Continente #019 - Nelson Rodrigues

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CONTEÚDO

Continente

Denise Milfont na peça Dorotéia, de Nelson Rodrigues. Foto: AJB

Especial – 90 anos Nelson Rodrigues mostra como se escreve uma crônica esportiva sem precisar ver o jogo

Ferreira Gullar – Bienal A contradição básica entre a manifestação que se quer rebelde e institucional, ao mesmo tempo

Conversa franca – Argentina Escritor revela como a globalização afetou um povo que se dizia parte do mundo desenvolvido

Memória – Sérgio Buarque Historiador é lembrado como o exemplo completo de um brasileiro realmente genial

Arquitetura – Patrimônio Restaurações sem critérios bem definidos terminam por criar realidades desfiguradas

Sabores pernambucanos – Feijão Prato apreciado por índios, aos poucos conquistou o paladar dos portugueses

Cinema – Bressane e George Lucas Cineasta marginal é premiado. Tecnologia digital modifica a própria estética cinematográfica

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Folclore – Boi de Máscaras Em São Caetano de Odivelas (PA), um bumbameu-boi que não existe para o consumo turístico

Bioética – Dilemas da ciência Pesquisas nazistas e a Bomba A quebraram a harmonia entre ciência e progresso humano

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Marco zero – Poesia Análise do livro Corpo lunar, antologia que reúne as principais vozes da poética feminina pernambucana

Antologia – Arnaldo Tobias Em quatro poemas, a força revolucionária dos versos do poeta russo Vladímir Maiakovski

O grande fotógrafo do cinema brasileiro apresenta um ensaio que fixa o olhar em Pernambuco

Entremez – Crime e estética A relação entre a morte de um romeiro do Padre Cícero e o trabalho de Francisco Brennand

Página 42

O jornalista fala da sabedoria dos gatos e da diferença entre “analista” e “cientista” político

Cultura – Luiz Costa Lima Crítico avalia a cultura brasileira e analisa Paulo Freire, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre

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Mil palavras – Walter Carvalho

Diário de uma víbora – Joel Silveira

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Música – Josefina Aguiar A grande pianista é chamada de “Dama da Resistência” pela defesa da música erudita

Últimas palavras – A ordem do dia Inusitado é o bem comum do povo, primeiro limite para se conceituar a liberdade

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

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Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de edição Alexandre Bandeira Editoração eletrônica André Fellows Tratamento de imagem Nélio Câmara

Arte Luiz Arrais e Manoela Leão Ilustradores Lin e Mascaro Revisão Rodrigo Pinto

Colaboradores Alberto da Cunha Melo, Arnaldo Tobias, Daniel Piza, Fábio Lucas, Ferreira Gullar, Geneton Moraes Neto, George Moura, Geraldo Gomes, Heitor Reali, Hugo Fernandes Júnior, Joel Silveira, José Mário Pereira, Kleber Mendonça Filho, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Silvia Reali, Tatiana Resende, Walter Carvalho, Weydson Barros Leal Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Cláudio Manoel, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Elizeu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 / e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: fone:3217.2551 / fax: 3222.4130 E-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Informações: informacoes@continentemulticultural.com.br Publicações: publicacoes@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Cumprimentos Quero cumprimentar o poeta Everardo Norões pelo lirismo do artigo Entre o alif e o aleph, onde o mesmo enfocou a necessidade de se descobrir os caminhos do afeto para a busca do entendimento entre contrários. Eu me senti contemplada, como se pelas palavras de Everardo estivessem os meus sentimentos e o meu desejo de expressão, tão afetuosamente colocados. Como judia brasileira, de uma segunda geração de nascidos e acolhidos neste país em que nunca nos sentimos estrangeiros, guardo, na minha memória de criança, a forma fraterna pela qual o meu avô, Salomão Gorenstein, proprietário da Ótica Vitória, na rua 10 de Março, tratava por primo o seu vizinho sírio-libanês, proprietário da loja de caça e pesca, seu Miguel Amin, quando passavam férias juntos, em Fazenda Nova. O meu pai, falecido engenheiro Marcos Botler, também se referia ao amigo e colega de profissão, Talfig Asfora, como primo. Parafraseando Everardo, gostaria que o aleph e o alif simbolizassem a nossa certeza de que, pelo prisma do humanismo de Maimônides, os brasileiros de origem árabe e os judeus brasileiros devam se unir para apontar os caminhos da paz. Como expressou Everado, o conflito do Oriente Médio chega até nós através de imagens partidas, e a reconstituição das mesmas só será possível através do entendimento político e da tolerância cultural e religiosa entre os primos. Aronita Rosenblatt – Recife – PE


Culinária Muito boa a matéria de Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti sobre gastronomia (Carême, Bocuse, Joana e Maria, na edição número 16, mês de abril). Fiquei encantada com aquelas histórias dos chefs de cozinha. E também em saber que Leonardo da Vinci foi o inventor do guardanapo, substituindo os coelhos (!) que eram usados para limpar as mãos. Isso é que se chama cultura e diversão, juntas. Meus parabéns! Maria do Carmo Cerqueira – Patos – PB Qualidade excepcional Acompanho sempre todas as reportagens da revista desde que a descobri. Sinto-me muito envaidecido por ser pernambucano e ter uma revista de uma qualidade excepcional como esta circulando aqui entre nós. Gostaria que vocês dessem mais oportunidade a quem está iniciando. Parabéns por esse engenhoso empreendimento. Daniel Fernandes Viana Filho – Recife – PE A melhor Inicialmente, parabéns pela excelente revista, a melhor do gênero no Norte/Nordeste, motivo de orgulho para todos nós, nordestinos. Agora, se me permitem, três sugestões de matérias, de interesse regional: Luís da Câmara Cascudo, a Bienal do Livro de Natal e o centenário do Instituto Histórico e Geográfico do RN, a mais antiga instituição cultural daquele Estado. João Bosco de Sousa – João Pessoa – PB Turismo Sou estudante de Turismo, e fui presenteada por um amigo do Recife, Dr. José Geraldo Eugênio de França, com exemplares da Continente. Tenho divulgado-os da melhor maneira, mostrando a riqueza do nosso Nordeste e Brasil. Os assuntos e fotografias têm-nos auxiliado em diversas pesquisas turísticas. No exemplar de abril, em Sabores pernambucanos, o meu elogio pela riqueza de publicação. Nós, brasileiros, precisamos conhecer os grandes chefes (homens e mulheres) que comandam a nossa cozinha. Iolanda Lopes Carneiro – Recife – PE

Parabéns Parabéns por Continente, cada vez melhor. Parabéns pela publicação da tradução de Diego Raphael. Maravilha. A entrevista de Harold Bloom enche as medidas. Com certeza, uma revista adulta. Parabéns pelo conto de José Castelo. Sem provincianismo. Muito bom. Grande abraço. Raimundo Carrero – Recife – PE Armorial Adorei a matéria Os mitos do Brasil em movimento (edição de fevereiro). Adorei mesmo. Só adoraria mais se falasse sobre o teatro armorial e, principalmente, sobre Ariano Suassuna. Rafael Armando – Recife – PE Dança Finalmente! Sou uma apaixonada pela dança contemporânea e já estava ficando agastada por ver que uma revista do quilate intelectual desta Continente, ainda não tinha prestado a devida importância a esta manifestação tão grandiosa da arte. Mas, fui recompensada. A edição de junho, que traz na capa a bailarina paulista Deborah Colker, lavou minha alma. La Colker é motivo de orgulho para todos os brasileiros, pelo que representa na dança contemporânea mundial. Parabéns pela entrevista, que revela também o quão inteligente é aquela mulher. Arminda Tavares – Bauru – SP Sexo Li o artigo O sexo que conduz a Deus na Continente e gostei. Sempre achei que deveríamos ter uma abertura maior para outras literaturas, como a da África do Norte, onde vivi sete anos, e que tem grandes autores desconhecidos. Sobre Os Campos Perfumados, de Nafzawi, observo o seguinte: há outra edição brasileira, a da Martins Fontes (coleção Ghandara, de 1994). Trata-se de uma tradução da tradução francesa (La Prairie Parfumée où s´ébattent les plaisirs) de René Khawan (um grande tradutor do árabe para o francês). No prefácio do autor (Nafzawi), ele diz que Os Campos Perfumados foi escrito após “um livro de certa importância” que ele compôs, uma pequena obra intitulada Tannwir al-biqa´fi asrar al djima - A iluminação dos vales, através da exposição dos segredos da cópula. Portanto, A tocha do Universo é do próprio Nafzawi. Não sei se as outras traduções têm o prefácio de Nafzawi, o qual dá os detalhes sobre o assunto. Everardo Norões - Recife - PE

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FOTO: REPRODUÇÃO DO LIVRO O ANJO PORNOGRÁFICO / CIA. DAS LETRAS

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e a história nada mais é do que um desfile de crimes e insanidades, como querem historiadores do porte de um Will Durant, o teatro e a literatura espelham isso. Autores como Ésquilo e Shakespeare dizem muito mais sobre os conflitos europeus e sua essência do que todos os anais e documentos oficiais juntos. No Brasil, um dos espelhos mais bem acabados das relações cotidianas é a obra de Nelson Rodrigues. Na superfície, os seus temas pouco vão além das mazelas de um mundo suburbano deliciado em morbidez, quase sempre de conteúdo freudiano. Nas estruturas profundas talvez sejam mais do que isso. As suas obras têm caráter folhetinesco. São retratos mais jornalísticos do que literários de homens e mulheres. Embora afundados em realismo delirante, as suas personagens nada têm de heroísmo tradicional. De onde viria a sua força psicológica? Onde uns responderiam Freud, outros escolheriam Pernambuco, estado natal de Nelson Rodrigues. Às vésperas dos 90 anos do seu aniversário de nascimento, um repórter revolveu as entranhas de uma antiga entrevista e a apresenta aos leitores. Além de narrar os bastidores da conversa, o repórter Geneton Moraes Neto revela a sua admiração pelo cronista esportivo e criador de frases que já se incorporaram ao chamado imaginário nacional. Hoje, Nelson Rodrigues é dessas unanimidades do país. Se fosse vivo poderia enxergar isso com ácida ironia. O tantas vezes censurado e a quem coube como uma luva a pecha de “reacionário” é um dos gênios da raça. Para a sua reabilitação concorreram não somente as diversas adaptações de suas obras para o cinema, mas a publicação da biografia dele, escrita pelo jornalista Ruy Castro, O anjo pornográfico, e as reedições dos seus livros, pela Companhia das Letras. Chega de maldição. O antes odiado autor de folhetins obscenos é um dos mais queridos pelas novas gerações. Talvez menos presas aos seus fantasmas que as duas ditaduras que num século tentaram amordaçar o país de libertinos e homens cordiais. Continente Multicultural 5

EDITORIAL

Amar e odiar Nelson Rodrigues


ESPECIAL

“Ao cretino fundamental, As incríveis cenas dos bastidores de um encontro com Nelson Rodrigues, maior dramaturgo brasileiro, pernambucano exilado no Rio, estilista número um da crônica esportiva Geneton Moraes Neto

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FOTOS: REPRODUÇÃO DO LIVRO O ANJO PORNOGRÁFICO / CIA. DAS LETRAS

nem água” Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nelson Rodrigues (que, se vivo, estaria completando 90 anos em agosto próximo) começou com uma dúvida devastadora: por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira? Não é possível, deve ter havido algum engano – eu pensava com meus botões, enquanto caminhava pelas calçadas do Leme, na beira-mar, no Rio de Janeiro, em direção ao apartamento do homem. Se Nelson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a seleção brasileira entrava em campo, no Maracanã, com transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte? Não, deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nelson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria?

Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha. A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nelson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos. Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada dele em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de A dama do lotação. Quando a mulher avisa em voz alta que “o repórter de Pernambuco” estava na porta da sala, Nelson ergue os braços,agita as mãos,saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa,como se reencontrasse um amigo de infância: “Conterrâneo! Conterrâneo!”. O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nelson tenha cometido um pequeno equívoco: ao marcar a entrevista para aquele horário, ele bem que pode ter se esquecido do jogo. A hipótese pode Continente Multicultural 7


“Tire o som desse aparelho! Tire o som desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!”. Hiperbólico, épico, exagerado, o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói? Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame: digo que posso voltar depois; não quero importuná-lo naquela hora. Teatral, Nelson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito, como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão, pede à mulher: “Tirem o som desse aparelho! Tirem o som desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!”. A mulher e a irmã de Nelson riem da cena. Hiperbólico, épico, exagerado, o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo espectador de um espetáculo chamado Nelson Falcão Rodrigues, encenado pelo próprio autor. A ordem – “tirem o som desse aparelho!” – é imediatamente atendida. O aparelho de TV fica mudo. Assim, este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista: diante de uma TV sem som, que transmitia o jogo da seleção brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente. Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável: Nelson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores, os esquemas táticos, todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nelson Rodrigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas da objetividade” – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos. A missão que Nelson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra: traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que, então, perder tempo com miudezas? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não estava inspirado? 8 Continente Multicultural

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner bem ou mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, ele escreveu uma vez. Nelson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como, por exemplo, a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol. Numa de suas tiradas clássicas, reclamou: “Nossa literatura ignora o futebol – e repito: nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.” A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar-comum dizer que Nelson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nelson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Alheio a essa fraqueza nacional, Nelson parece distante da disputa que se desenrola ali, no vídeo. Faz ao repórter uma pergunta incrível: “Quem é o nosso adversário hoje?”. Informo que é o Peru. Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário. Quando Zico faz um a zero, aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo, Nelson interrompe a entrevista para inaugurar, aos brados, uma nova expressão exclamativa: “Que coisa beleza! Que coisa beleza!” Depois, pede à família: “Pessoal, com licença dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso”. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que “fechar a máquina” significa desligar a TV – o que, aliás, não foi feito. Nelson dispara, então, um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho: “Mas esses rapazes são uns gênios! Uns gênios!” O repórter seria novamente surpreendido. Nelson já perguntara quem era “nosso adversário”. Agora, ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto: “Mas já houve dois gols?”. Digo a ele que não: é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,


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sim !”. Teria dois outros motivos para vibrar: o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes – faria dois gols, aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo, para fechar o placar: Brasil 3 x 0 Peru. Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nelson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver? Eis: “Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz. Mas não quero ter fantasias esplêndidas. O jogo Brasil x Peru, ontem, no Mário Filho, não assustou a gente. Diz o nosso João Saldanha: ‘O Brasil fez seu jogo, jogo brasileiro’. Vocês entendem? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quando um de nós se esquece da própria identidade, ganha de qualquer um. Outra coisa formidável: na semana passada, um craque nosso veio me dizer: ‘Nelson, é preciso que você não se esqueça: ao cretino fundamental, nem água’. O jogo foi lindo”.

Penso com meus botões que Nelson não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotas da objetividade” se encarregariam de registrar, nas páginas esportivas, o jogo real. Porque o jogo de Nelson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais? Aos cretinos fundamentais, nem água. A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entrevista, Nelson pergunta ao repórter: “E então, você me achou muito reacionário?”. Não, claro que não. Em seguida, pega o telefone, liga para a cozinha do Hotel Nacional, identifica-se e faz uma pergunta a um maitre provavelmente atônito: “Companheiro, aqui é Nelson Rodrigues. Qual é o prato do dia?” Ouve a resposta em silêncio, desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar, no fim de tarde de um feriado, já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nelson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez questão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê? As cenas que Nelson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso: chamame de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço de Nelson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que, delicadamente, interrompe o questionário no instante em que Nelson fez uma pausa para engolir uns comprimidos. Ao autografar o exemplar do livro de crônicas O reacionário – consultado durante a entrevista – Nelson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia: “A Geneton, amigo doce e truculento – Nelson Falcão Rodrigues”. Quase um quarto de século depois (a entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço novamente a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nelson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso: Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam, o que é uma façanha: a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita. Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve – nem sempre valia para os dois.

Nelson Rodrigues, um cronista esportivo que não precisava ver o jogo

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Quando foi que Nelson Rodrigues descobriu que nascera para escrever? A coisa é a seguinte: escrever para mim, muito mais do que uma decisão profissional, é um destino! Não é um caso de opção. Eu só tinha esta opção, uma vez que nasci assim. Nelson Rodrigues mostrando sua faceta de ator hiperbolicamente dramático

O coro dos vizinhos, na peça Senhora dos afogados

O senhor se considera um escritor por vocação? Digo que, no meu caso, eu nem precisava de vocação, porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante! Eu tinha de ser aquilo. Se você chegasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão, podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino, não seria absolutamente possível. O início foi com ficção ou com jornalismo? Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais. Uma dia, a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa, para que nós, alunos, fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse: “Olhem aqui: hoje, vocês vão ter de escrever da própria cabeça. Agora não é mais sobre a vaca pintada”. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama, o seu projeto dramático. Duas histórias tiveram o primeiro lugar. A do meu adversário era uma história de um daqueles magnatas que davam passeios. Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito. E pronto. A minha foi inteiramente diferente. Eu fiz a história de uma moça que era uma fera. Quase uma dama do lotação. Um dia, o marido chega em casa mais cedo e, quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta), entra em casa, segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos. O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional. Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista. Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica. O traidor morreu também de maneira melancólica: direi, a bem da verdade, que a minha história causou um horror deliciado. Eu era, para todos os efeitos, um pequeno monstro. Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter: esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça... Para o senhor – que é considerado um mestre nesse ofício – o que é necessário para retratar, num tex-

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O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores, os esquemas táticos, todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio to teatral, o mundo desses personagens suburbanos das nossas cidades? Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino (pronuncia a palavra em tom dramático). A inspiração é uma entidade que existe para o senhor? O negócio da inspiração é o seguinte: eu considero a inspiração ao contrário de Valery, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência. Dentre as peças já escritas, qual é a sua predileta? Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas. Não tenho prediletas (ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei. Que autores brasileiros de hoje o senhor considera como verdadeiros artistas do teatro? Vou pular esta, porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos...


Há quem considere Nelson Rodrigues o maior frasista da língua portuguesa. A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. O jornalista Ruy Castro reuniu as “mil melhores frases” de Nelson no livro Flor de obsessão, da Cia. das Letras. Geneton Moraes Neto e Weydson Barros Leal também fizeram uma seleção de frases do teatrólogo. O primeiro, as mais contundentes; o segundo, as mais reflexivas. Leia a seguir: “O brasileiro é um feriado”. “O Brasil é um elefante geográfico. Falta-lhe, porém, um rajá, isto é, um líder que o monte”. “Sou a maior velhice da América Latina. Já me confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias”. “Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Düsseldorf”. “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”.

O senhor diz sempre que “a admiração corrompe”. É o caso? É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque ele próprio não consegue se prender. Então, começa a fazer insinuações e etc... Por isso eu prefiro o inimigo (ri).

FOTOS: REPRODUÇÃO

Se o senhor fosse levado a fazer uma hipotética opção entre o teatro e o jornalismo, qual dos dois preferiria? O teatro! E não é um problema de qualidade intelectual, não. O jornalismo brasileiro continua padecendo de objetividade – que o senhor considera uma “doença grave”?

O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental. Quais foram as causas da ocorrência desse culto à objetividade que, no conceito do senhor, corresponde à falta de emoção? Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica A desumanização da manchete):

“Na vida, o importante é fracassar”. “A Europa é uma burrice aparelhada de museus”. “Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. O repórter mente pouco, mente cada vez menos”. “Daqui a duzentos anos, os historiadores vão chamar este final de século de ‘a mais cínica das épocas’. O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas”. “Sexo é para operário”. “Sem alma não se chupa nem um chicabom”.

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Na página seguinte, Nelson no momento da entrevista a Geneton Moraes Neto, em 1978

O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. A ausência de um ponto de exclamação numa manchete faz falta ao leitor comum? Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância, havia primeiro o Correio da Manhã, um jornalaço. E havia A Noite – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. A Noite era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro,

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uma gaiola, e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: “Morreu cantando” (a essa altura, Nelson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer. A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituí-

“Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada”

FOTO: REPRODUÇÃO

Foto da equipe de O Cruzeiro, em 1945 (Nelson é o 4º à esquerda). Para ele a nova imprensa é dominada pelos idiotas da objetividade


do pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira. O senhor lê a chamada imprensa alternativa? Alternativa o quê? A imprensa alternativa, esses novos jornais que têm surgido, o senhor lê? Eu leio de vez em quando, mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera, figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as TV’s. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango.

FOTO: WILSON URQUIZA

Não há nenhum fato do dia... Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira. Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se mani-

festar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o chefe de polícia. E o chefe de polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê, nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um “enterro” do chefe de polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do “enterro”, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a Presidência da República, a Vice-presidência, o chefe de polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir... Qual foi? Era assim: “Primavera de Sangue” (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o presidente da República, o ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso.

“O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História”. “A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. “Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos”. “As grandes convivências estão a um milímetro do tédio”. “Todo tímido é candidato a um crime sexual”. “Todas as vaias são boas, inclusive as más”. “O presidente que deixa o poder passa a ser, automaticamente, um chato”. “Não gosto de minha voz. Eu a tenho sob protesto. Há, entre mim e minha voz, uma incompatibilidade irreversível”. “Sou um suburbano. Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña. O único lugar onde ainda há o suicídio por amor, onde ainda se morre e se mata por amor, é na Zona Norte”. “O adulto não existe. O homem é um menino perene”.

De quando foi essa manchete? Eu era garoto, tenho agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez “Como se sabe, a solidão anos. Agora, eu sei disso tudo pelas infor- humana são os outros”. mações do pessoal. O cara que fez esta Continente Multicultural 13


A desconstrução do lírico Weydson Barros Leal

manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil-réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri). Quais são os políticos brasileiros que o fascinaram ou fascinam hoje? (Pausa de alguns minutos) Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para achar um sujeito, poder dizer um político interessante... Eu acho que só Napoleão Bonaparte! (ri). 14 Continente Multicultural

perior entre os escritores universais: como um Tolstoi, ele apontava a verdade, e a verdade, às vezes, escondese escura em nós. Em sua obra reflete-se a vida aberta e crua, e se não vivida por todos, reconhecida ou imaginada por muitos. Suas “perversões” – assim costumam-se rotular os temas e abordagens de seus dramas e tragédias – fazem do espectador um condenado a vivenciar, no livro ou no teatro, realidades que já inspiraram mal-estar e indignação, mas nunca a confissão de que se estaria a ver uma ficção absurda: em Nelson, o pornográfico e suas permissividades constituem o tecido em que a família é o núcleo deflagrador de tudo, o centro em que toda danação se pressente ou se origina. O drama rodrigueano, seja no conto, no romance ou no teatro, é trágico quando o identificamos pelas vicissitudes do desmoronamento moral; é épico, O senhor já disse que um dos traços do caráter nacional é o fato de que o brasileiro adere a qualquer passeata. Quais seriam os principais traços do nosso caráter nacional? O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério, porque este negócio de viúva vocacional é um fato.

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Nelson Rodrigues é uma unanimidade em pedaços. Melhor: é cada um dos dois lados de uma outra conclusão: diante dele, ama-se ou odeia-se. Não se viu até hoje a imparcialidade ou a passividade dos que conhecem sua obra – isto, uma “unanimidade”. E esta palavra, que também é um sentimento, como todas as outras tocadas por ele, se transformou em uma potência aumentada ou invertida em sua grandeza, pois, neste caso, foi chamada de “burra”. Assim nascia a maioria das máximas rodrigueanas, as expressões reconhecidamente suas, os axiomas que se transformaram em sua marca. Por isso é muito fácil – ou dificílimo (outra vez os dois lados) – recolher em sua obra frases que possam enfeixar um “livro de frases”. Quase tudo que escreveu se presta ao espanto ou ao incomum. Daí porque considerar inestimável o trabalho de seu biógrafo, o escritor Ruy Castro, ao organizar o volume Flor de obsessão (Companhia das Letras, 1997), no qual, com quase 1.000 frases, intenta um compêndio de máximas do autor pernambucano. É o próprio Ruy Castro que afirma, com a autoridade de seu conhecimento, que Nelson Rodrigues é “talvez o maior frasista da história da língua portuguesa”. E não exagera. O gênio do melhor criador do teatro brasileiro é equiparável ao de qualquer gigante da literatura universal em invenção e originalidade. Infelizmente tal constatação ainda causa polêmica e, como uma unanimidade, será sempre contestada. A maneira de pensar e expressar de Nelson Rodrigues era, no mínimo, original. Sua coragem para dizer o “indizível” ao revelar os mais secretos labirintos do espírito humano fazia-o possuidor de um dom su-


Em Nelson, o pornográfico e suas permissividades constituem o tecido em que a família é o núcleo deflagrador de tudo, o centro em que toda a danação se pressente ou se origina ao expressar a procura ou a revelação de um desconhecido interior – nosso também – às vezes íntimo e monstruoso, às vezes alheio e heróico; mas, acima de tudo, é um drama lírico, poético, que talvez não seja melhor compreendido por tratar o autor de desonstruir a nossa dor, distribuí-la com outros, codificá-la com os mais sofisticados processos psicológicos identificados em manias, angústias, traumas, revoltas, taras, obsessões. Essa desconstrução nos põe diluídos em cada um de seus personagens: e não somente o nosso medo, a nossa secreta identidade, mas também a nossa repulsa ao descartarmos o comportamento que não julgamos à nossa altura, digno de tão imune caráter, e que nos divide em pedaços entre o santo e o canalha, desconfiados que somos apenas humanos. Assim se resumem os personagens na obra de Nelson Rodrigues: o homem (o pai, o marido, o noivo, o amante); a mulher (a mãe, a esposa, a filha, a prostituta); o amor (o pêndulo da fidelidade, suas tentações) e, por trás de tudo, a imensa solidão humana – a busca do outro. Weydson Barros Leal é poeta

Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar: “Qual foi o maior homem que você viu no mundo?”, eu acho que

esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a minha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro... Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora, ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha.

“Realmente, somos uns impotentes da admiração. Cochichamos o elogio e berramos o insulto”. “O amigo é a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida. Mas o trágico da amizade é a convivência. Talvez a solução fosse pôr um deserto entre nós e o amigo”. “O amor é o casal. O simples casal basta para inundar o universo. E o casal funda a grande solidão”.

“Sempre que um homem e uma mulher se gostam precisam estar prodigiosamente sós, como se fossem o primeiro, único e último casal Por que é que o senhor diz, desse jei- da Terra”. to, que hoje ninguém ama mais? Meu bem, se a evidência objetiva e “A úlcera nasce doendo. espetacular vale alguma coisa, o homem Não há dúvida, dói nos não ama mais. E não ama mais porque o primeiros dias. Mas, a partir nosso cenário se povoa de sujeitos que são da primeira quinzena, débeis mentais absolutos. O sujeito já não começa uma adaptação acredita em amor, pra começo de conversa. recíproca. A lesão e o doente Não acredita em amor. O sujeito acha que passam a se entender todo mundo é a mesma coisa, e apesar maravilhosamente. É o que sucede com as longas disto, se diz marxista. E eu me lembro de uma menina conveniências matrimoniais”. grã-fina mesmo... Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz “Pode-se viver para um único arrastada, como se entoasse um lamento). livro de Dostoievski. Ou uma Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco femi- única peça de Shakespeare. nina. Eu tive um cachorro, o nosso Ou um único poema de querido Boogie-Woogie, que ficava diante da não sei quem. O mesmo livro minha casa amando sua querida cachorra. é um na véspera e outro Ela ficava lá, digníssima, empinada, rece- no dia seguinte. Pode haver bendo as homenagens. Os carros passa- um tédio na primeira leitura. vam e achavam o cachorro louco. E esse Nada, porém, mais denso, nosso amigo, o cachorro, era muito mais mais fascinante, mais novo, humano que a mulher dos nossos tempos. mais abismal do que a releitura.” Elas se meteram a bestas. Continente Multicultural 15


Nelson Rodrigues, escritor Dizem-me que um “colunista” – pobre palavra de origem tão nobre quanto, quase sempre, degradada – estranhou que, em artigo para uma revista do Rio, eu considerasse Nelson Rodrigues não só “um novo Eça de Queiroz” como, na prosa jornalística, “mais vigoroso do que Eça”. Nada mais cristalinamente exato como equivalência. Estou agora mesmo procurando desenvolver num pequeno ensaio o que chamo Sugestões para uma sociologia das equivalências literárias. Uma sociologia que, dentro da Sociologia da Literatura, considere equivalências de conteúdos sociais – em poemas, em romances, em ensaios, em peças de teatro – ao mesmo tempo que coincidências de formas de expressão literária. As equivalências da espécie aqui sugerida existem. Precisam, é certo, ser identificadas com extrema

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acuidade. Mas, uma vez identificadas, dão ao estudo comparado de literaturas que se faça sob um critério sociológico, complementar do estético, uma extraordinária riqueza. Nelson Rodrigues avulta, na literatura atual do Brasil, como o nosso maior teatrólogo. O maior de hoje e o maior de todos os tempos. Pode ser considerado um equivalente, nesse setor, do Eugene O’Neill: do que foi O’Neill na literatura dos EUA. Mas ele é também o mais incisivamente escritor, sem deixar de ser vibrantemente jornalístico, dos cronistas brasileiros de hoje. O maior dos jornalistas literários – potentemente literários – que tem tido o Brasil. Nesse setor é um equivalente do que foi e é – quem o superou? – Eça de Queiroz na literatura portuguesa. Apenas com esta diferença: no brasileiro há um vigor

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Gilberto Freyre


Nelson Rodrigues avulta, na literatura atual do Brasil, como o nosso maior teatrólogo. O maior de hoje e o maior de todos os tempos de expressão maior do que em Eça – um Eça até hoje inatingido e, talvez, inatingível, na graça artística que soube dar ao seu jornalismo literário. Por jornalismo literário não se deve entender o jornalismo que se ocupe de assuntos literários; e sim o que se caracterize pela potência literária do jornalistaescritor. Um característico relativamente fácil de ser captado: contanto que se dê tempo ao tempo. O escritor-jornalista ou o jornalista-escritor é o que sobrevive ao jornal: ao momento jornalístico. Ao tempo jornalístico. Pode resistir à prova tremenda de passar do jornal ao livro. As correspondências de Eça de Queiroz, de Paris e da Inglaterra, para jornais portugueses e brasileiros, passaram a ter seu maior esplendor quando publicadas em livro. E esse esplendor continua. Enquanto artigos, para o momento em que aparecem em jornais, magníficos – magníficos como pura expressão jornalística – reunidos em livros não resistem à terrível prova: morrem. Fenecem. Rosas de Malherbe. Conchas de Emerson. Vários exemplos poderiam ser invocados dessa precariedade da expressão apenas jornalística: os artigos reunidos em livro de Costa Rêgo – jornalista magistral; os de Anibal Fernandes – outro jornalista magistral; os de Plínio Barreto – ainda outro jornalista admirável. Mas admiráveis, os três, quando lidos quentes e quase intoleráveis quando frios. Em Nelson Rodrigues, como em Eça de Queiroz, o escritor vence o tempo como escritor, embora servindo-se do jornal; da correspondência para jornal; do comentário ao acontecimento do dia. Nelson Rodrigues é, dos dois, o mais vigoroso nessa espécie de expressão literária: a transferível de jornal para livro. Ele é lido em livro, tão forte de virtude literária, quanto lido em jornal. Repete Eça. Repete Eça, neste particular, com maior vigor do que Eça. Excerto de texto utilizado em prefácio da primeira edição do livro O reacionário, de 1978

O outro lado do dramaturgo A Companhia das Letras está lançando toda a obra não teatral de Nelson Rodrigues. São, por enquanto, 16 títulos. Desses, dois publicados pela primeira vez em livro (A mentira e Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, que ele escreveu com o pseudônimo de Myrna). A coleção foi coordenada na primeira parte pelo escritor Ruy Castro e agora passa às mãos do diretor teatral Caco Coelho. Os livros são em sua maioria compilações de folhetins publicados em jornais, durante um período de 30 anos. Na coleção há ainda uma reunião das maiores crônicas esportivas escritas pelo teatrólogo e uma coletânea organizada por Ruy Castro das cem melhores frases rodrigueanas. Dos 16 títulos, apenas O casamento foi feito diretamente em formato de livro e, na época do seu lançamento, em 1966, foi censurado pelo governo de Castelo Branco. Entre os lançamentos, provavelmente, A vida como ela é... seja a obra mais conhecida. São quase 2.000 histórias publicadas, diariamente, no jornal carioca Última Hora, durante dez anos, todas centralizadas no adultério, que deixaram a fama de “tarado” do escritor ainda maior. Além de Myrna, Nelson Rodrigues também escreveu suas histórias com outro pseudônimo feminino: Suzana Flag. Com esse nome ele publicou folhetins nos jornais de Assis Chateaubriand nos anos 40. O segundo deles, Escravas do amor, foi lançado em livro na época, mas só agora tem a segunda edição, pela Companhia das Letras. Núpcias de fogo é o outro livro da coleção que sai com o pseudônimo de Suzana Flag. Embora tenha sido muito tempo visto com desconfiança pela crítica literária brasileira, o essencial da prosa rodrigueana está nessa coleção. O próximo lançamento para este mês chama-se O profeta tricolor, um livro de crônicas sobre o Fluminense organizado por Nelsinho, filho do mestre. Toda a complexidade e drama do escritor podem ser vistos por quem ainda não teve nenhuma chance de conhecer o mundo desse gênio que pode parecer polêmico, mas não é nada óbvio. Continente Multicultural 17


Explique as causas do rancor e da ironia feroz que o senhor cultiva diante de seus personagens, como por exemplo, “as verdadeiras grã-ffinas”... O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina...”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: “Se não têm pão, comam brioche”. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina

paulista, que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: “Na minha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grãfinas foi esta: elas não existem. O senhor não volta ao Recife porque tem medo de avião? Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil.

Sangue pernambucano Tatiana Resende

Apesar de ter sido criado e feito toda a carreira no Rio de Janeiro, foi do Recife que Nelson Rodrigues herdou suas raízes. Ele nasceu no dia 23 de agosto de 1912 e, aos três anos e meio, mudou-se para a Cidade Maravilhosa com a mãe, Maria Esther, e mais cinco irmãos. O pai, Mário, diretor do Jornal da República, tinha ido antes por causa de desavenças com políticos influentes da época, como Manuel Borba e Dantas Barreto. Admirador de soldados audaciosos e estrategistas, Mário homenageou o almirante inglês Lord Nelson, vencedor da Batalha de Trafalgar, em 1805, pondo-lhe o nome em um dos filhos. Nelson Rodrigues Filho, o Nelsinho, diz que o pai sempre lembrava a cidade onde nasceu quando ia à praia, mesmo tendo deixado a capital pernambucana em tão tenra idade. “Ele dizia que tinha uma relação muito forte com o mar, que o fazia recordar a infância no Recife”, afirma. As marchinhas de frevo eram outra paixão do dramaturgo, pois elas o faziam ficar mais perto da terra natal. “Uma, em especial, Evocação nº1, de Nelson Ferreira, ele ouvia sempre”, comenta Nelsinho, que, de tanto escutar, acabou decorando os versos: “Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon, cadê teus blocos famosos...” 18 Continente Multicultural

Joffre Rodrigues lembra apenas que o pai adorava pitangas e, sempre que as saboreava, falava da Veneza Brasileira. Na biografia O anjo pornográfico, o autor Ruy Castro relata que Nelson voltou ao Recife apenas uma vez, para passar férias, na adolescência. Os pais convenceram-no a ir para que esquecesse as paixões “avassaladoras” que tinha a cada mês no Rio de Janeiro. Corria o mês de maio de 1929 e Nelson tinha 17 anos, idade que, segundo Ruy Castro, “lhe permitiu redescobrir Olinda, conhecer a praia de Boa Viagem e mergulhar fundo na boêmia local, pois não saía da zona de mulheres do Cais do Porto, considerada proporcionalmente a maior da América do Sul”.

Nelson voltou ao Recife apenas uma vez, para passar férias, na adolescência. Os pais convenceram-no a ir para que esquecesse as paixões “avassaladoras” que tinha a cada mês no Rio de Janeiro


O senhor não pensa em voltar? De vez em quando eu faço evocações. Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir. Geneton Moraes Neto é jornalista

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Nelson Rodrigues tinha paixão pelo frevo, em particular o Evocação nº1, de Nelson Ferreira

O acompanhante nessas aventuras era o primo Augustinho, embora, de dia, Nelson preferisse ficar com a prima Netinha, que só conheceu naquela época, mas com quem já se correspondia há muito tempo. Em Alma infantil, inclusive, dedicou-lhe poemas, mesmo só a tendo visto em fotografias até então. Naqueles dias, o jovem Nelson adorava ficar jogando bolinhas de pão nos tios e acusar a prima, além de brincadeiras bem mais nefastas, como se deitar no meio da rua e fingir que tinha sido atropelado. “Eles eram os primos mais queridos. Netinha sempre dizia que Nelson a chamava de ‘Netinha, minha adolescência’, pois ela conseguia alegrá-lo sempre”, recorda Augusto Rodrigues, filho de Fernando Rodrigues, irmão de Augustinho. Atualmente proprietário da Rodrigues Galeria de Arte, no Torreão, Augusto diz que se encontrou poucas vezes com o primo ilustre, todas no Rio de Janeiro, quando estudava na Tijuca. “Apesar de tudo

que escrevia e das polêmicas que causou, ele era um conservador”, define. A opinião é compartilhada por outro primo distante de Nelson, Reinaldo de Oliveira, filho de Valdemar de Oliveira e Diná, que, por sua vez, era filha de Alfredo Rosa Borges, primo de Mário Rodrigues. “Foi o teatro que nos aproximou. Quando fomos fazer uma turnê no Rio de Janeiro, em 1953, ele nos visitava quase todos os dias”, diz Reinaldo. Outra representante ilustre dos palcos pernambucanos conheceu Nelson nessa temporada carioca, Geninha da Rosa Borges, esposa de Otávio, irmão de Diná. “Ele era uma pessoa maravilhosa, simples, mas, como éramos muito jovens naquela época, ele preferia ficar conversando e trocando idéias como o Dr. Valdemar”, conta Geninha.

Tatiana Resende é jornalista

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FERREIRA GULLAR

O preço do fingimento Sem se dar conta, o presidente da Fundação Bienal de São Paulo, sr. Carlos Brakte, expõe a contradição básica de um tipo de arte que se quer rebelde e institucional ao mesmo tempo

U

m estudante de Jornalismo, de 21 anos, chamado Cleiton Campos, entrou na 25.ª Bienal de São Paulo com um pequeno quadro de sua autoria e o pôs em uma das salas da mostra, como se o quadro fizesse parte dela. Deixou-o ali e foi embora. A partir daquele momento, tornara-se expositor no famoso certame internacional do Parque Ibirapuera. Embora a imprensa não tenha dito isto, estou certo de que foi o próprio Cleiton quem telefonou para algum jornal ou emissora de televisão para dar notícia de sua traquinagem, que logo virou manchete. Se não tivesse feito isso, ninguém teria notado a presença de sua pequena tela clandestina em meio a tanto treco sem graça que a Bienal expõe, desde pedaços de madeira ou metal até papelão rasgado, tudo isso preso nas paredes ou pendurado, ou mesmo solto no chão. O gesto não regimental de Cleiton tornou-se conhecido da mídia e da direção do certame. E sabem qual foi a reação do sr. Carlos Bratke, presidente da Fundação Bienal de São Paulo? Ele aprovou a iniciativa do jovem por considerar que a tela representava “uma obra de arte conceitual”. “Acho que o rapaz é muito inteligente”, declarou. “A polêmica que causou foi digna de um bom artista performático”. Perguntado se a pequena tela seria mantida como parte da exposição, Bratke respondeu: “Não vou analisar o quadro em si, mas [Cleiton] conseguiu superar, em comoção, os outros artistas perfor-

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máticos. E sem ter sido convidado! Acho que tem futuro na arte conceitual”. O fato merece algumas considerações por ser bastante elucidador de um certo tipo de atividade dita artística e das instituições que o promovem. O presidente da Bienal afirma que o jovem Cleiton tem futuro na arte conceitual, pois superou os outros artistas performáticos que fazem parte da mostra, “e sem ter sido convidado!”. O sr. Carlos Bratke parece não se dar conta do que afirma: se o rapaz tivesse sido convidado, seu gesto simplesmente não teria ocorrido, já que consistiu em introduzir sua tela numa mostra para a qual não fora convidado. A “obra” é isso! E se com esse gesto ele superou os que foram convidados – conforme a avaliação do próprio presidente da Bienal – devemos concluir, primeiro, que os bons artistas são os que não aceitam o convite da Bienal para expor; segundo, que os que expõem na mostra não têm qualquer importância, pois o que realmente conta é provocar escândalos. Arte (se se pode chamá-la de Arte) para a mídia, o que não passa de exibicionismo. Dessa forma o sr. Bratke põe em luz, sem se aperceber disso, a contradição básica deste tipo de manifestação que se quer rebelde e institucional, ao mesmo tempo. É essa contradição que o torna paradoxal ao aprovar um ato que infringe o regulamento da instituição que dirige e considerar o infrator “artisticamente” superior aos que se submeteram ao regula-


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mento. E nisso ele tem razão, pois, quem opta por manter-se fora de qualquer norma ou limite, como artista, não deveria nunca aceitar participar de exposições institucionais, uma vez que “institucional” é o que institui, estabelece, obedece a normas. Seria possível conceber Rimbaud ou Lautréamont candidatando-se à Academia Francesa? Com isso fica evidente a pouca seriedade de tal arte e de tais instituições, assentadas sobre uma base farsesca: “Você finge que é rebelde e eu finjo que acredito...” Sim, porque também um dos luxos da burguesia, hoje, é ser, além de rica, antiburguesa, “rebelde”, apropriando-se assim da única coisa que restava aos seus opositores. Por isso mesmo, a bunda fica de fora: o presidente da Bienal não pode condenar a violação do regulamento da instituição que dirige porque, se o fizer, estará contra a “rebeldia”, que a Bienal está ali para acolher e prestigiar. Ou seja, se a Bienal punir o rebelde, se desmascara, mostra que é uma instituição como as demais, põe em questão a modernidade da burguesia brasileira que, desse modo, pareceria burguesa... Outros artistas já procuraram explorar as contradições das mostras oficiais. Na mesma 25.ª Bienal, surgiu uma proposta que, embora partindo de um artista convidado, atingia diretamente as normas da exposição: abrir, em algum ponto do prédio, uma porta clandestina por onde o público pudesse entrar sem pagar. E mais uma vez os responsáveis pelo certame encontraram-se diante da velha contradição: como rejeitar uma proposta rebelde se somos uma instituição defensora da arte rebelde? Acredito que, secretamente, eles devem ter pensado que “rebeldia tem limites”. Deitarse no chão, no dia do vernissage, para ser pisado pelos convidados, é uma rebeldia aceitável, mas abrir uma porta clandestina para que o público entre sem pagar é demais, é atentar contra o faturamento da mostra.

A verdade, porém, é que, mesmo praguejando contra o autor da proposta inconveniente, os responsáveis pela Bienal encontraram uma saída conciliatória: far-se-ia sim uma entrada clandestina, mas ela só ficaria aberta durante uma hora, e por ela só poderiam entrar, no máximo, cinco pessoas por dia. Trata-se, como se vê, de um novo tipo de rebeldia: a rebeldia regulamentada... Ora, se a arte conceitual é coisa velha, os problemas que a envolvem também o são. Estão na sua origem mesma e começaram com o primeiro gesto rebelde de seu criador. Em 1917, Marcel Duchamp, que fazia parte do conselho do Salão dos Independentes de Nova Iorque, enviou para lá o seu hoje célebre urinol, assinado Mutt. O júri (rebelde) teve de aceitar a “obra”, mas a contragosto, tanto que, na hora de expô-la, a escondeu. No dia do vernissage, Duchamp procurou por seu urinol e só foi encontrá-lo, depois de muito tempo, atrás de um tabique, nos fundos do salão. Zangou-se e se demitiu do conselho. Queria que sua rebeldia fosse aceita pela instituição. Ele foi, portanto, não só o inventor da “antiarte” (mudada para “arte conceitual”), como também o primeiro a viver a condição contraditória que haveria de acompanhá-la até os dias de hoje: a de ser rebeldia financiada e oficialmente reconhecida. A lição que se deve tirar disso tudo não é a de que não se deve ser rebelde, mas, sim, a de que não se deve fingir-se de rebelde. Fora disso, sabe-se que o valor da arte não está em ostentar rebeldia, mas em ser efetivamente expressão do talento e da mestria do artista, para com isso deslumbrar ou comover as pessoas. O cinismo niilista de Duchamp, compreensível em sua época, não tem mais cabimento.

O célebre urinol que Duchamp enviou ao Salão dos Independentes de Nova Iorque, em 1917. O júri teve que aceitar a “obra”, mas, na hora de expô-la, a escondeu

Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

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CONVERSA FRANCA

Autor do best-seller Santa Evita e do romance O vôo da rainha, lançado pela editora Objetiva, dentro da coleção Plenos Pecados, o jornalista argentino Tomás Eloy Martínez analisa a situação política e econômica do seu país e a literatura latino-americana atual Fábio Lucas

Jornalista e escritor argentino Tomás Eloy Martínez, ganhador do Prêmio Alfaguara, para autores de língua espanhola

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Os pecados de uma nação

triunfalismo cedeu ao derrotismo, a vanglória deu lugar à tristeza e o orgulho virou humilhação. Eis o resumo da história da Argentina nas últimas décadas. Um país marcado pelas feridas de desmandos e corrupção, onde os intelectuais falam para governantes sem ouvidos, segundo o jornalista e escritor Tomás Eloy Martínez. Uma terra cujo povo que se gabava de sua ligação com o mundo desenvolvido, sobretudo com o Velho Continente, e hoje reclama da globalização. Diretor do Programa de Estudos LatinoAmericanos da Rutgers University, em Nova Jérsei, nos Estados Unidos, Martínez deu um precioso testemunho de como os seus conterrâneos têm sofrido as dores da crise econômica e política que assola o país. Ele foi o vencedor da última edição do Prêmio Alfaguara, para autores de língua espanhola, com o romance O vôo da rainha, que enfoca a Soberba e fecha a coleção Plenos Pecados, da editora Objetiva. O cenário do livro é uma Argentina desolada pela ação de políticos populistas e corruptos, numa trama livremente inspirada no passado recente e amarrada pelas relações entre a imprensa e o poder. Uma história de amor vivida dentro de uma redação de jornal serve como fio condutor para apontar os pecados da nação. Nesta entrevista, o autor de Santa Evita, bestseller com mais de 150 mil exemplares vendidos no mundo, explica por que a crise argentina é uma crise de autoritarismo, denuncia a ignorância dos presidentes no seu país e diz que a elite cultural é impotente diante de uma elite política analfabeta.

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FOTOS: (TOMÁS ELOY MARTINEZ) DIVULGAÇÃO ; (DEMAIS FOTOS ) DIDA SAMPAIO / AE

Para os chineses, crise é também oportunidade. É verdade que, para os artistas, a crise é necessária para a criação? Como a palavra chinesa indica, uma crise pode ir em duas direções. Uma direção positiva e uma negativa. Uma pode destruir você, a outra pode convertêlo numa pessoa melhor. Depende da força interna que se tenha, da harmonia interna e da vontade que se possua para desafiar a crise. A crise revela os homens, os países e as famílias, tal como são. Na crise você enxerga exatamente a sua identidade. Se ela for positiva, forte, harmoniosa, você poderá sair bem da crise. Se estiver fragmentada, se você é muito pessimista, a crise o destruirá. Depende da qualidade do ser humano, da família ou da nação que desafia a crise. Então podemos dizer que o que está em jogo na Argentina é a identidade da nação? A crise argentina é uma crise de autoritarismo. A Argentina nunca superou o autoritarismo que começou em 1930, com o primeiro golpe militar, se acentuou no peronismo e continuou com a alternância de governos democráticos débeis e ditaduras militares. O autoritarismo se instalou na sociedade. Neste momento o autoritarismo se encarna em uma série de senhores feudais, que são os governadores peronistas. Cada um deles está arrancando pedaços do país, para se apropriar do pouco que resta da Argentina. A Argentina sofreu com muitos maus governantes. Diferentemente do que ocorre no Brasil, no

Chile ou no Uruguai, quase todos os nossos governantes têm uma inteligência e uma honestidade inferiores à média dos habitantes. A responsabilidade é dos argentinos que os elegeram. Mas em muitos casos não havia opções. Como o senhor descreveria os últimos presidentes argentinos? Padecemos de um governante cheio de promessas, como Alfonsín, depois da horrível ditadura militar. Alfonsín quis julgar os militares e depois os liberou. Esse movimento de caranguejo causou muitos danos ao país. Depois veio um presidente como Menem, a máxima corrupção e a máxima frivolidade, que conseguiu o milagre de vender todos os bens da Argentina e endividar ainda mais o país, simultaneamente. É um milagre raríssimo. É como se alguém vendesse sua casa, seus móveis, sua roupa, e depois terminasse mais pobre. Isso foi Menem. E logo depois foi a vez de um presidente inepto, uma espécie de zumbi, como De La Rua. Agora vivemos o momento dos governadores-senhores feudais.

Para Martínez, os três últimos presidentes argentinos antes da crise são culpados. Alfonsín, por não cumprir o que prometeu; Menem, por ser frívolo e corrupto; De La Rua, por ser um presidente inepto, “uma espécie de zumbi”

E como sair dessa seqüência? No momento em que o país encerrar a batalha pelo poder, do peronismo, por um lado, e da torpeza dos radicais, por outro, haverá um país melhor. Tocará o fundo do abismo e saltará adiante melhor. Pior do que está, não pode ficar.

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O jornalista brasileiro Pimenta Neves, exdiretor de redação do jornal O Estado de São Paulo, processado pelo assassinato da namorada, é citado no livro do autor argentino

Qual seria o papel dessa elite cultural, que sempre se orgulhou de ser atuante e venerar seu país, diante de uma nação humilhada? A elite atua, fala e grita. E aponta os males do país incessantemente. O que acontece é que os intelectuais argentinos, agora, não têm nenhum peso no país. Porque o intelectual só pode ser ouvido quando os governantes lêem. Se os governantes são analfabetos, não há nenhuma possibilidade de diálogo. Para que um intelectual tenha peso na comunidade, é preciso que o poder o reconheça como tal. Como no Brasil, no México, na Venezuela e na Colômbia. O seu romance trata do pecado da soberba. Até que ponto a soberba se misturou com o orgulho no passado da Argentina? 24 Continente Multicultural

O pecado da soberba foi o primeiro pecado da humanidade, pecado que Satanás cometeu contra Deus. A Argentina, mais do que a soberba e o orgulho, cometeu o pecado da onipotência. Os argentinos diziam: “Isso não pode acontecer comigo”. O sentimento de imortalidade era algo muito argentino. “Quem sou eu para merecer isso?”, se perguntam agora. A crise também traz um lado simbólico, pois afeta um país, dentro da América Latina, que era uma vitrine cultural e detinha uma ligação cultural muito grande com a Europa. Por muito tempo se disse que a Argentina era culturalmente superior aos demais países do continente. O senhor concorda com essa visão? A cultura argentina é muito viva, forte, mas não acho que se possa colocá-la acima da cultura do Brasil, por exemplo, que é muito rica também. Aqui há cinema de enorme vitalidade, literatura, artes plásticas, música. Nenhum argentino sensato pode dizer que nossa cultura é mais importante que a do Brasil. Todavia, essa cultura está viva. Em plena adversidade, o cinema e a literatura argentinos seguem adiante – e esse é o único oxigênio que possui a sociedade, neste momento, para sentir-se viva. A vida cultural intensa também significava a integração do cidadão argentino com outras partes do mundo. Não chega a ser irônico que agora esse mesmo cidadão argentino, que se gabava de ser globalizado culturalmente, se veja vítima de uma globalização econômica? É irônico. Na ordem cultural é algo curioso. Acabo de voltar da Espanha, e este é um momento em que a cultura argentina, os filmes e a literatura estão sendo procurados com muito interesse. A globalização

FOTOS: REPRODUÇÃO ; ALI BURAFI / AFP

O protagonista de Vôo da rainha, Camargo, é o diretor de redação de um jornal, o representante da elite cultural argentina. A história dele pode ser vista como um exemplo do comportamento e da reação da elite cultural argentina frente à crise? Sim, por duas razões. Ele também pode ser um símbolo do que a Argentina é, como país. Por um lado, Camargo não tolera o abandono. Para a Argentina, também é uma enorme surpresa sentir que é um país abandonado, que sua queda não tem importância para quase ninguém. Essa é uma enorme surpresa. Segundo, Camargo começa lutando contra a corrupção política e econômica. Ao mesmo tempo, é vítima de uma corrupção de outro tipo, moral. Que não tem a ver com dinheiro, mas com a destruição de si mesmo. De algum modo, é a destruição da identidade. Na crise, Camargo aparece como uma pessoa negativa, e isso é importante para a história.


Tanto no Brasil como na Argentina, os ditadores militares foram assassinos e torturadores. Na Argentina, além disso, foram ladrões está ajudando a cultura argentina. Mas a globalização econômica destruiu a Argentina. Há que separar um pouco as coisas. De um lado, a globalização econômica, e de outro, a globalização cultural. A globalização cultural é positiva, na medida em que nos permite ver, primeiro, muitos filmes de Hollywood, o que é péssimo, mas também o cinema brasileiro, que é ótimo, o cinema espanhol, o cinema francês, o cinema escandinavo. Também nos oferece uma forma de comunicação tecnológica, através da Internet, que é positiva. O problema é quando os conglomerados culturais, jornalísticos e de grandes empresas, oprimem o artista. Eles somente publicam o que vende milhares de exemplares, é rentável. Isso é pernicioso para a arte, porque a arte cresce e melhora através da experimentação e da busca de outras linguagens. O senhor afirmou recentemente que “em todas as diferenças há semelhanças, e em todas as semelhanças há diferenças”. Como o senhor compararia o modo como o Brasil e a Argentina têm encarado suas crises e evoluído, do ponto de vista cultural, após o período autoritário? Tanto no Brasil como na Argentina, os ditadores militares foram assassinos e torturadores. Na Argentina, além de assassinos, foram ladrões. Assaltantes de bancos, roubaram as casas, as propriedades, como um batedor de carteiras comum. Os militares argentinos foram depredadores. Foi difícil reconstruir um país depois desse roubo gigantesco. No Brasil, houve uma alternância democrática positiva. Com governantes discutíveis, porém que reorganizaram o país. Apesar dos conflitos econômicos e dos níveis de desemprego, o Brasil é um país que está vivo e em crescimento. E tem um presidente que, erros à parte, é um

Martinez acha que os argentinos pecaram por soberba, orgulho e onipotência. Agora, perplexos, se perguntam como uma crise dessas foi se abater justamente sobre eles

intelectual. E um intelectual é uma figura importante à frente de um país, porque tem consciência da História. E sabe que seu mandato, seu destino pessoal, tem uma relação estreita com o destino de seu país. Na Argentina isso não aconteceu. Não tivemos a sorte que o Brasil teve nesse sentido. Tivemos presidentes idiotas, frívolos e analfabetos. Não tivemos presidentes intelectuais. A evolução dos dois países tem sido muito diferente, a partir das ditaduras militares. O que o levou a escrever um livro remexendo nas feridas atuais da Argentina? A trama do livro é a história de amor entre dois jornalistas que vivem no presente. E os fatos do presente atuam sobre os dois personagens. Se tivessem outra profissão, talvez fosse diferente. Mas é uma história de amor em meio aos fatos da atualidade. Por ser uma obra imersa no presente, seu livro levanta questões quanto ao exercício da atividade literária num país mergulhado na crise. Que diferença pode fazer um livro? Um livro pode fazer muita diferença, ou nenhuma. Há livros que marcaram época. Na Argentina, O jogo da amarelinha, de Cortázar, por exemplo, foi uma espécie de Bíblia para os jovens nos anos 60. Como Cem anos de solidão, de Garcia Marquez, que marcou um novo modo de ver a realidade, ou Grande sertão: veredas, ou Clarice Lispector. Mas não é fácil, nem freqüente, escrever um grande livro. Na Argentina não há um grande livro agora, mas há muitos excelentes livros que permitem ao leitor encontrar modos de refletir sobre a crise. Espero que O vôo da rainha seja um deles. Continente Multicultural 25


Segundo Eloy Martínez, Borges, que se destacou no chamado “realismo fantástico”, também escreveu obras que eram respostas às realidades políticas da Argentina, assim como Dickens, que fez uma minuciosa análise crítica das escolas inglesas

Em relação à prosa, o melhor da literatura latino-americana se encontra numa zona de penumbra entre realidade e ficção 26 Continente Multicultural

Qual a influência do jornalismo literário sobre sua obra, já que ela é inspirada pela realidade? A maior influência neste romance vem do cinema. Com exceção do episódio do jornalista brasileiro Pimenta Neves, que abre o terceiro capítulo, você não encontra nada no livro que seja uma crônica da realidade: na Argentina recente não há senadores que se suicidam, nem presidentes com visões místicas, tampouco diretores de jornais com o poder que tem Camargo. Alegra-me que você pense que o que acontece no livro seja inspirado pela realidade, porque quis criar essa ilusão. Mas trata-se de uma ilusão. A Argentina que está lá é uma metáfora. Uma metáfora bem próxima da realidade, aliás. Quase todos os romances são inspirados pela realidade, e nem por isso se supõe que haja neles influência do jornalismo literário. O que você diria de Guerra e paz, onde Tolstoi explorou cada detalhe botânico ou militar para não se separar do real? Ou de Nicholas Nickleby, em que Dickens faz uma minuciosa análise das escolas inglesas? Ou de Adeus às armas de Hemingway, de Crônica de uma morte anunciada de Garcia Marquez, de Agosto de Rubem Fonseca, somente para citar obras de culturas diferentes? Diria que são jornalismo literário? O vôo da rainha se passa

FOTOS: REPRODUÇÃO / AE

O realismo fantástico, uma tradição na literatura argentina, está perdendo força? A literatura argentina é vasta e não pode ser limitada ao que se chama de “realismo fantástico”. Autores como Borges, Cortázar ou Bioy Casares, que se destacam nesse gênero, escreveram também obras que eram respostas às realidades políticas da Argentina. No caso de Borges, contos como Emma Zunz, O evangelho segundo São Marcos, A intrusa, e quase toda a última parte de sua obra, se inscrevem nessa linha. O mesmo se poderia dizer de todos os últimos contos de Cortázar, dos quatro últimos romances de Bioy Casares e da obra inteira de autores importantíssimos como Roberto Arlt, Manuel Puig, Ricardo Piglia. Portanto, dizer que o realismo fantástico prevalece na literatura argentina é empobrecer essa literatura. Seria o mesmo que dizer que toda a literatura brasileira é de tradição regional.


Martínez conta que entrou em contato com a literatura brasileira há 40 anos, quando ficou deslumbrado com as obras de Clarice Lispector e Guimarães Rosa

na redação de um jornal, e seus personagens são jornalistas, mas o livro foi escrito com as técnicas de um romance, que exigem ambigüidade e cumplicidade com a inteligência do leitor. Não acho que o jornalismo literário tenha isso. De um modo geral, como o senhor vê a produção literária latino-aamericana atual? Em relação à prosa, o melhor da literatura latino-americana se encontra numa zona de indecisão ou de penumbra entre a realidade e a ficção, como quase toda grande literatura contemporânea, desde W.G. Sebald e Claudio Magris a Don DeLillo, Antonio Tabucchi e os grandes romancistas ingleses, de Julian Barnes e Martin Amis a Kazuo Ishiguro e Ian McEwan. Na América Latina escrevem-se romances tão bons quanto em qualquer outro lugar – em alguns casos, romances até melhores. O que o senhor conhece da literatura brasileira contemporânea? Há pelo menos quarenta anos que leio com atenção a literatura brasileira. Fiquei deslumbrado com as obras de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade. Com a freqüência que posso, continuo len-

do Machado de Assis. E sempre vi essas obras relacionadas com o riquíssimo Cinema Novo, com a música popular ou clássica (as Bachianas de Villa-Lobos e as óperas de Chico Buarque estão entre as minhas favoritas), com a pintura e a arquitetura. Acrescentaria Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Nélida Piñon, Rubem Fonseca e Patricia Melo, talvez porque cada um deles tenha me enriquecido. Não conheço a recente poesia brasileira, infelizmente. O que mais lhe chama a atenção na literatura brasileira? Vocês criaram uma linguagem própria, em que a diversidade brasileira está de corpo inteiro: a violência urbana de hoje já estava em Clarice Lispector, a complexidade verbal de Guimarães Rosa tem a ver com os diversos níveis de linguagem que há nas cidades – e não falo apenas de níveis sociais, mas também de linguagens que se movem, se transformam, refletindo um país em mudança veloz e perpétua.

Fábio Lucas é jornalista

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MEMÓRIA

Visão de Sérgio Buarque Passados vinte anos de sua morte e cem de seu nascimento, ele continua a me parecer a versão brasileira acabada do homem de gênio José Mário Pereira

que o senhor achou do prefácio de Darcy Ribeiro à edição venezuelana de Casa-ggrande & senzala, de Gilberto Freyre? – Inteligente, mas ele ficou em cima do muro! Quem assim responde ao interlocutor curioso é Sérgio Buarque de Holanda. O ano é 1977. O cenário, um quarto de hotel na Avenida Atlântica. Há mais duas pessoas ali: D. Maria Amélia, sua mulher, e o historiador Raimundo Faoro. Embora tivesse acabado de chegar do médico, que lhe prescrevera fumar pouco e limitar o álcool a duas doses diárias de whisky, Sérgio está alegre e pleno de mordacidade. Há pontas de cigarro por todos os lados, e em relação à bebida ele já encontrou um modo de burlar a autoridade médica: adotou um copo longo, que enche até a boca, contabilizando, por cada um deles, apenas uma dose. Sérgio Buarque era assim, irreverente, ágil de pensamento, figura humana absolutamente irresistível. Quem, desavisadamente, o encontrasse a contar uma de suas piadas, jamais desconfiaria estar diante de um dos mais fecundos e originais homens de cultura que o Brasil produziu em toda a sua história. Sérgio foi um scholar sem pedantaria, “o anticafajeste por excelência” na precisa expressão de seu amigo Manuel Bandeira. Esse homem especial, que transpirava erudição, nada tinha, porém, de esnobe ou afetado. Era capaz de falar horas a fio de temas e fatos do Brasil e do mundo com absoluta intimidade. Sabia contar histórias como ninguém, e era impossível não ficar horas a fio escutando-oo. A curiosidade intelectual de Sérgio se espraiou por vários campos da cultura até se fixar na

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História. Jornalista político, crítico literário afiadíssimo – um dos primeiros, entre nós, a recusar o new criticism americano –, ele fundou com Prudente de Moraes Neto a Estética, uma das principais revistas do modernismo, foi ficcionista singular e cometeu versos que impressionaram leitores exigentes, a ponto de Bandeira incluí-llo em sua Antologia dos poetas bissextos. A alta cultura, no entanto, não o distanciou da vida: boêmio de raça, na juventude era capaz de varar madrugadas em botequins, na companhia de Donga e Pixinguinha, tocando sambas com desembaraço ao piano, segundo conta Gilberto Freyre, seu companheiro de mocidade no Rio. O encontro com a historiografia alemã, intensificado no período em que lá esteve como correspondente, enviado por Assis Chateaubriand, foi decisivo para o futuro historiador: distante do Brasil, viu-sse desafiado a entendê-llo. Quando voltou, trazia na mala um caderno cheio de notas, a gênese de Raízes do Brasil (1936), marco de nossa historiografia, que, passados tantos anos de sua publicação, continua a fecundar novos estudos sobre o país. Na Alemanha, Sérgio fez ponta em cinema, freqüentou um clube de

FOTO: ARQUIVO / FOLHA IMAGEM

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O crítico nudismo, assistiu às aulas de Meinecke, entrevistou Thomas Mann (que lhe confirmou a origem brasileira de sua mãe) e leu, leu muito, principalmente Max Weber, de quem foi o primeiro a falar aqui, e cuja obra tornou-sse importante ferramenta na confecção de seu Raízes. É bom notar, no entanto, que em Sérgio não havia servilismo intelectual, nada desse fenômeno, tão comum aos nossos homens de cultura, de reverência extremada às matrizes européias. Sérgio – e aí está a sua grandeza – metabolizou, criativamente, tudo que leu, e chegou mesmo a criar um estilo de escrever História. Toda a obra de Sérgio Buarque é originalíssima. De Raízes do Brasil, com suas iluminações certeiras sobre as peculiaridades de nossa democracia e liberalismo, até o póstumo Capítulos de literatura colonial, organizado por mestre Antonio Candido, e que veio enriquecer, em particular, o entendimento do barroco brasileiro. Minha predileção, no entanto, recai em Visão do paraíso, livro único em nossa historiografia, no qual José Honório Rodrigues via “uma erudição imensa”, e cuja rica temática, desde então, continua inexplorada por nossos historiadores. Trata-sse de obra-pprima em qualquer língua, mas ainda pouco conhecida, a ponto do historiador espanhol Juan Gil, no caudaloso Mitos y utopías del Descobrimiento (Alianza, 1989) se dar ao luxo de não citá-lla. Quando o encontrei pela última vez, já no final da década de 70, Sérgio usava bengala, estava um tanto cansado, mas seu espírito era o mesmo. Com o seu vozeirão inconfundível, divertiu a todos cantando sua versão em latim de Sassaricando. Fino artesão da língua, homem de um desassombro intelectual sem par, quando o arbítrio tomou conta da Universidade ele se demitiu de sua catédra em protesto, fato assinalado no precioso Blackwell Dictionary of Historians (1988), que lhe dedica um verbete assinado por A. J. R. Russel-W Wood, da Johns Hopkins University. Em Sérgio Buarque de Holanda era total a ausência de vaidade ou de inveja. Passados dez anos de sua morte e cem de seu nascimento, ele continua a me parecer a versão bra sileira mais acabada do homem de gênio.

Por causa de sua importância como historiador, a atuação de seis décadas de Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário ainda é discriminada Luiz Carlos Monteiro

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uando se fala no nome de Sérgio Buarque de Holanda, vem logo à lembrança a sua condição de autor de Raízes do Brasil. São esquecidos com demasiada freqüência, nestas situações corriqueiras do plano da oralidade, outros livros capitais do Sérgio Buarque historiador. E bem mais posta de lado ainda é a sua atuação de seis décadas como crítico literário, agora discriminada também no plano da escrita. Mas, se nem tudo na obra do escritor paulista gira em torno da historiografia colonial, de modo algum podem ser relegadas suas descobertas e questionamentos acerca de uma faceta socioantropológica fundante do homem brasileiro, quer se concorde com eles ou não. Ou os resultados da busca incansável por fontes de estudo e pesquisa as mais abalizadas e fidedignas de nossas épocas menos documentadas. Com o discurso histórico associado à filologia, conforme propôs Alfredo Bosi, “uma ética imanente ao labor intelectual, um franco amor à verdade dá a esse discurso um gosto de coisa autêntica que faz bem à alma do leitor burlado e iludi do de nossos dias”. Não é ilícito afirmar que a mesma compulsão rigorosa, erudita e de prosa fluente que impulsionava o historiador logra manifestar-se também no crítico literário exímio e exigente que ele foi. Sérgio Buarque iniciou-se na crítica literária já em 1920, aos dezoito anos. Modernista da primeira rama, conviveu com gente desse movimento em São Paulo: Guilherme e Tácito de Almeida, Sérgio Milliet, Mário e Oswald de Andrade. De 1921 em diante, morando no Rio de Janeiro, estuda Direito e faz dois grandes amigos na faculdade: Afonso Arinos de Melo Franco e Prudente de Morais Neto. Funda com Prudente a revista Estética, em 1924, com título dado por Graça Aranha.

José Mário Pereira é editor

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por Antonio Candido em Capítulos de literatura colonial (1991) e no Livro dos prefácios (1996). Candido não esconde a inteireza do elogio a Sérgio, companheiro de longas datas e de interesses políticos, sociológicos e literários em certos instantes convergentes e até comuns: “Como crítico, Sérgio foi um mestre incomparável, talvez o mais importante do Brasil no século 20”. O fato é que Sérgio completou, de algum modo, com sua antologia de poetas e seus estudos sobre a fase colonial, o trabalho crítico de Candido, que principia sua Formação da literatura brasileira com os árcades mineiros. Neste sentido, é sintomática a homenagem feita por Sérgio a Candido no ensaio Gosto arcádico, para o livro Esboço de figura. Sérgio Buarque tinha um posicionamento claro sobre a função da crítica e dos críticos, enfatizada na “Apresentação” que fez de outro livro que organizou em vida, Tentativas de mitologia (1979). A visão que mostra dos críticos é demolidora, sem esquivar-se contudo de sua própria inclusão nela, ao adiantar que o crítico é um “personagem naturalmente presunçoso, pois que se faz passar, no fundo, por onisciente”. Ele conta ainda detalhadamente, na apresentação, como veiculou-se o seu percurso intelectual no Brasil e na Europa, a sua relação controvertida com os modernistas, o seu afastamento temporário da crítica literária e como foram memoráveis as polêmicas sustentadas com os historiadores Oliveira Viana e Jaime Cortesão. Neste livro, mais que em Cobra de vidro, os motivos históricos e culturais aparecem em vários textos, tendo como pano de fundo a simples resenha

FOTO: REPRODUÇÃO / AE

O que pode ajudar na tentativa de definição crítica para Sérgio Buarque é, numa palavra, a argúcia assumida diante do objeto literário interpretado

Gilberto Freyre recorda em Vida, forma e cor como tentou e não conseguiu aproximar José Lins do Rego de alguns modernistas do Rio, entre eles Sérgio Buarque, após recomendá-los veementemente à simpatia e à atenção do paraibano: “Simpatia que, da parte dele – José Lins –, dificilmente se fixou em Prudente, Rodrigo, Sérgio e Drummond, embora tivesse imediatamente aderido à poesia e à personalidade de Manuel Bandeira”. Sua primeira coletânea, Cobra de vidro, somente será publicada em 1944. Na edição mais recente, de 1978, ainda refeita por ele, além dos textos jornalísticos de 1940-41, aparecem outros redigidos até 1952. É notável o texto sobre a poesia de Manuel Bandeira, Trajetória de uma poesia, que se prestou também para a introdução às obras completas do pernambucano. No esboço comparativo entre Bandeira e dois modernistas consagrados, Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, considerando-se certos processos líricos utilizados pelos três, conclui-se facilmente quem sairá ganhando. Ronald era o “colorista” artificioso, enquanto que a musicalidade até certo ponto “provocada” de Guilherme o imobilizará como numa camisade-força. Para o crítico, Bandeira é o poeta quase sem defeitos, aquele que não sacrifica o melhor de sua voz íntima em favor de elementos externos, às vezes falseados e deslocados da poesia. Sérgio faz também elogios rasgados ainda à poesia singular de Dante Milano, pelas temáticas pouco encontráveis em outros poetas e pelo conteúdo essencialmente filosófico de muitos de seus poemas. Revelam-se ainda exemplares as análises da poesia de Drummond e João Cabral. Do mineiro, questionará a qualificação de primeiro “poeta público” brasileiro, proposta anteriormente por Otto Maria Carpeaux, pensando nos poemas de Sentimento do mundo e na sua suposta ligação, em 1940, com a “moderníssima corrente da poesia inglesa”. Toma como ponto de partida, no caso de Cabral, o ensaio que este escreveu sobre Joan Miró, para melhor avaliar o poeta a partir de suas concepções peculiares sobre a arte do pintor espanhol. Em artigo recente, Antonio Arnoni Prado, organizador de parte da obra de Sérgio Buarque inédita em livro (O Espírito e a letra, 1996, em dois volumes que somam 1.100 páginas), intenta mostrar como se processa a influência exercida pelo historiador sobre o crítico em termos de argumentação e contextualização de tempo e espaço apreendidas do histórico. A outra parte dessa crítica foi organizada


ou a exposição mais ampliada e geralmente polêmica de determinados assuntos. No âmbito da crítica, no artigo Poesia & Positivismo destrona a idéia, defendida pelo filósofo positivista Euríalo Canabrava, de uma poesia que deveria ser escrita para atender a um padrão crítico existente de antemão. Ele vai buscar em T. S. Eliot o termo “autotelismo”, incorporando-o à crítica e utilizando-o nos arremates das argumentações de Euríalo: “Uma crítica que se quer autotélica, supõe necessariamente uma poesia igualmente autotélica, ou seja, dotada de expressão não apenas distinta, porém minuciosamente oposta a todas as demais formas de linguagem, mormente às mais precisas e inequívocas. É

curioso acompanhar as várias etapas do desenvolvimento desse pensamento que, a bem dizer, nasceu menos de uma aplicação direta ao estudo da poesia, do que do espírito de sistema, da vontade de organizar um corpo de doutrina crítica absolutamente coerente consigo mesma”. O embate provocou grande repercussão no início dos anos de 1950, pelas páginas do Diário Carioca, com entrevistas e artigos de outros intelectuais de renome, a exemplo de Manuel Bandeira, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux e Péricles Eugênio da Silva Ramos. O que pode ajudar na tentativa de definição crítica para Sérgio Buarque é, numa palavra, a argúcia assumida diante do objeto literário interpretado. E isto, principalmente, nas análises de poesia, quando estas aparecem desvinculadas ou isoladas das especificidades latentes e próprias das situações históricas. Luiz Carlos Monteiro é crítico literário

A polêmica cordialidade Cordial. Quando o historiador Sérgio Buarque de Holanda escreveu a palavra no título do quinto capítulo do seu livro mais conhecido, Raízes do Brasil, não imaginou que enfrentaria por ela uma polêmica com um seu colega modernista e paulista. Em 1948 (a edição original de Raízes do Brasil é de 1936), Cassiano Ricardo publicou artigo na revista Colégio questionando o sentido da cordialidade do brasileiro, e sugerindo em seu lugar o termo bondade. A expressão “homem cordial” foi tomada de empréstimo por SBH ao poeta Ribeiro Couto, que a empregara numa carta ao escritor mexicano Alfonso Reyes. Ele quis que ela tivesse um sentido exato e etimológico vinculada a cordis, coração. Não foi o seu objetivo dotar a palavra de qualquer sentido ético. Cordialidade não queria dizer algo necessariamente positivo. Homem cordial é o contrário de homem civilizado, polido, e se manifesta na “lhaneza no trato, hospitalidade, generosidade”. Ao invés de expressar boas maneiras, externaria um “fundo emotivo extremamente rico e transbordante”.

Essa cordialidade tinha alcance limitado. Estava diretamente relacionada com o estágio colonial e rural da formação do Brasil, quando as relações são familiares e íntimas. Já no seu clássico, SBH reconhecia que a expressão “homem cordial” não seria mais adequada para definir o brasileiro. No entanto, vale lembrar algumas das características básicas desse homem nacional: Relações sociais pautadas pelo familismo e simpatia, contrárias à impessoalidade e ritualismo. A preferência por nomear-sse as pessoas usando-sse o prenome e não o sobrenome. O gosto pelos diminutivos na linguagem serviria para tornar os objetos e pessoas mais íntimos. Assim, estariam “mais acessíveis aos sentidos” e mais próximos do coração. A ética do homem cordial é de fundo emotivo. As suas relações se baseiam na simpatia e antipatia. A afetividade pode ser superficial, de aparência, nem sempre sincera. E a cordialidade também se manifesta no campo religioso, marcado no Brasil pela falta de rigor e profundidade. A cordialidade é a vitória da indisciplina e da falta de coesão. (Mário Hélio))

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ARQUITETURA

Patrimônio reinventado A ação do serviço público a quem compete preservar a integridade de nosso patrimônio cultural terminou por criar um grande equívoco, de conseqüências desastrosas Geraldo Gomes

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FOTO: GERALDO GOMES

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m 1937 foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), por um grupo de intelectuais brasileiros, dentre eles alguns arquitetos modernistas. Os criadores desse serviço público foram também os coordenadores e orientadores das atividades que se desenvolveram visando à preservação do nosso patrimônio cultural edificado. Até a década de 70 do século passado, o SPHAN vivia às custas da perseverança e sacrifício dos seus dirigentes e apesar dos escassos recursos financeiros que o Tesouro Nacional lhe reservava. Assim, as obras de restauração dos nossos monumentos, nos primeiros 40 anos de existência do SPHAN, limitaram-se à conservação e a reparos, sem intervenções radicais e de grande vulto. Eventualmente se conseguia algum recurso extraordinário, logo empregado nas restaurações de nossas igrejas barrocas, alvos das melhores atenções naquelas oportunidades. O espetáculo de cores e brilho dos interiores dessas igrejas era proporcionado pelas magníficas obras de madeira entalhada, policromada ou dourada. Nenhuma das obras de talha que revestiu os interiores de nossas igrejas foi concebida para aparecer sem revestimento, isto é, expondo a cor e a textura natural da madeira. Todas as talhas foram concebidas e executadas para serem revestidas com pinturas policromadas ou com finíssimas folhas de ouro. No século 19 surgiu a moda de pintar de branco as talhas policromadas. Como o gosto artístico dos criadores do SPHAN pendia para a valorização de nossas obras nos estilos maneirista, barroco e rococó, subestimando o neoclassicismo e ecletismo, a prática oitocentista foi considerada herética e as cores originais de nossas talhas foram resgatadas através de obras de restauração, sempre que havia algum recurso financeiro disponível. No entanto muitas de nossas obras de talha foram restauradas com recursos mínimos, o que, naqueles tempos, era a regra geral. Em um grande número de casos, por mais cuidadosa que fosse a retirada das camadas de tinta branca, sempre se retiravam, involuntária e irremediavelmente, camadas das tintas em outras cores que estavam por baixo, chegando-se, assim, à superfície da madeira somente com seus veios preenchidos com as mãos de selador branco que haviam recebido para serem pintadas. Na impossibilidade de restaurar as cores originais chegou-se a uma terceira textura: nascia o “deca-

pê”, do francês “décaper”, que significa decapar, tirar camadas. E assim, sob o pretexto da restauração, uma grande parte dos interiores de nossas igrejas ganhou um novo aspecto estranho às idéias de quem os concebeu e executou. A realidade é que não se restauraram os espaços barrocos, na sua origem policromados e dourados; criou-se um outro espaço em que as saliências e reentrâncias das obras de talha se perdem no monocromatismo do marrom da madeira esmaecido com as finas linhas brancas do selador entranhadas nas suas fibras. Podem-se verificar essas práticas, por exemplo, nas igrejas de São Pedro dos Clérigos e na de N.S. do Rosário dos Pretos, ambas na cidade do Recife. Quem visitar o interior desses templos vai verificar que o espaço está envolto numa penumbra, com um certo ar de mistério e recolhimento quase românicos e que nada tem a ver com os espaços feéricos, policromados, dourados, inundados de brilhos e reflexos do barroco. A dourada capela-mor da igreja do mosteiro beneditino de Olinda e a capela-mor da igreja do convento carmelita do Recife, restaurada exemplarmente, são exemplos exponenciais da fantasia barroca. O leigo acredita que a capela-mor das igrejas de São Pedro dos Clérigos e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos tiveram seus espaços originais restaurados, o que é muito grave, porque esse equívoco foi provocado por uma ação do serviço público a que compete preservar a integridade de nosso patrimônio cultural. A esse serviço foi conferida, por lei, a autoridade para definir normas e procedimentos de restauração dos nossos bens culturais. “Se o SPHAN agiu dessa forma, deve estar certo e é assim que se faz”, foi a interpretação leiga. A precedência do exemplo tem conseqüências previsíveis. Logo surgiram as modas de envelhecimento de móveis, para satisfazer os desejos dos clientes dos nossos antiquários, e cursos de “decapê”, que consistiam em pintar uma peça de madeira com selador e em seguida raspá-la. A responsabilidade de nossos órgãos públicos de preservação, nesses casos, embora defensável, é irrefutável. Exemplos desse tipo não são raros em outros casos e não se limitam a móveis ou interiores de edifícios. No caso mais recente de revitalização do bairro do Recife, na cidade do mesmo nome, ocorreu algo semelhante ao equívoco oficial referido e divulgado.

Capela-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife

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Estação Central do Recife, restaurada recentemente

Edifício da Associação Comercial, no bairro do Recife

Uma grande parte dos sobrados do citado bairro teve suas fachadas pintadas de novo, cada uma delas ostentando uma composição policromada. Esses sobrados não tinham essa coloração e não houve o cuidado de promover a prospecção física que identificaria as cores superpostas e, se fosse desejável, definir a cor da primeira camada, datada das primeiras décadas do século 20. Esta foi uma iniciativa da Prefeitura da Cidade do Recife que, a bem da verdade, em momento algum, declarou que estava restaurando as cores originais dos sobrados. O que aconteceu foi a revitalização do bairro, nem tanto pelas cores que os edifícios exibem hoje, mas pelas novas funções que ali se exercem, essencialmente diversionais. Quanto ao patrimônio cultural que esses sobrados representavam, pode-se afirmar que se reinventou um patrimônio, assim como aconteceu com o interior de algumas de nossas igrejas barrocas. No bairro do Recife ocorreu o mesmo fenômeno que no “Art Déco District” de Miami, onde todos os edifícios eram monocromáticos, na sua origem, e passaram a ser policromados. Por conta desse sucesso cromático inventado pelos arquitetos locais, a grande maioria das pessoas, arquitetos pouco ilustrados inclusive, passou a acreditar que a policromia era uma característica da “Art Déco”. Na realidade, a policromia nunca foi estranha à arquitetura. Os templos gregos, paradigmas exemplares da arquitetura do ser humano, apresentam-se hoje na cor natural da pedra com que foram construídos, mas, quando foram concebidos e concluídos, alguns séculos antes de Cristo, eram policromados. No século 19 os arquitetos europeus, sentindo falta do volume das alvenarias de pedra e de tijolo, utilizaram cores vivas para dar “peso plástico” às delgadas estruturas metálicas que surgiam para revolucionar a

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arquitetura. O uso das grandes superfícies de vidro aliado à esbelteza das estruturas metálicas tornou transparente e com limites indefinidos o espaço arquitetônico, antes contido entre grossas e opacas paredes de alvenaria de pedra e de tijolo. A aplicação de cores, naquela oportunidade, se fazia segundo pesquisas pretensamente científicas. Essas normas se aplicariam à arquitetura do ferro. A arquitetura eclética contemporânea, profusamente decorada, era, na origem, monocromática, às vezes enriquecida com painéis cerâmicos em cores vivas, formando molduras ou valorizando certos trechos de paredes com delicados motivos decorativos figurativos. A partir de meados do século 19 a arquitetura dos edifícios e da cidade passou a ser fortemente influenciada pela higiene e pelo sanitarismo, isto é, as formas e as cores dos edifícios e das cidades passaram a ser definidos pela ciência e não somente pelo gosto artístico. A luz do Sol e o ar em movimento passaram a ser bem-vindos por razões anti-sépticas. Todos os cômodos deveriam ter janelas, as ruas deveriam ser largas, pelos mesmos motivos. No caso das cores do bairro do Recife, definidas no início do século 20, quando o bairro foi radicalmente transformado para as obras de ampliação do porto, faltam referências bibliográficas e iconográficas confiáveis (as fotografias existentes são em preto e branco). Contudo, alguns textos podem ser indícios do que ocorreu na arquitetura recifense daquele período e, mais particularmente, no bairro do Recife, que se reconstruiu nos moldes do ecletismo, o modernismo (de moda) contemporâneo. Um texto de 1915, exatamente o período de remodelação do bairro do Recife, comemora a derrubada das “velharias coloniaes” com uma veemência que deve ser entendida pela ilusão do progresso que, naquela época, se traduzia, essencialmente, no urbanismo demolidor. “O camartelo do alvenel abate resolutamente as velharias coloniaes e a cidade chorando ontem pelos olhos da saudade amarga dos que ha meio século perlustraram tortuosas ruas de


FOTOS: GERALDO GOMES

sobradões deformes, com janellas de quatro palmos de alto sobre tres de largura, canos de lata com boca de jacaré, pendentes do beiral dos telhados, biqueiras rasas onde medravam vegetaes, e portões baixos de testa lisa e chan, a cidade numa viva ardencia de progresso material que lhe agita e transforma o seio, dando-lhe uns vivos tons de graça e belleza, canta hoje a era nova de sua remodelação nas soberbas columnas de embasamento, no mármore das soleiras, no arco diagonal das abóbadas góticas, nas flexas dos zimbórios, nas carrancas de pedra, nas graciosas linhas systemáticas das arcadas, na bela symetria das columnatas torneadas de tantos edifícios em construção”. O autor, provavelmente, se refere às demolições que se faziam no bairro do Recife, com evidente satisfação pela destruição da malha urbana colonial constituída de ruas tortuosas e estreitas e sua substituição pelas ruas largas e arejadas, exaltando as belezas da nova arquitetura, isto é, da arquitetura eclética, com todo o seu decorativismo e até mesmo com o seu exotismo “no arco diagonal das abóbadas góticas”. O autor observa que, apesar da “viva ardência de progresso material que lhe agita e transforma o seio”, a cidade, como um todo, ainda se ressente dos seus “defeitos” de formação. “Ha uma cousa ressaltante à prima observação daquelles que nos visitam: a estreiteza das ruas. A maioria das nossas ruas são mesmo muito estreitas; este é um grave defeito vindo da fundação da cidade. E por que ellas são estreitas (as ruas), na sua quasi totalidade feitas de sobrados altos, furan-

do o céo com a sua elevação de dois, três, quatro e até cinco andares pesadões archaicos, ressentem-se de ar, quando não correm na direcção da costa atlântica, e de luz, pois a do Sol nessas mesmas ruas não penetra senão à hora meridiana”. O autor, não satisfeito com a remodelação de todo o tecido urbano da cidade, isto é, com o alargamento das ruas, recorre à pintura os edifícios para atenuar os malefícios da sombra, pois “em ruas que não são bem lavadas pelas correntes de ar, a luz profusa do Sol é absolutamente necessária como elemento depurador da atmosphera”. A escolha de determinadas cores a serem aplicadas nas paredes externas dos edifícios se faria em função da capacidade de reflexão ou de absorção do calor resultante da insolação. “Sabemos que tem grande importância a cor da superfície em que a luz se reflecte; e o branco é que tem effeito mais nocivo, porque os corpos brancos reflectem toda luz que recebem. Mas em ruas estreitas ou que pouco largas sejam, e aonde o Sol irradia menos horas, a claridade é indispensável para que bem se effectuem as acções chímicas que se passam no organismo”. Não é possível asseverar que as recomendações do autor tenham sido levadas em conta por aqueles que erigiram os edifícios ecléticos no início do século 20, no bairro do Recife, mas, a se julgar pela documentação iconográfica daquele bairro anterior à “valorização cromática” promovida pela Prefeitura da Cidade do Recife, é possível que tenha existido, por parte daqueles construtores, um consenso no uso de cores pastel, costume que, na realidade, já se introduzira no Brasil no século 19, com o Império. Trata-se de uma prática que se diferenciava daquelas em voga no período colonial. Convém repetir que foi a partir de meados do século 19 que os princípios de higiene da habitação e sanitarismo passaram a influir no desenho da arquitetura dos edifícios e da cidade. As sugestões do autor parecem premonitórias: “Não há razão para que a pintura das fachadas seja feita de uma variedade de cores escuríssimas dando às mesmas ruas a feição lobrega de imitação. Quando a pintura não tivesse fundo claro, azúleo, esverdeado, róseo, cor de pérola ou palha seca, devia ter systematicamente a cor natural da pedra, ou da argamassa de revestimento que a esta cor se assemelhe, como já temos exemplos dignos de imitação. Está visto que a cal preta, o core, mais próprios dos muros, as tintas de roxo terra, azulão, zarcão, púrpura, chumbo, e de tantas côres equívocas, indefiníveis,

Edifício-sede do Jornal do Commercio, na rua do Imperador, Recife, em 1999 e em 2002

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Sobrados no Pátio de São Pedro, Recife, 1991

porque algumas até parecem com a variada cor do dejeto multifario, dão às ruas o aspecto de bairros chineses, muito principalmente quando o calçamento não é egual ao do novo leito das principaes artérias, e que orgulho é da cidade em remodelação. O ideal é que as nossas ruas não tenham nunca aquella feição das ruas de Pekin...” Há poucas referências bibliográficas ao acabamento dos edifícios que se construíram no início do século passado no bairro do Recife. Um deles, no entanto, é rico em referências estéticas e, a partir destas, seria lícito caracterizar, por extensão, os edifícios que estavam sendo erigidos naquele mesmo período e no mesmo bairro. O edifício descrito num artigo de jornal do Recife é o da Associação Comercial, que acabara de ser inaugurado. “A parte externa é trabalhada em alvenaria recortada com relevos que lhe dão um aspecto sombrio e ‘ao mesmo tempo distincto. Nada muito enfeitado’. Nada porém que se possa confundir com certas construções em que a alvenaria, lisa, não apresenta um relevo, quebrando a monotonia compacta e desagradável à vista inteligente, da parede nua”. Um outro registro sugere a natureza da decoração dos edifícios nas primeiras décadas do século X20: um cartão-postal de 1916, colorido à mão, mostra a “Estação Central do Recife” em cores pastel e foi utilizado como referência iconográfica para restauração desse edifício. Convém lembrar que a técnica de colorir cartões-postais à mão permitia ao artesão utilizar cores fortes. As ruas do bairro do Recife estão longe de parecer-se com “ruas de Pekin” e alguns de seus trechos apresentam-se com composições cromáticas agradáveis, o que, com certeza, contribuiu para a valorização do bairro. No entanto, convém lembrar que foi a definição do novo uso dado aos pavimentos térreos dos edifícios de algumas ruas do bairro (casas de diversão noturna) o motivo principal para o sucesso da intervenção. Com o mesmo uso que se lhes atribuiu e a restauração das fachadas dos edifícios, ao invés de sua valorização cromática, provavelmente o sucesso comercial teria sido o mesmo acrescido do resgate da memória visual da arquitetura eclética do início do século 20. O Recife “antigo” transformou-se num “novo” Recife, com um patrimônio reinventado em fins do século 20: “as suas cores”. Grande parte da população local e de turistas passou a acreditar que o bairro do

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Recife havia sido restaurado, e que aquelas cores, se não eram as originais, poderiam ter sido, porque a policromia dos edifícios teria sido a regra. A mania colorista não se restringiu ao bairro do Recife. Outros edifícios com estilos diferentes dos construídos no bairro do Recife na primeira década do século 20 e situados em outros bairros, foram pintados de acordo com a nova moda instaurada sob os auspícios da Prefeitura da Cidade do Recife. Alguns deles nunca haviam sido pintados porque, quando foram construídos, tiveram suas fachadas revestidas com um reboco especial que contém pó de pedra, o que lhes garante maior resistência ao desgaste promovido pela chuva e pelo Sol. Esse reboco, de fino acabamento e de cor cinza, foi utilizado em edifícios de vários estilos, mas a nova moda colorista os ignorava como acontecera com os edifícios do bairro do Recife. Assim, o Palácio da Justiça, que era todo cinzento, nunca havia sido pintado desde quando fora concluído em 1930, projetado pelo arquiteto italiano Jacomo Palumbo num estilo eclético neo-classicizante, foi um dos primeiros a ter suas fachadas “valorizadas” com cores inéditas. O edifício-sede da empresa Jornal do Commercio, no Recife, notável exemplar de nossa arquitetura “Art Déco”, com todas as suas fachadas revestidas de reboco de pó de pedra, e que nunca havia sido pintado desde a sua conclusão em 1934, “sofreu” também com a nova moda recebendo cores vivas em suas fachadas. Mas a moda colorista não foi adotada somente para os edifícios do século 20. O contágio provocou


FOTOS: GERALDO GOMES

uma epidemia que não poupou edifícios construídos no século 19, como o da Assembléia Legislativa de Pernambuco, com sua fulgurante cúpula dourada e a igreja matriz de São José, pintada de cor-de-rosa. Até mesmo a igreja setecentista de Santa Cruz, no pátio de mesmo nome, no bairro da Boa Vista, recebeu uma pintura em azul-médio e uma outra novidade; a pintura de sua torre sineira com faixas verticais em cores diferentes modificando radicalmente a percepção de suas proporções. Hoje, quando o termo “sustentabilidade econômica” passou a ser usado como expressão mágica para justificar o investimento do poder público em qualquer ramo de atividade, não se cogita de preservar nosso patrimônio edificado sem o patrocínio de uma empresa privada, mas, por outro lado, aumenta o risco da prevalência dos gostos em moda sobre o interesse da preservação das características morfológicas essenciais do bem cultural. A título de exemplo, há alguns anos uma empresa particular concordou em arcar com as despesas com a pintura das fachadas dos sobrados do pátio de São Pedro, no Recife. No período colonial, no Brasil, prevaleciam as cores vivas, os azulejos e o branco da cal nas fachadas dos sobrados. A empresa patrocinadora dessa pintura impôs, com êxito, a condição de definição das cores a serem aplicadas por um profissional de sua escolha, que o fez especificando cores pastel, moda que só viria a surgir no Brasil no século 19 e, ainda mais, sugerindo com a pintura, faixas horizontais que romperam a leitura da individualidade vertical de cada um dos sobrados.

Tudo isso ocorreu, senão com o beneplácito das entidades oficiais criadas com a competência e autoridade para normatizar a preservação do nosso patrimônio edificado, sem manifestações públicas de desacordo dessas mesmas entidades com tais práticas. Diante desse silêncio, ou omissão, o que pode concluir a sociedade leiga em sua grande maioria? Que está correto o que está ocorrendo! E, o que é mais grave, é exemplo a ser seguido. A manipulação irresponsável, pela mídia, dessas práticas pseudo-preservacionistas vulgariza o nosso patrimônio cultural. Poder-se-ia argumentar com o direito da sociedade contemporânea de travestir o seu patrimônio cultural, como expressão de uma postura pós-moderna e, como tal, irônica e também iconoclasta, como foi a arquitetura modernista na década de 40 do século passado. Cabe, nesse caso, pelo menos, uma advertência das autoridades competentes para que a sociedade não se iluda quanto ao inequívoco significado da preservação do bem cultural. De qualquer forma, gostaria de ser poupado do pesadelo de um dia ver a igreja de São Pedro dos Clérigos com sua fachada pintada em rosa, lilás e verde-claro.

Assembléia Legislativa de Pernambuco, Recife, 2002

Geraldo Gomes é arquiteto

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SABORES PERNAMBUCANOS

Feijão, preferência nacional De um alimento indígena, o feijão caiu no gosto dos colonizadores e hoje é um prato genuinamente nacional

Que prazer mais um corpo pede Após comido um tal feijão? Evidentemente uma rede E um gato para passar a mão. Vinícius de Morais, em Feijoada a Minha Moda

C

umandá com farinha de mandioca. “Cumandá” vem de “cumã”, alimento retirado de vagem. Era prato muito apreciado por nossos índios. Mas os portugueses, ao chegarem por aqui, não lhe deram muita importância. Continuaram preferindo os legumes e as hortaliças do cozido lusitano. Depois, mas só aos poucos, começaram a gostar do sabor especial desse cumandá a que chamaram feijão, por lhes lembrar na forma o “feijon” – uma leguminosa asiática introduzida, pelos mouros, na Península Ibérica. Não por acaso semelhanças alimentares podem ser encontradas em todos os países que, um dia, formaram o grande Império Português – Angola, Cabo Verde, Timor Leste, Goa, Moçambique, Macau. Pratos a base de feijão, por exemplo, levavam sempre chouriço, porco defumado, cebola e alho. Com pequenas variações em termos de ingredientes e temperos. Em Goa usa-se gengibre. Em Cabo Verde acrescem-se de vários grãos – é a “cachupa”, ainda hoje um prato tradicional. Mas feijão, como fava e ervilha, era então importante na alimentação apenas dos camponeses

europeus. Não nas boas mesas. Nenhuma referência a ele se encontra, por exemplo, no primeiro livro de culinária portuguesa – o famoso A arte de Cozinhar, de Domingos Rodrigues. Os nomes vão mudando. É alubia na Espanha, fagioli na Italia, haricot na França, bohne na Alemanha, beans na Inglaterra e Estados Unidos. Mas em nenhum lugar do mundo o feijão é tão prestigiado quanto aqui. Prato que não pode faltar na mesa diária do

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 38 Continente Multicultural


FOTO: LÉO CALDAS / TITULAR

brasileiro. Até porque o feijão, como o conhecemos, nasceu em nosso continente americano. Pizarro encontrou no México, ao chegar, mais de 100 variedades da planta. Depois queimou seus navios, todos sabem. Mas essa é outra história. O desenho do legume está em muitos tumbas Inca. É famosa, por exemplo, a pintura em que aparece índia carregando milho em uma mão e feijão na outra. Feijoada é mesmo um produto genuinamente nacional. Vem de fins do séc. 18, início do séc. 19. Não há consenso em relação a como nasceu. A versão mais

difundida, e provavelmente equivocada, sustenta que os senhores nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café e nas minas de ouro davam aos escravos restos dos porcos – orelha, rabo, pé. Vindo o prato do cozimento desses ingredientes, misturados com feijão e água. Mas essa teoria romanceada das relações entre patrões e escravos, naquela época, não se baseia em nenhuma fonte documental. E não encontra amparo nos fatos. Os escravos vindos da África, como nossos índios, nunca tiveram o hábito de cozinhar alimentos misturados na mesma panela – feijão era só feijão, milho só Continente Multicultural 39


milho, batata só batata, carne só carne. No mais, o feijão dos escravos era servido sempre ralo, junto com farinha de mandioca. Zelosos com seus pertences, e para evitar o escorbuto, o máximo que concediam os senhores era que os escravos tivessem, no pomar, as frutas que quisessem. Assim escreveu Francisco Peixoto de Lacerda, Barão de Paty, em seu Manual aos Produtores de Café (1847): “O preto trabalhador de roça deve comer três refeições ao dia, ao almoçar, às 8 horas, jantar à uma hora e cear às sete horas. Sua comida deve ser simples e sadia. Em serra acima, em geral, não se lhe dá carne, come feijão temperado com sal e gordura, e angu de milho, que é comida substancial.” Além disso, pés, rabos e orelhas de porco não eram nunca desprezados pelo colonizador. Sendo base de muitas receitas de prestígio, na Europa – Tripas à moda do Porto e Pezinhos de porco de coentrada (Portugal); Spaghetti à Carbonara (usando gordura da bochecha do porco), Trippa alla Fiorentina e Paiata alla Cacciatora (Itália); Tripes a la mode de Caen, Oeufs à la Tripe e Terrine de Queue de Boeuf (rabo de boi) em Gelée d’Estragon (França); Einsbein (joelho de porco) com Chucrute (Alemanha). A afirmação mais provável, portanto, é que nossa feijoada acabou mesmo nascendo não em senzalas, mas nas casas grandes. A partir da adaptação de pratos tipicamente da Europa, onde se preparavam cozidos de várias carnes – vaca, porco, carneiro, toucinho, pato, ganso. Aos quais juntavam-se legumes e hortaliças, com maior ou menor variedade. Tudo sendo fervido conjuntamente, quase sempre em panelas de barro. Assim é com o cozido e a caldeirada portugueses; o bollito e a casoeula italianos; a olla podrida, a paella, o pringá, a pilota e a fabata espanhóis; e o cassoulet (panela de barro) francês, claro. Nossa feijoada parece seguir essa tradição européia das paneladas, mistura de leguminosas e carnes de todas as espécies. Do cozido português terá, provavelmente, vindo a idéia de misturar feijão – preto (no sul) ou mulatinho (no nordeste) – com carnes e verduras, na tentativa de obter uma refeição única, com sabor e sustança. Pouco a pouco passando a ter o feijão, em razão de seu sabor marcante, ou da preferência que merecia por aqui, uma posição hegemônica no prato. Nossa feijoada seria, assim, feliz casamento de técnica portuguesa com ingredientes nacionais. Um casamento, diferente de tantos outros, que deu certo. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

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RECEITA: FEIJOADA (15 pessoas) INGREDIENTES PARA O FEIJÃO: 2 ½ kg de feijão preto*, 1 kg de charque, 250 gr de orelha de porco salgada, 250g de pé de porco salgado, 250 g de rabo de porco salgado, 1kg de costela de porco defumado, 250 g de toucinho, 250 g de lombo de porco defumado, ½ kg de paio, ½ kg de lingüiça portuguesa, ½ kg de carne de peito refogada. PARA OS TEMPEROS: 2 talos de salsão, 2 cebolas, 6 dentes de alho, 4 talos de cebolinha verde, 4 ramos de coentro, 4 folhas de louro, ¼ de colher de sopa de pimenta do reino, 250 g de bacon picado e frito, 1 laranja pequena com casca, 100 ml de cachaça, sal a gosto PARA O REFOGADO FINAL: 50 g de bacon bem picado, 1 cebola bem picada, 2 dentes de alho bem picados, 2 talos de cebolinha verde bem picados, 1 folha de louro, 25 ml de cachaça, 25 ml de suco de laranja. ACOMPANHAMENTO: arroz branco, couve cortada fininha (frita em azeite de oliva e temperada com sal, pimenta e alho), laranjas descascadas e cortadas em fatias, pimenta, farofa.

PREPARO: •Escolha e lave o feijão. Lave as carnes salgadas e deixe de molho, por 48 horas. •Leve o feijão ao fogo com a água que ficou de molho. Deixe levantar fervura e escorra, descartando a água. •Troque a água das carnes. Ferva e escorra. •Pique e triture todos os temperos, misturando a cachaça (indispensável para ajudar a digestão). •Junte os temperos ao feijão e deixe marinando, por quatro horas. •Leve o feijão ao fogo, com bastante água, juntando primeiro as carnes mais duras. Deixe cozinhar até ficar macio. •Junte por último as carnes mais tenras – lingüiça, lombo, paio e o peito refogado. Pingue água fria durante o cozimento, se o feijão começar a secar. •Quando o feijão estiver cozido retire e corte as carnes. Troque o feijão de panela e junte as carnes cortadas. •Para realçar o sabor faça um refogado com cebola, alho, cebolinha, louro e bacon bem frito. Adicione cachaça e suco de laranja. Misture esse refogado ao feijão e ajuste o sal. * Os sertanejos usam uma medida que não falha, para calcular o tanto de feijão por pessoa – juntam-se os dedos da mão em cuia, cheia de grãos. Essa é a porção por pessoa. Como feijoada é prato generoso, sugere-se colocar, no fim, uma porção extra na panela.


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CINEMA Bressani acaba de concluir Dias de Nietzsche em Turim, seu 36º filme

Julio Bressane

Marginal e premiado Apesar de historicamente ligado a um cinema de resistência, o cineasta vem acumulando prêmios em festivais internacionais com seus últimos trabalhos, como Miramar, O Mandarim e São Jerônimo Luciano Trigo

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al concluiu seu longa-metragem Dias de Nietzsche em Turim, recém-lançado no Rio e em São Paulo e premiado no último Festival de Veneza, o cineasta Julio Bressane, 56 anos, já está mergulhado nos preparativos de seu próximo projeto, Filme pornográfico. Será seu 36o filme, numa carreira iniciada nos anos 60 e sempre caracterizada pela inventividade, pela ousadia formal e pelos baixos orçamentos. Apesar de historicamente ligado a um cinema de resistência, Bressane vem acumulando prêmios em festivais internacionais com seus últimos trabalhos, como Miramar, O mandarim e São Jerônimo. Outro sinal


Marginal. Em 1967 dirigiu seu primeiro longa, Cara a cara, e três anos depois fundou a produtora Belair com seu amigo Rogério Sganzerla. Em três meses, os dois produziram sete filmes. Outros títulos de destaque em sua carreira foram O anjo nasceu, Matou a família e foi ao cinema e Brás Cubas Nesta entrevista exclusiva, Bressane fala sobre Dias de Nietzsche em Turim, critica os orçamentos milionários do cinema brasileiro, reafirma seu impulso experimentador como cineasta e lembra suas conversas telefônicas com Jorge Luis Borges. Fale sobre seu próximo projeto, Filme pornográfico.

FOTO: TASSO MARCELO / AE

É uma fábula popular, suburbana, que transcria o mito das três graças, o mito da Vênus terrestre que projeta e é protegida por uma trindade. É um assunto que já foi muito bem estudado por teóricos da pintura moderna. É uma história passada hoje, sobre três pessoas comuns – um barbeiro, uma manicure e uma ascensorista – que se encontram e, através de um processo que envolve o prazer sexual e o espiritismo, se põem em contato com essas entidades. De alguma maneira elas revivem essa fábula das graças, pois ocorre uma espécie de hiato no martírio da vida de cada um, no seu cotidiano de calvário. É uma ilusão temporária, uma ilusão do prazer.

de reconhecimento é a retrospectiva completa de sua obra que será feita no segundo semestre em Turim – cidade que o cineasta visitou em diversas ocasiões nos últimos anos com sua mulher, a co-roteirista Rosa Dias. Dias de Nietzsche em Turim recria a passagem do filósofo alemão pela cidade italiana entre abril de 1888 e janeiro de 1889, período de grande fertilidade para Nietzsche, que escreveu ali alguns de seus principais livros, como Ecce homo e O crepúsculo dos ídolos. Além de receber o Prêmio Bastone Bianco em Veneza – honraria só concedida a Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard e Abel Ferrara – o filme foi recebido com entusiasmo nos festivais de Frankfurt, Roterdã e Brasília. Bressane começou a filmar ainda criança. Profissionalmente, estreou como assistente de direção de Walter Lima Junior em Menino de engenho (1965), participando em seguida da criação do chamado Cinema

Você considera que ainda faz um cinema de resistência? Se for no sentido de uma resistência criadora, sim. A resistência é uma forma de estar aberto para o futuro. Do ponto de vista da criatividade e da graça, as coisas estão muito banidas, muito ausentes. Eu faço um cinema experimental, mas todos os conceitos ligados à idéia de “cinema de autor” hoje estão afásicos, dizem muito pouco sobre o que é importante, repetem jargões e clichês velhos. Escondem muito. “Poucos recursos, muita inventividade”: isso é uma fórmula que não quer dizer nada, porque o experimentalismo não está aí, e sim numa dificuldade, num esforço, que só acontece depois da saturação e da sedimentação de muitas coisas. Você é contra, então, movimentos como o Dogma 95, que chega a propor um decálogo com regras para um cinema de invenção? Isso é algo infantil e inútil. Mas, por outro lado, é bom que se faça, porque há coisas muito piores sendo Continente Multicultural 43


feitas por aí. Esses decálogos só não ensinam uma coisa: como fazer. Esta é a questão. A montagem dos filmes do Dogma não me agrada, porque no Brasil já fizemos aquilo há 25, 30 anos. Câmera na mão, luz ambiente, som direto... Isso tudo é velho. Mas ainda assim pode servir como um alerta, como um foco de luz para o que conta, que é o cinema em si. O Dogma aponta para a linguagem do cinema, e nesse aspecto, é bom. O impulso que o movia a fazer filmes há 30 anos ainda é o mesmo? A única coisa que revoluciona de verdade é o desejo. O amor é uma coisa contínua, permanente. O que muda são os seus objetos. No cinema é a mesma coisa, os objetos mudam, os temas que me emocionam e entusiasmam mudaram, mas o prazer continua. O entusiasmo leva ao encontro, que é uma maneira de sair de si mesmo. Acho que sempre buscamos isso, o extra-si, o movimento para fora, o multiplicar-se. Na verdade, quando você dirige um filme, você faz uma coisa que não sabe o que é. Se soubesse, talvez não fizesse, porque perderia o prazer. Você faz para se livrar de algo que não sabe bem o que é. Você conduz o processo criativo só até um determinado ponto. E, partir dali, é ele que te conduz. Eu procuro interferir o mínimo possível nesse processo... Todos os seus últimos filmes foram premiados na Europa. Não é estranho que alguém ligado ao cinema marginal viva hoje uma rotina de premiações em festivais internacionais? Essa história de cinema marginal é muito comprida e desconhecida, é uma história ainda sem história. Quem viveu, quem fez, ainda não narrou essa história, continua algo interdito. Mas eu realmente me surpreendo com a minha sobrevivência no cinema; é um milagre sobreviver fazendo filmes criativos. É claro que não sou insensível a prêmios, mas isso nunca foi uma coisa importante. Por outro lado, se eu nunca pensei no reconhecimento, ele nunca esteve longe de mim. Sempre tive estímulos. Como nasceu o projeto de filmar Dias de Nietzsche em Turim? Li Nietzsche de maneira selvagem, mas a aproximação maior, mais sofisticada, se deu sob a orientação da minha mulher, Rosa Dias, naturalmente. Ela faz há mais de dez anos uma pesquisa que inclui a passagem de Nietzsche por Turim. A partir de 1994, eu 44 Continente Multicultural

“É um milagre sobreviver no cinema fazendo filmes criativos, como eu faço. Não sou insensível a prêmios, mas isso nunca foi uma coisa importante” também mergulhei na pesquisa, lendo não só Nietzsche, mas uma série de outros autores que mediaram esse contato com o filósofo. Em Nietzsche, o estilo e a complexidade do texto estão imbricados com as idéias filosóficas. Ele é um artista, ele põe a arte na filosofia. De 95 em diante, fizemos uma viagem ano sim, ano não a Turim. A pesquisa foi extraordinária, e eu reuni um material enorme sobre o que aconteceu com o filósofo na cidade, os cadernos que ele escreveu etc. Eu queria fazer um pequeno filme sobre um grande tema, mas a questão era ver como fazer cinema desse material, identificando o que, no texto, podia ser transcriado em imagens, traduzido de uma linguagem para outra, intersemioticamente. Busquei os textos que sugerissem um movimento, uma imagem, um conceito... Isso sim foi difícil. Escolhi três idéias do Nietzsche: o jogo das perspectivas, o esmaecimento do sujeito e o sentimento do apolíneo e do dionisíaco. Trabalhei com esses três núcleos, por exemplo, vertendo em imagens o conceito de relatividade das verdades, que traduzi com as diferentes texturas da película. Usei sete ou oito texturas diferentes – 35mm, 16mm ampliado, cinescopagem – para traduzir esse conceito. Tudo no filme tem um sentido, até o copo d’água que acompanha Nietzsche. Ele dizia que o copo d’água era como um cachorro, que sempre o acompanhava. Até nisso ele inseria a filosofia. Nietzsche quebrou a barreira entre filosofia e vida, misturou as duas coisas. Ele escreve para uma mulher convidando-a para vir a Turim tomar sorvete, e também insere a filosofia aí, ou num passeio pela ponte... Tudo isso é muito forte, mas difícil de transformar em filme, a não ser que seja uma mera ilustração. Um filme que recrie Nietzsche com autonomia é algo muito raro. A idéia de transformar uma imagem fixa em movimento, também nietzschiana, está presente na animação de 12 fotos que compramos nos Arquivos Weimar, algumas delas quase inéditas. As fotos ganham um movimento sutil, como se fosse uma filmagem feita no final da vida do filósofo.


Essa idéia de tradução é muito presente em seu trabalho, não? Poucos cineastas, como Godard e Straub, souberam fazer bem essa tradução intersemiótica. Porque, no cinema, de uma maneira geral, e não apenas em Hollywood, o que se valoriza é o entrecho, a história, o enredo, o plot. Mas isso é apenas uma pequena parte, um ingrediente entre muitos outros do cinema. A tradução intersemiótica se preocupa com o estilo, e com sua superação. É uma operação experimental, sem regras, fórmulas, sistemas... Depende da intuição, do sentimento. Isso me aproxima da zona central do prazer do cinema – e também da música, da literatura, da dança, de algumas ciências... Traduzir um texto de Guimarães Rosa para o cinema exige que se conheça bem o Rosa, claro, mas exige que se conheça ainda mais a linguagem do cinema, pois é à tela que você vai chegar. Tem que saber como provocar no espectador o que o texto escrito provoca no leitor. Essa aproximação de dois objetos é rara. O processo, de Orson Welles, por exemplo, é um grande filme. É a tradução que o Welles conseguiu fazer do livro do Kafka, mas com um repertório próprio. Há outras versões, outros pon-

tos de vista, mas Welles percebeu a questão da linguagem e recriou em cima dela, com a montagem, com alguns paradoxos narrativos, com audácias formais... Depois de dirigir Dias de Nietzsche em Turim, você concorda com Caetano Veloso quando ele diz que só é possível filosofar em alemão? Isso é só uma frase, não é uma fórmula. Nem sei se essa frase é do Caetano mesmo, deve ser de outra pessoa... Não sei alemão, mas quero dizer uma coisa sobre isso. As línguas não são sinônimas. Cada língua reflete uma maneira diferente de sentir o mundo, uma perspectiva única. O Nietzsche em português exige uma operação tradutória que, tirante alguns trabalhos louváveis, como o de Paulo César Souza, ainda não foi feita. É preciso quase criar uma língua dentro da língua portuguesa para traduzi-lo. Nietzsche chegou ao Brasil em 1895, num artigo de João Ribeiro. Depois José Veríssimo, Araripe Junior e Agripino Grieco também o apresentaram em seus textos. Eu me interessei justamente por essa visão extra-européia do Nietzsche, pelo Nietzsche em português falado no Brasil, uma língua mais bárbara, com a nossa dicção. A história da

FOTO: MURAH AZEVEDO / AE

Cena de Dias de Nietzsche em Turim, recém-lançado no Rio e São Paulo, e premiado no último Festival de Veneza


recepção de Nietzsche em língua portuguesa, mostrando os instrumentos que se criaram na língua para assimilá-lo, ainda não foi contada. Sequer existe uma tradução completa de Nietzsche em português, os escritos póstumos permanecem inéditos. Ele próprio fala da necessidade de uma perspectiva extra-européia, da necessidade de incorporar as forças dos índios pelesvermelhas, da maravilhosa civilização moura de Andaluzia, forças que seriam um antídoto para as coisas negativas da Europa, como o nacionalismo. A cultura européia precisava de uma visão de fora. E o público europeu entendeu isso? Sim. Miramar e São Jerônimo já tinham tido uma ótima recepção em festivais europeus. Mas imaginei que encontraria uma certa resistência ao Dias de Nietzsche, até porque cada europeu tem sua visão particular do filósofo, há uma briga pelo espólio de seu pensamento. Eu cheguei com o Nietzsche em português, e o público ficou entusiasmado. Um público selecionado, ligado à filosofia. No dia em que eu ia embora, o presidente do festival ligou para o meu quarto dizendo para eu ficar mais um dia, porque receberia um prêmio. A crítica puramente de cinema não se sente equipada para falar, mas a platéia mais especializada ficou deliciada com o filme, que foi considerado antecipador. 46 Continente Multicultural

Dias de Nietzsche em Turim custou 250 mil reais. Você se sente indignado diante dos orçamentos milionários de algumas produções brasileiras? Não pelo orçamento em si, mas pela impostura. Poderiam gastar até mais. Mas é dinheiro público, que depende de um direcionamento político, através da lei do audiovisual. Depende do grau de aproximação com o poder, depende de saber quais são as empresas, geralmente as estatais, que têm dinheiro a investir, saber com quem falar. Os projetos em si não valem nada. Valem os contatos políticos, a intimidade com o poder. Isso num cinema como o brasileiro, que não tem indústria, é absurdo. Importamos negativo, material de filmar, câmera, carrinho... Tudo é importado. Que necessidade temos de seguir o modelo americano de cinema, do qual nunca chegaremos nem perto, se quisermos copiar? Isso quando temos uma tradição de autonomia, de experimentação, de humor no nosso cinema. Os filmes que ficaram foram esses, e não são mais feitos, porque se elegeu uma política de feudos, fazendária, terrível. Um modelo de filme passou a prevalecer: o filme de público. Só que ele não tem público e dá um prejuízo enorme. Só é bom para o produtor, que ganha milhões com a engenharia de produção... Não com a bilheteria, porque esta não existe. Verdadeiros paquidermes pré-diluvianos. Todo o cinema

FOTO: PUBLIUS VERGÍLIUS / FOLHA IMAGEM

Rogério Sganzerla, companheiro de Bressani nos dias heróicos do cinema marginal


“Cinema não é como literatura, aprende-se fazendo, e isso demora. Godard mandava tentar imitar um plano do Eisenstein, para ver como é difícil” brasileiro é assim. Um ou dois cineastas brasileiros saem disso aí. Cada um faz o que pode, mas como se trata de dinheiro público e da ausência de bilheteria, deviam dar chance a outros tipos de cinema. Todos os filmes que conseguem captar milhões são iguais. Os que não fazem isso são rotulados de experimentais, “pouco orçamento e muita criatividade”. É uma mentirada, uma impostura que é repetida há 40 anos por toda a imprensa. Quem se salva nesse cenário? Eu considero Rogério Sganzerla um gênio, um estilista do cinema, uma coisa rara, um dos melhores cineastas do mundo. Nem tudo é verdade e Tudo é Brasil são duas jóias, duas obras-primas de invenção intersemiótica. Ivan Cardoso, também o admiro muito. Faz um cinema de invenção, tem grande talento. O que você achou de Lavoura arcaica? Eu me sinto constrangido de falar, porque sei que é gente que gosta de meus filmes, que procura fazer coisas que eu fiz, e tem uma certa relação criativa comigo... Mas cinema é uma coisa... Não é como literatura, não é como música, não dá para ensinar. Você aprende fazendo, e isso demora. Godard mandava pegar um plano do Eisenstein e tentar imitar, para ver como é difícil. O cinema depende de uma percepção que não deriva só da vontade. Uma coisa é falar, outra coisa é a imagem. Televisão e publicidade são coisas diferentes, e fazer essa mestiçagem é complicado, porque o cinema já tem um repertório de clichês muito cerrado. É preciso fazer muito para se livrar de certos vícios. Eu vejo uma presença muito forte da linguagem da televisão e do cinema na montagem e no enquadramento de filmes como Central do Brasil, por exemplo. O cinema mundial atravessa uma crise? Aqui e ali tem gente nova, mas há um recuo do cinema criativo. Quanto mais se avança, maior é a dificuldade. Há uma grande perplexidade no mundo in-

teiro em relação à ausência de talento. As coisas estão muito iguais. E hoje as pessoas se contentam com muito pouco. Mas talvez a verdadeira questão seja a vitória da civilização do trabalho. A arte só pode ir até um determinado ponto, porque você está falando com gente que está cansada, que passou dez horas trabalhando num escritório... Então o prazer do pensamento é hoje quase inexistente, porque ninguém tem mais cabeça para nada, está todo mundo exausto. O cinema e o teatro têm que se adequar a pessoas que não têm formação, que quase não lêem... As pessoas hoje estão muito exauridas, vão ao cinema e dormem. É uma outra disponibilidade. A pressão do trabalho, da necessidade de sobrevivência, não tinha essa intensidade de hoje. Outra coisa: a televisão hoje é um parâmetro, um contraponto, um campo de tensão para quem faz filmes. Então fazem sempre mais ou menos como TV. O grau de contaminação semiótica hoje é banal, e quem está acostumado com a TV talvez não queira pagar 15 reais para ver algo muito diferente, ainda mais se não tem esse dinheiro. É essa falta de discernimento que torna o Brasil diferente dos outros mundos. Quer imitar a casca sem ter estrutura para isso. Mas não precisa estar caudatário disso, não precisava criar essa impostura, esse arsenal de mentiras levando o minueto, quando se podia fazer outro tipo de produção. A “produção experimental marginal” fica com as migalhas, e os outros, que não estão fazendo nada – se fosse uma indústria, ainda vá –, ficam com tudo, por eleição política, sem mérito algum de criação ou público. Autoritarismo e prepotência absurdos, muito típicos de como se dão as coisas no Brasil O cinema, em seu comportamento, suas lideranças e seus porta-vozes, é muito semelhante ao que existe na política brasileira, infelizmente. Essa coisa de a política ser a realidade, a burocracia... Lamentável. Como avalia a importância de Mário Peixoto? Mário Peixoto fez um filme só, aos 18 anos, o que é genial. Mas Limite é quase um acontecimento espírita. Nunca fui da corriola que endeusava Mario Peixoto, mas fui talvez o primeiro cineasta do Brasil a estabelecer uma conversa cinematográfica com Limite, no meu filme A agonia. Fale sobre o começo da sua carreira, nos anos 60. Eu comecei a fazer filmes antes de 1960. Já em 58, 59, com 12, 13 anos, ganhei numa viagem aos Continente Multicultural 47


Estados Unidos uma câmera de filmar de três lentes e um projetor de 16 mm. Lá mesmo comecei a filmar. Inseri imagens dessa tomada em A família do barulho, onde eu apareço menino, mostro uma tomada da ponte de Nova Iorque... Em 1964, 65, conheci Glauber Rocha, no saguão do teatro Maison de France. Um crítico, José Paes, nos apresentou. Glauber estava mixando Deus e o Diabo na Terra do Sol no estúdio da Atlântida, na rua México. Ele ia filmar em seguida Senhora dos afogados, baseado na peça do Nelson Rodrigues, e me chamou para ser seu assistente. O filme acabou não saindo. Glauber ganhou um financiamento da Caic, órgão do Carlos Lacerda, para produzir o filme do Walter Lima Jr., que tinha sido seu assistente. Ele produziu o primeiro filme do Walter Lima, e eu passei a ser assistente de Menino de engenho, filmado na Paraíba, enquanto o Leon Hirzman filmava A falecida, baseado no Nelson. Trabalhei também como assistente em A viagem, de Fernando Campos. Nesse mesmo ano, final de 65, dirigi meu primeiro filme, um curta sobre Lima Barreto. Em seguida fiz um filme com a Bethania e outro com a Elis Regina. Cheguei a começar a montar, mas esse material desapareceu inexplicavelmente. Era uma produção do David Neves, que tinha os negativos. Fui para a Europa em 66. No início de 67, de volta, iniciei a produção do meu primeiro longa-metragem, Cara a cara. Depois fiz dois filmes, ao mesmo tempo em 67, O anjo nasceu e Matou a família e foi ao cinema. Eram dois manifestos, em busca de alternativa para o formato de cinema criado pela Embrafilme. Nesse ano eu e Rogério Sganzerla participamos do Festival de Brasília, e nossa admiração recíproca resultou na Belair. Fizemos sete longas-metragens em dois meses. Mas a criação desses filmes da Belair provocou uma grande convulsão, e os filmes teriam feito grande sucesso se tivessem sido lançados. Matou a família foi lançado em 11 cinemas e, na segunda semana, foi retirado pela censura. A política da Embrafilme era contra isso. Esses filmes foram acusados de serem ligados ao terrorismo. O general Silvio Frota me disse pessoalmente que eram filmes financiados pelo Marighella. E ainda devo a ele não ter sido preso. Mas a censura foi feita pelo próprio meio, que estava encastelado e se sentia ameaçado. Na Europa fiz alguns filmes, a maio48 Continente Multicultural

ria se perdeu. Dos 36 filmes que dirigi ao todo, seis se perderam. Voltei em 74 e continuei, com muita dificuldade, remando contra a maré, a fazer filmes, sempre com orçamentos baixos. Você não faz os filmes que quer, faz os filmes que pode. Fale sobre Glauber Rocha como criador e como agitador cultural. O Glauber é um pai que os cineastas brasileiros precisam matar, no sentido psicanalítico? Não gosto dessas fórmulas psicanalíticas. Eu ainda não fiz, nem sei se ainda vou fazer, uma reflexão sobre o Glauber. Fiz alguma crítica cinematográfica sobre coisas que me interessaram, outras nem tanto, outras desprezíveis na obra dele. Terra em transe me interessa; é um dos filmes com que eu procurei estabelecer um diálogo em Cara a cara. Mas os filmes que ele fez na Europa eu acho uma porcariada, como O leão de sete cabeças, e mesmo O dragão da maldade. Mas gostei muito de A idade da terra, que, segundo o próprio Glauber, foi um filme feito para dialogar com o meu cinema. Glauber foi muito mal interpretado, e, curiosamente, não deixou ninguém, nada, nenhuma influência no cinema brasileiro. Não há nada mais diferente dos filmes de Glauber que os filmes brasileiros de hoje. Glauber foi um sujeito enterrado pelos amigos. Em seu livro Cinemancia você escreve um belo texto sobre Jorge Luis Borges, que, para se evadir da realidade do peronismo, ia buscar fora de seus contemporâneos, fora do espírito e dos gostos da época, influências que convinham à sua intuição, refugiando-sse nos clássicos da literatura inglesa. A maioria de seus filmes trata de personagens de outras épocas – São Jerônimo, Padre Antonio Vieira, Machado de Assis etc. Isso é porque você se sente um exilado no presente? Talvez, mas para mim isso é uma coisa inconsciente. A escolha de meus temas é quase involuntária, são coisas que me dão prazer, das quais me sinto próximo e que compreendo, até por temperamento. Não é uma forma de evasão da realidade, porque para mim tudo faz parte do real: todo o passado, toda a memória, os sonhos que eu tenho, tudo isso é real. Essa idéia de separar o mental do físico para mim não existe, aliás, talvez o físico só exista em função do mental. Fazer um


Filmografia de Julio Bressane

FOTO: DIVULGAÇÃO / AE

Lima Barreto: trajetória (1966) Bethania bem perto (1966) Cara a cara (1967) O anjo nasceu (1969) Matou a família e foi ao cinema (1969) A família do barulho (1970) A miss e o dinossauro (1970) Barão Olavo, o horrível (1970) Cuidado, madame! (1970) A fada do oriente (1971) Amor louco (1971) Memórias de um estrangulador de loiras (1971) Lágrima pantera (1972) O rei do baralho (1973) O monstro Caraíba (1975) A agonia (1977) O gigante da América (1978) Viola chinesa: meu encontro com o cinema brasileiro (1979) Cinema inocente (1981) Tabu (1982) Brás Cubas (1985) Os sermões – a história de Antonio Vieira (1989) Galáxia albina (1991) Oswaldianas: quem seria o feliz conviva de Isadora Duncan? (1992) Galáxia dark (1993) Antonioni Hitchcock: a imagem em fuga (1993) O cinema do cinema (1993) O mandarim (1995) Miramar (1997) São Jerônimo (1998) Dias de Nietzsche em Turim (2002)

filme sobre São Jerônimo é uma forma de penetrar profundamente na realidade, não de me evadir – tanto que acabei entrando numa coisa fortíssima no Brasil, o mito do deserto, do sertão. Conte como foi seu contato com Borges. Conheci o Borges pelo telefone, em 1982. Ele veio ao Brasil e não fui vê-lo, porque não quis quebrar a relação misteriosa que eu mantinha com ele por telefone. Borges era um solitário, você telefonava e ele estava em casa. Eu tinha o projeto, que ainda vou realizar, de filmar um texto que escrevi a partir da lenda de Billy the Kid, chamado O garoto. Borges tem um texto em História universal da infâmia, com uma visão extraordinária e original, uma leitura da infância de Billy The Kid, que retrata um personagem negativo, um menino ruim que gostava de matar e morreu falando palavrões em espanhol. Aí liguei para ele querendo comprar os direitos do texto. Consegui o telefone dele no catálogo: Calle Maipu. Atendeu uma governanta que tomava conta dele, Fanny, que ficou minha amiga por telefone. Ele me sugeriu livros, como The gangs of New York, e outro de um folclorista americano, Nike. Hobsbawm tem um texto muito bom sobre Billy The Kid em Bandidos, mas demonstra um talhe comunista meio datado... Ele tem sempre uma explicação econômica e social, não acredita em psicologia. Todo mês eu ligava para Borges, só uma vez ele me ligou e minha filha de 5 anos atendeu: “É o senhor Borges”. Saí correndo para atender. Uma vez ele me disse que com o dinheiro que eu gastava nas ligações eu poderia comprar suas obras completas. Resumindo, ele não quis vender o texto, alegando que não lhe pertencia, que era uma lenda, uma colagem de vários textos... Borges tinha no final da vida um pouco a idéia do Flaubert, de fazer um livro só com palavras alheias, sem escrever nada ele próprio. Mas ele era um relojoeiro, bastava trocar um advérbio para mudar o sentido da frase. Até que um dia liguei, e ele disse que estava muito doente, pediu que eu não ligasse mais. Logo depois foi para a Suíça e morreu. Casou com a Maria Kodama e morreu. Foi para a Suíça para morrer.

Cena de Matou a família e foi ao cinema, 1969

Luciano Trigo é jornalista

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A equipe de filmagem de Arca russa, percorreu os corredores e salas do museu Hermitage num único take de 90 minutos

Um novo modo de olhar Filmes que utilizam o sistema digital estão apresentando modificações na própria linguagem cinematográfica, bem como na difusão e comércio do cinema, e podem se consolidar como a nova tendência internacional

gem fotografada em película inegavelmente tem”. Com essas palavras, o cineasta David Lynch jogou uma delicada carga de frieza nas discussões em torno do principal tema em questão, esse ano, no que envolve tecnologia e cinema: o Sistema Digital. Para se ter uma idéia, o último Festival de Cannes tornou-se a maior vitrine do mundo para as mudanças tecnológicas que estão revolucionando o olhar da arte cinematográfica. Foi também uma edição histórica do festival, que aceitou, pela primeira vez, filmes pensados, realizados e, mais importante ainda, apresentados no novo formato, oficializando assim uma revolução que está mudando a forma como o cinema é feito pelo artista, e visto pelo espectador. Para entender o que está acontecendo, e o porquê de essa movimentação ganhar status de “revolução”, é preciso saber que desde que o cinema surgiu, há mais de 100 anos, imagens, até há pouco tempo, eram captadas e apresentadas dentro de um mesmo processo fotoquímico. Com uma câmera de cinema e suas lentes, imagens são registradas num filme (ou película cinematográfica) de 35mm (ou 16mm como bitola alternativa). O filme é revelado em laboratório através de pro-

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cesso químico e copiado em rolos, que são montados num projetor dotado de sistema de transporte que fará a película deslizar na frente de uma lâmpada, que joga a imagem na tela. Com o sistema digital, a imagem também é captada por uma câmera, mas armazenada em fitas digitais ou discos. A linguagem digital transforma as suas informações em seqüências de 0 e 1. Dependendo da qualidade da câmera utilizada, a imagem pode ser mais ou menos nítida. Nos últimos dois anos, desenvolvimentos nessa área têm transformado a imagem digital e feito cineastas repensarem a questão da “qualidade”, que já começa a rivalizar com aquela do 35mm, muito embora cineastas “puristas”, como o próprio Lynch ou Steven Spielberg, discordem. Na edição de junho da revista americana Wired, Spielberg disse em entrevista que “fui um dos primeiros cineastas a utilizar o digital para sublinhar meus filmes, mas serei o último a utilizar o digital para captar imagens”. Dos 22 filmes apresentados em Cannes, quatro foram realizados digitalmente – Arca russa (Russian ark), de Alexander Sokurov, o iraniano Ten, de Abbas Kiarostami, o inglês 24 hour party people, de Michael Winterbottom, e o chinês Plaisirs inconnus, de Jia Zang-Ke.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

enquanto, o digital ainda carece da riqueza, “P orprecisão e, sobretudo, da força emotiva que a ima-

Kleber Mendonça Filho


Já há mais de 10 anos que o formato digital faz parte do cinema, da captação, edição e reprodução de som à montagem dos filmes. Na captação de imagens é mais recente. Cannes mantinha relacionamento estreito com o digital, muito embora os filmes, até o ano passado, fossem obrigatoriamente transferidos para o formato película 35mm para exibição. Em 1998, o dinamarquês Festa de família (Festen), de Thomas Vinterberg, rodado com uma câmera caseira de vídeo, ganhou o prêmio do júri. Em 2000, o presidente do júri foi o cineasta francês Luc Besson, um dos maiores divulgadores de novas tecnologias na Europa. Ele deu a Palma de Ouro a Dançando no escuro (Dancer in the dark), de Lars Von Trier, inteiramente rodado com pequenas câmeras de vídeo digital. Esse ano, pela primeira vez na história do festival, cineastas selecionados não precisaram transferir seus filmes originalmente captados com câmeras digitais para o suporte filme 35mm, o padrão mundial de projeção e captação há mais de 100 anos. A diferença é que, ao invés de uma tira de filme correndo pelo projetor em frente a um facho de luz, a platéia viu pela primeira vez filmes projetados a partir de informações armazenadas na memória de um computador e transformadas em luz via projetor digital de imagem. As duas principais salas do festival, a Lumière e a Debussy, foram equipadas para esse novo formato de apresentação. Mas, que olhar novo é esse? Quais são os principais pontos de discussão? Pelo que pôde ser visto, o digital pode representar hoje a tomada de novos rumos para a imagem, para a linguagem cinematográfica, para a difusão do cinema como arte e comércio. Pode tanto representar mais um novo e eficaz instrumento de domínio para a indústria hollywoodiana, como um canal saudável de difusão da arte cinematográfica para pequenos realizadores em circuitos alternativos. Na verdade, o cenário é mesmo confuso. George Lucas, que seria normalmente associado ao domínio tecnológico de Hollywood no mundo, apresenta-se como um independente visionário, à frente de uma revolução na qual a própria Hollywood ainda não põe fé. Todavia, é inegável que essa experiência

técnica só poderia ter sido pensada por um visionário. O produtor de Lucas, Rick MacCallum, explica que cerca de 100 salas especialmente equipadas para projetar o formato digital estão mostrando O ataque dos clones, o 2º episódio de Guerra nas estrelas, nos Estados Unidos. Os estúdios estão interessados nos cerca de 800 milhões de dólares que irão economizar por ano na confecção de cópias 35mm e no transporte das mesmas. Cada cópia custa cerca de 1,5 mil dólares e pesa 35 quilos. Com o digital, o cinema recebe o filme via satélite, numa versão mais sofisticada de um e-mail com material anexado e criptografado. Com isso, não há custos de copiagem ou transporte. “O problema é que eles querem economizar sem investir, sem investir numa tecnologia que eles (os estúdios) ainda julgam alienígena”, diz MacCallum. Num outro lado da discussão, o produtor e exibidor independente francês Marin Karmitz, à frente da sua empresa MK2, em Cannes com Ten, de Kiarostami, reflete: “A tecnologia será transformada, claro, em mais uma avenida para Hollywood divulgar seus produtos mundialmente. Essa tecnologia me interessa particularmente ao viabilizar a difusão de filmes economicamente modestos e artisticamente ambiciosos que, cada vez mais, perdem espaço”. Karmitz instalou o seu primeiro projetor digital num complexo de salas em Beaubourg para exibir

Cena de Arca russa, de Mikhail Piotrovsky, mostrando uma das sutuosas salas do museu Hermitage, em São Petersburgo

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Cena de O ataque dos clones, de George Lucas

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sentado em 35mm em outros festivais, ou mesmo no circuito exibidor convencional (a Mais Filmes, de Leon Cakoff e Adhemar Oliveira adquiriu o filme para distribuição no Brasil), terá que ser dividido em carretéis de 20 min com as habituais mudanças de rolo. Cada mudança, por mais discreta que seja, provoca um leve pulo na imagem, neutralizando a sensação de fluência e continuidade das imagens de Sokurov. Seu filme digital será adulterado pelo “cinemafilme” e, com o desgaste inevitável das cópias durante o processo de exibição, esses “pulos” serão ainda maiores. A julgar pela apresentação desses filmes, o que o público pode esperar? Tanto Episódio 2 quanto Arca russa revelaram-se experiências de olhar radicalmente diferentes de uma projeção em filme. Não exatamente melhor, nem pior, uma vez que a projeção “numérica” tem a sua própria identidade de imagem. Nitidez, aparentemente, nunca será motivo de reclamação, nem cores esmaecidas. Não é cinema, nem tampouco aquilo que os últimos 20 anos nos ensinaram em relação ao formato “vídeo”. Interessante observar também em Cannes, esse ano, a proliferação de filmes que, auxiliados por esse tipo de tecnologia, investiram no “plano-seqüência”, ousadia nobre de linguagem que tem em Hitchcock e Orson Welles seus grandes padrinhos. Ten, de Abbas Kiarostami, cujo título (Dez) é uma referência aos dez planos que compõem o filme, todos gravados com a câmera fixa dentro de um carro, registrando a angústia de seis mulheres iranianas novas discutindo a vida. O plano-seqüência (cerca de 14) também foi digitalmente viabilizado pelo diretor franco-argentino Gaspar Noé, que parece ainda revolucionar a utilização de ultraviolência no seu controvertido Irréversible.

Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema

FOTOS: DIVULGAÇÃO

ABC África, filme anterior de Kiarostami, rodado em formato DV (digital video). “É o caso de adequar a proposta técnica e estética à apresentação”, disse. O russo Alexander Sokurov apresenta interessante contraponto à carnificina “numérica” de Lucas, mostrando 90min ininterruptos captados com uma câmera digital de alta definição dentro do museu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia, no seu Arca russa. Sokurov realizou o sonho que Hitchcock não pôde concretizar em Festim diabólico (Rope, 1948), exatamente por causa das limitações técnicas do formato “filme” (um rolo de filme 35mm dura, no máximo, 9 min). No filme de Hitchcock, a cada 10 min ele tentava esconder um corte para dar início a um novo plano e dar continuidade à ilusão de que Festim diabólico era uma tomada contínua, filmada e desenvolvida em tempo real. Sokurov captou seu suntuoso passeio de 1.800m pelos corredores e salas do Hermitage num único take de 90 min, fazendo de Arca russa não exatamente um filme, mas uma experiência carregada de história e identidade cultural onde o próprio tempo (o real, 90min) é desdobrado dezenas de vezes dentro do tempo “cinema”, o filme nos levando a diversas passagens importantes da história russa. Curiosamente, Arca russa, o primeiro filme projetado digitalmente na história da competição de Cannes, apresenta um “defeito” técnico cuja essência é totalmente orgânica dentro da linguagem técnica cinematográfica, que suscita mais discussão sobre a incompatibilidade entre os formatos “cinema-filme”/“cinema-digital”. O “defeito” surge da impossibilidade de um filme de 90 min ser apresentado de forma cem por cento contínua em cópia 35mm, o que nos leva de volta ao problema que Hitchcock tentou driblar. Ao ser projetado digitalmente em Cannes, Arca russa foi mesmo contínuo, inteiro. Quando for apre-


A realidade não tem censura Cena de Irréversible, de Gaspar Noé, que utiliza amplamente os novos recursos das câmaras digitais

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e o cinema é uma representação da realidade, filtrada por uma estética e uma gramática próprias, o que acontece quando a realidade é meticulosamente perseguida pelo cinema através de novas tecnologias, e o foco é a violência na sua forma mais abjeta? O que ocorre quando um cineasta utiliza novas ferramentas para testar os limites da brutalidade cinematografada? Assistindo a Irréversible, filme de Gaspar Noé (autor do não menos provocante Seul contre tous, prêmio da crítica em Cannes 1997 e inédito comercialmente no Brasil), experimenta um estranhamento o espectador, em grande parte porque o material projetado tem a aparência e a energia de algo novo. Nunca a brutalidade chegou tão perto da pornografia no cinema de ficção. O filme revela-se de interesse mais pela sua forma sensorial do que pela sua estrutura esquelética de narrativa e significado (Noé nos sugere que “o homem é um animal” e que “o tempo destrói tudo”). Mais relevante do que isso, o filme sofreu o tipo de apedrejamento geralmente reservado a obras que radicalizam no tratamento do sexo e da violência. Bonnie & Clyde (1967), de Arthur Penn, Meu ódio será tua herança (1969) e Sob o domínio do medo (1971), ambos de Sam Peckinpah, Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick, Assassinos por natureza (1994), de Oliver Stone, Funny games (1997), do austríaco Michael Haneke, foram recebidos com algum tipo de reproche, uns mais, outros menos intensos. Irréversible, que deve boa parte de sua fúria a Sob o domínio do medo, de Peckinpah, já entrou para essa lista. Há duas seqüências cardíacas no filme, carregadas de uma violência que deixa a platéia zonza e

irritada. A primeira, logo nos 15 minutos iniciais de projeção, apresenta um assassinato. O rosto de um homem vira uma polpa de carne e sangue rumo à própria caveira ao ser atingido um sem-número de vezes por golpes dementes de um extintor de incêndio. Não há cortes na seqüência e o espectador é levado a observar a ação explícita sem descanso para os olhos, a não ser que prefira deixá-los bem fechados. Em razão da diabólica eficiência da imagem, ninguém cogita da possibilidade de que aquilo ali não seja um homem, mas um boneco. Daí o choque e a repulsa. Há também na seqüência a agressão do som numa orgia de áudio e música – aqui composta por Thomas Bangalter, da dupla eletrônica francesa Daft Punk. Junte-se a isso também a ambientação, filmada, como se fosse um inferno vermelho, por uma câmera que gira no seu próprio eixo. Noé consegue orquestrar uma seqüência agressiva em todos os sentidos. O segundo momento de choque para a platéia, já na metade do filme, nos mostra nove minutos de um estupro. O assassinato da abertura é resultado direto do estupro, embora Noé nos apresente primeiro a vingança para, depois, revelar-lhe o motivo. Como em Amnésia (2001), filme de Christopher Nolan, ele utiliza uma estrutura narrativa invertida, de Z a A, ou seja, começa pelo fim e evolui até o início. Catorze planosseqüências fluentes compõem a narrativa: catorze takes contínuos e, aparentemente, sem cortes. As imagens de Noé são interessantes. Desconcertam pelo ineditismo de um “realismo” há pouco tempo impensável no cinema, pois representam um cinema tecnicamente meticuloso que visa extrapolar os limites do aceitável, um “aceitável”, aliás, em Continente Multicultural 53


O diretor cria um cenário de tons avermelhados, que, juntamente com a música, acentua o clima violento do filme

grande parte estabelecido por um gem cinematográfica, técnica, e mercado dominado por regras de atores de qualidade. Irréversible é conduta estética. Assim, as tomaum filme de ficção, uma represendas de violência de Irréversible potação filmada da realidade. Não dem ser consideradas “inaceitáme interessaria filmar snuff. Para veis” dentro daquilo que foi defiisso, já basta o que vemos todos os nido como parâmetro comercial. dias na televisão, que investe cada Não há aqui os já assimivez mais na ‘realidade’, seja lá o lados por todos (seja consciente, que ‘realidade’ significa hoje em seja inconscientemente) plano de dia”, disse Noé. um golpe dado e contraplano do Noé diz que, por ser a cena mesmo golpe sendo recebido. do estupro uma tomada fixa e sem Em Irréversible, a linguagem imicortes, não teria sido possível ta a desconcertante violência real maquiar o rosto da atriz com sanque o cinema não mostra, talvez gue e hematomas. “O rosto dela pelo fato de o cinema ter a sua foi maquiado na pós-produção, própria gramática de reprodução digitalmente. Há também a imado real. Curiosamente, Noé regem do pênis já não tão ereto, deEm Irréversible, a produz o real com o efeito atorpois do estupro, acrescentada via linguagem imita a doante de um novo cinema técnicomputador. Esse tipo de detalhe co, experimentando um novo tipo desconcertante violência desconcerta o público e desconsde imagem. É uma gramática no- real que o cinema não trói a noção de ‘real’ no cinema, va, tão desconhecida quanto a tec- mostra, talvez pelo fato uma vez que perguntas simples, nologia que a viabiliza. do tipo ‘como ela ficou sangrando de o cinema ter a sua Gaspar Noé explica: “Na desse jeito?’, ou mesmo a presença própria gramática de do sexo do ator na cena tornam-se verdade, cada plano-seqüência na reprodução do real tela, aparentemente sem cortes, é difíceis de responder. No meu filuma seleção dos melhores mome, um estupro é mesmo um ato mentos dos muitos planos-seqüências que foram fil- inassistível pela sua brutalidade, e fico satisfeito de ter mados. Tem muita coisa colada secretamente no com- podido representá-lo dessa forma”, diz. putador por cortes invisíveis. Em vez de escolher um Sobre a forma como filmou o assassinato, uma único take ‘bom’, como antigamente, eu pude escolher seqüência talvez ainda mais forte, Noé diz ter os melhores momentos de vários takes contínuos e misturado digitalmente o corpo do ator ao de três montar algo que aparenta ser um único movimento”. bonecos, por meio de manipulações digitais que lhe Descrita na ordem cronológica normal, a tra- destroçaram a face. “Talvez por a cena ser de uma ma de Irréversible nos mostra um casal e o melhor violência nunca vista, a composição, a manipulação amigo deles. Depois de sair de uma festa, ela é brutal- da imagem e a movimentação do corpo/cadáver lhe mente estuprada numa passagem subterrânea para dêem um sentido de realidade ainda maior”. pedestres, em Paris. Num acesso de fúria, o namoO que significa esse tipo de tecnologia para rado e o amigo procuram o agressor na boate gay Noé, no cinema de hoje? “Primeiro, a liberdade que sadomasoquista Rectum, onde a vingança é efetivada. me permite fazer um filme no sentido estético e “O tom da imagem e a estética da violência técnico. Segundo, a possibilidade de mostrar a vionesse filme podem lembrar os snuff movies [filmes que lência não como algo que receberia censura 17 anos retratam assassinatos supostamente verídicos]. A [referência à classificação comercial ‘adulta’ amplaidéia de desfigurar um rosto humano daquela forma, mente aceita por Hollywood], mas como algo inclaspor exemplo, veio de uma fita inglesa, onde um ho- sificável, uma vez que o mundo no qual vivemos não mem era espancado até a morte, talvez a coisa mais tem ‘certificado 17 anos’: nossa realidade simplesbrutal que eu já vi. De qualquer forma, eu sou um mente não tem censura”. (KMF) diretor de cinema. Tenho a meu dispor uma lingua-

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O diretor George Lucas revela porque tem confiança no final domínio da tecnologia digital no cinema, por proporcionar recursos que aumentam a liberdade imaginativa do artista

Toda arte é tecnológica

FOTOS: DIVULGAÇÃO

A

s impressões digitais de George Lucas estão espalhadas pela indústria cinematográfica americana. Uma ironia, já que ele tornou-se, ao longo dos últimos 25 anos, o mais poderoso cineasta “independente” que essa mesma indústria já viu. Com a saga Guerra nas estrelas, criou a sua própria mitologia e seu próprio império, o Skywalker Ranch, um sítio de três mil hectares no norte da Califórnia, perto de São Francisco, onde circula uma moeda interna chamada Lucasbucks. Esse império engloba a LucasFilms, produtora da saga Guerra nas estrelas e da série Indiana Jones, a Industrial Light + Magic, responsável por revolucionar a área de efeitos especiais no cinema, e a mais moderna casa de pós-produção do mundo, o Skywalker Sound, especializada em som para filmes. É Lucas quem paga do próprio bolso pelos filmes que faz, como no caso de Episódio 2 – Ataque dos clones, atualmente em cartaz no mundo inteiro. A Fox, que produziu e lançou o primeiro Guerra nas estrelas, em 1977, tem agora apenas a honra de lançar o filme (custos são cobertos), pois Lucas fica com todo o lucro. Tudo isso significa que esse senhor de barba asseada e obrigatória camisa xadrez ensacada é o que a velha Hollywood chamava de movie mogul,

um novo Howard Hughes, milionário visionário que defende e pesquisa o cinema como uma nova tecnologia que está sempre em transformação. Como definiria essa revolução tecnológica que está acontecendo hoje, no cinema, e que tem no senhor o seu principal catalisador? O “digital” para mim é simples. Toda a arte é tecnológica, muita gente esquece isso. O exemplo que sempre gosto de usar é a evolução da pintura, dos afrescos à tinta a óleo. Para mim, representa a mudança que ocorre hoje entre o processo fotoquímico de cinema e o digital. Os afrescos exigiam grande empenho técnico na mistura das cores por um certo número de pessoas que precisavam se certificar de que as tonalidades secariam corretamente e de que a pintura estaria adequada, sem mudanças. Era um processo rígido. Mudar de idéia significava ter de refazer, exatamente como no processo fotoquímico “filme”, no cinema. Com a tinta a óleo, já era possível sair à luz do dia, mudar as cores, mudar de idéia e concepção ao longo do processo criativo. A nova tecnologia na arte geralmente traz uma nova liberdade para o artista desenvolver idéias.

Cena de Episódio 2 – O Ataque dos Clones, o novo trabalho de George Lucas

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Em 1977, o senhor liderou uma revolução no som para cinema, estimulando a instalação, em cen56 Continente Multicultural

tenas de salas, do então novo sistema Dolby Stereo, tudo isso para o lançamento de Guerra nas estrelas. Hoje, esse tipo de som virou padrão mundial. A imagem “digital” poderá seguir o mesmo caminho? Sim, nada irá deter o digital. O problema atualmente, e que não havia ocorrido nos anos 70 com o avanço do som, é uma resistência conservadora por parte da indústria, especialmente das cadeias exibidoras, às mudanças. Há um temor generalizado de que a tecnologia ficará obsoleta rapidamente, o mesmo tipo de medo que as gravadoras tinham em relação ao CD ou à edição não linear por parte dos montadores, tecnologias que hoje se tornaram padrão. Em dois ou três anos, o digital terá qualidade superior à do filme de 35mm e poderá atender a todas as exigências de um roteirista ou produtor. Há hoje uma nova geração de cineastas que está repensando a imagem a partir das novas tecnologias. Serão eles que levarão adiante essa revolução, e não os estúdios, que, claro, virão logo atrás, como sempre. Um dos argumentos de Hollywood contra o “digital” é a facilidade de difundir uma obra através dessa tecnologia. A pirataria está se tornando um problema cada vez maior, especialmente pelo fato de vivermos hoje num mundo unido pela mesma tecnologia. É impossível fazer algo “aqui” sem pensar que isso irá reverberar “ali”, principalmente se levarmos em consideração um grande lançamento como Guerra nas estrelas. O nosso lançamento mundial e praticamente simultâneo tem como objetivo minimizar a ameaça de pirataria. Eu acredito que o digital, na verdade, dificulte a pirataria. É mais fácil pagar cinco mil dólares a um operador de projeção num cinema para que ele projete o filme na calada da noite em frente a uma câmera digital do que se debruçar sobre um sofisticado servidor e tentar quebrar senhas e códigos de segurança sofisticados, dignos de sistemas de comunicação militares.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Até um certo ponto. O senhor, como artista, tem utilizado as novas tecnologias para revisitar e alterar obras suas. Dessa forma, nunca teremos uma obra definitiva, pois ela sempre estará sujeita ao influxo da mais nova técnica disponível. Eu faço parte da Artist’s Rights Foundation (Fundação dos Direitos dos Artistas). A idéia é que apenas os próprios artistas tenham o direito de alterar suas obras. Preciso lhe lembrar que não fui o primeiro nem o único a alterar obras originais. Há milhares de anos que temos exemplos de artistas revisitando suas obras porque mudaram de idéia, ou de conceito. Se você visitar qualquer ateliê, encontrará sempre por lá um quarto nos fundos onde o artista repensa seu trabalho. No cinema, especialmente em Hollywood, o normal é ver o estúdio seqüestrar seu filme e mantê-lo bem longe de você. No caso de Guerra nas estrelas, que foi relançado em 1997 com mudanças, eu finalmente pude colocar na tela um filme que eu não consegui fazer da maneira que eu queria no passado, por falta de tecnologia. Especificamente em relação a meus filmes, me sentia sempre tolhido pelas limitações tecnológicas. Algumas das barreiras foram superadas; outras, não. Em 1976, por exemplo, não foi possível colocar Jabba the Hut nas filmagens de Guerra nas estrelas. Por isso ele só apareceu finalmente em 1997, na “edição especial”. Teria sido um esforço enorme, com resultados questionáveis, construir um Jabba de borracha que mal podia se mexer. A idéia foi abandonada, até que a tecnologia para realizá-la ficou disponível. O atual formato do cinema ainda é muito limitado. A visão de um diretor para uma determinada história pode ter perfeitas quatro horas de duração, mas, por questões de mercado, é preciso cortá-la para duas. É por isso que o formato DVD tornou-se tão popular entre cineastas. O DVD transformou-se num canal de escape para a visão original deles.


Quais as outras vantagens do digital? Você pode até usar o digital para consertar cenas, apagar orelhões da imagem, fios etc. Se um diretor não consegue permissão para filmar nas ruas de Paris, ele pode criá-las digitalmente e ambientar a sua ação lá mesmo, no computador, com os seus atores. Com o advento do digital, nos últimos 20 anos, o realizador tem a seu dispor ferramentas que viabilizam e democratizam o trabalho. Como unir as novas ferramentas de trabalho hoje disponíveis ao processo de criação que, muitas vezes, surge num papel? Para falar a verdade, eu não sou grande admirador do formato narrativo que existe hoje no chamado “cinema”. Ainda estamos restritos a duas, três horas. Isso me incomoda muito, porque tenho uma tendência de me entusiasmar por histórias que não cabem nessa estrutura atual. Escrevi o eixo principal da saga 30

anos atrás. Aquele eixo é, em grande parte, o que está sendo feito hoje, ainda, no Episódio 2. Naquela época, eu queria que o design do filme tivesse muito das cinesséries das grandes matinês de sábado, nos anos 30 e 40. Minha idéia sempre foi começar pelo episódio 4 (Uma nova esperança). Outro aspecto interessante do roteiro é que, por mais que eu soubesse das dificuldades técnicas de se realizar um filme desse tipo, eu sempre escrevia meu material de uma forma que limites técnicos fossem quebrados. Por eu ter escrito um eixo principal para a saga como um todo, dotado apenas de perfis dos personagens e suas localizações na trama, muita coisa foi ditada pelas limitações impostas pela tecnologia. Yoda, por exemplo, eu sabia que teria de ser um alienígena pequeno e praticamente imóvel, uma vez que não seria possível movimentá-lo com muita leveza. Vinte anos depois, Yoda movimenta-se de uma forma outrora impensável. Isso reflete a forma como a tecnologia muda o trabalho do artista. (KMF).

Seqüência de cenas do filme O ataque dos clones, no qual Lucas pôde realizar idéias antes impossibilitadas por falta de recursos tecnológicos

A famosa e simpática dupla de robôs, C-3PO, o magro alto, e R2-D2, o baixinho rechonchudo


DIÁRIO DE UMA VÍBORA

Olhos acesos de uma coruja lésbica Joel Silveira

1.

Associação de idéias

Qualquer coisa naquela veneranda senhora do nosso soçaite, não sei se por causa dos olhos sempre acesos, me lembra uma coruja lésbica – se é que tal coisa existe.

3. Sabedoria felina Ah, o desprezo e o sonolento tédio com que os gatos nos olham...

2.

O conto do vigário

Todo vigário, particularmente aqueles do interior, com mais de quarenta anos de batina surrada, tem o seu tanto de vigarista. Ninguém escuta tanta confissão em vão.

4.

Espelho retrovisor

Até que é bom de vez em quando olhar para trás. Mas nunca de supetão. Aos poucos, lentamente, como quem finge não estar olhando...

5.

Constatação

Todo escoteiro tem alguma coisa de debilóide. Já as escoteiras são mais espertinhas. 58 Continente Multicultural


6.

Que país é este?

Perdoem a falta de modéstia, mas o desabafo é sincero: este país não me merece.

10.

De olho no relógio

Insone, me pergunto: são as madrugadas que estão mais compridas ou são os minutos que estão mais vagarosos?

7.

A diferença

Eu sei, todo mundo sabe, qual a diferença entre uma banana e uma melancia. O que eu não sei, e duvido que alguém saiba (nem eles mesmos), é qual a diferença entre um “analista político” e um “cientista político”, agora tão pomposamente constantes em nossos jornais.

8.

Tempos insossos

Não é que meus amigos, os mais antigos, estejam ficando chatos, sem graça e sem conversa. Apenas estão envelhecendo e, como todo mundo sabe, a velhice é essencialmente enervante, suspirosa, insossa. Pergunto: pode existir algo mais insípido do que velho falando do passado, mesmo o mais recente? E velho falando do futuro? Aí já é pura gaiatice, quiçá deboche.

9.

Que o passado passe

“O futuro vai chegar”, promete sua Excelência. Nem é preciso tanto. Basta que o passado realmente passe.

11.

A mesinha-de-cabeceira

Aquele meu conhecido, beato de carteirinha, pergunta-me qual a imagem de santo que eu tenho em minha mesinha-de-cabeceira. Limito-me a responder que não tenho mesinha-de-cabeceira.

12.

Planos

Quando aquele cavalheiro me perguntou o que eu pretendia fazer no futuro, ocorreu-me responder, embora, por tédio, não o tenha feito: – Já fiz. Meu futuro foi anteontem.

Joel Silveira é jornalista

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CULTURA

Por uma cultura reflexiva

O crítico Luiz Costa Lima diz por que o brasileiro não aprendeu a pensar Alexandre Bandeira

O

educador Paulo Freire morava na rua Rita de Souza, no bairro de Casa Forte, no Recife, e de vez em quando ouvia umas batidas na janela do seu escritório, à noite. Era o seu vizinho, um rapaz ainda, interessado em escutar os conselhos de Freire e filar os seus livros. “Ele foi o meu primeiro mestre”, lembra Luiz Costa Lima, o vizinho, hoje crítico literário e autor de livros como Mímesis e modernidade e Lira e antilira. De Paulo Freire, Luiz Costa Lima deve ter herdado a concepção de cultura como atividade reflexiva, e não meramente didática, como queriam alguns setores de esquerda mais ortodoxos. E é essa concep62 Continente Multicultural

ção que o crítico reclama hoje para a intelectualidade nacional: “No Brasil lê-se mal e pensa-se pior ainda”. O que é preciso para o brasileiro aprender a pensar? Nesta entrevista, Costa Lima tenta responder à pergunta, identificando falhas do nosso sistema universitário e na própria mentalidade brasileira: “O que nos caracteriza é a insegurança que temos quanto aos nossos próprios valores”. Fala ainda de Euclides da Cunha e Os sertões, e de Gilberto Freyre, cujo estilo livre Costa Lima considera um mecanismo de defesa: “Porque ele não opta por um rigor conceitual, é mais difícil criticá-lo e mais fácil tomá-lo como gênio”.


Obviamente quem tem que dar uma opinião sobre a importância atual do método Paulo Freire é um técnico, não sou eu. Mas, empírica e intuitivamente, eu diria que há duas razões para a atualidade do método. Primeira: ao aumento da nossa população tem correspondido o aumento da nossa margem de analfabetos. E o método continua sendo uma boa ferramenta educadora. Em segundo lugar, não é o analfabeto legítimo que mais me incomoda, mas o analfabeto alfabetizado. É o analfabeto letrado. Aquele que não sabe realmente o que significa a palavra, o que significa pensar. O método de Paulo não visava a esse tipo de analfabeto. Mas, de toda maneira, à medida que a margem de analfabetismo real diminuísse, haveria um incremento de atividades de capacidade crítica, e o analfabeto letrado se sentiria, pelo menos, incomodado.

FOTO: REPRODUÇÃO

Que implicações políticas o método Paulo Freire trouxe para a época em que foi implementado? Eu diria que toda a perseguição a Paulo em 1964 era, ao mesmo tempo, altamente injusta e altamente justa. Injusta, porque a alegação que a direita oficializava nas suas comissões de inquérito era a de que Paulo seria um agente do Partido Comunista. Isso era um absurdo. As relações de Paulo com o PC nunca foram boas. Pelo contrário, setores de esquerda difundiram antes do golpe que Paulo estaria recebendo dinheiro americano e toda uma série de maluquices. Então, por um lado, era altamente injusta toda a perseguição, as prisões, o exílio. Mas, por outro lado, era extremamente justa, porque o que Paulo queria, sem nunca pretender a comunização do país, era tirar o Brasil da pasmaceira terceiro-mundista. Em que consiste o método Paulo Freire e qual a sua importância atual? A meta de Paulo era fazer o ensino das cartilhas do ABC se basear fundamentalmente na linguagem viva. Uma das primeiras tarefas que as equipes de professores cumpriam era ir à comunidade-alvo e saber quais palavras diziam respeito às atividades fundamentais dos alunos. Digamos, tijolo. Então, apresentavam a palavra, num quadro-negro ou num projetor, silabicamente – ti-jo-lo – mostrando como a mudança das sílabas ia dando lugar a novas palavras. E iam-se constituindo universos, não a partir de um critério mnemônico, mas de um parâmetro concreto, prático, a partir das palavras geradoras.

Que divergências havia entre Paulo e esses setores de esquerda? Para começar, Paulo era um homem católico. Mas o comunista da década de 60 ainda era literalmente um ateu violento, porque “a religião é o ópio do povo”. A segunda divergência era que Paulo não era um homem político. As suas intenções eram políticas, mas ele não era um homem de práticas políticas. Todo aquele savoir faire político, Paulo não o tinha. Isso atrapalhava as relações com o PC, inclusive com a juventude do PC. Um terceiro elemento que me parece muito importante é que o PC e as esquerdas, em geral, pensavam a cultura em termos didáticos. Fazer teatro, fazer poesia e escrever romances “para ensinar o povo a”. O marxismo ortodoxo implicava uma concepção Continente Multicultural 63


Paulo Freire foi perseguido como subversivo pela ditadura militar, apesar de ser católico, divergir dos comunistas quanto à reflexão da cultura, e ser homem avesso à prática política

O que falta para o brasileiro aprender a pensar? É mais fácil entender, antes, por que o brasileiro domestica tanto o pensamento. Imaginemos um professor universitário que sabe que, no fim do mês, ganhará um salário ridículo. Como não pode sobreviver com este tal salário, tem que aumentar o número de aulas. Então, passa a dar aulas das 8h até o meio-dia. Come qualquer besteira, volta a dar aulas às 14h, acaba às 18h. Simplesmente para poder se sustentar. Então, qual é a disposição que esse camarada tem, ao entrar ali, para pensar? Claro que ele vai procurar fazer a coisa do modo mais automatizado possível. Se aparece um aluno que está interessado em pensar, ou que tem dificuldades, o professor não tem disposição anímica para dar conta dessa diversidade. Não é por acaso que o pensamento vai se domesticar. Ele é bitolado a partir do professor, não porque este seja ruim, mas porque as condições objetivas em que se trabalha o são. Por outro lado, se você pensa num nível já mais alto de socialização universitária, imaginemos agora um aluno no início da pós-graduação. Digamos que, 64 Continente Multicultural

O Sr. identifica algum sistema universitário, hoje, no mundo, que pode servir como bom modelo? Eu conheço razoavelmente bem os sistemas universitários alemão e americano. Tomemos o americano, que está mais próximo de nós. Há uma grande diferença entre o sistema educacional americano e o nosso, que é a alternativa que se ofeerta ao aluno: “O que eu quero fazer? Quero aprender a refletir ou quero rapidamente ser um profissional no mercado?” Para isso, se apresentam diferenças entre universidades mais baratas, mais fáceis e pragmáticas e outras mais caras e mais exigentes, mais reflexivas – e existe um ranking de universidades que é feito a cada ano. Em suma, há meios de você responder ao problema pela diversificação de condições. Eu quero simplesmente ter o meu diploma porque eu sei que o que quero fazer; ser agente da bolsa, por exemplo, tem pouco a ver com atividade universitária. Então eu vou para uma universidade barata que exija menos. E isso tudo é sabido. Há condições de opção. Entre nós, há cada vez menos possibilidades de escolha. E quanto à crise das disciplinas: é outro problema do nosso sistema universitário? Eu acho o pensamento holístico uma besteira. Mas a crise das disciplinas é uma coisa evidente. Eu diria que o grande desafio é ser capaz de selecionar um

FOTO: EDER LUIZ MEDEIROS / O GLOBO

didática da cultura a que se contrapunha uma concepção de reflexão sobre a cultura. Estes seriam os três elementos divergentes entre Paulo Freire e as esquerdas: o elemento religioso, o fato de que Paulo não era um homem de práxis política e, sobretudo, a dissenção quanto à reflexão da cultura.

apesar de todos os percalços, esse camarada se dispõe a pensar. E se depara com um conjunto de professores, dentre os quais tem que escolher um orientador para a sua tese. Todos têm esse hábito de automatização anterior. Então esse camarada, com 24, 25 anos, no início da carreira acadêmica, se dispõe a contestar o que o professor diz. Muito provavelmente esse professor não vai aceitar ser o seu orientador. Se esse professor tiver importância política dentro da universidade, não será a favor, posteriormente, da contratação daquele camarada. Em outras palavras, aquele germe inicial da contestação vai estimular a continuação do quadro ruim.


número “x” de disciplinas que permita constituir um perfil próprio. Imaginemos alguém que queira ser um helenista. A primeira obrigação é que tenha um bom professor de grego. Será importante ele ter, também ao lado do grego, um conhecimento de filosofia antiga, que lhe possibilite uma familiaridade suficiente com os pré-socráticos, com Aristóteles, Platão, com os sofistas etc. Até aí ele ainda estará categorizado. Mas ele pode sentir a necessidade de ter acesso a antropólogos que tenham trabalhado com temas semelhantes aos tópicos helenistas, como, por exemplo, a questão da narrativa. Então ele procura o departamento de antropologia e descobre quem são os antropólogos que poderão lhe dar uma abordagem, digamos, africanista do problema da narrativa – o mito, a lenda etc. Com isso ele terá uma ponte na sua cabeça que o helenista da geração anterior não teve. E por aí vai. Que coisas mais o nosso futuro helenista pesquisaria, eu não sei. Mas, dizer que a imagem do novo helenista é a de alguém que domina a ciência da computação, antropologia africana e sabe grego é besteira. Não existe isso. A crise das disciplinas não significa que não há a possibilidade de se criar uma nova disciplina que preencha os vazios que as existentes têm.

FOTO: REPRODUÇÃO

Essa carência das nossas universidades atrapalha a formação de um pensamento brasileiro do século 21? O que mais prejudica a formação de um pensamento nacional não é simplesmente uma carência institucional. Eu diria que há uma segunda carência muito pior. É a da própria sociedade brasileira. Em que sentido? Eu diria que o que nos caracteriza, a nós todos enquanto membros de uma sociedade de Terceiro Mundo, é a insegurança que temos quanto aos nossos próprios valores. A própria insistência do tipo “a tapioca é do Nordeste”, “o meu falar é de tal lugar, isso eu aprendi não sei onde”, essa própria necessidade de materializar valores, não é outra coisa senão a insegurança que você tem em relação aos seus valores. “Eu penso

isso porque estou de acordo com Fulano de Tal”, e aí você precisa achar um nome com bastantes consoantes. Eu desenvolvo isso no apêndice de um livro que escrevi, chamado Terra ignota: a construção de Os sertões. Por conta dessa insegurança, dessa instabilidade de valores, se um leitor – mesmo um que entenda o que está lendo – vir um livro escrito por João da Silva, precisa ir à bibliografia. Se lá houver uns seis títulos em holandês, numa mesma língua – mas, por favor, que não sejam traduzidos para o espanhol: numa mesma língua e no original – aí então já sente uma certa segurança, uma diminuição de insegurança. Mas se o autor citou esses seis livros para contrariar a visão do leitor, a insegurança volta. Não que o leitor tenha culpa, é a mesma situação daquele professor: é o quadro sociocultural em que ele vive que lhe dá essa insegurança. Um exemplo dessa insegurança é o que acontece com as resenhas de livros. Em 1984 publiquei um livro que se chamava O controle do imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. Logo depois fui para os Estados Unidos, onde tive a oportunidade de desenvolver a hipótese do livro formando uma trilogia, que saiu em inglês. Recebi, então, convite de um editor italiano encarregado de fazer uma obra em cinco volumes sobre a história do romance. Ele me pediu uma contribuição especial sobre o controle do imaginário e o romance. O que já é uma coisa que, entre nós, eu nunca recebi, um convite como aquele. Porque enquanto esse livro circulou simplesmente em língua portuguesa, eu não sei sinceramente como é que as pessoas reagiram, porque as resenhas eram muito polidas: “que livro erudito”, qualquer besteira dessas. Se você for juntar o número de apreciações críticas que isso teve daria umas três resenhas, razoáveis, no máximo elogiativas. O resenhista tem medo de incomodar o autor? Não exatamente. Na medida em que o livro não está sendo apresentado como seqüência ou subordinação a algo, com o respaldo de um nome bastante consonantal, o que é que eu vou dizer em relação a ele? Não é tanto o medo de ferir o autor, é o medo de apostar no cavalo errado. Mas a partir do momento em que esse negócio esteja publicado no estrangeiro...

Euclides da Cunha, em retrato autografado. Toda a sua genialidade era cortada pelo estreitismo das matrizes positivistas

Qual é a raiz dessa nossa insegurança? Eu diria que é porque não temos história de um pensamento reflexivo. Não esqueçamos que esse não é um problema só brasileiro, mas latino-americano, o Continente Multicultural 65


que remete ao colonizador português e espanhol. O português e o espanhol, tendo se antecipado a todos os expansionistas europeus, rapidamente perderam esse élan que vai dar lugar ao pensamento moderno, eu diria, já na segunda metade do século 16 e começo do 17, quando já há uma censura, um policiamento muito forte do pensamento. Se você pensa em relação à colonização, o nosso colonizador é todo preso por estruturas inquisitoriais, censura política. Enquanto todo o mundo moderno está se armando, a Península Ibérica está reagindo. Pensa, agora, no Brasil independente. Qual é a herança de pensamento filosófico que recebemos entre nós? Nos tempos do Império o que se entendia por filosofia era simplesmente ecletismo, mistura de Rousseau, muita escolástica, muita porcaria. Mistura enorme de conhecimentos, como uma escola de samba. Em meados do século 19, a primeira reação contra a tradição herdada se dá através do positivismo. Positivismo significa horror à filosofia, porque filosofia é entendida como essa mixórdia. Daí vem o meu interesse em estudar Euclides da Cunha. Toda a genialidade euclidiana termina sendo completamente cortada por conta do estreitismo das matrizes evolucionistas, positivistas. Mas o muito curioso, daí o interesse que eu tenho por ele, é que você sente aqui e ali Euclides crispando, quicando diante da sua própria matriz, e ao mesmo tempo nota que a repressão é mais forte. Por exemplo, logo na primeira parte, na “Terra”, ele começa a divagar sobre a origem

Quando conheceu as intenções políticas de Gilberto Freyre, a Esquerda pós-64 tornou-se cega ao seu valor

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do Sertão, se afinal de contas tudo aquilo não era um continente só etc. Lá pras tantas, umas treze páginas depois, ele diz: “Deixemos de especulação. Copiemos, copiemos.” Quer dizer: “vamos aos fatos”. Mas esse é um dos pontos mais elogiados da obra Os sertões, essa fidelidade ao fato, essa isenção severa. Pois é, mas essa é a mesma opinião crítica que se fez sobre a obra, do começo até agora. Como eu tive o trabalho de ler o acervo crítico sobre Euclides, eu posso dizer que a crítica, em termos médios, não mudou nada. E essas primeiras críticas sobre Euclides já partem de um negócio enlouquecedor: que ele fazia história e simultaneamente era um romancista. Como é que ele pode ao mesmo tempo ser isso e aquilo? Isso está afirmado em Veríssimo. Mas com ele dá para entender por quê. Porque ele estava tendo uma concepção retórica de literatura que não tem nada a ver com a concepção moderna de literatura, que supõe um discurso fundamentalmente ligado à experiência do eu. Enquanto que a concepção clássica, retórica, não se refere à literatura, mas a belas letras. E belas letras não excluem história, por exemplo. Belas letras é escrever bem, o que não define o discurso literário. Então muito provavelmente Veríssimo estava pensando em literatura assim. Mas isso se repete até hoje tranqüilamente, você encontra historiadores dizendo que a genialidade de Euclides foi ser historiador e romancista ao mesmo tempo.


Gilberto Freyre representava um passo adiante na argumentação retórica; fazia questão de ser chamado de escritor porque não tinha nenhum rigor conceitual para o discurso de ciências sociais

FOTOS: REPRODUÇÃO / FOLHA IMAGEM ; REPRODUÇÃO

Gilberto Freyre preferia ser chamado de um escritor a ser considerado sociólogo. Você tem reservas quanto a essa postura de Freyre, não tem? Paulo Freire tinha razão em me aconselhar a ler mais Gilberto Freyre e menos Rui Barbosa. Se eu me tornasse leitor de Rui, estaria aprendendo um discurso retórico vazio. Nesse sentido Gilberto Freyre tinha uma grande qualidade. Mas o que eu digo é que para as ciências sociais – não é por acaso que Gilberto fazia tanta questão de ser chamado de escritor – o discurso de Freyre era uma maneira de se defender, porque não tinha nenhum rigor conceitual. Gilberto realmente representava um passo adiante, na argumentação retórica. Mas isso não quer dizer que a linguagem e o estilo de Gilberto não me pareçam criticáveis por outra razão. Se eu quero ser sociólogo ou antropólogo eu necessito de um rigor conceitual, o mesmo rigor do qual eu obviamente devo fugir, como o diabo da cruz, se eu quiser ser um romancista. A postura de Gilberto é um mecanismo de defesa? É. Porque já que ele não opta por uma rede conceitual, será mais difícil tomá-lo como discípulo de A, B ou C. E mais fácil tomá-lo como gênio. É um mecanismo de defesa facilmente identificado, mas que não é discutido. Porque aí é que está: faz parte da nossa insegurança, quando você quer louvar uma figura, convertê-la em mito. Intocável. Você não pode criticar. Inúmeras pessoas aqui no Recife me vêem com maus olhos porque eu critico Gilberto. Não critico Gilberto por questões pessoais, isso é o que menos importa. Eu o critico porque eu acho que ele é criticável.

Nem sempre o mito de Gilberto foi intocável. Por muito tempo ele foi severamente criticado por setores de esquerda. Mas, hoje em dia, o pensamento de Freyre vem sendo revalorizado. O Sr. considera essa revalorização mais crítica e menos mistificadora? Não. A fortuna crítica de Gilberto está para ser feita, e essa mistificação não ajuda. Apesar de haver exceções, de um modo geral, essa revalorização continua sendo do mito. Eu diria que a revalorização de Gilberto tem a ver com o fato de que no pós-64 houve uma repressão a ele generalizada, porque as intenções políticas de Gilberto se tornaram conhecidas. Repressão por uma frente de esquerda cega que não reconhecia inclusive o que era reconhecível, de valor, na obra de Gilberto. À medida que essa polarização direita-esquerda se perdeu em termos conceituais, estruturas muito rígidas, como a repressão a Gilberto, por exemplo, se afrouxaram, permitindo que ele continue tendo o prestígio que tem, ora como figura mitificada, ora como fenômeno revalorizado.

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FOLCLORE

Farra Dança dos Pirrôs do Boi Tinga, com batedor-mascote Gabu ao fundo

A 120 km de Belém do Pará, uma festa junina com boi de quatro pernas e pierrôs-arlequins

Interior da igreja matriz de São Caetano da Divina Providência, patrono de Odivelas

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Texto: Heitor e Silvia Reali Fotos: Heitor Reali

divina


O

foguetório anuncia que hoje ele sai. Tudo pode acontecer. Não houve ensaio, nada é cronometrado. Ninguém compete. O pivô dos festejos é o Boi que está léguas longe dos simulacros de festas programadas para consumo turístico. Não deve estar muito longe do paraíso, mas está a 120km de Belém, na cidade de São Caetano de Odivelas. Os navegadores portugueses careciam de originalidade na hora de batizar nossas cidades. Ou era o nome do santo do dia, ou o da cidade de onde partiram. Aqui, em 1735, na dúvida, colocaram os dois juntos, e o santo ficou lado a lado com um nobre safado de além-mar. Conta-se que todas as noites, quando o príncipe saía para ver uma de suas concubinas, à sua resignada esposa só restava suspirar – “Oh! Ide vê-las!” Dando nome aos bois, o daqui chama Tinga, algunha de um famoso “boi garanhão” marajoara. Foi da ilha de Marajó que os compadres Laudelino Zeferino e Tito Dalmacio trouxeram o esqueleto de uma cabeça de boi achado no pasto, quando voltavam de uma pescaria. Tiveram a idéia de levá-lo a Odivelas para os festejos joaninos. Mandaram confeccionar o boi o artesão Raimundo Cunha. Hoje, depois de 65 anos de apresentações, do adereço original só sobraram os chifres e parte da queixada: o resto foi bem remendado e ainda ganhou sete metros de veludo novo por pele. Boi macho, único de quatro pernas, de adorno só uma fita no pescoço. Afinal, boi de saia todo enfeitado de babado e baboseira, com duas pernas, não é boi, é galinha, provocam os odivelenses. Semanas antes da festa se dá o “cartiá”: José Zeferino, herdeiro do Boi, percorre as casas de porta em porta e em troca de pequena contribuição garante folia em domicílio. Nesse dia, avivados pelos rojões, os integrantes do cortejo se reúnem na casa do boi. Chegam os músicos, os “Tripas” – as pernas do boi –, o “Buchudo”, embruxado com sua roupa cheia de trapos e tralhas, e o “Cabeçudo”. Este se parece com um personagem da trupe catalã El Commedians, da qual aqui nunca se ouviu falar. Lembra que um dia alguém, não tendo com que se fantasiar, pegou uma enorme caixa de papelão que lhe cobria até a cintura, envolveu os quadris com um paletó, pintou uma cabeçorra e pronto: criou o personagem. Quando o Cabeçudo dança, as mangas soltas e as pernas rodopiam aleatórias, parecendo um dervixe pirado. Além de tudo tem o Pirrô, (pronuncia-se “pirru”). Talvez, desse saco de gato brasileiro, sempre alegre, gostoso e infantil, saia a síntese da nossa criatividade. A Commedia Continente Multicultural 69


O artesão Antonio José Monteiro de Oliveira, mais conhecido como Cação, molda com zelo a máscaro do Pirrô, sobrepondo várias camadas de jornais e goma de mandioca

No bairro de Vila Nova em S. C. de Odivelas, os chapéus das fantasias já foram lavados e postos para secar no dia seguinte da folia

dell’arte legou ao mundo dois personagens distintos, Arlequim e Pierrô. Arlequim, descendente de uma representação medieval do diabo, infernizava o doce e alvo Pierrô. Já o Pirrô odivelense é puro deleite e delírio onírico. Máscara sibilina, com nariz de Pinocchio, bigodinho e costeleta de malandro, deixa ver uma aba de boné. A máscara fica presa à cabeça por um óbvio barbante que vai do nariz à nuca. A roupa grandalhona lembra um Arlequim espandongado. A coroa arremata: cônica, brilhante de lantejoulas, termina em longa haste enfeitada de flores e fitas coloridas que ondulam ao ritmo do dançarino. “Como o suor do rosto esbandalhava a máscara bicuda, era preciso colocar uma toalha. Alguém achou bonito e assim ficou”, conta Rondi Padilha, dono do Boi Faceiro. 70 Continente Multicultural

As crianças bolaram o Faceiro Júnior e o Malhadinho, e a idéia da lhama veio embrulhada no papel de chiclete. Os outros bichos, nunca vistos por aqui, chegaram de uma Arca de Noé surrealista: o caribu, o dinossauro, o veado e a zebra. Nesse mundo que não perdeu a inocência, ninguém suspeita ter tamanha arte. O povo escolta a alegria, e meninos batedores ladeiam os brincantes com bandeiras listradas. Tudo parece caótico, mas o resultado é pura harmonia. De longe a procissão lembra cobra-coral ziguezagueando pela cidade, enquanto as crianças, zaranzando, entram e saem das casas, informando sobre os fatos da festa. O cenário vai mudando, ora rua, ora trilha, terreiro, chão de pedra, chão socado. Quando pára a música, saem os Tripas extenuados, o Boi “desvive” e as crianças correm para lhe dar capim e revivê-lo. Aos brincantes é oferecido um “manjar”: mingau de água, aveia e canela, pois é preciso garantir sustança para tantas horas de reinação. O poeta disse que o belo desespera. O extraordinário dessa festança carece ser decifrado, mas não dá para nomear tanto magismo. A apoteose é a liberdade e puro apetite de viver. In dulci jubilo! Quando Deus quer brincar vem aqui. Heitor Reali é engenheiro e fotógrafo. Silvia Reali é artista plástica


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3 1 Um dia alguém pegou uma enorme caixa de papelão que lhe cobria até a cintura, vestiu um paletó, pintou uma cabeçurra, e pronto: criou o Cabeçudo

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Hipertexto: Samba do boi (Composição do maestro odivelense Marcimiano Monteiro da Silva)

Senhora dona de casa Saia fora vem olhá, Que o Boi Tinga vem chegando aqui Na frente de seu lar Vaqueiro corre, pega A vara de cundão Amansa o Tinga que a “mossada” Qué brincá vibrando Com “aplaudio” de mão

1. Porto de S. C. de Odivelas visto do interior do mercado 2. No terreiro de um morador que pegou o “cartiá” para ter folia em domicílio, apresentação do Boi Tinga 3. Crianças servem de “batedores” do Boi Faceiro 4. O Cabeçudo, cuja fantasia lhe veste até a cintura

Pirru Brinca pelo amor e A mossada recebe amorosa

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BIOÉTICA Josef Mengele chefiou alguns dos horrores das pesquisas nazistas de eugenia e testes de armas biológicas em cobaias humanas, que teve, nos Estados Unidos, desdobramentos sinistros, como a que manteve homens negros do Estado do Alabama durante 40 anos sem tratamento e informações sobre a sífilis, para que se observasse a “história natural” da doença

A ciência é uma deusa amoral? Hugo Fernandes Júnior

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Diante de tantas e tão importantes interrogações suscitadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico, seria moralmente justificável, praticamente factível ou juridicamente razoável a determinação de limites para a pesquisa científica?


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m 1947, o físico J.R. Oppenheimer, um dos principais participantes da equipe científica que desenvolveu a bomba atômica, ao referir-se à ameaça de destruição representada pelo domínio do processo de fusão nuclear, declarou que “...os físicos conheceram o pecado; e esse é um conhecimento que jamais poderão esquecer.” Aludia o grande cientista à insistência humana em provar o fruto proibido da “árvore da ciência do bem e do mal” de que nos fala o Livro de Gênesis. Mas a Segunda Grande Guerra não representou a perda da inocência apenas para os físicos. Os 20 médicos julgados em Nurenberg por protagonizarem um dos mais notórios episódios de abusos contra os direitos humanos também lhes faziam companhia. A Medicina tinha as suas vestes brancas manchadas não com o sangue dos milhões de civis e militares mortos no conflito, mas pelo apoio ideológico ao nazismo e a sua teoria de eugenia, bem como pela contribuição “técnica” nos crimes de esterilização em massa, eliminação dos “menos capazes”, experimentação não voluntária, sem contar as execuções, torturas e experimentos de guerra bacteriológica. Quebrava-se, dessa forma, a pretensa harmonia existente entre, de um lado, a ciência e a técnica e, de outro, o ideal de progresso humano. Essa harmonia, corolário do Projeto Iluminista, tornara-se uma das bases do pensamento moderno, e ensejou a elevação da Ciência ao patamar de Deusa, o que possibilitaria o desenvolvimento material e moral do Homem por meio do conhecimento. A noção de que ciência e técnica não eram neutras consolidou-se no período do pós-guerra. A ameaça de aniquilação da vida na Terra, como conseqüência de um confronto nuclear, e de destruição do meio ambiente, resultante da exploração predatória da natureza em nome do progresso, contribuiu decisivamente para tanto. Adicionalmente, a idéia de que a utilização abusiva de sujeitos humanos em pesquisas devia-se a uma “anomalia” do horror nazista passou também a ser questionada com a revelação de numerosos ensaios, dentre os quais destaca-se o “caso Tuskegee”. Nessa “pesquisa”, levada a efeito por 40 anos (de 1932 a 1972), homens negros do Estado do Alabama foram mantidos sem tratamento contra a sífilis e sem informações sobre ela, para que se observasse a “história natural” da doença. Destaque-se que um tratamento eficaz contra o mal, à base de penicilina, já se encontrava disponível desde 1945, mas não foi utilizado no grupo por decisão dos pesquisadores. Um número

expressivo de pessoas morreu em conseqüência direta ou indireta da doença, bem como transmitiu o mal a suas esposas e prole. No período citado, entretanto, treze trabalhos foram publicados sobre a “pesquisa” sem que nenhuma sociedade médica apontasse a flagrante violação dos direitos humanos que se cometia. Outras situações, aparentemente não tão agudas como as citadas, concorreram igualmente para que o suposto papel libertador e progressista da ciência viesse a ser questionado. Frutos da expansão do conhecimento das biotecnociências, diversas possibilidades se abriram para a humanidade, mas seriam todas elas desejáveis e moralmente aceitáveis? A utilização desse conhecimento e das tecnologias dele advindas proporcionaria mais bem-estar e qualidade de vida para a humanidade? E o que dizer da distribuição das benesses do progresso entre todos os habitantes do planeta? Tomemos alguns exemplos. O avanço no conhecimento sobre a fisiologia humana e sobre diversas substâncias naturais ou obtidas em laboratório, bem como o desenvolvimento da eletrônica, da mecânica e de novos materiais possibilitou a construção de aparelhos capazes de mimetizar funções orgânicas imprescindíveis à atividade dos sistemas cardiorrespiratórios e renais, principalmente, e, com isso, ao “prolongamento da vida”. Esse inegável progresso trouxe consigo, contudo, inevitáveis dúvidas sobre o que é mesmo a “vida” e o que é “estar vivo”, como no famoso caso de Karen Ann Quinlan. A eutanásia é um recurso lícito para a interrupção de “vidas” que se prolongam apenas pela manutenção artificial das funções orgânicas? Se a resposta for positiva, a quem caberia a decisão de “desligar os aparelhos”? Ao próprio doente, à família ou aos profissionais de saúde? Do mesmo modo, o aperfeiçoamento da técnica cirúrgica, da tecnologia e das drogas imunossupressoras tornou possível a realização de transplantes de órgãos, trazendo esperança e alento a milhares de doentes renais, cardíacos, pulmonares e hepatopatas condenados a definhar progressivamente à espera da morte. Os transplantes, todavia, não se fazem sem que existam doadores e, inevitavelmente, algumas questões morais e legais foram argüidas. Em que situações e em que momento é lícita a retirada de órgãos para transplantes? Apenas após a cessação da atividade cardiorrespiratória? Ou seria válido o critério da “morte encefálica”? É necessária uma manifestação explícita do potencial doador, ou a sua não-oposição pode ser considerada aquiescência implícita? Qual o critério para decidir a destinação dos órgãos disponíveis? Deve-se obeContinente Multicultural 73


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que garante a eficácia do processo de fertilização. Já a segunda concerne aos embriões gerados em laboratório e abandonados congelados pelos doadores de óvulos e espermatozóides ante o sucesso ou insucesso da FIV. O que fazer com tais embriões? Não menos controversas são as situações decorrentes das possibilidades abertas pela técnica, relativas à “barriga de aluguel”, doação de óvulos e sêmen, e de gravidezes de mulheres que não apresentam problemas para emprenhar, mas que buscam uma “produção independente”, ou de lésbicas, que não querem contato sexual com o gênero masculino. A engenharia genética, incluída a clonagem, por sua vez, parece ser fonte inesgotável, e atualíssima, de contestações. A despeito do tratamento sensacionalista – e, freqüentemente, até mesmo oportunista – dado pela mídia, o tema das técnicas de bioengenharia enseja uma série de considerações altamente relevantes. Seria lícita a prática da eleição do gênero do feto, ou de qualquer outra característica fenotípica? E a identificação ou mesmo seleção do indivíduo a partir de determinado genótipo? É aceitável que tecidos embrionários sejam utilizados em pesquisas? Qual o sentido de se ter um filho para que sirva como potencial doador de medula óssea para um irmão com leucemia? Seria justificável a clonagem do próprio indivíduo para utilização futura como “peça de reposição”? Haveria fundamento moral para que o genoma, ou uma seqüência de ADN, de uma determinada espécie seja objeto de patente mercantil? Perpassando todas essas conjunturas, sem dúvida alguma conflituosas, encontra-se a questão da justiça e da distribuição equânime dos frutos do desenvolvimento científico. É um fato inquestionável que a grande maioria das mortes ocorridas em todo o mundo é devida a doenças redutíveis mediante o uso de tecnologias simples, baratas e já conhecidas há tempos. Também não causa reparo o fato de que a pesquisa de drogas e vacinas eficazes, ou mais eficazes, não atrai o complexo médico-industrial, pois, como escreveu o correspondente de um grande jornal, “é mais lucrativo ajudar um norte-americano obeso a perder alguns quilos ou um europeu idoso a manter uma ereção do que salvar um africano da tuberculose”. Diante de tantas e tão importantes interrogações suscitadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico, é forçoso que se indague: seria moral-

FOTO: DIVULGAÇÃO / AE

Não menores são as polêmicas que envolvem a situação inversa à do aborto: a das técnicas de reprodução assistidas, com a administração de doses elevadas de hormônios, a fertilização in vitro e as chamadas “barrigas de aluguel”

decer a uma fila por ordem de chegada ou seria justo um critério de “melhor aproveitamento” ou “maiores chances”? A quem caberia resolver tais questões? Outra problemática não menos complexa e candente é derivada do aperfeiçoamento da técnica cirúrgica e da assepsia, assim como dos conhecimentos obstétricos: a do aborto. Tida antes como um procedimento de risco, marginal e sujeito a grande letalidade, a interrupção cirúrgica da gravidez passou a ser algo bastante simples, seguro e factível na grande maioria dos casos. À velha contraposição entre direitos da mulher e do nascituro, porém, veio agregar-se a discussão moral do aborto eugênico, diante do desenvolvimento de técnicas que tornaram possível a previsão da ocorrência de malformações genéticas ou congênitas. Não menores são as polêmicas que envolvem a situação inversa à do aborto: a das técnicas de reprodução assistidas. Apresentadas amiúde como técnicas fantásticas, envoltas em uma aura de heroísmo, pioneirismo e de grande eficácia, essas práticas recebem, por outro lado, numerosas críticas por conta de serem pouco avaliadas, de baixa eficácia, extremamente onerosas e por exporem as mulheres a situações indesejáveis, como a da administração de doses elevadas de hormônios e a das prenhezes gemelares. Ademais, no caso da fertilização in vitro (FIV), recebem críticas de cunho moral a “redução embrionária” e os “embriões excedentes”. A primeira expressão constitui eufemismo criado para denominar o abortamento de parte dos fetos implantados no útero, procedimento


mente justificável, praticamente factível ou juridicamente razoável a determinação de limites para a pesquisa científica? É importante destacar que, no Brasil, assim como na maioria dos países democráticos, a liberdade de expressão científica é garantida pela Constituição Federal. Não obstante, deve-se considerar que tal liberdade comporta exceções jurisprudenciais e legais, baseadas no princípio da razoabilidade, bem como pode ir de encontro a outros direitos democráticos previstos igualmente na Carta Magna. Os que defendem a tese de que não se pode restringir a atividade em ciência básica argumentam que, além de antidemocrática, a imposição de limites é ineficaz. Como alternativa aduzem que, em determinados casos, dever-se-iam estabelecer moratórias para as aplicações práticas derivadas dos conhecimentos produzidos. Ora, tal alegação é débil, uma vez que a ineficácia também pode ser argüida em relação ao uso

tos pelas normas deontológicas são, sem dúvida, necessários, mas, de forma alguma, suficientes. Exemplos de como o autocontrole pode ser exercido com complacência são os conselhos de fiscalização profissional, muitas vezes condescendentes na fiscalização e no julgamento de seus pares. Já o controle jurídico, conquanto essencial num contexto democrático, é, via de regra, de aplicabilidade mais lenta. Os prazos para a elaboração de leis são em geral longos, dadas as características da atividade parlamentar. Desse modo, comumente, as leis não antecedem aos fatos, mas configuram respostas da sociedade a fatos já estabelecidos. É bem verdade que a jurisprudência, fonte importante do Direito, tem um papel imprescindível no estabelecimento de limites, muitos deles não clara ou objetivamente previstos na legislação. Contudo, observa-se que, mormente no Brasil, o Poder Judiciário demonstra dificuldades em tratar de temas com alta densidade científica.

A engenharia genética, incluindo clonagem, parece ser fonte inesgotável, e atualíssima, de contestações. A par do tratamento sensacionalista dado pela mídia, o tema das técnicas de bioengenharia apresenta uma série de considerações altamente relevantes do conhecimento derivado da pesquisa básica. Ademais, ao que se saiba, não há exemplo de nenhuma aplicação de conhecimento que tenha sido voluntariamente abandonada, a não ser quando o seu uso provou ser ineficaz ou antieconômico. Assim, tornam-se legítimos a limitação, o controle e até mesmo a proibição de pesquisas e aplicações sobre as quais pairem dúvidas relevantes e bem fundamentadas por parte da comunidade científica e da opinião pública, e que possam representar riscos morais ou biológicos, incluindo-se dentre estes os ambientais. Para que os limites se façam efetivos é de fundamental importância a ação em 3 níveis distintos: o autocontrole dos próprios cientistas, o controle jurídico e o controle social. O autocontrole dos cientistas, embora importante, tem se mostrado de todos o mais complacente, tendo em vista que diz respeito à própria comunidade de interessados no desenvolvimento das pesquisas ou do uso de determinadas tecnologias. Os limites impos-

Por fim, encontra-se o controle social, a ser exercido em fóruns adequados, em que a sociedade civil se faça representar em toda a sua diversidade: política, religiosa, ideológica, social, corporativa e de interesses. Tais fóruns têm representado em muitos lugares do mundo efetivos espaços de diálogo e negociação entre os que pensam diferentemente. Seus relatórios e recomendações sobre questões polêmicas sob a ótica moral ou biológica têm cumprido um papel fundamental para a fixação de limites à atividade científica, seja subsidiando a atuação do Poder Executivo, seja orientando a ação legiferante, ou, ainda, fundamentando doutrinariamente as decisões do Judiciário. Para nós brasileiros, o estabelecimento de um controle social efetivo sobre a atividade científica reveste-se de um grande desafio, tendo em vista nosso histórico de corporativismo e de exclusões: social, educacional, cultural, de informação e de participação. Hugo Fernandes Júnior é medico sanitarista, especialista em Bioética

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Morte a débito Uma das melhores frases sobre morte é a que diz: “Nossa repugnância à morte cresce na mesma proporção que nossa consciência de ter vivido em vão” Daniel Piza

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obre a morte, o escritor francês Georges Perec não poderia ter publicado um “manual do usuário” como fez com a vida. Não há modo de usar para a morte que seja útil, nem mesmo ironicamente. Vida tem avesso; morte, não. É curioso que, quando alguém morre, costumamos ouvir: “Fazer o quê? É a vida...” Não, é o fim dela. E a morte vem sem manual tanto para quem morre como para quem perde o ente querido. Ela é tão incompreensível que esse ente fica ainda mais querido depois de morto, como as telas de um grande pintor se valorizam depois de seu obituário. Mas não é de hoje que se sabe – ou não se sabe – tudo isso. Desde Montaigne, no final do século 16, pelo menos, a morte já deixou de ser uma garantia de passagem para a eternidade, decorada à 76 Continente Multicultural

moda de cada religião. Em seus Ensaios, o sábio francês, começa escrevendo que a filosofia deve ensinar o homem a “aprender a morrer”, invocando poetas greco-latinos da antigüidade; com o tempo, porém, vê que o homem só pode mesmo é tentar aprender a viver, e diz, entre outras sabedorias: “Um homem pode pelo costume fortificar-se contra a dor, a vergonha e acidentes semelhantes; mas, quanto à morte, só a experimentamos uma vez, e somos todos novatos quando a ela chegamos.” Não há “convívio” pacífico com a morte, por motivos que a etimologia já explica. Ainda assim, o homem moderno insiste em aprender a morrer, em lidar com a morte de algum jeito que a adie ou a enfeite. Mesmo um suicida muçulmano precisa acreditar que será recompensado com um paraíso


FOTO: JEFF KOWALSKY / AFP

repleto de odaliscas depois de abalroar uma torre com milhares de pessoas dentro. No chamado mundo ocidental, diversas tendências de comportamento indicam que, se a expectativa de vida melhorou em tantas latitudes, a expectativa de morte não se atenuou em nenhuma longitude. O ser humano ainda não está satisfeito em viver 70, 80 anos em média, mais que o dobro do que vivia há apenas um século. Ao contrário: quanto mais vive, mais se ilude com o culto da juventude, com o sonho da eternidade. E tomem cirurgias, botox, modas e modismos. Uma pessoa de mais de 40 anos, ou até 35, só é considerada bonita se parecer ter menos idade do que tem. Uma das melhores frases sobre morte (como sobre tantos assuntos) é do ensaísta inglês William

Hazlitt, que, num texto de 1815, Sobre o amor à vida, já escrevia: “Nossa repugnância à morte cresce na mesma proporção que nossa consciência de ter vivido em vão.” Isso nada mais é do que dizer carpe diem, aproveite o tempo; mas o homem atual, embora viva cada vez mais, parece ter cada vez menos tempo. Sua sensação é a de que faz coisa atrás de coisa e, no entanto, está sempre devendo. Como ouve nos comerciais de TV que deve ser profissional, mãe e esposa, além de fazer reeducação alimentar, largar de fumar, não perder o mais novo point da cidade ou o mais recente filme de não-sei-qual ator e ainda cultivar um tal de ócio criativo, a mulher contemporânea nem sabe mais o que faz por prazer ou o que faz por obrigação. Teme, por isso, a velhice, com suas doenças, sua lentidão, suas rugas – e a proximidade deste Nada inevitável chamado morte. Os tempos, por sinal, pedem nova versão de A morte de Ivan Ilitch, a novela de Tolstoi. Se no livr o personagem vive uma espécie de morteem-vida, de papel social que se revela papel em branco, sua atualização pediria uma vida cheia de atividades, na maioria egoístas, “muita adrenalina”, notícias contínuas pela Internet e doses cotidianas de vitamina contra o estresse, quando não de calmantes e estimulantes. Uma vida tão vã quanto a de seu antecessor russo ou a daquele Macbeth, sem o ouvido de Macbeth para a música das palavras. Daí sua crença em estar “pronto para a morte”, como se isso fosse possível. De alguma coisa se morre, diz o médico Sherwin Nuland em seu fascinante Como morremos, uma descrição fisiológica do que é a morte, seja precoce, seja tardia. Outras tendências atuais aparentemente contradiriam isso, mas pense um pouco. Os debates morais sobre aborto, eutanásia e clonagem terminam, não raro, mostrando que tantos os “prós” como os “contras” pensam de modo parecido: a vida é algo “sagrado” e por ela se deve fazer o possível. Mas há uma diferença menor, nem por isso menos

Jack Kevorkian, conhecido como Dr. Morte por defender a eutanásia

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sociedades não desfrutaria de uma vida mais longa e mais saudável; as vacinas não teriam evoluído; males como a Aids e o câncer não poderiam ser atenuados; controles de natalidade não teriam impedido o crescimento em progressão geométrica da sociedade até o esgotamento da própria natureza. Qualidade de vida é um conceito subjetivo, mas obviamente o aumento da duração da existência e a possibilidade de redução dos sofrimentos físicos são conquistas inegáveis. Mesmo os que falam em nome de Deus ou da natureza não podem negar que tais avanços, ainda que não garantam, ao menos criam uma possibilidade de respeito à complexidade da natureza e à materialidade da vida. Mas eis outra questão difícil. Se podemos estabelecer alguns parâmetros – um compromisso da pesquisa tecnológica com o desenvolvimento sustentável e o respeito fundamental à individualidade –, não existe a certeza de que a humanidade saberá segui-los; antes ainda, de que saberá defini-los. Um alerta sobre a tosca faculdade do ser humano de estar à altura de seus próprios conceitos de dignidade e decência é o que qualquer cético depois e antes de Montaigne deve fazer. Sou, para voltar aos exemplos, a favor do aborto, da eutanásia e da clonagem terapêutica, se respeitadas as premissas condicionais. Acho que o aborto até três meses de gravidez tem sentido, porque até aí não se terminou a formação da estrutura básica do ser humano; que a eutanásia é um direito do indivíduo, eventualmente transferido à família, quando as chances de reversão são mais que remotas; que a clonagem de células-tronco para formar bancos de órgãos e tecidos mais acessíveis e democráticos é um

FOTO: REPRODUÇÃO / AE

Dr. Albieri, vivido por Juca de Oliveira na novela O clone, não passa de um vaidoso que acha que pode ser Deus

importante. É que os que advogam um arbítrio maior do ser humano sobre a vida preferem levar em conta um dado relativo, o da qualidade de vida. Os pró-aborto dizem: “Se você não tem condições de criar decentemente um filho, revogue o processo vital em seu estágio inconsciente”. Os pró-eutanásia dizem: “Se você vai viver vegetando, com o mínimo possível de probabilidade de sobreviver dignamente, para que manter os órgãos estimulados por aparelhos a custo de outro?” Os pró-clonagem dizem: “Se células e tecidos podem ser utilizados para fins terapêuticos, resolvendo problemas como as filas dos transplantes, por que não?” De algum modo, algum “limite” pode ser estabelecido. Os que são contrários a essas liberalidades costumam invocar o seguinte argumento: quem diz qual é esse limite? Que direito tem o ser humano, ou um indivíduo, de determinar o ponto de virada em que a vida se faz, em que o aparentemente inanimado ganha alma? O feto de um mês teria “vida humana”, mesmo que não possua consciência de sua própria existência. O sujeito em coma no hospital pode “voltar” a qualquer instante, por algum caminho que a ciência ainda não vislumbra. A reprodução de células humanas interfere no curso natural das coisas, dando espaço para o indivíduo fazer opções que causariam grandes problemas éticos e sociais, como escolher que seu filho tenha olhos azuis e 1,85m de altura. A questão parece atual, mas é antiqüíssima. Uma espiada na novela O clone resume o senso comum sobre essas questões. O médico autor da clonagem, dr. Albieri, não passa de um vaidoso que acha que pode ser Deus. Como a dependência química, tal desejo traveste apenas egoísmo e fraqueza, a falta do referencial religioso; é um desejo de poder, de onipotência. Uma vez que a humanidade traz em sua memória recente a defesa nazista da eugenia, qualquer tipo de alteração nos ditames da mãe-natureza não será apenas antiética, será também diabólico. Esse é o argumento conservador. Mas, por mais que seja quase universal o temor de que su usem tais tecnologias em prol de ideologias discriminatórias, convém lembrar que os limites são flexíveis até certo ponto. Se não tivesse sido assim ao longo da história, hoje, boa parte das


“Sou a favor do aborto e da clonagem terapêutica, mas tremo diante das clínicas que fazem aborto por atacado e do casal determinando as características externas de seu filho” alento para muita gente. Mas obviamente repudio as clínicas que realizam aborto por atacado, temo os médicos e os planos de saúde que convenientemente fazem menos do que podem por uma vida terminal, tremo ante a idéia de um casal determinando as características exteriores de seus filhos. É o problema do progresso: com o carro e a indústria, as sociedades ganharam riqueza e conforto, mas também poluição e congestionamento. Mesmo assim, é o que temos. De certa forma, fazemos “interferências na ordem natural” o tempo inteiro. A própria existência do Homo sapiens às vezes parece uma ofensa aos ciclos da natureza. Mas considere a questão da gravidez. Como notou H.L. Mencken, podemos evitá-la com métodos diversos: matemáticos (a “tabelinha”), físicos (camisinha, DIU etc.) e químicos (pílula). Por que não “evitá-la” depois da concepção? Mencken pergunta se seria porque a alma invade o ser humano já na constituição do zigoto... De algum modo, toda ciên-

cia não deixa de ser uma forma de o homem lidar com a natureza, de agir sobre ela; (se não pode “controlar”, tente ao menos monitorá-la). Trata-se, portanto, de uma condição humana. Precisamos estabelecer – e sempre re-estabelecer ou, então, restabelecer – os tais limites. Não existe definição pura e simples, assim como não existe o livre-arbítrio pleno e simples. Em face da inevitabilidade da morte, fazemos o que podemos, cada um – ou cada cultura – com suas gradações. “O suicídio é a única questão filosófica”, escreveu Camus, mas isso não é verdade: se o certo fosse todos nos matarmos, nem sequer haveria questões filosóficas. O que não podemos é optar por não morrer. Lembramos o verso da grande Emily Dickinson: “É o fato de ter um fim/ que faz doce a vida.” Se a morte tivesse serventia, se fosse um crédito, viver não teria exigências. Daniel Piza é jornalista

FOTO: REPRODUÇÃO / AFP

Autor de A morte de Ivan Ilitch, o escritor russo Leon Tolstoi em seu leito de morte

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MARCO ZERO

Uma antologia refinada e de boa qualidade estética, mas que – de leve – reforça alguns estereótipos

Cabeça de mulher

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e me pedissem, de repente, para citar dois fatos sociais positivos do mais sangrento dos séculos da humanidade, o século 20, eu mencionaria imediatamente o avanço extraordinário dos meios de informação-comunicação e as vitórias da mulher no campo político (votar e ser votada) e econômico (participação cada vez maior no mercado de trabalho). Esses dois processos estão evoluindo em velocidade prodigiosa, assustando velhos redutos conservadores em todo o mundo. A mulher sempre esteve presente na história política e social deste país, embora sua presença na economia só se fez mais notada a partir da segunda metade do século passado. Quando recebi, para modestamente resenhar, a antologia poética Corpo lunar, composta de textos, segundo sua organizadora, Edileusa da Rocha, de 26 “poetisas radicadas no Recife”, fiquei meio intimidado, porque estava acostumado a antologias mistas. Depois lembrei que nas antologias mistas a presença masculina sempre foi dominadora, como ainda o é em vários outros setores da sociedade. Dentro de um mundo ainda tão preconceituoso, portanto, o livro organizado por Edileusa tem sentido, tanto poético quanto revolucionário.

Procurando uma ajuda bibliográfica para fazer esta resenha, deparei-me com dois livros de leitura agradável, em cujos cada parágrafos está subjacente o desejo de reparar injustiças atávicas ou acender nomes femininos mergulhados no esquecimento. Consultei os livros Mulheres ilustres do Brasil, de Ignez Sabino (edição sem data, mas, presumivelmente, de 1899) e Pernambucanas ilustres, de Henrique Capitolino Pereira de Mello, edição de 1879. Ambos abrem a sua “humilde galeria”, como diz Capitolino, com duas índias célebres por seus amores e habilidades diplomáticas, demonstradas na aproximação de suas tribos dos colonizadores: Paraguassu e Arco-Verde. A primeira tornando-se mulher de Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru de nossos livros escolares, e a segunda virando a “Eva” do chamado, se não me engano, por Gilberto Freyre, “Adão pernambucano”, Jerônimo de Albuquerque. São dois livros que procuram dar o valor merecido a mulheres mortas, mulheres do passado. Um escrito por uma mulher e o outro, por um homem. A organizadora da antologia diz em seu discurso de lançamento: “Quando penso em literatura feminista, incluo aquela escrita por escritoras e escri-

Alberto da Cunha Melo 80 Continente Multicultural


tores”. No caso citado, Henrique Capitolino talvez tenha sido um dos primeiros escritores feministas do país (quando escreveu o seu livro não tinha ainda terminado o seu curso de direito, no Recife). Mas, vamos à antologia Corpo lunar. A capa da obra é um bom quadro em tinta acrílica sobre tela, de Margot Monteiro, representando um tronco de mulher nua. Ora, como deduzo que a proposta de organização da antologia tem o sentido de valorizar o desempenho da mulher na literatura pernambucana, o melhor significante seria uma cabeça feminina, pois a valorização/exploração do corpo da mulher a gente deveria deixar com as Globos da vida. No prefácio a Mulheres ilustres do Brasil, Arthur Orlando, sociólogo da Escola do Recife, propõe métodos de ensino diferenciados para os dois sexos: “É preciso que a educação da mulher corresponda ao seu tríplice destino de irmã, esposa e mãe”, ou melhor, seja a mulher biológica, a mulher-tronco, sem cabeça. Corpo lunar é uma antologia que reúne 26 poetisas, algumas, estereotipadamente, sem ano de nascimento registrado, e outras apenas a década citada. Das que têm seu ano de nascimento registrado, a que nasceu em data mais distante foi Isnar Moura, que também se distinguiu em Pernambuco como jornalista e educadora. As outras duas mais próximas nasceram em 1915: Celina Holanda e Odile Cantinho. A mais jovem, se é que isso faz alguma diferença, é a poetisa Gabriela Cunha de Melo Cavalcanti.

Aquilatar uma antologia é uma das coisas mais difíceis da crítica literária. Como uma resenha não permite a análise de poema por poema, a solução, no meu caso, é procurar regularidades nos textos antologiados. Mas essa é uma solução precária em relação a Corpo lunar, pois coube apenas a cada uma das selecionadas o espaço ínfimo de duas páginas. Diante de tamanha exigüidade é impossível que se tenha delas uma amostra de textos representativa de toda a sua obra. A partir dos textos disponíveis é possível, no entanto, falar do que existe no livro, embora a observação não valha para o que está por trás dele. Quanto ao conteúdo, por exemplo, das 26 poetisas, 20 apresentam textos com temática amorosa, o que dá quase 80% do universo selecionado, algo a reforçar alguns estereótipos sobre a psicologia feminina. Notei que os poemas escolhidos estão todos dentro da modernidade, com simbologia complexa, a exteriorizar-se por metáforas originais e até herméticas. Do ponto de vista estrutural, a maioria das autoras optou pelo poema em verso livre, seja o que chamo de polimétrico ou o que costumo denominar de poema-crônica, o primeiro mantendo ritmo e cadência intencionais, majoritariamente em versos curtos (no caso), abaixo do decassílabo, e o segundo trilhando o simbolismo prosaico-poundiano, como o fez Eugênia Menezes. Infelizmente, o espaço não permite comentar todos os belos poemas que compõem o volume, bem como os poemas amorfos (não-poemas), que são poucos. O que eu sei é que há nomes definitivos, em Corpo lunar, não apenas na história da poesia pernambucana, mas brasileira, como Lucila Nogueira, Celina Holanda, Déborah Brennand, Tereza Tenório, Maria do Carmo Barreto de Melo, Maria de Lourdes Hortas e Dione Barrreto, além de outras que se vão firmando com sua work in progress, como dizem os ianques.

Capa do livro Corpo Lunar, antologia da poesia feminina pernambucana

Serviço

Corpo lunar – Edileusa da Rocha (organizadora) Editora – Prefeitura da Cidade do Recife / Hospital Santa Joana 72 p. – Recife – 2002 Distribuição gratuita. Alberto da Cunha Melo é jornalista, sociólogo e poeta

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ANTOLOGIA

Quatro poemas lembrando Vladímir Maiakovski Arnaldo Tobias

Poema direcionado ao congresso brasileiro

Eu dou as cartas No meu jogo O baralho não tem duas caras o jogo é limpo e o trunfo é pau(s) e se estou jogando entre fogo e a(s) espadas(s) a palavra é de ouro(s) e a voz alta está em copa(s) 82 Continente Multicultural

A minha gente Pobre e sem lida Ainda reclama pouco Da fome de todo dia A minha gente Fodida e mal paga Lamenta o café De amanhã O ovo estralado Com óleo do rosto Come o pão Assado em hóstias Chora no almoço O caldo ralo De feijão de água e sal E no jantar A sopa sem sabor e cor Os legumes e folhas Só na estamparia De toalha de plástico Da mesa proletária


Eldorado Não eram maus Os meus soldadinhos De chumbo meu pai soldado da cavalaria do estado um dia me comprou um batalhão deles vieram de armas nos ombros ou cruzadas no peito alguns rastreantes no avanço imaginário não mandavam chumbo em ninguém

Poema atítulo no meu Eldorado às tardinhas eu dava o toque de silêncio e lá ficavam hirtos no quartelzinho de caixa de sapatos pela manhãzinha de novo eu apitava o toque de alvorada e já de pelotões (ao meu comando) eu formava o meu fiel batalhão

Arnaldo Tobias nasceu em Bonito (PE). Integrante da chamada Geração 65, de poetas e escritores pernambucanos, vem publicando poemas e contos em jornais e revistas recifenses e brasileiros desde 1962. Publicou, pela Edições Piratas, do Recife, os livros de poesia: Pomar (1979), Passaporte (1981) e Nu relato (1983). Com o pseudônimo de Ana Margarite, publicou o livro-álbum Tenda proibida (poesias eróticas). Tem textos incluídos na Agenda poética – antologia dos novíssimos (1968), no Álbum do Recife (editado em homenagem aos 450 anos da cidade do Recife). Na coletânea Gilberto Freyre entre nós, na Antologia didática para o 2º grau de poetas pernambucanos (edição da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco) e na antologia Contos de Pernambuco. E textos publicados em jornais e revistas da Venezuela, Chile, Bolívia, México, Cuba, Nicarágua, Estados Unidos (Universidade da Califórnia). É fundadoreditor do jornal alternativo Pro texto, em atividade poética desde 1981. Tem, inéditos, os seguintes li-

Esse povo passivo até certo ponto povo indeciso até nos encontros essa gente moída em moe/dor de carne dura também espremida em espreme/dor de frutas ácidas essa prole/plebe pobre na pele e osso na vida insossa e na cegueira herdeira (mas a alma nobre) um dia ainda vence.

vros de poesia: Lasciva saliva, Salário dor/sal, Trinta poemas sociais e outros versos do mesmo tema (a sair); o livro de contos A nona hora e um livro de poemas e contos para crianças. Arnaldo Tobias faleceu no Recife em 26 de maio de 2002.

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MIL PALAVRAS

Fotos de Walter Carvalho

Cidade pernambucana de Sรฃo Caetano

Rua deserta, nenhum passante. Recife antigo, a luz solitรกria de um poste mal ilumina uma parede rabiscada

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Lembranรงa fotografia


W

alter Carvalho é fotógrafo de cinema. Nasceu em João Pessoa, mas mora no Rio de Janeiro há mais de 30 anos. Waltinho, como é conhecido, já fez para lá de 50 filmes – entre eles estão Central do Brasil, Lavoura arcaica e Carandiru –, fez novelas na TV, como Renascer, e minisséries, como Agosto, e conquistou 26 prêmios em festivais de Brasília à Macedônia. É um paraibano “arretado de bom”, sempre com uma máquina a tiracolo e uma admirável capacidade de transformar em notável tudo o que fotografa. Você olha a realidade e não vê. Waltinho enquadra e revela uma nova realidade. Ele se confessa um apaixonado por Pernambuco, paixão que resultou na exposição Lembrança foto-

grafia, que esteve em cartaz brevemente, na Torre Malakoff, no Bairro do Recife. As fotos são um inventário emocional das suas viagens pelas terras pernambucanas. Segundo ele, são “o tempo passado e o tempo passando.” É o próprio Waltinho quem fala sobre o seu ponto de partida para essa declaração de amor em preto e branco a Pernambuco: “Com 16 anos, eu fiz a primeira viagem ao Recife, vi a cidade passada pelo rio. Não tenho certeza, mas posso imaginar que via aquele rio como uma língua mansa de um cão, como disse o poeta João Cabral. Naquele dia fui fotografado acidentalmente de propósito por alguém que passava sobre a ponte Santa Isabel. As fotos são fragmentos que vi e amei em Pernambuco. Não se trata de making of, não têm a pretensão de ser uma reportagem, é quase que um documentário transimaginário de viagens, de encontros que tive ao longo de alguns anos.” Tudo começou aí... (George Moura)

O grafite toma conta da pequena sinuca e de Brasília Teimosa

Restaurante Cruzeiro no Sertão de Pernambuco

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O movimento da lâmina afia a faca, corta o silêncio e a jugular do boi, esquarteja as carnes para a feira de Carpina.

“Olinda é para os olhos” (Carlos Pena Filho) 86 Continente Multicultural


Naná no Rio em 70 com Torquato “Soy Loco por ti América” Neto. No estúdio da Odeon, Naná atabaqueando com o Som Imaginário

Mestre Salu e o nobre aprendiz Antonio

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Alceu Valença

Tavares da Gaita, fazedor de música e instrumentos, personagem de um documentário inacabado que eu, Beto Brant e Cláudio Assis, com teima e “tudo”, iniciamos. Título do filme: “Se Cria Assim...” como sentenciou Mestre Galdino, do alto do Sertão e da sua sabedoria

Dom Hélder

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Ariano Suassuna e Luiz Fernando Carvalho, a palavra e a imagem

O sangue, o sol, a pedra

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ENTREMEZ

As religiões não cristãs convivem muito bem com a sexualização das suas divindades e dos seus ritos. O cristianismo promoveu a ascese, a castidade e a negação do corpo

M

onsenhor Joviniano Barreto foi esfaqueado por um romeiro do Padre Cícero, na matriz de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, no Ceará, no ano de 1950. Os soldados que prenderam o assassino perguntaram por que ele havia cometido o crime. Com a serenidade de um fanático, respondeu que matara o monsenhor porque este remexera nos mistérios de Juazeiro. De fato, durante o sermão de uma missa que celebrara, Joviniano Feitosa pusera em dúvida os milagres de transmutação da hóstia em sangue, ocorridos na pequena vila em que o Padre Cícero era vigário. É possível que eu tenha ouvido a palavra mistério, pela primeira vez, no relato dessa história trágica. Nunca mais consegui me desfazer do seu significado de interdição, limite intransponível, câmara por desvelar. O assassinato, além de todos os seus horrores, estava carregado de erotismo e sexualidade: uma virgem, a beata Maria de Araújo, sangrou pela boca, ao mastigar o corpo simbólico de Cristo; um homem de Deus foi sangrado porque duvidou que o Cristo tivesse revivido a sua paixão no corpo da humilde beata. As religiões não cristãs convivem muito bem com a sexualização das suas divindades e dos seus ritos. Na Índia, os templos são adornados com falos, linga, símbolo da energia masculina, e vaginas, yoni, emblema primário da energia feminina. Juntos, eles simbolizam a união criadora e mantenedora da ordem do universo. É o hieros-gamos, dos gregos. O cristianismo aboliu os cultos explicitamente sexualizados e orgiásticos. Promoveu a ascese, a castidade e a negação do corpo.

Baniu o hedonismo em favor de uma assepsia do prazer. Eros foi duramente mascarado, a nudez encoberta, os genitais disfarçados, diminuídos nas proporções ou até mesmo abolidos, num evidente contraste com as religiões hinduístas, em que os falos são representados em tamanhos avantajados, significando o poder gerador. Mas essa hipocrisia do sexo encarcerado explodiu em perversões e escândalos, crimes e histerias. O Renascimento tentou reaver o direito à expressão da sexualidade do Ocidente, reprimida na Idade Média. As pinturas não reproduziam apenas os santos aureolados, mas também os corpos nus, plenos de erotismo. Lamentavelmente essas transformações demoraram a chegar a Portugal e Espanha. Por muito tempo esses dois países ibéricos permaneceram sob a tutela da Igreja Católica Romana, transportando para o mundo novo que descobriram as culpas e mazelas do cristianismo, impondo-as às gentes de cá, gente liberta, no que se refere às sombrias culpas do sexo. Culpas manifestas em casos como o da beata Maria de Araújo, ocorrido em pleno século XX, mostrando que o medievo ainda está vivo no Nordeste brasileiro. E se isto é bom para que alguns aspectos da cultura possam ser preservados, é também muito ruim como agente repressor da criação. Criar uma torre-mirante que lembra um falo é o mesmo que remexer em mistérios indevassáveis. Francisco Brennand que o diga. A construção do seu parque de esculturas do Marco Zero por pouco não vira tragédia. Algumas pessoas devem se lembrar da

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FOTO: LÉO CALDAS / TITULAR

O assassinato de Monsenhor Joviniano e o crime de Francisco Brennand


história. A imprensa nos abarrota de informações quando uma notícia vira escândalo, mas esquece de informar os desdobramentos ou desfechos do imbrólio. Brennand recebeu a encomenda das esculturas, entre elas, uma torre-farol. Reclamou-se do alto custo da obra, do sacrifício de alguns pés de castanholas, da destruição da bucólica pracinha do porto. Mas o grande trauma da nossa sociedade recifense foi a descoberta de que a torre-farol lembrava um gigantesco pênis. Surgiram protestos, manifestações contra e a favor, discursos sobre a liberdade de criação. Com certeza, os políticos que fizeram a encomenda nunca visitaram o ateliê do artista, na Várzea, onde o sexo masculino e o feminino aparecem recriados em dezenas de cerâmicas e imaginamos estar num templo indiano ou na Grécia primitiva. Liberto de qualquer amarra, Brennand em seu local de trabalho dá curso às fantasias. Em que mistérios ele remexeu? Na afirmação de que somos dotados de genitais, de sexualidade, e de que não é possível esconder as nossas pulsões criadoras ou destruidoras. Tentaram vetar a criação de Brennand, porque ela afirmava a nossa natureza essencial, a mais primitiva, o Eros que pulsa em oposição a Tanatos, a morte. A esposa de um político magoou-se nos seus pudores cristãos. Um político desejou matar um jornalista. Brennand, como o Monsenhor Joviniano, vasculhara as forças eróticas da criação e da transubstanciação, que fazem trigo virar corpo e sangue, pedra triturada virar cerâmica. Brennand remexeu no mistério da criação, expondo na cara de todo o Recife que temos sexo, fazemos sexo por mero gozo e que também procriamos. E isto, à luz cristã, é um crime hediondo. Esqueceram essa história tão fantástica da nossa cidade dos arrecifes. Não deram mais uma notícia. Não fizeram mais um único comentário. Felizmente, ninguém morreu. Disfarçada por enfeites décor, a torre-farol se ergue, e por dentro dela, o rijo falo. O conjunto de esculturas é sem dúvida a mais bela obra de Brennand. Eu penso assim. E também pensam assim os dois barqueiros que se ofereceram para fazer a minha travessia do Marco Zero para o outro lado. – Vamos, doutor! É muito bonito. É mesmo!

Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

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MÚSICA

A Dama da Resistência Primeira menina solista a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife, aos 11 anos, a pianista Josefina Aguiar é famosa por sua garra na luta pela preservação da música clássica 92 Continente Multicultural


FOTOS: ARQUIVO PESSOAL DA ARTISTA

T

inha ela apenas cinco anos de idade, mas sua professora de piano já notara que havia algo de diferente nas suas mãozinhas: era como se fossem elásticas. O tempo se encarregou de mostrar que a mestra tinha razão. Josefina Aguiar foi a primeira menina solista a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife (OSR), aos 11 anos, e é considerada um dos raros talentos musicais que despontaram na década de 40

em Pernambuco. Devido a sua garra em preservar a música clássica, os amigos a chamam de “A Dama da Resistência” e de “Leoa do Norte”. “É uma herança genética. Minha mãe (Maria Aguiar) era violinista e meu tio Elias era doutor em música e regente. Papai (Antônio Aguiar) gostava de música erudita e tínhamos até um quarteto de câmara em casa”, recorda a pianista. O talento nato foi descoberto por acaso. Ao chegar de Alagoas, a professora de piano Stella de Almeida pediu à amiga Maria Aguiar que lhe conseguisse algumas alunas. Naquela época, como dizia Mário de Andrade, reinava a “pianolatria”, e logo a professora reuniu muitas pupilas. Por elegância, a mãe de Josefina matriculou-a também. Convencida da preciosidade que encontrara, Stella comunicou aos pais da menina todo o seu potencial. “Mas eles não levavam a sério aquela história de mãos elásticas. Então, para provar que estava certa, minha professora me preparou para tocar dez músicas de cor no meu aniversário de seis anos”, lembra. Depois dessa apresentação, não houve mais dúvidas. “Conheci Josefina por volta de 1950. Éramos, então, jovens talentos musicais, mas breve tive o vislumbre de que Josefina iria além. Mais do que um talento pleno de audácia e coragem, ela era o próprio prodígio musical, dominando as partituras mais complexas”, observa o pianista Edson Bandeira de Mello. A primeira audição aconteceu aos oito anos, na presença de amiguinhos, como o futuro político Marcos Freire. Mas o Recife a ouviu tocar pela primeira vez no rádio. O pai a levara ao programa de Nelson Ferreira, na Rádio Clube de Pernambuco, e, sem saber que estava no ar, ela tocou o adágio da Sonata ao luar, de Beethoven. O episódio rendeu-lhe fama imediata e um ilustre fã, Valdemar de Oliveira. No ano seguinte, veio o primeiro recital. Sua fama já ultrapassara as fronteiras de Pernambuco e chamara a atenção do pianista potiguar Valdemar de Almeida, que levou Josefina para se apresentar em Natal. “Foi nessa época que comecei a tocar com (o violinista) Cussy (de Almeida), filho de Valdemar, e meu amigo até hoje”, lembra. Os dois, aliás, fizeram um duo na década de 60 que foi considerado pela crítica especializada como o mais completo do Brasil. “Valdemar de Oliveira escreveu em crônica que Josefina era uma menina genial, e que ela e Cussy, quando tocavam juntos, realizavam o milagre de tocar

Ao lado, autografando o seu único disco, O piano de Josefina Aguiar. Na página anterior, a pianista aos 15 anos

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Um dia, o aluno chegou em casa emocionado. A famosa Josefina Aguiar, sua professora de piano, tinha ficado de joelhos para lhe ensinar como usar melhor os pedais do instrumento

Acima, Fernandinha Zero (de óculos), a prima Tereza Cristina, Josefina e a irmã Eunice. Ao lado, Josefina Aguiar com o pianista potiguar Valdemar de Almeida, seu incentivador

ao mesmo tempo dois instrumentos descobrindo neles uma só alma”, lembra a pianista Elyanna Caldas, contemporânea de ambos. Por orientação de Valdemar de Oliveira, seu grande mentor, Josefina foi estudar com Manoel Augusto dos Santos, por intermédio de quem conheceu o maestro fundador da Orquestra Sinfônica do Recife, Vicente Fittipaldi. Este a convidou para se apresentar com a OSR no Teatro Santa Isabel, interpretando o Concerto em ré menor, de Mozart. Josefina tocou como solista com a OSR em junho, e sua amiga Elyanna, em setembro de 1948. Como era dia de prova na escola, Josefina foi fazer o teste escrito logo cedo e, depois, rumou para o ensaio. “Os professores esperaram que eu voltasse para poder fazer a avaliação oral”, diz, ressaltando que a infância passou com a vida atribulada e a responsabilidade despertada tão cedo. “Apesar da pouca idade, eu não ficava ansiosa, mas emocionada. Aliás, fico até hoje. Arte não existe sem emoção.” As apresentações pelo Brasil se tornaram corriqueiras, inclusive na cultuada Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro. Até os 16 anos, no entanto, Josefina não recebia cachês. Por orientação do pai, todos eram doados a instituições filantrópicas. E a carreira internacional, que parecia uma conseqüência natural, foi vetada pela mãe. “Perdi cinco bolsas de estudo no exterior e só saí do Brasil quando já tinha duas filhas”, recorda Josefina, com um certo pesar. A oportunidade de viajar para o exterior surgiu na década de 60, quando foi fazer especialização na Suíça e na Áustria. Josefina viajou com o marido e passou um ano e oito meses estudando. “Foi uma escolha muito difícil, pois deixei minhas duas filhas aqui no Brasil, a mais nova com cinco meses. Mas era a minha última chance”, justifica. A pianista afirma que nessa época tinha mais maturidade e, portanto, aproveitou bem a experiência, mais do que se tivesse ido quando jovem.

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Logo depois, formou um duo com Cussy de Almeida, rodou o Brasil e fez apresentações também na Europa. O ápice da dupla foi passar às eliminatórias do Concurso Internacional de Violino e Piano de Munique (Alemanha). “Foi um convívio gratificante. Josefina é uma pessoa maravilhosa. Culta, inteligente e extremamente leal, mas não tinha como não ser descendendo de uma família extraordinária como a dela”, conta Cussy. Josefina lembra que, na apresentação que os levou à fase decisiva do concurso, sugeriu que tocassem Brahms logo de cara, o que Cussy achou uma péssima idéia. Acabou sendo convencido, e a dupla conquistou a platéia alemã. “O júri mandou nos chamar, o que não era usual, e nessa hora até pensei que tinha dado tudo errado”, confessa. O júri, na verdade, queria comunicar aos dois pernambucanos que estava perplexo em ouvir um Brahms tão perfeito, vindo do Norte do Brasil. Foi-lhe oferecida uma bolsa para que continuasse os estudos na Europa, mas, para não contrariar o marido, Josefina recusou-a. “Meu casamento estava por um fio e só eu não percebia”, conta. A separação, porém, foi inevitável, o que fez com que ela se afastasse da música, pois parecia que tudo tinha sido culpa do piano. Foram dois anos e oito meses de reclusão, da qual só abriu mão uma vez. A irmã, conhecida como “Fernandinha Zero”, compositora de MPB, casada com o músico Paulo Gama, precisou de sua ajuda quando tiveram a oportunidade de mostrar uma música para Baden Powell,


FOTOS: ÁLBUM DE FAMÍLIA

À esquerda, Josefina ao lado do jornalista Alex, que a fez retomar a carreira.

que iriam encontrar na casa de Cussy por ocasião de um show no Recife. Josefina aceitou tocar para acompanhar a intérprete Zélia Barbosa, mas com uma condição: ninguém poderia dizer nada, nem que era professora de piano, muito menos que já tinha toda uma carreira. “Assim foi feito. Baden Powell ouviu e, já de saída, voltou para dizer que meus amigos deviam me incentivar a seguir carreira, pois eu tinha talento”, lembra, sorrindo. “Josefina foi um dos maiores potenciais das Artes de nossa geração. Toda a família era assim, dotada de um esplendor artístico que raras vezes se encontra tão prodigamente repartido entre seus membros. ‘Fernandinha Zero’ veio a me comprovar isto, anos mais tarde”, conta Edson Bandeira de Mello. Fernandinha, que morreu vítima de câncer, foi aluna de Edson e só tirava zero nas provas de teoria musical. “Com o tempo, entendi que ela não se preocupava com teoria, queria mesmo era colocar para fora tudo o que sentia”. Josefina Aguiar afirma que sua vida se divide em antes de Alex e depois de Alex. O colunista social José de Souza Alencar, mais conhecido como Alex, foi o grande responsável pela sua volta à vida artística. “Ele disse que eu não tinha o direito de me apagar daquele jeito, pois quando se escrevesse a história da música em Pernambuco, o que eu iria dizer? Como podia iniciar um trabalho e deixar pela metade? Isso não se faz!” Mesmo sem ter sido aluna de Josefina Aguiar, a presidente do Conservatório Pernambucano de Música, Juciara Albuquerque, é sua admiradora. “Pude comprovar sua dedicação como professora graças ao meu irmão (Ivanildo de Albuquerque, hoje professor de música do Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro). Um dia ele chegou em casa muito emocionado. Me contou que, na aula de piano, ela tinha ficado de joelhos para ensinar melhor como ele poderia ‘pedalizar’ uma música”, conta. Esse gesto é um exemplo do esmero de com que Josefina se dedica

à arte de ensinar. “Uma partitura, um piano, uma sala de aula e eu esqueço do mundo”, revela. Josefina Aguiar lembra com saudades a época que revelou tantos talentos musicais em Pernambuco: “As pessoas se reuniam para cantar, tocar e recitar. Hoje em dia, as reuniões só servem para comer e beber”. O espírito daqueles tempos está presente no disco O piano de Josefina aguiar, o único de sua carreira, lançado em 1998. A idéia desse disco foi concretizada por um grupo de amigos com o apoio da Cruzada de Ação Social. “Meus amigos tinham gravações minhas ao vivo feitas no Teatro Santa Isabel durante os Ciclos de Música Pernambucana, que aconteceram entre 1980 e 1985. Eles mesmos fizeram a seleção musical e me presentearam. Todo artista gostaria de ver um registro de seu trabalho, a perpetuação de sua arte através dos anos”, comenta. O disco traz compositores pernambucanos, como Euclides Fonseca, Mizael Domingues, Alfredo Gama, Zuzinha, Nelson Ferreira, Capiba, Valdemar de Oliveira, e um ilustre desconhecido: José Capibaribe. “Na verdade, esse era o pseudônimo de Valdemar quando fazia marchas carnavalescas”, esclarece. O CD tem 14 músicas e contempla diversos gêneros musicais, como valsa, polca, pas-de-quatre, marcha carnavalesca e um dobrado para piano. “O disco reúne obras de uma época na qual o piano reinava absoluto. Praticamente em todas as casas havia um”, recorda Edson Bandeira de Mello. “Aconselho a todos ouvir esse primoroso trabalho da pianista, no qual, entre outros presentes, ela nos dá uma magnífica versão da pouco divulgada Rumba, de Valdemar de Oliveira, com um tempero tão especial como só uma sensibilidade refinada como a sua consegue fazê-lo”, afirma a também pianista Elyanna Caldas. (TR)

À direita, a pianista aos 8 anos, na sua primeira audição, no Círculo Católico de Pernambuco

Tatiana Resende é jornalista

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últimas palavras

A insustentável ordem do dia

S

ó explicando numa linguagem capitular. Rendo-me à democracia regimental; aos que sabem escrever; à razão e ao coração (em modestos arrazoados); à beleza oculta da mulher (a física já põe a mesa); à vontade de Deus (só nos dá o que merecemos); aos meus arquivos históricos; ao amor e cultuação da instituição familiar; à verdade; à preservação da natureza, sua fauna e flora; aos meus discos e livros; à igualdade social; ao respeito à Pátria em que nascemos; à Constituição do meu País; à amizade duradoura; à obrigação de ser honesto; à Memória e ensinamentos da história passada; à compreensão do mal involuntário; à imparcialidade quanto à consistência das coisas; às boas idéias que emanam dos sonhos; à espiritualidade e à vida extraterrena; aos pastores da noite; às boas maneiras e ao cumprimento da ordem natural. Infelizmente, a contumélia institucional expande-se pelo meu jovem Brasil de 500 anos, cada dia mais frágil de autoridade – óbvia e esperançosamente temporária. Talvez este atual opróbrio dos nossos governantes deva-se aos fluxos de um éon celeste proposital, para que mudemos de uma vez nossas vidas. Não mais comporta a tolerância e o excesso de cautela – vira covardia. A ordem do dia há muito está sendo quebrada. A segurança do País torna-se cada vez mais insustentável à leveza de Kundera – pesada insegurança da liberdade. A escalada desses pigmeus das drogas assombra a sociedade, molesta o patrimônio alheio, dá asas à anarquia generalizada, amordaça a liberdade de expressão, mata pessoas inocentes, forma espetaculares guerrilhas do mal, bloqueando o direito de ir e de vir do cidadão. E ninguém vê uma atitude de severidade por parte das auto-

ridades. Pasmem: até o nosso professor Cardoso vai à televisão reclamar contra a onda de violência que se alastra num poder paralelo, pedindo providências! E agora, a quem? A Imprensa foi sacudida com o brutal assassinato do jornalista Tim Lopes pelos donos dos morros do Rio de Janeiro embriagados de cocaínas – que já foram presos várias vezes pela polícia e logo libertados pelo Judiciário. E todos os dias a mesma cantiga da perua que afugenta a sabedoria de cada exigência da cidadania, da sociedade organizada – corrompendo os valores humanos, programando revoluções sem sentido. Começa a campanha eleitoral e nós, que escolheremos nossos governantes e representantes legislativos, devemos, de imediato, fiscalizar seus discursos – novos velhos lengalengas de palanques paroquiais – para que não esgotemos esses meios justos de cobrança. Ou recorreremos à misericórdia divina. Inusitado é o bem comum do povo, pobre povo brasileiro, primeiro limite para se conceituar a liberdade. Liberdade nascida do racionalismo do século XVIII, baseada no livre pensamento e na autonomia da vontade. Esse tal de “roubai, roubai, matai, matai” parece ser a ordem do dia – maior prova de supressão do princípio de finalidade da ordem social por um bando de meliantes que desmoraliza o bem comum, hoje devastado pelo Estado anárquico, atingindo a soberania nunca absoluta que o norteia. Já se ouvem enfurecidos clamores de todas as classes sociais civilizadas por uma revolução no sistema político do Brasil. Cuidado, senhores congressistas, atuais e futuros! Nos longes de 19 a.C., Virgílio já advertia que o furor fornece armas.

Rivaldo Paiva 96 Continente Multicultural




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