ou tristes, como é que elas chegam em casa, se comportam com os filhos e seus colegas, os jogos, a diversão. Para que as empresas tenham escala, é necessário que os padrões sejam mais e mais homogeneizados. Se eu consigo com que uma pessoa do Paquistão tenha o mesmo hábito alimentar de uma pessoa do Texas, ou da Bolívia, a minha empresa tem mais possibilidade de competitividade internacional. O grande embate hoje em dia da

globalização não é somente o controle das empresas, mas dos hábitos do mercado, e esses hábitos são, basicamente, formados pela cultura. É nesse contexto que os países estão se dando conta de que eles têm de preservar determinados hábitos, valores, rotinas, sentimentos, saberes e fazeres, e que estes são patrimônio daquele país. Nesse contexto, o país tem duas alternativas: ou defende os seus valores, ou se aproveita disso, desse processo global, e ao invés de ser um espectador passivo, passa a ser um agente ativo, e aí também procura vender os seus produtos, com seus hábitos e valores. Ao eleger determinados tipos de bens imateriais, saberes e fazeres – o patrimônio da sua cultura – a pessoa está dizendo para o mundo e para si própria que aquilo é importante e que precisa ser protegido. Quando o francês briga pelo croissant contra o Big Mac não é somente uma briga comercial entre redes de fast-food, é porque a briga cultural hoje em dia é uma briga por emprego. Porque se eu acabo com arroz e feijão e o Brasil só passa a comer fastfood, toda a criação culinária brasileira provavelmente vai vir de fora. Como está o Brasil nessa questão de cultura e economia, na era da globalização? Está acordando. Outro dia, eu vi um movimento da cidade de Bauru que quer colocar o seu sanduíche Bauru no cardápio do McDonald’s. DeContinente Multicultural 35


GEYSON MAGNO / LUMIAR

Dona Selma do Coco e Mestre Salustiano: ritmos regionais também fazem parte do patrimônio cultural de um povo

pois, teve um dado também de uma fábrica de pãode-queijo dizendo que, nos próximos anos, mais de dez por cento da produção vão ser exportados. Esses são dois bons exemplos de uma atitude que aproveita a globalização. No tempo do Sarney, um ministro da Cultura defendeu a broa de milho e foi atacado por certa imprensa paulista que queria Nova Iorque como modelo para toda a cultura brasileira. É importante o movimento de conscientizar a população brasileira, não romanticamente, mas pragmaticamente, de que os valores devem ser preservados. Eu gosto muito de uma frase do nosso ex-ministro Rafael Greca, quando ele veio ao Recife, aqui em casa: “Joa-

No tempo do Sarney, um ministro da Cultura defendeu a broa de milho e foi atacado por certa imprensa paulista que queria Nova Iorque como modelo quim, Vitalino criou mais empregos pro Nordeste que a Sudene”. E ele não deixa de ter uma certa razão, pois todo o artesanato de barro da economia informal brasileira foi criado mais pelo talento de Vitalino que por projetos da Sudene. Nessa linha você vê que hoje em dia uma das maiores receitas de exportação americana é Hollywood. Você sabe o que os americanos consideram como patrimônio cultural deles? Casablanca. Por quê? Por que é um bonito filme? Sim, mas também porque revela um estilo de vida e de valores, e até mais do que isto, está vincula36 Continente Multicultural

do a uma indústria que gera empregos e rende dólares. Hoje em dia, a defesa da cultura é a defesa do equilíbrio comercial, de empregos, de uma tecnologia, de um know-how. Essa consciência é generalizada ou ainda muito tímida? É muito tímida, sobretudo na burocracia do governo. Se o Brasil precisa criar emprego deveria estar investindo tanto no setor de indústria como no de serviço e cultura, pois é mais barato criar emprego nessa área que em outra. Deve haver um movimento para conscientizar da importância de aproveitar a globalização, na defesa da cultura do país. Esse movimento de conscientização teve três fases: uma, com Mário de Andrade, quando propôs no projeto de patrimônio histórico, que as lendas indígenas, a culinária brasileira, e as canções fossem consideradas patrimônio cultural nosso. Só que o projeto de Mário de Andrade perdeu para o projeto de Rodrigo de Mello Franco. Uma segunda tentativa foi feita mais tarde por um pernambucano, o Aloisio Magalhães, na Fundação Pró-Memória, mas ele não conseguiu implementar o projeto, porque morreu em Veneza. Tanto Aloisio quanto Mário contribuíram para que o Brasil esteja hoje em dia nesta terceira fase de consciência. Qual é esta fase? Esta fase começa com a Constituição de 88. Eu propus dentro da comissão Afonso Arinos, com o apoio do Cristovam Buarque, Eduardo Portella, Antonio Ermírio, o atual conceito de patrimônio que está na constituição: patrimônio é integrado por bens


GEYSON MAGNO / LUMIAR

materiais e imateriais. E agora começam a haver as regulamentações diversas. Numa comissão integrada por mim, Marcos Vilaça, Eduardo Portella, Tomás Farkas, nós fizemos um anteprojeto de decreto que regulamenta o patrimônio imaterial, e alguns estados já começam a agir. Em Minas Gerais, há um mês, começou um movimento que decreta o queijo de Minas como patrimônio cultural. O importante disso não é somente dizer que é patrimônio, mas criar um controle de qualidade na produção, como fazem os franceses com os seus vinho e champagne. Isto significa que a sociedade mesma controla a qualidade do que julga o seu patrimônio, e não o governo. O Raul Henry e o Jarbas estão seguindo um outro caminho, mas que é convergente, como o da França e do Japão, que protegem o patrimônio imaterial am-

Não é para ser contra a internacionalização de padrões, é para não ser passivo e defender a nossa comum competência

ALCIONE FERREIRA / DP

parando os artesãos que o fazem, o que eles chamam mestres da arte. Eles declaram que aquele artesão detém um conhecimento fundamental para a cultura japonesa e francesa, que merece ser apoiado pelo Estado. Então, ele é decretado mestre da cultura, passa a receber uma bolsa do Estado, e se compromete a transmitir esse conhecimento, esse saber dele, para as

Por que não industrializar o bolo-de-rolo e exportá-lo?

gerações futuras. O Raul Henry e o Jarbas estão propondo, neste mês, à Assembléia Legislativa, que Pernambuco escolha quais são aqueles que compõem o seu patrimônio cultural vivo, que detêm um determinado know-how que precisa ser preservado. J. Borges, mestre Salustiano, Ana das Carrancas, por exemplo: não dá pra pensar hoje em dia a cultura de Pernambuco sem eles. No Brasil já começam a haver diversos movimentos para isso. O Iphan está estudando as paneleiras, o Quarup indígena e o Círio de Nazaré. Proximamente, isso vai se difundir. Ao lado da sua igreja barroca, de sua casa-grande, bolo de rolo, frevo Vassourinhas, a arte de Vitalino, isso tudo é que faz a cara de Pernambuco, e isso tudo não pode desaparecer. É importante que a gente preserve e valorize isso, porque existe uma campanha diária de publicidade na televisão dizendo que os valores são outros, que o consumo tem de ser outro. Deve haver o outro, sim, mas, desde que não exclua esses. Não é para ser contra o movimento de internacionalização de padrões, é para não ser passivo. Não ser passivo é defender a sua comum competência, e não com romantismo, nem protestos. Tem é que industrializar o bolo-de-rolo, o queijo coalho, tem que fazer vários Altos do Moura, e que as gerações novas se orgulhem disso.

Gravador J. Borges, em seu ateliê: é necessário proteger os artesãos

Globalizar os repentistas? Globalizar os repentistas nas suas competências todas porque os trovadores da Europa medieval foram globalizados, já é este um precedente bom. Por que não os nossos repentistas? (MH) Continente Multicultural 37


OTAVIO MAGALHAES / AE

LINGUAGEM

Evanildo Bechara

“Não sou poliglota O gramático imortal fala sobre o ensino de Português e explica por que, às vezes, o correto é dizer “Framengo”

A

professora que acompanha o gramático Evanildo Bechara na sua visita ao Recife nos dá um alerta, enquanto nos conduz para a sala da entrevista: “Deixem ele falar”. São 10h da manhã; às 7h30, ele tinha participado de um programa de TV local, onde lhe deram menos de cinco minutos no ar. Para piorar, a produção do programa o havia deixado na Universidade Federal de Pernambuco logo em seguida, sem café38 Continente Multicultural

da-manhã, de onde teve que nos esperar até a hora marcada. Entramos na sala, devidamente alertados, e somos recebidos por um senhor que não apresenta sinal de aborrecimento. Mostramo-lhe três fitas cassetes como garantia de que ele poderá, afinal, falar o quanto quiser. E ele fala.

Pensamento matemático Sou da rua Direita, junto do mercado de São José, onde havia um prédio chamado Teixeira Mi-


randa. Meu pai morreu muito cedo, e a mamãe não podia tomar conta dos quatro filhos. Como eu era o mais velho, fui para o Rio, para me formar o mais rápido possível e ajudar a minha mãe. Lá no Rio, como eu tinha um tio militar, eu entrei para a Aeronáutica, pela qual fiquei entusiasmado. Mas eu precisava ganhar dinheiro, e a única coisa que podia fazer era dar aulas particulares. Naquele tempo os professores reprovavam muito, havia um mercado muito grande. Então fui dar aulas de matemática, porque eu era bom na matéria, mas só me apareciam alunos de português e latim. E eu não podia mandar o aluno embora. Resultado: comecei a estudar, me entusiasmei. Com o pensamento matemático, eu entrei na gramática. E tive a sorte de aos quinze anos conhecer o maior estudioso da língua portuguesa, chamado Manoel Said Ali. Ele tinha 81 anos, e eu, 15. Ele conseguiu ser o maior lingüista da língua portuguesa porque não era professor de português, mas de alemão. Então, via a língua portuguesa como quem vê o jogo de xadrez do amigo, de fora, com uma visão distanciada e global.

Uma língua é o somatório de várias A visão gramatical dos teóricos, antigamente, era de que a língua fosse uma realidade homogênea e unitária. E tudo o que estivesse contra essa realidade era erro. A pessoa vivia no fio da navalha. Mas uma grande contribuição dos estudos lingüísticos modernos foi justamente mostrar que uma língua histórica – português, francês, grego, latim – é o somatório de várias, que são variedades dessa mesma língua. As variedades cronológicas – o português de Camões não é o português de Machado de Assis, que não é o português de hoje –; as variedades regionais – o português de Portugal não é o mesmo do Brasil, e o de Pernambuco não coincide sempre com o do Amazonas –; as variedades estilísticas, porque a língua da prosa não é igual à da poesia, o vocabulário de um livro técnico não é o da língua comum; e as variedades sociais, já que a língua está à disposição de todos os componentes da sociedade: os analfabetos, os semi-alfabetizados, os alfabetizados. Foi uma grande conquista da lingüística mostrar que uma língua é constituída de várias.

a, sou linguarudo” REPRODUÇÃO

A norma informal

Machado de Assis, talvez por influência inglesa, usava o verbo haver no plural

Então, como uma língua é o somatório de várias realidades lingüísticas dentro dela, cada variedade destas tem a sua norma de correção. Por exemplo, existe uma norma popular que diz “sastifeito”, “Framengo”; é a norma daquela comunidade. E o que é uma correção? A correção da língua é a conformidade com uma tradição vigente numa determinada comunidade. Se a tradição é dizer “sastifeito” e “Framengo”, esta é a norma de correção. E quando alguém fora da comunidade diz “satisfeito”, a primeira impressão da pessoa é de aquele fulano está dizendo errado. O Graciliano Ramos conta que na infância lia muito um escritor inglês que escrevia uns livros de educação e comportamento social, o Samuel Smile. E ele, Graciliano, lia Samuel Simile. Continente Multicultural 39


REP

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Um dia passou por lá um caixeiro-viajante, que teve a oportunidade de ver um dos livros, e perguntou: “Ah, vocês também conhecem o Samuel Smaile?” E a primeira reação de Graciliano foi dizer: “Mas que ignorante! Não sabe que é Simile?” Então existe uma norma da língua informal, que diz, por exemplo, “cheguei em casa”, “estou na janela”, “sentei na mesa”, “deu dez horas”, “fazem três dias que chove”, “haviam carros”. Olhe, o caso do verbo haver, no sentido de existir, é curioso. Os escritores do século 18 o usavam no plural. Não eram analfabetos, mas escritores altamente cultos. Eu tenho uma tese: eu acho que o século 18 foi um século de grande influência inglesa. E o inglês tem essa variação. O inglês diz, por exemplo, “there is”, “there are”. Faz essa variação com o verbo nas orações existenciais. Eu não tenho certeza, preciso examinar isso, mas acho que Machado de Assis, até os Contos Fluminenses, 1896, ele colocava o verbo haver no plural. E isso só não pegou por ação dos gramáticos, e por ação das escolas.

Ser poliglota na própria língua O gramático tem que mostrar que ao lado de cada norma existe a norma padrão. Mas a escola não deve cometer o erro pedagógico de antigamente, quando o aluno vinha com a língua de casa e a escola queria consertar aquela língua. O professor dizia: “Isso está errado, isso não se diz”. Ele cometia dois erros fundamentais. “Isso não se diz.” Como não se diz? A criança repete o que ouve. Seus pais só dizem isso, e são advogados, professoras primárias. O outro erro era: “Isso não é português”. Ora, se não é 40 Continente Multicultural

Graciliano Ramos costumava ler os livros de Samuel Smile, que ele conhecia como Samuel Simile. Quando ouviu um caixeiro-viajante dizer Smaile, corrigiu o “ignorante”

português, tem que ser outra língua, francês, inglês, alemão... São dois erros de pedagogia. O professor de hoje reconhece que o aluno vem com a sua modalidade, que deve ser preservada porque é uma realidade lingüística. Uma língua que só tem uma modalidade é uma língua morta. O ideal é que o aluno seja poliglota na própria língua, que ele aprenda o maior número de realidades da sua língua e até a língua-padrão, porque senão vai cometer vários erros de tradução na própria língua. Como a história do sujeito que foi para o Rio Grande do Sul, quando chegou ao Paraná, viu na estrada “Atenção, tartarugas na estrada”. Ele disse para mulher: “Eu vou diminuir a marcha, a primeira tartaruga que aparecer você apanha e a gente leva de souvenir.” Atravessou o Paraná, Santa Catarina, e nada de tartaruga. Depois descobriu que tartaruga é quebra-mola.

O limite é a adequação Claro que todas essas normas de correção próprias de cada variedade têm o seu limite: a propriedade do texto. Se você constrói um texto que é uma carta íntima a um amigo, você tem a possibilidade de utilizar construções que não estão apoiadas, nem documentadas, pelas normas da língua-padrão. Mas a natureza do termo é que leva a isso. Essa relatividade existe em todas as obrigações sociais. Quando a gente recebe um convite para uma festa, está lá no convite: traje passeio, ou esporte, ou a rigor. O que é isso? É que existe uma etiqueta social, e a língua-padrão é a etiqueta cultural. Um tipo de modalidade que não é para usar todos os dias.


A obrigação da gramática Temos que distinguir entre uma gramática normativa e uma descritiva. A gramática normativa só tem compromissos com a língua-padrão. Porque só se pode apresentar normas com um corpus homogêneo, unitário. Se você escreve uma gramática que reúna todos os usos da língua portuguesa, ela é descritiva, ou comparada. Todas as variedades são aprendidas pelo ouvido, enquanto a língua-padrão é aprendida pelo estudo, pelos olhos. Você tem que ler. Você aprende a língua-padrão como aprende uma língua estrangeira, consultando gramática, dicionários. Por isso existe uma crítica injusta à gramática, de que ela está defasada, mas não é isso. O problema central é que ela só tem compromissos com a língua-padrão. Você não vai ensinar uma gramática para ensinar uma coisa que todo mundo sabe. Você vai escrever para ensinar uma modalidade que a pessoa tem que aprender para usar em determinadas circunstâncias. É devido a uma interpretação errada dos lingüistas a respeito do papel da gramática que há tantas regras e exceções na língua portuguesa. Como o lingüista só queria saber se a comunicação funcionava ou não, ele não dava, e muitos ainda hoje não dão, grande importância ao aspecto pedagógico de uma gramática normativa. E esse espaço normativo passou a ser preenchido por pessoas que nem sempre estavam habilitadas para dar a norma. Como as normas eram malfeitas, as exceções apareciam. Então hoje estamos procurando um enxugamento, graças à ação de gramáticos competentes e dicionaristas

competentes. Mas assim mesmo os consultórios gramaticais estão cheios de novas regras. Agora inventaram que você não pode dizer “perigo de vida”, porque o perigo não é de vida, é de morte. Ora, como perigo de morte? O perigo também é de vida, porque perigando a vida, automaticamente se pode morrer. Você não pode dizer mais “copo d’água”, porque o copo não é feito da água, você tem que dizer copo com água. Mas, meu Deus, como eu não posso dizer “copo d’água”!? Quando eu digo isso eu estou pensando na medida.

Falar com o saber do mundo Todo mundo quer que sejam objetos da gramática fatos de língua que não pertencem à gramática. Porque nós não falamos só com a língua, nós falamos também com o nosso saber sobre o mundo. Tome a frase “uma criança de mãos limpas e um político de mãos limpas”. Não é o Aurélio que vai marcar a diferença entre uma limpeza e outra. Quem nos diz isso é a nossa experiência do mundo.

Norma culta e norma padrão Não uso o termo norma culta, que seria perfeitamente cabível, porque pode dar a idéia de uma expressão preconceituosa. Não deveria, porque a cultura nunca foi uma qualidade negativa numa sociedade, pelo contrário. Mas o brasileiro não gosta, o brasileiro tem medo. Curioso, certos fantasmas. Por exemplo, o brasileiro tem muito medo da palavra elitista. Oxalá se tivéssemos uma sociedade elitista. Do ponto de vista sociológico, não do ponto de vista financeiro, elite é cultura. O problema é que aqui há um deslocamento muito grande entre a elite cultural e a econômica. Então, evito dizer “norma culta” porque realmente as pessoas de pouca cultura ou de pouco poder aquisitivo nem sempre utilizam a norma padrão. E você vê que grandes escritores nossos saíram das camadas humildes, a começar por Machado de Assis e Lima Barreto. São pessoas que tinham tudo para não ser o que foram.

Caricatura do escritor Lima Barreto, um exemplo de grande autor que veio das classes pobres

REPRODUÇÃO

Até há pessoas que exageram, e o resultado é que normalmente não são entendidas. Eu tenho um amigo, professor de português, que normalmente só fala na língua exemplar, padrão. Uma vez, saindo do Pedro II, foi assaltado. Gritou, não apareceu ninguém. Ele ficou aborrecidíssimo, voltou ao Pedro II, reclamou. “Mas você não gritou, não pediu socorro?”, perguntaram. “Eu gritei, mas não apareceu ninguém!” “Mas o que você disse?” Eu gritei: “Peguem-no! Peguem-no!” O limite é a adequação.

Entrevista concedida a Alexandre Bandeira e Homero Fonseca

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LITERATURA

As letras de um Brasil gaúcho Velhos e novos autores do Rio Grande do Sul revelam uma literatura auto-suficiente

MARCELINO FREIRE

Marcelino Freire

Daniel Pellizzari e Daniel Galera, da Livros do Mal, na Feira do Livro de Porto Alegre de 2001

SCLIAR E OS LIVROS DO MAL Scliar me recebeu na academia. De ginástica. Falou que não sente o Rio Grande do Sul um Brasil isolado. O caso é que o que é produzido lá tem consumo imediato. Interno. Vide a Jornada Literária de Passo Fundo. Acontecimento que reúne professores e alunos de todo o estado. Prêmio literário de R$100 reais, o maior do país, é o povo gaúcho que oferece. Scliar percebe: “Estamos fora do eixo. Como no mundo há uma hegemonia cultural dos EUA, o Brasil também tem seus centros hegemônicos”. Não reclama. “Somos 10 milhões de habitantes, a mesma população de Portugal. Se Portugal pode ter os seus escritores, os seus editores, o seu público, por que a 42 Continente Multicultural

gente também não pode ter?” Escrever e ler no Rio Grande do Sul sempre estiveram incorporados à tradição. À mesa do imigrante nunca faltaram livro e pão. Livros do Mal é um selo novo, que está agitando o chimarrão. São três os que fazem a editora, que tem como símbolo um pinto saído do ovo. “A gente não faz literatura gaúcha. Faz literatura brasileira”. São dois contistas. E dois Daniéis. O Daniel Galera e o Daniel Pellizzari. O outro é o Guilherme Pilla, que faz os desenhos da capa dos livros. E os incríveis e nervosos desenhos do site. “A nova literatura vem da Internet”, garantem. Eles mesmos se conheceram no www. No ex-endereço eletrônico cardosonline. De lá direto para o papel. Galera escre-


MARCELINO FREIRE

DIVULGAÇÃO

Símbolo da editora Livros do Mal, dos gaúchos Daniel Galera, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla

ângulo. Diz para eu não me esquecer do poeta Carpinejar. Pois bem, claro que vou falar. Só na próxima esquina do próximo parágrafo. Agora eu tenho de ir ao Reino das Cebolas. É natural. Aproveitar para fazer o cruzamento dos gêneros. Enquanto o Noll procura a secura masculina, a Cíntia Moscovich é a voz da mulher fazendo Anotações durante o Incêndio. Cíntia é uma das vozes femininas mais lidas na terra da Lya Luft. Já recebeu prêmios. É jornalista, professora, tradutora e consultora. Não vive só às voltas com o abacaxi de seus personagens. Fortes. Solitários. Carregados de penumbra. Rubra. De penumbra. Branca. O Reino das Cebolas e Anotações revelam a única contista incluída na antologia Geração 90 – Manuscritos de Computador, que reúne os melhores da última década do último século. “Eu sempre tive uma preocupação libidal com a linguagem”, desata o Noll. “Para escrever sobre uma empregada, eu preciso pedir o corpo da empregada emprestado. Escrevo com o corpo”, corta-se a Cíntia.

veu o Dentes Guardados, o Pellizzari, o Ovelhas que Voam se Perdem no Céu. Como brasas, esbravejam: “A Livros do Mal quer compor uma nova cena na literatura brasileira”.

NOLL E O REINO DAS CEBOLAS O Museu de Arte do Rio Grande do Sul fica logo ali, na boca da praça. Deu para conversar tranqüilo com o João Gilberto Noll no café do MARGS. Noll é apaixonado. Derramado. Litúrgico. Falou sobre seu primeiro romance, A Fúria do Corpo. Não quer mais nada daquilo. Quer escrever mais objetivo. “Desmetaforizar”. Xô os ornamentos. Diz que o que era feminino na sua linguagem resolveu se masculinizar. “Agora estou à procura do macho”. Não é arrependimento, é desafio. “O que você está lendo de novo?” Elogia a gurizada da Livros do Mal. Fala que tem dificuldade de ser panorâmico, de analisar o movimento literário do Rio Grande ângulo por

A escritora Cíntia Moscovich, autora de O Reino das Cebolas e Anotações Durante o Incêndio

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MARCELINO FREIRE

O escritor Carpinejar, autor de Terceira Sede

“POESIA NÃO É TROCADILHO INFAME” Carpinejar tem 29 anos e é filho dos poetas Maria Carpi e Carlos Nejar. Altair Martins, 26, é um dos mais talentosos contistas do Rio Grande do Sul. Nasceu em Porto Alegre, mas vive em Guaíba. Guaíba fica do outro lado do rio. “De Guaíba se vê a vista mais bonita de Porto Alegre”, garante. De lá é que Altair veio, com esposa e o filho Santiago. Sofreu pra danar. Foi excomungado porque “em Porto Alegre existe gente que acha estranho quando eu repito três vezes um mesmo parágrafo”. Enroscando adjetivos. Enroscando pontos. Sua linguagem leva óleo sujo. Leva martelada. Leva pedrada do conser-

vadorismo. “Tem gente que fez campanha para eu não receber prêmio”, recebeu indicação ao Jabuti 2000, duas vezes foi laureado pela Radio France Internacional. Carpinejar, nada mau. Prêmio Literário Internacional Maestrale, na Itália, finalista do Prêmio Açorianos, Prêmio Fernando Pessoa da UBE do Rio. O escambau. Altair escreveu o elogiado Como se Moesse Ferro. Carpinejar, os elogiados As Solas do Sol, Um Terno de Pássaros ao Sul e agora o Terceira Sede. Prosa e poesia na mesma engrenagem. Na mesma sinfonia. “Escrevo capítulos”, diz Carpinejar. Ele começou escrevendo prosa. Quando leu A Divina Comédia, nada foi como Dantes. “Poesia não é trocadilho infame”, repele. Quer escrever um romance. Altair vai anotando tudo. Sua linguagem tem revolta de parafuso. O pai morreu quando ele tinha três anos. “Sou diabético”, diz que nunca vai passar fome porque – não tem vergonha de dizer – é “extremamente criativo”. “A boa prosa é latrocínio”, afirma Carpinejar, e larga um verso no ar, retirado do seu belíssimo Terceira Sede, escrito – como ele faz questão de avisar – aos 72 anos, no ano de 2045: “Envelheci, tenho muita infância pela frente”.

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“Nós somos uns paranóicos”

O crítico literário Luís Augusto Fischer

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Luís Augusto Fischer, crítico e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fala de paranóia, isolamento, da semelhança dos gaúchos com os nordestinos, e de um poema “separatista” escrito pelo Mário Quintana


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O poeta Mário Quintana

Temos boa experimentação, mas não rende nada. Então o que aparece é o correto, é nota oito A LOUCURA PORTO-ALEGRENSE A literatura feita aqui é variada paca. Tem um monte de boa literatura média, bem feita, correta, republicana. Mas tem boa experimentação também – só que aqui, ao contrário de São Paulo, experimentação não rende nada. Então o que aparece é o conservador correto, o nota 8: narrativa de feição realista causal, ou psicológica ou sociológica, em boa linguagem. A loucura porto-alegrense é mais reservada, talvez por isso.

O POEMINHA SEPARATISTA Quintana foi o maior poeta que o Rio Grande do Sul já viu nascer, mas é contemporâneo de um gênio, Carlos Drummond de Andrade, de forma que a comparação é ruim. Quintana tem linguagem própria, lidou de modo alto com o patrimônio da língua portuguesa, mas ficou num nível trivial de indagação sobre o lugar das coisas e da poesia no mundo. Por isso ele tem alcance pequeno, comparado aos maiores. Sabe o Poeminha do Contra, em que ele diz assim: “Todos esses que aí estão / atravancando meu caminho, / eles passarão... / Eu passarinho!”? Pois bem. É separatista e, pior ainda, é autocomiserativo, o que me irrita bastante.

O Poeminha do Contra de Quintana é separatista e autocomiserativo, o que me irrita A FRONTEIRA VIVA Há um personagem do Ricardo Piglia que fala: “Cuidado, meu filho, também os paranóicos têm inimigos”. Nós somos uns paranóicos, forjados numa vida de fronteira viva, cara a cara com os castelhanos, de forma que ficamos do tamanho de nossa história – e o centro do Brasil sempre se serviu do Rio Grande como fronteira. E mais uma: aqui se inventou uma república independente, em pleno Império, o que não é pouca coisa – só nós e vocês, pernambucanos, é que bancamos isso. Vai daí, nasceu em nós esse sentimento que mistura orgulho e “cagaço”, vaidade pela independência e inveja da integração com o centro do país. Então, de certa forma, para o bem e para o mal, nós acabamos falando para nós mesmos, criando uma espécie de autismo mental e cultural. Os estados nordestinos e nortistas, por exemplo, são para nós uma abstração: não temos notícia regular da vida deles, ao contrário do que acontece no Rio e em São Paulo, que vivem com a cultura nordestina na porta.

OS CASTELHANOS Nós estamos, sim, mais virados para as coisas de nossos países vizinhos. E isso tem a ver com a história: todo mundo que estuda guerras sabe que os inimigos acabam ficando um do tamanho do outro. E nós e os castelhanos temos isso em comum. Pode olhar como nós, gaúchos, somos parecidos com eles. Marcelino Freire é escritor

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CONTO

Dois contos de João Gilberto Noll

Fidalgos

P

DIVULGAÇÃO

arou para ouvir os ecos do tenor no Municipal, mesmo que lhe parecesse vulgar ciscar sem motivo aparente em plena Cinelândia. Faria isso e muito mais se na companhia do amigo português que morrera na indigência. António Botto o nome do finado, poeta de quem lia versos em primeira mão, andando pela rua. António pegando forte no seu braço, saboreando os comentários de antemão. Também ele vivia sem recursos, mas sabia, como o lusitano, que pertencia a uma linhagem de fidalgos. Por isso ouvia aquela ária como se estivesse sendo coroado? Ele, que duvidava chegar inteiro à próxima esquina... Não, não se conteve: ajoelhou-se apoiando-se na escadaria, sentiu o leve peso da glória na cabeça e de bruços foi levado ao necrotério.

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1946. É autor do livro de contos O Cego e a Dançarina (1980, Prêmio INL, Prêmio Associação Paulista de Críticos de Arte, Prêmio Jabuti); dos romances A Fúria do Corpo (1981), Bandoleiros (1985), Rastros do Verão

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Leite & fel

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ão havia destino anterior àquela rocha à beira do Guaíba. Foi nela que sentei. As águas cintilavam. Não havia nada que pudesse lembrar. Me fiz de profeta, alguma coisa assim: pernas dobradas, joelhos nas pontas laterais, sobre eles os dedos fazendo o tal círculo (em outras ocasiões obsceno), sei lá para quê. Assim fiquei, nessa pachorra um tanto encenada. Para quem?, pra ninguém, não se via viva alma por perto. De algo eu lembrava: fugira um dia antes. Só não sabia de onde. Recordava que na escapada uns galhos me feriram a testa e que num ponto da caminhada abriu-se o rio, essa rocha. Desabotoei a camisa, vi ser eu uma mulher. Na bolsa presa ao ventre, lembrando um canguru, um bebê sofria espasmos. Botei sua boca no bico do meu seio. E assim pude morrer.

(1986), Hotel Atlântico (1989), O Quieto Animal da Esquina (1991), Harmada (1993, Prêmio Jabuti), A Céu Aberto (1996, Prêmio Jabuti); da novela Canoas e Marolas (1999); e do volume Romances e Contos Reunidos (1997). Passou de 1996 a 1998 na Universidade da Califórnia, em Berkeley, primeiro como escritor residente e depois dando cursos de Literatura Brasileira Contemporânea. Hotel Atlântico e Harmada foram traduzidos para o inglês, pela Boulevard Books, de Londres.

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DETALHES DO PAINÉL EM CERÂMICA DE FRANCISCO BRENNAND SOBRE A SEGUNDA BATALHA DOS GUARARAPES

ANTOLOGIA

Felipe Camarão Luiz Alberto Moniz Bandeira

felipe camarão

henrique dias

guerrilheiros saudamos os que ainda não chegaram os que virão ao fim da madrugada rompendo as enxovias o século no século não finda quem lutou lutará índio poti as vitórias mortas tu reviverias de porto calvo até tomar olinda

povo no tempo povo continua saudamos guararapes dien biem phu aqueles que reproduzem glória e feito vietcong ou camarão ressurge lá das batalhas a empunhar fuzil e espadas fio do horizoente atravassendo o peito ---------resiste o povo com espada e mosquetão mulheres lutam na aldeia homens lutam no sertão resiste o povo era um índio o capitão caboclo o mato incendeia folhas secas pelo chão o fogo cerca e rodeia 48 Continente Multicultural

golpeia

golpeia

do invasor o batalhão caboclo o mato incendeia era um índio o capitão na selva o povo guerrilha soldado não tem perdão no arraial o sangue brilha o invasor rompe a canhão no mato o povo guerrilha era um índio o capitão guerrilha

faz emboscada o povo enfrenta a invasão cinza a terra calcinada às botas da ocupação guerrilha faz emboscada era um índio o capitão como a flor se prende ao talo o calor no coração a mulher a acompanhá-lo dona clara camarão montada no seu cavalo era um índio o capitão vinte e cinco anos lutaram bala em boca armas na mão mulheres o lar deixaram sustentando a insurreição vinte e cinco anos lutaram era um índio o capitão ---------


ou vietcong

louco fuzil metralha sangra e assombra lagartas contra músculos no arranque de carnes e motores mortos sem sombra cravam braços e presas contra tanque gases e vômitos

granadas

há tocaias de estrelas espreitando a tarde povo selva amanhã enfrentam lato bombardeio vermelho horizonte arde e guerrilheiro morde aviões a jato

Moniz Bandeira é adido cultural do Brasil, em Frankfurt, Alemanha. Publicou poemas em jornais e revistas do Rio de Janeiro e Salvador, na revista Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira, e em antologias. Em 1961, escreveu uma Ode a Cuba, publicada como um pequeno livreto no Brasil, pela Editora Germinal, e em vários jornais, bem como traduzida para o espanhol e publicada pela revista Bohemia, de Havana. Além desse, tem mais dois livros de poesia publicados: Verticais – que saiu quando o autor tinha 20 anos (a publicação foi recomendada por Augusto Frederico Schmidt) e Retrato e Tempo. REPRODUÇÃO

homens feitos de pedra e noite com bravura lutam feridos e se estanque o sangue erguem canhões abafam sombramidos de corpos a tombar manhã que

(Extratos)

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TEATRO

A performance 50 Continente Multicultural

afro-a


FOTOS: REPRODUÇÃO

G

randes teóricos internacionais nos ensinaram que o teatro surgiu na Grécia Antiga e de lá se espalhou pelo mundo. Entretanto, a partir do começo do século 20, alguns pesquisadores do teatro abriram uma nova perspectiva para compreensão do fenômeno teatral, estudando as tradições orientais. Estudos estes focados, principalmente, nas tradições teatrais da Índia, da China e do Japão, onde foram redescobertos textos escritos durante os primeiros séculos da era Cristã, reportam a uma tradição teatral tão rica e complexa quanto a grega, e possivelmente muito anterior a esta. Caindo por terra a idéia de que o teatro surgira na Grécia. Nesses modelos, não-europeus, o conceito de teatro tornou-se mais abrangente, incluindo, entre as suas técnicas, disciplinas como a dança, a acrobacia, a percussão, o canto. As propostas deste teatro não-ocidental incluíam um extremo rigor formal, aliado a uma filosofia com princípios estéticos altamente elaborados. Neles, a relação com os deuses, a mitologia e a religião era e é evidente. A partir da década de sessenta, pesquisadores como Jerzy Grotowski, Peter Brook, Richard Schechner e Eugênio Barba encontram na palavra performance a propriedade para definir este teatro multicultural, includente (música, dança e percussão) e em muitos casos ritualizado; diferenciando-o do teatro ortodoxo praticado no Ocidente, modelado no teatro grego. O conceito performance tem sido usado também para compreender o teatro feito pelo povo iletrado, seguindo a tradição oral, alheia aos modelos greco-romanos que permearam a construção da estética dominante. Desta forma, performance tem sido usada como um sinônimo de apresentação e representação, quase sempre possuindo caráter festivo e/ou religioso, mas em muitas dessas formas preservando o seu alto grau de ritualismo.

Anterior aos autos do padre Anchieta, o teatro brasileiro descende da tradição oral dos folclores africano e indígena

meríndia Zeca Ligiéro

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Nossos historiadores brasileiros, muitos deles seguindo a trilha dos estudiosos do Velho Mundo, concluíram que o teatro brasileiro teve início quando o padre José de Anchieta encenou seus primeiros autos para os índios brasileiros. Não percebendo as performances existentes no Brasil, seja a nativa ou a trazida pelos milhões de africanos logo nos primeiros anos de colonização da costa brasileira, ou mesmo antes disto. Luzia, como foi batizado o mais antigo fóssil das Américas, era sem dúvida uma negra. Os seus traços anatômicos não tinham nada em comum com os traços mongolóides dos nossos indígenas, mas pertencem nitidamente aos grupos negróides, habitantes da África e da Oceania. O homem de Kennewick, na cidade de Tequendama, nos Estados Unidos (cerca de 9 mil anos), não apresenta os traços mongolóides ancestrais dos ameríndios, o que demonstra de forma persistente que existiu uma grande ocupação dos tipos que hoje chamamos de africanos, antes da larga ocupação dos atuais índios. Teriam estes dizimado de forma total os que aqui estavam vivendo, ou com eles desenvolvido novas civilizações? Talvez isto explique a diversidade das etnias ameríndias, estimadas somente no Brasil em mais de 200. A performance ameríndia é de uma variedade e teatralidade palpáveis e estarreceu os primeiros europeus que aqui aportaram, de Jean de Lery a Hans Staden. Os elementos da dança e suas complexas coreografias, o uso de máscaras e elaborados desenhos corporais, a arte plumária, o canto e a dramatização 52 Continente Multicultural

de animais selvagens e seres encantados mitológicos, o profundo sentido ritualístico, são suas características básicas. As formas teatrais do índio de fato não possuíam nenhuma relação com o europeu, mas eram muito semelhantes ao teatro asiático e africano. A performance africana foi trazida em larga escala pelos povos de origem Banto, transportados como cativos com os primeiros colonizadores. Em Portugal, estimava-se que antes da colonização já existia em torno de 80 mil escravos africanos. No Brasil, os africanos recriaram o batuque, matriz de diversas manifestações teatrais, tais como: coroação de reis e rainhas de Congo, desdobrados em reisados, folias de reis, congadas etc. Um teatro tão popular quanto àquele da Grécia antiga, anterior à criação do primeiro texto de Téspis, que a partir de então desencadearia o processo de transformação da maleabilidade da performance processional dionisíaca na estrutura amarrada da literatura escrita. Coube ao povo Iorubá, instalado principalmente na Bahia, na primeira metade do século 19, difundir a cultura africana a partir das casas de candomblé, fundadas anteriormente pelos Congo-Angolas e Geges; transplantando para a Bahia a performance sagrada dos Orixás. No começo do século 20, as sacerdotisas baianas, líderes comunitárias e festeiras, foram responsáveis pela transformação dos pastoris nordestinos em ranchos cariocas, e mais tarde também ajudariam no processo de transformação destes em escolas de samba, síntese das culturas afri-


canas do Brasil, expressão máxima da teatralidade brasileira; conversão do ritual do Carnaval em pura celebração africana. Ao longo de cinco séculos de opressão econômica, militar, religiosa e estética, exercida pela elite eurobrasileira, muitos foram os momentos em que as duas tradições, ameríndias e africanas, se encontraram. Natural que disso resultasse não somente a miscigenação de seus descendentes como o intercâmbio de suas tradições. Por exemplo, a palavra “caboclo” tem sido uma expressão muitas vezes empregada pejorativamente para definir esta “mestiçagem” entre o negro e índio. Catimbó, macumba e umbanda são nomes dados às manifestações religiosas comuns desses dois grupos. As religiões dessas culturas adoram as forças da natureza, a medicina natural das plantas, acreditam que a alma dos mortos retorne à terra para ensinar ou para evoluir através da reencarnação. Elas têm outro ponto comum, que particularmente nos interessa: suas performances espetaculares. Em ambas notamos o mesmo cantar-dançar-batucar como um todo indivisível e inseparável. Ambas as performances são interativas e dialogam com o

ambiente onde acontecem. O público permanece em roda reagindo a tudo que os brincantes ou performers fazem. A roda está presente nos desenhos de Rugendas datados de meados do século 19, e isso acontece também nos primeiros filmes registrados na selva por Rondon no começo do século 20. Atualmente, Tchydjo, mestre de danças dos índios Kariri-Xocó, ao iniciar os trabalhos, pede aos seus dançarinos e platéia que formem uma roda para começar o ritual do Toré Sagrado. Igualmente, no samba de roda, os crioulos e crioulas fazem também um círculo para realizar a sua performance. E como diz o mestre Cirilo no seu Maneiro Pau de Crato, no Ceará: Quero ver rodar/ Quero ver rodar/ Quero ver rodar, enquanto cada membro do seu grupo posicionado em círculo, batendo o seu bastão, rodopia sobre seu próprio eixo sem perder a batida. Ou ainda, como ordena Mestre Aldemir em seu Reisado, para a sua burrinha (cavalo-marinho): Roda roda cavalo pro povo olhar meu cavalo é descendente das ondas do mar. Classifico estas performances como o puro teatro popular brasileiro. A elite eurobrasileira compreende o teatro apenas no palco italiano e descarta o

A performance ameríndia é de uma variedade e teatralidade palpáveis, e estarreceu os primeiros europeus que aqui aportaram, de Jean de Lery a Hans Staden que não é empacotado pelas quatro paredes do edifício teatral. Afirmo mais uma vez: tradição oral é a cultura brasileira, é o nosso produto interno bruto. O estudo das performances afro-ameríndias se impõe como uma nova disciplina possível para compreender as particularidades de cada performance e suas afiliações culturais bem como as suas interrelações. Cabe aos nossos atores, estudantes e acadêmicos entender o que é performance afro-ameríndia para poder praticá-la com toda consciência. Pois estas tradições permeiam a nossa cultura popular. Como diz sabiamente o Mestre Carnaúba, da sabedoria dos seus 99 anos de idade, poeta, curandeiro, pai-de-santo e repentista do Crato, Ceará, é preciso “abraçar os encantos”. Estes encantos estão aí, bem perto da gente, nas mentes e nas bocas de nossos ancestrais afroameríndios e em suas performances espetaculares. Zeca Ligiéro é antropólogo

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA

O divertido e inexplicavel Joel Silveira

1.

Nem Freud

O que faz do Brasil um país divertido é que aqui acontecem coisas que nem Freud, Jung e Lacan explicam.

2.

Joao Gilberto? Nao!

Aquele meu conhecido decididamente não sabe do meu gosto musical. Telefona cheio de entusiasmo, como se estivesse a me dar a melhor das notícias: – Estou lhe convidando para um programão... E explica: – João Gilberto vai tocar e cantar para um grupo restrito, na casa de Fulano, de quem é muito amigo. Pedi ao dono da casa para levar você, ele concordou. Você vai? Respondo: – Vou, mas com uma condição... – Qual? – Que ele, João Gilberto, não cante nem toque violão... Pleno de razão, o autor do convite me mandou, possesso, para aquele lugar.

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3.

Minha profissao

A profissão de jornalista tem desvantagem capital, entre tantas outras: obriga o jornalista a conhecer toda espécie de gente, gente demais. E conhecer gente demais implica decepção demais, desencanto demais, enjôo demais e, o que é ainda mais trágico, conluio demais.

4.

Para que?

Leio alto, para o compadre, que é um tanto surdo, ouvir a notícia que encontro escondida num canto de jornal. Diz ela: “O novo secretário de cultura de Sergipe fala fluentemente nove línguas”. O compadre resmunga: – Nove? – É o que diz aqui. – Mas você não acha que é língua demais para o tamanho de Sergipe? Meia língua já bastava.


5.

Brasil paquiderme

Afirmou nosso presidente, num dos seus mais recentes cinco discursos diários: – O Brasil não dá saltos felinos, mas se move com firmeza. Como, aliás, se deve esperar de todo paquiderme.

6.

La no ceu

O que me conforta é saber que, quando eu for para o céu, lá não encontrarei nenhum desses furiosos e vorazes pastores evangélicos.

7.

A resposta

É madrugada, tempo ideal para não dormir. Fico pensando: será que em minha vida eu deveria ter feito mais concessões e remado menos contra a maré? E a resposta, a que eu mesmo ia me dar e a que eu queria ouvir, me chega lá de dentro da noite, num inesperado canto de galo que me diz: – Não!

8.

Idade

Verifico, sem qualquer mágoa, que em toda a minha vida sempre fui vinte anos mais velho que todo mundo, o que não significa dizer que tenha sido sempre vinte anos mais sábio. Com o tempo, só tenho desaprendido. Hoje, já não sei quase nada. O que, num país como o nosso, em que quase todos sabem tudo, não tem a menor importância.

9.

Historia

De Paulo Mendes Campos: “O bom historiador que escreve mal deveria entregar seu material ao mau historiador que escreve normal”. Outra: “Escritor é quem tem dificuldade para escrever. Quem tem facilidade para escrever é orador”.

10.

Brasil x Portugal

Até hoje, por mais que tenha lido e conjecturado a respeito, não sei ao certo se naquele 7 de setembro de 1822, lá no riacho Ipiranga, foi o Brasil que se livrou de Portugal ou se foi Portugal que se livrou do Brasil.

Joel Silveira, ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.

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COMPORTAMENTO

Ao mesmo tempo em que consegue ser única, tornando cada indivíduo singular, a moda agrega os iguais com seu canto de sereia, oferecendo uma ponte de comunicação silenciosa Carol Garcia

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m 1539, um habitante da Florença renascentista preencheu seu diário com um assunto pouco usual, mas curioso naquela época. Escreveu, em tom incrédulo, que os homens, até então portadores de longos cabelos, de repente começaram a cortar as madeixas. E as barbas passaram a ser usadas por todos, indistintamente, ao ponto dos estrangeiros e viajantes serem facilmente reconhecidos nas ruas da cidade. O assombro do moço hoje não causaria muito alvoroço. No máximo, um recém-chegado diria: “Ah, isso deve ser moda por aqui”. Do latim “modus” (maneira, medida), o termo moda designa, desde 1393, maneira, depois jeito (“façon”, em francês, que evoluiu para o festejado termo em inglês “fashion”). Em 1482, aparece pela primeira vez com o sentido de “maneira coletiva de se vestir”. E vestir-se “à nova moda” torna-se, em 1549, o “estar na moda”, que perseguimos incessantemente cada vez que abrimos o guarda-roupa. Através do discurso da aparência as significações fluem e compõem uma visão de mundo: “auto-estilizar-se” é ver em si mesmo uma tela que convida ao preenchimento. Ao mesmo tempo em que consegue ser única, tornando cada indivíduo singular, a moda agrega os iguais com seu canto de

M

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REPRODUÇÃO

sereia, oferecendo uma ponte de comunicação silenciosa. Moda pode ser entendida como um conjunto de comportamentos significativos que exprimem os valores próprios de uma época e tramitam juntamente com essa determinada época. Não se conformar com o decreto do que está em voga, a exemplo do escritor renascentista, é o mesmo que ser condenado a se distanciar do progresso ou a ser ejetado da própria história da humanidade. Naquele momento, estar fora de moda significava ficar para trás. Conforme o antropólogo norte-americano Ted Polhemus, até 1976 o sistema de moda funcionava exatamente assim: por decretos que uniformizavam o vestir a partir de determinada tendência, notadamente gerada nas classes sociais superiores e disseminada de cima para baixo. Mas, com o advento do punk, as regras de assumir um visual para cada temporada – o famigerado look da estação – foram estraçalhadas e foi a vez das marcas observarem fenômenos originados nas ruas e nos guetos subculturais. Os estilhaços formam o que hoje conceitua-se como “supermercado de estilos”, a moda de rua que escalou o sucesso projetando-se nas vitrinas: cada um veste o que deseja, da forma que lhe convier. Essa liberdade, todavia, estimula ainda mais a formação de um sistema de vínculos de grupo: mais e mais os

DA

ou o teatro do cotidiano

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indivíduos desejam achar os seus pares e com eles dividir a responsabilidade por suas escolhas. Foi-se o tempo em que, mesmo num filme de cinema mudo, era possível saber tudo sobre a mocinha sem que ela falasse uma só palavra: bastava analisar seu figurino. Com a fragmentação da moda em diversos movimentos de estilo, as chamadas tribos urbanas, a complexidade de mensagens que emanam das roupas, liquefeitas em combinações livres onde cada indivíduo se “auto-estiliza”, amplia-se aceleradamente. Na sociedade pós-moderna, achar “gente como a gente” torna-se uma tarefa bem mais difícil, calcada nas nuanças da aparência: um jogo que requer de seus adeptos muita competência. O jogo da aparência não é fútil ou simples, mas uma construção contínua, pela vivência, de objetos de valor. Como atividade lúdica, a moda demanda o prazer de compartilhar, já que quem entra na partida quer, no mínimo, competir. E, para isso, necessita de outro alguém. Quem aceita disputar a partida não quer mais apenas brincar, mas ganhar: ganhar um corpo mais magro, mais belo, mais jovem... Se é fato que a vida é um palco, parafraseando William Shakespeare, então a moda é o figurino de seus atores. A conformidade do indivíduo à moda se dá, fundamentalmente, pelo desejo de assemelhar-se àqueles que são considerados superiores, àqueles que brilham pelo prestígio e pela posição. A roupa serve como espelho não apenas da imagem real, mas, sobretudo, da fantasia idealizada. A lógica é a promoção da identidade pessoal associada à inovação estética. A moda transforma-se no passaporte cujo visto de entrada está carimbado para vários mundos, nos quais seu usuário assume os diferentes papéis que lhe reserva o teatro do cotidiano. Tudo parte de uma premissa: a moda é dotada de significação. Como somos um, mas também assumimos múltiplas identidades sociais ao longo do dia e da vida, não é fácil adotar um figurino que emane um sentido capaz de unificar essas vivências. Roupa é documento e história: individual e coletiva. O poeta e filósofo francês Charles Baudelaire já percebia isso em 1868. Em seu texto “O pintor da vida moderna”, Baudelaire, ao observar uma série de gravuras de moda de diferentes períodos históricos, nota que nelas se refle60 Continente Multicultural

O poeta Charles Baudelaire, em 1868, ao observar uma série de gravuras de moda de diferentes períodos históricos, nota que nelas se refletem não somente roupas, mas a moral e a estética da época

tem não somente roupas, mas a moral e a estética da época. Para ele, “a idéia que o homem tem do belo imprime-se em todo o seu vestuário, torna sua roupa franzida ou rígida, arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impregna sutilmente, com o passar do tempo, os traços de seu rosto”. Na sociedade contemporânea, que privilegia a imagem, a moda é uma linguagem que assume importância cabal, visto que interage com diversas modalidades expressivas do corpo, ao completar-lhe e enfatizar sua comunicabilidade. Muito além da questão verbal, essa linguagem apresenta a possibilidade de sofrer mudanças e alterações ao longo de sua evolução. Talvez por esse motivo, ao vasculharmos o guarda-roupa à procura de um revestimento perfeito para nos apresentarmos ao mundo, procuramos algo que possa explicitar nossa sintonia com o progresso e com os valores do grupo no qual pretendemos nos inserir. Queremos nos desassociar dos estereótipos banais, ter impacto visual. Ser diferentes dos meros mortais e semelhantes aos nossos ídolos – sejam eles skatistas, executivos, celebridades... ou o vizinho da esquina. Enfim, os elegantes, a partir de nosso próprio referencial, nosso estilo – que também é o da nossa turma e que multiplica-se pelo imenso número de subculturas presentes nas metrópoles. A moda é narcisista (porque as pessoas se vestem para si), mas também generosa (porque igualmente se vestem para o outro, sendo que este “outro” é um referencial variável). Esse envolvimento é, portanto, um estado de motivação, ou interesse, transformado num


processo que é direcionado por variáveis externas (como situação, produto, comunicação) e por variáveis internas (ego, valores centrais). A preocupação de adquirir numa peça de vestuário não apenas seu caráter funcional, mas certas características intangíveis, porém repletas de significado (status, legitimidade etc) perpassa todos os movimentos de estilo tanto numa perspectiva histórica quanto cultural. O escritor francês Honoré de Balzac parece concordar quando assume que, “para uma mulher, um vestido é uma contínua manifestação dos pensamentos íntimos, uma linguagem, um símbolo”. Radiografando o percurso histórico da moda, observa-se que ela se reporta a uma combinação particular de atributos: estar na moda significa que esse conjunto é correntemente avaliado em termos de aprovação, por algum grupo de referência. Esse grupo, nos séculos 18 e 19, circula na liderança de opinião: primeiro da nobreza, depois da alta burguesia. O ritual de vestir-se funciona como elemento fundamental na grande tela que sua visão de mundo representa em sociedade. Com o surgimento do prêt-aporter nos anos 50 do século 20, a indústria de moda passa a assumir como força motriz o consumo e a repetição exaustiva das propostas por ela veiculadas, até atingirem o esgotamento pela usura. A fome pelo novo faz a moda converter significações peculiares em arbitrariedades, transformando-as em looks do momento. Penalizada por uma reputação de frivolidade inerente a esse propósito comercial de fabricação em escala, a moda equilibra-se, portanto, entre duas facetas opostas, embora ao mesmo tempo siamesas: a necessidade da padronização e o desejo de individualização. Nas sociedades pós-modernas, o adorno mais desejado é aquele que representa um visto de entrada garantido para um mundo onde o valor é a aparência. O consumidor, adestrado pela necessidade imperativa de consumir o novo, começa ele mesmo um processo de “auto-estilização”e busca no vínculo com a sua tribo fugir à adoração de falsos deuses, as tendências do momento, para perpetuar sua identidade referendada pelo aceite do outro. A moda oferece-nos um produto que prevê, sim, o consumo, mas cujo conceito engendra no sujeito um dever de contemplação e um poder de significação. Carol Garcia é editora-chefe da revista digital Moda Brasil (www.modabrasil.com.br), mestranda em Comunicação e Semiótica na PUC-SP e organizadora do livro Moda Brasil – Fragmentos de um Vestir Tropical (Editora Anhembi Morumbi, 2001).

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A modelo Gisele Bündchen, considerada pela Rolling Stones a mulher mais bonita do mundo

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R I T O de beleza e se

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O S edução Mário Hélio

dos Adão e Adana. Para realçar esta beleza, os homens se valem do maagani – o conhecimento de poções secretas reais e mágicas. Os wodaabe pensam que é este legado de beleza e sua incomparável capacidade para lhe dar expressão o que verdadeiramente os distingue dos demais povos africanos.” Entre essas poções mágicas – que os ocidentais chamariam de simples maquiagem – se destaca uma de cor verde tirada da pele de camaleões (“crêem, de um modo algo poético, que assim como o camaleão muda de cor, esta maquiagem transforma o rosto do homem que a usa”). Mas o que, literalmente, mais chama a atenção no resultado do longo e meticuloso preparar-se para seduzir, é a maquiagem de cor amarela (de kohl) que usam para realçar a brancura dos olhos e dos dentes. Além disso, um dos seus truques de beleza é fazer parecer o nariz mais longo e a testa maior, pois são atributos muito apreciados naquela parte do mundo. Claro que o tema da beleza e das culturas primevas não é recente. Um dos pais da moderna antropologia, Malinovski, já o havia bem estudado no seu clássico Argonautas do Pacífico Ocidental. Numa das passagens, ele descreve o modo como os nativos de Sinaketa se maquiam e se adornam e, sobretudo, REPRODUÇÃO

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quanto a moda e a idéia de beleza estão profundamente atrelados à magia é algo que não escapa aos publicitários, antropólogos e todas as mulheres, que são sempre um misto de ambos. Até mesmo os observadores mais desatentos devem ter a convicção intuitiva do quanto as pessoas devem à própria imaginação, com seus mitos e fantasias, a concepção dos seus atributos e o efeito sobre uns e outros. Mais fascinantes do que os periódicos desfiles promovidos pelos papas da alta costura (não por acaso a roupa segue o ciclo das estações), são os ritos relacionados com a beleza e os hábitos de enfeites de diversas culturas que certamente só estão na ordem do dia para os antropólogos e viajantes mais curiosos. Os nômades wodaabe do Níger, por exemplo, foram fotografados e comentados por Carol Beckwith (da National Geographic), que destaca, entre os diversos ritos que documentou, uma cerimônia anual que é, ao mesmo tempo, concurso de beleza (yaake) e de dança (geerewol). Cerca de mil homens se vestem, se pintam e se enfeitam para ser avaliados e eleitos por um júri composto unicamente por mulheres. Escreve Beckwith: “Os wodaabe dizem que o geerewol é uma manifestação do particularíssimo direito que têm por nascimento à beleza transmitida por seus antepassa-


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concebem a beleza e seus instrumentos (entre eles, os cosméticos) como resultado de seus encantamentos. Um dos velhos que, por meio de fórmulas, transformou-se de feio em bonito, explica o processo: “Aqui, nós somos feios; comemos peixe ruim, comida ruim; nossos rostos permanecem feios. Queremos navegar para o Dobu; obedecemos aos tabus, não ingerimos comida ruim. Vamos a Sarubwoyna; nos lavamos; encantamos as folhas de silasila; encantamos o coco; putuma (untamos o corpo); pintamos o rosto de vermelho e preto; colocamos nossa vana perfumada (enfeites de ervas nos braceletes); chegamos a Dobu muito bonitos. Nosso parceiro olha para nós, vê que nossos rostos estão bonitos. Ele atira os vaygu’a para nós.” No caso da pesquisa de Carol Beckwith, o concurso de beleza é, obviamente, um rito de sedução. O desejo de um homem por uma mulher é expresso com um leve pestanejar. Esta, por sua vez, baixa a vista, fingindo recato, mas, se corresponde, olha um pouco para cima, morde de forma discreta os lábios apontando o arbusto em que aceita se encontrar com o pretendente. As mulheres do júri também se paramentam de modo especial para o concurso. Diz-se que levam mais de três meses bordando a roupa que usarão na 64 Continente Multicultural

cerimônia (“cada bordado tem um nome e uma história particular”). As velhas têm um papel fundamental no rito. Aproximam-se da fila de dançarinos e provocam cada um deles de várias maneiras. Os finalistas vão sabendo disso pela maneira especial como se dirigem a eles: batendo de leve no seu corpo com o torso e gritando “yee hoo”. Depois de sete dias da maratona de beleza e jogo de sedução (“os wodaabe dizem que é com a força dos olhos com que se fazem as conquistas e os matrimônios”). Os que dançam melhor, os mais bem maquiados e enfeitados, os que ressaltam melhor a sua beleza e cumprem bem os truques amorosos serão os vencedores. Explica Beckwith: “Três moças solteiras, eleitas por sua beleza, são trazidas pelas anciãs para que façam as vezes de juízas. Ajoelhadas recatadamente, escondem com a mão esquerda seu olhar atento. Depois de observar por um momento a todos os dançarinos, as três se levantam e caminham lentamente até aos que elegeram. (...) Os vencedores se ajoelham para ser coroados com um penacho de crinas de cavalo. Mas os prêmios que recebem são intangíveis: amor próprio, a admiração dos demais homens e o ardor das mulheres.”


O REP RO DU ÇÃ

Obra de arte ambulante: modelito inspirado nos quadros do pintor holandês Piet Mondrian

O primeiro gesto civilizatório

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JOAO PAULO ENGELBRECHT/AJB

ascida em Asmara (Eritréia, então sob o domínio da Etiópia), Marina Colasanti vive no Brasil desde os 11 anos. Aqui, construiu uma vitoriosa carreira de jornalista, escritora, tradutora e artista plástica, tendo mais de 30 livros publicados, incluindo contos, crônicas, poemas, ensaios e textos infantojuvenis. Em entrevista exclusiva, Marina fala sobre a moda como arte, suas funções sociais e as suas mudanças ao longo do tempo. Escritora e jornalista Marina Colasanti

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O homossexual tem prazer em embelezar a mulher, na qual espelha o seu eu feminino Além de fenômeno estético e econômico, a moda é uma questão cultural. Que dimensões culturais você atribui à moda? Primeiro teríamos que definir moda, e dimensões, pois moda alcança também comportamento, atitudes, e dimensões implica em medidas, estabelecidas dentro de alguma correlação. Vou simplificar, usar moda relativa apenas a vestuário e esquecer as dimensões. Vestir-se é o primeiro gesto civilizatório do ser humano. É a primeira atitude que o afasta da pura natureza. Não por pudor exatamente, mas por terem sido expulsos do paraíso terrestre, não mais pertencendo por completo à harmonia da natureza e, por terem entrado na esfera do conhecimento, Adão e Eva taparam suas vergonhas, se vestiram. Vestir-se é, então, nossa primeira atitude cultural. Qual a função social da moda? A moda tinha uma função ontem e tem outra função hoje. Ontem ela era distintiva, a aristocracia e o povo não usavam as mesmas cores, nem os mesmos feitios, os diferentes povos trajavam-se de dife-

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rentes maneiras. A roupa então era a primeira mensagem de identificação do seu usuário. Hoje a moda é industrializada, massificada, horizontalizada. Qualquer nova mensagem de moda viaja com a velocidade do olhar e é imediatamente distribuída nos shoppings do mundo inteiro. As marcas sofrem o mesmo processo. Variam a qualidade e os preços, mas busca-se um idêntico aspecto. Só o olhar apurado consegue ver a diferença. A roupa não pretende mais distinguir, pretende incluir. Mas a moda não serve também como um princípio de identificação (e, por conseguinte, de exclusão) de grupos? Digamos que há duas maneiras de incluir. Uma é a da inclusão em grupos ou tribos. As peruas, as barbies, os socialites, os darks, os criativos. Os darks se vestem todos ao mesmo modo, um vestido florido é quase insulto em noite de pretinhos socialites, e um criativo nem pensa em usar blazer de botões dourados com camisa social listada. A roupa torna-se uma espécie de uniforme dentro de cada tribo. A segunda é a inclusão mais ampla que faz com que uma favelada carioca use os mesmos jeans e a mesma camiseta estampada com a cara de um ídolo pop que são usados por uma japonesa ou uma holandesa. Inclusão também, embora aparente, no universo dos ricos, dos grandes compradores, pois a bolsa Chanel ou o relógio Armani, imediatamente falsificados, são vendidos a preços populares nas esquinas mesmas daquelas ruas em que são oferecidos pelas butiques a preços astronômicos.


RENATO FILHO

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Criação do estilista pernambucano Eduardo Ferreira

Você comentou que os ciclos da moda estão cada vez mais curtos. O que há por trás disso? As mudanças na moda eram lentas e acompanhavam as evoluções do pensamento de um povo, as suas modificações filosóficas e religiosas. Quando, por exemplo, após a Guerra dos Trinta Anos a maioria dos exércitos europeus adotou o chapéu de aba larga e pluma ondejante da cavalaria sueca, os puritanos de Cromwell, afirmando a sua austeridade protestante, recusaram o chapéu de pluma preferindo-lhe um chapéu preto, cilíndrico de forma bem mais rígida. Hoje a moda acompanha apenas o tilintar da caixa registradora. As mudanças são tão vertiginosas que perde-se boa parte da originalidade e recozinham-se modas anteriores. A originalidade maior ficou apenas por conta dos desfiles de alta costura, com peças por vezes de criatividade alucinante feitas para chamar a atenção para uma marca, mas não destinadas ao grande consumo. Inverteu-se o sistema, a moda deixou de servir aos usuários, são os usuários que servem à moda. A Central Saint Martin’s, de Londres, ensina moda como uma vertente das artes plásticas. Recentemente, o Guggenheim de Nova Iorque exibiu uma coleção de Armani. Moda é arte? Nem sempre. Mas pode ser. Por exemplo: os trajes e tecidos criados pela pintora Sonia Delaunay nos anos 20; os desenhos e figurinos criados por Erté para o Harper’s Bazaar, e para as Folies-Bergère, objetos de um ensaio de Roland Barhes. O historiador Paul Johnson afirmou que os estilistas, em sua maioria homossexuais, enfeiam as mulheres deliberadamente. Você vê algum sentido nessa afirmação? Nenhum. Parece-me um conceito essencialmente homofóbico. As mulheres sempre foram enormemente enfeitadas por criadores homossexuais. Parece mais lógico acreditar que o homossexual tem prazer em embelezar a mulher, na qual espelha o seu eu feminino. Continente Multicultural 67


ENTREMEZ

O pintor e o rabequeiro

ILUSTRAÇÃO: LIN

Os artistas populares correm o risco de esquecer o conhecimento herdado ao tornar sua arte mais consumível

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Ministério da Cultura concedeu a medalha da Ordem do Mérito Cultural, no grau de comendador, a dois representantes de Pernambuco: o pintor João Câmara e o mestre de cavalo-marinho e maracatu rural Salustiano. Nada mais merecido. Nada também mais curioso que a escolha de artistas com trajetórias tão diferentes. Como foi escrito na Continente número zero, Câmara, que também é um intelectual que pensa a arte, teve uma formação acadêmica e “atingiu aquela altura em que o artista faz o que quer”. Salustiano pouco freqüentou a escola, teve por mestres os brincantes analfabetos e rústicos da Mata Norte, sendo reconhecido nacionalmente pelo seu elevado “saber popular”. Se Gilberto Freyre fosse vivo daria boas gargalhadas. Ele sugeriu, numa entrevista a Playboy, que parte da população brasileira fosse mantida analfabeta para que se preservasse o nosso rico folclore. Será necessário que paguemos o preço exorbitante do analfabetismo, para sermos ricos de cultura popular? Existe uma leitura mais atualizada dessa premiação. O Brasil está valorizando a memória arcaica do seu povo, preservada como música, poesia, narrativa oral, dança e gesto. Antropólogos, etnomusicólogos, dançarinos, compositores e pesquisadores acadêmicos atropelam-se na corrida do ouro, em busca dessa nova mina. É impossível prever o que sairá ganhando o artista popular. Com certeza, poucos conhecerão a glória do Mestre Salustiano. Salu e a família procedem da zona da Mata Norte de Pernambuco, onde eram trabalhadores da cana. O maracatu e o cavalo-marinho, chamados de brinquedos, representam para eles mais que um divertimento. É uma forma de transcender um coti-

Ronaldo Correia de Brito 68 Continente Multicultural


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diano miserável, no trabalho semiescravo do canavial. Pai e irmãos se revezam nos papéis de músicos e Mateus. Quando se mudaram para Olinda, mantiveram-se ligados aos brincantes de Aliança, Nazaré da Mata, Condado, Carpina e Tracunhaém, estimulando-os a investir nos maracatus. Centenas de homens e mulheres, sem uma consciência precisa do que os motiva, gastam o pouco tempo livre que possuem, e os parcos recursos, na produção dos seus brinquedos, luxuosos como uma corte real. Quem já viu um caboclo-de-lança carregando um surrão pesado e uma guiada com dezenas de metros de fita deve ter perguntado qual o sentido daquele esforço. Pela invenção do brinquedo é possível transformar a realidade, mesmo que por um tempo provisório. E nesse estágio criador nada diferencia a pintura de João Câmara dos movimentos de corpo do Mateus de Salustiano. Os jovens de classe média do Brasil são desprovidos de uma cultura própria e estão à mercê da propaganda e do consumo. Por isto, procuram junto aos artistas populares os conhecimentos para a elaboração de uma nova arte. Vários grupos musicais e de dança surgiram como resultado dessa busca. Alguns tentam a fusão da cultura de classe média com a popular. Outros estilizam os brinquedos tradicionais, fundam maracatus, bois e cavalos-marinhos, querendo apenas um espaço no mercado de produção. A cultura é um bem comum e todos desejam apropriar-se desse bem, tirando dele o melhor proveito. O resultado é muitas vezes de má qualidade, estereótipo grosseiro de uma arte singela. Na maioria das vezes, busca-se apenas tornar assimilável pelo público de gosto médio um produto que ele é incapaz de consumir in natura. Para um cidadão comum, é mais fácil aplaudir moças e rapazes bem nutridos, se apresentando num auditório com ar-condicionado, mesmo que a sua arte seja de qualidade suspeita, que se arriscar atrás dos brincantes populares dos morros da periferia.

Salustiano possui um conhecimento guardado e transmitido através de gerações de mestresartistas. Esse saber é quase sempre ritualizado e obedece a formas fixas, onde as mudanças são pequenas e lentas. Sua arte ainda está longe do requinte e aprimoramento alcançados pelo nô, kabuki e katakali. Somos uma nação jovem, de cultura antropofágica e dinâmica, aberta a muitas interferências. Por isto, não é possível arriscar um palpite sobre o destino da nossa dramaturgia popular. Também não faz sentido interferir nesse processo, como querem os folcloristas conservadores. Darcy Ribeiro chamava de gigolôs de índios os antropólogos que enriqueciam estudando as tribos brasileiras, sem dar nada em troca. Já existe uma contrapartida para os nossos artistas populares. Eles mesmos se empresariam, ocupando os palcos de rua e as salas de teatro. O risco é que obedeçam às leis de mercado e produzam apenas o que é consumível. Os caboclinhos, a mais complexa dança dramática brasileira, executam hoje pouco mais de cinco passos, das mais de cem manobras do seu repertório. O desfile carnavalesco, seu palco principal, determina o que ele pode apresentar. Já que ninguém deseja ver o seu repertório completo, eles deixam de praticá-lo e a dança ritual entra no esquecimento. A sugestão de Gilberto Freyre precisa ser repensada. Ele deveria ter pedido aos artistas populares para não abrirem mão da sua cultura. O que aconteceria se Salustiano freqüentasse uma universidade? Talvez ele perdesse as referências do seu povo ou retornasse a ele com um novo olhar criador. É um risco inerente à busca do conhecimento. A arte de Salustiano nasce do coletivo e não carece de assinatura, como a pintura individual de Câmara. Não é uma comparação de grandezas. Dizem que Câmara é erudito e Salustiano popular. Erudito é o popular.

Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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iro Nelson Ferreira como pianista do Cinema Royal (cerca de 1920)

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Nelson Ferreira

(1902-1976)

O MAESTRO QUE Nテグ S ABIA COMPOR FREVO


ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO – RECIFE / REPRODUÇÃO: ROBERTO RÔMULO

Presente: Na primeira edição de 2002 a Continente dá aos seus leitores um presente especial: um CD com 11 músicas de Nelson Ferreira Qualquer música: Luiz Guimarães lança no Carnaval o CD Frevos de Todos os Tempos, uma verdadeira antologia do ritmo Olho sobre telas: A produção de artes plásticas dos anos 60, no Brasil e no mundo, está em mostra itinerante que chega ao MAM (SP) Quadro a quadro: Filme mostra a vida de um gênio em matemática que depois de ganhar o Prêmio Nobel passa a sofrer de esquizofrenia Dois pontos: O poeta Manoel de Barros lança mais um título. E o pernambucano Marcus Accioly traz a público o poema épico Latinomérica Sabores pernambucanos: São conhecidas hoje cerca de 400 variedades de banana, uma fruta fácil de descascar e comer, nutritiva e energética Continente Multicultural 73


V

árias imagens poderia eu dele guardar, mas nunca tão familiar como aquela que, na manhã de 9 de dezembro, comparecia ao meu apartamento para juntos festejarmos o nosso aniversário. Estava eu exilado do bairro da Torre, forçado pela enchente do Capibaribe de 1975, residindo temporariamente no apartamento 173 da rua da Aurora, nº 1035. Nelson Heráclito Alves Ferreira, nascido na cidade do Bonito em 9 de dezembro de 1902, veio a ser um dos donos da música em Pernambuco; posição ocupada na segunda metade do século 19 por Francisco Libânio Colás e, nos primeiros anos do século 20, por Euclides Fonseca. Segundo filho de Luiz Alves Ferreira e Josefa Flora Torres Ferreira, ela professora primária, a família de Nelson, logo cedo, transferiu-se para o Recife, onde ele começou os seus primeiros contatos com o piano. Aprendendo de ouvido, a exemplo do seu pai, que tocava violão, logo depois veio a ter lições com sua irmã Laura, já professora deste instrumento. Sua família, a exemplo do seu pai, então empregado da Joalharia Krause e que “tocava violão de ouvido”, era toda ligada à música: Laura, Luís e Nelson eram pianistas; Irene tocava bandolim; Ladyclaire e Olgalinda formavam uma dupla famosa de cantoras do rádio. Nelson também aprendeu a tocar violino, chegando a ocupar uma das estantes da Orquestra Sinfônica do Centro Musical de Pernambuco, dirigida por Euclides Fonseca. Estudante da Escola Normal do Recife, onde graduou-se professor, Nelson Ferreira, já aos 13 anos, ajudava a renda familiar tocando nas “pensões alegres” de prostitutas: Chanteclair, Mimi, Bohemia e a da famosa Júlia Peixe-Boi. Pensões boêmias, freqüentadas por usineiros e senhores de engenho, cheias de mulheres brancas, cujos corpos de há muito não sabiam o que era a luz do sol, e animadas por polcas, valsas e maxixes, tiradas do piano por aquele meninote. Aquilo não era local de trabalho de um menino. O velho Luiz bronqueou e o menino Nelson foi tocar no Café Chile, na praça da Independência, passando depois para o Café Chileno, no bairro do Recife. 74 Continente Multicultural

O DONO D LEONARDO DANTAS SILVA


FOTOS : ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO – RECIFE / REPRODUÇÃO: ROBERTO RÔMULO

A MÚSIC A

O compositor de Quarta-feira Ingrata e Casá! Casá! não se julgava capaz de compor frevos, e dizia que o gênero iria estourar nos Estados Unidos

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2 1 – Nelson Ferreira e orquestra da Rádio Clube 2 – NF e amigo não identificado no Kiosque do Wilson, no Recife 3 – José Menezes, Capiba, NF e Jorge Gomes na noite de entrega dos prêmios aos compositores vitoriosos (21 de março de 1961) 4 – NF e Ângela Maria no Rio de Janeiro, durante programa na rádio Mayrink Veiga, em homenagem a Evocação. (Foto Lucena)

FOTOS : ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO – RECIFE / REPRODUÇÃO: ROBERTO RÔMULO

Antes desta época, em 1915, Nelson Ferreira surgiu como autor da Valsa Vitória, escrita por encomenda da Companhia de Seguros Vitalícios Pernambucana. Dos cafés, Nelson passou a tocar nos cinemas, integrando como pianista as orquestras do Pathé (1917), Moderno (1919), Helvética (1923), transferindo-se por uma temporada para O Central, no Rio de Janeiro, onde atuou por cinco meses em 1923, substituindo o maestro Gianetti como diretor de orquestra de teatro de variedades. Voltando ao Recife é contratado por Luís Severiano Ribeiro para o Cinema do Parque, que viera substituir o Helvética da rua da Imperatriz, lá permanecendo até 1930. Neste ano o cinema sonoro, com o filme Divina Dama, tomou conta das casas de espetáculo e Nelson foi ganhar a vida como professor de piano. Em 1931, a 1º de julho, pelas mãos de Oscar Moreira Pinto, Nelson Ferreira entra para a Rádio Club de Pernambuco (PRA 8), onde atuou como pianista, regente de orquestra, diretor artístico, produtor, ator de radionovelas, ali permanecendo até o seu falecimento em 21 de dezembro de 1976. Nelson Ferreira tentou estudar piano com o professor Manuel Augusto dos Santos, baiano de Nazaré das Farinhas que fez do Recife a sua cidade a partir de 1919, mas logo depois abandona as aulas e aceita o convite para ser pianista do navio Caxias, então em viagem à Europa. Foi nos pianos dos cinemas que Nelson Ferreira teve a sua consagração como autor das mais belas valsas de sua época. Grande parte de sua obra para piano foi editada pela Secção de Música de Dantas Bastos & Cia., dentro de sua Coleção Mauricéia, então situada na rua Nova, nº 95, depois sucedida pela Casa Parlophon. Foi como regente dessas orquestras (piano, dois violinos, sete clarinetos, violoncelo, contrabaixo, flauta, trompa, trompete, bateria) que Nelson reinou no seu tempo. Foi como pianista que ele notabilizou-se com a composição de valsas, algumas até recebendo letras e sendo gravadas por gente famosa como Francisco Alves, que em 1939 gravou Diga-me e Minha Adoração. Vale lembrar outros títulos como Miluzinha, Entre as Hortências, As Estrelas e Nós Dois, Desolação, Juro-te, Ausência, Realidade de um Sonho, Ternura, Visão


Já aos treze anos, Nelson Ferreira ajudava a renda familiar tocando nas “pensões alegres” de prostitutas: Chanteclair, Mimi, Bohemia e a da famosa Júlia Peixe-Boi 1

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Encantadora, Noemi, Obstinação; composições que, gravadas pelo piano de Giuseppe Mastroiani, figuram no LP nº 60.043, Meio Século de Valsas, editado pela Fábrica de Discos Rozenblit em 1975. Em 1988, dentro da série Compositores Pernambucanos, dirigida por Renato Phaelante, a Fundação Joaquim Nabuco patrocinou a gravação de um disco com dez valsas de Nelson Ferreira, sob a direção de Antônio José Madureira, onde aparecem duas composições inéditas em disco: Pedras Preciosas e Valsa Azul. Os frevos que Nelson não sabia No Carnaval de 1996, ao sintonizar a Rádio Universitária, um frevo instrumental chamou-me a atenção. Ao contrário dos demais, que começa, sempre com uma introdução a cargo dos metais, aquele frevo-de-rua era precedido por uma cadenciada e característica percussão; tal como acontece na abertura dos bailes carnavalescos e nas saídas dos clubes e troças do nosso Carnaval de rua. Estava ali a marca registrada daquele expoente de nossa música carnavalesca. A cadência do tarol, a marcação do surdo, o retinir dos pratos e o balanço do pandeiro contagiam e prendem a atenção do ouvinte na curta espera do frevo rasgado que se segue. Estava ali a presença do grande regente do nosso Carnaval; ali estava Nelson Ferreira Continente Multicultural 77


(1902-76), de corpo inteiro à frente de sua orquestra, abrindo o baile com Vem Frevendo; frevo-de-rua gravado pela Rozenblit (LP 60041/1976) sob o título Meio Século de Frevo de Rua. A orquestra tocando uníssona, metais e palhetas, em sincronismo único, vem despertar a alma do folião adormecido em cada um de nós. Basta fechar os olhos para vislumbrarmos a multidão de passistas endiabrados, registrando-se aqui e ali dezenas de chapéus-de-sol, tendo ao centro, como que flutuando sobre as cabeças, um rico estandarte bordado com fios de ouro. E quem diria que Nelson Ferreira, por tantas décadas o dono da música em Pernambuco, houvesse um dia confessado ser incapaz de compor um frevo-de-rua? Por certo o leitor vai pensar que eu estou brincando, mas é pura verdade a afirmação. Em entrevista concedida a Valdemar de Oliveira, in Contraponto nº 4/1947, Nelson Ferreira afirmou não ser um compositor de frevo instrumental. Naquele mês de março de 1947, quando já era um compositor consagrado e conhecido em todo Brasil, Nelson Ferreira se dizia incapaz de compor um frevo de rua. – Não me considero um compositor de frevo, do chamado frevo-de-rua, porque este tem certas particularidades que constituem um verdadeiro segredo; um segredo vedado a muitos, mesmo aos de olho mais vivo... – Não se trata de segredo na parte puramente melódica, mas na orquestração, isto é, na maneira de trabalhar com os metais e as palhetas. Eu nunca fui músico de banda. Ao contrário, sempre trabalhei com jazz, e o frevo no jazz não tem o mesmo valor do frevo na fanfarra, com suas requintas (sic), seus dois ou três pistons, seus dez ou doze trombones. A verdade é que o frevo fica muito pobre na jazz band. Daí, a razão de eu não me poder dedicar a fundo a esse gênero. – É verdade que já escrevi um frevo, que teve geral aceitação: TSAP no Frevo (1943). Mas, isso foi por acaso. Precisavam de completar uma face do disco, com o meu O Passo do Caroá e eu escrevi o frevo. Agradou, sim, mas não era o meu gênero. Quem diria que este mesmo Nelson Ferreira iria sacudir os salões e ruas do Recife, a partir do Carnaval de 1953, com o frevo instrumental Come e Dorme (Mocambo nº 78 Continente Multicultural

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1 – Apresentação da Orquestra Nelson Ferreira no Rio de Janeiro, tocando Evocação, cantada por Maria Celeste 2 – Gilberto Freyre, NF e Mauro Mota no Caxangá Ágape 3 – NF e sua mulher, Aurora 4 – NF escrevendo à máquina


FOTOS : ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO – RECIFE / REPRODUÇÃO: ROBERTO RÔMULO

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Tome nota: o frevo matará a conga, a rumba e o swing, quando aparecer, um dia, num tecnicolor norte-americano

15000/1952) que logo tornou-se hino de guerra da torcida do Clube Náutico Capibaribe? Que haveria de marcar época com Gostosão e Gostosinho, compostos em 1949? A sua modéstia, porém, não o impediu de vaticinar sobre o futuro do frevo: – Digo-lhe que o frevo deve tornar-se conhecido, como a rumba, a conga, o swing; danças tão doidas quanto a nossa, e olhe que isso não está longe. O samba já apareceu. Quando o frevo entrar no cinema americano, veremos o furor que provocará. Questão de oportunidade... Não está vendo Tico-tico no Fubá? Era uma música que vendeu como outra qualquer, de Zequinha de Abreu, em 1928. Eu mesmo a vendi muito, na Casa Dantas Bastos. Esqueceram-na. Bastou, porém, que o americano a pegasse, para dar milhares de cruzeiros aos herdeiros do autor. Tome nota: o frevo matará a conga, a rumba e o swing, quando aparecer, um dia, num tecnicolor norte-americano. Este mesmo Nelson Ferreira, que na sua humildade se julgava incapaz de compor um frevo-de-rua em 1947, nos deixou ao morrer, em 21 de dezembro de 1976, os mais belos frevos instrumentais do nosso Carnaval: Gostosão (1949), Gostosinho (1950), Vem Frevendo (1951), Come e Dorme (1952), Isquenta Muié (1954), Carro-chefe (1958), Qual é o Tom (1958), Porta-bandeira (1959), Casá! Casá! (1955), Frevo no Bairro de São José (1960), Frevo no Bairro do Recife (1961), Quarta-Feira Ingrata (1964), dentre muitos outros. Leonardo Dantas Silva é jornalista, pesquisador e diretor da editora Massangana

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CLAUDIA RANGEL

Claudionor Germano e Cylene Araújo cantam Nelson Ferreira no CD especial da Continente

PERNAMBUCO ESPETA CUL AR – C ARNAVAL 2002 Depois do sucesso do CD de Luiz Gonzaga, Nelson Ferreira é o novo artista que ganha coletânea pela CEPE

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E

ste é o presente aos leitores da Continente, nesta primeira edição do ano: um CD com 11 músicas do maestro e compositor Nelson Ferreira (09/12/1902 – 21/12/1976) que, juntamente com Capiba, formou a dupla mais célebre de autores de frevos do Carnaval pernambucano. Com coordenação e seleção musical de Samuel Valente e Cylene Araújo, o disco traz uma coletânea de grandes sucessos de Nelson, interpretados por Cylene e convidados (Claudionor Germano, Marron, Ângela Barreto, Paulo de Tarso, Cinderela, Eddy Carlos e Jorge Ricardo). Na música Borboleta não é Ave e na faixa-extra Diz que Sim (frevo inédito de Cylene Araújo e Moyses Wolfenson), participa o Coral Cepe, formado por funcionários da Companhia Editora de Pernambuco. São as seguintes as composições de Nelson Ferreira constantes no CD: Evocação nº 1, Minha Fantasia, Pernambuco, Você é Meu, Arlequim, A Virada, O Dia Vem Raiando, Chora, Palhaço, Borboleta não é Ave, Dedé, Juro e Dança do Carrapicho.


QUALQUER MÚSICA

O

médico e diretor cultural da Academia Pernambucana de Música, Luiz Guimarães, lança este ano próximo ao Carnaval, uma verdadeira antologia do frevo. Apaixonado pelo ritmo, Guimarães é compositor de quase 50 canções já gravadas e traz em Frevos de todos os tempos, seis de suas composições, três delas inéditas. Produzido de forma independente, assinado com a marca LG Produções, o disco faz parte da série Nossos Valores, que já lançou três volumes do disco Frevos de Rua – Os Melhores do Século. Frevos de todos os tempos traz 22 músicas, com composições feitas de 1935 a 2001.

FREVO

ARQUIVO PESSOAL

UMA VERDADEIR A ANTOL OGIA DO CD reúne frevos clássicos e traz composições inéditas em homenagem ao futebol pernambucano

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Os arranjos são do Maestro Duda, com a participação de José Menezes, Edson Rodrigues e Clóvis Pereira, que faz a apresentação do trabalho. O repertório reúne canções com a assinatura de nomes consagrados do frevo, como Nelson Ferreira, Carnera e Levino Ferreira. Das composições de Luiz Guimarães, o destaque é o frevo O Primeiro Dia, vencedor entre 232 músicas do Festival Recifrevo, promovido pela prefeitura. As novidades são as três homenagens aos principais times do futebol pernambucano, Náutico Cem Anos de Glória, Veneno de Cobra e Juba do Leão. “Ainda estou devendo um frevo ao time Íbis, mas me comprometo a fazer”, afirma o compositor.

NOTA S ALANIS MORISSETTE O novo álbum da canadense Alanis Morissette tem lançamento mundial marcado para o dia 25 de fevereiro. Under Rug Swept chegou a ser anunciado para junho do ano passado, o que causou ainda mais expectativa pela sua chegada às lojas. Recentemente, Alanis tem manifestado seu uso e apoio da música digital, inclusive chegou a defender o Napster em juízo, afirmando que “a maior parte dos artistas nunca recebem pagamentos de royalties. A distribuição gratuita pela Internet permite ao artista criar uma audiência, o que em parte lhe permite criar remuneração a partir de outros meios como shows e merchandising.” Fãs poderão ver algumas de suas novas composições como Hands Clean e 21 Things I Want in a Lover no site: www.alanismorissette.com. Under Rug Swept é o sexto CD da cantora, que já

vendeu mais de 35 milhões de discos. Algumas canções já são conhecidas dos fãs, como Utopia, homenagem às vítimas do ataque terrorista ao World Trade Center.

PINK

Em janeiro, chega às lojas o novo CD de Pink, cantora que se tornou mais conhecida depois de participar da trilha do filme Moulin Rouge, pela qual ganhou o MTV Award com a canção Lady Marmalade. Seu primeiro disco, Can’t Take Me Home, ultrapassou a marca dos dois milhões de cópias vendidas. M!ssundaztood é o nome de seu novo trabalho, cujo destaque é a faixa Get The Party Started. O disco conta com as participações de Steven Tyler, do Aerosmith, e Richie Sambora, da banda Bon Jovi. Para divulgação do CD, Pink deve vir ao Brasil em abril deste ano.

JOEY RAMONE

Quase seis meses depois da morte de Joey Ramone, chega às lojas o seu primeiro disco póstumo. Don’t Worry About Me, da Sanctuary Records, foi realizado em parceria com o produtor Daniel Ray e estava quase pronto quando o cantor morreu, aos 49 anos, em abril de 2001. O CD traz faixas como os covers de What a Wonderful World, de Louis Armstrong, e 1969, de Iggy Pop, além de Spirit in My House. A previsão de lançamento no Brasil é para a segunda quinzena de fevereiro.


DIVULGAÇÃO

OLHO SOBRE TELAS

IN OUT, de Ana Maria Maiolino (Antropofagia, 1973)

PAR A ALÉM DO

DIVULGAÇÃO

PRÉ- CONCEITO A produção artística mundial dos anos 60 em exposição no Museu de Arte Moderna em São Paulo O Eu e o Tu, de Lygia Clark, (série RoupaCorpo-Roupa, 1967)

O

Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo reúne, de 23 de janeiro a 3 de março deste ano, 125 obras de 21 artistas de quatro pólos geográficos – América Latina, América do Norte, Europa Ocidental e Europa do Leste. É a exposição Além dos Pré-Conceitos: Experimentos dos Anos 60, que revela as simultaneidades e diferenças de produções artísticas mundiais da década de 60. O Brasil participa da mostra com quatro representantes: Hélio Oiticica, Lygia Clark, Ana Maria Maiolino e Cildo Meireles. Continente Multicultural 83


DIVULGAÇÃO

ABC, de Edward Krasinski, (1970)

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DIVULGAÇÃO

Apesar de alguns nomes de participantes da mostra sejam identificados no movimento artístico internacionalizado da arte conceitual, como Marcel Broodthaers (Bélgica), On Kawara (Japão / EUA) e Bruce Naumam (EUA), Além dos Pré-Conceitos expõe singularidades de condições regionais bastantes distintas. Em contrapartida, estas obras têm em comum a subversão de métodos tradicionais, como a pintura e escultura, utilizando-se de representações de produtos da indústria de massa (como as garrafas de Coca-Cola de Joseph Beuys (Alemanha) e Cildo Meireles), e de materiais cotidianos (as batatas de Victor Grippo (Argentina) e as cordas e tubos de Eva Hesse (Alemanha/EUA). A conexão dessas obras está, principalmente, marcada pela fase política e social da época, no auge da disputa ideológica da Guerra Fria. A arte do leste europeu, assim como a latino-americana, por exemplo, passava por um período de restrição, devido aos regimes repressivos. Predominava a estética da Europa ocidental e a norte-americana, que lutava por afastar a influência soviética do quadro da arte mundial. Além dos Pré- Conceitos tem a curadoria da theca Milena Kalinovska, ex-diretora do Intitute of Contemporary Art de Boston, e já passou por Praga, na República Tcheca, Varsóvia, na Polônia, Buenos Aires, Argentina e Rio de Janeiro.

Bruno Cora Tea, de Joseph Beuyis (1974)

Exposição: Além do Pré-Conceito: Experimentos dos anos 60 Curadoria: Milena Kalinovska Local: Museu de Arte Moderna de São Paulo-MAM End: Parque do Ibirapuera, portão 3 – Tel: (11)5549-9688/ 5085-1300 Abertura: 23 de janeiro, quinta-feira, às 19h Período: 24 de janeiro a 3 de março de 2002 Horários: terças, quartas e sextas, das 12 às 18h, quintas-feiras, das 12 às 22h, e sábados, domingos e feriados, das 10 às 18h. Ingressos: R$5,00 (estudantes pagam meia). Sócios do MAM, crianças até dez anos e adultos com mais de 65 não pagam entrada. A entrada é franca às terças-feiras, durante todo o dia, e às quintas-feiras, a partir das 17h. Estacionamento gratuito no local.


ARTE NO

A

C ARNAVAL

folia dos quatro dias de Carnaval de Pernambuco não se resume apenas às batidas dos maracatus, ao frevo de Olinda e à multidão seguindo o Galo da Madrugada. É época também de celebrar algumas aspirações artísticas. Um exemplo é a exposição Arte na Galeria, que funciona somente durante o Carnaval. Tudo começou em 1989, quando um grupo de artistas plásticos resolveu montar uma exposição em pleno Carnaval. Mas, como chamar atenção dos animados foliões que brincavam nas ladeiras da Cidade Alta? Só mesmo realizando algo inovador e surpreendente. Foi quando surgiu a idéia de expor na barbearia do Seu Isnar, a mais famosa

de Olinda, localizada nos Quatro Cantos, foco máximo da folia. A barbearia logo virou ponto de encontro de intelectuais e artistas e teve destaque em toda imprensa local. A filosofia da exposição era reunir trabalhos de tamanho pequeno, o que possibilitava a manutenção do lugar exatamente como era antes. O projeto também não exigia a presença de um curador. Os próprios artistas faziam uma espécie de abertura, em meio a festas com espírito carnavalesco. Com a venda da barbearia no final dos anos 90, a mostra passou a ser realizada no Recife. Este ano, a mostra vai realizar-se na Royal Galeria de Arte, na verdade, o Bar Royal, na parte “Oriental” do Recife Antigo.

LULA

RODRIGUES

JOBALO

O Instituto Cultural Lula Cardoso Ayres retorna às suas atividades a partir da segunda quinzena de janeiro. Com espaço reestruturado, terá uma exposição permanente das obras do artista, abordando desde sua faceta de pintor e desenhista até as suas habilidades como fotógrafo e programador visual. A cinemateca, verdadeira memória do cinema mudo mundial, também volta a funcionar.

A Rodrigues Galeria de Arte promove de 2 de janeiro a 28 de fevereiro uma exposição de artes visuais que tem como tema os trabalhos produzidos pela geração compreendida entre as décadas de 40 e 60. Participarão da coletiva obras de artistas como Abelardo da Hora, Guita Charifker, Gilvan Samico e Vicente do Rego Monteiro. Augusto Rodrigues e Nise de Souza Rodrigues são os curadores.

A natureza entra em pauta no trabalho do artista pernambucano Jobalo. Morando em Milão há quatro anos, o artista agora nos dá oportunidade de conhecer melhor a sua obra na Galeria Dumaresq com a exposição Vegetal, a partir do dia 23 de janeiro.

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QUADRO A QUADRO

Russel Crowe pode concorrer novamente ao Oscar por interpretar um Nobel de Economia

GÊNIO E ESQUIZOFRÊNICO

D

irigido por Ron Howard, Uma Mente Brilhante (A Beautiful Mind) teve seu roteiro baseado no livro de Sylvia Nassar, uma biografia de John Forbes Nash Jr., vencedor do prêmio Nobel. Gênio no campo dos cálculos matemáticos, Nash ganhou reconhecimento internacional e, em seguida, passou tragicamente a sofrer de esquizofrenia. Todas as crises provocaram uma decadência em sua vida profissional e pessoal. O filme não é a tradução fiel do livro de Nassar. Na verdade, ele usa apenas a estrutura da vida de John Forbes Nash Jr. para desenvolver a trama. O diretor estava há tempo interessado em produzir um filme que tivesse como tema central a fatalidade de uma doença mental, mas em todos os casos estudados sentia que faltava algo. A

história de Nash eliminou este sentimento. A genialidade, o prêmio internacional, o casamento e a doença formam o esqueleto deste roteiro recheado por anedotas dramáticas que possivelmente fizeram parte da vida do Nobel de Economia. Nash é vivido por Russel Crowe, vencedor do Oscar de melhor ator no ano passado com o filme Gladiador e possível concorrente ao prêmio também por este trabalho, que promete ser um dos grandes do Oscar 2002. Uma Mente Brilhante Produção: Imagine Entertainment Direção: Ron Howard Roteiro: Akiva Goldsman Elenco: Russel Crowe, Jeniffer Connelly, Ed Harris e Christopher Plummer Lançamento previsto: Fevereiro 2002 ELI REED / DIVULGAÇÃO

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DIVULGAÇÃO

A VITÓRIA DA DOR

DIVULGAÇÃO

DIVULGAÇÃO

O italiano Nanni Moretti conseguiu a Palma de Ouro em 2001 com a dolorosa história da morte de um filho

O

grande vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2001 chega às telas brasileiras. O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio), produção italiana dirigida, escrita e atuada por Nanni Moretti (Caro Diário, Aprile), vem se destacando pelo tema, simples e, ao mesmo tempo, comovente: a perda de um filho. Moretti assume o papel de Giovanni, um psicanalista que vê a sua vida completamente mudada a partir da morte de seu filho Andrea (Giuseppe Sanfelice) num acidente de mergulho. Embaralhado em emoções antes desconhecidas, Giovanni passa por momentos de dor, saudade, arrependimento e ódio. Enfrenta situações como a missa de memória, a descoberta de uma paixão secreta de seu filho, Arianna (Sofia Vigliar), e fica obcecado com a idéia de que, se não tivesse saído de casa para atender a um cliente, Andrea ainda estivesse vivo. Este sentimento de culpa aos poucos vai sendo desenvolvido na trama e é transformado numa raiva agonizante de Giovanni pelo cliente.

A forma como todos estes sentimentos são conduzidos pelo diretor vem mexendo com platéias e críticos do mundo inteiro. Foi com esta história que a Itália arrebatou um dos principais prêmios do cinema, a Palma de Ouro, quebrando um “jejum” de 23 anos. No Brasil, O Quarto do Filho foi exibido no ano passado em sessões únicas, como na Mostra de São Paulo e na Retrospectiva 2001/Expectativa 2002, organizada pela FUNDAJ, em Pernambuco. O Quarto do Filho Produção: Angelo Barbagallo, Nanni Moretti Direção: Nanni Moretti Roteiro: Nanni Moretti, Linda Ferri, Heidrun Schleef Elenco: Nanni Moretti, Laura Morante, Jasmine Trinca, Giuseppe Sanfelice Lançamento previsto: Fevereiro 2002 Continente Multicultural 87


MARCO ZERO

O MUNDO NUM GRÃO DE AREIA Com o Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, Manoel de Barros confirma o talento para achar poesia e humor nas pequenas coisas. Alberto da Cunha Melo

A

obra de Manoel de Barros vem-se afirmando no país de uma maneira bastante singular. Diferentemente de outros bons poetas contemporâneos que, quando não são lidos apenas pelos outros poetas, têm um público fiel mas limitado a uma parcela do estamento intelectual, Barros vem ampliando, cada vez mais, o espectro de seus leitores e conquistando pessoas de bom-gosto que, no entanto, antes não demonstravam interesse pela poesia. Seu último livro, Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, que é o 16º de sua bibliografia, dá prosseguimento a uma temática que lhe é 88 Continente Multicultural

recorrente e muito particular. O tema, que é condição necessária, mas não suficiente, não só para a poesia, mas para qualquer obra de arte, sempre recai nesse autor sobre as coisas normalmente despercebidas, mínimas, microscópicas, ínfimas, como o “cisco”, por exemplo, que merece um dos melhores poemas do livro. Ao fixar-se nas insignificâncias da Terra, nesse microcosmo invisível para os mortais comuns, Manoel de Barros parece estar tentando, como o faz Blake, “to see a world in a grain of sand”, o que seria, não resta dúvida, uma outra forma de definir a sua poética. Mas essa maneira de ver o mundo não implica no mau humor característico da maior parte da poesia brasileira. Como se


complementasse a sua definição de poesia, Barros confessa abertamente: “Palavras/ Gosto de brincar com elas/ Tenho preguiça de ser sério.” Mestre na elaboração de imagens inesperadas, ele parece utilizar como técnica de composição a fórmula do humor, ou seja, a ruptura de expectativas. Ao distorcer o modo comum de percepção das coisas, ele procura quase sempre dar predominância ao mundo natural sobre o cultural: “prédio que ficava em frente das pombas”, ou às coisas pequenas sobre as grandes: “Uma rã se achava importante/ Porque o rio passava nas suas margens”. Ainda no plano semântico das significações eleitas por Manoel de Barros, fica explícito neste seu último livro, como de resto na maior parte da sua obra, que a diferença entre o poético e o racional estaria, para ele, como estivera para a retórica clássica a diferença entre prosa e poesia. Estes dois versos do poema intitulado Infantil confirmam com eloqüência o que digo: “Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia/ Eu não preciso de fazer razão.” Para aquela antiga retórica, “a poesia era a linguagem da paixão e da imaginação viva e animada” e a finalidade do poema era “deleitar e comover”, como se pode ler nos manuais escolares de um José Joaquim Alves Albuquerque (1880) ou de um Jerônimo Thomé da Silva (1883). Tais definições já seriam novas reformulações do “docere cum delectare”, o ensinar deleitando, do velho Horácio. Ensinar o leitor a ver o mundo através de um grão de areia, como propõe a fórmula blaqueana e, ao mesmo tempo deleitá-lo (para Barros, com brincadeiras verbais), eis um projeto elaborado por Horácio no século I e que volta, não se sabe se programática ou inconscientemente, a ser retomado pelo nosso poeta do Pantanal. Mas a opção pelo “cisco” impõe-lhe um risco, do mesmo modo que a irresistível atração que os seus textos vêm exercendo sobre um público não intelectual. O de ser futuramente confundido com, por exemplo, o hoje esquecido J. G. de Araújo Jorge, o único best-seller da poesia brasileira. O fato de a qualidade dos seus textos estarem a anos-luz dos escritos por aquele fenômeno editorial não impede, como já está prematuramente acontecendo, que alguns críticos, quase sempre poetas frustrados, fiquem pinçando versos ruins nos seus livros.

Esses versos ruins existem na obra de Manoel de Barros e, mesmo, neste Tratado das Grandezas do Ínfimo, mas se fôssemos colocar, uns sobre os outros, os maus versos de Fernando Pessoa, teríamos no fim um alto edifício e terminaríamos não reconhecendo ser ele o maior gênio poético de Portugal depois de Camões. Um outro aspecto do livro agora resenhado, que me chamou atenção, foi o propósito da maioria dos textos de constatar ou acompanhar o cotidiano da natureza, como a pretender revelar a eterna contemporaneidade do mundo natural, porque uma rosa nunca sai de moda. Por falar nisso, recentemente foi publicada pelo Ministère des Affaires Etrangères da França uma antologia sob o título Des Poètes Français Contemporains, com textos de vinte e dois poetas, que dão ênfase no cultural-urbano do presente. Há bons poemas, especialmente um trabalho do consagrado Yves Bonnefoy. Mas o que dizer desse horrível verso de Michel Deguy: “La nature morte du jour et de l’armoire”. À natureza morta do guarda-roupa prefiro mil vezes a natureza viva do Pantanal matogrossense, cantado por Manoel de Barros. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, de Manoel de Barros – Record: RJ – 2001 R$17,00 – 64 páginas

Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo


DOIS PONTOS

PENS AMENTOS IMPERFEITOS E IDÉIA S INSTIG ANTES Está na praça um novo livro de Michel Maffesoli: Sobre o Nomadismo – Vagabundagens Pós-Modernas. Classificado por Muniz Sodré como “sociólogo com um estilo”, o professor francês, fundador do Centre d´Études sur l’Actuel et le Quotidien, desfia um turbilhão de idéias sobre fenômenos da atualidade, centradas na convicção de que uma espécie de retorno ao nomadismo (presumivelmente verificado entre jovens na Europa de hoje) representaria a resistência à domesticação burguesa erigida pela modernidade. Mais que uma resistência: a síntese dialética a suceder a errância das sociedades tribais antitetizadas pelo compromisso de residência do moderno Estado-nação. Com forte sotaque nietzscheano, a quem cita copiosamente, Maffesoli não segue um método propriamente científico, brandindo o paradoxo de forma brilhante e saborosa para abordar a homogeneidade dos tribalismos contemporâneos. Para ele, o novo nomadismo é

Sobre o Nomadismo – Vagabundagens Pós-Modernas, de Michel Maffesoli (210 págs., R$ 21,00). Editora Record.

BUDA

ZÉLIA

Em Buda, novo lançamento da Objetiva na coleção Breves Biografias, a inglesa Karen Armstrong faz, dentro da perspectiva histórica, um retrato preciso do príncipe hindu Sidarta Gautama, procurando clarear seu pensamento diante de nossa visão ocidental. Restringe-se aos fatos, mas relata as lendas como histórias paradigmáticas que ilustram o pensamento religioso e filosófico da época, ao mesmo tempo em que traça um paralelo com a era atual. Dentro da mesma coleção, foi lançado Leonardo da Vinci, de Sherwin B. Nuland.

Durante o tempo em que Jorge Amado esteve muito doente e perto de morrer, para não cair em depressão, Zélia Gattai, sua esposa, aceitou uma sugestão da filha Paloma, para escrever um livro sobre como surgiram os ditos cifrados usados em família para identificar determinadas situações. Surgiu daí Códigos de Família, livro de amenidades. Um exemplo de código: Zi perdition. Dorival Caimmy estava em Los Angeles, em visita a amigos. Toma banho, veste roupa vistosa e vai saindo. A dona da casa: “Onde é que você vai?”. E ele: “Vou para zi perdition, minha filha!”

Buda, de Karen Armstrong (232 págs., R$ 25,90). Leonardo da Vinci, de Sherwin B. Nuland (168 págs. R$ 23,90). Editora Objetiva.

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a busca de mundos antigos, que convém reinventar. Seu propalado estilo mistura achados surpreendentes com fórmulas bem conhecidas, ditas num novo fraseado, como esse arremate: “Porque estar inquieto ou em desequilíbrio não é, afinal de contas, o próprio de todo elã vital?”

Códigos de Família, de Zélia Gattai. (188 págs. R$ 25,00). Editora Record.


ERUDIÇÃO E B OM- HUMOR Sérgio Augusto é o tipo raro de pessoa que se envergonha por não saber quem foi Blaise de Montluc. Escreve um livro inteiro de ensaios – Lado B, a coletânea dos seus textos publicados nas revistas Bravo! e Bundas –, mas preferia que não o considerassem um ensaísta. Como explica num prefácio que é, afinal, um excelente ensaio sobre o ensaio. Falsa modéstia, sim, que mal esconde a erudição do autor. Mas erudição a serviço de um fim: elevar uma discussão corriqueira, buscando o outro lado, o lado B. Como sugerir que a malária e a tuberculose, a exemplo do vírus afro-asiático Kunjin, sejam exportadas para os EUA, para que se desenvolva a medicina mundial. Neste sentido, e a julgar pela sua opinião sobre a mídia brasileira, Sérgio Augusto é um estranho no ninho. Seus textos seriam o exato oposto de uma mídia refém do entretenimento e responsável por uma juventude “cretinizada”.

Lado B, de Sérgio Augusto, (414 págs, R$35,00). Editora Record.

ÉPICO

TESTEMUNHO

Num autêntico tour de force que lhe consumiu vinte anos, o poeta pernambucano Marcus Accioly construiu este longo poema épico, em que procura sintetizar a história e o ethos da América Latina. As civilizações, as guerras e guerrilhas, os anti-heróis, as bandeiras e as ventanias, as cantorias e os pássaros, a infância, a vida e a morte, a geografia, as matas e as cidades, os mitos e a memória, tudo se entrelaça em versos onde há ecos que vão de Camões aos cantadores de feira.

Num misto de reportagem e ficção o jornalista mineiro Fábio Pannunzio faz um retrato detalhado da atual história caótica da Colômbia. Exército, governo, forças internacionais, guerrilheiros, grupos paramilitares, narcotraficantes e o próprio povo estão entrelaçados num imbroglio aparentemente insolúvel. Miséria, violência e poder parecem tão interdependentes que fica difícil apostar numa solução de médio prazo para este país fronteiriço ao Brasil.

Latinomérica, de Marcus Accioly (620 págs., R$ 49,00).Topbooks Editora.

A Última Trincheira, de Fábio Pannunzio (222 págs., R$ 28,00). Editora Record.

Não que os textos deste livro também não entretenham. O autor encontra humor nos temas mais espinhosos. Politicamente incorreto convicto, mas nunca leviano, confessa que gosta de piadas de todo tipo: até de judeus e homossexuais. Indicado para quem ainda procura cultura da boa (Quem disse que gosto não se discute?, Bravo!, abril de 1999), e para quem não sabe quem foi Blaise de Montluc.

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SABORES PERNAMBUCANOS

YES, NÓS TEMOS

BANANA A fruta que é considerada musa da sabedoria, da gordura e do paraíso “Banana, menina, tem vitamina, banana engorda e faz crescer...” Alberto Ribeiro e João de Barros (Yes, Nós Temos Banana)

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C

om essa fruta se mantém a maior parte dos escravos desta terra porque, assadas verdes, passam por mantimentos e quase têm a sustança do pão.” Palavras de Pedro de Magalhães Gândavo na História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Em 1570. Essa fruta era a banana. Trazida pelo colonizador português das Ilhas Canárias. Mas já havia aqui uma espécie nativa brasileira, pelos índios denominada “pacova” (pa’koua), a que os brancos chamaram “banana-da-terra”. E que depois seria, no Nordeste, mais conhecida como “banana-comprida”. Os índios ensinaram aos brancos, também, uma técnica ancestral de assar, com folhas de bananeira envolvendo peixes. Depois aproveitada, na culinária nordestina, para assar também bolos – como o pé-de-moleque. Bananas, na verdade, nunca


foram alimento de prestígio entre os índios. Não a consumiam cruas – só como caldo, mingau ou bebida. Muitas tribos sequer a conheciam. E a existência ou não de bananas, na dieta alimentar de uma comunidade indígena, chegou mesmo a ser indicador antropológico do seu grau de isolamento. O geógrafo Karl von den Steiner, em expedição ao Xingu (fins do século 19), assim escreveu: “Não há metais, nem cães, nem bebidas embriagadoras, nem bananas! Eis a verdadeira idade da pedra”. É conhecida como Musa sapientum – porque tornaria sábios os que a comessem; ou Musa acumulata – porque rica em açúcar; ou, mesmo, Musa paradisíaca – em prestígio à lenda de que alimentou o primeiro homem e a primeira mulher, no paraíso. Não por acaso é ainda hoje conhecida, na Índia, como “figueira de Adão”. E vêm de lá, do vale do rio Indo, no quente e úmido Sudeste asiático, os mais antigos registros históricos de seu cultivo. A partir daí, começando a merecer citações: passou pela mesa de Buda (600 a.C.); andou pelo antigo Ceilão (500 a.C.); acompanhou Alexandre, o Grande, em sua passagem pelo Indo – depois de tomar a Babilônia e incendiar Persépolis (327 a.C.); freqüentou banquetes gregos e romanos (a partir de 300 a.C); teve sua primeira plantação organizada na China (200 d.C.). Sendo, a partir de então, difundida em toda África. Por mãos árabes.

Dos árabes nos veio também a própria origem do nome – “banan” (dedos). Uma palavra que mudou pouco nas suas andanças, pelo mundo. Em português, inglês e italiano é banana mesmo; em francês e em alemão, banane. Em espanhol, plátano – mas também banana. Mudou mais seu sentido. No folclore brasileiro é sinônimo de pessoa covarde ou submissa. Plantar bananeira é nome de golpe de capoeira – em que o lutador apóia as mãos no chão e ergue o corpo, de cabeça para baixo. República de banana é país subdesenvolvido. Faltando só dizer que o gesto ofensivo feito com a mão fechada, usado democraticamente por trabalhadores, ladrões de galinha e presidentes da República, não é (como poderia parecer) uma invenção brasileira –, mas hábito importado da Itália, da França e de Portugal. São conhecidas, hoje, cerca de 400 variedades. Atendendo a todos os gostos. Para comer ao natural recomenda-se prata, maçã ou ouro. Para assar, fritar ou usar no cozido, banana-comprida ou nanica (que deve esse nome não à fruta, que aliás é grande, mas à baixa altura da planta de que nasce) – sendo esta, no Sul, também conhecida como banana d’água. Para cozinhar, banana-da-terra. Para fazer banana-chips, novidade que vem do Norte do Brasil, pacova (aos poucos mais conhecida como pacovã). Para fazer passa, prata. Para compotas e bananadas, prata ou nanica. Para

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farinha, quase todas – desde que verdes, enquanto se compõem basicamente de amido e água. Para cozido, banana-da-terra ou nanica. Para sopa, nenhuma – que o costume paraguaio de fazer sopa, com banana verde, não pegou por aqui. Sem esquecer que para “cartola” – sobremesa feita com banana assada, queijo manteiga derretido por cima, mais açúcar e canela – só prata e bem madura. Se estiver jantando no Beijupirá, em Porto de Galinhas, pedir cartola “terremoto” que vai se sentir perto do céu. Para salada de frutas, também prata. Mas nem sempre foi assim. Até começos do século 19, por exemplo, era considerado uma heresia misturá-la a outras frutas. Sendo desaconselhado até pelos médicos. “Como cada árvore dá frutos de uma só qualidade, a lição da natureza é servirmo-nos unicamente de uma única espécie, até fartar”, ensinava o médico baiano José Paulo Antunes, que estudou na Alemanha e – segundo Câmara Cascudo, clinicou em Natal pelos idos de 1869. Bananeira quando vai dar cacho, diz a crença popular, geme como quem sente as dores do parto. E a fruta por ela parida é, por muitos,

considerada perfeita. Amadurece aos poucos, mesmo fora do pé, facilitando a colheita, o transporte e seu aproveitamento comercial. Nasce em todo tipo de solo. Pode ser colhida o ano todo. Não dá trabalho para descascar. É fácil de comer, sem sujar as mãos de quem come. Não é doce, nem azeda. Não é dura nem mole. Não contém gordura. É nutritiva e energética – quando Guga come banana, no meio de uma partida de tênis, está na verdade consumindo energia; que o organismo humano absorve rapidamente seus elementos – proteína, cálcio, magnésio, selenium, fósforo, ferro, fibras e vitaminas. Não tendo cloreto de sódio, pode ser consumido por quem faça dieta de sal. E, ao contrário do que alguns pensam, pode ser comida a qualquer hora, do dia ou da noite. Os economistas dirão que, além de tudo isso, tem uma vantagem complementar insuperável. É barata. Mas quem a conhece sabe que sua maior vantagem é outra. É, sobretudo, saborosa. Muito saborosa. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

DOCE DE BANANA-EM-RODINHA INGREDIENTES

PREPARO

15 bananas prata ½ kg de açúcar 1 copo de água

· Descasque e corte as bananas em rodinhas com 1 cm de espessura. · Prepare uma calda rala, com açúcar e água. Coloque a banana na calda e deixe cozinhar em fogo brando, com a panela tampada, até que fiquem macias (embora firmes). Quanto mais lento o cozinhar, mais vermelho vai ficar o doce.

DOCE DE BANANA BATIDO INGREDIENTES

PREPARO

15 bananas prata bem maduras, batidas no liquidificador. Açúcar ( mesma quantidade da massa da banana) 1 copo de suco de abacaxi

· Em uma panela junte a massa da banana, o açúcar e o caldo do abacaxi. · Cozinhe em fogo brando, muito demoradamente, até largar do fundo da panela. · Coloque em pirex para esfriar e, depois, sirva.

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HUMOR

Gilmar

Continente Multicultural 95


ÚLTIMAS PALAVRAS

No passo do Caroá

V

iva Zé Pereira nos dias de Carnaval!... Máscaras adornadas por um feitiço carnavalesco bem brasileiro – pernambucano por estilo, arraigado no Recife: o Reino Azul da fantasia, no dizer do historiador Leonardo Dantas Silva. Conta-nos o mesmo, das batidas sincopadas de bombos dos maracatus, estalidos das preacas dos caboclinhos, notas agudas e dissonantes das fanfarras de frevo, sons rurais de acordeões de La Ursas, batuques de escolas de samba, cômicas toadas de um Mateus do bumba-meu-boi, o lirismo dos blocos cantando... (in Carnaval do Recife, 1997). A maior festa popular – das elites abastadas aos oprimidos dos alagados. Papangus batendo na lata, abiscoitando uns reais e centavos de milhares de outros papangus. A tirolesa se queixando ao seu papai por não ter sido amada pelo arlequim, enquanto as saudades são lembradas por blocos que nunca se esqueceram de outrora. Hoje, lamentavelmente, o passo do frevo pernambucano, rasgado às estrias, virou coreografia glútea em bailados encenados por pegajosos pagodeiros de trancinhas. Palhaças e colombinas não precisam mais das tradicionais fantasias ornamentais – de tão exageradamente estilizadas, que, confundidas e chacoteadas, brincam quase nuas. O carnaval dos ricos e pobres, brancos e negros – “o carnaval mulato do Recife”, referido pelo poeta Ascenço Ferreira, tem, para Luís da Câmara Cascudo, conotações próprias e bem diferentes daqueles do restante do Brasil: “O carnaval dos grupos e dos ranchos, das escolas de samba do Rio de Janeiro não é o carnaval do Recife, o carnaval da participação coletiva na onda humana que se desloca, contorce e vibra na coreografia, a um tempo pessoal

e geral do frevo, com a sugestão de suas marchasfrevos pernambucanas, insubstituíveis e únicas. Carnera e Zumba a esta hora onde é que estão? Luiz Bandeira, Inês e Rosa, Antonio Maria e Nelson Ferreira, em que reinado reinarão? Por certo pelas avenidas, ruas e becos do Recife, resgatando, em evocações inesquecíveis, os Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon – justo neste Carnaval 2002, quando comemoramos o centenário do nascimento do grande maestro e compositor Nelson Ferreira. Os pistões e os trombones de prata do saudoso Capiba voltarão a anunciar o Evoé de Marambá e Portela, enterrando as guitarras elétricas, abrindo as festividades para o homenageado Nelson, que, junto aos Valenças, Moraes, Santiagos, Getúlios e Sebastiões no palanque sem fim lá do espaço, baterá palmas com Mário Melo para o frevo – saudando novamente as Pás e Lenhadores e os Batutas de São José. Acompanhando os acordes, em terra firme, do maestro Duda, pegará o bonde de Olinda, sem igual, e cantará o Elefante com Nigro, sobretonado pela beleza do nosso maluco Alceu Valença. Por fim, na terça-feira gorda, Nelson assistirá o Vassouras na rua abafando, tomará umas e outras de caju e cajá e cairá, com sua Aurora, no velho passo – da tesoura, do siricongado e do seu caroá, que seu parceiro Sebastião Lopes versou não ter nada de encrencado. Pois, pra dançar o passo do caroá, basta um mexido no corpo e um entrançado no pé... Sim, sinhô, muito bem.

Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural




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