Continente #014 - Antônio Carlos Nóbrega

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CONTEÚDO

Continente Multicultural

http://www.continentemulticultural.com.br

Especial – Nordestino, apolíneo e dionisíaco Aos 50 anos, Antônio Nóbrega dá um balanço de sua arte e reafirma ideologia armorial

Convergências

Sociólogo demonstra o parentesco entre o jazz norte-americano e o chorinho brasileiro

Exotismo

Professor de teatro abre o verbo contra a estilização e as releituras do folclore

Ferreira Gullar –

Vanguarda

O poeta e crítico estréia coluna, falando do conflito entre a arte e a falsa necessidade do novo

Arte contemporânea –

Literatura – Celebração Há 80 anos, era lançado Ulisses, de James Joyce, um marco para a literatura e para a psicanálise

Sexo

Sônia Van Djick escreve sobre um final de semana romântico que talvez não seja o ideal

Antologia –

Beber a vida

Adriano Espínola bebe vida e a transforma em poemas sobre existência, ausência e chope

Ecoturismo –

Preservação

Oito engenhos da Zona da Mata Norte de Pernambuco são salvos da ruína Página 48

Diário de uma víbora –

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Ciência –

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Memória – Enigma O lendário herói T. E. Lawrence morreu num acidente de moto que pode ter sido provocado

Sociologia – Pierre Bourdieu

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Entrevista exclusiva com um dos mais respeitados e polêmicos sociólogos da atualidade

Entremez – Cacofonia

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Mapeamento dos seres vivos

Segundo do gênero no Brasil, é lançado o Atlas da Biodiversidade de Pernambuco

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Ácido

O “víbora” Joel Silveira, desta vez, não perdoa nem o seu anjo da guarda

Revitalização

Um museu de artes contemporâneas, na Bélgica, gera empregos e cultura para região abandonada

Conto –

Foto: Leo Caldas / Titular

A crítica pernambucana incensa qualquer música do Estado, mesmo sem qualidade ou coerência

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REPRODUÇÃO

Cultura popular –

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Página 72

Giro – Artes plásticas

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Antonio Dias mostra no MAMAM O País Inventado, panorâmica dos seus 40 anos de invenção artística PAULO JÚNIOR

Música –

Antônio Carlos Nóbrega

Últimas palavras – Bobagens O Show do Milhão é o retrato do Brasil, testando a cultura inútil de vestibulandos analfabetos

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira

Arte Luiz Arrais

Editoração Eletrônica André Fellows

Ilustradores Lin e Zenival

Colaboradores: Adriano Espínola, Alberto da Cunha Melo, Alcides Ferraz, Alcione Ferreira, Alexandre Belém, Dan Chung, Eduaro Knapp, Fábio Lucas, Fernando Monteiro, Ferreira Gullar, Flávio Lamenha, Giovanni Sérgio, Howard Coster, Jacques Vemarthon, Joel Silveira, Jorge Clésio, Kleber Mendonça Filho, Leo Caldas, Luciano Trigo, Manoel Ceiga, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Maria Teodora de Barros Oliveira, Mascaro, Pierre Verdy, Ricardo Fernandes, Rivaldo Paiva, Rodrigo Albea, Rogério Reis, Ronaldo Correia de Brito, Sebastião Vila Nova, Sônia Van Dijck, Stan Honda Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Neuma Kelly Silva, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 - Fone: 0800 81 1201 - Ligação gratuita e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Fora do centro Sou jornalista profissional há 36 anos. Já passei por algumas das principais redações do país, a mais demorada permanência em O Estado de S. Paulo. Há mais de 14 anos edito um quinzenário alternativo em Belém do Pará, o Jornal Pessoal. Então, vi a revista Continente Multicultural, edição nº 12, de aniversário. Parabéns. Gostaria de escrever sobre ela, uma publicação de qualidade fora do centro concentrador do país. Para isso, se possível, gostaria de receber as edições anteriores, ou as disponíveis. Costumo abordar com um pouco mais de profundidade do que o mero noticiário, daí a necessidade de ver o conjunto da obra. Lúcio Flávio Pinto – Belém – PA Coragem e ousadia Embora não seja jornalista, sou um apaixonado por revistas culturais e sempre sonhei ver um dia um estado do Nordeste produzindo uma revista que competisse em pé de igualdade, no quesito qualidade, com as publicações do Sudeste. Mas achava que era uma utopia, ora, isso nunca ia acontecer, não que nos faltem profissionais competentes, achava, isso sim, que faltava vontade editorial e um investimento corajoso para realizar tal empreendimento. Eis que conheço a revista Continente Multicultural e me deslumbro. Está aí realizado o meu sonho utópico. Uma revista graficamente bonita, com textos ao mesmo tempo profundos mas sem pedantismo, abrangendo tanto assuntos locais, como regionais, nacionais e até internacionais com a mesma desenvoltura, sem o mínimo traço de provincianismo (como aliás se vê tanto nas revistas produzidas no Rio e São Paulo). Continente é um banho de competência. Quero parabenizar toda a equipe e, em particular, a direção da CEPE, pela coragem e ousadia. Continente já está registrada a ouro vivo na história da cultura pernambucana. José Maria de Lima – Recife – PE Giro Gostaria de parabenizá-los pela excelente revista Continente Multicultural. Principalmente agora, que estreou a sessão Giro. Acho que era o que estava faltando. Um roteiro cultural, com as principais notícias do que está acontecendo nas áreas de literatura, cinema, música, teatro, artes plásticas etc. A revista está completa. Selma Neide Gomes Filha – Salvador – BA


Leitura obrigatória Desde que conheci a Continente tornei-me leitora assídua. Fico esperando ansiosa que ela apareça nas bancas e tão logo encontro a nova edição, corro para casa com ela e vou lendo-a devagar, para que não acabe logo. Normalmente leio-a, como se diz, “de cabo a rabo”, até assuntos que aparentemente não me interessariam, mas que são tão bem abordados e escritos que acabam me interessando. Continente é leitura obrigatória para toda pessoa que quer ter um pouco de cultura, nestes tempos em que só se fala em pagode e mulher nua. Norma Sueli de Castro – João Pessoa – PB Educação Luís Jardim Há muito tempo que venho pensando em escrever para os senhores, a fim de me congratular com a empreitada que vêm encetando com merecido sucesso. Foi, outrossim, um artigo da edição de Dezembro do ano passado que me fez decidir a lhes mandar esta missiva. Refiro-me a Luís Jardim, arcaico e mítico, assinado por Maria da Paz Ribeiro Dantas. Foi muito feliz a lembrança deste grande escritor injustamente esquecido. Seu trabalho mais conhecido, o livro de contos Maria Perigosa, ficou estigmatizado por ter vencido o Sagarana, de Guimarães Rosa, num concurso que tinha entre os jurados nada menos que o grande escritor alagoano Graciliano Ramos. As pessoas depois ficaram dizendo que houve injustiça porque Rosa se revelou um gênio e Sagarana, um livro excepcional. Acontece que, na época, Graciliano Ramos – que deu o voto de Minerva a favor de Maria Perigosa – argumentou que este era uniforme em qualidade, enquanto o de Rosa tinha altos e baixos. Tempos depois, Guimarães Rosa confessou que concordava com o Velho Graça e que tinha reescrito seu livro de contos. Quer dizer, o Sagarana que todo mundo conhece não é exatamente aquele que concorreu com o livro de Luís Jardim. Este é também autor de um dos melhores romances psicológicos da literatura brasileira, Confissões de Meu Tio Gonzaga, que, tal como Maria Perigosa, não é encontrado mais nem em sebos. Pela justa lembrança de um grande escritor esquecido, no seu centenário, a Continente está de parabéns. Precisamos disso, trazer à baila a falta de memória da cultura nacional, através de exemplos coruscantes e pertinazes, como este. Joaquim Moura Baptista – Belo Horizonte – MG

Como professora, li com muito interesse a matéria com o mestre Cláudio de Moura e Castro, na edição de Continente do mês de Novembro de 2001. Acho muito pertinentes as observações que ele faz, embora contrariem muita gente. Para que a educação realmente tenha conserto em nosso País, é preciso que se encare corajosamente o problema para que se possa dar as soluções corretas. Muito bom Continente ter abordado esse assunto. Josefa Martinez Soares – Picos – PI Paixão de Cristo Como leitor assíduo desta importante revista, gostaria de sugerir que fosse feita uma reportagem sobre a encenação da Paixão de Cristo realizada todos os anos em Fazenda Nova. É realmente um importantíssimo acontecimento em Pernambuco, e o momento é também propício. Eduardo Wanderley – Recife – PE Poesia Adoro poesia. E tenho ficado encantada com o descobrimento de certas poetisas pernambucanas das quais nunca tinha ouvido falar, como Deborah Brennand e Lucila Nogueira. A gente fica impressionada da ignorância de nossos críticos, que só se ligam no que é feito no Rio ou em São Paulo, esquecendo, olímpica e cretinamente, o que se faz no resto do País. É uma perdição, isso! Ainda bem que existe uma revista como Continente para corrigir essa cretinice. Vocês estão de parabéns! Martha Alves Correia – Rio de Janeiro – RJ

Retratos do Brasil Uma delícia de ler a revista Continente Multicultural de Dezembro de 2001. Com destaque absoluto para a matéria Retratos do Brasil, em que uma plêiade de cabeças pensantes como Cristovam Buarque, Roberto DaMatta e Hélio Jaguaribe, mostram que o país tem conserto, já que seus problemas são facilmente detectáveis e as soluções estão aí, bastando para tanto a vontade de nossos políticos. Com esta matéria a Continente presta um grande serviço à cidadania nacional. Ademar Vieira Lopes – Brasília – DF

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EDITORIAL

A alquimia armorial

U

FLÁVIO LAMENHA

m substantivo vira adjetivo: foi assim que o escritor Ariano Suassuna inventou na década de 70 um movimento cujas bases estão na sua rica imaginação e cujos propósitos eram semelhantes aos que moveram Mário de Andrade e Gilberto Freyre nas primeiras décadas do século vinte: a defesa da cultura nacional e regional no empenho não só de descobrir e reinventar, mas de criar raízes. O sentido estético e histórico disso já foi bem estudado por professores como Idelette Muzar Fonseca dos Santos e Carlos Newton Jr., mas as chaves dessa alquimia ficaram com Suassuna e os seus discípulos, como as do verbo que, embora bem protegidas pelo adolescente Rimbaud, fizeram o brilho de simbolistas e surrealistas. Mas a analogia talvez devesse parar apenas no caráter alusivo e não dar margem a comparações, pois o armorial nunca quis ser vanguarda; quem sabe seja mesmo o segundo movimento de retaguarda da arte surgida no Brasil após 22. O primeiro certamente foi o regionalismo freyriano. “Na verdade, AS é um nacionalista e, sem que eu concorde totalmente, com o seu Movimento, a ele me alio porque o que ele pratica é na realidade uma cultura de resistência cada vez mais importante na luta desigual que mantém contra a cultura colonialista. Esta luta não significa, absolutamente, um jacobinismo exagerado, nem sequer jacobinismo, mas a consciência e o dever do estabelecimento de uma cultura nacional que não seja relegada pela estrangeira.” Essas palavras são de Hermilo Borba Filho e foram publicadas em 1975, na infância, portanto, do movimento. Reclamava um dramaturgo armorial além do próprio criador do movimento. A resposta, ao menos no campo da dança e da representação, a teria na década seguinte, com Antonio Carlos Nóbrega, mas este, sem renegar as idéias

estéticas do seu mestre, já segue rumo em que acrescenta novos elementos às matrizes originais, como, aliás, ocorre com as criações do autor de A Pedra do Reino. Foi graças à TV e ao cinema que alcançou recentemente índices de ampla popularidade com que o seu teatro talvez nunca tenha sonhado. Ao completar trinta anos de carreira, Nóbrega deu um longo depoimento a esta revista, comentado por críticos e criadores como ele, tão próximos e distantes do que nortearam na origem as suas carreiras, como e por que são e não são armoriais.

Rumores de guerra em tempos de paz, 2001, de Gilvan Samico

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ESPECIAL


Ator, cantor, compositor, dançarino, instrumentista, mímico, palhaço, Antônio Carlos Nóbrega completa 50 anos de idade e 30 de carreira o já distante ano de 1972, no Recife, um violinista jovem, magro e elétrico trocou o violino pela rabeca e o som grandiloqüente de uma orquestra sinfônica pela sonoridade áspera do Quinteto Armorial. Seu nome: Antônio Carlos Nóbrega. O responsável pela guinada na vida dele foi o escritor Ariano Suassuna que, dois anos antes, lançara, no Recife, o Movimento Armorial, juntando artistas de várias expressões – escritores, músicos, poetas, pintores – que já desenvolviam, cada um no seu campo, trabalhos com marcantes traços comuns. Esses traços comuns eram a inspiração na cultura popular nordestina, com suas raízes ibéricas, para produzir uma arte elevada, utilizando o universo mágico e mítico presente nos folhetos de feira, na xilogravura, nos desafios dos cantadores, na cerâmica, na tapeçaria e nos espetáculos de rua. ALEXANDRE BELÉM / TITULAR

RICARDO FERNANDES / DP

lma armorial Nóbrega está completando 50 anos de idade e 30 de carreira, numa vasta trajetória de espetáculos e discos, rigorosamente fiel àqueles postulados do Movimento Armorial. E pretende comemorar com muito trabalho: a estréia de um novo show, em julho, cujo título provisório é De Além-Mar, os lançamentos de um disco infantil e da orquestra de percussão Zabumbau, além de um evento múltiplo no Instituto Brincante, que ele mantém em São Paulo há exatos 10 anos. A seguir, o próprio artista discorre sobre sua carreira e sua arte – cujos fundamentos são discutidos, em depoimentos exclusivos, por Antônio (Zoca) Madureira, Ariano Suassuna, Helena Katz, José Ramos Tinhorão, Maurício Kubrusly, Romero de Andrade Lima e Ronaldo Correia de Brito.

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Os mitos do Brasil Antônio Carlos Nóbrega (depoimento a Fábio Lucas) rocuro o equilíbrio entre o apolíneo e o dionisíaco, na minha vida pessoal e profissional. Tenho uma vida diária bem apolínea, pelo menos em intenção. Gosto de acordar cedo, tenho alimentação equilibrada, horas determinadas para fazer exercício corporal, cantar e tocar violino. Em minha vida, em todos os departamentos dela, predomina o apolíneo. E no palco, naturalmente, a natureza da arte já é de primazia do dionisíaco, principalmente a arte que nós, brasileiros, fazemos. Eu tento que os meus espetáculos, internamente, tenham um diálogo entre esses dois princípios, que a gente poderia chamar de outra maneira, do princípio masculino e do princípio feminino. Eu me satisfaço nos meus espetáculos na medida em que eles tenham um diálogo intenso entre o sóbrio e o disparatado, o ordenado com o farsesco, com o galhofeiro. Isso no espetáculo musical e, também, nos espetáculos teatrais. Tanto é que, quando comecei a desenvolver uma espécie de mitologia pessoal de criação teatral, criei dois personagens que justamente guardavam temperamentos opostos. Um era a figura do João Sidurino e o outro, a figura do Tonheta. Um era um contador de história, um folheteiro, o homem que contava a vida daquele outro que tinha uma natureza oposta à dele. Tonheta é o galhofeiro, é o bufão, o picaresco.

deologicamente, em tudo aquilo que eu acreditava quando integrava o Quinteto Armorial, continuo acreditando hoje. Quando falo ideologicamente, quero dizer que a arte armorial propunha uma reinterpretação da cultura brasileira através da sua cultura popular. Isso continua em mim tão ou mais intenso do que naquela ocasião. É isso o que eu tenho feito de lá para cá. Houve um momento, na década de 70, não só naquela década, mas principalmente nela, em que Ariano (Suassuna) era quase um guerreiro, um cruzado, a todo instante falando e defendendo o Movimento Armorial. Naquele período houve realmente um encontro entre todos aqueles criadores que naquela ocasião apresentavam seus trabalhos dentro

Quando o Armorial fala em reinterpretar a cultura, está procurando recolocar o mito na vivência da arte desse espírito. Depois disso cada um foi continuando a fazer sua obra, mas aquela situação de grupo, de encontro regular, aquilo se dissolveu um pouco. Eu me recordo de que, quando ensaiava com o Quinteto Armorial na casa de Ariano, eram ensaios muito ricos, principalmente pra mim, um jovem de 18 anos,


em movimento que tinha a oportunidade de se encontrar com figuras como Brennand, Gilvan Samico, Marcus Accioly, onde se conversava não somente sobre a arte popular brasileira, mas sobre a arte em geral. Foram dias de muito encantamento para mim, que deixaram uma marca indelével na minha formação. De lá para cá, além de ter feito os espetáculos ligados a essa ideologia, digamos assim, tenho procurado refletir também o que é armorial, como o sinto hoje em dia. Uma das coisas mais interessantes que a cultura popular tem é essa faculdade de trazer pra gente a vivência do mito, do dionisíaco principalmente, do universo do feminino. Porque, se a gente olhar direitinho, toda a arte do século 20 teve um caminho muito conceitual. Uma arte em que há a primazia do intelecto. Por exemplo, os movimentos literários de meados do século, o teatro do absurdo, em certa medida até o teatro de Brecht, todos eles têm um componente intelectual muito forte. O universo do mito foi alijado. Diferentemente do grande teatro grego, do teatro japonês, do teatro religioso africano, do nosso teatro popular, onde o mito tem uma presença muito grande. E, nesse sentido, quando o Armorial fala em reinterpretar a cultura, está procurando recolocar o mito na vivência da arte. Isso pra mim é de uma importância fundamental.

s vezes, a gente tem uma visão muito restrita e apequenadora da cultura popular, por vezes até discriminatória. Tenho para mim que a palavra “folclore” atrapalhou muito, e continua atrapalhando o entendimento do que é a cultura popular. Uma coisa “folclórica” é uma coisa de importância menor. Por tudo, a cultura popular não é folclórica. Basta um pequeno exemplo: os passistas de frevo. Anualmente eu chego aqui e encontro passistas que estão recriando passos de acordo com o seu talento pessoal, de uma maneira tal que faz com que os passos do frevo não estejam estabilizados, parados no tempo. Assim ocorre com a cantoria, com os tocadores de alfaia, quer dizer, uma arte dinâmica, em movimento. Quando ela consegue trazer o interesse de pessoas que não são só aquelas do povo, de outros estratos culturais e sociais, então ela afirma o seu valor e o seu poder. Na Europa, quando, em fins do século retrasado, não mais passado, foram cunhados certos materiais sobretudo de “folclóricos”, se estava dando dimensão àquelas coisas que não atuavam mais no tempo. Vai ver se encontrou uma cantiga que só era utilizada por meia dúzia de pessoas numa cidadezinha, ou um utensílio doméstico de três, quatro séculos passados. Esse conceito navegou além da Europa e veio chegar ao Brasil. Mas ocorre que os utensílios que nós utilizamos, os cantos e as danças, não estão parados no


tempo. E depois eles têm uma amplidão, de tal maneira superior, que eles podem incensar integralmente a nossa cultura. A gente pode ver isso na obra de nossos maiores criadores. Guimarães Rosa, se não tivesse intimidade com o linguajar do mineiro, não teria construído um léxico tão maravilhoso. O próprio mito do Grande Sertão: Veredas é uma história do nosso romanceiro, a história da donzela que foi à guerra. Um romance desse é cantado ainda hoje no Brasil e eu tenho gravações dele cantado atualmente no Marrocos, tenho vozes femininas populares reinterpretando ele na Andaluzia, em Portugal. É uma história que tem uma dimensão mítica, até arquetípica. Daí a presença, ao longo dos anos, de uma história que tem mais de sete séculos, provavelmente nascida de um fato acontecido, mas que ao longo dos séculos foi absorvendo vários universos paralelos.

u devoto ao Brasil uma esperança muito grande. Mas uma esperança temerosa de que não se realize. Mas vendo, como eu vejo, o coração deste país, as coisas que o movem internamente, não há como ficar desesperançoso. Ao mesmo tempo, quando a gente abre os olhos ao redor, vê um pouco essa esperança ameaçada. Por exemplo, estou olhando para esse mar, para um ambiente tão prazeroso, solar, apaziguador. Mas é o mesmo ambiente que me impede de, às oito, nove horas da noite, dar um passeio

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A gente talvez não tenha ainda a grande dança brasileira, a dança brasileira que nos fale com o coração

a medida em que eu faço uma arte que reflete a cultura do povo, ela tem um papel social, uma responsabilidade social muito grande. Dizer que uma arte, embora trate dos mitos e dos arquétipos, não tem uma dimensão social, é mentira. Tem, sim. Você veja, o maior mito espanhol é o Quixote. Você veja um Édipo Rei. Todos eles são atuais hoje. A figura do Carlitos, de Chaplin, tem uma dimensão social, uma dimensão humana. Toda grande arte guarda dentro de si um resíduo que reflete a sua função social.

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LEO CALDAS / TITULAR

na praia, porque os nativos dizem que eu tenha cuidado, porque posso sofrer um assalto ou qualquer coisa dessa natureza. Nesse momento a minha esperança se sente ameaçada e entristece. Esse é o grande obstáculo que a gente tem de enfrentar. Temos que mudar a visão, não só cultural, mas sobretudo a visão social do Brasil. Da mesma maneira que a gente aprende com o povo aquilo que vai reinterpretar e recriar, a gente tem que fazer também no campo social e, sobretudo, no campo do humano. O povo é o que tem menos, mas é aquele que sabe mais dividir. Isso eu encontro na minha experiência diária. O povo tem uma generosidade que nós, da classe média, e muito pior os da classe mais abastada, não temos. O ter, a visão capitalista, mercantilista de mundo, é de uma perversidade crescente. Eu me estarreço muito com o que a gente vê nas nossas revistas de divulgação. Quantas revistas de futilidade nós temos! Num país desse, a gente não tem ainda a consciência suficiente pra dizer: “Basta! Isso não nos ajuda, isso nos empobrece, isso nos mata!” As pessoas mostram as suas casas, os seus banheiros com pias de ouro, tendo o maior prazer em mostrar aquilo. Eu fico envergonhado, constrangido quando vejo. Num país onde a pobreza é tão estandardizada, ou seja, tão emblematicamente revelada, e a gente conviver com coisas dessa natureza.


Édipo Rei, Dom Quixote, Carlitos, têm uma dimensão social. Toda grande arte reflete uma função social

s pessoas conseguem entender o meu trabalho já numa dimensão brasileira. É claro que o acento é o de um nordestino. No Marco do Meio-Dia tem uma cantiga que fiz homenageando o Bispo do Rosário, e utilizei na canção um ritmo que faz parte da congada mineira, na forma do galope à beira-mar. Assim a gente justapôs dois elementos da cultura popular brasileira, de re12 Continente Multicultural

REPRODUÇÃO

correu o seguinte: por Ariano se apropriar de uma palavra cujo significado remete a um cunho não popular – armorial é sinônimo de heráldica, que é coleção de brasões e insígnias de um povo – isso me pareceu levar a um falso entendimento do que era a palavra “armorial”. Quando Ariano usou, primeiro usou porque achou uma palavra bonita. E depois ele estava destituindo a palavra “armorial” desse significado, digamos, elitista. O que Ariano trazia como sinais e emblemas eram, por exemplo, os estandartes, as agremiações carnavalescas, os emblemas das camisas dos nossos times... Coisa que inclusive foi desaparecendo. Quando eu era bem jovem, num jogo do Náutico colocavam um timbu no campo. O símbolo do Sport era o leão e o do Santa Cruz, a cobra coral. E as bandeiras refletiam esses elementos e, nesse sentido, eram bandeiras armoriais. Hoje a gente trocou tudo isso pelo quê? É o time da Consul, o time da Parmalat. E quando entra na Coca-Cola, aí é de matar! O universo, que era alicerçado de alguma maneira no mito, na beleza, fica vazio de tudo, porque o nome que eles colocam ali é feio e seco para que as pessoas entendam melhor. Colocam a logomarca. O nome Parmalat que a gente vai encontrar na camisa é o mesmo Parmalat que a gente encontra na caixinha de leite. Não pode ser diferente, não, senão a gente não vai fazer a ligação. O armorial é um conceito amplo. O folheto, por exemplo, tem a estrutura armorial. Na maioria das vezes, o desenho que o cantador imprime é de caráter mítico, simbólico. Então tem um componente armorial. A configuração do armorial remete ao mítico, ao emblemático, ao simbólico, e não ao realista. E nisso Ariano buscou uma palavra com a qual ele simpatizava. Como ele, também acho uma palavra bonita, e nunca compreendi o armorial como uma palavra que fosse aprofundar ou reverberar um universo simbólico da classe dominante.


giões distintas. Isso eu procuro fazer muito. Veja a poesia popular brasileira. Em várias das nossas regiões nós temos uma poesia popular rica. Mas em nenhuma região do Brasil há uma poesia popular com tantas formas e com tantos gêneros a serviço do poeta popular, como no Nordeste: a sextilha, a décima de sete sílabas, a de dez sílabas, o martelo agalopado, os quadrões, a gemedeira. Os poetas populares do Nordeste se deslocaram para outras regiões do Brasil. No período da borracha, muitos foram para a Amazônia e deixaram lá uma poesia popular muito rica. Em São Paulo também, por ser um lugar de fluxo de imigração, temos também poetas populares que vivem praticamente lá. A capoeira é uma forma brasileira, por excelência, de cultura corporal. Existem excelentes mestres de capoeira em Manaus, como existem lá no extremo Sul do Brasil. A capoeira é uma cultura corporal que está presente em todo o nosso país. E a meu ver, ela devia ser a base de formação de todo bailarino brasileiro. O espetáculo do bumba-meu-boi está presente também em todo o Brasil. Não só através da presença mítica do animal, como do espírito do espetáculo: a estrutura em forma de seqüência, um teatro cantado, dançado, instrumental. Estive recentemente em Florianópolis e tive a oportunidade de assistir ao que eles chamam de boi-de-mamão. No Norte temos o boi-bumbá. E depois dizer que a gente não tem unidade nesse país? Não, tem unidade, sim. Muito mais do que isso, acho que a gente tem uma alma coletiva.

país do poder pensa mais em se integrar, alinhar o Brasil dentro do universo que é chamado de Primeiro Mundo. A visão de Darcy Ribeiro era outra, como a minha e a de Ariano. Veja a noção que a gente tem de Primeiro Mun-

do. A gente dá uma dimensão ao Primeiro Mundo sobretudo da ordenação do universo do conforto, da boa utilização do universo material. Enquanto as relações humanas são cada vez mais frias, mais distantes. O Primeiro Mundo é cada vez mais individualista. Nós temos uma relação humana muito mais viva, muito mais generosa. Mesmo na classe média. Não é à toa que muitos europeus, quando vêm para cá, querem ficar. Será que o que emblematiza o Primeiro Mundo é o conforto material, é a boa escola, a boa formação intelectual? Mas o capítulo da generosidade, a ação pelo coração – será que isso não é tão importante ou superior a esses valores que são atribuídos ao Primeiro Mundo? Nisso eu concordo muito com a visão mestiça que Darcy Ribeiro tinha. Se o Brasil tem alguma missão no concerto das nações, não é a missão de se igualar economicamente, ter uma tecnologia avançada. É outra. A presença do Brasil vai ser uma outra. E só através dessa ele pode ser significativo no mundo, trazendo uma semente, um emblema rico para toda a humanidade.

artista é movido pela inspiração e pelo trabalho. A inspiração, para mim, é mais importante. Mas a inspiração vem do alimento que eu me dou para que ela viceje. Eu não trabalho musicalmente durante todo o ano. Agora vou fazer um CD novo. Então me coloco em situação de fazer música. Além de procurar ficar mais próximo do espírito da música, escutando aquela que está mais próxima do meu universo criador, o que vai me dando mais substância para que a composição apareça mais facilmente. No meu dia-a-dia, vez por outra me ocorre uma idéia musical, aí eu gravo ou anoto em livrinhos que chamo de ideários. Quando estou dançando, estou sempre com um caderno de lado, pois de repente posso fazer um movimento que para mim não é trivial, tem uma certa singularidade,

As bandeiras e escudos de nossos times de futebol, assim como os estandartes do Carnaval, são emblemas armoriais Continente Multicultural 13


então eu anoto. Mas não estou pensando em espetáculo naquele momento. Assim posso gerar um material bruto que vai me servir quando for preparar um espetáculo ou um disco. Esses elementos vão se fundir a outro que continua em movimento. As idéias vão se juntando. Num determinado momento eu tenho que dar primazia a um ou outro projeto, enquanto os outros ficam latejando. Na medida em que me coloco em situação de criação, a inspiração vem e me toma, e aí é ela que começa a mandar.

projeto do Tonheta com o Cacá Diegues nós alimentamos de início, mas depois os compromissos dele com cinema aumentaram. Ele me colocou à vontade para fazer o filme, porque ele estava com outros trabalhos. Foi quando conversei com o Luís Fernando Carvalho, com quem já trabalhei, e decidimos fazer, por sugestão do próprio Cacá Diegues. Mas ele tinha o projeto do Lavoura Arcaica. Conversando com o Luís Fernando recentemente, ele manifestou interesse novamente em fazer o filme com o Tonheta, que talvez seja o próximo trabalho cinematográfico dele. Nosso interesse mútuo continua, o que muito me honra, e se tudo correr bem, é um projeto que eu gostaria que desse certo lá para 2004. Outro projeto que está indo muito bem é um projeto com a dança brasileira, que provavelmente vai ser veiculado na TV. Será semelhante ao Música no Brasil, que fiz também para a TV. É uma série de dez a doze programas, que deveremos ir efetuando ao longo desse ano e do próximo. Tenho um carinho muito grande pela dança no meu trabalho. Foi talvez, entre as manifestações artísticas que abracei, aquela que mais me conduziu a uma reflexão maior. A dança é uma daquelas manifestações artísticas cuja representatividade nacional é muito diminuta. A gente não tem uma dança brasileira com significado para a nação, tão importante quanto a gente tem na literatura. Podemos citar vários escritores brasileiros que têm um trabalho que incorpora, que nos revela, para nós mesmos, o que somos. Na música, nem se fala. No próprio cinema, nas artes plásticas. Mas na dança a gente talvez não tenha ainda a grande dança brasileira, a dança brasileira que nos fale mais de perto, com o coração. Sem

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LEO CALDAS / TITULAR

Tento, nos meus espetáculos, um diálogo intenso entre o sóbrio e o disparatado, o ordenado e o farsesco

diminuir, naturalmente, o trabalho de vários grupos e de pessoas que têm buscado isso. Eu me permito dizer que a gente tem um passo a dar na dança brasileira, e eu queria me colocar a serviço disso.

cho que estou começando a emprestar um significado para essa data (fazer 50 anos). Se for olhar direitinho, não há muita diferença entre fazer 50 e 32. Mas à medida que os anos vão passando, a gente vai vendo as coisas com olhos diferentes – alguns chamam de mais maduros. A gente ganha muita coisa, e se diz também que se perde outras. Estou na fase limítrofe: ainda não senti que perdi muita coisa. Tomo o termômetro da dança. As pessoas que me vêem dançando ainda não fizeram comentários de coisas que deixei de fazer. É claro que noto que a agilidade não é a mesma, mas nada que me impeça de dar as minhas piruetas. Minha ligação com o Recife cada vez se acentua mais. Uma coisa que me alegra muito é, embora morando em São Paulo, ser considerado um artista da minha cidade. Também estou refletindo sobre as presenças das pessoas na minha vida, aquelas que de certa forma abriram a estrada pela qual eu caminho. Sou muito regido pelo princípio do masculino. Tive um avô português, Manuel da Nóbrega, que era um grande escritor, embora um homem que terminou na miséria, com um fim de vida muito triste, trágico até. Foi ele que me abriu as portas da literatura, tinha uma biblioteca maravilhosa. Outra figura masculina importante foi meu professor de violino, Luiz Soler. O instrumento da minha vida foi sempre o violino. Tive a presença de Ariano Suassuna, que foi absolutamente vital, não só como a pessoa que reorientou toda a minha maneira de ver a arte, como fora da arte também tem um papel muito grande na minha vida. E naturalmente o meu pai, João Barros de Almeida, um sertanejo que, por outro viés, me trouxe o mundo também. Como se vê, o princípio masculino orientou muito a minha vida. Agora, no limiar de uma nova idade, penso que meu maior encontro será com a “Mãe” e com tudo que isso implica... uma visão materna do mundo.

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LEO CALDAS / TITULAR

A cara do Brasil

A Mãe dos Homens (1981) de Gilvan Samico, um dos nomes do Armorial nas artes plásticas

enhuma palavra explica de fato o que seja arte armorial. É possível sentir, mas nenhuma palavra cerca toda a idéia armorial. Desde muito antes da elaboração formal do movimento, tudo no Brasil, especialmente no Nordeste, tem a presença forte da arte popular. Música, dança, teatro. O teatro tradicional não acontece aqui no Brasil porque a influência do teatro popular torna-o impossível. Aqui há sempre a mistura, mas uma mistura homogênea; não é possível traçar limites entre popular e erudito. Daí que o grande ganho da arte armorial é que acaba com a distinção de público. Todas as classes sentem a mesma empatia por ela. Tem algo de memória coletiva no armorial, um espetáculo de Nóbrega não é estranho ao sentimento de público algum; novamente, sentimento e não palavras. Tudo que é armorial já era há muito tempo e se reconhece em todos os públicos. Claro que internamente o Brasil são vários. Mas ao se ouvir um estrangeiro falar ou quando se

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participa de um evento fora do país é que se percebe que há uma cara mais ou menos definida do Brasil. Ouve-se um disco do Quinteto Armorial e percebese essa cara. A platéia mais heterogênea representa um sentimento brasileiro. Essa busca pela cara do país já existia há muito tempo, Villa-Lobos já misturava erudito e cantigas populares. Na Rússia, Stravinsky unia melodias antigas, bárbaras, com outras contemporâneas. Quer dizer, toda nação ao atingir uma maturidade busca sua cara. Já estamos buscando a nossa, mas, como somos muito novos ainda, não podemos afirmar que a encontramos. Novos elementos vão ser descobertos. Por enquanto, o armorial serve como uma boa identificação do Brasil. Não consigo separar o teatro de Nóbrega da dança e da música dele. Faz teatro dançando, dança cantando, canta representando. O que é a tradição da verdadeira arte. Romero de Andrade Lima é artista plástico e parceiro, no teatro, de Antônio Nóbrega REPRODUÇÃO

Romero de Andrade Lima


REPRODUÇÃO

O Sagrado (1997), de Samico: universo mítico recriado

Ronaldo Correia de Brito

Um produto da classe média Helena Katz

Dança é complemento

ntônio Carlos Nóbrega representa realmente a alma brasileira? Que Brasil se reconhece em Nóbrega? Não gosto da expressão “alma brasileira”. Há várias almas brasileiras, de Norte a Sul, nos andaimes e nos mangues. O que ninguém enxerga é que Nóbrega reelabora a linguagem popular para deixá-la assimilável à classe média, sobretudo universitária. Ele é um produto da classe média para a classe média. É ela que se reconhece nos seus espetáculos; nele, Antônio Carlos Nóbrega, e não na cultura popular que lhe serviu de inspiração. É mais cômodo vêlo tocando uma rabeca num teatro com ar-condicionado, que ir atrás de um cavalo marinho numa cidade da zona da Mata Norte. A massa não se reconhece em Nóbrega. Não se engane, ela prefere Reginaldo Rossi a ele, da mesma forma que prefere Leonardo a um maracatu. Uma sambada interessa mais a etnomusicólogos, aos estudiosos de cultura popular, aos brincantes do maracatu rural e à população que circula em torno do brinquedo. A grande massa não agüenta assistir a uma sambada de 6, 8 horas seguidas. Você pode argumentar que tem toda uma manipulação da mídia nesse gosto da massa. Mas é o que constatamos.

proveito para fazer uma reclamação pública ao Nóbrega. Eu acho que, devido à importância do trabalho dele, e devido ao que se percebe que ele poderia fazer, ele dedica-se muito pouco à dança. As pesquisas, as misturas que ele realiza como músico, deixam antever que ele seria muito importante também para a dança brasileira. O trabalho que ele fez em O Marco do Meio-Dia, ainda em estado bruto, continha muitos elementos que antecipavam um desenvolvimento que não aconteceu. Nóbrega seria a pessoa mais indicada para dar a forma contemporânea para uma possível dança armorial, o que se tornaria uma contribuição espetacular para a cultura brasileira. Como está hoje, não dá para se dizer nem mesmo como é a dança de Nóbrega, porque não há “a dança de Nóbrega”. A dança está nos seus espetáculos como complemento. E eu sei que ele seria ótimo. Nóbrega tem um corpo que pode processar todas as misturas, os elementos tradicionais, os elementos contemporâneos, os elementos folclóricos. Ressalto ainda a grande importância do espaço dele aqui em São Paulo, com seus cursos de danças regionais. Nóbrega representa o Brasil que mais parece com o que se chama habitualmente de Brasil. Nós sabemos que há um Brasil loirinho de olhos azuis, no Sul, mas quando se fala em Brasil a primeira imagem é a da mistura, do Nordeste com o Norte, com o Oriente, com São Paulo, do urbano com o telúrico e com o lúdico. Esse é o Brasil que Nóbrega representa.

O Armorial representa o Brasil? O Armorial representa um dos Brasis. O Brasil nordestino, ibérico, heráldico. Mas recusa o tropicalismo, a bossa nova. Tenho enorme respeito pelo Armorial, mas vejo nele a mesma legitimidade de outros movimentos brasileiros.

Helena Katz é crítica de dança do jornal O Estado de S. Paulo e do programa Metropolis, da TV Cultura

Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor, autor de peças como Baile do Menino Deus, Lua Cambará e Auto das Portas do Céu

Perde-sse alguma verdade cultural, alguma virtude, ao se fazer uma estilização do popular? A cultura popular é um bem comum a todos. Pode ser usada ao bel prazer de cada um. Alguns criam obras magníficas e, outros, produções medíocres. São os riscos de uma cultura em movimento.

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Rosa dos Ventos, ilustração de Romero de Andrade Lima para o livro O Canto da Minha Memória, de Eugênia Menezes, 1987

José Ramos Tinhorão

O artista mais

completo

omo definir a música armorial? O armorial, na concepção de Ariano Suassuna, é a coleção de signos particulares que o Nordeste estruturou através do tempo e que fazem o desenho cultural particular do Nordeste. É como o escudo do Nordeste. Neste sentido, qualquer atividade pode ser armorial. Na pintura, o pintor pode buscar elementos na paisagem que façam parte dessa coleção de signos representativos da região. No teatro é a mesma coisa, até nas manifestações mais urbanas, como os pastoris profanos do Velho Faceta. É tomar a cultura estratificada da área popular e colocá-la a serviço do produtor de arte erudita.

bem pretinho chamado Benjamin de Oliveira. Ele não era mais escravo, já havia nascido livre, mas quase que foi trocado por um cavalo. Pois bem, esse artista, que quase foi trocado por um cavalo, entrou para um circo, virou palhaço-cantor e passou, inclusive, a escrever peças para representar no picadeiro. E, quando na mesma época os minstrels americanos pintavam o rosto de preto para representar os negros americanos, o nosso Benjamin de Oliveira pintava o rosto de branco para representar, inclusive personagem europeu na opereta A Viúva Alegre. Então, veja, o Benjamim veio do povo e fazia arte da classe média. O Nóbrega faz o caminho inverso.

Isso não reduz a música armorial ao público nordestino? Por trás da sua pergunta, há aquela idéia de que a tendência é a globalização. Maior conversa fiada. Esses rapazes que fazem o manguebeat dizendo que isso é que é contemporâneo, isso é conversa fiada. Universal é o regional de alguém imposto para todo mundo. Prefiro que o Nóbrega continue fazendo a sua música nordestina para o país inteiro escutar.

Mas o público de Nóbrega é o popular ou a classe média? É a classe média. Mas por quê? Porque na área popular, a cultura não é feita visando objetivos externos. Ela representa motivos interiores da alma popular, representa diversão. O povo tem que se divertir. Quando um observador de fora assiste a um espetáculo popular, nota, então, dimensões estéticas de que os participantes não se dão conta. Nóbrega faz isso, captura as dimensões estéticas do popular com maestria. No entanto, isso não quer dizer que ele não seria bem-vindo no meio popular. Se ele for com sua rabeca a uma cidadezinha do interior, qualquer rabequeiro local não recusará, e o público se divertirá com o Mateus do Nóbrega, porque o Nóbrega é o Mateus que ele conhece. E que a grande cidade passa a conhecer através dele. Sou grande entusiasta dele.

E a qualidade musical de Nóbrega, tecnicamente? Até prefiro que não seja um grande cantor tradicional. Ele tem uma voz popularmente rascante, capaz de produzir efeito do tipo, por exemplo, do das mulheres nas procissões. Desafinadas, mas de belo ensemble sonoro. Colocá-las num estúdio para fazer com que cantem tecnicamente bem é perder esse desarrumado da cantoria que faz parte da realidade. Considero Nóbrega o artista brasileiro mais completo da atualidade. Não há outro artista da classe média que encarne melhor a cultura popular. Posso fazer uma comparação: no começo do século passado, no Rio de Janeiro, havia um palhaço 18 Continente Multicultural

José Ramos Tinhorão é pesquisador e crítico de música, autor, entre outras obras, de História Social da Música Popular Brasileira (1998), Pequena história da música popular – Da modinha à canção de protesto (1974) e Música Popular – Um tema em debate (1966)


Ariano Suassuna

Movimento foi uma bandeira

LEO CALDAS / TITULAR

Movimento Armorial foi criado para ser uma bandeira de luta contra o processo de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira. Eram os anos 70 e o regime militar estava em pleno funcionamento e falar em cultura era suspeito. E em cultura popular era subversivo. O único lugar no Brasil onde se falava em cultura e em

cultura popular era no Recife, graças ao Movimento Armorial. Agora, a definição: o Movimento Armorial teve e tem como objetivo principal a criação de uma arte brasileira erudita baseada na raiz popular da nossa cultura. Veja o caso do Quinteto Armorial. A minha preocupação fundamental era a criação de um grupo de câmara baseado nos grupos de câmara populares. Na Europa, a estrutura da orquestra sinfônica partiu do quarteto de cordas, que usava instrumentos populares, usados nas danças etc. Era o primeiro violino, segundo violino, viola de arco e violoncelo. Daí estenderam isso e fizeram a orquestra de cordas. Depois acrescentaram duas flautas. Até chegar à orquestra sinfônica como conhecemos hoje. Então eu propus que fizéssemos a mesma coisa, vendo o que é que o povo toca. Então pegamos o berimbau de lata, a viola, a rabeca, o pífano e o violão. Porque, a partir daí, mesmo que alguém quisesse compor uma música europeizada não ia conseguir, porque o som dos instrumentos apontava em outra direção, que era o que nos interessava. A idéia era fazer do Quinteto uma coisa didática, para reeducar os músicos. Era composto por Edílson Eulálio no violão, Antônio Madureira na viola brasileira, Nóbrega tocava violino e rabeca, Egildo Vieira tocava flauta e pífano, e Armando Torres Barbosa tocava marimbau. Foi deste começo que depois surgiu a Orquestra Romançal e o Balé Armorial. Existem várias gerações de armoriais. A primeira era eu, Capiba, Guerra Peixe e Samico. Vieram depois Clóvis Pereira, Jarbas Maciel, Arnaldo Barbosa, Antônio Madureira, Antônio Nóbrega. É a época do Quinteto. Houve também a época em que Raimundo Carrero e Marcus Accioly foram armoriais, Carrero na fase do romance Bernarda Soledade, a Tigre do Sertão e Accioly quando era mais ligado ao romanceiro popular do que às vanguardas. Agora já há uma terceira geração, formada por Romero de An-

Ariano: o Movimento Armorial tem como objetivo principal a criação de uma arte brasileira erudita baseada na raiz popular da nossa cultura.

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Algumas letras do alfabeto armorial, criado por Suassuna, incorpora signos dos ferros de marcar gado

drade Lima, Dantas Suassuna e outros artistas que estão levando a idéia adiante. Tem também Carlos Newton Júnior, que faz literatura armorial e é muito bom. E Maria Paula Costa Rego que está fazendo um trabalho belíssimo na área da dança. Ela coordena o Balé Grial e já fez quatro espetáculos. Nesse movimento de renovação que houve na música do Recife, o principal “atuador” quem foi? Foi Chico (N.R. Chico Science), que se dizia um armorial. Considero Nóbrega um artista da maior importância. Na década de 70, eu escrevi um artigo dizendo que os verdadeiros atores brasileiros não deviam ser meros “dizedores” de palavras. O ator brasileiro tinha que saber dançar, cantar, andar em cima das mãos, se necessário, enfim, ter um corpo preparado. Eu nunca esperei, ainda em vida, ver isso. E vi

com Nóbrega. Ele toca, ele canta, ele representa, ele dança. Ele realizou aquele ideal de ator que eu tinha. Eu conheci Nóbrega tocando um concerto de violino de Bach, com orquestra. Ele era bem novinho e já tinha uma formação musical sólida. Aí ele passou do violino para a rabeca. O professor dele, o espanhol Luiz Soler, a princípio ficou indignado comigo, achando que estava tirando ele do bom caminho. Mas, se ele continuasse tocando violino, no máximo ele seria hoje um virtuose. E virtuoses há vários. Depois Soler reconheceu o nosso trabalho. E hoje Nóbrega é conhecido no país todo, graças a Deus. Ariano Suassuna é escritor, teórico da arte, fundador do Movimento Armorial e autor de peças como O Auto da Compadecida e narrativas como Romance da Pedra do Reino

Maurício Kubrusly

Uma arte de resistência

óbrega foi um susto bom. Quando escutei pela primeira vez, foi um esforço para desarmar o arregalado dos olhos. O maravilhoso do trabalho dele está em arrebanhar, para nós, uma porção generosa da arte popular da região mais rica nessas invencionices. E o melhor: ele nunca se preocupou com a parada de sucessos. Fiel à sua infância, oferece as invenções que resistiram e resistem ao arrastão que vai nivelando tudo num único som. Se este achatamento se completasse, o Brasil perderia o que tem de melhor: a diversidade. Ele fala 20 Continente Multicultural

o idioma da maioria e da minoria. Maioria que não tem acesso ao mínimo, minoria que insiste em ser o que é, ao invés de viver no faz de conta. No disco e no palco, a grande música do Nordeste brilha, renovada, em cada lance de Toninho Nóbrega. Pena que o funil seja tão apertadinho no momento de divulgar um artista deste tamanho. Se fosse o contrário, quanta gente mais estaria tomando um susto bom pelo Brasil afora... Maurício Kubrusly é repórter da rede Globo


Zoca Madureira

Um artista de palco

REPRODUÇÃO

le (Nóbrega) representa o segmento da dança e do teatro do Movimento Armorial. É um ator e dançarino, alguém que toca e canta em cena. Com tudo isso junto, surge um grande artista. Qualquer um desses itens isoladamente não preenche um padrão satisfatório de qualidade. Cantando num espetáculo de mímica e teatro, ele é interessante, mas, sua interpretação vocal, isoladamente, não é o que ele tem de melhor. Não acho que ele tenha a voz adequada para uma série de gêneros que cultiva e têm inclusive apelo popular e de mídia. Nóbrega desenvolveu um timbre – não era o original – que é uma empostação baseada em cantadores e aboiadores. O timbre e a dicção são desenvolvidos na tradição, mas se limitam. Ele não consegue cantar bem uma marcha de bloco, por exemplo. Como compositor ele tem muito pouca coisa. O que costuma ser citado como as composições dele, na verdade, são os poemas de Wilson Freire que ele tem musicado. Nesse mesmo campo, há também os temas populares que ele retoma e adapta. As composições dele são, portanto, exceções dentro desse trabalho mais amplo e mais rico como artista de palco. Antônio (Zoca) Madureira é compositor e instrumentista, integrante do antigo Quinteto Armorial e atualmente do Quarteto Romançal

(Depoimentos a Alexandre Bandeira, Marco Polo e Mário Hélio)

Reprodução da contra-capa do disco Ancestral, do Quarteto Romançal, 1997, com Antônio Madureira, Sérgio Campelo, João Carlos Araújo e Aglaia Costa, no Museu-Oficina Brennand. Foto: Manoel Veiga

O Quintal, ilustração de Romero de Andrade Lima para o livro O Canto da Minha Memória, de Eugênia Menezes, 1987

Para saber mais: Em Demanda da Poética Popular : Ariano Suassuna e o Movimento Armorial Idelette Muzart Fonseca dos Santos Campinas, Editora da Unicamp, 1999.

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REPRODUÇÃO

MÚSICA

Obras de Scott Joplin e Ernesto Nazareth revelam similitudes entre ragtime e choro, cujas raízes misturam influências européias e africanas Sebastião Vila Nova

Unidos pela síncopa

E

m 1917 – o mesmo 1917 das duas revoluções russas, a de Kerenski em fevereiro e a de Lênin em outubro – dois acontecimentos abalaram a música popular norte-americana: o fechamento de todas as casas noturnas de New Orleans por decreto do seu prefeito, cedendo à pressão da população branca da Crescent City como era então chamada, e a morte de Scott Joplin. O histórico decreto do prefeito de New Orleans, provocando a diáspora dos músicos de jazz, que na sua maioria faziam da música um simples meio de complementação de renda na movimentada noite de uma cidade próspera, veio a mudar a topografia da música afro-americana nos Estados Unidos. E a morte de Scott Joplin? E quem foi Scott Joplin? Um remoto parente da musa do movimento hippie? Pianista e compositor, Joplin foi um dos mais importantes entre os músicos negros nos EUA. Seu nome está definitivamente ligado ao ragtime; falar em Joplin é falar em ragtime, e vice-versa, pois, do mesmo modo que, entre nós, Ernesto Nazareth fixou a 22 Continente Multicultural

forma do choro, foi Joplin quem estabeleceu a forma definitiva do ragtime, na trilha de grandes pianistas que o antecederam – Tom Turpin, Louis Chauvin, Arthur Marshall e Tony Jackson. Negro – embora sua mãe tivesse nascido livre, seu pai nasceu escravo –, Joplin veio ao mundo em lugar não identificado, nas proximidades de Texarkana, Texas, em torno de 4 de abril de 1868. Autodidata de gênio, chegou, porém, já profissional, a submeterse a algum estudo formal de música no George Smith College, em Sedalia, Missouri. Foi, aliás, em Sedalia que compôs o rag que o faria nacionalmente famoso e estimado: Maple Leaf Rag. Mas Joplin ambicionava muito mais do que uma carreira de músico popular, tocando em lugares no mais das vezes de má reputação na noite de Sedalia, Chicago, Saint Louis ou New York, cidades onde viveu. Seu sonho, jamais realizado, era tornarse um músico erudito de renome. E foi com esse objetivo que compôs uma ópera em três atos, Treemonisha, mal recebida pela crítica, em 1914. Com o cérebro afetado pela sífilis, esgotado pelo esforço de reescrever Treemonisha, Joplin morreu


em 1º de abril de 1917, quando contava apenas 49 anos de idade. Consciente de seu valor, costumava dizer que a sua música somente seria reconhecida 25 anos depois de sua morte. Enquanto, nos Estados Unidos dos fins do século 19, o jovem autor de Maple Leaf Rag usufruía a glória do reconhecimento nacional, à mesma época, no Rio de Janeiro, um pianista carioca, quase quarentão, sobrevivia modestamente dando aulas particulares de piano e tocando em casas de música, de família e clubes. Chamava-se Ernesto Nazareth. Tendo nascido no Rio, a 30 de março de 1863, filho de um despachante e de uma pianista, Nazareth não chegou a conhecer, em vida, a fama e, principalmente, o sucesso financeiro que alcançou Joplin. Enquanto a conta bancária de Joplin crescia com os direitos autorais pela publicação de suas composições, Nazareth, vivendo em um ambiente menos estimulante para um músico, mourejava ministrando aulas de piano a meninas e moçoilas da pequena burguesia carioca e tocando aqui e acolá. Para que se tenha uma idéia do modesto padrão de vida de Nazareth, aos 57 anos, submetia-se a tocar na sala de espera do cinema

Odeon. Note-se que, aos 30 anos, Nazareth já granjeara notoriedade nacional com a publicação do tango (era assim que se denominava o choro àquela época) Brejeiro. Aos 47 anos, tentando melhorar suas finanças, Nazareth conseguira fazer-se nomear terceiro escrivão do Tesouro Nacional, embora, compreensivelmente, não tenha permanecido por muito tempo no cargo. Do mesmo modo que Joplin, Nazareth ambicionava o reconhecimento como compositor erudito. Gostava de tocar para ser ouvido, e não para os outros dançarem. Acometido de problemas mentais, internado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, Nazareth foi encontrado morto na Cachoeira dos Ciganos, próxima à colônia, em 4 de fevereiro de 1934. Mas o que há de comum entre Joplin e Nazareth? Mesclando influências da música erudita européia, principalmente Chopin, com a rítmica da música negra, sincopada, tanto Nazareth quanto Joplin foram incompreendidos à sua época. Aos que gostavam de música erudita, Nazareth não passava de autor de música popularesca e exótica, enquanto aqueles que gostavam de música de dança o achavam, talvez, um pouco prolixo. O mais significativo na simetria entre Joplin e Nazareth é que ambos definiram, com suas composições, a estrutura do ragtime e do choro, respectivamente. E definiram de modo coincidente. Como explica Nestor R. Ortiz Oderigo, “os rags possuem uma estrutura extremamente rígida. Cada parte ou seção em que se dividem suas melodias consta sempre de 16 compassos de extensão, desenvolvendo três ou quatro temas distintos, que podem ou não estar vinculados entre si. Um desses temas, em geral o segundo, se destaca por uma mudança de tonalidade. Esses temas de 16 compassos são precedidos e, às vezes, seguidos, de um exórdio e uma coda de quatro compassos”. Isto é o ragtime. Mas é também o choro. Não foram Nazareth, nem Joplin, os introdutores da síncopa, de origem africana, na música pianística das Américas. Antes deles, Louis Gottschalk o fez pioneiramente. Mas foram, Nazareth e Joplin, os primeiros a criarem uma forma musical no Brasil e nos EUA. Como não lembrar das síncopas dos choros de Nazareth ouvindo os rags de Joplin? Como não lembrar os rubatos chopinianos das valsas de Joplin ao ouvir as valsas de Nazareth? Sebastião Vila Nova é sociólogo e músico

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Os perigos do ROGÉRIO REIS / TYBA

CULTURA POPULAR

Professor de teatro critica a visão de um Brasil exótico que as manifestações de folclore estilizado ajudam a perpetuar

Homem carrega bumba-meu-boi na cabeça: “Mesmo nas piores situações, a nossa capacidade de festejar é impressionantemente teatral”

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O

professor de teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Marcos Bulhões, não quer saber de releituras do folclore. Nada de quadrilhas estilizadas ou pastoras de pernas de fora para atrair turistas. Para ele, o Boi deve ser o Boi e o Tchan deve ser o Tchan.

folclore

O que não o impediu de colaborar, no ano passado, com um dos artistas visuais mais inovadores do país, Gringo Cardia, num auto de Natal que misturava DJs e repentistas; coco, caboclinhos e figurinos pop; drum'n'bass, funk e Roberto Carlos. Tudo no mesmo palco, com a mesma importância. “O que é ser contemporâneo?”, pergunta Bulhões, que assinou o roteiro. “Para mim é promover encontros saudáveis entre tradição e moderno, com respeito às diferenças e sem falsos moralismos.” Neste depoimento a Continente, Bulhões fala da condição tragicômica do brasileiro, dos perigos do parafolclorismo e das manifestações esquecidas pelas elites.

O TRAGICÔMICO INVOLUNTÁRIO As manifestações populares no Brasil são muito expressivas cenicamente, de uma forma geral. Veja as baianas, por exemplo: além da arte culinária existe a performance, a teatralidade da roupa, da forma de falar, do ritual cênico que é a compra de um acarajé. Quanto mais gostoso é o acarajé mais teatral é a vendedora. Toda festa importante possui, em geral, pelo menos uma dança de natureza dramática, com personagens como o Mateus do Boi; o velho, o palhaço e a Diana do Pastoril; a noiva e o padre da Quadrilha; o papangu, as virgens do Carnaval; o rei e a rainha do Maracatu e do Congo e tantos outros. Se, como diria Becket, gente é um bicho esquisito, o brasileiro talvez seja um dos mais estranhos. Ele é único nesta mistura de alegria da dança negra, da vontade cabocla de se pintar, beber e fumar o

cachimbo da paz, somadas ao tom operístico de nossa latinidade portuguesa. Mesmo nas piores situações, a nossa capacidade de festejar é impressionantemente teatral, como se encenássemos todos uma tragédia carnavalizada. Num país em que se queimam índios na rua como tentativa de diversão da classe média, insiste-se na farsa de um povo bacana e hospitaleiro. Simplesmente ignoramos nossa capacidade para conviver com a intolerância (nosso patrono do Exército não foi o mesmo que liderou o massacre de 90% da população masculina do Paraguai? O homem que liderou o massacre dos índios no Rio Grande do Norte, por exemplo, é nome de avenida principal, e o índio que virou branco, o Felipe Camarão, é considerado um herói); dá pra levar isto a sério? O brasileiro é um tragicômico involuntário, por condição.

TEATRO E FOLCLORE É preciso acabar, antes de mais nada, com esta categoria do “folclórico”. Gosto da visão da etnocenologia (disciplina científica recente, criada na França com a participação de brasileiros como Armindo Bião, da UFBA; maiores informações em Patrice Pavis, Dicionário de Teatro, 1999). Ela acaba com a divisão entre teatro ocidental e oriental, folclore e erudito, todos são manifestações cênicas da humanidade, e, portanto, é necessário transcender o olhar eurocêntrico que considera o teatro de palco como superior em relação ao Boi de Reis, por exemplo. Se todos são a cena deste país, precisamos aprender primeiro a lição da convivência e do respeito mútuo, sem graduações. Os “artistas de teatro” podem aprender com os “artistas populares” uma forma tradicional de nossa teatralidade, o que não significa dizer que devam sair repetindo ou reciclando o folclore. Aliás, detesto releitura do folclore, da mesma forma que não faz sentido o ator que interpreta a Catirina no Boi Ca- Insistimos na lemba tentar imitar uma farsa de um drag-queen ou um ator povo bacana, de televisão com “reverência” ou atitude sub- mas ignoramos missa. Nem olhar de ci- nossa ma nem de baixo, preci- capacidade samos, todos, populares para a e eruditos, profissionais e folclóricos, nos olhar- intolerância Continente Multicultural 25


ALCIONE FERREIRA / DP

Não me agrada a estética do show pra turista. O turismo sexual do Nordeste atrai quem quer ver as pernas das mulatas do samba e do Pastoril estilizado mos de frente, assumindo nossa diferença com respeito e aprendendo formas de trabalhar juntos, desde a convivência na escola – em vez de fabricarmos um pastiche modernoso do Pastoril, por que não podemos considerar o Pastoril da tradição? O ator brasileiro pode aprender com o folclore, não a arrogância da preservação interesseira, mas a capacidade de canibalizar, devorar o que vem de fora e transformar em outra qualidade, de não ser submisso aos modismos. Aprender a ser antropófago com a atitude anárquica de um Chico Daniel, por exemplo, o maior mamulengueiro potiguar, e não imitá-lo ou reciclá-lo. Me alegram os grupos e diretores que possuem uma pesquisa de linguagem, que têm algo a dizer, que pensam sua prática, como o Teatro da Vertigem, Zé Celso Martinez, e, graças à força dionisíaca da juventude, muitos outros espalhados por este país, ilhas de desordem no mar do teatrão chato e insípido.

sa elite burocrática e lusitanamente cafona. Não sei como é em Pernambuco, mas no Rio Grande do Norte as manifestações populares da tradição são substituídas por atores e bailarinos parafolclóricos que ganham cachê, enquanto os grupos folclóricos vão se acabando por falta de apoio e reconhecimento. Os grupos que conseguem resistir só são considerados na maioria das vezes em efemérides como a Semana do Folclore, ou, no máximo, são convidados para participar do cortejo na rua no Auto de Natal, mas foi apenas este ano, que eu saiba, que estas manifestações ocuparam o palco principal do espetáculo. Também não me agrada a estética do show para turista, esta verdadeira epidemia estética que se alastra pelo Nordeste, como um câncer da breguice cênica, da “releitura”, do pseudo “resgate”, da “adaptação livre”. Os turistas de quinta categoria que o Nordeste atrai, os do turismo sexual, por exemplo, adoram ver as pernas das mulatas do samba e do Pastoril estilizado.

O PARAFOLCLORE

A RABECA ARMORIAL E O BATUQUE DO TERREIRO

Não me agrada o parafolclore de festival, de gabinete, o parafolclórico que mama nas tetas do estado branco culpado, que vende a ilusão de que valorizamos nossa cultura, que ilustra solenidades de nosO diretor teatral Zé Celso Martinez, rara criatividade no teatro brasileiro

A formação de nossa elite é das piores do mundo. Neste contexto de uma “educação do decoreba pra vestibular”, os valores culturais da tradição EDUARO KNAPP / FOLHA

Apresentação de um grupo de pastoril: uma das formas de teatralidade brasileira


PRESERVAR E MUDAR

Em qualquer país dominante do mundo existe uma forte tradição que se preserva dos modismos e mantém uma pulsação ancestral que fortalece a cultura da nação como um todo. Mas a palavra preservar é perigosa, pois pode implicar em parafolclorismo sutil, em manipulação. Quem faz a brincadeira deve mudar quando quiser, não deve se preocupar em preservar. O problema é a atitude. Se uma quadrilha deixa de ser tradicional e passa a fazer roupas imitando o Carnaval do Rio, o rodeio americano ou a estética da Xuxa só para ficar mais bonito e ganhar o concurso que é pago com o dinheiro do contribuinte – o que é pior –, esta postura é colonizada e mercenária, uma atitude de prostituição cultural que não tem nada a ver com o espírito da festa de São João. A virtude das manifestações populares tradicionais neste país é a capacidade antropofágica da transformação, a mistura de culturas diferentes, a convivência harmoniosa entre o sagrado e o profano, a vontade de se criar uma ilha de convivência da comunidade que celebra feitos do passado ou comemora a existência. Entrevista concedida a Alexandre Bandeira

GIOVANNI SÉRGIO

No mesmo barco Um auto de Natal montado em cima de uma balsa de 40 x 15 metros. Duzentas e cinqüenta pessoas, entre atores, músicos e bailarinos, numa versão do nascimento de Cristo da qual participaram até dois caças da força aérea. Foi o que a prefeitura de Natal, RN, promoveu no dia 21 de dezembro do ano passado, junto com a Caixa

GIOVANNI SÉRGIO

são vistos pelas crianças através de uma ótica do exótico, do folclórico. Na Semana do Índio e no Festival de Quadrilha tem gente vestida de índio apache americano! Nesta sociedade que não valoriza a história e ironiza seus pais fundadores, a auto-estima de uma nação torna-se quase inviável. Sem educação sólida, nossa elite absorve o discurso estrangeiro do exótico e tenta colocar tudo em fôrmas pré-fabricadas, convenientes para a representação. Não suporto, por exemplo, a idéia de que somos “ibéricos”, apesar de ser um discurso muito conveniente a alguns ilustres. Em Natal está na moda discutir nossa raiz ibérica, valorizar a herança de Portugal e Espanha. Acho muito bom, desde que não se fique por aí, já que além de ibéricos nós também somos negros e caboclos. Para o senhor de engenho, na sua cadeira de balanço na varanda da casa-grande, é conveniente que se preserve o cordel e a rabeca armorial, mas fica difícil para este mesmo senhor cair no batuque do terreiro.

Econômica Federal e o Ministério da Cultura. Segundo informações oficiais, o espetáculo custou 350 mil reais e foi assistido por mais de 10 mil pessoas, à margem do rio Potengi. Com direção de Gringo Cardia e trazendo o ator Antônio Abujamra como Herodes, o auto tomou o texto bíblico como ponto de partida para explorar temas como folclore, discriminação social e racial, intolerância e guerra – representada por Herodes e pelos dois aviões caças. O público pôde assistir a apresentações de grupos folclóricos tradicionais da cidade de Natal, como os Caboclinhos de CearáMirim, o Congo de Calçola de Ponta Negra e o Boi do Manuel Marinheiro.

Cena do Auto de Natal 2001 realizado no Rio Grande do Norte, com direção de Gringo Cardia e roteiro de Marcos Bulhões. No alto da página, o público do espetáculo

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REPRODUÇÃO

FERREIRA GULLAR

Não é necessário haver movimentos de vanguarda para que os artistas criem obras de alto valor e para que a arte se renove À direita, Natureza-morta, 1919, de Giorgio Morandi Na página oposta, Natureza-morta Espanhola, 1912, de Pablo Picasso

A arte e o novo

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inha posição crítica em face de determinadas manifestações da arte contemporânea pode às vezes levar algumas pessoas a pensar que tenho uma atitude aprioristicamente contrária a qualquer experiência nova em arte. Nada mais distante do que efetivamente penso. Por isso mesmo, ao assumir esta coluna na revista Continente, aproveito a oportunidade para deixar clara minha visão com respeito a essas questões. O primeiro ponto a esclarecer é meu juízo acerca das vanguardas estéticas. Trata-se de um fenômeno específico do século 20, que não pode ser confundido com a busca de renovação estética, pois esta está presente em toda a história da arte. Noutras palavras, não é necessário haver movimentos de vanguarda para que os artistas criem obras de alto valor e para que a arte se renove. A identificação equivocada entre a vanguarda e a criação artística conduz muitas vezes a se perder de vista o fato de que, por exemplo, os quadros cubistas de Braque e Picasso são, muitas vezes, obras de alto valor não por serem cubistas mas por suas qualidades estéticas intrínsecas. Isto não significa que os movimentos de vanguarda não tiveram importância e, sim, que sua importância deriva das idéias fecundadoras que veicu28 Continente Multicultural

laram e, sobretudo, das obras que produziram. Ao longo do século 20 surgiram centenas de movimentos de vanguarda no mundo inteiro, a maioria dos quais manifestações inócuas e pretenciosas, de que sobraram apenas os manifestos, quando sobraram. Este ponto é revelante porque está intimamente ligado a outra questão, que também provoca incompreensão quando se discute a arte de hoje. É a questão do novo. Esta questão não pode ser separada da própria criação artística, uma vez que nenhum artista se dispõe a pintar um quadro se ele nada contém de novo. Seja tematicamente, seja estilisticamente, o quadro a ser pintado deve acrescentar algo à obra anterior do artista. Isto, aliás, é que distingue o artista do artesão: este tende simplesmente a se valer de seus recursos técnicos para reproduzir o mesmo objeto, seja cadeira, moringa ou lamparina, enquanto aquele tem a necessidade de “criar”, isto é, fazer uma coisa nova. Esta necessidade varia de artista para artista, em função de sua personalidade, de seu talento, de sua necessidade e capacidade maior ou menor de inovar. Picasso é o exemplo do artista inquieto e criativo, cuja trajetória foi um permanente reinventar da própria pintura. Já Giorgio Morandi situa-se no pólo oposto, a explorar durante décadas uma mesma temática e um mesmo caminho estilístico. Pode-se por isso dizer que Picasso é criador e Morandi, não? Pode-se dizer que os quadros


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de Morandi são a repetição de um mesmo quadro, destituídos, portanto, de criatividade? Claro que não. O novo na arte não tem que ser sempre um escândalo ou uma ruptura; pode ser – e na maioria das vezes é – o resultado de sutil exploração e aprofundamento temático e estilístico. Não obstante, a exigência do novo explícito tornou-se um fator decisivo na produção e na avaliação da arte contemporânea. Trata-se de um fenômeno decorrente dos movimentos de vanguarda que, como o próprio nome está dizendo, apresentavam-se como a última palavra em arte, a expressão da própria vida moderna, sendo o mais considerado “passadismo”, velharia, coisa superada. Essas idéias foram introduzidas, na verdade, pelo Futurismo e, especialmente, por Marinetti, que pregava a necessidade de a arte expressar a vida contemporânea, a cidade industrial, enfim, o futuro... Fundou-se assim o preconceito do novo, a busca em arte do novo pelo novo, responsável em grande parte pelo rumo que tomou a arte do século passado e a autofagia que a caracterizou. Como se pode concluir do que foi dito, deu-se uma inversão de valores no âmbito da avaliação e mesmo da concepção artística, já que a obra deixou de impor-se pelas qualidades estéticas, por sua execução, por sua complexidade, pela adequação de forma e conteúdo, para valer apenas pelo que trazia de “novo” e que, na maioria das vezes, limitava-se à busca deliberada do extravagante ou do diferente. Não é difícil adivinhar que tal concepção conduziria fatalmente à desintegração das linguagens artísticas e a um vale-tudo que eliminava qualquer avaliação objetiva. Este não foi um processo linear e sem contradições. Se é verdade que o cubismo inverteu a relação natureza-arte, que de uma maneira ou de outra foi determinante na arte ocidental, o neoplasticismo, que dele derivou, reintroduziu a

natureza na pintura em termos dos ritmos horizontal e vertical; se o Futurismo quis expressar a velocidade da vida moderna, o suprematismo, que nele se inspirou, propôs um caminho metafísico que pretendia expressar “a sensibilidade da ausência do objeto”. No mesmo momento histórico, na mesma Rússia pré-revolucionária, Tatlin criava seus contra-relevos, precursores do não-objeto neoconcreto dos anos 60. Por outro lado, o expressionismo alemão, exacerbando a expressão subjetiva, contribuiu para a futura dissolução da forma na pasta pictórica da pintura informal. Enquanto isso, fiel ao radicalismo niilista do dadaísmo, Duchamp propõe o caminho da antiarte, ou seja, do impasse, que ele próprio viveu e pagou o preço. De todo esse processo resultou uma enorme ampliação da experiência estética do homem e, ao mesmo tempo, uma situação-limite, que pôs em questão todos os valores estéticos. Para os artistas que aderiram a esse caminho, a pintura, a escultura e a gravura acabaram, enfim, o que até aqui se chamou de arte morreu. Em seu lugar pretendem pôr a antiarte duchampiana que se limita a algumas boutades – os ready-made – e apenas duas obras significativas, ambas inacabadas: o Grande Vidro e o Étant Donnés. No meu entender, essa é a posição de quem acredita no determinismo de um suposto evolucionismo artístico. Não acredito nisso. A pintura, a gravura, a escultura estarão vivas sempre que haja pintores, gravadores e escultores talentosos para realizá-las. A linha duchampiana – ou arte conceitual – é a meu ver uma tendência agonizante, que se mantém graças a fatores alheios à verdadeira criação artística. De qualquer modo, é uma forma de expressão que, por não se fundar no domínio de uma linguagem, é fruto de constante improviso, fora portanto de qualquer apreciação crítica. Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

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ARTE CONTEMPORÂNEA

Museu socialmente correto No interior da Bélgica francófona, um Museu de Artes Contemporâneas é exemplo de integração artística, turística, cultural e econômica. Rodrigo Albea

O MACs se integra à sociedade local, gerando empregos para 15 famílias

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trabalho e quase sete milhões de euros gastos, é um dos protagonistas na revitalização da área. Parte desse orçamento está sendo destinado à formação dos vigias. Todos os 15 recrutados são desempregados há quase dois anos sem atividade. Até agosto, antes da abertura da primeira exposição, em setembro, eles recebem um treinamento que inclui noções de história da arte e visitas a outros museus. “Não são apenas 15 pessoas, são 15 famílias que vão se restabelecer socialmente e viver de um contato com a arte”, afirma o diretor Laurent Busine. Trata-se de um lento trabalho de multiplicação, que abrange todas as gerações. As crianças fazem animações para descobrir o universo da arte contemporânea. E também são chamadas para investigar a memória – bastante rica – do Grand Hornu. Ali vivem imigrantes aposentados que trabalharam até 1954 nas minas de carvão, a 900 metros de profundidade, em condições difíceis. Meninos e meninas foram entrevistar antigos mineiros, como parte do estudo da primeira obra da coleção do MACs – não à toa, uma encomenda de 1997 ao francês Christian Boltanski. Artista reconhecido internacionalmente por suas instalações que acumulam pequenos dados biográficos de anônimos, sua obra é uma parede de caixas de latão com nomes e fotos de RODRIGO ALBEA

U

ma luz cinza, invernal, domina o ambiente. O teto intercalado de vidro e concreto deixa os fracos raios de sol se espraiarem tranqüilamente nas paredes ainda vazias da “sala quadrada” desse recente Museu de Artes Contemporâneas (MACs) europeu. É em um dos eixos de mais alta densidade cultural do velho continente – entre Paris, Amsterdã e Bruxelas, no interior da Bélgica francófona – que se constrói social, econômica e artisticamente um novo “templo das musas”. O que poderia ser apenas mais um ponto na constelação de instituições circunvizinhas está se mostrando, com essa combinação de fatores, um exemplo de “ecologia sócio-cultural”. Assim como a arquitetura privilegia o que a natureza tem para oferecer, o MACs se esforça para se integrar à sociedade local. “Fizemos questão de recrutar nossos vigias na região, onde o desemprego chega a 40%”, diz o secretário-geral Serge Rangoni. Aqui, em plena Europa, falase de pobreza. E de abandono. Instalado em um antigo complexo industrial do século 19, de estilo neoclássico – chamado Grand Hornu – o local estava praticamente condenado até os anos 70. Hoje, após seis anos de


Apesar de pronta a arquitetura, o MACs ainda espera as primeiras exposições

RODRIGO ALBEA

gente do local. “Gosto de intervir em lugares carregados de memória, como o Grand Hornu. Sinto os museus como lugares totalmente falsos. Na maioria deles, ninguém dormiu ali de verdade, nem viveu, nem trabalhou”, diz Boltanski. A escolha de um artista conceitual como Boltanski demonstra um desejo de não cair no gosto fácil para compor o acervo. “Não vamos reunir peças da mitologia da arte contemporânea, como fazem tantas instituições européias. A universalidade à qual aspira o MACs é fundada na capacidade dos artistas em evocar a diversidade do mundo na singularidade da sua criação”, justifica Laurent Busine. A partir dessa premissa, ele constituiu o eixo curatorial em torno de três pilares: arquitetura, memória e poética. Nesse último elemento está o espaço aberto às outras artes, cênicas inclusive. Dentre os projetos realizados antes da abertura está uma peça de teatro – Le Cirque Célibataire (O Circo Solteiro), a partir de textos de artistas como Marcel Duchamp, Louise Bourgeois e Robert Filliou. O roteiro, costurado por Didier Payen e Isabelle Marcelin, dá uma visão lúdica das artes plásticas contemporâneas. E

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RODRIGO ALBEA RODRIGO ALBEA

O vidro nas paredes e no teto prioriza a luz natural, no museu instalado no antigo complexo industrial de Grand Hornu

Todos os 15 vigias recrutados são desempregados há quase dois anos sem atividade transformou-se, também, em um dos elementos de comunicação do museu, nas cidades vizinhas e outras regiões do país. Outro projeto reforça essa opção de marketing com fundamento artístico. Durante as obras, foram gravadas vozes, depoimentos, sons, barulhos. A partir desse material, Richard Kalisz fez uma “composição sonora” em dois CDs, intitulada Voix de Chantier (Vozes do Canteiro de Obras). Com essas duas ações a equipe deixa claro que não é composta de assistentes sociais, mas de administradores dinâmicos e conscientes de que também é necessário atrair o público – até o interior da Bélgica – buscando novas formas de fazer passar sua mensagem. Em dezembro, o museu mostrava na TV inserções publicitárias sobre obras da coleção – Um minuto para a Arte – num outro projeto para se fazer visto e falado. 32 Continente Multicultural

O MACs explica, assim, a sua existência em uma área já quase saturada de museus: ancorado no local e direcionado ao internacional, entre o social, econômico e artístico, apoiando-se no passado para elaborar seu presente e futuro. Esse último eixo se concretiza de maneira mais forte na arquitetura de Pierre Hebbelinck. O vidro prioriza a luz natural e deixa também se estabelecer o diálogo entre o contemporâneo e o patrimônio histórico. Numa tangente da antiga construção, Hebbelinck criou o novo prédio do MACs, com salas de tamanho variável. “Não era necessário santificar o que já existia, mas aproveitar suas belezas e potencialidades”, explica. A concretude da arquitetura, no entanto, não sossega o diretor Laurent Busine, que prepara a primeira exposição. Ele se pergunta, aproveitando a situação singular de dirigir um museu com paredes vazias por alguns meses ainda: “Hoje o MACs existe e não existe. Seriam então as pedras e tijolos que fazem de um museu um museu? Quando acreditamos abraçar um museu, ele nos escapa”, filosofa. Matéria para reflexão não falta nesse projeto ambicioso: um novo museu no velho continente, fugindo às fórmulas pasteurizadas de grifes, como os tão falados e polemizados Guggenheim; um investimento público de peso em arte contemporânea como símbolo e prática da redinamização de uma região empobrecida – não sem intempéries e incertezas financeiras, negociadas com as diferentes tendências políticas locais. Seria esse MACs belga a terceira via no às vezes empoeirado mundo museal? Rodrigo Albea é jornalista


anuncio

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literatura

Ulisses, de James Joyce, chega aos 80 anos como um dos melhores exemplos da relação entre Psicanálise e Literatura Maria Teodora de Barros Oliveira

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etomo o tema da Psicanálise e Literatura neste mês de fevereiro, data de nascimento de James Joyce, dia 2, tão importante para ele que arquitetou ver os primeiros exemplares de Ulisses e de Finnegans Wake nesse dia. Muito se tem escrito e falado sobre Joyce, e no tocante à Psicanálise e Literatura, as abordagens ora enveredam a interrogar sobre sua estrutura psíquica, bebendo dos seus escritos sobre sua relação com aquilo que o rodeava, da família à Irlanda; ora sublinham a importância da sua arte, suas construções, o que fez com a língua ao querer escrever a-s-l-í-n-g-u-a-s, como elangüescência. São leituras, pois, baseadas na própria produção joyceana, endossadas pelas referências que o autor fez de sua vida. Lembro-lhes que tendo saído da Irlanda, quando lhe perguntaram se voltaria a ela, respondeu: “Será que acaso a deixei?”

Freud, Lacan e Joyce

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REPRODUÇÃO

O escritor irlandês James Joyce


vras – matéria-prima de Joyce – cuidando do ritmo, desconfiando de construções excêntricas, cotejando o texto em português com o original em inglês, munidos do dicionário Collins, enfim, num trabalho dedicado e prazeroso que realizamos no grupo de leitura de Ulisses, no Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise. Sem esse trabalho boa parte da leitura não se decifraria, podendo mesmo causar desconforto. Pois bem, ler essas construções joiceanas, não usuais, é como entrar num labirinto; sua saída é o decifrar de uma escrita que condensa múltiplas leituras, efeito da sintaxe e da construção e uso de palavras e sons que deslizam metonimicamente. Joyce então nos convoca para entrarmos no texto, fazendonos também autores. Nesse percurso, tentando ir ao encalço do seu jogo chegamos ao tempo mítico, relendo outra história dentro da história do homem comum, em Dublin. REPRODUÇÃO

Noutra ocasião, Joyce disse que o poeta leva para o centro de sua vida “a vida que o rodeia, lançando-a novamente para o espaço com música planetária”. A par dos seus escritos autobiográficos, principalmente do Retrato do Artista Quando Jovem, há quem busque razões que expliquem seu estilo; outros detêm-se a decifrar seu jogo, puro gozo e poesia. Na Psicanálise, além dos textos psicanalíticos, há um interesse pela leitura de autores que produziram com a letra o que podemos chamar de pathos sintático, ou seja, fizeram construções desconcertantes, não usuais. Nesse sentido, Joyce é um dos autores mais privilegiados. A leitura que temos feito de Ulisses tem sido uma experiência de inúmeras articulações. Ela se nos revelou extremamente divertida, com descobertas de construções surpreendentes, objeto de um trabalho paciente, disciplinado, bem humorado e criativo do

REPRODUÇÃO

Em Ulisses antevemos o que foi se substanescritor. Ler Ulisses, observando atentamente suas construções sintáticas, torna sua leitura uma experi- cializar em Finnegans Wake: imagens como que conência que Luciane Lucas, usando um conceito de cretas nos chegam simultaneamente na sua desDeleuze e Guattari, vem a chamar de rizomática. crição. Joyce, usando do monólogo interior, não poupa sequer a descrição de míniPois o rizoma lembra uma estrutumos detalhes que poderiam nos ra acentrada, como uma rede, uma parecer insignificantes e que talteia, sem início ou fim. De forma vez perdêssemos numa narrativa semelhante, do ponto de vista da factual. Olhando o mundo através narrativa – bastante deslizante, dede palavras, Joyce nomeava tudo rivativa – Ulisses não segue uma esque fazia parte de sua experiência: trutura linear, embora haja linea“[...] Inelutável modalidade do ridade espaço/temporal. Nele, Joyvisível: pelo menos isso, se não ce tece seu texto com sons, ele rompe a potência semântica das pala- A Psicanálise tem mais, pensando através dos meus olhos. Assinaturas de todas as coivras, joga com aliterações, mistura interesse por sas estou aqui para ler [...]”. A as palavras nas suas raízes homofôautores que impressão que tive ao ler sua desnicas. Sua leitura, suas construções crição é que estava dentro de uma levam o leitor-ouvinte a entrar num produziram dela participava até mesmo labirinto; leitor-ouvinte, pois é aspathos sintático, cena, nos detalhes daquilo que é pensasim que o lemos, em voz alta, em como Joyce do, derivando. grupo, ouvindo os sons das palaContinente Multicultural 35


Elba.

Leneham bowed to a shape of air, annoucing: – Madam, I’m Adam. And Able was I ere I saw

– History! Myles Crawford cried. The Old Woman of Prince’s street was there first. There was weeping and gnashing of teeth over that. Out of an advertisement. Gregor Grey made the design for it. That gave him the leg up (…). (editora Penguin Books). [Lenehan saudou uma forma invisível, anunciando: – Madame, oro e’m Adam. Abel met’em Leba. – História! – clamou Myles Crawford. – A velhota da rua Prince estava lá antes. Houve lamúrias e rilhar de dentes quanto a isso. Por causa de um anúncio. Gregor Grey foi quem fez o desenho dele. Isso lhe deu uma mãozinha. (...) (tradução Houaiss. Editora Civilização Brasileira)] Detendo-nos no texto em inglês, encontramos, de início, duas frases que são dois palíndromos seguidos, e com aliterações – veja-se a repetição do fonema no meio e no fim dos vocábulos próximos: Madam e Adam, como também Able e Elba – estes, palíndromos simetricamente dispostos na frase: Elba.

– Madam, I’m Adam. And Able was I ere I saw

[– Madame, eu sou Adão. E Abel era eu antes que eu visse Elba.]

Ao lado, o divã de Freud

Able é um palíndromo, um invertido de Elba, que quer dizer também capacidade, habilidade, inteligência para fazer alguma coisa, além de ser onde Napoleão se exilou. A frase aqui se refere a Napoleão, ainda que de modo não explicitado. Então, iniciando pela palavra Madam, podemos fazer cortes e rejuntes nas sílabas, e dependendo do lugar, teremos vários enunciados: Madam, I’m Adam [Madame, eu sou Adão]; Mad am’I Adam? [Louco, eu sou Adão?];

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REPRODUÇÃO

No parágrafo a seguir, por exemplo, na edição da Peguim Books, p.174, e no parágrafo correspondente da tradução de Antônio Houaiss, p.180, e que o nosso grupo de leitura pode desvelar, observamos, fazendo um cotejo, quantas outras leituras são ainda possíveis nesse jogo plural que Joyce fez com as palavras:

A escrita de Joyce nos remete aos processos psíquicos, como o mecanismo do sonho


Mad am’I a damn? [Louco, eu sou um diabo (ou uma maldição)?]; Madam, I’m a dame [Madame, eu sou uma dama]. Nesta última construção, um jogo homofônico translingüístico. Portanto, temos pelo menos quatro enunciados homofônicos. Utilizando desse mesmo artifício outros exemplos se repetem. O uso do monólogo interior vem acompanhado de descrições do narrador, de tal forma que o pensamento da personagem se mistura com a narrativa. Além disso, seu pensamento funciona como uma narrativa, de tal forma que exige que retomemos o que já foi lido para que nos certifiquemos quem está pensando ou falando, se a personagem ou se o narrador. Por exemplo, Leopold Bloom caminhava em direção à Biblioteca, depois de ter bebido mais vinho do que acha que devia, no almoço, num restaurante. No seu caminhar, passa por vitrines, lê anúncios, lê títulos de livros expostos na vitrine, e repete tudo que seus olhos vêem, numa seqüência que acompanha seu caminhar; o seu fluxo de pensamentos compõe o texto. Além disso, pensa em si, em seu nome, como se fosse um outro falando dele. Está assim descrito seu fluxo de pensamento, na página 235: “O senhor Bloom virou a vitrina de bolos não vendidos da Confeitaria Gray e passou pela livraria do reverendo Thomas Connellan. Por que deixei a Igreja de Roma? Ninho de pássaro. As mulheres o perseguem. Dizem que ele dava sopa às crianças pobres para fazê-las protestantes na época da crise de batatas. Mais acima a sociedade que papai freqüentava para a conversão dos judeus pobres. A mesma isca. Por que deixamos a Igreja de Roma?” E na página 68, por exemplo, um pensamento de Stephen com sons onomatopaicos, para indicar a importância que Joyce dava aos sons: “[...] Escuta: uma quadrívoca undifala: siissuu, hriss, rsiess, uuss. Sopro veemente de águas em meio a marisserpentes, cavalos empinantes, rochas. Em taças de rochas ela chapinha: chop, chlop, chlap: brandida em barris. E, gasta, sua fala cessa. Ela flui em murmúrio, ancho fluindo, espumicharco flutuando, flor esflorando-se.” Continente Multicultural 37


REPRODUÇÃO

Máscara mortuária do escritor James Joyce

Dessa forma, com Joyce nos deparamos com uma escrita, com uma arte que nos remete aos processos psíquicos: recordamos, por exemplo, do mecanismo do sonho, pois essas cenas, além de virem com as deformações das quais o sonho se utiliza para se manifestar, tais como as palavras homófonas e as metonímias sucessivas, também elas, as cenas, criação do leitor a partir da fala e do fluxo do pensamento das personagens, nos surgem quase que simultaneamente como se não houvesse a diacronia do relato, efeito da recorrência às palavras miméticas. Fato que já fiz referência em outro trabalho ao me referir a Finnegans Wake, pois é lá que essa técnica joiceana vai se tornar mais radical, principalmente por se tratar do relato de um sonho, do sonho de HCE. Sabia Joyce muito bem o que fazia, nessas referências aos processos mentais. Construía a arte que iniciou e anunciara no Retrato do Artista Quando Jovem. E na clínica um trabalho semelhante a essas construções sintáticas e semânticas acontece, quando chegam ao ouvido do analista construções não usuais do analisando. Cabe ao analista estar atento às construções, às palavras que irrompem, significantes, enunciados que carregam enunciações tentando dar conta de um sofrimento, de uma falta não obtu38 Continente Multicultural

rável provocadora do desejo, sabendo quando pontuar essas construções para permitir que o ato analítico ocorra, que surja a verdade do analisando. Na Psicanálise, o objeto material de trabalho é o Significante, pois por seu intermédio se articula o desejo. Significante resistente à significação, barrado à significação, demonstrando Lacan haver a incidência do significante sobre o significado. Daí a escuta dos significantes, que já vemos, contudo, em Freud, desde 1901, n’A Psicopatologia da Vida Cotidiana, quando faz suas referências ao literal. O trabalho com significações, com signos, com o entendimento do discurso não é o objeto da psicanálise. Portanto, assim é o caminhar da Psicanálise pela Literatura, ouvindo as construções inusitadas criadas pelo escritor tanto como as construções criadas pelo analisando, que cria quando as palavras usuais não são suficientes para falar o que não consegue dizer, como fez Joyce com a língua inglesa, pois as palavras dicionarizadas não lhe eram suficientes para dizer o que queria.

Maria Teodora de Barros Oliveira é psicanalista


Ulisses (trecho) “...o vigia indo por ali sereno com a lanterna dele e oh aquela tremenda torrente profunda oh e o mar o mar carmesim às vezes como fogo e os poentes gloriosos e as figueiras nos jardins da Alameda sim e as ruazinhas esquisitas e casas róseas e azuis e amarelas e os rosais e os jasmins e gerânios e cactos e Gibraltar eu mocinha onde eu era uma Flor da montanha sim quando eu punha a rosa em minha cabeleira como as garotas andaluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei tão bem a ele como a outro e então eu pedi a ele com os meus olhos para pedir de novo sim e então ele me pediu quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meus peitos todo perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims.” Ulisses, de James Joyce; tradução de Antônio Houaiss, 12ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 960 págs, R$ 61,00 Continente Multicultural 39


CONTO

Travessia Sônia van Dijck

A

través do vidro, o desfile da paisagem, na manhã iluminada por um veranico inesperado àquela época. Bom não ter companhia na poltrona; podia estirar-se, tentar relaxar. Pouca gente ia para aquele fim de mundo, dito estação turística para amantes da natureza... Fora da temporada, deserto de gentes. Já vira cartazes em agências de viagem. Nunca tivera vontade de ir tão longe. Mas ele havia dito que o hotel era confortável 40 Continente Multicultural

e que a paisagem convidava a caminhadas. Poderiam conversar cercados pelo verde... talvez... – Pra que tão longe?... – esse pensamento ajudou a corrigir o romantismo em que começava a mergulhar desde que o ônibus ganhara a estrada. Tentar dormir um pouco. Ainda falta muito pra chegar. Pensar... Não pensar. “Tudo por uma boa causa...” e sorriu diante de seus pensamentos. Conheciam-se há muito. Coisa de amigos comuns, ainda que nunca tivessem sido muito chegados. Uma ocasião aqui, outra meses depois; opi-


niões sobre a banalidade do cotidiano, trocadas em alguma festinha de aniversário de amiga. Olhando bem, ele sempre estivera por perto, sempre aparecia; nem se lembrava, e eis que também fora convidado. – Oi, tudo bem? E como está aquela história do livro que você disse que ia começar a escrever? – Ah! Você se lembra?... Pois estou quase terminando... Mando convite para o lançamento. Foi mesmo muita atenção, ou ele tem boa memória para essas gentilezas. Fora um papo num grupinho, no apartamento de Heloísa. Lembravase. Heloísa também trabalhava com Literatura. Casada com um advogado, era natural que o colega de seu marido estivesse entre os convidados para o jantar. Aliás, isso era coisa de que Carlos gostava: encher a casa de gente e deixar Heloísa descabelada com os preparativos de cada jantar, explicando tudo outra vez à cozinheira, ensinando mais uma vez à copeira... Quase escreveu a conclusão da pesquisa ali mesmo, tantas foram as perguntas que lhe fizera; tamanho foi o interesse demonstrado. Só então ficou

sabendo que lera muito do que já publicara – provavelmente, não tudo, mas quase tudo – ficou com vergonha de conferir, mas que teve vontade... isso teve... E sorriu novamente ao olhar seus pensamentos... Meses de telefonemas, e, principalmente... emails – a Internet fazia aquele papo, que lhe parecia gostoso e inteligente, ficar mais perto. Descobriramse leitores do mesmo poeta... Ele também publicara poemas – droga! como não sabia disso? deixara escapar algum comentário... mas quando? Nem fazia muito tempo que o livro tinha sido publicado: ano passado. Talvez estivesse viajando... – Mande-me um exemplar. Vou gostar de ler. – Posso levar pra você. – Tudo bem. Se tiver saído, deixe na portaria. Lembre-se de escrever o número do apartamento. Aceita meus comentários? As primeiras rosas apareceram na manhã do lançamento do livro. Claro! tinha recebido o convite. Foi gentil com as rosas. À noite, agradeceu, e falou que estava comovida: adoro rosas. E foram muitas as rosas; depois, CDs, mais reuniões em casas de amigos.

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– Você também vai? Passo pelo seu prédio. É praticamente no caminho. Rodinha de mulheres, fofocas, risos. Ele se aproximara e ouviu que se falava de lingerie... Na caixa postal, encontrou uma pergunta: “Qual seu manequim?” Desde quando haviam começado a falar sobre coisas pessoais, gostos preferências? Havia intimidade, sim. Mas... desde quando?... Pergunta boba... era bom ter com quem falar de certas preferências... Lembrou-se que não apagara os e-mails. Conferiu: lua, caminhadas, livros e o poeta tão mencionado... Viúva há muito tempo, cultivara o esquecimento do compartilhar intimidades. No mundo acadêmico, disputara espaço e prestígio, muita polêmica, para chegar ao de igual para igual. Sem tempo para rosas. Poesia é um objeto de análise. A pergunta... Percebeu que falava de sua curtição por poesia e até por música popular deslavadamente romântica, com aquele amigo que já deixara de ser casual. E como havia esperado o e-mail depois do lançamento do livro... Valeu a pena esperar. Valeu a pena ter escrito o livro, mesmo que ele fosse o único leitor. Foi do precisamos nos encontrar que a viagem começou. Vamos conversar com mais calma, queria muito saber o que está fazendo agora. Mas

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você já sabe, não conversamos sábado passado no apartamento de Jorge sobre isso? Mas eu queria saber mais... E agora... nesse ônibus, indo pro fim do mundo. Ele vai estar na rodoviária; garantiu. Chegou de véspera... sabe como é: esposa viajando... Parece que já conhece o lugar... sei lá... que me importa?... A distância afasta o risco com a mulher dele... Tudo bem. Não vamos magoar ninguém... Ou, pelo menos, não é isso que queremos. Já falamos sobre isso em alguma mensagem. Depois de tanto tempo, vivida em um casamento que, finda a festa da descoberta da lua-demel, caíra no corre-corre do cotidiano, até o horrível acidente, acostumara-se à sua vida de compromissos (sempre urgentes). Sem mais trabalhos com o filho rapaz, a pesquisa ocupou todos os espaços. E as aulas... e os amigos... Tudo bem... até as rosas chegarem, os CDs, os papos sobre suas preferências... as mensagens... e muitos cartões virtuais... a vida para além do universo dos textos... E aí reencontrou seu imaginário... Conferiu o relógio. – Devo estar chegando. – Não vai subir comigo? – Não. Espero você arrumar suas coisas. Estou no bar.


ARQUIVO PESSOAL

Nem trouxe essas coisas todas... pensou, no elevador, olhando a sacola com o empregado do hotel... O laço de fita arrematando a caixa sobre a cama. Gentil ficar esperando no bar... O tempo de ler o cartão... abrir... Imaginouse travestida na camisola... bem... nem é camisola... mais pra baby-doll... as meias pretas... que liga!... – Deve haver algum engano... – Você não gostou? Só queria lhe fazer um carinho... – Deve haver algum engano... – Você disse que topava; tanto que veio. – Tem que haver algum engano. A camisola não me serve. – Quer dizer que não vai usar?...?... – Você exagerou... – Não!... só queria ver você vestida para mim... gosto que seja assim... você vai se acostumar e vai ver que não é nada demais... – Você me conhece; como pode me dar uma coisa daquelas? – Você é mulher. Vamos subir?... Ah!... o universo masculino... E todos os papos foram buscados na memória, todas as rosas foram reencontradas, todos os e-mails foram acessados... e o poeta que era “nosso poeta”... bem... esse voltou a ser só um nome na Literatura...

Vidinha besta! Depois de tanto tempo, teria um fim de semana... ainda pode dar certo... não custa nada tentar... quem precisa de camisola, meias pretas, liga, na hora?... não custa nada tentar... ainda “nosso poeta”?... Ele gozou na madrugada... sem fantasias... poesia é mesmo construção de palavras. Dormia. Satisfeito. – Bom dia. Chame um táxi, por favor. A cara sonada do recepcionista reacendeu no espanto. Sua sacola... o presente... ele vai entender... Esta BR não acaba mais... e esta chuva fora de hora... fim do veranico. Preciso fazer meu resumo... o prazo termina esta semana...

Sônia Maria van Dijck Lima nasceu em Alagoinhas (BA). É doutora em Letras (USP, 1989), com pós-ddoutorado em Literatura Brasileira (UNESP, 1998). Pesquisadora de arquivo, nas áreas de história da literatura e de crítica genética, é professora aposentada pela Universidade Federal da Paraíba, onde lecionou Literatura Brasileira. Entre suas publicações, citam-sse Um cavalheiro da segunda decadência: busca degradada de valores autênticos (1980); Hermilo Borba Filho: fisionomia e espírito de uma literatura (1986); Gênese de uma poética da transtextualidade: apresentação do discurso hermiliano (1992); Ascendino Leite entrevista Guimarães Rosa, 2ª ed., rev. (2000).

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ANTOLOGIA

10 POEMAS DE ADRIANO ESPÍNOLA Arte de amar Se tu queres amar, procura logo o mar. Ali enlaça o corpo salgado noutro corpo. Arde ao sol do momento. Esquece a alma no vento. Busca imitar a teia das ondas e marés. Dança na branca areia. Outro será quem és.

Num canto do bar, seu corpo ausente surge de repente no copo de vinho rouge, que trago sozinho, devagar, até você amanhã virar rosé, virá, quem sabe, blanc.

Verão

Chope

O sol é grande e quente. As aves e a praia, livres.

O ouro da tarde cai

Tua carne, alegre e ardente. Sobre ela, lerei todos os livros.

sobre o copo de chope:

O quadro O que mais dói não é o retrato na parede, mas o prego ali cravado, persistente, no centro da mancha do quadro ausente. 44 Continente Multicultural

Vinho

espuma e descida na garganta. Eu bebo a vida sim como quem decanta.


Centauro

Café

A grama

Metade de mim é o que não foi;

A manhã derramando-se

Na calçada passageira

a outra, o que poderia ter sido.

fumegante pela cidade.

– por entre pedras & passos,

Entre as duas (suponho) sou

Bebê-la antes que tarde.

rachaduras & cimento –

aquilo que sobrou: o sonho

Culinária

irrompe de repente

do presente feito de luz e sombra,

Fazer a própria comida: o amor integral,

denso, descabelado,

e carne, e agonia, irrecorrivelmente.

o pão, a lentilha, o poema grelhado,

um tufo de ais à beira

Enlace

o sal na medida: cozinhar lentamente

do pensamento: verde

Quem na minha cama me abraça e leva

essa fome indefinida.

fratura renitente.

Ou o braço de um rio leve por onde tudo flui e nada no leito de aço do momento? (Fecho os olhos) e singro e sinto: sou eu mesmo que abraço esse abismo dentro.

Vede. Vede.

DIVULGAÇÃO

pela madrugada? O vento que passa?

Adriano Espínola, nascido em Fortaleza – Ceará, em 1952, é poeta e ensaísta, professor da UFC e doutor em literatura brasileira pela UFRJ. Entre outros livros de poesia, publicou: Em trânsito – Táxi/Metrô (1996), Beira-sol (1997) e Fala, favela (1998), os três pela Topbooks. Seu livro Táxi ou poema de amor passageiro (São Paulo, 1986) foi traduzido para o inglês por Charles Perrone e publicado pela Garland Publishing (Nova York & Londres, 1992), na coleção World literature in translation. Participa de várias antologias nacionais e estrangeiras, entre as quais Sincretismo: A Poesia da Geração 60 (Rio, 1995), Poeti braziliani contemporanei (Veneza, 1997), Outras praias/Other shores (São Paulo, 1998), 41 poetas do Rio (Rio, 1998) e Literatura portuguesa e brasileira (Porto, 2000). No momento, prepara a edição de O lote clandestino & outros poemas, além do livro de ensaios Casa-grande & Pasárgada.

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ECOTURISMO

Secretarias do Planejamento e do Turismo e Desenvolvimento fazem cons贸rcio para restaurar engenhos da Zona da Mata Norte de Pernambuco

Mais que retratos na parede


Abaixo, detalhe do forro em policromia da Capela de São Francisco Xavier – Engenho Bonito , Nazaré da Mata Ao lado, vista geral da sede do Engenho Santa Fé, Nazaré da Mata

S

ímbolos daquilo que Tobias Barreto chamou de açucarocracia, os engenhos de Pernambuco são hoje, em grande parte, exemplos de ruína física, decadência econômica e descaso patrimonial e ecológico. Muitos dos mais imponentes deles quase não passam somente de “retratos na parede”, quando não desapareceram de todo. Atenta a isso, a arquiteta Vitória Andrade elaborou o projeto “Consórcio Engenhos do Norte”, como uma espécie de plano piloto de desenvolvimento para os municípios de Nazaré da Mata, Paudalho, Vicência e Buenos Aires. É um começo. Os engenhos escolhidos (Santa Fé, Lagoa Dantas, Várzea Grande, Ventura, Iguape, Bonito, Mussurepe e Cavalcanti) não são daqueles que têm nomes que fazem sonhar (expressão de Ascenso Ferreira), nem os mais representativos arquitetonicamente. Mas com eles começa um trabalho que já começa a dar os seus primeiros frutos. “O trabalho é desenvolvido em vários módulos, como os de formação humana, agro-ecologia, história local”, explica Vitória Andrade. “Neste mês, começam novos cursos de fruticultura, doces caseiros, pães e sobremesas”. Secretarias estaduais como a do Planejamento e do Turismo e Desenvolvimento Econômico estão implementando o projeto, com o apoio de outros órgãos, como a Companhia do Meio Ambiente – CPRH – e Fundarpe. O Sebrae também apóia o “consórcio”, que aposta no potencial dos empreendedores e no marketing dos municípios da Zona da Mata Norte. No plano original, cada um dos engenhos escolhidos tem características próprias como propulsor do desenvolvimento local, “tomando como critérios vocações e potencialidades existentes”: Continente Multicultural 49


Cada um dos engenhos escolhidos tem características próprias como propulsor do desenvolvimento local, com vocações já existentes Os 3000 m² de área construída do engenho Ventura (Nazaré da Mata), durante muitos anos, não tiveram grande serventia. Até que uma matriarca, Dona Maria Olimpia, com o apoio da prefeitura de Nazaré da Mata, passou a manter uma escola na área e a desenvolver outras atividades sociais e culturais, sob o comando do Clube da Mulher do Campo. É esse engenho, portanto, o aglutinador de cultura no “consórcio”, centralizando um trabalho de educação ambiental e de tradições locais. “Queremos a partir dele incrementar o turismo jovem, será o suporte da história local”, destaca Andrade.

Ao lado, detalhe do sino da Capela do Engenho de Várzea Grande, Nazaré da Mata No centro das páginas, Casa-grande do Engenho Bonito, Nazaré da Mata

Santa Fé (Nazaré da Mata) é batizado de “engenho de lazer” – lá funciona uma pousada com dez apartamentos e um restaurante. O “Consórcio Engenhos do Norte” propõe ampliação do seu potencial turístico. Lagoa Dantas (lugar onde se originou Nazaré da Mata) é chamado “engenho de eventos”. Embora mantenha a capela, esse engenho sofreu muitas modificações estilísticas ao longo do tempo. “A estrutura de diversificação prevista para esta propriedade será um espaço para eventos capaz de abrigar seis mil pessoas”, diz Andrade. “Baseado na idéia da criação de um cenário que simbolize a cultura secular da Mata Norte de Pernambuco, para atrair um público regional da fronteira da Paraíba até a capital que viabilize seis eventos por ano.” Dos oito engenhos escolhidos, Várzea Grande (Nazaré da Mata) é o mais valioso, sob o aspecto arquitetônico, e está bem conservado. Talvez por isso tenha sido a sua moita definida para abrigar uma espécie de casa de recepções e cerimônias. Mas o “consórcio” quer mais: adaptar a casa-grande para instalação de uma pousada, construção de cinco chalés, estímulo à floricultura irrigada e comercialização de flores tropicais. 50 Continente Multicultural

Massapê – “Durante o período decisivo da formação brasileira, a história do Brasil foi a história do açúcar; e no Brasil, a história do açúcar, onde atingiu maior importância econômica e maior interesse humano foi nessas manchas de terra de massapê, de barro, de argila, de húmus. Nessas manchas


Dos engenhos escolhidos, Várzea Grande é o mais valioso, razão pela qual a sua moita abrigará uma casa de recepções e cerimônias de solo encarnado ou preto se lançaram os alicerces dos melhores engenhos. Foram elas que mais se avermelharam de sangue nos tempos coloniais. Sobre elas tanto luso-brasileiro, tanto preto, tanto caboclo, tanto mulato morreu em luta com os invasores louros. Esses invasores não desejavam outras terras senão aquelas: as terras do massapê. As terras de barro gordo, boas para a cana-de-açúcar.” Com essas palavras de Nordeste – onde Gilberto Freyre explicava todo o complexo humano e natural que representaram os engenhos – talvez se pudesse justificar toda a história do Brasil nos seus primórdios até o século 19. Um dos bons exemplos dessa última etapa é o engenho Bonito (Nazaré da Mata), escolhido por Vitória Andrade para representar a história – entre os oito do seu projeto – por haver conservado intactas as velhas estruturas – mantém a casa-grande, capela e moita, mas a igreja está a precisar há muito de urgentes reparos, embora seja tom-

Detalhe da Casa-grande do Engenho Santa Fé

bada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), desde 1934. “Diversificação agrícola é o mote deste engenho, que se propõe tornar-se modelo nas áreas de fruticultura irrigada e beneficiamento”, diz a arquiteta. Se quem diz história completa-a com a idéia de tradição, o eleito para sintetizar isso foi o engenho Iguape (Vicência). Ele servirá de apoio para o restauro do engenho Poço Comprido, a ser realizado pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). O engenho Cavalcanti é o que representa a tecnologia. Ele “preserva a atmosfera, os processos e a forma de ocupação característicos da cultura do açúcar, retratando a evolução deste tipo ao longo do século 20.” Um dos emblemas, no entanto, mais explícitos da ação orientadora do “consórcio” é o engenho Mussurepe, localizado em Paudalho, por representar a ecologia. “Para nós a ambiência, a paisagem construída e ação integrada não são menos importantes que o patrimônio arquitetônico”, diz Andrade. Assim é que Mussurepe vai ter os seus cem hectares de área não servindo somente como santuário ecológico, mas como um convite à peregrinação religiosa (vizinhanças de São Severino do Ramo). Tudo para agradar aos devotos locais e aos romeiros da “religião” universal do turismo e do interesse econômico. Continente Multicultural 51


DIÁRIO DE UMA VÍBORA

Outro anjo torto Joel Silveira

1.

O Anjo

Não tenho certeza, nem poderia, mas desconfio de que quando nasci meu anjo da guarda, possivelmente um gozador, me disse: – Vai, Joel, te vira! Tenho feito o que posso.

4.

Pernas

2.

A falta

O que na verdade sempre me faltou na vida foi silêncio. Dentro e em volta de mim.

3.

Porres

De um velho conhecido, experimentadíssimo biriteiro: – Diz-me como é tua ressaca e eu te direi quem és.

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Já disse e volto a insistir: toda mulher de presidente da República, aqui ou em qualquer parte do mundo, devia ter pernas grossas. É inabalável convicção minha, fruto de anos e anos de demoradas e por vezes insones reflexões.

5.

Brasil

Desde que me tenho como gente, nunca, ao que lembre, vivi um só dia em que o Brasil não estivesse ao mesmo tempo à beira do abismo, em crise política, econômica e moral. O pior é que já me acostumei.


6.

Ridiculo

Nada pode haver de mais anacrônico e ridículo do que um terrorista com mais de cinqüenta anos.

7.

9.

Epitafio

Aviso a quem interessar possa: meu epitáfio (no caso de não me cremarem, o que seria mais conveniente), escolhido há anos, continua o mesmo: “Não foi professor nem aluno de ninguém”.

Meiguice

A meiga H. era tão triste que, quando ria, me dava vontade de chorar.

8.

Tristezas

O bom da tristeza, uma de suas poucas compensações, é que ela vai nos matando aos poucos, mas sem dor. A tristeza traz consigo a própria anestesia.

10.

Cartas

Carta boa é aquela que não necessita de resposta. Melhor ainda é a que nem ao menos precisa ser aberta.

Joel Silveira, ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.

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CIÊNCIA

O Atlas da Biodiversidade de Pernambuco radiografa os ecossistemas e indica áreas de conservação do Estado

Mapa dos seres

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

A

vivos

inda é muito recente, no Brasil, o estudo sistemático da nossa biodiversidade. Um passo a mais na direção de cobrir essa lacuna está sendo dado, neste mês de fevereiro, com o lançamento do Atlas da Biodiversidade de Pernambuco. Até agora um trabalho como este no Brasil só tinha sido realizado em Minas Gerais. A diversidade biológica é a variedade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo os complexos ecológicos de que fazem parte, assim como a diversidade de espécies, entre espécies e de ecossistemas. O novo Atlas, que, além de mapear os ecossistemas, identifica as áreas prioritárias de conservação natural do Estado, é resultado de um trabalho de dois anos de mais de 100 pesquisadores brasileiros, principalmente ligados às Universidades Federal e Federal Rural de Pernambuco, e está sendo publicado numa iniciativa da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente estadual. Foi, na verdade, o desenvolvimento de um levantamento precedente de dados naturais, o Diagnóstico da Biodiversidade de Pernambuco, dividido em dois volumes e disposto na biblioteca da Fundação Joaquim Nabuco. “Precisávamos transformar este material em algo mais acessível para pesquisadores e estudantes em geral. O Diagnóstico foi um trabalho mais restrito, com uma linguagem muito técnica”, afirma Alexandrina So-

O Atlas (no detalhe) cataloga as espécies terrestres e aqüáticas de Pernambuco

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Existem na Caatinga pelo menos 932 espécies vegetais, sendo 380 características apenas da região, e mais de 100 gêneros de peixes neste meio

A ação do homem produziu danos ambientais em áreas críticas, listadas pelo estudo A caatinga tem 932 espécies vegetais, das quais 380 características da região

breira, secretária adjunta de Ciência e Tecnologia do Estado. Para discutir a transformação desta linguagem científica em uma construção mais simples, foram realizados dois workshops com os profissionais envolvidos no projeto. Eles fizeram análises e correções, resultando numa publicação de 100 páginas, com 50x40cm e 18 mapas. É bilíngüe (português e inglês) e uma síntese de seu conteúdo foi produzida com o objetivo de ser distribuída em algumas escolas de Pernambuco. Alguns mapas de áreas prioritárias vão ganhar publicação eletrônica e estar disponíveis na internet no endereço www.sectma.pe.gov.br. Um dos pontos da análise do quadro natural de Pernambuco foi o levantamento das áreas consideradas críticas devido a ações antrópicas. Urbanização, turismo, construções de rodovias, poluição, entre outros, foram alguns dos fatores indicados que pre56 Continente Multicultural

judicam o meio ambiente. Acredita-se que o apontamento destas ações traga como conseqüência sua diminuição, evitando problemas mais graves, inclusive em setores sociais. “Estamos disponibilizando o Atlas para consultas em grandes negociações econômicas, como a instalação de uma fábrica de grande porte, por exemplo”, esclarece Alexandrina Sobreira. Esta pesquisa vai, então, servir como uma espécie de instrumento de políticas públicas, o que definirá a conservação das áreas naturais consideradas prioritárias do estado. O Atlas é dividido em sete partes. A primeira contém a apresentação de aspectos físicos do Estado, incluindo o arquipélago de Fernando de Noronha. Em seguida, aborda os aspectos biológicos. Estima-se que Pernambuco abrigue cerca de 90 mil espécies de organismos nos ecossistemas marinho e terrestre. São analisados dos arrecifes, que abrigam cerca de 650 tipos de moluscos, até a Floresta Atlântica, já muito devastada, e a Caatinga, grande mosaico vegetacional que cobre 85% do território do Estado. Os organismos vivos são divididos, para análise, em cinco blocos: vertebrados, invertebrados, fungos, plantas e algas. Dos vertebrados, identificaram-se cerca de 490 espécies de aves, 149 de mamíferos e 300 de peixes marinhos no Estado. Foram demarcadas em mapas 34 áreas prioritárias de conservação, observando fenômenos biológicos de migração e de reprodução. Apontaram-se ainda espécies endêmicas (típicas da região), ameaçadas, de importância econômica e as cinegéticas (para caça).


A flora é abordada, com recomendações para a conservação da biodiversidade

Constatou-se, na Caatinga, a existência de pelo menos 932 espécies vegetais, sendo 380 características apenas da região. A pesquisa também envolveu a biota aquática da Caatinga, registrando, pelo menos, 100 gêneros de peixes neste meio. Das 36.000 espécies de algas existentes, Pernambuco registra 1.880 de espécies marinhas e 1.550 de água doce. Porém, apesar de algumas áreas serem relativamente bem conhecidas, em outras localidades existem lacunas no conhecimento florístico. Foram delimitadas 14 áreas de prioridade, como a área entre o pontal de Maracaípe e a praia de Toquinho. Em Fernando de Noronha, a flora algológica ainda é pouco conhecida, sendo registradas seis áreas e determinadas 129 espécies. Das espécies de fungos, foram identificadas em Pernambuco cerca de 2.700, a maioria na Zona da Mata, o que corresponde a 54% dos tipos de fungos em todo o Brasil. O número de áreas prioritárias é de 31, das quais sete são demarcadas como de extrema importância. Não obstante o notável esforço de catalogação do conhecimento existente, os pesquisadores reco-

nhecem haver lacunas importantes, como, por exemplo, na área dos invertebrados. O Atlas faz, finalmente, uma análise do meio sócioeconômico pernambucano, abordando as principais atividades econômicas de cada região e estabelece as diretrizes para a conservação do meio ambiente, concluindo com estas recomendações: 1) Criação e implementação de áreas protegidas e ordenamento territorial; 2) Educação e conscientização pública para a conservação da biodiversidade; 3) Geração e difusão de conhecimento em ciência e tecnologia; 4) Criação e aprimoramento de instrumentos de financiamento e incentivos econômicos; 5) Fortalecimento e integração institucional; 6) Revisão da legislação pertinente e estruturação da Base legal e revisão da legislação existente.

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REPRODUÇÃO

MEMÓRIA

A morte de T. E. Lawrence: acidente ou “queima de arquivo”? Embora curta nos anos, a história de T. E. Lawrence é farta de lances cinematográficos, incluindo sua morte. Existem pistas de que o acidente de moto que o vitimou teria sido provocado pelo serviço secreto britânico

P

Fernando Monteiro

roduzido em 1962 (e recém-lançado em DVD), o filme Lawrence da Arábia tornou conhecida a figura de T. E. Lawrence, o herói inglês – e autor da obra-prima Os Sete Pilares da Sabedoria – nascido em 1888 e morto em 1935, num duvidoso acidente de moto. Pelo menos para três gerações, a aventura da vida desse orientalista se fez familiar através da produção de Sam Spiegel e David Lean (que lançou Peter O’Toole e Omar 58 Continente Multicultural

Sharif como astros internacionais), ganhadora de sete Oscars e relançada por duas vezes: em 1970 – com cortes que diminuíram seu tempo de projeção de 222 para 187 minutos – e 1990, restaurada na metragem original, com som Dolby e toda uma nova sedução dos admiradores desse clássico listado entre os dez melhores filmes da história do cinema (sem o qual Lawrence talvez houvesse permanecido apenas como um nome no panteão britânico e um escritor para iniciados em obras laterais da literatura).


HOWARD COSTER

Na página oposta, Thomas Edward Lawrence, na sua Brough potente e bem cuidada

T. E. Lawrence, herói inglês – e autor da obra-prima Os Sete Pilares da Sabedoria – nascido em 1888 e morto em 1935, num duvidoso acidente de moto

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Assim, pode se dizer que uma boa parcela do público conhece a figura ou já ouviu falar da saga do scholar de origem irlandesa que se vestiu de beduíno para sublevar as tribos árabes contra o império turco-otomano, durante a Primeira Grande Guerra – o que nos garante que, para os fãs da superprodução, a cena inicial está bem gravada na memória: Thomas Edward Lawrence, na sua Brough potente e bem cuidada, a toda velocidade pelas estradas vicinais de Dorset (o condado onde foi morar, de volta à pátria)... até sofrer o acidente que faz partir a narrativa cinematográfica, no retrospecto de uma vida extraordinária. Visualizado à perfeição – logo na abertura – o nada grandioso acidente dá partida ao mais que grandioso Lawrence of Arabia, mas a verdade é que a morte do herói nunca foi matéria pacífica e incontroversa, ao contrário do que sugere a seqüência. Pelo contrário, o seu mistério cresceu com o tempo – e já agora parece adensado com sérias suspeitas do

No filme (e nas incontáveis obras biográficas já publicadas) o que se vê e o que se relata é a manobra, fatal, do motociclista hábil – numa curva bem conhecida dele –, para evitar o choque com dois ciclistas que vinham em sentido contrário, surgidos meio do nada, numa estrada deserta. Por estúpida que fosse a morte – para um herói do porte de “Lawrence da Arábia” –, foi esse o fim aceito para um homem afeito à velocidade, esportista e soldado que desvia e derrapa em meio ao cenário bucólico do condado. Aconteceu apenas isso? Foi esse o inglório epílogo – de fato – para uma trajetória quase inacreditável? Embora curta nos anos, a história de T. E. Lawrence é farta de lances realmente cinematográficos, vividos como arqueólogo e, principalmente, como agente provocador operando no Oriente Médio desde 1912. Dois anos depois, ele estava lotado na seção cartográfica do Bureau Árabe, no Cairo, pronto para sublevar as tribos beduínas – de acordo com

De origem irlandesa, Lawrence se vestiu de beduíno para sublevar as tribos árabes contra o império turco-otomano, durante a Primeira Grande Guerra. Depois, ficou magoado com o governo da Grã-Bretanha, que não honrou seus compromissos com os árabes envolvimento do próprio serviço secreto de Sua Majestade (de tal forma que, rodado hoje, o filme de Lean certamente teria que incluir a hipótese de “encenação” de um acidente de estrada para encobrir a eliminação – bem planejada e ainda melhor executada – de “Lawrence da Arábia”). Portanto, é para começar a se esquecer a famosa overture ao som da trilha suntuosa de Maurice Jarre, enquanto cabe examinar, com olhos críticos, tudo que “falta” no roteiro (de Robert Bolt) filmado de modo totalmente crédulo pelo diretor britânico. Nele não aparece, na verdade, nenhum dos elementos de suspeita levantados na época, ou surgidos com o passar dos anos. Na cena de vozes discordantes – por ocasião do sepultamento, logo adiante – nada sequer sugere a tese do assassinato do “herói incômodo” e voando, na sua moto, talvez para caminhos laterais e perigosos, naqueles anos de sombra. Estamos falando da década de 30 e da pergunta que, desde então, só fez se reforçar de novas pistas pró “eliminação”: Lawrence foi vítima da velha queima de arquivo? 60 Continente Multicultural

estratégia, bem concebida, de abrir uma “frente oriental” que dividisse as forças alemãs aliadas dos turcos. Nesse intento, ora com autorização superior, ora tomando a iniciativa de um tenente mais do que temerário, Lawrence alcançaria alguns feitos militares memoráveis, como a tomada de Akaba (pela retaguarda, ao fim da travessia do pior dos desertos da região do Mar Vermelho) e de Damasco – capital da Síria – em 1916. Não contente com as vitórias de homem de ação, o brilhante guerrilheiro ainda provaria ser um erudito nos assuntos da região e escritor de talento, estudioso da paisagem oriental e das zonas obscuras de si mesmo, em pelo menos duas obras polêmicas e muito diferentes entre si: Seven Pillars of Wisdom – lançado pela Record no ano passado – e The Mint (em fase de preparação pela mesma editora). Ao morrer, o herói da Arábia era um homem ainda jovem (46 anos), com um físico de rapaz bem treinado e toda uma preparação militar, por sobre a experiência de caráter excepcional na Arábia. Haveria, portanto, bons motivos para o temor – de cer-


REPRODUÇÃO

tos setores da inteligência agitada por todo tipo de informação, nos anos pré-guerra – de que aquele velho “recruta”, recém-desmobilizado, viesse a se tornar uma espécie de reserva perigosa, algo como um “herói disponível” ou legenda recrutável por partidos que iriam dos nacionalistas irlandeses aos fascistas britânicos. As duas forças políticas coincidiam em muitos pontos de vista – e a segurança estava de olho nas pontes de ligação que trouxessem um homem como Lawrence para dentro de mais do que conversas na casa de alguns irlandeses notáveis. Colhê-lo na rede das “causas perdidas” não parecia tarefa muito difícil, muito impossível – em se tratando daquele soldado amigo de homens de letras (Bernard Shaw, E. M. Forster, Robert Graves etc.) e ser enigmático sob muitos aspectos. Além de imprevisível nas suas afeições e movimentos mais íntimos, Lawrence – ou “T. E. Shaw” – parece que havia despertado, por fim, para o amor do país tanto dos Shaw quanto do IRA: a Irlanda subjugada. Afinal de contas, o mesmo homem de ascendência “celta” – mais do que inglesa – um dia já ofendera o próprio rei da Inglaterra ao recusar uma das mais

altas condecorações do reino, na ocasião mesma da solene investidura, nestes termos: Jorge V – Meu caro coronel Lawrence, permita-me investi-lo oficialmente na Ordem do Banho, pelo seu grande mérito na longa e difícil campanha do Oriente Médio. Todos nós lhe somos imensamente gratos. Lawrence (hesitando, mas intimamente decidido) – Vossa Majestade queira me desculpar, mas fico extremamente embaraçado em aceitar a generosa oferta. Não creio que o possa fazer enquanto a Grã-Bretanha não houver honrado sua palavra para com os árabes. Eles foram esquecidos e traídos e não posso aceitar nada que lembre e confirme esta traição. Jorge V (surpreso e tentando contornar a situação de algum modo) – Percebo, percebo. Não estou bem seguro, mas me parece que estava previsto para o senhor algo diverso da Ordem do Banho, creio que a Ordem do Mérito. Que acha? Lawrence – Sinto profundamente ter que dizer a Vossa Majestade que não aceitarei nenhuma honraria enquanto a Grã-Bretanha não tiver mantido sua palavra junto aos árabes. Jorge V (violáceo e irritado) – Muito bem, coronel. Creio que concederemos a Ordem do Mérito ao Marechal Foch. Pode retirar-se. O diálogo foi anotado por testemunhas e Desmond Stewart é um dos autores que já divulgou, em letra de forma, a sua certeza de que “o rei Jorge V ficou convencido de que Lawrence poderia acabar se tornando um inimigo do próprio reino, na medida em que tinha condições de levantar os árabes contra as próprias autoridades britânicas”. A cena também faz falta ao filme de Lean, mas sua omissão maior é quanto ao “acidente” – pois aí temos um caso de versão totalmente confirmada pela encenação luxuosa. Naturalmente, não aparece o misterioso furgão preto – visto por Ernest Catchpole, – quando este cabo do Royal Army Ordenance Corps (morador de Dorset) olhava na direção da estrada, naquele momento, a uma distância de noventa metros da curva, momentos antes de ouvir o estrondo do choque e aparecerem os dois ciclistas “sãos e salvos”, plantados na beira do caminho do desastre. Nessa altura, Lawrence já deveria estar morto, ou nos estertores, lançado da moto abalroada para o céu chuvoso, na curva de uma vida que talvez procurasse uma causa, uma nova finalidade longe dos

Em 1914 Lawrence estava lotado na seção cartográfica do Bureau Árabe, no Cairo, pronto para sublevar as tribos beduínas

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PIERRE VERDY / AFP

Ao morrer, o herói da Arábia era um homem ainda jovem (46 anos), com um físico de rapaz bem treinado e toda uma preparação militar, por sobre a experiência de caráter excepcional na Arábia

REPRODUÇÃO

desertos da sua juventude. O rebelde do Hedjaz, o Hamlet (que se perguntava, a toda hora, pelo sentido de existência traída pelas “criaturinhas a construir abrigos” na sombra poluta da dádiva, duvidosa, da vida), entretanto sobreviveria, por seis dias ainda, aos terríveis ferimentos no corpo já calejado – e para espanto dos médicos que o receberam no hospital militar de Bovington. Em face de que necessidade – pergunta-se – o serviço secreto britânico fez deslocar seis agentes com ordens para permanecerem, vinte e quatro horas, à cabeceira e à porta do quarto do paciente? Ao mesmo tempo, outro grupo era enviado para “guardar” a pequena casa de campo do herói resistentemente incômodo – controlando todos os acessos a Clouds Hill, junto com a polícia local... até se dar o óbito do proprietário, precisamente às oito horas e quinze minutos da manhã de 19 de maio de 1935. Lawrence estava morto, afinal. As nuvens se adensavam lá fora (e em toda a Europa, desde a ascensão de Hitler ao poder, dois anos antes). Durante esse tempo, o ex-oficial estivera alistado – por sua vontade – como soldado raso em vários acampamentos do exército inglês e da RAF, no continente e na Índia (sempre sublevada). Hoje está claro o que muitos documentos oficiais da época sugerem nas entrelinhas: o serviço secreto temia o próximo movimento do seu ex-agente muito mais do que receava a ação de estrangeiros trabalhando, no território britânico, contra o Reino Unido. Para a segurança interna, Lawrence era misterioso demais – e “explosivo em associação eventual

com a direita, o separatismo irlandês e outros redutos de terrorismo”. Para a extrema direita (e esquerda também), a legenda do herói de guerra seria uma bandeira de valor inestimável – e a experiência do coronel na guerra de guerrilha poderia ser útil, até militarmente, nos planos futuros de qualquer facção ideológica que pretendesse tomar o poder na Inglaterra. Instruídos por Londres (ou Berlim, quem sabe), os fascistas ingleses já vinham assediando “Lawrence da Arábia” através de visitas e cartas que procuravam tocar feridas e mágoas do herói ainda ressentido com o desfecho da Revolta Árabe. “Ali está um material excelente para ser trabalhado nos ventos ruinosos que sopram a favor de Hitler” – conforme anota Compton MacKenzie (diretor do serviço secreto em Chipre). Para os órgãos de segurança internos, o agente que fora o jovem Thomas Edward Lawrence já dera “o que tinha a dar”, como especialista oriental – e o que havia a temer agora era o “deserto da sua alma” ou, para usar da metáfora de MacKenzie, “o caminho mais curto que ela abriria, na desmobilização, para as ofertas dos tentadores de todas as bandeiras”. Naqueles anos, prestes a ser desmobilizado, Lawrence se preocupava com a sua inadaptação à vida civil, após atingir a idade limite para um soldado raso. Sabe-se que o ex-coronel acalentava a idéia de escrever uma biografia do líder nacionalista irlandês Roger Casement – executado por traição, em 1916 – e que mantinha contatos com Cliveden, Mosley e outras figuras do fascismo inglês (o que está bem documentado, através de cartas e documentos da espionagem). De passagem, diga-se que a facção socialista – na pessoa de Ernest Thurtle – também já fizera suas tentativas, e que tais manobras, de uns e de outros, eram perfeitamente identificadas pelo autor de Seven Pillars of Wisdom. “Os trabalhistas julgamme um espião imperialista e os conservadores consideram-me um bolchevista...” – ele escreve (numa carta a John Buchan), em 1931. Tanto para um lado quanto para o outro, a política de segurança inglesa certamente não quis arriscar com qualquer possível tendência do herói apto e desocupado – e sem dúvida que alguma sentença não escrita se pôs em marcha, no sentido de cortar o mal pela raiz, naquele caso, naquela estrada, naquele ano de sombra de 1935. Fernando Monteiro é escritor

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sociologia

Contra uma ordem injusta que produz um abismo cada vez maior entre ricos e pobres, o sociólogo francês Pierre Bourdieu constrói uma obra respeitada e polêmica

Luciano Trigo

A rendição dos intelectuais Continente Multicultural 63


O “intelectual midiático” Bernard-Henri Lévy e, na página oposta, Tony Blair, “sumidade da globalização neothatcheriana”

JACQUES DEMARTHON / AFP

Q

ual deve ser o papel dos intelectuais nos movimentos de luta social hoje? Quais são os efeitos nefastos do neoliberalismo? Como deve ser redesenhado o Estado diante da globalização? Os donos dos meios de comunicação de massa contribuem para reduzir a desigualdade do mundo ou são cúmplices dos poderosos contra os “condenados da Terra”? Quem responde estas perguntas, em entrevista exclusiva concedida por telefone e e-mail, é o sociólogo francês Pierre Bourdieu, que aos 70 anos continua enragé. Desde os anos 60, quando pôs a nu as mazelas do sistema educacional francês em dois ensaios célebres – Os Herdeiros e A Reprodução – Pierre Bourdieu se especializou em revelar e interpretar os mecanismos ocultos de reprodução do sistema social. Contra a perpetuação de uma ordem injusta, que produz um abismo cada vez maior entre ricos e pobres, o sociólogo construiu uma obra que se divide em duas vertentes.

Existem cada vez mais escritores, e mesmo filósofos, que devem sua celebridade mais à televisão que aos seus livros. A confusão que se estabelece entre a celebridade baseada nas obras e a baseada na visibilidade na mídia é cada vez maior A primeira mais teórica, que inclui o livro fundamental A Economia das Trocas Simbólicas e o mais recente Um Convite à Sociologia Reflexiva, que será lançado no Brasil pela editora Relume-Dumará; o livro nasceu de um seminário na Universidade de Chicago organizado por Loïc Wacquant, e discute os principais conceitos do pensmento de Bourdieu, em parte atualizações de idéias de Marx, Durkheim e Max Weber. A segunda vertente é constituída por “textos de combate”, intervenções críticas sobre as questões mais urgentes de nosso tempo, caso de Sobre a Televisão, Contrafogos e do volume coletivo A Miséria do Mundo. Desde o início dos anos 90, Bourdieu vem se concentrando na crítica aguda aos males da globalização e do pensamento único, neoliberal, que tomou conta do planeta. Você acredita que os intelectuais devem formar a base dos movimentos de luta social. Os intelectuais, contudo, muitas vezes se isolam uns dos outros, quando não se põem a serviço dos mecanismos de opressão, como cúmplices tácitos e passivos. 64 Continente Multicultural

O papel dos intelectuais não é mais aquele que lhes atribuía certa tradição revolucionária – ou que eles próprios se atribuíam. Isso posto, penso que os sociólogos que, por sua atividade, são dotados de um certo conhecimento da tecnologia social de organização dos grupos poderiam não somente estimular os diferentes movimentos a superar as forças que os separam – ligadas, naturalmente, à competição entre os aparelhos dirigentes – mas também ajudá-los a inventar novas formas de coordenação, graças às quais poderiam trabalhar em comum, sem perder sua liberdade e originalidade. Você já fez vários inimigos, que criticam e sabotam a sua obra. A que você atribui isso? Ao fato de a sociologia incomodar, ao revelar os mecanismos invisíveis que perpetuam a dominação? Eu não diria “a” sociologia, mas a sociologia tal como eu a pratico – e que julgo ser a verdadeira e científica sociologia, naturalmente, pois se não fosse assim faria outra. Mas entendo que existem outras


DAN CHUNG / AFP

maneiras de se conceber a sociologia, e de praticá-la, que incomodam muito menos, ou que chegam a se acomodar com aqueles que governam o mundo. Por exemplo, a sociologia de Anthony Giddens, que se tornou uma das sumidades da globalização neothatcheriana à la Tony Blair. Mas nós, franceses, também temos nossos Giddens e nossos Blair, que se situam num grau de hipocrisia política superior, e portanto são ainda mais perigosos. Sim, a sociologia incomoda, particularmente os dominantes, e especialmente porque, como você disse, ela revela os mecanismos através dos quais a dominação se perpetua. Ela incomoda em especial todos aqueles que, ativa ou passivamente, se fazem cúmplices dos dominantes no seio do campo intelectual e do campo jornalístico, e que estão prontos a se mobilizar a qualquer momento contra os “criadores de caso”. Você afirma que a lógica neoliberal pode ter efeitos nefastos no universo dos intelectuais e artistas. Por quê? O aristocracismo, a incompetência e a superficialidade não bastam para dar conta da rendição dos intelectuais. Também têm seu peso fatores como a dedicação total às bolsas de pesquisa universitária, que freqüentemente isolam os melhores intelectuais em torres de marfim. Isso sem falar nas seduções diretas dos poderes: penso sobretudo nos poderes midiáticos, no jornalismo e na televisão, que podem assegurar lucros materiais não desprezíveis, que explicam em parte o verdadeiro vício em televisão de alguns intelectuais midiáticos como, por exemplo, Bernard-Henri Lévy e Philippe Sollers, dois personagens intelectualmente insignificantes. Podem assegurar também lucros simbólicos e uma forma de notoriedade superficial e efêmera, semelhante à que detêm os apresentadores e

animadores de televisão. Existem cada vez mais escritores, e mesmo filósofos, que devem sua celebridade mais à televisão que aos seus livros. Nos meios de comunicação, a confusão que se estabelece entre o princípio tradicional de celebridade baseado nas obras, e o princípio midiático, baseado na visibilidade na mídia, é cada vez maior. Se essas pessoas me inspiram escândalo, é porque elas operam uma espécie de desvio do capital simbólico coletivo que foi acumulado coletivamente, ao longo dos séculos, como, no caso dos escritores, o capital dos grandes modelos do passado, Joyce, Faulkner ou Kafka. Você se mostra particularmente crítico em relação ao papel dos meios de comunicação. Você acha que os jornalistas detêm um monopólio de fato da palavra? A mídia controla o acesso ao espaço público? Não há dúvida de que o campo jornalístico – e não este ou aquele jornalista em particular – detém um monopólio de fato sobre o acesso ao espaço público. Os intelectuais “autônomos” – por oposição aos intelectuais midiáticos – só podem chegar ao grande público através dos jornais e da televisão, na medida e apenas na medida em que eles têm algo a dizer que, num determinado momento, represente um interesse para um indivíduo ou grupo que detenha um certo poder midiático. Sobram, naturalmente, os livros, os filmes etc, mas a audiência destas produções depende muito da lógica dos aparelhos de difusão e da ação dos meios de comunicação. A crítica independente na França praticamente deixou de existir, e os grandes jornais, apoiados, aliás, pelos prêmios literários, são inteiramente controlados pelos editores e por uma pequena rede de escritores midiáticos, que são ao mesmo tempo críticos, a serviço desses editores e dos escritores midiáticos que lhes servem. Pode-se assim assegurar um sucesso extraordinário a escritores rigorosamente nulos, e ignorar solenemente os verdadeiros escritores, que não interessam aos editores e jornalistas – aliás cada vez mais numerosos entre aqueles que julgam e recebem prêmios literários. No caso do cinema, é ainda pior. Esta é uma das razões pelas quais eu criei uma pequena editora, chamada Raisons d’Agir, que publica, a baixos preços, de um lado livros de combate, como Os Novos Cães de Guarda, de Serge Halimi, sobre as conivências entre os grandes jornalistas, e de outro livros de pesquisa, difíceis de ler e de vender, mas indispensáveis a uma vida intelectual digna deste nome. Continente Multicultural 65


Você é conhecido pela revolta contra um mundo economicamente injusto, mas também pela esperança de um milagre social que seria provocado pela resistência espontânea dos desempregados e grevistas, por exemplo. Mas predomina em seus textos um certo pessimismo, apesar de sua intenção de “desfatalizar” o mundo. Você ainda acredita na revolução e na utopia? Ainda é possível uma nova onda revolucionária ou, ao menos, contracultural? É certo que as forças de resistência parecem frágeis diante dos novos senhores do mundo, que possuem ao mesmo tempo imensos impérios econômicos e imensos poderes simbólicos, nas editoras, na imprensa e nos meios de comunicação audiovisuais – e que não hesitam em intervir na vida intelectual, literária e artística. Além disso, as novas forças econômicas têm como efeito secundário destruir ou enfraquecer todos os “coletivos”, da família aos sindicatos, dissolver todos os laços de solidariedade, especialmente aqueles construídos contra a lógica bárbara do lucro puro, como as associações de ajuda mútua etc. Como

estes sim, seriam capazes de me fazer mergulhar no pessimismo absoluto. Pessoas que provocam verdadeiros milagres, comportamentos de resistência, e que tornam realidade movimentos de sucesso sociologicamente improvável, como o dos desempregados. Você defende uma reforma do Estado, em contraposição à globalização? Certamente, na situação da maioria dos Estados europeus, não se poderão conservar os direitos adquiridos que o Estado garante sem transformar profundamente o Estado e o que se chama de pensamento de Estado – e, conseqüentemente, entender este pensamento no que ele tem de universal, de irredutível a interesses corporativos de todas as partes associadas ao Estado. Resumindo, para responder de forma mais precisa, eu penso que somente uma organização na forma do Estado é capaz de contribuir ao avanço dos interesses coletivos, desde que invente novas formas de controle dos funcionários de todos os escalões. Essa organização estaria capacitada a pro-

Se a resistência ao imperialismo econômico e cultural dos países ocidentais assumiu a forma de um fundamentalismo religioso, é porque os países afetados por esse imperialismo não dispunham de nenhum outro recurso cultural descrever tudo isso, sobretudo para pessoas que participam da festa, como os jornalistas – e não somente como espectadores, mas como atores, jornalistas-vedetes que recebem enormes salários – sem parecer estar errado, sem parecer pessimista ou mesmo um conservador ranzinza? Mesmo assim, afirmo que sou um otimista incorrigível. “Quem aumenta sua ciência aumenta sua dor”, diz o Eclesiastes, e é verdade que, quanto mais aprendo sobre o mundo social, pela pesquisa e pelas leituras, mais tenho motivos para me desesperar diante do futuro. Mas, por várias razões, sobretudo talvez por causa do horror que me inspiram certas hipóteses e os intelectuais negativos, não posso deixar de me engajar no combate. Existem também homens e mulheres admiráveis – uso essa palavra apesar de não gostar de hagiografias – que conheci graças às ações políticas em que me envolvi. Líderes de movimentos de minorias que são uma antítese e um antídoto perfeitos aos intelectuais negativos e aos apparatchiks de partido ou sindicato que, 66 Continente Multicultural

mover ações e reflexões universais, sobretudo nos domínios jurídico e político, numa base mais ampla, européia e não apenas alemã ou francesa, ou mundial e não apenas européia. O mundo hoje sofre as conseqüências dos atentados terroristas em Nova York e Washington. Não havia alternativas de resistência para os muçulmanos? Se a resistência ao imperialismo econômico e cultural dos países ocidentais, especialmente os Estados Unidos, assumiu a forma de um fundamentalismo religioso, é porque os países afetados por esse imperialismo não dispunham de nenhum outro recurso cultural mobilizável e capaz de mobilizar. Pode-se lamentar, como fazem muitos árabes e muçulmanos, que a resistência à dominação e ao imperialismo não tenha encontrado outro meio de expressão senão o da tradição religiosa mais tradicional e mais arcaica. Mas não se deve esquecer que as estruturas


STAN HONDA / AFP

econômicas e sociais que a dominação colonial ou neocolonial contribuiu para perpetuar não foram feitas para favorecer uma modernização da mensagem religiosa, e que os países ocidentais e seus serviços secretos trabalharam incansavelmente, como fizeram em muitas outras partes do mundo, para combater e matar na raiz todos os movimentos políticos e culturais progressistas. Este é o drama dos condenados da Terra, sul-americanos, africanos ou asiáticos, indivíduos ou povos enganados pelos do-

minantes e que, por uma trágica ironia da História, só podem contar, para defender sua causa, com aqueles que, em outros tempos, tinham monopolizado, em nome de um imperialismo disfarçado de internacionalismo, a defesa dos direitos dos indivíduos e das nações em busca de libertação.

Os Estados Unidos têm que demonstrar mais humildade? Não existe mais uma exceção americana. E os americanos não poderão ter paz, nem no mundo nem entre eles, se não pararem de pensar como juízes encarregados de enunciar o direito, ou como policiais encarregados de fazer executá-lo, e passarem a aceitar ser, como todos os outros, ao mesmo tempo juízes e partes, autorizados portanto a pedir contas mas, reciprocamente, obrigados também a prestar contas, sobretudo em relação à sua política externa. Não estou exortando os americanos, como faz o Presidente brasileiro, por exemplo, a “dividir o poder”. É ingênuo, em relação a esses temas e com esses interlocutores, que mostram uma ferocidade cada vez mais cruel nas negociações comerciais com os países do sul, apelar aos sentimentos tão invocados da justiça e da igualdade democrática entre as pessoas e as nações. É preciso se conscientizar de que não há mais espaço para a lógica da arbitrarieade, do Quia nominor leo (“Porque me chamo leão”), como diziam os antigos, num universo onde os mais fracos podem, movidos pelo desespero, chegar a ações extremas, recorrendo sem limites a todas as armas de que dispõem, em face de poderes que, não reconhecendo nenhum limite, não têm moral para exigir dos mais fracos que ponham limites a seus já enfraquecidos poderes.

Um homem caminha próximo aos escombros do World Trade Center

Luciano Trigo é jornalista

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ENTREMEZ

O Dragão da Ruindade Contra a Santa Besteira O axioma de que tudo o que o povo faz é verdadeiro e bom é burrice

J

oão Cabral assumia não gostar de música. Sua enxaqueca crônica teria a ver com isso? Luis Fernando Veríssimo afirmou numa entrevista que só consegue ouvir os compositores barrocos. E Chico Buarque, para surpresa, só escuta Tom Jobim, Caetano e Gil. Mesmo sem esses ouvintes, todos os anos são lançados inúmeros discos de música popular. Depois de uma reação quase xenófoba à música baiana, proibindo-se os trios elé-

Ronaldo Correia de Brito 70 Continente Multicultural


tricos no Carnaval de Olinda e a execução de axé music no Galo da Madrugada, os pernambucanos, insuflados de pernambucanidade, investiram forte na sua produção. Além de promoverem os grupos populares de maracatus, cavalos marinhos e caboclinhos, abrindo espaço para que se apresentassem fora das comunidades de origem, em eventos tão inusitados como o Abril Pro Rock, houve um forte investimento nos grupos pára-folclóricos de música e dança. No lastro desse movimento, que mistura num mesmo balaio de pernambucanidade artistas diversos como Dona Selma do Coco, Alcimar Monteiro, Otto, Mestre Ambrósio, Devotos, Matala, Cascabulho, Lenine, Maracatu Nação Pernambuco, Porto Rico, Estrela Brilhante, Reginaldo Rossi, Antonio Carlos Nóbrega, Cordel de Fogo Encantado, Mestre Salustiano e Cumadre Fulorzinha, para lembrar apenas alguns, muitos artistas e pesquisadores surgiram, provenientes da classe média e universitária. Um crítico de música afirmou, numa mesa-redonda de etnomusicologia, que os sulistas e estrangeiros se impressionam com essa capacidade dos pernambucanos se encantarem com músicas tão diversas, aparentemente incompatíveis. Que o nosso público se agita do mesmo jeito com o rock do Matalanamão ou a rabeca do Mestre Salustiano, dançando e cantando sem parar, em festivais onde eles se apresentam no mesmo palco. Será que Oswald de Andrade tinha razão em afirmar a nossa antropofagia? Ou será que, transtornados pela doença do nosso tempo, o excesso de informação e a cultura massificada, perdemos a crítica e o poder de discernimento? O que faz uma pessoa gostar indistintamente de Dona Selma do Coco e Lenine? Talvez vocês pensem que eu estou querendo reduzir a questão da música produzida em Pernambuco a uma simples afirmativa ou negativa – gosto ou não gosto. Não gosto de Dona Selma do Coco nem como cantora, nem como

dançarina. No máximo posso achá-la engraçada. Não aprecio o seu maior sucesso Pega, pega a minha rola. Ela não trouxe nenhuma contribuição à música brasileira. Terá valido o seu esforço de transpor um cotidiano pobre de tapioqueira da Sé de Olinda para os palcos do mundo. Fora isto, a sua trajetória musical nada significa. Na mesma conferência de etnomusicólogos que já mencionei, os palestrantes tomavam como medida de valor dos artistas, ou como auge de suas carreiras eles terem se apresentado no Faustão ou nos palcos da França. Isto não conta para mim. O Domingão do Faustão é um dos piores programas da TV brasileira, não mostrando nada de qualidade e tendo por único objetivo atingir pontos altos no Ibope. E a França há muito deixou de ser uma referência de cultura para o mundo. Basta ver o sucesso que Paulo Coelho faz entre os franceses. Usar critérios de mídia e vendagem para definir qualidade é infame. A briga entre baianos e pernambucanos gera um equívoco: as pessoas passam a acreditar que a música pernambucana é necessariamente boa. Não é. Grande parte da música atualmente produzida pelos nossos artistas é tão ruim quanto a axé music. Doam-se os brios. Igualmente, insistir no axioma das esquerdas de que tudo o que o povo faz é verdadeiro e bom, é outra burrice. Há uma excelente música de tradição popular, depurada pelo tempo, que de tão refinada tornou-se erudita. E há um verdadeiro lixo produzido por artistas populares e de classe média a partir dessas matrizes musicais e poéticas guardadas pela tradição. Um exemplo fora de Pernambuco é o dos repentistas paraibanos Raimundo Nonato e Nonato Costa, imbatíveis no repente clássico, e deploráveis quando compõem e cantam música sertaneja, nos moldes de Chitãozinho e Xororó. É cedo para saber onde vamos dar com os burros. Precisamos retomar critérios de qualidade e deixar de balançar a cabeça em afirmativa para tudo o que se faz na terrinha. Já passamos por muitas modas. A máquina geradora de consumo é o ser mais antropofágico do planeta. A ela não interessa o que entra pela boca. Basta que a merda se transforme em ouro.

Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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iro Antonio Dias PANORÂMIC A EM 40 ANOS DE INVENÇÃO 72 Continente Multicultural


REPRODUÇÃO

Olho sobre telas: Antonio Dias mostra produção de 40 anos no Museu de Arte Moderno Aloisio Magalhães, do Recife Marco Zero: O romance histórico Ana Terra, de Érico Veríssimo, é parte da saga de dois séculos do povo rio-grandense Boca de cena: Peça é baseada em conto de Hermilo Borba Filho sobre a repressão sofrida pelo comunista Paulo Cavalcanti Quadro a quadro: Filme de animação digital utiliza atores de verdade para dar realismo aos movimentos das personagens Qualquer música: Nação Zumbi assina contrato com a gravadora Trama e lança seu novo disco em junho de 2002 Sabores pernambucanos: Mais que só uma bebida, a cachaça carrega em seus barris, desde seus primórdios, a marca do irredentismo brasileiro Continente Multicultural 73


OLHO SOBRE TELAS

ANTONIO DIA S

COERÊNCIA NA METAMORFOSE Ao lado, Nota sobre a Morte Imprevista (1965) Acima Faça Você Mesmo: Território Liberdade, detalhe (1968)

O artista apresenta no MAMAM a exposição O País Inventado, uma panorâmica de 40 anos de arte, nos quais passou por uma infinidade de suportes, reinventando-se a todo instante em temas e formas diferenciados, mas sempre mantendo uma coerência conceitual contínua Marco Polo

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

A

ntonio Dias é artista paradigmático da contemporaneidade. Não elege um suporte fixo sobre o qual poderá equacionar conceitos, questionar propostas ou, simplesmente, expressar idéias e emoções. Ao contrário, parte do princípio de que cada obra de arte exige um processo e um suporte específicos, únicos adequados a torná-la funcionalmente visível e eficazmente certeira. Tal concepção deveria gerar, como de fato ocorre, uma diversidade de execuções que quebra completamente o que pode haver de engessamento no chamado “estilo”. O estilo de Dias é justamente não ter estilo. Melhor espelhamento do que se compreende como arte contemporânea não poderia haver. Graças a esta postura, o artista utilizou os veículos mais variados – da tela à instalação, passando pelo filme, vídeo, objeto, disco,

escultura, fotografia. Também variou as temáticas e o modo de se exprimir, indo do derramamento ao despojamento, às vezes misturando num mesmo trabalho, descontraidamente, manifestações formais conflitantes, mas mantendo, no entanto, surpreendente coerência. Segundo a crítica de arte Lígia Canongia, ele sustenta, ao longo dos anos, “uma firme estrutura lógica e conceitual por entre as coisas. E foi esta capacidade de tramar ordens distintas e pólos divergentes, de entrelaçar as contradições, que o tornou um dos expoentes da arte brasileira e internacional”. Antonio Dias estará mostrando no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, MAMAM, no Recife, a exposição O País Inventado, uma panorâmica de 40 anos de carreira, em que

criou uma obra referencial para a produção da arte contemporânea no Brasil. Antonio Dias nasceu em Campina Grande, Paraíba, em 1944. Em 57 transfere-se para o Rio de Janeiro, onde estuda com o gravurista Oswaldo Goeldi. Em 65 participa da Bienal de Paris, onde ganha o Prêmio de Pintura. No ano seguinte, com bolsa do governo francês, passa a residir na capital francesa. Em 68, por ter sido fotografado participando das manifestações de protesto dos jovens, não consegue renovar seu visto de permanência e muda-se para Milão. Daí para a frente, parte para uma carreira internacional que o leva a ter, hoje, como moradia, a Alemanha. O artista começou a produzir nos anos 60, aderindo à Nova Figuração, utilizando elementos da Pop Art, como as imagens de história em quadrinhos. Logo em seguida, envolve-se na onda de experimentalismos que dominou a época, transitando por uma grande diversidade Continente Multicultural 75


Antonio Dias sustenta, ao longo dos anos, uma firme estrutura lógica e conceitual por entre as coisas. Foi esta capacidade de tramar ordens distintas e entrelaçar contradições que o tornou um dos expoentes das artes brasileira e internacional 76 Continente Multicultural


IMAGENS: REPRODUÇÃO

de suportes. Dois exemplos do variado trabalho dessa fase são, o primeiro, A Ilustração da Arte/Um & Três/Chassis, criado com ripas de madeira pintada, em diferentes configurações de uma mesma estrutura, ocupando espaços maiores e menores, numa crítica à relação entre obra e mercado, haja vista a frase que acompanha o trabalho: “Toda redução ou ampliação é uma questão de acomodação”; o segundo exemplo é a obra Poeta/Pornógrafo, formada por dois semicírculos duplos, um azul (o poeta) e outro rosa (o pornógrafo), em néon, nos quais, segundo Moacir dos Anjos, diretor do MAMAM, há “o pulso contínuo de um

resultado de um corte em uma sexta parte de um quadrado, dando ao objeto uma forma final de seis faces, ao invés de quatro (e às vezes desdobrando um quadrado menor). Muito se tem teorizado em torno desta forma, que cria uma espécie de “falta” no quadrado (e outras vezes o desdobra). Segundo o artista, a questão é puramente geométrica. “Tenho horror ao quadrado”, diz ele. Partindo sempre de impulsos emocionais, depois depurados intelectualmente até o máximo, num refinado jogo de ocultação/revelação, Antonio Dias construiu uma obra ao mesmo tempo múltipla e coerente

Anatomias/Like Passion (1999) Na página anterior, O País Inventado (1976)

movimento que jamais se completa, que se prolonga no percurso infinito que simultaneamente aproxima e separa territórios simbólicos distintos”. No final dos anos 70, Antonio Dias passa a trabalhar numa aldeia de artesãos de papel no Nepal. Faz experiências no fabrico desses papéis artesanais, inserindo chás, curry, ervas, barro e óxido de ferro, a fim de alcançar tonalidades e texturas originais. Sobre esse período, diz Dias que “sobretudo interessava-me construir trabalhos cuja forma fosse determinante no processo de produção”. Ao longo de toda sua carreira, uma forma em L surge quase como uma assinatura. Ela é

justamente por perseguir, implacavelmente, esta metamorfose contínua, reflexo de um mundo fragmentado e protéico, onde tudo pode se transformar em obra de arte, expressão e questionamento, desde que sob a orientação de uma mente criativa. Exposição: O País Inventado, de Antonio Dias Local: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, MAMAM. Rua da Aurora, 265. Boa Vista. Recife – PE. Fone: (81) 3423.2761/3007. Abertura: 14 de março, às 20h Visitação: De 15 de março a 28 de abril Horário: Terça a Domingo, das 12 às 17h Ingresso: R$ 1,00

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MARCO ZERO

ANA TERR A : UMA “ TR A GÉDIA FUNDADOR A” Ana Terra Alberto da Cunha Melo (Para Érico Veríssimo) Árvore pesada de flores, minha amada, na primavera: tão só naquele descampado, quando as águas caíam, era uma cruz alta a florescer no chão tão triste do meu ser, assim pensava Pedro, bem antes de possuir sua Ana Terra, e ser morto em campos distantes, campos de coxilhas e serras, sob as armas dos irmãos Terra.

Alberto da Cunha Melo

S

ó deve ousar escrever quem tem alguma coisa dizer. Daí a minha desconfiança e não adesão às vanguardas formalistas brasileiras que defendem o princípio de que, em literatura, a forma é o conteúdo. Melhor seria dizer que o importante é a forma como o conteúdo é enunciado. No entanto, a grandeza de uma obra literária não depende, necessariamente, do quantum de invenção formal possa oferecer do ponto de vista estrutural. Mas, se usa velhas estruturas, exige-se-lhe originalidade, criatividade, no âmbito textual. Essas reflexões já antigas vieram-me à tona diante da nova edição da narrativa Ana Terra, de Érico Veríssimo. Geralmente classificada nas bibliografias do autor gaúcho como “fragmentos” da trilogia O Tempo e o Vento, mais especificamente do seu primeiro romance histórico, O Continente, estruturalmente é um relato linear, nesse particular não diferindo em nada da tradição romanesca ocidental. Textualmente, no entanto, alia-se a uma não muito praticada incursão no romance histórico, no Brasil, que possui, no entanto, bons momentos,


como A Muralha, de Ninah Silveira de Queiros, ou O Tigre dos Palmares, do silenciado alagoano Adalberon Cavalcanti Lins. O romance histórico, e Ana Terra nesse particular o exemplifica magnificamente, é uma espécie literária que faz uma fusão entre o que realmente aconteceu e o que poderia ter acontecido, para usar aqui a distinção que faz Aristóteles entre o histórico e o poético. No plano poético ou ficcional, aquela narrativa de Veríssimo, como bem o disse Maria Thereza Camargo Biderman, “alcança equilibrar-se entre as exigências da epopéia e as da novela”. O pequeno relato, “desentranhado” da trilogia O Tempo e o Vento, que se compõe de três romances históricos, O Continente, O Retrato e O Arquipélago, conjunto que estaria, no plano ficcional, para a formação da sociedade gaúcha, como Casa-Grande & Senzala, no plano ensaístico, para a sociedade nordestina (apesar de sua amplitude nacional), parece-me sumariar a saga do povo rio-grandense da metade do século 18 à metade do século 20. Assis Brasil considera Ana Terra, talvez por isso mesmo, uma “tragédia fundadora”. Eu li Ana Terra em alguma quadra da década de 70 (a 1ª edição da narrativa é de 1971) e, até este mês de janeiro de começo de século, tudo o que minha memória guardara era a imagem de uma matuta bonita, triste e silenciosa. Mas – não sei se foi Drummond quem disse – se um conto deixar a lembrança de um chapéu, é um bom conto. Ela é uma das mais extraordinárias personagens da ficção brasileira. Fiquei sabendo, pela Internet, que numa pesquisa realizada entre 40 intelectuais gaúchos, Ana Terra foi o segundo

nome mais lembrado entre vinte personagens da literatura rio-grandense. Érico Veríssimo é um grande criador de personagens, ao lado, por exemplo, de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Estava eu no meu canto, um dia, fumando o meu cachimbo, quando fui interrompido por um grupo de colegiais que queriam me fotografar. Antes que minha vaidade crescesse, já me sentindo poeta famoso, um garoto explicou que iria usar minha imagem para um estudo que a turma estava fazendo sobre o personagem Capitão Rodrigo, de Érico Veríssimo. Além de Ana, a narrativa tem, ainda, dois fortíssimos personagens, o mestiço Pedro Missioneiro e o patriarca casmurro Maneco Terra, que não gostava nem de soldado nem de padre e que achava sem serventia “tudo que é bonito”. Em Ana Terra, não há descrições cansativas. As que existem estão lá para expressar o estado de espírito dos personagens, para criar a atmosfera narrativa, uma atmosfera que se parece, às vezes, com a do western norte-americano varrido pelos ventos uivantes de Yorkshire Moors (lembranças de Emily Brontë?). Nesse clima, nesse mundo sem calendários nem relógios, uma jovem mulher libera seus instintos vitais e consegue, inconscientemente, provar que Eros é mais forte do que Tânatos. Ana Terra é uma das primeiras e mais fortes personagens da literatura brasileira a denunciar a opressão da mulher na sociedade brasileira, mas sem comícios, com a força, apenas, da coragem e da beleza. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo e-mail: alberto8@hotlink.com.br

Serviço Ana Terra – Érico Veríssimo Editora Globo S.ª – São Paulo 160 págs. Preço – R$ 5,30


DOIS PONTOS

DIVERTIMENTO S OFISTIC ADO Como todo francês, Pierre Assouline não resiste a uma digressão. Quase sempre espirituosa, diga-se, a bem da verdade. Como também não resiste à criação de frases de efeito como: “Nunca se sabe, jamais, o que o passado nos reserva”. Em outras partes de seu livro, faz enumerações cumulativas, num verdadeiro exercício de estilo, como quando diz: “Ao encantamento sucedera-se esse surdo segredo silencioso, o tédio. Não um tédio desculpável (...) Era antes aquele tédio imperdoável (...) Esse medíocre tédio (...) Esse sufocante tédio (...) Esse inominável tédio (...) Esse miserável tédio (...) Esse insondável tédio (...) O tédio conjugal, um deserto”. Há também a repetição de “achados” que termina por anulá-los: “(...) aquela forma de miséria que não diz o seu nome”, e, dez páginas adiante: “Uma impotência que não dizia seu nome”. Apesar disso, Vida Dupla, escrito pelo também jornalista e biógrafo (assina o relato das vidas de Simenon, Hergé e Cartier-Bresson), é um bom livro. Tem como herói, ou melhor, anti-herói, um desencantado pesquisador de arte rupestre, Rémi Laredo, casado com uma advogada convencional e tendo um caso ardente

Vida Dupla, de Pierre Assouline. (222 págs., R$ 24,00). Globo.

COMÉDIA

AMOR

Anunciado como “o romance que inaugura e encerra o pós-modernismo na literatura brasileira”, Pinto Calçudo ou Os últimos dias de Serafim Ponte Grande, do jornalista Sérgio Augusto de Andrade retoma os personagens de Oswald de Andrade e, através de uma comédia de estilos, faz uma feroz crítica ao pós-moderno. Nova edição reescrita.

O poeta e ensaísta César Leal estréia como romancista em Minha Amante em Leipzig que, bem a propósito, leva o subtítulo de Ensaios sobre as Artes, as Armas e o Amor. O livro relata as conversas entre um jovem poeta de Frankfurt com sua amante, a prussiana Senhora von Hardenberg, casada com seu orientador nos estudos da Universidade.

Pinto Calçudo ou Os últimos dias de Serafim Ponte Grande, de Sérgio Augusto de Andrade. (205 págs., R$ 22,00). Globo.

Minha Amante em Leipzig – Ensaios sobre as Artes, as Armas e o Amor, de César Leal. (247 págs., R$ 25,00). Calibán.

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com uma psicanalista extremamente fogosa e imaginativa. O romance começa com uma cena hilariante, em que a amante quase decepa o pênis de Remi ao fazer sexo oral com ele dentro de um carro cujo airbag dispara acidentalmente. Logo depois ela some e começa um clima de suspense, entremeado pelas considerações sobre o vazio e a paranóia causados por nosso mundo contemporâneo, culminando com um final tão inesperado quanto surpreendente. Enfim, diversão garantida. E sofisticada, ainda por cima.


A S REL AÇÕES ENTRE MER COSUL, POLÍTIC A E CULTUR A Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, professor de Ciência Política da UFPE, acaba de lançar o livro “Mercosul e Política” (Editora LTR, São Paulo, 112 págs., R$ 24,00), em que discute o Mercosul à luz das teorias sobre a integração regional, analisando também o tema das vantagens comparativas, sob o ângulo das regiões brasileiras. Para ele, “no início, nos governos Sarney e Alfonsin, o Mercosul era um projeto ousado que cobria desde o desenvolvimento comercial e a adoção de políticas econômicas comuns até iniciativas na área do conhecimento e cultura. Quando o neoliberalismo chegou ao Brasil, com Collor, o projeto passou por uma revisão e foi despido de seu conteúdo holístico e cultural. Mercosul passou a ser sinônimo de crescimento das trocas comerciais entre os países membros. O debate sobre a construção do Mercosul virou quase monopólio de especialistas em comércio exterior, para os quais cultura é irrelevante. Assim, de um projeto de regionalismo aberto, o Mercosul virou um eufemismo para os dogmas da economia política dos credores externos e das grandes corporações, da ideologia darwinista do cada um por si imbuída no discurso das vantagens comparativas. É este processo que mostro e discuto no livro. Eu insisto sempre que devemos resistir a sedução de copiar processos externos, como o da União Européia, ao pé da letra. As dificuldades

III Congresso Brasileiro de Escritores A União Brasileira dos Escritores (UBE) promove, no auditório do Recife Palace, de 25 a 28 de março, o III Congresso Brasileiro de Escritores. A intenção do evento é fazer com que a literatura volte a ser discutida na mídia. Através de ensaios, rodapés ou colunas permanentes, o

da região ainda são o fantasma do populismo, da corrução, da desestabilização política e as desigualdades sociais. O caminho para mostrar que o projeto Mercosul não está morto passa pela criação de um organismo regional para defender a democracia e os direitos humanos, e lutar contra os fatores desestabilizadores, a desigualdade, a corrução e a droga, no Cone Sul. Passa ainda por projetos de apoio a iniciativas culturais e acadêmicas regionais; pelo apoio à média, pequena e micro empresas e a iniciativas para diminuir as diferenças sociais e regionais. Finalmente, será preciso a retomada de ações de políticas macroeconômicas comuns, no quadro de um acordo visando à criação, no futuro próximo, de uma moeda comum do Mercosul”.

jornalismo pode incentivar o hábito da leitura pela população em geral, e ajudar na divulgação do que nossos escritores estão produzindo. O congresso, que tem como tema A Literatura na Imprensa, contará com a presença de escritores, editores, livreiros, estudantes e críticos especializados. Maiores informações pelo telefone (81) 3441.7488.

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BOCA DE CENA

ZUMBA

A GL ORIOS A VIDA E O TRISTE FIM DE ZUMBA-SEM- DENTE Linguagem brechtiana e dramaturgia popular nordestina em espetรกculo sobre repressรฃo


DIVULGAÇÃO

N

o teatro do Armazém, a partir do dia 16 de fevereiro, entra em cartaz Zumba – A Gloriosa Vida e o Triste fim de Zumba-sem-dente. Com adaptação, dramaturgia e encenação de Carlos Carvalho, a peça é baseada no conto de Hermilo Borba Filho, O Traidor, que narra a repressão sofrida pelo comunista Paulo Cavalcanti. O espetáculo alia a linguagem acadêmica ao universo popular da dramaturgia nordestina para contar a história de Zumba, um personagem que transita entre uma atmosfera real e ficcional da cidade de Palmares. A temporalidade não linear do texto, somada ao seu dinamismo e criatividade, faz com que o arcaico e o moderno dialoguem e resulte em uma narrativa nordestina, brasileira e universal. Zumba utiliza uma linguagem brechtiana em sua encenação. Narrações antecipam cenas e conflitos e servem de recurso para quebra da emoção e crítica de situações e personagens. Para realizar este trabalho, os atores pesquisaram profundamente durante nove meses a história política nacional, além de terem recebido treinamento de comportamentos corporais e danças populares. A interpretação dos atores é ainda complementada pela exibição de imagens cinematográficas que se intercalam ao texto. O elenco é formado por Anamaria Sobral, Andreza Alves, Jones Melo, Ivo Barreto e Quiercles Santana. A direção de Arte é assinada por Uziel Lima, a música por André Freitas e coreografias por Raimundo Branco. A montagem já recebeu elogios de crítica e público no IV Festival Recife do Teatro Nacional em 2001 e entra agora em cartaz com a produção da C² Comunicação.

Zumba – A Gloriosa Vida e o Triste fim de Zumba-sem-dente Teatro do Armazém A partir de 16 de fevereiro (haverá recesso durante a Paixão de Cristo) Todos os sábados, às 21h Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia)

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ALCIDES FERRAZ

MISTÉRIO BUFFO

N

a Idade Média, os Mistérios, representações sacras, eram muito difundidos. E para que servissem como veículo de discussão de idéias e síntese de contos e crônicas, eles eram contados de forma profana. Os Giullare, artistas populares que faziam esta fusão, foram responsáveis, então, pelo surgimento deste misto de divertimento e didatismo chamado Mistério Buffo. A representação desta linguagem de teatro medieval é concretizada a partir dos textos do dramaturgo italiano Dario Fo. A Ressurreição de Lázaro; A Paixão Segundo o Jogral; A Moralidade do Cego e do Coxo; O Louco aos Pés da Cruz e Maria na Via-Crúcis são as histórias que compõem o espetáculo Mistério Buffo, em cartaz no Teatro Hermilo Borba Filho a partir de 2 de março. São seis atores – brincantes que conduzem a peça interagindo com o público, sempre em contato direto. A platéia, então, é envolvida em um jogo imaginário, na qual a divindade e seu poder são discutidos. A produção do espetáculo fica a cargo das Parcas Sertanejas e Artistas Reunidos. A tradução e

A EMPAREDADA

A Emparedada Teatro Hermilo Borba Filho A partir de 1º de março Todas as sextas-feiras às 20h Ingressos: R$ 15 (adulto); R$ 7,50 (meia); R$ 4 (preço especial) 84 Continente Multicultural

JORGE CLÉSIO

D

ia 1º de março entra em cartaz no teatro Hermilo Borba Filho o espetáculo A Emparedada, com direção de Augusta Ferraz. O texto é uma adaptação escrita por Cláudio Aguiar da trama folhetinesca A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. A peça toma como base aspectos importantes da história recifense, abordando costumes e atitudes ligados à sociedade do século XIX. A trama envolve as malandragens do personagem Leonardo Dantas, galã da história, que se envolve com duas amigas de infância. Por causa destas conquistas amorosas, uma jovem engravida e acaba sendo punida pelo pai de uma maneira tradicional para as famílias mais severas da época: sepultada viva na parede da casa onde morava. O comportamento desta sociedade conservadora é retratado cenicamente de vários modos, incluindo o figurino de época, a maquiagem e a cenografia (de Marcondes Lima) e até a composição musical do espetáculo (de Virgínia Barbosa e Adriana Millet). A Emparedada é uma realização da companhia Parcas Sertanejas e tem no elenco Jorge de Paula, Nicole Pastana, Sidney Eiras, Geane Bezerra e Helijane Rocha, entre outros.

a adaptação do texto de Dario Fo são de Accioly e Michelotto. No elenco, Augusta Ferraz, Nicole Pastana, Enne Marques, Diana Ramos e Uliana Omanguim. Direção de Marcondes Lima. Mistério Buffo Teatro Hermilo Borba Filho A partir de 2 de março Todos os sábados às 20h Ingressos: R$ 15 (adulto); R$ 7,50 (meia); R$ 4 (preço especial)


QUADRO A QUADRO

O DESPERTAR DA ANIMAÇÃO

Kleber Mendonça Filho

Cenas do filme Waking Life, de Richard Linklater IMAGENS: REPRODUÇÃO INTERNET

A tecnologia digital vem destronando a Disney no gênero desenho animado e barateando custos de produções alternativas, como Waking Life

É

irônico que Hollywood inaugure um Oscar específico para longas-metragens de animação no ano em que o império Disney está em cheque artisticamente. A clássica animação feita à mão que gerou Bambi, Pinóquio e O Rei Leão não tem dado os mesmos resultados nas bilheterias de neo-clássicos recentes realizados com imagens digitais, como nos filmes da produtora californiana Pixar, aliada da Disney nos lançamentos de Toy Story 1 e 2, Vida de Inseto e, na última safra, Monstros S.A. O filme Shrek, da concorrente Dreamworks, também tornou-se um marco digital, em 2001, com enorme sucesso popular, no mundo inteiro, enquanto desenhos Disney como A Nova Onda do Imperador e Atlantis decepcionaram financeiramente. Continente Multicultural 85


Acima, cena de Shrek, e ao lado, cena de Monstros S.A.

A nova tecnologia de animação parece estar quebrando um monopólio de quase 70 anos, período em que o gênero “desenho animado” parecia marca registrada da Walt Disney Productions. Os filmes digitais da Pixar e Dreamworks têm mostrando ao mercado mundial um novo olhar, e a Disney tenta correr atrás, pois sabe que a Pixar, depois de quatro acertos monumentais, já pode andar sozinha e, o pior de tudo, livre do contrato que a prende à Disney. Depois de Monstros S.A., só resta mais um projeto feito na Pixar, Finding Nemo, com data de estréia prevista para o verão de 2003. Como os outros, deverá ser contratualmente lançado nos cinemas pela casa do Mickey. Lucros são divididos 50-50. Num outro segmento do cinema, a tecnologia digital vem barateando custos e tem oferecido cardápio cada vez maior de recursos para realizadores. Correndo por fora da grande indústria, há obras como Waking Life (Vida Desperta), de Richard Linklater, diretor texano que fez Antes do Amanhecer e Suburbia. O filme foi rodado com uma câmera digital, utilizando atores de verdade. Posteriormente, as

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Shrek, da Dreamworks, tornou-se marco digital de enorme sucesso no mundo inteiro, enquanto Atlantis e A Nova Onda do Imperador, da Disney, decepcionavam financeiramente


Cenas do filme Waking Life, de Richard Linklater

Waking Life utilizou atores de verdade, depois “cobertos” por intervenções gráficas. O efeito é desconcertante, pois a movimentação é real e as cores e texturas, impressionistas imagens foram “cobertas” com intervenções gráficas por uma equipe de 30 animadores, dando a cada personagem e ambiente texturas próprias. O efeito é desconcertante, pois a movimentação é real e as cores e texturas impressionistas. O filme estreou no último Festival de Veneza, já como objeto de culto. Foi lançado em circuito reduzido nos Estados Unidos, circulou por festivais internacionais e, segundo a Fox, não terá distribuição comercial no Brasil. Waking Life é estranhamente sedutor. Representa uma ousada tentativa de expressão através do cinema como trampolim para os sonhos. Não há uma trama, mas um personagem guia que pula de uma discussão filosófica para outra, de uma reflexão sobre a vida para a próxima. São quase debates acadêmicos ambientados em mesas de bar, domicílios, na rua, no carro, no nosso mundo, exceto que parece um sonho. É como se Linklater tivesse condensado discussões importantes que o marcaram na universidade, e, junto aos seus amigos, transformado-as num filme. No tiroteio ininterrupto de palavras (o filme é uma maratona para tradutores e espectadores impacientes), há pensamentos de Philip K Dick, Kierkegaard, Dostoievsky, Nietzsche e Sartre jogados numa betoneira de imagens estranhamente intelectualizadas por esse filme aparentemente pop e jovem, talvez pernóstico e relevante. O elemento de estranheza – e o grande plus de Waking Life – é ressaltado pelo visual consistente de um sonho, que leva o espectador a uma outra dimensão não apenas pelo que está sendo dito, mas também, e principalmente, pelo que está sendo visto. Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema

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JORGE CLÉSIO

QUALQUER MÚSICA

NOVOS HORIZONTES PAR A A

NAÇÃO ZUMBI A banda deve entrar em estúdio em março e finalizar o disco até o final de abril

A

Nação Zumbi, grupo pernambucano que surgiu com destaque no cenário da música a partir do movimento manguebeat, na década de 90, pretende inovar em 2002. A banda assinou contrato com a gravadora Trama, dirigida por João Marcelo Bôscoli, no período em que encerrava seu contrato com o selo YBrasil? (dezembro 2001), pelo qual lançou seu terceiro álbum de estúdio, Rádio S.amb.A. Jorge Du Peixe, vocalista da NZ, comentou sobre a intenção do grupo em trabalhar com a Trama, afirmando que já gostava da forma como a 88 Continente Multicultural

gravadora se empenha pelos seus artistas. Bôscoli também alardeava seu interesse pela NZ. Diante do flerte entre as partes, o conterrâneo Otto, contratado pelo selo há três anos, encarregou-se de fazer a ponte, quando convocou o grupo – Jorge, Lúcio Maia (guitarra), Alexandre Djengue (baixo), Toca Ogam (percussão), Gilmar Bolla 8 (percussão) e Pupilo (bateria) – a participar de seu recente álbum, Condom Black . O novo disco da NZ tem previsão de lançamento para junho de 2002. A banda deve entrar no estúdio em março e finalizar o disco até o final de abril. A pré-produção será realizada no Recife.


NOTA S Depois de ter realizado dois trabalhos para o público infantil – o musical Pipoquinha e a opereta Histórias Cantadas – a cantora Fátima Marinho parte, agora, para uma produção adulta, mas que, como as anteriores, destaca e valoriza a riqueza da cultura regional. Quinta Estação é um trabalho que prestigia inúmeros elementos da música popular, de cantigas de pastoris pernambucanos a frevos de bloco, maracatus e forrós, a maioria dos ritmos são contemplados neste trabalho. No CD, Fátima Marinho canta adaptações de músicas compostas por grandes nomes como Nelson Ferreira, Capiba e Luís Gonzaga. A direção musical é de Ademir Araújo, os arranjos de corda foram realizados por Nil Dragão, Spock e Edson Rodrigues e a sanfona é de Nilva do Arcordeon. O CD tem, ainda, a participação especial de Claudionor Germano em uma recriação de Verde-Mar-de-Navegar, faixa 8. Quinta Estação custa R$ 20,00 e pode ser adquirido pelo telefone (81) 99797427 ou pelo e-mail fatimapipoquinha@aol.com

METAL NAS LOJAS

A banda Rage Against The Machine lança em 26 de fevereiro seu novo CD pelo selo Epic. Depois da saída do vocalista Zack de la Rocha, quem comanda o grupo é Chris Cornell, ex-Soundgarden. Ainda para este mês, também chega às lojas o novo álbum da banda Hipocrisy, que, após o sucesso de Damned In Black, promete aumentar a dose de seu black metal.

SUPERSONIQUES

As Aventuras do Tenente Douglas é o nome do CD que a banda pernambucana Supersoniques lança no mercado em fevereiro deste ano. Criado em março de 1996, o grupo é formado por quatro músicos recifenses: Marcelo Gomão, Zé Guilherme, Gerardo Lopes e Igor Gazatti. A Supersoniques teve influências dos Beatles, Sonic Youth e Mutantes em sua formação, o que proporcionou à banda um som com melodias dissonantes, sempre dando ênfase a experimentações vocais. O grupo já gravou duas demo-tapes – Essa não é a demo dos Supersoniques e Dagobah Sessions – e fez participações especiais em duas coletâneas – Recife Rock Mangue II e Apocalipse 2001. O primeiro disco da banda (EP 1999) teve sua prensagem esgotada. Agora, a Supersoniques lança um trabalho com treze faixas que marcam os seus seis anos de carreira. Gravado pelos estúdios Fábrica e lançado pelo selo Manguenetude (distribuição nacional pela Sony Music), As Aventuras do Tenente Douglas vem com 90% de seu material gravado com a banda tocando ao vivo em estúdio. Neste disco, o baixo de Zé Guilherme é substituído temporariamente por Ricardo Praga. Mais informações sobre a banda no site www.supersoniques.com, página de artista pernambucano mais visitada em 1999. JORGE CLÉSIO

FÁTIMA MARINHO


ALMANAQUE

IMAGENS REPRODUÇÃO

80 ANOS DA SEMANA DE ARTE MODERNA

Capa do Catálogo da Semana de Arte Moderna, de Di Cavalcanti

Além de servir como marco referencial do modernismo brasileiro, a Semana foi um dos eixos da transformação da provinciana São Paulo na capital cultural do país

H

á oitenta anos, no Teatro Municipal de São Paulo, foi inaugurada a Semana de Arte Moderna. De 11 a 18 de fevereiro, houve um pequeno festival de discursos, poesia, música, artes plásticas. Cem anos depois da independência política, o Brasil começava o seu “grito do Ipiranga” também no campo das idéias estéticas. O modernismo do país nada tinha a ver com movimento homônimo dos países hispânicos, que florescera alguns anos antes. Era, na verdade, um misto de herança do passado, nacionalismo e adaptação das vanguardas européias. O movimento teve vários líderes. Os mais conhecidos deles que, nos anos heróicos de aglutinação foram solidários em objetivos comuns, terminaram por se desentender e se afastar, como 90 Continente Multicultural

foi o caso de Oswald e Mário de Andrade. Este chegou mesmo a fazer um longo revisiosismo crítico, vinte anos depois da Semana, numa conferência, em que apontava as suas próprias limitações e as dos modernistas. Além de servir como marco referencial do modernismo brasileiro, a Semana foi um dos eixos da transformação da provinciana São Paulo na capital por excelência do mercado cultural do país, a ponto de Mário de Andrade, poucos anos depois, dizer que aquela cidade era o “único centro tentável” para as artes plásticas. Ele, em carta a Manuel Bandeira, comentava o interesse de Vicente do Rego Monteiro em fazer uma mostra de sua pintura. Ele teve quadros expostos no teatro durante a Semana – dez obras deixadas com Ronald de Carvalho um ano antes. Foi, portanto, uma participação meio acidental, não


programática. Monteiro sempre reclamou da falta de reconhecimento do seu trabalho e, até os dias de hoje, é, de fato, pouco festejado entre os historiadores e críticos de arte (a grande exceção é Walter Zanini, que sobre ele escreveu um livro definitivo – Vicente do Rego Monteiro – pintor e poeta). Também o poeta Manuel Bandeira participou um pouco a reboque da Semana. Não compareceu, mas teve o seu poema burlesco “Os Sapos” elevado à categoria de hino modernista, pois ironizava os parnasianos. No entanto, o próprio autor reconheceu a sua dívida com os “mestres do passado”. Dentro da linha de exaltação dos valores tradicionais, Gilberto Freyre liderou, no Recife, quatro anos depois da Semana, o Movimento Regionalista. Embora pareça uma espécie de constestação aos grupos paulistas e cariocas cujas idéias eram difundidas no Recife por Joaquim Inojosa, o regionalismo freyriano é, objetivamente, uma síntese, pois, os modernistas de primeira hora, além de não estarem muito distantes dos “passadistas” que combatiam, procuravam também “redescobrir” o Brasil, que foi o efetivamente o trabalho realizado pelo sociólogo e antropólogo de Casa-Grande & Senzala.

Retrato de Ronald de Carvalho, 1921 de Vicente do Rego Monteiro

À esquerda, Auto-retrato, 1922, de Tarsila no Amaral Ao lado, Retrato de Mário de Andrade, 1922, de Tarsila do Amaral

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SABORES PERNAMBUCANOS

CACHAÇA NÃO É ÁGUA A bebida que ajuda a suportar o frio, dá disposição para o trabalho e serve como remédio para quase tudo “Pode me faltar o amor, disto até acho graça. Só não quero que me falte a danada da cachaça.” Cachaça – música carnavalesca de Mirabeau Pinheiro e Castro Lobato

F

oram feitos um para o outro. De algumas parcerias famosas pode-se dizer isso. Adão e Eva, Romeu e Julieta, Dom Quixote e Sancho Pança, Lampião e Maria Bonita, Capibaribe e Beberibe, Olinda e Recife. Também feijão com farinha, queijo com goiabada, filé com fritas, café com leite. Além de cachaça e Carnaval. A cachaça tem antecedentes históricos que remontam ao Egito antigo. Onde havia o costume de inalar vapores de líquidos fermentados, diretamente no bico da chaleira, para curar moléstias. Mais tarde, os gregos conseguiram produzir uma água que pegava fogo – acqua ardens. Novidade logo exportada para o Oriente Médio e Europa – onde era conhecida como eau de vie (água da vida). Mas

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 92 Continente Multicultural


a técnica da destilação só veio depois, com os árabes. Os índios brasileiros não a conheciam. Usavam garapas à base de frutas ou raízes mastigadas para produzir fermentação. Depois vieram os primeiros engenhos e teve início a produção do açúcar. A espuma da primeira fervura do suco da cana, por não ter serventia, era então colocada em cochos, ao relento, para alimentação dos animais. Esse mosto fermentava com facilidade; e, meio por acaso, pouco a pouco, os escravos começaram a apreciar suas qualidades. Nascia assim aquela bebida estranha a que chamavam “aguardente”. Era o fim das rudimentares garapas fermentadas dos índios. Sem contar que essa nova bebida tinha vantagens suplementares evidentes: ajudava a suportar o frio, dava disposição para o trabalho duro no canavial e servia como remédio para quase tudo – reumatismo, sífilis, picada de cobra. Com o tempo, deixou, entre nós, de ser privilégio apenas dos escravos. Passando a freqüentar, também, as mesas dos senhores de engenho – pura ou como matéria-prima de licores. Foi se aprimorando. Já não era feita do caldo da cana, mas das borras do seu mel (melaço). Substituindo-se, também, o processo de fermentação rudimentar pela destilação em alambiques – primeiro de barro, depois de cobre. Vindo, a seguir, as primeiras destilarias ou “casas de cozer méis”. Estava pronta a cachaça, como a conhecemos hoje. Tendo então início a decadência da bebida oficial do colonizador português, a bagaceira – feita da borra do caldo da uva. Mais que só uma bebida, a cachaça carrega em seus barris, desde seus primórdios, a marca do irredentismo brasileiro. A corte tentou proibir, primeiro seu consumo, depois sua própria fabricação – afinal essa concorrência diminuía o uso da “baga-

ceira” (e dos tributos daí decorrentes). Em vão. Nessa briga tendo os nativistas apoio, inclusive, dos comerciantes que usavam cachaça (e também fumo) como moeda na compra e venda de escravos. Acabou elevada à condição de símbolo de resistência à dominação portuguesa. Bebida dos patriotas, que recusavam os vinhos estrangeiros. Especialmente portugueses. Em 1817, na revolução pernambucana, em Canudos, brindar com vinho ou outra bebida importada significava alinhar-se aos colonizadores. Até que, em 1755, um terremoto arrasou Lisboa. E arrasou, também, os cofres da realeza. Passando no ano seguinte os portugueses a aceitar oficialmente esse consumo de cachaça, no Brasil – em troca dos tributos daí decorrentes, claro. Chegando mesmo a adotá-la em festas religiosas, com o nome de “quentão”.


Apenas no século 18 aguardente e cachaça passaram a ser, entre nós, sinônimos da mesma bebida. Independente de suas origens (caldo de cana ou melaço) ou dos processos pelos quais eram produzidas (fermentação ou destilação). Mas o nome definitivo tem origem na Espanha – “cachaza” – bebida, por lá, produzida com a borra do vinho. Mas o nome não se firmou em Portugal. Nem na África – onde ainda hoje é conhecida como “aguardente”. A rigor esses nomes variam segundo o lugar e a matéria-prima utilizada na sua fabricação – na Itália, uva para fazer “grappa”; na Alemanha, cereja para “kirsch”; na Escócia, cevada ou milho para “whisky”; na Rússia, centeio para “vodka”; no Japão, e na China, arroz para “sakê”; em Portugal, uva para “bagaceira”. O Brasil hoje luta, em organismos internacionais, pela certificação do nome “cachaça”. Para que seja aplicado apenas ao destilado produzido a partir da cana-de-açúcar. Como o México fez com a tequila e a França com o cognac e o champagne. Para os entendidos beber exige ritual. É sobretudo não esquecer de, antes ou depois de entornar o copo, jogar um pouco no chão. Para os santos. A primeira referência a esse costume,

na literatura, está em “Fedon” – diálogo de Platão que narra toda a cena da morte de Sócrates, onde se mostra o velho mestre bebendo cicuta e jogando algumas gotas no chão, em homenagem aos Deuses. Depois, em Roma, era presença nos libatio (oferenda), quando se brindava aos deuses Lares, protetores da família e da casa (lar). A partir de então aparecendo em cerimoniais religiosos indígenas, africanos (candomblé) e até católicos – entre estes o auto de Natal denominado “Baile da Aguardente”; em que São Benedito era cantado, nas trovas populares, como “o santo preto, que bebe cachaça e ronca no peito”. É hoje, por toda parte, bebida da moda. Ninguém mais pensa que cachaça é água. A Associação Internacional de Bartenders elegeu a caipirinha de pinga como um dos melhores coquetéis do mundo. A revista inglesa Drinks International classificou-a como uma das dez mais famosas misturas do planeta. A americana In Style foi mais longe, afirmando que caipirinha foi o drink mais importante do século. O mundo, quem diria, acabou se curvando à cachaça. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

CAIPIRINHA INGREDIENTES • Cachaça (nova, saída diretamente da destilação para a garrafa, que as envelhecidas modificam o gosto.) • 1 limão (de preferência “galego” ou “tahiti” – por não possuir película branca grossa, que torna o drink amargo) • 1 colher de sopa rasa de açúcar (nunca usar mel, que também modifica o sabor do drink) • Gelo

PREPARO • Cortar o limão em pedaços grandes e colocar em copo old fashioned (nome dado, pelos barmen, aos copos largos e baixos), próprio para esse drink. • Acrescentar açúcar e, com um pilão, misturar bem, até que limão e açúcar estejam completamente integrados. • Juntar 3 cubos de gelo, cortados ao meio. E completar o copo com cachaça. • Mexer, delicadamente, para que gele mais depressa. • Servir no próprio copo em que foi preparada. Observação: Além do limão, pode ser também usado caju ou maracujá, frutas que pouco interferem no sabor da cachaça. A partir dos anos 80 surgiu, como variante, a “caipiroska” – substituindo cachaça por vodka. Neste caso, melhor fazer com frutas mais adocicadas – abacaxi, morango, kiwi, lima da Pérsia .

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HUMOR

Mascaro

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Os faróis de Navarone

C

onverso com Mário Hélio, inebriante poeta e famigerado jornalista, professor de literatura, também editor desta revista, e sou instigado a embevecer-me pelo ridículo. Recita-me Fernando Pessoa, o nosso português, tão grande navegador das trumbicalhas do que é preciso para se viver. As cartas de amor são ridículas ou não seriam cartas de amor – entende o mestre – uma manifestação estrondosa de algum romântico ridículo que jura pétalas amargas de dor pela ausência da(o) amada(o), entremeando reticências esperançosas de um retorno, mínimo de motivação idiota que satisfaça o dito remetente. Ridicularizar tem suas vantagens, não menos inteligente do que a ambição de seus objetivos. Quem faz dos outros bestas, incitando o óbvio da besteiróide do conhecimento à base de uma compensação financeira, nada tem a perder. Um verdadeiro “Show de Milhão”, tão importante no alcance social – bem estudado no lucro e na crista de polêmica pelos sortudos compradores de cartelas na tentativa da realização dos seus sonhos adormecidos e inesperadamente acordados por bobas e intrigantes perguntas. O mega-apresentador Sílvio Abravanel Santos é uma figura carismática – por onomatopéia, tê-lêlei... tê-lê-lei de agradabilidade comunicativa em todos os seus programas televisivos de sua rede, por especial esta benfazeja produção que, apreensivelmente desperta o horror do nível intelectual de nossa gente – jovens por derradeiro.

Ora, ora... De como se testa conhecimento geral dos clientes das suas cartelas, senão através de perguntas primárias? O Sílvio é mais inteligente do que se pensa. Um Ibope acima de qualquer suspeita; uma ânsia louca dos concorrentes em ganhar alguns mil reais para saber quem é o gêmeo do clone da Globo ou qual cidade foi governada pelo padre Cícero do Juazeiro. Um grupo de universitários, eles engravatados de borboletas em paletós tarjados de cetim (as jovens de vestido longos de debutantes e cabelos à la Torre de Londres) nas abas de concluintes de qualquer curso – bacharelandos todos, pasmem, que nunca têm certeza da verdadeira escolha dentre múltlipas. É o reflexo do nosso ensino – professores mal remunerados – e o pernicioso descaso dos nossos dirigentes políticos, que nem sabem a composicão da química da água e ainda se arvoram em ser presidentes da República. É o Brasil!... Analfabetos aprovados em vestibulares. Cultura inútil inundando nossas programacões televisivas em horários nobres, confundindo o saber – e lá vem o Colosso do Niágara e as Cataratas de Rhodes nos fazendo de palhaços da Babilônia nos jardins dos Bugliones, espelhando-nos de irrisórios assistentes. Melhor ser ridículo escrevendo cartas de amor acompanhadas de buquesinhos de bogaris, se esquivando dos canhões indecentes de Alexandria e apagando os faróis da incerteza cultural... De Navarone?...

Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural




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