Continente #017 - Harold Bloom

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira

Arte Luiz Arrais e Manoela Leão

Editoração Eletrônica Ilustradores André Fellows Lin, Zenival e Mascaro Tratamento de imagens Nélio Câmara Colaboradores: Alberto da Cunha Melo, Daniel Bueno, Fábio Lucas, Fabrício Carpinejar, Ferreira Gullar, Joel Silveira, José Castello, Kleber Mendonça Filho, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Marcelino Freire, Marcello Bosschar, Marcelo Abreu, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Paulo Sérgio Scarpa, Rivaldo Paiva, Tatiana Resende Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Elizeu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Rafael Rocha, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217.2524 / e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: fone:3217.2551 / fax: 3222.4130 e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Informações: informacoes@continentemulticultural.com.br Publicações: publicacoes@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

Entusiasmo Gostaria de registrar o meu entusiasmo com a revista Continente, sem dúvida uma das mais importantes publicações do País no segmento de cultura e idéias. Tenho acompanhado à distância vários números da revista e fiquei especialmente feliz com a homenagem, na edição de fevereiro, ao Movimento Armorial, “criado para ser uma bandeira de luta contra o processo de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira”, como bem definiu o mestre Ariano Suassuna. Três décadas depois de sua criação, o movimento continua a mostrar sua força, principalmente com o surgimento de novos “discípulos armoriais” em todas os setores das artes. Vale registrar ainda, nesta edição, o depoimento histórico do artista Antônio Carlos Nóbrega ao jornalista Fábio Lucas. No mais... Parabéns a todos que fazem dessa revista uma referência nacional! Gerson Camarotti – Brasília – DF Fã Depois de conhecer essa espetacular revista, fiquei fã e me tornei divulgadora de sua existência para os amigos interessados em cultura, literatura, artes etc. Sou antropóloga, professora universitária e doutoranda em um programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Bahia e gostaria de saber se a revista abraça a possibilidade de leitores-colaboradores para publicarem artigos e/ou matérias vinculadas às temáticas de que tratam a revista. Jamile Borges da Silva – Salvador – BA Isenção Quero parabenizá-los pela elegância, despreconceito e isenção com que abordaram o polêmico fenômeno Paulo Coelho (edição de março, no 16). Isso mostra que quando a proposta jornalística é boa e os profissionais que a executam são competentes, pode-se tirar leite de pedra. Continuem assim. Íris Gomes Coutinho – Salvador – BA


Orgulho Fiquei muito orgulhoso de saber, pela Continente (edição de março, no 15), que o pintor Cícero Dias é pernambucano, está com 95 anos e lúcido. Mostra bem a força do sangue nordestino. Sebastião de Almeida – Palmares – PE

Bourdieu Adorei a entrevista com o sociólogo francês Pierre Bourdieu (edição de fevereiro, no 14). Ele demonstra como o imperialismo praticamente deixou sem opções os árabes e mulçumanos. Condenálos, sem entender seus motivos, sua circunstância e o mal que já sofreram é usar dois pesos e duas medidas num julgamento. A própria dominação colonial contribuiu (em prol de seus próprios interesses) para perpetuar estruturas sociais, econômicas e religiosas que acabaram gerando o terror. Tiago de Souza Dias – João Pessoa – PB Turismo Meus parabéns pelo excelente brinde de fim de ano que foi a revista Continente Turismo. Pernambuco há muito estava merecendo um levantamento sistemático de suas belezas e atrativos, tanto na área de lazer quanto na área da cultura popular e erudita. Espero que atraia muitos turistas para cá. José Luiz de Moura – Cabo – PE

Revisão Por uma falha de revisão, a Continente equivocou-se com o nome de Tiradentes (página. 23, da matéria As revoluções libertárias) escrito “José Joaquim” quando deveria ser “Joaquim José da Silva Xavier”; e com a citação do pintor italiano “Antonello da Messina” (pág. 33, da matéria Os caminhos da Paixão – ambas da edição número 15, de março) e não Antonella, que é nome feminino. Jório Cruz – Recife PE

Arte conceitual Tenho acompanhado com o maior interesse a nova aquisição da revista Continente – e que grande aquisição! –, o excepcional poeta e crítico de arte Ferreira Gullar. Acho que ele está botando o dedo na ferida ao denunciar os “artistas”, curadores e críticos que querem nos impingir uma falsa arte, uma arte fria e chata, que precisa de muletas justificativas e “legendas” explicativas, sob a desculpa de que o conceito vale mais que a realização da obra. Embora não seja radicalmente contra a obra de arte conceitual, acho que está havendo um abuso dessa proposta e muita gente que não é de fato artista está se aproveitando disso, perante um público intimidado. Está na hora do público reclamar do que é engodo e rejeitar o que é simplesmente empulhação. E é muito importante que uma voz abalizada como a de Gullar dê respaldo a isso. Carlos Crista – Belo Horizonte – MG


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EDITORIAL

Para ver e pensar

U

m dos mistérios que mais intrigava o escritor argentino Jorge Luis Borges era por que um povo que ele considerava exemplo de refinamento havia inventado o futebol. Referia-se aos ingleses, e não aos argentinos, que superaram esses tradicionalmente tidos como inventores. Também no Brasil – um país de escravos, na visão do cientista inglês Darwin – o esporte da bola chutada com os pés é também uma espécie de religião mais bem definida que o carnaval. Há diversos outros intelectuais como Borges que devotam ojeriza ao mais importante esporte das massas em todo o mundo. Alguns deles se dedicam ao tema, não para desvendar os seus mistérios, pois, o futebol, segundo a sua própria pseudofilosofia, é uma “caixinha de surpresas”. Nesta edição, diversos intelectuais – a maioria interessada e positivamente envolvida com o futebol – discute por que não motivou o interesse de artistas e intelectuais proporcionalmente à sua força popular. No exterior o tema não é novo nem raro. O antropólogo Christian Bromberger ao estudar o futebol como “visão do mundo e como ritual” se ocupou de mostrar a sua estrutura e sua função. Na sua análise desse que ele considera um “jogo profundo” não escapou nem a geometria e o significado dos estádios e sua conjunção de multidões – espelhos da sociedade. Vincando parte de sua análise em associar o futebol e as sociedades democráticas, o antropólogo recusa-se filiá-lo ao jogo da bola dos astecas, chamado tlatchtli, com que geralmente é comparado. Há também referências interessantes na cultura maia, como aquela lenda que conta: “Uma vez, Hunhun-Apu e Vukub-Hunapu jogaram um jogo de bola, cujo decurso os levou às proximidades do reino de Xibalba. Os governantes

dessa temida morada, imaginando ter a oportunidade de capturar os irmãos e confiscar todo o seu equipamento, desafiaram-nos a participar dum jogo de bola. Hun-Came e Vukub-Came, soberanos de Xibalba, despacharam a mensagem, enviando quatro mochos: um era veloz como uma seta, outro tinha apenas uma perna, outro era notado pelo seu dorso vermelho e o quarto possuía cabeça e asas, mas não tinha pernas. Os mochos mensageiros foram diretos ao campo de bola e não tiveram qualquer dificuldade em persuadir os irmãos a aceitar o desafio.” Como Christian Bromberger, acreditamos que “uma partida de futebol oferece tanto para ver quanto para pensar”. Poucos brasileiros acreditaram nisso, talvez porque acreditem com o poeta que “pensar é estar doente dos olhos”, e prefiram mesmo torcer e se retorcer de emoção enquanto 22 homens se ocupam de uma bola de couro como se dela dependesse outra bola, o universo.


ESPECIAL

Em matéria de futebol, os intelectuais brasileiros são uns pernas-de-pau. Alçado, há muitas décadas, à condição de paixão nacional, o esporte contribuiu para fixar uma identidade nacional, mexeu com o imaginário popular, criou um linguajar próprio, pintou o domingo brasileiro com as cores das torcidas, permitiu a ascensão social de jovens e instalou-se definitivamente no cotidiano da população. Nem por isso escritores, poetas, pintores, músicos, cineastas, teatrólogos, ensaístas deram-lhe a importância que seria de se esperar. Existem exceções, algumas cintilantes. Mas os dados são claros. Um colecionador de livros sobre futebol listou 703 títulos nacionais sobre o tema. Observe-se que, somente em 2000, foram editados 45 mil títulos no Brasil. Raros são os romances e contos entre nós que têm o futebol como motivo. Contam-se nos dedos os pintores que exploraram a enorme plasticidade do desporto, entre os quais Cícero Dias e João Câmara. Mesmo na música popular brasileira, o futebol é proporcionalmente pouco citado. Apesar de ingredientes como conflito e tensão, o cinema brasileiro quase não focaliza o futebol. O desdém se estende ao meio acadêmico: uma consulta ao acervo da Biblioteca Nacional, onde estão registradas 55 mil teses de pós-graduação, encontrou 15 títulos relacionados ao futebol. “É preconceito do academicismo oficial” – aponta Ronaldo Helal, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutor em sociologia pela NY University. Autor de Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil, Helal ressalta que, somente a partir de meados dos anos 80, após o lançamento de O universo do futebol, sob a coordenação de Roberto DaMatta, começou-se a produzir conhecimento sistemático sobre o tema. Mas a partir da década de 90, aumentaram exponencialmente os estudos sobre o assunto. Em época de Copa do Mundo, esta reportagem aborda o assunto em suas múltiplas faces e ouve escritores, cineastas, músicos e críticos sobre o porquê de o time dos intelectuais chutar tanta bola para fora. E arremata apresentando os cenários dos jogos – Japão e Coréia – na visão de um viajante nada acidental.

BOLA FORA 6 Continente Multicultural


Literatura

Jogo indescritível

Foto: Arnaldo Carvalho / Lumiar

Fábio Lucas Num chute de primeira, pode-se imaginar que é grande o terreno de interferência entre literatura e futebol no Brasil, tantos os nomes de astros de nossa seleção literária que aparecem em campo: José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto (torcedor do América/Recife e campeão pelo juvenil do Santa Cruz em 1935), Nélson Rodrigues, Edilberto Coutinho, Mário Filho, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Affonso Romano de Sant’Anna, João Cabral de Melo Neto, Luis Fernando Verissimo, Jorge Amado – todos fizeram do futebol tema de poesia ou prosa. Graciliano Ramos vaticinava, em 1921: “O futebol não se adapta a essas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve”. O autor de Vidas Secas não poderia estar mais enganado.

De lá para cá, as participações dos escritores, contudo, limitaram-se a poucas incursões ao ataque (poesia e ficção), com destaque para o reforço na defesa (crônicas, ensaios e artigos). A literatura brasileira, no que diz respeito ao futebol, conta mais aquilo que vê do que busca a sua recriação literária. Basta pegar um manual de referência como Gol de Letra (1967), organizado por Milton Pedrosa: o capítulo de artigos e crônicas, sozinho, lista mais autores do que a soma dos citados nos três capítulos dedicados a contos, romances e ao teatro. Mesmo assim, vale destacar que nos romances e no teatro é preciso recorrer aos excertos – pois uma obra inteira sobre o tema é mercadoria em falta. Edilberto Coutinho é uma exceção que confirma a regra, com sua reunião de contos Maracanã, Adeus (1980). Na poesia não é diferente, com nossos maiores poetas tendo dedicado poucas estrofes ao futebol. Continente Multicultural 7


O time do projeto Camisa 13, da editora DBA De pé: Jorge Santana, Ruy Castro, Washington Olivetto, Luis Fernando Verissimo e Alberto Helena Jr.

O pesquisador Domingos Antonio D’Angelo Júnior, que possui provavelmente uma das mais completas bibliotecas sobre futebol no Brasil, com mais de 700 títulos, revela que, dos 64 livros publicados sobre futebol no ano da última Copa, 1998, apenas um foi romance e um de teatro – enquanto na mesma safra vieram nove livros de crônicas, oito biografias, oito sobre as Copas do Mundo e quatro ensaios de psicologia e sociologia. Ele nota que 1998 foi um ano atípico, já que em 1997 foram lançados apenas 35 livros e, em 1996, 28. Em 1999, com o mercado saturado, foram somente 27. Em 2000, o pesquisador tomou conhecimento de 52 títulos (dos quais 15 de histórias de clubes e seis biografias), e em 2001, de 36 livros relacionados ao tema. É pouco, se compararmos esses números com a produção editorial brasileira de qualquer dos anos citados, um volume que girou em torno de 46 mil títulos anuais, em média. Nas livrarias, o futebol perde de goleada para a subcategoria de esotéricos, e o leitor de futebol ainda é visto como um extravagante, como depõe Domingos D’Angelo: “Você recebe do vendedor um olhar que o faz se sentir alguém que acaba de sair de uma caverna.” Para o gaúcho Moacyr Scliar, um dos raros autores que enxergaram o futebol como tema para 8 Continente Multicultural

um romance (A colina dos suspiros, 1999), a presença desse esporte em nossa produção cultural, notadamente a literatura, não está de acordo com a dimensão que ele tem no nosso país. “Poderíamos ter muitas outras obras sobre futebol – no gênero, por exemplo, das crônicas do Nélson Rodrigues, ou como ficção, ou no cinema, no teatro, e nas novelas de TV”, acredita Scliar. A cronista esportiva Soninha também acha difícil explicar a baixa incidência do futebol, principalmente, no cinema e nas novelas. “Reais ou imaginárias, histórias não faltariam”, garante ela. Bastaria a história da seleção canarinha, verdadeiro banquete para emoldurar qualquer obra de ficção. A começar por “nossa Hiroshima”, como resumiu, com perfeição, Nélson Rodrigues, a então inimaginável derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa de 1950. O episódio, aliás, cai como uma luva em tudo o que estamos falando: quantos livros de ficção foram baseados na maior tragédia brasileira – ainda que simbólica – no século 20? Em compensação, competentes análises e relatos sobre aquele dia vêm aparecendo. Dossiê 50 (2000), de Geneton Moraes Neto, e Anatomia de uma derrota (1991/2000), de Paulo Perdigão, contam bem essa história.

Fotos: Eduardo Nicolau / AE ; Monique Cabral / O Globo ; Silvio / O Globo

Agachados: Mário Prata, Sérgio Augusto, Nélson Motta, Eduardo Bueno e Bob Fernandes


Numa equipe estão envolvidos tipos de relacionamentos bem complexos. O drama do jogo em si, as paixões, tudo isso é interessantíssimo

Flávio Moreira da Costa admitiu essa lacuna na arte brasileira – não só em relação à literatura. Em Onze em campo e um banco de primeira (1998), coletânea de contos que organizou, preferiu descartar a hipótese de elitismo intelectual para justificá-la, considerando o futebol como uma “expressão em si mesma”, condenando toda expressão e discurso sobre ele à diluição e ao enfraquecimento enquanto imagem já refletida. Para José Roberto Torero, autor do livro de crônicas Os cabeças-de-bagre também merecem o paraíso (2001) e de dois livros sobre seu clube, o Santos, a explicação para a escassez de títulos também está na natureza do que serviria como inspiração: “A realidade do futebol já possui o formato de uma grande ficção, e assim fica difícil, e quase desnecessário, fazer uma representação desse esporte”, argumenta Torero. Quem reza pela mesma cartilha é Maurício de Sousa, o “pai” da Turma da Mônica e do personagem Pelezinho, que saiu das bancas nos anos 80 e está para voltar ao mercado este ano, remodelado. Segundo ele, há espaços que não induzem a mo-

mentos de arte e de contemplação – e o esporte seria um desses espaços, pois se uns festejam a vitória, a maioria amarga a decepção. “O futebol terá que se contentar em ser arte real, visual, sentida, emocionante”, arrisca o desenhista. “E estaremos felizes com essa arte.” A baixa motivação artística do futebol é compreendida por Moacyr Scliar como tendo várias razões possíveis. “Em primeiro lugar nem todos os escritores ou poetas jogam futebol ou gostam de futebol – não têm, pois, esta experiência. Em segundo lugar, talvez achem o assunto banalizado pela mídia. E em terceiro lugar, o futebol exige uma linguagem própria, adequada ao ritmo e à emoção do esporte”, define. Entretanto, o crítico Decio de Almeida Prado, em Seres, Coisas, Lugares (1997) pontua: “O futebol, arte do efêmero, não prescinde das palavras fixadas no papel, que sem conter as imagens, evocam as sensações despertadas por elas no momento mágico da execução.” Para o historiador da Unicamp Leonardo Affonso de Miranda Pereira, autor de Footballmania – Uma história social do futebol no Rio de Janeiro (2000), o destaque menor do futebol na produção cultural brasileira, em relação ao interesse que desperta entre as classes populares, se deve, em grande medida, à visão, consolidada nas décadas de 60 e 70, que ligou o futebol à alienação – em especial no contexto da ditadura militar. “Isso explica por que um esporte que até a década de 50 era tema constante de nossos literatos sumiu tão repentinamente da produção artística brasileira”, avalia Pereira.

(À esquerda), Edilberto Coutinho, caso raro com Maracanã, Adeus Maurício de Sousa e Pelezinho, que voltará às bancas

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Literatura

O pernambucano Gilvan Lemos é da mesma opinião do escritor português José Saramago, para quem o futebol está longe de sua própria realidade, o que afastaria o tema de sua criação. Gilvan Lemos tem uma novela, Adeus à infância, integrante da coletânea A inocente farsa da vingança (1991), que faz uma referência, de passagem, a um personagem que chega à seleção brasileira. E o conto Domingo, sobre um menino que quer assistir a um jogo. E só. Mas Lemos, que gosta de futebol, diz que há outros assuntos que poderiam ser objeto da literatura brasileira, e não o são: “A política também nunca foi tratada dramaticamente, e sim de forma engajada, o que faz com que perca o valor”. Raimundo Carrero é outro autor que tinha tudo para enveredar pelo tema futebolístico em sua obra. Profundo conhecedor do esporte, chegou a ser comentarista do Diário de Pernambuco na Copa da França, em 1998. Mas confessa que, desde o início de sua carreira, teve vontade e medo de encarar o futebol na escrita. O medo prevaleceu. “É um tema muito complexo, como todo tema popular”, explica. Carrero reconhece que a literatura brasileira é elitista, mais afeita a temas clássicos importados do que à 10 Continente Multicultural

nossa realidade. “Isso reflete um claro colonialismo cultural”, aponta. Apesar do placar desfavorável, em antologias recentes, seja como indicativo de representatividade, seja como homenagem, o futebol está presente. Em Os cem maiores contos brasileiros do século (2000) de Italo Moriconi, está o conto Vadico, de Edilberto Coutinho, fazendo as honras ao ludopédio. E na Antologia da poesia popular de Pernambuco (1989), de Mário Souto Maior e Waldemar Valente, cuja segunda edição acaba de chegar ao mercado pela Graphia Editorial, figura o cordel de Lourival Batista Patriota, Copa 70 Brasil Tricampeão. Prova de que a partida pode estar virando é o projeto Camisa 13, da editora DBA, que chamou treze autores para colocarem no papel a paixão pelos seus clubes. Foram já lançados (2001) o de Ruy Castro, O vermelho e o negro – Uma pequena grande história do Flamengo e o Dicionário Santista, de José Roberto Torero. Estão vindo por aí, ainda este ano: Washington Olivetto sobre o Corínthians, Mário Prata sobre o Palmeiras, Nelson Motta sobre o Fluminense, Eduardo Bueno sobre o Grêmio, Luis Fernando Verissimo sobre o Internacional, Alberto

Foto: Paulo Pinto / AE

Ruy Castro beijando a camisa do Flamengo


Foto: Ana Carolina Fernandes / O Globo

Helena sobre o São Paulo, Aldir Blanc sobre o Vasco, Sérgio Augusto sobre o Botafogo, Bob Fernandes sobre o Bahia, Jorge Santana sobre o Cruzeiro, e Roberto Drummond sobre o Atlético Mineiro. Vejamos os nichos editoriais sobre o futebol. Infantil – Desde cedo, as crianças brasileiras travam contato com o futebol – não apenas na realidade, mas também na fantasia. A literatura infantil e infanto-juvenil está recheada de opções para os mascotes que já puxam ao pai ou à mãe na contagiosa paixão pelo esporte. Best-sellers como Pedro Bloch, Stella Carr e Orígenes Lessa exploraram o filão, assim como o jogador Marcelinho Carioca. Jorge Amado, que de tantas outras formas cantou a cultura nacional, aparece aqui com A bola e o goleiro (1984), em que a bola Fura-Redes, disputada pelos craques, se apaixona pelo goleiro Cerca-Frangos. E quem não se lembra das histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa, onde vez por outra pinta uma pelada para a meninada da Turma da Mônica? Sem falar no personagem criado à imagem e semelhança do rei, Pelezinho, que ganhou seu próprio gibi no final da década se 70 e fez sucesso até sair de circulação nos anos 80. Para a alegria dos fãs crescidos e dos que virão, o personagem está para nascer de novo, modificado. “O antigo Pelezinho era para ser o Pelé criança, e as histórias tinham que ser escritas como se fossem vividas na infância do Rei”, explica Maurício de Sousa. O novo Pelezinho será mais velho – terá 10 anos – e irá gostar de praticar todos os esportes. Ziraldo não poderia ficar de fora de qualquer antologia para crianças. Entre outras menções, vale a pena destacar a do seu personagem mais famoso e querido, O Menino Maluquinho, que adora jogar bola. Crônica – Indivíduo encharcado de seu tempo, como define Affonso Romano de Sant’Anna (que também se debruçou sobre o futebol, até para a TV), o cronista parece ter nascido para o futebol. Afinal, a crônica é breve como um chute a gol e versátil como um drible: tem para todos os gostos. Do jornalista livre da marcação cerrada da pauta ao escritor bem à vontade na posição que conhece, a crônica das quatro linhas é quase uma unanimidade – incluindo Nélson Rodrigues. No Brasil, não faltam mestres do gênero, e muitos se exercitaram e se exercitam pondo para fora a paixão pela bola. Não são poucos, por outro lado, os ex-jogadores que descobriram o caminho da crônica para não se sentirem tão longe de sua

Proporcionalmente à sua importância como fenômeno social, o futebol é muito pouco explorado pela literatura, mas grandes nomes das letras nacionais não deixaram de incursionar pelo universo de paixão e vida desse esporte profissão: Tostão, Sócrates, Nílton Santos, e até o rei Pelé estão nessa lista. Na crônica O brasileiro, para inglês ver, Fernando Sabino se pergunta se dá para explicar o brasileiro sem falar no futebol e compara a ida ao estádio a uma liturgia: “São milhões de fiéis contritos que purgam seus pecados todos os domingos nos templos do Maracanã, do Pacaembu, do Mineirão, do Beira Rio. Sua hóstia é a bola e seu altar é o gol.” Os cronistas são responsáveis por frases memoráveis que se incorporaram à cultura do futebol. Como o chute a gol para Décio de Almeida Prado: “É o instante de matar o touro: é a hora da verdade.” Como o gol, para Paulo Mendes Campos: “No futebol, o gol é o pão do povo.” Ou esta famosa, de Nélson Rodrigues: “O escrete é a pátria em calções e chuteiras.” Além dos textos espalhados pelas obras de Antônio Maria, Carlos Drummond de Andrade,

Em sua última foto, o poeta João Cabral de Melo Neto segura camiseta do América do Recife, time pelo qual torceu desde a juventude

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Luis Fernando Verissimo, Mário Filho, Edilberto Coutinho e muitos outros. Ensaio – Compreender o fenômeno de massas, a identidade nacional, a história de um esporte que apaixona multidões – cada vez mais e mais ensaios chegam ao mercado com o objetivo de conquistar a atenção do leitor. Sem levar em conta a provocação de Millôr Fernandes, para quem “o futebol e o Brasil são igualzinhos; não têm lógica”, antropólogos, historiadores, jornalistas, administradores, psicólogos e uma variedade de amantes da bola buscam transportar para as páginas de um livro reflexões que em muito extrapolam as preocupações típicas de um torcedor. Roberto DaMatta é um que já tentou esmiuçar a “complexidade shakespeariana” do futebol, no dizer de Nélson Rodrigues. “O uso do pé, diferentemente do uso da mão, obriga a inclusão de todo o corpo, salientando sobretudo as pernas, os quadris e a cintura, essas partes da anatomia humana que, no caso da sociedade brasileira, são alvo de um elaborado simbolismo”, teorizou o antropólogo. Alceu Amoroso Lima via no futebol “um denominador comum do povo brasileiro, sem distinção de classes e condições sociais”. Para ele, trata-se do “elo mais forte entre burgueses e proletários, entre o morro e a praia, entre cultos e analfabetos, entre nortistas e sulistas, entre pobres e

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ricos, entre moços e velhos.” DaMatta concorda: “O futebol proporciona à sociedade brasileira a experiência da igualdade e da justiça social”. O historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira diz que a identidade propiciada pelo futebol serviu de base para a reivindicação de direitos pela população. “Nesses momentos, o futebol é instrumento de ação autônoma dos trabalhadores, não de alienação”, ressalta. O professor Jocimar Daolio, no livro As contradições do futebol brasileiro (2000), vê no esporte uma forma de cidadania e de expressão. “As manifestações dentro de um estádio de futebol, quer das torcidas, quer dos jogadores, ou dos dirigentes e jornalistas, não podem ser analisadas de maneira desvinculada de todas as outras questões nacionais”, opina. Vale lembrar que, no rastro da escalada do interesse acadêmico pelo futebol, consubstanciado no aumento exponencial do número de teses sobre o tema a partir de meados dos anos 80, há na UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro um núcleo de estudo da sociologia do futebol, sob a coordenação do professor Maurício Murad. Em Pernambuco, os sociólogos José Luiz Ratton e Túlio Velho Barreto estão articulando a formação de um grupo de estudo do universo futebolístico. Fábio Lucas é jornalista

Foto: Geyson Magno / Lumiar

Para Alceu Amoroso Lima, o futebol é “o elo mais forte entre burgueses e proletários”


Entrevista

Mistério Literário O escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo, torcedor do Internacional e em cujas crônicas o universo da bola de couro está sempre presente, considera um mistério intrigante a pouca representatividade do futebol nas artes. Para ele, embora represente uma paixão infantil, o esporte abre amplas possibilidades para produzir literatura adulta.

Foto: Paulo Pinto / AE

Enquanto no país do futebol, a imprensa especializada é restrita. Pois é, aqui tivemos o caso da revista Placar, agora o jornal Lance, mas mesmo assim é muito pouco. É uma coisa inexplicável. Se o futebol cativa esse público todo, esse interesse todo... Não se pode dizer nem que é um esporte popular, de gente de pouco poder aquisitivo, porque o futebol interessa a todas as classes, todas as camadas econômicas. E mesmo assim não conseguimos manter uma publicação regular de futebol. O futebol tem na cultura brasileira presença proporcional à dimensão que possui no país? Não, não tem. E é um mistério. É tão importante na vivência popular, e tão pouco importante, por exemplo, na literatura. Até mais do que na literatura, há muito pouco sobre futebol no cinema. E mais intrigante, mais misterioso ainda, é que na própria imprensa, nós não temos uma imprensa esportiva como existe, por exemplo, na Argentina, ou na Europa, em países como a Itália e a Espanha, onde há dezenas de publicações dedicadas ao futebol.

E as páginas em branco na literatura brasileira, no capítulo futebol? Tivemos grandes escritores escrevendo sobre futebol. O que sempre lembro é o Mário Filho. Mas os livros dele, que conheço, não são ficção, são reportagens ou estudos sobre o futebol. Paulo Mendes Campos escrevia, Antonio Maria tinha alguma coisa, mas pouca também. Ficção mesmo, confesso que não consigo me lembrar de um exemplo. Ruy Carlos Osterman, comentarista, publicou recentemente uma coletânea de textos de vários autores sobre futebol. Tem um meu, tem de meu pai (Erico Verissimo). São contos, mas é pouco.

Verissimo, com a camisa do Inter: paixão infantil

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Entrevista

guerra ritualizada. É possível fazer uma literatura adulta sobre futebol com base em diversos temas.

Como escritor, vê algum tipo de dificuldade que explique essa lacuna na atividade literária? José Saramago, perguntado a respeito por um jornal de Portugal, respondeu que era difícil escrever sobre um tema tão longe da realidade e das preocupações dele. Talvez a explicação seja essa. Mas também o fato de o futebol ter uma conotação, vamos dizer assim, infantil. Normalmente é uma paixão que a gente traz desde criança, e nunca deixa de ser uma paixão infantil. A ligação com o futebol é meio irracional, no sentido de ser uma coisa de criança mesmo. Talvez por isso as pessoas não façam literatura sobre futebol, por ser algo que já foi ultrapassado, em termos de relacionamento com o mundo.

A que estariam ligados esses temas, que a princípio não seriam sérios, para alguns autores? A própria divisão do time é um tema, a personalidade do homem de defesa, a do homem que joga no ataque. Existe um estudo que diz que todo defensor é sádico e todo atacante é masoquista. Claro que é uma simplificação. Mas numa equipe estão envolvidos tipos de relacionamentos bem complexos. O drama do jogo em si, as paixões, é interessantíssimo. Porém o drama shakespeariano que está contido numa pelada, como disse Nélson Rodrigues, é bem pouco aproveitado por nossa produção cultural. É surpreendente que não tenha sido aproveitado no cinema, por exemplo. Na Argentina tem muitos filmes baseados no futebol. Os americanos fazem muito cinema com o baseball deles. Mas não temos nada parecido no Brasil.

Mas o que está por trás disso? A idéia é que não se pode fazer uma coisa séria baseada numa paixão infantil. O que é uma bobagem. Nenhum universo como o do futebol engloba tantas coisas importantes: a noção da equipe, da

Alguns justificam essa ausência apontando a manipulação do futebol para a alienação política. Ainda há isso? Ainda há. Mas o problema do futebol é outro. As pessoas falam muito desse aspecto, do

Pelé, um mito: “não preservá-lo seria destruir um dos últimos ícones nacionais”

Foto: Arquivo / O Globo

O senhor utiliza muito o futebol como tema? Eu sempre escrevo sobre futebol na coluna, às vezes um conto disfarçado de crônica. Como sempre gostei de futebol, desde garoto, aproveito para fazer ficções sobre futebol.


Morumbi, SP: como outros estádios, palco de “dramas shakespearianos”

futebol utilizado pelo poder, para distrair a atenção do público. Contudo o mais grave é o uso do futebol por pessoas que querem fazer carreira política. Isso marcou muito o futebol. A figura do cartola, do dirigente que está usando o futebol para fazer política.

Foto: Clovis Ferreira / AE

O futebol-eempresa não diminui o peso dos cartolas? O que não significa que está mudando para melhor. Porque quem está tomando conta do futebol é o empresário, o cara que comercializa os jogadores. Saiu de uma coisa atrasada, que é o futebol usado para projeção política, para o lado do futebol exclusivamente como negócio, que também é prejudicial. Será que é por isso que as pessoas se identificavam mais com os craques do passado? Os ídolos de hoje não são o que Pelé, Garrincha, Zico, foram para a população. A relação que a gente tinha com os jogadores antigos era mais carinhosa, justamente porque eram pessoas que não faziam idéia da sua importância e dos seus direitos. Garrincha é o grande exemplo. Era um irresponsável, quase um menino. A gente tinha admiração pelo futebol dele, mas também pela figura dele, pela inocência. Isso não existe mais hoje. Não existe mais o jogador inocente. E a relação da torcida com ele não é mais a relação carinhosa, que a gente teria com uma criança. É uma relação mais adulta. Ou então ela se resume à fase inicial do jogador, quando o craque está surgindo, enquanto não se profissionaliza.

Exato. Perde-se aquela mística, que todo torcedor tem, do jogador formado dentro do clube. Depois que se torna profissional, ele vai jogar no time adversário. Eu me lembro o choque que foi quando o Batista, do Internacional, foi para o Grêmio, o que até então não se admitia. Hoje qualquer jogador profissional sai de um time e vai para o outro, e não é chamado de traidor. Mas é algo mais ou menos recente. Isso não quebra a magia do futebol, ao romper a identificação do jogador com o clube e a torcida? Um pouco. Fica de fato uma coisa meio fria, e contraria o relacionamento passional que o torcedor tem com o clube. Um caso engraçado foi o de Tesourinha, um ponta-direita, no tempo em que existia ponta. Grande ídolo do Internacional, foi da seleção brasileira, do Vasco. E quando voltou para Porto Alegre em fim de carreira, foi para o Grêmio. Foi um trauma. Aliás, foi o primeiro jogador negro do Grêmio. Agora, diz a lenda, e parece ter sido provado, que ele nunca fez gol no Internacional, enquanto jogou no Grêmio. No Brasil, os ídolos de futebol são intocáveis. Muitas vezes tem-sse a impressão que o importante é preservar o mito, como ocorreu recentemente em relação às denúncias contra uma empresa de Pelé. Sem dúvida. O Pelé é um mito de um tamanho tão grande, em termos internacionais, inclusive, que é até compreensível. Não preservar o Pelé seria destruir um dos últimos ícones nacionais. Houve, Continente Multicultural 15


Entrevista

“O futebol é arte, mas uma arte gestual, espontânea e do momento. A analogia com outra arte é completamente irracional” não sei se consciente ou não, um senso de preservação: mesmo que ele não seja o que a gente pensa ou deseja, vamos fazer de conta que é. Craques como Pelé e Garrincha foram comparados a gênios artísticos. O que aproxima o futebol da arte? Futebol é arte? Acho que é. Na admiração da gente por um grande lance de futebol, temos alguns parâmetros. Comparamos com o que imaginamos que seja um grande lance em outra arte. Dizer que um lance do Pelé é uma pintura, é uma analogia sem sentido, porque não tem nada a ver com pintura. É um lance, um gesto, uma coisa física. Mas se usa uma analogia pronta, porque se acostumou a pensar em gênio como um Michelangelo ou um Picasso. Então o futebol não é arte? O futebol é arte, mas uma arte gestual, espontânea e do momento. A analogia com outra arte é completamente irracional. A expressão “futebol-aarte” é portanto uma expressão mais de espanto do que outra coisa? É, de admiração, pelo ser humano fazer aquilo. Eu me lembro de um filme em que o personagem diz que ver o Pelé fazendo um gol de bicicleta o tinha levado às lágrimas. É algo que a gente só pode exprimir ou fazendo analogia com a arte, intelectualizando a cena, ou tendo uma reação emotiva. São maneiras de admirar a coisa excepcional que é uma jogada de gênio. O futebol já o emocionou muito? Eu acompanhei a melhor fase do Pelé. Morava no Rio, na época. O Santos ia jogar no Maracanã e enchia o Maracanã, para ver o Pelé jogar. Tem inúmeros lances do Pelé que me lembro. Mas como eu disse, nossa relação com o futebol é infantil. E minha grande lembrança é de ver o Internacional jogar, quando eu era garoto. Que momento o marcou mais? Quando tinha uns doze ou treze anos, presenciei um gol do Tesourinha, depois de uma jogada 16 Continente Multicultural

brilhante. Foi a primeira vez que vi o juiz da partida cumprimentar um jogador. Era até um juiz inglês. Naquela época, em Porto Alegre, os times desconfiavam dos juízes, e resolveram trazer um juiz inglês para apitar o campeonato gaúcho. Como começou sua paixão pelo futebol? Joguei futebol quando criança. Muito mal, mas joguei. Nem tinha posição, era futebol de calçada. Só não ia para o gol. Aí era desmoralização – só ia para o gol quem era ruim. Comecei lendo sobre futebol no jornal, ouvindo rádio. O primeiro jogo que fui foi a um “grenal”. Devia ter uns dez anos, mais ou menos. Aí me apaixonei mesmo, e passei a ser um assíduo freqüentador de futebol. Até pouco tempo atrás eu era torcedor de arquibancada, ia a todos os jogos do Internacional. Mas ultimamente, a gente vai ficando mais velho e mais comodista, não tenho ido muito, não. Tenho assistido mais nas Copas. Nas últimas quatro Copas eu fui. E vou a esta também. E qual sua expectativa? É difícil. Esse período de preparação da seleção não nos dá muita esperança. Mas pode surpreender. Eu gosto do Felipão. Ao contrário da maioria do público brasileiro, tenho esperança nele. Acho que ele é um mobilizador, não é apenas um estrategista. É um bom treinador que vai suprir fora do gramado o que nós não vamos ter dentro do campo. O time não é bom? Temos bons jogadores. O que falta na seleção brasileira é um jogador como o Dunga, um dos responsáveis pela vitória nos Estados Unidos, em 1994. Falta alguém daquele tipo, um camarada que se impunha no meio do campo. O Emerson não tem a imposição que tinha o Dunga, aquela quase arrogância que precisa ter para jogar ali. Felipão vai ser o Dunga do lado de fora? É. Vamos ver se dá certo. (FL)


Cinema

Atores invisíveis O acervo cinematográfico brasileiro pode ter negligenciado imagens importantes para futuras referências da nossa identidade cultural

Foto: Divulgação / AE

Kleber Mendonça Filho O cinema brasileiro talvez sofra de um estranho mal no olhar, uma incapacidade de focar objetos a curta distância. Seríamos nós os pernas-de-pau da câmera para assuntos nacionais imediatos? A última vez que a realidade do Brasil foi filmada em bloco e com seriedade, foi necessário forjar um movimento, o cinema novo, para acabar com o mesmo tipo de letargia relacionada ao verdadeiro que parece nos afligir hoje, mais uma vez. Se um dos segredos de qualquer narrativa eficaz é o binômio ‘tensão’ e ‘conflito’, o futebol deveria, em tese, ser matéria-prima perfeita para cinema, especialmente para o cinema do Brasil, onde o esporte é a “paixão nacional”. Lançando olhar históricoemotivo sobre a relação do cinema brasileiro com o futebol, nota-se que a tensão sentida nas arquibancadas, na cobrança da falta, no medo de perder e na

vontade de ganhar poderia ser bem mais presente na nossa identidade cinematográfica. É provável que o cinema brasileiro esteja mais interessado em filmar o drama histórico, a comédia romântica, o thriller americano em escala brasileiramente menor. Curiosamente, a situação do futebol na tela nacional lembra a da nossa realidade imediata, o Brasil urgente que um filme recente, como O Invasor, de Beto Brant, tem mostrado de maneira lamentavelmente isolada. Desta forma, temos em mãos dois aspectos íntimos da sociedade brasileira que podem estar sendo negligenciados pela nossa própria articulação de imagens, de trabalhar um banco de dados para futuras referências da identidade cultural do Brasil. Do jeito que está, o nosso acervo de cinema nos dirá, e nos diz já hoje, que o futebol não é tão importante para o Brasil. Continente Multicultural 17


Cinema

Cartaz do filme Fuga para a Vitória, John Houston, com Pelé, Stallone e Caine

Na Copa de 98, na França, quando o cineasta paulista Ugo Giorgetti (Sábado, Festa) estava lançando o irregular, mas no final das contas, delicioso Boleiros – Era Uma Vez O Futebol, ele me lembrou que José Lins do Rego foi enterrado com a bandeira do Flamengo e que, ironicamente, Nélson Rodrigues nunca escreveu uma peça sobre futebol. E observou: “Cineastas brasileiros geralmente se interessam por obras literárias famosas, grandes acontecimentos históricos. Com isso, aspectos mais próximos ao coração terminam ficando em segundo plano”. José Roberto Torero, escritor e cineasta, coroteirista do curta indicado ao Oscar Uma História de Futebol, diz o seguinte: “Acho que o futebol é tão desprezado porque cada jogo, de certa forma, já é uma narrativa, uma história, assim não precisaria ser contado por outra linguagem. Outro motivo possível é que os intelectuais brasileiros só há pouco tempo se permitiram gostar de futebol”. Ainda sobre Boleiros, interessante lembrar que o filme não chegou ao grande público, ficou restrito a um circuito exibidor intelectualizado, aos Espaços Unibanco e salas alternativas nas poucas cidades grandes do Brasil onde foi exibido. Fez pouco mais que 50 mil espectadores. A título de comparação, o último opus de Xuxa – Xuxa e os Duendes – chegou à casa dos três milhões de ingressos vendidos. Seria Xuxa, e não o futebol, a “paixão nacional”? Curiosamente, tanto Xuxa como o futebol têm forte identificação visual via TV, são sucessos eletrônicos para as massas. Talvez seja o caso de o público de futebol não ter o hábito de ir ao cinema. Talvez o cinema seja hoje um meio intelectualizado demais.

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A pesquisadora do cinema brasileiro, Ivana Bentes, vê tudo isso de forma diferente. “Não considero que a filmografia brasileira tenha subestimado o futebol. Se os filmes são poucos é porque é dificil trabalhar a linguagem, a dramaturgia e os dramas do futebol sem cair nos clichês”. Bentes aponta pelo menos dois pontos altos do cinema e a bola: A série Futebol, de João Moreira Salles, e o clássico Garrincha – Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade. “Este último usa fotografias estáticas, câmera lenta e uma linguagem que revolucionou o documentário sobre futebol: uma câmera na altura da perna dos jogadores. O jogo visto de dentro do campo, câmeras posicionadas em diferentes pontos de vista. Câmera que é olho-perna-coração”, completa Bentes. Curiosamente, em 1938, 50 anos antes de Boleiros, Futebol em Família, filme de Rui Costa, foi visto por milhões num país que se preparava para ouvir no rádio a campanha da Seleção Brasileira na Copa da França. No enredo, um professor que detesta futebol (olha aí a intelectualidade na contramão do povão) precisa aprender a lidar com o fato de seu filho, estudante de medicina, ter se tornado o artilheiro da temporada, via Fluminense Futebol Clube. Seis anos antes, em 1932, já na primeira fase sonora do cinema brasileiro, há a primeira grande interpretação em celulóide do esporte no Brasil. Campeões do Futebol, de Genésio Arruda, escrito por Menotti del Picchia, presta uma apaixonada homenagem aos grandes craques de então, como Feitiço, Tuffy e Friendreich.

Foto: Divulgação

Para Torero, o futebol já é uma narrativa que não precisa ser contada em outra linguagem. Para Giorgetti, o coração termina em segundo plano


Foto: Divulgação / AE

Cena de Boleiros, de Ugo Giorgetti

A idéia de transladar astros do gramado para a tela do cinema, mitificá-los em imagens potentes e heróicas sobre um fiapo de enredo, foi reeditada recentemente no produto comercial bem produzido e embalado – Uma Aventura do Zico (1998), de Antônio Carlos da Fontoura. Mas os torcedores, em grande parte, ficaram em casa. Não teria sido um erro de cálculo apostar, já no final da década de 90, na popularidade de um astro que teve o seu pique na primeira metade dos anos 80? A própria Hollywood encarregou-se de fazer com Pelé algo semelhante, numa super-produção dirigida pelo grande John Houston. O símbolo vivo do futebol universal era um soldado aliado em Fuga Para a Vitória (Victory, EUA, 1981), uma das obras menores de Houston, é certo, mas grande momento de Pelé no cinema, em Technicolor e Panavision. Levou multidões aos cinemas brasileiros no verão de 81/82. Pelé havia fracassado melancolicamente, dois anos antes, ao aparecer como treinador de um grupo de crianças carentes no fraco Os Trombadinhas (1979), dirigido por Anselmo Duarte, com argumento do próprio Pelé. Ainda sobre Pelé, duas grandes homenagens foram feitas: o documentário Isto é Pelé (1975), de Luiz Carlos Barreto – o Barretão – e o curta Uma História de Futebol (1999), de Paulo Machline, finalista na categoria curta-metragem do Oscar 2000.

Uma História de Futebol provavelmente encerra um ciclo recente de olhares no formato ‘curta’, quase todos eles vistos de maneira restrita no Brasil, seja na TV ou no cinema. O ciclo pode ter tido um ponta-pé inicial no excelente Barbosa (1988), de Jorge Furtado, sobre a trágica derrota brasileira para o Uruguai, no Maracanã, na final da Copa do Mundo de 1950. Essa derrota foi o nosso Pearl Harbor, nossa Guernica. Em Cartão Vermelho (1993), de Laís Bodanski, há um olhar claramente feminino que não parece tão interessado no esporte em si, mas na sua carga inegável de masculinidade, aqui testada pela tensão de acompanharmos uma menina que decide jogar e peitar os meninos, no jogo ‘deles’. No entanto, poucos filmes brasileiros captaram com tanta alegria a paixão nacional pela bola, alinhada com um fino senso de nostalgia, como o curta baiano Rádio-Gó-Gó (1999), de José Araripe Jr. Nele, acompanhamos louco por futebol que sai às ruas de Salvador à procura de jogo. Numa Kombi velha equipada com alto-falantes, narra peladas e sonha com a transmissão ao vivo pela TV de uma final de Copa do Mundo.

Kleber Mendonça Filho é jornalista

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Televisão

Engodo na TV Belini levantando a taça, em 58: cenas marcantes no Canal 100

Sobre cinema e futebol, é difícil não incluir também na equação a televisão, que se apoderou do esporte, aparentemente para nunca mais largar, ao longo dos últimos 30-40 anos. A TV ao vivo substituiu o cinema filmado, que, após cada partida, pre-cisava ainda ser revelado, copiado e montado. Caiu em desuso. A TV passou a apresentar o futebol instantâneo em tamanho menor, fator comercial maior e impondo ao mundo sua limitada escala eletrônica. A associação cinema-futebol, no Brasil, tem um nome que ironiza a competição entre TV e cinema: Canal 100. A idéia de Carlos Niemeyer era exatamente oferecer algo de inatingível para o meio televisivo, um canal imaginário de som e imagem que suplantava a simples idéia de ‘canal 2’ ou ‘canal 13’. Lembra a briga cinema vs. TV dos anos 50, quando o cinemascope e o cinerama tentavam fazer a diferença. E era exatamente na parte esportiva desse noticiário semanal, exibido no início das sessões de cinema do Brasil (de 1959 até 1986), que isso ficava claro. O futebol do Canal 100 tinha releituras de jogadas impossíveis de serem vistas das arquibancadas ou na televisão, um futebol em 35mm, gingado nos seus mínimos detalhes. Mulheres na platéia geralmente amavam as imagens ampliadas de coxas musculosas dos atletas, os jogadores cuspiam ansiosos em câmera lenta, a tensão de uma barreira de homens preocupados com um chute potente, a bola rodopiando em direção à rede. Dezenas de imagens como essas tornaram-se assinaturas de uma estética que engrandecia um esporte já enorme dentro da cultura brasileira. O fotógrafo-mestre Walter Carvalho (Central do Brasil, Abril Despedaçado, Lavoura Arcaica) diz que a estética do Canal 100 foi forjada por uns quatro grandes cameramen, especialmente Walter Torturra. “Eles eram craques, capazes de segurar o foco na bola com lentes telescópicas de 600mm. Isso equivale a fazer uma cirurgia a laser no olho. Trabalhavam numa época em que os negativos eram

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menos sensíveis e as luzes dos estádios também não ajudavam. Se o Canal 100 ainda existisse hoje, seria mais fácil filmar futebol com o ganho na sensibilidade à luz dos filmes; os atuais refletores também fornecem condições ideais de imagem, no caso, para a televisão”. A pesquisadora Ivana Bentes acha que a televisão ousa muito pouco hoje. “Poderia ser um campo fantástico de experimentação, principalmente com as novas tecnologias e câmeras digitais.” E o que teria ficado do Canal 100 como herança para a TV? Walter Carvalho acha que nada: “Na televisão, o grande engodo é pensar que há ali uma imagem que domina, quando, na verdade, há mesmo uma hegemonia da palavra. Na TV, se você tirar o som, não vai entender o que está acontecendo. Já ao tirar a imagem, o som continua claro e repleto de informação. Há uma tendência ignóbil de fazer da TV um programa de rádio com imagens. Na verdade, o gol é bem mais sensacional no rádio, pois a narração usa a sua imaginação, enquanto, na TV, os comentaristas limitam-se a comentar aquilo que eu já estou vendo. É por isso que Galvão Bueno é tão chato”, diz Carvalho. (KMF)

Foto: Reprodução / AE

Lições do Canal 100 não foram apreendidas pela televisão


Música

O ópio e a partitura

Foto: Rogério Reis / TYBA

Para além da dicotomia ópio do povo x espetáculo coletivo nacional, o futebol merecia mais música que os hinos dos clubes

A exemplo da literatura e do cinema, a música brasileira não apresenta uma produção dedicada ao futebol que seja proporcional à explícita paixão nacional. É certo que o número de composições exprime realidade melhor do que em outras áreas, mas mesmo assim, ainda é pouco. Principalmente se levamos em conta que a maioria do que é feito está no universo do samba e da música popular em geral. Uma exceção que confirma a regra é a canção É uma partida de futebol, do Skank. Para o jornalista Sérgio Cabral, a presença do futebol em nossa música é feita de momentos. Como um dos choros mais famosos de Pixinguinha, Um a zero, de 1919, em homenagem ao primeiro campeonato sul-americano vencido pela seleção brasileira, depois de um gol de Fried sobre o Uruguai. Cabral recorda Noel Rosa e sua Conversa de botequim, Elis Regina cantando uma música de autoria de Pelé, ou Continente Multicultural 21


Música

não considerar muito o título de uma canção escrita por Milton Nascimento e Fernando Brant em 1970: Aqui é o país do futebol. Qual seria a razão para a ausência de uma Linha de passe (outro “momento”, este de João Bosco e Aldir Blanc) na música brasileira? Para o crítico de música do site no.com.br e colunista do jornal O Globo, Arthur Dapieve, é como se os artistas não julgassem o assunto nobre o bastante para ocupar sua atenção. “No fundo me parece sentimento de culpa diante daquele velho lugar comum pseudo-marxista – o futebol é o ópio do povo”. Dapieve, autor do livro BRock: o rock brasileiro dos anos 80, adverte ainda: “Preocupante é que as gerações mais novas, em tese livres desse tipo de patrulhamento, tenham herdado esse cacoete de olhar para o esporte em geral e para o futebol em particular como uma coisa menor. Deus! Os Red Hot Chili Peppers têm uma música dedicada aos Los Angeles Lakers!”, reclama. Já Sérgio Cabral considera como “estranha” a baixa incidência do futebol em nossa música. “Não tem explicação”, lamenta. “Devia ter muito mais canções. O futebol é um bom tema. E uma das missões da música popular é justamente servir de crônica, registrando o comportamento das pessoas. O futebol devia evidentemente estar aí”, observa. Os nossos compositores não atentam talvez para o fato de que o futebol é uma espécie de espetáculo grego em que as emoções precisam ser extra-

Foto: Rogério Reis / TYBA

um samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense que falava de Lamartine Babo, compositor de marchas que se transformaram nos hinos populares de quase todos os clubes do Rio de Janeiro. Cabral lembra ainda de um torcedor fanático e adepto da pelada, Chico Buarque, que tem “apenas umas duas ou três músicas sobre o assunto”. A mais famosa delas é O Futebol, poema de reverência a Garrincha e a Pelé. Não é por distância do mundo do futebol que os compositores e músicos do país não retratam a bola com mais freqüência em seu trabalho. Ary Barroso foi goleiro, cartola e locutor esportivo. Marcelo Fromer, dos Titãs, foi comentarista e cronista. Zé Katimba, sambista que virou personagem de Grande Otelo na novela Bandeira 2, de Dias Gomes, da Rede Globo, no início dos anos 70, ganhou o apelido nas peladas do morro. Elizeth Cardoso namorou com Leônidas da Silva. O nosso Lourenço Fonseca Barbosa, o Capiba, foi jogador do América de Campina Grande e artilheiro do Satélite, time dos funcionários do Banco do Brasil (recebendo do pai severas advertências para não se envolver mais nem com o futebol, nem com a música), além de torcedor de carteirinha do Santa Cruz Futebol Clube. Outros ilustres torcedores foram Lupicínio Rodrigues, que compôs o hino do Grêmio, ou Jorge Benjor, flamenguista que eternizou Fio Maravilha na voz de Maria Alcina, no Festival Internacional da Canção, em 1972. Mas a maioria dos artistas parece


Fotos: Alexandre Belém / Titular ; Ivo Gonzalez / O Globo

vasadas não somente na forma de desabafo individual, mas também como identidade coletiva. Os hinos dos clubes servem muito bem a esse propósito, quando são assumidos pelo coração do torcedor. Mas os hinos não bastam para a variação de sensações passadas de dentro para fora do campo. Em uma tarde de julho de 1950, por exemplo, duzentos mil brasileiros entoaram no Maracanã a marchinha Touradas em Madri, de Braguinha. Enquanto a seleção canarinha dava um show no gramado, batendo a seleção espanhola por 6 a 1, a torcida fazia a festa... cantando. Como já fez a festa mudando a letra de O campeão, de Neguinho da Beija-Flor, no começo da década de 80. E quem, dentre os mais velhos, nunca cantou a Marcha do remador, de Oldemar Magalhães, sucesso de Emilinha Borba em 1961? A trajetória de conquistas da seleção brasileira a partir da Copa da Suécia inspirou variadas homenagens. São de Braguinha as marchas Campeão do mundo, de 1958, e O canário vai cantar, de 1978. Jair Rodrigues, em 1962, gravou Brasil sensacional e Marechal da vitória, ambas alusivas ao bicampeonato no Chile. No mesmo ano, a vedete Angelita Martinez deslumbrava os fãs com Mané Garrincha, do carioca Jorge de Castro. E o pernambucano Claudionor Germano atacava de Brasil, campeão do mundo, de Nelson Ferreira e Aldemar Paiva, e de Garrincha cha, um cha cha cha de Rutinaldo. A exploração temática do futebol, afora a seleção brasileira, ídolos e clubes, é restrita. Uma ou outra incursão aparece nas épocas de Carnaval. Como a música No boteco do José, onde Wilson Batista troçava com a torcida do Vasco da Gama, em 1946. Ou como na letra de Vander Lee, Galo e Cruzeiro, que nos foi passada pelo pesquisador Egeu Laus:

“Minha preta não fala comigo/ Desde primeiro de janeiro/ Ela me deu a mala/ Eu fui dormir na sala/ Fiquei sem dinheiro/ Não tem mais feijoada/ Nem vaca atolada/ Rabada ou tropeiro./ Já fez greve de cama/ Diz que não me ama,/ Quebrou meu pandeiro/ Na hora do cruzamento/ Ela deu impedimento/ Ou falta no goleiro/ Pra aumentar meu tormento, meu irmão/ Eu sou Galo e ela é Cruzeiro.” Uma rivalidade transportada para outra, uma paixão espelhada em outra. Uma mostra do que pode ser feito além da exaltação aos craques e aos times. (FL)

Capiba (à direita com camisa do Santa Cruz) em queda-de-braço amigável com o cantor Claudionor Germano, do Náutico

Chico Buarque, apesar de aficionado notório, compôs apenas duas ou três músicas sobre o mundo futebolístico

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Crônica

Torcendo contra Homero Fonseca Ao contrário das artes, a política sempre buscou deliberadamente um casamento com o futebol. Se foi bem sucedida ou não, isso é outra questão. Raposas espertas, os cartolas logo descobriram que a popularidade e a estrutura dos times poderiam ser transformadas em votos. No caminho inverso, políticos de vários matizes, tão raposas quanto, passaram a dedicar-se ao mundo esportivo, à cata de torcedores-eleitores. O resultado é a tal “bancada da bola” no Congresso. Nos Estados e municípios, uns poucos jogadores, sobretudo mineiros, conseguem sentar nas cadeiras das Câmaras e Assembléias, ao menos por um ou dois mandatos. Também os governantes costumam “faturar” prestígio junto a atletas célebres ou por ocasião de grandes conquistas esportivas, especialmente a Copa do Mundo. Ah, Copa do Mundo, quanta coisa patética se pratica em teu nome! Em 1938, o Estado Novo já tentara incorporar ao seu ideário o sentimento de nacionalidade despertado pela seleção que ficou em 3º lugar na Copa da França. O caso mais marcante, sem dúvida, aconteceu em 1970, quando a conquista do tricampeonato mundial, no México, foi apropriada pela ditadura militar. Era a época do “Pra frente, Brasil!” Mas o caso que se pretende contar passouse em 1966, na trepidante cidade de Caruaru. Um grupo de estudantes politizados profeticamente antevia a manipulação de uma eventual conquista da taça pelo regime autoritário. E organizou-se para torcer contra. Éramos – eu, Adalberon, Ivan, Miguel, Noba, Zito e outros – todos peladeiros e torcedores do Sport, Náutico, Santa Cruz ou Central, e além disso, naturalmente, amávamos a Revolução socialista. 24 Continente Multicultural

A Seleção Brasileira que foi a Londres era uma equipe desconjuntada, mal treinada e indefinida, apesar de contar com meia dúzia de cobras, incluindo Pelé e Garrincha. Na estréia, em 12 de julho, nosso grupo reuniu-se na escadaria da Matriz, radinho de pilha à mão, para acompanhar Brasil 2 x 0 Bulgária. Ninguém ficou muito contrariado com o resultado. No segundo jogo, em 15 de julho, os camaradas húngaros exageraram e venceram por 3 a 1. Então, veio a última partida das oitavas de final, contra Portugal, num fatídico 19 de julho. Uma derrota nos alijaria definitivamente da Copa. Aos 15 minutos, Simões faz 1 a 0 para Portugal. Humm! Pelé quase empata, mas Vicente, jogando uma partida inspirada, salva em cima do lance. Aos 27 minutos, Eusébio aumenta para 2 a 0. Epa! No segundo tempo, o lateral esquerdo Rildo, pernambucano, diminui o placar. Ufa! Novamente Pelé, quando ia empatando, é desarmado por Vicente. O Negão, com certeza, não estava totalmente recuperado de uma contusão! Então, aos 40 do 2º tempo, Eusébio, marca de novo! Mãos suadas, olhos fitando o vazio, a rapaziada acompanhava os últimos minutos da partida. Eis que Silva, centroavante do Flamengo, pega uma bola, livre, na grande área, e perde o gol feito: Filho de uma puta!!! Logo depois, o juiz apita, encerrando o jogo. Desligamos o radinho e descemos as escadarias da igreja. Ninguém falava. O palavrão, gritado em uníssono quando Silva falhara diante da meta lusa, expressara de forma suficientemente enfática a derrota da ideologia diante do futebol.


Viagem

Japão

O país das tradições feéricas Um dos cenários da Copa do Mundo, o Japão de hoje é um laboratório onde tradição e modernidade se entrelaçam a todo momento

Foto: Reuters

Marcelo Abreu De um grande pachinko, a casa de diversões eletrônicas japonesa, sai o brilho das luzes, os raios prateados das máquinas e um zumbido indefinido das bolinhas de pinball rolando entre luzes coloridas que piscam, percorrendo superfícies de metal. Barulho de moedas caindo como num grande cassino. Lá dentro, homens e jovens japoneses fumam compulsivamente de olhos grudados nas máquinas. Aqui fora na calçada não há estrangeiros à vista. Na Estação Shinjuko, o formigueiro humano se intensifica e eu passo uns bons minutos estudando a forma de comprar um bilhete de metrô e vencer a multidão. Circular pelo bairro de Shinjuko, em Tóquio, é uma das mais estimulantes experiências japonesas. Procuro algo para comer, se é que o estômago terá vontade de funcionar junto à hiperatividade dos olhos diante do cenário completamente pós-industrial e feérico que é a noite em Shinjuko. Irashaimase! Irashaimase! – dizem os funcionários em frente das lojas, restaurantes e casas noturnas. Em alguns lugares a saudação é repetida por uma gravação, com voz de mulher. O convite

para entrar, sintetizado na expressão “irashaimase”, mistura-se ao barulho dos pachinkos, à musica de algumas lojas, aos diálogos dos passantes. Tóquio é uma cidade dos 80 mil restaurantes e muitos deles estão em Shinjuku. Observo as reproduções dos pratos de comida, colocadas na vitrine de um restaurante simples. Comida de plástico, tão atraente quando os pratos verdadeiros. Em japonês rudimentar, pergunto a um rapaz que também observa a vitrine qual a forma de leitura daqueles caracteres que representam o prato que eu escolhi parta comer. Ele hesita um pouco e, por fim, admite: – Eu também não sei ler isso... Mas observando a réplica da comida na vitrine, ele acrescenta: – Peça por futê shoko. Basta dizer futê shoku. “Irashaimase! Irashaimase!” – gritam os atendentes lavando pratos do outro lado do balcão ao me verem entrar. Os clientes, entretidos com os seus ensopados, udon e sobas, nem se voltam para olhar quem chegou. O primeiro atendente se aproxima e eu arrisco:

O colorido das Gueixas é imagem praticamente do passado

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– Futê Shoko o kudasai! – Hai! – exclama o japonês como se dissesse um enfático “é prá já”.

Este é o país do trem. Há o chokkoo (trem direto), o densha (trem elétrico), o junkkyu (o semiexpresso), o kyuukoo (expresso), o choo tokkyu (superexpresso), o kaisoko (veloz), o resha (trem de longa distância), entre outros. E, é claro, há o shinkansen, o trem-bala japonês que, por sua vez, tem três versões diferentes No sistema de som, uma música tradicional no estilo hogaku, cantada por uma mulher acompanhada por um koto, o antigo instrumento de corda das cortes japonesas. Essa música tribal, esses pratos exóticos, o sujeito que não consegue ler o cardápio escrito em kanji, os caracteres chineses... E disseram que Tóquio era ocidentalizada... A capital japonesa não sediará propriamente nenhum jogo da Copa do Mundo mas certamente vai hipnotizar aqueles que forem ao Japão com os contrastes que oferece. A decadência ocidental de Roppongi, o bazar high-tech que é Akihabara, o enorme mercado de peixe de Tsukiji, a riqueza e sofisticação silenciosa de Ginza, a simplicidade suburbana de Ikebukuro, a decadente e futurista Shinjuku, expressão máxima do pop na virada do milênio, Harajuko, ocidentalizada, jovem e elegante, Shibuya e seu parque Yoyogi, o templo xintoísta de Meiji; Asakusa, budista e tradicional. Tradição e modernidade se entrelaçando a todo momento. E um delicioso sabor de anos 60, na moda feminina, na arquitetura gerada na reconstrução do pós-guerra. Este é o país do trem. Há o chokkoo (trem direto), o densha (trem elétrico), o junkkyu (o semiexpresso), o kyuukoo (expresso), o choo tokkyu (superexpresso), o kaisoko (veloz), o resha (trem de longa 26 Continente Multicultural

distância), entre outros. E, é claro, há o shinkansen, o trem-bala japonês que, por sua vez, tem três versões diferentes. Tokyo eki é a estação central da capital do país do trens. Shinkansen, o trem-bala, símbolo da modernidade japonesa. Aguardo o trem de olho no grande relógio digital e, pelo número da minha reserva, já sei em que trecho da enorme plataforma devo esperar o meu vagão. Quando o trem chegou, eu entrei no bólido e me acomodei em uma cadeira confortável. Os japoneses foram entrando de forma discreta, como fazem rotineiramente. O interior do trem mais parecia um avião. Pouco antes da partida houve anúncios em japonês e em inglês e zarpamos na hora exata sem fazer barulho, sem trepidação. Passamos por subúrbios de Tóquio, nos quais as casas ficam a poucos metros da linha férrea, e lá fomos para o Oeste em direção a Nagoya. Muitos japoneses comiam suas refeições em caixinhas de bentô muito convidativas e eu tentava enxergar os arredores de Yokohama e a região do monte Fuji. É tudo muito rápido e há pouco o que se ver devido à seqüência de túneis. Quando consegue-se ver algo do lado de fora, ou são montanhas com vegetação escura ou planícies cheias de casas cercadas por arrozais. Nenhum espaço é desaproveitado e o país parece superlotado de gente. Paramos em Nagoya por uns minutos e seguimos pela cidade grande e quente num sábado de manhã em direção a Quioto. Depois de alojado na velha capital, saí para uma grande caminhada à pé até o centro da Quioto. Caminhada enfadonha porque a cidade é um quadriculado monótono de ruas modernas e sem o charme do Oriente nem os estímulos sensoriais de Tóquio. As tão faladas atrações históricas – os templos antigos – estão nos subúrbios muito distantes uns dos outros. Em Quioto, andei pelo bairro noturno chamado Gion, nas proximidades do rio Kamo. Cinqüentões com cabelo engomado, paletós e óculos escuros, caminhavam em companhia de esposas submissas enquanto garotas de programa entravam


Foto: AFP

O trem-bala, um dos símbolos da modernidade do Japão

e saíam de inferninhos por toda parte. As gueixas das fábulas não apareceram e eu bati perna em vão durante horas procura ver uma só mulher que usasse de quimono florido, peruca preta armada sobre o cabelo, leque na mão e rosto cheio de pó branco. De shinkansen, Quioto fica a apenas 16 minutos da estação de Shin Osaka, já na segunda maior cidade do país, a rebelde Osaka. Cidade grande e cheia de gente. Mas um trem, agora para Hiroshima, onde queria ficar apenas algumas horas. A mesma história de túneis, montanhas e planícies com gente morando em pequenas casas. Na estação de Hiroshima, minha grande mochila não coube nos guardadores de bagagem automáticos. Procurei ajuda em um posto de polícia. Os guardas se assustaram ao me ver entrar e pediram logo para eu assinar o nome em um grande livro de ocorrências. Tentei tranqüilizá-los. – Está tudo bem. Queria apenas saber se posso guardar a mochila. Um policial me explicou que não era permitido guardar pacotes no posto de vigia mas se dispôs a me levar a uma lavanderia (?!) onde eu paguei uma taxa para deixar a bagagem por algumas horas. Na volta, ele me perguntou: – Burazíru, eh? Os heróis nacionais do seu país são Pelé e Ayrton Senna, não são? Respondi que sim. Quando a conversa parecia engrenar, de repente o policial lembrou-se do dever e pediu desculpas dando uma continência. – Tenho de voltar. Com licença e adeus – disse empertigado e sumiu como um super-herói, ao

ser alertado por uma emergência em filme de produção japonesa. Mais um trem-bala, desta vez para FukuokaHakata. Passamos pela estação de Shimonoseki e atravessamos o mar pelo túnel de Kammon entre as ilhas de Honshu e Kyushu. No finalzinho da tarde cheguei à estação. Fim da linha do Shinkansen, 1.175 quilômetros percorridos de Tóquio até FukuokaHakata (dos 21 mil quilômetros de ferrovia que cobrem o país). O Nozomi (o mais moderno dos trens-bala) faria a viagem em 5h04min. O Hikari em 5h48min. Eu fiz em mais de quatro dias incluindo todas as paradas, viajando de Hikari e de Kodama (um outro tipo de trem-bala). À noite saí para ver a cidade e, depois de andar muito em direção ao norte, me perdi na iluminação feérica de Fukuoka. Parei numa esquina para observar um restaurante luxuoso tradicional com imensos pratos nas vitrines: reproduções de camarões enormes e excentricidades do fundo do mar. Lá de dentro saía uma música primitiva como a que havia escutado na lanchonete da minha primeira noite em Tóquio. Uma música tribal, cantada por uma mulher que toca koto acompanhada de tambores. A música, os pratos exóticos e o neón das ruas sintetizam a experiência sensorial shogun-século 21 que define o Japão da atualidade.

Marcelo Abreu é jornalista

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Coréia do Sul

O tigre preso ao século 20 A mistura do passado budista e confucionista com o progresso econômico das últimas décadas convive também com uma peculiar situação geopolítica. A península coreana é um dos lugares do mundo onde o século 20 parece não ter ainda acabado Há milhares de anos, quando Hwanung, o filho dos céus, governava tudo, havia na Terra um urso e um tigre que queriam muito se tornar humanos. Rezaram tanto para que isso acontecesse que Hwanung resolveu realizar o desejo. Mas determinou, como condição para atender ao pedido, que o tigre e o urso ficassem cem dias em uma caverna escura, alimentando-se somente de alho. O tigre não passou no teste e, desesperado por não poder caçar, fugiu da caverna. Mas o urso conseguiu agüentar o sacrifício e, ao final da provação, foi recompensado transformando-se em uma mulher. Esta mulher casou-se com Hwanung e teve um filho chamado Dangun, que estabeleceu o reino de Go Joseon em 2333 a.C.. Estava fundado o primeiro reino unificado da Coréia. Até hoje, muitos sul-coreanos contam a data a partir deste acontecimento mítico. No Mercado de Namdaemun, próximo ao centro de Seul, mulheres baixinhas percorrem as ruelas estreitas usando calças compridas balofas e carregando nas costas cestos de palha enormes. Comerciantes nas lojinhas colocam temperos tradicionais à venda em grandes montes formados no chão. Parece a velha Ásia exótica e parada no tempo. Cinco grandes palácios da época da dinastia Yi (que governou o país de 1394 até 1910) estão presentes na capital, todos conservados com belos tetos de madeira ornamentados por pinturas coloridas. Seul preserva também santuários religiosos, templos budistas, jardins tradicionais. 28 Continente Multicultural

Entre uma e outra imagem do passado, Seul, a capital sul-coreana, uma das sedes da Copa do Mundo de 2002, apresenta um emaranhado de símbolos do presente capazes de afastar qualquer lembrança das tradições seculares. Mais de 11 milhões de pessoas convivem nesse aglomerado humano que exibe todo o poder da economia coreana. A menos de 500 metros do tradicional Namdaemun, Seul revela-se a capital de um tigre asiático – tigre no sentido econômico do termo. Na rua Sejong edifícios altos abrigam grandes telões com propaganda de multinacionais, muitas delas multinacionais genuinamente coreanas. Na ilha de Youido, localizada no rio Han, que corta a capital, arranha-céus que lembram uma pequena Manhattan, orgulho de parte da população mais voltada para os valores do Ocidente. A mistura do passado budista e confucionista com o progresso econômico das últimas décadas convive também com uma peculiar situação geopolítica. A península coreana é um dos lugares do mundo onde o século 20 parece não ter ainda acabado. O país permanece dividido entre o sul capitalista e o norte comunista; o movimento estudantil ainda é radical; as marcas da ocupação japonesa – encerrada há 57 anos – ainda estão presentes e o drama da opressão estrangeira ainda não foi apagado. Não que os coreanos não tentem. Até 1996, nos jardins do grande Palácio de Gyeongbok, o maior da cidade, ficava o Museu Na-


Foto: Kim Kyung-hoon / Reuters

Mas se o Japão é execrado em todas as oportunidades, ninguém consegue parar a influência econômica do vizinho do leste. A economia sul-coreana, a maior história de sucesso econômico dos últimos trinta anos, se baseou muito no modelo japonês cional instalado em um prédio construído pelos japoneses nos anos 30. O edifício lembrava o caractere usado para escrever a palavra Japão e era odiado pelos coreanos. O prédio acabou sendo demolido e o museu está temporariamente relocado para outras instalações. Na tentativa de apagar traços da opressão, não se sabe se a estação ferroviária e o prédio central dos correios – também construídos pelos japoneses – vão ainda ficar de pé por muito tempo. Mas se o Japão é execrado em todas as oportunidades, ninguém consegue parar a influência econômica do vizinho do leste. A economia sul-coreana, a maior história de sucesso econômico dos últimos trinta anos, se baseou muito no modelo japonês: trabalho duro, incentivo à formação de grande empresas com subsídios estatais, produção acelerada na indústria pesada (estaleiros e aço) e, por fim, a produção de bens de consumo exportados para os quatro cantos do planeta. Apesar do desenvolvimento, a Coréia do Sul ainda é um segredo para muita gente e um país pouco visitado por estrangeiros. Numa noite inteira percorri o bairro universitário de Hong Ik, na capital. Nenhum sinal de revoltas juvenis. A militância ainda é forte mas às dez da noite o moçada prefere se divertir em bares, boates e restaurantes esfuma-

çados. Num restaurante tradicionais, sento-me com um casal de amigos locais. No local eu sou o único ser extraplanetário experimentando comidas e temperos exóticos. Sentado em almofadas no chão e descalço, comendo com utensílios tradicionais de metal, vou driblando a comida apimentada. A apenas uma hora de Seul, em direção ao norte, fica o Paralelo 38, a infame linha divisória – que está longe de ser apenas uma linha imaginária. A área é controlada por 37 mil militares norte-americanos juntamente com tropas sul-coreanas. É lá que se localiza o vilarejo de Panmunjom, que representa a fronteira entre a Coréia do Sul e a Coréia do Norte, país ainda governado por um regime comunista dogmático. Uma boa parte dos coreanos do sul tem familiares “do lado de lá” – e o assunto da divisão nacional, muito mais do que uma curiosidade histórica, é central na vida da população. O governo da Coréia do Norte chegou até a insinuar de que gostaria de participar da Copa, sediando alguns jogos. Logo ficou claro que as dificuldades burocráticas e logísticas seriam insuperáveis. A reunificação do país ainda em um sonho a médio ou longo prazo para a maior parte dos coreanos. (MA)

A Copa do Mundo atrairá para a Coréia do Sul os turistas, ainda raros

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FERREIRA GULLAR

Arte conceitual e atualidade Pode a arte se ajustar, como os produtos industriais, às megaexposições internacionais bienais?

P

Telefone-lagosta, de Salvador Dalí (c. 1936) 18 x 12,5 x 30,5 cm

or mais desfavorável que seja nossa opinião acerca da arte conceitual, não pode ignorar o fato de que esta tendência está presente, mais que qualquer outra, em nossa vida cultural, ocupando as salas de exposições, os museus e as bienais. Este fato, por si só, indica que a arte conceitual tem a ver com a realidade em que vivemos, com nossa época, com os fatores culturais que a balizam e definem. Por isso, se quisermos ter dela uma visão correta, como fenômeno cultural que é, temos que levar em conta alguns fatores que nem sempre são considerados quando se discutem tais problemas. São fatores ligados ao funcionamento do meio artístico, isto é, ao sistema institucional que possibilita a circulação das obras de arte, sua exposição e difusão. Para melhor apreendermos o problema, voltemos aos começos do século 20, quando têm início as drásticas mudanças estéticas que dariam origem aos movimentos artísticos daquele século e, como conseqüência delas ou das mesmas causas que as geraram, o surgimento dos museus de arte moderna e instituições internacionais ligadas à exibição e promoção da arte contemporânea. Dentre essas, destaca-se a Bienal de Veneza, fundada em 1895, que passa depois a desempenhar um papel muito importante nas décadas seguintes. Esta se torna uma espécie de centro onde as tendências artísticas mais marcantes e reconhecidas encontram sua melhor representação. Se é verdade que a proliferação de tendências faz com que as mostras internacionais se multipliquem, pouco a pouco as grandes exposições abrangentes vão se impondo. Em 1951, nasce a Bienal de São Paulo, que vem desempenhar um duplo papel:

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amplia a tendência às grandes mostras abrangentes e introduz a América Latina no sistema internacional de arte. Em 1959, surge a Bienal de Paris, voltada para arte de artistas jovens. Mas o que significa o surgimento dessas exposições internacionais, que estou chamando aqui de “abrangentes”? São certames que pretendem mostrar a arte atual do mundo inteiro, ou seja, nascem do processo de globalização, que se intensificou a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Este processo, como se sabe, foi impulsionado pelo desenvolvimento econômico e o progresso técnico, tanto no campo de comunicação como dos transportes. O mundo vai se transformando na “aldeia global”, de que falava McLuhan, e, com isso, amplia-se em termos mundiais o mercado de arte, de que essas megaexposições são expressão no plano comercial. Algo parecido com as feiras internacionais de automóveis ou de eletrodomésticos. E aqui tocamos num ponto importante do


Imagens: Reprodução

Piano Integral, de Nam June Paik (1958-1963) 136 x 140 x 65 cm

problema: a arte se ajusta, como os produtos industriais, a essas megaexposições internacionais bienais? A produção artística é capaz de, preservando sua natureza e exigências, atender a essa demanda? A resposta, no meu entender, é não. Preservar a natureza da obra de arte, como a concebemos, é vê-la como criação desinteressada e expressão de intuições e descobertas poéticas, o que implica sutil e demorado trabalho com a linguagem. Esta liberdade e independência do artista é que torna possível aprofundar a expressão e efetivamente inovar. Entendida deste modo, a arte situa-se no pólo oposto ao da produção industrial que, mesmo quando se vale do estético, visa prioritariamente à venda e, por isso mesmo, atender ao gosto da maioria; como o objetivo final é o lucro, torna-se imprescindível economizar o tempo gasto na produção e produzir em grande quantidade. Por essas características, a produção industrial atende naturalmente aos apelos de um universo em que a rapidez e a quantidade contam mais que a maturação e a qualidade estética. No artigo anterior, nos referimos rapidamente à semelhança entre as megabienais de arte e as feiras de produtos industriais. É um fato que merece atenção porque tem implicações mais importantes sobre o curso da arte do que pode parecer à primeira vista. A globalização, na medida em que provocou e possibilitou certames internacionais, reuniu num mesmo recinto manifestações artísticas de dezenas de países, que possuem características culturais distintas e não apresentam o mesmo nível de desenvolvimento econômico e tecnológico. O resultado inevitável, numa primeira etapa, foi a imposição das tendências artísticas dos países hegemônicos sobre os demais. Outro aspecto desse processo de homogeneização cultural – e como conseqüência dessa homogeneização – foi o esgotamento das experiências inovadoras, que se impunham como justificação necessária dessas mega-

exposições internacionais. De fato, que sentido teria realizá-las se não fosse para mostrar (como no caso das feiras industriais) as últimas novidades do setor? Deste modo, tornada a novidade condição si ne qua non para participar dessas mostras, os artistas que permaneciam fiéis a suas exigências estéticas foram sendo aos poucos descartados delas e substituídos por um novo tipo de artista bem mais ajustado à nova visão: daí a teoria de arte efêmera, que se ajusta perfeitamente a um universo artístico movido pela exibição de “novas atrações”. Não quero simplificar a questão, que sei complexa e multideterminada. Não ignoro que a busca sôfrega pela novidade tem também raízes na ruptura – anterior às megaexposições – com os princípios tradicionais da arte, que começa com o Cubismo e desemboca no niilismo dadaísta. Não resta dúvida, porém, que os fatores mencionados – a globalização e os certames internacionais – ofereceram um caminho propício às tendências radicais que denunciavam o valor estético como mero hábito. Esta visão duchampiana – que conduziu seu inventor a uma produção extremamente limitada de obras –, ao ser apropriada pela “nova classe” do mundo da arte, abriu caminho para uma espécie de vale-tudo, onde a improvisação se sobrepõe a qualquer norma ou princípio. A presença dessa tendência hoje no Brasil e no mundo torna descabido negá-la como um fato cultural da época. Queiramos ou não, a aprovemos ou não, ela existe e conta com o apoio, em nível nacional e internacional, de museus e institutos culturais. À margem dela, os João Câmara, os Siron, os Brennand, os Samico, os Amílcar, os Weissmann, os Antônio Henrique, continuam a produzir uma arte que insiste em afirmar a capacidade do homem. Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

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Cinema O cineasta francês Bertrand Tavernier, diretor do filme Laissez-Passer (2002)

Bertrand Tavernier Cinema de Resistência Luciano Trigo

Foto: Alain Julien / AFP

Diretor ataca os críticos de seu novo filme, Laissez-Passer, sobre cineastas franceses que trabalharam durante a Ocupação alemã

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ntre 1940 e 1944, na França ocupada pelos nazistas, uma produtora de cinema alemã contratou pretigiosos profissionais locais e realizou cerca de 30 filmes, e entre eles alguns se tornaram clássicos do cinema francês. O diretor Bertrand Tavernier decidiu visitar esse período difícil da História através da trajetória de dois personagens reais que tiveram que se confrontar com enormes desafios: Jean Devaivre, diretor, e Jean Aurenche, poeta e roteirista. Em duas horas e 50 minutos, seu filme Laissez-Passer discute a necessidade de se fazer escolhas e a possibilidade de formas alternativas de resistência. Era possível para um profissional do cinema continuar trabalhando sem trair seu país? Era viável resistir às idéias impostas pelos alemães durante o regime de Vichy? Aurenche e Devaivre provaram que sim. “Não se trata de dividir os franceses entre resistentes e colaboradores”, explica Tavernier. “As coisas não eram tão simples”. Por isso, Laissez-Passer evita qualquer espécie de julgamento moral, limitando-se a registrar o cotidiano de gente comum ligada ao cinema, em 1942. Bertrand Tavernier nasceu em Lyon, em 1941. Trabalhou como crítico, roteirista, ator e assistente de direção antes de dirigir seus próprios filmes. O primeiro foi O Relojoeiro de St. Paul (1973), seguindo-se O Juiz e o Assassino (1976), La Mort en Direct (1980) e Por Volta da Meia-Noite (1986, com o saxofonista americano Dexter Gordon). Teve atuação marcante na política cultural de seu país, presidindo entidades como a Sociedade de Realizadores Franceses e a Associação de Realizadores Europeus, e comandou debates sobre as leis de produção e distribuição do cinema e dos direitos autorais, contribuindo decisivamente para que a França seja o país com a legislação mais avançada do mundo em matéria de cinema. Também escreveu livros hoje considerados clássicos, como Trinta Anos de Cinema Americano. Intelectual politicamente engajado, Tavernier encabeçou, ainda, movimentos de lutas pelos direitos sociais e em defesa dos imigrantes, o que o levou a dirigir diversos documentários políticos, um deles sobre a Guerra da Argélia. Um de seus últimos filmes, Histoires des Vies Brisées (2001), fala sobre os problemas dos imigrantes ilegais que são extraditados da França depois de viverem anos no país, rompendo todos os seus laços familiares e sociais e voltando para um lugar que já não conhecem.

Nesta entrevista exclusiva, concedida durante o último Festival de Cinema de Mar del Plata, Bertrand Tavernier falou sobre Laissez-Passer e passou em revista temas importantes de sua obra. Muitos cineastas franceses, como François Truffaut e Jean-L Luc Godard, começaram como críticos. Fale sobre a sua própria experiência como crítico de cinema. Eu nunca me considerei um crítico, só escrevia sobre cinema como uma forma de ganhar a vida antes de poder dirigir meus próprios filmes. Fui mais um historiador e um explorador que um crítico, e tentava falar apenas sobre os diretores de que gostava. E também escrevi livros sobre a história do cinema americano. Hoje lamento os poucos artigos negativos que escrevi, entre eles uma crítica a Cão Raivoso, de Kurosawa. Eu simplesmente não tinha entendido o filme, que hoje considero magnífico. Mas o que me diferencia dos críticos de cinema é justamente isso: eu confesso os meus equívocos (risos). Qual é sua avaliação da “política dos autores”, que revolucionou o cinema francês nos anos 60? Nunca soube o que significa a política dos autores. Se é uma expressão que serve para afirmar que o diretor é o autor de um filme, tudo bem. Mas esta não é uma regra absoluta. Em muitos casos, existe uma negociação com o roteirista e o produtor, e às vezes o diretor é um mero executor. E como você analisa hoje a Nouvelle Vague? Um crítico chegou a escrever, sobre LaissezPasser: “A Nouvelle Vague é a grande ausente deste filme”. Ora, isso é o mesmo que lamentar que o cinema iraniano esteja ausente nos filmes de Stanley Kubrick. Não nego a importância da Nouvelle Vague, mas existem outras maneiras de se fazer cine-

“Lamento os artigos negativos que escrevi, entre eles um sobre Cão Raivoso, de Kurosawa. Eu não tinha entendido o filme. É isso o que me diferencia dos críticos de cinema: eu confesso os meus equívocos” Continente Multicultural 35


“Uma época, por si só, não constitui um tema, mas os percursos individuais, sim. Num filme de época, o cuidado com a reconstituição importa menos que colocar as questões certas”

Como nasceu a idéia de filmar Laissez-P Passer? Antes de tudo, nasceu do meu desejo de explorar um momento da História que eu não conhecia em sua totalidade. É difícil resumir em poucas palavras um filme que levei três anos para fazer. Meu mestre Michael Powell, diretor de O Ladrão de Bagdá, dizia que fazia filmes para aprender. Eu queria ser o autor dessa frase, pois sempre filmo para aprender. No caso, a minha curiosidade era saber mais a respeito de como era a vida dos cineastas e da gente ligada ao cinema durante a Ocupação. Ou seja, quis investigar um momento da História que eu não conhecia bem, e depois quis compartilhar as minhas descobertas sobre os bastidores da produtora Continental, dirigida pelo alemão francófilo Alfred Greven, que conhecia e admirava o trabalho de Henri-Georges Clouzot. Goebbels, que aliás também era um grande admirador do cinema, enviou Greven para a França porque os dois estavam apaixonados pela mesma atriz, e assim ele eliminava um rival (risos). Há muito tempo eu queria fazer um filme passado durante a Ocupação, mas não encontrava o ângulo certo. Foi meu encontro com Jean Devaivre, com suas lembranças, além de histórias fantásticas que outras pessoas me contaram sobre ele e Aurenche, que me fez começar a trabalhar, pois tinha um tema fabuloso nas mãos. Porque uma época, por si só, não constitui um tema, mas os percursos individuais, sim. Então a época se manifesta através de personagens singulares, de sentimentos pessoais, como a dor, o medo, 36 Continente Multicultural

a insegurança provocada pelos bombardeios, pelos controles de tráfego etc. Trabalho com pontos de vista precisos, concretos. O filme coloca a questão da escolha que os profissionais de cinema tiveram que fazer durante a Ocupação... Sim, e cada escolha podia ser decisiva. Durante aqueles quatro anos houve diversas formas de resistência. Eram profissionais no exercício de sua atividade, que precisavam provar que não tinham sido esmagados pelos nazistas. Por exemplo, a fidelidade de Jean Devaivre ao roteiro corajoso de Maurice Tourneur em La Main du Diable já foi uma forma de resistir, ou pelo menos de não se resignar. Devaivre resistia de forma instintiva, enquanto Jean Aurenche, mais intelectual, racionalizava a resistência. Mas é difícil traçar a fronteira exata entre uma conduta digna e outra nem tanto. E eu não queria apontar bandidos e mocinhos, mas simplesmente tentar compreender como os diretores, roteiristas, técnicos, atores e figurantes reagiam ao serem confrontados com essa situação. O que me interessava eram as escolhas das pessoas comuns, menos conhecidas, investigar qual era a fronteira entre fazer um trabalho honesto e se comprometer, entre a necessidade de sobreviver e o risco de colaborar com os nazistas. Muitas vezes eu mesmo me perguntei: como eu teria agido? Acho que, num filme de época, o acúmulo de informações e o cuidado com a reconstituição importam menos que colocar as questões certas, aquelas das quais não se conhecem de antemão as respostas. Foi uma época boa do cinema francês, apesar da Ocupação? Durante a Ocupação, o cinema deveria ser basicamente uma distração, mas em muitos casos também serviu para dar coragem às pessoas. Os filmes não passavam mensagens explícitas de resistência, seria impossível, mas conseguiam suscitar uma nova esperança, um impulso de combate à resignação. E, mesmo com a pressão nazista, foram

Foto: AFP

ma. Alguns críticos revelam uma incapacidade absurda de entender que se pode fazer um filme sobre uma realidade que não tem nada a ver com a nossa. Nenhuma escola isoladamente pode ter a pretensão de representar a modernidade, porque há dez maneiras diferentes de ser moderno. Tenho medo deste tipo de postura. Afinal de contas, a globalização é moderna, então opor-se a ela seria uma atitude reacionária? Além disso, no cinema, só se sabe se um filme é realmente moderno dez ou vinte anos após sua realização.


suas mudanças de posição em relação ao Comunismo, foi um resistente de primeira hora, e Charles Spaak, que chegou a escrever um roteiro na prisão. Mas de que forma era possível passar uma mensagem de resistência em filmes produzidos pelos alemães? Escrever um roteiro que não apoiasse explicitamente o Nazismo já era uma forma de resistência. Lembro de um filme de Claude Autant-Lara que mostrava uma aristocrata visitando uma casa muito humilde e dizendo a seus moradores que era necessário ter paciência e resignação – era esta a mensagem do Marechal Pétain aos franceses – e outro personagem responde dizendo que não, ao contrário, era preciso desejar a impaciência e a revolta. Ou seja, era uma mensagem claramente subversiva, num filme realizado em plena Ocupação. Foi um ato de extrema coragem, e como ele muitos outros artistas correram riscos. Da mesma forma foi um ato de coragem do inglês Michael Powell filmar Paralelo 49 no Canadá, no mesmo ano, exortando os americanos a entrarem na guerra, atravessando o oceano infestado de submarinos alemães. Eu entrevistei muitas pessoas que viveram a Ocupação, a realidade de um país humilhado, batido, moralmente destruído, e que encontravam conforto nos filmes íntegros, de qualidade e ambição artística, que alguns cineastas insistiam em fazer. Filmes que despertavam orgulho e sentimentos fortes, quando a ordem era fazer filmes

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A arte continua sendo uma arma de resistência? Em todas as épocas, e agora mais do que nunca, a arte é uma arma, algo que nos dá coragem e calor. A arte, seja no cinema, na música ou no teatro, é a resposta número um a tudo o que nos ameaça, às ditaduras, aos integrismos religiosos, ao liberalismo econômico ultrajante, à globalização, ao monopólio da imagem. A curiosidade intelectual, a paixão artística e o espírito aberto são as respostas a essas ditaduras. Mas o fato é que hoje existem ditaduras muito mais difíceis de combater que as tiranias políticas, em que era fácil identificar o inimigo. Hoje as ditaduras não têm rosto, é difícil identificar os responsáveis pela globalização. Você acha que faltam ideais à nova geração de cineastas? Algumas pessoas lutam, mas de forma diferente, em outros campos de batalha. Mas muitos são individualistas e não enxergam nenhuma causa para lutar. Acho que existem pontos comuns entre o passado e o presente, e que podemos tirar do passado

Foto: AFP

A atriz Marie Gillain, em cena do filme LaissezPasser

leves, menos ambiciosos, de entretenimento. Uma cena do Laissez-Passer é inspirada nas memórias de Georges Hiverneau, que conta que estava desesperado, na prisão, quando viu outro prisioneiro escrevendo a lápis, em papel de pão, sobre Stendhal. Isso lhe deu uma coragem imensa. Quando fiz meu primeiro filme, quis trabalhar com profissionais que tiveram uma atitude digna e estavam desempregados, às vezes por causa de uma crítica negativa de Truffaut. Ele, como André Bazin e Roger Tailleur cometeram alguns erros graves de avaliação, como outros intelectuais de inspiração maoísta, e nunca se retrataram, não só em relação ao cinema. Philippe Sollers foi tratado como um agente da CIA, por exemplo, e George Orwell foi criticado por denunciar o stalinismo. A imprensa comunista os atacou com uma violência execrável.


Foto: Monica Guiremand / AFP

uma lição, aprender com seu “espírito” de resistência, que nossa época também exige. A idéia de resistência não me parece velha nem ridícula, absolutamente.

Que importância você atribui ao roteiro? Um bom roteiro é como uma carta de amor que o roteirista entrega ao diretor. E o diretor responde com outra carta de amor, que é o filme em si.

Você já foi criticado por praticar um modelo de cinema clássico, conservador... Não defendo o cinema clássico de forma alguma, muito menos em Laissez-Passer. É uma crítica estúpida, meu estilo é totalmente oposto aos dogmas do cinema clássico, em relação à estrutura narrativa – em Laissez-Passer não existe um clímax apoteótico, por exemplo – mas também no uso da luz, de cenários naturais, sem estúdios, nos diálogos. Por exemplo, a iluminação reforça a idéia de uma Paris esmagada, cinzenta, de uma forma ausente no cinema clássico. O fato é que um cineasta como Robert Altman me influenciou muito mais que os diretores clássicos dos anos 40 – com exceção de Jean Renoir, pela liberdade narrativa de filmes como A Grande Ilusão. Contesto essa crítica, ela é idiota, falsa e absurda. Muitos atacaram também a longa duração do filme (2h50), mas estou convencido de que ela é necessária. Há uma espécie de tensão, de incerteza, de complexidade, que só encontrariam expressão num ritmo lento. Os movimentos de câmera traduzem a indecisão dos personagens – movimentos caóticos, incertos, que correspondem ao caos interior dos personagens. E no entanto Laissez-Passer recebeu críticas muito duras, chegaram a me acusar de fazer o elogio da colaboração! Ou a afirmar que eu acho que a Ocupação foi benéfica para o cinema francês, e que a Nouvelle Vague teria rompido essa situação idílica. É uma vergonha. Tenho a impressão de estar lutando contra encíclicas papais, que colocam, de um lado, Godard e Truffaut, e de outro, Clouzot e Autant-Lara.

Qual foi a repercussão de Laissez-P Passer na França? Extraordinária. A maioria das críticas, apesar das exceções que já citei, considerou que se trata de meu melhor filme, e recebi cartas emocionadas de centenas de espectadores. Eu me sinto feliz quando recebo cartas de jovens que só viam filmes americanos e me escrevem depois de ver Laissez-Passer na escola. E recebi dois prêmios no Festival de Berlim. É o meu filme de que mais gosto, ao lado de Le Juge et l’assassin (1975), Un Dimanche à la Campagne (1984) e Ça Commence Aujourd’hui (1999). O de que menos gosto é Que la Fête Commence (1974). Mas procuro não rever meus filmes.

Você enxerga o protagonista de Laissez-P Passer como um herói romântico? Não é um romântico. Talvez se possa considerá-lo um herói, se entedermos por herói alguém que faz o que pode, enquanto os outros não o fazem. Mas em diversos momentos ele age sem refletir, por convicção e por instinto. Tem a sorte da coragem inconsciente. É capaz de percorrer 300 quilômetros de bicicleta para ver sua mulher, mas nunca diz a ela “eu te amo”... Mas o trajeto não deixa de ser uma prova de amor.

Você está trabalhando na restauração dos filmes dos irmãos Lumière? Sim, e queremos lançá-los em DVD. Parte do material já foi lançada nos Estados Unidos, com enorme sucesso. Os irmãos Lumière fizeram mais de 1.200 filmes, alguns quase desconhecidos, como um curta-metragem filmado no México. Também pretendo aprofundar o meu diálogo com os cineastas latino-americanos, e por isso vim ao festival de Mar del Plata. O que você achou da indicação de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain ao Oscar de melhor filme estrangeiro? A França esteve bem representada? Não sei se Amélie é um filme moderno, mas certamente é um filme de autor, tem qualidade e

O diretor François Truffaut, um dos inventores da Nouvelle Vague


Sua obra é bastante eclética. Por que seus filmes são tão diferentes uns dos outros? A imaginação também é sinônimo de qualidade. Muitos diretores que admiro também são ecléticos: Stanley Kubrick, Michael Powell, Kurosawa... Mas existe uma conexão entre todos os seus filmes, que os críticos nem sempre percebem. Da mesma forma, creio que todos os meus filmes tratam do mesmo tema, com abordagens diferentes. Para mim existem dois tipos de cineastas, os que sempre fazem a mesma coisa, como Ingmar Bergman e Eric Rohmer, e os que buscam temas e culturas diferentes ao longo dos anos, transformando-se continuamente, como John Ford e Jean Renoir. Mas não são categorias absolutas, já que o último filme de Rohmer, A Inglesa e o Duque, marca uma grande mudança na sua obra.

Tavernier, ao lado de sua filha Tiffany e do escritor Dominique Sampiero

Você já escreveu dois livros sobre o cinema americano. Como avalia as produções hollywoodianas hoje? Nos últimos 15 ou 20 anos, o cinema americano mudou para pior. Por um lado, se produzem cada vez menos filmes de reflexão, para adultos, e cada vez mais filmes de entretenimento, com orçamentos milionários e cheios de efeitos especiais, em que a ação do diretor é quase nula. Por outro, os cineastas que tentam escapar deste modelo acabam fazendo sempre o mesmo tipo de filme independente despretensioso sobre realidades locais, questões da classe média etc. A quantidade de “primeiros filmes” é impressionante, mas raros são os cineastas estreantes com uma carreira longa pela frente. Mais importante que isso, porém, é a pressão do mercado e da indústria. Não quero impedir a difusão dos filme americanos, mas defendo a preservação das cinematografias nacionais, a criação de outros tipos de cinema. O debate em torno das leis de produção e distribuição constituem uma verdadeira batalha. Felizmente alguns cineastas americanos, como Steven Spielberg, já perceberam que é importante que cada país tenha uma cinematografia forte e saudável.

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Filmografia do cineasta Bertrand Tavernier: 1973 – L’Horloger de St-Paul (O Relojoeiro de St. Paul) 1974 – Que la Fête Commence 1975 – Le Juge et l’assassin (O Juiz e o Assassino) 1977 – Des Enfants Gâtés 1980 – Une Semaine de Vacances 1980 – La Mort en Direct (A Morte ao Vivo) 1981 – Coup de Torchon 1983 – Mississipi Blues 1983 – Ciné Citron 1983 – La 8ème génération 1984 – Un Dimanche à la Campagne (Um Sonho de Domingo) 1986 – ‘Round Midnight (Por Volta da Meia-Noite) 1987 – La Passion Béatrice 1989 – La Vie et Rien d’Autre (A Vida e Nada Mais) 1990 – Daddy Nostalgie 1991 – Contre l’oubli 1992 – La Guerre sans Nom 1992 – L. 627 1994 – La Fille de d’Artagnan 1995 – L’Appât 1996 – Capitaine Conan (Capitão Conan) 1999 – Ça Commence Aujourd’Hui 2002 – Laissez-Passer 2001 – Histoires de Vies Brisées *fonte: Internet Movie Database (www.imdb.com)

Luciano Trigo é jornalista. Participou do júri do Festival de Cinema do Mar del Plata de 2002

Foto: Alain Julien / AFP

estilo. Muitas críticas que lhe fizeram nasceram da inveja.


A velha onda

A Nouvelle Vague representou um corte radical com a ordem instituída, até perder o vigor na década de 60

Foto: Gerard Julien / AFP

O diretor Jean-Luc Godard, outro criador da Nouvelle Vague

A Nouvelle Vague (“Nova Onda”) renovou radicalmente a linguagem cinematográfica a partir do final dos anos 50, quando dois jovens franceses, François Truffaut (1932-1984) e Jean-Luc Godard (1930-) trocaram as críticas que escreviam na revista Cahiers du Cinéma pela direção de seus primeiros longas-metragens em 1959, respectivamente Os Incompreendidos e Acossado, ambos marcados pelo espírito contestatório. Vale lembrar que a França atravessava os estertores de uma guerra colonial na Argélia, e que questões como a liberdade e a responsabilidade individual e o debate existencialista estavam em pauta. Logo em seguida, Alain Resnais dirigiu Hiroshima, meu Amor, Claude Chabrol estreou com Os Primos, Jacques Rivette lançou Paris nos Pertence, e Louis Malle, Trinta Anos esta Noite. Estava caracterizada uma nova fase do cinema francês, reunindo uma constelação impressionante de novos talentos. Em linhas gerais, a Nouvelle Vague defendia o cinema de autor e a liberdade narrativa e criticava o academicismo das produções francesas e

as convenções do cinema de estúdio. Ao mesmo tempo, seus representantes assimilavam influências do Neo-Realismo italiano e, embora atacassem a estética ilusionista hollywoodiana, apreciavam o cinema de Hitchcock e dos diretores americanos John Ford, Samuel Fuller e Howard Hawks. Realizaram filmes de baixo orçamento, com câmeras portáteis, som direto e equipes pequenas, e reabilitaram nomes como Fritz Lang e Nicholas Ray. Por tudo isso, a Nouvelle Vague promoveu uma revisão da história do cinema e representou um corte radical com a ordem instituída até então. Desde 1955, a Cahiers, dirigida pelo crítico André Bazin, vinha defendendo a chamada “política dos autores”, pregando um cinema com qualidade artística: a forma e o estilo deveriam prevalecer sobre o conteúdo dos filmes, trazendo a marca pessoal e a visão do mundo do diretor. A Nouvelle Vague inspirou diretamente vários movimentos de renovação, incluindo o Cinema Novo brasileiro. Ela perdeu seu vigor já a partir da segunda metade dos anos 60. A origem heterogênea de seus diversos representantes se acentuou: Truffaut e Chabrol optaram por um cinema mais comercial, enquanto Godard radicalizou na experimentação – antecipando, inclusive, os acontecimentos de Maio de 68 – e Resnais, Rivette e Eric Rohmer seguiram trilhas muito pessoais. (LT) Continente Multicultural 41


TESTEMUNHO

Uma estação no inferno Um ator e um fotógrafo contam sua vivência dentro do maior presídio da América Latina, o tristemente famoso Carandiru. Cada um deles foi lá realizar um trabalho. O ator, gravando um especial para a BBC. O fotógrafo, registrando o local para um livro. Cada um relata aqui a experiência.que os marcou para sempre. O ator, com palavras. O fotógrafo, com imagens. Textos: Marcello Bosschar. Fotos: João Wainer

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“S

enhoras e senhores, vocês estão prestes a ouvir uma história de assassinatos, cobiça, corrupção, violência, adultério e traições. Todas essas coisas que guardamos em um lugar muito especial em nossos corações...” Opa, peraí! Essas palavras são da introdução do musical de Bob Fosse, Chicago, um revival de sucesso na Broadway. É, são mesmo. Mas poderiam muito bem servir de introdução para a história que estou prestes a lhes contar. A diferença? A minha história é verdadeira. Esta é a história de como a BBC de Londres me colocou dentro do maior e mais temido presídio da América Latina. Carandiru. O que quer dizer? Ninguém parece saber o significado da palavra Carandiru. Nem os que trabalham lá há anos, nem os estudiosos, nem mesmo o Dr. Dráuzio Varela, que projetou o Carandiru, da periferia de São Paulo para o mundo, através de seu livro Estação Carandiru, o qual está sendo adaptado para uma rádio-novela produzida para a audiência britânica através da BBC. “É um nome indígena...” É só que dizem. Mas para entendermos um pouco mais como fui parar lá vamos voltar no tempo. Precisamente dois meses atrás, numa manhã preguiçosa e ensolarada de São Paulo. Ainda sentado à mesa do café da manhã, abro o jornal e lá está o anúncio: “BBC de Londres procura atores com inglês fluente para participar do ‘Projeto Carandiru’ para a rádio...” Sou eu! Pensei... É para mim! Apesar do livro ter sido um estrondoso sucesso de crítica e público, pelos últimos quatro ou cinco anos, eu ainda não o tinha lido, pois conhecer os detalhes da rotina de perigosos criminosos dentro da famigerada prisão não era a minha idéia inicial de “boa leitura”. Mas, agora, com a proposta de trabalho, larguei o jornal e fui correndo comprar o livro. Já de noite, embaixo das cobertas, livro na mão... Como descrever? Sabe aquelas plaquinhas que você vê a cada metro numa fila de montanharussa radical dizendo coisas como: “Se você tem problemas de coração, pressão alta, unha encravada, não continue”? Pois é. Esse livro deveria ter algo assim também. Conclusão: ótimo livro, péssima hora para ler. As imagens são muito nítidas e, logo nas cinco primeiras páginas, eu já tinha a sensação de que havia passado grande parte da minha vida lá.

Sabia quais eram os pavilhões mais perigosos, sabia os códigos de defesa e ataque e o que alegar para o diretor da prisão caso me sentisse ameaçado de morte! Mas o que mais me surpreendeu foi o fato do livro não enfatizar o crime em si, mas, sim, a fragilidade humana que estava, está e sempre estará por trás de cada um desses crimes. Histórias de amor, amizades traídas, mágoas, ou seja, como Bob Fosse falou no musical Chicago: “Todas essas coisas que guardamos em um lugar muito especial em nossos corações”. E mal sabia eu que, apenas dois meses mais tarde, eu estaria mesmo lá. Nos mesmos corredores onde Veronique, a travesti, desfilava em busca de “clientes”; na cela onde Ezequiel destilava a sua “Maria Louca”, feita da fermentação do milho de pipoca; e estaria andando pelas mesmas escadas que foram banhadas pelo sangue da megarrebelião que vitimou mais de 200 presos. Para encurtar essa história: sim, passei nos testes, e fiquei sabendo que Dr. Dráuzio iria fazer parte do projeto interpretando a si mesmo. Um dia antes da ida ao presídio nos encontramos num hotel com Kate Rowland, diretora artística da BBC que iria dirigir as gravações. Estávamos todos muito ansiosos. Era a primeira vez para todos nós. Primeira vez que nós, cinco atores de teatro, iríamos atuar para uma rádio. (O que é muito diferente do que estávamos habituados. “No teatro temos que chegar até o público”, dizia Kate. “Na rádio temos que trabalhar de forma que os ouvintes sintam-se convidados, eles é que têm que se aproximar do ator. É um jogo de respirações e sutilezas que têm que estar ancoradas na verdadeira essência de quem somos.”) E também era a primeira vez que a BBC viajava tão longe, usando atores não britânicos, para gravar “in loco”. É claro que, com toda essa expectativa, a primeira reunião não foi muito inspiradora. Cada um de nós tinha que fazer quatro ou até cinco vozes diferentes para diferentes personagens. Eu mesmo fiquei responsável pelo Marques, um jovem frágil e amedrontado que morreria espancado por policiais;

Mal sabia eu que dois meses mais tarde estaria andando pelas mesmas escadas que foram banhadas pelo sangue da megarrebelião que vitimou mais de 200 pessoas. Continente Multicultural 43


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Jaquelina, a travesti que possuía uma verdadeira “fábrica de silicone na bunda”, um viciado em craque e um pastor. Mas logo descobrimos que simplesmente mudando o ritmo das falas e a intensidade da respiração já imprimíamos uma outra personalidade. A verdadeira surpresa desse encontro foi Dr. Dráuzio, que insiste que não o chamemos de “Doutor”. Eu esperava que toda a experiência na prisão o tivesse endurecido um pouco, mas, não. Ele é uma das pessoas mais gentis e divertidas que já conheci. E eu, claro, tinha mil perguntas para fazer. Se o livro tinha mexido de forma tão profunda comigo, o que teria acontecido com ele após treze anos de serviço no Carandiru? “O Senhor não ficou deprimido no começo?” E ele: “Em primeiro lugar, tire o ‘Senhor’. Não. Deprimido, não... Fiquei mais silencioso. Levou um tempo até que eu conseguisse ajustar a minha realidade dentro da prisão com minha vida familiar e social. Por exemplo: às vezes eu tinha que sair do atendimento aos prisioneiros com AIDS, tuberculose e sarna, chegar em casa, tomar um banho e ir a algum jantar na casa de amigos. Era difícil me sentir à vontade sentado numa roda de pessoas discutindo o preço de vinhos... Mas hoje já consegui equilibrar estes opostos e sinto que a experiência na prisão é essencial para a minha vida. No dia que fecharem o Carandiru vou procurar outro presídio para trabalhar. A prisão me fez ficar mais humano. Hoje em dia eu sou muito mais ‘esperto’...” E antes que a reunião termine recebemos uma lista de coisas que não devemos fazer dentro do presídio. Entre elas: “Não usar calças claras ou beges pois esta é a cor das calças dos presos”. Este item em particular foi o que mais me incomodou. Como assim? Quer dizer que se eu fosse de calça bege seria mesmo confundido com um bandido e não poderia sair da prisão? Uma simples calça é o que diferencia um bandido de outra pessoa? Essa não! Dr. Dráuzio acha graça da minha preocupação e diz: “Vocês vão ver que lá dentro não existe só tristeza. Vocês vão ouvir risos, brincadeiras, há companheirismo. O que para mim ou para você é uma tragédia, para eles, passou a ser o cotidiano”. Desnecessário dizer que não consegui dormir nessa noite.

Não existe um tipo padrão presidiário. São garotos que vemos em todos os lugares, shoppings, restaurantes, brancos, morenos, todos de barba bem feita e cabelo penteado.

De manhã, dentro do metrô, indo ao encontro da equipe para juntos irmos ao Carandiru, comprovei a força que a simples menção do presídio ainda tem no inconsciente das pessoas. O metrô estava cheio, eu segurava o roteiro das gravações numa mão enquanto, com a outra, tentava me manter em pé. Numa parada súbita e brusca, todos os papéis voaram da minha mão caindo para todos os lados. As pessoas, solícitas, começaram a me ajudar, mas paravam abruptamente quando os olhos batiam no que estava escrito em letras garrafais no topo de cada uma das páginas: “CARANDIRU”. Elas olhavam para o papel, para mim, ficavam sem jeito, me olhando até o momento em que saí, numa mistura de curiosidade e desconfiança. Na van não falamos muito. Cada um imerso em suas próprias fantasias, que se misturavam às notícias de jornal sobre rebeliões e assassinatos, e logo, lá estava o Carandiru. E ele é... Rosa! Taí uma coisa que eu não esperava. Todo cor-de-rosa-bebê. Eu não sei se serviu como um bom golpe psicológico para suavizar o lugar ou se apenas soava como uma brincadeira de maugosto. Bem, eu havia lido o livro e não havia nada de rosa nas histórias que conheci... Fomos recebidos por Dr. Paulo, o RP local, entregamos nossos documentos, deixamos nossos celulares, passamos pelo “Painel do Pollock”, que é uma parede onde os “visitantes” limpam a tinta das impressões digitais, formando um padrão de riscos que realmente lembra o estilo do famoso pintor americano, e em 5 minutos já estávamos dentro do pátio. E a partir de agora tudo passou a ter uma estranha sensação de déjà vu... Eu já havia visto tudo aquilo através dos olhos do Dr. Dráuzio. A fonte de azulejos azul quebrada, o pequeno lago, seco, no qual meu personagem Marques via lindos peixes ornamentais, o painel de Jesus pintado acima das palavras: “Quanto mais se vive mais se aprende...” Nós fomos levados até o pavilhão 6, que originalmente recebia apenas traficantes de drogas do Brasil e de outros países e que seria o lugar onde faríamos nossas gravações. Muitas celas estavam vazias, mas a impressão era a de que seus habitantes haviam saído para um café e logo voltariam. Ainda estão nas paredes as fotos de mulheres nuas, santinhos, quadrinhos, roupas no chão, remédios, isqueiros e até mesmo uma carta esquecida, jogada no chão. A tensão é constante. Os presos passam por nós em grupos de quatro, cinco, e agora entendo o Continente Multicultural 45



porque de não usar a calça bege. Eles poderiam muito bem ser qualquer um de nós. Não existe um tipo padrão presidiário. A maioria está na faixa dos 20 anos. São garotos que vemos em todos os lugares, shoppings, restaurantes, brancos, morenos, todos de barba bem feita e cabelo penteado. As gravações começam e não tem nada de ficar parado com a folha na mão, lendo o texto para um microfone. Em nome do realismo temos que ir para os lugares onde as cenas aconteceram e temos que encenar tudo. Nas cenas de luta temos que lutar, nas cenas do pátio, jogamos futebol embaixo de um sol arrasador, e na cena onde meu personagem morre, tive que ser espancado, protegido por travesseiros, cercado pelos prisioneiros reais, fascinados com a cena. Hora do almoço! Comida de cadeia: Arroz, feijão, galinha, repolho e couve-flor. Nem bom nem ruim. Só sem gosto. Nenhum. Gosto de nada. Teve gente da equipe que não conseguiu comer. Eu repeti. Ao menos estava morno. O encarregado do almoço é o Sr. Gerdanau. E ele faz questão de dizer que é formado em Teologia e que o seu nome é uma homenagem de seu pai a um dos doze esgrimistas de Carlos Magno e diz que aprendeu hebraico (nos fala algo nessa língua) com um judeu que “andou” por ali, com quipá e tudo, e que falava cinco idiomas. Também aprendeu um pouco de francês e inglês, ambos com prisioneiros. “Meu pai, quando me deu este nome, nem sonhava que um dia eu também seria um guerreiro.” E continua nos mostrando o lado bom da prisão: “Tem gente que entra aqui e nem sabe escrever o nome. Aqui tínhamos cursos de carpintaria, pedreiro, inglês e francês... Você sabia que na Nigéria existem 115 milhões de habitantes? Foi um preso nigeriano que me contou...” De tarde tínhamos que recriar o clima de um show da Rita Cadillac, madrinha dos detentos... Fizemos o possível. Estávamos cantando o Bonde do Tigrão e Popozuda, quando passaram dois presos rindo e dizendo: “A gente pode fazer melhor que isso!” Ótimo! Então façam. E eles fizeram. Eles fazem parte de um grupo dentro do presídio que se chama “Anjos Guerreiros da Paz”. Nos cantaram um rap chamado Caminhos Sangrentos, que fala sobre a me-

Um detento me contou que, aos sete anos, ganhou da mãe, como presente de aniversário, o seu primeiro baseado e um 22 novinho.

garrebelião do dia 18 de fevereiro de 2001. Também fala de suas vidas na prisão, seus sonhos, e estes sete minutos de música nos ensinaram mais sobre a vida de um detento que qualquer outro livro. Me lembro ainda de algumas frases como: “Cara, tirei a tua vida e acabei com a minha (...) Me dói o consciente quando o silêncio toma conta de minha mente (...) A saudade se tornou companheira dessa vida traiçoeira (...) esperança de encontrar tudo o que estava perdido (...) Viver apenas por viver não tem graça nenhuma.” E o refrão: “Deus me ajude a vencer este caminho sangrento, onde só tenho a perder, para que tudo isso nunca mais volte a acontecer...” Foi o nosso primeiro contato imediato com os presos e fico feliz que tenha sido através da música. Ao saber que este era um trabalho para a BBC, Dr. Gui, nome artístico do cantor, nos surpreende: “Pode mandar uma mensagem para a Rainha? Diz que eu adoro ela. Que eu até tentei fugir para a Inglaterra uma vez mas a polícia me pegou. Admiro muito a monarquia! I love you England!!!” Mais tarde, fiquei sabendo um pouco mais da história de sua vida. “Minha mãe era do crime também e quando eu tinha sete anos ela me deu o primeiro baseado e um 22 novinho. Aí ela morreu e meu pai me criou. Só que o meu pai cheirava muita coca e quando tava doido achava que eu estava cheirando a coca dele e me batia muito. Aí eu fugi de casa e fui pra rua. Nunca tinha roubado. Tava morrendo de fome e um amigo meu disse pra gente roubar uma grana pra comer. Só pra comprar comida. Meu primeiro roubo foi uma maçã e uma banana... Aí depois não parei mais...” O dia passa rápido e o alívio ao sair dali é grande. Passamos umas cinco horas lá dentro no primeiro dia. É verdade. Não é tão ruim quanto imaginamos e, por um outro lado, é pior ainda. A falta de horizontes, da vista poder alcançar lá longe, se transforma numa espécie de véu sobre os olhos, uma característica que todos os prisioneiros têm em comum. No outro dia já estamos bem mais tranqüilos, o clima é de leveza. Não sinto mais angústia nenhuma. Tem tanta equipe de TV e de rádio espalhada e gravações de filme que até parece um parque temático. Os únicos momentos em que a realidade pesa é quando cruzo com os presidiários. Lá está aquele olhar de parede. Aquela tristeza que insiste em existir mesmo por detrás dos sorrisos e das brincadeiras... Tem um preso em especial que parece estar sempre Continente Multicultural 47


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Na hora de ir embora, várias pessoas da nossa equipe quiseram bater uma foto ao lado da parede onde estava escrito: “Bem vindos ao pavilhão 6”. Não vi muita diferença entre a atitude dessas pessoas e a daquelas que passeiam por entre leões e tigres, nos safáris. Quase pude ver a placa que dizia: “Não alimente os presos”. rindo. Tem uma cara simpática e parece sempre ocupado indo de um lugar para outro. Comento com os outros que ele deve ter cometido um delito mais leve, como roubar uma carteira ou algo assim. Eu o chamo. O nome dele é Moisés. “Matei a minha namorada”, me diz ele sem piscar, como quem diz que esqueceu a pêra no ônibus. E me conta toda a história. Um acidente. Só queria assustá-la, pois ela havia descoberto que ele estava roubando o escritório onde trabalhava. A arma disparou sem querer... Do que ele mais sente falta “lá de fora?” “Da minha família, dos meus amigos...” E eles o visitam? “Não, nunca mais vi meus amigos desde que fui preso. É que eles moram muito longe... Também sinto falta dos filhos do meu vizinho. Eu é quem tomava conta deles quando estavam sós. Eles eram tão inteligentes...” Moisés tem 28 anos e está preso há 9. Enquanto não estou gravando minhas cenas fico perambulando pelos corredores e pelas celas abandonadas. Existe tanta história em cada canto... Dou de cara com Maureen Basilliati, uma fotógrafa inglesa, radicada no Brasil e que freqüenta o Carandiru, documentando tudo em imagens há mais de 30 anos. “Este lugar hoje em dia é como uma casca de ovo sem gema.” Ela me diz com uma expressão tranqüila de quem já viu muita coisa na vida. “A vida já se foi. Tem mais equipes de gravação do que presos. Você tinha que ver este lugar há 30 anos atrás...” E é verdade. Mal ela acaba de falar, olho para o lado e lá está o Dr. Dráuzio sendo entrevistado por uma loura da Band: “O que o Sr. acha que deveria mudar no sistema carcerário brasileiro?” E ele: “Acho que já mudou muito e continua mudando. Agora é hora da sociedade começar a mudar. Temos que acabar com esta fábrica de criminalidade em que a sociedade se transformou! Temos, como sociedade, que parar de fabricar bandidos!” É incrível a capacidade do ser humano de se adaptar a qualquer ambiente. No terceiro dia de gravação, não existe mais nenhuma tensão. Já vamos ao banheiro sem escolta (era uma das coisas que não podíamos fazer) e cumprimentamos os presos pelos nomes. Só me senti realmente pouco à vontade

quando tivemos que gravar a rebelião onde mais de 200 presos foram assassinados. Vários deles que sobreviveram ao massacre estavam ali ao nosso lado, assistindo à cena, quando tivemos que gritar: “Viva a tropa de Choque! Viva a tropa de Choque!!!” Mas eles entenderam toda a cena e até disseram: “Foi assim mesmo que aconteceu...” Na hora de ir embora, várias pessoas da nossa equipe quiseram bater uma foto ao lado da parede onde estava escrito: “Bem vindos ao pavilhão 6”. Do outro lado estava encostado no portão um jovem preso que olhava para o muro que o separava do mundo. Não vou esquecer o seu olhar e o seu suspiro, olhando para os que riam e brincavam da aventura que foi estar dentro da jaula. Me lembrei do Simba safári e não vi muita diferença entre a atitude dessas pessoas e a daquelas que passeavam por entre leões e tigres, na segurança de seus carros. Quase pude ver a placa que dizia: “Não alimente os presos”. Sei que a intenção deste trabalho foi a melhor do mundo. É bom chamar atenção para os que não possuem voz ativa e, em muitos casos, estão ali por erros judiciais e por falta de uma defesa digna e honesta. Concordo com o Dr. Dráuzio. Eu também saí dali mais humanizado. Com certeza aprendi algumas coisas sobre a liberdade e dignidade. Mas a história não termina aqui. Me dirigindo ao portão de saída, passei por uma porta e vi um par de olhos muito avermelhados por entre uma pequena abertura. Deveria ser uma solitária... Os olhos me perceberam e, não sei se fui confundido por funcionário do presídio ou se a pessoa atrás daquela porta estava apenas delirando quando perguntou: “Quando é que vai acabar?” A voz estava cheia de angústia e dor: “Quando é que vai acabar?” Eu fiquei mudo. Não tenho nenhuma resposta para isso mas sei que o Dr. Dráuzio teria. E acho que essa resposta teria algo a ver com a sociedade. Algo que ele falou para uma certa repórter loura da Band.

Marcello Bosschar é ator

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SABORES PERNAMBUCANOS

Bolo de casamento O noivo comia um pedaço e amassava o resto na cabeça da noiva: eram os primórdios do mais importante dos bolos, o de casamento. “Boca de forno, forno Furando bolo, bolo Fareis tudo que seu mestre mandar? Faremos todos, faremos todos. Quadrinha Popular

L

eonardo da Vinci decidiu pedir emprego a Ludovico Sforza, “Il Moro”, governador de Milão. E escreveu carta se apresentando assim: “Sou insuperável construtor de pontes, fortificações, catapultas e artefatos secretos. Minhas pinturas e esculturas podem comparar-se às de qualquer artista. Sou soberbo propondo adivinhas e fazendo nós. E sobretudo minhas tortas e meus bolos não têm comparação”. Foi contratado na hora. E ali viveu, por 30 anos, como “Mestre de banquetes” e “Conselheiro de Fortificações”. Menos quando não funcionavam suas complicadas máquinas culinárias – cortadores de pão movidos a vento, quebra-nozes mecânicos, panos de chão puxados por bois, abafadores de fumaça, picadores de carne, máquinas de lavar e de secar guardanapos. Quando isso acontecia, ele acabava suspenso de suas funções e aproveitava o tempo livre pintando e fazendo esculturas. Para o casamento de Ludovico preparou aquele que seria o maior e mais diferente bolo do mundo. Conseguiu apenas atrair tantos ratos e pássaros que o bolo acabou destruído, o casamento adiado e Da Vinci, coitado, posto no olho da rua. Mas a história do bolo começa bem antes desse tempo. Segundo a Bíblia, três anjos foram à casa de Sara e Abraão para anunciar que eles, mesmo velhos, teriam filhos. O anfitrião pediu à mulher:

“Depressa, amasse três medidas de farinha e faça bolos” – a melhor maneira de celebrar, com os visitantes, a dádiva concedida por Deus. Assim como Sara e Abraão, os homens vêm repetindo esse gesto de comunhão, em volta de bolos, ao longo dos séculos. Os primeiros registros históricos remontam à Palestina, mais de 7000 anos antes do Cristo. Nas pirâmides do Egito eram pintados os bolos mais apreciados pelos faraós mortos. Assírios usavam mistura de farinha, mel e ervas, cozidas em recipientes de barro, enterrados e cobertos por brasas. Bom lembrar que, nessa época, os primeiros bolos eram um pouco como pães. Depois, com os gregos, a pastelaria começou a ser valorizada. Foram introduzidas novas formas de apresentação e decoração. Com farinha, mel e queijo branco ou azeite (depois substituído, nas receitas, por manteiga). No bazym, um tipo de bolo mais sofisticado, acrescentavam-se figos secos e nozes. O poeta cômico Aristófanes chegou a entoar loas de louvor a Théanos, o maior pasteleiro da época. Os romanos só vieram a se interessar pela arte da pastelaria por volta do séc. 8 a.C., com a imigração de alguns profissionais gregos. Criaram-se, a partir de então, muitos novos bolos. O libum, feito com uma libra de farinha, duas libras de queijo e um ovo. O placenta, feito com queijo e mel, em camadas

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 50 Continente Multicultural


sobrepostas. O spherita, com forma esférica e frito. E, sobretudo o confarreatio, servido no confarreo – casamento solene, com dez testemunhas. Eram os primórdios do mais importante dos bolos – o de casamento. Tinha quase sempre a forma de pássaro. Flambado, deveria arder até que as chamas consumissem inteiramente o álcool – para afastar os maus espíritos. O noivo comia parte de uma fatia, esmagando o resto na cabeça da noiva – simbolizando o romper do hímen e, sinal daqueles tempos, o domínio do homem sobre a mulher. Sendo as migalhas disputadas pelos convidados – porque, segundo a lenda, davam sorte. Na Idade Média vingou o costume de empilhar vários pequenos bolos, trazidos pelos convidados. Surgindo assim, meio por acaso, o bolo em andares. Ao fim do século 19, quanto maior e mais detalhes tivesse o bolo, mais importante seria a festa. Chegavam a ter 150 kg e mais de dois metros de altura. Passou o tempo e o bolo de casamento manteve nobreza e simbolismo. Há, nele, todo o mistério que marca o próprio ato de duas pessoas unirem seus destinos. E eles são sempre parecidos, ao redor do mundo. A primeira fatia deve ser cortada pelos noivos, mãos juntas, já com alianças – representando, por sua forma redonda, a própria eternidade, ausência de começo ou fim. São usadas no dedo anular da mão esquerda, desde os egípcios – que acreditavam correr, nesse dedo, uma veia em direção ao coração. Todos têm a cor branca na cobertura – simbolizando pureza e virgindade. À rainha Vitória deve-se o hábito do vestido de noiva ser também branco, imitando os bolos. Mas nem sempre foi assim. Na Idade Média era comum ver noivas de vermelho – simbolizando amor eterno; azul, sentido de permanência; ou verde, sinal de juventude. Noi-

vas usam véu e grinalda – que simbolizam coroas usadas por deuses da Grécia e de Roma. O buquê, na época dos romanos, era formado por uma mistura de ervas, alho (para afastar os maus espíritos) e grãos (garantia de união frutífera). Alguns poucos usavam açúcar – para que a noiva permanecesse doce por toda a vida. Os noivos se beijam no fim da cerimônia – símbolo da troca dos espíritos na respiração, compartilhando parte de suas almas. Na saída da cerimônia, segundo velho hábito de hindus e chineses, se joga arroz na noiva – símbolo de fertilidade e prosperidade para o casal. Depois vem a lua-de-mel – costume que remonta aos tempos em que os noivos iam para lugar afastado, lá permanecendo por uma fase da lua. Bebendo uma espécie de vinho à base de mel, para torná-los mais apaixonados. E maio é chamado de mês das noivas, hábito europeu, porque nele a primavera do hemisfério norte explode em flores e cores. No Brasil, os bolos de casamento têm preparos diferentes. No Sul têm massa branca, com recheios variados – herança do colonizador português. Diferentes dos de Pernambuco, que têm massa escura à base de vinho, ameixas, passas e frutas cristalizadas – herança britânica que chegou a bem poucos lugares do Brasil. Tudo coberto com pasta de amêndoa, recoberto com glassé branco. Sendo, por fim, decorado com flores em relevo, feitas de goma e açúcar – herança da Ilha da Madeira. São famosos, entre nós, os de dona Olga Asfora, os de dona Leoni e suas filhas e os de Ligia Maia.

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora E-mail: jpaulo@truenet.com.br

BOLO DE NOIVA (de Ligia Maia) INGREDIENTES

PREPARO

• 6kg de manteiga, 6kg de açúcar e 6kg de farinha de trigo. • 5 garrafas de vinho do Porto e 1½ copo de conhaque. • Canela, noz-moscada e cravo-da-índia (torrado e triturado). • 10 limões. • 4kg de ameixa, 6kg de frutas cristalizadas, 3kg de passa branca e 3kg de passa preta. • 3kg de amêndoas, sem pele, moídas. • 100 ovos. • 1 colher de sobremesa de fermento em pó.

• Bata bem a manteiga. Junte açúcar, aos poucos, e continue batendo. • Acrescente os ovos (clara e gema), raspas de limão, noz-moscada ralada, cravo e canela. • Junte à massa as ameixas (depois de feito doce quase sem caldo), frutas cristalizadas (moídas na máquina), passas, conhaque e o vinho do Porto. • Quando tudo estiver bem misturado, vá juntando a farinha de trigo peneirada. • Despeje em fôrmas bem untadas e forradas de papel impermeável. • Asse em forno morno por mais ou menos 8 horas. OBS: Esta receita faz dois bolos, um de 60cm de diâmetro e o outro de 40cm, devendo o menor ser posto sobre o maior, compondo o bolo de noiva em dois andares.

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CONTO

Sul/Norte José Castello

I

nformaram ao inspetor Mário Peres, através de um bilhete em papel acetinado e escrito em letras escrupulosas, que o senhor Euzébio não ouvia bem e que o grau dessa deficiência variava segundo certas relações, que ele mesmo não podia dominar, entre a posição dos planetas e a disposição geográfica do aposento que estivesse ocupando. Quando era carregado para o pátio, ou atravessava as aléias que levam dos dormitórios ao refeitório comunitário, enfim, quando estava em espaços abertos, contudo, esses vínculos se dissipavam, ou se tornavam tênues demais para merecerem atenção; ainda assim, eles podiam vigorar em sentido inverso, os valores negativos ganhando a força de positivos, de modo que o senhor Euzébio nunca se sentia seguro a respeito das próprias observações astrológicas, nem tinha muita certeza dos momentos em que podia, de fato, confiar no que ouvia. Habituado a considerar só os aspectos objetivos da vida, o inspetor Peres não atribuiu interesse a essas considerações, e tampouco se deixou desanimar, preferindo crer que o homem que devia inquirir era, tão somente, um surdo, com tantas dificuldades para ouvir quanto aquelas enfrentadas por qualquer outro deficiente auditivo, sendo desnecessário, em conseqüência, atentar para as particularidades de seu caso. Foi aí, exatamente aí, que Mário Peres, o policial premiado com a Ordem dos Adivinhos e conhecido por suas costeletas douradas, começou a acertar. Disseram-lhe, ainda, que o senhor Euzébio sofria de uns tiques intermitentes, que lhe com52 Continente Multicultural

primiam o rosto como uma pinça, conferindo-lhe a aparência espessa de uma máscara e, como conseqüência, um aspecto feroz. Mas Peres não era dado a preocupações infundadas, nem se detinha na antecipação de problemas que só por hipótese poderia vir a enfrentar; em vez disso, considerava-se um intuitivo, para quem o raciocínio e a ação são apenas as duas bandas de um mesmo elemento, de modo que, ao agir, ele pensava, e quando pensava, agia, sem que os dois se desligassem. Ainda assim, enquanto atravessava a avenida Lucas rumo ao norte, veio-lhe à mente, por instantes, a imagem de um homem de feições elásticas (como os personagens dos desenhos animados e os espíritos nos filmes de horror); e foi diante de uma dessas visões que ele decidiu que, durante o interrogatório do construtor


Euzébio, contrariando hábitos que vinham dos tempos de estagiário, ele tomaria anotações num bloco escolar, procedimento com o qual tentaria evitar a face maleável, e por isso indecorosa, de seu interrogado. Depois, quando tivesse a situação sob controle, e se fosse preciso, guardaria o bloco no bolso para se dedicar a uma observação mais direta; ainda assim, conservaria a mesma postura defensiva do sujeito que, numa sala de museu, por vício, e até um pouco de preguiça, simula indiferença diante das telas que, na verdade, o atordoam. Existem pessoas, você sabe, que se negam a expressar sentimentos em público; para ocultá-los, simulam o contrário do que estão a sentir, procedimento que, de tão banal, termina por sublinhar a emoção que se empenham em esconder. Já na portaria do Hospital Geral, enquanto apresentava os documentos da Academia de Polícia, comunicaram-lhe que o senhor Euzébio tomava um banho de imersão no setor das enfermarias masculinas, terapia recomendada pelos especialistas para amortecer a excitação psíquica de que vinha sofrendo; um longo banho em sais fortes, à base de raízes egípcias, durante o qual, já que não lhe ofereciam alternativas, e infelizmente, Peres seria obrigado a realizar seu interrogatório policial, acomodado apenas num banquinho, a poucos centímetros da banheira, de modo que o prisioneiro (compensando a deficiência auditiva) pudesse ouvir com nitidez as perguntas que o inspetor viesse a lhe fazer. Infelizmente, justificava-se, já que os sais de banhos usados pela instituição são substâncias mal cheirosas, trazidas do deserto e contaminadas pelos odores repelentes que predominam nos porões dos cargueiros; ervas cujo aroma evoca o enxofre e, por conse-

qüência, a morte; além disso, inteiramente nu, e com o corpo desgastado pelos anos, o senhor Euzébio não chegaria a compor uma visão consoladora. Enfiando a mão no bolso da jaqueta, Peres acarinhou seu bloco de notas, como se reverenciasse um talismã, e disse: – Não há problema. Não me impressiono com odores fétidos, nem sou dado a contemplar o corpo masculino. O segurança pediu então que um rapaz muito franzino e com feições de lagarto, a quem tratou só por Toupeira, o guiasse até o setor dos ambulatórios, aspecto e apelido que, combinados, o inspetor tomou, apesar de seu ceticismo, como um mau presságio; mas logo afastou essa idéia, substituindo-a pela letra, mal decorada, mas ainda assim tranqüilizadora, de um samba de breque. Enquanto assobiava, Peres, que não é dado às afetações dos sentimentos, chegou a ter compaixão do rapaz, pois sempre julgou que a estupidez é uma forma envergonhada de bondade; pesar que logo afastou da mente e, para que ele não retornasse, passou a observar as unhas sujas do garoto, realmente repulsivas; de modo que, encoberta pelo nojo, a piedade se desvaneceu. Para sua surpresa, a banheira destinada ao senhor Euzébio ficava num salão hexagonal no qual havia, ainda, duas máquinas de escrever com os teclados sem dentes, um fogão fora de uso e desprovido de bocais, uma estante com as prateleiras vazias e duas poltronas de espaldar alto que serviam de apoio a uns caixotes escuros, ambos decorados com o desenho de uma íbis, o símbolo, pelo que o inspetor pôde entender, de uma empresa transportadora. A banheira estava quase seca, mas o chão em torno dela, ao contrário, bastante úmido, o que indicava que alguém dela saíra escorraçado, ou sob o peso de uma grande urgência. Peres ali ficou, a contemplar aqueles restos d’água que brilhavam contra as lajotas de cerâmica, sobretudo nos pontos em que, detidas pelos desníveis do solo, eles se alargavam e tomavam a forma de flores. Depois, retornando ao corredor, Continente Multicultural 53


esbarrou com uma enfermeira de pele muito alva, o ar doentio assim como o seu, meu prezado Dantas; e não se ofenda com a imagem, talvez forçada, de que faço uso só com o objetivo de estimulá-lo a me dar um pouco de atenção. Eu sei, meu relato é cansativo – mas irei até o fim e a respeito disso você não pode exercer qualquer influência, restando-lhe apenas suportar o que digo. A enfermeira bufava diante de Peres e expelia um hálito espesso, de bisão, para usar outra metáfora animal, esta de Shefield, um escritor que, eu sei, Dantas, lhe agrada bastante; e isso ainda que os bisões não exibam a graça das enfermeiras e a evocação da semelhança, em conseqüência, sirva aqui, apenas, como um adorno ineficaz. O inspetor deu, sem pensar, dois passos para trás; sem se ofender com isso, a enfermeira respondeu que vira, sim, quando um homem de meia idade, enrolado numa toalha e soltando gotas espessas pelo assoalho, saiu da sala para tomar a direção do corredor norte, que atravessa os ambulatórios e conduz à capela. A moça pensou em chamar um guarda que pudesse detê-lo, mas levava uma injeção de sedativos para um prisioneiro epilético, e a urgência médica a fez desistir. Até porque, explicou depois, um homem nu, envolto numa toalha de bolinhas, não poderia ir muito longe, mesmo numa instituição como aquela, regida pela insensibilidade, quando não pela indiferença – e, ao se referir a ela, a mulher franziu a testa, indicando que a citação a massacrava. 54 Continente Multicultural

Apontou em seguida o caminho da capela, que ficava atrás dos gabinetes da superintendência, escondida sob um telhado ao estilo turco, ou seria sérvio. Peres agradeceu e seguiu em frente, o coração apertado outra vez por uma premonição ruim que, agora, mesmo voltando a assoviar um trecho de Sem Tereza, o samba de Antunes, não conseguiu afastar do pensamento. E foi com esse pressentimento, ou apesar dele, que se viu obrigado a prosseguir, desviando-se de macas e cadeiras de rodas, atropelando senhoras grisalhas que se apoiavam em andadores e bengalas, ou quase tropeçando, vez por outra, em carrinhos de refeições e vasilhames de lixo médico. Andava a passos curtos, sem muita convicção, até que, chegando ao fim do corredor, encontrou duas mulheres que, debruçadas sobre um tabuleiro, disputavam um jogo que, apesar das peças arredondadas e de duas cartelas em forma de leques, lembrava o dominó. As paredes estavam cobertas por cartazes que faziam a propaganda de um refrigerante vermelho e havia, à frente delas, uma pequena mesa de sinuca cercada por banquetas de fórmica. Aquilo, evidente, não era uma capela. As mulheres lhe explicaram que, provavelmente, ele tomara a direção errada; que a capela, se é que no hospital havia uma, devia ficar no sentido oposto, na direção da ala sul. Mas, como o prédio, para atender ao desejo dos urbanistas de manter oculta a entrada da emergência, fora construído em posição invertida, a frente voltada para os fundos e os fundos, na verdade, ocupando a posição anterior, ao se caminhar para o Sul, na verdade, e agora sim, era para o Norte que se ia. Com o senso de direção alterado por essa descoberta, o inspetor limitou-se a tomar o rumo do ponto de onde partira; e logo se viu frente a frente, mais uma vez, com a mesma enfermeira de face branca, que agora parecia menos apressada e, até, mais disponível. Ainda assim, ela não respondeu à nova pergunta que Peres lhe fez, a respeito da direção que devia tomar; sempre em silêncio, subiu o corredor repisando o mesmo sentido que o inspetor trilhara um pouco antes; e ele, sem alternativas, deu meia-volta e a seguiu. A moça ainda olhou para trás, com um ar reprovador, ou porque se sentiu vigiada, ou por julgar que ele a observasse com intenções sensuais; mas aquele era um hospital público e, além disso, Peres levava no peito seu distintivo de


polícia, de modo que não poderia ser impedido de nada. O inspetor só percebeu que havia uma terceira direção a seguir, que começava numa espécie de bifurcação, quando viu a enfermeira empurrar uma porta de ferro e, sob ela, se descortinar um novo corredor, bem mais estreito e ainda mais escuro que os anteriores. Tratou de acompanhá-la, mas preferiu se deter quando ela entrou numa sala em cuja porta, numa placa de alumínio, e apesar dos desgastes impostos pelo tempo, ainda era possível ler: “Vestiário feminino”. Ainda assim, logo depois, Peres deu mais alguns passos, sem muita certeza a respeito do que fazia, e se viu não entre as instalações de uma sala de mulheres, ou entre senhoras desnudas e ameaçadas, mas na soleira da porta do diretor. A porta estava entreaberta, como se o diretor aguardasse alguém, ou fosse pouco zeloso no resguardo da própria intimidade. Empurrando-a bem devagar, Mário Peres pôde avista-lo, pobre diretor, um homem suarento e de gravata vermelha que, de cócoras, se postava no meio da sala, concentrado em amarrar o cadarço do sapato de um sujeito muito gordo que, com displicência, ou superioridade, atitudes que se equivaliam, perfilava-se diante dele. Empenhado em seguir o Método de Caldas que, como você sabe, Dantas, ainda vigora nas academias de polícia e aconselha os detetives a não desperdiçarem uma única pista, por mais insignificante que ela possa em princípio parecer, o inspetor subiu o olhar lentamente pelas pernas peludas do sujeito e, logo, chegou à toalha de bolinhas, que era sua velha conhecida, embora jamais a tivesse visto; ele estava diante do senhor Euzébio que, com o corpo ainda úmido, oferecia seus pés ao diretor, ou ao sujeito que ocupava o lugar do diretor, o qual, empenhado em concluir um difícil laço ao estilo inglês, parecia indiferente a tudo o mais. – Vim para interrogá-lo, Peres anunciou antes que o aspecto cômico da cena lhe tirasse a determinação. O senhor Euzébio logo se voltou para ele, mas o diretor pareceu não o ter ouvido; trincando a língua entre os dentes, o pobre homem simulava um esforço que, de tão brutal, parecia desnecessário, e lutava contra os cordões rebeldes. – Vim para o interrogatório e não tenho muito tempo a perder, Peres insistiu, sem obter, contudo, qualquer resposta do construtor que, no entanto, parecia abalado com sua presença.

Assim que os sapatos ficaram bem amarrados, o senhor Euzébio lhe deu as costas e seguiu em frente, tomando o rumo de uma escada que levava, provavelmente, ao pátio destinado aos banhos de sol, ou ao depósito de víveres e medicamentos. – Não adianta insistir, o diretor se lamentou, num tom de voz mais alto que o necessário, já que estavam num ambiente pequeno e silencioso. – Ele se comporta como um menino e só faz o que quer. E apontou um sofá de couro, no qual logo depois se jogou com uma expressão sorridente, à espera de que o inspetor também nele se instalasse para que pudessem, quem sabe, iniciar alguma agradável conversação. Mário Peres, entretanto, é um homem prático, que não gasta seu tempo com expedientes inúteis, nem se permite descanso enquanto não dá suas tarefas por concluídas, e por isso não atendeu o convite. Girou o corpo, o queixo erguido a simular a postura dos bailarinos, e retomou o mesmo caminho pelo qual viera, exibindo a falsa convicção de que ele o conduziria, enfim, ao homem que devia interrogar. Nada, no entanto, garantia que estivesse certo. E não estava, coisa que só algum tempo depois o infeliz inspetor conseguiu descobrir. Agora, invertendo as prioridades de meu interrogatório, eu começo por perguntar a você, Euzébio Dantas, construtor e falsário: qual é a identidade daquele homem sob cuja aparência você conseguiu, ao longo de toda uma tarde, se esconder? Quem era aquele mentiroso que, se passando por doente, me serviu de isca, levando-me a correr como um rato, a fuçar corredores íntimos e a ultrapassar portas interditadas, enquanto você se divertia como um rapazola nos braços da enfermeira pálida, protegido pelas cabines de descanso do vestiário feminino? Porque, se você cometeu um delito cuja gravidade aqui me cabe avaliar, aquele falsário praticou um crime dobrado que, além de duplicar o seu, o ultrapassou em cinismo e mesquinhez. E, se você, o verdadeiro Dantas, insiste agora em acobertá-lo, só posso concluir que a gravidade que ele guarda é ainda maior. Por isso, ordeno que volte imediataContinente Multicultural 55


mente à enfermaria masculina, onde você deve seguir, sem reclamações e sem lamentos, as ordens dos enfermeiros – e sentir-se muito satisfeito com isso. É uma vergonha aproveitar-se da ausência do diretor, que visita a Itália em missão religiosa, para tomar-lhe o lugar e, além disso, emporcalhar seu nome. Quanto a mim, tenho outro criminoso a seguir, diante do qual o crime que você cometeu, Euzébio Dantas, quase nada é. E outro interrogatório, agora bem mais importante, a fazer. O escrivão Salaminho virá amanhã cedo para cuidar de seu caso que, a partir de agora, eu considero uma ocorrência de importância inferior e da qual, por isso mesmo, abdico sem nenhuma lástima. Ainda assim, não pense que o senhor escapou definitivamente de mim, pois o método que escolhi como vingança é simples, quase infantil, mas muito eficaz: decidi me dedicar a esse relato que agora você mesmo lê, com a intenção de publicá-lo, logo que estiver concluído, nas páginas de A Simples Verdade, o boletim literário da Academia. E digo mais: pre-

tendo assiná-lo não com meu próprio nome, Mário Peres, pelo qual tenho a obrigação de zelar, mas sim com algum pseudônimo distante – quem sabe, o de Toupeira, para homenagear um pobre rapaz, tímido e perplexo, que mal conheci. Adornado com a mentira (usando a mentira como arma, exatamente como você fez), ele poderá, assim, e de forma muito mais incisiva, revelar a verdade. Muitas vezes, meu caro Euzébio Dantas, é preciso mentir para ser verdadeiro – e nessa perspectiva não posso negar certa engenhosidade ao crime que você, como autor intelectual, cometeu. Por fim, e antes de deixá-lo, quero que você saiba como descobri que você me enganava. Nas vezes em que eu o interroguei, apesar de encenar o papel de um homem sério e prático, você pareceu sempre muito distante, como se minhas palavras não pudessem alcançá-lo; e de fato não podiam, já que, mesmo me ludibriando, você não foi capaz de dissimular a própria surdez. Por isso eu lhe digo, seja em que direção a verdade venha a soprar, o corpo estará sempre aí, pronto para fisgá-la.

José Castello nasceu no Rio de Janeiro, em 1951. Graduou-se em Teoria da Comunicação, na Escola de Comunicação da UFRJ e depois, na mesma escola, em Jornalismo. É mestre em Comunicação pela mesma UFRJ. Foi repórter de Veja, redator do semanário Opinião, chefe da sucursal carioca de IstoÉ e editor dos suplementos Idéias/Livros e Idéias/Ensaios, ambos do Jornal do Brasil. Desde 1993, faz parte da equipe de cronistas do Caderno 2 de O Estado de S. Paulo. Desde 1994, vive em Curitiba. Publicou Fantasma, 2001 (Romance indicado ao Jabuti deste ano); Inventário das Sombras, 1999; Na Cobertura de Rubem Braga, 1999; João Cabral de Melo Neto/ O Homem Sem Alma, 1999; Vinícius de Moraes/ Uma Geografia Poética, 1999; O Poeta da Paixão, uma Biografia de Vinícius de Moraes, 1993. 56 Continente Multicultural


LITERATURA

Vampiros de Curitiba Um passeio pela cidade de Paulo Leminski, Dalton Trevisan e de outros artistas misteriosos Marcelino Freire

N

ão, não vou falar sobre Dalton Trevisan, prometo. Dá medo. Disseram-me que ele não gosta. Não autoriza ninguém a falar de sua obra e de sua vida. Cai na presa do Vampiro o amigo que der com a língua nos dentes. Vou falar então, primeiramente, do Valêncio Xavier. Escreveu ele O Mez da Grippe e o Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido, ambos saídos pela Companhia das Letras. Valêncio tem 69 anos, é paulistano e está em Curitiba desde os 20. É falastrão e bonachão. Sua literatura é, segundo ele, “sem denominação”. Feita de colagens, de figuras. Primitiva diagramação. Não dá para explicar, entende? Só vendo. Para ele, uma imagem vale mais que mil... Mil palavras não, é exagero. Trevisan cortaria pelo meio. Meu Deus, que inferno! Não me perguntem onde o Trevisan vive, onde se esconde. Sei, apenas, que os escritores da cidade se reúnem na Livraria do Eleotério. Foi para lá que me levou o poeta e escritor Miguel Sanches Neto. Mais adiante, você lê entrevista com ele e com o famoso crítico Wilson Martins, em que os dois tentam decifrar alguns enigmas da cidade. Eu, particularmente, não me sinto à vontade. Nem para falar do Leminski eu tenho coragem, acredita? Leminski está por toda parte. Está, por exemplo, no primeiro romance de José Castello, 51, intitulado Fantasma, em que ele envivece o autor de Catatau. Escreve Castello – por meio de seu personagem e alter ego – à página 55:

Dalton Trevisan, ilustração de Poty

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Abaixo, o poeta Paulo Leminski

“Até hoje Curitiba cultua esse morto célebre, o acalenta, o reverencia como um santo, já que Leminski acrescenta a essa cidade de barões, viscondessas, desembargadores e sonetistas a nobreza da modernidade”. E completa: “A cidade o cultua, mas, enquanto ele esteve vivo, o desprezou”. O narrador se enganou. Há quem ainda o despreze. É o caso do editor – e também entrevistador, carimbador, dobrador e envelopador do jornal Rascunho – Rogério Pereira, 29 anos. “Nós fazemos tudo rigorosamente sozinhos”. Rascunho dedica 16 páginas à literatura, “o maior espaço do país”, sem dúvida. Rogério edita o jornal nas horas vagas (e de sufoco), junto a uma equipe minúscula – mas que gosta de polêmicas mais que maiúsculas. Compraram briga com vários ícones de Curitiba, “Leminski é um embuste”. E por aí vai, citando outros mais.

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Fotos: João Wainer / Folha Imagem / Monica Vendramini / Folha Imagem

Acima, o escritor paulistano radicado em Curitiba Valêncio Xavier

Comemora o sucesso do Rascunho: “Todo mundo quer aparecer no jornal”. Até o Trevisan apareceu, com contos inéditos. Alguns deles, inclusive, retirados dos livretos que o próprio Trevisan faz e distribui para alguns leitores privilegiados. Livretos caseiros, ilustrados com desenhos de Poty, de Matisse, de J. G. Posada. Não tem jeito. Como fugir da sombra do Vampiro neste texto? Ir mais à frente e conferir a força da prosa de Jamil Snege e Wilson Bueno. Snege tem 62 anos. Ele mesmo publica os seus livros. Não quer saber de editora, não tem paciência. É cultuado em Curitiba. Sua prosa segue no boca-a-boca, contagiando admiradores de outros cantos. Escreveu Tempo Sujo, Os Verões da Grande Leitoa Branca, a novela Viver é Prejudicial à Saúde, entre outros. Quer um livro dele? É só ligar para o telefone 11.3814.5811 e falar com Cida, uma das fãs e divulgadoras do trabalho de Jamil em São Paulo. Para adiantar, leia um miniconto do Jamil, publicado aqui, nesta matéria (na página seguinte). Wilson Bueno foi fundador do histórico jornal Nicolau e é autor dos premiados Mar Paraguayo, um dos mais importantes livros da literatura latinoamericana, e do Meu Tio Roseno, a Cavalo. E foi Bueno, inclusive, quem me disse uma frase do Trevisan sobre Curitiba: “Meu lar. E meu cárcere.” Outro me disse que ele já chamou a cidade de “Curitiboboca”. Ora bolas, não posso falar do Trevisan, já disse. A maldição me persegue. A toda hora, uma recomendação. Não bata na porta do Vampiro. Não insista. Antes fale com o secretário. O Dalton pode chamar a polícia. Ele corre, todo dia pela manhã, nas sombras do Parque. Pulo, então, o parágrafo para falar do Manuel Carlos Karam. Escreveu ele o Pescoço Ladeado de


Capa de livro de Jamil Snege, autor do conto inédito ao lado

Imagem: Reprodução

Parafusos (editora Ciência do Acidente). Uma prosa fragmentada, cheia de anotações, introduções, estudos, princípios de geografia. Pulo para citar, idem, o Cristóvão Tezza, um dos mais importantes nomes da literatura do Paraná, ao lado de Domingos Pellegrini e de Roberto Gomes. Puxa! Quantos vampiros tem essa cidade? Roberto Gomes é outro nome importante, autor do romance Antes que o Teto Desabe, et cætera. Pena faltar espaço neste inventário. Sim, um inventário. Uma comunhão de retalhos. Um vôo cego. Rasante. Muita gente faltou, muita gente ainda aparece. Sem contar o movimento de poesia visual que há por lá. Ricardo Corona é um exemplo. Editor da revista Medusa, de poesia. Autor do Cinemaginário, recém-lançado. Não esquecer Sérgio Monteiro de Almeida, com suas tesouras e colagens. Ufa! A cidade de Curitiba lembra – e bem – o que acontece em Porto Alegre. Uma diversidade incomum de artistas. “Mas os curitibanos não consomem os curitibanos”, diz Walmor Marcelino, “É preciso fazer sucesso lá fora para fazer sucesso aqui dentro”. Marcelino é editor, escritor, poeta. E agitador da Boca, “Boca é o lugar maldito onde os escritores se encontram para falar mal uns dos outros”, revela. É ele quem edita a coleção Cadernos do Espanto, que publica contos como os da escritora nonagenária Cacilda Bhering Franco. E foi ele quem primeiro publicou Valêncio Xavier, lembra, o escritor do segundo parágrafo desta matéria? “Fale de todo mundo, só não fale do Dalton”, me avisaram. Prometo que não falo. Não passarei perto de sua porta. Não direi uma palavra.

Paisagem islenha

Conto inédito de Jamil Snege Um homem começa a ser ilha para fugir dos chatos ou quando lhe morre o gato. Começa a ser ilha por causa de um pâncreas ou de um parente próximo. Porque foi traído ou preterido. Porque Deus o abandona ou porque faz as pazes com ele. Começa a ser ilha numa manhã de sábado, numa tarde de quinta, depois de um velório. Num gesto de comiseração pelo próximo ou num gesto de extrema comiseração por si mesmo. Então, homem-ilha, se isola: procura uma casa que seja uma ilha – bem alto muro, gerânios, troca o telefone, não atende nem o carteiro. Homem-ilha a fugir dos homens-istmo, que lançam pontes para todos os lados; a temer os homens-promontório, em cujas escarpas o homem-ilha se nadifica; a invejar os homenscontinente, que abarcam em suas pradarias tribos de todas as coisas. Íncola de sua casa-ilha, ilhéu, insulano, o homem-ilha se torna perfeitamente islenho quando intolera a própria sombra. Hora de quebrantar espelhos: ver-se a si mesmo – intolerável quanto ver um outro.

Marcelino Freire é escritor, autor de Angu de Sangue

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Ser e não ser devedor do Dalton Wilson Martins e Miguel Sanches Neto ocupam uma mesma página de jornal, o Gazeta do Povo, em Curitiba. Ambos publicaram livros recentes. Wilson Martins, na verdade, foi homenageado pelos seus 80 anos em um volume de ensaios publicado pela TopBooks, do Rio. O Miguel Sanches, além de poeta e crítico, publicou o seu primeiro romance, Chove sobre Minha Infância, pela Record, a sair ainda este ano na Espanha. A Continente, então, resolveu colocá-los lado a lado mais uma vez, na tentativa, inclusive, de decifrar alguns dos enigmas da cidade de Curitiba, como o Dalton Trevisan. Enquanto um acha que Trevisan não deixou herdeiros e não passa, hoje, de um vulto histórico, o outro afirma que todos são devedores do “vampiro”: “O Dalton é o banco que deu crédito a Curitiba”.

Sobre as sombras Dalton está para Curitiba como Borges, para Buenos Aires. Nada menos. É uma referência forte. E Leminski sabia disso, tanto que se rebelou contra o Vampiro, recusando a prosa tal como ele a pratica desde os anos 50. No meu caso, Dalton foi um achado. Eu aprendi muito com a literatura dele, mas meu estilo não tem nada a ver com o dele. Eu sou do interior, onde vivi até os 20 anos. Cheguei já com uma personalidade formada, com uma experiência do mundo rural, com uma crença colona na ética do trabalho, e tudo isso me distanciou de uma maneira curitibana de ser e de escrever, e que está codificada na obra do Dalton. Talvez para outros escritores seja preciso superar uma influência vampírica. Para mim não. E nem para o Domingos Pellegrini, cuja formação se deu toda em Londrina. Do Dalton eu tirei as lições de concisão, de reescrita, de insatisfação com o texto, de crítica ácida a todos os embustes etc. Todos somos devedores do Dalton. Ele é o banco que deu crédito a Curitiba.

O escritor Miguel Sanches Neto faz crítica literária para o jornal Gazeta do Povo, de Curitiba

Sobre os Miguéis Para mim não existem paredes dividindo o que é o crítico, o romancista, o poeta. Sou apenas um escritor, um pobre homem do interior, que é pretensioso ao ponto de se querer tudo ao mesmo tempo. Agora, volto a insistir: estou dentro de uma estética pósmoderna, em que já não existem fronteiras de gêneros. Meu romance é a soma do Miguel poeta, do Miguel crítico e do Miguel contista. Sou um ser

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contaminado por este espírito de uma época. Quem é só romancista ainda não é romancista. Não tenho medo de ridículo. Cuido apenas para escrever o melhor possível, mas escrevo muito como quem vomita, para fazer um ajuste de contas comigo e com todos ao meu redor. Nada do que uma pessoa é atrapalha. Tudo soma. Sobre o crítico ideal Vejo no Wilson Martins a maior reserva crítica do país. E eu sempre que posso tento ver as coisas do lugar em que ele está. Porque o crítico que temos hoje no Brasil se tornou uma mistura de vendedor de livros, mafioso e mago da estética. Ou seja, não temos crítica, principalmente porque os grandes veículos não investem mais no crítico de jornal. Escrever crítica é uma arte que exige um permanente interesse pelo fato literário como um todo, que exige ainda uma linguagem em estado democrático de compreensão e, se possível, uma inteligência solar, nunca ressentida. É assim que vejo o modelo do crítico ideal e é por ele que tento ajustar minhas medidas. Sobre as cidades Sou um homem de cidade pequena. Gosto das metrópoles mais ou menos como quem admira uma grande atriz. De longe e com o senso do ridículo. Vivemos o colapso

Foto: Pedro Serapio / Gazeta do Povo

Miguel Sanches Neto


da urbe, que pode ser visto no apagão, na falta de água, de saneamento. A tendência mundial hoje é o retorno às cidades menores. Já morei muitos anos em Curitiba (vivo hoje em Ponta Grossa), morei em Campinas, em Florianópolis, mas a minha cidade eleita é Ouro Preto, ou Marina, ou Tiradentes. A poluição ambiental de uma cidade como São Paulo ou Rio tem como correspondente a poluição cultural, e desta nem na distante Ponta Grossa nós fugimos, porque elas chegam pelos meios de comunicação.

Wilson Martins, considerado um dos maiores críticos literários brasileiros

Foto: Marcelo Elias / Gazeta do Povo

Wilson Martins Sobre Leminski e Trevisan O menos que se pode dizer é que nenhum deles deixou herdeiros, nem no estilo, nem na temática, nem no reconhecimento nacional. Uma das razões está, quanto à prosa de ficção, no fato de que a vitalidade, e até o monopólio, do conto, cedeu lugar à criatividade do romance (Cristóvão Tezza, Domingos Pellegrini, Roberto Gomes, Miguel Sanches Neto). A outra, no que se refere à poesia, está na exaustão do Concretismo, de que Leminski foi um epígono periférico. Um e outro conservam seus admiradores, em Curitiba e fora dela, mas como vultos históricos; pertenceram a um momento determinado, a uma conjuntura, Leminski depois de Trevisan, sendo hoje objeto de cerimoniais periódicos esotéricos e místicos. No caso, a passagem do conto para o romance garantiu a qualidade da ficção, agora concebida em parâmetros muito mais amplos; na poesia, os novos nem produziram até agora nenhum nome inconfundível e indiscutível, nem mesmo acrescentaram ao existente.

Sobre Porto Alegre e Curitiba São cidades que se tornaram nestes últimos anos centros importantes de vida intelectual, tanto nas atividades editoriais, quanto pelo número de notáveis escritores. Isso faz parte, creio eu, do processo sociológico de descentralização que está marcando em nossos dias a vida brasileira. Sobre os pernambucanos É possível repetir, a esse propósito, o que foi dito de Porto Alegre e Curitiba. Os nomes “históricos” (Bandeira, João Cabral, Osman Lins...) foram substituídos por César Leal e Maria Cristina, para mencionar apenas dois expoentes atuais, um na poesia, a outra no romance. Sobre os imigrantes É inegável que muitos intelectuais de outros estados passaram a viver em Curitiba, e isso pelos mais variados motivos, impossíveis de identificar. É fácil perceber que a cidade lhes deve uma parte perceptível do status que adquiriu como centro de vida intelectual. Sobre os 80 anos A exemplo do que ocorre nos países cultos, diversos intelectuais de renome, no Brasil e no exterior, decidiram me honrar com o livro comemorativo (Mestre da Crítica, com ensaios assinados por Affonso Romano de Sant’Anna, Moacyr Scliar, Edson Nery da Fonseca, Antonio Candido e outros), colaborando com ensaios críticos, homenagem que, como é natural, muito me sensibilizou. Para além de sua finalidade específica, o livro me parece destinado a um lugar importante em nossa bibliografia crítica, justamente pelo alto gabarito dos trabalhos reunidos. Sobre a crítica da crítica A crítica que faço da minha crítica é, como seria de esperar, das mais favoráveis... Mas, brincadeira à parte, devo reconhecer ter sempre trabalhado com isenção e espírito de justiça. Sempre acreditei e continuo acreditando que os nossos julgamentos nos julgam, que é por onde se mede, justamente, a qualidade dos críticos e da crítica.

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antologia

Biografia de uma Árvore Fabrício Carpinejar

Ouvidos de Orvalho

Fragmento do Canto I

Vou te extraviando no ato de nomear. Melhor seria recuar no silêncio. Cantamos em coro como animais da escureza. Os cílios não germinaram. Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas, estampas e ervas no peito. Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto, compondo esquina com a noite. Cantar não é desabafo, mas puxar os sinos além do nosso peso, acordando a cúpula de pombas. Somos fumaça e cera, limo e telha, névoa e leme. O inverno nos inventou. Não importa se te escuto ou se explodes meus ouvidos de orvalho: morre aquilo que não posso conversar? Ficarei isolado e reduzido, uma fotografia esvaziada de datas. Os familiares tentarão decifrar quem fui e o que prosperou do legado. Haverei de ser um estranho no retrato de olhos vivos em papel velho.

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Escrevo para ser reescrito. Ando no armazém da neblina, tenso, sob ameaça do sol. Masco folhas, provando o ar, a terra lavada. Depois de morto, tudo pode ser lido, inclusive o não redigido. Depois de morto, nada pode ser inventado, não existe a vaidade da autoria. Vejo degraus até no vôo. Tua violência é a suavidade. Não há queda mais funda do que não ser o escolhido, amargar o fim da fila, ser o que fica para depois, o que enumera os amigos pelos obituários de jornal, o que enterra e se retrai no desterro, esfacela a rosa ao toque na palidez das pétalas e velas, vistoriando cada ruga e infiltração de heras entre as veias, nunca adulto para compreender. Não há nada de natural na morte natural. Divorciar-se do corpo, tremer ao segurar as pernas, acomodar-se no finito de uma cama e deitar com o tumulto que vem de um túmulo vazio.


Reserva de Chuvas

Fragmento do Canto VI

Na escola, zombaram de minha pronúncia torta, ameaçaram-me com canivetes no recreio. Assisti à covardia crescer, aquietado no fundo da sala. Durante anos, contive o veludo áspero da pata, a soleira da pata, a vogal da pata. Preparei a vingança pelas palavras. Roubei o dízimo, enrolei o papel seda dos versículos para fumar tuas promessas. Pisei em teu rosto com a luz suja de um livro. A neblina me seguiu enfurecida e não viu que estava nela. Peço desculpas como uma criança, as mãos algemadas na inocência nociva. Como enganar os gestos? Minha vontade de abraçar esgana. Todos meus erros descendem do excesso, não da penúria.

As diferenças nos assemelham, o único vizinho do mar é o abismo. Estou extremamente perto e morro distante. Moro numa morte emprestada. Cerca-me da cegueira, tal relâmpago que acende o bosque para as aves pousarem nele. Cerca-me da cegueira, desapegando do que não vi. Cerca-me da cegueira, a fidelidade do vento é testada no naufrágio. Cerca-me da cegueira, como uma fruta apanhada com os dentes. Cega-me. Meu desespero fracassou ao passar a noite em claro. Fez amizade com as sombras.

Deus, será que tua água vem da sede do homem? Será que nossa sede é potável?

Poemas do livro inédito Biografia de uma Árvore. Fabrício Carpinejar é poeta, jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nasceu em Caxias do Sul (RS) aos 23 de outubro de 1972. Mora em São Leopoldo (RS). É autor dos livros As Solas do Sol (Bertrand Brasil, 1998), Um Terno de Pássaros ao Sul (Escrituras Editora, 2000) e Terceira Sede (Escrituras, 2001). Seu nome vem sendo saudado como uma das revelações da poesia brasileira por escritores como Antonio Skármeta, Ivo Barroso, Fernando Monteiro, Antonio Carlos Secchin, Carlos Heitor Cony, entre outros.

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REPORTAGEM

Guardiões de pequenos tesouros Perfeitos obsessivos e sempre insatisfeitos, os colecionadores ajudam a preservar a História

Tatiana Resende

O

Peça de porcelana do colecionador Roque de Brito Alves

que leva uma pessoa a pagar pequenas fortunas por um simples objeto, vibrar com a conquista, sofrer com a perda e nunca se resignar com sua falta? Colecionadores são pessoas metódicas, pacientes, organizadas, observadoras e, sobretudo, determinadas. Um verdadeiro exemplar da “espécie” sabe tudo – ou busca saber – sobre seu passatempo. O entretenimento acaba se tornando não só uma fonte de conhecimento, mas também de sociabilidade, pois, a cada novo encontro para trocas, compras e vendas, são feitos novos amigos. A História mostra, em várias épocas e locais diferentes, pessoas preocupadas em guardar objetos a fim de preservá-los para as gerações futuras. Sem esses visionários, não teríamos o conhecimento de nosso passado guardados em museus e bibliotecas atualmente. Para se ter uma idéia da importância do colecionismo, diversos países, como a China, introduziram a Filatelia nas escolas, considerando-se sua importância didática, histórica e cultural. Ricardo Breno é o que pode se chamar de um colecionador profissional. Confirmando a máxima de que nenhum aficcionado coleciona apenas um objeto, ele se interessa por xícaras, cartões telefônicos, relógios, postais, miniaturas de

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Fotos: Helder Ferrer

carros, medalhas, moedas, cédulas e selos. “Tenho o prazer de ter, conhecer, olhar, mostrar”, diz. Presidente da Associação Filatélica e Numismática de Pernambuco, ele e os companheiros se reúnem todos os domingos no Parque 13 de Maio e, no segundo sábado de cada mês, no Clube Náutico Capibaribe. “Todos os dias, às 4h da manhã, dou corda nos meus 50 relógios de algibeira”, revela. As outras coleções, adquiridas ao longo de 32 anos, são ainda mais numerosas. “Tenho 200 miniaturas de carros e 1.200 xícaras inglesas, francesas, de hotéis, motéis, restaurantes e firmas. Muitos desses negócios já nem existem mais, como a da empresa de aviação Panair do Brasil”, conta. Medalhas são 500. Comemorativas, como as do Sesquicentenário de Joaquim Nabuco e em homenagem a Barbosa Lima Sobrinho, além de condecorações da Confederação do Equador (1824) e da Abolição da Escravatura (1888), entre outras. O colecionador possui ainda moedas brasileiras de prata e bronze – dos padrões Colônia, Cruzeiro e Réis – e todas as cédulas do padrão Cruzeiro. “Há milionários que compram tudo de uma vez. Não tem graça. Cada peça deve ter sua história”, acredita. A única coleção que Ricardo Breno considera completa é a de selos comemorativos do Brasil. Foram 2.400 lançados desde 1900. “Na coleção de selos, podemos chegar a um fim aparente. Em janeiro, os Correios lançam um informativo de tudo que será lançado até o final do ano e ainda há um jornal bimensal para nos manter informados”, enfatiza. Com tantas paixões, Breno faz questão de frisar a diferença entre o “juntador” e o colecionador. “Enquanto o primeiro vai guardando os objetos sem ordem, nós pesquisamos e mantemos tudo organizado. De canecas e de revistas, por exemplo, eu sou ‘juntador’”, diz. Diógenes Pires também faz parte da Associação Filatélica e Numismática e optou pela telecartofilia, uma das mais novas formas de coleção, já que os cartões telefônicos só surgiram em 1976, na Itália. No Brasil, foram emitidos pela primeira vez durante a ECO 92. Pires começou como a maioria das pessoas, deixando de jogar fora os cartões usados e passando a agrupá-los. Agora, já contabiliza mais de oito mil itens, separados em álbuns por temas, como fauna e flora, esportes, forças armadas, cidades e mapas.

Para ele, os colecionadores são pessoas especiais, que mereciam até um estudo psicológico. “Graças a nós, a História é preservada. E ainda adquirimos uma bagagem cultural melhor e uma sensibilidade mais acurada para as artes. In felizmente, há pessoas que nos chamam de doidos. Elas não imaginam o prazer de conquistar uma peça nova”, completa. Pires, que também coleciona moedas, conta que quando está vendo seu acervo, transporta-se para o passado. “Tenho mais de mil moedas da Colônia, do Império e da República, além de quase todas as cédulas do padrão Cruzeiro.” Ele lembra que as coleções também podem ser vistas como um investimento, mas revela que já vendeu algumas peças por um excelente preço e acabou se arrependendo. Uma das coleções mais inusitadas da Associação é a de José Gomes de Sá Dezinho. Ele tem mais de dez mil estampas que acompanhavam as caixas de sabonete Eucalol, marca que dominou o mercado por várias décadas. Dezinho coleciona ainda canetas, chaveiros, álbuns de figurinhas e caixas de fósforos. “No meu tempo de criança, nós éramos estimulados a colecionar. Qualquer ‘bodegazinha’ dava brindes. Hoje em dia, são raras as empresas que distribuem alguma coisa”, diz, justificando porque a maioria das colecionadores já passou dos 50 anos. Só de caixas de fósforos são seis mil, adquiridas em hotéis, motéis, restaurantes, mercadinhos e farmácias desde a década de 40. Na frente, o nome da empresa e, no verso, o tema da coleção. Nas caixas distribuídas pela importadora de tecidos Erontex, por exemplo, estão os craques da seleção brasileira de 1970. Os jogadores de 1958 comparecem nas do barbeador elétrico – uma grande novidade para a época – Remington 60. A Arno optou por mostrar em suas caixinhas o desenvolvimento da Indústria. “Volto a minha infância olhando esses objetos. A gente sabe que tem um passado, mas não um futuro”, declara.

Coleção de moedas brasileiras de prata e bronze, de Ricardo Breno

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“Há milionários que compram tudo de uma vez. Não tem graça. Cada peça deve ter sua história”

Coleção de relógios de algibeira, de Ricardo Breno

Dezinho explica que a coleção mais simples de estampas de Eucalol tem 2.292 figuras, mas a sua é muito maior porque considera em seu acervo todas as variedades, que incluem erros de impressão em nuanças de cor ou estampas com a frente diferente do que diz o verso. “Compro figuras que eu já tenho só para garimpar novas falhas”, conta. Para facilitar a organização, ele fez um catálogo dividindo as estampas em 45 temas, que, por sua vez, estão separadas por séries. Cada série é formada de 6 a 12 figuras. O tema mais numeroso são os “Uniformes do Brasil”, que têm 48 séries de 6, ou seja, 288 figuras. A “História do Brasil” tem 144 e o “Incrível, porém Verdadeiro” – que mostra homens com duas íris em cada olho, com chifres, entre outras aberrações – tem 72. A paixão pelos brindes que vinham com o sabonete Eucalol começou em 1951, época em que muita gente considerava isso “coisa de menina”, embora todos tivessem algum interesse pelo assunto. “Quando tinha 13 anos, eu e meus colegas chegamos atrasados na escola militar porque estávamos trocando estampas. O sargento quis descobrir quem eram os colecionadores. Meus amigos, com medo, não quiseram se denunciar, mas eu admiti”, lembra. Chamado para uma conversa particular com o zangado sargento, a surpresa: ele também tinha estampas para vender e queria saber se o jovem Dezinho gostaria de comprá-las. A psicóloga e psicoterapeuta Edilnete Siqueira, uma das fundadoras do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, conhece muitos colecionadores e afirma que o passatempo é uma atividade saudável. “Só há problemas se os colecionadores começarem a substituir o

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prazer sexual pelo seu hobby. Mas o limiar entre o normal e o patológico é muito tênue e, muitas vezes, só demonstrado na intimidade”, esclarece. De acordo com ela, as pessoas metódicas, como os colecionadores, são mais propensas a comportamentos obsessivos, mas isso não significa que eles vão apresentar problemas neuróticos. “Um caixa de banco, por exemplo, é um obsessivo perfeito, mas isso é ótimo para o seu trabalho, que precisa ser muito organizado”, complementa. Vencendo pelo cansaço – O professor e jurista Roque de Brito Alves herdou do pai o gosto em colecionar porcelanas, que hoje já chegam a 230 peças, entre jarros, biscuits, cristais antigos, opalinas, serviços de mesa e vasos. Considerado o maior colecionador de porcelanas do Nordeste, Brito Alves lançou recentemente 500 exemplares de um catálogo em português, inglês e francês. A publicação será enviada para museus, universidades e colecionadores europeus. Sua fama, no entanto, já chegou ao velho continente há muito tempo. Um prato do serviço de chá de D. João VI – uma peça inglesa de 1790, trazida de Portugal para o Brasil durante a fuga do monarca das tropas de Napoleão – chamou a atenção do Museu de Vitória e Albert, de Londres, em 2000. A direção requisitou ao jurista fotos e transparências da peça para a edição daquele ano da Revista Internacional de Porcelana de Derby. A maioria das peças foi comprada no Brasil, geralmente de famílias que estavam se desfazendo do acervo por motivos financeiros. “Como não sou milionário, a minha dúvida é se no momento eu posso ou não comprar. Não acho caro nem barato”, explica. Outras vezes é o proprietário quem se recusa a vender e, por conta disso, Brito Alves já esperou até dez anos por um par de vasos de porcelana de Paris (1850-1870), em estilo barroco. “Mas acabei vencendo pelo cansaço”, lembra, sorrindo. Outra raridade da coleção são os pratos do serviço de casamento do Imperador D. Pedro I com D. Amélia de Leuchtenberg, realizado em 1829, e o primeiro prato com o brasão da República. A peça


Jarbas Vasconcelos conta que já esperou até 15 anos para conseguir uma manjedoura do artista popular mineiro Adão e acabou encontrando-a, por acaso, em um restaurante de São Paulo. Mas nem sempre é possível realizar todos os desejos. “Deixei de comprar muitas peças. Às vezes, passava em uma loja, me interessava e deixava para comprar depois. Quando voltava, a peça já tinha sido vendida. A sensação é de completa frustração”, confessa. Esta, aliás, parece ser a sina de todo colecionador. Todos os entrevistados fizeram questão de frisar que, ao encontrar a peça desejada, nunca deixe para comprar depois, pois corre o sério risco de nunca mais vê-la, quase como se fosse um castigo por não ter aproveitado a chance. Para não perder uma dessas oportunidades, o Governador conta que já fez até uma ‘pequena loucura’: “Certa vez, trouxe de avião do México, no colo, uma igreja em cerâmica. Não havia como acomodá-la e o jeito foi esse”. Para Jarbas Vasconcelos, uma coleção nunca se completa, tem de estar sempre sendo ampliada. “O que me falta é espaço. Hoje me policio muito. Vejo uma peça e só compro se for mesmo muito importante porque está difícil acomodar todas em minha casa. Evito até ir ao Alto do Moura, porque não consigo sair de lá sem adquirir, no mínimo, três peças”, diz. De mudança

Pratos de porcelana do colecionador Roque de Brito Alves

Fotos: Helder Ferrer

mais antiga é a leiteira de Viena pintada à mão, datada de 1775. O objeto possui detalhes tão minuciosos que só são vistos com auxílio de lupa. Todas as porcelanas são devidamente catalogadas e separadas em vitrines de acordo com o estilo, época e motivo (paisagens, romances, histórias, lendas mitológicas). Além de colecioná-las, o professor adora pesquisar sobre elas, o que considera uma higiene mental. “A porcelana esteve presente em todos os estilos, do Barroco ao Neo-Clássico, sempre refletindo a vida social, os costumes e a cultura de um certo país durante um período da História”, justifica. Outro amante das obras de arte é o Governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, que possui cerca de 1.300 itens em sua coleção de artefatos de cultura popular. O acervo começou a ser montado há 40 anos, quando o Governador costumava ir ao Alto do Moura, em Caruaru. “Fui comprando as de Mestre Vitalino, Zé Caboclo e me entusiasmei. Não parei mais. Comecei com a cerâmica, o barro, depois passei para a madeira. Depois de Caruaru, fui a Tracunhaém e Petrolina. Com o tempo, os horizontes foram sendo ampliados”, recorda. As peças mais antigas são as de Mestre Vitalino, mas a coleção inclui obras de vários lugares. “Tenho peças de Pernambuco, Bahia, Ceará, Piauí, Minas, Rio de Janeiro, Amazonas, China, Japão, Índia, Portugal, Espanha, Marrocos, México e Peru, entre outros países”, contabiliza.

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Vasos de porcelana do colecionador Roque de Brito Alves

para uma nova residência, ele revela qual foi a sua primeira preocupação: “As prateleiras para as peças. O resto vem depois”. Um penny que vale ouro – A mania de colecionar selos já é considerada uma “ciência auxiliar da História” pelo Congresso Internacional de Filatelia de Barcelona, desde 1960. No Brasil, o Ministério da Cultura incluiu a Filatelia na Lei Federal de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, o que permite a elaboração de projetos para obter incentivos fiscais para esse tipo de colecionismo.

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O advento dos selos adesivos, em 1840, provocou uma revolução que superou complicados e seculares sistemas tarifários. A idéia foi do inglês Rowland Hill, que instituiu a tarifa única de um penny para o transporte de todas as cartas endereçadas a qualquer parte da Grã-Bretanha. O segundo país do mundo e o primeiro das Américas a emitir selos postais foi o Brasil, com o famoso Olho de Boi, em 1843. Antes da reforma proposta por Hill, o destinatário – e não o remetente – pagava pela postagem da correspondência, mas as pessoas começaram a mandar sinais no envelope que já davam o recado desejado. Quem recebia a carta se recusava a pagar porque já sabia do conteúdo e os Correios tinham que arcar com o prejuízo. Philippe Ferrari passou para a história como o maior colecionador de selos. Era filho de um financista genovês, conhecido como “o rei das ferrovias” e proprietário de uma imensa fortuna. Ele reservou três cômodos de seu palácio para a coleção filatélica, nomeando curador um conhecido comerciante parisiense de selos ao qual destinava um valor fixo semanal de 50 mil francos para as aquisições. Ferrari morreu em 1917, deixando seu acervo para o Museu Postal de Berlim, mas o governo francês “seqüestrou” os selos, vendeu os exemplares em leilão e ficou com a arrecadação como indenização de guerra. Já a coleção de Thomas Keay


Ao encontrar a peça desejada, nunca deixe para comprar depois ou corre o sério risco de nunca mais vê-la Tapling, presidente da Sociedade Filatélica de Londres, foi para o Museu Britânico, conforme seu desejo, mas a doação foi aceita com ressalvas. Segundo os curadores do museu, “uma coleção de selos não é coisa digna de figurar em nossas galerias”. O impasse só foi resolvido graças à intervenção do rei Jorge V, também um filatelista. Reginald M. Phillips não precisou passar por tal constrangimento. As raridades do empresário foram prontamente aceitas, já que, junto com a coleção, ele doou uma significativa soma de dinheiro para a sistematização do Museu Postal Britânico.

Peças da coleção do Governador Jarbas Vasconcelos

Tatiana Resende é jornalista

Fotos: Helder Ferrer

Assassinato – Um filatelista já desvendou até um assassinato graças à sua paixão. Em 1950, o negociante de selos raros Peter Jones, examinando as novas aquisições enviadas por um correspondente australiano, percebeu jornais amarelados em uma das cartas. Ao lê-los, soube da história de um crime ocorrido há 100 anos, no qual um homem chamado Richard Canning foi condenado à prisão perpétua pelo assassinato da esposa, Bettina, morta na Ilha das Rosas, na Austrália. O acusado clamou por inocência, acusando o amante dela, John Ellington. Ao olhar mais atentamente o restante da correspondência, Jones acabou descobrindo um envelope dirigido à própria Sra. Bettina Canning, reme-

tido pelo suposto amante. Ao ler a carta, o colecionador constatou que o assassino era mesmo John Ellington, que pedia à amada um último encontro na Ilha das Rosas e afirmava que o suicídio seria a última prova da sinceridade do seu amor. Jones comunicou a descoberta às autoridades australianas, que acabaram descobrindo o esqueleto de Ellington numa profunda caverna na Ilha, com uma perfuração no crânio. A caverna era tão estreita que a hipótese de que alguém tivesse levado o corpo para lá foi descartada. Canning foi inocentado décadas depois de sua morte, mas o plano de vingança do amante de sua esposa foi bem sucedido, já que ele faleceu na prisão pagando pelo crime que não cometeu.

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AnĂşncio

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AnĂşncio

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA

A riqueza do Brasil Joel Silveira

1.Brasil rico O Brasil só é pobre entre suas fronteiras. Fora delas, principalmente na Suíça, é riquíssimo.

2.Desconfianca Passei a desconfiar de quem não tem menos de cinqüenta anos. Toda juventude é caótica, toda mocidade é vigarista, mas toda maturidade é cínica e inescrupulosa.

3.Que idiota!

Quando, em encontros ocasionais (e, para felicidade minha, cada vez mais raros), tenho que suportar Fulano com aquele sorrisinho que pretende ser sarcástico, e encarando-me com aquela inchada suficiência, penso comigo mesmo: – “Que grande, irremediável idiota!” Exatamente o que ele na certa pensa de mim.

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4.Mocidade?

Não entendo quando leio nas colunas sociais referência à “mocidade” da badalada flor do nosso soçaite – uma senhora de 37 anos. Quando eu tinha 37 anos, já era velhíssimo.

mal da 5.Oesperanca O homem é mais livre sem esperança. A esperança é a mãe da ansiedade; e a madrasta do infarto.

6.Perigo!

O perigo nesse senhores do governo é quando substituem a competência que lhes falta pela esperteza que lhes sobra.


7.O Calendario Não sei se acontece com os outros, mas comigo a velhice só dói mesmo no calendário. A mocidade doía mais, doía em tudo – menos no calendário.

8.Mulher feia

Em toda a minha vida, jamais conheci uma mulher feia. Mulher só é feia quando quer, geralmente por conveniência. Então, elas conseguem ser até mesmo pavorosas.

9.Madrugadores

Se Deus realmente ajuda a quem cedo madruga, ninguém seria fuzilado, eletrocutado ou enforcado às cinco da manhã.

10.

Duvidas noturnas

Sempre me perguntei se os ratos gostam de ser chamados de ratos. E as baratas, será que não se ofendem quando as chamamos de baratas? São dúvidas assim que me inquietam, chegam até a me tirar o sono.

11.

O estilo do literato

Por mais que aquele inesgotável literato “enxugue” o estilo (?), como vive a dizer que o faz, mais a sua prosa (?) me parece molhada, pegajosa. Se com ele eu tivesse maiores intimidades, poderia aconselhá-lo, e apenas na qualidade de leitor exigente, a só escrever precavidamente munido de capa, guarda-chuva e galochas. Uma pneumonia, na sua idade, pode ser fatal.

12.O machao

Machão mesmo era aquele fazendeiro do Triângulo Mineiro, citado por Marques Rebelo num dos seus livros. O cavalheiro resolveu fazer o seu próprio dicionário e lá pôs no verbete “mulher”: “Máquina para fazer a gente dormir”.

Joel Silveira é jornalista

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MÚSICA

Palco vazio

O maestro e violinista Cussy de Almeida explica o que a aviação e a televisão têm a ver com o declínio da música erudita no Recife

Paulo Sérgio Scarpa O fim dos aviões de carreira e a chegada dos jatos foram responsáveis pelo declínio do movimento de música erudita no Recife. Não foram os únicos responsáveis, mas contribuíram imensamente já que Pernambuco enfrentava o declínio econômico no final da década de 70, o que atingiu em cheio a cultura. Esta é a explicação que o violinista e maestro Cussy de Almeida, 66 anos, encontra para a interrupção de seguidas temporadas no Teatro Santa Isabel, palco acostumado a acolher, anualmente, artistas internacionais e nacionais. “Foi uma questão puramente econômica e conseqüência direta do progresso na aviação”, resume. Os aviões que partiam da Europa, lembra Cussy, não tinham autonomia de vôo. Eram obrigados a fazer escala no Recife antes de partir para São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevidéu, os maiores centros musicais na América Latina entre os anos 40 e 70. “Os artistas dormiam no Grande Hotel após 17 horas de viagem entre 74 Continente Multicultural

Paris e o Recife e não custava nada se apresentar no Santa Isabel, bem pertinho do hotel”, lembra. Os artistas, geralmente, eram contratados pelos teatros de Buenos Aires e Montevidéu, mas o Recife sempre pegava carona através da Sociedade de Cultural Musical de Pernambuco, que sobreviveu 50 anos patrocinando o melhor em música erudita na cidade, entre 1926 e 1976. A Sociedade, por sinal, foi criada pela privilegiada situação geográfica do Recife – bem no meio do caminho entre Europa e América Latina. Como a Sociedade de Cultura Musical chegou a ter mais de 1.600 sócios, conta Cussy de Almeida, este público privilegiado sustentava financeiramente a entidade. E como o Santa Isabel só comportava em média 600 pessoas, havia geralmente duas apresentações do mesmo artista. “Dependendo do sucesso, havia uma terceira apresentação, na escala da volta. Mas, com a chegada dos jatos, o Recife deixou de ser parada obrigatória, per-


Fotos: Acervo do autor / Clemilson Campos / DP

demos este imenso filão e começou a decadência musical da cidade”, queixa-se. Quem podia pagar a anuidade da Sociedade de Cultura tinha ingressos garantidos, mas o interesse do público das classes média e alta era cada vez maior. Em 50 anos de atividades, a Sociedade de Cultura Musical de Pernambuco patrocinou cerca de 500 concertos, apresentações de orquestras, de solistas, de música de câmara, de corais, de balés. Estiveram no Recife personalidades como o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos, os maestros Eleazar de Carvalho e Aírton Souza Lima; os pianistas Cláudio Arrau, Alexandre Brailowsky, Arthur Rubinstein, Friederich Gulda, Fritz Kreisler, Magdalena Tagliaferro, Jacques Klein e Guiomar Novaes; o violinista Isaac Stern, Jasha Heifetz; o Coro dos Meninos de Viena e até a Família Trapp, a mesma que inspirou o filme A Noviça Rebelde. Além da cantora negra norte-americana Marion Anderson, do Quarteto Borodin, de Cristian Ferraz, do London String Quartet, Nathan Milatein, William Backhaus, Nikolai Orloff, Pierre Fournier, Quarteto Guarnieri, José Iturbi, Alexandre Borosvsky,

para citar apenas alguns entre mais de 300 artistas contratados pela Sociedade Musical. E o próprio Cussy de Almeida, antes de assumir a presidência da Sociedade Musical – ele foi o último presidente da entidade. No palco do Santa Isabel estiveram os melhores da música erudita em todo o mundo, garante o violinista. “O Recife estava sintonizado com a Europa e os Estados Unidos. Ninguém precisava deixar a cidade para conhecer os melhores artistas do momento”, explica. Mas o sistema acabou ficando arcaico. A inadimplência atingiu, também, a Sociedade de Cultura Musical. “Se os sócios não pagam nem as anuidades dos clubes de futebol, imagina pagar uma entidade cultural”, ironiza Cussy. Mas a Sociedade Musical cometeu um erro grave, na avaliação do maestro: não formou um público novo, não renovou seus sócios. “Os mais velhos já não queriam deixar suas casas, a TV chegou para ficar e os

Cussy de Almeida, ontem e hoje


mais novos preferiam outro tipo de música”, sintetiza. Mas os bons tempos da música erudita em Pernambuco acabaram atingindo, também, a Orquestra Sinfônica do Recife, que na avaliação de Cussy de Almeida alcançou o seu auge entre os anos 40 e 70. “A OSR teve crescimento vertiginoso, por exemplo, com a inauguração da Rádio Jornal do Commercio, em 1947. Seu proprietário, doutor Pessoa de Queiroz, era um visionário, só queria o melhor. Ele decidiu então criar a Orquestra Sinfônica para a Rádio Jornal, trazendo ao Recife os melhores músicos do País, como Guerra Peixe”. E a OSR acabou tirando proveito da iniciativa empresarial porque realizou concertos com os músicos contratados, a maioria do Rio de Janeiro, São Paulo ou vindos da Itália, o que renovou repertório e estimulou seus músicos e dirigentes. Este intenso movimento musical no Recife provocou uma verdadeira explosão erudita no Estado. Pernambuco, que já tinha a Sociedade Lírica em intensa atividade, ganhou um novo Conservatório de Música, recriado no Governo Nilo Coelho (1967-1970), com Cussy de Almeida à frente da instituição; foi fundada a Orquestra Armorial de Câmara, por Cussy de Almeida e Ariano Suassuna;

e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) respondeu ao estímulo criando o seu Curso de Música. E essa revolução musical provocou o aparecimento de artistas jovens, como as pianistas Josefina Aguiar e Eliana Silveira, os maestros Duda e Clóvis Pereira e o próprio Cussy, entre tantos outros. “A cidade fervilhava musicalmente, do popular ao erudito”, conta. A história da Orquestra Sinfônica do Recife (OSR), no entanto, tem uma explicação própria, na avaliação do maestro. “A OSR sofreu uma série de equívocos, que fizeram com que definhasse, ficasse moribunda, o que é lamentável”. Para ele, o público não precisa conhecer profundamente música para gostar de uma orquestra. “Quando uma orquestra é boa, ela entusiasma; quando não é boa, incomoda. O que as pessoas não gostam é de ser enganadas”, sentencia. Cussy conta que já viu esta história centenas de vezes em sua vida, desde quando deixou o Recife, na década de 1956, para tentar estudar música no Conservatório de Paris, onde acabou ganhando dinheiro sendo copista de Heitor Villa-Lobos, no apartamento do músico brasileiro; até quando retornou a Pernambuco, dezesseis anos depois, após ter feito vitoriosa carreira de concertista na Europa. “O

Na página oposta, o Teatro Santa Izabel.

Fotos: Acervo Fundação Joaquim Nabuco Recife – Reprodução

Ao lado, o antigo Grande Hotel: lembranças de um tempo em que o Recife recebia as maiores atrações da música erudita internacional

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“O recifense deveria brigar por sua orquestra como briga por saneamento, por um bico de luz, por mais água. É um privilégio, hoje, uma cidade ter uma orquestra sinfônica municipal”

fato de a OSR não ter um teatro próprio para ensaiar e se apresentar – porque o Santa Isabel continua fechado – também está prejudicando a orquestra e o desempenho de seus músicos”, avalia. Ele não condena a ida da orquestra à periferia da cidade. “Mas é preciso desmistificar a sala de concerto, e só se faz isso se alguém ensinar o caminho ao público”, diz o maestro, que viveu a experiência de apresentar-se com a então revolucionária proposta da Orquestra Armorial de Câmara de unir o erudito ao popular nordestino ao seleto público da Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. “O que interessa é que o teatro é do povo e você precisa levar o povo ao seu teatro. É bom levar a orquestra para fora do teatro, mas tem de ser um ato contínuo, não podem ser apresentações esporádicas porque o povo esquece e se sente frustrado depois”. Cussy de Almeida garante, porém, que um corpo estável de músicos, ainda mais sustentado pelo dinheiro do contribuinte, necessita de equipamentos e cuidados especiais para o seu aperfeiçoamento. “O recifense deveria brigar por sua orquestra como briga por saneamento, por um bico de luz, por mais água. É um privilégio, hoje, uma cidade ter uma orquestra sinfônica municipal”, diz. Para ele, o Recife vive, hoje, uma dicotomia musical, quando se confunde diversão com cultura. “O Recife é hoje uma fotografia de seus dirigentes.

Eles estão dizendo o que o povo quer, o que acham que o povo gosta e deseja. Mas estão é impingindo a sua própria cultura”. E lembra o que dizia o mestre Capiba, seu amigo. “Existe um estereótipo de que macaco gosta é de banana, mas ele tem é fome e gosta de comida como qualquer animal.” Assim ocorre com os dirigentes da cidade. “Existe a música de educar e a de balançar o esqueleto. A música que se pensa com a cabeça e aquela que mexe do pescoço para baixo”. Existiria, atualmente, condições para o ressurgimento da Sociedade de Cultura Musical de Pernambuco? O maestro garante que sim, mas em bases diversas. “Não mais como uma sociedade que precise de sócios e viva da venda de ingressos”, apregoa. “Mas uma sociedade cultural que precisaria ser reativada através da Lei de Incentivo à Cultura (SIC) ou Lei Rouanet”, sugere. O maestro lembra que nenhum artista assina mais um contrato com menos de um ano antes da apresentação e a venda de ingressos somente na bilheteria ainda é um risco sério para o produtor. “A Lei de Incentivo existe para dar impulso à cultura, que sempre custou caro. É dinheiro que o Estado decide aplicar não mais em obras e serviços, mas em cultura. Para o acesso de todos.” Paulo Sérgio Scarpa é jornalista

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CONVERSA FRANCA

O crítico literário norte-americano Harold Bloom ficou conhecido mundialmente não só por seus livros, como O Cânone Ocidental, A Angústia da Influência e Shakespeares: A Invenção do Humano (em que, respectivamente, lista os escritores seminais da Literatura Ocidental, prega que todo escritor escreve para se livrar da influência de outro, e que Shakespeare praticamente criou o ser humano ao dar voz aos seus sentimentos), mas também por sua posição de luta sem tréguas contra os críticos e professores universitários politicamente corretos, que procuram classificar os livros segundo suas supostas tendências ideológicas e não pelo seu valor literário intrínseco. Em entrevista exclusiva a Sueli Cavendish, para Continente, realizada em sua residência em New Haven, CT, USA, em março de 2002, Harold Bloom fala desses assuntos e de como aprendeu a escrever com simplicidade, do livro que está escrevendo sobre Hamlet e do que acaba de escrever, sobre o conceito de gênio, ambos a serem publicados em setembro, de como acha que em Lacan há muita mistificação, e também da sua admiração por autores de língua portuguesa, como Camões e Machado de Assis. 78 Continente Multicultural

Imagens: Divulgação

“Tenho total desprezo pelo que é feito nas academias”


Foto: AE

O ensaísta e crítico literário Harold Bloom, autor de O Cânone Ocidental; Como e Por Que Ler; e Shakespeare: A Invenção do Humano

Falemos do Cânone Ocidental: Tendo em vista o seu sucesso tornou-sse praticamente um marco na história literária. Alguma surpresa com relação ao alcance deste livro? Surpreende-oo que tenha alcançado sucesso em países de línguas tão diversas, entre os quais o Brasil? Não, não me surpreende. Tenho uma carreira razoavelmente longa, desde que comecei a ensinar em Yale, 47 anos de ensino. E comecei a publicar ensaios e crítica desde 57, uma longa carreira como escritor e crítico, portanto. Mas o que gostaria de comentar é algo que talvez não atinja tanto o Brasil quanto atinge os países de língua inglesa. Tudo mudou há cerca de uma geração atrás. Entre 1967 e 1970, assistimos à ascensão de uma agressiva contracultura, que começou como um justificado protesto contra os horrores da Segunda Guerra Mundial. Tenho consciência de que ocorreu em escala mundial, porém veio a expandir-se e formar um movimento com efeitos culturais perniciosos nos países de língua inglesa, particularmente nas

instituições de ensino e na grande imprensa do mundo de língua inglesa. E me parece – embora tenha lutado bravamente contra essa tendência fui derrotado – que no curso desse processo que dura 30 anos, o estudo da literatura ocidental como uma entidade que em si mesma possui valor estético e cultural foi se extinguindo gradualmente e agora chegou ao fim. A literatura foi substituída pelo que essas pessoas chamam de 'estudos culturais'. Mesmo que ainda seja chamada algumas vezes de Literatura Inglesa, ou Literatura Comparada, ou o que seja, não é mais o estudo de literatura enquanto literatura. Em conseqüência desse fenômeno o meu próprio trabalho foi afetado e vem passando por diversas fases. Eu havia começado por uma brutal renovação de toda a tradição romântica, nas literaturas inglesa e americana, que terminou no final dos 60. No verão de 67 comecei a escrever um livro muito estranho que veio a se tornar A Angústia da Influência. Um projeto que durou cinco ou seis anos pois escrevia ao mesmo tempo Agon: Por uma Teoria do Revisionismo, Continente Multicultural 79


Para Bloom, “em Shakespeare, o encontro da causa humana é quase físico”

que publiquei em 1982. Depois comecei a escrever introduções para uma enorme coleção chamada The Chelsea House Anthologies (Antologias da Chelsea House), o que me ensinou a escrever de forma bem mais simples. Havia me tornado um escritor esotérico e comecei a me ‘desoterizar’, tentando escrever para um público cada vez maior. Isso começou a afetar meus próprios livros. Porque eu vim a compreender que não estava mais interessado na audiência universitária de língua inglesa simplesmente porque não havia mais instituições universitárias de língua inglesa. Nove entre os dez professores que lá ensinavam me pareciam bárbaros. Eu não queria associar-me a eles. Então passei a escrever para o publico em geral. Depois que me desvinculei da Chelsea House, escrevi um livro chamado Ruin the Sacred Truths (tradução livre: A Ruína das Verdades Sagradas). Em 1989 comecei um livro chamado O Livro de J. Desde os anos noventa até o presente escrevi A Religião Americana, O Cânone Ocidental e em seguida A Criação do Humano e agora este livro que devo publicar em setembro, chamado Gênio, no qual analiso e defendo o conceito de gênio. Comecei a encontrar audiências diferentes e cada vez maiores, aqui nos Estados Unidos, e no exterior. E não me surpreende que as do exterior sejam tão grandes

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quanto as dos Estados Unidos. Aqui, assim como na Inglaterra e na Austrália, eu quase que invariavelmente sou atacado nas resenhas, porque os acadêmicos do que chamo 'escola do ressentimento' escrevem essas resenhas e me condenam. Apesar disso descobri que tenho uma audiência de muitos milhares de leitores, não apenas nos Estados Unidos, como também na Europa, na Ásia, na África, na América Latina. Nos últimos anos tenho sido traduzido em muitas línguas. Na verdade o autor escreve para o que Dr. Johnson (Samuel Johnson, poeta inglês) chamaria de o leitor comum, pessoas que precisam de algo, ou que procuram algo que possua beleza e impacto emocional. Algo que eleve o seu nível de consciência, que os torne mais inteligentes, mais confiantes e mais perceptivos. Não me surpreende, pois, a aceitação que meus livros têm no Brasil. Aprendi a escrever – você esteve em minhas aulas e deve ter percebido – quase do mesmo modo como falo, sou muito pessoal. Dá-se o mesmo quando ensino. Falo com o leitor, ou com o aluno, como se o conhecesse, comunico-me com ele de forma direta, como se já tivéssemos nos encontrado e passado muitas horas juntos. Falo com o leitor como falo com um amigo. Com total desprezo pelo que é feito nas academias. Aqui (em

Imagens: Divulgação

“Recebi um livro com ensaios escritos por pessoas que nem conheço, chamado O Shakespeare de Harold Bloom. São peças de abuso e vituperação escritas por feministas, marxistas, neo-historicistas, seguidores das várias epidemias francesas, como eu as denomino”


Ao lado, cena de Hamlet, com Kenneth Branagh: “Hamlet não ama ninguém, nem ao seu pai, à sua mãe ou a Ofélia” Abaixo, cena de Otelo, com Laurence Olivier: “Sou acusado de racismo por achar que a negritude de Otelo não é crucial para o personagem”

Fotos: Divulgação / AE

prezo pelo que é feito nas academias. Aqui (em Yale) é um pouco melhor que outras universidades, mas ainda acho difícil de tolerar o que fazem. O senhor então conclui que a guerra contra os resentniks foi perdida? Perdemos a guerra. Creio que perdemos a guerra, nas universidades e nas faculdades de elite do mundo de língua inglesa. É uma causa perdida. Perdemos a guerra. E tenho estado em ação nessa guerra, lutando uma guerra de guerrilha. Mas entendo agora que o campo de batalha era inadequado. O campo de batalha não pode ser a instituição educacional nem a grande mídia totalmente corrupta. É preciso falar diretamente para os milhares e milhares de leitores. Não sei como lidarei com o problema da hegemonia dos estudos culturais nas universidades, me entristece muito, pois o que sei é que há de fato, mesmo na Inglaterra, onde é grande a força desses setores, milhares e milhares de leitores reais, que não se sentarão para ler com propósitos ideológicos, ou para mudar o mundo, ou fundar uma sociedade melhor. Pois se lemos para salvar o mundo, para mudar a sociedade, não estamos lendo de fato. Portanto tem sido muito gratificante conhecer tantas pessoas, verdadeiros leitores. Gostaria de poder viajar mais e conhecer o Brasil. Reconheço, porém, que temos muitos problemas nos Estados Unidos, muita injustiça, contra a qual devemos nos insurgir. Não tanto quanto no Brasil, onde uma enorme massa não parece receber qualquer atenção dos governantes. Sinto que não importam as boas intenções, pois ler é uma atividade solitária, que não se compara sequer ao amor entre dois amantes. Não envolve duas pessoas, é algo de si para si, uma espécie de circuito fechado. Ler é uma questão de resgatar na obra o que desde sempre pertence ao leitor, de ir lá buscar o que Continente Multicultural 81


já se tem. Como disse Emerson, em toda obra de gênio encontramos os nossos próprios pensamentos, que uma vez rejeitamos, e que agora brilham em nova roupagem, recuperados pela arte. Alguma vez o senhor sentiu-sse tentado a alterar a lista do Cânone, a revisá-lla de algum modo? A lista do Cânone, naquele livro, eu a ponho sob protesto. Fico muito satisfeito de poder registrar para você esta afirmação. A lista consta dos que me ocorreram naquele momento. Meu agente insistiu, mas eu não queria publicar. Meu editor também insistiu, mas eu não queria publicar. Considero-a muito inadequada e incompleta, particularmente injusta com o Brasil. Mas o fato é que eu não podia recomendar más traduções. Havia aquele livro maravilhoso, Memórias Póstumas de Brás Cubas, que foi traduzido como Epitaph for a Small Winner (Epitáfio para um Pequeno Vencedor), uma tradução lamentável. O livro agora tem uma boa tradução, uma tradução decente, mas na época, com aquela tradução, eu não podia fazer idéia da grandeza do livro. Ao invés de revisar todo o Cânone Ocidental eu apenas suprimiria a lista. Ela terminou causando uma grande conturbação, em muitos países. Na tradução suíça do Cânone Ocidental eu disse aos editores: não vai haver lista. O mesmo com relação à edição italiana. Mas a lista permaneceu na tradução

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Professor, gostaria de saber... Por favor, me chame de Harold... Muito bem, então, Harold, o senhor diria que os ‘resentniks’ se comportam com relação à obra de arte como num banquete canibalístico? Tratam a obra de arte como um cadáver cujas partes podem ser desmembradas? Eu não acho que eles estejam interessados em obras de arte de modo algum. Há pouco recebi um livro com 18 ensaios escrito por pessoas que nem conheço, chamado O Shakespeare de Harold Bloom. Não consigo ler esses ensaios, embora os tenha folheado. São de arrepiar. São todos peças de abuso e vituperação escritas por feministas, marxistas, neohistoricistas, seguidores das várias epidemias francesas, como eu as denomino. Uma senhora indiana muito raivosa, que não conheço, me acusa de ser um “patriago neurocêntrico”. Outra, porque eu não acho que a negritude de Otelo seja crucial para a composição deste personagem, e porque eu não concordo que Caliban seja um negro de modo algum, acusame de racismo, de ser contra os negros. Não se pode fazer nada com essas pessoas. Para elas tudo se resume a política. E nem sequer é política, o que chamam de política. É política acadêmica. Nada do que jamais venham a dizer ou fazer terá qualquer efeito sobre o

Imagem: Reprodução

Na opinião de Bloom, o poeta Mallarmé trata a causa humana como um drama metafísico

espanhola, por exemplo. De fato eu me arrependo da lista, mas é tarde para retirá-la da edição inglesa ou espanhola ou checa. Não apenas é incompleta – porque eu não tinha em mãos boas traduções, e tinha que considerar as mais recentes – como não a elaborei sistematicamente de modo algum, foi apenas o que me ocorreu no momento. De minha parte, creio que ela nada tem a ver com o livro. Eu queria escrever sobre uma centena de escritores, mas não havia espaço e era imperativo que eu escrevesse sobre Cervantes, Shakespeare, Dante etc. Mas poderia ter escolhido muitos outros. Eu escolhi um tanto arbitrariamente, não houve sistematização. Escrevi sobre 26 escritores, mas queria escrever sobre muitas centenas. Infelizmente não havia espaço.


“Falo com o leitor, ou com o aluno, como se o conhecesse, de forma direta, como se já tivéssemos nos encontrado e passado muitas horas juntos. Falo com o leitor como falo com um amigo. Com total desprezo pelo que é feito nas academias” fato de que os Estados Unidos está sendo governado por este deplorável presidente, um presidente terrível. E sobre o fato de que temos um governo terrível, um governo que bem poderia ter acontecido em 1904, há cem anos. Com um tipo de gente, barões modernos, apenas interessada em tornar os ricos ainda mais ricos. Esses que escrevem crítica política não têm qualquer interesse nessa situação, não exercem qualquer influência sobre ela, nem se preocupam. Estão apenas se enganando. Aqui e na Inglaterra não podemos nos livrar deles, os da escola do ressentimento. É toda uma geração de acadêmicos que não sabe fazer nada diferente. Entendo que no Brasil não é assim, ainda há valores estéticos.

Fotos: AE

O senhor acredita que os resentniks precisam deste enquadramento para analisar obras literárias, que eles de outra forma se sentiriam perdidos num vasto oceano, sem que pudessem dar conta da complexidade do que lêem? O intelectual autêntico possui o senso acurado de que tem que reimaginar-se a si mesmo e ao mundo. Essa gente não consegue imaginar coisa alguma, muito menos reimaginar, porque tem convicções ideológicas fixas, tem resposta para tudo. Um grande número de intelectuais de países de regimes fortes, onde faltam liberdades mínimas, de discussão, de leitura e de expressão, me procura e me diz que quando sentam em cafés e discutem minha obra, concluem que é bastante revigorante a minha absoluta recusa em envolver política na crítica. Crítica estética é do que precisam desesperadamente, dizem. Num país como Cuba os intelectuais estão às portas da morte por falta de crítica estética. Quando o senhor usa a noção de misprision (“equívoco”, na tradução brasileira dos Écrits, de

Jacques Lacan), não estaria se aproximando de um construto lacaniano? (Risos) Não, não. Costumava ler Lacan com muita freqüência, mas finalmente desisti porque cheguei à conclusão de que havia muita mistificação, ele era de fato um mistagogo. Não era racional. Não, aquilo a que me refiro como misprision não é nada mais do que o que a própria obra opera quando nos confronta. Quando falo de misprision, é no sentido por exemplo, em que Iago de Shakespeare é uma misprision da parábola de O Judeu de Malta, ou em que Brás Cubas é um poderoso misreading de Tristram Shandy. Lacan não está interessado nisso. Recuperar o que já é seu é o que entendo por misreading ou misprision. Porque é o que já faz um bom leitor, sempre. Lacan é um mistagogo. Ele pensa que sua função é curar. Eu não penso em curar ninguém, não sou mistagogo. Tenho grande interesse no esoterismo, tenho grande interesse na cabala, na gnose, na tradição hermética, apenas porque me parecem corpos extraordinários de literatura imaginada. Lacan se apresenta como alguém que sabe a verdade, como alguém que vê. Me parece mistificação. Não há nenhum segredo que eu possa entender só por ler Lacan. Precisamos de autêntica

Fernando Pessoa (no alto) e Eça de Queiroz: os brasileiros tiveram de se esforçar para se distinguirem deles

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“Memórias Póstumas de Brás Cubas foi traduzido como Epitaph for a Small Winner, uma tradução lamentável. O livro agora tem uma boa tradução, mas na época, com aquela tradução, eu não podia fazer idéia da grandeza do livro”

poesia, dramaturgia ou prosa, para que possamos ver algo. Não há nada diferente que eu possa ver ou sentir só por ler Lacan. Mas quando leio Shakespeare, aí sim, vejo algo diverso. Ou Machado de Assis. Há uma passagem memorável, lembra, naquele livro maravilhoso, Memórias Póstumas, onde ele está tendo um romance com uma senhora casada e em certo momento, numa casa que alugaram, eles têm uma discussão, se desentendem. Enquanto tudo isso tem lugar ele observa a situação, e a disseca, analisa. Seu afastamento é algo que eu não poderia perceber através de Lacan. É um tipo de liberdade, que só ali poderia experimentar e sentir, apenas lendo aquele livro e nenhum outro. Mesmo que em última instância o romance se relacione ao Tristram Shandy, de Stern, a situação que ali é criada é única. Para mim, como já disse, escrever e ensinar são o mesmo que ler, são todos equivalentes. Isso não é uma coisa lacaniana, é um universo diferente. René Girard referiu-sse ao senhor como o fundador da escola da intertextualidade. O senhor concorda? Acho que ele confundiu tudo. Não falo de intertextualidade mas de intratextualidade. Girard, a quem encontrei uma vez, na companhia daquela senhora muito bonita, a Julia Kristeva, tem interesses bem distintos dos meus. Ele acha que aquilo a que chamo de ansiedade de influência nada mais é que desejo mimético. Não vejo similaridades entre um e outro. Estou preocupado com a minha própria apreensão do que está no interior de um poema, de um ensaio ou de uma peça. A visão que ele tem é bem diferente da minha. Me parece que o tipo de 84 Continente Multicultural

inveja que participa do processo de criação na arte é bem diferente do ciúme sexual. Em Girard tudo começa e termina em ciúme sexual. Ele é um escritor interessante. Mas eu acho que tem algo de um maníaco sexual. Você não acha que de uma forma estranha ele é um jansenista, com um tipo de puritanismo católico romano? E eu não gosto de sua leitura de Shakespeare de modo algum. Ele trata toda a obra shakespeareana como um teatro da inveja, encontra o seu desejo mimético em todo lugar e todas as peças de Shakespeare se tornam as mesmas peças. Eu não acho que Fallstaff tenha qualquer desejo mimético. Não acho que Hamlet seja produto de desejo mimético, de fato não acho que Hamlet tenha desejo algum. Estou escrevendo um pequeno livro sobre o Hamlet, cerca de 150 páginas apenas. Devo terminá-lo em julho e publicá-lo em setembro. O que me fascina é justamente o total afastamento e estranhamento de Hamlet. Surpreendentemente afastado de si mesmo, de seu próprio sofrimento. Seria isso uma conquista do poeta? Ah, sim, extraordinária. Uma conquista imaginativa e poética extraordinária Muitos poetas, entre eles Mallarmé, também a buscaram... Sim, mas Mallarmé é tão abstrato comparado a Shakespeare. Em Shakespeare, o encontro da causa humana, que em ultima instância está também presente em Mallarmé como um drama metafísico, pela via do drama psicológico, não é tão abstrato, é quase físico. Hamlet não ama ninguém. Eu não

Foto: AE

Bloom acha Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, um livro maravilhoso


creio que Hamlet ame seu pai, mesmo que o diga, não acredito. Não acho que ame sua mãe. E também não ama Ofélia. Ele afastou-se para muito longe. Creio que ele experimenta a morte na mente. Há algo de muito estranho em Hamlet. E esse estranhamento é algo que todos sentem... Ah, sim, eu mesmo, à medida em que envelheço, sinto esse estranhamento de mim mesmo. Às vezes me surpreendo, pelas manhãs, tentando lembrar-me do eu que era há muitos anos atrás, 60 ou 65 anos atrás, e é curioso, não consigo lembrar-me de como me sentia então, do que imaginava. O senhor parece pensar que a literatura tem um valor antropológico, no sentido de que favorece a autoconstituição humana. Teria algo em comum com Wolfgang Iser? Eu encontrei Iser uma vez, e li alguns de seus livros. Mas ele se interessa por um processo que ocorre no leitor e não é esse meu interesse principal. Iser não compreende aquilo que me interessa. Jauss compreendia muito bem, nós nos correspondíamos, conversávamos. Iser não parece compreender que, embora no princípio da minha carreira eu tenha lutado contra os formalistas, o que quero de fato agora e desde há muito é ler as obras bem de perto. Você estava naquela aula sobre Emily Dickinson, não estava, na semana passada? Você lembra quão intensamente líamos um poema nas minhas aulas? Você deve ter notado. Seria possível lê-la ainda mais intensamente, chegar mais perto do que o fizemos? Conheci Yuri Lotman, conversamos muito em iídiche, pois nem eu falava russo nem ele, o inglês, e embora ele se interessasse muito por estruturas semânticas e padrões lingüísticos, que não me interessam, basicamente concordávamos em que, com um poema, um romance, ou uma peça de Shakespeare, o que queríamos era chegar bem perto, nos aproximarmos intimamente. E não acho que isso interesse a Iser. Quando nos aproximamos assim de uma obra podemos perceber como, por exemplo, Emily Dickinson vê coisas que ninguém mais viu, sente o que ninguém jamais sentiu. Lembra daquele maravilhoso poema que lemos em classe, Because I could not stop for death, He kindly stoped for me?

“Ler é resgatar na obra o que desde sempre pertence ao leitor. Como disse Emerson, em toda obra de gênio encontramos os nossos próprios pensamentos, que uma vez rejeitamos, e que agora brilham em nova roupagem” (Tradução livre: “Porque eu não pude parar para a morte, Ele gentilmente parou para mim”)? No Brasil sempre houve uma tensão, recorrente, expressa no binômio ‘incorporação de esquemas formais europeus – utilização de temas e conteúdos nativos’, que marcou o processo de fundação de uma literatura nacional. Como vê esse processo nos Estados Unidos? A literatura neste país teve que beber na fonte da literatura inglesa, assim como talvez a brasileira também tenha se formado a partir da portuguesa. A literatura portuguesa é surpreendente. Não houve Cervantes, mas houve Camões, um poderoso poeta, houve Eça de Queiroz, admirável, e certamente no Brasil vocês tiveram que se esforçar bastante para se distinguirem da literatura portuguesa. O que é muito complicado porque havia Pessoa, na poesia, porque ele é tão notável. Mas Eça de Queiroz ainda deve ter uma grande influência na sua literatura, creio. De todo modo deve ter sido um grande desafio, desatrelar-se da literatura portuguesa. Mas Portugal é muito menos complexo que o Brasil, tudo lá é passado agora, me parece. E vocês têm uma fascinante mistura de raças, portugueses, italianos, alemães e naturalmente muitos negros. Os portugueses não eram tão racistas em suas conquistas coloniais, eles se misturavam com outros povos. Sartre disse certa vez que a técnica de Proust deveria ter sido a de Faulkner. O senhor concorda? Não sei se Faulkner poderia sustentar uma comparação com Proust ou Joyce, mas certamente concordo com Borges que Faulkner representa uma admirável conquista para o romance americano desde Henry James. Entre todos os seus livros o que mais admiro é Enquanto Agonizo.

Sueli Cavendish é professora do curso de mestrado em literatura inglesa da UFRJ

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ENTREMEZ

O sertão fica em Marte O lendário homem sertanejo tornou-se um suburbano fragilizado, um novo personagem para romances e filmes

U

m vaqueiro tocando o rebanho num fim de tarde faz parte do imaginário sertanejo. Mas se ao invés de montar um cavalo ele dirige uma motocicleta, a cena parecerá insólita. Ela foi registrada em um curta-metragem cearense, exibido no Festival de Cinema do Recife. Três anos depois de ter visto na tela um vaqueiro motorizado, assisti a uma cena semelhante, ampliada nas particularidades. No meio da caatinga verde, no chovido mês de março, uma mulher tangia o gado, escanchada numa moto, e levando na garupa uma senhora velha, que poderia ser a avó. Entre angicos e baraúnas, dois mitos ruíam diante dos meus olhos: o do vaqueiro macho e encourado e o do cavalo corredor, aquele que só pára quando o boi é derrubado. Senti que os versos de Fabião das Queimadas, do Romance do Boi da Mão de Pau, celebrando cavaleiros e

Ronaldo Correia de Brito 86 Continente Multicultural


alazões, faziam parte de um passado distante. Os bois se mudaram para os brejos, para fornecer carne aos frigoríficos das cidades: Vou embora desta terra, Pru que conheci vaqueiro, E vou de muda pros Brejo Mode dá carne aos brejeiro, Do meu dono bem contente Que embolsou bom dinheiro... Euclides da Cunha, se fosse vivo, teria de inventar uma nova frase para substituir a célebre “o sertanejo é antes de tudo um forte”. Já não existem as figuras delineadas pelos romances regionalistas e naturalistas, ampliadas pelas lentes do Cinema Novo. Melhor dizendo: não existe mais o sertão histórico que Capistrano de Abreu desejou que fosse estudado, nem o sertão mítico das sagas de Gerardo Mello Mourão, nem o sertão que alguns escritores teimam em idealizar, criando uma épica enfeitada por brasões e marcas de ferrar gado. Existe um sertão real cortado por estradas esburacadas e poeirentas, casas abandonadas, currais vazios, cercas desfeitas, mato no lugar de roçados. Um deserto de ausências. O fausto antigo cedeu lugar à decadência. O campo esvaziou-se dos seus filhos. O ciclo do couro, quando nas fazendas mal cabiam os rebanhos de gado, carneiros e cabras, produziu poetas repentistas, histórias de trancoso, heróis cangaceiros, santos penitentes e fanáticos religiosos. O modelo econômico de exploradores e explorados serviu de tema para romance de Graciliano Ramos e filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. E para a gesta dos poetas populares, que melhor do que ninguém cantaram as dores e alegrias da vida sertaneja. O algodão trouxe um outro ciclo de prosperidade, dessa vez com a indústria e a promessa de que o Nordeste entraria numa nova era, sintonizando-se com o restante do mundo. A praga do bicudo pôs fim ao sonho de riqueza do “ouro branco”, cantado por Luiz Gonzaga. Sem poder retornar ao modelo pecuário já exaurido, com

a agricultura de subsistência falida, castigados pelas repetidas secas, e vulneráveis às informações que chegavam pelo rádio, pela televisão e pelos meios de transporte, os habitantes das fazendas e pequenos sítios foram embora para o Sudeste ou para a periferia das cidades. O lendário homem sertanejo tornou-se um suburbano fragilizado, um novo personagem para romances e filmes. Ainda há lugar para uma literatura sobre o sertão, depois do que escreveram Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Ariano Suassuna? Se for possível, terá de refletir sobre um mundo transtornado e sobre o homem perplexo que surgiu no lugar do sertanejo forte. A menos que continuem a romantizar esse mundo das bandas do Nordeste, vulnerável como qualquer outro à informação e às promessas de consumo. O sertão abriu-se. As porteiras dos seus currais também foram escancaradas para a cultura global. As antenas parabólicas enfeitam os telhados das casas nos grotões mais escondidos. E quem não tem televisão, sonha em ter. O isolamento de séculos, que permitiu a preservação de culturas arcaicas, aos poucos se desfaz. Não podíamos ser diferentes de todos os povos do mundo, que tiveram os ciclos heróicos e depois conheceram novos ciclos. A traumática visão da casa dos meus avós sendo derrubada por tratores, dando lugar a uma rodovia asfaltada, curou-me de toda ilusão de um tempo estagnado. Na noite escura em que assisti à cena, o barulho forte dos tratores e as luzes dos faróis me deram a impressão de que eu estava noutro planeta. Mas não estava. O sertão continuava ali, diante dos meus olhos, a perder de vista, com o asfalto fedendo mais do que carniça. Por muito tempo chorei essa ferida. Depois, me distraí olhando os carros que passavam. Lamentar o irremediável? O sertão de hoje é esse mesmo. “Mire e veja”. Ou, como tão bem cantou Fabião das Queimadas: Já morreu, já se acabou, Está fechada a questão. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico


iro Visões do Paraíso Imagens do Rio de Janeiro e do Recife do século 19, nas fotografias de Augusto Stahl

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Ao completar 150 anos a Biblioteca Estadual de Pernambuco promove concurso e cria projetos para atrair leitores Alberto da Cunha Melo critica o livro Bufólicas em que Hilda Hilst recria contos infantis sob uma clave imoralista Há 250 anos nascia Manuel Arruda da Câmara, biólogo, botânico, filósofo, médico, religioso e fazendeiro

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O cotidiano do Brasil Livro da editora Capivara mostra as fotos do Rio de Janeiro e do Recife feitas no sĂŠculo 19 por Augusto Stahl

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Fotos: Reprodução

A

capivara, que deu nome ao principal rio do Recife (Capibaribe, literalmente “rio das capivaras”, em Tupi) batiza agora uma editora carioca, sob o comando de Bia e Pedro Corrêa do Lago. Ela acaba de publicar a obra fotográfica completa de Augusto Stahl. A marca da editora reproduz detalhe de desenho de Franz Post que se encontra no Louvre. Há um consciente simbolismo nisso. A autora é uma das principais autoridades na obra do pintor que registrou para Nassau a paisagem brasileira. O apresentador do livro, Sergio Burgi, chega a estabelecer um paralelo entre o holandês e o fotógrafo, tido até há pouco tempo como alemão – Bia Corrêa do Lago acaba de descobrir que ele era, na verdade, francês. A confusão era devida em parte ao sobrenome e ao fato de ele haver trabalhado com ale-

mães. O equívoco foi repetido por especialistas, inclusive Pedro Vasquez, no já clássico Fotógrafos Alemães no Brasil do Século XIX. O livro de Stahl integra uma série chamada Visões do Brasil, que traz, além de Stahl, outros pioneiros no país em usar o suporte papel: Juan Gutierrez, Militão Augusto de Azevedo e Revert Henrique Klumb. Todos os livros com o bom gosto do desenho gráfico de Victor Burton. Imagens muito remotas e de primeira qualidade do Rio de Janeiro, Recife e São Paulo são o que se tem nesses álbuns em que cabem bem superlativos como belíssimos. Stahl é certamente o maior talento fotográfico dos anos 50 e 60 do século 19. Em 1965, ele realizou as pioneiras fotografias científicas para Agassiz, um extraordinário estudo antropométrico, de modo especial o de negros escravos. Os seus re-

Desembarque de D. Pedro II e Dona Teresa Cristina no Recife, em 1859 Na página anterior, Palácio do Governo, Recife, 1858

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Ao lado: Negra com manto, c. 1860, fotografia de uma escrava possivelmente alforriada. Abaixo à esquerda: Doceira e criança no Recife, c. 1860. Abaixo à direita: Luiz e Guilherme Maxwell, 1865

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tratos são muito expressivos e flagram o cotidiano do Brasil. O livro revela imagens notáveis do Recife, como a antiga Casa de Detenção, cais, pontes, o Teatro de Santa Isabel e várias ruas. No seu trabalho se destacam também as paisagens, cuja composição ele fez sob influência da fotografia inglesa do período, como assinala Burgi. O trabalho de Corrêa do Lago já era conhecido em álbuns de arte de temas diversos – objetos de sua própria coleção, caricaturas, imagens do domínio holandês e outros para diferentes patrocina-

dores. Agora os temas que lhe são caros explorados na sua própria editora. “A Capivara se pretende especializada em história brasileira, arte e literatura do passado”, explica Bia Corrêa do Lago. Ela informa que a editora ainda pretende lançar três ou quatro novos títulos até o final deste ano. Augusto Stahl, obra completa em Pernambuco e Rio de Janeiro. Bia Corrêa do Lago. Editora Capivara. Fone: (11) 3167.0066. R$ 90,00. Páginas: 251

Vista da Casa de Detenção (atual Casa da Cultura), pouco depois de sua inauguração, em 25 de abril de 1855.

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C

enário 1: Navios à vela entram silenciosamente no porto. Sobrados estreitos de três, quatro andares, todos com varandas cercadas por madeira ou ferro batido trabalhado, em ruas largas onde transitam homens de paletó e chapéu brancos. Aqui e ali, um cavalo, o transporte mais comum. Nos arrabaldes, casas largas separadas por amplos espaços se alternam com sítios dominados por casarões brancos, com janelas guarnecidas de cortinas também brancas e rendadas. Ao redor, muitas plantas com frutas, tudo cercado por um muro branco, rasgado por um portão de ferro, encimado por um brasão. Cenário 2: Trânsito frenético e barulhento. Carros, ônibus, motocicletas e kombis de onde saem rapazes apregoando aos gritos o itinerário. Um turbilhão de gente passa pelas calçadas, atento ao ataque de trombadinhas. Prédios envelhecidos e malconservados, muitos com as janelas de vidros quebrados e imundos. Lojas à frente das quais homens gritam em microfones a suspeita excelência das mercadorias. Casario antigo e carcomido entre espigões reluzentes. Nos arredores, condomínios fechados, cercados por muros eletrificados, guarnecidos por guaritas de segurança. Aqui e ali uma árvore. Estes dois cenários retratam o mesmo local, o Recife. O primeiro, em 1852, o segundo, em 2002. Quem analisar as mudanças ocorridas neste período pode ganhar até 5 mil reais. Basta inscrever-se no Concurso Literário que tem como tema O homem e a convivência com o urbanismo na cidade do Recife nos últimos 150 anos, instituído pela Biblioteca Pública Presidente Castelo Branco – a Biblioteca Estadual de Pernambuco – para comemorar seu sesquicentenário.

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Neste período a biblioteca acumulou um acervo de 200 mil livros, consultados diariamente por cerca de 1.500 pessoas. Entretanto, dez projetos foram criados para estimular e aumentar essa visitação. Dois deles são específicos para os deficientes visuais: o Leitura ao alcance de todos, para os adultos, que contam com recursos sonoros e impressão em braile; e o Braile mais perto de você, que favorece as crianças, com programas de pesquisas e jogos. A biblioteca dispõe de cinco computadores com acesso à Internet (em breve serão instalados mais 15) que podem ser utilizados em todo o horário de funcionamento, pelo período de uma hora cada pessoa. É o projeto Biblioteca Virtual, muito procurado, tanto que exige reservas. O Vídeo às quartas promove a exibição de filmes premiados, adultos e infantis; e o Música na biblioteca traz, nas segundas terças-feiras de cada mês, uma apresentação gratuita do Conservatório de Música, com repertório de clássicos e populares. Uma vez por mês, acontece ainda o Encontro da 3º Idade, que, em parceria com a Cruzada de Ação Social, promove palestras sobre cidadania, saúde, alimentação e dança, para um público médio de 110 pessoas. Há, ainda, os projetos Cem anos com você, que homenageia autores e personalidades que estão completando seu centenário de nascimento, e Um ano de saudade, para lembrar os que faleceram. Finalmente, o projeto Quem se informa está mais forte – Caixa Estante leva 60 livros, trocados a cada dois meses, para instituições como o Hospital do Câncer Maria Lucinda, Creche Frei Tadeu, associações da Terceira Idade e de portadores de deficiência física.

Fotos: Helder Ferrer

150 anos de livros à disposição do público


A Biblioteca mantém dez programas de incentivo à leitura, dedicados a crianças, pessoas da terceira idade e deficientes físicos

Uma seção importante para a biblioteca é a sala de Obras Raras, com 12.000 livros. Neste setor, a entidade encontra-se apenas atrás das bibliotecas do Rio de Janeiro e da Bahia, quando se trata do acervo mais completo, sendo seu tema mais constante a história de Pernambuco. O histórico do autor e da obra, assim como a escassez no mercado são dois dos critérios utilizados para definir a raridade ou não de um determinado livro. O mais antigo é o Manual de Confessores e Penitentes, de Martim de Azpilcueta Navarro, de 1560. O projeto Conservação Preventiva de Acervos Raros, da Fundação Vitae, está realizando uma higienização, que começou em fevereiro e tem prazo de duração de 12 meses. É um passo decisivo para a conservação do acervo. Os livros passam por um processo de nitrogenização por 10 dias, depois por uma cuidadosa limpeza página a página e, em seguida, são acondicionados em portfólios. As inscrições para o Concurso Literário vão até o dia 20 deste mês e podem ser feitas na sede da biblioteca e no Instituto Arqueológico de Pernambuco, ou pelo site da Secretaria de Educação (www.educacao.pe.gov.br). Os trabalhos devem ter de 80 a 100 páginas e devem ser entregues até

o final de agosto. O resultado sairá em outubro. Há também um tema para estudantes, O avanço da Informação nos últimos 150 anos do Recife. As premiações para estudantes são de 2 mil reais mais publicação para o primeiro lugar, 1 mil para o segundo e 500 reais para o terceiro. Os vencedores da categoria profissional levam, além dos 5 mil mais publicação para o primeiro colocado, 3 mil para o segundo e 2 mil para o terceiro. A Biblioteca Estadual Presidente Castelo Branco fica na Rua João Lira, S/N, Santo Amaro. Funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h.

O acervo é composto por 200 mil obras de diversas áreas, e o fluxo diário é de 1500 pessoas, aproximadamente

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Macaíba numa jaqueira Cansada de escrever bem e não ser lida, Hilda Hilst escreve mal para nos assustar

Alberto da Cunha Melo

N

a capa alvíssima do livro, de pequeno formato (21cm x 12,5cm), o nome da autora, Hilda Hilst, em grandes letras negras, com altura de 3cm, ocupa toda largura do volume. Lá embaixo, em minúsculas letras de cor ocre, com apenas 3mm de altura, está o quase invisível título, Bufólicas. Depois de o ler, estou desconfiado de que o capista assumiu o risco de dizer que este é um livro ínfimo de uma grande autora. Se foi essa a avaliação do designer, sou mais um a ratificá-la. Mas terei de fazê-lo com as palavras e não com a subliminariedade plástica do design. Em primeiro lugar, preciso informar ao leitor que se trata de uma pequena coletânea com apenas sete poemas, o mais longo com 95 e o mais curto com 35 versos. A predominância métrica dos textos oscila entre a redondilha menor, ou pentassílabo, e o heróico menor, ou hexassílabo, e não entre as “redondilhas”, como se diz no prefácio, que, no caso, seria a predominância, além do pentassílabo (redondilha menor), do heptassílabo (redondilha maior), também. Predominância dos versos curtos, abaixo de seis sílabas, portanto. São poemas narrativos a que prefiro chamar de parábolas ao invés de fábulas, porque tratam todos de figuras humanas e não de animais. E prefiro chamá-los assim porque a parábola, além de possuir substrato alegórico, tem uso evangélico, aju96 Continente Multicultural

dando-me a aplicar um “choque” sagrado-profano a uma análise meramente resenhística deste livro pornô. Livro? Se não me engano, a Biblioteconomia só considera “livro” um volume de 51 páginas em diante; o de até 50 páginas é considerado “folheto”. Na verdade, os poemas ocupam, apenas, 19 páginas. Para transformá-lo tecnicamente em “livro” a editora procurou ocupar 60 páginas, 24 delas com a bibliografia da e sobre a autora, além de incluir uma esclarecedora cronologia. Estou sendo tão numérico e chato porque me incomoda o fato de a Editora Globo, seguindo o mesmo caminho menor da TV do grupo, escolher entre os 20 livros de poesia de Hilda Hilst justamente este tal de Bufólicas, que é algo absolutamente excrescente (junto a outros três em prosa) em sua obra de 33 volumes, entre poesia, ficção e teatro, em 52 anos de esplêndida saga literária. Não vou chamá-lo de lixo, como o fez Duke Lee, nem de escabroso, na apreciação de Caio Graco. Vou, simplesmente, esquecer que ela o escreveu. Mas, antes, preciso justificar-me. Do ponto de vista formal, o livro não traz inovações. São poemas em versos livres a que chamo, para meu uso, de polimétricos – com a maioria dos versos oscilando dentro de uma espécie de banda métrica (o que o afasta do entulho verbal amadorístico), em oposição aos poemas em versos livres a que chamo


Imagens: Reprodução

de poemas-crônica, ou “a poesia como conversação e discurso” que, segundo J. M. Ibáñez Langlois, teria sido implantada no Ocidente por Pound. Se não há neles inovação, sobra-lhes muita maestria e sente-se que, por trás de cada poema, está o espírito de uma grande artista, a dominar sua cadência verbal, no caso uma cadência curta, rápida e de fácil dicção, mostrando que T. S. Eliot estava certo quando disse que “não existe verso livre para quem quer fazer (ou sabe fazer, digo eu) um bom trabalho.” Mas a mestra Hilda Hilst que conhecíamos só é reconhecível até aí, no plano formal, na estrutura, porque na textura ela está irreconhecível. A sua poesia lírico-amorosa, que suavemente diz: “Se for possível, manda-me dizer:/ – É lua cheia. A casa está vazia –/ Manda-me dizer, e o paraíso/ Há de ficar mais perto, e mais recente/ Me há de parecer teu rosto incerto./ Manda-me buscar se tens o dia/ Tão longe como a noite. Se é verdade/ Que sem mim só vês monotonia (...)” é substituída por uma composição obscena-fescenina de reles densidade metafórica: “Ando cansado/ De exibir meu mastruço/ Pra quem nem é russo./ E quero sem demora/ Um buraco negro/ Pra raspar meu ganso,/ Quero um cu cabeludo!” No hipócrita mundo intelectual em que vivemos, há quem goste desses versos. E até diga: – Lembra-se de Paul Verlaine, de suas coletâneas Les Amies, Femmes e Hommes, inspiradas, respectivamente, no lesbianismo, nos seus encontros heterossexuais e homossexuais, e que mandou publicar na Bélgica? – Claro que sim, mas li, também, que a Gallimard deixou quase todos ausentes da sua Obra Completa. Hilda Hilst, numa entrevista à Folha de S. Paulo, em 1993, que a doutora em Literatura Bra-

sileira, Ermelinda Ferreira, fez a gentileza de me enviar, confessa que sua pequena obra obscena (três livros de prosa e um de poesia), ela a escreveu “para assustar”, profundamente magoada porque “tinha prestígio de crítica, mas ninguém me lia”. O doido do Byron disse ter vendido 30 mil exemplares de The Corsair (em 1814), em trinta dias. Nos tempos de hoje, li que, até 1989, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti havia vendido 800 mil cópias do seu livro Um Parque de Diversão da Cabeça, só nos EUA. São curiosidades da literatura. Até agora nenhuma editora quis mesmo vender livro de poesia, porque, se o quisesse, o anunciaria, como um novo perfume ou fala elevada dentro das novelas. Depois de ter lido Bufólicas, para arejar o espírito, fui pegar um fragmento de poema erótico de Rilke, que o poeta amigo, Orley Mesquita, um dia leu para mim e o copiei: “De repente a que estava a colher rosas/ lança a mão ao botão cheio do membro vital dele,/ e de susto da diferença/ desfalecem dentro dela os (suaves) jardins”. (Trad. Paulo Quintela). Hilda, esse livrinho é, apenas, uma mísera mancha de esperma no belo, quente e enorme lençol, que é sua alma...

A escritora Hilda Hiest, em sua casa

Bufólicas – Hilda Hilst Editora Globo – São Paulo R$ 17,00 Páginas: 60

Alberto da Cunha Melo é poeta e jornalista e-mail: alberto8@hotlink.com.br

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O dia-a-dia ao lado de um gênio Em 1948, o jovem e talentoso regente norte-americano Robert Craft conheceu Igor Stravinsky, tido na época como tão importante para a música erudita quanto Picasso para as artes visuais e Joyce para a literatura. A afeição foi recíproca e daí até a morte do compositor russo, 23 anos depois, surgiu uma amizade rica em trocas intelectuais. Craft influiu na obra de Stravinsky fazendo-o aproximar-se do serialismo de Webern e do decafonismo de Schoemberg. A relação rendeu também bons livros a Craft, entre eles um diário, agora publicado em português sob o título Stravinsky – Crônica de uma Amizade. Nele, Craft, que tem uma atilada percepção psicológica, além de boa formação cultural, traça um painel das relações dos “S”, como ele chama o compositor e sua mulher,

Vera, com a nata da inteligentzia da época. Aldous Huxley (tão erudito que não consegue falar em nada sem dar uma aula a respeito), Auden (inimigo do asseio e dado a ataques de “bichice”, mas uma boa pessoa), Schoemberg (atormentado pela pobreza e o não reconhecimento, mas consciente do seu gênio), Dylan Thomas (acendendo um cigarro no outro com mãos trêmulas por causa do alcoolismo), Angelo Roncalli (futuro papa João XXIII, com opiniões surpreendentes para um defensor do dogma católico), desfilam na nossa frente tratados com uma intimidade avassaladora. O livro cresce também nas descrições dos países que a dupla visita e nas discussões sobre arte que afloram a todo instante. Stravinsky – Crônica de uma Amizade. Robert Craft. Difel. Fone: (21) 2585.2070. R$ 85,00. Páginas: 722

Amores de internauta O jornalismo diário registra as novidades do esperado. Por exemplo: uma enchente em São Paulo ou uma seca no Nordeste. Em determinados períodos e com certa regularidade, tais fenômenos tornam a repetir-se e vão para as manchetes dos jornais. A ocorrência é, em essência, a mesma, variando a extensão da área atingida, o número de vítimas etc. Devido à rotinização da atividade jornalística, num quadro de produção industrial, aqueles acontecimentos cumulativos que representam realmente grandes transformações na vida social raramente são captados no dia-a-dia da imprensa. Por isso, grandes (nos dois sentidos) reportagens geralmente são publicadas em livro. É o caso deste

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Amor na Internet, da jornalista Alice Sampaio. Em suas 348 páginas, há um pungente mergulho no mundo dos encontros amorosos na Internet, a partir de experiências da própria autora e depoimentos dos envolvidos em 17 love stories cibernéticas. Além disso, ela submeteu os relatos a especialistas em psicologia e psiquiatria, para analisar seus conteúdos. O resultado é uma emocionante reportagem contemporânea, onde desfila de tudo: mulheres carentes, homens confusos, gente maluca, ingênua, desesperada ou pervertida – movidos pela esperança de um grande amor ou pela busca de sexo casual. Amor na Internet. Alice Sampaio. Record. Fone: (21) 2585.2000. R$ 35,00. Páginas: 348


ECONOMIA Uma humanidade cada vez mais dividida por desigualdades; a substituição do trabalho pelas máquinas e os esquemas de reengenharia em que cada vez menos pessoas produzem mais, gerando o desemprego; a degradação da natureza. Estes são alguns dos tópicos abordados pelo economista francês René Passet no livro A Ilusão Neoliberal. A Ilusão Neoliberal. René Passet. Record. Fone: (21) 2585.2000. R$ 35,00. Páginas: 364 ARGENTINA Em Sobre Heróis e Tumbas, um dos mais importantes romances da literatura argentina, Ernesto Sabato desenvolve simultaneamente três temas: a educação sentimental de um jovem; a fuga do general Juan Lavalle, herói da Independência; e uma investigação sobre a diabólica Seita dos Cegos, na Buenos Aires dos anos 50, fascinante, contraditória e cruel. Sobre Heróis e Tumbas. Ernesto Sabato. Companhia das Letras. Fone: (11) 3846.0801. R$ 45,00. Páginas: 624. TERRORISMO Livro que reúne entrevistas dadas pelo professor de lingüística norte-americano Noam Chomsky, durante as semanas que se seguiram ao atentado terrorista contra as torres gêmeas de Nova Iorque. Ativista contrário à política externa dos EUA, ele tenta elucidar, na contramão das indignações emocionais, as verdadeiras causas daquela tragédia. 11 de Setembro. Noam Chomsky. Bertrand Brasil. Fone: (21) 2585.2070. R$ 19,00. Páginas 160 HISTÓRIA O professor de história norte-americano Stuart Schwartz e o doutor em teoria literária brasileiro Alcir Pécora apresentam um manuscrito inédito descoberto pelo primeiro e analisado literariamente pelo segundo, que traz revelações decisivas sobre a guerra contra os índios, o comércio internacional do açúcar e os modos de vida na Bahia do século 17. As Excelências do Governador – O panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). Stuart B. Schwartz e Alcir Pécora. Companhia das Letras. Fone: (11) 2846.0801. R$ 39,00. Páginas: 440

Imagens: Reprodução

INSULTO Cróia, escabioso, paparrotão (respectivamente prostituta, sarnento, jactancioso) são alguns dos divertidos termos constantes no Dicionário Brasileiro de Insultos, de Altair J. Aranha. O livro prima também pela irreverência nas definições. Como a de cérbero, que significa rude, grosseiro, mal-educado, “mas o insultado dificilmente saberá do que se trata”. Dicionário Brasileiro de Insultos. Altair J. Aranha. Ateliê Editorial. Fone: (11) 4612.9666. R$ 30,00. Páginas: 365 BUSCA Embora sua obra-prima seja considerada Servidão Humana, o romancista inglês Somerset Maugham tem, em O Fio da Navalha, um de seus mais bem acabados livros. Ele conta a história de um homem que, ao voltar dos horrores da guerra, rompe com uma vida economicamente promissora, para buscar, pelos confins do mundo, a fé e a sabedoria. O Fio da Navalha. W. Somerset Maugham. Globo. Fone: (21) 3460.0400. R$ 39,00. Páginas: 418

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Um personagem controvertido Luiz Carlos Monteiro

O

projeto iluminista teve seu representante nordestino na figura múltipla de Manuel Arruda da Câmara. Da sua biografia, apesar da celebridade que alcançou ainda em vida como estudioso de ciências naturais, se conhecem apenas datas e acontecimentos intermediários. Encontra-se permeada de obscuridade e incerteza a fixação de sua naturalidade e dos anos de nascimento e morte. Esse personagem controvertido, misto de médico, religioso, cientista e fazendeiro, foi admitido na ordem carmelita de Goiana (PE) em 1783, passando a se chamar frei Manuel do Coração de Jesus Arruda. Há indicações de uma viagem a Portugal em 1786 com seu pai, o Capitão-mor do Piancó (PB), Francisco de Arruda Câmara (estaria junto nesta viagem um seu irmão, Francisco de Arruda Câmara Júnior, a fim de matricular-se em Medicina na universidade de Montpellier, França). Na condição de “religioso carmelita calçado” é que, no mesmo 1786, Manuel Arruda matriculase em Filosofia na universidade de Coimbra. Inscreve-se em 1787 e no ano seguinte em Matemática, ainda em Coimbra, declarando repetidamente ser do Sertão pernambucano. O próximo curso no qual fará matrícula será Medicina (1790), agora na universidade de Montpellier, concluindo apenas este, novamente reiterando a naturalidade pernambucana. Aluno de Antoine Lavoisier, defendeu a tese de doutoramento em Medicina Investigações fisiológicas e químicas sobre a influência do oxigênio na economia animal, principalmente no calor e

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na cor dos homens, originalmente em latim, na qual utilizou-se de conceitos do químico francês. Dois contemporâneos seus, frei Caneca e frei Lino do Monte Carmelo, apesar de insuspeitos, afirmaram ter ele nascido em terras paraibanas. O segundo estabeleceu, a partir de informações obtidas na Ordem do Carmo, o ano provável de nascimento do botânico, que seria 1752, até hoje aceito, embora sem dia e mês definidos. Arruda da Câmara percorreu trajetória inversa à de outro contemporâneo “ilustrado”, o bispo Azeredo Coutinho, economista colonial de renome e fundador do Seminário de Olinda, que terminou seus dias como eclesiástico. Naturalista a serviço do Reino, Arruda da Câmara, que manteve contatos de trabalho com Azeredo Coutinho, quando este foi governador interino de Pernambuco, trocou a religião e a medicina pela condição de pesquisador e cientista. O historiador Amaro Quintas, já falecido, autor de A Revolução de 1817 (cuja primeira edição é de 1939, com republicação em 1985), escreveu: “O pensamento de igualdade e de colaboração dos homens de cor foi advogado pelo artífice da revolução, o célebre Arruda Câmara, o doutrinador da primeira sociedade secreta, o Areópago de Itambé”. Estas informações vêm sendo divulgadas por sucessivos historiadores, embora não encontrem respaldo no estudo biográfico que José Antônio Gonsalves de Mello fez de Arruda da Câmara. O naturalista não diferenciou-se de outros senhores


Imagens: Reprodução

Estudioso da ciências naturais, Arruda da Câmara fez reproduções em desenho de insetos e plantas, tendo também projetado máquinas para descaroçamento do algodão

de escravos quanto ao tratamento dado a estes, como ele mesmo deixa claro em trechos sobre o cultivo do algodão. A sua suposta contribuição para a Revolução pernambucana de 1817 pode resumir-se talvez à influência intelectual anteriormente exercida sobre o Pe. João Ribeiro. Não é documentada também nenhuma viagem sua ao município pernambucano de Itambé. A publicação do volume Manuel Arruda da Câmara: Obras Reunidas, com material coligido por José Antônio Gonsalves de Melo, é de 1982, tendo sido editada pela Fundação de Cultura do Recife, à frente Leonardo Dantas Silva. Os textos em prosa de Arruda da Câmara compreendem, entre outras obras publicadas, a Memória sobre a cultura dos algodoeiros (1799) e o Discurso sobre a utilidade da instituição de jardins nas principais províncias do Brasil (1810). A idealização de jardins botânicos para vários estados brasileiros sugere a defesa ecológica de espécies raras e em extinção, assim como a aquisição de plantas de outros países. No discurso, faz-se notável a apologia ao reino vegetal, que “é sem dúvida a fonte mais fecunda, mais pronta e menos trabalhosa das riquezas de qualquer Nação; e todo o cuidado em promover este manancial de felicidade pública será pouco, à vista do imenso proveito que daí se pode tirar. Dos vegetais é que se extrai o sustento dos homens, os seus vestidos e enfeites; os regalos da vida; os remédios das enfermidades; a matéria primeira das Artes; a Agricultura, pois, é a verdadeira mãe das Artes, do Comércio e da Navegação”. A memória sobre o algodão é um verdadeiro tratado agronômico com fins comerciais inequívocos, visando a melhoria de todos que o cultivassem,

inclusive acompanhada por desenhos de máquinas que inventou para descaroçamento e ensacamento. Dos textos manuscritos, destacam-se as cartas que escreveu ao “ministro” D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, responsável pela sua nomeação de naturalista até 1811, ano em que morreu na vila de Goiana. Nelas, reafirmava sempre sua lealdade à Coroa portuguesa e prestava contas de suas pesquisas e descobertas de minerais e vegetais em viagens empreendidas pelos sertões de estados nordestinos como Pernambuco (grafava Paranambuc), Paraíba (grafava Bruburema, ao invés de Borborema), Ceará, Maranhão e Piauí (grafava Piau-yg). Nas Obras Reunidas, seu espólio científico inclui taxinomia e numerosos desenhos de vegetais, aves, insetos, peixes e crustáceos, feitos por ele e seu “discípulo”, o Pe. João Ribeiro, com atualização nas informações por especialistas de universidades pernambucanas e de outros locais. Contudo, o trabalho de maior fôlego que realizou consiste na classificação de gêneros e espécies botânicas pernambucanas, a que outros deram o título de Flora Pernambucana, mas que ele intitulava de Centúrias, com grande serventia para a elaboração do Dicionário de Botânica Brasileira. Manuel Arruda da Câmara não deixou de aplicar em seus estudos e prática de vida princípios típicos da Ilustração, como racionalidade e progresso. Noções de utilidade e bem comum. Constantes referências às “luzes” e tentativas de esclarecimento da “ignorância” dos que o cercavam em sua fazenda às margens do rio Paraíba, aparecem com freqüência em seus escritos. Luiz Carlos Monteiro é crítico literário

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HUMOR

Daniel Bueno

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ÚLTIMAS PALAVRAS

A bola da vez

T

udo na vida tem a vez daquela bola. É ano de Copa do Mundo – o futebol maravilha – que agita milhões de pessoas no planeta, num momento mágico de alegria e nacionalismo. Neste admirável novo século em que hoje vivemos, o mundo parece um grande cassino, onde, a toda hora, a sorte está sendo lançada. Ninguém aposta mais nos sonhos, na capacidade de raciocinar, tampouco nas motivações históricas. Exemplos e tantas tessituras de experiências não convencem o bom senso. Só se mira na bola da vez. Uns têm sucesso, outros decepção – desalentos que se transformam em arrependimentos de várias sociedades, etnias e suas crenças, por tudo que nós deveríamos ter feito algum dia. Lembro-me do ano de 1957. Garoto ainda, no Recife, presenciei um fato que muita gente gostaria de servir como testemunha – para a história de uma história inusitada e que poucos tomaram conhecimento. Residia numa casa colada a de Isaac Rozenblit, um dos diretores de futebol do meu querido Sport Club do Recife, convivendo uma sadia infância de amizade com seus filhos. Visitava-o Modesto Roma, dirigente do Santos Futebol Clube, de São Paulo, interessado em negociar a troca do passe de um jogador do clube pernambucano – se não me engano, o ponta-direita Traçaia – por um de seu time. Ofereceu, Modesto, que Isaac escolhesse entre um jovem de 16 anos, egresso dos juvenis, chamado Pelé, e Ciro, este mais experiente por arrazoar os 25 anos. Rozenblit pediu-lhe um tempo curto para levar a proposta à diretoria do Sport e que logo lhe telegrafaria indicando o escolhido. Lépido e fagueiro reuniu-se com seu irmão José, o presidente Adelmar da Costa Carvalho e outros membros importantes da cúpula rubro-negra pernambucana. Uma semana depois, um Western – que simbolizava a telegrafia urgente da época – era passado para o Peixe santista: “Mande Ciro vg Pelé não interessa pt”.

Era a bola da vez mais certeira que deixaram de chutar. Um gol sem placa – motivação à beça para o Luis Fernando Verissimo e Armando Nogueira deslancharem na historicidade futebolística, à risca de um eventual folclorismo. Entretanto, agora também é um ano de guerras espalhadas aos cinco ventos continentais, de agressões à cultura, de abandono à religiosidade, dando a impressão de que a história sempre vive a nos pregar peças de todas as qualidades, e muita coisa virou bola da vez. Vejamos. Tal como antigamente: o encantamento pelo amor daquela musa morena de olhos amendoados; o desafeto encrenqueiro que vibra por nos passar a perna; aquele Mustang maravilhoso – vermelho cor de sangue; o preto 17 nas roletas clandestinas dos nababescos salões coalhados de compulsivos black-ties ou o próximo alvo de uma carreira profissional. No terreno da roda-viva atual, Romário é a bola do povão para a seleção do Felipão; Hussein, a preferida do Marshal Bush; Arafat há muito é a de Israel do Sharon, ao tempo que ele mesmo, o Ariel, passa a ser, aos poucos, a bola recusada pelo mundo livre, a democracia. E, para o Planalto, pelo andor da carruagem, uma porção de bolas murchas ainda não animou a população. Finalmente, quanto à corrida para o pódio da Copa do Japão e Coréia do Sul, bem, aí, como o saudoso craque Ananias dizia antes de uma partida do seu Santa Cruz: “O prognóstico eu só dou depois do jogo”.

Rivaldo Paiva 104 Continente Multicultural





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