Continente #020 - Ariano Suassuna

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CONTEÚDO

Continente Multicultural

Especial – Visão armorial Ariano Suassuna, ganhador do Prêmio Jorge Amado, fala de amigos, criação e heróis americanos

Literatura – Prosa poética Editora brasileira lança antologia de prosa da poetisa portuguesa Florbela Espanca

Marco Zero – Integração cultural Produtores culturais lutam para uma maior integração entre os estados do Nordeste

Memória – Patativa do Assaré Poeta morre aos 93 anos deixando uma obra que foi estudada até na Sorbonne, em Paris

Comunicação – Sentido das cidades A crescente inadequação entre as representações e as experiências e sua explicitação

Crônica – Os estrangeiros O Brasil que visitantes ilustres, como Orson Welles e Albert Camus, conheceram

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Diário de uma víbora – Revolta

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Música – Reação

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Conto – Pista de dança

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Antologia – Abel e João

Sabores pernambucanos – Batatas Tubérculo, conhecido como inglês, na verdade começou a ser cultivado por incas e astecas

Artes plásticas – Exposição Sérgio Ferro expõe quadros em que dialoga com o passado e o presente

Ariano Suassuna Foto: Leo Caldas/Titular

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Cronista busca palavra feita de sangue, fel e fúria para definir a irracionalidade do mundo de hoje

Chico César acha que negros e índios devem se expressar diante da hegemonia branca

Partidário da paixão, via-se traído por uma desconhecida que com outro dançara

Os poemas sintéticos de Abel Menezes e uma visão do Brasil pelo poeta português João Esteves Pinto

Cinema – Cidade de Deus Diretores Fernando Meireles e Kátia Lund falam do filme aclamado pela imprensa internacional

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Página 82

Fotografia – Na terra do sol Waldemar Lima conta como se inspirou na xilogravura para criar as imagens de obra-prima

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Ferreira Gullar – Fugacidade O mercado artístico transformou a arte em mercadoria e cria expressões como arte efêmera

Conversa franca – Heterodoxo Sebastião Uchoa Leite faz um balanço de sua trajetória e lança um novo livro

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Entremez – Heroísmo Ao se retratar, Galileu renuncia às glórias do seu tempo para ter um pouco mais de vida

Últimas palavras – Rivaldo Paiva Como a maldição dos faraós, a riqueza eterniza os pobres de espírito cristão e descarta a cultura

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes

Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Arte Manoela Leão e Luiz Arrais Editoração eletrônica Ilustradores André Fellows Zenival e Mascaro Revisão Rodrigo Pinto

Colaboradores Abel Menezes, Alberto da Cunha Melo, Ana Valéria Vicente, André Telles, Ângela Prysthon, Bárbara Wagner, Eduarda Andrade, Camilo Soares, Carlos Newton Jr., Eleuda Carvalho, Érica Azevedo, Fernando Monteiro, Ferreira Gullar, Gilmar de Carvalho, João Esteves Pinto, Joel Silveira, José Afonso Jr., Kleber Mendonça Filho, Luciano Trigo, Luiz Marcos Lima Barreto, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Patrycia Monteiro, Paulo Cunha, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Sandro Lobo, Sueli Cavendish, Tatiana Resende Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Cláudio Manuel, Elizabete Correia, Elizeu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 / e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: fone:3217.2551 / fax: 3222.4130 E-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Informações: informacoes@continentemulticultural.com.br Publicações: publicacoes@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Reiteradas felicitações pela feição gráfica e pelo conteúdo da revista Continente Multicultural. O número de junho está formidável. Arnaldo Niskier – Academia Brasileira de Letras – Rio de Janeiro – RJ Parabéns

Editor Mário Hélio

Tratamento de imagem Nélio Câmara Secretária Tereza Veras

Felicitações

Parabenizamos a competente equipe em virtude do grandioso trabalho que vem desenvolvendo em prol do enriquecimento artístico e cultural do nosso país. José de Abreu Bianco – Governador do Estado de Rondônia – Porto Velho – RO Apaixonado Venho acompanhando esta conceituada revista, que tanto tem feito para a divulgação e valorização da cultura da nossa terra. Parabéns. Eu sou apaixonado pelo Recife. Não sou recifense, é amor de estranho, sem se tratar de um estranho amor. Soleno Rodrigues – Vitória de Santo Antão – PE Artes visuais Sou leitor assíduo da Continente, desde o número zero, que teve matéria de capa com o artista plástico paraibano radicado em Pernambuco João Câmara. Segui acompanhando as edições e notei que sempre havia destaque para as artes visuais, como a pintura e a fotografia. De alguns números para cá, entretanto, venho notando a ausência dessas seções que sempre me encantaram muito. Sei que é necessário fazer uma espécie de rodízio, a fim de dar espaço a outras linguagens, mas já não estaria em tempo de voltarmos a ter uma boa matéria sobre artes visuais? Gostaria de sugerir alguns artistas muito bons que vivem meio esquecidos pela mídia em Pernambuco, como Rodolfo Mesquita, Anchises Azevedo e Ismael Caldas, por exemplo. No mais, parabéns pela publicação, que continua excelente. José Vicente Bezerra – Caruaru – PE


Excelência É impressionante como uma publicação de qualidade pode dar excelência a qualquer assunto. Estou me referindo à abordagem de muito bom gosto que o assunto “sexo” teve na edição de junho, com textos e ilustrações de alto nível. Muito bom. Dorotéia Cordeiro Santos – Belo Horizonte – MG

dos celeiros mais diversificados nessa área. Estou lhes chamando a atenção com a melhor das intenções, pois acho que a permanência dessa revista é uma coisa da maior importância. E um dos meios de se manter no mercado, hoje em dia, é melhorando sempre. E um dos modos de melhorar é cobrindo lacunas. Mauro Ventura – Salvador – BA Marginal

Credibilidade Uma das coisas que mais tenho admirado na postura editorial da revista Continente é que, apesar de ser uma revista ligada a um órgão do governo estadual (no caso, o governo de Pernambuco), ela não é uma revista “chapa-branca”, isto é, que só conta vantagens sobre o estado, sobre o governo etc. Não. Mantém-se imparcial, às vezes até polêmica, o que só lhe dá credibilidade. Com isso, ganha a revista e os que a fazem, ganha o governo que a patrocina, ganha o estado que a produz e ganha o país que a consome. Continente Multicultural é um exemplo a ser seguido. Se vai, não o sabemos. Mas uma coisa é certa: é uma revista que já garantiu seu espaço na história da imprensa cultural do Brasil. Maria Cristina Maia – São Paulo – SP Cultura popular Sou leitor constante da Continente Multicultural e gostaria de fazer um elogio e uma crítica. O elogio é sobre a parte visual da revista, que, para mim, é uma das mais bonitas, se não a mais bonita do Brasil. Não é ostensiva nem barroca, mas sóbria e elegante. Gosto disso. Também estou de acordo com a maioria dos leitores: o conteúdo das matérias tem sido do mais alto nível. A crítica que faço, entretanto, diz respeito à falta de um espaço maior para a cultura popular, principalmente levando-se em conta que Pernambuco é um

Até que enfim uma revista de prestígio nacional dá espaço para que cineastas como Julio Bressane possam expor seu pensamento. Junto com Rogério Sganzerla, Bressane capitaneou um dos movimentos mais criativos do cinema nacional, na década de 70, criando obras-primas como O Bandido da Luz Vermelha (Sganzerla) e Matou a Família e Foi ao Cinema (Bressane), este último, genial a partir do título. No momento em que o cinema nacional se pasteuriza para ganhar glamour e concorrer ao Oscar ou conquistar o mercado internacional (vendendo a alma a Hollywood), é da maior importância que o cinema visceralmente nacional, como o feito por esses camaradas, tenha destaque. Não precisamos usar filtros de publicidade para tornar o céu nordestino mais azul. Ele já tem seu azul característico. Nossa visualidade é rica, não precisa ser “aperfeiçoada” artificialmente. E isso é apenas um dos aspectos da questão. Mas não vou me alongar mais. Parabéns, mantenham a postura democrática e esclarecedora. O que o Brasil tem de melhor não pode se perder debaixo das ondas mediocrizantes da famigerada globalização. Arthur Gonçalves Crespo – Brasília – DF Orgulho Não é que eu tenha o preconceito de achar que o Nordeste é incapaz de produzir bons profissionais e, conseqüentemente, bons produtos. Mas a região está de tal forma associada a problemas e deficiências (embora, a bem da verdade, o país inteiro pareça estar padecendo do mesmo), que causa uma surpresa enorme ver um estado como Pernambuco produzindo uma revista tão boa quanto esta Continente Multicultural. Tenho acompanhado a trajetória de vocês, número a número, e cada vez me espanto mais. A qualidade não cai, no mínimo, se mantém, ou então dispara para as alturas. Não sou pernambucano (nasci em Belém do Pará e estou há muito morando no Sul), mas, se fosse, estaria explodindo de orgulho. Raul Crisóstomo - Porto Alegre - RS Continente Multicultural 3


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EDITORIAL

A educação pela pedra do reino

U

ma das melhores e mais precisas interpretações da obra de Ariano Suassuna foi o poema “A Pedra do Reino”, que João Cabral de Melo Neto escreveu e lhe dedicou. Deslinda as suas visões de mundo a partir da reescritura do Sertão. Enquanto os da Mata e do Brejo costumam vê-lo como simplesmente um “deSertão” magro e ossudo, os que o conhecem para além desse realismo sabem que “o homem não é só capaz de sede e fome”. João Cabral sintetiza tudo isso numa expressão — “fantástico espaço suassuna”. O sobrenome do escritor paraibano vira adjetivo para, dentro da ambigüidade tão característica das regiões que sobrevivem no seco, conter o mítico, o feérico, o mágico. Haveria, portanto, um Sertão do sim, e outro do não. Este último bem representado na literatura do próprio João Cabral de Melo Neto, com seus retirantes típicos. A sua estatura esquelética — também

espelhada nos sulcos rachados da terra — se reflete na estrutura do discurso. Se o autor de Morte e Vida Severina tem cabras no nome e na linguagem, o da Pedra do Reino as tem ao alcance da mão, como criador — nos dois sentidos, literário e pecuário — que é. É um pouco do seu “espaço” (inclusive nos seus lugares-comuns que assumem, a seu estilo, um modo particular de transcendência) que Suassuna dá a ver na entrevista que concedeu para esta edição, completada com artigos e reportagens. O vencedor do Prêmio Jorge Amado, recém-criado e recém-proclamado, está aqui nos seus trajes mais característicos, com a sua educação pela pedra do reino. A sua lição — bem antes das tão divulgadas aulas-espetáculo e da empatia com o seu público — foi apreendida por João Cabral: “Sertanejo, nos explicaste/ como gente à beira do quase,// que habita caatingas sem mel/ cria os romances de cordel”.

Ariano Suassuna na visão de J. Borges: tão grande quanto as Pedras do Reino

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Cabras e mamulengos versus Super-Homem T

rês datas marcam a vida do escritor Ariano Suassuna. A primeira, triste, foi o assassinato do seu pai, João Suassuna, durante a Revolução de 30. As duas outras foram felizes. Uma, em 1955, quando escreve O Auto da Compadecida, seu maior sucesso popular. A outra, em 1970, quando conclui sua obra até agora mais importante, O Romance d’A Pedra do Reino, e lança o Movimento Armorial, em que procura “a criação de uma arte brasileira erudita baseada na raiz popular da nossa cultura.” Mais duas datas podem marcar a vida desse paraibano radicado no Recife. O dia 10 deste mês, quando recebe o recém-criado Prêmio Jorge Amado. A segunda, 11 de dezembro, quando pretende dar o ponto final no romance que sintetizará tudo que escreveu até agora. O Movimento Armorial frutificou e se desenvolveu em diversas direções, mas Ariano sempre se envolveu em grandes polêmicas por não aceitar a contaminação da cultura nacional pela cultura de massa, particularmente a norte-americana. Rejeitou a Bossa Nova (pela influência do jazz), o Tropicalismo (pelo uso de guitarras) e o Manguebeat (pela fusão rock-maracatu). Também recusou o Prêmio Sharp (por ter o nome de multinacional) e convites para trabalhar na Rede Globo como novelista. Apesar de tudo, Ariano pode ser visto hoje quase como uma superestrela: jovens lotam suas aulasespetáculos, ele desfila em escola de samba, dá entrevistas a programas badalados, diverte e encanta milhões com a adaptação de suas obras para a TV e o cinema. Querendo ou não, o Cavaleiro Andante da cultura popular brasileira tornou-se uma unanimidade respeitada até por quem não concorda com ele. Mas, no casarão antigo onde mora, no Recife, gentil e bem-humorado, Ariano Suassuna, aos 75 anos, mais parece um gentleman, perdão, um cavalheiro de um tempo antigo. Um cavalheiro sertanejo, é bom que se esclareça.

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O autor de O Auto da Compadecida fala de estética das cabras, conta episódios da sua amizade com João Cabral e Guimarães Rosa e levanta a tese de que o Super-Homem é uma espécie de Cristo norte-americano Marco Polo

FOTO: ALEXANDRE BELÉM/TITULAR

ESPECIAL

Ariano Suassuna



Ariano quis criar cabras avermelhadas, brancas e pretas em homenagem às três raças que povoaram o Brasil

contra a cabra, como ainda hoje existe. Mas aí um primo meu, que é meu primo legítimo e muito meu amigo, Manoel Dantas Vilar Filho, quando ele tomou conta da fazenda que tinha sido do pai dele, ele me chamou pra nós dois juntos fazermos uma criação de cabras. Então eu fiquei entusiasmado com a idéia e eu queria partir para a criação da cabra nativa, porque é uma cabra que já tem quinhentos anos de adaptação. Aí nós começamos a fazer uma criação de cabras. Eu ganhei o prêmio nacional de ficção com a Pedra do Reino, e como todo mundo dizia que dava prejuízo, aí eu disse pra ele: “Eu compro as matrizes e você entra com a terra e a administração, e nós dois dividiremos fraternalmente”. Mas você veja, com a continuação do tempo, a cabra se revelou a melhor aplicação de dinheiro na fazenda, foi o que mais rendeu. Aí, nesse momento, eu achei que não era justo eu continuar porque ele vive disso e eu, não. Quer dizer, enquanto estava dando prejuízo o senhor estava junto, quando foi para dividir os lucros, não. Eu cheguei a dividir alguns lucros. Aí ele fez uma insistência danada, mas eu saí. Quer dizer, eu 8 Continente Multicultural

continuo com a sociedade afetiva e ele está na área. A parte estética, que era a parte que eu podia cuidar, eu cuidei. Realmente eu continuo indo lá, eu visito, mas eu hoje realmente não sou mais sócio dele. E qual é essa parte estética das cabras? Olhe, é o seguinte, repare bem, quando a gente começou o trabalho, todo mundo, como eu disse, dizia que dava prejuízo. Então eu disse: “Vamos insistir porque é uma coisa bonita, eu acho um animal bonito. Eu queria fazer cabra avermelhada, uma branca e uma preta, porque eu queria prestar homenagem às três cores iniciais da cultura brasileira, o negro, o índio e o branco. Tudo isso é literatura, era a isso que eu me referi como sendo a parte estética. Agora você veja, a cabra, além de se revelar esteticamente perfeita para a região sertaneja, mostrou que é o animal certo para o lugar certo, tanto que passou a dar lucro. Quando fala que teve o cuidado de colocar três cores representantes de três raças, o senhor demonstra um cuidado muito grande com minúcia e também com coerência. Em tudo o que faz, o senhor realmente coloca isso? É verdade. Há uma coisa da qual ninguém pode me chamar, que é de incoerente. Podem até me chamar com justiça de muita coisa, mas incoerente eu não sou não. É uma coisa até que preocupa um pouco, tem uma história muito boa, não sei se você já ouviu falar nesse cidadão que é Martin Francisco Ribeiro de Andrada. Ele era irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva, o “Patriarca da Independência”. E ele era uma figura muito curiosa, muito engraçada, uma figura espirituosa. E uma vez, ele era deputado, ele sustentou na Câmara, que naquele tempo se chamava Assembléia Nacional Constituinte, ele sustentou alguma coisa lá que convinha à política dos Andradas na época. Mas como a política é muito variável, no ano seguinte ele sustentou uma tese exatamente contrária. Aí um deputado que tinha ouvido o primeiro discurso disse o seguinte: “No ano passado, o senhor sustentou uma tese exatamente contrária a esta”. E ele disse: “Sustentei”. Aí deu uma risadinha irônica e foi questionado: “Quer dizer que o senhor mudou?” “Mudei. Eu não sou doido para ter idéia fixa!” Então é uma coisa que pode até preocupar um pouco, porque eu realmente sustento a coerência e portanto tenho esse meu ponto de loucura. Mas eu tenho, pelo menos, a convicção e a paixão daquilo em que eu acredito.

FOTO: MARCUS ANTONIUS / FOLHA IMAGEM

Vamos começar com um assunto do qual se fala muito, mas pouco se sabe: a sua criação de cabras. Existe essa criação de cabras? Existe. Agora hoje, veja bem, eu creio que desde menino que eu sou um entusiasta da cabra. Eu acho a cabra um animal muito importante para o Nordeste de um modo geral e para o Sertão em particular. Ela é muito adaptada na região. Mas a geração anterior a minha, a minha família, tinha um preconceito danado


“A mãe de João Cabral dizia que ele só dava gargalhada quando conversava comigo”

FOTO: ANA BRANCO / AG. O GLOBO

Já que o senhor falou em idéia fixa e em cabras, eu lembrei que o João Cabral gostava de cabras também e tinha idéia fixa. No entanto, me parece que a visão de sertão de vocês é diferente. Ou não? Nós éramos muito diferentes. Nós éramos excelentes amigos, gostávamos muito um do outro. Eu não sei se você sabe, mas houve um período em que ele foi perseguido no Itamaraty e veio para cá. Ficou na casa do pai dele. Foi nesse tempo que eu conheci João, porque quando eu comecei a atuar aqui, na vida literária do Recife, ele já tinha se mudado. De maneira que foi nessa volta, pelos anos 50, que eu o conheci e fizemos amizade. Então nós íamos muito para jogo de futebol, juntos, porque eu gosto de futebol e ele gostava também, e voltávamos a pé. Muitas vezes a gente voltou a pé da Ilha do Retiro. Torciam pelo Sport? Não, eu torço pelo Sport e ele torcia pelo América. Era um dos poucos torcedores do América (risos). Ele jogou no Santa Cruz, mas torcia pelo América. Então nós vínhamos juntos, conversando, e a conversa se estendia. Ele morava lá perto do Parque Amorim, numa rua que tinha, chamada rua Montevidéu. Então a gente chegava e ficava ainda conversando no portão várias vezes, e ele contava sempre essa história em que a mãe dele um dia disse: “Ontem à noite você veio para casa com Ariano Suassuna, não foi?” E ele respondeu: “Foi, como é que a senhora sabe?” “É porque aquela gargalhada você só dá quando conversa com ele”. Eu até falei sobre isso num artigo que escrevi sobre ele quando ele morreu. Então nós éramos muito amigos. E nós estávamos escrevendo, eu estava escrevendo O Auto da Compadecida e ele estava escrevendo Morte e Vida Severina. E nesse tempo eu contei para ele uma história que quando eu era menino, se você encontrava uma pessoa morta, principalmente se fosse morta de tiro ou de faca, era uma obrigação religiosa, no sertão, preparar um cortejo para levar o corpo para se enterrar num local sagrado. Então a pessoa se punha junto ao corpo e começava a gritar: “Chega, irmão das almas! Não fui eu que matei não!” E as pessoas que ouviam o grito tinham a obrigação religiosa de deixar os seus afazeres e vir se juntar até haver pessoas

em número suficiente para conduzir o cadáver, que era conduzido por uns dois ou três quilômetros. Agora, parava e começavam todos a gritar: “Chega, irmão das almas!” E vinham outros para revezar e assim levavam. Eu contei isso a ele e ele colocou exatamente essa frase em Morte e Vida Severina, que eu já tinha colocado em Uma Mulher Vestida de Sol, que eu escrevi em 47. Agora, apesar de que nós éramos diferentes, eu gostava da literatura dele e ele da minha. Tanto assim que ele dedicou um poema muito bonito a Pedra do Reino, já viu? É uma beleza! Exatamente falando dessas diferenças. Ele gostou demais de Pedra do Reino. Me telefonou, me passou um telegrama e depois escreveu esse belíssimo poema que mostra como a gente podia se encontrar... Sua paixão por cultura popular começou com o senhor ainda menino? Eu comecei muito novo, com sete anos de idade. Ouvi o primeiro desafio de cantadores e tive a sorte de ouvir um dos maiores cantadores que o Brasil já teve, chamado Antonio Marinho, lá em Taperoá, em l934. Eu fui pra essa cantoria com um irmão meu chamado João. Era na casa de um oficial da polícia lá de Taperoá, que promoveu essa cantoria com Antonio Marinho e um cantador de Juazerinho, chamado Antônio Marinheiro. E eu fiquei muito impressioContinente Multicultural 9


Sua vocação para o teatro começou aí? Eu acho que sim. Eu acho que sim, porque, veja, anos depois, em l950, eu adoeci do pulmão, fiquei tuberculoso e fui para Taperoá me tratar. Fiquei na casa de uma tia minha porque o clima de Taperoá é muito bom para essas doenças pulmonares. E fiquei lá acho que todo o ano de cinqüenta e um. Aí minha atual mulher, Zélia, minha mãe, meu irmão Marcos e duas irmãs minhas, Telma e Germana, foram daqui para me fazer uma visita lá em Taperoá e eu então resolvi recebê-los com um pequeno espetáculo de 10 Continente Multicultural

teatro. Escrevi uma peça chamada Torturas de um Coração. E essa peça foi muito importante para mim porque foi com ela que eu dei a guinada, porque até então eu só tinha escrito tragédia e essa foi a primeira peça cômica que eu escrevi, para mamulengo. Eu mesmo me apresentei, eu e alguns primos. Eu escrevi a peça e eu representei o Benedito e coloquei até um terno de pífano. Tinha um homem chamado “seu” Manoel Campina, lá de Taperoá, e eu coloquei o terno de pífano para separar com números musicais. Você veja bem, foi a primeira peça com a qual eu abri o caminho para escrever o Auto da Compadecida. Era uma peça montada para mamulengo e eu acho que me marcou muito, tanto a poesia dos cantadores quanto a peça de mamulengo. Agora, eu me esqueci de dizer uma coisa que é muito importante: é que logo que me alfabetizei, eu comecei a ser um grande leitor. Li muito na infância, na adolescência e na juventude, e ainda hoje eu sou um grande leitor. Pois bem, então isso foi muito importante para mim porque tinha a biblioteca do meu pai. Meu pai era um entusiasta da literatura e já era um entusiasta da literatura popular. Ele era muito amigo de Leonardo Mota, um escritor cearense

FOTO: ALEXANDRE BELÉM / TITULAR

nado porque Antônio Marinho cantou, além dos improvisos, um folheto que ele sabia de cor e eu não sei se era de autoria dele. Depois, com as mulheres velhas, do povo de Taperoá, eu comecei a aprender o que elas chamavam “as cantigas velhas”, que às vezes eram romances ibéricos sobreviventes. E também romances já feitos aqui, mas ainda no estilo do romance ibérico. Eu me lembro de uma mulher chamada Donana. Ela me cantou dois romances, o Romance da Bela Infanta e o Romance de Minervina, este, já feito no Brasil. E então eu comecei muito menino a entrar em contato com isso. Uns dois anos depois, com oito ou nove anos, um primo meu chamado Manoel Souza me levou pra ver um espetáculo de mamulengo, o primeiro espetáculo de mamulengo que eu vi na vida. Era num mercado popular em Taperoá. Lá, com os mamulengueiros que eu não sei de onde vinham, existia uma pequena peça que eu adorei, achei extraordinária. Eu lembro que o personagem principal era um negro, Benedito. E eu lembro que o outro mandava: “Soletre esqueleto”. E ele dizia: “Escai-cai-esquelé-teo-tó, calça, colete e paletó” (risos). Outra coisa que eu achei muito boa foi que um camarada estava fazendo o papel de professora e Benedito queria entrar numa escola pela primeira vez, aí a professora disse a ele: “Benedito, você sabe que aqui nessa escola quem se comporta bem ganha um par de chinelos e quem se comporta bem e estuda, ganha dois pares de chinelo?” “Ah, muito bom, está ótimo”. “Agora, eu quero ver se você aprendeu mesmo: Benedito, quem se comporta bem aqui na escola, o que é que ganha?” “Um par de chinelos”. “E quem se comporta bem e estuda?” “Dois pares de chinelos”. E ela respondeu: “Muito bem, Benedito, está ótimo. E quem descobriu o Brasil?” E ele disse: “Três pares de chinelos!” (risos). E outra vez a professora pergunta: “Benedito, quem foi Deodoro da Fonseca?” E ele disse: “Foi Floriano Peixoto” (risos). É pouca diferença, não é?


“As peças feitas para mamulengo me marcaram tanto quanto a poesia dos cantadores”

que hoje anda até esquecido, a meu ver, injustamente, e que foi um dos primeiros a coletar improvisos de cantadores. No livro Sertão Alegre, Mota cita meu pai como uma das fontes que passavam para ele versos populares. Então, isso foi muito importante pra mim, porque eu comecei a dar importância a livros muito cedo. E quando eu vi os versos dos cantadores serem acolhidos nos livros, que para mim eram objetos sagrados, então eu comecei a respeitar aquilo que me dava prazer. O senhor tem peças trágicas, mas ficou mais conhecido pelo humor. É, porque o povo brasileiro gosta muito de rir. Então a diferença de popularidade, digamos assim, entre o autor de peças cômicas e o autor trágico, é muito grande, há uma diferença muito grande em favor do autor cômico, como também existe uma diferença muito grande entre o meu teatro e a minha poesia, que é praticamente desconhecida. Mas o senhor gosta mais de exercitar o romance porque nele pode se expandir mais. A peça teatral

tem um tempo curto. É verdade. Isso acontece e eu sinto mesmo essa necessidade. Quando eu escrevi A Pedra do Reino, foi por causa disso, porque eu sentia que o meu teatro não estava expressando tudo o que eu queria. Então o livro foi a primeira tentativa. A Pedra do Reino é uma coisa a que as pessoas não prestam atenção, mas ela foi a minha primeira tentativa de fundir romance, teatro e poesia. Primeiro, porque ela é uma grande peça, cujos personagens principais são Quaderna, o juiz e a moça que pega o depoimento de Quaderna, Margarida. De vez em quando, Quaderna se mete para o lado dela e é sempre cortado, mas há uma coisa que eu já revelei, não lembro para quem — é porque eu não cheguei a terminar a trilogia, mas eu vou terminar um dia: Quaderna termina se casando com Margarida. Então, em primeiro lugar, é assim, é uma peça de teatro. Só que eu coloquei mais liberdade e mais possibilidade de estender. Agora, além disso, em A Pedra do Reino, eu deixei um capítulo, um folheto, como eu chamo lá, que existe no romance, que se chama A Visagem da Moça Caetana. Lá tem um poema que eu escrevi em forma de prosa, porque eu queria que ficasse disfarçado mesmo. Mas é um poema e é, no meu entender, não só o núcleo de todo o romance, como também é o núcleo de toda a minha obra literária. Muda muito o processo de criação, quando se passa de uma peça para um romance? Eu acho que é mais ou menos o mesmo processo, só que o romance é mais complexo, por sua própria dimensão. Isso é exatamente o que me atrai e fascina no romance, a amplitude. Tudo isso complica um pouco. Mas se você prestar atenção, acho que existe uma Continente Multicultural 11


Ariano comenta um trecho de Balzac em que o francês fala de geometria do espírito e álgebra do coração: “Isso é letra de bolero, não é verdade?”

certa unidade entre A Pedra do Reino e o meu teatro. Quer dizer, não só com o teatro cômico, mas com a parte trágica do meu teatro também. Porque em A Pedra do Reino, também pensei em fazer uma novela épica e humorística. No comportamento humano, você tem dois grandes campos que interessam à literatura: o do doloroso e o do risível. No doloroso, as duas categorias principais são o trágico e o dramático; no risível, são o cômico e o humorístico. E o humorístico se caracteriza exatamente por ser essa tentativa de fusão da melancolia mais delicada com o riso mais violento. Então, é uma fusão de trágico e cômico o humorístico. E se você notar bem, em A Pedra do Reino existe toda uma parte trágica e uma parte cômica também. O senhor tem uma metodologia de trabalho? Pensa primeiro nos personagens, no enredo ou no clima? Eu me diferenciava até nisso de João Cabral. Ele não acreditava em inspiração e eu acredito. Agora, o que talvez sustente essa antipatia que ele tinha por inspiração é a palavra em si. Porque a palavra é antipática mesmo. Os poetas românticos desgastaram muito essa palavra “inspiração”, não é? Mas eu até escrevi, a propósito disso, e eu me lembro que ele era vivo ainda quando eu escrevi isso, dizendo que ele tomasse conhecimento das expressões de um escultor popular 12 Continente Multicultural

O senhor acha que há semelhança entre o seu modo de ver o sertão e os de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa? Olha, varia um pouco, principalmente sobre o sertão de Guimarães Rosa, porque o sertão dele é outro, o sertão dele se parece mais com a nossa zona da mata. Mas, com Euclides da Cunha, eu tenho grandes semelhanças e isso vai ficar mais presente ainda com esse romance que eu estou fazendo. Eu devo muito a Euclides da Cunha, tanto na visão geral do Brasil como na mais particular, do sertão. Evidentemente, eu tenho diferenças. Eu não poderia ficar de acordo, por exemplo, com as teorias racistas de Euclides da Cunha. Na minha visão, quando Euclides da Cunha deixa falar o grande poeta que ele tem dentro de si, ele acerta. Mas ele erra quando se deixa influenciar por aquela falsa ciência social européia do século 19. Mas eu acho que eu tenho um parentesco maior com Euclides da Cunha. Com Guimarães Rosa eu me dava muito bem, admiro muito, mas ele me toca menos do que Euclides da Cunha. Eu não estou fazendo nenhum julgamento de valor, é uma questão de linhagem, de parentesco, inclusive porque eu gostava muito do Rosa. E do mesmo jeito que eu admiro João Cabral sem concordar com muita coisa que João Cabral pensava, eu não preciso escrever como Guimarães Rosa. Houve um tempo em que muita gente me cobrava porque eu não escrevia como Graciliano Ramos ou como Guimarães Rosa. Ora,

FOTO: REPRODUÇÃO

que havia aqui em Pernambuco, chamado Nhô Caboclo. Nhô Caboclo dizia que “tudo o que eu faço sai do córrego”. Então, é esse córrego que todo artista tem de ter, do contrário ele não escreve. O próprio João Cabral, se não tivesse, não faria aqueles poemas tão extraordinários. Então, as idéias me vêm da maneira mais inesperada. Às vezes, vêm ligadas a um determinado personagem que eu conheço ou conheci; às vezes, é mais um ambiente. Você sabe muito bem que numa espécie de ambiente só cabe determinado tipo de personagem. Então, essas coisas normalmente são governadas pela intuição e pela imaginação, não pela razão. Agora, quando a gente vai transformar isso em obra literária, aí a razão colabora, mas sobre o material fornecido por aquilo que os especialistas em estética chamam “a vida pré-consciente do intelecto”. É bom isso, não é? (risos). Na minha opinião, a criação literária se processa a partir dessa “vida pré-consciente do intelecto”. Agora, na realização da obra, o intelecto colabora.


“Guimarães Rosa pegou um cotoquinho de lápis e, mexendo na dedicatória, fez um poema”

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primeiro porque eu não sou nenhum dos dois, eu sou outra pessoa, está certo? Mas nós éramos amigos e nós nos admirávamos e eu tenho poemas do Rosa dedicados a mim. Foi por acaso, veja bem, ele me dedicou dois livros, eu acho que um era Tutaméia e o outro era o Grande Sertão: Veredas. Quando ele me deu, com a dedicatória escrita, eu disse: “Rosa, isso não é uma dedicatória, isso é um poema”. Aí ele pegou, olhou, e ele andava com um “cotoquinho” de lápis assim, ele pegou um papel, cortou aquilo, juntou os dois, colou, emendou e fez um poema. Eu lembro que começava assim: “Em tempo duro ou tranqüilo,/ Riobaldo abraça João Grilo/ e já que a arte é vera e una,/ o Rosa abraça o Suassuna./ Oh, grande Ariano,/ meu e de todos, irmão, Sansão, Gedeão,/ jardim do mato regado a orvalho/ e rei do quinto naipe do baralho”. Ele parecia um menino. Um dia, logo que eu o conheci, eu disse a ele: “Rosa, eu gosto muito de um conto seu chamado ‘O Recado do Morro’. Rapaz, é uma beleza esse conto”. Aí ele ficou contente: “Você gosta mesmo?”. Parecia um menino. O seu sertão tem também um lado fantástico, mágico, místico... É da própria literatura de cordel e um das coisas que me preocupavam era que eu não me satisfazia com o regionalismo, porque a meu ver o regionalismo é um neonaturalismo. Eu não vejo grande diferença de Josemar para Zola ou de Aluísio Azevedo para José Lins do Rego. Tem a passagem do tempo, naturalmente, e acho até que José Lins do Rego ficou

maior do que Aluísio Azevedo. Mas, do ponto de vista da visão estética geral, eu não vejo grande diferença do regionalismo para o naturalismo. Você veja, quando eu estava escrevendo o Auto da Compadecida, as pessoas me perguntavam: “É uma peça regionalista?” Aí eu dizia: “É”, somente para minimizar uma pergunta, porque eu não tinha mostrado ainda. Veja, há uma diferença muito grande do Auto da Compadecida para um romance de José Lins do Rego ou de Graciliano Ramos. E isso vem de quê? Vem da presença poética, porque, no próprio enredo, o Auto da Compadecida, como peça realista, não convence ninguém. Porque não tem cangaceiro que caia numa cilada tão idiota como aquela de dar a bexiga para o cachorro escondida numa camisa. Aquilo é uma coisa que, para gostar do meu teatro, é preciso que o público faça um acordo com o autor: nós vamos acreditar juntamente com você, para que a gente possa pensar que isso pode acontecer durante duas horas. Então, a diferença é colocada exatamente por isso, pela presença do fantástico, do mágico, do poético, que num romance de Graciliano, por exemplo, não acontece. E eu sentia falta disso. Eu jamais escreveria um romance assim, travado, como os romances de Graciliano. Mas eu gostei muito dele, e ficamos muito amigos. Engraçado, diziam que ele era uma pessoa amarga, calada, mas comigo conversava na maior alegria, falando. Quase que não me deixava falar, coisa que é muito difícil (risos). Uma vez o senhor disse que “é preferível ter mau gosto a ter gosto médio”. Dê alguns exemplos de gênios com mau gosto. Você veja, um gênio da qualidade de Shakespeare, da dimensão de Shakespeare, tem mau gosto em determinados momentos. Você veja uma coisa, tem momentos em que Shakespeare coloca na boca de Romeu o seguinte verso: “Neste momento eu queria ser uma mosca para pousar nos lábios de Julieta”. Rapaz, isso é de mau gosto!... (risos) Então, é uma comparação de mau gosto horrível, terrível. O sujeito está numa peça bonita como Romeu e Julieta e sai com uma dessas, isso é horrível. E Balzac, por sua vez, tem um romance belíssimo, A Procura do Absoluto. Eu não lhe garanto a exatidão das palavras, mas é quase isso: “Alberto Alvariz era um desses

A respeito do filme Gunga Din, que viu quando menino: “Só depois de morto o indiano Gunga Din é admitido no exército inglês”

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“O presidente Bush, pai, posou ao lado de Rambo dizendo que ele era o herói americano. Já o Super-Homem é o Cristo deles. Um Cristo invencível”

O senhor acha que hoje em dia um jovem, uma criança, que cresce navegando na internet, sob uma avalanche de filmes americanos, comendo na McDonald’s e indo a shopping centers, tem condições de ter essa visão que o senhor teve da cultura brasileira quando menino? É possível que esse menino de hoje possa ver isso? Eu acho que não. Agora, isso vai depender muito do menino. Porque, veja bem, eu não fui imune a esse tipo de coisa. Eu não sei se você viu, como eu, um filme chamado Gunga Din, dos anos 40 ou 50. Esse filme é baseado num poema de Kipling, um poeta inglês da era vitoriana, um poeta do imperia14 Continente Multicultural

lismo inglês. Kipling era inclusive nascido na Índia, filho de um oficial inglês que servia na Índia. Pois, meu amigo, foi preciso um esforço de reflexão muito grande de minha parte para eu ver como aquele filme é imoral, indecente, é um filme inimigo do terceiro mundo, inimigo de todos nós, inimigo do Brasil. E eu não via isso, eu chorava... Ficou envolvido... Claro, como qualquer menino hoje, diante de Rambo ou de qualquer outra coisa. Aí você lembre bem, o vilão do filme é um líder nacionalista, religioso. É apresentado como um fanático. É o que eles estão fazendo com Bin Laden. Então, ele é apresentado como um bandido. O herói é o indiano traidor, Gunga Din, cuja vontade era entrar no exército inglês e eles não deixavam porque ele era negro. Eles preparam uma emboscada, o exército inglês vem por um desfiladeiro e quando Gunga Din vê que o exército inglês vai cair na emboscada dos indianos, pega uma corneta, sobe numa torre e dá o toque de alarma. Os indianos atiram nele e ele morre, mas o exército inglês escapa da emboscada e vence... No fim do filme, é recitado o poema do Kipling: “Durante o tempo em que eu fui soldado de sua majestade, a Rainha, nunca conheci herói maior do que Gunga Din, Din, Din”. E eu chorava emocionado com pena de Gunga Din, com a cena final do enterro de Gunga Din, admitido post mortem como soldado e promovido a cabo (risos). Então, eu passei por uma lavagem cerebral e tive de refletir que eu, ficando com aquela visão que eles queriam, eu estaria contra Ghandi, Nehru e todos aqueles que fizeram a libertação da Índia.

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personagens capazes de aceitar ao mesmo tempo a geometria do espírito e a álgebra do coração”. Isso é letra de bolero, não é verdade? Que negócio de mau gosto, rapaz! Para mim aquilo que seria um defeito nas mãos de um escritor medíocre passa a ser um efeito. Eu leio Balzac e quando eu encontro uma frase como essa, digo: “Isso é puro Balzac!” E é mesmo. Passa a ser apenas uma característica peculiar do gênio de Balzac. Está entendendo? É a isso que eu me referia, e aí eu dizia: “Gênio com gosto médio, eu não conheço ninguém”. Eu dizia isso, mas protestando contra os meios de comunicação de massa, que nivelam pelo gosto médio, exatamente. Antes o mau gosto de Balzac ou de Shakespeare do que esse gosto médio. Inclusive, às vezes, nem no gosto médio fica. Ficar no gosto médio já é ruim, mas, às vezes, resvala até para o mau gosto, dessa vez sem gênio.


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Sob essa maneira de ver, como agem os Estados Unidos hoje? Olha, um dia eu participei aqui de um jantar de confraternização pela vitória de João Paulo. Aí, na minha frente, sentou-se um jovem empresário. Eu estava sentado aqui, naquela mesa comprida, assim, eu fiquei sentado do lado de cá e ele estava do lado de lá. Aí ele se virou pra mim e disse: “Eu queria lhe dizer que há muito tempo eu estava com vontade de encontrá-lo pra dizer que estive nos Estados Unidos e gostei muito”. Bem, ele está no seu direito, não tenho nada contra. Mas aí ele insistiu: “Nessa estada que eu passei nos Estados Unidos, eu verifiquei que lá os camponeses tomaram o poder, de maneira que o arquétipo da cultura americana, a meu ver, é um camponês”. Aí eu perdi a paciência e disse: “Espera aí, que você esteve nos Estados Unidos e gostou, tudo bem. Agora, me dizer que os camponeses tomaram o poder nos Estados Unidos, você tenha paciência. Os camponeses não chegaram nem perto do poder lá. E tem mais uma coisa, o arquétipo da cultura americana não é o camponês, não, é Rambo.” Outro dia eu li uma entrevista de um sociólogo americano e nessa entrevista ele dizia que estava muito preocupado, porque tinha havido aquele primeiro massacre de adolescentes feito por um colega, num colégio lá onde um menino pegou um fuzil metralhadora e matou doze ou treze colegas. E

ele estava muito preocupado porque não sabia a que atribuir. Aí eu não disse nada, mas fiquei com vontade de dizer a ele: “Eu não vou aí porque é muito longe, mas se quiser vir aqui, eu lhe digo”. A causa é muito fácil, eu vejo qual é a causa dessas coisas. Eu não sei se você sabe, mas aquele rapazinho lá, aquele adolescente, ele antes de atirar se vestiu de Rambo. Você sabia disso? E o Presidente Bush, o anterior a esse, o pai desse, posou para a televisão junto de Silvester Stalone, este vestido de Rambo, e disse para a câmera: “Este, para mim, é o protótipo do herói americano!” Como os americanos perderam a guerra do Vietnã e até hoje têm vergonha, criaram aquela figura lá e estão espalhando no mundo todo como herói. Então, se o menino americano vê Rambo matando gente e é o herói, ele vai lá e mata. Às vezes, as coisas passam despercebidas para o pessoal, mas, para mim, não passam não. Eu sou vacinado com Gunga Din, fiz a reflexão. Você veja um filme como Indiana Jones, por exemplo. Na primeira cena, ele está saqueando o patrimônio arqueológico de um país da América do Sul. Mas aí ainda vá lá, digamos que fosse por interesse científico. Não é, mas digamos que fosse. E aí tem uma cena muito engraçada. Ele chega ao Cairo, aí salta um guarda, todo vestido de preto, pula na frente do Indiana Jones, puxa aquela cimitarra, aquele alfanje curvo, e começa a fazer as evoluções. Indiana Jones mete a mão no cinturão, dá um tiro nele e ele cai morto. Veja bem como isso é simbólico: primeiro, ganham pela superioridade de armas; segundo, por que uma arma? Depois vêm eles espantados com o ataque do Bin Laden. Eles têm de saber que aquilo já é um revide. O Presidente Clinton foi surpreendido num escândalo sexual, aí, atirava no Iraque e ninguém liga, ele não é considerado terrorista, terrorista é Bin Laden. Outra coisa, o Presidente Reagan mandou um porta–aviões para a Líbia. Atiraram para matar Kadafi, Kadafi por acaso não estava, morreu uma filha de Kadafi, de doze anos. E Reagan não é terrorista? Não é criminoso de guerra? Ah, não! Essa lavagem cerebral comigo não surte efeito. Os americanos têm o complexo de vencedores. Os americanos ficam muito incomodados diante da figura do Cristo. Em primeiro lugar, porque Continente Multicultural 15


o Cristo não é nem anglo-saxão nem protestante. Eles têm aquele ideal branco, quando dizem anglo-saxão excluem os judeus e quando dizem protestantes excluem os católicos, nós, os porto-riquenhos, os sul-americanos de um modo geral. Então, o Cristo não cabe muito aí, porque não era anglo-saxão. Branco, eu tenho minhas dúvidas, porque ele era judeu e os judeus dali não são brancos. Tem judeu até preto na Etiópia... Eles fizeram filmes com Cristo louro e de olhos azuis... E isso não começou ali, começou na Europa mesmo. Os alemães só pintam o Cristo loiro e de olhos azuis. Um outro motivo pelo qual o Cristo incomoda o americano é porque, dentro da visão americana, ele é um perdedor. Terminou crucificado entre dois ladrões, a morte mais infame que havia, e perdeu, humanamente, ele perdeu... E o norte-aamericano tem pavor dessa coisa. Tem horror. Você pode ver, em vários filmes americanos tem aquela frase típica: “Ele é um per-

dedor”. É um refrão do cinema americano. Então, o Cristo é um perdedor. Olhe, a meu ver, isso é uma coisa talvez inconsciente, mas eles criaram um outro Cristo que combina mais com o espírito americano. Sabe quem é? O Super-Homem (risos). Você já viu o filme do Super-Homem? De onde é que ele vem? Ele vem do alto. Ele é criado por um casal americano, como Cristo foi criado por Nossa Senhora e São José. Ele tem um amor casto por Lois Lane, do mesmo jeito que o Cristo por Madalena. E até uma ressurreição ele faz, porque ele ressuscita Lois Lane. Só que ele faz isso na porrada, que é como o americano gosta. Ele é tão forte que vira o eixo da Terra. E a última cena, como é? Ele voando, com a bandeira americana. É o Cristo que convém aos Estados Unidos. É o vencedor. É o vencedor. E nem vai precisar da Última Ceia, porque ele não morre nunca. Se fosse fazer a Última Ceia, era com Coca-Cola (risos).

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Para Ariano, os americanos ficam incomodados com a figura de Cristo, que, para eles, é um perdedor

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Uma nova pedra?

Novo livro está cercado de mistério, mas tem fartura de elementos visuais e uma grande ambição

FOTO: LÉO CALDAS / TITULAR

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olicitado a publicar um trecho inédito da obra, ele reage com veemência: “Você ficou doido? Dá o maior azar!” Só duas coisas Ariano Suassuna revela sobre o livro que está escrevendo. Primeiro, que é uma síntese de toda a sua obra — incluindo as peças de teatro, os romances e os poemas (estes ele considera elemento nuclear de tudo o que fez, embora sejam o aspecto menos conhecido pelo público). Segundo, que só dará o ponto final a ele no dia 11 de dezembro, para coincidir com o lançamento de Os Sertões, de Euclides da Cunha, há exatos 100 anos. O cuidado com as datas acompanha o escritor. O Romance d’A Pedra do Reino foi concluído num dia 9 de outubro, dia da morte do seu pai, João Suassuna, assassinado durante a Revolução de 30. A idéia de fusão e reescrita também está entranhada no modo de trabalho de Ariano, seja na mistura do religioso com o profano, do cordel nordestino com os autos da Idade Média, e do sobrenatural com o farsesco, até a união da cultura popular com a erudita, fulcro do Movimento Armorial. A intertextualidade — que é outra forma de fusão — está presente na utilização às vezes de até várias fontes para um único texto, em verdadeiras “reescrituras em

cascata” que criam textos novos. Estes, por sua vez, vêm sendo constantemente reescritos e remodelados ao longo dos anos, às vezes se fundindo ou se dividindo, num movimento orgânico e contínuo de opera aperta e work in progress interminável. O novo livro deverá ser, pois, segundo o próprio Ariano, a reescritura final de tudo o que ele escreveu antes, ou seja, a versão definitiva e totalizante de seu trabalho. Entre os parentes, amigos e admiradores que tiveram acesso à obra, há um pacto de silêncio. Mas, aqui e ali, surgem algumas inconfidências, sempre com todos pedindo pelo amor de Deus para que não lhes citem os nomes: “É um livro que ele fechou em sete chaves e mais sete mistérios. É o livro da vida dele”, explica um deles. Para alguém que diz ter visto o trabalho em diversas fases, “é impossível de definir [o livro]. Toda vez que eu lia estava diferente. Certamente para ele tem coerência, porque está compreendendo o todo, mas quem só vê trechos fica intrigado”. Para outro, a questão é mais séria. “Este livro é uma revisão da obra dele. Ariano cometeu erros de interpretação da cultura brasileira no Romance d’A Pedra do Reino e quer se redimir disso”. Mas ressalta: “Ele não devia estar preocupado com essas coisas. Ele não é o intérprete da cultura brasileira. Ele é um grande romancista, e isso basta. O problema é que ele não é um escritor acomodado, como pensam. É um escritor dilacerado pelo raciocínio, daí essas preocupações”. Um outro revela que uma das grandes novidades do livro é o seu aspecto altamente visual: “Há uma grande fartura e variedade de ilustrações. Inclusive, longos trechos inteiramente escritos à mão com aquele alfabeto criado por Ariano a partir de ferros de marcar boi. Uma maravilha!” Mas a maior inconfidência sobre o novo livro de Ariano Suassuna é a que revela o alcance pretendido pelo projeto. Segundo essa fonte, “Ariano está querendo escrever o Dom Quixote e o Guerra e Paz brasileiros num único livro. O Dom Quixote através do personagem Quaderna, e o Guerra e Paz através do painel heráldico que ele construiu em torno do personagem”. A preocupação de terminar o livro no dia em que foi lançado Os Sertões pode ser uma indicação simbólica de que Ariano Suassuna está se preparando para lançar outra pedra angular da Literatura Brasileira. Aos leitores, resta a espera para, enfim, conferir. (MP)

O escritor diz que vai dar o ponto final ao livro no dia 11 de dezembro, data do centenário de Os Sertões

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Quaderna, aprendiz e impostor

O escritor alemão Thomas Mann

N

o ensaio Thomas Mann e o Brasil (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975), Vamireh Chacon discorre com mestria sobre a influência que o grande escritor alemão exerceu sobre algumas gerações de escritores brasileiros, tanto no campo do ensaio quanto no da ficção, principalmente nas décadas de 40 e 50, a partir das primeiras traduções de seus livros para o português. Na ficção, Chacon aponta pelo menos quatro grandes romancistas declaradamente marcados pelos temas e textos de Mann — Autran Dourado, Érico Veríssimo, José Lins do Rego e João Guimarães Rosa. Não há dúvida de que outros poderiam ser citados, e talvez a nossa crítica literária já tenha avançado muito por esse caminho, desde o ensaio de Chacon até hoje. Não sei, portanto, se a alguém já ocorreu investigar até que ponto Ariano Suassuna, tão grande quanto os quatro escritores relacionados por Chacon, e aparentado com pelo menos dois deles — Guimarães 18 Continente Multicultural

Rosa e o José Lins de Pedra Bonita e Cangaceiros —, recebeu influência de Thomas Mann, notadamente no que realizou no campo do romance, que tem n’A Pedra do Reino, por enquanto, sua bandeira maior. Antes de mais nada, devo dizer que uso o termo “influência” sem qualquer reserva, diferentemente do que vem ocorrendo com boa parte da crítica brasileira, que pretende vê-lo banido dos seus textos. Acreditam os estudiosos que a palavra influência legitima certa situação de dependência cultural, como se tudo o que se fizesse aqui possuísse um modelo fora. Nada mais equivocado, porque não se descarta, com a utilização do termo, a influência de um escritor do terceiro mundo em um do primeiro, ou mesmo a de um escritor considerado menor em um maior. Ninguém se posicionou melhor sobre o assunto, a meu ver, do que o próprio Suassuna — a quem, diga-se de passagem, essa mesma crítica freqüentemente acusa de xenofobia —, em um ensaio da década de 60, recen-

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A complexa personalidade de Quaderna pode ser melhor entendida em comparação com livros como A Montanha Mágica Carlos Newton Júnior


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temente publicado em Portugal: Olavo Bilac e Fernando Pessoa: Uma Presença Brasileira em Mensagem? Lisboa, Aríon, 1998. Tomando-se como ponto de partida essa visão mais lúcida acerca da influência, podem-se encontrar, em dois romances de Thomas Mann, A Montanha Mágica e As Confissões do Impostor Félix Krull, alguns aspectos indispensáveis ao entendimento da estranha e complexa personalidade de Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, personagem-narrador do Romance d’A Pedra do Reino e da História d’O Rei Degolado. Esses aspectos resumem-se a duas facetas de Quaderna, a do aprendiz e a do impostor. A primeira aproxima-o de Hans Castorp, o protagonista de A Montanha Mágica, que, como ele, também se via às voltas com dois mestres cujas visões de mundo eram inteiramente opostas e irreconciliáveis. A segunda, por sua vez, aproxima-o tanto do aventureiro Félix Krull, que é de admirar o fato de Suassuna somente ter lido o relato de Félix após a conclusão d’A Pedra do Reino. Chamo especial atenção para o gosto que tanto Quaderna quanto Félix Krull nutrem pelas máscaras e pelos disfarces, e que se justifica, como se verá, pelo fato de que são ambos escritores, cada qual ocupado em narrar a história da sua própria vida. De certo modo, vivendo num ambiente geográfico que em nada lembra o Sertão da Paraíba, cercados de neve e montanhas, nos Alpes suíços, a mil e seiscentos metros acima do nível do mar, Castorp, Settembrini e Naphta são três “emparedados”, como Quaderna, Clemente e Samuel. Principalmente porque ali, no Sanatório Berghof e seu entorno, vivese numa espécie de “tempo paralelo”, cuja duração é diferente da do “tempo terrestre”. Para os pacientes do Sanatório — isolados do resto do mundo, sem a ajuda de referências exteriores, numa “existência horizontal” que os deixava como num sonho de acordados — o tempo era uma espécie de eterno presente.

É assim que Hans Castorp, que fora ao Berghof no intuito de permanecer apenas três semanas, para visitar um primo, descobre-se também doente do pulmão, e termina passando nada menos que sete anos no Sanatório. Castorp chega com 23 anos de idade, saindo de lá aos 30. Esse período de sete anos, portanto, representa uma espécie de “rito de passagem” da juventude para a maturidade, no qual o aprendiz Castorp entrará em contato com as idéias do progressista e revolucionário Settembrini, ardente defensor da ciência e da razão, e do místico Naphta, para quem a fé era “o órgão do conhecimento”. Naphta, como bem observou Castorp, era tão revolucionário quanto Settembrini, mas um “revolucionário da conservação”. Ou seja: o que se tem, aí, em parte, é o eterno embate entre a “Esquerda” e a “Direita”, representadas, n’A Pedra do Reino, por Clemente e Samuel, cada qual tentando atrair a assistência — Castorp ou Quaderna — para a sua esfera de influência. Estribados naquilo que suas obras têm de “romance de formação”, tanto Thomas Mann quanto Ariano Suassuna fazem de seus romances verdadeiros murais, ambos pacientemente construídos ao longo de doze anos de intenso trabalho, cada um deles sintetizando, de modo magistral, os problemas culturais, sociais, políticos e espirituais de sua época. As ardorosas e sérias discussões de A Montanha Mágica, porém, não possuem a graça ensolarada das célebres sessões da Academia dos Emparedados do Sertão da Paraíba, principalmente das “sessões a cavalo”, sugeridas por Quaderna. Não é à toa que, no romance de Thomas Mann, o desfecho do embate entre a Esquerda e a Direita seja um duelo travado com pistolas, durante o qual Naptha comete suicídio — algo muito diferente, portanto, do célebre duelo de penicos protagonizado por Clemente e Samuel. Quanto às relações que podem ser estabelecidas entre Pedro Quaderna e Félix Krull, eu começaria retomando o que foi afirmado linhas atrás: ambos são escritores que escrevem as suas memórias, de modo que tudo o que sabemos deles advém das suas próprias confissões. Ora: estudiosos da memória e da oralidade são hoje unânimes em reconhecer a existência de uma espécie de “mito da história da vida”. Ou seja: qualquer pessoa, ao ser instigada a contar a sua vida, “melhora” o seu passado e termina por falsificá-lo, muitas vezes agindo

Cavaleiro armorial em detalhe de iluminogravura de Ariano Suassuna

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Tanto Félix Krull, de Mann, quanto Quaderna, de Suassuna, têm nomes que homenageiam o Circo “talvez o único absolutamente belo”, Félix nos conta como, com apenas oito anos de idade, durante uma estada com sua família numa estância termal muito reputada, seu pai o fez passar por um verdadeiro menino-prodígio. Percebendo o talento do filho para imitar os gestos de um violinista, Engelbert incitou-o a “tocar” um violino que não produzia nenhum som (o arco fora embebido em resina), fazendo-o atuar junto com a orquestra que diariamente se apresentava no local e cujo maestro havia sido subornado para concordar com a farsa. Em outro momento das suas “confissões”, Félix lembra as horas felizes que passava no ateliê do seu padrinho, servindo, à medida que ia crescendo, de modelo-vivo, posando com os mais variados trajes e disfarces. Haveria muito o que dizer, ainda, sobre as relações entre Pedro Quaderna e Félix Krull. A bem da verdade, talvez fosse preciso escrever um livro inteiro para aprofundar uma análise comparativa entre os dois personagens, tantas são as coincidências que podem ser encontradas num estudo dessa natureza — do fato aparentemente insignificante de possuírem o primeiro nome em homenagem a seus padrinhos à paixão que nutrem pelo Circo, passando pela experiência da prisão na fase madura e pela convicção que demonstram possuir de que são “privilegiados”, marcados pelo Destino e favoritos das potências criadoras ou da Providência Divina. No meu caso, porém, essas reflexões, às quais dei início por pura digressão, já se estendem, a meu ver, muito além do necessário. De modo que, para concluir, eu lembraria, ainda, que é através de uma decepção de caráter estético que tanto Quaderna quanto Félix Krull acabam se encantando de uma vez por todas pelo universo impostor da Arte — algo fundamental nas suas vidas, daí em diante. A decepção de Félix ocorre quando ele vai a um teatro pela primeira vez, acompanhado dos seus pais, por volta dos 14 anos de idade. Representava-se uma opereta, cujo papel principal cabia a um cantor muito em voga, chamado Müller-Rosé. A visão do teatro cheio deixa o jovem Krull extasiado, e é sob o fogo vivo da recordação que ele descreve aquele verdadeiro “templo do prazer” — a sala alta, suntuosa e

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de modo inconsciente. Isso ocorre, em primeiro lugar, porque a nossa memória é seletiva — somente armazenamos aquilo que nos interessa armazenar; em segundo lugar, devido à importância desempenhada pelo motivo estético durante todo e qualquer processo narrativo. Quando alguém conta uma determinada história, o faz tentando seduzir ao máximo o seu público ouvinte. Não se pode menosprezar, assim, o poder da Beleza como elemento formativo em nossas construções retrospectivas da realidade. Pois bem: se isso é verdade para qualquer pessoa, e se toda história de vida, de certo modo, é um produto literário, uma versão construída pela recordação e que não corresponde ao caráter real dos acontecimentos, o que não dizer da autobiografia de um escritor, alguém que conhece a fundo o ofício de narrar e possui a intenção de fazer Literatura? É com extrema cautela, portanto, que devem ser lidas determinadas afirmações, tanto da parte de Quaderna quanto da de Félix Krull, de que contam suas vidas sem esconder nada do leitor, “com absoluto rigor histórico” e “absoluta veracidade”. Quase sempre, esse declarado apego à verdade nada mais é do que uma forma refinada de mentira, um artifício do qual lançam mão para quebrar as fronteiras entre a verdade histórica e a verdade poética e melhor conduzirem o leitor para dentro do seu jogo. Por outro lado, não se pode esquecer que a simulação, nos dois casos, é uma espécie de “herança de família”. Lembro que tanto o pai de Quaderna quanto o de Félix Krull eram notórios fabricantes de “garrafadas”. Foi dos “cadernos astrológicos” de seu pai que Quaderna extraiu a receita completa do famoso Vinho da Pedra do Reino. O pai de Félix, por sua vez (à semelhança do que o próprio Quaderna fará com o “Vinho Tinto da Malhada”), fabricava um espumante de fundo de quintal e o vendia como bebida finíssima, numa garrafa de gargalo prateado e de belo rótulo. Não é por acaso que a fábrica de vinhos de Engelbert Krull (assim se chamava o pai de Félix) vai à falência, levando-o à ruína e ao suicídio, consumado com uma bala no coração. Segundo o que se pode apreender dos relatos de Quaderna e de Félix, desde a infância os dois se encontram às voltas com as mais variadas formas de simulação. Os primeiros mestres de Quaderna, nesse campo, são os Ciganos da tribo de Anacleto, com quem irá viver dos três aos dez anos de idade. No caso de Félix, tal papel será representado por seu pai e seu padrinho, que era um pintor “inclinado às facécias”. Ao narrar “um dos mais belos dias” da sua vida,


decorada de lustres; as luxuriosas pinturas do teto e do pano-de-boca; o burburinho da platéia e dos camarotes; o ruído da orquestra afinando os instrumentos; e assim por diante. Ao entrar em cena, Müller-Rosé se lhe afigurou como aquilo que faltava para o total deslumbramento. Era um “ser sublime”, e seu corpo parecia-lhe impregnado de um encanto mágico, de uma alegria de viver, que Félix identificava ao complexo sentimento que “a vista do belo e da perfeição acende na alma”. Terminado o espetáculo, o pai de Félix conta-lhe da sua velha amizade com Müller-Rosé, e leva-o, em seguida, até o camarim do artista. Ao entrar nos bastidores do teatro, Félix começa a se dar conta da existência de todo um lado desarmonioso do edifício que permanecia escondido do público — uma atmosfera confinada de passagens estreitas e caiadas, de corredores baixos, em que os bicos de gás ardiam a descoberto. O pior, contudo, ainda estava por vir. Ao entrar no camarim de MüllerRosé, Félix depara com “um espetáculo inesquecivelmente repugnante”, que descreve nos seguintes termos, segundo a tradução de Domingos Monteiro: “Sentado a uma mesa suja, diante de um espelho poeirento e manchado, Müller-Rosé estava vestido apenas com umas cuecas de malha cinzenta. [...] Um dos seus olhos estava ainda besuntado de negro e um pó brilhante, também dum negro metálico, acentuavalhe as pestanas; o outro olho, cheio de água, impertinente e inflamado pela fricção, piscava na nossa direção. Tudo isso poderia passar se o tronco, os ombros, as costas e a parte superior dos braços de Müller-Rosé, não estivessem cheios de borbulhas — e que borbulhas! — avermelhadas, repugnantes, com pústulas em parte purulentas de tal forma que ainda hoje não posso evitar um estremecimento quando penso nisso”. A decepção de Félix Krull é de natureza

idêntica à daquela que Quaderna terá diante das Pedras do Reino. Até então, aos 38 anos de idade, Quaderna somente conhecia os monólitos através da descrição da Memória de Antônio Attico de Souza Leite e da gravura do Padre Francisco de Albuquerque, impressa junto com o volume. E aí, uma vez no centro do Reino, naquele anfiteatro que fora palco de tantas degolações sangrentas, executadas a mando de Dom João Ferreira-Quaderna, o Execrável, ele vê desfigurar-se a imagem ideal e gloriosa que forjara em seu sangue durante tanto tempo. As Pedras não eram tão altas quanto Souza Leite dizia. Tampouco pareciam as Torres de uma Catedral, uniformes e paralelas, como na gravura do Padre. Na Pedra mais alta, a “Bonita”, não havia nada do chuvisco prateado que Attico atribuíra a “infiltração de malacacheta”. Além disso, Quaderna não encontra nenhuma mancha do sangue do seu Bisavô, sangue que, segundo as legendas sertanejas, permanecia vivo e vermelho, na Pedra, nos lugares em que o Rei a tocara, já ferido de morte. “Por todo lado” — confessa o narrador do Romance d’A Pedra do Reino — “eu só via, mesmo, eram as manchas ferrujosas de líquenes secos, que nós chamamos, aqui no Sertão, de ‘mijo-de-mocó’ — o que era decepcionante e desmoralizador!”. É seu companheiro de viagem, Euclydes Villar, quem chama a atenção de Quaderna para o fato de que este, sendo também Poeta, não deveria se decepcionar com as Pedras nem reclamar contra as invenções fantasiosas que existiam sobre elas, pois se os escritores não mentissem um pouco, “ajudando as pedras tortas e manchadas do real a brilharem no sangue vermelho e na prata, nunca elas seriam introduzidas no Reino Encantado da Literatura”. Como se vê, tanto Félix Krull quanto Quaderna ainda não tinham se dado conta da existência de uma “fronteira estética”, nem aprendido a separar o mundo da Arte do mundo real. E é a partir da percepção dessa fronteira que eles entendem, cada um a seu modo, e de uma vez por todas, o poder que a Arte possui de, no mínimo, tornar mais aprazível e ameno o caminhar da Raça piolhosa e extraviada dos homens por entre os ásperos e cerrados pêlos da Fera da Terra. Carlos Newton Jr. é professor de História da Arte e de Cultura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Os ex-armoriais

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rês artistas, Raimundo Carrero, escritor, Zoca Madureira, músico, e Marcus Accioly, poeta, que no começo de carreira adotaram a estética armorial, contam suas trajetórias no movimento: o que entendiam como arte armorial, por que mudaram e o que ficou da experiência. Raimundo Carrero: A literatura armorial tem total identidade com a cultura popular. É um aprendizado com a literatura oral, que conta bem uma história. Há a ausência de traços psicológicos ou reflexões existenciais. Também se baseia no que identifica as bandeiras e brasões do comportamento familiar tradicional, organizadíssimo. Não me afastei do armorial por rompimento ou rejeição. Apenas segui minhas necessidades interiores, de explorar psicologicamente os personagens e fazer questionamentos sobre estar no mundo. Não foi por decisão, foi espontaneamente. Sou inquieto com a técnica também. O que de positivo do Armorial ficou na minha literatura é a intensa visualização. Outra qualidade que guardei, apesar dos questionamentos, da exploração psicológica e técnica, é a ação permanente. Zoca Madureira: Para começar de um ponto zero de descoberta e investigação do desenvolvimento da linguagem, partimos de uma instrumentação que nos privasse das estruturas estabelecidas. Lançar uma estrutura mínima, com instrumentos populares e outros eruditos, que também tivessem presença na cultura popular. Minha mudança de direção em relação ao Armorial, na verdade, não é uma mudança. Eu acreditava — e ainda acredito — naqueles enunciados. A 22 Continente Multicultural

música armorial era muito centrada no trabalho sertanejo pelo veio árabe, mouro. Mas eu acho que a música brasileira tem também outras linguagens que precisam ser exploradas. O saldo positivo do meu envolvimento com o Armorial foi, em primeiro lugar, a convivência com Ariano, que foi, e é, muito rica. Ele, embora não soubesse música teórica, conhecia mais de música que muito maestro. Conhecia pela estética, pelo valor social e histórico, pela linguagem. Apontava coisas que estavam além da visão de muitos músicos. Marcus Accioly: O que é o Armorial? Ariano Suassuna “batizou” com tal nome, em 1969, um grupo de artistas — poetas, músicos, pintores, escultores etc. Não havia uma estética armorial, ou seja, uma fórmula para o poema, a música, a pintura, a escultura etc. O que havia era uma arte — um tema e uma forma — comprometida com o Nordeste. No caso do poema, o tema, genericamente, seria a região, e a forma, também genericamente, a do Romanceiro Popular. Talvez eu não tenha seguido em outras direções, mas continuado a minha direção. Rigorosamente, nunca me afastei nem do tema nem da forma armorial, apesar de ter utilizado, adaptado e inventado outras formas. Quando passei a me interessar, além do Nordeste, pelo Brasil e pela América, apenas dilatei as fronteiras do meu canto. Se acreditei no Movimento, de início, por que desacreditaria nele hoje? Acredito que o Armorial também possa funcionar como uma espécie de resistência cultural do Brasil.

FOTOS: ARQUIVO DP

Da esquerda para a direita, Raimundo Carrero, Zoca Madureira e Marcus Accioly


O Movimento Armorial expandiu-se do teatro até as experiências de design

As várias faces de um movimento

FOTO: DIVULGAÇÃO

Tatiana Resende

Dança: O Grupo Grial foi fundado em 1997 pela bailarina Maria Paula Costa Rego. Ela conheceu Ariano Suassuna quando ainda tinha 15 anos e, desde então, apaixonou-se pelas raízes nordestinas exaltadas pelo mestre. “Grial é como se chama o Santo Graal no dialeto de um povoado que fica entre o sul da Espanha e Portugal. Nossas principais influências são o cavalomarinho, o maracatu rural e a literatura de cordel”, explica. Seus principais trabalhos são As Visagens de Quaderna ao Sol do Reino Encantado e Auto do Estudante que se Rendeu ao Diabo. Música: A Orquestra Armorial de Câmara surgiu antes do Movimento. O maestro Cussy de Almeida conta que pediu uma sugestão a Ariano Suassuna, que batizou a orquestra com a palavra até então desconhecida. Para Cussy, não existe uma música armorial, pois não há nenhum elemento que a diferencie da nordestina. “Grande parte do repertório da Orquestra Armorial, por exemplo, é formada por músicas nordestinas da década de 50”, completa. Desde que deixou de ser estatal, a Orquestra não é mais permanente, e os 25 músicos só se reúnem quando há concertos marcados. Depois da Orquestra, surgiu o Quinteto Armorial, que teve entre seus integrantes Antônio Carlos Nóbrega. Com o fim do grupo, Nóbrega foi

para São Paulo, onde, desde 1992, mantém o Teatro Brincante. “Eu queria um espaço com total liberdade para criar peças que colocassem a cultura popular num local mais visível”, diz. O artista está apresentando O Lunário Perpétuo, que, como ele mesmo define, “é o mesmo espetáculo de sempre, sendo diferente”. Apesar do trabalho no teatro, Nóbrega se considera um músico que dança e representa. Ele também é responsável pelo surgimento, em São Paulo, da orquestra de percussão Zabumbau, formada por 18 jovens de várias regiões do País. Artes plásticas: Gilvan Samico estava na Europa, em outubro de 1970, quando o Movimento Armorial foi oficializado, mas é considerado um de seus fundadores. Foi Ariano Suassuna quem despertou no gravador o gosto pelas raízes populares nordestinas. “Ele me sugeriu procurar inspiração onde nem me passava pela cabeça”, lembra. Dantas Suassuna, filho de Ariano, acabou tendo uma formação natural, já que, desde os 12 anos, acompanha as reuniões com os artistas na sua própria casa. Ele faz parte da geração que consolidou as manifestações da estética armorial nas artes plásticas. Sobrinho de Ariano Suassuna, Romero de Andrade Lima faz parte dessa mesma geração, participando do Movimento desde a adolescência. Romero

Cena de espetáculo do Grupo Grial, fundado pela bailarina Maria Paula Costa Rego

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Cabeça de mulher, do pintor Dantas Suassuna

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armoriais se tornaram mais claras na obra dos dois. Em 1992, Maia fez uma profunda pesquisa para o álbum Uma Iniciação à Heráldica das Marcas de Ferro de Gado, ilustrado com as marcas de todos os 184 municípios do Ceará. Dos seus sete livros, ele considera que cinco são armoriais, entre os quais se destacam Timbre, com uma temática ligada a figuras populares como o repentista, e o próximo lançamento, intitulado Esfera Armilar, sobre os estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco. “Minha inspiração mais forte é a literatura de cordel, que considero o centro de gravidade do Movimento”, comenta Maia. Em 2000, seus versos e as pinturas de Socorro Torquato resultaram no livro Estandarte das Tribos de Israel, que virou exposição já vista no Recife, Natal, Fortaleza e que segue para São Paulo até o final do ano. Em 2003, as pinturas em cerâmica poderão ser vistas em Paris, na Maison de la Amerique Latine. “Adoro estandartes, brasões, bandeiras. Os símbolos, as insígnias, como as marcas de gado com as quais Ariano fez o alfabeto armorial, sempre estiveram presentes na História do homem”, afirma a pintora. Ela lembra exatamente como foi conquistada pelos ideais do Movimento: “Iluminei-me quando estava lendo A Pedra do Reino e Quaderna disse que não precisamos buscar nada lá fora, temos que olhar nossa própria cultura”. IMAGEM: REPROGUÇÃO

conta que os quadros medievais presentes na casa do tio foram suas primeiras influências, mas a admiração pelo Nordeste é sua maior inspiração. Romero também faz figurinos e se prepara para dirigir sua 14ª peça armorial. Essas atividades paralelas começaram, em 1989, com As Conchambranças de Quaderna, espetáculo que Ariano concebeu para o grupo Cooperarteatro. Mas uma de suas criações preferidas é o Reino do Meio-Dia, na qual o cenário virava a roupa do elenco. Atualmente, Romero dirige O Presépio da Paz, encenada em São Paulo pelo Grupo Circo Branco. O artista também se prepara para fazer sua primeira coleção de jóias, que deve ficar pronta até o final do ano. “Quero experimentar todas as formas de expressão de arte, dentro dos ideais armoriais”. Design: Como os designers gostam de ressaltar, eles não são artistas e estão sujeitos às necessidades do mercado e ao desejo dos clientes. Talvez, por isso, a influência do Movimento Armorial nessa área só apareça em trabalhos isolados. Dinara Moura, por exemplo, criou uma coleção de postais armoriais baseada na obra de Gilvan Samico. “Observei as cores, formas, traços, texturas e fiz uma mistura diferente para criar uma nova peça”, conta. Já Nalba Diniz foi procurar inspiração para o trabalho de conclusão de curso de desing nas camisetas de Romero de Andrade Lima, que as faz em quatro tipos diferentes todos os carnavais e, sob encomenda, para eventos. “Notei que ele usa um traço rudimentar em figuras bidimensionais, sempre nas cores primárias vermelho, azul e amarelo, além do preto para os contornos”, afirma. A segunda etapa da pesquisa consiste em descobrir como o público recebe essas criações, que simbolismo ele procura. “As pessoas podem não associar as camisetas ao Movimento, mas reconhecem que elas são algo genuinamente nordestino”. Outras influências: O poeta cearense Virgílio Maia e sua esposa, a pintora Socorro Torquato, acompanham o Movimento Armorial desde os anos 70, mas foi a partir da década de 90 que as influências


Sob a lente da antropologia

FOTO: DIVULGAÇÃO

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Editora Palas Athena acaba de lançar. Ariano Suassuna, o Cabreiro Tresmalhado, de Maria Aparecida Lopes Nogueira. O livro aborda a vida e as idéias de Ariano Suassuna sob o ponto de vista antropológico, destacando nelas três dimensões ou arquétipos: O Rei, o Palhaço e o Profeta. “São dimensões que atuam de forma dinâmica, ora predominando uma, ora outra”, explica a autora. Para ela, o Rei dá visibilidade às opções políticas e éticas da obra e da vida (entrelaçadas) do escritor paraibano, sendo também uma evocação mágica do pai assassinado quando o autor era menino. Ariano teria o delírio de ver a possibilidade da volta do pai, também sob a forma de Dom Sebastião, o encantado que um dia vai regressar. O Palhaço é o contador de histórias, uma virtude de Ariano não só como escritor, mas também como professor e até mesmo como conversador. Esse arquétipo também atua como um transmissor da sabedoria adquirida na tradição, dando-lhe novos significados. Um exemplo claro disso são as “iluminogravuras”, uma invenção de Ariano que une impressão industrial com pintura e palavras feitas à mão. Finalmente, o Profeta encarna a religiosidade arraigada do autor e sua visão barroca do universo. Visão que provoca o diálogo ou tensão criativa entre

erudito e popular, religioso e profano, universal e particular. O título do livro de Maria Aparecida é uma alusão ao carinho que Ariano tem pelas cabras. O termo “tresmalhado” significa fugido ou desgarrado, de acordo com a autora, um traço da personalidade de Ariano. “Ele não se enquadra nos tempos atuais. Algumas vezes, volta para o passado em busca das tradições. Em outros momentos, está na vanguarda”, afirma. Na introdução da obra, Ariano diz que o livro é capaz de mostrar a essência do sertão que, para ele, é o resumo do Brasil e do mundo, com todas as suas belezas, conflitos e contradições. “Livros como este realentam meu sonho e minha esperança”, conclui o escritor. Ariano Suassuna, o Cabreiro Tresmalhado Autora: Maria Aparecida Lopes Nogueira Editora: Palas Athena Número de páginas: 296 Preço: R$30,00 Onde comprar: Livrarias Cultura, Loyola, Unesp, FNAC (21) 2431.9292 Continente Multicultural 25


Sandro Lobo

Iluminogravura de Ariano Suassuna

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escolha de Ariano Suassuna como primeiro nome a receber o primeiro Prêmio Nacional Jorge Amado de Literatura e Arte justifica o propósito da Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, que é dar destaque a talentos consagrados e, com isto, incentivar os novos. O contemplado recebe a soma de R$ 100 mil, maior premiação na área cultural brasileira, ao lado do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura, do Rio Grande do Sul. A solenidade de entrega acontece no dia 10 deste mês, data em que Jorge Amado completaria 90 anos. Assim como ocorre com o escritor baiano, o conjunto da obra do autor de O Auto da Compadecida influenciou diversas linguagens, e isso foi decisivo para 26 Continente Multicultural

que o júri optasse por seu nome, dentre os nove que foram pré-selecionados pela comissão de seleção. Ao todo, foram 48 candidatos, apresentados por instituições de 11 estados. Presidido pelo Secretário de Cultura e Turismo da Bahia, Paulo Gaudenzi, o júri contou com quatro literatos de renome nacional e internacional, como Affonso Romano de Sant’Anna (jurado de prêmios importantes como o Camões, em Portugal, e o Reina Sofía, em Espanha), Deonísio da Silva (premiado escritor, roteirista de cinema e ensaísta), José Luís Jobim (doutor em teoria literária com pós-doutorado na Stanford University) e a pesquisadora do CNPq Regina Zilbermann (doutora em romanística pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha). A relação final de nomes concorrentes também não ficou para trás em matéria de respeitabilidade. No páreo com Suassuna, estiveram os escritores Fernando Sabino, João Ubaldo Ribeiro, Dalton Trevisan, Carlos Herculano Lopes, Marcus Accioly, Hilda Hilst, Hélio Pólvora e Gilberto Mendonça Teles (este teve mais indicações, embora isto não tenha influenciado muito na hora da escolha final). Ariano Suassuna foi indicado pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, União Brasileira de Escritores – Secção Pernambuco e pela Universidade Salgado de Oliveira (Recife). A idéia de criar o prêmio surgiu de uma conversa entre o ex-presidente do Congresso Nacional, Antonio Carlos Magalhães, e o ex-governador da Bahia, César Borges, ainda durante o clima de comoção por causa da morte de Amado, no ano passado. “Era uma forma de perpetuar uma homenagem a ele, com um prêmio de excelência que contemplasse não só a literatura, mas se abrisse a todas as linguagens, já que sua obra repercutiu em todas elas”, explica Luiz Carlos Azevedo, um dos coordenadores do prêmio. Durante a divulgação do nome vencedor, Affonso Romano traçou um paralelo entre as trajetórias de Jorge Amado e Ariano Suassuna, no que diz respeito à maneira como ambos redimensionaram o papel das culturas locais, numa espécie de “contramão da globalização”. Em 2003, a dramaturgia será a linguagem privilegiada pelo prêmio. As instituições interessadas podem obter mais informações através do endereço eletrônico www.sct.ba.gov.br. Sandro Lobo é jornalista. Colaborou Tatiana Resende

IMAGEM: REPROGUÇÃO

Um Jorge Amado para Suassuna


LITERATURA

Nova edição de Sonetos e antologia em prosa chegam às livrarias, demonstrando que para Florbela Espanca toda palavra é veículo para a auto-expressão Luciano Trigo

A prosa poética de Florbela Espanca

FOTO: ARTE EM IMAGEM DE REPRODUÇÃO

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o conto “À margem do soneto”, uma poetisa recebe em casa um visitante, a quem mostra um poema recém-concluído. Inspirado pelos versos, ele lhe conta um caso triste que testemunhou, lendo em seguida uma carta relacionada ao episódio. Estabelecese, mais que um diálogo entre os dois personagens, um diálogo entre as duas narrativas — os versos e a carta. Entre elas, naturalmente, a matéria-prima chamada vida. Pelo jogo de espelhos que cria entre a ficção e a realidade, entre os fatos e a verdade poética — com implicações tão evidentes na vida da autora — “À margem do soneto” é um dos textos mais impressionantes da antologia de contos, cartas e trechos do diário de Florbela Espanca intitulada Afinado Desconcerto (Iluminuras), organizada e apresentada pela ensaísta Maria Lúcia Dal Farra. O volume chega às livrarias ao mesmo tempo que a 12ª edição dos Sonetos (Bertrand Brasil), que inclui o estudo já clássico de José Régio sobre Florbela, considerada a maior expressão do feminino na literatura portuguesa.

Fazem parte de Afinado Desconcerto mais sete contos, extraídos das seguintes coletâneas: As Máscaras do Destino, escrita em 1917 e inspirada na tristeza pela perda do irmão Apeles, desaparecido nas águas do Tejo; e O Dominó Preto, organizada por Florbela em 1927, época em que ela se dedicava a traduções de romances franceses, em razão de dificuldades financeiras. Embora seja cultuada sobretudo pelos sonetos, no caso de Florbela a divisão em gêneros (poesia e contos) e subgêneros (contos, cartas — ao pai, aos pretendentes, aos amigos — e diário) é quase dispensável, já que nela toda palavra é veículo para a auto-expressão e a auto-análise: a variedade de assuntos — digressões sobre a morte, questões familiares, dúvidas sobre o valor de sua produção ou aspectos práticos de sua publicação — não muda o fato de que, nas manifestações epistolares ou poéticas, estão presentes as mesmas qualidades... e as mesmas fraquezas, que podem ser sintetizadas numa visão demasiado enfeitada e fantasiosa da existência.

Florbela foi uma poeta em constante luta para se libertar do claustro existencial

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FOTO: ARTE EM IMAGEM DE REPRODUÇÃO

Na poeta portuguesa tudo é autobiográfico e intimista, tudo é expressão de estados de alma, numa palavra, tudo é poesia

Em Florbela, tudo é autobiográfico e intimista, tudo é expressão de estados de alma. Numa palavra, tudo é poesia. Florbela escreveu ainda outros três contos (“A Oferta do Destino”, “Amor de Sacrifício” e “Alma de Mulher”), que integram o caderno Trocando Olhares, iniciado em 1915, e que inclui ainda 144 poesias e uma dedicatória em verso. Isso sem citar os contos “Mamã!”, provavelmente escrito em 1907 (antes de a autora completar 13 anos), sua primeira experiência em prosa, e “A Carta da Herdade”, publicado na revista Portugal Feminino e incluído no volume. Naturalmente, para os estudiosos, as cartas oferecem importante subsídio biográfico — especialmente aquelas endereçadas à “amiga de pena” Júlia Alves, que Florbela não chegou a conhecer, mas a quem fez íntimas confissões. Do total de cartas, Dal Farra escolheu 14 familiares e 18 sobre temas literários ou culturais. Além disso, acrescentou às notas do “Diário do Último Ano” mais 37 cartas do período que antecedeu a morte da escritora. O título Afinado Desconcerto foi extraído de um texto de Florbela que cita um concerto de “gritos de revolta, dulcíssimos gemidos, grotescas gargalhadas de escárnio”, forma que a poetisa encontrou para reagir às calúnias que lhe dirigia a sociedade alentejana. Como se sabe, Florbela teve uma vida conturbada, marcada pela rebeldia e pelo tumulto interior. Nasceu em 1894, de uma relação extraconjugal do pai — o que está na raiz da sua permanente crise de identidade. Três casamentos, dois divórcios, duas paixões clandestinas e duas tentativas de suicídio foram motivos mais que suficientes de escândalo na conservadora sociedade portuguesa da época. A transgressão na vida pessoal teve seu preço: Florbela foi vítima de uma espécie de assassinato cultural. Como nasceu antes de seu tempo, para ela tudo foi difícil: lutou para estudar, para se casar, para se divorciar, para conseguir ver os seus livros publicados, para se afirmar na sociedade, para ser compreendida. A um tempo orgulhosa e frágil, corajosa e extremamente sensível, viveu uma vida feita de contradições, como contraditória era a sua própria personalidade. Em carta a Guido Battelli, ela afirma: “O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou lon-


Em Florbela, poesia e vida se confundem: a poesia é um permanente esforço de decifrar-se, fazendo da própria existência uma obra de arte

ge de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade. Sei lá de quê!” Florbela teve de enfrentar um mundo dominado por homens, que mostrava muito pouca tolerância para com as mulheres que se destacavam nas artes ou na literatura. Revoltada com a condição secundária imposta à mulher, Florbela sentia-se presa no casamento e achava que nenhum homem merecia o sacrifício da sua liberdade. A moral tradicional era incompatível com a sua maneira de viver e de pensar, antecipadora da emancipação feminina. Florbela encarna todas as contradições desse processo de transição: “O casamento é brutal, como a posse é sempre brutal...”, escreve numa carta. As coerções sociais cobraram um preço alto: o desequilíbrio emocional (ela própria dizia ter os “nervos destrambelhados”), as internações e por fim o gesto transgressor radical do suicídio — tema de vários textos seus, sobretudo depois da morte do irmão, perda que ganha uma leitura mítica no texto “O Aviador”. Ela entendia o suicídio não somente como um ato de coragem, mas também como uma forma de dispersão no cósmico (“Ah! Poder ser apenas florescência/ De astros em puras noites deslumbradas!”), e seu próprio fim foi antecipado em alguns versos, como: “Terra, quero dormir, dá-me pousada!” Florbela não contou com a simpatia de seus contemporâneos. O erotismo inovador de seus textos, seu temperamento forte, até mesmo sua maneira moderna de se vestir, mas sobretudo os seus divórcios chocaram uma sociedade reacionária e mesquinha, que não reconhecia qualquer autonomia à mulher. Resultado: ela foi acusada de adúltera, indigna, e sem escrúpulos, por sua “conduta imoral”. A rejeição da sociedade contribuiu significativamente para aumentar o sofrimento da poetisa, que se sentia vítima de uma injustiça, apenas por se tentar libertar da condição secundária que, na época, limitava o papel das mulheres. Deste conflito deve ter

surgido, em parte, a sua tendência à evasão e seu progressivo isolamento. Em Florbela, poesia e vida se confundem: a poesia é um permanente esforço de decifrar-se, fazendo da própria existência uma obra de arte. Em meio a versos de lirismo e sensibilidade extremos, ela se autodenominou “Castelã da Tristeza”, “Flor do Sonho”, “Sóror Saudade”, “Princesa Desalento”, “Filha da Mágoa” e “Maria das Quimeras”, em quatro volumes de sonetos: Livro de Mágoas (1919), Sóror Saudade (1923), Charneca em Flor (1930) e Reliquiae (póstumo, 1931). São versos quase derramados, repetitivos nas imagens, e de um individualismo extremo, quase narcisista, e mesmo assim geniais. O mesmo ocorre com os contos: convencionais e até melodramáticos em alguns momentos, eles têm o dom de tocar o leitor pela surpresa de uma expressão ou de uma frase de grande beleza e força. Florbela é uma poeta em constante luta para se libertar do claustro — ainda que de um claustro imaginário ou simbólico. Seus poemas podem ser entendidos como o relato de uma náufraga: “náufraga da vida”, levada por um “mar de mágoa”: “E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,/ A mesma angústia funda, sem remédio,/ Andando atrás de mim, sem me largar!”. Pessimista e melancólica, ela entende a vida como a arte do desencontro, embora alimente sempre a esperança da chegada do prince charmant salvador — numa espécie de versão intimista e feminina do mito sebastianista, tão caro aos portugueses. O deleite das sensações carnais é sempre esmagado pelo peso da desilusão, como o sonho é esmagado pela realidade. Florbela era uma mulher triste. Na sua prosa, como na sua poesia, ela só conseguiu fixar os desgostos e desventuras. Escreveu sobre a tragédia da vida porque teve uma vida trágica. Viveu e morreu procurando o amor, sem sucesso. Hoje, é uma das poetisas mais conhecidas e amadas da literatura portuguesa.

Luciano Trigo é jornalista

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MARCO ZERO

Os estados nordestinos precisam vencer as “barreiras invisíveis” que parecem existir entre eles

Os potiguares Dois mosqueteiros lutam pela integração cultural do Nordeste

me de ter publicado vários artigos de Anchieta Fernandes, que, depois, conheci pessoalmente. É bom saber que, especialmente nas áreas de Literatura, no movimento editorial e no jornalismo cultural, as relações intelectuais entre Pernambuco e Rio Grande do Norte voltam a intensificar-se, não só através da ação incansável de Pedro Vicente, como também do trabalho do sociólogo, jornalista e tradutor Nelson Patriota, editor do jornal O Galo, periódico cultural do Departamento Estadual de Imprensa, do governo norte-rio-grandense. Nos anos de 1998, 2000 e 2001, em que dirigiu a Editora Universitária da UFRN, Pedro Vicente editou 154 títulos (98 livros e 56 números de revistas). Tendo em vista as dificuldades por que vêm passando as editoras universitárias nordestinas, trata-se de uma produção bastante significativa, que lhe rendeu,

Alberto da Cunha Melo 30 Continente Multicultural

FOTO: RENATO DO ANJOS / FOLHA IMAGEM

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primeira notícia que tive sobre a cultura norterio-grandense veio através de meu pai, em minha adolescência. Ele sempre me falava de três escritores potiguares de sua admiração, duas mulheres e um homem: as poetisas Auta de Souza e Palmira Wanderley, e o escritor Luís da Câmara Cascudo. Os outros contatos com os intelectuais do Rio Grande do Norte, eu os devo ao escritor e sociólogo pernambucano, radicado em Natal, Pedro Vicente Costa Sobrinho, a quem já chamei diversas vezes de pontífice, pois não conheço nordestino que mais pontes de intercâmbio cultural tenha construído entre os estados da Região e entre esta e o resto do país, em especial o SulSudeste, sobre o qual tem uma posição realista, sem rancores ou preconceitos ingênuos. Na década de 70, quando eu era uma espécie de co-editor literário do Jornal do Commercio (o titular era o poeta Audálio Alves), Pedro Vicente procuroume, como dirigente da Fundação José Augusto, de Natal, e sugeriu-me publicar matérias do pessoal do Rio Grande do Norte, em especial dos jovens poetas que lideravam o Movimento do Poema Processo, Anchieta Fernandes e Dailor Varela entre eles. Lembro-


segundo ele próprio, “muitos cabelos brancos e estresse”. Mas, como já dei a entender, o esforço de Pedro Vicente não se limita ao plano editorial daquela universidade. Ele vem lutando por uma política editorial moderna para as universidades nordestinas e outros órgãos oficiais, a fim de que façam a distinção necessária entre gráficas e editoras, aceitando a competi-ção no mercado regional e evitando o favoritismo político, para que prevaleça “a valorização do bom autor”. No próximo mês de setembro, Pedro Vicente, que não é um agente cultural duplo, mas múltiplo, depois de comandar duas feiras de livros em Natal (1998 e 2000), estará à frente da 1ª Bienal Nacional do Livro do Rio Grande do Norte, e, como sempre, tentará, mais uma vez, mobilizar as editoras universitárias do Nordeste para uma ação comum que vise, em primeiro lugar, ao mercado regional, e que ultrapasse a mera participação no PIDL (Programa Interuniversitário de Distribuição do Livro). Segundo ele, a falta de profissionalismo vem impossibilitando a modernização das editoras universitárias e, por isso, nem o PIDL funciona a contento. O editor lembra que, segundo o Censo de 2000, a população nordestina é de 72 milhões de pessoas, quase o “equivalente ao somatório dos habitantes das regiões Norte, Sul e Centro-Oeste”, e, no entanto, a nossa “participação no Mercado Editorial Livreiro é de 16%”, enquanto um único estado, o Rio

Grande do Sul, com uma população de 10 milhões de habitantes, participa dele com 8%. Conforme Pedro, o Nordeste não deve se lamentar, mas partir para um mutirão de editores, autores e livreiros nordestinos que defina uma “política para o livro”. A Bienal, que será realizada em setembro, poderá constituir uma boa oportunidade para iniciar esse trabalho de união e de pressão sobre os poderes públicos que, no Brasil, só querem investir em eventos que rendam votos. Mas, é hora de falar do excepcional trabalho de Nelson Patriota no jornal O Galo. Sua política editorial é a da integração na Região Nordeste, sem exclusão de outras regiões. Na comunicação que apresentou no Congresso Nacional de Escritores, promovido pela UBE-PE, em abril deste ano, ele faz um amplo levantamento do jornalismo cultural no país, citando as três principais revistas, Continente Multicultural, Bravo! e Cult, além de alguns jornais, como o Correio das Artes, suplemento do jornal A União, da Paraíba, “o mais antigo suplemento cultural do país”. Lembra ainda que parecem existir “barreiras invisíveis aos olhos” entre os estados nordestinos, embora eles tenham tudo a ganhar com uma maior integração e valorização de seus talentos. Nelson não se conforma com a nossa falta de um “parque editorial próspero”, e cita o exemplo do Rio Grande do Sul, que edita e distribui pelo país inteiro os seus autores. Tanto Pedro Vicente da Costa Sobrinho quanto Nelson Patriota são produtores culturais que clamam contra o atraso regional, mas reconhecem que é aqui mesmo, no Nordeste, na insensibilidade de empresários e homens públicos, que se explicam os autores silenciados e os livros amarelecendo nas gavetas.

Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo

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Aboio para o poeta camponês Gilmar de Carvalho

FOTOS: ROBSON MELO

MEMÓRIA

Patativa do Assaré, morto aos 93 anos, deixou uma obra que chegou a ser estudada na Sorbonne, em Paris

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ssaré significa atalho. Passagem das boiadas para o Piauí, a meio caminho entre o quase desértico Inhamuns e o oásis que é o Cariri. Gado que marcou sua economia e impregnou seu imaginário. Às margens do rio dos Bastiões foi fundada essa vila. A 18 km dali, na localidade Serra de Santana, nasceu Antonio Gonçalves da Silva, a 5 de março de 1909, filho de pequenos proprietários rurais. Aos quatro anos perdeu um olho, aos oito perdeu o pai e, a partir daí, passou a trabalhar as terras que herdou com os irmãos. A mãe contava histórias e cantava uma Asa Branca, da tradição popular. A leitura coletiva do primeiro cordel lhe deu a certeza de que seria poeta. Teve apenas quatro meses de escola. Alfabetizado, dedicou-se, com voracidade, às leituras: Camões, os poetas românticos brasileiros e o Tratado de Versificação (de Bilac e Passos), que lhe deu as normas do fazer poético. Aos 16 anos, vendeu uma ovelha para comprar uma viola e passou a se apresentar na Serra e redondezas. Todos queriam ouvir o menino violeiro. Viajou para Belém, em 1928, e lá ganhou o epíteto de Patativa, pelo canto mavioso. Voltou e, durante vinte e cinco anos, trabalhou a terra e compôs sua obra. Na roça, afastava-se de todos para criar poemas que, à noite, passava para o papel. Era convidado para apresentações ao som da viola. Fez fama. Seus poemas passaram a ser transmitidos, oralmente, pelas brenhas do Sertão. Às segundas, ia à feira do Crato vender sua produção, encontrar os amigos e tomar uma boa cachaça. Passou a recitar seus poemas na Rádio Araripe. José Arraes de Alencar o ouviu e teve a idéia de publicá-lo. Nasceu Inspiração Nordestina, seu livro de estréia, em 1956. Patativa continuou seu trabalho no campo, que só abandonaria aos 70 anos, por insistência de dona Belinha, mãe de seus nove filhos, com quem casara em 1936. Comprou uma casa na praça da matriz de Assaré, para onde se mudaram.

Curiosa essa relação de Patativa com a terra. Ela revigorou sua poesia, que brota do chão, funde natureza e cultura, voz ancestral e uma preocupação política. Em 1964, Luiz Gonzaga ouviu um violeiro cantar a Triste Partida e gravou esse manifesto ético e estético do Nordeste. Era o canto amplificado, por meio do disco. Patativa continuou trabalhando a terra, vivendo os mesmos dramas de todos os camponeses. Com o golpe de 1964, teve sua prisão decretada e colaborou com jornais alternativos, contrários ao autoritarismo. Veio outro livro: Cante lá que eu canto cá (1978), que lhe deu uma amplitude nacional. Em 1979, participou da luta pela Anistia. Foi homenageado pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e gravou o primeiro disco. Conheceu Fagner e fizeram de Vaca Estrela e Boi Fubá outra referência. Participou das “Diretas Já”, em 1984. Publicou outros livros e continuou morando na sua Assaré, acolhendo em casa todos aqueles que queriam conhecê-lo. É doutor honoris causa de quatro Universidades, premiado nacionalmente (pelo Ministério da Cultura). Tem comendas (Medalha da Abolição) e, aos 90 anos, ganhou um Memorial em sua cidade, que faz um apanhado de sua trajetória de trabalho e vida. Patativa do Assaré fez da reforma agrária um de seus temas recorrentes. Canta a tradição, antenado com a contemporaneidade: faz uma poesia comprometida com um mundo mais justo, e não um manifesto militante. Poeta roceiro, a partir de sua aldeia cantou o mundo. Chegou à Sorbonne, onde foi estudado por Raymond Cantel, é captado pelos radinhos de pilha e lido nas bibliotecas. Objeto de teses acadêmicas e de matérias na mídia, tornouse, para sempre, uma referência na poesia nacional, com as mãos calejadas e a voz rascante, que ecoa como um aboio sertão adentro. Como diria Drummond, com todo “o sentimento do mundo”.

Ao lado, Memorial Patativa do Assaré, em Serra de Santana, terra natal do poeta

Gilmar de Carvalho é escritor

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Cantiga de pé-quebrado ao poeta passarinho Eleuda Carvalho

FOTOS: ROBSON MELO

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os 93 anos que Antônio Gonçalves da Silva bem viveu, quase todos foram na forma alada de Patativa do Assaré, poeta do povo, a quem cantou por rimas exatas e bem medidas que, se aboiavam à beleza áspera do Sertão nosso nordestino e ao viver errático de socorrer-se do céu, também glosaram sobre a justiça aqui mesmo na terra, anunciando (qual Federico García, de Espanha) a possível revolução. Metáfora aos vivos: o pinto dentro do ovo bate o bico pra poder se libertar. Nem todos os discursos articuladíssimos dos teóricos e acadêmicos e intelectuais penetraram tão fundo mentes e corações. Patativa do Assaré já tinha cabelos brancos e pernas trôpegas quando o vi a primeira vez, em corpo pouco e alta voz. Muito antes, na sala de reboco da casa do meu avô, em ondas que vinham de um rádio capelinha posto em semi-altar, numa demonstração óbvia de grande consideração, ouvia e imaginava cenas ao lamento chorado de Gonzaga, que cantava a sina de uma família tangida pro Sul, sob o açoite da seca. E eu chorava, a menina da canção largava o gato, o pai abrindo a porteira, vendia o burro, o jegue e o cavalo. Era como se aquela e eu fôssemos uma mesma menina, e por mim e por ela me danava a chorar. E nem sabia de quem eram aqueles versos pungentes que pinicavam a minha infância. Theatro José de Alencar, idos de março ou abril, 1979. Um movimento chamado Massafeira Livre, reunião de músicos-artistas


plásticos-atores-artesãos-descolados em três dias que eram pra ficar na história de Fortaleza. No palco, o psicodélico Perfume Azul, a ciranda de Ângela Linhares, Teti, Rodger Rogério, Ednardo, Pessoal do Ceará. Entre cabeleiras e guitarras, palavras de ordem e desacato, o homem velho, enxuto de carnes, chapéu de massa e bengala, óculos ray-ban e camisa volta-aomundo. Suas palavras brotavam da experiência e foram polidas pela arte dos bardos, ecos de Camões e Castro Alves, cantigas de amigo, de amor, de maldizer, épica de um Homero matuto e nem por isto menor, talvez mais altaneiro, creio. Na verdura dos 20 anos, aquele canto tremido mas firme, sincero, buliu-me idades mais tenras. E voltei, no galope do pensamento, ao aconchego de taipa e couro dos meus ancestrais. Então, foi aquela a primeira vez que o vi. Fazia Letras, na época, mas a poesia do cordel e do improviso mal coubera nos currículos escolares. Patativa do Assaré, embora estudado na França, era para nós uma sonora novidade. Contudo, a força da sua arte, a musicalidade de seus versos, tantas vezes indevidamente apropriados, abrindo caminhos, transpunham porteiras, Ispinho e Fulô cantados aqui, ali, acolá. Foi quando se deu a segunda vez. A Praça do Ferreira era uma praça de guerra, horríveis blocos de cimento armado impedindo a visão, o vento e a paisagem. E a passagem do povo. Porém, era por ali mesmo que a massa se juntava, cada dia era maior, um clamor pela Anistia, o último dos generais ainda firme nas rédeas do poder, havia lá longe um muro em Berlim, a União Soviética era um sonho por trás de cortinas de ferro. Pequeno e pouco, Patativa abria asas sobre o povo na praça, sob o azul violento do céu, seu dotô, me dê licença. E poetava. Passou-se. De ouvinte virei entrevistadora, de cara com o poeta, falando alto ao seu ouvido mouco. Era com o coração que ele escutava. E de cor, entre a prosa da palestra, ele ia tecendo manhãs em sonetos, dava som à voz calada, há tanto tempo, de Antônio Conselheiro em Canudos, do padre Henrique assassinado no Recife, a heróis anônimos do povo de que fazia parte e de quem nunca se apartou, vaqueiros, agricultores, romeiros, parceiros sem

terra nem gado, menino, homem e mulher. A natureza, também, fonte inesgotável. Antônio nasceu em 5 de março de 1909, no alto pedregoso e reluzente da Serra de Santana, um tabuleiro raso nos sertões do Cariri chamado Assaré. Ainda rapazola, bota a viola no ombro e vai seduzir cearenses desgarrados pelo Belém do Pará. Dessa viagem em diante, vai ostentar o nome que lhe dará fama e sucesso, e dinheiro nenhum: jamais o poeta fez comércio de sua musa, como costumava dizer. Cansou-se logo da errância dos cantadores, por amor de Belinha, sua mulher e seus cuidados — a penca de filhos a criar. Então, como fizeram seu pai, seu avô, seu bisavô, armou-se de enxada e paciência e do raso enfezado da terra tirou, por 70 longos anos (dez vezes mais do que Jacó serviu a Labão, por amor de Rachel, serrana bela), o de comer de todo dia. Enquanto riscava sulcos na terra, a mente também iria arando. Um verso por vez, escandido na cachola, fixado, raiz pegada, a outro que se lhe seguia, até que todo o pensamento estivesse alinhado em versos onde não faltaria uma sílaba sequer. De estudo, mesmo, Antônio fruiu quatro meses, o que bastou para decifrar o manual do aluno sertanejo, a cartilha de Felisberto de Carvalho que tantas gentes desasnou. A outra escola entrou pelo ouvido, não saiu pelo outro: os cordéis cantados nas feiras, os clássicos lidos nos gabinetes de doutores que ele freqüentou, bom convidado. E aquilo que não se aprende no colégio, nem vem de herança. Talento, sim. Inspiração e suor. Memória privilegiada que derramava sobre o interlocutor o milheiro e mais de versos de sua invenção. E quando, já bem mais velho agora, a Onça Caetana deu o bote no seu pescoço, os rins batendo biela, o pulmão retinto de tabaco (vício que nunca largou, de vez), a perna troncha de um acidente de três décadas passadas cobrando pedágio, o olho que vinha azulando de todo, ainda essa mente que cria, essa memória que guarda, essa boca que repete. Segunda-feira, 8 de julho, o dia ia indo embora, o poeta fez um pedido derradeiro: “Morte, me leve sem dor”. E a Moça Caetana aquiesceu.

Patativa, alquebrado: durante 70 anos lavrou a terra

Eleuda Carvalho é jornalista

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COMUNICAÇÃO

A foto do altar da Igreja de São Bento, em Olinda, representando o próprio altar: virtualização da virtualização

A cidade em fragmentos

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a Igreja de São Bento, em Olinda, realizam-se missas todos os dias, como em tantas outras igrejas católicas pelo Brasil afora. Há uma razão, no entanto, que nos últimos meses a distinguiu de todas as outras: durante semanas, seu altar parecia estar bem ali, na frente de todos, mas as nervuras e dobras dos entalhes só apareciam sob a forma de uma enorme fotografia que reproduzia o altar em tamanho natural. A estrutura barroca — construída em madeira de cedro, talhada em dourado e medindo mais de 13 m de altura — estava em Nova Iorque, na rotunda do museu Guggenheim, como principal atração de Brazil: Body and Soul, maior exibição de arte brasileira já realizada em terra estrangeira. Em Olinda, a vida continua. Mas a adaptação fotográfica do altar de São Bento não deixa de causar estranheza, e suscitar associações. Se o altar já era a virtualização do caminho ao divino, o que representa a foto, então? Virtualização da virtualização? Quando a representação e a experiência se confundem, eventos como esse são capazes de nos dizer muito da cidade

FOTOS: ELPÍDIO SUASSUNA

A forma de percepção das cidades é, hoje, moldada pela tensão entre representação e realidade


que construímos e habitamos, cotidianamente — como também da cidade que nos habita e nos constrói, a todo tempo. O affair do altar de São Bento é exemplar do que está acontecendo na dinâmica das cidades: o curto-circuito entre a materialidade e suas representações. Em A Transformação Midiática dos Modos de Significação, Monclar Valverde defende que, “num sentido geral, podemos dizer que a cultura, entendida como a dimensão simbólica da vida humana, é a condição social de possibilidade, quer do que chamamos a experiência ‘material’ dos indivíduos, quer de suas concepções ‘ideais’. E, mesmo no que se refere ao que denominamos ‘mundo sensível’, é necessário admitir que a tradição coletiva opera como mediação simbólica entre ‘sujeito’ e ‘objeto’, de modo a informar ‘a percepção subjetiva através de uma concepção histórica’. Uma caracterização como esta ressalta o papel e a importância da comunicação para a vida social. Não só no que diz respeito à recepção da cultura instituída, mas no exercício mesmo das relações atuais, onde novos sentidos e novas condições podem vir a gerar novas instituições.” Se a experiência está vinculada à dimensão “material” (a cidade enquanto tal, com suas ruas, seus problemas, suas festas), a representação está ligada à dimensão “ideal” (percepção subjetiva, incluindo aí as diversas expressões midiáticas). Por mais diferentes que sejam os vínculos materiais no contemporâneo, a experiência não deixa de existir e de ser confrontada constantemente com as representações da cidade. Algo próximo da relação entre o virtual e o atual das tecnologias digitais: o virtual (assim como as representações) é algo no estado de potência, algo que pode de fato ser atualizado na minha experiência direta do espaço urbano. O grande impasse do contemporâneo parece ser a crescente inadequação entre as representações e as experiências das cidades. Como o sujeito acumula cada vez mais representações (através do dilúvio informacional), e como nossas experiências são cada vez mais limitadas e orientadas pelas próprias representações, crescem as incompatibilidades entre a vivência direta e as construções midiáticas da cidade. Por outro lado, explodem representações fragmentárias, tribais, individuais, cujo objetivo é o de tentar adequar o real das experiências de cada um às próprias representações que são produzidas. Assim, a despeito das representações “oficiais”, aparecem outras ruínas representacionais (em sites, em filmes, em vídeos, em fotografias)

que pretendem, cada uma, dar um fim à impossibilidade de adequar, de forma perfeita, a experiência e a representação da cidade. A cidade de Freyre – Em 1934 (ou seja, um ano após a primeira edição de Casa Grande & Senzala), Gilberto Freyre publicou o Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife. O guia teve reedições em 1942, 1961 e uma quarta edição (“atualizada e muito aumentada”) em 1968. Ilustrado com bicos-depena de Luís Jardim, algumas fotografias e uma mapa turístico encartado de Rosa Maria, o livro de Freyre abre-se com o texto “O Caráter da Cidade”, exemplar no que concerne à interface entre experiência e representação da cidade. Começa com a explicação de uma característica do Recife: “O viajante que chega ao Recife por mar, ou de trem, não é recebido por uma cidade escancarada à sua

Capela-mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife

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pouco a pouco desaparecendo): “Outra impressão, bem mais alegre, é a do viajante que chega de avião e a quem o Recife se oferece um pouco mais. Só as grandes manchas de água verde e azul dão para alegrar a vista.” Mas, insiste ele, algo se mantém inalterado apesar das transformações do espaço urbano e das mudanças tecnológicas: “A nenhum [viajante], porém, a cidade se entrega imediatamente: seu melhor encanto consiste mesmo em deixar-se conquistar aos poucos. É uma cidade que prefere namorados sentimentais a admiradores imediatos. De muito oferecido ou saliente, ela só tem o foral. Ou as torres das igrejas como a do Espírito Santo, outrora célebre pelas cores vivas que anunciavam aos recifenses navios à vista,

“Com o recato quase mourisco do Recife, cidade acanhada, escondendo-se por trás dos coqueiros; e angulosa, as igrejas magras, os sobrados estreitos, alguns, ainda hoje, com quartinhas às janelas, com gaiolas de passarinhos e até araras, junto às varandas de ferro rendilhado; com mulatas de casas-de-rapariga em terceiro ou quarto andar, que de madrugada aparecem nuas nas varandas para provocarem os seminaristas de conventos, alvoroçando os frades moços empenhados nas primeiras rezas do dia. Cidade sem saliências nem relevos que dêem na vista, toda ela num plano só, achatando-se por entre touças de bananeiras que saem dos quintais dos sobrados burgueses; por entre as mangueiras, os sapotizeiros, as jaqueiras das casas mais afastadas.” Nas edições mais recentes, já percebendo que as transformações tecnológicas alteram a percepção do urbano, Freyre relativiza o “recato” recifense para um novo tipo de viajante, aquele que não mais chega por mar ou de trem (cujo uso no Nordeste do Brasil foi

vapores a chegar: da Europa, do Sul, das Áfricas, de outras Américas.” Porto Digital – A cidade se representa, abre-se à experiência da sua própria representação. A “imagem” da cidade é uma estrutura complexa, que vai das imagens que dela são produzidas aos espaços e objetos urbanos que se prestam à representação, passando pela difusão na mídia. Uma cidade é uma experiência que se presta à representação. Um ponto de conflito, de contradição entre experiência e representação urbanas é o que se passa no Bairro do Recife. O velho Recife torna-se Porto Digital. A atração de empresas de base tecnológica misturase à escavação arqueológica e aos espetáculos culturais de rua. Os buracos servem para passar fibras óticas, redes de alta velocidade, mas fazem ressurgir rastros da ocupação holandesa e portuguesa. O Marco Zero deixa de ser praça para tornar-se um largo pátio de eventos, diante do nada modesto parque de esculturas de Francisco Brennand. Agora, do mar, o Recife não é

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FOTOS: REPRODUÇÃO / CRISTIANO MASCARO / REVISTA DO IPHAN Nº 23 / 1994

As fotografias são recortes ideais do espaço urbano, os quais passam a existir como parte da cidade

admiração, à espera dos primeiros olhos gulosos de pitoresco ou de cor. Nenhum porto de mar do Brasil se oferece menos ao turista. Quem vem do Rio ou da Bahia, cidades francas, cenográficas, fotogênicas, um ar sempre de dia de festa, as igrejas mais gordas que as recifenses, casas trepadas umas por cima das outras como grupos de gente se espremendo para sair num retrato de revista, uma hospitalidade fácil, derramada — talvez fique a princípio desapontado com o Recife.” Freyre explica então que essa posição particular do Recife tem suas razões num pretenso “recato” da cidade, que vem a um só tempo da experiência que se tem da cidade, mas também (e sobretudo) da forma pela qual a cidade “acanhada” se representa aos olhos do estrangeiro:


mais acanhado: é pura representação grandiloqüente de si mesmo. A revitalização do Recife Antigo, aliás, pode ser explicada do ponto de vista econômico, pois está diretamente vinculada ao declínio da economia brasileira, a partir do início da década de 80, à mudança do modelo de investimento em infra-estruturas urbanas (a transferência das políticas públicas do governo federal para os municípios), à internacionalização do capital (liberalização, desregulamentação, novas tecnologias de comunicação). A crise obrigou as cidades a criar novas infra-estruturas produtivas, melhorar a qualificação da mão-de-obra, atrair setores dinâmicos do setor serviço, caracterizados pelo emprego da alta tecnologia. “Em todas existe a questão da criação

do século 20, o centro econômico não apenas da cidade, mas também de toda a região açucareira de Pernambuco. A partir da década de 1930, esvaziou-se economicamente, deu lugar a cabarés, boates e prostíbulos. Nesse contexto de decadência, a revitalização do Bairro do Recife propôs uma mudança de usos: introdução da “novidade” (novas atividades) para manter a “tradição” (utilização do ambiente existente). Isto é, integrar/recuperar a tradição de transformação urbana, um compromisso entre a tradição e a mudança. A cidade de suor e cal – Para além dos conceitos teóricos e dos diversos enfoques de análise da cidade, ela se constitui em um espaço físico com temporalidades diversas. As teorias da comunicação e

A cidade é, em si mesma, uma experiência que se presta à representação; só existem as cidades narradas

de uma nova ‘imagem’ da cidade”, explicam os pesquisadores Sílvio Zanchetti e Norma Lacerda, no texto “A Revitalização de Áreas Históricas como Estratégia de Desenvolvimento Local”: “Num mundo globalizado, onde localidades competem diretamente por investimentos produtivos, o que decide o jogo da competição são as especificidades das localidades, porque são elas que as diferenciam de outras com atributos econômicos similares [...]. Os atributos ambientais, culturais e históricos das cidades são aqueles que, de modo privilegiado, têm sido utilizados como base das especificidades locais.” O que acontece no Recife Antigo não é um fato isolado. Nos Estados Unidos, as políticas de revitalização foram agrupadas nos centros históricos tradicionais, como em Boston. Na Europa, os casos de Manchester, das Docklands, em Londres, de Gênova e Barcelona são exemplares. No Brasil, destacam-se o Pelourinho, em Salvador (BA), e o Bairro do Recife. O Bairro do Recife foi, do século 17 até o início

os estudos sociais e filosóficos contemporâneos situam o desenvolvimento dos meios de comunicação como determinante no processo de percepção e transformação dessas temporalidades e espacialidades urbanas múltiplas. De fato, os meios de comunicação e seu poder agregador e multiplicador de idéias, modas e valores têm um papel fundamental na própria configuração das cidades. Ligados ao crescente acesso a tecnologias comunicacionais, os bens simbólicos passaram a atuar de forma singular na regência do mundo, alterando comportamentos, legitimando instituições, moral e costumes. Num mundo em que o texto e depois a imagem passaram a legitimar a verdade, a informação só ganha contornos de verdade mediatizada e, portanto, assumida por um grande número de pessoas. Na cidade, além da convivência real entre pessoas, há também a sobreposição de veículos de comunicação, de signos e símbolos que compõem o imaginário ou os imaginários sobre a cidade. Os meios de comunicação deixam Continente Multicultural 39


40 Continente Multicultural

sentações. Apesar de toda a literatura que defende a supremacia da representação sobre a experiência urbana direta, o que se constata é uma tensão cada vez mais forte entre esses dois níveis de apreensão da cidade. A vivência da cidade é cada vez mais fortemente representativa, negociada através de narrações, mas ela é, ao mesmo tempo, conformada (confirmada ou negada) pela experiência física direta. As cidades estrangeiras, por exemplo, são conhecidas e reconhecidas muito antes de serem visitadas pelo acúmulo de imagens e narrativas feitas a partir dos seus espaços e tempos. Mas o cosmopolita, o ser do contemporâneo, cedo ou tarde será levado a averiguar a adequação entre as representações e sua experiência desses lugares cuja distância foi suprimida pelo desenvolvimento tecnológico — transportes, informação, comunicação. Nesse aspecto, os cartões-postais — imagens de cidades que pouco ou quase nada confirmam a experiência concreta daqueles lugares — funcionam como recortes idealizados do espaço urbano. Mas nem por isso são menos reais: o cartão-postal é a representação da cidade que se quer ter e que, embora nunca se tenha, existe. Ao orientar o olhar pelo enquadramento, pela iluminação, pela produção de certos elementos urbanos, o fotógrafo elabora um cenário cuja referência é o espaço recortado da cidade realmente existente. Quando a fotografia se torna parte do trabalho de reconhecimento de uma cidade, ela se aparenta à leitura: decifra seus signos, identifica e mapeia seus pontos. Em certa medida, pode-se dizer que só existem as cidades narradas. A experiência urbana, essa trajetória pela cidade, vai ser sempre atravessada pelas narrativas. Assim como as narrativas vão sendo atravessadas pela experiência. Mais interessante para nós é justamente estar nesse espaço intersticial experiência-narrativa, nesse “entrelugar”.

Texto coletivo do Núcleo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Estudos Culturais, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE, que pesquisa as relações entre mídia, tecnologia e cultura e é formado pelos pesquisadores José Afonso Jr., Ana Valéria Vicente, André Telles, Ângela Prysthon, Bárbara Wagner, Eduarda Andrade, Érika Azevedo e Paulo Cunha.

FOTO: REPRODUÇÃO / LINA BO BARDI / REVISTA DO IPHAN

entrever — mesmo que difusamente — que não existe apenas uma cidade, mas várias cidades dentro do mesmo perímetro urbano. Pensar sobre a cidade é indagar sobre a experiência contemporânea, na qual o palpável e o simbólico, assim como o campo e o urbano, já não são opostos ou intocáveis. No deslocar entre a residência e o trabalho, sobrepõem-se prédios e outdoors, sons do trânsito, canções e anúncios radiofônicos e de carros de som. Todas essas informações fazem parte do real e ajudam a conformar as idéias e lembranças sobre a cidade. Como o sujeito opera os trajetos no espaço urbano contemporâneo? Contrariamente ao espírito do flâneur, de sua atenção flutuante [Lacan], da forma desinteressada do seu desfrute do espaço urbano, em geral os percursos da cidade contemporânea são fortemente condicionados pela autonomia do sujeito em relação ao espaço urbano — da criança que se limita ao espaço doméstico ou peridoméstico, até o adulto, que acrescenta camadas sucessivas de autonomia, alimentando progressivamente o mito da liberdade de ir e vir. Outro condicionante são os fatores socioeconômicos — pois os percursos também são definidos pelas obrigações profissionais de espaço-tempo (trajeto casa-trabalho-casa) e pelas características técnicas utilizadas para percorrer o espaço urbano (transporte individual x transporte coletivo, por exemplo). Finalmente, incidem os imperativos de segurança — que inviabilizam regiões inteiras (ou tempos) da cidade ao sujeito, ou que determinam trajetos “seguros” — e os padrões de inserção cultural — já que, mesmo no usufruto do tempo livre, a indústria cultural define seus próprios destinos e percursos. Nos dois últimos exemplos, os condicionamentos são, sobretudo, formulados pelos aparatos da mídia. São condicionamentos negociados pelos sujeitos a partir da mediação comunicacional. Nesse sentido, o noticiário policial guarda uma relação muito próxima com as páginas dos cadernos de variedades dos jornais diários. Não parece haver, de fato, uma substituição absoluta da experiência da cidade pelas suas repre-


CRÔNICA

O país dos visitantes Orson Welles se embriagou na zona, Roman Polansky devorou uma jaca inteira e Aldous Huxley espantou-se com um culto motorista de táxi, numa época em que o Brasil, para os visitantes, era quase ficção Fernando Monteiro

FOTO: PIERRE GUILLAUD / AFP

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nessas aparições, fiapos de ouro ou grãos luminosos sobre a cor morena do pano, desenhou-se uma linha pontilhada, como um contorno (visto, porém, do alto e de longe, de um morro ou de um avião) de globos elétricos na curvatura da Riviera: assim, as luminárias de Botafogo formam um colar da linha beira-mar, ao redor da base do Pão de Açúcar.”

Tão inesperada aparição da paisagem do Rio no meio de Quer pasticciaccio brutto de via Merulana (obraprima do italiano Carlo Emilio Gadda) me faz pensar no Brasil como a ficção, meio solta da realidade, que somos — ou parecemos ser, contra a luz — para a lâmpada do Outro. “Penso que você havia de gostar do Rio — escreve Lawrence Durrell para Henry Miller, em dezembro de 1948 – e de ficar sentado nos cafés, a tomar por uma palhinha leite do coco, diretamente do fruto verde. A rua onde assim mato a sede é uma dessas ruas com as embocaduras vazias que se encontram nas telas de De Chirico. Bebo do coco e leio o Hamlet de Laforgue,

que não podia ser mais apropriado para o que sentimos todos, nas nossas almas dissecadas de europeus, diante desta imensidade e exuberância. O Brasil é maior que a Europa, mais selvagem que a África e mais estranho que a Terra de Baffin...” O Brasil seria essa ficção descrita por Durrell (um escritor tão preciso nas suas descrições de ilhas gregas, dos becos egípcios)? A se acreditar nos olhares despejados sobre nós — por viajantes menos e mais ilustres — somos, devemos ser, aquele “país improvável”

Orson Welles: uma farra que rendeu um curtametragem local (foto de 1982)

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que ficou nos olhos de Aldous Huxley, personagem de mais uma história (também improvável?) em torno de visitantes um dia recebidos aqui com a basbaque admiração dos índios que — passada a admiração — devoraram o bispo Sardinha. A história? Bem, a história é de que o míope Huxley teria desembarcado no aeroporto do Recife e dado a mais lacônica das direções ao motorista de táxi: “Leve-me à casa do professor Freyre...” E o (culto) motorista teria de fato levado o autor de O Macaco e a Essência à casa de Gilberto Freyre, em Apipucos. Você acredita? A se acreditar em Gilberto, a história teria se passado exatamente assim. Huxley não sabia o endereço do mestre e, essencialmente, esperava que o endereço do “professor” fosse, é claro, do amplo conhecimento da macacada do antigo aeroporto dos Guararapes (futuro “Gilberto Freyre”?), onde o cineasta Roman Polansky “traçou”, há uns anos, uma jaca inteira... Bem, estamos adiantando as coisas, os nomes, os endereços certos ou amplos — neste texto que tenta ver o Brasil pelo olhar de estrangeiros ilustres, visitantes do país de ontem e de antes da globalização, que nos junta, agora, a americanos e afegãos. “Você já foi à Bahia?”, perguntava a aeromoça da Real Aerovias Nacional, nos anúncios da revista Fon-Fon, e Zé Carioca se tornava o mais ilustre visitante convidado a voar, graficamente, por sobre os encantos de um Brasil idílico, desenhado por Disney (isto é, desenhado por Ub Iwerks — o colaborador de Walt, nem sempre creditado). “Você já foi à Bahia?” “Não” — teriam respondido James Lancaster e Edward Fenner, célebres corsários ingleses que aqui chegaram pelo mar (lógico), em cinco navios preparados para saquear Olinda, num certo dia de março de 1596. Foi em plena Semana Santa, e os flibusteiros não pouparam nem as ricas alfaias da ermida de São Telmo — que levaram com eles —, numa das visitas menos ilustres e mais lamentadas da antiga capitania de Duarte Coelho. Os dois mal-encarados gringos também “baixaram” no Recife, com a malta corsária atrás, ávida por “grandes riquezas” mais ou menos improváveis, acumuladas no então povoado de São Frei Pedro Gonçalves... ou talvez já imbuídos, no final do século 16, daquela premonitória e futura certeza: “Quem não conhece o Recife não conhece Lolita” (ou é o contrário?).

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“Você conhece Lolita?”. Sou capaz de achar que perguntaram isso a Charles Darwin, na primeira metade do século 19, de tal forma saiu daqui insultado o célebre naturalista. Darwin, como se sabe, detestou Pernambuco, na sua breve passagem, em 1832. Ele desembarcou no velho porto dos mascates e foi zanzar algumas horas pelo povoado e por Olinda, reclamando, mais tarde, da “grosseria dos brasileiros”. O autor da teoria do Evolucionismo elogiou a linha natural dos arrecifes, mas viu nossos mangues e “lagunas” como lugares inabitáveis — e teria se altercado com alguns pernambucanos que o surpreenderam fuçando nos seus quintais. Mais meteórico ainda, outro gênio aportou no Recife: Albert Einstein, em 14 de maio de 1925... mas, ao que parece, nem sequer desembarcou neste torrão de Lolita. Quem tiver mais dados e puder, acaso, esclarecer se o gênio da Relatividade desembarcou ou não desembarcou, comunique-se com o señor Santiago Rementeria (Calle Máximo Aguirre, 17 — 48011, Bilbao — Espanha), que recentemente enviou mensagem, por e-mail, para o Diario de Pernambuco, em busca “del nombre, destino y plan de viaje del buque transatlántico en el que embarcó Albert Einstein ao (sic) finalizar su visita al Brasil, en Mayo de 1925. Esta información debió publicarse en los jornais (sic) de Pernambuco (donde haría escala hacia el 14 de Mayo).” Orson Welles deu mais atenção ao velho bairro do Recife. Vindo do Rio — a caminho de Fortaleza — demorou-se uma noite toda na velha zona de meretrício, na companhia do jornalista Caio de Souza Leão,

FOTO: PHILIPPE HALSMAN / AFP

Einstein: dúvidas sobre passagem relâmpago em 1925 (foto de 1947)


FOTOS: ROGER VIOLLET / AFP E AFP

O Jardim do Éden nunca foi aqui. Abaixo da linha do Equador é permitido até acreditar nas estranhas narrativas dos visitantes

do fotógrafo Benício Dias e do poeta Tomás Seixas. A farra já rendeu um curta-metragem (That’s a LeroLero, do jornalista Amin Stepple) e inspira inúmeras dúvidas, ainda: a turma esteve mesmo uma noite inteira com Welles? E Seixas, bebia tanto quanto o Cidadão Kane? Eles apresentaram o jovem cineasta a Alzira Batalhão? Em muitas tardes, na varanda do casarão de Tomás no bairro das Graças, ouvi novos acréscimos do poeta à recordação da esbórnia noturna na companhia do diretor de Verdades e Mentiras. Um dia escreverei — mais longamente — sobre a grande ficção que foi se construindo sobre essa noitada na qual, contava Tomás, terminaram, os quatro, cantando a Marselhesa (por que a Marselhesa?) no meio de uma das pontes do Recife, o grande cineasta já descontraído e “enturmado”..., e todos contemplando o bateau embriagado da vida, visto da ponte sobre o barco bêbado do Capibaribe. Impressionado de fato ficou Albert Camus com “a massa verde das florestas, sufocante sobre os produtos da cultura desta terra pobre e rica, simultaneamente”. O autor de O Estrangeiro deixou um retrato impiedoso de um dos seus anfitriões, o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, “superficial e mal-educado à mesa” – segundo Camus, que só se encantou com o barroco e o frevo, vistos de passagem. Seu colega de língua, o francês Benjamin Péret, foi mais precavido e trouxe as visões próprias, de surrealista tangido pela guerra que também empurrou Blaise Cendrars para vir vagabundear no Brasil. Este se espantou com a “obsessão dos brasileiros por banho” e circulou, livremente, com as suas anotações debaixo do sovaco tão malcheiroso — dizem — quanto o do hermético Giuseppe Ungaretti (grande

poeta sonhando com o cais de Alexandria quando fechava os olhos para o mar de Santos). Herméticos ou surrealistas, todos se declararam vencidos pelo “surrealismo do país”, conforme outra grande voz da poesia contemporânea, a americana Elizabeth Bishop. Hoje se sabe que ela resolveu morar em Ouro Preto não para ficar próxima do barroco mineiro, mas por razões sentimentais: estava apaixonada por uma bela brasileira (Lota de Macedo Soares). Ao contrário do que se pensa, Elizabeth não gostava muito do país, mas preferia estar perto da namorada e apreciava pelo menos a flora tropical: cultivava rosas “híbridas e magníficas”, nos jardins da sua mansão. Depois que Lota se suicidou, não viu mais motivo para continuar vivendo longe da América e resolveu voltar para os roseirais de Key West. O polonês Roman Polansky devorou uma jaca inteira, no aeroporto dos Guararapes. Em trânsito pelo Recife, o pai de o Bebê de Rosemary aproveitou para experimentar a fruta opulenta — ele, pequenino, a jaca, imensa. Polansky dispensou palito para colher os bagos, pediu mais e deve ter prosseguido viagem com sérias conseqüências — e idas freqüentes aos banheiros da aeronave. No fim do ataque à primeira jaca (comprada na barraca de frutas do antigo jardim do aeroporto), o diretor de A Faca na Água limpou os dedos no paletó e anotou o nome daquela coisa mole: Djaka. O católico Paul Claudel foi daqueles que ficaram mal impressionados com os rituais negros vistos cá nos nossos terreiros (a mesma impressão — de quase angústia — num outro escritor católico francês, Georges Bernanos). “Espetáculos” idênticos — geralmente arranjados às pressas — não causaram a mínima impressão no espírito meio autista de William

À esquerda, Camilo Cela: conferência e passeio incógnito numa noite chuvosa (foto de 1995) À direita, Camus: encanto com o barroco e o frevo, vistos de relance (foto de 1947)

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Malraux: espantado com selva de cimento quando esperava uma selva de verdade Polansky: limpou os dedos no paletó e anotou o nome da fruta – Djaka Zweig: elogio do futuro e desistência do sonho do paraíso Huxley: este é um “País improvável”

Brasil deslumbrado com celebridades de todo o tipo, que apareciam escoltadas por Jorginho Guinle — se fossem mulheres ou homens “bonitos demais” (como Errol Flynn, exemplifica o velho playboy). As reportagens apareciam na revista O Cruzeiro: I love Brazil era a originalidade mais repetida por dez entre nove estrelas-Lux do cinema, e os rádios estavam ainda ligados no “tchica-tchicabum” de uma portuguesa com bananas e abacaxis na cabeça ou na voz lamentosa de um Augusto Calheiros. Éramos “ingênuos”? Stefan Zweig encontrou, em 1941, um “país do futuro” nesse Brasil de um passado recente. Parecia um lugar tranqüilo e pleno da simpatia de homens de paletó de linho branco, ao lado de mulheres de chapéu tipo caqueira, em saraus e tertúlias literárias de outra época. Mas Zweig teve de renunciar às homenagens (e ao futuro que via no “gigante adormecido”), quando percebeu o perigo fascista sob a manha de Getúlio

dúzia de gatos pingados, na Faculdade de Direito, o grande romancista espanhol esperando pela conclusão de uma missa fúnebre marcada para a mesma hora, no mesmíssimo salão nobre etc. Gilberto Freyre estava lá, tendo enfrentado a noite tempestuosa de chuva — um daqueles “torós” recifenses, de meter medo em alma do outro mundo — para apertar a mão do autor de La Colmena... e o resto eu conto no livro que saiu pela Record, custa barato e ainda existe nas livrarias. Por falar em propaganda, foi-se o tempo em que os serviços diplomáticos dos EUA, da Inglaterra, da Itália, da França, da Espanha e de outros países enviavam grandes artistas e intelectuais (Robert Lowell, John dos Passos, John Schlesinger, Umberto Eco, Trankred Dorst, Julían Marías, Paul Jonhson) em missão cultural de “intercâmbio”. Eles podiam até terminar não “intercambiando” muita coisa... mas chegavam com o prestígio dos seus nomes, num outro tempo, num país debutante. Eram entrevistados e filmados em preto-e-branco, no vasto Cine-Pathé do

decidido a acender uma vela a Adolf e outra a Roosevelt. Não havia “ingenuidade” nenhuma no país dos botocudos do DIP, que abriam as portas dos salões para o casal Zweig a fim de mantê-lo sob as vistas de Lourival Fontes e outros esbirros treinados em gentilezas coercitivas. Assustado, o civilizado europeu de Salzburgo entrou em pânico e resolveu consumar o pacto suicida com a mulher também amedrontada — desistindo, ambos, do sonho do paraíso vislumbrado no Rio de Janeiro daquelas luminárias de Gadda, formando “um colar da linha beira-mar, ao redor da base do Pão de Açúcar”... O Jardim do Éden nunca foi aqui — convenhamos — e o país real, debaixo de tantas luzes e doçuras, talvez só o cínico Ronald Biggs tenha sabido entrever, no morro carioca onde o assaltante inglês se tornou tema de escola de samba, abaixo da linha do Equador, onde tudo é permitido: até acreditar nos visitantes ainda mais estranhos que o “paraíso”.

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Fernado Monteiro é escritor

FOTOS: ROGER VIOLLET / AFP (1,3,4) E ERIC GAILLARD / REUTERS (3)

A partir da esquerda:

Faulkner, indiferente ao Brasil exótico, “para inglês ver” (talvez porque ele fosse um gênio americano). Diz-se que o autor de Santuário se enganou até com os prédios de São Paulo, numa certa manhã — ao acordar da nuvem de uísque e olhar pela janela do hotel: achou que estava em Chicago, longe das áfricas brasileiras. Confusão total. André Malraux também não entendeu muito bem tudo o que viu — inclusive “a selva de cimento avassalando a feia capital paulista”. Esperava uma selva de verdade, daquelas da Indochina, onde andou metido no mercado negro de arte khmer? Camilo José Cela — prêmio Nobel de Literatura — passeou pelo Recife, em maio de 1982, praticamente ignorado por jornais e comitivas. A visita do escritor, quase incógnito, eu aproveitei como tema de uma das narrativas de A Cabeça no Fundo do Entulho — e posso garantir que nada, ou quase nada, foi inventado: a sua conferência presenciada por meia


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SABORES PERNAMBUCANOS

Ao vencedor, as batatas Primeiro os espanhóis, depois os ingleses. A batata, tubérculo de origem americana, tornou-se um dos alimentos mais populares na mão dos colonizadores.

“...O segredo das batatas está nos três quindins: terra granita, água granita e caganita, com perdão de Vossa Excelência”. Aquilino Ribeiro (Cinco Réis de Gente)

império inca desmoronou no dia em que Pizarro entrou em Cajamarca: 16 de novembro de 1532. Eram 168 espanhóis contra 80.000 incas. No fim desse dia, havia 7.000 mortos amontoados no chão. Nenhum espanhol. E não foram mais porque os braços cansaram de matar. Era uma civilização esplendorosa. Sobrou pouco dela. Na produção de alimentos, por exemplo, os incas usavam técnicas bem mais avançadas que as então empregadas na Europa. Mestres no cultivo de milho, feijão, abóbora, tomate, pimentão, cacau, algodão. E de um tubérculo que, nascido ali mesmo, logo ganharia o mundo — a “papa” (batata). Aconteceu quase o mesmo em relação aos astecas. Com Cortez no lugar de Pizarro. Incas e astecas eram muito parecidos. Na devoção aos deuses — sol, lua, relâmpago, trovão. Como no gosto pela mesa. Há registro de corredores se revezando para trazer, do golfo até Tenochtitlán, peixes e mariscos frescos para Montezuma. Finda sua epopéia devastadora, os conquistadores espanhóis levaram para casa pedras e metais preciosos. Inclusive o ouro do resgate de Atahualpa — suficiente para encher quarto com 6,6 m por 5 e 2,5 de altura. Depois Pizarro renegou sua

promessa e executou Atahualpa. Mas essa é outra história. Também levaram a “papa” — garantia contra invernos rigorosos, longas viagens marítimas e a fome do povo. Fácil de cultivar e capaz de permanecer muito tempo armazenada, sem perder o sabor. A riqueza maior. Tudo de que os reinos de Aragão, Castela e Sicília precisavam, naquela época. A corte espanhola, apesar disso, não lhe deu valor. Era apreciada só por camponeses. Ali e no resto do continente, durante quase um século, ficou sendo sobretudo alimento de animais. Por conta da crença de que transmitia lepra aos homens. Alguns casos chegaram mesmo a ocorrer. Provavelmente porque acabava contaminada por águas impuras, carregadas dessa peste, e despejada na terra em que brotava. Só aos poucos foi sendo usada, com muita prudência, em

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 46 Continente Multicultural

FOTO: LÉO CALDAS / TITULAR

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quartéis e asilos. Seu prestígio viria apenas com a Revolução Francesa. Mas esse tempo ainda estava longe. Depois da Espanha, foi para a Inglaterra. Já no séc. 17. Em corruptela a seu nome de origem, acabou por lá sendo “potato”. Essa batata que chamamos de “inglesa”, como visto, de inglesa não tem mesmo nada. Sendo entretanto inglês, e levando batata, um dos melhores casamentos culinários de que se tem notícia — o filé com fritas. Um prato ironicamente conhecido, ao redor do mundo, como fillet with french fries. Fritas “francesas”. Não foi o primeiro caso. Nem será o último. Carmem Miranda não era brasileira — era portuguesa. Carlos Gardel não era argentino — era uruguaio (ou espanhol, segundo outras versões). Vivien Leigh não era americana — era inglesa. Margot Fontaine não era francesa — era... brasileira. Mas, mesmo ali, o prestígio da batata continuava pouco. Não por acaso sendo descrita por Sir Robert Marison,

professor de botânica em Oxford, como “planta ornamental nos jardins ingleses, também usada como comida para pobre”. Por sua semelhança com o jeito da trufa européia, recebeu curiosa definição do cientista vienense Clusius — “trufa estranhamente insípida”. Os próprios nomes que a batata ganhou, em países vizinhos, expressam isso — é kartoffel, na Alemanha; kartoschka, na Rússia; e tartufoli, na Itália (onde acabou, depois, convertida em “patata” mesmo). Na Rússia, o czar Pedro Alekseivitch (o Grande) voltou apressado de viagem, mandou executar um filho e apresentou essa batata ao povo — sendo ali, por isso, também conhecida como “maçã do diabo”. O prestígio da pomme de terre (maçã da terra) começou mesmo foi na França. Com o farmacêutico, agrônomo e militar francês Antoine Augustin Parmentier. Que fez regime à base de batatas, na prisão de Westfalia, e acabou fascinado por ela. De volta à pátria, converteu sua divulgação em verdadeiro apostolado. Pagando caro por isso. Em 1769, por exemplo, acabou demitido do posto de farmacêutico-chefe nos Invalides, por ter servido batatas aos militares ali internados. Continente Multicultural 47


Veteranos do exército, alimentados com comida que se dava aos porcos — ultraje à honra militar francesa. Mas vingança é prato que se come frio. E ela começou quando Parmentier reuniu, em sua casa, Benjamin Franklin — que estava na França para negociar, com Luís XVI, uma aliança com a jovem república americana; Lavoisier, um dos criadores da química moderna; o filósofo d’Alambert; e o jovem aristocrata sueco Axel de Fersen. Para jantar, apenas pratos à base de batata. Foi um encantamento geral. Por Fersen, freqüentador da cama de Maria Antonieta, a batata acabou penetrando na corte de Luís XVI. Passando, então, a fazer parte, definitivamente, das mesas importantes. Por seu apostolado, Parmentier recebeu o título de Barão. E vários pratos levam hoje seu nome — dos quais, talvez, o mais conhecido seja o hachis parmentier (carne moída coberta com purê de batata). Não se sabe exatamente quando os portugueses foram apresentados à batata. Segundo a versão mais divulgada, ela teria vindo ao país pelo norte. Da vizinha Galícia — onde começou, na Espanha, o seu cultivo. A primeira referência bibliográfica portuguesa remonta ao Thesouro da Língua Portuguesa (1647), de Bento Pereira. Por ocupar o lugar das castanhas, em alguns pratos, foi ali também chamada de “castanhada-Índia”. Logo conseguindo, na cozinha portuguesa, um papel de grande relevo. Porque entra em quase todas as sopas e acompanha quase todos os pratos.

Com destaque especialíssimo para o bacalhau, claro. Nossos índios, curiosamente, não lhe deram muito valor. Preferiam a batata-doce. Mas também aqui, por influência do colonizador, passou a freqüentar todas as mesas. Sendo ingrediente para fabricação de alguns pães. Ou sendo servida como aperitivo — salgada, frita ou em conserva (com casca). Como entrada — em saladas e sopas. Como acompanhamento de todos os pratos (peixes, aves e carnes). De todos os jeitos — fritas, cozidas, cortadas em fatias ou cubos, amassadas no purê, cozidas no vapor, sautée, palha, soufflée, roesti. Fosse a história da batata um filme e, mal comparando, ela seria sempre a companhia perfeita. O Magro do Gordo. O charuto de Groucho Marx. O chapéu de Buster Keaton. A bengala de Carlitos. A luva de Rita Hayworth, em Gilda. O piano de Sam, em Casablanca. O porta-chapéu com que dança Fred Astaire, em Núpcias Reais. O guarda-chuva de Gene Kelly, em Cantando na Chuva. A cruz de Leonardo Vilar, em O Pagador de Promessas. A cadela Baleia, em Vidas Secas. O João Grilo de Chicó, no Auto da Compadecida. Por falar na obra-prima de mestre Ariano, penso que se Chicó tivesse que escrever sobre as batatas, encerraria o texto dizendo: “Sei não, só sei que foi assim!”. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora E-mail: jpaulo@truenet.com.br

RECEITA: BATATA ROESTI INGREDIENTES: 6 batatas, ligeiramente cozidas, com casca; 1 cebola média; 1 pedaço de bacon, cortado em cubos; sal; pimenta; mais óleo e manteiga para fritar. PREPARO: Descasque as batatas. Rale na parte grossa do ralador. Depois seque, com pano. Junte cebola ralada e bacon frito. Tempere com sal e pimenta. Coloque a mistura em frigideira grande, aquecida com óleo e manteiga. Aperte bem. Para ficar como fritada, crocante por fora.

RECEITA: BATATA DUQUESA INGREDIENTES: 1 kg de batata; 4 gemas; 1 colher (de sopa) de manteiga; sal; pimenta e noz-moscada. PREPARO: Descasque e cozinhe as batatas. Passe-as no espremedor. Junte manteiga e gemas. Tempere com sal, pimenta e noz-moscada. Faça bolinhas, com colher. Ou use o bico de confeiteiro. Pincele com gema e leve ao forno, em assadeira untada.

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ARTES PLÁSTICAS Esquisses poir les Evangelistes - St. Jean. 1998

Por uma arte adulta Expondo em Curitiba, Sérgio Ferro acredita que sua pintura é uma obra de resistência diante da hegemonia da arte conceitual no mundo

FOTOS: REPRODUÇÃO

T

oda imagem tem sua autonomia. Mas, quando se trata das imagens de um artista complexo, o olho bem orientado pode não só contemplar, mas também entendê-las. Aliás, pode, não, deve, pois assim estará ultrapassando o visível e indo ao alvo que o artista realmente mirou. No caso do pintor curitibano Sérgio Ferro, algumas palavras podem servir de pistas para atingir esse alvo. Certa vez, o próprio artista disse: “Michelangelo sempre escondeu a preparação de suas obras (já que o gênio deve ser um iluminado); queimou quase todos os seus estudos. Para nós, ao contrário, trata-se de sublinhar o encaminhar da obra e utilizar o non

finito, não como símbolo de transcendência da idéia, mas como índice do fazer”. Num outro momento, comentando Ferro, disse Flávio Motta: “Sempre foi assim. Igual, somente na intensidade com que procura desvelar o novo. Chega muito perto: risca, grava, modela, raspa, pinta, apaga. Procura as passagens mais sutis entre o relevo que salta do suporte e o azul de profundidades maiores. Tem rigores de um gráfico. Tem posturas de um trabalhador atento. Faz a paginação do impossível: explica, pela caligrafia rigorosa, as leis da beleza inexplicável do corpo humano, que não é só corpo mas é ser que está em tudo mais que o rodeia”. Continente Multicultural 49


O pintor curitibano, radicado na França, Sérgio Ferro

Falando sobre técnicas, novamente o artista: “Os meios simples: tela de linho cru, branco, preto, cores de terra naturais (...). A simplicidade é um corolário: querer controlar tudo, desde o efeito mimético à fricção do lápis de carvão, do impacto da escala ao pregueamento da tela, impor a redução dos elementos a controlar”. Essas declarações e comentários são dos anos 80, época em que, evidentemente, o artista já tinha definido seu rumo. Agora, apresentando nova exposição na Simões de Assis Galeria de Arte, em Curitiba, Sérgio Ferro esclarece, por telefone, da França, onde mora atualmente: “Meu trabalho é uma tradução atual, presente, mas que não afasta nenhuma herança da história da arte. Tal como utilizamos há centenas de anos as mesmas palavras, também utilizo todos os alfabetos, toda as caligrafias da pintura criadas até hoje”. E por que persistir nesse trabalho, num universo artístico dominado pelo conceitual, instalações e experimentalismos? O artista responde: “Acredito que minha pintura possa ser considerada uma obra de resistência diante da hegemonia da arte conceitual que domina hoje todo o mundo. Tal como na economia nós vemos uma grande concentração de riqueza e poder nas mãos de umas poucas compa50 Continente Multicultural

nhias, na arte está acontecendo a mesma coisa. São grupos de críticos e curadores que controlam tudo, com interesses econômicos por trás. O artista, hoje, é como uma criança, um índio: perdeu totalmente sua autonomia, sua autoridade. Ele precisa de um comissário para representá-lo, no caso, o crítico, porque ele foi infantilizado, desautorizado”. Essa “desautorização”, Sérgio Ferro não a aceita. Ele é o dono de sua arte, ele e seu público. Ele sabe que, em todos os momentos realmente criativos da história da arte, as teorias vieram a reboque das obras, e não o contrário. Fiel a si mesmo e a seu trabalho, Sérgio Ferro persegue a mesma postura honesta que desenvolveu há anos: fazer a mágica ao mesmo tempo que revela o truque. Com isso, convida o espectador para dentro da obra, torna-o seu cúmplice e co-autor. Com isso, faz com que a arte seja, de fato, arte, ou seja: comunicação, comunhão, revelação. Exposição de Sérgio Ferro Simões de Assis Galeria de Arte Alameda D. Pedro II, 155 Fones (41) 232.2315/233.3389 – Curitiba – Paraná De 7 de agosto a 9 de setembro


3o Dia da Criação. 1981

Adão. 1976

O artista faz a paginação do impossível, explicando as leis da beleza do corpo humano, que não é só corpo e tudo o mais que o rodeia

L´Hiver. 1999

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Nature Morte ao Pot D´Argile. 1999

“Meu trabalho é uma tradução atual, que não afasta nenhuma herança da história da arte. Tal como utilizamos as palavras há centenas de anos, utilizo todas as caligrafias da pintura criadas até hoje”

Les Evangelistes, St. Marc. 1999

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FERREIRA GULLAR

Arte efêmera Fazer da arte expressão do efêmero é chover no molhado. Efêmeros somos nós mesmos e quase tudo a nossa volta

C

erto dia, um artista espanhol que vivera no Brasil encontrou-me num avião da ponte-aérea RioSão Paulo e aproveitou a ocasião para mostrar-me um livro com fotos de seus trabalhos. Um das fotos era a de um parque de grama verde que ele cobrira com manchas de tinta azul. — Você não destruiu o gramado do parque, não? — Claro que não. A primeira chuva lavou a tinta. — E apagou sua obra. — É... Uma outra foto mostrava uma exposição, numa galeria envidraçada, de grandes raízes de árvores, ainda impregnadas de terra. — O que fez com essas raízes depois da exposição? — perguntei-lhe. — Joguei-as fora, respondeu ele. — Quer dizer que de tudo que você tem feito não vai sobrar nada? — Vivemos na civilização do efêmero, do descartável. Nada mais é feito para durar. A arte tem de seguir o espírito da época. — Será que tem mesmo? — indaguei. Não vou transcrever aqui a conversa que tive com o artista, que não foi longa. Mas, depois que ele voltou para sua poltrona, fiquei pensando na pergunta que lhe fizera: — Tem a arte de seguir o espírito da época? Ouve-se freqüentemente essa afirmação como se fosse uma verdade indiscutível. Mas, se a gente reflete um pouco mais, vê que a coisa não é tão simples. Por exemplo, o Expressionismo, surgido na Alemanha, que, no começo do século 20, se industrializava e

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se urbanizava, opunha-se tanto à indústria quanto à vida na cidade moderna, razão por que os primeiros expressionistas pintaram suas obras à margem dos lagos, em meio a florestas. É verdade que o Futurismo e o Construtivismo pretenderam criar a arte da sociedade industrial, mas o Dadaísmo negou radicalmente a racionalidade capitalista. Isso sem falar no Romantismo, que nasceu como contestação à objetividade e cautela da mentalidade burguesa do século 19, e no Simbolismo, que se opôs à visão positivista que predominava no final daquele século. Essas considerações, como se vê, tornam insustentável a tese de que a arte tem de refletir o espírito da época. Até pode refleti-lo, mas nem sempre adequando-se a ele, já que uma das formas de refleti-lo é contestá-lo. Sem dúvida alguma, não teria sentido pregar uma arte desligada da época. Porém, ser atual não é simplesmente deixar-se levar pelo espírito predominante que, muitas vezes, pode ser contrário aos valores fundamentais da cultura e da própria arte. A teoria da arte efêmera toca numa questão essencial, já que a arte tornou-se, através dos séculos, a expressão do que de mais permanente o homem criou. As obras de arte — os templos, as esculturas, os murais — do Antigo Egito são a própria imagem daquela civilização. O mesmo pode-se dizer da arte grega ou romana, ou da arte dos períodos mais próximos de nós, de tal modo que se chega a afirmar que não há civilização sem arte e que a arte é uma das expressões mais genuínas de cada povo e de cada cultura. Mas não apenas isso: a arte constitui a nossa memória e a nossa herança, pois através delas as civilizações nos ensinam e nos constituem como seres humanos.


FOTO: REPRODUÇÃO

Não é do meu feitio fazer afirmações retóricas, e gostaria que o leitor visse nestas minhas palavras o esforço para mostrar a importância da criação artística através da história humana, para que assim possa avaliar a atitude dos que se conformam em fazer uma arte deliberadamente efêmera. Isso só se explica como uma descrença na importância da arte e na capacidade criadora de quem faz tal opção. Fazer da arte expressão do efêmero é chover no molhado. Efêmeros somos nós mesmos e quase tudo a nossa volta. Uma das maiores angústias do ser humano é precisamente a consciência de sua efemeridade. Por essa razão, o homem procura de todos os modos fundar alguma coisa que permaneça. A arte, que possivelmente não nasceu com essa missão, revelou-se o instrumento ideal dessa batalha contra a morte e a precariedade. Trata-se, a rigor, de uma batalha vã, porque os próprios artistas morrem e morrem também as civilizações. Não obstante, as obras de arte restam como o testemunho de sua existência, de sua busca de beleza, de sua tentativa de inventar-se imortal. Na civilização da mercadoria e da obsolescência planejada dos objetos industriais, a tendência é aderir ao consu-

mismo, que é a expressão mais aguda da alienação. Para que o consumo se mantenha crescente, as indústrias têm de criar novidades (ou aparentes novidades), que determinam a obsolescência do que foi produzido na véspera. O efêmero, nesse caso, é um fenômeno provocado deliberadamente para manter crescentes as vendas. Um carro pode durar bem mais que um ano, mas é tornado “obsoleto” pelo lançamento do novo modelo — o “carro do ano”. Como não poderia deixar de ser, à medida que o capitalismo desenvolveu suas potencialidades, ele influiu crescentemente sobre a atividade artística. O surgimento do mercado de arte transformou a obra artística em mercadoria e fez atuar sobre ela as mesmas forças que atuam sobre as demais mercadorias. Criou-se uma situação conflitual que todos os artistas modernos viveram, em maior ou menor grau. E a busca da novidade pela novidade tornou-se um valor da arte, em função do mercado. Mas como a obra de arte não tem a utilidade funcional da geladeira e do liquidificador, essa busca da novidade, nela, levou à sua desintegração formal e ao que hoje se chama de arte conceitual — a não-arte. O Futurismo e o Construtivismo, ao tentarem expressar a modernidade, de fato contestavam os valores conservadores da arte de sua época e propunham novas linguagens artísticas, capazes de expressar um tempo novo. A arte conceitual não propõe nada. Apenas adotou, como fundamento ideológico, o caráter efêmero que o consumismo impôs à sociedade atual. Mas o artista verdadeiro resiste ao oportunismo do momento, não desiste da audácia de tentar fundar o permanente e criar o maravilhoso. O mundo seria muito pobre se nele não houvesse as obras criadas por Da Vinci e Rembrandt, por Velásquez e El Greco, por Goya e Cézanne. Já imaginou se o que restasse de nossa época fosse o mictório-fonte de Duchamp? Ou simplesmente nada?

Ilhas Contornadas, de Christo & JeanClaude, em Biscayer Bay, Greater Miami

Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

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CONVERSA FRANCA

O império da O

poeta Sebastião Uchoa Leite nasceu em Timbaúba (PE), em 1935, mas antes de completar os trinta dias de vida já se mudava para o Recife. Bacharel em Direito e Filosofia, participou ativamente da vida intelectual da cidade, conforme se verá no corpo da entrevista, até 1965, quando, aos 29 anos, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde publicou a quase totalidade dos seus livros (a exceção é Dez Sonetos sem Matéria, pelo Gráfico Amador, em 1960). Entre 1966 e 1995, publicou os livros de ensaios Participação da Palavra Poética, Crítica Clandestina e Jogos e Enganos. Nesse período, traduziu mais de vinte livros. Entre os mais importantes se incluem Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, de Lewis Carroll, Crônicas Italianas, de Stendhal, Canções da Forca, de Christian Morgenstern (tradução parcial), Poésie, de François Villon, entre outros. Em 1970, trabalhou na Enciclopédia Mirador Internacional (da Enciclopaedia Britannica), sob a coordenação de Antonio Houaiss. De 1976 a 1990, trabalhou no Departamento de Edições do Serviço Nacional de Teatro, no Rio de Janeiro; em 1986, tornou-se responsável pelo setor de edições da antiga Fundacen (Fundação de Artes Cênicas). Na década de 1990, foi funcionário do Arquivo Nacional e do Ibac (Instituto Brasileiro de Arte e Cultura) e coordenador de Editoração do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Sua obra poética inclui os livros Antilogia (1979), Isso Não É Aquilo (1982), Obra em Dobras, 1960/1988 (1988), A Uma Incógnita (1991), A Ficção Vida (1993) e A Espreita (2000). Sobre A Espreita, afirma o crítico João Alexandre Barbosa: “Uma poética rara mais do que de raridades que, desde a desmaterialização dos sone tos dos anos 60, foi aprendendo as lições que separam os poetas raros dos ralos até ser capaz, como neste livro, de deixar passar as sombras por caminhos feitos de pedras. Um raro entre os raros.” A entrevista foi realizada na residência do poeta, no bairro do Flamengo, em julho de 2002. 56 Continente Multicultural

O poeta Sebastião Uchoa Leite analisa a própia obra e fala da sua formação no Recife, ataca Gilberto Freyre e antecipa um trecho do novo livro de ensaios ainda inédito Sueli Cavendish


FOTO: BEL PEDROSA / AE

imaginação e da fantasia

Em 1980, há vinte e dois anos, você recebeu o Prêmio Jabuti, com o livro Antilogia. Em 2001, o Prêmio Murilo Mendes, com o livro A Espreita. Foi também premiado pela tradução de Poésie, de François Villon. E publicou, na Espanha, uma pequena antologia “antilírica”, com o título de Contratextos, tradução de Adolfo Montejo Navas, pela Editora DVD, de Barcelona, que obteve uma boa crítica de El País, em Madri. Nesses vinte anos, a crítica, assim como os seus pares, tem afirmado a importância da sua obra no panorama da poesia contemporânea. Seu nome figura em cinco antologias na Europa (duas na Espanha, uma na Alemanha e outra em Portugal) e em uma nos

Estados Unidos. Há, na Inglaterra, um livro em que você foi incluído. O mesmo aconteceu na Espanha e na Áustria. Prepara-sse ainda uma antologia na Argentina onde figura o seu nome. Que balanço faz dessa trajetória? Contrariando seu próprio verso, no poema “Migração” (A Ficção Vida, 1993), você não seria uma ave migratória que chegou a falcão? Esse poema a que você se refere, em que falo de aves migratórias, não é necessariamente um poema biográfico. Não estou me referindo a mim mesmo como ave migratória (embora o falcão me pareça ave muito feroz para mim). Mas, enfim, já que você colocou a questão, quero dizer que não me considero total-

O poeta, ensaísta e tradutor Sebastião Uchoa Leite

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mente migratório porque eu vim, é certo, do Recife para o Rio de Janeiro, mas não abandonei tudo por causa do Sul. De certa forma, mantenho minhas raízes, tenho parte da minha família no Recife (duas irmãs, Maria Antonieta e Selma; Célia Maria veio para o Rio) e continuo ligado lá. Não vou com freqüência porque é muito caro e não tenho condições de gastar tanto. Não acho que fiz esse sucesso todo, foram só algumas pessoas que se interessaram pela minha obra, ou coisa que o valha. Pessoas de qualidade, acho, modestamente, críticos conhecidos. Foram, sobretudo, críticos conhecidos ou amigos. Não posso dizer que sou um êxito de público geral porque não houve isso. Houve, sim, algo como um reconhecimento, sobretudo em São Paulo e em Minas, muito pouco no Rio e quase nada no Recife, infelizmente, embora quanto a esta última, não só jamais a abandonei como a lembrei em vários textos. Não só o Recife, mas outros lugares, como, por exemplo, São José da Coroa Grande e suas praias maravilhosas. Não “cantei” coisa alguma, porque não sou cigarra e nem as amo poeticamente, me desculpem. Houve, pois, um reconhecimento que considero relativo, embora algumas vezes significativo. Algumas críticas por A Espreita me deixaram muito satisfeito, sobretudo os maravilhosos textos de João Alexandre Barbosa (incluídos depois pelo editor por terem aparecido antes do livro A Espreita, quando o crítico João Alexandre analisou os originais do referido livro na revista Cult), Luiz Costa Lima e Davi Arrigucci Júnior. Essas críticas, para mim, superaram em muito a questão dos prêmios, que não significaram tanto quanto elas. Também me deixaram mais reconhecido. E bem mais conhecido também, sobretudo no sul do país, particularmente em São Paulo e Minas, como já foi dito. Haroldo de Campos diz que você é um poeta “sempre vocacionado para a concretude matricial de pedra pernambucana”. Uma vez que você tem sido apontado como o sucessor de João Cabral de Melo Neto, esteta da pedra e pernambucano confesso, poderia esclarecer que fios tecem essa relação? Pra começo de conversa, reconheço realmente a influência de João Cabral sobre mim, mas essa influência é muito relativa, e não sou sequer de longe igual a João Cabral, quanto mais discípulo dele. É só ler os meus livros, ora essa, porque sou muito mais coloquial do que ele, por exemplo. Acho que segui mais uma pequena vértebra do que as características gerais da poesia dele propriamente. Agora, quanto às outras 58 Continente Multicultural

observações, quanto a Haroldo, acho que foi um gesto de amizade que ele teve comigo, de me fazer aquela orelha tão simpática de A Espreita. Mas a questão da pedra matricial, acho bastante exagerada, com todo o respeito que tenho por ele. Acho que pode até existir isso, mas essa pedra não está só em João Cabral, está em Drummond também. Se você observar bem, nos poemas em que falo de Pernambuco não apelo tanto para a paisagem, embora tenha acontecido o fato de que sou muito ligado ao mar do Recife e a águas de Pernambuco em geral, e há muitas referências a praias pernambucanas, sobretudo a São José da Coroa Grande. A questão da pedra matricial, a que Haroldo se

refere, eu não consigo mesmo reconhecer em minha poesia, mas acho que há nela realmente a secura que é própria até da natureza das pessoas de outros estados não sulistas, sobretudo Pernambuco, mas isso não é uma questão de descendência desse fio matricial da pedra. Isso não é a minha poesia, e não vejo importância alguma dessa pedra matricial quanto a ela. Quer dizer, quanto à minha poesia (desculpem-me a ênfase nesse ponto pela insistência com que falam disso), e não quanto à de João Cabral. E a vida no Recife? Você viveu a infância e a juventude na cidade, época das primeiras definições. A


de ser poeta, por exemplo. Houve oscilações entre essa vocação e outras? Foi no Recife mesmo que essa decisão se cristalizou? E a sua formação, seus primeiros contatos e relações? Que autores/poetas você lia? Sim, vivi a infância e a juventude, mas não houve decisão alguma de eu ser “poeta”. Não é nada tão importante ou tão decisivo assim. Minha vida foi um pouco a esmo, ou à deriva, e jamais houve quaisquer oscilações, desculpem as contradições. Jamais tive vocação para coisa alguma na vida, só para a aspiração de uma vagabundagem infinita. Ao contrário de João Cabral, que preferia “o inútil do fazer ao inútil do não fazer”, coisa de calvinistas, acho, embora ele não fosse

FOTO: EDUARDO QUEIROGA / LUMIAR

“Nos meus poemas, há muitas referências a praias pernambucanas, sobretudo a São José da Coroa Grande”

crente, nem eu, muito menos. Essa história de poesia comigo é “preguicite” mesmo, e só. Não tenho ideais nem coisa alguma que me salvem de ser um mero pilantra, e muito menos uma fé qualquer. Sou um descrente total dessas lorotas todas y compris a religião, essa maluquice global, a que tenho horror profundo. Houve um tempo em que adorava ler gibis e mais nada. Quanto a mim, houve o império da imaginação e da fantasia, na infância e na juventude, e continuo fiel a isso tudo, embora, paradoxalmente, ame a verdade e a realidade e tenha gravado muitos documentários, sobretudo históricos. Minha biografia de infância e adolescência, por isso tudo, é zero. Minhas leituras e

contatos foram coisas demais para se falar aqui. Nem tenho essa memória toda, desculpe. Quando foi publicada sua poesia pela primeira vez? Foi no Recife, no suplemento do Diario de Pernambuco, por interferência de Mauro Mota, poeta, estudioso da região nordestina e editor de jornal. Era um homem muito importante... Levei uns poemas e uma apresentação de José Laurênio de Melo. Ele publicou cinco poemas numa página inteira. Foi uma surpresa e uma glória para um rapaz de 22 ou 23 anos, no máximo. E fiquei, de repente, conhecido. Mas nenhum dos poemas jamais foi publicado em livro. Eu era muito exigente. Você chegou a travar conhecimento com Carlos Pena Filho? Você freqüentou a boemia do Recife? Que memória tem do período? Claro que conheci Carlos Pena e gostava muito dele. Eu o achava superengraçado. Nossas idéias eram um pouco diferentes, mas, no fundo, éramos até parecidos, pois ele tinha um senso de humor fundamental para certa compreensão da poesia, que é a mesma que tenho: mais ou menos irônica em relação às sentimentalices comuns e convencionalismos em geral. Nesse sentido, acredito que ele morreu cedo demais e, por isso, não houve tempo para amadurecer mais. Sinto-me, diante da ênfase brasileira e, especialmente, pernambucana, alguém muito do contra, mas, embora paradoxalmente, pernambucaníssimo, muito mais por dentro do que por fora. Carlos era assim também, acho. E o Teatro Popular do Nordeste, o TPN, onde o Hermilo Borba Filho teve um papel fundamental? Houve contatos seus também com o MCP, o Movimento de Cultura Popular? Não conheci o TPN profundamente, só alguns espetáculos, sobretudo as peças de Ariano. Surpreendi-me uma vez de ele me citar o nome num desses espetáculos. Fiquei todo envaidecido. Conheci Hermilo um pouco. Era um tipo bem engraçado. Houve um momento em que ele se mostrou muito conservador (devo explicitar, entretanto, que Hermilo jamais aderiu a qualquer credo político, sobretudo de direita, aos quais, evidentemente, ele se opunha), e também Ariano. E discordei com veemência, nos tempos, infelizmente, do triste golpe reacionário militar-civil de 1964. Depois, creio que as coisas mudaram muito. O Continente Multicultural 59


Espreita Sebastião Uchoa Leite

É uma espécie de Cérebro Ninguém passa Não escapa nada Olho Central Fixo À espreita Boca disfarçada Que engole rápido Sem dar tempo Depois dorme Aplacado (1995)

tempo passou quase 40 anos e Ariano passou a apoiar Arraes e até colaborou numa das campanhas de Lula para a presidência. Hoje, continuo a apoiar Lula e detesto toda a corriola do PSDB, PFL, PPB, PMDB, enfim, a corja neocapitalista toda. Hermilo já morreu, e não sei que mudanças houve mais recentes quanto a Ariano. Continuará na linha da esquerda anticapitalista? Espero que sim. Ele disse uma vez que o capitalismo era a vergonha da humanidade. Concordo. Tenho horror a FHCs, Malans e tutti quanti. Horror político, pois essas pessoas me são indiferentes ou desprezíveis. Odeio também qualquer tipo de racismo. Ainda no Recife, em 1960, você publicou o seu primeiro livro de poesia, Dez Sonetos sem Matéria, pelo Gráfico Amador. Da experiência do Gráfico participaram muitos daqueles que se tornariam amigos seus de toda a vida, como Jorge Wanderley, Orlando da Costa Ferreira, João Alexandre Barbosa, José Laurênio de Melo, Aloisio Magalhães, Gastão de Holanda, entre outros. Qual o elemento galvanizador da experiência do Gráfico? Como avalia o clima intelectual no Recife da época? A presença do Gráfico na minha vida foi muito boa, porque se desenvolveram em mim várias experiências. Coisas que eu não tinha ainda conseguido compreender, como, por exemplo, o gosto dos livros do ponto de vista da qualidade material, lição inesquecível dos gráficos. E tive a influência, sim, de várias pessoas que me cercavam. As duas influências mais 60 Continente Multicultural

agudas do Gráfico Amador foram, sobretudo, a de Orlando da Costa Ferreira, que foi, digamos assim, quem gerou em mim toda essas coisas, como, por exemplo, o gosto pela qualidade e modernidade em tudo (até então, eu era meio indiscriminado quanto ao lado material dos livros e objetos em geral. Orlando era um espírito empreendedor, era ele quem mais estudava as artes gráficas, e tudo girava em torno dele), e, segundo, a de Laurênio, como também a de Gastão, que entrou com outros amigos na jogada. A experiência que eu tive foi muito boa não só no sentido intelectual, mas também no sentido do enriquecimento humano, porque eu tive o conhecimento de pessoas notáveis que viveram perto de mim e que me deram lições notáveis de vida. Entre elas, Laurênio, acima de tudo, que continua muito próximo a mim aqui, no Rio, e a quem julguei um mestre crítico em tudo e ainda como um poeta superior, que ele é ou foi, pois, estranhamente, desistiu de tudo. E também fiquei muito próximo de Orlando, não só um mestre nas artes, mas um mestre intelectual em geral. Ele era uma pessoa notável, que morreu cedo. E Gastão, que era uma personalidade muito esfuziante, pessoa de muita alegria, muito inventivo em tudo. À parte isso, tem outras pessoas que me levaram para lá. Jorge Wanderley foi um desses que me levaram para lá. E eu, depois, levei João Alexandre Barbosa. A participação de Luiz Costa Lima foi muito lateral, no Gráfico. Fiquei muito amigo dele também. Foi um grupo de amigos dessa ocasião que me influenciou muito, um grupo que era constituído por Jorge, João Alexandre, Luiz Costa Lima e Gadiel Perruci, além dos jovenzíssimos, na época, Adão Pinheiro e Marcius Cortez. E várias outras pessoas que se aproximaram também. No Gráfico, no chamado Atelier 415, da rua Amélia, havia outras presenças, sobretudo as de Aloisio Magalhães, que era só pintor na época e depois se fez muito importante, como designer, com grande atuação cultural, em geral, e dos arquitetos Glauco Campello, que chegou a ser presidente do IPHAN. Também Jorge Martins Filho, entre outros. O clima do Recife na época, em 1963, era de grande ebulição cultural, e eu atuava em várias áreas. No Jornal do Commercio, fiz o suplemento literário com João Alexandre (deixamos porque ficamos sob censura, em 1964, durante o golpe militar) e também participei como professor do Curso de Biblioteconomia (onde ensinaram também João Alexandre Barbosa, Gastão de Holanda, Gadiel Perruci, Orlando da Costa Ferreira e Adão Pinheiro). Fiz parte da revista Estudos Universitários, que foi


2 POEMAS INÉDITOS Sebastião Uchoa Leite

Antimétodo 1 Desoriento-me Sem qualquer Método Ou sem Qualquer fim Vou e não vou mas vou Caio Sem qualquer alarde O que é E não é Mas é O que é: é E o que não é: não é Desorientar-me É meu antimétodo

Antimétodo 2 Pouco a pouco Embaralho Tudo e nada Sou o meu próprio Espantalho Fujo De mim mesmo Finjo-me De minha própria Esfinge Perdido em meu próprio Labirinto Sou o que sou Ou minto? Isso É uma regra secreta? (2002)

fundada por Luiz Costa Lima e que foi fechada por Gilberto Freire (Nota: Uchoa Leite escreve de propósito com i, em vez de y. Pede respeitarem isso). Não foi fechada propriamente por ele, mas acho que obedeceram a um pedido dele, na reitoria, quando fecharam. E depois chutaram Luiz e mudaram a direção. José Laurênio, que acho um grande homem, também foi chutado da Rádio Universitária e trocado por um mediocrão intervencionista a mando dos milicos. Algumas pessoas não gostavam de Gilberto, como era o meu caso, que era um caso pessoal. Não gostava dele como pessoa, pois, intelectualmente, o conheci muito pouco. O grupo não era contra ele. Quem me levou à casa dele para conhecê-lo foi Orlando da Costa Ferreira, mas o grupo nem se contrapunha nem muito menos estava a favor dele. Eu o vi apenas uma vez e não gostei. Luiz Costa Lima publicou uma crítica a Gilberto, e eu então disse: “Cuidado, que a revista pode ser fechada”. E foi. É o que eu gostaria de falar. E, finalmente, que Paulo Freire, o educador, foi preso e depois exilado. Ariano Suassuna também freqüentava o Gráfico? Ariano é um autor do agrado do grande público e de nordestinos como você. Como vê esse fenômeno? Vejo, naturalmente, como algo positivo. Sempre ri muito com as comédias dele. Gosto demais da pessoa dele, corretíssimo como sempre foi, íntegro. Do ponto de vista artístico, temos muitas diferenças, pois ele crê em muitas coisas que não aceito, como, p. ex., o nacionalismo estético, que não consigo sequer entender. Desconfio que, na prática, Ariano professa algumas coisas sem ter esse rigor todo, pois tem consciência artística bastante para discernir o que é bom em geral, e não apenas convicções teóricas. Tem um gosto mais amplo do que se pensa, acho. Ele freqüentou muito o Gráfico, e era amigo de vários, particularmente de Laurênio e de Aloisio, e teve um livro editado por lá, chamado Ode. Em artigo para o Caderno Mais, da Folha de S. Paulo, como parte das comemorações dos 40 anos do Concretismo, Luiz Costa Lima o incluiu entre aqueles poetas “que portam a sua (do Concretismo) marca”. Poderia traçar uma breve história da sua participação (ou não) no movimento? Acontece que o Concretismo na minha vida foi um fenômeno que não foi só intelectual: foi um fenômeno pessoal também. Eu conheci pela primeira Continente Multicultural 61


vez Haroldo de Campos e Decio Pignatari em 1962, por ocasião de um congresso de crítica que se fez em João Pessoa, e fiquei com grande admiração por eles. Já havia tido informação sobre eles através de João Alexandre, que tinha visto uma interferência deles num congresso no sul do país e ficou admirado com a cultura deles, com a precisão com que falaram. Tudo isso nos levou a um novo julgamento do grupo, pois o nosso julgamento era, até então, muito superficial. Não tínhamos uma idéia no Recife do que eram, tínhamos uma idéia precária. Então, conheci os dois e fiquei amigo, sobretudo, de Haroldo de Campos, e trocamos correspondência. Conheci depois Augusto, em São Paulo, e ele também foi uma pessoa que teve muita importância intelectual para mim. O ponto que gostaria de afirmar é o seguinte: eles não me influenciaram no sentido comum do termo, o literário, mas exerceram uma influência intelectual geral sobre mim. Eu revi muitas coisas a partir deles. A minha colaboração com isso se limitou parcamente a um poema publicado em 64, na revista Invenção. Depois disso, tentei alguns poemas experimentais, que publiquei muito tempo depois, sob o título (um pequeno não-livro, nove poemas apenas) de Signos/Gnosis. Eu desisti desse veio porque, depois de pensar muito, cheguei a uma via própria, ou achei que tinha chegado a uma via própria através de poemas que eram, de certa forma, experimentais. Mas não naquele sentido formal estrito dos concretos. Eram experimentais no sentido de linguagem coloquial e de outros tipos de influência, como, por exemplo, poesia mais intertextual. Isso houve em minha vida, mas não acho que foi influência das vanguardas, eu não sei dizer se fui vanguardista ou não. Conscientemente, eu nunca fui vanguardista. Aliás, disse isso várias vezes em público. Jamais aderi a corrente alguma, e não digo isso com orgulho, não, digo isso talvez até por deficiência. Não consigo ser uma pessoa grupal. Aliás, jamais senti a tal “angústia da influência”, de Harold Bloom. Ignoro isso. Você poderia detalhar um pouco mais para os leitores em que consistiu de fato essa busca a que se refere, essa pesquisa de uma nova via? O que aconteceu entre Dez Sonetos e A Espreita está explicado de sobra no notável texto crítico de João Alexandre que precede a edição desse último. De um modo muito geral, ele diz, admiravelmente, que houve uma transformação lenta, aliás, lentíssima, pelo fato de eu praticamente “ruminar” as coisas. Então, me pare62 Continente Multicultural

ce que não houve uma “guinada” tão radical assim. Houve mais um reajuste de linguagem. Negatividade, ironia/auto-iironia, amargura. Esse trinômio, tendendo para o esvaziamento progressivo do Eu-llírico, tem muitas vezes caracterizado o seu percurso. Você concorda com essa leitura? Não concordo de modo algum com esse “esvaziamento”, pois discordo do “ataque à tradição” de que alguns falam. Isso seria até uma contradictio in terminis, como diziam os escolásticos. Vamos voltar aos hieróglifos? Aliás, o que é o “eu-lírico”? Alguma sentimentalice? Se for, então sou contra mesmo. Não concordo com a linguagem complacente com lugarescomuns e pieguices em geral. A literatura em geral, a ficção, e não só a poesia, tem sido, desde o século 19, (lembremos apenas Moby Dick como exemplo) obsessivamente auto-rreflexiva, encenando o esforço do ver-sse a si mesmo, marcado pela negatividade. Ou seja, o animal humano tentando morder uma cauda que não tem. Com que marca especial sua poesia se inscreve nesse processo? Acho que foi sobretudo a partir de Antilogia, de 1979, marcadamente intertextual. Mas fui, aos poucos, tentando me aproximar da realidade, concretizála. Consegui isso em parte, apenas, por causa dessa tendência a abstratizar demais. Consegui fazê-lo tentando me aproximar da realidade e de seus horrores. Não sei se imprimi uma “marca especial” nesse processo, nem me sinto tão negativo assim. É verdade que não tenho fé, nem esperança ou caridade. Não me sinto muito cristão. Quem pode ter fé, vendo obsessivamente as notícias dos telejornais, como eu faço? É difícil, não? A sua poesia é considerada de identificação difícil para o leitor, parece dirigir-sse aos “raros apenas”. Algum dilema com respeito ao fato de não atingir um público maior? Isso chega a ser frustrante? Nenhum dilema, nem sinto qualquer frustração em não ser “popular”. Eu, hein? Quem quer ser popular vai ser ou jogador de futebol ou cantor. Jamais o conseguiria, mas tenho a maior admiração por muitos, como João Gilberto ou Caetano, ou Rivaldo e Ronaldinho. Tenho grande admiração. O outro caminho é vender poesia, que tal? Há quem consiga, como não? Bom proveito! Você lê poetas pernambucanos contemporâ-


“Haroldo de Campos fez uma orelha simpática de A Espreita, mas exagerou na questão da pedra matricial”

FOTO: ROSON FERNANDES / AE

neos? Quem são os de sua predileção? Não, porque recebo de toda parte do país, menos do Recife. A exceção é Eduardo Diógenes, meu amigo. Acho que no Recife não sou muito conhecido, sei lá por quê. Mas não prometo responder a ninguém se mandarem coisas de repente. Estou muito doente, essa é que é a verdade. Infelizmente. Diógenes me escreveu uma vez e respondi, mas não tenho lá grandes forças hoje. No passado, amei Bandeira, Joaquim Cardoso (com s, por favor), João Cabral, é claro, Carlos Pena Filho e, mais recentemente, o pranteado Jorge Wanderley, de muitas memórias pessoais. Posso ter esquecido alguém. Perdoem-me por tudo, por favor. Os seus ensaios críticos (Crítica Clandestina, Livraria Taurus, e Jogos e Enganos, Ed. UFRJ/Editora 34) revelam um Sebastião Uchoa Leite bastante heterodoxo, com interesses os mais variados. Que lugar ocupam esses ensaios na sua estética? Sempre fui muito heterodoxo em tudo. Só se engana quem nunca me leu os ensaios nem a poesia. Ou não me conhece pessoalmente. Que outro Sebastião existe? Ou conhece? Jamais amei qualquer ortodoxia, juro. Sempre tive horror a elas. Não tenho qualquer “estética” ou coisa parecida. Oswald de Andrade chamava A Estética da Vida, de Graça Aranha (um acadêmico idiota), de “A Bestética da Vida”. Que maravilha! O lugar que os meus ensaios ocupam são

os mesmos que os da poesia e da música, o do prazer. Aliás, os títulos dos livros já não dão aos leitores a idéia de heterodoxia? Acho que sim. Você tem um livro no prelo. Poderia antecipar para Continente que novas direções ele persegue? O livro novo, que sairá pela editora Cosac & Naify, tem o título de Crítica de Ouvido. São ensaios sobre generalidades diversas, sobretudo sobre poesia brasileira, mas sobre outras coisas também, inclusive cinema. O editor pensou em meu grandioso nome e em me prestar homenagem editando esses trastes, pois, comercialmente, nada valem. Não se perseguem quaisquer novas direções, são as mesmas manias de sempre. Mas o texto mais extenso é sobre “poesia e cidade”, começando com Baudelaire e terminando com os poetas brasileiros, y compris Haroldo & Augusto. O penúltimo é sobre o universo visual de Lewis Carroll e traz fotos das menininhas que ele tirou, com aquela “inocência” toda das espertas meninas inglesas da era vitoriana. Há também, esperando na minha vultosa obra completa, um livro novo de poemas, o qual ainda não tem editor. Tomara que se editem os dois. O de poesia terá o título de A Regra Secreta — em tempo, e parece que assim será. Senão, quem se ligaria nisso?

Sueli Cavendish é Professora Doutora do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Beatrice Henley, filha do vigário de Putney

Lewis Carroll fotógrafo Sebastião Uchoa Leite

Uma outra dimensão do universo simbólico de Lewis Carroll é a sua arte de fotógrafo. Nela, o autor exercita, por um lado, o seu grande interesse pela visualidade, e por outro, deixa fluir, às vezes explicitamente, a sua libido excêntrica mal dissimulada. Carroll especializou-se em retratar meninas. Naturalmente, não apenas isso. Era um fotógrafo bastante apreciado (o segundo, consta, da época vitoriana) que fotografou muita gente da sociedade que freqüentava e onde ocupava o lugar de excêntrico solitário: conhecidos, amigos e filhos de amigos, escritores, artistas eram objeto de sua arte fotográfica social. Retratos posados sempre de alta competência. Mas a aplicação realmente simbólica da técnica fotográfica centrou-se nos seus retratos esmeradamente posados de meninas 64 Continente Multicultural

impúberes, em sua maior parte. Neles, muitas vezes Carroll não se satisfazia só com o aspecto natural da foto. Tinha que criar um artifício. O cume desse artifício está no retrato da menina Alice travestida de pedinte, com a mão estendida. Nele, Alice Liddell está com um vestido rasgado, mostrando os braços e as pernas, com os pés descalços, uma das mãos fechada na cintura e a outra aberta como quem pede esmola, o corpo encostado a um muro limoso e de folhagens bastante sugestivo. Além da erotização explícita, há um fundo pervertido em contraste com o rosto infantil. Ainda que este seja um exemplo máximo, não é único nesse universo visual. Numa bela foto de Mary Ellis, ela se recosta num tronco rugoso e folhagens,


mas aí a erotização talvez fosse inconsciente. Não será este, certamente, o caso de uma foto de Xie Kitchin, em que ela repousa, dormindo, reclinada sobre um sofá, com o vestido abaixado, mostrando os ombros nus, propositalmente descobertos (como também se vê na foto de Alice “mendiga”) com a mão pousada sobre o regaço. Xie, aliás, uma favorita, aparece em outras fotos sugestivas, uma reclinada num sofá com um livro no regaço, outra também dormindo na cama e finalmente de pé contra a parede, ou com um violino. Uma foto de Irene MacDonald parece bem inocente. Ela está de camisola, com uma escova numa das mãos e um espelho noutra, que pousa sobre uma cadeira. Mas os cabelos estão significativamente soltos, os pés descalços. Viramos a página e nos defrontamos com a mesma Irene reclinada num sofá. Não está descalça, nem dorme. Mas a expressão do seu olhar perdido está entre o sono e o êxtase. Não se pode negar a relação estreita entre o sono, o ato de se estar deitado sobre travesseiros ou inclinado sobre almofadas em um sofá e o erotismo. Mary Millais, por exemplo, está recostada num chão que parece de grama ou de tapete felpudo. Ela se encosta onde duas paredes se encontram, com uma expressão indefinível. Detalhe: a veste parece uma camisola, como era também uma camisola a veste de Mary MacDonald. Uma “desconhecida” também está reclinada no canto de um sofá. Não é uma obsessão? Também os recantos, a posição inclinada e a expressão longínqua, próxima do êxtase. Nada disso se encontra nas fotos comuns de familiares, pessoas distintas ou renomadas que também consistiram o alvo das fotos do “reverendo” que se dizia “praticamente um leigo”. Carroll tem, sem dúvida, muitas obsessões expressas nessas fotos, entre elas os sofás, os muros, os recantos. Suas fotos valeriam uma análise simbólica mais detalhada. Além disso, ele se esmera em fantasias de travestimento, como a de Alice Liddell “vestida” de mendiga. Xie Kitchin, um seu modelo multiforme, aparece ora como “chinesa”, ora como “russa”, ora como “cozinheira”, ora afundando numa esquisita poltrona triangular, ora com os pés descalços, uma espécie de pá e um cesto. Nas muitas fotos de Xie ela jamais está sorrindo. Há um detalhe significativo: as meninas são sérias, em sua maioria. E certamente é desta “seriedade” que emana a erotização fisionômica, com olhares mortiços entre o sono e outra coisa. O

grande retratista mostrou a coerência profunda entre a sua arte fotográfica e a de escritor. Carroll não é jamais um fotógrafo do instantâneo e da naturalidade. É o antiestilo Cartier-Bresson. A sua fotografia é, como a sua escrita, uma arte intrinsecamente recherché e as suas composições estudadas seguem o princípio do jogo ficcional: é preciso fingir algo que não é para se chegar a uma outra verdade. Essas inumeráveis meninas são, sem dúvida, uma arte da variação: a imagem se multiplica indefinidamente, é Alice Liddell ou Xie Kitchin, potencializadas e atualizadas ao máximo, o amor espiritual ou o jogo erótico múltiplo. As meninas são comparsas nesse jogo, e são sérias como o jogo erótico levado ao ponto máximo, sério e, se possível, em êxtase. O artista deve ter experimentado inúmeras comparsas até chegar a uma musa, Xie Kitchin, aparentemente submissa a esse jogo de poses. O universo visual de Carroll é múltiplo e diversificado, dos desenhos produzidos pelo próprio escritor, ditos “amadores”, às inúmeras variações que a sua obra gerou, e finalmente ao jogo indefinido de poses da arte fotográfica. Mas este universo guarda, além de suas obsessões comuns ou específicas (como as de suas fotos) um princípio unificador, que é o princípio do jogo de linguagem. No caso dos desenhos, há regras básicas de identificação, e uma delas, profundamente lúdica, é a do prazer e divertimento, sem a qual sai-se do universo carrolliano específico do humor e da superfície. No caso das fotos, o princípio é o mesmo, só que a regra de identificação segue, naturalmente, as condições específicas da arte fotográfica, ou seja, o jogo da composição do conjunto, as angula ções e o foco. Naturalmente tais necessidades técnicas estão profundamente ligadas à sua fantasia imagética. Estar recostada a um canto, como sucede às suas pequenas musas, não somente implica uma sugestão de fundo erótico, como também corresponde a um ângulo especial. Mary Millais, por exemplo, está recostada no ângulo entre duas paredes, e o ângulo reto forma um contraste com o seu rosto redondo, a veste solta e a perna que se estira sobre um tapete felpudo. Ou é grama e um ângulo entre dois muros? A foto é ambivalente. A doce Mary Ellis se encosta num tronco rugoso de árvores, que é também uma coluna, digamos, e ambos (menina e tronco) ocupam o centro da foto, rodeados de folhagens: há uma identificação entre vida e textura vegetal, e essa textura Continente Multicultural 65


Irene MacDonald, filha de George Mac Donald

é também a matéria da foto. Xie Kitchin dorme recostada a um canto de uma espécie de canapé e há aí também um jogo sutil de formas em que a figura suave da menina é envolvida pelas curvas do móvel. Alice Liddell está também recostada num canto de muro, envolvida por pedras limosas e vegetações. Irene MacDonald está com os cabelos soltos e uma camisola folgada: ela parece toda “natural”, mas pousa um espelho redondo sobre uma dura e retilínea cadeira de palhinha. Noutra foto de Irene ela se encolhe graciosamente com a cabeça inclinada sobre uma almofada, coberta de uma manta sobre a veste branca, com o braço despido por fora da manta. O jogo é de curvas que envolvem curvas e a forma definida pelo retrato é uma forma ovalada horizontal. Talvez houvesse diferenças entre o homem Charles Dodgson (tímido, gago e ranzinza com a idade) e o artista Lewis Carroll. Mas o artista Carroll é um só em todas as suas facetas: o desenhista amateur, mas inquieto e inventivo; o ficcionista e poeta que fascina pelas suas invenções de imagens e jogos verbais; o lógico que coloca questões e as resolve em paradoxos lúdicos; e o fotógrafo que joga com formas e planos, além de se divertir com o travestimento de seus modelos. Não há espaço aqui para entrar no curioso aspecto

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das referências cruzadas em Carroll. Só como exemplo, cite-se a sua atração pelo universo dos pré-rafelitas. Assim, observou-se que o penteado de Alice lembra o do óleo de Dante Gabriel Rossetti Helena de Tróia, e sabe-se que Carroll fotografou desenhos de Rossetti. Noutra pose em Wonderland, Alice tem a cabeça inclinada para a direita, imitando, ao revés, a cabeça inclinada à esquerda da Garota com Lilases, óleo de Arthur Hughes, uma das suas admirações. E seria interessante observar a relação que guarda o desenho de Alice na casa do Coelho Branco e o retrato deitado de Irene Mac Donald. Enfim, reconheça-se, ainda, que no Carroll fotógrafo de meninas subjaz um sátiro desviante, perturbador para as normas comportamentais não só do seu tempo como do nosso. Visto , porém, à luz genérica da produção simbólica e da diferença, esse sátiro foi só um artista, e a essa luz a sua contribuição foi marcada pela singularidade das suas criações.

Fragmento do artigo “O Universo Visual de Lewis Carroll”, do livro Crítica de Ouvido


AnĂşncio

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA

Uma palavra feita de sangue, fel e fúria Joel Silveira

1.ACORDO DE PAZ Desprendo os dedos do teclado, é imperativo. Sinto que vacila a velha máquina, antes tão fiel, tão submissa, tão ingenuamente certa do que fazia. Vacilam os tipos, vacilam as palavras que não querem mais ser usadas, porque aprenderam que nunca foram ou serão ouvidas. Esmaecidas e exaustas, as teclas parecem implorar: – Deixa-nos em paz. Não vês que perdemos a voz ?

2.MANDAMENTO ELEITORAL Pobre que vota em rico não é digno de ser pobre.

3.CONFIRMADO: O INFINITO É INFINITO

Agora, com a ajuda desses formidáveis telescópios, toda semana um astrônomo descobre uma nova galáxia. O que me leva a acreditar de uma vez por todas que o Infinito é de fato infinito.

4.SINFONIA DE ERROS Como são desagradáveis os ruídos domésticos! Tilintar de talheres, conversa de empregada, vozes de vizinhos, tosse de velho, latido do cachorro do terceiro andar, estridulante campainha, o telefone do sétimo que toca, toca e ninguém atende, o cantarolar carnavalesco do encanador que foi convocado às pressas, a conversa matreira do “técnico” em televisão, o lavar dos pratos após o almoço... Um tormento. Em compensação, são esses ruídos, tão incômodos, que fazem com que o silêncio das madrugadas nos pareça a suprema dádiva, a desejada e total bem-aventurança.

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5.ESPERANDO – E você, o que tem feito? – O que sempre fiz. Continuo esperando. Não é possível que um dia Godot não apareça.

6.CRÍTICA LITERÁRIA O “estilo” daquele articulista sempre me pareceu solene e imune a apartes. Como discurso em cemitério.

8.BRASIL REAL Vamos deixar de ilusões e cair na real: a capital do Brasil não é Brasília, é Ceilândia.

7.CONSOLO De Otto Lara Resende: “Quem morre do terceiro andar para baixo não é notícia”. A informação me conforta. Como moro no sexto, é possível que venha a ter direito a um necrológio de seis linhas – uma para cada andar.

9.A PALAVRA QUE FALTA Está faltando uma palavra no vocabulário humano. Precisa-se urgente dessa palavra. Uma palavra feita não apenas de letras, mas também (e principalmente) de sangue, fel e fúria. Uma palavra que, sozinha, consiga definir a podridão, a irracionalidade e o desvairio do mundo de hoje. Uma palavra que jamais possa ser desmentida nem esquecida.

10.IDENTIDADE NACIONAL Um país onde o povo não tem coragem de ser contra o Flamengo e a Mangueira não pode ser tido na conta de um país corajoso.

Joel Silveira é jornalista

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MÚSICA

Verso e verbo ásperos Reunindo convidados e parceiros de norte a sul do Brasil, e até de fora dele, Chico César lança o quinto CD da sua carreira numa grande defesa da diversidade cultural. Patrycia Monteiro

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Q

uando se trata de Chico César, adjetivos como sensível, espontâneo, singelo e intuitivo logo são relacionados à sua interpretação e às letras das músicas de sua autoria. Já disse Oscar Wilde que se um homem encara a vida de um ponto de vista artístico, seu cérebro passa a ser seu coração. E talvez Chico César seja assim. Mas a mente ágil e a fala ligeira não enganam: esse paraibano de Catolé do Rocha também pode sair do sério. E sai, sim, de vez em quando, ao modo dele, sem jamais perder a ternura e o senso de humor. De cara o público vai perceber isso na músicatítulo do seu mais novo trabalho, Respeitem os Meus Cabelos, Brancos. Prestem atenção na vírgula, porque é com sutilezas como essa que Chico deu sua resposta aos censores de plantão acostumados a zombar do seu penteado — justamente desses cabelos “malucos” com os quais Chico pretende divertir os futuros netos... Entretanto, o respeito reivindicado por Chico César não é exigido só para si. Ele quer que esse privilégio se estenda a todos os seres humanos e suas particularidades. O músico deseja que todas as formas de expressão individuais sejam não apenas toleradas, mas respeitadas de fato. Idealismo? Pode ser. De todo modo, o próprio artista saiu dando exemplo. O quinto CD da sua carreira reúne convidados e parceiros de vários sotaques, entre eles, Naná Vasconcelos, Chico Buarque, Carlinhos Brown e o compositor espanhol Luiz Pastor, parceiro na canção Nas Fronteiras do Mundo.


FOTO: DIVULGAÇÃO

Com a colocação de uma vírgula, o Sr. conseguiu dar novo tom irônico a uma antiga frase: Respeitem os Meus Cabelos, Brancos. O título do quinto CD da sua carreira é uma provocação? É mais uma reação do que uma provocação. Eu acho que os brancos, como uma raça hegemônica, historicamente provocaram muito. Por outro lado, os negros e os índios se expressaram pouco, participaram pouco das decisões. O estalo para esse título se deu no Recife, em um dos shows que fiz na cidade durante o Carnaval deste ano. Lá pela terceira música, os jovens da periferia começaram a se soltar e a dançar energicamente, ao modo dos punks, se jogando uns contra os outros. Vendo nisso uma manifestação estranha, a polícia se aproximou com seus cacetetes. Na hora me senti tão indignado. Fiquei pensando: “Puxa, os caras passam o ano inteiro ralando, e quando chega a hora em que querem extravasar, são reprimidos”. Isso sem falar na falta do diálogo, já que a polícia chega logo batendo. Então, eu parei tudo e disse: “Olha, esse tempo de bater em preto e pobre já passou. Vocês podem ir para casa. Deixa que aqui a gente se governa”. Em seguida, eu me dirigi ao público e o show transcorreu tranqüilamente bem. Inclusive, no começo, estava predominando um sentimento de individualidade. Mas, a partir daquele momento, o pessoal passou a se sentir mais ligado coletivamente — e isso me tocou muito. Quando cheguei em São Paulo, eu fiquei pensando nesse episódio. Percebi que sou um artista

que vem desse estrato social mais prejudicado e que sei me comunicar bem com esse grupo — tenho coisas para dizer a ele e vice-versa. Lembrei de outras músicas minhas que abordam a questão racial, como Mama África, Mandela e Dá Licença. Ao lançar o novo CD, algumas pessoas até estranharam. Ficaram surpresas sem conseguir entender como um compositor tão doce, lírico, capaz de escrever letras como À Primeira Vista, pode ser também tão severo. Mas acho bom poder ser assim. Afinal, como todo ser humano, tenho dentro de mim tanto a leveza quanto a aspereza.

No disco Respeitem os Meus Cabelos, Brancos, Chico César desvela o seu lado contestador

Mas, pessoalmente, o Sr. alguma vez foi vítima de discriminação racial? Muitas vezes... Sobre o meu cabelo mesmo, escutei todo tipo de comentário. Já me chamaram de Cebolinha, Beterraba, Formiga Atômica... E eu tomei como base esse lado pessoal também. Na verdade, eu acho que brincadeiras como essas partem de pessoas que se sentem incomodadas quando um negro assume e traz para o centro da sua personalidade a questão racial com um penteado, com roupas, com atitude... Essas pessoas se chocam um pouco e isso acaba criando alguns desentendimentos. Ninguém, por exemplo, faz piada com o cabelo do Ciro Gomes — que quase não tem. Porque o estilo dele é mais estabelecido, mais europeu, mais branco, enfim. Uma vez, um apresentador de televisão comentou que achava que a Maria Bethânia gravava as músicas dela Continente Multicultural 71


inspirada no meu cabelo, porque olhava para mim, via aquele “coqueirinho” e se lembrava da Bahia. Ou seja, o comentário tenta desvalorizar o que está por dentro, tendo como ponto de partida o que está por fora. A pessoa observa o aspecto visual, e isso perturba, quando de fato o que incomoda mesmo são as idéias do outro e a sua maneira de se colocar no mundo. Com freqüência, vem a tentativa de reduzir: “Ah, esse cantor é apenas um cara exótico”. A minha música traz a minha resposta para tudo isso, mas sem deixar de ser bem-humorada.

Passeata do MST, ao qual Chico César presta colaboração, tocando pontualmente nos encontros

Pois é, embora a crítica contra o preconceito racial esteja sempre presente nas letras de suas músicas todas, ela é temperada com pitadas de humor... Em contraposição, o Sr. faz alguma militância mais séria a favor da causa negra? Eu contribuo pontualmente, tocando nos encontros do Movimento dos Sem-Terra e no dos SemTeto, em São Paulo. Mas não milito de uma forma direcionada. É que, na minha opinião, o problema racial acabou se tornando um problema mais social no Brasil. Nesses movimentos, em que eu costumo me apresentar, a maioria das pessoas que eu encontro é formada por negros — apesar de o censo apontar que essa população corresponde a mais ou menos 6% do contingente brasileiro. As pessoas não se reconhecem como negras. Recentemente, aconteceu comigo uma situação engraçada quando eu fui tirar a carteira de identidade de uma sobrinha e aproveitei para renovar os meus documentos. Lá, na repartição, a senhora que me atendeu perguntou: “E a cor da pele, Chico? O que é que eu ponho?”. Eu respondi: “Negro, é óbvio”. Ela discordou, retrucando que eu não era negro. Então eu falei: “Ué? Você vai dizer para mim que eu não sou negro? E eu sou o quê, então? Branco?”. A funcionária, resistente, chamou todo mundo da repartição e resolveu fazer uma espécie de plebiscito para decidir se eu era negro ou não. Eu tive de bater o pé e reafirmar que sou negro e que ninguém decidiria isso no meu lugar. No final, ela aceitou a minha resposta, argumentando que artista não podia ser contrariado. Mas ainda se sentiu em dúvida: “E a menina, coitada? Ponho negra também?”

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“Eu me considero de esquerda. Sou filiado e sempre votei no Partido dos Trabalhadores” As suas composições apresentam também um tom crítico em relação à vida política e social do país. O Sr. se coloca como uma pessoa de esquerda, de direita, ou está entre aqueles que consideram esses conceitos ultrapassados? A história não acabou. Acho que, no geral, as experiências socialistas descambaram para o totalitarismo — o que não quer dizer que o capitalismo tenha dado certo. A gente vê que não deu, que não resolveu problemas básicos de distribuição de alimentos, de distribuição de riquezas. Eu me considero de esquerda, até pela própria formação que eu tive, através do meu irmão (Nota: o irmão de Chico César, Luiz Gonzaga da Silva, é líder do Movimento dos Sem-Teto em São Paulo). Sempre votei no Partido dos Trabalhadores, sou filiado e cheguei até a trabalhar na secretaria do partido, em João Pessoa. Naquela época, eu era um adolescente e isso me deu uma base política forte. Mas, acho que, independentemente da facção, a gente vive um momento bem interessante na vida política brasileira. De certa forma, os principais candidatos desta eleição presidencial vieram da ala centro-esquerda. Percebo que a sociedade vai perdendo o medo do Lula, e que ele, mesmo com esse discurso mais moderado, mais confiável, não perdeu a essência do metalúrgico. O Lula é uma grande liderança do Brasil, assim como são Vicentinho e Luiza Erundina. Não por acaso, todos são nordestinos e descendentes desta


mistura entre brancos, índios e negros. São pessoas que construíram sua própria história e que generosamente ajudaram a construir parte importante da história recente do país.

FOTO: PAULO PINTO / AE

Quando o Sr. despontou para o grande público, já falava em galgar uma carreira internacional. As turnês realizadas fora do Brasil, como as do ano passado, têm como objetivo alavancar esses planos? De que forma o público estrangeiro recebeu sua música? Desde 1997, resolvi ficar uma parte do ano no Brasil e outra parte do ano fora. Com o passar do tempo, essa permanência fora foi aumentando. Em 2001, fiquei três meses viajando direto: foi um mês na Europa e dois meses entre os Estados Unidos e o Canadá. Tive ainda discos lançados no Japão, Finlândia... Eu sabia que a minha música poderia ter uma entrada forte fora do país, principalmente com os shows — com discos é sempre uma coisa pequena, vendem bem, mas comparado aos números do Brasil, são números ínfimos. Eu gosto muito de tocar no exterior, mas eu senti que isso acabou me afastando da imaginação do público brasileiro. Isso acontece por-

que, quer queira, quer não, para se fazer presente é preciso manter o aparecimento na mídia, na televisão, tocar no rádio... Ao lançar o novo disco, decidi que este ano não tem turnê na Europa — apesar dos convites. Vou ficar no Brasil até novembro ou junho do próximo ano. Mesmo com as dificuldades do idioma, o público estrangeiro recebe bem a minha música. Acho que isso se dá graças ao trabalho que foi começado por outras pessoas, como Gilberto Gil, Jorge Ben Jor e Djavan. O fato é que essa geração de artistas, e até a geração anterior, a da bossa-nova, cultivou um terreno ótimo para as gerações que vieram depois. Por isso, assim como no futebol, a qualidade da MPB é reconhecida internacionalmente. Entretanto, a boa receptividade à minha música é decorrente também do componente africano que faz parte dela e que hoje é muito respeitado na Europa. De fora para dentro, que novas influências musicais estrangeiras o público brasileiro vai poder perceber no seu repertório daqui para frente? Sempre fui muito aberto para ouvir o som produzido em outros países. Gosto de música árabe, indiana, africana... Desde o meu quarto disco, sempre que acho pertinente, incluo algumas descobertas musicais no meu trabalho. O Mama Mundi tem músicas feitas em vários lugares do mundo, e esse disco mais recente, também. Mas, nem sempre as músicas que eu componho no exterior sofrem essa influência. A minha música vai para onde estou, ela faz parte de mim. Um aspecto interessante dessas viagens é a aproximação que tenho com artistas de outros países. Esses encontros têm sido muito férteis para mim. Deles surgem parcerias fecundas, como a que fiz com o espanhol Luiz Pastor — que lutou contra a ditadura franquista — e o cunhado dele, Pedro Guerra, que fez uma versão de À Primeira Vista, gravada em DVD com participação de Lenine e Daniela Mercury.

Caetano Veloso, com quem Chico César foi comparado: “Não se preocupe”

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Além de parceiro musical, Zeca Baleiro dividia com Chico, no início da carreira, apartamento em São Paulo

Por não estar vinculada, no início, às demandas comerciais das grandes gravadoras, a sua obra surgiu “sem a obrigação de fazer um som característico do seu tempo, enquadrado em normas e preceitos”, como o Sr. afirmou em outra entrevista. Essa liberdade criativa do começo é difícil de ser mantida? Eu batalho por ela. Não faço nada que seja mentiroso para mim. Sou um cara que tem um dom para fazer canções de amor, por exemplo. Mas, até hoje, eu não quis fazer um disco formado apenas por canções de amor. Acho que ficaria muito lambido, muito meloso. A gravadora sempre quis que eu fizesse uma outra Mama África, e eu nunca fui atrás disso. Prefiro fazer algo em que acredito. Mas eu também não posso negar essa facilidade de comunicação que tenho com o público e me fechar. Não desejo evitar essa comunicação e passar a fazer apenas trabalhos muito herméticos. Gosto de atrair o público com músicas que permitam uma comunicação mais fácil, mas também gosto de atraí-lo com coisas diferentes. Nesse 74 Continente Multicultural

sentido, eu conquistei um lugar que me possibilita produzir músicas que não são óbvias. E tanto a gravadora quanto o público se acostumaram a esperar de mim elementos estranhos, imprevisíveis. Aliás, acho que um dia as pessoas vão até estranhar se eu não trouxer coisas estranhas nos meus discos. O Sr. começou a carreira musical à margem do circuito comercial, era apreciado por uma platéia reduzida que, aos poucos, foi se expandindo. Em um segundo momento, nomes consagrados da MPB passaram a endossar seu trabalho e hoje o Sr. se tornou uma referência da própria MPB. Como avalia a sua trajetória? O Sr. chegou aonde queria chegar? Eu me sinto confortável em relação a essa possibilidade de ir e vir, de poder dialogar com os rappers de São Paulo, por exemplo. E, ao mesmo tempo, eu posso chamar pessoas como Chico Buarque para gravar comigo, posso ser gravado por Maria Bethânia, Elba Ramalho, e isso com freqüência. Essa continuidade das coisas era algo que eu queria para mim, no meu trabalho. Eu queria a liberdade de poder estar em um ambiente ou noutro, conforme eu desejasse. Acho chato ficar limitado ao ambiente dos roqueiros da MTV ou restrito ao ambiente dito sofisticado da Música Popular Brasileira. E creio que isso não é uma característica exclusiva, a minha geração tem um pouco disso. Houve um momento na minha carreira que foi uma grande explosão, em que eu me tornei conhe-

FOTO: DIVULGAÇÃO

Também compus para uma cantora portuguesa chamada Né Ladeiras. Ela gravou um disco com músicas minhas inéditas, em que as letras são todas no feminino e refletem o olhar da mulher na época do Descobrimento. Imaginei o sentimento da européia que via seu marido, filhos e irmãos partindo, tragados pelo mar, e também descrevi a africana laçada no meio da selva, afastada da família, a índia no Brasil...


“O aspecto visual perturba, mas o que incomoda mesmo são as idéias e as maneiras do outro” cido em todo no Brasil. Tudo isso foi muito bom para mim, porque fiz shows no país inteiro e, a uma certa altura dos acontecimentos, pude fazer discos mais sofisticados posteriormente. Qual é o disco da sua carreira de que o Sr. mais gosta? Eu gosto muito mais do Mama Mundi do que do Cuscuz Clã. Mas o Cuscuz Clã foi um disco que fez muito sucesso. À primeira Vista tocava em uma novela, na voz de Daniela Mercury, e, além disso, foi escolhida a música do ano. Mama África ganhou o prêmio de melhor videoclipe de MPB... Aliás, me orgulho muito desse prêmio, porque a gente fez um clipe barato, em Catolé do Rocha, com a minha família e o pessoal de lá. Foi muito legal. Na seqüência, veio o Beleza Mano, bem mais sofisticado, um tanto hermético, talvez... Nele trouxe arranjos eletrônicos delicados... Minha idéia inicial era a de quase fazer dele um novo Aos Vivos, colocando a voz e os violões na frente. Nesse sentido, o disco é muito vitorioso, porque me leva de volta para um lugar que era meu, que é o terreno da delicadeza. É um disco enorme, com dezenove músicas, e uma série de convidados de estilos diferentes tocando juntos. Nesse sentido, esse disco é um tanto esquizofrênico, porque eu queria muito mostrar a minha formação, o que me influenciou. Havia internamente um desejo de trazer músicas que estabelecessem uma comunicação imediata. Por outro lado, eu temia cair de cabeça no pop e fazer um som tipo Cidade Negra. Não queria me transformar em um cantor de reggae, então, dificultei as coisas... Não era um disco que iria vender fácil porque, na época, quem é que vendia fácil? Era o Padre Marcelo Rossi, o Só Pra Contrariar. O resultado de Respeitem os Meus Cabelos, Brancos me surpreende um pouco. É que, desta vez, a

crítica e a gravadora receberam bem o meu trabalho. Normalmente, a gravadora fica meio assim com os meus discos. Lá chegam a dizer: “Pô, o Chico fez mais um disco difícil. Como é que a gente vai trabalhar a divulgação do CD?”. Mas agora é diferente, a gravadora ama o disco e a crítica fala muito bem dele. Eu não entendo. Antes, pensava que se a gravadora não gostasse, a crítica iria gostar. Hoje, sinto que houve uma aproximação do gosto do mercado e do pensamento, no caso, a crítica. Mas qual foi o segredo do sucesso do Cuscuz Clã? Por que os discos posteriores não repercutiram na mesma medida que esse? Foi um disco que nasceu de uma série de apresentações que eu fazia numa casa de shows lá em São Paulo. Então, quando fui para o estúdio, tinha Mama África, Pedra de Responsa, À primeira Vista... Ou seja, havia muitos hits que o público já conhecia. Era um disco muito alegre, em um momento que o mercado de CDs estava muito aberto também. Vários artistas chegaram a vender 2 milhões de cópias naquele período. E o meu disco vendeu cerca de 250 mil cópias, o que, para mim, foi espantoso — já que eu estava acostumado a ver meus ídolos venderem 40 mil discos em média. Aquela comparação inicial que faziam entre a sua interpretação e a do Caetano Veloso incomodava? Minha semelhança com o Caetano não é só vocal. Acho que somos parecidos no jeito de ver o mundo, no de fazer umas leituras que combinam o regional, o elemento nordestino. E ambos temos uma certa influência árabe — por causa dos mouros de Portugal e Espanha. Somos semelhantes também na liberalidade com que dispomos de elementos da música pop. O próprio Caetano, no auge dessas comparações, chegou para mim e disse: “Olha, Chico, não se preocupe. Lembra quando o Djavan apareceu e o comparavam com Gil? Lembra quando a Marisa Monte surgiu e todo mundo dizia que era Gal Costa? Isso é normal. No momento, eles te comparam coContinente Multicultural 75


A primeira entrevista feita pelo repórter Chico César foi com a cantora Nara Leão migo. Mas, quando você fizer outros discos, ninguém vai mais fazer esse tipo de comparação. Vão, sim, comparar você com você mesmo, seus discos novos com os antigos”. E foi verdade. Alguns jornalistas ainda lembram essas comparações com Caetano. Por outro lado, cada vez mais eu também fui encontrando um jeito de emitir o que me é próprio, o que é meu e que não é de ninguém. Pessoalmente, eu me acho mais influenciado pelo Gil do que pelo Caetano. Caetano já acha que eu tenho mais a ver com Tom Zé... Talvez seja por causa dessa coisa meio louca, meio reisado, ou por causa das ironias contidas nas letras. Disse Caetano que uma vez estava tocando uma música minha no rádio e o filho dele pequeno perguntou para a empregada na cozinha: “É o meu pai?” Aí ela respondeu que não. Em seguida, ele disse: “Ah! Então é aquele outro”. Desde sempre, a mistura de ritmos e arranjos nordestinos com elementos da música pop fez parte da sua obra. Atualmente, tanto no cenário do pop-rrock quanto na MPB, muitos grupos e intérpretes vêm lançando mão do mesmo recurso estético. Na sua opinião, essa mistura está se tornando um clichê musical? Um clichê, não. Acho que se tornou um recurso musical mesmo. Tradicionalmente, temos o congo, no Espírito Santo. Mas a juventude capixaba não quer fazer congo mesmo. Então, eles fazem uma mistura de rock com congo — que seria o manguebeat deles —, que, entretanto, até hoje não conseguiu muito espaço na mídia, apesar de ser um trabalho interessante. Acho que o que aconteceu no Recife se tornou um exemplo para os jovens artistas do país inteiro. Eles descobriram que é possível usar os elementos da tradição para renovar tanto a própria tradição quanto a cena pop. Por causa do que Chico Science fez, o maracatu meio que renasceu. Tudo o que Ariano Suassuna quis fazer em sua vida inteira, Chico fez em três semanas. Essa proposta estético-m musical tem boa receptividade do público nas regiões Sul e Sudeste do país. Mas, na região Nordeste, há um grupo de críticos que torce o nariz para essa mescla de estilos. Os 76 Continente Multicultural

entusiastas acreditam que essa tendência ajuda a divulgar, renovar e até preservar a cultura nordestina. Entretanto, o grupo discordante qualifica essa mistura de ritmos como uma distorção que em nada ajuda na preservação da autên-ttica música nor destina. Como o Sr. se posiciona diante desse debate? Eu acho que Ariano deu uma contribuição grande para a cultura nordestina, mas Ariano é muito maior do que os seguidores dele e ele ainda é muito maior do que as suas idéias, digamos, mais conservadoras. E ainda, a música brasileira é muito maior do que uma música que era feita em Portugal e Espanha há quatro séculos e que foi trazida para o Brasil e se aderiu à música dos índios. Não se pode ficar nisso. Ao contrário, se prestarmos atenção, foi Chico Science que trouxe para o centro das atenções coisas lindas da cultura pernambucana e nordestina. Mas, nem tanto ao mar, nem tanto à terra... Se os meninos vão fazer rock ou hip-hop de todo jeito, que façam com essa influência nativa, que é ótima. O que eu acho ruim é que essa onda manguebeat se torne hegemônica, obrigatória, ou seja, que todo o mundo tenha de fazer isso porque, se não fizer, seu trabalho pode ser tachado de ruim. Pois, dessa forma cria-se uma limitação artística. O que importa é a possibilidade de se expressar. Nesse meu novo disco, eu preservo essa mistura de ritmos: tem reggae, xote, coco, baladas. Mas tudo com cara de música de autor. Um reggae meu não é igual ao reggae que se escutaria de outra pessoa: a letra é do meu jeito, tem minha marca pessoal. O Sr. dividiu apartamento com Zeca Baleiro por dois anos em São Paulo. Como foi essa parceria? Esse convívio promoveu uma influência mútua? Qual


FOTO: SIDNEY CORRALLO / AE

nossas vidas. O apartamento que a gente dividia era muito freqüentado por cantoras amigas nossas, como Rita Ribeiro, Virgínia Rosa, Vânia Abreu... Com esse constante entra-e-sai de mulheres, o porteiro do prédio devia imaginar que nós comercializávamos sexo. Tudo bem, às vezes nós oferecíamos sexo para as garotas também, mas nem sempre elas queriam...

dos dois era o mais organizado? Quem cozinhava? Eu já estava em São Paulo há um certo tempo quando o poeta Celso Borges me apresentou ao Zeca. Ele precisava de um amplificador emprestado e a gente foi buscar na minha casa. Nos encontramos pela primeira vez na Avenida Paulista, no começo dos anos 90. Quando chegamos na minha casa, ele pegou o violão para mostrar algumas músicas e tocou coisas lindas, entre elas, Flor da Pele — muitos anos antes de Gal Costa gravar essa música... Eu me sentia muito sozinho em São Paulo, digo, sozinho artisticamente, porque eu já tinha muitos amigos. Quando eu escutei aquelas músicas, pensei: “Puxa, ganhei um parceiro”. Entre os artistas que eu conhecia havia aquele pessoal bem regional, um pessoal mais velho, com quem eu me relacionava, como Jarbas Mariz, Lula Côrtes, Chico de Abreu... E de repente chega um cara novo, com um certo frescor, um cara que tinha idéias parecidas com as minhas. Depois, fomos dividir apartamento. O Zeca cozinha muito bem e era o cozinheiro oficial da casa. Mas era muito bagunceiro, sempre foi. Ele era engraçado. Na hora de sair, voltava três vezes em casa. Sempre esquecia alguma coisa. Eu era meio que um irmão mais velho dele... Muito teimoso, o Zeca é do tipo que, se a gente diz “a bananeira é verde”, ele retruca dizendo que não, que é amareloescuro. E a nossa relação sempre foi a de um confronto estimulante. Esse foi um momento muito curioso das

Antes de se firmar na música, o Sr. se dedicou a outras profissões. Ter sido vendedor de discos parece que foi uma atividade bem mais prazerosa que o jornalismo... Eu fui vendedor de discos dos oito aos quinze anos, lá em Catolé do Rocha. Era uma loja que também vendia livros. Depois, eu saí de Catolé e fui morar em João Pessoa, e fiquei me dedicando mais à universidade. Quando eu estava com dois anos de faculdade, fui pedir emprego em um jornal. Apesar de ser um cara bem novo, saído do Sertão, nessa época eu já era um artista conhecido em João Pessoa. Trabalhei como jornalista de 1982 até 1992. Fui para São Paulo em maio de 1985, e lá trabalhei como preparador de texto, revisor e repórter. Cheguei até a escrever sobre música. Lembro-me de que minha primeira entrevista foi com Nara Leão. Quando eu trabalhei na revista Elle, escrevi umas críticas musicais e cheguei a comentar o lançamento do primeiro disco-solo do Herbert Viana e um disco do Edson Cordeiro. Fiz também matérias sobre trilhas sonoras de filmes e novelas... Mas eu sabia que o jornalismo era só para eu sobreviver. Era como se eu fosse duas pessoas. No caso, o jornalista sustentava o músico. O músico estava sempre lá, compunha, fazia um show para quinze pessoas. Então, chegou a hora em que o jornalista se aposentou e o músico teve de sustentar a casa. Eu sabia que um dia eu iria dar certo, que conquistaria meu espaço. Aliás, eu conquistei um espaço maior do que o que eu imaginava e do que eu desejava na verdade... Eu pensava que seria um artista pouco conhecido, mas que viveria da música assim mesmo. Patrycia Monteiro é jornalista

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CONTO

A dança Luiz Marcos Lima Barreto

T

inha sempre a mesma mulher em mente. Romanceava um repente repensando o imaginário e simbolizando o inexistente. Para tanto, não faltava o passo seguinte que ia de um lado a outro dentro de cada desejo. Era nela onde o sonho ousava tudo quanto esperava e quando não mais se dispunha, tenuemente despertava. Era de olhos coniventemente castanhos e conflitivos, tocantes ou tão somente inesquecíveis. Em clarezas não estavam. Contrariavam-nas. Para não estarem juntos, foragiam-se por dúvidas e desvios. Imaginava-a geminiana, em risos róseos e vagos, instantâneos espasmos, salivas de um néctar anoitecendo e ansiando de gozo e suspeita de um passado trincado e intrigante detalhado em divã de terapeuta duvidoso. Convincente de que ainda era cedo, pensando nas palavras era bela, e dotada de decote adiantava-se. No lirismo, se detinha inalterada e só inspirava-se no realismo que respirava. Não tarda de passos nem se volta para os versos. Mas, sabe os toques, esquece os textos e não guarda gestos. Pêlos, incontinenti reflexos. Cabelos cortados sem receios nos lados e nos meios. Vestia-se de um azul cúmplice do céu, a desgarrar-se terreno e clemente. Disputava o abraço e abalava o espaço. Dançava desmedida e solvente. De resto, desafogava a fivela por baixo, suavizar o deleite do ventre. Aqueciam-se conversas que chegavam ao cúmulo dos consecutivos convites nos ouvidos. Da noite para o dia, sentia clarões de ciúmes do busto replicáveis de atritos e dos externos arrojos diversos dos ritmos que se cobiçavam e se apossavam arduamente íntimos. A partir daí, levantara-se, mas nada mais podia fazer porque transparecia que não sabia dançar e assim destoava e continha-se. Pulsação de peregrino que predispunha a prescrever. Preparava-se para se revoltar e eis que nesse curto período desconheceu-se quando passou a refletir. Conhecia-a apenas de vista e trazia consigo uma perda. Repartia-se aparado pela cadeira. Imagens emergiam acrescidas ou inacabadas pelo álcool. Ela havia feito uma volta ao mundo de tanto 80 Continente Multicultural

vê-lo. Pretendia-o e enviava-se pelos olhos que já tanto diziam. Ele perdera-se em uma série de tentativas que admiravam. Ela não mais dançava e dele não se alheava. Ele pedia um tempo sem saber a quem e mesmo com o coração batendo de porta em porta, não conseguia. Partidário da paixão, via-se traído por uma desconhecida que com outro dançara. Lera muitos romances e vivera poucos amores, porque partilhava-os de corpo e alma, desvendava-os em interiores e revelava-os em loções de flores. Achava que desobedeceria às ilusões, mas demorava a acreditar no que não acontecia. Se dependesse da transmissão da dança, desistiria. De quanto menor a distância, o ar de cansaço, de ambos tomava conta. Vez por outra sugeria-se louco e supunha-se bobo. Estimava-se dividido entre os dois lerdos adjetivos que pouco diferiam e muito desacreditavam. Estava longe de casa e inexistente do tempo. Preocupado, contava os cigarros comprimidos. À sua espera, só o garçom diante da mesa leva-o em conta. No conteúdo da esfera do fundo do copo, bóia um coração partido que tagarela na frieza do vidro. Ela no vazio envereda e abriga-se. Vira-lhe o rosto e ao anel de topázio se liga. Pelas pernas em sentido impreciso deu-lhe um último lance de um azul claríssimo. Partiu em segundos, o que levou horas fazendo. Ele, dissidente da pista de dança, nem por um minuto seguiu-a. Na dispersão, nada fez para levá-la adiante. Tinha a impressão de que se um dia a dançar aprendesse talvez para sempre dela se lembrasse. Luiz Marcos Lima Barreto é escritor


João Esteves Pinto

Abel Menezes

BRASIL! BRASIL!

Sol Chuva Brisa Tiro a (burca) E a cara se revela Máscara Personas Pessoas bElas ( ) A Vida Não nos parece suficiente Queremos sua significação É possível pegar Água Co'a Mão?

Amor fati universalis É chegado o momento Zaratustra disse Do Super-Homem de Nietzsche Um mais além do ser trino Animal-Humano-Divino Dançarino SoMoS SoM

SoL SoLoS Inferno É ser aparte do todo Paraíso É ser o todo na parte partes são momentos do ser todo Calma Respirar é Cantar Caio em mim Caymmi Pra me aconselhar O Mar

Se Deus joga dados Acasos ou poesia É uma boa prosa Parece certo uma coisa Algo joga O mesmo nunca volta É só aparência Tal uma variação de freqüências

o pó

Em oitavas musicais

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Tem dias que tudo faz Sentido Em outros Sentado Sou Todo O u v i d o s

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Não, El-Rei Manuel! Da minha terra não se vê o mar Não se vêem as ondas E as espumas Navios nas neblinas E lenhos a flutuar nas brumas - Não se vê o mar Na minha terra Há o granito As ribeiras bulideiras Os pinhos, os salgueiros E os castanheiros rebordões - Não se vê o mar Na minha terra Há os penedos firmes A terra avara E o olhar lento da história De romanos, de visigodos E de judeus e mouros na alcaçaria - Não se vê o mar Mas eu te afianço Rijo e inteiro Que não tenho dúbio o olhar Tenho direito o entendimento Tenho esta mão que manda E no avançar é de vez Com vontade de não errar

c o r o p

Homenagem a Suassuna

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Abel Menezes é poeta-médico-antropólogo. Publicou os livros Delírica Dança, ilustrado pelo artista Petrônio Cunha, pela Editora Pomba Gira Palavra, Recife, 1988 e A Gargalhada (A)Final, Editora Hucitec, São Paulo, 1996. Em 2001, concluiu mestrado em Antropologia pela UFPE, tendo feito a pesquisa a partir de uma matriz, Corpo-Arte-Saúde, escrevendo o que ele diz ser uma dança polifônica em sete movimentos, solos, coro e poemas da Música Brasileira: Os Alquimistas Continuam Chegando...

Chamou-me El-Rei ao paço E disse: Vai Pedro Vai pelo mar Vai pelo mar Oceano Vai e lavra a direito Não é um arado É uma nau Vai Pedro Firma-me bem essa mão Da rabiça no timão Vai Pedro Lavra o nevoeiro Lavra os monstros e os medos Lavra os escuros e as negaças Talha as contrições Resistentes e engelhadas Vai pelo mar Oceano Vai com ambição Persegue o sol! Eu irei El-Rei Manuel Irei na emoção das ondas Irei na serena miragem Irei a olhar o longe Porque em mim O sonho e o Oceano Têm sempre a outra margem! João Esteves Pinto é de Sabugal, Beira Alta, Portugal. Atualmente, administra a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A.

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CINEMA

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idade de Deus, que tem estréia prevista no país para este mês de agosto, deverá ser o cartão de visitas do cinema brasileiro nas telas do mundo, não apenas em 2002, mas também ao longo dos próximos anos. A presença do filme no último Festival de Cannes, em maio, sinalizou isso através de uma recepção mais do que entusiasmada por parte da imprensa internacional e da venda bem sucedida do filme para o mercado mundial de distribuição, com o apoio e a satisfação do poderoso estúdio americano Miramax. Nesse colorido épico brasileiro, envernizado com uma linguagem narrativa moderna e consciente do seu próprio arrojo, o diretor paulista Fernando Meireles e sua co-diretora Kátia Lund nos apresentam uma adaptação do livro homônimo de Paulo Lins, publicado em 1997. Haviam ensaiado juntos ao realizarem o premiado curta Palace II: uma prévia estética e narrativa do longa que é lançado agora. Numa colcha de retalhos humana, eles pintam 82 Continente Multicultural

Cidade de Deus deverá ser o cartão de visitas do cinema brasileiro nas telas do mundo Kleber Mendonça Filho

um painel brutal do crime no conjunto habitacional Cidade de Deus, Rio de Janeiro, ao longo das décadas de 60 e 70. Ilustram parcialmente o problema do tráfico no Brasil e a violência que setoriza hoje o Rio de Janeiro. A seguinte entrevista foi realizada em duas etapas. Durante o Festival de Cannes, Meireles, diretor do filme enquanto cinematografia, e Lund, em grande parte responsável pelo trabalho com o elenco de impressionantes não-atores, discutiram o filme em meio ao forte assédio da mídia internacional e interrupções constantes por causa do celular de Meireles, que negociava seu filme incessantemente, agendando almoços e jantares do mais puro business. À frente da maior produtora de publicidade do Brasil, a O2, em São Paulo, Meireles bancou Cidade de Deus do seu próprio cofre e vê, agora, os frutos desse investimento. A entrevista teve continuidade dois meses depois de Cannes, às vésperas de o filme chegar aos cinemas brasileiros.

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Colcha de retalhos humana


Na página anterior, cena do filme Cidade de Deus, que retrata a violência urbana no Brasil Ao lado, Kátia Lund, codiretora, e Fernando Meirelles, diretor

FOTO: ANNE-CHRISTINE POUJOULAT / AFP

Você chegou a falar na coletiva da imprensa internacional que se via como um burguês e que muito aprendeu sobre a realidade do Brasil lendo o livro e fazendo o filme Cidade de Deus. Quão distantes estão as classes mais altas das classes mais baixas no Brasil? Fernando Meireles - Creio que há mesmo um fosso que divide nosso país, são mesmo realidades descoladas. Os garotos do elenco, vindos de comunidades, dizem: “Na sociedade é assim, aqui é diferente...” Eles se enxergam como um grupo fora da sociedade. Nós aqui, pelo nosso lado, dizemos: “As favelas no Rio estão no meio da cidade; em São Paulo, elas rodeiam a cidade”, como se as favelas fossem algo provisório. As favelas não “estão” no meio da cidade — elas “são” parte da cidade. E tentamos não aceitar isso. É sobre isso que tanto Domésticas como Cidade de Deus falam: são filmes sobre exclusão. Nós, que escrevemos os jornais, fazemos os filmes e a televisão, estamos acostumados a excluir o outro lado e não nos damos conta dessa exclusão. Nesses dois filmes, excluí justamente o lado de cá, e é isso que gera um certo desconforto. Mas é justamente isso que os filmes têm de revelador. Era esse o ponto de partida. Qual o principal ponto de choque entre o Brasil excluído e o Brasil da “sociedade”? FM – Esses dois Brasis estão tão distantes que nem há ponto de choque. Ou não havia, pois finalmente chegamos no dia em que muitos, há 20 anos,

disseram que chegaríamos se não fosse feito um esforço de inclusão de toda a sociedade brasileira no processo de desenvolvimento. Abandonamos uma grande parcela da população e agora estamos de cara com esse Estado paralelo que se formou e que, sinceramente, acredito que não se resolve em menos de 20 anos. Finalmente, temos um choque: essa guerra civil urbana liderada pelos traficantes e que ainda vai crescer muito e que deve descer até a cidade. Kátia Lund – O que aconteceu originalmente na Cidade de Deus? Tiraram os moradores da favela do Pinta, no Leblon, levaram o pessoal de outras favelas da zona sul carioca e alagados e, ao invés de achar uma forma de integrar essa população pobre na sociedade, de posicioná-los mais perto da informação, dos empregos, tomaram a decisão política e social de juntá-los e largá-los o mais longe possível da sociedade, em Jacarepaguá, que, nos anos 60, era literalmente “no meio do mato”. Isso, claro, foi bom para o Leblon. Num primeiro momento, parecia positivo: foram construídas casas com eletricidade. Mas, depois, viu-se que aquela pobreza não teria como se sustentar. Hoje, nós vivemos o resultado dessa política de exclusão e remoção. Como você enxerga hoje a relação classe média (inclua aí artistas, intelectuais, políticos) e o morro, a favela carioca? KL – Semana passada, dei uma entrevista para a Globo News sobre cinema de inclusão, porque continuo trabalhando com todo o elenco de Cidade de Deus. Dou aulas, estamos produzindo dois filmes deles e temos também um cadastro de atores. Daí que o jornal Continente Multicultural 83


Matheus Nachtergaele faz o papel de Sandro Cenoura

Cidade de Deus faz parte de uma série de trabalhos seus que tem investigado essa tensão carioca que existe no morro e na favela. O filme seria o ápice dessa investigação? KL – Acho que sim, porque eu vejo que esse trabalho teve início com o Notícias de Uma Guerra Particular, co-dirigido por João Moreira Salles, que foi uma pesquisa, quatro anos de convivência e busca por uma compreensão da situação. Depois, eu fiz vários videoclipes de artistas interessados nesse tema, como MV Bill e O Rappa. O objetivo de todo esse trabalho 84 Continente Multicultural

é desmistificar a violência e apresentá-la como o sintoma de uma doença, em vez de o resultado da ação de malucos psicóticos. É neutralizar a hipocrisia e mostrar que ela faz parte de uma realidade que nós mesmos construímos. No Notícias, concentramos a narração nas fontes primárias, pessoas que vivem diretamente a guerra nos morros, polícia, bandido e morador. No clipe do MV Bill, Traficando Informação, ele faz o convite: “Venha aqui pra ver a sociedade dando as costas pro CDD”. Em Cantão, um documentário com Gabriel, o Pensador, sobre a relação da Rocinha com o condomínio do lado, a mesma coisa. De qualquer forma, Cidade de Deus é o ápice porque o documentário tem um certo alcance; um clipe e um curta-metragem, como Palace II, também. Nada, no entanto, tem o alcance de um longa-metragem bem distribuído internacionalmente nos cinemas. Acho que esse filme é exatamente como o livro, ou seja, discute a realidade dentro daquela comunidade. São obras que discutem a exclusão. Há grande discussão hoje sobre o uso de novas tecnologias em cinema. Cidade de Deus contém qualidades técnicas superlativas, provavelmente articuladas via utilização discreta de novas técnicas, do tratamento da imagem ao som. Como você vê essa técnica que viabilizou o filme, e o que ela trouxe para você como autor? FM – Na verdade, acho que o filme não surpreende pelo uso de novas tecnologias, mas pela qualidade do trabalho dos enquadramentos e pela sensibilidade do grande artista que é o fotógrafo César Charlone, ou pelo trabalho do montador Daniel

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O Globo resolveu abrir espaço para essa matéria e abriram uma foto gigante minha com o título “Diva do Cinema Culpado – bela e bem nascida faz cinema de arte e luta pela inclusão social”. Essa matéria foi embalada para quem? Para uma parte da sociedade que só é capaz de entender que eu estou preocupada com esse tema. É “ou eu sou ingênua ou revoltada, provavelmente, com problemas familiares”, ou então “culpada”. A mídia cria rótulos, seja “inimigo número 1”, seja “culpado”. A sociedade acomodada, que não sai de casa, acredita nesses rótulos. É preciso atacar a hipocrisia dessa sociedade, que até dez anos atrás dizia claramente que não existia racismo no Brasil. É uma sociedade que não se olha, não se questiona. E é uma cultura que se espanta com a própria violência, e que não reconhece responsabilidade alguma pelo que está acontecendo. Por outro lado, acho que o filme fala de um problema mundial. Quem mora nas periferias de Paris, Nova Iorque, vai entender. O Terceiro Mundo está migrando, os colonizadores estão sendo agora colonizados. Também, o que eles queriam?


O filme já tem distribuidor no mundo todo, faltam a Alemanha e a Índia, que ainda não acertaram preço. Mas, Cidade de Deus já fechou as contas

Rezende. Habituado a montar para a tela pequena, este é o seu primeiro trabalho em cinema de longa metragem. Nós nos esquecemos de informá-lo sobre todas aquelas regras sobre como, por exemplo, na tela grande, a montagem deve, supostamente, ser um pouco mais lenta. Ele fez o que sabia fazer e o filme ficou com aquela cara. César usou pouco equipamento para filmar, e Daniel usou o mesmo AVID que todos os montadores do mundo usam hoje, só que usou as ferramentas disponíveis no AVID, que, por algum purismo que não compreendo, convencionou-se achar que, em cinema, não devem ser usadas, como alteração de velocidade ou divisão do quadro. De qualquer forma, interferir na velocidade da ação é um recurso do início do cinema, quando as câmeras eram à manivela. Dividir o quadro era um recurso banal para alguns cineastas, como Dziga Vertov, nos anos 20. Trabalhar a cor na produção, ou com filtros, é também um manjado truque narrativo para os fotógrafos, desde a invenção do Technicolor. O único instrumento tecnológico que usamos, se quisermos eleger algum, foi passarmos o material para HD (High Definition, processo digital de Alta Definição) e, depois, voltarmos para o formato cinema. Com isso, pudemos usar as ferramentas do AVID na versão final. Mas esse processo também já não é uma novidade. Está incorporado ao cinema e veio para ficar. A minha novidade no som foi contar com um camarada de Curitiba chamado Alessandro, que consegue a mais feliz das façanhas: unir um profundo rigor e conhecimento técnico a uma sensibilidade aguda. Ou seja, modernas mesmo são as cabeças da minha valiosa equipe. Afinal, trabalhar dez anos em publicidade me possibilitou conhecer centenas de profissionais do mercado e serviu para saber quem é quem nesse mercado, quem capta e transmite na mesma sintonia. Com um tratamento técnico tão sofisticado, filmes brasileiros hoje chegam mais perto de um cinema internacional?

FM – Na finalização de som, o cinema brasileiro ainda está devendo muito ao cinema internacional. Por isso, é tão comum filmes grandes serem mixados no exterior. No entanto, em relação à imagem, estamos bem. Do ponto de vista estritamente técnico, ficamos tranqüilos em qualquer festival no mundo. Bons roteiros são o que ainda faz a diferença no Brasil. Me parece que o filme encontra a sua identidade brasileira menos numa “estética” (existe uma “estética” brasileira, hoje?) e bem mais numa identidade cultural que existe forte nos personagens, na história e na ambientação. FM – Não sei o que seria uma estética brasileira, especialmente se olharmos para essa nova safra de filmes que percorre caminhos tão diversos. O que há em comum entre Eu Tu Eles, Lavoura Arcaica, O Invasor, Auto da Compadecida, A Partilha e Xuxa e os Duendes? Mas, de fato, Cidade de Deus tem a cara de uma parte do Brasil. Talvez seja mesmo a composição dos personagens que entregue isso. Como vê agora, passados quase dois meses, toda a experiência do Festival de Cannes e Cidade de Deus? FM – O meu produtor francês, Vincent Maraval, acreditou no filme e sempre brigou para levá-lo para Cannes, mas fora da Seleção Oficial. Ele queria que o filme chegasse lá sem nenhuma informação a seu respeito, queria que a imprensa o “descobrisse” e acreditava numa reação entusiasmada. Acabamos entrando na Seleção Oficial, mas fora da competição (contra a minha vontade). De fato, não havia quase nenhuma informação disponível sobre o filme em Cannes e, confesso, quando cheguei, achei aquela estratégia meio suicida. Eu e Kátia tínhamos 16 entrevistas agendadas previamente para os três dias seguintes. O filme passou numa primeira sessão de imprensa que nem ficou lotada, mas, três horas mais Continente Multicultural 85


tarde, começaram a ligar para nossa assessoria pedindo entrevistas. Depois da segunda exibição, no dia seguinte, o filme estourou. A assessoria teve de dar duro para agendar mais 80 entrevistas ao longo da semana, teve de promover alguns encontros para juntar jornalistas e dar conta do recado. A Variety, o Hollywood Reporter, o The New York Times, o The Guardian, o Le Monde e até o Liberation fizeram críticas muito entusiasmadas. O L’Express deu a cotação máxima “Palma de Ouro” ao filme. Já o Cahiers du Cinema não publicou nenhum texto, mas deu a pior nota na escala deles, o pas de tout, tipo “bola preta”. Teve mais um crítico francês, do Le Figaro, que detonou Cidade de Deus num texto sem piedade. Acho que o nome dele era Inaciô Arraujô, se não me engano. Sobre as vendas, sensacional. O filme já tem distribuidor no mundo todo. Faltam a Alemanha, que fez uma oferta mas ainda não chegou no preço, e a Índia, que deverá comprar no Festival de Toronto. O filme fechou as contas. De quebra, já garanti o financiamento internacional para meu próximo projeto com o Bráulio Mantovani, o Cesar e o Daniel: um filme sobre a globalização. KL – Para mim, Cidade de Deus e os meninos com quem trabalhei representam talvez a etapa mais feliz da minha vida. Por isso que, para mim, foi um pouco esquisito. Eu queria dividir aquela experiência com aqueles meninos, a equipe, enfim, os responsáveis pelo filme. Muito bom que Harvey Weinstein, da Miramax, tenha gostado, mas creio que Cidade de Deus foi feito para o Brasil, e para as favelas, os rappers, não tanto para os observadores externos que vão exclamar: “Puxa, lá tá tudo ferrado, né?”. Em Cannes, viu-sse uma situação curiosa. O filme foi catapultado pela imprensa internacional à estratosfera enquanto a imprensa brasileira mostrou reação oposta, com algo de frio. Como lidar com isso? FM – De fato, no dia em que Cidade de Deus foi capa da revista Variety, no dia dos telefonemas pedindo dezenas de entrevistas, a Folha de S. Paulo publicou uma pequena manchete: “Cidade de Deus tem recepção fria em Cannes”. Entre as 106 entrevistas que demos, apenas quatro foram para brasileiros e, 86 Continente Multicultural

A publicidade está para o cinema como o jornalismo está para a literatura. Ela nos ensina a gramática e as ferramentas para se contar histórias mesmo assim, aos 45 minutos do segundo tempo. E ninguém parece ter gostado do filme. Você, que é da imprensa brasileira e estava lá, me explique o que se passou. Há enorme rejeição por parte da crítica (inclua aí a brasileira) em relação à escola publicitária que tem formado diretores no Brasil e exterior. A transição da publicidade para o cinema geralmente traz algum tipo de choque estético, assinalado por essa mesma crítica. Cidade de Deus tem esse verniz do que se convencionou chamar de “publicitário”? FM – O cinema brasileiro tem seu vigor apoiado numa geração que vem da publicidade. Os poucos críticos que ainda tentam vender essa balela tem de rever o preconceito e engolir isso. Walter Salles ganhou em 1998, disputando comigo, o cobiçado Prêmio Caboré de Melhor Diretor de Publicidade daquele ano. Mas ele não está sozinho: Andrucha Waddington (Eu Tu Eles), Beto Brant (O Invasor), João Moreira Salles, Ugo Giorgetti (Boleiros), Cao Hamburguer (Castelo Rá Tim Bum), Jorge Furtado (Ilha das Flores), José Henrique Fonseca (Traição), Mara Mourão (Avassaladoras) fazem parte dessa turma. Vêm aí ainda Paulo Morelli, Clovis Mello, Philipe Barcinsky, Flavia Moraes e muito mais gente que não conheço. O fato desses diretores terem passado pela publicidade não quer dizer que só saibam fazer publicidade. Tanto é assim que há estilos muito diferentes nesse grupo que acabo de listar. A publicidade está para o cinema assim como o jornalismo está para a literatura. Ela nos ensina a gramática e nos dá a intimidade com as ferramentas para contarmos histórias. Se vamos escrever a obra do Euclides da Cunha ou de Hemingway, é uma outra coisa. KL – Pessoalmente, tenho restrições à estética publicitária. Ela tende a ofuscar a realidade através de


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filtros. Nesse filme, a minha parceria com Fernando foi complementar. Minha visão é mais documental e crua, do corpo-a-corpo. Pela técnica em si, ela não se justifica, a estética sozinha. Tivemos muito cuidado em não glorificar a violência, a começar pelo som dos tiros, que são secos, como na realidade, exceto, talvez, na cena em que a casa do Mané Galinha é metralhada. Fernando estava mixando o filme nos Estados Unidos e os técnicos lá pressionaram muito para fazer dos tiros um espetáculo à parte. Acho que se eu estivesse lá, não teria deixado. De outra forma, todos trabalharam muito conscientemente para não glorificar, a começar pelo fotógrafo César Charlone, que filmou mortes fora do quadro. Por outro lado, se essa linguagem que tem sido assinalada ajuda o filme a espalhar a mensagem para um público maior, melhor ainda. O problema será se, ao final da projeção, o público sentir-se entretido. Aí saberei que falhamos. De onde vem essa resistência e como funciona para você a rejeição a essa escrita/estilo num mundo tão marcado por diferentes escritas narrativas hoje? FM – A linguagem cinematográfica, como toda linguagem, evolui. Só que, com os processos de pós-produção eletrônicos, essa evolução anda mais rápido. Meu filho de 14 anos entende perfeitamente a narrativa de um clipe que, para meu pai, parece fragmentado, desconexo e vazio. Meu filho aprendeu a “ler” essa linguagem e meu pai talvez nem tenha interesse em aprender, pois foi formado assistindo ao cinema americano, ao Neo-Realismo, à Nouvelle Vague, ao Cinema Novo, ao novo cinema alemão. Como meu pai, esses críticos são também formados por essas escolas, aprenderam a respeitá-las e a tomá-las como

referência. Como meu pai, esses críticos resistem a outras formas narrativas que eles próprios não dominam. Para ser bem honesto, eu também detesto videoclipes, mas me esforço para entendê-los. Procuro falar para as pessoas do meu tempo, sem ideologizar a questão. Gosto de filmes iranianos e também de Oliver Stone. A vida não é como uma lata de goiabada, que você deve escolher um lado para abrir. Tudo é possível e válido. Cidade de Deus conversa com o público.

Alexandre Rodrigues é Buscapé, que foge do crime através da fotografia

Vocês trabalharam com um elenco de jovens não atores, pinçados de comunidades cariocas. Eles provavelmente não sonhariam com o tipo de oportunidade que um filme desse porte é capaz de oferecer. Como acham que esse talento poderá ser utilizado num mercado que, muito provavelmente, não irá oferecer espaço para eles? Como fica o fator “Pixote”, que trouxe para as luzes o ator Fernando Ramos da Silva, morto tragicamente nas mãos da polícia, anos depois de ter abandonado uma malsucedida carreira de ator pós-ffilme? KL – Eu acredito que Cidade de Deus é também um comentário sobre o desperdício de toda uma juventude, ao mesmo tempo que nos mostra o incrível potencial dessa mesma juventude. Espero que o filme comunique às pessoas o quanto nosso maior luxo, nossa juventude, está sendo jogada fora. Nos beneficiamos de uma história recente do cinema brasileiro que aponta para a utilização de jovens não atores em filmes importantes. Pixote e Central do Brasil são exemplos que destaco e que me ajudaram a nortear um pouco o trabalho. O que fizemos? Criamos uma escola de atores chamada Nós do Cinema, um curso de atuação para cinema antes mesmo de a pré-produção do filme começar. Chamamos Guti Fraga para dar aula nessa escola. Ele trabalha já há 15 anos no Morro do Vidigal com o Nós do Morro, uma escola de teatro. Na segunda fase, chamei Fátima Toledo, excelente preparadora de atores. Foi ela quem preparou Fernando Ramos da Silva, o Pixote, e Vinícius de Oliveira, o menino de Central do Brasil. Fátima tem um trabalho profundo, que ajuda cada ator a acessar as emoções de Continente Multicultural 87


que ele precisa em cada cena. Isso significa que o ator fica com os nervos à flor da pele. Por isso, juntando a colaboração do Guti Fraga com a dela, tivemos os meninos do Cidade de Deus prontos para trabalhar. Foram três meses de filmagem e, depois disso, eles continuaram no grupo Nós do Cinema. A intenção é exatamente criar um ponto de apoio para todo o grupo, algo que chamamos de “desprodução de elenco”. Durante seis meses, entramos em contato com as escolas para saber como eles estavam, e do que eles estavam precisando. Nos finais de semana, promovíamos um “encontrão” para dar continuidade ao grupo que foi formado durante as filmagens. Nesses encontros, membros da equipe técnica vinham falar sobre aspectos específicos da produção, discutindo o próprio filme. Tínhamos também ingressos para que o grupo tivesse acesso a peças de teatro, shows e filmes. Na realidade, a preocupação é a de que eles não virem ETs nas suas próprias comunidades, uma vez que a experiência que tiveram já os posiciona à parte, nem também ETs fora das comunidades. Ao longo dos últimos seis meses, demos continuidade ao Nós do Cinema com a ótima desculpa de estarmos produzindo dois curtas-metragens. Cada um deles criou as histórias, trabalhou os roteiros e irá partir agora para a filmagem. É importante lembrar que o Nós do Cinema tem cerca de 200 pessoas cadastradas. Muitas delas participaram no filme apenas como figurantes, um outro tanto como personagens importantes. Cerca de 40 freqüentam o grupo. Atualmente, tento oficializar essa ONG, que seria agência, produtora e escola dentro da comunidade. Temos também psicólogas que estão trabalhando com eles para que o impacto do que vai acontecer agora seja minimizado. Se atores estabelecidos já têm dificuldade para trabalhar, as dificuldades para os meninos são ainda maiores. Eles precisam ver que isso que irão viver agora é uma “disneylândia”, uma nuvem boa que vai passar. Precisam ter os pés firmes no chão. Numa das seqüências mais fortes do filme, o bando de Zé Pequeno utiliza duas crianças da favela como exemplos para toda a comunidade. Como vocês extraíram atuações tão realistas daquelas crianças? KL – Os dois garotos que aparecem na cena são do Nós do Morro. Eles ensaiaram a cena durante

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duas semanas, e o garotinho chorava todas as vezes. Eu confesso que, embora ele tenha conseguido aprender a técnica, na filmagem em si eu acredito que ele embarcou mesmo na cena, principalmente por causa do festim da arma, que estava muito perto, e também do Leandro Firmino (Zé Pequeno). Ele realmente pode ter confundido ficção e realidade. Foram vários takes, duas horas da tarde, sem almoço, o festim e a presença ameaçadora do Leandro. Nós ficamos preocupados com ele, fomos falar com os pais e o pai dele disse que ele estava bem. Cidade de Deus é composto por uma série de pequenos conflitos e tensões. Como orquestrar tamanha tapeçaria numa estrutura de narração inteligível e popular? FM – Trabalhando exaustivamente. Esse roteiro ocupou a cabeça do Bráulio Mantovani por quatro anos: três antes de rodar e mais um ano depois. Cada cena e cada frase no filme estão amarradas e justificadas por alguma intenção clara. O filme é rigorosamente controlado. Bráulio participou da montagem até a última versão, propondo cortes ou inversões de seqüências. Depois disso, reescreveu a narração algumas vezes. Por outro lado, Daniel Rezende, montador, tem a noção exata de quanto vale um segundo. Discutimos o tempo todo por dois ou três fotogramas a mais, aqui ou ali: dois a menos e a cena pode não

FOTO: LUÍS MORIER

Ação policial no conjunto habitacional Cidade de Deus, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, local que gerou o livro e o filme homônimos


A trama de Cidade de Deus é a seguinte: garoto criado no subúrbio carioca conta como viu o tráfico tomar conta do seu bairro ao longo de 15 anos

atingir seu máximo; dois a mais podem fazer com que o filme se arraste. Definitivamente, a linguagem da publicidade serve para alguma coisa. Esse trabalho de rever, rever e rever mais uma vez deu corpo ao filme. Há no filme claras influências de Os Bons Companheiros (Goodfellas), referência identificada em quase todos os textos escritos em Cannes sobre Cidade, nunca no sentido de plágio, mas de referência válida. Você decidiu racionalmente deixar, às vezes, Paulo Lins de lado e buscar em Martin Scorsese e Nicholas Pilleggi (autor do livro Goodfellas) energia para a narração? FM – De fato, o roteiro que criamos tem algumas semelhanças com o roteiro de Os Bons Companheiros, mas foi algo que aconteceu por acaso. O livro do Paulo Lins não tem personagem central e nem uma linha dramática linear. Isso funciona no romance, mas não funcionaria num filme. Percebemos que o único personagem que ia do começo ao fim do livro era o próprio Paulo Lins, que contava aquelas histórias. Decidimos fazer de Buscapé o alter ego do Paulo Lins, um personagem criado ali dentro que apresenta aquele universo do seu ponto de vista. Com essa função de contar a história, Buscapé acabou virando um protagonista que não carrega a ação, mas está sujeito a ela. Essa é a coincidência, pois Ray Liotta (o personagem Henry Hill), em Os Bons Companheiros, é um garoto que conta como funciona a Máfia, mas sempre como um observador mais distanciado. Ele quase nunca é o centro da história. Muitos personagens e muitas tramas também unem os dois filmes, mas aí, novamente, foi algo que veio do livro, com seus 350 personagens vivendo incontáveis situações. Talvez seja o caso de perguntar ao Paulo Lins se ele inspirou-se em Os Bons Companheiros. Nós tentamos ser fiéis ao livro. Minha crítica ao filme seria a forma como a Cidade de Deus é mostrada isolada do Brasil, sem que tenhamos real noção de como tudo aquilo faz parte da

sociedade brasileira como um todo. Em Domésticas, as empregadas também eram enfocadas longe dos patrões. As tensões eram entre elas e, em Cidade de Deus, as tensões são, também, em grande parte, entre eles mesmos. FM – A trama de Cidade de Deus é a seguinte: garoto criado no subúrbio carioca conta como viu o tráfico tomar conta de seu bairro no Rio de Janeiro, ao longo de 15 anos. É um filme sobre a escalada do tráfico sob o ponto de vista da favela. E é isso o que faz do livro do Paulo uma obra tão reveladora e importante. Queria também fazer um filme com a câmera no meio da favela, e não do lado de fora, olhando para dentro e analisando com as minhas premissas e meus julgamentos. Mostrar o problema por todos os lados derrubaria de cara a premissa do projeto. No livro do Paulo Lins, não há classe média. Assim como daqui enxergamos toda aquela população como favelados, de lá eles nos vêem como playboys. É assim que está no filme. Domésticas obedece a mesma lógica, e a ausência de patroas é o que nos possibilita entrar um pouco no universo daquelas mulheres. Como vê o filme no atual cenário brasileiro? FM – O filme está sendo lançado num momento oportuno e pode alimentar discussões sobre as questões que levanta. Mas não muda nada. É apenas um pequeno espaço para reflexão. KL – Eu acho que Cidade de Deus será um marco, principalmente, por causa da energia forte desses jovens na tela. Notícias de uma Guerra Particular foi um marco, o clipe do Rappa, A Minha Alma, foi um marco. Isso porque a gente vem conseguindo penetrar nessa hipocrisia de vidro que cega todo mundo. Cidade de Deus é um soco que diz: “Se você não sabe o que está se passando na sua rua, é bom começar a prestar atenção”.

Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema

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FOTOGRAFIA

O homem que fotografou Deus e o Diabo Mesmo sem dinheiro e com equipamentos prec谩rios, o sergipano Waldemar Lima conseguiu captar cenas que entraram para a hist贸ria do cinema nacional Camilo Soares


T

FOTO: REPRODUÇÃO

irar leite de pedra. Poucas vezes essa expressão popular cai melhor do que quando se fala das filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Uma pequena equipe nordestina de ilustres desconhecidos entrou no Sertão da Bahia com pouco dinheiro e muita vontade, em junho de 1963, voltando de lá com uma obra que iria dar ao cinema brasileiro uma amplidão mundial, ao ser contemplada com o prêmio da crítica no Festival de Cannes de 1964. A ousada proposta de Glauber Rocha contou com a coragem e a habilidade do fotógrafo sergipano Waldemar Lima, que soube tirar o máximo proveito dos parcos equipamentos que tinha em mãos, captando cenas inesquecíveis para milhares de espectadores que se emocionaram com a tragédia do povo sertanejo narrada eloqüentemente pelo diretor baiano. Um dos poucos remanescentes dessa aventura, Waldemar conta um pouco dessa história de dificuldades e glórias, com a autoridade de quem, literalmente, viu tudo de perto.

Waldemar Lima, com a câmera, ao lado de Glauber Rocha, na época das filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol

Quase 40 anos depois da filmagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol, o filme continua lembrado e cultuado com um dos grandes filmes brasileiros de todos os tempos. Sinal disso é o projeto em andamento para a versão em DVD. Vocês imaginavam tamanho sucesso quando estavam enfurnados no Sertão baiano em junho de 63? Não. Éramos um grupo de desconhecidos sem dinheiro. Acreditávamos na idéia do Glauber, mas para os outros ele ainda não passava de um baiano que ninguém conhecia e que não conseguiu convencer muita gente para obter recursos e equipamentos, em São Paulo e no Rio. Sabíamos que a história era boa, mas não suspeitávamos que o filme iria chegar aonde chegou, ir a Cannes, ganhar prêmios pelo mundo. Continente Multicultural 91


Muitos comparam a sua iluminação de sombras duras e claros em Deus e o Diabo na Terra do Sol com o cinema clássico alemão. Você tinha essa influência? Qual era sua experiência como fotógrafo cinematográfico na época? O cinema alemão é referência para qualquer fotografia cinematográfica que queira ser boa. Tinha visto alguns filmes alemães, mas não conhecia a fundo a ponto de ter uma influência que fosse visível no filme. O contraste que escolhemos foi baseado na xilogravura da literatura de cordel, para ressaltar a estética regional. Daí as sobras e os claros bem fortes, algo mais a ver com a luz dura do Nordeste do que com a Alemanha ou Suécia.

Esse pedido, de uma fotografia feia, não seria algo difícil e até doloroso para um fotógrafo, para um artista? Acho que a fotografia de um filme deve primeiro se adequar à proposta do diretor. Por isso, cada filme tem uma fotografia diferente. Depois disso é que entra o fotógrafo como artista, criando a textura que corresponda tematicamente com o filme. Não queríamos passar, por exemplo, aquela beleza exuberante do mandacaru, mas queríamos reforçar a dureza do sol e da vida daquelas pessoas. Nada de maquear a luz regional. É verdade que o laboratório atenuou esse contraste e o filme conhecido hoje nunca foi exibido tal como fora concebido? É bem verdade que vemos nuvens no céu do filme... Sim, é verdade. O laboratório tinha lá um padrão de qualidade que não aceitava o transmitir fielmente uma película impressa com essa concepção de 92 Continente Multicultural

céu estourado, até porque não éramos ninguém, não tínhamos nome e todos ficavam desconfiados com aqueles nordestinos que queriam fazer um filme diferente. Ficou a versão do laboratório. Eu mesmo nunca vi o filme da maneira como filmei. Talvez essa versão em DVD possa redimir isso e finalmente poderemos ver o filme como foi idealizado. Fui chamado para assessorar a digitalização da fotografia do filme. Talvez retoque aqui e ali, mas não irei fazer grandes mudanças, pois o filme está consagrado assim, está na nossa lembrança assim. Não tem mais nenhuma razão para retomar essa história agora. É verdade que vocês tiveram a sorte, ou melhor, o azar de presenciar a chuva do Sertão nordestino, o que acabou atrasando as filmagens? O que é sorte para uns é azar para outros. Aquelas chuvas foram a alegria dos que viviam ali e a preocupação da nossa equipe. Depois de alguns dias, como já estávamos lá, com poucos e precários equipamentos, resolvemos não esperar mais a melhora do tempo e filmamos assim mesmo. Fomos fazendo os pequenos planos e foi dando certo. Nos momentos em que o sol aparecia, aproveitávamos para fazer os planos abertos. Em certas horas, a chuva até ajudou, pois o ânimo dos sertanejos estava ótimo — eles estavam

FOTO: CAMILO SOARES E REPRODUÇÃO/AE

Dizem que Glauber pediu a você que a fotografia fosse feia, estourada, para que não se estetizasse a dura realidade do Sertão? Olha, eu não sei se ele disse isso, mas tanta gente já falou que hoje eu acabei acreditando ou, pelo menos, aceitando que ele falou isso, como muitas outras coisas. Ele não queria “glamourizar” a beleza da região, daí surgiu a concepção da luz estourada, baseada na xilogravura. Eu media a exposição do filme pela sombra, não pela luz ambiente. Assim, o filme ficaria superexposto, estourando o céu e outras áreas mais claras.


“Outro mito que espalharam por aí é que improvisamos muito. Não é verdade. Todas as cenas foram ensaiadas. Sabíamos muito bem o que estávamos fazendo” já estava exausta. Quando ela caiu, o Glauber gritou para mim e para o Geraldo (d’El Rey): “Continua! Continua!” Ele tinha dessas coisas geniais de perceber quando algo que acontece assim, ao longo das filmagens, é aproveitável. Acabou que, entre tantas tomadas, essa foi a escolhida.

felizes e sempre dispostos a colaborar. Qual era sua formação como fotógrafo de cinema na época? Tinha experiência como câmera. Fiz a câmera n’A Grande Feira, de Roberto Pires, mas nunca tinha feito direção de fotografia. Tinha grande facilidade em obter planos rápidos, focalizar e compor na mesma hora com câmera na mão, após minha experiência de muitos anos como repórter-cinegrafista para a TV Iglu, é uma produtora que fazia jornais cinematográficos (exibidos nas salas de cinemas antes dos filmes).

FOTO: REPRODUÇÃO / AE

Essa sua intuição como fotógrafo de cinema foi um elemento importante para o sucesso de um projeto marcado pelo famoso gosto de improvisação de Glauber Rocha? Outro mito que espalham por aí é que improvisamos muito. Não é verdade. Não houve nada parecido com documentário no filme. Todas aquelas pessoas, aqueles sertanejos, foram colocados ali pelo Glauber. As cenas foram ensaiadas. O que acontecia era que, às vezes, o Glauber sentia que a cena estava rendendo e mandava continuar. Mas não se pode dizer que um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol foi improviso. Sabíamos muito bem o que estávamos fazendo. Mas e aquela famosa cena final em que Manuel e Rosa estão correndo e Rosa cai? Isso não estava previsto, estava? Não. Foi um travelling que fiz em cima de uma Kombi. Fizemos várias tomadas e a Yoná (Magalhães)

E de onde surgiu essa parceria entre você e Glauber? Tenho que assumir que eu não era o escolhido para fotografar o filme. O Glauber fez o convite a dois ou três fotógrafos de cinema de renome no Brasil, que não aceitaram fazer, pois era apenas um filme de um baiano desconhecido (Glauber só tinha feito o ainda praticamente não exibido Barravento). Eu aceitei fazer. Eles fizeram dezenas de filmes e foram esquecidos; eu fiz um e entrei para a história.

Na página anterior, Waldemar Lima hoje Abaixo, Glauber Rocha Ao lado, cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol

Hoje, o cinema nacional apresenta uma volta para o Sertão nordestino, como em Central do Brasil, Eu Tu Eles e Abril Despedaçado e Viva São João. Você acha que é uma temática cansada ou é um poço inesgotável? O Nordeste é riquíssimo. A temática não é o problema. O que posso falar, dentro da minha especialidade, é que o problema é o tipo de luz que estão empregando para retratar a região. Querem usar uma luz hollywoodiana para histórias que se passam no Sertão, e isso torna-se estranho. A luz do Sertão é dura, com sombras fortes e não suave. Isso que estão fazendo não convence. Seria isso um puxão de orelha em Walter Carvalho, diretor de fotografia de Central do Brasil e Abril Despedaçado, que é, inclusive, paraibano? O Walter é um ótimo fotógrafo. Até votei nele como melhor fotografia do ano passado por Lavoura Arcaica. Mas o problema é que ele não foi fiel a uma luz dura que ele próprio conhece. É verdade que o filme é, antes de tudo, de um diretor do Sudeste, do Waltinho (Walter Salles Jr.), que tem uma visão exterior para a região. Porém, a luz que o Walter Carvalho criou não corresponde à realidade, não tem legitimidade. Camilo Soares é jornalista

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ENTREMEZ

Ao retratar-se, Galileu Galilei renuncia às glórias do seu tempo para ter um pouco mais de vida. Se fosse brasileiro, o seu gesto seria aclamado como astúcia

S

empre preferi Galileu Galilei a Giordano Bruno. A atitude de Galileu perante o Tribunal da Inquisição, abjurando as suas descobertas no campo da astronomia e da física, para garantir a vida e a possibilidade de continuar investigando o universo, me parece científica e moderna. Giordano, ao contrário, perseverou nas afirmações que contrariavam os dogmas católicos, sendo condenado à fogueira. Sua coragem é invejável. Mas os heróis morrem cedo, deixando apenas o exemplo de heroísmo. Galileu parece um covarde quando, aos setenta anos, na perspectiva de passar o resto dos seus dias na cadeia, faz uma retratação pública e retira tudo o que afirmara: que a Terra girava em torno do Sol e de si mesma, que Júpiter era um centro astral, com satélites orbitando a seu redor, que as estrelas eram mutáveis. Tudo o que contrariava o pensamento aristotélico, base do poder da Igreja. Ao negar-se, renuncia às glórias do seu tempo para ter um pouco mais de vida e continuar a sua obra. Seria essa a verdadeira coragem, um com-

promisso com o eterno? Graças a ele a ciência saiu da teoria para a experimentação. Giordano lembra o carvalho da fábula, que não se dobra diante da tempestade e termina partindo-se ao meio. Galileu é o bambuzinho flexível, que se curva até o chão. Passada a tempestade, ele se põe de pé, vivo e inteiro. Se Galileu fosse brasileiro, o seu gesto seria aclamado como astúcia. Enganar faz parte da nossa cultura. Dois autores brasileiros criaram personagens freqüentemente referidos como modelos da alma nacional. Ariano Suassuna recriou João Grilo, no seu Auto da Compadecida, a partir dos folhetos de cordel e de histórias da tradição oral. Mário de Andrade baseou-se nos mitos indígenas para nos dar Macunaíma. Os críticos insistem nas semelhanças dos dois personagens, mas Ariano faz questão de mostrar as diferenças. João Grilo representa o nordestino pobre, humilhado, com um certo grau de consciência social, usando os recursos da malícia e da inteligência para sobreviver e defender-se dos seus opressores, os pa-

Ronaldo Correia de Brito 94 Continente Multicultural

ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

Ainda sobre heroísmo e astúcia


FOTO: DIVULGAÇÃO

trões e Deus. Em qualquer situação, ele usa o “jeito”, modo tipicamente brasileiro de arranjar as coisas. — E difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito! Sem jeito por quê? Vocês são uns pamonhas, qualquer coisinha estão arriando. Não vê que tiveram tudo na terra? Se tivessem tido que agüentar o rojão de João Grilo, passando fome e comendo macambira na seca, garanto que tinham mais coragem. Apesar das malandragens e estratagemas de que se vale para chegar aos fins desejados, João Grilo faz parte do “Brasil real” de que falava Machado de Assis. Já Macunaíma é assumidamente sem caráter, confesso preguiçoso. Tudo que fora a existência dele, apesar de tantos casos, tanta brincadeira, tanta ilusão, tanto sofrimento, tanto heroísmo, afinal, não fora senão um se deixar viver; e pra parar na cidade do Delmiro ou na ilha de Marajó, que são desta Terra, carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização. Macunaíma contribui para mais um estereótipo de brasileiro, o de povo sem sentido e sem ordem. João Grilo, se é possível comparar realidade com ficção, está mais para Galileu. Em ambos, o de-

sejo de permanecer vivo é heróico, porque tem um fim e uma causa. João Grilo, com a intervenção da Compadecida, volta à vida de tanta vontade que estava de enriquecer. Galileu quer continuar vivo para reafirmar, mais adiante, tudo o que negara. Já Macunaíma, mesmo se transformando na constelação de Ursa Maior, é o mesmo herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu. Parecemos com o povo russo nessa mania de buscar a alma nacional. O caráter de uma nação se constrói a partir de heróis reais e imaginários, literários e mitológicos. E também no exemplo dos seus políticos. Mas nesse espelho temos tido pouca sorte. Melhor a literatura. Nela, se um herói não presta, viramos a página ou trocamos de livro. Na política, é bem mais complicado.

À esquerda, Galileu Galilei. À direita, os personagens João Grilo e Chicó em cena do filme O Auto da Compadecida

Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor

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ÚLTIMAS PALAVRAS

A maldição das elites

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holocausto não é só aquele conhecido como a trágica e horrenda dizimação em massa dos judeus pelos nazistas durante a II Grande Guerra. Tematizou-se pela mídia internacional pós-conflito como se fosse o maior e mais acintoso às liberdades democráticas de nações civilizadas — no mínimo, semicauterizadas, por buscarem na educação uma melhor formação cultural de seus jovens. E a tortura e também a humilhação seguidas de mortes de milhões de negros pela fome e maus tratos através de seculares escravidões impostas pelo poder econômico e político dos colonizadores? Bem sintetizou um ex-caminhoneiro que estudou e virou professor universitário na Califórnia, ao exprimir toda sua ira numa específica alusão nos Holocaustos Coloniais (Ed. Record). Mike Davis escreveu sobre a investigação da relação entre o imperialismo e os desastres ecológicos desde o século 19. Mais um holocausto a contabilizar, registrando a irrelevância quanto à fome e raça pelo colonialismo inglês daquele século em países como a Índia, China e Brasil, entre os anos de 1876 e 1914. Não há mais dúvida de que, no Brasil, o início da martirização do nosso povo chegou com a esquadra de Cabral, legítimo representante pioneiro de uma elitização a ser arraigada nas benditas terras de Santa Cruz por esses longos anos que acabamos, há pouco, de comemorar num intrépido gesto — intrujice faceira de festas apenas festeiras em nome da História. Entretanto, não se pode culpar toda a evolução da intolerância elitista em nosso país somente consignando os portugueses. Os donos do império das patacas, níqueis e ouros proliferaram (inspirados, principalmente, pelos norte-americanos, judeus por descendência e excelência), legando a nós, hoje, a gênese do Terceiro Mundo — mundismo e imundice miscíveis — inscrita no mais elementar holocausto: o social, cujo efeito esmagador nos atinge na maioria, impondo uma marginalização que beira os 74% de excluídos (vide relatório da ONU), incluindo-se nessa totalidade também a classe média, sentenciando os pobres de “marré” a elevada estimativa de 42%. É a forma de dominação da sociedade abastada contemporânea. Sem educação nem cultura, sobrarão a fome, a violência, a doença e o infortúnio. Se cada uma das famílias brasileiras fosse conscienciosa e decidida, é claro, de que precisamos e

devemos fazer algo, pelo menos, por uma criança sem eira nem beira que vegeta pelos afluentes da miséria em que vive — custeando-lhe uma instrução por míseros tostões —, por certo, a médio prazo não tão médio, sairíamos das plagas dos emergentes. Os políticos brasileiros, em geral, se nutrem da mentira para enganar a população — uma reflexão bem estufada de Alexandre Koyré, em 1943, em tempos de guerra, que tão auspiciosamente se encaixa quanto ao trabalho exercido pelos mesmos em tempos de paz. Exaltando sempre a suas promessas “estadistas”, não fazem outra coisa senão tratar a onipresença da mentira na sociedade moderna sob a forma de propaganda enganosa, nunca punível, causando a mixórdia na identificação dessa sociedade com a mentira. A elite empresarial egressa da cafeicultura paulista e da leiteira mineira, combinando seus cartéis ambiciosos com o aumento dos patrimônios também da açucarocracia nordestina aliada aos agropecuaristas dos cerrados e dos circuitos friorentos dos sulistas imigrantes, é quem faz morrer, a cada dia, a idéia de uma melhor condição de vida de um sem-número de brasileiros esquecidos pelas vias anônimas do respeito humano. Como a maldição dos faraós, a riqueza eterniza os pobres de espírito cristão, descarta a cultura, debilita uma nação. Morremos, um pouco, todos nós. Rivaldo Paiva é escritor

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