Continente #018 - Deborah Colker

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CONTEÚDO

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Dança – Arte e Festival Deborah Colker cria balé sobre artes plásticas. No Recife, Festival acolhe do clássico ao contemporâneo

Ferreira Gullar – Bienal A Bienal de São Paulo está em decadência e não apresenta novidade ou qualidade

Artes plásticas – Zuleno Pintor elege a mulher como seu tema principal e diz que a obra vale mais do que o artista

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Página 22

Foto: Flávio Colker

Conversa franca – Lêdo Ivo Poeta fala de sua convivência com Graciliano Ramos, Bandeira, Drummond e João Cabral

Livro – Arnaldo Antunes O cantor e poeta paulista lança novo livro em que cria slogans libertários e “palavras de desordem”

Diário de uma víbora – Joel Silveira Jornalista lembra os perigos da velhice e de certos progressos na vida, e dá conselho aos poderosos

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Sabores pernambucanos – Mandioca Tudo se aproveita nesse tubérculo sul-americano, que serve para fazer beiju, tapioca e bolos

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Página 72

Jornalismo – Aventura Coleção mostra repórteres que enfrentam o perigo e produzem grandes matérias

Debate – Paz Árabes e judeus podem resolver seus conflitos sem ter de apelar para a violência, a guerra e o terror

Marco zero – Velho Chico Livro de carioca revela aspectos econômicos e mercantis da navegação pelo rio São Francisco

Literatura – João Ubaldo Escritor revela que é meio autobiográfico seu novo livro, que tem como protagonista um padre sádico

Crítica – Carcassone Sueli Cavendish analisa conto de Faulkner, traduzido pela primeira vez para o português

Conto – Faulkner Escritor cria conto em que personagem dialoga com sua própria morte e seus sonhos

Antologia – Virgílio Maia Poeta cearense evoca verdes léguas, boiadas incontáveis, igrejas e coloridas tropas de ciganos

25 28 Especial – Sexo

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O sexo do futuro, segundo Robin Baker, e a reverência a Deus e à carne em manual árabe

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Historiador mostra como foram importantes a plantação e o cultivo do algodão na Zona da Mata

História – Evaldo Cabral Entremez – Ronaldo Brito

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Articulista traça um paralelo entre Ulisses, herói dos gregos, e Bambam, herói do Brasil de hoje

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Escritor norte-americano foi uma das presenças intelectuais mais marcantes do século XX

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Memória – Edmund Wilson

Últimas palavras – Rivaldo Paiva Para o colunista, os anjos não têm sexo, mas se amaram. Tanto quanto os humanos...

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

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Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de edição Alexandre Bandeira

Arte Luiz Arrais e Manoela Leão

Editoração eletrônica André Fellows

Ilustradores Lin, Mascaro e Zenival

Tratamento de imagem Nélio Câmara

Revisão Rodrigo Pinto

Colaboradores Alberto da Cunha Melo, Arthur Omar, Edward Said, Evaldo Cabral de Mello, Everardo Norões, Ferreira Gullar, Geneton Moraes Neto, Joel Silveira, Jorge Zaverucha, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mariana Camarotti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Sueli Cavendish, Virgílio Maia Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Claudio Manuel, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Eliseu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 / e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: fone:3217.2551 / fax: 3222.4130 E-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Informações: informacoes@continentemulticultural.com.br Publicações: publicacoes@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Inverdades Venho lendo a revista Continente e aprecio sua abordagem séria, com artigos bem elaborados e cuidadosamente selecionados. Por isso, fiquei decepcionada ao ler Últimas palavras do mês de abril. Numa linguagem de baixo nível, rica em anti-semitismo e recheada de inverdades, o autor revela seus preconceitos. Diante dos recentes acontecimentos no Oriente Médio, onde agressões atuais são apenas a superfície de conflitos antigos e complexos, faz-se necessário adquirir conhecimento histórico e capacidade de analisar os fatos. Infelizmente, o autor ignora os fatos ou os distorce. Não sei o que é pior. Em 1947 a ONU, reconhecendo o direito de autodeterminação de judeus e árabes, decidiu a favor da partilha e estabelecimento de dois Estados na área (ressalto a participação a favor do grande brasileiro Oswaldo Aranha). Os judeus aceitaram a proposta; os árabes, não. No dia seguinte à declaração da independência de Israel, os países árabes vizinhos atacaram o recém-nascido Estado. Uma parte dos árabes que lá moravam fugiu para não sofrer as conseqüências da guerra, até por aconselhamento dos próprios países árabes. Essa é a origem do conflito. Os refugiados ficaram concentrados em campos sem condições decentes de vida. Nenhum país árabe tentou ajudar esses refugiados, pelo contrário, aproveitaram-se desta situação para incitar o ódio e canalizá-lo em beneficio próprio. Não aceitando a existência de Israel, ano após ano, os países árabes e as organizações palestinas atacaram Israel de todas as formas possíveis: bombardeando cidades israelenses, declarando guerras, isolando-o economicamente, fazendo propagandas hostis e espalhando terrorismo contra a população civil. Israel tem o direito e o dever de defender os seus cidadãos. Lamento que o artigo publicado em abril tenha sido aceito por uma revista tão séria como é a Continente, pois artigos dessa natureza só promovem o ódio entre as pessoas e inviabilizam o antigo desejo judaico de Paz (Shalom). Bátia Lederman – Recife – PE Ignorância O senhor Rivaldo Paiva demonstrou racismo e ignorância nas suas Últimas palavras, que esperamos realmente sejam as últimas suas. Nós, judeus brasileiros, temos o Brasil como nossa terra natal, e ao contrário do que o articulista insinua, pagamos muito bem nossos impostos, e não só consumimos o PIB como também contribuímos largamente para o seu crescimento. Sílvio Santos, por exemplo, cidadão brasileiro e judeu, é o maior pagador do Imposto de Renda. Todos nós que também trabalhamos, produzimos, pagamos impostos e geramos empregos esperamos que sigam o nosso exemplo. Evania Margolis – Recife – PE


Paz Israel chora, parte de seu povo protesta e seus governantes alimentam a cega ignorância dos intolerantes. A intolerância de outros fanáticos religiosos, que acreditam, em nome do Islã, estarem defendendo os mesmos escombros e o mesmo deserto. E lutam de forma suicida. Temos assim, novamente, o terrorismo de Estado, que conta com a conivência dos grandes e a apatia dos vizinhos. O povo de Israel não é Ariel Sharon, mas aqueles que o defendem ou se omitem frente a suas ações, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, merecem um lugar reservado, lado a lado, em um futuro tribunal internacional, que deverá ser instituído frente a este novo holocausto contra o povo palestino (povo cristão, muçulmano, mulheres, crianças, intelectuais, pacifistas etc). A vida poderia ser muito mais digna se assim pudesse ser chamada de vida, se a política de Israel e de seus hipócritas apoiadores fosse pela paz e respeito aos diferentes, se não pisoteasse a memória e as cinzas daqueles que morreram em Treblinka e Daau. Rivaldo, as mães choram de dor... e também de ódio. Charlotte Vasquez – Rio de Janeiro – RJ Apoio O jornalista e escritor Rivaldo Paiva tocou na ferida. Li atentamente seu recente Última página, na Continente, e quero deixar de pronto meu apoio ao seu artigo. Escrevo esta porque, coincidentemente, logo me veio à mente a imagem de uma multidão de jovens bem nutridos, que promoveram uma passeata “pacifista” por São Paulo até a porta de um elitizado clube, sabidamente freqüentado pela colônia judaica paulistana. Triste, assisti a imberbes rapazes carregando cartazes brancos com letras azuis, que diziam: “Apoiamos Sharon”. Vi muitos heróis cantados em verso e prosa em Israel. Vi Golda Meir, vi Moshe Daian, vi Isaac Rabin... e sempre vi o rosto sofrido do povo palestino. Vi os mortos de Shabra... as crianças, as mulheres. Vi Ariel Sharon exultante, sanguíneo, um militar que pensa com o fígado. Ao deparar esses jovenzinhos apoiando o tiranete, logo me recordei de outros jovens também imberbes, de outros tempos, que formavam uma “gloriosa” juventude nacional socialista, jovens que não hesitavam em delatar seus pais, e que apoiavam outro medíocre sob o olhar despreocupado dos EUA. Triste, depois do sionismo, temos agora o “sharonismo”. Fátima Farias – São Vicente – SP Correções No artigo Para que nasçam novos guerreiros, de Isabele Câmara (edição de abril/2002), há correções a fazer. Segundo as estimativas mais recentes, no Brasil atualmente existem 225 povos indígenas, que falam 180 línguas. No total, estima-se que existam 550.438 índios (Cf. Texto-base da CF/CNBB, 2002, pp.31-32), e não “330 nações que falam 181 línguas”, “quase 400 mil índios”. Ainda no mesmo artigo, na página 86, aparece uma fotografia e a legenda Indígenas no São Francisco. Ora, essa identificação é muito vaga.

Quem são? São “Praiás” Pankararu? Na página seguinte, na foto superior, há uma foto com a legenda Índio e crianças Xukuru. Esse “índio” é o Vice-Cacique Xukuru Zé de Santa! Edson Silva – Recife – PE Reconhecimento Enfim, Pernambuco lançou e edita uma revista que faz justiça ao meio intelectual do nosso Estado. Não se deve perder de vista um aspecto importante da revista, que é o da valorização da história pernambucana, de seus artistas e de sua produção cultural. A Companhia Editora de Pernambuco, e quantos fazem a revista Continente, merecem o reconhecimento pela magnífica obra que paira muito acima da mediocridade e do mau gosto da mídia massificada e subjugada pelo consumismo. Roberto Magalhães – Recife – PE Belos “continentes” Acabo de receber os belos “continentes” que misteriosamente navegaram até aqui. Já deu para sentir o cheiro e o sabor do sonho – que belo trabalho, o de vocês. Minha irmã tinha toda razão. Recebam os meus aplausos, de pé. Zélia Barreto – Brasília – DF Amostra viva Desejamos expressar a nossa admiração pelo maravilhoso trabalho, parabenizando-os assim pela iniciativa e execução dessa amostra viva de Pernambuco. Francisco J. Fernandez, Cônsul dos EUA – Recife – PE Ausências Muito boas as análises apresentadas na edição de maio sobre a relação entre as artes e o futebol no Brasil, com a decorrente constatação de que são realmente poucos os exemplos de boas obras (na literatura, na pintura, no cinema, na música) enfocando o futebol. Especificamente em relação à música popular, gostaria de apontar, no texto de Fábio Lucas (O ópio e a partitura, p.21) pelo menos duas ausências. A primeira é a do grupo Novos Baianos, que nos anos 70 teve muitas canções de sucesso dedicadas ao futebol. A outra ausência é a de uma análise sobre o acervo musical dos clubes pernambucanos, sobretudo o Santa Cruz, que no passado recebeu homenagens de tricolores ilustres como Capiba, os Irmãos Valença (autores do hino oficial do clube) e Nelson Ferreira Júlio Vila Nova – Paulista – PE Nota da redação Por um erro técnico, o nome de Sueli Cavendish, Professora Doutora do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora e tradutora da entrevista com o crítico Harold Bloom, matéria de capa da edição de maio, embora creditado na abertura da entrevista, não foi devi damente destacado.

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EDITORIAL

Iluminuras e relâmpagos

FOTO: FLÁVIO COLKER

A

o ler a entrevista de Deborah Colker ao jornalista Luciano Trigo, ou, mais ainda, ao vê-la no seu novo espetáculo, o leitor atentamente interessado em dança poderá pensar como o coreógrafo JeanGeorges Noverre (1727-1810), que escreveu nas suas Cartas sobre as artes miméticas: “Aquilo que produz um quadro na pintura, também produz um quadro na dança: o efeito dessas duas artes é semelhante; ambas têm o mesmo papel a representar, elas devem falar ao coração através dos olhos... Tudo o que é usado na dança é capaz de formar quadros, e tudo o que pode produzir um efeito pictórico na pintura pode servir como um modelo para a dança, bem como tudo o que é rejeitado pelo pintor deve, da mesma forma, ser rejeitado pelo coreógrafo”. Em outro trecho das Cartas, citado por Susanne Langer, no seu já clássico Sentimento e forma, Noverre compara a pantomima a uma multidão de relâmpagos. Curiosa a constância dessa aproximação

da dança e do fogo, que tanto aparece em músicos como em poetas. João Cabral de Melo Neto, no início de Quaderna, fala do fogo na dança de uma “bailadora” andaluza. Ele, já no seu terceiro livro, O engenheiro, definiu a bailarina como alguém feito de “borracha e pássaro”. Não haveria palavras mais adequadas para um trapezista e um ginasta. Mas, de metáfora em metáfora, pode-se partir para bem longe do objeto, até perdê-lo de vista. Por isso, deve-se atentar mais uma vez para o que diz Langer: “Nenhuma arte é vítima de maior número de mal-entendidos, juízos sentimentais e interpretações místicas do que a arte da dança. Sua literatura crítica ou, pior ainda, sua literatura acrítica, pseudo-etnológica e pseudo-estética constitui uma leitura enfadonha”. Certamente esse enfado não estará presente nesta edição, em que não é um filósofo ou crítico que fala da arte, mas a própria coreógrafa e dançarina, isto é, a própria dança. Continente Multicultural 5


DANÇA


arte

Dançando com

FOTOS: FLÁVIO COLKER

Luciano Trigo

Com a “agenda enlouquecida” desde que ganhou o renomado prêmio Lawrence Olivier, em Londres, em fevereiro de 2001, a coreógrafa e bailarina Deborah Colker passou os últimos dois anos se dividindo entre as apresentações internacionais de sua Companhia e a concepção e os ensaios de seu próximo trabalho, 4 por 4, que estréia no Rio de Janeiro, em julho, e em seguida vai para São Paulo, depois de curtas temporadas em Porto Alegre, Curitiba e Campo Mourão. Desde 1999 Deborah namorava a idéia de montar um espetáculo de dança que mergulhasse no universo das artes plásticas, fundindo duas linguagens que têm em comum a reflexão sobre o espaço e o movimento, reflexão esta que é um dos motores de produção da artista. Profissional incansável, Deborah quer relacionar sua dança com questões do mundo contemporâneo. Em 4 por 4 ela transforma com delicadeza e suavidade obras de arte em bailarinos e bailarinos em obras de arte, coreografando criações de quatro artistas de épocas e estilos diferentes: Cildo Meireles, Gringo Cardia, Victor Arruda e o grupo Chelpa Ferro. Num quinto quadro, duas bailarinas dançam acompanhadas ao piano pela própria Deborah, que volta a tocar em público o instrumento depois de 20 anos. Em Cantos, de Cildo Meireles, as bailarinas interagem com três peças imponentes, que jogam com três planos entrecruzados. Numa dessas peças, braços, pernas e corpos inteiros se esgueiram através de uma fresta. “O canto é o lugar mais secreto, onde a criança se esconde, onde acontece o sexo inesperado”, explica Deborah, que pôs bailarinas de vestido longo e salto alto nessa coreografia, a mais sensual de 4 por 4. (Cildo autorizou o uso livre dos Cantos, mas Deborah respeitou o formato original da obra.) O segundo quadro, Mesa, nasceu da amizade de Deborah com os integrantes do grupo Chelpa Ferro: os artistas plásticos Luiz Zerbini e Barrão, o editor de

imagens Sergio Mekler e o produtor musical Chico Neves. Victor Arruda, que já havia posto sua arte no chão em Pintura para ser pisada, contribuiu com um painel enorme de 12m x 14m, sobre o qual dançam os 17 bailarinos da Companhia de Colker. Trata-se de uma coreografia ao mesmo tempo erótica e infantil. Depois de um intervalo, 4 por 4 recomeça com um quadro que estabelece um diálogo entre o clássico e o contemporâneo. Esse momento do espetáculo não está diretamente ligado a nenhum artista plástico, mas remete a dois gênios da pintura: Velázquez e Degas. Deborah toca ao piano uma sonata de Mozart. Enquanto duas bailarinas dançam, colocam-se em cena os 90 vasos que guarnecem o quadro seguinte, cuja instalação é da lavra de Gringo Cardia. A operação exige precisão e rigor extremos. “É a dança no limite. Fomos nos inspirar um pouco no Oriente, na concentração e numa diferente tensão entre espaço e movimento. Em Vasos busquei dançar como se estivesse num labirinto, tentando resgatar uma delicadeza e uma precisão na relação do corpo do bailarino com o seu espaço horizontal”. Deborah estudou piano clássico, Psicologia e jogou vôlei. Em 1984 foi convidada pela atriz Dina Sfat para coreografar a peça A irresistível aventura, dirigida por Domingos de Oliveira. Dançou no Coringa, de Graziela Figueiroa, grupo de dança contemporânea dos anos 80, e em seguida coreografou peças de teatro, videoclipes e shows de Kid Abelha, Fernanda Abreu e Fausto Fawcett. Figurou em mais de 30 espetáculos, conquistou prêmios, mas acabou enfrentando uma certa resistência no meio da dança, por conta de sua formação não convencional. Houve quem dissesse que ela não fazia dança contemporâneo, mas atletismo ou ginástica aeróbica, um mal-entendido que foi reforçado pelo tema do espetáculo Velox: o mundo dos esportes, ilustrado pelos movimentos vigorosos dos bailarinos numa parede de alpinismo. Continente Multicultural 7


Em Cantos, sobre trabalhos de Cildo Meireles, a exploração da sensualidade

Fale sobre a gênese do espetáculo 4 por 4. Em 1998, quando eu ainda estava concebendo Casa, eu fui à Bienal de São Paulo e vi um trabalho muito instigante, Fantasma, do Antônio Manuel, que ficou martelando na minha cabeça. Era uma sala com uns fios presos no teto e pedaços de carvão nas pontas, o que remetia à destruição, à tortura, à ditadura. Mas a instalação chamou a minha atenção principalmente pela sua interferência delicada no espaço. Parecia impossível fazer algo ali dentro, eram muitos os fios. Ilusão apenas, porque dava para traçar caminhos. Em 2000, em Nova Iorque, fui à exposição do Francesco Clementi, no Guggenheim. Achei maravilhosa a energia sexual da sua obra. Saí do museu com a certeza de que meu próximo trabalho estaria ligado às artes plásticas. Os seus espetáculos sempre integram o movimento ao cenário. Como 4 por 4 se relaciona com isso e com seu espetáculo anterior, Casa? Existem duas artes que se relacionam com o espaço de uma forma muito específica. As artes plásticas modificam e sensibilizam o espaço. E a dança faz a mesma coisa. Muita gente fala que dança é música e movimento. Sim, mas e o espaço? Em Casa, eu

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estava interessada em explorar a divisão e a superposição de espaços, os conceitos de dentro e fora, cheio e vazio etc., o que me obrigava a seguir uma dramaturgia muito específica. Não é que eu tenha feito concessões. Joguei na lata de lixo várias coisas que eu adorava, mas que não cabiam na casa. Mas, quando o espetáculo acabou, eu queria fazer algo diferente, mais solto, com várias possibilidades visuais. Queria trabalhar com um espaço mais livre. E Cantos (primeira parte de 4 por 4), a obra do Cildo Meireles, de certa maneira estoura o espaço arquitetônico, porque os cantos são pedaços de uma casa, cujo restante fica por conta do imaginário de cada um. Como se deu o contato com a obra de Cildo Meireles? Em dezembro de 2000, a Companhia viajou para Washington. Na véspera da viagem, visitei a exposição do Cildo Meireles, no MAM. Quando entrei, a primeira coisa que vi foram os Cantos, uma obra de 1967. Achei maravilhosa a forma como ela interferia no espaço. Quis procurar o Cildo logo, mas, ainda em Washington, fiquei sabendo da indicação para o prêmio Lawrence Olivier. Recebi esse prêmio em fevereiro de 2001 e, quando voltei, finalmente nos


encontramos. Eu já sabia que queria usar os Cantos. No meu espetáculo, seis bailarinas dançam de salto alto, desenhando movimentos eróticos e sinuosos. E como se deu a escolha dos outros artistas? Eu sabia que não queria trabalhar apenas com um artista. Queria uma coisa mais livre, mais “suja”, no sentido das misturas. Eu também desejava trabalhar com o Gringo Cardia, que fez a direção de arte e a cenografia de Rota e Casa, que já eram na verdade grandes instalações. Mas meu sonho era trabalhar com ele de uma forma diferente. A idéia era que ele mergulhasse fundo numa coisa específica dele. A ocupação do chão, nesse momento do espetáculo, estava me interessando muito. Eu queria interferir no espaço horizontal de uma forma nova. Então busquei com o Gringo o labirinto, esse chão delimitado por 90 vasos pendurados no ar. Dançar entre 90 vasos não é fácil, é uma proposta quase indecorosa. Exige uma coordenação muito grande entre o vigor e a precisão. Eu queria encarar o chão como se fosse um jardim, com o mesmo cuidado e delicadeza que a gente teve ao dançar numa parede, em Velox. Nós tentamos compreender os caminhos de um labirinto, incorporando o chão à coreografia. Parece algo muito mirabolante, mas, ao mesmo tempo, não é. Para mim, as coisas mais essenciais e mais simples são espetaculares. A simplicidade é um conceito importante para mim, mas ela exige inteligência e técnica. Cada vez mais eu vejo que a técnica é uma exigência, que ela tem de estar ali como suporte, mas que ao mesmo tempo ela não tem de ser mostrada, exibida. Ela tem de ser uma via. Daí a importância do domínio do vocabulário da dança clássica. Sim, porque ele confere uma destreza fundamental ao bailarino. Muitas vezes um bailarino contemporâneo reclama: “Que saco, por que todo dia tenho de dar pirueta nos ensaios se não vou fazer pirueta em cena?” Ora, ele precisa entender que o balé clássico é um suporte técnico indispensável, até porque trabalha e define os músculos com muita delicadeza. Você combina o vocabulário do balé clássico com gestos do cotidiano. Parte da revolução artística do século XX constituiu na descoberta da arte onde ninguém a enxergava antes. Seu objetivo é fazer o mesmo com a dança: extraí-lla de movimentos normais do cotidiano?

Também é isso, mas acho que aí existe uma via de duas mãos. Quero descobrir a dança onde as pessoas não imaginam que ela possa brotar, mas também quero conectar a dança com o mundo inteiro. Temos de trazer o cotidiano, o cinema, a fotografia, o teatro, as artes, as questões do mundo contemporâneo para o

Gringo Cardia criou um labirinto de 90 vasos entre os quais os bailarinos dançam


Depois de 20 anos, Deborah voltou a tocar, especialmente para 4 por 4

palco, e escolher a nossa maneira de comunicar isso tudo. Todos na Companhia escolheram dançar, então, a dança é a nossa via de comunicação com o mundo. Eu não pretendia ser curadora de uma exposição só com artistas consagrados. Achei legal apresentar novidades. O Chelpa mexe com objetos, mais do que com espaços, e eu me interessei pela possibilidade de interagir com esses objetos. Então eles montaram para mim uma mesa com rodinhas e uma esteira rolante. O Chelpa também junta artes plásticas e música. E eu queria trabalhar com essa geração mais recente de artistas plásticos. Então eu já tinha o Gringo e o Cildo, e cheguei a pensar em usar o Clementi, que me impressionou pela lado da pornografia. E acabou que eu conheci o Victor Arruda, que, na verdade, começou a trabalhar com pornografia antes mesmo do Clementi. O Victor me cativou pela visão pornográfica, pela estética de história em quadrinhos. Eu lhe disse que queria explorar justamente o período de sua obra que vai de 1980 a 1990, quando ele fez obras como Tarsilinha, um quadro famoso que retrata uma bunda enorme, e Obra para ser pisada, que está exposta no MAC de Niterói. A obra que ele fez para o 4 por 4 é para ser pisada e dançada também.

Essa parte de 4 por 4 é sua coreografia mais erótica? Na verdade, todas as pessoas que vêem os ensaios acham os Cantos muito mais eróticos que essa coreografia, que eu chamo de Povinho. Cantos é sensual, neles as mulheres dançam de salto alto. E o Povinho fala do povo de algum lugar, gente que cheira tudo, bota a mão nos lugares, mede as coisas: tamanho do “piru”, do peito, do pé... É uma coisa meio infantil, mais do que erótica. Ao mesmo tempo o trabalho do Victor é colorido, alegre, tem a ver com a minha dança. O quadro que ele fez para o Povinho ocupa todo o chão, mede 14 por 12 metros, e é refletido num espelho. Meus espetáculos são muito alegres, o público nunca sai deles deprimido. Considero o humor algo fundamental. Todos os meus espetáculos têm algum componente cômico. Você voltou a tocar piano em público, o que não fazia há 20 anos. Sim. Na verdade, o espetáculo deveria se chamar 5 por 4, porque são cinco momentos, apesar de só serem quatro os artistas plásticos envolvidos. Mas a imagem do quadrado perfeito prevaleceu no título, já que o rigor faz um contraponto com a emoção. A


do você faz uma coreografia pensando especificamente numa pessoa, é maravilhoso. Meus bailarinos são muito inspiradores, sofro quando tenho de fazer uma substituição. Por outro lado, quando isso acontece, acaba sendo uma recriação, pois cada pessoa coloca seu mundo naquilo, seu tempo, sua maneira de ser. Por fim, as misturas são sempre muito bem-vindas. Só a palavra “mistura” já me põe um sorriso na cara.

“Tenho sempre como ponto de partida uma linha que determina tudo. Sobre o que quero falar? Qual a pulsação, a dinâmica? Quando isso se define, eu começo a ver as coisas plasticamente, musicalmente, a entendê-las coreograficamente” quinta coreografia do espetáculo é um momento especial, o único que não é determinado pelo universo de um artista em especial. Existe um estilo “Deborah Colker”? Existe uma confusão entre técnica, estilo e linguagem com a qual me identifico. Acho que há uma linguagem “Deborah Colker”, mas o público a vê como um estilo. Essa linguagem é marcada, no processo criativo, pela experimentação: os ensaios para mim são como um laboratório científico. Mas não é simplesmente sair misturando coisas: tenho sempre como ponto de partida uma linha dramatúrgica, um assunto que alinhava tudo. Sobre o que quero falar? O que quero discutir? Qual o meu universo temático? Qual a pulsação, a dinâmica do meu espetáculo? Quando isso se define, eu começo a ver as coisas plasticamente, musicalmente, e a entendê-las coreograficamente. E o resultado tem de ser superprofissional, impecável. Outra coisa forte para mim, além das idéias e da experimentação, é a personalidade de cada bailarino. A Companhia de Dança Deborah Colker estabeleceu para si um padrão técnico muito alto, e não sou eu quem diz isso, são as revistas especializadas alemãs e francesas. Conquistamos essa reputação sem precisar daquela coisa “de exército”, pois eu respeito as variedades físicas e de personalidade dos bailarinos. Quan-

A coreógrafa costuma criar uma relação entre o movimento da dança e os cenários

Vulcão (94) e Velox (95) associaram suas coreografias ao adjetivo “atlético”, em razão dos movimentos nelas utilizados, que exigiam grande condicionamento físico. Alguns críticos diziam que aquilo não era balé, e, sim, ginástica aeróbica. Isso incomodava? Minha trajetória não corresponde, em termos de linguagem e de formação, ao que se espera de uma companhia de dança convencional. Qualquer coisa que soa muito diferente do usual desperta uma reação nas pessoas: “Isso não é bom” ou “Isso não é brasileiro”. Depois, todos vão se acostumando e passam a permitir a existência do novo. A companhia, quando chegou, incomodou muito, mas isso foi bom, porque se ela não tivesse incomodado, não teria causado nada. Especificamente no meio da dança, muita gente começou a dizer que isso ou aquilo que eu fazia não era balé, e, sim, ginástica. Muita crítica nesse sentido recebeu o Velox, um espetáculo que falava sobre esportes da mesma forma que Casa fala de uma casa. “Não é dança”, diziam. Mas, então, o que é dança? Que modelo de dança devo seguir? Por favor, apontem a igreja em que tenho de entrar, o santo para quem devo rezar! No Brasil, o público da dança ainda é muito acostumado àquela coisa pequena, de amigos. Qualquer projeto maior já lhe atiça uma reação negativa. Você acha que um pouco dessa resistência deve-sse à sua biografia, já que você jogou vôlei e trabalhou como coreógrafa de músicos como Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Kid Abelha? Acho. Houve quem dissesse que meu espetáculo era que nem videoclipe. Ora, videoclipe é uma coisa da década de 90, que veio com a MTV. Naquele tempo o mundo começava a ver as coisas recortadas, a viver a possibilidade de multiplicar as informações. Não fui eu que inventei isso. Mas eu fiz Continente Multicultural 11



publicidade, não vim da igreja, não passei dez anos estudando em Paris ou Londres. Ainda bem, né? Ou uma pessoa que não tem grana não pode dançar? Mas quando tive filhos e precisei ganhar mais dinheiro para sobreviver, comecei a trabalhar como coreógrafa e diretora de movimentos. E eu tinha teatro e cinema no currículo, experiência no show business, o que me deu uma visão mais ampla do espetáculo de dança. Quando a companhia começou, eu dizia: “Espetáculo não é só coreografia, não é só ensaiar e dançar. É também a luz, o cenário, o figurino, o programa, o fotógrafo”. Isso progrediu muito, felizmente, mas quando eu comecei só existia o grupo Corpo: o resto era gente que saía da sala de aula para fazer coisas totalmente alternativas. Tomei muita cacetada. Na verdade, quando eu me lancei, a companhia estava um pouco zangada com o mundo da dança. Eu achava que a atitude geral no meio era a de pedinte: as pessoas sempre se fazendo de “coitadinhas”. E esse negócio de “coitadinho” é muito chato. Seus espetáculos estabelecem uma comunicação muito grande com o público. Você pensa no espectador quando cria uma coreografia? É uma coisa natural. Minha vida já está tão próxima das pessoas que nem preciso me preocupar com isso. O cotidiano está sempre presente no meu trabalho. A minha linguagem se utiliza da experimentação, mas a minha arte não é experimental. Eu odeio arte experimental, porque ela propõe como resultado o experimento. Não quero isso para mim. O meu resultado é sempre impecável. Estou há um ano

“Minha trajetória não corresponde, em termos de linguagem e de formação, ao que se espera de uma companhia de dança convencional. E qualquer coisa que soa muito diferente desperta logo uma reação negativa nas pessoas.” e nove meses ensaiando o 4 por 4. Sou obcecada por limpeza, precisão, depuração. No processo de trabalho experimento muito, incessantemente, mas o resultado não é experimental. Sei que meus espetáculos se comunicam muito com as pessoas. Velox atraiu gente que nem ia ao teatro, muito menos para ver dança, porque achava chato. Quando a dança contemporânea se elitiza, as pessoas não mais se identificam com ela.

Conheço gente que odeia dança, mas gosta do meu trabalho, porque ele é comunicativo, divertido, sagaz. Não gosto desses artistas que estão pouco ligando para o público, que acham que a arte só tem compromisso com a vanguarda da mudança e da filosofia. Porra! É muita pretensão alguém se achar muito genial a ponto de poder dispensar o público, porque a História vai dizer o que ele está fazendo! Tudo bem você querer fazer um trabalho de pesquisa, mas há espaço e tamanho de teatro para tudo. Quem quer experimentar, fazer uma coisa que aparentemente não agradará muito, deve procurar um lugar menor, uma verba diferente. Na medida em que você anuncia e cobra ingresso, assume o compromisso de entreter o público. Você pode até fazer algo para incomodar, irritar as pessoas, embora eu considere mais sofisticado gerar uma ruptura através da beleza, da delicadeza. Sou contra quem diz que o contemporâneo tem de ser chato, tem de incomodar. Mas fico meio grilada quando dizem que me preocupo com o público, porque fica parecendo que só faço coisas para agradar. Não é o caso. As questões dos meus espetáculos são relacionadas à problemática da linguagem da dança.

Em Casas, o aproveitamento simultâneo de vários espaços Na página anterior, o grupo Chelpa Ferro criou uma mesa móvel com esteira rolante para o espetáculo

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“É muita pretensão alguém se achar genial a ponto de poder dispensar o público, porque a História vai dizer o que ele está fazendo! Se você cobra ingresso, assume um compromisso com o público. Sou contra quem diz que o contemporâneo tem de ser chato”

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escola. Pois bem, quando tive minha filha, passei a ver a dança também como meio de sobrevivência, e comecei a querer criar alternativas, já que dançar não dava dinheiro nenhum naquela época. Então aprendi a dar aula, a coreografar, a ser diretora de movimentos, a colocar minha dança em trabalhos no teatro, na publicidade, no show business, na televisão. Mas, em 1986, você parou de dançar. Sim, pois estava achando tudo muito ruim, quase indigno. Resolvi dar um tempo, estudar outras coisas. Mas tinha a certeza de que alguma hora eu ia voltar. Estava esperando o momento certo, para trabalhar com pessoas que quisessem se comunicar através do movimento. Desejava montar uma companhia profissional, com pessoas que recebessem salário, todo mundo tendo de cumprir horário, figurinista fazendo roupa, cada área bem preenchida. Quando o Carlton Dance foi cancelado, em 1994, e meu patrocínio suspenso, mesmo assim insisti, porque estava fazendo um trabalho maior, não um espetáculo só. Depois do cancelamento do Carlton Dance, passei dois meses sem dormir. Mal consegui pagar as pessoas nesse período, mas disse à equipe: “Não vamos desistir. Vou dar um jeito nisso, mas não vamos parar de ensaiar”. Pedi até dinheiro emprestado, não sabia o que ia acontecer. Aí

FOTOS: FLÁVIO COLKER ; (VELOX) DIVULGAÇÃO

No sentido anti-horário: Rota e sua roda-gigante; Velox e a dança vertical; e Povinho, sobre pintura de Victor Arruda

E seus anos de formação? Tenho uma formação ecletíssima. Daí porque todo o mundo da dança torceu a boca para mim. “Como é que pode? A igreja da dança não permite! Nós sabemos que para entrar nesse mundo são necessários uns 20 anos de estudo!” etc. Eu dancei quando era pequena, mas também estudei piano e joguei vôlei. Quando isso entrou no meu currículo, só faltaram mandar cortar meu pé. Quando eu estudava piano e jogava vôlei, aos 15 anos, tive a maior crise, parei com tudo. Fiquei um ano sem fazer nada, era aquela adolescente-problema. Todo mundo perguntava: “O que vai ser da Debinha, ainda mais numa família judia, que exige que se faça tudo muito bem?” O que me tirou do buraco foi a decisão de recomeçar a dançar, aos 16 anos. Aí fiz jazz, clássico, moderno... Cinco aulas de dança por dia. Dancei sem parar nos dez anos seguintes. Então, comecei a dar aulas de dança contemporânea no grupo Coringa, da Graziela Figueroa, uma uruguaia que exerceu uma influência fortíssima em mim. Decidi fazer contemporânea por causa dela. Isso foi em 1979. Mas, em 1984, nasceu minha filha Clara, que representou um divisor de águas na minha vida. Antes eu ia para o Coringa e ficava lá das oito da manhã às oito da noite, não tinha compromisso com mais nada. Éramos um grupo que encarava tudo: correr atrás de patrocínio, bolar os figurinos... Essa vivência foi genial, porque me fez dar importância ao cara que limpa o chão, a quem faz meu café-com-leite, a quem cria a luz. Eu sei fazer tudo isso, sei fazer um som, uma luz... Foi uma


veio o Globo em movimento, em que dividi o palco com o Momix. Foi a sorte. Eu já era conhecida no meio artístico, muitas pessoas de teatro queriam trabalhar comigo, porque eu já vinha desenvolvendo uma marca: trabalhava com a Intrépida Trupe, com a Fernanda Abreu, o Fausto Fawcett... Acabei participando de todas as edições do Globo em movimento. Foi uma conquista, um motivo de orgulho. No segundo ano, 1995, eu disse que queria fazer uma noite sozinha, sem dividir o palco com uma companhia internacional. Foi quando estouramos a boca do balão com Velox. Quais foram os momentos mais marcantes de sua carreira internacional? Nem gosto muito de ficar dizendo isso, mas o Lawrence Olivier é mesmo o maior prêmio das artes cênicas da Europa. Foi meu orgulho máximo. Tratase de uma condecoração concedida anualmente em Londres e que já agraciou nomes como Pina Bausch. Mas temos vários outros motivos de orgulho. Dan-

çamos recentemente em um teatro em Amsterdã ao qual nunca tinha ido nenhuma companhia da América do Sul. As apresentações em Washington, Cingapura e Nova Zelândia também foram marcantes. Agora fui convidada para fazer parte, como artistic partner, do conselho de um festival no Barbican, em Londres, chamado Bite. Só oito pessoas foram convidadas no mundo inteiro. Eles querem que eu transmita a minha experiência, o meu processo criativo, para os profissionais de lá. Aí está um motivo de muita satisfação para nós, brasileiros. Outro grande motivo de orgulho foi eu ter “acontecido” no Brasil. Normalmente, as coisas acontecem antes lá fora, e só então o Brasil presta atenção a elas. O público brasileiro me viu antes, e acreditou em mim. Eu agradeço muito a esse público e a pessoas como a Fernanda Montenegro, que assistiu a todos os meus espetáculos e me disse que, ao ver a Companhia em ação, tinha orgulho de ser brasileira. Fico emocionada com isso. Luciano Trigo é jornalista

Em Rota, como em Velox, Deborah Colker explorou o lado atlético dos bailarinos na coreografia


Um festival eclético duos e trios com nomes que estejam desenvolvendo trabalhos de destaque nacional na área da dança contemporânea. É aí que entram em cena figuras como Suzana Gomes, de São Paulo, e Ciane Fernandes, da Bahia. Suzana mostra a performance O louco, resultado de uma pesquisa sobre a relação entre a vida real e os arquétipos, elaborada, entre 1990 e 2000, na School for New Dance Development, de Amsterdã, onde especializou-se em coreografia. Explorando o teatro físico, em que predomina a linguagem corporal, Suzana baseia sua gesticulação na carta O louco, do tarô, em algumas obras de Rodin e nos movimentos de Nijinsky. Em Corpo estranho, Ciane Fernandes questiona as definições apriorísticas sobre o “corpo latino”, encarando-o a partir de um constante remapeamento simbólico, genético e geográfico. Professora de PósGraduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA, Ciane utiliza como fundo sonoro gravações de “axé-music” fora de sintonia, misturadas a anúncios

FOTO: ARISTIDES FERNANDES

Ciane Fernandes, da Bahia

Aos 18 anos, a paulista Yokoi Priscilla é tida como uma das melhores bailarinas clássicas do país. Desde 1998 vem acumulando prêmios: especial do júri de finalista mais jovem do IBC Varna-Bulgária; medalha de ouro no Festival de Dança de Joinville; medalha de ouro no Festival de Dança Del Mercosur, em Buenos Aires. Já ganhou até bolsa de estudos para juniores na França. Em 2000, ficou entre as dez melhores bailarinas do mundo no concurso Internacional Prix de Lausanne. De posse de um currículo tão invejável, construído em tão pouco tempo, Yokoi deverá ser uma das principais atrações do VII Festival de Dança do Recife, que acontece de 1 a 7 de julho próximo. Atraindo um público médio de 25 mil pessoas, segundo seus organizadores, o festival – que se caracteriza pelo ecletismo, pois mistura dança clássica, contemporânea, de salão, de rua, moderna, improvisada – traz nesta edição uma novidade: no Teatro do Parque, onde tradicionalmente se exibem os grupos convidados, haverá também apresentações de solos,


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FOTO: (1) RODRIGO DAI ; (2,3) HANS VON MANTEUFFEL

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de emissoras hispânicas de Nova Iorque e ao merengue-rap-xaxado do grupo pop Fulanitos, tudo isso para decompor imagens humanas e sociais em pedaços indistintos, não identificados: mutantes, andróginos e abortados. Também no quadro da dança contemporânea há destaques como a Quasar Cia. de Dança, de Goiânia, que está entre as cinco melhores do país. De Minas Gerais vem a SeráQuê?, que procura interagir com o público no espetáculo Urucubaca na roda do mundo, em que incorpora elementos da cultura popular, particularmente os de origem afro. Da Bahia nos chega a Cia. Viladança, que fará no Recife a estréia nacional da produção Ulisses, baseada na Odisséia, de Homero. Contextualizando na atualidade a viagem do herói grego, o grupo enfoca a capacidade de adaptação e o espírito de aventura do homem, tomando como base para criar a dança os jogos de improvisação e também os movimentos do basquete, do atletismo, da ioga e da dança de salão. Ulisses conta ainda com muita percussão vocal e canto. A Trupe do Passo, do Rio de Janeiro, traz Matulão, uma pesquisa sobre a falta de comida, dinheiro, vergonha, poesia e vontade. Matulão é a trouxa de cujo interior o Mestre Ambrósio, figura do Cavalo Marinho (folguedo popular da Zona da Mata

Norte de Pernambuco e também da Paraíba), tira os personagens para brincar a festa. Matulão dá seguimento à linha de trabalho da Trupe: uma linguagem que procure mesclar dança pessoal, brasileira e contemporânea. Nesse espetáculo, o grupo aposta na oralidade dos cocos, emboladas, loas, sotaques e rimas, criando um universo que oscila entre o cru e o poético. Já o Distrito Cia. da Dança, de São Paulo, apresenta três obras distintas, dentro de uma ótica tipicamente urbana. Por aí parte da idéia de que, por aí, em qualquer lugar, pessoas se encontram, travam relações e mesmo assim continuam sós. Still we sit mostra um casal enredado na fragilidade do cotidiano, enquanto Biocenose, do premiado coreógrafo Henrique Rodovalho, transporta para o palco uma seqüência de imagens em movimento, que lança uma luz sobre a interação das pessoas no espaço e no tempo. O festival terá também, como convidados, o Balé Municipal de Teresina (1º lugar do Festival de Dança de Joinville, em 2000) e o Ballet Municipal de Natal, além de companhias de dança do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Pernambuco estará presente com o Balé Popular do Recife e os grupos Majé Molê, Daruê Malungo, Experimental, Cia. dos Homens e Brincantes, entre outros.

(1) Sem Censura Cia. de Dança, da Paraíba. (2) Os bailarinos clássicos Flávio Salamanka, de Pernambuco, e Duda Brás, de São Paulo (3) A companhia SeráQuê?, de Minas Gerais.

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FERREIRA GULLAR

Uma Bienal morna e vazia A Bienal se transformou em local de entretenimento e a imprensa nada escreve sobre as poucas obras de valor

A

Bienal de São Paulo é uma instituição decadente. Essa afirmação não implica nenhuma crítica de caráter pessoal nem se atém exclusivamente à presente bienal. Os sinais de decadência começaram a surgir há muitos anos e se tornaram indisfarçáveis na presente edição do evento, aberto no Parque Ibirapuera, em São Paulo. Esses sinais estão visíveis na falta de renovação, na falta de criatividade que redunda, inevitavelmente, numa atmosfera morna e na sensação de vazio que envolve o visitante. Acredito que o espectador recente – que não acompanhou, como eu, a Bienal de São Paulo desde seu surgimento, em 1951 – não tenha tido a mesma

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sensação decepcionante que experimentei nesta 25ª edição da mostra. Terá sentido, talvez, certa ausência de propósito numa exposição que ocupa tanto espaço para mostrar tão pouco em matéria de arte. Já no meu caso, torna-se forçoso comparar este amontoado de papelão rasgado, ou aquele automóvel amassado, ou a sucessão de saletas escuras exibindo vídeos monótonos e tolos, com as obras exibidas nas primeiras exposições, que tiveram papel decisivo na vida cultural e artística do país. As primeiras bienais cumpriram múltipla função: ao mesmo tempo que reatavam o intercâmbio cultural e punham o Brasil no circuito internacional da arte contemporânea, ofereciam aos artistas e ao público


FOTOS: ARTHUR OMAR

brasileiros a memória dos primeiros movimentos de vanguarda e a obra dos grandes artistas modernos, como Van Gogh, Picasso, Chagall, Braque, Mondrian, Morandi, entre outros, contribuindo assim para a formação, entre nós, do conhecimento e da visão crítica da arte de nosso tempo. As primeiras bienais também funcionaram como uma das vitrinas internacionais das últimas tendências da arte de então, expondo as obras de seus respectivos protagonistas, como foi o caso de Max Bill, Calder, Pollock ou Fontana. Nas bienais de ontem víamos salas especiais do Cubismo, do Futurismo, da Arte Concreta, da Abstração Lírica e do Informalismo. E hoje, o que nos mostra a Bienal de São Paulo?

Há pelo menos duas décadas que a quase totalidade do que ali se vê – houve, sem dúvida, exceções, como há exceções na bienal atual – é mera repetição do que já se viu nas décadas anteriores, com a agravante de que, a cada dois anos, a própria repetição esmaece. É o caso, por exemplo, das instalações: antigamente, quando mais não fossem, pelo menos mantinham certo ímpeto, mesmo que apenas para chocar. Agora, nem isso: as instalações são poucas e acomodadas, quase burocráticas. Uma das razões disso reside no fato de que tais obras se fundam no improviso e não no aprofundamento de uma linguagem. Por isso, esgotaram-se. Tomemos como exemplo a instalação de Nelson Leirner, nesta bienal: uma sala trans-

Amanhecer em Bamiyan, fotografia em infravermelho do Rochedo de Bamiyan, Afeganistão

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Máscara Negra, fotografia de jovem Hazara, Afeganistão

parente onde o visitante pode “jogar tênis-de-mesa” com uma bola invisível, já que só se ouve o som da bola. É interessante, curioso, mas e daí? Trata-se de uma crítica ao tênis-de-mesa? Uma demonstração de que não há limite entre ilusão e verdade? Pode ser qualquer coisa, e sempre haverá um crítico para tirar dali profundas implicações filosóficas... Mas que tem isso a ver com arte, seja que arte for? Nem as pessoas, raras, que se prestam ao trabalho de participar da brincadeira dão a ela qualquer importância. Divertemse, quando muito. E nisso se transformou a Bienal de São Paulo, no melhor dos casos: local de entretenimento. E os que mais se divertem são os meninos de colégio, que são levados para lá, em grupos numerosos, e que a rir e correr percorrem a mostra, sem atentar para nada. Aqui volto a uma questão que já abordei nesta coluna: numa época em que a própria vida virou espetáculo (vide o Big Brother na televisão), exposições como a Bienal de São Paulo talvez tenham mais a ver com o entretenimento do que com a arte propriamente dita. Lembro-me de uma bienal relativamente recente em que havia uma série de quadros de Iberê Camargo. Em meio àquela mostra vasta e espetaculosa, a pintura desse grande artista sumia. Tornou-se então evidente para mim que ela estava fora de lugar. Como estão fora de lugar as poucas obras de pintura ou desenho que a presente bienal exibe. Essas obras, no entanto, preenchem as salas mais interessantes, ou seja, aquelas em que se justifica demorar-se o visitante. E por quê? Pela razão simples de que, como não se limitam à obviedade repetitiva das obras conceituais, os quadros estão plenos de carga subjetiva, de figuras e formas

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impregnadas de significações plástico-pictóricas, que só existem ali onde fala a voz da pintura. Refiro-me especialmente à sala da pintora italiana Margherita Manzelli. O mesmo, ou quase, se pode dizer dos microscópicos e fascinantes desenhos do uruguaio Marco Maggi. O curioso é que a esses artistas a imprensa não faz qualquer referência. Enquanto isso, abrem-se páginas para reproduzir as fotos de Spencer Tunick em que dezenas de pessoas aparecem nuas. São fotos deprimentes que, embora pretendam talvez chocar pela nudez massificada, passam de fato a sensação de que captaram cadáveres enfileirados, esperando para serem jogados na vala comum, como nos campos de concentração nazistas. O fotógrafo está preocupado apenas com o assunto – o seu “achado” – e não com a qualidade fotográfica propriamente dita. E sempre que isso acontece – seja na fotografia como na pintura, na escultura ou na poesia – sempre que o tema se sobrepõe à linguagem que o expressa, temos arte ruim. Nada disso se observa nas fotos de Arthur Omar expostas nesta bienal. Trata-se de uma série de fotografias realizadas no Afeganistão, após a derrota dos talibãs. Essas fotos admiráveis do artista brasileiro possuem as qualidades que esperamos encontrar num trabalho fotográfico dessa natureza: elas são, ao mesmo tempo, testemunho, documento e arte. Mostramnos o nicho vazio da estátua de Buda destruída a canhonaços pelo fanatismo talibã, mostram-nos as ruínas deixadas pelos bombardeios em meio à paisagem árida por onde se espalha o resto da cidade ainda de pé, mostram-nos os rostos de meninos, cujos olhos parecem atulhados de sofrimento e vida, ainda que amarga. Essas imagens seriam o conteúdo explícito das fotos, o seu assunto. Mas, diferentemente de Tunick, Arthur Omar revela-se também, e sobretudo, um apaixonado pela lancinante beleza do seu tema. É por esse motivo que procura, com os recursos da linguagem fotográfica, expressá-la. Não tenho dúvida de que ele é o grande artista desta 25ª Bienal de São Paulo. Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte


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ARTES PLÁSTICAS

O domínio feminino em Zuleno Em meio a uma diversidade de temas, a mulher é a marca maior da obra desse pintor que, após quase oito décadas de arte, continua incansável Mariana Camarotti

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os 86 anos de idade, Zuleno repete o mesmo ritual sempre que a inspiração lhe chega. Sobe a escadaria de sua casa, rumo ao ateliê. Entre um degrau e outro, precisa apoiar-se nas paredes laterais para se equilibrar. No meio da subida, avista a mesma imagem: uma mulher, num quadro que pintou ainda na década de 70 e que dedicou à esposa, Julieta, falecida no ano passado. A tela parece ter sido colocada no meio do caminho propositadamente, para lhe dar forças. Mais uns degraus e Zuleno chega a seu local de trabalho, onde é envolvido pela presença das mulheres que habitam seu imaginário e que se transportam para seus quadros. Em meio a uma diversidade de temas, a figura feminina é a marca maior da obra desse pintor que, após quase oito décadas de produção artística, continua incansável. “Comporto-me como um grande necessitado quando busco me expressar. É um ato de amor e também de dor”, diz ele. “Pinto as mulheres porque são sábias, fraternas e respeitáveis. São superiores aos homens, pois têm o dom da reprodução, da maternidade. E não precisam estar nuas para serem sensuais. Basta um olhar sutil, autoconfiante, e a mulher já se insinua ou chama a atenção de quem ela deseja”. Esse jogo com o olhar não acontece por acaso. É como o que o pintor utiliza para reparar nas coisas e se dirigir às pessoas. Um olhar encantado, como se, na sua idade, ainda visse tudo pela primeira vez. O respeito que Zuleno devota às mulheres, nos quadros como na vida real, vem de sua formação 22 Continente Multicultural


FOTOS: VLÁDIA LIMA

“Pinto as mulheres porque são sábias, fraternas e respeitáveis. São superiores aos homens”

tradicional, de família interiorana. O misticismo presente em sua obra se deve à vida espiritual e contemplativa que vem cultivando desde a juventude. Por isso, é praticamente impossível compreender bem o trabalho do artista sem levar em consideração a sua própria figura e seus valores. “Eu não existo. O que existe é a minha obra como feito divino. Meus quadros representam a humanidade, minha crença, a vida extraordinária”, diz ele. “O que peço a Deus é que, quando deixar de ser lúcido ou não puder mais pintar, que me leve”. Nascido em Pesqueira, município do Agreste pernambucano, Zuleno Ferreira da Veiga Pessoa se diz apaixonado pela vida e por tudo o que existe na natureza. “Não tenho pretensão de me transformar em mensageiro de nenhuma ideologia. Amo a vida como um todo. E é desse amor que emana a minha diver-

sidade temática, sem que nada possa fazer para modificar seus rumos”. Cabelos sempre arrumados, chapéus nobres e enfeites nas orelhas compõem um figurino romântico e dão o tom da feminilidade das madonas. Belas senhoras, cobertas por roupas pudicas, aparentam viver numa época de inocência. Os personagens masculinos, embora raros, aparecem em auto-retratos ou em passagens bíblicas. Estas contudo não registram cenas de martírio. Pelo contrário. Exalam amor e esperança. Até mesmo numa das imagens que mais despertam a revolta dos cristãos, O beijo de Judas, o apóstolo traidor encosta seus lábios no rosto de Cristo como quem perde perdão. E é perdoado. Inspirado em sua infância humilde, o artista pinta crianças andando de bicicleta, jogando bola, bolinha de gude ou brincando de roda. Nessas telas não impera o clima lúdico, comum em registros de cenas infantis. Predomina o misticismo. As criaturas ganham uma força maior graças às cores com as quais são pintadas. Laranja, vermelho, verde, amarelo, rosa e azul se misturam ao bege, marrom, preto e branco. “O contraste de cores básicas e quentes é que dá uma harmonia aos meus quadros”, diz. As telas têm um brilho incomum, resultado do uso de tintas automotivas. Mas o gosto por tons fortes e contrastes nem sempre existiu. Quando começou a se dedicar exclusivamente aos quadros e deixou de lado os desenhos e gravuras, no início da década de 70, Zuleno servia-se apenas de quatro matizes: branco, preto, ouro, prata. Autodidata, o artista diz ter bebido de várias fontes para chegar a seu estilo. Da escola clássica, absorveu a perfeição no jogo de luz. Do modernismo, as figuras alongadas e de contorno irregular. Foi influenciado por Lula Cardoso Ayres na temática e no tipo de composições. Vicente do Rego Monteiro e o espanhol Francisco de Goya são duas outras referências de peso em sua técnica. “Goya era um gênio na arte da luz. Incrível”, diz. O tempo que Zuleno dedica a um quadro depende de sua inspiração. Pode passar uma tarde ou demorar meses numa tela, enquanto pinta outras. Também pode levar a vida inteira a retocar uma obra. Por isso, existem quadros incompletos em seu ateliê.

Telas da série Composições com figuras femininas

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Tela da série Composições com figuras femininas e o pintor Zuleno em seu ateliê

“Então era porque eles tinham que ficar assim, inacabados. Quando uma pessoa gostar, leva”. Mas a maioria dos quadros de Zuleno não demora muito na parede. Suas pinturas fazem parte de acervos públicos e particulares pelo Brasil e pelo mundo afora. Antes de se dedicar inteiramente à pintura, Zuleno foi ilustrador. No Jornal do Commercio, trabalhou de 1950 a 1970 fazendo desenhos esportivos e de acontecimentos do dia. Na época, também desenhava para empresas de publicidade. Embora esse período tenha sido importante para desenvolver o talento e projetar seu nome, Zuleno não gostava do que fazia. Assim, resolveu voltar-se inteiramente para as telas e os pincéis. Mal principiada essa nova fase, Zuleno deu um passo importante em sua trajetória artística. Foi convidado a fazer uma pintura para o calendário da Pirelli, ao lado de Lula Cardoso Ayres e Di Cavalcanti. “Espantei-me porque eu mal me iniciava. Minha pintura até então era comercial, por causa dos jornais”, lembra. O convite, porém, além de ter dado um ótimo resultado para a Pirelli e para os artistas participantes, já que o calendário recebeu o prêmio Ampulheta de

ouro, em São Paulo, impulsionou enormemente a carreira de Zuleno. “Passou na televisão uma reportagem sobre o calendário, dizendo que a Pirelli só recebeu o prêmio por causa da minha pintura. Depois dali, meu nome ficou firmado no meio artístico. Passei a ser mais respeitado”. O calendário da Pirelli tinha como tema metais preciosos. Enquanto os outros artistas optaram por pintar cenas de garimpo e jazidas, Zuleno retratou uma de suas mulheres cheia de jóias, banhada num oceano de prata e ouro. A partir de então, passou a ser muito convidado para expor pelo Brasil. No ano de 1979, realizou uma individual no Museu de Arte de São Paulo (Masp), a convite do diretor do museu, Pietro Maria Bardi. Durante 30 dias, seus quadros foram exibidos num dos principais palcos da pintura brasileira. Hoje, faz parte do acervo do Masp uma de suas telas em que a temática são as mulheres. Depois da exposição em São Paulo, o artista rodou o país. Seus quadros puderam ser vistos na Galeria Ida e Anita, em Curitiba, no Museu Artístico e Histórico do Maranhão e na Duailibe Galeria, no Ceará. Mas foi na Arte Maior Galeria, no Recife, que Zuleno mais expôs suas obras. A carreira de Zuleno deita raízes na infância. Despretensiosamente, aos seis ou sete anos, ele fez um desenho na areia com um graveto. “Eu vi um menino desenhando e me veio aquele desejo louco de desenhar. Não tinha lápis nem papel, então fiz no chão mesmo”, recorda. Depois disso, fez vários outros rabiscos e desenhos, até que, aos 18 anos, gastou uma caixa inteira de lápis de cor pintando a igreja secular de Igarassu, município do litoral Norte de Pernambuco. “Me espantei quando vi o que fiz. E me espanto até hoje quando vejo aquela pintura, que faz parte de uma coleção particular. Ficou com um aspecto de arquitetura velha, como realmente é. Foi quando percebi que tinha jeito para a coisa”. Mariana Camarotti é jornalista

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JORNALISMO

Vida de aventureiro Coleção mostra que vida de repórter pode ser também uma vida de aventuras, nas quais a dimensão humana dá relevo às informações Marco Polo

V

de novembro de 1969, quando chegou a notícia da morte de Carlos Marighella. Mandaram-me correndo para a Alameda Casa Branca, nos Jardins, onde o líder da Ação Libertadora Nacional acabara de ser baleado. Fui o primeiro repórter a chegar ao local... O corpo de Marighella estava caído no banco de trás de um Volkswagen, o sangue correndo pela boca...” Percorrendo estradas minadas em El Salvador, vendo suas matérias ser censuradas pela ditadura (a redação as substituía por trechos de Os Lusíadas; ao longo do tempo foram tantos os textos censurados que o clássico de Camões chegou a ser publicado duas vezes, na íntegra), sendo exaltado num dia como “repórter da alma”, por causa de uma dada reportagem, e reduzido a “baixinho asqueroso” no outro, por conta de outra matéria, Mayrink deixa claro em Vida de repórter que levou uma vida incomum e aventureira, testemunhando a história no momento mesmo em que ela era feita. A certa altura do prefácio que assina para Viagem ao mundo dos Taleban, de Lourival Sant’Anna, livro que dá seqüência à série Vida de repórter, o diretorresponsável do jornal O Estado de São Paulo, Ruy Mesquita, fala do “cenário onde se travaria a guerra

FOTOS: REPRODUÇÃO

ida de repórter em geral é um estresse; não pode ser levada por quem tem nervos e coração fracos. A rotina desse profissional inclui normalmente correr atrás da fonte ou da notícia, temendo que o concorrente tenha conseguido uma declaração mais bombástica ou uma informação mais importante, e em seguida voar para a redação a fim de escrever a matéria antes que o editor lhe grite: “Olha o deadline!” (Não é para menos que no jargão jornalístico o prazo para a entrega do texto se chama “prazo fatal”, ou, em tradução literal, “linha morta”: se o repórter não cumpri-lo a tempo, todo o seu esforço vai literalmente para o lixo. E sua reputação corre o risco de ir junto.) Contudo, se levarmos em conta as experiências de certos repórteres em certas reportagens, esse dia-adia das redações nos parecerá uma realidade bastante amena. É o que mostra a coleção Vida de repórter, da Geração Editorial. Nos quatro primeiros volumes da série já dá para sentir o clima. No livro que dá nome ao projeto, José Maria Mayrink narra inúmeros episódios de seus 40 anos como jornalista. Um deles, por exemplo, é a morte do líder guerrilheiro de esquerda Carlos Marighella: “Corinthians e Santos jogavam no Pacaembu, a redação estava quase vazia na noite de 4

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(1) Ticatô, líder dos caiapó, que prende quem passa perto da aldeia e exige resgate. (2) Klester Cavalcanti e o biólogo Ronis da Silveira capturando um jacaré-açu de 3,9m. (3) Monumento à construção do socialismo, na Coréia do Norte

entre a mais formidável potência tecnológica da Terra e um dos povos mais pobres e atrasados que habitam o planeta”. Foi no Afeganistão que Sant’Anna começou a sentir na pele o seu livro antes mesmo de escrevêlo. Ele estava entre os primeiros (e poucos) jornalistas ocidentais a penetrar no território afegão, logo após o atentado de 11 de setembro. Lá, ele procurou entrevistar os integrantes do regime dos Taleban; buscou, principalmente, com humildade e isenção, compreender as motivações e reações daquele povo tão diferente dos ocidentais. Foi assim que começou a descobrir que, a despeito de costumes, religiões ou convicções diferentes, todos os homens são, literalmente, iguais. Em qualquer um pode nascer o gesto gentil, a delicadeza e o carinho. De todas as mensagens do livro, essa é a que mais emociona. Já Klester Cavalcanti foi amarrado a uma árvore, no meio da floresta, e lá abandonado para morrer. Felizmente, escapou. Caso contrário, não teria escrito Direto da selva – as aventuras de um repórter na Amazônia, o terceiro livro da série. Ao mesmo tempo que desnuda os graves problemas sociais que assolam aquela região, a exploração indiscriminada dos recursos naturais e a corrupção dos órgãos fiscalizadores, Klester consegue manter um grande bom humor, ao contar tudo que passou na selva amazônica, dando ao leitor a oportunidade de conhecer de perto, ou melhor, de

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dentro, uma realidade totalmente ignorada pela grande maioria dos brasileiros. Fecha a seqüência da série Vida de repórter o livro Viva o grande líder! – um repórter brasileiro na Coréia do Norte, de Marcelo Abreu, único jornalista brasileiro a conseguir entrar naquele misterioso e fechadíssimo país. Na pele de agente de uma ONG (se descobrissem que era jornalista, seria imediatamente preso e dificilmente o Brasil conseguiria resgatá-lo), Marcelo se infiltrou no último país ainda sob o jugo do comunismo nos moldes stalinistas. O comitê de recepção norte-coreano era composto por um guia, mais um acompanhante do guia (na verdade, um policial disfarçado) e um motorista. Esse disparate, de um visitante ser seguido por três acompanhantes, é o primeiro de uma série que começa a se avultar como num quadro surrealista, carregado de tons cinzentos e desolado. As ruas e estradas larguíssimas em contraste com os poucos carros e os prédios gigantescos em oposição ao escassos transeuntes nas vias públicas são as esquisitices mais visíveis. Logo, outras começam a aparecer. Marcelo nota que toda vez que chega a um prédio a ser visitado, seus guias transmitem aos responsáveis pelo lugar o porquê de sua presença ali. Aí então todos se revelam pessoas produtivas, altamente interessadas no que estão fazendo. Aos poucos, porém,

FOTOS: (1), (2) E (3) REPRODUÇÃO

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FOTOS: (4) REPRODUÇÃO ; (5) BANARAS KHAN / AFP

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a máscara vai rachando e deixando aparecer a realidade por trás da fachada dos eficientes trabalhadores: pessoas representando uma vida inverídica. Em algumas delas, o repórter chega a perceber uma enorme vontade de entrar em contato com o visitante desconhecido, mas um medo maior ainda paralisa a todos e frustra o diálogo. Outro aspecto intrigante destacado por Marcelo é o culto maciço a Kim II Sung, fundador do Estado norte-coreano e líder absoluto da nação por quase meio século. Hoje em dia essa mesma veneração se volta também para seu filho, Kim Jong II, que, com a morte do pai, subiu ao poder, inaugurando a primeira dinastia comunista da História. Para se ter uma idéia, praticamente todas as músicas que tocam nas rádios, todos os filmes que passam no cinema, assim como os letreiros de fachada, cartazes e jornais fazem sempre referência à grandiosidade dos dois líderes ou às suas idéias (as estradas e prédios de aspecto grandiloqüente são decorrências disso). Por meio de um controle eletrônico da atmosfera, todas as emissões de rádio e tevê de fora do país são barradas, de modo que só se ouve e se vê o que é produzido na rádio e na tevê estatais, sob supervisão do governo. Ou seja, o povo vive num isolamento absoluto, num mundo artificial e paranóico. Ao término da leitura, fica a sensação de que visitamos um

Estado onde tudo funciona como num pesadelo de Kafka. A coleção Vida de repórter traz de volta a “grande reportagem”, aquela em que o repórter “suja” as mãos contando, na primeira pessoa do singular, suas emoções, medos e alegrias. É exatamente isso que torna esse tipo de matéria algo mais humano e, conseqüentemente, mais impactante e interessante. Banida dos jornais, que entronizaram a notícia curta, seca e impessoal (como diz o editor Luiz Fernando Emediato: “Vivemos dias em que as enchentes em São Paulo são interpretadas pelos quilômetros de congestionamento; os grandes desastres, pelo número de mortos; o futebol, pelo tempo em que um time esteve com a posse de bola”), a grande reportagem encontra nos livros da série o meio ideal para mostrar que, além de revelar aspectos desconhecidos de um assunto, também serve para patentear que por trás de qualquer informação, mesmo a mais técnica, existe a dimensão humana. Que é a que mais importa.

(4) Kim Jong Il, o Líder Querido, e seu pai, Kim Il Sung, o Grande Líder, criadores da primeira dinastia comunista. (5) Guerrilheiros Taleban

Serviço: Vida de repórter, de José Maria Mayrink. 233 p. Viagem ao mundo dos Taleban, de Lourival Sant’Anna. 247 p. Direto da selva – as aventuras de um repórter na Amazônia, de Klester Cavalcanti. 247 p. Viva o Grande Líder! – um repórter brasileiro na Coréia do Norte, de Marcelo Abreu. 235 p. Os livros integram a coleção Vida de repórter, da Geração Editorial – Fone (11) 3872.0984. Cada volume custa R$ 25,00.

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Especial

O poço é mais fundo do que se imagina A análise do conflito palestino-israelense é uma tarefa complexa na qual fica difícil perceber quem erra por ignorância ou má-fé

Ao centro, a mãe de Amir Mansouri, 20, assassinado por um atirador palestino em Gaza

O

conflito palestino-israelense (na verdade, árabeisraelense) envolve fatores políticos, culturais, religiosos, econômicos, regionais e internacionais. Isso torna a análise desse embate tarefa complexa em razão da quantidade de variáveis a serem consideradas. Contudo, o que se nota, freqüentemente, são pessoas leigas a se arvorarem em especialistas, mostrando-se capazes de emitir opiniões sobre o tema, sem qualquer compromisso com a realidade. Resultados: 1) o que era complexo passa a ser obtuso; 2) fica difícil perceber quem erra por ignorância ou por má-fé (ou por ambas). Não há inocentes nesse jogo. Mas nem por isso devemos distorcer os fatos históricos. Isso se quisermos de fato chegar a uma solução para um problema que dilacera diariamente vidas humanas, de ambos os lados. Por razões de espaço, cito abaixo e depois con-

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testo apenas quatro pérolas de um desses experts de última hora... a) “A Palestina sempre pertenceu aos palestinos desde 2.500 a.C., quando os cananeus, imigrantes de origem semita vindos da Península Ibérica, lá se instalaram”. b) “Israel é o único Estado artificial da região. Além de imperialista, age de acordo com os interesses norte-americanos”. c) “Sharon comandou o massacre de palestinos em Sabra e Chatila”. d) “Israel está praticando um holocausto palestino”. O nome Palestina remonta aos filisteus e foi adotado pelo Império Romano, após a destruição de Jerusalém, no ano 70 d.C., para apagar vestígios da presença judaica na região. O nacionalismo palestino

FOTO: RINA CASTELNUOVO / THE NEW YORK TIMES

Jorge Zaverucha


de hoje é um conceito do século XX. Isso não diminui, contudo, o direito palestino a uma pátria, mas ajuda a colocar os pontos nos is. Um pouco mais de história. Os ingleses detentores do mandato sobre a Palestina trataram de dividila de acordo com os interesses do Império Britânico. A maior parte das terras foi, primeiramente, doada, em 1921, à dinastia hachemita, e ficou conhecida como Transjordânia (atual Jordânia), porque estava à leste do rio Jordão. Outra (pequenina) extensão de terra foi

FOTO: RINA CASTELNUOVO / THE NEW YORK TIMES

O nascimento de Israel contou com o apoio da URSS. Os soviéticos estavam interessados em estabelecer uma cunha de influência na região entregue à Síria, em 1923. Coube à ONU decidir o futuro do restante do território sob mandato britânico. Em novembro de 1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas, presidida por Oswaldo Aranha, resolveu, por 33 votos a 13, dividir a mencionada área em dois Estados, um judeu e outro árabe. Jerusalém, sabiamente, seria território internacional. Em nenhum momento se falou em Estado Palestino. Para ser mais claro: deveria ser criado um Estado para os judeus palestinos e outro para os árabes palestinos, ambos considerados palestinos pelos ingleses (uma simples olhada nos passaportes da época comprovaria a nacionalidade). Curiosamente, Sharon nasceu na Palestina, e Arafat, no Cairo. Sob a perspectiva territorial, portanto, Sharon é mais palestino que Arafat. Palestinos, então, eram considerados todos o que habitavam a região sob mandato inglês, aí incluídas a Jordânia (70% da população continuam sendo palestinos) e a área concedida à Síria. Isso explica o motivo por que Ahmed Shukeir, que antes ocupava o atual posto de Yasser Arafat, em intervenção junto ao Conselho de Segurança da ONU, em 1963, reivindicou como sendo parte da Palestina a região que é hoje território sírio. Como se nota, Israel e Jordânia são criações artificiais inglesas. Como os Estados árabes não aceitaram a independência de Israel, houve a Guerra pela Independência,

em 1948. Ao final do armistício (1949), a área onde deveria ser criado um novo Estado árabe foi abocanhada por Israel, Egito (Gaza) e Jordânia (Cisjordânia e Jerusalém). Portanto, árabes palestinos foram incorporados tanto a Israel quanto à Jordânia e ao Egito. O nascimento de Israel contou com o significativo apoio da então URSS. Os soviéticos estavam interessados em estabelecer uma cunha de influência na região, dominada pelos ingleses e franceses. Estavam temerosos de que fossem substituídos pelos norte-americanos. Um dos melhores acordos armamentistas da história de Israel foi fechado com a Checoslováquia. Israel deve muito de seu nascimento ao exbloco comunista. Em 1956, Israel arrebatou a Península do Sinai em guerra contra o Egito. Posteriormente, devolveu a área, que ficou então sob a supervisão da ONU. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, reconquistou o Sinai e voltou a devolvê-lo, em 1982, ao Egito. Isso porque Anwar Sadat aceitara a paz em troca daquela região. Estranho esse imperialismo israelense: devolve terras em vez de anexá-las... Em setembro de 1970, o rei Hussein da Jordânia, receoso de uma tentativa de desestabilização de seu reino, esmagou inapelavelmente os palestinos jordanianos. Por conta disso, vários deles foram expulsos e rumaram para o Líbano. De lá começaram a praticar atos terroristas contra cidades e colônias na parte norte de Israel, conhecida como Galiléia. Em 1982, começa a operação Paz na Galiléia, que se transformaria na Guerra do Líbano. Isso porque Sharon, tendo ludibriado o primeiro-ministro Menahem Begin, em vez de criar um cinturão de segurança de

Menino se recuperando de lesões provocadas por um homembomba, próximo de Netanya, no Norte de Israel

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40km, optou por chegar a Beirute no afã de expulsar Arafat de lá. No ano de 2000, Israel completou sua retirada do Líbano, mas os ataques contra a população israelense continuam. A entrada de Israel no sul do Líbano foi bem recebida pelos libaneses cristãos, cansados que estavam da presença palestina e do domínio sírio sobre o país. Aproveitando a presença das tropas israelenses, milícias cristãs resolveram revidar as humilhações que vinham sofrendo dos palestinos. Com apoio logístico de Sharon, entraram nos acampamentos palestinos de Sabra e Chatila e cometeram um massacre. Sharon foi censurado por uma comissão de inquérito do governo israelense. Obviamente, teve culpa indireta pelo ocorrido, mas dizer que comandou a operação militar...

É difícil distinguir quem é civil-inocente de quem é civil-terrorista. Estabelece-se o equilíbrio do terror, terrorismo paramilitar vs. terrorismo de Estado. Finalmente, chega-se ao impasse em Camp David e reacendem-se as hostilidades entre israelenses e palestinos. Com o fracasso das conversações, em 2000, voltam os ataques terroristas a acontecer em solo israelense. Sharon, como candidato a primeiro-ministro, promete acabar com isso. Arafat, portanto, foi decisivo cabo eleitoral para a vitória eleitoral de Sharon. A violência recrudesceu rapidamente. Entra aí um novo fator: a luta militar do fundamentalismo islâmico. Grupos como Hamas, Jihad Islâmica e Hizbolah, que haviam apoiado o ataque de Bin Laden ao 30 Continente Multicultural

World Trade Center, intensificam suas ações terroristas em solo israelense. Pregam abertamente a destruição do Estado de Israel e a criação de um Estado islâmico em toda a região, i.e., um grande Afeganistão. Só em março de 2002, 125 israelenses foram vitimados. Ante pressão popular e com luz verde dos EUA, Sharon deflagra a operação Muro Protetor, com o objetivo de destruir a infra-estrutura do terror. Infelizmente, passaram também agora a morrer civis palestinos, muitos deles inocentes. Mas é difícil distinguir quem é civil-inocente de quem é civil-terrorista. E estabelece-se o equilíbrio do terror, ou seja, terrorismo paramilitar vs. terrorismo de Estado. Chamar a isso de holocausto, como disse Saramago, é uma impropriedade. Não há qualquer ideologia oficial – por enquanto – no sentido de matar palestino por se tratar de palestino. A guerra é contra o terror palestino, não contra o povo palestino. Escrevi por enquanto, pois se os palestinos voltarem a praticar uma onda de atentados terroristas após a saída das tropas de Israel, e algum Estado árabe, por exemplo, o Iraque, decidir reiniciar suas hostilidades, poderemos assistir a uma tragédia ainda maior. Os palestinos da Cisjordânia poderiam vir a ser transferidos à força para a Jordânia. Atitude excepcional para situação excepcional. Isso geraria muitas mortes. Vamos impedir que tal horror venha a acontecer. Só há uma saída: fronteiras realmente seguras para Israel e um Estado para os palestinos. Vamos trabalhar juntos por isso, antes que seja tarde demais. Jorge Zaverucha é Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago; Pós-Doutor em Ciência Política pela Universidade do Texas (Austin); Professor Adjunto da UFPE

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Palestinos vêem o sangue derramado de soldados israelenses, mortos num tiroteio com militantes palestinos do grupo Hamas


O preço de Oslo Nenhuma negociação entre árabes e israelenses que não leve em consideração a História vale a pena Edward Said

FOTO: OSAMA SILWADI / REUTERS

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s imagens da Al-Jazeera na televisão são de uma clareza explosiva. Há nelas uma espécie de heroísmo palestino em evidência, que constitui a verdadeira história do nosso tempo. Um exército inteiro, marinha e força aérea, fornecidos generosa e incondicionalmente pelos Estados Unidos, vêm causando destruição em 18% da Cisjordânia e em 60% de Gaza, territórios concedidos aos palestinos após dez anos de negociações com Israel e os EUA. Hospitais, escolas, campos de refugiados e lares civis da Palestina têm sido alvo de um assalto impiedoso, criminoso, das tropas israelenses, munidas de helicópteros de guerra, aviões F-16 e tanques Merkavas. Mesmo assim, os combatentes palestinos, pobremente armados, enfrentam essa força absurdamente mais poderosa com destemor, sem recuar. Nos EUA, a CNN e os jornais, como o The New York Times, para descrédito deles próprios, jamais mencionam que “a violência” é desigual e que não há dois lados envolvidos na questão, mas apenas um Estado usando todo o seu imenso poder contra um povo sem Estado, repetidamente expatriado e espoliado,

desprovido de armamentos e de lideranças reais. Israel quer destruir a Palestina, “acertando-lhe um golpe terrível”, como colocou despudoradamente o criminoso de guerra que os israelenses têm como líder. Um indício do ponto a que chegou a loucura de Sharon são as suas palavras ao Ha'aretz, no dia 5 de março: “A Autoridade Palestina está por trás do terror, é só terror. Arafat está por trás do terror. Nossa pressão é para que o terror acabe. Não esperem que Arafat lute contra o terror. Precisamos causar-lhes severas baixas para que então possam entender que não podem continuar usando o terror para lograr conquistas políticas”. Além de revelar sintomaticamente a mecânica de uma mente obcecada, direcionada para a destruição e para o ódio mais puro, as palavras de Sharon assinalam o fracasso da razão e do senso crítico que se observou no mundo desde o último setembro. Sim, houve um atentado terrorista, mas a sociedade humana é mais do que apenas o terror. É política, e luta, e história, e injustiça, e resistência, e, também, terrorismo de Estado. Sem que o mundo acadêmico e

Uma parente de policial palestino morto chora em Ramallah, na Cisjordânia

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intelectual americano pronunciasse mais que um pio, sucumbimos, todos, ao uso promíscuo da linguagem e da razão, segundo o qual tudo de que não gostamos se transforma em terror, e tudo o que fazemos, para combater o terror, é pelo bem puro e simples, não importa quanta riqueza, quantas vidas e destruições estejam

Não há uma boa causa em jogo. O que está em jogo são interesses materiais que asseguram poder aos governantes, e lucro às corporações envolvidas. Jogados ao vento foram todos os preceitos do Iluminismo, pelos quais tentamos educar nossos estudantes e concidadãos. No lugar ficou uma orgia desproporcional de vingança e cólera orgulhosa, do tipo a que só os ricos e poderosos, parece, têm o direito de recorrer. Não é de espantar, portanto, que um assassino de quinta categoria como Sharon se sinta autorizado (por emulação e por derivação) a fazer o que faz, quando na maior democracia da Terra as leis, os direitos constitucionais, os pedidos de habeas corpus e a própria razão estão fadados à lata de lixo na caçada ao terror e ao terrorismo. Como educadores e como cida32 Continente Multicultural

dãos, falhamos ao permitir que nos ludibriassem dessa forma, sem nem ao menos ensaiar um debate público organizado sobre um orçamento militar que atinge os 400 bilhões de dólares, enquanto 40 milhões de pessoas continuam sem seguro de saúde. Israelenses, árabes e americanos aprendem que o amor pela pátria envolve sacrifícios e perdas porque há uma boa causa em jogo. Nonsense. O que está em jogo são interesses materiais que assegurarão poder aos governantes e lucros às corporações. Por isso, as pessoas são mantidas num estado de consentimento artificial, até que venham a acordar numa manhã qualquer e parem para pensar aonde, com essa louca corrida tecnologizada para bombardear e matar, estamos indo. Israel está deflagrando uma guerra contra civis, pura e simplesmente, embora isso jamais será posto dessa forma nos EUA. Essa é uma guerra racista e, na sua estratégia e nas suas táticas, uma guerra colonial também. As pessoas estão sendo mortas e levadas ao sofrimento desproporcionalmente, porque não são judeus. Que ironia! No entanto, a CNN jamais se refere aos territórios “ocupados”, mas, antes, à “violência em Israel”, como se os principais campos de batalha fossem os teatros e cafés de Tel Aviv, e não, como de fato, os guetos e os campos de refugiados palestinos,

FOTO: AHMED JADALLAH / REUTERS

Rapaz palestino se prepara para lançar uma pedra em soldados israelenses, em Gaza, por sobre uma cerca que os separa durante o conflito


FOTO: RINA CASTELNUOVO/THE NEW YORK TIMES

Soldados israelenses revistam palestinos detidos durante uma busca por todas as casas de Adoha, vila perto de Belém

que já estão cercados por nada menos que 150 assentamentos israelenses ilegais. Nos últimos dez anos, a grande fraude de Oslo foi impingida ao mundo pelos EUA, sem que praticamente ninguém se desse conta de que foram cedidos apenas 18% da Cisjordânia e 60% de Gaza. Ninguém entende de geografia, e é melhor que não entenda mesmo, porque nem com todas as palavras congratulatórias possíveis a realidade deixa de ser tão chocante. E aquele pseudo-especialista, o insuportavelmente convencido Thomas Friedman, ainda tem a audácia de dizer que “a televisão árabe” exibe imagens tendenciosas, como se “a televisão árabe” devesse adotar o ponto de vista de Israel, como faz a CNN, ao usar a expressão “violência no Oriente Médio” como eufemismo para mascarar a limpeza étnica que os israelenses vêm executando nos guetos e campos palestinos. Será que Friedman (ou a própria CNN) tentou explicar o disparate do ataque de um exército ofensivo, numa guerra colonial, a um povo cujo território tem sido ocupado há 35 anos? Será que tentou entender as razões de um povo que se defendeu de tal carnificina? Claro que não! Do contrário, por que Friedman abriria a boca para dizer que não há aviões F-16 na Palestina, que não há helicópteros Apache, nem barcos de guerra ou tanques Merkava, em suma, que não há ocupação da Palestina por Israel? Aí está a prova da desonestidade de um repórter e comentarista que absolutamente não consegue traduzir em termos claros o ponto de vista dos EUA, nem captar o real significado da causa árabe e palestina. Será que ele não vê que suas matérias são parte do problema, que com suas justificativas disparatadas e sua desonestidade, sobre a qual não mostra sinais da mesma autocrítica

que cobra dos outros, ele na verdade agrava a ignorância e as interpretações erradas, ao invés de reduzilas? Pobre jornalista e educador. O relato que nos chega é o de que os israelenses estão lutando por suas vidas, e não por seus assentamentos e bases militares nas terras ocupadas da Palestina. Há meses que a mídia americana não exibe qualquer mapa. No dia 8 de março, o mais sangrento para os palestinos até agora em dezesseis meses de intifada, o principal noticiário noturno da CNN destacou a morte de 40 “pessoas”, e nem sequer mencionou a perda de vários paramédicos, mortos enquanto as suas ambulâncias eram impedidas de chegar aos feridos por indiferentes tanques israelenses. Apenas “pessoas”, e nenhuma imagem do inferno que elas vinham conhecendo neste 35.º ano de ocupação militar. Tul Karm sofreu o pior dos assédios, com toques de recolher de 24 horas, cortes de água e eletricidade, revistas sistemáticas e prisões de 800 jovens, bombardeios aleatórios de lares de refugiados, imensa destruição de propriedades (e não me refiro a discotecas ou quadras esportivas, mas a casebres e barracos que dão aos refugiados apenas um telhado como proteção) e ilimitados casos de uma crueldade sádica sem par contra civis desarmados e indefesos, que são empurrados e espancados e deixados para sangrar até a morte. Soubemos de mulheres que terminaram por dar à luz bebês natimortos enquanto esperavam inutilmente nos bloqueios de estrada israelenses, e de velhos forçados a se despir e tirar os sapatos para que andassem descalços e nus em frente a um jovem de 18 anos mascando chicletes e carregando uma M-16, que meus impostos ajudaram a comprar. Belém teve seu centro e sua universidade destruídos por valentes pilotos israelenses voanContinente Multicultural 33


do a 5.000 pés de altura com seus maravilhosos F-16, que também ajudei a comprar. O campo de Balata, os campos de Aida, Dheheisheh e Azza, as minúsculas vilas de Khadr e Husam, tudo foi transformado em pedregulho sem que fosse ouvido qualquer comentário por parte da imprensa americana. Os editores nova-iorquinos, obviamente, não se importaram com o ocorrido, salvo raras exceções. E foram incontáveis os mortos e feridos, os que não foram assistidos nem enterrados, para não falar nas centenas de milhares de vidas mutiladas, deformadas, catastroficamente marcadas por suplícios e tormentos causados a torto e a direito. Todo esse sofrimento foi ordenado, de uma distância segura, da calma e arborizada Jerusalém Ocidental, por homens para os quais a Cisjordânia e Gaza não passam de ninhos de ratos distantes, cheios de insetos e roedores que precisam ser controlados e expulsos, que precisam aprender uma lição, como se diz no jargão aceito pelo soberbo poderio militar israelense. Hoje, no maior ataque de todos, Ramallah foi invadida e está sendo devastada por 140 tanques israelenses. Completa-se, assim, a reconquista dos territórios palestinos já ocupados por Israel. O povo palestino está pagando o alto, alto e irracional preço de Oslo, que após dez anos de negociação deixou-lhe tão-somente pedaços de terra carentes de coerência e continuidade, instituições de segurança designadas para assegurar a subserviência a Israel e uma vida que empobrece para que o Estado judeu possa crescer e prosperar. Em vão, durante anos, alguns de nós tentaram avisar que o hiato entre a linguagem que os EUA e Israel usavam para falar de paz 34 Continente Multicultural

e a terrível realidade nunca fora superado. Aliás, nunca se pretendeu de fato superá-lo. Palavras e frases como “processo de paz” e “terrorismo” foram usadas sem nenhuma referência a qualquer dado real. Sobre os confiscos de terra, muitos fizeram pouco caso, ou se referiram a eles como “negociações bilaterais” entre um Estado que consolidava o seu domínio sobre um território que buscava a qualquer custo e um bando medíocre de negociadores desinformados (ao qual foram necessários quatro anos para adquirir, que dirá usar, um mapa confiável da terra sob litígio). O pior de tudo é que, nesses 54 anos, desde 1948, nunca foi permitida uma narrativa do heroísmo e do sofrimento palestinos. Somos todos considerados, basicamente, extremistas fanáticos e violentos. Essa é a imagem que George Bush e seus comparsas fixaram na consciência de uma população atordoada e sistematicamente desinformada, auxiliados por um verdadeiro exército de comentadores e estrelas da mídia norte-americana – os Blitzers, Zahns, Lehrers, Rathers, Brokaws, Russerts e sua laia. O lobby israelense parece até desnecessário diante de tão fiéis discípulos, enfileirados alegremente nas linhas de combate. Mas agora que a proposta de paz saudita se tornou um ponto de debate e de esperança, é importante, penso, colocá-la no seu contexto real, não no seu contexto presumido. Em primeiro lugar, ela é uma reciclagem do plano Reagan de 1982, do plano Fahd de 1983, do plano de Madri de 1991, e por aí vai: em outras palavras, é o mais recente de uma série de planos propostos que, no final, Israel e EUA não apenas se negaram a implementar como também ativamente

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A palestina Suzanne Elias na sua casa destruída, localizada em frente a um quartel-general de Yasser Arafat, em Belém, bombardeado por forças israelenses


torpedearam. No meu ponto de vista, as únicas negociações que valeriam a pena seriam as que determinassem uma retirada total de Israel dos territórios ocupados, e não, como aconteceu em Oslo, uma barganha por pedaços de terra que Israel estaria disposto, muito a contragosto, a ceder. Já houve bastante sangue palestino derramado, bastante violência e desprezo israelenses para se pensar num retorno sério a negociações à maneira de Oslo, mediadas pelo mais tendencioso dos mediadores, os Estados Unidos. Todos estão de acordo, entretanto, que os antigos negociadores palestinos não desistiram de seus sonhos e ilusões, e que algumas reuniões têm acontecido em meio aos ataques e bombardeios. Mas eu insisto que a atenção devida seja dada às décadas de sofrimento palestino e aos prejuízos humanos reais causados pela política destrutiva de Israel, antes que qualquer acordo conceda um status indevido aos governos israelenses, que pisaram nos direitos palestinos do mesmo modo que demoliram nossas casas e mataram nossa gente. Nenhuma negociação entre árabes e israelenses que não leve em consideração a História – e para essa tarefa uma equipe de historiadores, economistas e geógrafos conscientes se faz necessária – vale a pena. Os palestinos devem se mobilizar para eleger já uma nova equipe de negociadores e representantes, na esperança de proteger o que ainda resta depois da presente calamidade. Em suma, em quaisquer reuniões que daqui por diante ocorram entre representantes israelenses e palestinos, a gravidade das depredações perpetradas por Israel contra o nosso povo tem de ser levada em conta, e não apenas descartada como episódio superado. Oslo efetivamente perdoou a ocupação, eximindo os israelenses da culpa por todos os prédios e vidas destruídos nos primeiros vinte e cinco da invasão. Depois de tanto sofrimento, é inadmissível que Israel seja desculpado e possa simplesmente se levantar da mesa de negociações sem ao menos ter de ouvir que precisa expiar os seus pecados. Dir-me-ão que política é sobre o que é possível, não sobre o que é desejável, e que devemos ser gratos, nem que seja por um pequeno recuo israelense. Discordo severamente disso. As negociações só podem girar em torno de quando a retirada total irá acontecer, não de quantos por cento de chão Israel está disposto a conceder. Um conquistador e um vândalo não po-

dem abrir mão de nada: devem simplesmente devolver o que tomaram e pagar pelos abusos praticados, assim como Saddam Hussein teve de pagar, e pagou, pela ocupação do Kuwait. Ainda estamos a uma distância considerável dessa meta, ainda que a extraordinária bravura indômita de todos os palestinos em Gaza e na Cisjordânia já tenha, politicamente e moralmente, derrotado Sharon, que deve perder o seu posto num futuro não muito distante. Mas, o fato de que em duas

Um vândalo não pode conceder nada: deve simplesmente devolver o que tomou e pagar pelos abusos que cometeu décadas os exércitos israelenses puderam invadir cidades árabes à vontade, matando e semeando destruição, sem que nenhum grito de protesto coletivo das vítimas dessa guerra fosse ouvido, diz muita coisa a respeito dos grandes líderes árabes do mundo! Não sei o que pensam que estão fazendo os vários governantes árabes que tão delicadamente se calam enquanto a Palestina é estuprada na televisão. Mas posso imaginar que, no fundo de suas almas, não devem ser poucas a vergonha e a infâmia que sentem. Sem poder militar, político, econômico e, acima de tudo, moral, eles não têm quase nenhuma credibilidade e nenhuma postura real. São meros peões obedientes no tabuleiro de xadrez americano-israelense. Talvez imaginem que estejam jogando paciência. É possível. Mas eles (como Arafat e seus homens) nem sequer aprenderam a estratégia de sistematicamente disseminar informações como forma de proteger os seus povos dos ataques furiosos daqueles que consideram todos os árabes uns militantes extremistas e fanáticos terroristas. A boa notícia é que falta pouco para que esse tipo de comportamento irresponsável e desprezível se acabe. Será a próxima geração capaz de coisa melhor? Cabe a toda uma nova atitude em relação à educação secular dar a resposta. Ou retornarmos coletivamente à desorganização, corrupção e mediocridade, ou, finalmente, nos tornarmos uma nação. Edward Said é crítico literário e professor de literatura da Universidade de Columbia, em Nova Iorque

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Entre alif e aleph É preciso descobrir os caminhos do afeto no sentido latino da vontade, como predisposição do espírito à busca de entendimento entre contrários Everardo Norões

N

os confins do sertão do Ceará, minha avó costumava cantar uma música. Um primo meu, quando morava nos Estados Unidos, ouviu a mesma canção num programa sobre cultura ladina (o ladino era a língua que falavam os judeus sefarditas expulsos de Portugal e da Espanha no século XV). Aquilo nos pareceu curioso, e logo nos perguntamos se tínhamos sangue judeu, ou se algum acaso, apenas, havia trazido para nosso interior, no seu sentido mais ambivalente, aquela melodia vinda do fundo do tempo. Atiçada, a curiosidade letrada me fez compulsar um dicionário de famílias etimológicas. Pude então constatar que um de nossos nomes era puro árabe, e que, por sua vez, este provinha do hebraico. Descobri assim que o hebraico foi a língua que deu origem ao árabe, do mesmo modo que do latim descende a nossa língua portuguesa. Mas foi aquele fio de voz, chegado de longe, que me levou a indagar se éramos todos assim, nós, os do Nordeste: marcados por essa herança semítica que certamente nunca vai nos largar. Alguns de nossos hábitos cotidianos talvez figurassem na relação dos gestos interditos do manual do inquisidor do Tribunal do Santo Ofício; outros, poderiam encontrar assento nas páginas do Alcorão. A estrela de Salomão está presente, no sertão, em fórmulas para curas miraculosas; o aboio do vaqueiro lembra uma melopéia oriental ou um canto andaluz; um dos clássicos da literatura de nossos “cantadores”, a História da donzela Teodora, é a adaptação popular de um conto das Mil e uma noites, a História da douta simpatia, que se inicia na 272ª vigília de Sherazade. Essa narrativa tornou-se popular entre nós graças a uma tradução, do árabe para o espanhol, elaborada pelo judeu Pedro Afonso, o Rabi Moseh, nascido em Huesca, Espanha, no século XVI. Somos o prosseguimento de uma tradição de cumplicidade e mistura. Imigrantes do século XX – 36 Continente Multicultural

judeus, sírios, libaneses, palestinos – não encontraram aqui apenas papéis oficiais que permitiram a eles se livrar de perseguições religiosas ou racistas. Na tradição do Nordeste, não havia “estrangeiros”. As vidas dessas pessoas oriundas de terras distantes se confundiam com as nossas, nas brincadeiras de infância, nas lutas políticas, no comércio mascate e na solidariedade do dia-a-dia, coisas mais fortes do que discursos ideológicos e diferenças raciais. Os imigrantes somaram seus gestos aos nossos, na multiplicidade de cotidianos que acaba por construir uma pátria. Na minha cidade do interior, quando menino, passava pela calçada da loja de Seu Abraão, árabe do Líbano, para ir às aulas do professor de piano, um judeu polonês fugido da guerra. A música ficou-me como uma oferenda daquele professor míope e severo, em cujo casarão ouvi, pela primeira vez, as notas de um piano que acompanhava as batidas do sino da Sé. Ao longo de muitos caminhos – política, arte, literatura – deparamos com brasileiros de origem árabe ou brasileiros judeus. Muitos deles observam o mundo pelo prisma de um humanismo que deita raízes na tradição de Maimônides e Ibn Khaldoun, São Francisco e El Hallaj. Bem que os árabes e judeus envolvidos nos conflitos do Oriente Médio poderiam avaliar os acontecimentos sob essa mesma perspectiva. Então, fatalmente descobririam as veredas do afeto no sentido latino da vontade, como predisposição do espírito à busca de um entendimento entre contrários. Algo que São Francisco conhecia muito bem. Quando foi com os cruzados para a Terra Santa, no mesmo Oriente Médio, e tentou converter o sultão do Egito, correndo inclusive o risco de ser degolado pelos “infiéis”, o santo logo se deu conta de que ele e o príncipe Malik-al-Kamil eram muito próximos um do outro, de uma proximidade bem maior do que aquela que o ligava aos “cristãos” que por lá cometiam atroci-


dades em nome da fé. Tornaram-se amigos, então, e o diálogo filosófico entabulado pelos dois permanece registrado ainda hoje como um dos mais belos legados teóricos sobre a tolerância.

FOTO: RINA CASTELNUOVO/THE NEW YORK TIMES

Somos o prosseguimento de uma tradição de cumplicidade e mistura. Na tradição do Nordeste, não havia “estrangeiros” No mundo moderno houve outras pessoas que buscaram encetar esse mesmo diálogo entre os homens. Entre elas, lembramos Louis Massignon, sábio e místico francês, morto em 1962, conhecedor do árabe e do Islão. Foi ele quem descobriu, no Cairo, em 1951, após 40 anos de pesquisas, o texto de um autor árabe do século XV, Ibn-al Zayat, em que havia a referência à presença de São Francisco na corte do sultão do Egito. Massignon, pouco conhecido no Brasil, foi uma das grandes personalidades francesas do século XX: professor do Collège de France, embaixador cultural da França no mundo árabe e autor de inúmeros livros, entre os quais avulta uma obra monumental sobre um poeta e místico árabe do século X, El Hallaj. Massignon, profundamente religioso, durante toda a sua vida lutou pela aproximação das três grandes religiões monoteístas no mundo. Marco Lucchesi, en-

saísta e poeta brasileiro, autor de Os olhos do deserto (Ed. Record, 2000), contou-me que durante a Guerra da Argélia, nos anos 60, Louis Massignon, em Paris, percorria as margens do Sena, noite adentro, a recolher cadáveres de argelinos trucidados pela repressão. Desafiando a polícia francesa, o cristão apaixonado pelo Islão arriscava a própria pele para que os árabes mortos pudessem ser enterrados de acordo com os ritos da religião muçulmana. O achado do texto sobre São Francisco foi resultado de mais um louvável esforço que despendeu para incentivar a convivência cultural e religiosa entre cristãos e muçulmanos, árabes e judeus. O conflito do Oriente Médio chega até nós através de imagens partidas. Em cada gesto revelado pela mídia há um pedaço de nossa memória: o professor de piano, as lojas da rua da Imperatriz, as meninas do Colégio Israelita, o abraço de despedida do amigo palestino no aeroporto de Dar el Beida, o cuscuz do Ramadã, a reza do chazan no Yom Kipur, o Allah de todos no chamado do muezim, lá do alto da Katchaoua. O alif e o aleph de nossa incerteza. Porque a única garantia que temos é a de que nunca haveremos de saber exatamente onde, em cada um de nós, começa o árabe e termina o judeu.

Um homem caminha entre 925 caixões colocados por um grupo pacifista israelense na Praça Rabin, em Tel Aviv. Os caixões representam israelenses (brancos) e palestinos (pretos) mortos no conflito.

Everardo Norões é poeta e economista

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MARCO ZERO

Vapores varando as caatingas De como atravessar o rio São Francisco num barco a vapor cheio de dados secundários

O

livro se chama Navegação do Rio São Francisco. Seu autor é o economista (carioca de nascimento) Fernando da Matta Machado, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sabará, Minas Gerais. O título da obra induz o leitor comum a imaginar toda uma saga de barqueiros, carrancas, sertanejos ribeirinhos e índios. Enfim, toda uma vida, ao mesmo tempo anônima e épica, dos povos que habitam os imensos 640 mil km2 da Bacia do Rio São Francisco, algo em torno de sete vezes o território de Portugal. Um aviso aos navegantes: se o leitor espera deparar com uma visão simultaneamente mágica e humanística daquela pobre gente esquecida, nos séculos de efetiva colonização, sugiro que leia outro texto: o relatório de 1879 do engenheiro Theodoro Sampaio, pesquisador baiano, negro. Nele encontrará uma aquarela já desbotada dos “homens seminus que cantam a sua cantiga monótona de barqueiros, e vão e voltam, levando as suas varas longas e ferradas, jogando-as firmes, certas, na água”. Mas se o leitor for exigente e quiser um estudo mais rico e aprofundado sobre a formação brasileira, a partir dos contatos com as populações sofridas que moram num “quadrilátero ao norte da Cachoeira de Paulo Afonso, margem esquerda do rio São Francisco”, a melhor pedida na minha opinião é tirar da estante o clássico O sumidouro do São Francisco, do escritor e sociólogo pernambucano Abdias Moura. Esse livro nasceu de um relato do frade Martinho de Nantes,

escrito na metade do século XVII, sobre sua excursão na área sanfranciscana dos índios cariris, na companhia simbólica de três índios e um negro. Agora, se você é engenheiro, empresário ou algum executivo ligado de certa forma ao transporte fluvial, vai ser obrigado a ler o volumoso texto (436 p.) de Fernando da Matta Machado. Para esse autor, “é certo o axioma econômico que a experiência difundiu na Europa do século XIX, relativamente à maior vantagem das vias líquidas navegáveis, quando comparadas com outros meios de comunicação, sob o ponto de vista do menor custo de transporte”. Mas, se isso é verdade, onde as devidas comparações? Descrevem-se, por outro lado, passo a passo, as dificuldades de desobstrução das calhas do rio das Velhas e do rio São Francisco, e a luta tenaz entre burocratas, empresários, técnicos e políticos para a implantação da navegação a vapor no Velho Chico. O autor deve ter vivenciado, desde criança, uma boa porção do que relata em seu livro, pois seu pai, João da Matta Machado, destacou-se, mais do que qualquer outro homem do seu tempo, na luta pela criação da primeira companhia de navegação a vapor da Bacia do São Francisco. Parte do livro inclusive acompanha os sucessos e percalços dessa empresa, que virou Banco Viação do Brasil e, posteriormente, Empresa Viação do Brasil. Embora tenha sido um mineiro o maior defensor (e não só no Congresso) da navegação a vapor na Bacia do São Francisco, quem levou a melhor

Alberto da Cunha Melo 38 Continente Multicultural


FOTOS: ROBERTA GUIMARÃES E FRED JORDÃO

nesse caso foi a Bahia, ao estabelecer o controle do tráfego fluvial entre Pirapora e Juazeiro. A vantagem dos baianos deveu-se muito à estrada de ferro SalvadorJuazeiro, que viabilizava a exportação, por mar, da maior parte dos produtos oriundos do Vale do São Francisco. Apenas por curiosidade, resolvo destacar um trecho do livro que tem muito a ver com certos problemas discutidos em tempos recentes. Sim, porque depois da ameaça de colapso das geradoras de energia do São Francisco, parece que ninguém mais fala em transposição das águas desse rio para irrigar o grande semi-árido nordestino. Pois bem, um dos maiores estudiosos da bacia hidrográfica do Velho Chico, um tal de Henrique Guilherme Fernando Halfeld, contratado pelo Governo Imperial, em 1851, falou – de acordo com Matta Machado – sobre a “transposição das águas do São Francisco ao rio Jaquaribe, beneficiando Ceará, Pernambuco e Piauí”. Esse mesmíssimo projeto estava orçado, há uns dois anos, em

R$ 20 bilhões, e deveria ser executado em vinte anos. A Bahia sempre se mostrou contrária a ele. Será porque, para conseguir uma vazão de 765 m3/s, seria necessário criar um sistema de barramento de afluentes, o que mexeria fatalmente com o transporte fluvial controlado pelos baianos? Não sei. Sei apenas que no livro de Matta Machado há muitas repetições desnecessárias, feitas sem o intuito estético-paralelístico de um Gilberto Freyre, por exemplo. Entretanto, creio que, ao ler um livro, devemos ter em mente as intenções do autor, porque não podemos exigir mais do que o que ele se propôs a nos dar. Partindo desse princípio, acredito que o interesse maior de Matta Machado, ao escrever o seu livro, foi de natureza histórico-referencial, e não analíticoeconômica. Se eu estiver correto, a História do Velho Chico muito lhe deve pelo seu esforço ciclópico para escrever a Navegação do Rio São Francisco.

Duas fotografias do rio São Francisco, cuja bacia corresponde a sete vezes o território de Portugal

Serviço: MACHADO, Fernando da Matta. Navegação do rio São Francisco. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002. 436 p. Preço: R$ 39,00 Continente Multicultural 39


LITERATURA

João Ubaldo Ribeiro O mal com sotaque baiano

Quem gosta de João Ubaldo Ribeiro por suas crônicas publicadas semanalmente na grande imprensa, ou pela baianidade e bom humor de alguns de seus livros, como A casa dos budas ditosos, vai levar um choque ao ler Diário do farol, seu novo romance. Numa narrativa em primeira pessoa, Ubaldo conta a história de um padre perverso que envenena os irmãos na infância, pratica as maiores atrocidades à medida que amadurece e, finalmente, encontra na ditadura militar o ambiente perfeito para colocar em prática toda a sua maldade. O texto constitui, enfim, uma profunda reflexão sobre o mal. Por tudo isso, não deixa de ser surpreendente que tenha alcançado rapidamente o topo da lista dos mais vendidos, mesmo em se tratando de um autor tão popular que já foi aplaudido até por garis numa rua do Leblon, bairro onde mora desde que trocou a ilha de Itaparica pelo Rio de Janeiro. Pós-graduado em Ciência Política nos Estados Unidos, João Ubaldo já escreveu um livro chamado Política e discutiu aspectos da identidade nacional em diversos romances, de Sargento Getúlio a Viva o povo brasileiro. Nesta entrevista, ele reafirma sua oposição ao governo de Fernando Henrique Cardoso, que, na sua opinião, traiu as esperanças dos brasileiros. Desanimado em relação às próximas eleições, diz que não sabe em quem votar: “O panorama é desolador”. A respeito de outra eleição, a que pode transformar Paulo Coelho em um de seus colegas na Academia Brasileira de Letras, Ubaldo diz não ter nada contra – embora nunca tenha lido qualquer dos livros do mago. João Ubaldo Ribeiro fala também sobre a profissionalização do escritor, sobre sua formação e influências e sobre seu convívio com Glauber Rocha. Evita, porém, antecipar novos projetos, entre os quais se inclui um livro de contos sobre o Leblon. “De vez em quando acende uma luzinha na minha cabeça, mas ainda não sei o que vou escrever”. Aceita, porém, com naturalidade, a sugestão de que a primeira parte do Diário do farol, que gira em torno da relação do padre psicopata com seu pai, contém algo de autobiográfico. “Minha mulher é psicanalista, sou obrigado a acreditar nessas coisas”. 40 Continente Multicultural

DIVULGAÇÃO: NOVA FRONTEIRA

O autor fala das influências autobiográficas de seu novo livro, da imagem e da profissionalização do escritor


FOTO: ALEX LARBAC / TYBA

Diário do farol vendeu 25 mil exemplares em duas semanas e já está no topo das listas dos mais vendidos. Esperava esse sucesso? O livro marca uma ruptura estilística e temática em sua obra, e também foge da informalidade das crônicas. De onde veio esse impulso para a mudança? Não esperava essa reação de jeito nenhum. Eu sou um escritor muito espontâneo. Nesse ponto, sou como Jorge Amado. Fico minhocando um livro não sei por quanto tempo, às vezes de modo até inconsciente. Aí a idéia aparece, converso com minha mulher, com amigos, mas quando sento para escrever não sai nada daquilo. A idéia inicial do Diário, que eu me lembre, era escrever um livro sobre um maluco, um psicopata, um sujeito inteiramente destituído de senso moral, de empatia em relação aos sentimentos alheios, um sujeito que não pode ser frustrado. Tanto que ele pára de contar a história assim que cessam os obstáculos, quando ele já fez todos os seus acertos de contas. Ele pára de escrever porque a vida perde um pouco o sentido para ele. O grande tema do Diário do farol é o mal. Não acha que, ao dotar o protagonista de um pai perverso e de transes que caracterizam uma patologia, você está de certa forma justificando ou mesmo desculpando a sua maldade? Não o está tornando, por assim dizer, “inimputável”?

Não acho. Eu estou expondo um aspecto do comportamento humano que existe. Há muito mais psicopatas por aí do que a gente pensa. Muitos não fazem nada porque não têm a idéia, o engenho e a coragem de fazer, ou porque temem ser descobertos. Mas eles existem. E, no caso do padre do Diário, a ditadura ofereceu as condições favoráveis para ele exercer o mal. Eu mostro que ele não teria condições de fazer muitas das coisas que fez se não fossem as circunstâncias do país em que ele vivia. Eu vivi no interior, onde a polícia agia, como até hoje age, até nos grandes centros, usando como técnica de investigação a porrada e a tortura de prisioneiros. O padre planejou o envenenamento dos irmãos e conseguiu atestados psiquiátricos falsos, tudo isso por falta de uma polícia bem estruturada. São coisas que acontecem no Brasil. A gente está tão acostumado com elas que nem as nota. Mas coisas assim seriam um escândalo em qualquer país. Sua relação com seu pai foi marcada pelo rigor e por castigos corporais. No plano dos sentimentos, da memória afetiva, a relação do padre com o pai não teria algo de autobiográfico? A sua relação com seu pai não serviu de matéria-pprima para a primeira parte do livro? Um pouco, provavelmente sim. Se bem que meu pai não era nenhum monstro, minha mãe está viva e não matei meus irmãos (risos). Também não me transformei num psicopata. Continente Multicultural 41


Mas, de certa forma, escrever este livro representou um “assassinato” simbólico do pai. Você acredita em psicanálise? Sim, talvez isso tenha acontecido. A minha mulher é psicanalista, então, tenho de acreditar em psicanálise. Faço análise porque minha mulher me convenceu a isso. Mas um livro nunca é fruto de um processo inteiramente consciente. Ao mesmo tempo, todo livro tem alguma coisa da gente. Em que momento e através de que leituras nasceu sua paixão pela literatura? Passei a infância em Aracaju, em casarões do meu pai que eram cheios de livros. Quando fui para a escola, com 6 anos – porque meu pai achava um absurdo ter um filho analfabeto com essa idade – eu já conhecia algumas letrinhas. Aí comecei logo a ler desenfreadamente. Meu pai tinha uma edição de Dom Quixote ilustrada por Gustave Doré. Aquilo me fascinava. Lembro que logo estava balbuciando as legendas daqueles desenhos. Fui criado num ambiente de livros e não tinha televisão. As únicas diversões eram jogar bola e ouvir um programa de rádio à noite, na Mayrink Veiga, em ondas médias. Comecei a escrever ainda pequeno. Quando Monteiro Lobato morreu, eu tinha uns 9 anos e já havia lido toda a sua obra infantil. Então, resolvi continuar a obra dele (risos). Não fazia idéia do que era direito autoral, e cheguei a encher alguns cadernos com aventuras de Narizinho, Pedrinho, Emília... Também plagiei um poema do General Osório, com muito sucesso (risos). Aí cresci, fui para a Bahia, e meu pai me pôs, sem me consultar, num jornal. Fui me enturmando com o pessoal de arte e literatura, participei de uma revista chamada Ângulos, conheci o Glauber Rocha e entrei na Faculdade de Direito, que, na época, era uma escola de humanidades, não uma fábrica de técnicos como é hoje. Quem tinha vocação para poeta cursava Direito. Filosofia era para meninas casadoiras. As carreiras eram só Engenharia, Medicina e Direito. Como lidou com a oposição paterna à atividade de escritor? Nem sempre eu enfrentava meu pai frontalmente, porque isso não era fácil. Ele morreu sem se conformar com a minha condição de escritor – e me esculhambando, dizendo que eu não sabia escrever. Isso eu já fazendo sucesso, traduzido em vários países...

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O plágio é um assunto abordado pelo narrador do seu mais recente livro. Em Viva o povo brasileiro, há referências veladas ou explícitas a clássicos como Homero. Shakespeare é citado no começo do Diário, por meio do espectro da mãe assassinada. Você acha que em literatura nada se cria, tudo se copia? Que o romance, como afirmou John Barth num ensaio já antigo, é um gênero exaurido? Não sei se é um gênero esgotado. Ouço isso desde pequeno, mas o romance sobrevive. Talvez a literatura de hoje seja mais parodística, talvez ela tenha chegado a um ponto em que só se pode fazer paródia, porque tudo já foi escrito. Mas, por outro lado, tudo já foi escrito mesmo, desde o início da humanidade. O que fazemos é só revestir os grandes temas de sempre com roupas novas. A traição, o amor, sobretudo o amor frustrado, as tragédias da vida, o destino humano, tudo isso constitui a matéria-prima última de todos os romances. Não se pode falar em plágio, mas, sim, de reciclagem. A atividade jornalística serviu para dessacralizar o seu texto? Em geral a atividade jornalística ajuda ou atrapalha o escritor? No meu caso, ajudou. Talvez tenha atrapalhado outros escritores, mas, a mim, ajudou muito, sobretudo pelo que me ensinou a respeito da importância da disciplina, dos prazos, da necessidade de ser enxuto na narrativa, se bem que meu texto não é lá muito enxuto... Tenho uma tendência meio barroca, escrevo períodos longos, uso uma construção meio abarrocada que é fruto das leituras de Antonio Vieira e Manuel Bernardes. Que avaliação faz do jornalismo literário que se pratica nos suplementos hoje?

FOTO: AGÊNCIA O GLOBO

Cena de repressão militar à época da ditadura: “Nunca militei na luta armada”, diz João Ubaldo, “sempre fui um oposicionista light”


FOTO: JOHN MATTERN / AFP

É difícil generalizar, porque eventualmente deparamos com gente boa escrevendo. Mas o nível baixou. Hoje muitos jornais e revistas não dão atenção ao trabalho literário, e talvez o mesmo aconteça com outras artes. Pegam um rapaz qualquer, de algum talento redacional, mas sem o preparo e os fundamentos necessários para esse trabalho, e pedem a ele uma resenha. Dada a iconoclastia comum aos jovens, ele vai certamente escrever para esculhambar, porque elogiar tem pouca graça. Mas eu procuro me imunizar contra isso. Só me ofendem quando atingem o lado pessoal e inferem coisas a meu respeito. Isso geralmente acontece quando escrevo romances na primeira pessoa. Estes são os que me rendem aporrinhações. Tirante a óbvia exceção de Sargento Getúlio, pois ninguém pode pensar que eu sou o Sargento, algumas pessoas afirmam: “Você diz isso no livro, você pensa assim!”, quando quem diz é o personagem. Até ocorrem ocasiões em que a opinião do personagem coincide com a minha, mas, no caso do Diário do farol, isso é bem raro. Tudo em meu livro sobre a luxúria foi atribuído a mim quando, na verdade, o personagem era inteiramente fictício. Fiz uma brincadeira no começo do romance, dizendo que uma senhora tinha deixado os originais aqui em casa, e muita gente acreditou. Até hoje encontro pessoas que acham que não fui eu que escrevi o livro (risos). Seu primeiro romance, Setembro não tem sentido, foi lançado em 1968, ano do AI-55, e a segunda parte de Diário do farol tem como pano de fundo a ditadura militar. Como você viveu aqueles anos de repressão política? Em que medida se engajou politicamente? Vila Real (79), que toca na questão da terra, nasceu da vontade de se manifestar politicamente?

Sim, Vila Real e Vencecavalo foram um exercício de crítica política, na medida em que a ditadura permitia isso. Sofri com a ditadura, mas não na pele. Nunca dormi na cadeia. Só fui chamado para averiguações algumas vezes, porque era então diretor de redação de um jornal. Chegaram a decretar minha prisão no começo do Golpe, mas à época eu estava estudando nos Estados Unidos. Em fevereiro de 64 fui à América do Norte fazer mestrado em Ciência Política. Daí a razão por que não quis voltar. Eu ouvia histórias horrorosas sobre o que estava acontecendo aqui. Depois, arquivaram meu processo. Trabalhei no CPC, fui rebelde e oposicionista, mas nunca militei no PC ou na luta armada. Sempre fui um oposicionista light. Mas é claro que tive amigos que sumiram.

Padres são personagens recorrentes na obra do escritor, que, apesar de cristão, não aceita o magistério da Igreja

“Meu pai morreu sem se conformar com a minha condição de escritor – e me esculhambando, dizendo que eu não sabia escrever. Isso eu já fazendo sucesso, traduzido em vários países...” Você é cristão, e Diário do farol mascara uma crítica à religião institucionalizada. Por outro lado, os padres são personagens recorrentes em sua obra. Qual é exatamente sua relação com a fé e com a Igreja Católica? É verdade, eu tenho mania de padre. E só noto isso a posteriori. Não é de propósito, mas quase sempre aparece um padre nos meus livros. Em Vencecavalo aparece um santo. Eu sou cristão, me considero culturalmente católico. Não sou praticante por várias razões. A principal delas é que não aceito o magistério da Igreja. Mas tenho compadres, vou à missa, ainda que raramente, e respeito o ritual. Rezo, leio os Evangelhos. Acredito em Deus. O narrador do Diário diz que não quer fazer uma denúncia contra a Igreja, porque isso seria baratear o livro. Eu também não quero fazer denúncia. Por coincidência, apareceram agora escândalos sexuais envolvendo padres, e tive até medo de ser chamado de oportunista. Mas está na cara que o livro foi escrito antes dessa onda. O fato de o romance ter saído agora não é mais que uma mera coincidência. Que peso tiveram os clássicos do regionalismo, como José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Continente Multicultural 43


“Até fiquei um pouco decepcionado com a recepção inicial ao Viva o povo brasileiro. Escrevi ao meu então editor: Eu fiz todas as minhas gracinhas, usei tudo o que eu sei, e não estou vendo resultado”. Queiroz, o “Romance de 30”, em sua formação? Sargento Getúlio, livro de 1971, foi uma espécie de tributo à literatura regionalista? É difícil dizer. Graciliano teve muito peso, Jorge Amado e José Lins, também. Rachel nem tanto, inclusive porque sua obra é menos volumosa. As minhas influências básicas são, mais visivelmente, estrangeiras: Rabelais, Shakespeare, Montaigne... Li os brasileiros todos, gosto de Machado, de José de Alencar, de certos poetas – como o Jorge de Lima de Invenção de Orfeu, que anda esquecido. Mas eu li tanto, devorei tanto livro, que não sei dizer com exatidão de onde saíram as minhas influências literárias. Elas vieram de todos os cantos, até das histórias de Tarzan, acho eu. Mas, a não ser por causa de Sargento Getúlio, acho bobagem me considerarem um autor regionalista. Viva o povo brasileiro não é um romance regionalista. Contudo, não me incomodo com os rótulos. Na verdade, nem procuro tomar conhecimento das críticas a meus livros. Só as leio quando alguém se digna de trazê-las a mim. E a outra vertente do Modernismo, a do eixo Rio-SSão Paulo, com Mário, Oswald de Andrade e o romance urbano de outros autores? Não parece muito presente em sua obra, já que em seus livros a trama parece sempre prevalecer sobre a linguagem. Você não se interessa por experimentos formais mais radicais, apesar de se declarar fã de Joyce? Os modernistas paulistas tiveram bem pouca influência sobre mim. Na verdade, eu cada vez mais releio as mesmas coisas. Autores novos elogio indistintamente, mas mal dou uma lidinha. Às vezes releio as mesmas páginas dias seguidos. Fiz isso com uns pedacinhos de Dickens. Posso aprender tanto com um trecho que tenho pena de desperdiçar essa chance. Sobre Joyce, continuo a gostar dele, mas não sou mais um joyciano como antigamente. Meu primeiro romance tem umas coisas timidamente joycianas, uns cortes narrativos etc. Hoje estou mais interessado em uma linguagem que comunique, que seja expressiva e tão precisa quanto possível. Só isso. 44 Continente Multicultural

Você imaginava que Viva o povo brasileiro faria tanto sucesso? Sente algum tipo de pressão para repetir o êxito alcançado pelo maior de seus romances? Imaginei que seria um livro importante sim, e até fiquei um pouco decepcionado com a recepção inicial a ele, que não considerei à altura do esforço que eu tinha feito. Escrevi ao meu então editor Sebastião Lacerda, em tom de brincadeira e seriedade ao mesmo tempo: “Eu fiz todas as minhas gracinhas, usei tudo o que eu sei, e não estou vendo o resultado”. Mas depois o livro teve uma repercussão enorme, que dura até hoje. Outro dia eu soube que ele é oficialmente recomendado a todos os diplomatas alemães que vêm servir no Brasil, como leitura preparatória. Não sinto nenhuma pressão, até porque sei que não vou escrever outro Viva o povo brasileiro. Eu nunca sei o destino da minha obra e, como já disse, não procuro o livro, é o livro que me procura. De repente ele começa a germinar sem que eu nem o perceba e, um belo dia, depois de muita conversa jogada fora, escrevo a dedicatória, a epígrafe, e começa tudo de novo. Você já lançou um livro virtual, Miséria e grandeza do amor de Benedita, que, até por problemas técnicos, não foi um sucesso. Você acredita no futuro do livro virtual? As pessoas vão se acostumar a ler pelo computador? O objeto livro está ameaçado? Rapaz, isso é tão difícil de dizer... As máquinas de ler estão sendo aprimoradas, já permitem fazer notas, sublinhar, armazenar dezenas de livros para levar para as férias... Talvez esses aparelhos acabem ficando parecidos com os livros de papel, talvez se tornem flexíveis, à prova d’água... É imprevisível. Você já disse mais de uma vez que escreve por dinheiro. Como avalia a profissionalização do escritor no Brasil? Está muito melhor do que quando comecei, porque hoje pagam. Antigamente, isso era uma honraria concedida a uns poucos eleitos, como Jorge Amado ou Érico Verissimo. Mas a encomenda em relação à obra de arte, na realidade, é mais a regra que a exceção. Desde os dramaturgos gregos, desde Ésquilo e Aristófanes, se escreve por encomenda. A obra dos renascentistas, a Capela Sistina, tudo isso foi encomenda, como boa parte da obra de Rembrandt e da obra musical de grandes compositores, como Bach, que escreveu os concertos de Brandenburgo para puxar o saco de um nobre.


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Mozart era pouco mais que um empregado de cozinha da Corte. O imperador mandava chamá-lo e pedia um concerto para o sábado seguinte. E lá vinha uma obra-prima. Nós é que temos no Brasil esse ranço pós-romântico de achar que o escritor convive com as musas. Pode até conviver, mas também pode trabalhar de encomenda. Se eu não tiver nenhum problema de consciência ou de incompetência em relação ao assunto, escrevo. Dickens, Balzac, Dostoiévski e Walter Scott também escreveram dessa forma. Mas você vive de direitos autorais? Vivo de escrever, não dos meus livros. O que me sustenta são principalmente as crônicas em jornal. Se não fosse o pagamento regular que recebo por elas, talvez passasse dificuldades.

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Vamos falar sobre a Academia Brasileira de Letras. Como avalia a candidatura de Paulo Coelho? Ele fará bem ou mal à Casa de Machado de Assis? Acha certo que não-eescritores, como Ivo Pitanguy, se tornem imortais? Paulo Coelho tem o direito de se candidatar, assim como qualquer brasileiro autor de livro. Não tenho nada contra ele, embora nunca tenha lido suas obras. As informações que me chegam sobre elas são geralmente negativas, mas não posso julgá-las, porque não as li. Para ser tão lido,

O direito de ser imortal: para João Ubaldo (3) a candidatura de Paulo Coelho (1) é legítima, assim como a cadeira ocupada pelo Dr. Ivo Pitanguy (2): “A prosa científica também é literatura”

FOTOS: (1) ALEX LARBAC / TYBA ; (2) MONIQUE CABRAL / TYBA ; (3) ANDRÉ ARRUDA / TYBA

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“Não sou comunista, talvez nem socialista, mas acho que FHC prejudicou o país. Nem um slogan decente ele criou: Avança, Brasil! parece uma forma de chamar cachorro. Não colou”

Você já fez duras críticas ao governo de FHC. Hoje, como avalia o presidente e a política nacional em geral, já que você é mestre em Ciência Política e lançou um livro com o título Política? 46 Continente Multicultural

Você não tem preocupação nenhuma em cultivar uma “imagem de escritor”. Veste-sse informalmente e foi muito sincero ao expor seus problemas com o álcool e a depressão. Fale sobre isso. Não me esforço para cultivar imagem nenhuma. Apenas gosto de andar de bermuda e chinelo, e não vejo razão para me conformar ao gosto alheio. Sei que aos olhos do povo não tenho cara de escritor, que não tenho uma atitude diversa da dos mortais comuns. Todo mundo me chama pelo primeiro nome, até os garçons. As pessoas me abordam na rua como “João Ubaldo”, e acho que não fariam o mesmo com outros acadêmicos. Mas acho isso bom. Em relação ao álcool, a repercussão só me incomodou um pouco quando saiu a capa da IstoÉ falando de alcoolismo e quando foi ao ar o programa do Pedro Bial. A luz apagava sem querer no final, quando eu estava falando desse assunto. Isso me incomodou um pouco porque, durante algum tempo, eu virei o único sujeito no Brasil a ter problemas de alcoolismo. E meu caso nem é tão grave! Eu me controlo, tenho uma vida produtiva, escrevo regularmente. Tenho uma vida normal e uma família equilibrada.

FOTOS: GUSTAVO MIRANDA / O GLOBO

alguma coisa ele deve ter. Não sei se é mágica o que ele faz... (risos). E não vejo como ele pode afetar a imagem da Academia, uma instituição muito sólida, que já atravessou vários períodos difíceis e ainda mantém um prestígio popular surpreendente. Depois que fui eleito é que vi como o povo acompanha a Academia com interesse. Até gari já bateu palmas para mim. Eu estava passando por uma banca de revistas, às seis da manhã, o céu ainda meio escuro, e havia por ali um caminhão de lixo parado. Um gari, um negão enorme, tirou a luva e começou a me olhar de uma forma estranha. Pensei: “Meu Deus, o que eu fiz?” Quando passei ao lado do caminhão, ele falou com os outros e todos tiraram as luvas e me aplaudiram. O negão gritou: “Imortal!” Foi uma coisa comovente. É curioso como a Academia mobiliza os brasileiros, por alguma razão. Sobre Pitanguy, tenho a dizer que na verdade o espírito da Academia Brasileira de Letras é o mesmo da Academia Francesa. Embora esta seja oficial, tendo sido criada por um edito real, e a nossa seja uma instituição privada, o modelo é o mesmo, quer dizer, o propósito de ambas é abrigar figuras eminentes de diversas áreas. Aos olhos do público parece estranho, mas a Academia reúne eminências desconhecidas que, no entanto, são donas de uma obra importante. É o caso do Ivo Pitanguy, que muita gente critica. Mas ele é um cientista de vulto, autor de trabalhos respeitados internacionalmente. Ora, a prosa científica também é uma forma de literatura, ou de letras...

Minhas críticas têm sido duras, e minha avaliação continua a mesma. Fernando Henrique é um presidente que não inspirou o Brasil. Ele dedicou a segunda parte do primeiro mandato à reeleição, traiu muitas de nossas esperanças. Não sou comunista, talvez nem socialista, mas acho que ele prejudicou o país. Nem um slogan decente ele conseguiu criar. “Avança, Brasil!” parece uma forma de chamar cachorro. Não colou. Veja, estamos num ano de Copa do Mundo. É claro que isto não é só culpa dele, mas estamos nos comportando da maneira mais broxa possível, sem mobilização, sem ninguém pintando as ruas, sem a vibração de outras Copas. Estou muito desanimado. Discuto política às vezes, em papos informais com os amigos, mas não tenho muita esperança. O panorama é desolador. Nem sei em quem votar para presidente, até agora não resolvi. Estou meio perdido.


FOTOS: ROGÉRIO REIS /TYBA ; (GLAUBER ROCHA) DIVULGAÇÃO / AE

Fale um pouco sobre seu convívio com Glauber Rocha. Minha convivência com Glauber foi muito rica. Fomos amigos desde os 15 anos até ele morrer. Foi ele que me persuadiu a não usar epígrafes. Eu estava escrevendo meu primeiro romance, que ele acompanhou lendo os originais. Fez até um prefácio para o livro. Em O vermelho e o negro cada capítulo é precedido de uma epígrafe. Eu, entusiasmado, queria fazer a mesma coisa. Glauber estava lendo, depois de gritar “Silêncio, estou lendo a obra de um gênio!” e de fazer aquela mise-en-scène toda. Disse que estava fantástico, mas sugeriu: “Tira essa frescura de epígrafes”. Desde então só uso epígrafes que eu mesmo construo. É o caso de Diário do farol. Glauber tinha um talento, uma vibração e uma energia raros. Não aparece um Glauber todo dia. Ele era uma figura excepcional, de uma eloqüência extraordinária. É até difícil descrevê-lo para quem não o conheceu. Era contraditório, terno e duro ao mesmo tempo. Um homem muito complexo. Tinha uma vitalidade e uma sensibilidade inexcedíveis.

O cineasta Glauber Rocha, amigo de infância do escritor, de quem ouviu o seguinte conselho sobre o primeiro romance: “Tira essa frescura de epígrafes”

Escrever cansa, João Ubaldo? Fica mais fácil ou mais difícil à medida que os anos passam? Cansa. E fica mais difícil com o tempo. Jorge Amado me dizia isto: “Compadre, cada vez escrevo com mais dificuldade”. Eu também. Não sei afinal o que é isso, se é velhice, cansaço, o peso da responsabilidade de carregar um nome, ou se é tudo isso junto. (LT)

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CRÍTICA O escritor norte-americano William Faulkner

A fúria poética em Carcassone William Faulkner antecipou o papel formativo do leitor na construção do objeto ficcional

“O que é que significa ?”, perguntou Jim Devine a William Faulkner, logo após terminada a leitura de Carcassonne. “Qualquer coisa que você queira que signifique”, responde Faulkner ao amigo que o visitava em Rowan Oak, sua residência na pequena Oxford, Mississipi. Afirmando o papel formativo do leitor na construção do objeto ficcional, as palavras de Faulkner antecipam o que mais tarde viria a ser conhecida, no campo da Teoria Literária, como a Estética da Recepção. A ocasião, de que nos dá testemunho o seu biógrafo Joseph Blotner, é uma das muitas em que o escritor tentava reduzir o consumo de álcool, contando com a solidariedade de Devine, advogado de suas relações. A perplexidade deste – um leitor comum – todavia, é compreensível, e vem juntar-se à nossa, ante essa peça de inusitadas obscuridade e solipsismo, qualidades que nela se apresentam num grau ainda superior ao do 50 Continente Multicultural

conjunto de sua obra. Escrito provavelmente em 1930 e publicado pela primeira vez em 1931, na coleção These 13, Carcassonne ocupa, no cânone faulkneriano, o lugar de um enigma resistente ao entendimento e aos avanços da crítica. A este conto Faulkner, que se considerava um poeta fracassado, atribui grande significação, porque nele, ou com ele, diz, o poeta ataca outra vez : Eu quero realizar algo ousado e trágico e austero, afirma o sonhador que se recolhe todas as noites para dormir sob o papel alcatroado que forra o teto do sótão da Companhia Standard Oil – quando então conversa com o próprio esqueleto – da pequena e remota Rincon, símile porto-riquenho ou panamenho de A terra devastada, de T.S.Eliot. A crítica especializada lê invariavelmente esse texto como a ‘vitória da imaginação sobre o real’. Por mais que plausível, tal leitura é, para Noel Polk, crítico

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Sueli Cavendish


e principal editor de Faulkner nos Estados Unidos, reducionista e entrincheirada. Pois ganha-se muito mais em compreensão ao levar em conta a ‘filosofia da composição’ de coletâneas que Faulkner também arriscou: “mesmo numa coleção de contos, forma, integração, são tão importantes quanto num romance – uma entidade em si mesma, contrapontisticamente integrada, avançando num mesmo pique em direção a um fim, a um finale.” E Carcassonne é justamente o último conto de These 13. Cuja primeira parte é composta de contos de guerra, que tem como cenário Clydebank, na Escócia, e Londres, mas sobretudo o norte da França. Toda a segunda parte se passa em Yoknapatawpha, condado imaginário que duplica o Mississipi. A terceira retorna à Europa: Mistral tem lugar no norte da Itália, e Divórcio em Nápoles, no sul, de onde personagens atravessam de barco o Mediterrâneo até Gibraltar, e daí o Atlântico até o Cabo Hateras. Descendo então a costa norte-americana desembocam no fluxo veloz da Corrente do Golfo, até alcançar a região de Porto Rico – ou seria o Panamá – onde se encontra Rincon. A descrição do crítico nos sugere que, ainda que ambíguo o destino último em que aporta a nau desta viagem oceânica, é certo que as histórias e seus personagens, empuxados pelas correntes submarinas, descrevem uma geografia mítica, costura mágica de diferentes latitudes, cartografia de transversais que se cruzam por sobre este lado do globo e do livro, entrelaçando temas até que desaguem, com toda a carga poética, na imagética marítima de Carcassonne, Talvez em busca do tempo que, no verso de Pablo Neruda, “debaixo do oceano nos mira.”

“Mesmo numa coleção de contos, forma e interação são tão importantes quanto num romance – uma entidade em si mesma que avança num mesmo pique em direção a um fim” Mas Carcassonne deve seu título à cidade francesa de mesmo nome, fundada pelos romanos no século V a.C., ocupada por visigodos, invadida por sarracenos e refúgio dos cátaros, cidadela inexpugnável, que no poema de Gustave Nadaud, fonte provável ipara o conto de Faulkner, é símbolo de desejo intangível e frustrado:

“Minhas preces jamais serão atendidas Eu nunca vi Carcassonne, Eu nunca vi Carcassonne!” E de fato, já em Absalão, Absalão!, Thomas Sutpen, branco de origem pobre cuja determinação e falta de escrúpulos o levam a construir um império, é figura satânica descrita por Faulkner como alguém que “cria, dentro das paredes do seu próprio ataúde, seus fabulosos incomensuráveis Camelots e Carcassonnes.” A estrutura dramática do conto, afirma Polk, se apóia no poema A parte imortal, que integra The Shropshire lad, de Alfred Edward Housman, (18591936) um dos poetas mais caros a Faulkner. Embora o diálogo entre o protagonista e o seu próprio esqueleto reproduza o dualismo corpo e alma da tradição ocidental – pense-se aqui também, acrescentemos, na

Carcassone, cidade medieval, é sinônimo de desejo inatingível e frustrado


fábula socrática dos dois cavalos que se antagonizam na disputa pela alma do cavaleiro – é no poema de Housman que os ossos, dentro do ‘sonhador’, cogitam de quando se livrarão da carne, para viver vida eterna. Uma estranha forma de transcendência, deduzimos, que ao invés de alçar-se no espaço aspira a escuridão da terra: When shall this slough of sense be cast, This dust of thoughts be laid at last, The man of flesh and soul be slain And the man of bone remain?

golpes de espada, como por exemplo na Canção de Rolando. O mesmo com relação a Jerusalém libertada, de Tasso. Mas sua pesquisa não lhe aponta quaisquer cavalos que continuem cavalgando mesmo depois de cortados em dois por um emir sarraceno. A nossa própria pesquisa nos devolve, porém, Godofredo de Bouillon como o primeiro rei de Jerusalém e protótipo do cavaleiro perfeito, que por volta do século XII já se tornara tão lendário quanto Rolando ou Artur. Com um só golpe de espada abateu um cavaleiro turco cortando-o ao meio, de tal forma que o corpo deste tombou em duas metades.

(Quando esta podridão de sentidos será [despida, Esta poeira de pensamentos finalmente varrida, O homem de carne e alma chacinado E o homem de ossos libertado?)

Faulkner se serviu de lendas da mesma forma que de tantos outros textos: roubando, saqueando, adulterando, baralhando fios, torcendo e distorcendo para escrever Carcassone

No conto ressoam também por toda parte imagens, sons e cenários de A terra desvastada (The waste land), assinala Polk: Pois Rincon é “dominada pela monolítica Standard Oil Company, símbolo de um mundo moderno estéril e mecanizado”. Os paralelos são bem evidentes, por exemplo, no Sermão do Fogo, terceira seção do poema de Eliot: Atrás de mim, porém, numa rajada fria, escuto O chocalhar dos ossos, e um riso ressequido [tangencia o rio. Um rato rasteja macio entre as ervas daninhas, Arrastando seu viscoso ventre sobre a margem Enquanto eu pesco no canal sombrio Durante um crepúsculo de inverno, rodeando [por detrás o Gasômetro ... Que apenas vez por outra os pés dos ratos embaralham. Atrás de mim, porém, de quando em quando escuto O rumor de buzinas e motores... (Tradução de Ivan Junqueira) Por fim Polk reúne as mais prováveis fontes para o pônei de pelo pardo, aparentado mais flagrantemente do Pégaso, mas também das fabulosas montarias das Mil e uma noites e dos corcéis alados da ficção de James Branch Cabell. É comum encontrar-se, na literatura das Cruzadas, cavalos cortados em dois por 52 Continente Multicultural

Além da suspeita de que toda essa evocação do autor tem algo de irônico, presume-se também que, não havendo sinal do emir sarraceno, Faulkner se tenha servido das lendas da mesma forma que de tantos outros textos: roubando, saqueando, adulterando, baralhando fios, torcendo e destorcendo, até que sua prosa flamejante se torne trança de fogo, como a crina do pônei. A impulsão do cavalo parado, avançando e ultrapassando, com rítmica e indomável fúria e sem progresso, surdo aos conselhos do esqueleto sardônico, traz à mente a imagem do cavalo alado, logomarca da Mobil Oil. Apenas simulacro, que o poeta do sótão bem pode ter divisado, de seu posto de observação, a piscar em néon em demanda do azul infinito. A aventura poética começa no olho, e o que é visto é re-imaginado. Ativado o imaginário de tal forma, seus labores se expõem, materializando-se, no ato mesmo de transfiguração, de re-mixagem dos elementos que convoca, em carne, ossos, alma e sangue. Avançando, como o pônei de pêlo pardo, sobre os limites da comunicabilidade, ao mesmo tempo ganha o espaço e se deixa ficar, nas cavernas e nas grotas do mar. Da luta com as palavras, desse percurso maníaco, de todo esse agitar-se na estase, é que o poeta faz nascer e explodir de novo em nossas faces, saída de Carcassonne, profunda de pomos e grave de flancos, a Terra, sua mãe.

Sueli Cavendish é professora Doutora do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro


CONTO

Carcassone William Faulkner Tradução: Sueli Cavendish

E eu montado no meu pônei de pêlo pardo com olhos de uma eletricidade azul e uma crina que nem trança de fogo, galopando colina acima e num átimo dentro do céu mais alto do mundo O esqueleto dele jazia inerte. Talvez estivesse pensando nisso. O que seja, depois de um tempo gemeu. Mas não disse nada. que é certamente não como você ele pensou você não é que nem você mesmo. mas não posso dizer que um pouco de paz não seja agradável Ele jazia embaixo de uma faixa estirada de papel alcatroado. Todo ele, quer dizer, salvo aquela parte que nem sofria com insetos nem com a temperatura e que galopava indomável o pônei sem destino, colina de macios e prateados cúmulos acima, onde nenhum casco ecoava nem deixava marca, rumo ao precipício azul nunca alcançado. Essa parte nem era carne nem descarne e ele tremelicava um tanto prazerosamente com sua contemplação cheia enquanto jazia sob os lençóis de papel alcatroado. Assim a mecânica do sono, do ocultar-se para a noite, era simplificada. A cada manhã a cama inteira recolhia-se num carretel e ficava ereta no canto. Era como um desses óculos, óculos de leitura que velhas damas costumavam usar, presos a um cordão que se enrola num fuso dentro de uma fina caixa

de ouro imaculado; um carretel, uma caixa, presos ao profundo coração da mãe do sono. Ele jazia inerte, saboreando isso. Sob ele Rincon seguia em seus fatais e secretos afazeres noturnos, onde na rica e inerte escuridão das ruas janelas e portas iluminadas se expunham como oleosas pinceladas de largos e sobre encharcados pincéis. Das docas a sereia de um navio se despregou. Por um momento era som, a seguir compassava o silêncio, a atmosfera, trazendo aos tímpanos um vácuo em que nada, nem mesmo o silêncio, era. Então cessou, refluiu; o silêncio respirou de novo com um choque de frondas de palma como areia sibilando sobre lâmina metálica. Ainda seu esqueleto jazia inerte. Talvez estivesse pensando nisso e ele pensou em sua cama de papel alcatroado como um par de óculos pelos quais a cada noite ele esquadrinhava o tecido dos sonhos: Pelas gêmeas transparências dos óculos o cavalo ainda galopa com seu entrançado tumulto de flamas agitadas. Para frente e para trás contra a rotundidade tesa de seu ventre suas pernas balançam, ritmicamente avançando e ultrapassando, cada chute pontuado por um ágil luzir de cascos ferrados. Ele pode ver a cilha e as solas dos pés do cavaleiro nos estribos. A cilha corta o cavalo em dois logo abaixo da cernelha, no entanto ele ainda galopa com rítmica e indomável fúria e sem progresso, e ele pensa naquele selvagem corcel normando que galopava contra o Emir sarraceno, que, de olhar tão agudo, tão delicado e robusto o pulso que brandiu a lâmina, fendeu a besta galopante de um único golpe, as muitas metades trovejando na sagrada poeira onde ele de Bouillon e também Tancredo bateram em taciturna retirada; trovejando adiante em meio à assembléia de inimigos de nosso humilde Senhor, envolto ainda na fúria e no orgulho do ataque, sem saber que estava morto. O teto do sótão inclinava-se num ângulo arruinado sob o baixo beiral. Estava escuro, e a consciência corpórea, assumindo o ofício da visão, conformou-lhe no olho da mente seu corpo inerte tornado Continente Multicultural 53


fosforescente com aquela decadência estável que se instalara em seu corpo no dia do seu nascimento. a carne está morta vivendo de si mesma subsistindo consumindo-se parcimoniosamente em sua própria renovação nunca morrerá pois Eu sou a Ressurreição e a Vida De um homem, o verme deveria ser robusto, delgado, peludo por sobre. De mulheres, de delicadas meninas tão breve quanto música ouvida em melodia, deveria ser suavemente enformado, caindo nutrindo-se nas belezas, nutrindo-se. que no entanto para Mim nada mais que ebulição de leite novo Que sou a Ressurreição e a Vida Estava escuro. A agonia da madeira era suavizada por essas latitudes; salas vazias não rangiam. Talvez a madeira fosse como qualquer outro esqueleto porém, depois de um tempo, quando os reflexos de velhas compulsões se haviam consumido. Ossos podiam jazer sob mares, nas cavernas do mar, entrechocando-se pelos ecos amortecidos das ondas. Como ossos de cavalos praguejando contra os cavaleiros inferiores que os montavam, jactando-se uns para os outros sobre o que teriam feito com um cavaleiro de primeira linha. Mas alguém sempre crucificava

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os cavaleiros de primeira ordem. E assim é melhor serse ossos entrechocando-se à oscilação gasta das marés em refluxo nas cavernas e nas grotas do mar. onde ele de Bouillon e também Tancredo O esqueleto dele gemeu de novo. Pela dupla transparência do soalho envidraçado o cavalo ainda galopava, indomável e sem progresso, seu destino o celeiro onde o sono se recolhia. Estava escuro. Luís, que tomava conta da cantina no andar de baixo, permitia que dormisse no sótão. Mas a Companhia Standard Oil, que era dona do sótão e do papel alcatroado, era também dona do escuro; era da Sra. Widdrington, a esposa da Companhia Standard Oil, a escuridão que ele estava usando para dormir. Ela faria de ti um poeta também, se tu não trabalhasses em nenhum lugar. Ela acreditava que, se uma razão para respirar não lhe fosse aceitável, então não era razão nenhuma. Para ela, se você fosse branco e não trabalhasse, ou você era um vagabundo ou era um poeta. Talvez você fosse. As Mulheres são tão sábias. Elas aprenderam a viver inconfundidas pela realidade, impermeáveis a ela. Estava escuro. e bata meus ossos uns nos outros Estava escuro, uma escuridão cheia de um mágico tamborilar de pequeninos pés. furtivo e intencional. Algumas vezes seu frio pisoteio na face dele acordava-o em meio à


noite, e ao seu movimento eles se dispersavam invisivelmente como uma abrupta desintegração de folhas mortas num vento, em sussurrantes arpejos de diminutos sons, deixando um fino porém definido eflúvio de furtividade e voracidade. Às vezes, deitado assim enquanto a luz do dia inclinava-se pardacentamente ao longo do ângulo arruinado do beiral, ele espiava suas umbrosas tremulações de obscuridade em obscuridade, umbrosas e enormes como gatos, deixando ao longo dos silêncios estagnados aquelas sussurrantes lufadas de pés de fadas. Mrs Widdrington era dona dos ratos também. Mas as pessoas ricas tem que possuir tantas coisas. Apenas ela não esperava que os ratos pagassem pelo uso de sua escuridão e silêncio escrevendo poesia. Não que eles não pudessem ter escrito, e verso razoável provavelmente. Alguma coisa de rato em Byron: alocuções de plenifurtiva voracidade; um pisotear encantado de minúsculos pés detrás de um tapete ensangüentado onde caiu onde caiu onde Eu era Rei dos Reis mas a mulher com a mulher com olhos de cachorro para chocalhar meus ossos uns nos outros “Eu gostaria de tocar algo”, ele disse, fechando os lábios na escuridão, e o cavalo galopante encheulhe de novo a mente de trovão silente. Ele podia ver a cilha e as solas dos pés estribados do cavaleiro, e pensou naquele corcel normando, mistura de muitas raças para suportar armadura de ferro nos indolentes, úmidos, e verdes vales da Inglaterra, enlouquecido de calor e sede e desesperançados horizontes cheios de tremeluzentes nadas, trovejando adiante em duas metades e sem o saber, fundido ainda no ritmo do acumulado ímpeto. Sua cabeça era coberta de modo que não pudesse jamais enxergar à frente, e do centro da couraça projetava-se um – projetava-se um – “Penacho”, disse o esqueleto dele. “Penacho.” Ele meditou por um tempo, enquanto a besta que não sabia que estava morta trovejava adiante entre as fileiras dos inimigos do Cordeiro que se abriam na sagrada poeira e deixavam-na passar. “Penacho”, ele repetiu. Vivendo, como vivia, uma vida reclusa, o que o seu esqueleto sabia do mundo era quase nada. Ainda assim tinha um modo

espantoso e exasperador de prover-lhe de migalhas de informação trivial que temporariamente lhe escapavam da mente. “Tudo o que você sabe é o que lhe digo”, ele disse. “Nem tudo,” disse o esqueleto. “Eu sei que o fim da vida é jazer inerte”. Você não aprendeu isso ainda Ou você não me fez nenhuma menção, de qualquer modo. “Oh, eu aprendi,” ele disse. “Tive que engolir isso o bastante. Não é isso. É que não creio que seja verdade.” O esqueleto gemeu. “Não acredito, digo-lhe”, ele repetiu. “Certo, certo,” disse o esqueleto irritado. “Não vou lhe contestar. Eu nunca faço isso. Apenas lhe dou conselhos.” “Alguém tem que faze-lo, creio,” ele aquiesceu amargamente. “Ao menos é o que parece.” Deitado imóvel sob o papel alcatroado, num silêncio cheio de passos de fadas. De novo seu corpo inclinou-se e declivou por corredores de opalina fornidos de vigas de raios de sol moribundos dissolvendo-se vagamente no topo, e veio a repousar finalmente na calmaria dos jardins do mar. Em torno dele as cavernas e as grotas oscilantes, e seu corpo jazendo no chão ondeado, rolando e revolvendo-se pacificamente nos vacilantes ecos das ondas. Eu quero realizar algo ousado e trágico e austero ele repetiu, formando palavras silentes no silêncio rumoroso de passos eu montado no meu pônei de pêlo pardo com olhos de uma eletricidade azul e uma crina que nem trança de fogo, galopando colina acima e num átimo dentro do céu mais alto do mundo Ainda galopando, o cavalo se lança no espaço; ainda galopando, troveja ganhando o cimo da alta montanha azul do céu, sua crina encrespada em turbilhões dourados que nem fogo. Cavaleiro e corcel trovejando adiante, tropel debilmente sumindo: uma estrela cadente na imensidão da escuridão e do silencio na qual, inabalável, esmaecida, profunda de pomos e grave de flancos, rumina a escura e trágica figura da Terra, sua mãe.

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ANTOLOGIA

Sesmeiro Virgílio Maia Para Francisco Carvalho

Sesmeiro fui das largas, longas léguas medidas pelos passos dos meus bois. Mal começado o século XVIII, cheguei à fina areia do Retiro Grande e fui seguindo pelo Jaguaribe acima, pela ribeira, do Aracati a Passagem de Pedras, depois de Russas, até o povo de São João de Varges, e com mulher e filhos me instalei. Em dias de agosto de mil e setecentos e quê por despacho do Capitão-Mor me foram dadas, com os olhos d’água todos, por acréscimo, as terras do Riacho dos Porcos, dito Amoré na língua do gentio, pa. suas criaçõins e pa. Sy e seus herdeiros accendentes e desendentes, as quais terras lhe dou e concedo, com todas as agoas campos testadas e Logradouro e mais úteis q nela houveram..., qual essas terras donos não houvessem. Então – e disso alguém já se queixara a El-Rey –, era o palmo de gato desbravar o que em infinitas braças foi pensado. Mas nas terras do Amoré meus gados acomodei,

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os vacuns e os cavalares, bem logo fazendo erguer casa-grande com curral, plantando naquelas glebas, vendo que frutificava, toda a minha geração que pela vida afora há de levar olhares e feições dos meus Açores. Tive notícia quando, à barra do Sitiá, adusta e bela, se elevaram os baldrames poderosos de uma altiva capela dedicada à Senhora da Conceição, padroeira também de Portugal. E o bronze do seu sino propagava intermináveis ecos da fé, no verão da paisagem desolada. Em vão testemunhei e bradei contra as matanças inúteis perpetradas pelo Regimento do Jaguaribe – pobre espada cevada em carne de índio. Ouvi dizer que o Latinista Maia, clerigo in menoribus, declamava A Eneida no mormaço da tardes ocres de um então nascente Tabuleiro d'Areia, quando ensinava latim aos seus alunos, enquanto, médico e boticário, fazia erguer igrejas e fazendas, pagando piedosas promessas a uma quase olvidada Nossa Senhora das Brotas, mandando vir imagem


da cidade da Bahia, posto fosse Capitão de Cavalaria.

inspiradas por espirituosas talagadas de porto e de aguardente.

Tanger, tangi boiadas incontáveis pelos caminhos que não existiam, através de caatingas que estremavam ao Ocidente com sete-estrelo ou nessas terras chãs dos tabuleiros, e épsilon de Escorpião traçava o rumo.

Foi quando um dia por aqui chegaram esmaecidos rumores de fato acontecido numa das Capitanias de Baixo, onde um moço foi despedaçado a pata de cavalo para gáudio da Corte e caluda geral dos pensamentos.

As mercadorias vindas por mar se transportavam em carros-de-bois, que gemiam e chiavam tristemente, do Aracati ao Icó. Depois, em lombo de animal, por ínvias veredas, às barrancas do São Francisco, inçadas de oxítonos topônimos tapuios, donde iam dar às catas de ouro das Minas Gerais. Ao Piauí se iam buscar bois correndo a Estrada Nova das Boiadas, atravessando os campos de Uriá, os formosos partidos de mimoso de Santo Antônio do Quixeramobim e o boqueirão do Poti, topando-se, aqui, acolá, com coloridas tropas de ciganos, de destino e furor nunca sabidos. Nas janelas do oitão, nos parapeitos dos alpendres, se riscavam, a tosco lápis de carpinteiro, marcas de gado e se escreviam, em tímidas quadras, os balbucios de umas primeiras gestas barbatãs,

Mais, havia os chocalhos de Alcáçovas, de imbatível sonoridade, as bonitas moedas bem cunhadas em prata na distante Cuiabá, que só por segura encomenda tiniam por estas bandas. Vi quando chegaram as galinhas d’angola, os porquinhos-da-índia, rebatizados de preás-do-reino, avivando o sonho fazendeiro dos meninos e alucinando o faro astuto das cadelas prenhas. Soube, por ouvir dizer, dos pavorosos crimes praticados nas disputas de estremas ou de alcovas, dentre as famílias ditas poderosas, ricas de gerações, mas espiritualmente tão estéreis. Sesmeiro fui e mais relembraria, dessas eras, que no final, de data, me tocaram tão só as versejadas verdes léguas, medidas pelo metro do depois.

Virgílio Nunes Maia nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, no ano de1954. Advogado formado pela UFC, é autor, dentre outros livros e cordéis, de Palimpsesto (1992), Estandartes das tribos de Israel (2001) e Timbre (2002). No campo etnográfico, escreveu Álbum-iniciação à heráldica das marcas de ferrar gado (1993).

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CONVERSA FRANCA

O lobo Lêdo vê o mundo de uma varanda de Botafogo O Brasil não conhece, como deveria, os versos do poeta que entrou para a Academia mas se considera um lobo trancafiado num imaginário covil

O escritor alagoano Lêdo Ivo

C

açadores de belos versos, tremei de arrependimento: quem nunca leu um poema de Lêdo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar desse crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível. O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século, diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Ao contrário do que seus versos podem fazer supor, o homem não é uma fera de garras afiadas. Ei-lo: sentado numa poltrona da sala, o lobo Lêdo vai fazer, a pedido do repórter, uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o covil do lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo, o lobo Lêdo precisa caminhar apenas cinco passos. Essa é a distância entre a sala e a extremidade da varanda do apartamento. Lá fora, a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo. A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta. Uma confidência litero-hidráulica: do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Não é para qualquer um. O poeta posa para as fotos na varanda. Parece ligeiramente incomodado pela lente da máquina. O

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sorriso aberto transmuta-se numa expressão repentinamente carrancuda um décimo de segundo antes do clique da máquina. As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações do poeta vão se sucedendo, aos borbotões: com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível, o pequenino Lêdo Ivo reconstitui, com frases precisas, momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias. Justiça se faça: aos setenta e oito anos de idade, Lêdo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de “o Brasil oficial”: a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe, por unanimidade, a cadeira número 10, no não tão distante ano de 1986. Mas o “Brasil real”, aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos, não conhece Lêdo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser. Aos caçadores de pérolas, recomenda-se a leitura da última pepita da mina do lobo Lêdo: O rumor da noite, publicado recentemente pela Nova Fronteira. O Lêdo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário, um ermitão que prefere ver a humanidade à distância.

FOTO: CAMILLA MAIA / O GLOBO

Geneton Moraes Neto


“Que me deixem passar – eis o que peço diante da porta ou diante do caminho. E que ninguém me siga na passagem. Não tenho companheiros de viagem nem quero que ninguém fique a meu lado. Para passar, exijo estar sozinho, somente de mim mesmo acompanhado. Mas caso me proíbam de passar por seu eu diferente ou indesejado mesmo assim eu passarei. Inventarei a porta e o caminho e passarei sozinho”. (A passagem) O lobo é um apóstolo confesso da beleza. Reage com compreensível enfado à faina dos que preferem criar teses sobre a poesia: “Sou um esteta porque nunca li tratados de estética”, disse, num volume autobiográfico há anos esgotado (Confissões de um poeta). Quando começa a falar do assunto que lhe consome todas as energias – a criação literária – o alagoano Lêdo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Lêdo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita. A Língua Portuguesa agradece, comovida. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciar impropriedades como “de maneiras que...”. Se alguém cometer o sacrilégio de misturar “tu” com “você” diante do lobo, certamente escapará de uma admoestação, porque o homem é afável, mas cairá vinte pontos no conceito do poeta. O Recife ocupa um extenso capítulo na memória afetiva do lobo – que deu de presente à cidade um poema escrito na juventude (“Amar mulheres, várias/Amar cidade, só uma – Recife”). Um detalhe: temeroso de despertar ciúmes bairristas em seus conterrâneos alagoanos, Lêdo Ivo jamais incluiu o poema em homenagem ao Recife em seus livros. O cântico de amor à cidade estaria inédito até hoje se não tivesse sido divulgado por amigos do poeta. Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski, o lobo Lêdo carrega, pelas décadas afora, as marcas da infância em Maceió: “Na tarde de domingo, volto ao cemitério velho [de Maceió onde os meus mortos jamais terminam de [morrer

de suas mortes tuberculosas e cancerosas que atravessam as maresias e as constelações com as suas tosses e gemidos e imprecações e escarros escuros e em silêncio os intimo a voltar a esta vida em que desde a infância eles viviam lentamente com a amargura dos dias longos colada às suas [existências monótonas. (...) Digo aos meus mortos: Levantai-vos, voltai a este dia inacabado que precisa de vós, de vossa tosse persistente e [de vossos gestos enfadados e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió. Retornai aos sonhos insípidos e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde [de domingo, entre os mausoléus que parecem suspensos pelo vento no mar azul o silêncio dos mortos me diz que eles não [voltarão. Não adianta chamá-los. No lugar em que estão, [não há retorno. Apenas nomes em lápides. Apenas nomes. E o [barulho do mar”. A nostalgia do tempo irremediavelmente sepultado nos velhos calendários marca não apenas os melhores poemas de Lêdo Ivo, mas também suas confissões autobiográficas: “Sou um sobrevivente na passagem entre o dia e a noite. Onde estão as figuras de antigamente, em que estrelas, em que túmulos se esconderam? Gari implacável, a vida varre os sonhos dos homens e, na praça vazia, vagam os fantasmas dos fracassos dissimulados e dos gordos perjúrios. Sozinho na grande cidade que engole as promessas dos homens, vejo-me passar de repente no jovem poeta desconhecido que atravessa o meu caminho. Deixo de ser eu mesmo para ser, por um instante, o jovem poeta sem nome. Que ele seja fiel à sua promessa de agora, eis o que peço. Que ele seja uma dessas criaturas para as quais nada é perdido, segundo a lição de Henry James. Mas a quem dirigir esse pedido? Os deuses inexistentes não me ouvem. À vida cega e surda? Ao mar longínquo e mudo? O jovem poeta Lêdo Ivo dilui-se na sombra da tarde. E anoitece”.

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“Graciliano Ramos era, sim, uma pessoa rústica. Considerava Machado de Assis um negro metido a inglês, e sobre Proust, dizia: Não leio veados”

Para Lêdo Ivo, a formação literária do conterrâneo Graciliano Ramos era reduzida para uma obra de tal grandiosidade

A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável, corresponde à verdade? Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo Estado. Quando menino, como primeiro da turma no grupo escolar, fui apresentado a ele, que na época era secretário de educação. Pousou a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando publicou Vidas secas, eu, “menino prodígio” em Maceió, escrevi, em 1938, um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, para fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse: “Vá visitar Heloísa”. Ela era a mulher de Graciliano Ramos, que, àquela altura, aos cinqüenta anos de idade, já figurava entre os grandes da literatura brasileira. Durante nossa conversa, ele abriu uma gaveta e disse: “Quando publiquei Vidas secas em Alagoas, só uma pessoa falou do meu livro: um menino de 14 anos...”. A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio, porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada, jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e o velho Graça puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas, como, por exemplo,

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De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical? A herança, pungente, é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com ele foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era o Graciliano Ramos com o qual convivi? Um grande escritor, mas ainda não plenamente reconhecido. Essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não os reeditava. Em conversas íntimas, Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas...” (N.: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas). O que eu via ali, em Graciliano, era

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PRIMEIRA ESTAÇÃO: o durão Graciliano Ramos chora ao se despedir da vida.

a correção lingüística que, dizem, existe em minha prosa. Graciliano Ramos era, sim, uma pessoa rústica. Em toda a literatura brasileira, ele só tinha três, quatro admirações, além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia, admirava Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos). Notei, na casa de Graciliano Ramos, um livro de poesia autografado, fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa dele, dizia-lhe: “Você deveria abrir esse livro!”. E ele: “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos). Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro. Se não me engano, era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt.


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a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal, Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos lá: Caetés, São Bernardo e Angústia. Se ele não tivesse saído de sua terra, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado, como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances? Depois é que lhe sobreveio a experiência carcerária, a única coisa que o Rio, a metrópole, deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”, vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor. Qual foi, então, a grande impressão que Graciliano Ramos me deu? A fidelidade ao ofício, algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia, não pensava em prêmios literários, não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles. O desprezo pela glória imediata foi, então, uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos? Uma característica que Graciliano Ramos possuía e que me deixa orgulhoso é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente. Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro, oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro! Um negócio impressionante, porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente, o da vida literária, marcado pela existência de suplementos literários. Mas havia, em Graciliano Ramos, um detalhe que me impressionava: o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de a formação literária dele ser, de certa maneira, muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio

Azevedo – este, um autor de quem ele gostava –, no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoiévski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust, por exemplo. Quando eu perguntava o porquê, ele dizia: “Não leio veados!” (risos).

Foi no Recife que o escritor Lêdo Ivo teve sua primeira formação literária

“O choro de Graciliano ficou como lembrança marcante, porque eu senti ali que, por mais que dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver” Quando o visitei pela última vez, no hospital, ele chorou, porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava, falava – e muito – sobre a mãe. O hospital ficava aqui ao lado, onde hoje é aquele edifício (Lêdo aponta para fora do apartamento). Aquele foi nosso último encontro, porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido. De vez em quando, falava coisas desconexas. Contava que a mãe, quando casou, levou as bonecas para casa, um negócio curioso. O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante, porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que, por mais que ele dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma. Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão, mas nunca fumou. Os homens não morrem de doenças: morrem de morte. Continente Multicultural 61


SEGUNDA ESTAÇÃO: o poeta espera há sessenta anos pelo leitor. O senhor escreveu em suas memórias: “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que freqüência, então, o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita? É um drama comum a todo e qualquer escritor esse sentimento de que estamos vivendo, sim, mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver, porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia: por que logo eu, numa família de onze, revelei a vocação e o destino para a escrita, numa família que não tinha pendores literários? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária. O escritor é, então, uma pessoa condenada não a viver, mas a escrever. Fausto Cunha, grande crítico que notou, em minha procedência literária, a influência de poetas malditos como Rimbaud, Verlaine e Baudelaire, me disse: “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos vinte anos. Se tivesse morrido moço, teria deixado Ode e elegia, As imaginações e Acontecimento do soneto. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casimiro de Abreu! Vida longa atrapalha a biografia!”. João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi: “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas, o poeta que viveu até os oitenta anos!”. Prefiro o mistério dos poetas que, como Drummond e Manuel Bandeira, tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa.

“João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia: “Você só diz isso para ver se causa inveja, mas não causa não!” Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício”? Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. 62 Continente Multicultural

Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas, organizadas subconscientemente. Pensa que “capino” o meu texto? Ele vem a mim espontaneamente. Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam! João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia: “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!” Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade, escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar? Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma palavra por dia”. Para mim, o bom escritor é o que desenterra uma palavra por dia! Porque o escritor lida com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras esquecidas. Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife? Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema. “Amar mulheres, várias. Amar cidade, só uma – Recife. E assim mesmo com as suas pontes E os seus rios que cantam E seus jardins leves como sonâmbulos E suas esquinas que desdobram os sonhos de [Nassau”. O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem um lado cosmopolita, que me impressionou muito. O meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin, nos anos quarenta. Recife foi a cidade de minha primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette, numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou desaparecido até 1947, quando chegou às mãos de Mauro Mota, que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do Commercio?). O destino de um poema é


poeta brasileiro, cujo nome não quero dizer, proclamou-se herdeiro de Drummond. Quando me encontrei com o Carlos, disse: “Como é que vai o herdeiro?” E ele: “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim: é essa a lição da poesia”. O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade. Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos: não são os assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim: ele não espera ter um clone como herdeiro (risos). O que Drummond esperava era o “anticlone”.

Para Lêdo Ivo, Carlos Drummond de Andrade foi o último dos poetas populares

QUARTA ESTAÇÃO: Manuel Bandeira ensina que o poeta precisa ser culto. O que ficou da amizade com Manuel Bandeira?

curioso. A gente o escreve, ele ganha vida própria e começa a circular. Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu. Ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano, assim como ele era um poeta pernambucano. O sentimento do berço lhe era muito caro.

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TERCEIRA ESTAÇÃO: Drummond, o grande poeta secreto, entra em cena. Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade? O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive essa sensação de intransmissibilidade. Eu levei meus primeiros poemas para Drummond, no gabinete em que ele trabalhava, no prédio do Ministério da Educação, no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros escritores para mim. Em seguida, vieram as rusgas, porque havia divisões políticas naquele tempo. A coisa mais marcante que Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo

Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece em minha poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”. Depois percebi que, para mim, a operação poética funciona como um encantamento da linguagem, uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem. Bandeira fez essa descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes. Por exemplo, a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é, portanto, um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se. Além disso, a fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor. Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no Brasil. Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o último grande exemplo. O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os ícones são Continente Multicultural 63


relação ao passado. Não gostaria de ter nascido no passado, assim como não gostaria de ter nascido no futuro. QUINTA ESTAÇÃO: João Cabral dá de presente a Lêdo um epitáfio em forma de poesia.

O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica? A função do poeta na sociedade é escrever poemas. A notoriedade é secundária. O senhor tem uma certa sensação de deslocamento por ser um poeta em uma sociedade que não dá tanto valor aos poetas? Pelo contrário! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta, surgi no momento certo. Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade. O mundo atual habita os meus poemas. A função do poeta é, também, celebrar o mundo em que vive. Não sinto nostalgia em

“Porque a poesia é um sistema milenar de expressão, a criação poética não é um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura”

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Para o senhor, que se considera “um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta”, qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que até hoje o atormenta? A perplexidade é estar no mundo com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há respostas. Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo, quer dizer, se tenho uma existência nítida, com fronteiras definidas. Talvez o meu mundo seja o da ambigüidade. Drummond chamou a minha poesia de “múltipla”. Trata-se de uma palavra que ilumina mais uma existência poética do que muitos rodapés. Quando publiquei Confissões de um poeta, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta, Hélio Pellegrino disse que minha

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Manuel Bandeira, que disse a um Lêdo Ivo ainda menino: “Há muita magia verbal em seus poemas”

diferentes, os gurus são outros. A linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o CD-rom, o cinema, o disco. Mas, há alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A poesia, então, existirá sempre, como linguagem específica, porque só ela pode dizer, sobre a condição humana, algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O cinema e a televisão servem-se de outras linguagens para falar da mesma vida.

Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, o que ficou como a grande lição? João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas. Cada poeta é diferente. As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa! O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”, o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas, o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa, mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso. Uma vez, João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer dela a maior que já existiu. De repente, lá em Nova Iguaçu, a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.


“O que mais me impressiona é João Cabral ser saudado sempre como ‘o poeta da razão’. Para mim, ele sempre foi o poeta da ‘anti-razão’, das coisas ocultas” descoberta estava exatamente nessa procura. Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda. Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude. Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte? Venho de uma família numerosa. Um meu irmão morreu muito novo, “anjinho”, como se diz. Outro irmão meu, de nome Éber, faleceu aos oito anos. Numa família nordestina, numerosa, a morte vive sempre rodeando as pessoas. Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas censuro a morte! Como sou uma criatura do aqui e agora, fico impressionado com a morte, porque ela faz com que a gente já não esteja aqui. Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e instantânea. É um relâmpago. Além de tudo, há o mistério da existência: por que será que uns morrem cedo, outros morrem tarde e outros não morrem nunca?

O senhor faz, em um de seus textos, uma referência a uma caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista. O que é que o senhor estava fazendo no cemitério? Devo ter ido me despedir de um amigo. Não fui para visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou não fazendo. João foi um grande amigo meu, mas tínhamos temperamentos diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos encontramos, nem esteticamente. Ele dizia que eu falava muito e achava que só a morte me reduziria ao silêncio. O epitáfio que João Cabral criou para mim é este: “Aqui repousa Livre de todas as palavras Lêdo Ivo, Poeta, Na paz reencontrada de antes de falar E em silêncio, o silêncio de quando as hélices param no ar”. Geneton Moraes Neto é jornalista

FOTO: FOLHA IMAGEM

João Cabral de Melo Neto escreveu um epitáfio em versos para Lêdo Ivo, inédito até agora

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LIVRO

A linguagem como forma libertária

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microtextos, como “pele/ pede/ pele” ou, ainda, “o sal/ é a alma/ do mar”. Outras vezes, altera ditos comuns (“ponha a mão na consistência”) ou, então, cria suas próprias sentenças (“muita luz cega”). Nesta entrevista exclusiva, Arnaldo Antunes define seu novo livro, sua postura a respeito da poesia e revela como a cultura de massa (no caso, o rock) ajudou-o a divulgar seus poemas. Como você classificaria o seu novo livro, Palavra desordem? É poesia, prosa ou nada disso? Definitivamente, não é um livro de prosa. Mas também não é um livro de poesia, embora esteja contaminado pela função poética. Nele você encontra frases e slogans esvaziados do seu sentido comum – muitas vezes político, publicitário – e preenchidos pela poesia. São frases pinçadas do falar cotidiano que, pelo contexto em que se acham, por estarem gravadas em livro, pelo arranjo gráfico que lhes dá suporte, pelos temas que suscitam, adquirem, numa espécie de jogo de montar, uma carga figurada. É errado pensar que se trata de um livro de paródias de provérbios. Menos de 10% dos textos se fundam em provérbios conhecidos, como “Quem tem cão caça com cão”. Na maioria dos casos eu apenas aproveito o arquétipo de um provér-

FOTOS: HELVIO ROMERO / AE

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esde o tempo em que começou a ficar conhecido como um dos melhores letristas da banda de rock Titãs, Arnaldo Antunes já se interessava por literatura. No início dos anos 80, fundou três revistas de poemas visuais e, em 83, lançou, em edição do autor, seu primeiro livro, Ou/E. Seus textos eram curtos, secos, criativos, às vezes insólitos, e revelavam uma preocupação com a concretude e a atualidade. Depois vieram Tudos (Iluminuras), em 1990; Psia (Iluminuras), em 1991; As coisas, em 1992 (livro que inclusive mereceu o prêmio Jabuti); Nome, em 1993, acompanhado de disco e vídeo; e 2 ou + corpos no mesmo espaço (Perspectiva), em 1997. Em 2000 veio à luz 40 escritos, uma reunião de artigos, releases, apresentações para discos etc. Como se vê, a produção literária de Arnaldo é bem regular na quantidade. E, de acordo com os críticos, ela também é de boa qualidade. Agora, o ex-titã lança Palavra desordem. Segundo o release da Editora Iluminuras, o livro colige “epigramas, ditados, aforismos, máximas, axiomas, provérbios, refrões e slogans” (ou melhor, “anti-slogans”, já que visam antes subverter o pensamento comum do que “vender” qualquer coisa). Em alguns momentos de Palavra desordem, o poeta se manifesta através de


bio, mas sem fazer referência a nenhum dito em especial. Em algumas partes do livro, como no título, por exemplo, que indica o contrário de “palavra de ordem”, você deixa escapar uma certa rebeldia, ou talvez um quê de idealismo. As utopias continuam vivas para você? Ou isso é uma herança juvenil do roqueiro? De alguma forma, nas minhas criações, o aspecto mais libertário é sempre o trabalho com a linguagem. E essa liberdade está tanto em quem cria o texto quanto em quem o recebe. Isso é mais do que a manifestação de uma rebeldia juvenil, que se tornou um clichê: é a expressão de um sentimento de perene curiosidade estética através de um filtro formal adequado. Alguns de seus poemas reportam-sse ao poemapiada e ao trocadilho à Oswald de Andrade, que alguns intelectuais têm como formas fáceis. Como você se posiciona diante disso? Não há muito como responder a esse tipo de crítica. Não considero o gênero textual fator decisivo para determinar o que é fácil e o que não é fácil fazer em termos de formas poéticas. Existem bons romances escritos de acordo com fórmulas já batidas, de fácil recepção. Não há nada em um poema-pílula ou poema-piada que facilite por si só a construção do sentido. Pelo contrário, acho até que esse tipo de poesia talvez seja mais difícil, pois exige mais do leitor. Devo ressaltar ainda que essa tradição de concisão e humor em poesia nasceu muito antes de Oswald de Andrade, é uma tendência milenar. Então, esse tipo de crítica não passa de uma leviandade, pois carece de mais e melhores critérios de julgamento. Você se considera um continuador da poesia enquanto invenção, defendida pelos concretistas? Acho que a poesia de todos os tempos vale pelo que inventou. Minha poesia vale pelo que nela há de contribuição pessoal. Minhas influências são mais amplas que as dos poetas concretistas, embora estes tenham merecido um lugar de muito prestígio em minha formação poética, principalmente no que diz respeito à percepção do aspecto material da linguagem. Sofri o influxo também de letras de música popular brasileira, do rock and roll etc. Foram essas as intervenções que acabaram orientando o rumo de minha poesia. É que não acredito mais em movimentos literários ou culturais, pois hoje em dia já não é mais necessário apontar um futuro, uma direção para a cultura. A diversidade cultural tornou-se a norma. Rotular alguém em função da filiação a um movimento não parece algo recomendável atualmente. Os movimen-

tos tiveram sua função, mas acho que, como alguém já disse, a Tropicália foi o último dos movimentos estéticos brasileiros, aquele que encerrou a série. Dois de seus livros de poemas estão na quarta edição. As coisas, que já chegou à sexta, ganhou o prêmio Jabuti. Textos de sua lavra foram incluídos em antologias publicadas nos Estados Unidos, Portugal, Espanha e Alemanha. Suas duas últimas obras no campo da poesia foram adotadas no Programa Nacional do Livro Didático. Considera-sse já um poeta consagrado? Sou um privilegiado, pois a poesia está muito em baixa tanto comercialmente quanto em termos de destaque na mídia. Acho que minha contribuição à música popular brasileira terminou por me abrir espaço para mostrar a minha poesia. Gostaria que isso pudesse ampliar o interesse do público pela música popular e pela poesia em geral. Afinal, muito do nosso cancioneiro transborda poesia: Lupicínio, Vinícius, Luiz Gonzaga, Cazuza. Veja que esses são nomes de gerações diferentes. Há ligações muito íntimas entre a poesia e a música, meus dois ambientes de trabalho, ligações que, às vezes, surpreendem até mesmo a mim. Percebi isso quando alguns poemas do meu livro As coisas foram musicados por Jorge Ben Jor. Você tem intenção de, algum dia, se candidatar à Academia Brasileira de Letras? (Rindo) Nenhuma. Eu comungo do mesmo espírito antiacadêmico de Oswald de Andrade, contudo, sem aquela acidez e disposição para o ataque ferino. Para mim, a Academia Brasileira de Letras tem a aparência de uma coisa antiquada, uma reunião de velhinhos. Como é escrever música/poesia para crianças? Fiz poucos trabalhos para criança. Quase todos foram por encomenda. Em nenhum caso, entretanto, obedeci a qualquer fórmula específica para o público infantil. Acredito que meus livros já seguem naturalmente as linhas do raciocínio das crianças. A minha poética é inspirada pelo modo de pensar delas, essa coisa que as leva a dizer o óbvio que ninguém vê. Mesmo na minha música, e Beija eu é um bom exemplo disso, há esse sotaque infantil. Mas, veja bem, você quis saber o que penso a respeito do reconhecimento do público: acho que o mais gratificante de tudo foi ver o As coisas sendo estudado em sala de aula, nas escolas. Adorei, porque quando eu era criança, lia quase que somente poetas mortos.

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA

Da velhice e outros ridículos Joel Silveira

1.

TODO CUIDADO É POUCO

Cuidado, velhotes! Não avancem o sinal. Um passo a mais e na hora indevida pode transformar a velhice num espetáculo ridículo e até grotesco.

2.

TEMPO PERDIDO

Só agora é que me dou conta do tempo que perdi dormindo e sonhando. Quanta insônia desperdiçada...

3.AVISO Falo sério: não me levem a sério.

4.

PEQUENA DÚVIDA

Como posso acreditar num Deus que tratou Mozart e Beethoven com tanto desprezo e tanta crueldade?

5.

EU, COISA REMOTA

Tudo – pessoas, acontecidos e lembranças – vai se tornando cada vez mais remoto, na atual quadra da minha vida. Eu próprio: pode haver coisa mais remota?

6.

OS BAJULADORES

Aceito a fé e a crença de quem as tem. Só não suporto os que bajulam a Deus.

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7.

QUASE, QUASE

Velho desejo meu: evitar o futuro. Estou quase conseguindo.

8.

PROGRESSOS

Se eu partir das premissas de que há anos e anos deixei de ler Coelho Neto ou Humberto de Campos, de que há muito considero prescindível a poesia de Bilac e de que há séculos não me empolga ou convence a oceânica oratória de Rui Barbosa, só posso concluir que tive um certo progresso na vida.

9.

CONSELHO AOS PODEROSOS

11.

QUIMERA

Não quero ser pretensioso, mas acho que eu merecia uma velhice mais tranqüila, num país que não tivesse feito do sobressalto uma rotina e do pânico um estilo de vida.

É mais decente emagrecer do que engordar no poder. Sem falar que dá menos na vista.

12.

CADÊ OS URUBUS?

10.

CRIME & CASTIGO

Quando aquele insistente e obsessivo literato me anunciou, esfuziante, que acabara de ser eleito para a Academia Niteroiense de Letras, confesso que fiz um esforço sobre-humano para não retrucar: “Bem feito! Aqui se faz, aqui se paga...”

Eis aqui um mistério, e dos mais intrigantes: com tanta sujeira, e de toda espécie, espalhada por aquelas bandas, por que é que só muito raramente se vê um urubu no céu de Brasília?

Joel Silveira é jornalista

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SABORES PERNAMBUCANOS

Mandioca, o pão da terra

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onta uma velha lenda tupi que uma índia, grávida sem ter tido relações com ninguém, deu à luz menina muito branca. Essa menina morreu ainda bem jovem e foi enterrada dentro de sua própria casa. E nasceu ali, naquele túmulo improvisado, um tubérculo a que chamaram “casa de Mani” (Mani’oka). Os portugueses não o conheciam. “O que lá se come em lugar de pão é farinha-de-pau. Esta se faz da raiz de uma planta chamada mandioca”. Assim descreveu a iguaria Pero de Magalhães Gândavo, em sua História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil. A mandioca, pelo colonizador conhecida como “pão-da-terra”, com o tempo foi ganhando outros nomes – macaxeira, aipim, aipi, maniveira, dependendo do lugar. Dela faziam os índios uma farinha. Era chamada “de pau”, para se diferenciar da “farinha-doreino”, feita de trigo e vinda do além-mar. “Na terra não há pão, supre-se este defeito com a farinha-de-pau que é o pó de uma raiz sativa, a que chamam de mandioca”, dizia Francisco da Fonseca Henriques, em Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Havia uma farinha-de-pau mole (uí-pon ou uí-puba, depois chamada farinha-puba), umedecida por infusão; e outra seca (uí-atã), bem mais apreciada. Esta última acompanhava quase todos os alimentos – peixes, carnes e até frutas. Curioso é que, com o tempo, os brasileiros continuaram a chamá-la mandioca, honrando, no nome, sua origem tupi. A farinha de mandioca virou depois sustento básico dos escravos embarcados. Dela também se serviam os portugueses nas viagens de volta à terramãe. “(...) Os navios que vêm do Brasil para estes reinos não têm outro remédio de matalotagem, para se sustentar a gente até Portugal, senão o da farinha-de-

pau”, escreveu Gabriel Soares de Sousa. A massa era feita em barracões espaçosos e arejados (as “casas-defarinha”), que os índios tinham como sagrados. Toda a tribo participava desse trabalho. E o processo de fabricação da farinha se mantém até hoje, basicamente, como sempre foi. Poucas foram as atualizações. Espinhos, dentes de animais e cascas de ostras, usados pelos índios, foram sendo substituídos pelos dentes de ferro do “cavador”, que rala a mandioca, depois de descascada e lavada, para formar a massa. Mãos indígenas, que espremiam essa massa, separando o líquido, acabaram dando lugar às prensas de cilindros. A secagem deixou gradualmente de depender das incertezas do “sol que peca”, no dizer de Fernando Pessoa, para ser feita em fornos, ao longo de quatro horas, ou até que a farinha chegasse ao ponto ideal. Tudo isso fez com que a farinha se mantivesse, no gosto, a mesma, ao longo dos séculos. A diferença ficou apenas no aspecto: a indígena tinha grumos, enquanto as de hoje, devido às modernizações em seu fabrico, acabaram homogêneas. Há inclusive uma farinha bem fininha, pelo povo conhecida como “de rico”. Mas essa novidade não tem a consistência que é marca inconfundível da farinha de mandioca tradicional. Da mandioca nasceram mingaus, pirões e papas. E também bolos, em que sua massa substituía o trigo do colonizador. Da goma depositada na primeira prensa, posta em alguidar para “serenar” por um dia, os índios faziam beiju (mbeiú, que significa “enrolado”, em tupi), origem das nossas tapiocas. Essas tapiocas foram depois sendo aperfeiçoadas pelos portugueses, que lhe acrescentaram leite de coco, canela e açúcar. Hoje são muitos os tipos de tapioca – molhada, de coco, com queijo coalho ou apenas enro-

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 70 Continente Multicultural

“Comem pão feito de raízes brancas a que chamam mandioca, tão peçonhenta, que se alguém comer crua morre subitamente”. Demiam de Góes, em Crônica do Felicíssimo Rei Dom Manuel


lada com manteiga. Da mandioca vieram também bebidas indígenas, todas hoje em franca decadência – alué, açuí, tiquira. E sobretudo cauim, a mais prestigiada delas. Sua preparação se assemelhava a um ritual. As raízes eram raladas, lavadas e depois várias vezes espremidas. Na etapa seguinte, da fermentação, a massa era mastigada, durante longo tempo, só pelas mulheres da tribo. Em seguida era fervida e posta em grandes jarras de barro. Depois, voltava a ser mastigada e posta em recipientes com água. Acrescentava-se um pouco de milho, para ajudar na fermentação, e levava-se tudo ao fogo para a segunda fervura. O resultado disso era posto em vasos que, enterrados, repousavam por vários dias. O problema é que essas bebidas tinham mais a capacidade de curar que a de embriagar. “Os índios fazem vinho dela, e é tão fresco e medicinal que a ela se atribui não haver entre eles doentes do fígado”, dizia Fernão Cardim. Mandioca é planta originária da América do Sul, como a maioria de seus parentes. Mandioquinha, uma variedade da cenoura (e não da mandioca), vem da região andina, mesmo berço das batatas. A batatadoce e o cará são da América Central. O inhame não, esse vem de mais longe, do Egito, onde é plantado há mais de 4.000 anos. A mandioca pertence à família das euforbiáceas (Manihot utilissima), grupo de plantas com 7.200 espécies espalhadas pelo mundo, das quais só a mandioca acabou sendo utilizada como alimento. Existem dois tipos básicos da raiz: uma doce e outra amarga, “braba” (segundo o povão). Esta última, que é a mais utilizada na fabricação de farinha, tem maior concentração de ácido cianídrico, veneno que provoca náuseas e sonolência, mas que pode ser neutralizado desde que a mandioca seja submetida a altas temperaturas. É o que nos lembram as palavras de Guimarães

Rosa, em Grande sertão: veredas – “Agora o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce pode de repente virar zangada – motivo não sei; ... e ora veja: a outra, a mandioca brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo de se comer sem nenhum mal”. Tudo na mandioca se aproveita. As folhas novas, depois de pisadas, espremidas e cozidas por 24 horas, são utilizadas no preparo da maniçoba – guisado de carne ou peixe, típico da região Norte. Do caule partido são feitas “manivas” que, colocadas nas covas, viram sementes para novos pés. A raiz da planta é sua parte comestível. Dela se extraem, também, álcool e derivados. Sua melhor característica é que se adapta bem a todos os climas, especialmente os quentes e úmidos. Mesmo nos mais pobres solos nordestinos a mandioca nasce e cresce. No Brasil, e particularmente no Nordeste, se diz que “comer sem farinha não é comer”. Aí está o verdadeiro mata-fome do sertanejo. Se fosse possível apontar um alimento nordestino que merecesse o título de “preferência nacional”, esse seria a mandioca. Com certeza. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora E-mail: jpaulo@truenet.com.br

BOLO DE MACAXEIRA INGREDIENTES

PREPARO

• 2kg de macaxeira crua • 4 ½ xícaras de açúcar • 2 cocos • 4 ovos • 2 colheres (de sopa) de manteiga • 2 colheres (de café) de sal

• Descasque e rale a macaxeira crua. Junte açúcar e misture bem, com colher de pau. • Acrescente 2 copos de leite de coco puro (retirado da raspa do coco, passada no liqüidificador sem água) e 1 ½ de leite de coco ralo (ao qual se acrescenta água). • Junte os ovos (bem batidos no liqüidificador), a manteiga derretida (ainda quente) e o sal. Misture bem. A massa ficará, então, com consistência rala. • Coloque em fôrma, muito bem untada com manteiga, e leve ao forno, em 150º, por cerca de 3 horas. Estará no ponto quando o palito, enfiado no bolo, sair seco. • Melhor desenformar só no dia seguinte.


ESPECIAL

O sexo que conduz a Deus

Krishna adorna o seio de Rasha, c. 1780

Acostumado a vulgarizações pornográficas do Ocidente cristão e ateu, o leitor incauto poderá se surpreender com a linguagem direta e poética dos manuais de amor orientais Mário Hélio “Deus seja louvado por haver posto o maior prazer do homem nas partes naturais da mulher, e decretado que as partes naturais do homem proporcionassem à mulher o seu maior gozo”. É com essas palavras de adoração e reverência ao mesmo tempo a Deus e ao sexo que tem início o livro O jardim perfumado, o mais importante manual erótico árabe, de autoria do xeque Omar Ibn Muhammad al-Nefzaoui. Como está implícito em seu nome, esse monarca reinava na cidade de Nefzaua, ao sul de Túnis (atual Tunísia). O seu livro, escrito no começo do século XVI, foi traduzido, em 1886, pelo aventureiro e diplomata inglês sir Richard Burton, que, nesse empreendimento, utilizou-se de uma tradução francesa, e não do original árabe. Essa versão de Burton para o clássico do erotismo árabe acaba de ser lançada no Brasil pela editora Record. 72 Continente Multicultural

O jardim perfumado não ensina apenas posições e técnicas de coito ou dá 39 nomes para o órgão sexual masculino e 43 para o feminino. Ele mostra também como os prazeres da carne e as delícias do paraíso espiritual não são incompatíveis. Na verdade, o sexo pode até nos elevar a Deus: “O beijo na boca, nas duas faces, no pescoço, bem como a sucção de lábios frescos são dádivas de Deus, destinadas a provocar ereção no momento favorável. (...) Portanto, louvemos e exaltemos aquele que criou a mulher e suas belezas, sua carne apetitosa; que lhe deu longos cabelos, um belo corpo, um busto com seios que se intumescem, e maneiras amorosas que despertam desejos”. Acostumado a circunlóquios e vulgarizações pornográficas tão característicos da atitude do Ocidente cristão e ateu em relação ao sexo, o leitor incauto poderá se surpreender com a linguagem ao mesmo tempo direta e poética dos manuais de amor orientais,


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(1) e (2) Exemplos de shunga, gravuras eróticas japonesas que retratam a vida das cortesãs dos séculos XVII ao XIX

REPRODUÇÕES: SEXUALIA ED. KÖNEMANN VERLAGSGESELLSCHAFT ; REVISTA EL PASSEANTE

(3) Detalhe de O nascimento do profeta, ilustração de Mustafa Dabir

dos quais o exemplo mais famoso é o Kama Sutra. Sobre o seu trabalho na tradução do Kama Sutra, do Ananga Ranga e de demais textos de natureza sexual, vale o que o próprio Burton disse a respeito do oficial do exército francês na Argélia que traduziu, do árabe, O jardim perfumado: “Um breve relance à obra nos convence de que o seu autor era movido pelas mais louváveis intenções, de que, longe de haver cometido algum deslize, merece gratidão pelos serviços que prestou à humanidade”. Sobre a atitude ocidental de associar Oriente a evasão e a fantasias e liberdades sexuais, escreveu, no seu clássico Orientalismo, Edward Said: “Poderíamos muito bem reconhecer que para a Europa do século XIX, com o seu crescente embourgeoisement, o sexo fora institucionalizado de modo bastante considerável. Por um lado, não existia nada parecido com sexo ‘livre’ e, pelo outro, o sexo em sociedade implicava uma trama de obrigações legais, morais e até mesmo políticas e econômicas de uma espécie detalhada e certamente embaraçosa. Do mesmo modo que as várias possessões coloniais – muito além do benefício econômico que proporcionavam às metrópoles européias – eram úteis como lugares para onde mandar filhos desobedientes, populações excedentes de criminosos, pobres e outros indesejáveis, o Oriente era um lugar onde se podia procurar por experiências sexuais impossíveis de se obter na Europa”. É no contexto, portanto, do colonialismo, como bem explica Said, que se deve entender essa busca de paraísos sexuais pelos europeus. Evasão e mercadoria são duas palavras-chave para entender não só a exploração do Oriente, mas também a do Brasil (até hoje estereotipado como o paraíso da libertinagem). Mas logo essa busca de uma sexualidade “mais libertina e menos culpada” transformou-se em um produto, independente das belas e aventureiras viagens de exploradores como Burton. Explica Said: “Com o tempo, o ‘sexo oriental’ passou a ser uma mercadoria tão comum quanto qualquer outra das que estão à disposição na cultura de massas, com o resultado de que os leitores e os escritores podiam

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obtê-la, se quisessem, sem terem necessariamente de ir para o Oriente”. A liberdade sexual, contudo, tão sadia no Oriente, pagaria o preço do desvirtuamento ao fincar raízes no Ocidente. No seu estudo sobre os shunga – gravuras eróticas do Japão – Michael Dunn explica como, ao abrir as portas aos estrangeiros, em 1868, o Japão foi contaminado pela moral vitoriana e passou a sofrer os efeitos da industrialização:

É no contexto do colonialismo que se entende a busca de paraísos sexuais pelos europeus. Evasão e mercadoria caracterizam não só a exploração do Oriente, mas também a do Brasil “Os shunga e inclusive os ukiyo-e saíram de moda e as imagens e os objetos eróticos de uma nação que venerava o falo desapareceram com o objetivo de não ofender os olhares dos escrupulosos estrangeiros da época vitoriana. Desde então, o Japão e o Ocidente seguiram caminhos opostos. Enquanto que hoje em dia se encontram fotografias pornográficas de uma grande crueza em qualquer banca de jornal da Europa e América, no Japão é proibido mostrar sequer o véu do púbis”. Se não é possível entender essa descoberta do erotismo oriental no século XIX fora do contexto do colonialismo, também se deve ter em conta que os risos e comentários jocosos que surgem imediatamente no Ocidente ao ver-se uma imagem dos shunga, como a que mostra jogos amorosos entre casais, ou mesmo uma muçulmana com o véu, mostram uma mentalidade quase incompatível com a idéia do sagrado em hamonia com a sexualidade. O véu, aliás, é tema que merece estudo aprofundado, tal o fascínio e o incômodo que desperta nos ocidentais. Talvez por força de nossa incapacidade de entender e exercer o sagrado. A atitude do Ocidente diante da morte e do corpo se reflete, naturalmente, na forma de encarar o sexo. Daí porque continua sendo incompreensível para os ocidentais a idéia de sexualidade sagrada. O véu da culpa ainda não foi tirado. Isso foi bem observado pelo escritor mexicano Octavio Paz: “O escândalo dos primeiros viajantes europeus diante das práticas tântricas é, até certo ponto, compreensível: a violência de sua censura correspondente à violência da transgressão”. Na Europa, a Espanha foi o único país a escrever um tratado erótico nos moldes de O jardim perfumado. A professora porto-riquenha Luce López-Baralt, no seu livro Um Kama Sutra espanhol, não só detalha o conteúdo desse manual do amor, como também elabora um estudo de longo 74 Continente Multicultural


alcance sobre o oposto do Kama Sutra, vale dizer, os preceitos do catolicismo contra o sexo, tão comuns no Século de Ouro: “Nunca havíamos ouvido na literatura espanhola: o sexo nos leva a Deus. É um mourisco espanhol expulso em 1609 quem, do seu exílio tunisiano, desmente dois milênios de educação sexual cristã com a sua vibrante celebração espiritual do amor humano”. O espírito da obra é bem sintetizado na frase que a autora usa como epígrafe e que, talvez, resuma todo o sentido da sexualidade sagrada, na voz do poeta hindu Sahara: “Em minhas peregrinações, visitei muitos santuários, mas nenhum mais santo que o de meu corpo”. Deste outro lado do mundo, foi o escritor Hermilo Borba Filho quem sintetizou bem isso que se entende por sexo sem culpa, no seu livro Deus no pasto: “Pensei muito para descobrir que o sexo é uma coisa limpa. Apalpei tantas vulvas que perdi a conta, tantas coxas, tantos seios, ouvi tantas palavras nos jogos preparatórios e no ato de foder, que terminei descobrindo todas as nuances do sexo. Aprendi na vida e aprendi nos livros. Manipulava mulheres e devorava livros eróticos. Por isto, tudo o que escrevo está impregnado do bom e louvado sexo”. Hermilo decerto se enquadra na rara categoria dos ocidentais para quem o sexo não é motivo de zombaria ou banalização. Talvez concordasse com isso Richard Francis Burton (1821-1890). Este foi um desvirginizador. Penetrou em 1853 sítios da África até então intocados pelos europeus, e até se atreveu a visitar Meca e Medina e a entrar em lugares sagrados, proibidos aos não-muçulmanos. Conhecer tais lugares por dentro um infiel equivale a uma sentença de morte. Foi graças ao perfeito domínio da língua árabe (ele falava mais de 25 idiomas e vários dialetos) e ao seu disfarce de peregrino que o inglês conseguiu não ser apanhado. Burton foi um homem-orquestra. Cirurgião, lingüista, botânico, militar, geólogo, etnólogo e explorador. Entrou em Oxford, em 1840, mas foi expulso de lá dois anos depois. Não foi uma personagem bem aceita no meio oficial britânico. Era considerado perigoso e excêntrico. Chegou a traduzir partes da obra de Camões, com quem se identificava, em razão do espírito poético e aventureiro do português. Como cônsul da Inglaterra, ele também viveu em Santos, entre 1865 e 1868. Conheceu e escreveu sobre o rio São Francisco, assim como sobre o barroco mineiro. A propósito deste último, provocou certa irritação no poeta Manuel Bandeira, pelas críticas que fez às esculturas de Aleijadinho. Não gostou do Brasil. Também, o que poderia fazer um país como este a um espírito refinado? Degradá-lo. Entediá-lo. Para Burton, o resultado desse enfado em terras Adão e Eva, de Jan van Eyck, 1432

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Mulheres algerianas em seu quarto, de Eugène Delacroix, 1834

brasileiras atendia pelos nomes de alcoolismo e depressão. Amava mesmo o Oriente. Por isso, recuperou a alegria ao ser transferido do Brasil para Damasco. Como antropólogo amador, o seu interesse principal talvez tenham sido mesmo os costumes sexuais de todos os povos com os quais manteve contato. A sua tradução do Kama Sutra (1883), do Ananga Ranga (1885) e das Mil e uma noites (1885-88), em 16 volumes, motivou a admiração do mundo inteiro. Nas viagens que fez e nos livros publicados, contou sempre com a colaboração fiel de sua mulher, Isabel Arundell. Esta, porém, depois que ele morreu, em Trieste (1890), decidiu queimar todos os seus originais, inclusive os manuscritos inéditos. Entre estes se encontrava a segunda tradução de O jardim perfumado, a partir do texto original em árabe. Há quatro anos, na biografia A rage to live, Mary Lovell demonstrou que a esposa aristocrática e católica praticante não queimou todos os textos de Burton, como se imaginava. Muitos dos papéis do explorador continuam guardados nos arquivos de Wiltshire, em Trowbridge. A investigação da biógrafa manteve intacto o consenso de que a destruição dos papéis teve como objetivo proteger a reputação de Burton e da própria Isabel, numa Inglaterra vitoriana. As traduções de O jardim perfumado, do Kama Sutra e do Ananga Ranga foram publicadas sob o patrocínio da Kama Shastra

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A um Ocidente acostumado a pensar num islamismo repressor, surpreende a constante preocupação com o prazer feminino


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Society, mantida por Burton e alguns amigos, como Lord Houghton e Forster Fitzgerald Arbuthnot. A edição da Record (feita por Alexandre Raposo), embora seja a melhor, não é a primeira no Brasil. Há quatro anos, saiu uma tradução de A. de Oliveira, pela pequena editora paulista Empyreus. Oliveira, na curtíssima apresentação que escreveu, chama a atenção não só para o pioneirismo do seu trabalho em língua portuguesa, mas também para o caráter machista do manual árabe. Lendo-se atentamente a obra logo se vê que não é bem assim. A um Ocidente acostumado a pensar num islamismo repressor, que submete sempre as mulheres, surpreende a constante preocupação com o prazer feminino e o modo muito bem-humorado como são tratadas as relações entre os casais. As anedotas sobre traição, por exemplo, não se distinguem muito das que costumam ser contadas no Brasil sobre os ardis femininos, mas têm muito mais sabor. Um sabor tão das Mil e uma noites quanto de clássicos ocidentais como Decameron. Mas as feministas nem de longe estarão contentes com esses manuais de amor orientais. Saiu há três meses uma versão feminista do Kama Sutra, pela Oxford Press. Não seria novidade também se houvesse a qualquer momento uma revisão do mais famoso manual de amor do Ocidente, A arte de amar, de Ovídio. Neste, que chega a ser considerado um

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manual sobre o adultério, o amor – como quase sempre acontece no Ocidente ainda – é considerado mais um jogo do que uma arte, apesar do título do livro. Há pouco requinte nos seus conceitos e os seus conselhos são bem recatados, mesmo para os padrões da época. Isso, no entanto, não impediu que, envolvendo-se em questões até hoje não totalmente esclarecidas sobre ter incentivado o adultério da filha de Augusto, Júlia, Ovídio caísse em desgraça e fosse exilado pelo poderoso romano na ilha de Tomis. O autor de O jardim perfumado diz que para escrever seu manual baseou-se numa antiga obra intitulada A tocha do universo, destinada aos mistérios da procriação. Nem de longe ele poderia supor que, com o avanço da Medicina e da Genética, esses tais mistérios seriam completamente revistos alguns séculos depois, como está bem claro no livro O sexo no futuro, do zoólogo Robin Baker. O livro do xeque é mais do que considerações sobre a reprodução. Ele se ocupa, na verdade, do processo tradicional em que ela se dá. A obra é uma miscelânea de ingênuas opiniões, receitas afrodisíacas, fábulas amorosas, observações médicas ultrapassadas e superstições e equívocos sobre sexo. Mas o que não é superstição e equívoco sobre sexo nesta ainda tão primitiva e tola humanidade?

(1) Um europeu faz amor com uma menina enquanto ela brinca com seu gato (2) Mulher dançando em gravura do século XVII

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Do que as mulheres gostam Trecho do manual hindu Ananga Ranga, que, de tão metódico, enumera 18 tipos de mulheres e recomenda o que fazer para satisfazê-las Duas mulheres ajudam uma terceira a realizar a posição Utkalita, como descrita no manual hindu Ananga Ranga

Após dividir as mulheres em muitas classes diferentes, caberá considerá-las em relação ao lugar onde vivem. Os comentários serão restritos a Arya-vartta, a Terra dos Homens, delimitada pelo Himalaya (casa de neve) e pelas Montanhas Vindhya, por KuruKshetra e Allahabad. Primeiro, sobre a mulher de Madhya-desha, a terra entre o Konkan e a propriedade Desha, cujas principais cidades são Puna, Nasik e Kolhapur. A mulher da Região Média tem unhas vermelhas, mas seu corpo é ainda mais vermelho. Ela veste bem vários tipos de traje. É excelente dona de casa, perfeitamente talhada para o trabalho manual e outros serviços, e muito dada a cerimônias religiosas. Embora maravilhosamente afeita ao flerte, no qual é habilidosa, é avessa a truques com dentes e unhas (mordidas e arranhões). A mulher Maru (Malwa) gosta de ser apreciada todo dia, e é bem adequada àqueles que preferem o ato do intercurso quando muito retardado. Ela só fica satisfeita com abraços longos, os quais muito cobiça

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e deseja, e o paroxismo deve às vezes ser induzido pelo toque dos dedos. A mulher de Mathra, terra de Krishna, também chamada de Abhira-deshra, a Terra dos rebanhos de vacas, é fascinada pelas várias formas de beijo. Ela se delicia em abraços íntimos; mas não faz truques com dentes e unhas. A mulher de Lata-desha (Lar dos Clássicos), a parte norte de Dakhan, é delicada e bela. Ela dançará com alegria à iminência do intercurso, e durante o ato, seus movimentos de prazer são freqüentes e violentos. Ela abraça prontamente, e o orgasmo venéreo pode ser induzido rapidamente por gentil inserção, por um tapa e por mordidas suaves nos lábios. A mulher de Andhra-desh (Telangana) é tão fascinante que encanta o estranho à primeira vista, e tem a voz doce e o corpo bonito. Ela adora gracejos e flertes, ainda que estranha à vergonha, e é uma das mais fogosas do seu sexo. Fonte: O Ananga Ranga, traduzido pelo Sr. Richard F. Burton, 1885. http://www.sacred-texts.com/sex/ar/index.htm


Sexo animal E o que conduz ao sexo? Amor? Conveniência? No seu livro Sexo no futuro, o biólogo Robin Baker dá uma resposta apenas: seleção natural Alexandre Bandeira Ele é biólogo, foi professor de Zoologia na Escola de Ciências Biológicas da Universidade de Manchester, e não vê muita diferença entre vocês, leitor e leitora, e um casal de macacos. Para o Dr. Robin Baker, autor de livros como Guerra de esperma e do mais recente Sexo no futuro, a seleção natural é a única força por trás do comportamento humano, em qualquer situação. Inclusive, no sexo. Isso significa que fatores culturais e psicológicos, como atração física, amor, matrimônios e infidelidades, são todos regidos pela mesma competição genética que fez do macaco um homem. Um macho procura inseminar o maior número de fêmeas, a fêmea procura mais de um macho para que o melhor a insemine. Em Sexo no futuro, o Dr. Baker retoma a tese já apresentada em Guerra de esperma e introduz a problemática das modernas tecnologias reprodutivas, como a fertilização in vitro e a clonagem. Se a seleção natural modelou o comportamento sexual do homem por milênios, o que acontecerá quando a ciência dissociar completamente o sexo da reprodução? Como biólogo, você escreve sobre o comportamento humano de uma maneira que chega a chocar (a maioria dos leitores). Em seus escritos são comuns as comparações e analogias entre homens e animais. Por exemplo, quando disserta sobre as causas da ascensão (e subseqüente queda) da família nuclear, inclui entre elas a combinação de um homem com medo de criar o filho de outro homem e uma mulher com medo de ficar desamparada com uma criança. Da mesma forma, o ciúme é explicado em termos puramente irracionais. Então, quanto de animal há no homem, exatamente? Para mim, e para a maioria dos biólogos e psicólogos evolucionistas, o homem é 100% animal. É difícil imaginar como poderia ser diferente. Como tentei mostrar nos meus livros, o comportamento humano pode ser explicado em termos puramente animais.

O que suscita questões sobre cultura e seleção natural. Uma pode ser explicada pela outra? Que papel a seleção natural representa, hoje, nas nossas vidas? Eu não vejo problema nenhum em explicar a cultura pela seleção natural. As pessoas se comportam diferentemente em diversas partes do mundo, em grande parte porque seus ambientes (e ecologias) são distintos (por exemplo, floresta tropical, deserto e cidade). O modo de agir dos seres humanos coadunase com o entorno em que eles vivem. Comportamento evoluído é aquele que se incorpora à cultura. Mesmo hoje, cada geração é constituída de genes que sobreviveram e se reproduziram melhor nas gerações pregressas. A seleção natural, então, jamais poderá nos deixar realmente, não importa o que façamos. E quanto a todas as outras formas de sexo que não se prestam à reprodução, como se encaixam na sua teoria? O que acontecerá com elas – e com o sexo de um modo geral – no século XXI? Como tentei explicar no meu livro anterior, Guerra de esperma, o homem não é o único animal que faz sexo várias vezes para cada bebê concebido. Isso

Detalhe de vaso grego representando cena de coito

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(1) Briga por uma mulher, de Franz von Stuck, 1905 (2) Dois bonobos copulam enquanto um bonobo macho assiste enciumado

não significa, entretanto, que os atos sexuais que não conduzem à concepção não estejam, de alguma forma, envolvidos na reprodução. Exemplificando, os homens evoluíram para querer o sexo com suas parceiras a cada três dias, mais ou menos, a fim de manter sempre uma certa quantidade do seu próprio esperma dentro delas. Dessa forma, esperam prevenir-se contra o risco de que elas concebam o filho de outro homem. A reprodução é uma empreitada para a vida toda, não dura apenas os poucos minutos que levam à concepção. Psicologicamente, portanto, homens e mulheres evoluíram ao ponto de quase admitir que o sexo não é somente o caminho para a concepção, mas também uma forma de recreação. Por isso a contracepção foi tão prontamente adotada por tantas pessoas. Aí também está a razão por que, no século XXI, o sexo que dificilmente leva à reprodução continuará como sempre foi. A reprodução mudará muito nos próximos cem anos; o sexo, quase nada (exceto, talvez, para se tornar mais permissivo). A monogamia se tornará a exceção em vez de a regra? Em muitos países industriais, a monogamia de vida inteira já foi preterida em favor da monogamia seqüencial (por exemplo, 2 ou 3 parceiros fixos, durante uma vida, via separações ou divórcios). Tomando a infidelidade como fenômeno contínuo e levando em consideração o dramático crescimento do número de famílias em que apenas um dos pais está presente, estou certo de que logo, logo a monogamia vitalícia se tornará a exceção ao invés de a regra.

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A noção de incesto tem importância fundamental para as organizações sociais humanas? Como essa noção pode ser afetada pelas tecnologias modernas? Que mudanças isso traria para nossas futuras sociedades? O tabu contra o incesto é inato e se apresenta em vários animais além do homem. O maior perigo da prática incestuosa, entretanto, é a forma como ela aumenta o índice de doenças genéticas nas crianças geradas. No passado, as pessoas conheciam bem os seus parentes e não podiam fazer nada para evitar as doenças genéticas. Daí as restrições legais, bem como emocionais, ao incesto. No futuro, com o comércio mundial de óvulos e esperma para reprodução por IVF, será mais difícil saber quem é parente de quem. Além disso, a tecnologia será capaz de detectar e, quem sabe, eliminar doenças genéticas ainda nos embriões, sejam eles fruto de incesto ou não. Acho inevitável que as leis sobre o incesto tenham de mudar, eventualmente. Mas a mudança na instância emocional das pessoas não será nada fácil, porque aí está em jogo uma parte da constituição genética de cada um. Que espécie de críticas espera receber a respeito de seu livro Sexo no futuro? Acredito que os tradicionalistas criticarão o livro porque nele não me oponho às mudanças nos valores e nos comportamentos humanos. Penso por outro lado que os espíritos mais abertos ao novo perceberão com facilidade o otimismo que permeia a obra.


O futuro é bissexual Se a seleção natural modelou o comportamento humano para a reprodução, por que existe a homossexualidade? Sexo no futuro responde à pergunta e traz uma provocante previsão acerca da sexualidade humana À primeira vista, a homossexualidade poderia parecer um fenômeno estranho para ter sido modelado pela seleção natural. Somente parece estranho, contudo, se presumirmos que sentir-se sexualmente atraído pelo mesmo sexo evita que alguém se reproduza. A evidência é de que, entretanto, esses homossexuais se reproduzem – e que freqüentemente eles se reproduzem com muito sucesso. (...) A homossexualidade exclusiva é, por definição, não-reprodutiva – mas menos de 1% dos homens é exclusivamente homossexual. Em contraste, a bissexualidade é reprodutiva e é decididamente o contexto mais comum para o comportamento homossexual. Aproximadamente 5% dos homens nos países industrializados são bissexuais. (...) Aproximadamente, um quarto dos homens homossexuais tem mais de dez parceiros homens em toda a sua vida. Para alguns, o número pode ser de centenas. O que é mais importante, contudo, é que quanto mais parceiros homens um bissexual tem em sua vida, mais parceiras ele provavelmente terá. Em média, um homem bissexual inseminará mais mulheres do que um heterossexual. Como resultado, um homem bissexual tem uma probabilidade maior de ter filhos com diferentes mães do que seus coetâneos heterossexuais. Parece que a interação adolescente com outros homens confere aos bissexuais uma experiência mais precoce e maior em relacionamentos sexuais e seu comportamento traz uma vantagem para seus relacionamentos sexuais com mulheres. (...) Então por que, se os bissexuais se reproduzem com tanto sucesso quanto os heterossexuais, somente

6% dos homens e 3% das mulheres são homossexuais nas sociedades industrializadas modernas? A resposta é que, embora a homossexualidade traga certas vantagens, há também perigos associados. Em muitos ambientes é um comportamento de altos ganhos e de altos riscos. Um risco é o perigo de ser ferido ou morto por outros membros da sociedade – homófobos com um medo tal da homossexualidade que o metamorfoseiam em agressão e vitimização. Outro – e provavelmente é um risco geral maior – é o perigo de contrair doenças sexualmente transmissíveis. (...) Quando há custos e benefícios para as duas formas de comportamento, como a homossexualidade e a heterossexualidade, o resultado evolutivo é com freqüência o de a seleção natural considerar uma proporção entre as duas formas e equilibre custos e benefícios. Já vimos que as homossexuais e heterossexuais têm um índice reprodutivo igual. (...) Com a seleção natural mantendo a homossexualidade masculina em um nível inferior a 6% da população, o índice médio de reprodução de homens homossexuais e heterossexuais deve ser aproximadamente o mesmo. Imagine, então, o que poderia acontecer se os riscos associados com o comportamento homossexual fossem eliminados. A seleção natural não restringiria mais o gene para a homossexualidade e seus benefícios reprodutivos levariam-no a se elevar muito em toda a população. Todo mundo seria bissexual.

O beijo, de Joseph Granie, 1900

BAKER, Robin. Sexo no futuro. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 2002. 400 p. Preço: R$ 40,00 Continente Multicultural 81


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HISTÓRIA

Mata Norte e Mata Sul O surto algodoeiro rompeu trezentos anos de hegemonia açucareira e aprofundou diferenças seculares entre as duas Zonas da Mata de Pernambuco Evaldo Cabral de Mello

Q

uando a ‘conspiração dos Suassunas’ abriu o ciclo revolucionário pernambucano, a zona da mata continuava a concentrar a vida da capitania, como vinha fazendo há mais de dois séculos, malgrado só corresponder a 16% da superfície atual do Estado. Em 1782, a população da área equivalia, incluído o Recife-Olinda, a cerca de 90% da população pernambucana, percentagem que diminuiu para 66% em 1826, altura em que a do Recife-Olinda correspondia a algo entre 22% e 25% do total da mata. As modificações sentidas já a partir do período pombalino haviam agravado a disparidade, inscrita na geografia e na economia desde os primórdios da capitania, entre a mata norte e a mata sul, separadas grosso modo pelo paralelo do Recife. Do ponto de vista geológico, ao passo que a mata norte compreende, junto à faixa litorânea, uma subzona de tabuleiros sedimentares e, a oeste, outra subzona de estrutura cristalina, esta última domina a superfície da mata sul. Do ponto de vista morfoclimático, embora ambas as regiões conheçam a diminuição dos totais pluviométricos no senCana-de-açúcar, tido leste-oeste, esta se faz sentir mais fortemente na aquarela de Debret mata norte do que na mata sul. Na mata norte, en-

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quanto esses totais, na área de Goiana, chegam a 1.981 mm, no interior, em Timbaúba ou Carpina, eles caem para 932 mm e 920 mm. Na mata sul, o declínio é menos pronunciado, podendo ir dos 2.210 mm de Barreiros, no litoral, aos 1.549 mm de Canhotinho. Os geógrafos tendem por conseguinte a privilegiar o fator climático como critério de distinção, referindo-se à mata norte e à mata sul como mata seca e mata úmida, respectivamente, embora a utilização simultânea do parâmetro estrutural introduza na mata norte a diferença entre a subzona dos tabuleiros sedimentares, a leste, e a subzona do cristalino, a oeste. O essencial, porém, é que tanto na mata norte como na mata sul a monocultura da cana teve de adaptar-se a diversas condições físicas. Enquanto na mata norte os canaviais ficaram circunscritos às várzeas quaternárias recortadas pelos tabuleiros, às várzeas fluviais e às encostas suaves, longe das chãs e dos tabuleiros interflúvios, na mata sul eles puderam caminhar desimpedidamente por várzeas e encostas, poupando apenas, para fornecimento de lenha às fornalhas, os cimos das colinas, onde se refugiam os restos da mata atlântica.


FOTOS: REPRODUÇÃO

Em toda a mata açucareira já ocorriam os signos precursores da transição do trabalho escravo para o livre, sob a forma dos ‘condiceiros’, homens livres a quem o senhor de engenho concedia terreno onde edificar mucambo e plantar lavoura de subsistência, em troca da obrigação de certo número de dias de trabalho. Como acentuou J. H. Galloway, “no fim do século XVIII, a escravidão era ainda sem dúvida o regime de trabalho característico dos engenhos, mas o trabalho assalariado e os ‘moradores de condição’ já estavam instalados no cenário”. Uma das mais importantes transformações verificadas a partir da segunda metade dos Setecentos disse respeito à mata sul. O preço do açúcar no período 1796-1822 atravessou, em decorrência da desorganização do mercado internacional, fases alternadas de crescimento, queda e recuperação, com picos em 1799, 1804-1805 e 1814-1816. Durante a maior parte do século XVIII, mesmo nos domínios melhor dotados, filés

das primitivas sesmarias, a cana limitara-se às várzeas, relegando as encostas à lavoura de subsistência, aos pastos e às matas. Mas, a partir da década de 1770, os engenhos começam a ampliar a utilização das terras que já possuíam, adentrando, por outro lado, o bolsão interior da mata úmida, área de floresta atlântica, outrora de quilombos e agora de aldeias indígenas, disputada também pelos pequenos cultivadores e pela Coroa, interessada na exploração da madeira para a construção naval. Entre os anos de 1770 e 1818, o incremento do número de fábricas na região foi de 66%. Uma outra mutação, de repercussões mais profundas, afetara a mata norte, o agreste e subsidiariamente o sertão: o surto algodoeiro iniciado ao redor de 1780, em decorrência da Revolução Industrial inglesa e da Guerra de Independência dos Estados Unidos. Só no quadriênio 1796-1799, o preço da arroba do produto passou de 8$060 a 13$600, chegando a 12$320 em 1816, para cair gradualmente em seguida. Nas

Os dois touros, Paris, 1723. Tapeçaria de Manufacture de Gobelins

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palavras do autor anônimo das Revoluções do Brasil, “continuavam os rotineiros pernambucanos sem já mais se lembrarem de que fosse possível serem mais sábios nem mais ricos do que os seus décimos avós, senão quando uma nova planta [...] veio acordá-los da sua longa letargia [canavieira], [o algodão], à cultura da qual se entregaram avidamente [...] logo que as primeiras experiências lhes mostraram o pouco trabalho, as módicas despesas e extraordinários lucros que deste ramo podiam e deviam esperar. Abandonaramse, portanto, os engenhos e correu-se para o algodão e nele fizeram tais progressos que causam espanto”. Segundo o governador D. Tomás José de Melo, “os agricultores nem cobrindo toda a terra de pés de algodão satisfarão seus desejos”. E os escravos também se entregavam nos seus lotes ao produto, de modo a reunirem o pecúlio com que comprar a alforria e a farinha de mandioca que costumavam fabricar anteriormente. O Recife foi o grande beneficiário do surto algodoeiro, em especial após a abertura dos portos, que provocou aquele aluvião de navios estrangeiros que, consoante o autor da Idéia geral, atulhava o cais da cidade, acarretando para a agricultura e o comércio regionais uma prosperidade inédita. A abolição do monopólio colonial não transmitiu contudo os mesmos efeitos para o açúcar, que continuaria até os anos quarenta excluído do mercado inglês. Enquanto o Rio de Janeiro era deficitário nas suas relações comerciais com a metrópole, Recife, São Luís e, em menor escala, Salvador dispunham de saldos que davam ensejo, antes de 1808, a remessas monetárias do Reino para o Nordeste que podiam chegar, no caso de Pernambuco, a 2 milhões de cruzados anuais, motivo de preocupações para as autoridades fazendárias portuguesas. Num ano excepcionalmente favorável, como foi o de 1816, o saldo comercial da praça podia atingir, segun-

do os cálculos do autor da Idéia geral, a soma de 2.700.000 cruzados, já descontados inclusive os gastos com a importação de africanos e a compra de carne seca do Rio Grande do Sul, que constituíam, depois dos gêneros trazidos do Reino, as principais rubricas do intercâmbio comercial brasileiro. À vista de um tal montante, o mesmo autor indignava-se com o fato de que “os bastardos e detestáveis pedreiros pernambucanos” ainda se deixassem “alucinar com promessas de amelhorações republicanas”, concebendo “a esperança de desencaminhar um povo agrícola, forte, opulento, satisfeito com as suas presentes vantagens, unicamente suspirando por novos braços africanos com que pudesse aumentar a sua opulência”. Luís do Rego Barreto, que acusava os comerciantes ingleses da praça de divulgadores de notícias subversivas, como as que davam conta das revoluções de Cádiz e do Porto (1820), “novas que se derramam como matéria elétrica”, compreendeu a necessidade de romper a identificação entre o setor algodoeiro e o comércio estrangeiro, mesmo à custa dos têxteis reinóis, mediante a instalação de manufatura destinada à confecção de sacos e panos ordinários, a qual acumulasse os capitais necessários para competir posteriormente na feitura de tecidos finos. O algodão integrou ao comércio internacional os pequenos cultivadores de mandioca e fumo. Modestamente presentes ao tempo da guerra holandesa, mais atuantes quando da guerra dos mascates, em que serviram como massa de manobra do partido da nobreza, eles haviam adquirido certa expressão no século XVIII. O núcleo algodoeiro inicial situara-se ao longo da bacia do médio Capibaribe, em torno de Santo Antão, São Lourenço, Nossa Senhora da Luz, Tracunhaém e Limoeiro, sob o estímulo da Companhia de Comércio de Pernambuco e da Paraíba, criada por Pombal. Uma parte da matéria-prima per-

Na página anterior: Præfecturæ Paranambucæ pars Meridionalis. Gravura em cobre de livro de Gaspar Barléu

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manecia nos distritos produtores, onde era utilizada pela manufatura artesanal e doméstica; do resto da produção se aprovisionavam comboios do sertão e até de Minas Gerais. Quando a guerra da Independência americana sobreveio, o algodão atraiu de começo os lavradores de subsistência da mata norte, que sobreviviam até então nos flancos da economia canavieira. Da ribeira do Capibaribe e da mata norte, o cultivo se expandiu na direção do ‘mimoso’, como era chamado o agreste da capitania, e também pela Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, conferindo especial importância a essas áreas no conjunto do entreposto recifense. Detalhe revelador: em 1816, o governador informava que “o maior cultivador de algodão de Pernambuco” era um capitão-mor do sertão que, senhor de quinhentos escravos, usufruía de um dos patrimônios mais opulentos da capitania.

O Recife foi o grande beneficiário do surto algodoeiro, que provocou aquele aluvião de navios estrangeiros, levando a agricultura e o comércio regionais a uma prosperidade inédita A adesão da pequena lavoura ao novo produto causou prolongada crise de víveres, em detrimento do sistema açucareiro e do aprovisionamento de cidades e vilas, o que era preocupante para a administração colonial, quer em termos de diminuição dos rendimentos fiscais, quer em razão do descontentamento social das camadas urbanas subalternas. Desde 1786, a Coroa tratou de reprimir os pequenos algodoais, restringindo o cultivo aos proprietários de seis ou mais escravos e confiando a execução dessa medida aos capitães-mores que, para tanto, passaram a dispor de tropa de primeira linha. Assim, os senhores de engenho tomaram para si o controle das atividades dos cultivadores livres dos distritos açucareiros da mata seca e da Paraíba. Outro instrumento de coação foi o recrutamento, que incidia duramente sobre as áreas de pequeno cultivo, operando também em favor da grande lavoura, de vez que, para escapar ao serviço militar, uma massa de trabalhadores livres transformou-se em agregados, deflagrando aquele “intenso 88 Continente Multicultural

processo de expulsão e expropriação do campesinato regional” descrito por Guillermo Palacios. Escusado acentuar que a administração local podia muito pouco contra as repercussões da crescente demanda internacional por algodão, sobretudo quando a seca de 1790-1793 despejou grande cópia de sertanejos na zona da mata, ao mesmo tempo que a dizimação dos rebanhos abria à expansão algodoeira o semi-árido do Nordeste, mais favorável à cultura do produto. A partir daí, os senhores de engenho da mata norte converteram-se ao algodão, usando assalariados e mão-de-obra escrava. (Esta última respondia por 30% do volume cultivado.) Foram aproveitados os terrenos que não se prestavam ou se prestavam mal ao cultivo da cana, como os tabuleiros e as encostas, embora as várzeas, com sua umidade, continuassem chasse gardée da cana. Koster, que só conheceu a mata seca, reparou em muitos engenhos que cultivavam algodão de boa qualidade a apenas uma ou duas léguas do mar. Mas foram os proprietários rurais do interior cristalino os que mais se sentiram tentados a se converter ao novo produto. Santa Cruz, a oeste de Paulista, era a linha divisória entre os canaviais e as plantações de algodão. A partir dela começava o que o mesmo Koster chamou de cotton country. Dá testemunho disso a localização das máquinas de descaroçar. Originalmente situadas em torno do Recife, transferiramse para Goiana, mas, no segundo decênio dos Oitocentos, já se situavam em Limoeiro e Bom Jardim. Do algodão não podiam tirar partido os senhores da mata sul, cuja ecologia lhes era desfavorável. Não podiam eles, por conseguinte, beneficiar-se da conjuntura mais propícia do mercado mundial do produto, enquanto seus pares da mata norte davam-se ao luxo de jogar nos dois tabuleiros. O surto algodoeiro rompeu trezentos anos de hegemonia açucareira, dotando a economia regional de um setor dinâmico que, diferentemente do empreendimento canavieiro, ainda atado ao entreposto do Reino, respondia ao estímulo da indústria têxtil britânica e, depois, francesa. No tocante ao açúcar, Lisboa manteve até por volta de 1820 seu papel de reexportador para o mercado europeu, em especial para Hamburgo, na Alemanha, Gênova e outros portos italianos, que atuavam como redistribuidores. A Grã-Bretanha, que havia absorvido, de 1796 a 1801, nada menos que


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2/3 das reexportações portuguesas de algodão, passou a comprar o produto diretamente nos portos brasileiros a partir de 1808. Em 1823, 66% das exportações do Nordeste que se escoavam através do porto do Recife seguiam para a Inglaterra, a França e outros países europeus, enquanto Portugal recebia apenas 10% delas. Um terço do que o Nordeste importava procedia da Inglaterra, mais de um quarto correspondia ao tráfico negreiro e outro um quarto era composto de produtos vindos de Portugal. Para Koster, do ponto de vista do comércio com o Reino Unido, Pernambuco era a mais importante região brasileira. A propósito, o ministro britânico no Rio assinalava que, sendo geral no Brasil o ódio aos ingleses, a exceção ficava por conta dos portos do norte, que tiravam vantagem do comércio com a Grã-Bretanha, o que equivale a dizer, lucravam com a venda de algodão, cuja lavoura foi a que mais se beneficiou do fim do monopólio colonial. Destarte, o algodão subverteu o equilíbrio intra-regional tanto no interior da zona da mata quanto no âmbito do entreposto recifense, em face da importância adquirida pelas exportações do produto, procedente das antigas capitanias anexas. O valor das exportações de algodão do Nordeste através do porto do Recife sobrepujou o das exportações do produto tradicional, passando de 37% do total (1796) para

48% (1806) e 83% (1816), enquanto o valor das exportações de açúcar declinava de 54% (1796) para 45% (1806) e 15% (1816). A bandeira da Confederação do Equador timbrará, aliás, em consagrar a nova dualidade da economia regional, ornamentando-se com ramos de cana e de algodão. Tal dualidade afetaria necessariamente os interesses da grande lavoura de exportação, levando os grandes proprietários da mata norte e mata sul a encarar diferentemente o processo emancipador. Aqueles tinham maiores razões para temer o retorno do Brasil ao monopólio colonial, ameaça que só se dissiparia a partir de 1822. Mas o algodão veio também aprofundar diferenças seculares entre a mata norte e a mata sul, no tocante à população livre. No século XVIII, a mata seca já havia adquirido sua fisionomia própria, que a distinguia da mata úmida pela diversificação econômica. Na Taquara, vivia-se de comercializar os produtos da pesca; de Tejucopapo, sacavam-se farinha e fumo, como também a carne, as frutas e os cocos; o sal de Itamaracá servia para salgar a carne e para tratar os couros do sertão (na ilha, utilizava-se ademais o coco na manufatura de cordagem). Deste e de outros pontos do litoral norte, comercializava-se ativamente com o Recife a lenha de mangue, cujo tanino constituía matéria-prima dos curtumes da praça. Entre Itapissuma e Olinda, topava-se com salinas, currais de

Olinda, gravura em cobre pintada à mão, de Frans Post

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Do ponto de vista do comércio com o Reino Unido, Pernambuco era a mais importante região brasileira. Sendo geral no Brasil o ódio aos ingleses, a exceção ficava por conta dos portos do Norte Engenho manual que faz caldo-de-cana, Debret, Rio de Janeiro, 1822

peixe, fornos de cal. Daí que em toda a costa, até a barra do Goiana, vivesse uma população livre cuja densidade surpreendia Koster, ao observar que, “em muitos trechos os mucambos [estavam] unidos ou quase unidos em longas filas de meia milha”. Quanto a Itamaracá, era “a parte mais populosa da província de Pernambuco [...] salvo as vizinhanças do Recife”. Quadro oposto aguardava quem jornadeasse pela mata sul: o litoral era uma franja ininterrupta de coqueirais, manguezais e restingas. Na sua cavalgada de quinze léguas, do Recife a Ipojuca, Tollenare encontrou “apenas um povoado, três engenhos, uma distilação e algumas miseráveis cabanas de taipa ou de folhagem”. Além disso, só se avistavam os intermináveis sítios de coqueiros que, juntamente com os canaviais, davam à paisagem e à economia da área a mesma sufocante monotonia. Só à medida que a marcha prosseguia para o sul, no entorno de Serinhaém e de Rio

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Formoso, e para a comarca (e depois província) de Alagoas, é que começavam a se fazer notar as atividades ligadas à exploração da madeira. A mata úmida permanecia, ao contrário da mata seca, um apêndice da economia canavieira. Aspecto correlato da diversidade econômica da mata seca residia na sua comparativa ‘urbanização’, a qual, embora anterior ao surto algodoeiro, foi por ele revigorada. Era lá que se localizavam os aglomerados mais populosos, com número substancialmente mais elevado de casas de pedra e cal. O crescimento demográfico foi pronunciado na mata seca interior, em Paudalho, Bom Jardim, Limoeiro ou Tracunhaém, onde os intermediários vinham comprar o algodão in natura, o qual, uma vez descaroçado, era remetido ao Recife para acondicionamento e exportação. Consoante a descrição de frei Caneca, Limoeiro era “uma grande e ativa povoação”, cujo comércio mostrava-se “considerável”, sendo seu “melhor edifício” o estabelecimento do inglês Kerne, que dispunha de “máquina de ferro para descaroçar algodão, bater e ensacar o mesmo e para fazer azeite e muitas outras coisas”. Já se iniciara então o fenômeno que Antônio Pedro de Figueiredo descreverá em meados do século XIX, vale dizer, o êxodo da população rural da mata açucareira que afluía não apenas para o Recife, mas também para os outros centros urbanos da região. Destarte, como


assinalou Guillermo Palacios, se por um lado o algodão promovia a prosperidade da mata norte, por outro, criava uma camada social extremamente vulnerável às crises de subsistência. Na franja marítima da mata norte, se Igaraçu deu a Koster uma impressão de declínio, com suas maltratadas casas de dois pisos e suas ruas pavimentadas mas forradas de capim, foi porque a vila era a mais dependente do açúcar entre todas da mata seca. A despeito disso, Igaraçu dispunha de várias lojas e de cirurgião formado no Reino. Oferecia também aos que viajavam de Recife para Goiana o único hotel existente no interior. Em compensação, Goiana, segundo núcleo citadino da capitania, pareceu cheia de vida ao inglês, graças, entre outras razões, à facilidade das comunicações fluvimarinhas com o Recife e ao fato de a vila funcionar como porta do sertão das ex-capitanias anexas, o que lhe permitia competir vantajosamente nas respectivas hinterlândias com as próprias capitais. Goiana chegou a conhecer tímido surto têxtil, esmagado pela concorrência inglesa, com a produção de artigos grosseiros de algodão (quando o governador Luís do Rego Barreto a visitou (1818) havia lá mais de cem teares).

Ainda outro aspecto relevante da mata norte são suas estreitas relações com o agreste e o sertão. Bom Jardim e Limoeiro serviam de entreposto para o algodão e os couros que vinham daquelas áreas e para os produtos que as demandavam. Rumo à feira de Goiana, desciam as boiadas da Paraíba e do Piauí, destinadas ao abastecimento do Recife e da zona da mata. Às festividades populares de Nossa Senhora do Ó, no litoral, acorria gente vinda de distâncias de 150 léguas no interior. Enquanto na mata úmida, segundo Tollenare, “a dificuldade dos transportes oferece, ao contrário, limites muito mais próximos”, da mata seca podiase marchar facilmente para o oeste. Na mata sul, a existência, na sua franja ocidental, de um longo cinturão de floresta atlântica, uma faixa de mais de 30 léguas que corria desde a ribeira do Ipojuca até Alagoas, estorvava as comunicações regulares, salvo para a população miserável local, composta de brancos pobres, índios e negros papa-mel, que seriam mobilizados em 1817, 1824 e no período regencial pelos conservadores da mata úmida.

Evaldo Cabral de Mello é historiador

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Imagem sem título do Cabo de Santo Agostinho, 1634

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ENTREMEZ

O herói grego Ulisses e o herói brasileiro Bambam O nosso tempo reinventou o heroísmo, elaborando a figura do anti-herói. Desconhecemos o eterno e o sagrado, e entregamo-nos à cultura do transitório e do efêmero

V

ocês ainda se lembram de Kléber Bambam, aquele rapaz que ganhou o Big Brother Brasil, da TV Globo? Faço essa pergunta porque é bem possível que ele já tenha desaparecido da mídia e caído no esquecimento. Ou se transformado num dos produtos de Marlene Mattos, a empresária de Xuxa. A velocidade com que se fabrica e se arruina um herói nos dias de hoje é mesmo de tirar o fôlego. Basta para isso que o mercado assim o exija. Heróis e objetos de consumo são a mesma coisa. É bem verdade que Kléber granjeou a simpatia de muitos que acompanharam o programa de TV, o que resultou em não poucos pontos de audiência para a Globo. É também verdade que surgiram estudos sociológicos e psicológicos para explicar o fenômeno Bambam, apontado como protótipo do novo homem brasileiro. No fundo, essa auto-imagem nacional é bem pior que a de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter criado por Mário de Andrade. Vocês lembram o Ulisses, dos gregos? Esse herói de três mil anos, antes de ser imortalizado por Homero no poema Odisséia, já era cantado pelos trovadores, e acabou se transformando num modelo para o mundo ocidental. Ulisses também é considerado um paradigma do homem moderno, talvez aquele que melhor represente a passagem da consciência mítica para a razão científica, ou logos. Entre as suas qualidades figuravam a capacidade de pensar e convencer, o autodomínio e a resistência ao sofrimento. Seus defeiRonaldo Correia de Brito 92 Continente Multicultural


FOTOS: GUILHERME PINTO / O GLOBO

tos: a falta de escrúpulos, a crueldade e a ambição. Ulisses é tão significativo para o Ocidente, que em todas as épocas foi personagem de tragédias, poemas, romances e óperas. Eurípides, Horácio, Dante, Kazantzákis e Tennyson são alguns dos escritores que o detrataram ou engrandeceram. O romance que prenuncia a “cultura em desencanto”, segundo Jacques Barzun, é justamente Ulisses, de James Joyce, cuja construção é baseada no poema de Homero. É possível traçar algumas comparações entre o herói Bambam e o herói Ulisses? Pensamos que sim. A mais evidente delas diz respeito à duração do mito. Podemos nos arriscar a dizer que o nosso brasileiro Kléber se volatilizará em pouco tempo. Já Ulisses é uma criação coletiva de uma sociedade mítica, que o cantou em poesia e música, de geração a geração, e o guardou na memória até que surgissem a escrita e um poeta para dar forma literária ao que antes era mera tradição oral. Mais comparações: Kléber não vai além de um simulacro, de um artifício mercadológico semelhante àquele que a televisão holandesa vende para o resto do mundo, e que se entrega à fantasia dos telespectadores em clipes de fabrico local. Ulisses pertencia à nobreza grega; Kléber, à classe média baixa do Brasil. Ulisses foi educado segundo os preceitos de uma ética complexa, a areté, que animava o indivíduo a buscar a imortalidade através de feitos guerreiros, sem nunca temer a morte e desejando alcançar uma espécie de fama perene. Por seu turno, a nova ética de Kléber o faz almejar “pegar a Kombi, sair pela estrada, atolar no meio do caminho e fazer sexo”. Ulisses construiu um engenho, um cavalo-de-pau, que permitiu aos gregos se esconder em seu interior, entrar na cidade de Tróia e vencer os inimigos sitiados. Esse feito tornou-se tão famoso que deu origem à expressão “presente de grego”, até hoje usada para definir mimos vantajosos só na aparência. Kléber inventou uma boneca, a Maria Eugênia, que, segundo os analistas, assegurou-lhe a vitória no programa (a patente do espantalho já foi, inclusive, vendida). Também cunhou expressões “primorosas”, que hoje andam pela boca da nossa gente: “no meu modo de vista” e “pra mim eu sou dessa conclusão” são dois bons exemplos do que acabamos de dizer. Bambam não foi cantado por poetas do quilate de um Eurípides, mas os jornalistas empregaram os adjetivos

sincero, alegre, brincalhão e emotivo para se referir a ele. A aventura de Bambam durou pouco mais de dois meses e teve por espaço físico uma casa cenográfica. Quase nada em comparação aos dez anos que Ulisses levou vagando por ilhas e mares, até retornar a casa. “Odisséia” virou sinônimo de jornada difícil e perigosa. O feito de Kléber recebeu o epíteto de “vitória dos simples”. Pode parecer que retomo a veia moralista de Montaigne ao analisar como se apresenta o heroísmo em nosso tempo. Talvez seja isso mesmo. Mas o fato é que somos avessos à moral e à ética, quiçá porque sofremos na pele a hipocrisia das igrejas cristãs e a repressão das ditaduras políticas. Houve um tempo, porém, não muito distante, em que as lendas, as fábulas e os romances eram tecidos com um fim educativo, vale dizer, ético e moral. Um tempo em que os heróis representavam padrões comportamentais a ser imitados. Todo povo tinha os seus mitos exemplares, que agiam como forças de contenção ou emancipação. Ulisses, que sobreviveu a três mil anos de história, é um desses mitos, embora tenha se metamorfoseado bastante desde as páginas de Homero até as de Joyce. Mas ainda ninguém é melhor que ele para servir de espelho do Ocidente. Será então que Kléber Bambam encarna o moderno viés do afamado mito grego? Ou essa tese é fruto de uma imaginação delirante? O nosso tempo reinventou o significado de heroísmo ao engendrar a figura do anti-herói. Proclamamos a morte de Deus e sepultamos o eterno e o sagrado, entregando-nos à cultura do transitório e do efêmero. Ulisses, embora desafiasse os deuses, temia a fúria do Olimpo e invocava a sua proteção. Kléber Bambam, quando indagado sobre a mulher dos seus sonhos, afirmou que “não existe a mulher, e sim o homem que é Deus”. É duro interpretar com seriedade mais esse disparate. Será que ele está negando a existência do feminino e afirmando um monoteísmo masculino? Que “homem-deus” é esse a que ele se refere? Será ele próprio? O excesso de exposição da imagem e a fama ilusória criam monstros de fantasia como Kléber Bambam. Difícil mesmo é aceitar que o tomem não só por um suposto herói, mas também por um novo deus. Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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MEMÓRIA

Para não perder a crítica Considerado por Hemingway a única opinião crítica de respeito nos Estados Unidos, Edmund Wilson preferiu perder amigos a fazer concessões Luiz Carlos Monteiro

M

esmo sendo os Estados Unidos um país de tradição literária recente, derivativa e de menor importância em relação às grandes literaturas do planeta, vieram de lá certos escritores de alta relevância artística e forte expressividade cultural. Um deles foi o escritor e crítico literário Edmund Wilson, cujo nome esculpiu-se definitivamente na história da literatura mundial. A obra desse grande erudito contabiliza 50 livros, subdivididos em diários, romances, contos, peças teatrais, crítica literária e social e poemas. Wilson sabia conduzir-se competentemente em meio à multiplicidade de seus interesses literários. Um de seus raros livros de poesia é de 1929, e ostenta um título irônico, sugestivo (Poets, farewell!), quase homônimo do último de Drummond (Farewell). Um de seus romances mais conhecidos, Memória do condado de Hecate, publicado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras, rendeu-lhe dinheiro, mas lhe valeu também um processo judicial por conta das confissões sexuais que trazia cruamente expostas, algo ainda inadmissível nos idos de 1940. No Brasil foram traduzidas outras obras de Wilson, várias décadas após as primeiras edições terem sido publicadas nos Estados Unidos ou na Inglaterra: Raízes da criação literária (1965), O castelo de Axel (1967), Rumo à estação Finlândia (1986) e Os anos 20 (1987), sem falar nos mais recentes Manuscritos do Mar Morto e Onze ensaios, este último organizado pelo jornalista Paulo Francis. Sobre a vida e a obra do autor, dispomos do breve ensaio crítico Edmund Wilson (1970), de Warner Berthoff, e do mui extenso Edmund Wilson: uma biografia (1997), de Jeffrey Meyers.

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Nascido em Red Bank, no Estado de Nova Jersey, a 8 de maio de 1895, Edmund Wilson Jr. teve atuação mais fecunda no jornalismo e na crítica literária. Empreendia julgamentos que nada tinham de arbitrários, concessivos ou parcializados. A admiração pelos clássicos não o eximia da apreciação certeira, isenta, racional. Wilson não escondia as qualidades e nem deixava de apontar os defeitos dos autores que aquilatava. Identificava-se com os refluxos éticos e humanistas do século XVIII, e sua logicidade e racionalismo eram reforçados também pela influência paterna. Com os amigos, podia repentinamente ensaiar rompimentos impiedosos, geralmente sem nenhuma chance de reconciliação posterior. A polêmica WilsonNabokov, encetada após a tradução feita por este último do poema Eugene Onegin, de Pushkin, criticada por Wilson, esfriou uma relação de amizade e correspondência que durara 31 anos. Por outro lado, Hemingway, em carta a Wilson, confessou, em 1923: “A sua é a única opinião crítica em todos os Estados Unidos pela qual eu tenho respeito”. Não raro algumas de suas “criticadas” passaram à condição de mulher legítima (Mary McCarty) ou amante temporária (Edna Millay). O seu desprezo pelo mundo acadêmico não fazia minguar contudo os convites para ministrar cursos e palestras ou participar de seminários. Wilson aceitava-os quando necessitava urgentemente de dinheiro, embora tenham sido longos os intervalos entre suas aparições acadêmicas. Entre as décadas de 1940-50, no auge da fama e do reconhecimento públi-


co como a maior personalidade literária dos Estados Unidos, porém cansado do assédio promovido por estranhos, sua irreverência veio à tona num cartão que mandou imprimir, e no qual avisava sobre os pedidos que não poderia atender: “Edmund Wilson sente muito, mas para ele é impossível:/ Ler manuscritos,/ Escrever artigos sobre livros a pedido,/ Escrever prefácios e introduções,/ Fazer declarações para serem usadas publicitariamente,/ Fazer qualquer tipo de trabalho de copidesque,/ Ser juiz de concursos literários,/ Dar entrevistas,/ Dar qualquer curso educacional,/ Dar conferências,/ Dar palestras ou fazer discursos,/ Contribuir ou fazer parte de qualquer simpósio ou de panelinhas de qualquer gênero,/ Contribuir com manuscritos para leilões de caridade,/ Dar exemplares de seus livros para bibliotecas,/ Autografar livros para estranhos,/ Permitir que seu nome seja usado no cabeçalho de qualquer papel timbrado,/ Dar informações a seu respeito,/ Dar autógrafos,/ Dar opiniões sobre literatura ou qualquer outro assunto”. A despeito de ter escrito isso, Wilson não se guiava completamente por tais preceitos, notadamente com relação a seus companheiros de copo e de profissão mais aproximados. Às vezes, fazia exatamente o contrário, elevando seus protegidos às alturas com sua autoridade de crítico ou intercedendo em favor deles junto a editores de jornais e revistas, para a obtenção de empregos ou divulgação de trabalhos. Wilson é um escritor que se lê com avidez e fascínio, embora ele tenha passado ao largo de novidades críticas que tiveram lugar no decorrer de meio

século de militância profissional. Sem adotá-las cegamente, ou assimilando-as à sua maneira, ou ainda adequando-as a seu padrão crítico humanista e caracteristicamente pessoal, que intercalava argutamente o ensaio biográfico com análises e intrusões psicológicas e temáticas das obras interpretadas, esse autor forjou um estilo de análise único. Na crítica social, foi acusado de fornecer um retrato excessivamente benevolente de Lênin, no livro Rumo à estação Finlândia, no qual busca as origens do marxismo-leninismo em suas raízes revolucionárias remotas, em historiadores e críticos como Michelet, Renan, Taine e Anatole France. Em O castelo de Axel, no ensaio “T. S. Eliot” (talvez um de seus melhores estudos), armou o confronto literário Eliot-Pound, com absoluta vantagem para o primeiro como poeta e crítico. Contudo, ironicamente, conforme escreveu Russell Jacoby em Os últimos intelectuais (1990), o prestígio crítico de Wilson vinha sendo posto à prova pela academia desde, pelo menos, o primeiro pós-guerra: “Quando um professor lhe solicitou uma bibliografia completa de seus escritos publicados, Wilson compreendeu que sua época e sua geração haviam terminado; ele havia se tornado um objeto de estudo, alguém para se admirar”. Edmund Wilson manteve suas atividades de crítico, leitor infatigável e escritor centrado nas suas próprias vivências até a morte, em 12 de junho de 1972. Em seus últimos dias, dedicou-se mais à escrita íntima dos diários, nos quais compartimentou cinco décadas sucessivas, a partir de 1919. O escritor Leon Edel, encarregado de publicar as obras póstumas de Wilson, afirmou que os cadernos do crítico consistiam de 2125 páginas manuscritas de 41 volumes grossos e encadernados. Talvez a maior vingança desse grande homem contra um mundo complexo de relacionamentos conturbados tenha sido deixar, depois de morto, a última e reveladora palavra sobre amigos, parentes, mulheres e inimigos na vastidão de seus diários. Luiz Carlos Monteiro é crítico literário

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Os anjos amaram?

A

invenção da tradição, expressão, segundo Peter Burke, criada pelos cafundós dos anos 80 por Eric Hobsbawn, enfatiza a ação da liberdade humana contra as restrições da sociedade. Evidente que as opiniões de quem quer que as emitam sofrem das ambigüidades típicas de todos quanto as interpretem – um servomecanismo, uma existência de dois ou mais estados de equilíbrio. Se nem todo sermão vem do bom ladrão – de consciências, é claro – as rosas, com todo seu encanto, tonalizam o vermelho da paixão. Ah, se toda beleza pusesse a mesa e conhecêssemos a principal faceta da mulher – ninfas virgens do sol –, e respeitássemos as promessas descumpridas em razão da lógica, com freqüência dogmática, e encarássemos as colocações morais e estéticas. O problema é que, quando opinamos sobre algo, concreto ou divagante, inexplicavelmente buscamos os ramos originais da filosofia que mal compreendemos. O inefável, porém, é mais importante do que o dizível, já que a linguagem, tal apregoa Giannoti, humilhada dentro dos seus limites, obrigada a só falar do mundo dos fatos, termina por abrir o abismo místico, em que a moralidade e a beleza se situam. Felizmente, nem todas as rosas de Hiroshima tornaram-se cancerosas, nem os escombros de Jenin e

ações suicidas de terroristas subumanos destroçaram as mentes brilhantes do mundo civilizado em favor da paz e do respeito, tampouco todas as opiniões podem ser amordaçadas por liliputianas e histéricas manifestações de pouquíssimos encarapuçados pela soberba puída de discernimentos. As posturas não devem ser fixas para nenhuma divergência, sequer automatizarse aos recentes acontecimentos belicistas lamentáveis no Oriente Médio entre povos da mesma cepa – e que não fossem –, transformando-os em meras ocorrências que se perderão nas brumas das lendas incidentais. Assim como se aprende a distinguir o pato da lebre por um simples desenho, as posições opiniosas necessitam de compreensão. Mesmo que filosoficamente incompreendidas, se pode contestar, por exemplo, a primazia da França na formação da filosofia iluminista em detrimento da influência que Montesquieu e Voltaire sofreram dos ingleses John Locke e David Hume – nem por isso declararam-se, os dois estados, em guerra milenar pelas teses abraçadas em coliseus culturais. Ninguém pode ser devoto da cor ou de um segmento religioso sem uma ideologia de independência negociada ao respeito mútuo, mas precisamente sem qualquer violência albergada. Quase todos os povos do mundo são algemados a caldeamentos étnicos – gratos ou não, pouco importa –, conseqüentemente, os direitos de união pela paz entre eles passam por contraditórios normais e essenciais ao equilíbrio da liberdade sem libertinagem. Os anjos, dizem os filósofos e pensadores, não têm sexo, mas se amaram? E se amam tanto quanto os seres humanos têm o direito de se amar, sem quaisquer preconceitos de raça, costume ou credo, tal como de se incomodarem com as hostis ilações difamatórias a eles assacadas quando se aliam ao prazer de viver. Os anjos do bem e do mal também se respeitam, e se amam. Vadete retro, satãs!...

Rivaldo Paiva é escritor

Rivaldo Paiva 96 Continente Multicultural




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