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CONTEÚDO
Continente Multicultural
Especial – Eckhout Instituto Brennand é inaugurado com a maior exposição no Brasil do pintor holandês
Economia – Vexame Jornalista desvenda as fragilidades do FMI e mostra como o órgão pode ser questionado
Artes plásticas – Volpi Quatro décadas do artista que começou pintando paredes e se tornou um mestre
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Albert Eckhout: Negra, óleo sobre tela. 1641 270 x 180cm Imagem Reprodução
Homenagem – Antonioni
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Os 90 anos de um dos últimos grandes diretores de filmes autorais da década de 60
Ferreira Gullar – Museu vazio
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Crítico aponta a inócua tendência de instituições valerem por si sós, sem abrigar as artes
Música – Tropicalismo
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A evolução da música popular brasileira através de seus movimentos e tendências
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Diário de uma víbora – Cautela Colunista lembra que não se deve confiar em vulcões aparentemente extintos
Literatura – Goncourt Livro premiado fala do tempo em que os franceses tentaram colonizar o Brasil
Cultura – Bienal O Rio Grande do Norte mata a fome de livros promovendo duas grandes feiras
Sabores pernambucanos – Salada Depois de passar por diversas mudanças, é prato que hoje pode ser considerado perfeito
Cinema – Michael Moore Com figura de Sancho Pança e alma de Dom Quixote, cineasta fustiga os EUA
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Marco zero – Cultura Cronista alerta para a necessidade de uma política séria em relação à questão cultural
Fotografia – Verger A visão de um vibrante mundo tropical através das lentes inspiradas de um europeu
Entremez – Burocracia Folhas-corridas na polícia, atestados de pobreza e censura são coisas do passado?
Últimas palavras – Eleição Política continua sendo uma arte tão difícil quanto divertida, por isso, cuidado ao votar
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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena
Diretor Industrial Rui Loepert
Continente
Multicultural Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Arte Manoela Leão e Luiz Arrais Editoração eletrônica Ilustradores André Fellows Zenival e Mascaro Tratamento de imagem Nélio Câmara Secretária Tereza Veras
Revisão Rodrigo Pinto
Colaboradores Alberto da Cunha Melo, Antônio Cícero, Edson Nery da Fonseca, Felipe Porciúncula, Fernando Monteiro, Ferreira Gullar, Georgia Quintas, Joel Silveira, Kleber Mendonça Filho, Leonardo Dantas Silva, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Marcos Galindo, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mariana Lacerda, Nelson Patriota, Olívio Tavares de Araújo, Renata Victor, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 / e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: fone:3217.2551 / fax: 3222.4130 E-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Informações: informacoes@continentemulticultural.com.br Publicações: publicacoes@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
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Qualificação Mais uma vez constato que a revista Continente mantém a sua alta qualificação gráfica, cultural e regional. Felicito-os pela magnífica edição especial que acabo de receber e ler, e na qual um poeta alagoano renova a sua fidelidade ao Recife. Lêdo Ivo – Rio de Janeiro – RJ Boa impressão Tive a oportunidade de conhecer esta revista e fiquei muito bem impressionado com a qualidade e riqueza de seus artigos. Sou engenheiro civil nascido em Crato (CE), mas resido em Salvador. Marcos Barreto de Melo – Salvador – BA Exemplo A revista Continente Multicultural (edição número 10) está presente como um dos exemplos de publicações de arte que surgiram na última década. Marcelo Leite – Rio de Janeiro – RJ Parabéns É com muito prazer que escrevo este e-mail, a fim de parabenizar a todos que fazem esta revista de alto nível. Confesso que ao folheá-la, senti uma semelhança com a Bravo!, mas, semelhanças à parte, vocês estão de parabéns, por produzirem um veículo desse nível em pleno Nordeste. Faço parte da equipe de jornalismo do Jornal da Cidade, aqui de Sergipe, sendo responsável pela parte cultural do impresso. Suyene Correia – Aracaju – SE Restauração Como leitora assídua desta bela revista, gostaria de ver em suas páginas matéria sobre o importante projeto de restauração que está acontecendo no Bairro do Recife, onde as obras do antigo prédio da Alfândega e do cais já nos dão uma pequena mostra da grandiosidade dos projetos que darão, sem dúvida, novo impulso ao bairro e à cidade de mesmo nome. Grata e ansiosa para ler algo a respeito na Continente. Mariana Mello – Recife – PE
Morte Parabéns pela coragem e ousadia de abordar um tema nada frugal como a morte. Ler Morte a Débito (edição número 19), no entanto, me fez lembrar uma palestra de Hrydayananda Dasa Goswami, Phd em Sânscrito e Estudos Indianos pela Universidade de Harvard. Em sua última visita ao Brasil, ele defendeu: “O que faria as pessoas almejarem permanecer neste mundo? O ponto não é se você vai ou não morrer, mas como vai morrer – se terá uma morte gloriosa que simplesmente serve como ponto de partida para a vida superior; ou se terá de morrer como um cão ou gato, apavorado, ignorante e arrastado pela força. Hoje, vive-se como se não houvesse amanhã – vida animal. O animal não tem conceito multidimensional do tempo, não pode chegar ao ponto do raciocínio teosófico do ‘Por que nasci?’. Nosso verdadeiro lar está muito além do mundo material, ponto tão simples e tão difícil de entender devido à influência da era materialista em que vivemos”. Radha Krsna – Recife – PE Prazer Tive o prazer de ler esta revista ainda em Salvador, na Livraria Grandes Autores, o único lugar, creio eu, naquela cidade onde se vende a Continente. Agora, em João Pessoa, encontrei-a casualmente em uma banca em Tambaú, e anotei o endereço eletrônico para parabenizar pela excelente qualidade gráfica e editorial. Vida longa para a revista. Mariel Carvalho – Salvador – BA Paulo Coelho Embora um pouco tardiamente, desejo opinar sobre entrevista e a reportagem com o mago Paulo Coelho, nas quais se evidenciaram isenção e oportunismo da notícia. O Alquimista, seu único livro lido por mim até o final, ganhou o mundo e abriu-lhe as portas da fama.
Ele tem provado ser mestre na arte de saber viver, e não liga, a mínima para o nariz empinado de grande parcela da critica literária. Quem sabe, se tivesse adotado o nome Paul Rabbit, seria aplaudido e acolhido sem restrições até mesmo pela elitizada classe dita intelectual, que torce o nariz aos autores brasileiros, mas aplaude de olhos bem fechados os que vêm de fora. Resta-nos aguardar o dia em que o agora imortal decida contar a verdade sobre os altos e baixos da turbulenta época da Sociedade Alternativa, vivida, com o genial e autodestrutivo Raul Seixas; sem dúvida, será o seu best-seller. Maria da Conceição Cardim Pazzola – Olinda – PE Bloom Fiquei encantado com a entrevista concedida pelo grande crítico literário norte-americano Harold Bloom (edição número 17). É bom que ele reconheça que listas dos “100 Mais” ou coisas do tipo não devem constar de livros sérios, como é o caso do seu O Cânone Ocidental, mas também é bom que ele reconheça que esse tipo de “curiosidade” é quase que exigido pelo público em geral e, por conseguinte, pelos editores. De qualquer forma, Bloom também reconhece que não ter incluído o nosso Machado de Assis foi uma falha da qual ele se penitencia. Afinal, se Machado tivesse escrito em inglês ou francês, seria mundialmente tão incensado quanto Henry James ou Sthendal. Mário Castro Moura – Belo Horizonte – MG
Maravilhada Só recentemente tomei conhecimento da existência da revista Continente Multicultural e confesso que fiquei maravilhada com o que vi. É muito bom saber que o bravo povo nordestino está produzindo um trabalho tão bom. Matérias bem escritas e com belas fotos! Continuem assim. Geralda Pimenta – São Paulo – SP Continente Multicultural 3
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EDITORIAL
O retorno de Eckhout
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odos os que conheceram Maurício de Nassau e integraram a sua missão artística e científica estão mortos. A própria preocupação urbanística do conde, tanto em construir a sua Maurícia quanto em melhorar o velho Recife, está morta. O território mesmo de Pernambuco é outro, depois de perder vários pedaços do que era como castigo por sua rebeldia, iniciada, aliás, no tempo em que expulsou os holandeses. O que ficou vivo, como testemunho e memória, foram as obras escritas e as imagens daquele tempo. É através delas que o brasileiro de hoje pode ver como viam os olhos dos estrangeiros o Recife há mais de três séculos e meio. Os mapas, os desenhos, as pinturas mostram os lugares, os caminhos, as paisagens. E são os homens nestas o que mais conta. Como disse bem Pierre Gourou, “a geografia, contrariamente ao que se ensina na escola, não pode ser dividida em geografia física e geografia humana. Trata-se de uma coisa só. Toda paisagem é, antes de mais nada, uma paisagem de civilização. A idéia de que a natureza vem antes é uma ilusão.” Daí a importância extraordinária dos quadros de Albert Eckhout que começam a ser vistos este mês no Brasil. Ao olhar as telas do pintor, o visitante verá como ele, outro visitante, viu os seus ancestrais. Esta revista, que se empenha, desde o seu número inaugural, em revelar para o seu leitor uma seleção do excelente na cultura brasileira, documenta e exalta esse reencontro.
Albert Eckhout. Detalhe de Composição com Frutas. Óleo sobre tela. 90 x 90cm
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AO LEITOR
Espaço Cultural Bandepe, no Recife
O capitalismo que não embrutece Num futuro próximo, a economia se voltará para a última esfera independente remanescente da atividade humana: a cultura
FOTO: ARNALDO CARVALHO / LUMIAR
Carlos Alberto Fernandes
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a década passada a privatização e a desregulamentação das funções e dos serviços do governo foram a grande onda liberalizante iniciada no governo Collor e quase concluída, bem ou mal, no governo Fernando Henrique Cardoso. Em pouco mais de dez anos, e sob a bandeira da globalização e da eficiência econômica, grande parte do que era antes serviço estatal de utilidade pública passou para as mãos privadas, a exemplo das telecomunicações, energia, transporte coletivo, siderurgia, entre outros. Acredito que num futuro próximo, ou melhor, breve, pois já há fortes indícios de que já esteja acontecendo, a economia se voltará para a última esfera independente remanescente da atividade humana: a cultura. As artes, os esportes, a literatura (com o sucesso editorial de Paulo Coelho e de J.K. Rowling, com Harry Porter), os grandes eventos e movimentos sociais já movimentam comercialmente bilhões de dólares, e já estão inseridos no mercado global como se fossem commodities (mercadorias). A questão que se nos apresenta é: até que ponto o governo mínimo terá condições de ser mediador de uma estrutura de produção cultural potencialmente forte, à mercê de um mercado que, por seus humores e oscilações e sua força avassaladora em nossas vidas, transforma-se de uma hora para outra na maldição de nossa existência, colocando por terra as teses do mercado provedor de Adam Smith? Para Jeremy Rifkin, autor do livro O Fim do Emprego, a produção cultural representa o estágio final do estilo de vida capitalista, cuja missão essencial tem sido trazer cada vez mais atividades humanas para a arena comercial do mercado. Se na era industrial produzir bens e ter a sua propriedade eram as formas mais importantes da atividade econômica, na nova era, assegurar o acesso aos vários recursos e experiências culturais passa a ser um produto tão importante quanto manter as posses. A transformação do capitalismo industrial para o cultural está mostrando que as relações baseadas na propriedade, nas trocas comerciais e no acúmulo de bens materiais estão sendo soterradas para dar lugar a uma era em que a cultura se torna o recurso comercial mais importante. Nesse contexto, as próprias experiências de vida de cada indivíduo se tornam o melhor produto do mercado. Se os escalões estratégicos do governo não desejam olhar (como sempre têm feito) para a produção cultural como uma atividade diletante e romântica, sem
resultados comerciais e políticos concretos, que a vejam como um produto de uma nova era que muito brevemente se consagrará nos mercados com as variáveis e os parâmetros do capitalismo cultural. Já que vêem o turismo sob a ótica dos negócios, que vejam a cultura da mesma forma. Caso contrário, estarão indo de encontro a todas as tendências econômicas sociais do mundo moderno. E isso é grave, pois é pecado e erro metodológico esquecer as variáveis sistêmicas e estratégicas do macroambiente, como diria Peter Drucker (sic). Em Pernambuco, de caso recente, nós já temos um exemplo que reflete a tendência de que a produção cultural é o meio pelo qual novos empreendedores exploram significados culturais que são transformados pelas artes em experiências transformadas, em mercadorias compradas na economia. Estamos nos referindo ao Instituto Ricardo Brennand, fundado pelo industrial do mesmo nome, de extremo sucesso no chamado capitalismo industrial. Empresário visionário, foi mordido pela mosca azul ou identificou, primeiro do que muitos de seu tempo, a nova tendência do mundo. Empreendedor arrojado e sensível, descobriu, a tempo, que o negócio embrutece. Ao construir no bairro da Várzea, no Recife, réplica de um suntuoso e exótico castelo europeu, onde será instalado o Instituto Ricardo Brennand, esse industrial deve estar consciente de que, nesta nova era do capitalismo cultural, os bens adquirem cada vez mais qualidades secundárias. Essa obra de pedra e cal, a despeito da sua grandeza arquitetônica, será mera plataforma de suporte, em torno da qual significados culturais elaborados deverão ser representados. Apesar de ser uma imponente obra de engenharia, o castelo não deve ter o seu valor medido pela sua importância física ou material, mas, fundamentalmente, pela importância simbólica do que representa. Acredito tratar-se menos de uma obra material e muito mais de um instrumento de realização de experiências vividas. Nesse castelo de sublimação do simbólico, o todo é infinitamente maior do que a soma das partes; e, como na nova economia da produção cultural, a ficção é o facho construtor da realidade. É nessa concretude de fantasia própria do capitalismo pós-industrial que emerge a consciência, nunca tardia, de que quando não sabemos ver, cada um de nós embrutece. Carlos Alberto Fernandes é economista, professor da UFRPE, ex-Secretário Adjunto do Tesouro Nacional e Diretor Geral da revista Continente Multicultural
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Especial
Reencontro de civilizações Três séculos e meio depois de levados para a Europa pelo conde Maurício de Nassau, esta é a primeira vez que os quadros pintados por Albert Eckhout, representando paisagens, frutos, negros, mamelucos e índios, vêm ao Brasil em sua totalidade
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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que para os europeus do século 17 foi simples exotismo e curiosidade, para os brasileiros de hoje é uma forma de reconhecimento e pitoresco. Os índios, negros e mestiços, os frutos e a paisagem que podem ser vistos na exposição Albert Eckhout volta ao Brasil, inaugurada no dia 12 deste mês, no Instituto Ricardo Brennand, representam uma integração. Do passado com o presente. Dos brasileiros com os holandeses. Dos invasores com aqueles que, em 1654, os expulsaram. Um amplo reencontro. Esta é a primeira vez que esses quadros, pertencentes ao setor de etnografia do Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague, vêm, na sua totalidade, ao Brasil. Nas mostras anteriores, no Rio, em 1968, e em São Paulo, em 1991 e 1998, só uma
“Dança dos Índios Tapuias” (169 X 294cm), sem data. Museu Nacional da Dinamarca
pequena parte desse tesouro foi exibida. Depois do Recife, onde ficam até 24 de novembro, as telas serão vistas em Brasília (3 de dezembro de 2002 a 4 de janeiro de 2003) e em São Paulo (13 de janeiro a 16 de março de 2003). É antigo o interesse brasileiro em rever esses quadros. Pintados sob encomenda do conde Maurício de Nassau, foram levados à Europa quando do retorno dele e presenteados a Frederico III, rei da Dinamarca. No século 19, o imperador D. Pedro II quis trazê-los ao Brasil, mas só conseguiu que fossem feitas seis réplicas, que hoje integram o acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Depois do monarca, diplomatas ilustres como Argeu Guimarães, Joaquim de Sousa-Leão (ambos autores de excelentes estudos a respeito das pinturas) e Hélio Scarabôtolo também se
Pieter Nason. Retrato de Johann Maurits von Nassau-Siegen. Óleo sobre tela, 1666. Museu Nacional de Varsóvia
interessaram por mostrá-los na terra que os motivou. Há três anos, o publicitário Jens Olesen iniciou entendimentos com o Museu Nacional da Dinamarca e os governos do Brasil e de Pernambuco para organizar uma exposição dos 24 óleos. Conseguiu. Para isto, contou com o apoio de diversas autoridades, como o ministro Marcos Vinicios Vilaça e o governador Jarbas Vasconcelos, e de empresas privadas, como a McCannErickson e o banco ABN. Uma comissão dinamarquesa veio ao Brasil avaliar os museus que poderiam abrigar a mostra. Em Pernambuco, o escolhido foi o do Instituto Ricardo Brennand. (MH) Continente Multicultural 9
A exposição Í
Na sala 2 estarão todas as obras originais
ndios, negros e mestiços com mais de 2,5m de altura e frutas com mais de 90cm confraternizam num espaço de 1.150 m2, pé-direito de 6m. Assim se situa, basicamente, a exposição Albert Eckhout volta ao Brasil – 1644-2002, no Instituto Ricardo Brennand. A museografia, os equipamentos, os mobiliários expositivos, tanto no Instituto quanto na mostra, levam a assinatura de Margareth de Moraes, à frente da empresa que tem o seu nome, no Rio de Janeiro. O exposição será vista no IRB, em duas salas. Na primeira, chamada de multimídia, o público terá um contato “virtual” com as obras e fará uma “viagem” sensorial pelo universo do Brasil Holandês. Na segunda, poderá apreciar as obras originais. O visitante, logo na ante-sala, verá dois exemplares de tapeçarias com referências às obras de Eckhout. Os painéis que suportam as peças estarão inclinados, por cuidados de conservação. Em seguida, virá a sala multimídia, cuja passagem se dará pelas laterais de um plano inclinado. Nos ambientes, sons
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alusivos à época do domínio holandês no Brasil. Uma seqüência de imagens será projetada numa tela suspensa. Além de poder folhear “virtualmente” as páginas do livro de Gaspar Barleus, relativo ao governo de Maurício de Nassau (próximo da sala 2 poderá ser visto o exemplar original), o visitante terá um contato olfativo com as obras expostas: os aromas serão das naturezas-mortas (cocos, goiabas, laranjas, maracujás etc). Um kinescópio exibirá, como se fosse um videoclipe, animação do quadro Dança dos Índios Tapuias, sob o fundo musical de danças tribais, street dance, capoeira e outros ritmos. Outras alusões à cultura pop da atualidade poderão ser vistas. Na sala 2 é que estarão todas as obras originais, obedecendo ao padrão da museografia convencional.
Como chegar ao Instituto Ricardo Brennand
Granja São João, Várzea Recife, Pernambuco 50741-520 Brasil Tel/fax: (81) 3271.1544 inst.r.brennand@uol.com.br www.ricardobrennand.org.br
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uem vem da Zona Sul, Boa Viagem e Aeroporto, deve pegar a Av. Recife, passando pelo viaduto da BR-232, seguir em frente pela BR-101 e fazer o retorno no girador à frente da reitoria da UFPE. Depois, deve entrar à direita no 7o Regimento Militar e continuar em frente, passando pela Escola Técnica (CEFET-PE) e seguindo adiante até chegar ao Instituto. Para quem vem do centro da cidade, o melhor caminho é vir pela Av. Caxangá, pegar a BR-101 (sentido Aeroporto), passar pelo girador da reitoria da
UFPE, dobrar à direita no 7º Regimento Militar e continuar em frente, passando pela Escola Técnica (CEFET-PE) e seguindo adiante até o Instituto. Quem parte da Zona Norte deve vir pela Av. 17 de agosto, como quem vai para Dois Irmãos, dobrar na BR-101 (sentido Aeroporto), seguir pelo girador da reitoria da UFPE e dobrar à direita no 7º Regimento Militar. A partir daí é continuar em frente, passando pela Escola Técnica (CEFET-PE) e seguindo adiante até o Instituto.
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Simpósio internacional reúne os especialistas
O historiador Ernst van den Boogaart
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ções de Peter Wagner (Dinamarca), Dante Martins Teixeira (Brasil) e Martin Boeseman (Holanda). As relações entre a cultura holandesa e a brasileira serão discutidas por José Roberto Teixeira Leite (Brasil), Quentin Buvelot (Holanda), e Svetlana Alpers (EUA). A conferência de encerramento será proferida por Espen Waehle, chefe da coleção etnográfica do Museu Nacional da Dinamarca.
Serviço: Simpósio Internacional Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002 Data: 13 e 14 de setembro de 2002 Local: Auditório do Bandepe – Banco de Pernambuco Cais do Apolo, 222 – 16º andar – Bairro do Recife Abertura: 13 de setembro, às 10h
FOTO: MARCOS GALINDO
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ão menos importante que a exposição de quadros no Instituto Ricardo Brennand será a realização do simpósio internacional Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002, que terá lugar no auditório do Bandepe, nos dias 13 e 14 deste mês, congregando alguns dos maiores especialistas em Brasil Holandês da América do Sul, Europa e Estados Unidos. Serão prestadas duas homenagens na ocasião: uma, póstuma, a José Antonio Gonsalves de Mello, autor de Tempo dos Flamengos, e outra a Martin Boeseman, autor de A Portrait of Dutch 17th Century Brazil. As primeiras palestras terão caráter mais geral: Evaldo Cabral de Mello falará sobre o domínio holandês no Brasil e Leonardo Dantas Silva, sobre o Recife no tempo de Albert Eckhout. Depois, haverá as mesas “Retratos dos Habitantes do Brasil”, com palestras específicas sobre Eckhout, proferidas por Ernst van den Boogaart (Holanda), Peter Mason (Chile) e Rebecca Parker Brienen (EUA). Quem se interessa pelos aspectos mais técnicos de conservação e restauro não poderá perder as palestras de Barbara Berlowicz e Mads Chr. Christensen (Dinamarca) e de Jørgen Wadum (Holanda). A mesa “Obras nas Coleções Européias” responderá a questões como por que Nassau decidiu doar ao rei da Dinamarca as obras de Eckhout, e comentará a trajetória dessas e de outras pinturas e objetos relativos ao Brasil na Europa. Os palestrantes são Mogens Bencard, Bente Gundestrup, Berete Due, todos dinamarqueses. “Imagens da Natureza Tropical” é o tema das comunica-
“Eles se detestavam ” Mário Hélio
IMAGEM: REPRODUÇÃO
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empo dos Flamengos, de José Antonio Gonsalves de Mello, publicado em 1947, despertou no menino Evaldo Cabral de Mello (tinha 12 anos quando o leu) o interesse pela História. A vocação precoce seria mais tarde amadurecida nos cursos que realizou na Espanha, na juventude, e nas pesquisas que empreendeu em diversos arquivos europeus, já como diplomata. O primeiro fruto dessas investigações foi o livro Olinda Restaurada, sua estréia, aos 39 anos. Depois vieram outras obras fundamentais para se entender o Brasil Holandês, como Rubro Veio, publicado originalmente em 1987 e reeditado pela Topbooks há cinco anos. Pela mesma editora saiu, em 1998, O Negócio do Brasil, o último que o autor dedicou inteiramente ao tema da presença holandesa no nordeste do Brasil no século 17.
Evaldo Cabral de Mello não pretende escrever outro livro sobre o domínio holandês. Todavia, continua a produzir ensaios sobre isso, inclusive em Continente. Em A Ferida de Narciso, seu livro mais recente, editado pelo Senac de São Paulo, há um capítulo sobre as relações entre os luso-brasileiros e os neerlandeses que ocuparam Pernambuco em 1630 e foram expulsos em 1654. Isso também é a matéria de sua palestra no seminário internacional que será realizado nos dias 13 e 14 deste mês, no auditório do Bandepe Em sua residência, no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro, Evaldo Cabral de Mello concedeu esta entrevista ao jornalista Mário Hélio. Ele explica por que não pretende mais se dedicar ao Brasil Holandês e aponta novos enfoques sobre o assunto.
Anônimo. Batalha de Guararapes. Peça votiva a Nossa Senhora dos Prazeres do monte dos Guararapes, século 18. Pernambuco
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O Sr. é um caso de vocação precoce para os estudos históricos. Foi de História o primeiro livro importante a marcar a sua vida? Não, o primeiro livro que li na vida, e que me marcou até hoje, não foi um livro de História. Foi em 1940, quando toda a minha família veio passar o carnaval no Rio de Janeiro. Eu estava começando a ler – aprendi a ler sozinho – e me deram um livro colorido com a história de Ferdinando Flores, um novilho que, em vez de estar às pancadas com os outros, resolve cheirar as flores. Eu acho que esse livro foi decisivo pra mim. Ele me ensinou desde então que existem duas categorias de pessoas no mundo: uma, a grande maioria, dos agitados, aqueles touros, e outra, minoria minoritaríssima, de reflexivos, formada pelos sujeitos que gostam de pensar. A história desse livro ficou na minha cabeça, e só me ocorreu recentemente
que tenha sido decisivo. Mas, no fundo, esse livro me incutiu a idéia que até hoje eu tenho: em todas as sociedades, há uma minoria de pessoas criadoras. Quando eu tinha meus vinte e tantos anos, li essa idéia reformulada por um grande filósofo, Ortega y Gasset, em As Rebeliões das Massas. Fiz essa ligação entre Ortega e Ferdinando Flores. Sei que essa é uma idéia antipática hoje, uma idéia que pega mal, politicamente incorreta, mas é uma das minhas últimas convicções. Como Ortega diria, isso para mim não é mais uma idéia: é uma crença, algo que já se dá por sabido. Com uma idéia você ainda brinca. Por exemplo, eu posso brincar com a idéia: o que teria acontecido se os holandeses tivessem ficado no Brasil? Perguntam-llhe muito sobre isso? Perguntam. Mas isso é uma discussão que já ficou acadêmica, completamente. É impossível de se dizer. A partir de Gilberto Freyre ficou elegante afirmar que a colonização portuguesa era a mais adaptada ao Brasil. Mas o pessoal das gerações anteriores a Gilberto, inclusive em Pernambuco, achava que realmente teria sido melhor o período holandês. Nabuco já disse em O Abolicionismo que saber se teria sido melhor com ou sem os holandeses é um problema insolúvel, porque não se pode dizer o que a História teria sido se não tivesse sido assim. O Sr. acha que há um excesso de idealização dos holandeses por parte dos pernambucanos? Não, pelo contrário. Havia muito mais na segunda metade do século 19. A idealização de hoje não é mais de fundo econômico-social, nem se acha que a colonização holandesa teria sido melhor. É mais poética, mais histórica, centrada na figura simpática de Nassau. Provavelmente, se Nassau não tivesse vindo para o Brasil, os holandeses não teriam mandado ninguém do estofo dele, e, desse modo, não teria havido idealização nenhuma.
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O historiador Evaldo Cabral de Mello
FOTO: DADA CARDOSO / FOLHA IMAGEM
O Sr. considera então Nassau uma figura muito importante, de grande significado? Sim. Ele destoou do restante dos holandeses. Era um homem que tinha uma formação humanística profunda, um sujeito muito inteligente. E pragmático. E pragmático. Mas de boa formação intelectual. Evidentemente, ele também tinha todas as deformações da época, que consistiam em querer ganhar dinheiro. Quanto a essa história de que Nassau fazia negociatas em Pernambuco, como aquela que conta o Valeroso Lucideno, esse era um comportamento aceitável, na época, e os administradores portugueses não foram diferentes. Apenas, provavelmente, não tinham a inteligência e o tino comercial de Nassau, que vinha de um país capitalista. Era normal este tipo de comportamento: utilizar o poder para enriquecer. E, no caso de Nassau, ele era de uma família aristocrática e numerosa. A situação econômica do pai e dos irmãos não era boa. O pai tinha casado duas ou três vezes, Nassau teve de vir da Alemanha para se empregar no exército holandês. Ele foi um sujeito obcecado por problemas de dinheiro até o fim da vida. Há o exemplo dos próprios quadros de Eckhout. Nassau não chegava simplesmente e dizia: “Toma o quadro e me dá o dinheiro”. Era mais uma troca de favores. Os
A partir de Gilberto Freyre ficou elegante afirmar que a colonização portuguesa era a mais adaptada ao Brasil. Mas as gerações anteriores achavam que teria sido melhor o período holandês quadros eram dados ao rei da Dinamarca e, em troca, o rei fazia um favor: um posto, uma mercê. Nassau era um sujeito que tinha dificuldades, também porque era metido a príncipe do Renascimento, numa época em que o Renascimento já tinha passado. Em 1937, quando houve a comemoração da chegada de Nassau ao Brasil, foi grande a oposição em Pernambuco tanto do pessoal de esquerda quanto do pessoal da extremadireita, como Manoel Lubambo. Barbosa Lima foi quem saiu em defesa do cosmopolitismo de Nassau. O Sr. acha que algum livro ainda poderia ser revolucionário como leitura do Brasil Holandês, trazendo algo que nunca se abordou antes? Um livro de História, para ser novo, não depende só dele, nem do autor, sequer da documentação. Depende de todo um clima historiográfico que estiver predominando. Evidentemente, daqui a dez, quinze ou vinte anos a historiografia já vai ser muito diferente, os critérios vão ser outros, e outras as curiosidades e as perguntas. O novo é um problema também de clima intelectual, isso que os franceses Continente Multicultural 15
chamam de o “espírito do tempo”. Com relação ao período holandês, por exemplo, há um certo veio ainda a explorar, mas não é um veio que me interesse especialmente, pois tem a ver com uma formação antropológica. O curioso do período holandês é que, quando os franceses chegaram ao Rio e ao Maranhão, ocuparam uma região que não tinha nenhuma presença portuguesa: a presença era puramente indígena. Mas com os holandeses foi diferente. Eles chegaram a uma região que já estava praticamente há cem anos ocupada, próspera e colonizada pelos portugueses. Então, há toda uma perspectiva antropológica que permite estudar os contactos, as aversões e as compatibilidades e incompatibilidades entre as duas culturas. Eu tentei fazer um sumário disso no capítulo de uma plaquette que saiu em São Paulo. É um negócio que eu poderia ampliar, daria até um livro sobre isso, mas eu já mexi muito no período. Holandeses e portugueses eram gênios incompatíveis e inconciliáveis? Até na maneira de andar a cavalo. Os portugueses andavam a ginetas, com as duas pernas, como as mulheres andavam até há setenta, oitenta anos, e os holandeses cavalgavam escanchados. Acontece que se você pensar bem, cavalgar a ginetas é um negócio reminiscente de uma sociedade aristocrática, enquanto que o andar escanchado já é prática de uma sociedade democrática. Nas menores coisas você vê incompatibilidades entre eles. Não é um tema fascinante a explorar? É. A documentação toda você teria de explorar mais nos livros que os portugueses escreveram sobre os holandeses e que os holandeses escreveram sobre o Brasil. Mas a documentação oficial, que é o grosso, não dá muito insight sobre isso, porque é uma documentação do tipo administrativo ou econômico. Há um ou outro relatório que mostra um certo insight 16 Continente Multicultural
nesse aspecto de incompatibilidade cultural. Nassau entendeu isso perfeitamente. Em um ofício, três anos antes da Restauração, ele prevê exatamente que vai haver uma revolução lá contra os holandeses, e inclusive invoca motivos culturais. O curioso é que Pernambuco só começou a dar valor aos holandeses depois que eles foram embora. Quando os holandeses estavam lá, ninguém queria saber deles: era uma quarentena estrita, de cada um para o seu lado, nada de mistura. Mesmo aqueles casamentos de que Gilberto Freyre falou tanto não foram numerosos. A parte iconográfica dessa documentação holandesa, essas pinturas e mapas, é importante para desvendar essas relações, não? Isso daria para um estudo desse tipo, mas é necessária uma pessoa que aprecie e conheça a fundo a História da Arte para interpretar bem todas aquelas alusões que a Arte do século 17 fazia. Nessa base, seria um material importante. Mas o fato essencial é este: houve uma incompatibilidade radical entre os holandeses e os do Brasil. Eles se detestavam, em tudo. Os holandeses tinham fama de alcoólatras, não só em
Detalhe da gravura Alegoria Satírica da Guerra, anônimo, 1624. As tropas espanholas e neerlandesas se enfrentam em Breda. A figura embaixo do cavalo montado pelo general espanhol representa o rei da Espanha.
IMAGENS: REPRODUÇÃO
Nas menores coisas havia incompatibilidade entre holandeses e portugueses. Até na maneira de andar a cavalo. Os primeiros cavalgavam escanchados. Os segundos iam a ginetas, com as pernas de lado
Pernambuco, mas em toda a Europa. Diderot chegou a dizer, com muita graça, que o holandês era uma “mecha em autocombustão”. Portanto, os preconceitos que Pernambuco tinha contra os holandeses não eram necessariamente originais: eles existiam em todos os países católicos, mas foram exacerbados aqui por causa da ocupação. Outra noção comum era a de que os holandeses eram mais avarentos de que qualquer outro povo. Aí temos exatamente a reação de uma sociedade pré-capitalista a uma sociedade que já está se transformando em capitalista. Há uma porção
de coisas interessantes a explorar. Eu ia fazer algo quando cheguei da Europa, mas, depois, eu me dei conta de que havia escrito muito sobre os holandeses. Cheguei até a escrever mais um livro – O Negócio do Brasil – porque havia uma bela documentação, que não tinha sido explorada. O meu desinteresse em voltar ao tema, mesmo havendo esses enfoques interessantes, é porque eu não gosto de escrever de acordo com a moda predominante. E História Antropológica está muito na moda.
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“Os mais vis bordéis do mundo” No Brasil os holandeses continuaram a viver com os mesmos hábitos da Holanda. De lá vinha tudo, até o necessário e o indispensável à subsistência. Até para a satisfação do apetite sexual vieram prostitutas Leonardo Dantas Silva
Frans Post: anjo em detalhe de Cena de Sacrifício de Manoah com Paisagem Brasileira, óleo sobre tela. 1648 Abaixo. Frans Post: detalhe de Garasu, gravura em cobre. 1647
Ao contrário dos portugueses, que encontraram uma cultura ameríndia e dela tiraram proveito na adaptação de sua vida nos trópicos, os holandeses, em sua maioria oriundos das cidades, veieram a sofrer de uma total falta de meios de subsistência, o que tornou impossível a preservação da vida na colônia. Primeiramente, entregaram aos pernambucanos os engenhos de açúcar, centros de produção localizados na área rural, perdendo assim o controle sobre o principal produto da pauta de exportação. Nesse ponto a Companhia falhou redondamente, ao reduzir o seu papel a simples intermediária do comércio do açúcar e detentora do monopólio do tráfico de escravos da costa africana, acrescido da cobrança de impostos e tributos sobre a propriedade e a produção de bens. Observa José Antônio Gonsalves de Mello que “a exploração pura e simples das terras e da gente, a venalidade
dos seus prepostos e a inépcia dos seus dirigentes levaram-na à ruína”. No Brasil os holandeses continuaram a viver com os mesmos hábitos da Holanda. De lá vinha tudo, até o necessário e o indispensável à subsistência: a carne de boi e de carneiro salgada, toucinho, presunto, língua, salmão, bacalhau, peixe seco, biscoitos, arenque, farinha de trigo, vinhos da Espanha, aguardente de uva, vinhos franceses do Reno, cerveja (“birra”), queijos diversos, manteiga, azeite, passas de Corinto, azeitonas, alcaparras, amêndoas e, sobretudo, farinha de trigo. Até a alimentação do corpo de tropas era dependente dos produtos importados. Para os soldados era solicitado que viesse da Holanda produtos como aveia, feijão, ervilhas, carne salgada, bacalhau, peixe seco, cerveja, vinho da Espanha, “vinho forte francês”, arroz, favas turcas (milho), cevada, passas e farinha de trigo. Tal dieta, na qual predominam o álcool, as conservas e o sal, veio contribuir para a derrota das tropas da Companhia nas duas batalhas dos montes Guararapes.
IMAGENS: REPRODUÇÃO
Nada de frutas, verduras, batatas, legumes, raízes, caules e produtos à base da mandioca, como a farinha-de-pau, e outras culturas da terra, utilizadas à larga na alimentação dos portugueses, ameríndios e negros escravos. Até para a satisfação do apetite sexual dos flamengos, não muito dados a exotismos, vieram da Holanda um considerável número de prostitutas, como as que habitavam os sobrados da rua do Vinho, paralela à rua dos Judeus, onde se localizavam “os mais vis bordéis do mundo”. Também da Holanda para cá foram trazidos gatos (para combater a incontrolável população de ratos), gansos, patos e porcos, além de cães ingleses empregados na captura de índios, negros fugidos e insurretos pernambucanos.
Para indústria da construção de casas foram importados vigas de madeira, tábuas, azulejos de Delft, tijolos da Frísia e até casas pré-moldadas. Também do exterior provinham os tecidos do vestuário dos holandeses – linhos, brocados, veludos, damascos, sedas etc., que chegavam nos navios juntamente com sapatos ingleses, selas de montaria, marfim, e o ouro da Guiné, pau-de-rede de Angola, especiarias da Índia, madeiras do Báltico, couros da Rússia, chapéus, plumas e tudo o que se podia comprar com os florins resultantes da venda do açúcar dos engenhos pernambucanos.
Placa contemporânea (1992) indicando a rua dos Judeus No alto: Zacharias Wagener. O Mercado de Escravos. Extraído do Thierbuch, século 17. Kupfertich Kabinett, Dresden
Excerto do texto “Diferenças Sociais do Brasil Holandês”, base da palestra do historiador no simpósio internacional Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002
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Eckhout etnógrafo A missão holandesa de Nassau foi uma expressão tardia do Renascimento nos Países Baixos. Coube a ela registrar a excentricidade do Novo Mundo com uma maior riqueza de detalhes Marcos Galindo
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aurício de Nassau era um exemplo clássico do humanista de espírito renascentista, nascido no seio de uma das mais nobres casas reais daquela parte da Europa, que, associada aos burgueses protestantes, havia, no século 17, livrado a Holanda do jugo espanhol para transformá-la numa potência marítima. Ao contrário da Companhia das Índias, o conde Maurício nutria interesses de mecenato. Suas atividades políticas foram sumamente ajudadas pelo seu refinamento humanista, condição esta que lhe valeu a presença e reverência no círculo da mais alta nobreza de seu tempo. Quando Nassau trouxe para o Brasil em sua companhia homens como Frans Post, Albert Eckhout, Georg Marcgrave, Zacharias Wagener, William Piso, entre outros, tinha em mente acumular um capital de informações privilegiadas de povos e países exóticos que tinham grande valor nas cortes européias. A tarefa de registrar em imagens o incógnito e misterioso universo do Novo Mundo foi levado a cabo por um séquito de artistas recrutados entre um exército de pintores que se comprimiam pelas ruas de Amsterdã, Halen e Delft, entre outros grandes centros inflacionados de talentos. É neste contexto que se insere o artista do Século do Ouro Holandês Albert Eckhout, observador, pesquisador e coletor de exoticidades, guiado pelo gênio do conde Maurício. Apesar do valor e da envergadura de sua obra para as artes e para história do domínio holandês no Brasil, é importante salientar que, tal qual se deu com Frans Post, Eckhout foi até o
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século 19 um ilustre desconhecido para os seus compatriotas. Como tantos outros pintores, Eckhout foi eclipsado na Europa por grandes mestres de seu tempo, como Rembrandt, que com seu brilho ofuscava a faísca dos não tão premiados pela exponência. Para a tarefa planejada por Maurício, contudo, o gênio de Eckhout bastava. Faltavam-lhe certamente a leveza, o controle absoluto da luz e da sombra, a intimidade das cores, atributos dos grandes mestres. Possuía, todavia, o domínio rigoroso da anatomia da paisagística clássica e da natureza-morta. Foram estes os instrumentos que Eckhout utilizou para registrar com rigor metodológico uma magnífica narrativa etnográfica, que se completa com os registros escritos de Marcgrave, Elias Herckmans, Roeloff Baro e Jacob Rabib sobre os povos nativos do Brasil. Eckhout não foi o primeiro europeu a registrar graficamente os povos nativos da América. Nas relações de viajantes como as coleções Grandes Viagens coligidas por Theodore de Bry ou as Viagens Célebres às Índias Ocidentais, editada por Pieter van der Aa, podese encontrar rico acervo imagético, retratando esses povos. Todavia, Eckhout foi sem dúvida o primeiro artista que privou presencialmente com esses povos, daí o valor de seu registro e a riqueza do detalhe presente em sua obra. Não consta que Eckhout tenha visitado o interior do país como certamente o fez Frans Post, a julgar pela pintura de 1649, na qual retrata a cachoeira de Paulo Afonso, cuja distancia estava a 100 léguas sertão adentro dos limites dominiais dos holan-
Quando Nassau trouxe para o Brasil homens como Post, Eckhout, Marcgrave e Piso, tinha em mente acumular informações de povos e países exóticos que eram muito valorizados nas cortes européias
deses. O pano de fundo que surge nos quadros parece confirmar essa hipótese: é sempre a zona da mata, a floresta tropical, engenhos e coqueirais. O mesmo denuncia-lhe as naturezas-mortas usualmente compostas de exemplares da flora da faixa úmida no litoral. A pintura é linear, equilibrada e estudada milimetricamente como uma natureza-morta, para a qual o observador pareceu estudar a melhor disposição possível de cada objeto para compor o quadro no qual o homem é apenas uma peça da composição. A tessitura da narrativa é dissecante e de uma rigidez linear, que por vezes sacrifica o movimento em benefício do efeito plástico, tal qual é o caso da dança dos Tapuias, onde os índios parecem flagrados em dinâmica, mas imobilizados como que sustentados no ar por fios invisíveis. A fórmula se repete através de sua obra, no primeiro plano o homem: seus costumes de vestimenta, adornos da pele, apetrechos pubianos, adornos labiais, canibalismo, sensualidade e ferocidade da fisionomia nativa. No segundo plano descritivo está o objeto da cultura material dos povos retratados. A cultura material aparece dissecada ao detalhamento máximo como num relato contemporâneo de anima positivista. Eckhout é frio e pragmático, a emoção do encontro do retratista com o retratado não parece encantar o observador. O Brasil conquistado pelos holandeses, apesar do esforço de Nassau em transformar o Recife na pérola do Ocidente, Acima: continuava sendo uma tediosa praça de Eckhout: Índia Tapuia, óleo guerra sitiada, oprimindo os espíritos sausobre tela, 1641 dosos da vaderland. Talvez essa circuns267 x 160cm tância tenha tolhido o gênio criativo de Ao lado: Eckhout e limitado sua obra brasileira ao Eckhout: Índio Tapuia, óleo que interessava a seu mecenas. sobre tela, 1641 Marcos Galindo é historiador
266 x 159cm
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Recriação da realidade Os esboços do pintor holandês isolam o objeto e tentam recompor as camadas constitutivas da representação em questão. A maneira como Eckhout define os elementos pictóricos é relevante para sua comunicação visual efetiva Georgia Quintas
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Ao lado: Eckhout. Esboço de Mulher Tapuia Sentada. Crayon e carvão, 33,2 x 21,6cm
princípio, o legado pictórico de Albert Eckhout desencadeia duas vigorosas proposições: em primeiro lugar, a imagem incidial é proposta pela observação participante do artista no meio em que se encontrava; em segundo lugar, ela volta-se para a idealização produzida pelo ato de criação, no qual se obtém a intencionalidade do olhar, a construção de uma imagem-conceito que se configura a partir dos nativos brasileiros. Tomando como parâmetro essas duas interpretações acerca do estilo eckhoutiano, consideremos que a dualidade é um fato norteador em sua produção. Pois, ao analisar o segmento dos esboços na obra de Eckhout, percebemos traços edificantes do conjunto de seu acervo. Paralelamente às pinturas em telas (de dimensões maiores), os esboços constituem-se em fragmentos visuais, resquícios da memória, no exercício de “resolver” formalmente o “outro”. No entanto, ao passo que denotam a natureza testemunhal da cena, revelam que o personagem também é transformado e condicionado através de símbolos. Quando, sobretudo, nos reportamos à disposição de símbolos, vale frisar que eles são velados, discretos. Eles surgem como epílogos fugidios da memória e escapam da rápida percepção. Afinal, tais símbolos formam a imagem nas entrelinhas, sendo muito mais reflexivos do que incisivos. De tal maneira que os esboços dos retratos de indígenas tecem, em camadas, as sensações humanas. Logo, a descrição etnográfica compartilha da leitura autoral – esta, responsável pela intertextualidade entre objeto apreciado e objeto criado pictoricamente. Os esboços sintetizam as proposições imagéticas anteriores e caracterizam-se pela ruptura de estilo. A analogia desta análise remete ao conteúdo da forma
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existente nas imagens criadas pelos pintores europeus, ora viajantes, ora inspirados por relatos de viagens. A fruição plástica que encontramos em ambos é diversa e distinta. O ícone é formado através de uma leitura visual calcada em metáforas figurativas. Neste sentido estilístico, ocorre o estereótipo das diferenças culturais, especificamente as que exaltam eurocentricamente o hábito antropofágico.
Em contrapartida, os esboços de Albert Eckhout isolam o objeto e tentam recompor as camadas constitutivas da representação em questão. A maneira como Eckhout define os elementos (signos) pictóricos é um fator de relevância para sua comunicação visual efetiva. Ao delinear a forma com o propósito de apreender os contornos “reais” da figura, o realismo suplanta a disposição alegorizante sobre o “outro”. Os esboços, nesse sentido, ilustram a tendência do pintor em descrever e revelar o objeto de apreciação. Seu processo pictórico o leva ao encontro do conteúdo etnográfico. Pois, concomitantemente, na busca pela expressão precisa do personagem, o sistema de signos constrói-se e edifica-se por meio do realismo figurativo. No tratamento cunhado aos esboços por Eckhout identifica-se mais diretamente a pureza dos corpos vinculada ao Renascimento. Entretanto, as referências estéticas discutidas aqui promovem uma visão estilística que, no entanto, desenvolve outras matrizes fundantes da criação eckhoutiana. É exatamente através da análise dos esboços que se sobressai, por conseguinte, o modo como se estrutura a densidade da figuração dos retratos etnográficos. É inevitável fazermos uma ligação interdisciplinar com o campo da estética, pois a etnografia praticada através de imagens desenvolve um diálogo pertinente quanto à questão da prática de construir essa imagem. A priori, o estilo apreciado nos desenhos (esboços) de Eckhout demonstra a consciência sobre o modelo que posa à sua frente. Consciência esta que promove a realização da contemplação diante dos de-
talhes étnicos do “outro”, bem como o testemunho documental de algo, embora volátil de se traduzir em imagens e de cunho abstrato, como captar a humanidade do referente sobre o qual o pintor apropria-se. De tal modo, corresponde a um dos aspectos mais marcantes do trabalho de Eckhout: a expressão facial. As imagens eckhoutianas ratificam que forma e conteúdo são homólogos. A misoginia e a posição androcêntrica recorrentes no processo europeu de colonização não encontram nessas imagens a mesma vitrine que fora utilizada para a manutenção de interesses e a aventada repressão ao maior obstáculo de exploração: os nativos brasileiros, donos da terra invadida. De modo que, desprovidos de criações fantásticas, os retratos etnográficos tornaram-se referências na busca pela identidade do “outro”, pela precisão de estilo que indica as mais sutis diferenças culturais e étnicas. Sobre este último aspecto, Albert Eckhout desmistifica os falsos mitos (do selvagem e nocivo) e desvela os traços singulares dos Tapuias com naturalidade, sem maniqueísmos e alegorizações. Ao considerar que o estilo de quem recompõe visualmente um contexto cultural é responsável pela construção simbólica e seus respectivos valores com relação à imagem de quem foi retratado, faz-se necessário discorrer sobre esse processo nos retratos etnográficos produzidos por Albert Eckhout e suas nuances na construção sobre o “outro” antropológico. Em Esboço de Mulher Tapuia Sentada (s.d.), Esboço Tapuya (s.d.) e Esboço de Homem Tapuya, Cabeça e Ombros (s.d.) estabelece-se uma não-ingerência conceitual predominante, direta ou arbitrária por parte de Eckhout na elaboração desses retratos. As visões dos indígenas aqui relacionadas perfazem significados que condizem com sensações de tranqüilidade, melancolia, espírito desbravador, entre outras possíveis interpretações. Isto é, são homens que detêm sentimentos humanos universais, ao contrário do que prega o enfoque imagético cunhado em categorias como seres exóticos e procedentes de uma sociedade subjugada como primária. Esta aludida iconografia dos viajantes encontra-se inserida no âmbito comparativo do evolucionismo das raças (e, por conseguinte, das sociedades), pensamento europeu balizador e constituinte dos séculos 16 e 17.
Eckhout Esboço de ÍndioTapuia. Crayon e carvão, 41 x 24,4cm
Georgia Quintas é antropóloga e pós-graduada em História da Arte. Realizou dissertação de Mestrado em Antropologia, intitulada A Visão da Alteridade em Albert Eckhout: Fragmentos Visuais do Brasil Holandês, da qual foi selecionado, condensado e editado este trecho.
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Eckhout: Rode Ibis (Guará) Óleo sobre papel, 46 X 28 cm.
Interpretações da natureza Há preciosos desenhos de Albert Eckhout que contribuíram para modificar a História Natural Mariana Lacerda
Eckout: Granartappel (Romã). Óleo sobre papel, 49 x 32cm.
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ue sinais nos trazem os trabalhos de Albert Eckhout e como eles nos ajudam a entender um interessante momento da História Natural? Tomemos como exemplo a sua obra mais extensa, o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Dividida em quatro fólios de 596 x 354mm, o Theatrum apresenta uma interessante classificação dos seres vivos. O primeiro livro chama-se Icones Aquatilium e nos traz peixes, cavalos-marinhos, estrelas-domar e outros animais da água. No Icones Volatium estão exemplares de aves, e no Icones Animalium, os quadrúpedes, insetos e imagens de índios e negros. O quarto livro da série é o Icones Vegetabilium, com o ananás, o rícino, o urucum e mais uma sorte de folhas, flores e frutos. Mentzel dividiu o Theatrum tendo como espelho a obra de Marcgrave e Piso, Historia Naturalis Brasiliae, publicada em 1648. Pois, como escreveu numa espécie de apresentação da série, “era preciso ter em conta os testemunhos (daqueles) que viram as coisas com os seus próprios olhos”. O próprio livro Historia Naturalis Brasiliae, por sua vez, apresenta xilogravuras de animais e plantas que devem, muitas delas, ter sido transpostas dos traços de Eckhout para a obra de Marcgrave e Piso, como fica bastante claro na figura do maracujá-açu, do Icones Vegetabilium, que se vê na descrição da fruta feita por Piso. É exatamente o testemunho de quem não somente olhou mas, sobretudo, observou que chama a atenção tanto nas pinturas de Eckhout. Aqui, não se trata mais, diante dos encantos que a natureza do Novo Mundo opunha, de descrevê-los considerando fábulas, monstruosidades, como teria sido num momento em que não existiam distinções entre o que se via defronte dos
olhos e o que já se tinha dito, contado ou escrito a respeito daquilo. Vamos encontrar os desenhos de fauna e flora de Albert Eckhout como o resultado de “um olhar que pensa, que observa e não mais fantasia”, avalia a historiadora da arte Elly de Vries, da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, em São Paulo. “Um olhar que, sobretudo, não julga”, conclui Elly. É interessante seguir as anotações feitas por Mentzel em algumas ilustrações de Eckhout apresentadas no Theatrum. Essas legendas remetem o leitor à iconografia que está no Libri Principis e às anotações de Marcgrave e Piso no Historia Naturalis Brasiliae, em que se acha a mesma espécie figurada. “No sentido de que, para saber mais sobre esse animal ou planta, consulte essas obras também”, esclarece Elly. No desenho do tamanduá, por exemplo, Mentzel nos leva à página 84 do Libri Principis e à página 225 do texto de Marcgrave. No primeiro, encontramos a pintura de um tamanduá, seguida das anotações feitas de próprio punho por Nassau – daí o livro chamar-se Manual, pois se trata de uma série de desenhos de bichos e plantas feitos por Eckhout para uso particular do príncipe. Onde, como no caso do tamanduá (Mimercophaga tridactyla), Nassau, ao utilizarse da idéia de semelhança, termina por tornar familiar aquilo que lhe parecia exótico: “(...) tão corpulento
quanto um spaniel holandês”, escreveu o príncipe. O mesmo fez Marcgrave, comparando o mesmo tamanduá-açu (“açu” quer dizer grande, em tupi-guarani) a um “animal do tamanho de um cão dos açougueiros”, num texto que, de tão descritivo, termina por “desenhar” a figura de um tamanduá. “Em ambos os casos, ainda que haja comparações, não existem mais os julgamentos. “Na longa descrição de Marcgrave, por exemplo, não há uma única menção ao animal como sendo feio ou esquisito”, avalia Elly. Por fim, vale acrescentar que tanto os desenhos de Eckhout como os escritos de Marcgrave e Piso terminaram por servir de referência para a discussão que se iniciava na Europa sobre sistemas de classificação das espécies de seres vivos, como o de C. Linnaeus. Não somente, boa parte dos estudos de Eckhout sobre os seres vivos dessas terras serviu, primeiramente, de referência para as suas próprias obras. Como é o caso, destaca Elly de Vries, do esboço da mandioca (Manihot suculenta) que está no Miscellanea Cleyeri e que também se vê na tela sobre o tubérculo. Ou, ainda, os cajus amarelos e encarnados do Icones Vegetabilium que também parecem estar na pintura Mameluca.
Mariana Lacerda é jornalista
Tamanduá-açu descrito por Georg Marcgrave na Historiae Rerum Naturalium Brasiliae
Castelo onde funciona o Instituto Ricardo Brennand
Armas e castelos
Espadas, punhais, facas, alabardas, clavas, cutelos, canivetes, lanças, estiletes, sabres, alfanjes: onde guardar tantas armas brancas senão no castelo?
Edson Nery Nery da da Fonseca Fonseca Edson
As armas brancas são assim chamadas porque o aço de que eram feitas ficava branqueado quando saía da forja e recebia polimento
Detalhe de espada cravejada com brilhantes que pertenceu ao Rei Faruk
“A
história das armas – lê-se numa enciclopédia – é o registro dos esforços do homem para aumentar o comprimento e a potência de seu próprio braço”. Dizia Marshall McLuhan que os meios de comunicação são extensões de nossos sentidos. As armas são, analogamente, extensões de nossos braços. Não as armas de fogo, porque essas arremessam projéteis impelidos pela explosão da pólvora, enquanto as armas brancas são impelidas unicamente pela força do braço. Donde a nobreza dessas armas, muito de acordo com a personalidade de quem as coleciona. Por que são assim chamadas tanto em português como em francês (armes blanches), espanhol e italiano (armas blancas)? Porque o aço de que eram feitas ficava branqueado quando saía da forja e recebia polimento. Em inglês se diz cold steel, e em alemão, blanke Waffe. Arma branca. Aço frio. Lembro a valsa de Octavio Mendes, José Marcílio e Deo, gravada por Orlando Silva, em 1940. Chama-se Súplica e assim começa: Aço frio de um punhal Foi teu adeus pra mim. Aqui, entretanto, o aço frio do punhal simboliza a dor que tanto pode ser da separação e do abandono como da morte de um ente querido. Em sentido figurado, consignado pelos dicionários, punhal é “tudo que ofende profundamente”: suas palavras eram como punhais (diz-se dos oradores vulcânicos). Numa das epístolas de São Paulo, a palavra de Deus é chamada “a espada do Espírito” (Efésios 6, 17). Espadas, punhais, facas, alabardas, clavas, cutelos, canivetes, lanças, estiletes, sabres, alfanjes – onde guardar tantas armas brancas devidamente classificadas e catalogadas? A idéia do castelo surgiu naturalmente, porque ainda não havia armas de fogo quando aparecerem, na França do século 10, as primeiras construções desse tipo. As armas brancas estão no castelo, portanto, como – a imagem é de Manuel Bandeira no poema “Cântico dos Cânticos”, de seu livro Opus 10 – “a espada em sua bainha”.
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Mas é preciso não confundir castelo com fortaleza. Como salienta o Dicionário da Idade Média, organizado pelo professor da Universidade de Londres Henry R. Loyon, “é essencial sublinhar o papel residencial do castelo”, distinguindo-o da fortaleza, esta, sim, exclusivamente castrense. Símbolo de proteção e transcendência, o castelo foi a imagem utilizada por Santa Teresa de Ávila para exprimir a união da alma com Deus. Castelo Interior é o subtítulo de seu livro Las Moradas, no qual a grande mística espanhola fala da ascensão da alma a Deus, através das sete moradas que são os graus da oração. Os poetas simbolistas faziam “castelos no ar”, expressão que significa “idealizar coisas irrealizáveis”. O grande simbolista português Antonio Nobre (1867-1900) escreveu o seguinte poema: Castelo do Sonho O castelo real que eu vejo erguido, ao longe, Parece a catedral ascética dum monge Que Zurbarán pintou... Neste castelo, flor! castelo em que tu moras Aonde passas rindo uma existência calma Desde manhã à noite andas a ler nas Horas A monja da minha alma! Quando o inunda o luar! Como os torreões são altos Como o castelo é grande! Ah, minha infância etérea! ah, tempos meus risonhos! Era maior ainda e tinha mais luar O castelo, Senhor! que eu no passado em sonhos Arquitetei no ar...
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E num soneto escrito aos vinte anos, Antonio Nobre se refere a uma fantasia de sua mocidade arruinada pela tuberculose e pelo pessimismo finissecular: Na praia lá da Boa Nova, um dia, Edifiquei (foi esse o grande mal) Alto Castelo, o que é a fantasia, Todo de lápis-lazúli e coral!
Naquelas redondezas não havia Quem se gabasse dum domínio igual: Oh Castelo tão alto! parecia O território dum senhor feudal! Um dia (não sei quando, nem sei donde) Um vento seco do Deserto e spleen Deitou por terra, ao pó que tudo esconde, O meu condado, o meu condado, sim! Porque eu já fui um poderoso Conde, Naquela idade em que se é conde assim... Não é preciso ser poeta para fazer castelos no ar. Mas, fazer um castelo de verdade exige nobreza e coragem. São essas virtudes que desejo realçar no engenheiro Ricardo Coimbra de Almeida Brennand no momento em que se instala o Instituto Ricardo Brennand, entidade mantenedora do conjunto cultural que reúne tanto o castelo das armas como a pinacoteca e uma biblioteca de pesquisa (research library). Nesta o pesquisador encontrará livros e opúsculos de grande interesse para o estudo do período holandês, do memorialismo brasileiro e das obras de autores como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa e outros. Quem não conhece o citado engenheiro e empresário pode pensar que o nome do instituto é uma autopromoção. Mas, embora tenha nascido em berço de ouro, Ricardo Coimbra de Almeida Brennand é o oposto do que os franceses chamam de parvenu: não quer se exibir, não gosta de dar entrevistas, parecendo ter adotado como lema o conselho evangélico de que a mão esquerda não deve saber o que faz a mão direita (Mateus 6, 3). O nome do instituto é uma homenagem à memória de seu tio Ricardo Lacerda de Almeida Brennand, um dos mais nobres e dinâmicos empresários brasileiros. Esse primeiro Ricardo e seu irmão Antonio fizeram surgir, na histórica Várzea do Capibaribe, um complexo industrial alongado em cultural pelo genial artista plástico Francisco Brennand e, agora, pelas coleções museológicas e bibliográficas de seu primo Ricardo Brennand. Edson Nery da Fonseca é escritor e professor emérito da Universidade de Brasília
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As coleções são equivalentes eróticos Colecionador autêntico, para Benjamin, seria aquele em que a posse seja a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; ele é que está vivo dentro delas Mário Hélio
FOTO: HEITOR CUNHA / DP
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or que alguém coleciona? A pergunta tem tantas respostas quanto os sinônimos para passatempo, hobby, vício, mania, obsessão. Num dos poemas de Drummond, uma personagem desiste de colecionar selos porque nunca alcançaria o Dr. Fulano de Tal. E decide-se, então, por algo mais raro: velhos cacos de louça colorida. Toda coleção é um “museu de sonho”, como definiu o poeta. Seria o gosto do devaneio ou do amealhar, reter, guardar e possuir o que moveria um colecionador? Walter Benjamin diz que, mesmo em hábitos aparentemente inócuos, como colecionar livros infantis, há algo que esconder e racionalizar, e poucos serão os que, em resposta à pergunta – por que você coleciona? –, darão uma resposta sincera. “Arrogância, solidão, amargura – muitas vezes esse é o lado noturno de muitos colecionadores cultos e bem-sucedidos. Toda paixão revela de vez em quando os seus traços demoníacos.” Se existe em toda paixão algo de demoníaco, haverá também de caos. Sendo a paixão do colecionador afinada com o território da lembrança, partiria do entendimento desta relação entre ordem e caos o primeiro passo para se entender o seu mundo particular, pois é de um mundo ordenado que Armadura ainda sem tratam quase todas as coleções. Ou, identificação no acervo do Instituto Ricardo Brennand como diz melhor Benjamin: “O que é a
posse senão uma desordem na qual o hábito se acomodou de tal modo que ela só pode aparecer como se fosse ordem?” Se a palavra-chave do colecionador é “posse” – ou seus equivalentes “propriedade”, “ter”, “reter” –, uma outra seria a tensão dialética entre ordem e desordem. Obviamente, se toda coleção está longe do terreno das coisas utilitárias, ela estará, conseqüentemente, afeita ao reino do faz-de-conta, do teatral, do cenográfico. Uma coleção participa do caráter de um altar sagrado e erótico ao mesmo tempo. Se é inegável que há um prazer no colecionador em comprar e exibir, há nesse exibicionista também algo de voyeur. Ele está nu, mas conserva o mistério. Ele secretamente se delicia em saber (olhar) que os outros olham, e assim estão a vê-lo. Tudo existe, se oculta e se mostra num círculo mágico. “Os colecionadores são os fisiognomonistas do mundo dos objetos.” Colecionador autêntico seria apenas aquele em que “a posse seja a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; ele é que está vivo dentro delas.” Num dos seus estudos mais característicos, Freud afirmou que “as idéias delirantes situam-se ao lado das idéias obsessivas como distúrbios puramente intelectuais.” Estas teriam origem numa perturbação afetiva e a sua força seria derivada de um conflito. Continente Multicultural 31
Altar da capela inglesa do Condado de York, datado de 1895, em estilo g贸tico
Escultura veneziana em madeira, do século 18, representando a figura de um negro trajando libré, 1,75m
Uma coleção pode surgir da consciência de que tudo não é só conjuntura de mercado. Ela sempre pode ser interpretada como o resultado de um esforço por fazer da necessidade virtude
Depois do banho, óleo sobre tela de Adolphe Bouguereau, 1894, França
Naturalmente, o colecionador é um obsessivo nato e assumido. Como Benjamin, Freud associa o hábito de colecionar ao reino do pueril, isto é, da infância (pelo menos esta foi a sua motivação de bibliófilo, igual à de Walter Benjamin). Mas é ao comentar a paranóia e as idéias obsessivas e seus mecanismos de substituição que Freud melhor define o caráter do colecionador: “Todo colecionador é substituto de um Dom Juan Tenório, como igualmente o são o montanhista, o desportista, todas essas pessoas. Essas coisas são equivalentes eróticos.” Não deixa de ser um truísmo a afirmação de Freud. O que haverá neste mundo criado por Eros que não seja um substituto, um equivalente erótico? Eros, é claro, entendido naquela acepção primordial de mito que lhe deram os gregos, seja ele filho do Caos e irmão da Noite e do Inferno, ou simplesmente nascido do ovo da Noite, em que o Céu e a Terra são as duas metades da casca. Para os gregos, Eros não era somente a força fundadora: era um demônio mediador. Pois os homens necessitam sempre de algo entre eles e os deuses. Na falta do melhor, que seja Eros, inimigo de todos os
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vazios, amante de todas as coisas vivas. Mas, ao contrário de Hesíodo e outros poetas, Platão não via Eros com solenidade cósmica, pois o fez filho de Póros (Expediente) e Penía (Pobreza). Eros, portanto, medeia carência e plenitude. Se toda coleção é um acúmulo, e se todo acúmulo é uma necessidade mais do que de amealhar, prevenir as carências e invernos ou documentar manias, cada uma delas fala de excesso e de falta. Se tem razão J. F. Yvars, ao definir o colecionismo como uma quimera moderna, mais ainda a tem quando diz que o que todas as formas de coleção têm em comum é a vinculação a uma necessidade projetiva. “Do que se trata é de projetar sobre os objetos e, através deles, a sociedade, uma determinada imagem ou representação de certos conceitos, tanto se falamos do Estado, de uma empresa cultural ou de uma corporação financeira. Essa imagem, certamente, é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. Pode ser expressão de uma vontade do todo consciente, que nos remeterá a uma deficiência real: a presença de nossa cultura visual nos lugares públicos. Pode ser também expressão de uma vontade coletiva, legítima, civilizatória, de que as instituições mais sensíveis têm de se fazer eco. E podem ser, obviamente, um reconhecimento implícito de uma má consciência capitalista que considera que tudo não é só conjuntura de mercado. Uma coleção sempre pode ser interpretada como o resultado de um esforço por fazer da necessidade virtude. E isso não é pouco.”
Por que criei o Instituto Ricardo Brennand Depoimento a Mário Hélio
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ou parte de uma família que primou pela discrição toda a vida. Meu pai me educou de forma muito rígida, mas eu tive a felicidade de sempre fazer aquilo de que gostava. Considero-me unicamente um construtor de fábricas, um obcecado. Não sou um criador, sou um copista nato. Quando, em 1949, me formei em Engenharia, já estava casado e com um grande interesse no futuro que eu ia construir na minha família. O que nós tínhamos na época? Uma fábrica de cerâmica incipiente. O futuro do Nordeste era o mais negro possível. Ninguém investia aqui. Antes disso, houve uma fase ainda mais catastrófica. O decreto-lei de Oswaldo Aranha, chamado “reajustamento econômico”, foi o que salvou todo o parque açucareiro de Pernambuco, em 1933. Vencido esse período negro, saímos do lugar-comum da região, que era o açúcar, e nos metemos no negócio da cerâmica. Porcelana também era um capricho do meu tio Ricardo. Mas porcelana, como diz o alemão, é cultura. No Nordeste, o nosso trabalhador é de uma habilidade extraordinária. No entanto, o que produzíamos, embora fosse muito bom, estava longe do padrão europeu. Além disso, não havia mercado local. Era um sacrifício infindável tentar continuar na porcelana. Sem vendas aqui na região, todo o êxito industrial iria por terra, porque o comércio não daria à fábrica os recursos de que ela precisava. Eu e um antigo vendedor nosso fomos viajar. O Sul minorava a nossa 36 Continente Multicultural
situação, mas não suportava todo o volume produzido. Fui também a São Paulo. Procurei um grande pernambucano, José Ermírio de Moraes. Aquele homem fez um pedido que correspondia à produção da fábrica durante seis meses. O doutor Moraes foi o nosso segundo “reajustamento econômico”. De lá pra cá, muitas coisas aconteceram. Tivemos um crescimento ininterrupto, um sucesso industrial extraordinário. Mas não paramos. Veio para Pernambuco a siderúrgica Aço Norte. Numa fase muito ruim deles, nos ofereceram a fábrica. Nós a compramos. O meu conceito de copista era tão sério que eu decidi ver o que faziam os do grupo Gerdau. Eles, já conhecendo essa minha fama, não me deixaram ver a fábrica. Mesmo sem vê-la, as informações que obtive nos levaram a corrigir vários erros do nosso processo. O velho João Santos nos dizia que o bom negócio era cimento. Tivemos dúvida, mas preparamos um projeto e o levamos à Sudene. Havia, entretanto, uma pressão muito grande dos grupos que dominavam, e a Sudene acabou apoiando a tese deles de que o mercado estava saturado. Nós desistimos. Alguns meses depois, foi aprovada lá uma nova fábrica de cimento: a Companhia de Cimento Atol, formada por um grupo de economistas e engenheiros. Depois, eles nos ofereceram a fábrica e nós a compramos. Viajei à França para adquirir equipamentos porque o velho Moraes me dizia que os dinamarqueses estavam tecnologicamente atrasados na área do cimento, e que os franceses estavam em melhor situação.
FOTO: HEITOR CUNHA / DP
O industrial e empresário Ricardo Brennand
Levamos um longo tempo para instalar a fábrica. Havia contra nós os fantasmas de dois gigantes: João Santos e Votorantim. Uma coincidência é que os grandes produtores de cimento acabaram por ser pernambucanos: João Santos, Ermírio de Moraes e Severino Pereira. Nós, que já tínhamos comprado a Paraíba Cimento Portland-Cimepar, disputamos, numa concorrência velada, a melhor e mais nova fábrica de Severino Pereira, a Companhia de Cimento Goiás. Acabamos por vencer dois gigantes: Votorantim e Camargo Corrêa. Foi o destino? Sei lá. Talvez eu tenha herdado um pouco o jeito do meu tio em agradar às pessoas.
Depois, aportou no Brasil outro gigante, o grupo português Cimpo, que veio até nós com todo o interesse e com um atrativo indiscutível. Nunca se fez um negócio de venda tão bom quanto aquele, em 1999. Fez quatro anos agora em agosto que eu perdi um filho, Antonio Luiz de Almeida Brennand, abatido pelo mesmo mal que matou meu pai há 25 anos: câncer no cérebro. São fatos naturais na vida do ser humano. Mas perder um filho com 46 anos, pai de quatro lindos filhos! Uma perda assim altera a família, altera tudo. Até então, a minha obsessão era comprar e crescer. Mas cansei. Não sei se a perda do meu filho foi uma lição maior. Vi que ainda tinha sete filhos (dois homens e cinco mulheres), e decidi dividir com eles praticamente tudo o que foi recebido com a venda das fábricas de cimento. Também com parte do dinheiro, resolvi me dedicar a fazer um instituto, a criar alguma coisa onde eu pudesse reunir o que venho colecionando ao longo da vida.
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Dom Quixote. Escultura em estanho e madeira. Século 19
oi com parte do dinheiro da venda de fábricas de cimento (Atol, Paraíba Portland-Cimepar e Goiás) que o industrial Ricardo Brennand criou o seu Instituto. Uma curiosidade: o sobrenome Brennand deveria ser pronunciado à inglesa, pois essa é a origem da família, que se instalou no Recife no começo do século 19, mas se popularizou à francesa, talvez pela influência que essa cultura exerceu na elite brasileira durante séculos. Atualmente, integram o conselho deliberativo do Instituto, além do seu fundador-presidente e do
vice, Joaquim Falcão, os escritores Edson Nery da Fonseca e Nélida Piñon, os colecionadores Pedro Corrêa do Lago e Beatriz Pimenta Camargo, e mais o diplomata Affonso Massot, a arquiteta Janette Costa, o advogado Sidnei González e o historiador de arte Paulo Herkenhoff. A coleção de pinturas do Instituto Ricardo Brennand contém centenas de obras, em grande maioria ainda não identificadas. Tudo está ainda em fase de catalogação, com vistas à sua inauguração oficial, em março do próximo ano. Além das obras de Frans Post, que representam a maior coleção privada do mundo, o IRB possui uma grande quantidade de armas brancas e armaduras, tapeçarias com motivos de Eckhout e objetos do Brasil Holandês. Entre os outros pintores presentes, merece destaque, no aspecto quantitativo, o que há lá de Francesco Guardi. Sendo o acervo do IRB de deliberada vocação histórica, a escolha dos artistas também obedeceu a esse critério. Há quadros originais de Carlos Julião, Jean Baptiste Debret, Émile Taunay, Johan Moritz Rugendas, Emil Bauch, Giovanni Battista Castagneto, Eliseu Visconti, entre outros. A coleção vem sendo aumentada constantemente. No mês passado, o colecionador e membro do conselho deliberativo do IRB Pedro Corrêa do Lago viajou à Rússia e a outros países da Europa a fim de pesquisar possíveis novas peças de Post e Eckhout. Recentemente, três tapeçarias eckhoutianas foram adquiridas pelo Instituto e estarão expostas junto com a mostra vinda da Dinamarca. O acervo bibliográfico também está sendo expandido. Depois de adquirir as obras raras de José Antonio Gonsalves de Mello e Edson Nery da Fonseca (que possuía inclusive manuscritos de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre), o Instituto comprou a biblioteca (livros e partituras) que foi do padre Jaime Diniz, um musicólogo já falecido que era especialista no período colonial.
FOTOS: HEITOR CUNHA / DP
A coleção do Instituto
Trabalho educativo e social O
aspecto mais importante de todo o trabalho que está sendo desenvolvido no Instituto Ricardo Brennand é o seu caráter educativo. Na verdade, basilar para os dois elos que o justificam: o cultural e o social. Conhecer e reconhecer a sua Paidéia é o que define a melhor ação de um povo, e isto é ainda mais sólido que palácios e castelos, pois cimenta a autêntica herança ancestral. Numa cidade como o Recife, com suas mais de 600 favelas, visitar um museu como esse é conhecer um autêntico oásis, especialmente para as populações de baixa renda, a quem se tirou tudo (“até o que não têm”). Sendo o Instituto Ricardo Brennand ainda uma work in progress, não é possível dizer que feição objetivamente terá cada uma de suas coleções. Desde já, porém, sabe-se que é a História que dá coerência ao museu. Especialmente a do século 17 e, de modo ainda mais específico, a dos anos da presença holandesa no Nordeste.
Desse modo, complemento indispensável à pinacoteca é a biblioteca que está sendo formada e projetada para reunir mais de cem mil volumes. Há dois meses, o Instituto Ricardo Brennand promoveu seminário de capacitação para professores da rede pública de Pernambuco, com vistas à exposição de Eckhout. Agora, está lançando o concurso “Pernambuco, terra e gente”, destinado a alunos e professores de todas as redes de ensino do estado. As inscrições poderão ser feitas inclusive pela Internet, no site www.ricardobrennand.org.br . O acesso à exposição de Eckhout está sendo facilitado através de um termo de cooperação técnica que o IRB está mantendo com diversas instituições. A Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU) participa através da sinalização gráfica e da engenharia de tráfego para facilitar o acesso ao local da mostra, e promoverá a divulgação do evento nos ônibus e terminais da Região Metropolitana. A Empresa também está disponibilizando transporte gratuito para visitação à mostra, mas somente para os alunos da rede pública de ensino.
O Rapto da Sabina. Francesco Zerri. Escultura em mármore. Século 19
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ECONOMIA
O jornalista Paul Blustein, do Washington Post, revela em livro demolidor equívocos cometidos pelo FMI, uma instituição que não acompanhou os rumos da nova economia Luciano Trigo
Cheque sem fundo
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m todo o planeta, e particularmente no Brasil, o Fundo Monetário Internacional é associado a uma imagem de poder e eficiência extremos – o que é natural em se tratando de uma instituição que dita os rumos da economia (e decide o destino) de vários países. Não é bem assim. Depois de entrevistar centenas de pessoas ligadas ao Fundo, Paul Blustein, jornalista do Washington Post, escreveu um relato demolidor sobre os bastidores, os equívocos e as vacilações do FMI na condução da crise global que quase levou à bancarrota uma série de governos, no final dos anos 90: The Chastening (O castigo), que no Brasil está sendo lançado pela editora Record com o título Vexame – Os bastidores do FMI na crise que abalou o sistema financeiro mundial. A capa do livro é sugestiva: um chapéu de burro, daqueles que os maus alunos usavam nas escolas de antigamente, feito com cédulas de diversas moedas. O período de vendaval financeiro abordado por Vexame foi aquele que se seguiu à moratória da Rússia, quando o governo brasileiro gastou cerca de 40 bilhões de dólares para defender uma cotação artificial do Real – o que resultou num crescimento zero, na elevação absurda dos juros e na diminuição da renda per capita, em 1999. Daí o interesse do livro para o leitor brasileiro. Blustein entrevistou Fernando Henrique Cardoso, Pedro Malan e Armínio Fraga, entre outros. Blustein evita análises políticas, mas intérpretes insuspeitos, como o ex-ministro Delfim Netto, já afirmaram que Vexame mostra que os Estados Unidos usaram o FMI para garantir o Real sobrevalorizado e a reeleição de FHC, quando o mais sensato seria desvalorizar a moeda brasileira. Vexame é escrito numa linguagem ágil e fluente, o que não é pouco. Além de árida para o leitor comum, a economia mundial é um terreno escorregadio, no qual as especulações sempre prevalecem sobre as verdades absolutas. É possível considerar que, apesar de todas as falhas, o socorro prestado pelo FMI a países como a Rússia, a Malásia, a Tailândia, a Coréia e o Brasil (Turquia e Argentina ficaram de fora) foi positivo, e o pacote que a ele veio atrelado, um mal necessário. Mas a leitura de Vexame deixa claro que o Fundo está longe da onisciência e da infalibilidade papal que apregoa. Especialmente porque, segundo Blustein, ele não soube acompanhar as rápidas transformações do mercado financeiro internacional, hoje caracterizado pela extrema volatilidade de capitais. Mas ele não é contra o FMI, nem condena a globalização. Apenas acha que o sistema como um todo precisa de ajustes. E a conta desses ajustes, provavelmente, recairá mais
Capas das edições americana e brasileira do livro de Paul Blustein
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uma vez, direta ou indiretamente, sobre as costas de países como o Brasil.
Seu livro revela os bastidores daquela crise global e mostra também em que medida o FMI foi incompetente ao tentar solucionar aquela situação desastrosa. Como o Fundo e as autoridades financeiras reagiram a Vexame? Fiquei agradavelmente surpreso com a reação da maioria dos economistas, políticos e executivos do FMI, do G-7 e dos países atingidos pelas crises. Eles me disseram que, apesar de eu ser bastante crítico em relação a muitas medidas que tomaram, meu livro apresenta os fatos de forma clara, ajudando a se entender a lógica do raciocínio que levou àquelas ações. Afinal de contas, eram situações muito difíceis de se enfrentar, e meu livro reconhece isso. Como também recebi manifestações muito elogiosas dos críticos mais ferrenhos do FMI, incluindo Jeffrey Sachs e Joseph Stiglitz, estou convencido de que fiz um bom trabalho. Mas uma coisa que o FMI detestou no livro foi a capa, que mostra um homem com um “chapéu de burro”, feito de várias moedas diferentes. Reconheço que fiz sérias objeções à capa, por pensar que ela banalizava as questões sérias que abordo no livro. Não afirmo em momento algum que a direção e os funcionários do Fundo são estúpidos. Ao contrário, são pessoas extre-
mamente inteligentes. Mas, num mundo em que somas gigantescas de capital podem atravessar fronteiras internacionais ao se apertar uma tecla de computador, mesmo as pessoas muito inteligentes que comandam o “corpo de bombeiros” do FMI não podem prever todas as crises, nem impedir que elas aconteçam, nem contê-las depois que elas irrompem. Não creio que o chapéu de burro na capa transmita essa idéia ao leitor, mas também admito que não consegui pensar em nada melhor, e meu editor insistiu naquela capa.
FOTO: REPRODUÇÃO / AFP
Em que grau devemos confiar no FMI? Esta é uma pergunta bastante oportuna, já que o FMI acaba de liberar um empréstimo de 30 bilhões de dólares para o Brasil. Seria reconfortante acreditar que essa instituição é onisciente, científica e dotada de poderes divinos, pois, se fosse assim, seria mais fácil resolver os problemas do Brasil. Mas estou seguro de que se travou um violento debate nos bastidores sobre qual seria o melhor rumo a tomar em relação ao Brasil, semelhante aos que ocorreram durante as crises do final da década de 90, que descrevo no livro. É claro que, ao anunciar o empréstimo, o FMI afirmou com segurança olímpica ser este o programa ideal para restaurar a confiança na economia brasileira. Não quero sugerir que o programa está condenado ao fracasso. Pode ser que ele funcione, e eu espero ardorosamente que isso aconteça. Mas, quando perguntei às pessoas envolvidas o que elas estavam realmente pensando no final dos anos 90, durante aquelas operações de socorro, elas admitiram que tinham enormes suspeitas e dúvidas – que, obviamente, mantiveram em segredo – em relação às suas chances de sucesso.
ras ao comércio e o aumento de investimentos internacionais diretos, com indústrias e equipamentos, pelas grandes corporações. Mas esta não é de forma alguma uma tendência inevitável. Ela pode ser muito poderosa, graças a fatores como a mídia de massa e a Internet, mas estou certo de que, em determinadas circunstâncias, as forças políticas de muitos países podem provocar uma reviravolta, bloqueando a sua integração com o resto do mundo. Acontecimentos recentes sugerem que a economia americana está se aproximando perigosamente de um colapso, o que seria um desastre muito pior que o Crash de 1929. Você concorda? Fico feliz em dizer que tirei as minhas economias do mercado financeiro americano por volta de 1997, porque eu achava que o mercado era uma bolha prestes a estourar. Talvez tenha me antecipado um pouco, mas como as cotações caíram aos valores daquela época, eu não me sinto um tolo por ter feito isso. Ainda não estou convencido de que as cotações da bolsa americana já chegaram ao fundo do poço. Contudo, não acho que a economia americana está próxima de um colapso semelhante ao que aconteceu em 1929. Acredito, sim, que as bolsas de mercadorias também podem se converter numa bolha e que, se e quando este mercado estourar, ele poderá causar danos sérios a muitas de nossas instituições financeiras, o que resultará numa pressão para um crescimento negativo por um período bastante longo. Entendo muito bem as razões de sua pergunta, mas, repito, não vejo motivo para uma comparação da situação atual com a da década de 30.
Embora Vexame revele falhas nas abordagens do FMI, e a inadequação de seu arsenal à mobilidade do capital, às mudanças de uma economia na qual um bilhão de dólares atravessa diariamente fronteiras, você defende a globalização... Ela é o destino inelutável da humanidade? Você tem razão. Embora eu seja bastante crítico em relação à liberalização do mercado financeiro global, acredito que muitos aspectos da globalização são benéficos, e incluo neste caso a diminuição das barrei-
Depois do colapso do comunismo, a impressão que fica é a de que nunca mais existirá uma alternativa ao pensamento neoliberal. A História realmente terminou? Uau, você quer saber se a História terminou? Um amigo meu, David Rothkopf, escreveu recentemente um ensaio muito inteligente para a edição dominical do Washington Post, dizendo que em algum lugar lá fora o próximo Karl Marx está trabalhando duro em algum modelo novo, diferente do comunismo, para desafiar o modelo capitalista. Compreendo muito bem o desejo de um modelo assim, mas, sinceramente, ainda não vi nada parecido. Escrever um livro envolvente sobre o Fundo Monetário Internacional e seu papel na economia
Paul Blustein não acredita que a atual crise seja tão grave quanto o crack da bolsa de Nova Iorque, em 29, que, a partir de Wall Street, refletiu-se na economia mundial
mundial não é uma tarefa fácil. Você se preocupou particularmente em atingir o leitor comum? Fico feliz que você considere o livro acessível, porque fiz um esforço enorme para atingir este leitor comum. Para ser honesto, em alguns momentos parecia quase impossível escrever sobre questões econômicas de uma forma facilmente compreensível para os não-especialistas, mas nesses momentos eu experimentava novas abordagens, até conseguir o que queria. A julgar pelas resenhas que o livro recebeu, acho que fui bem-sucedido. Todos os resenhistas classificaram o livro como fluente e acessível, o que é muito gratificante para mim.
FOTO: ICHIRO GUERRA / FOLHAIMAGEM
A equipe econômica do governo. De costas, à esquerda, o ministro da Fazenda Pedro Malan; de perfil, à direita, o presidente do Banco Central Armínio Fraga
Vexame revela as fraquezas inerentes ao sistema financeiro globalizado. Quais seriam estas fraquezas hoje, e qual o remédio para elas? Eu acabo de ler algumas reportagens impressionantes sobre como o empréstimo do FMI para o Brasil está fracassando miseravelmente em restaurar a confiança no Real, na competência do governo e no sistema financeiro em geral. Que melhor evidência eu poderia citar de uma fraqueza do sistema financeiro internacional? O FMI se comprometeu com o Brasil no maior programa da história do Fundo, com o objetivo de fazer as pessoas pararem de mandar o dinheiro para fora do país, e, cinco dias depois do empréstimo, os mercados brasileiros estão numa confusão maior do que nunca. Não quero sugerir que o Brasil está completamente isento de responsabilidade. A preocupação do mercado com a liderança de Lula e Ciro Gomes nas pesquisas é bastante compreensível. Mas nós já vimos este padrão se repetir muitas vezes nos últimos cinco anos. O FMI anuncia um enorme pacote para um país em crise, com algumas condições: o governo do país deve adotar determinadas políticas fiscais, monetárias e estruturais. E, dias ou semanas depois, os mercados voltam a mergulhar na confusão. Como descrevo no livro, isso aconteceu na Tailândia, na Indonésia, na Coréia do Sul, na Rússia e no Brasil. Estou me referindo aqui ao programa do FMI anunciado para o Brasil no final de 1998. Por que isso acontece? Na minha opinião, que espero ter documentado suficientemente no livro, é porque os mercados financeiros globalizados se tornaram tão complexos e difíceis de controlar, e tão sujeitos a pânicos, que mesmo uma instituição dotada de poderes como o FMI não pode mais mantê-los sob controle com seus antigos tipos de abordagem. Agora, em relação à segunda parte da sua pergunta, sobre o remédio necessário... Mais uma vez,
como eu documento no meu livro, existiram dois casos nos quais as operações de resgate do FMI funcionaram bastante bem. A segunda ajuda à Coréia, na véspera do Natal de 1997, e a segunda ajuda ao Brasil, na primavera de 1999, funcionaram otimamente na restauração da confiança nos dois países. As duas operações tiveram em comum um elemento que faltou aos outros resgates: elas incluíram medidas destinadas a envolver o setor privado. Isto é, usaram o poder dos governos do G-7 e de outros países ricos para fazer as grandes instituições financeiras parar de tirar seu dinheiro dos países em crise. Em vez de saltarem para fora, os banqueiros saltaram para dentro, ao menos em alguma medida. Eles ajudaram a parar o pânico, fazendo aqueles esforços de socorro ser bem-sucedidos. Não pretendo subestimar a importância das medidas que as autoridades coreanas e brasileiras também tomaram. Se os mercados tivessem pensado que as autoridades coreanas e brasileiras se recusariam a tomar medidas práticas, as operações teriam falhado. Felizmente, para o Brasil, o presidente Cardoso, ao lado de Pedro Malan e Armínio Fraga, adotou uma abordagem política sólida, brilhantemente implementada na
primavera de 1999. Porém, embora isto tenha sido importante, creio que foi essencial conseguir o compromisso dos bancos privados em manter as suas linhas de crédito para o Brasil. É este tipo de mecanismo que precisamos ter à mão, para implementar em outras crises, incluindo a atual. A diretora-gerente do FMI, Anne Krueger, propôs em novembro último dar ao Fundo poder para apoiar “pausas”, ou seja, suspensões temporárias de todos os pagamentos externos, além de restrições à movimentação de capital no exterior, para conter o pânico, de forma que se possa conceber um plano para reagendar ou reestruturar a dívida do país. Já fizemos este tipo de acordo com empresas privadas, é a chamada “lei da bancarrota”. Ela
“Um amigo meu escreveu um ensaio para a edição dominical do Washington Post, dizendo que em algum lugar o próximo Karl Marx está trabalhando num modelo novo para desafiar o capitalismo”
oferece ao endividado uma proteção jurídica temporária contra a ação dos credores. Nada comparável existe num nível internacional, o que seria importante. Não existe uma instituição que possa impedir os credores externos de cobrar suas dívidas em cortes internacionais em todo o mundo, quando um país “vai à falência”. A proposta de Krueger foi um passo ousado na direção da criação de um mecanismo institucional desse tipo. Mas o Tesouro Americano prefere claramente uma abordagem diferente, e mesmo se os países mais ricos apoiassem a idéia de Krueger, levaria um longo tempo colocá-la em prática. Afinal de contas, as leis que governam os direitos de crédito teriam que ser alteradas em todos os países. Enquanto isso, crises continuam a irromper, esmagando países e empobrecendo milhões de pessoas. Vexame revela os bastidores de algumas negociações dos últimos anos, mostrando como o FMI realmente funciona, muitas vezes, na base do improviso e da confusão. Quando e por que essa instituição se tornou tão poderosa e importante? Acho que, em alguns sentidos, o FMI está mais fraco do que costumava ser, porque os mercados se tornaram muito grandes e poderosos. E é por isso que as pessoas que trabalham naquela instituição estão tão atrapalhadas e improvisam tanto, como ocorreu na crise do final dos anos 90. Você aumentaria o poder do FMI? Isto não tornaria ainda mais frágil a situação dos governos dos países subdesenvolvidos? O sentimento no Brasil é o de que estamos cada vez mais fracos, e tudo o que podemos fazer é rezar para não virarmos uma Argentina. Parece um pesadelo, como se estivéssemos nas mãos de senhores invisíveis que controlam o mundo... Posso entender muito bem este sentimento de desamparo. Imagino como muitos brasileiros devem estar se sentindo frustrados e temerosos, achando que realmente só podem rezar para que o seu país maravilhoso não tenha o mesmo destino da Argentina. Acredito, contudo, que nesse contexto é importante reiterar o que afirmei acima, isto é, que os mercados estão reagindo às pesquisas eleitorais para a presidência. O povo brasileiro tem o direito de eleger quem quiser como seu presidente, este é um direito numa nação democrática e soberana. Mas os mercados estão mandando uma mensagem: eles não podem ter confiança num país que será guiado por políticos com crenças econômicas não ortodoxas. E este é um fator que os elei-
tores brasileiros devem considerar ao fazerem sua escolha em outubro. Eu suspeito que os mercados estão tendo uma reação exagerada às pesquisas, provocando um pânico excessivo em relação à perspectiva de uma vitória de Lula ou Ciro Gomes. Não sou um especialista em política brasileira, então não posso afirmar com certeza. Mas, se eu estou certo, e se o pânico dos mercados é irracional, então o caso brasileiro constitui uma evidência de que precisamos realmente fortalecer o FMI ainda mais, para apoiar as “pausas” que descrevi na resposta anterior. Explicando melhor: o FMI e os mercados podem parecer ser os “senhores invisíveis” que controlam o futuro do Brasil. Mas são os investidores, que chamo de “rebanho eletrônico”, que criam o problema para países como o Brasil, quando o pânico se instala. Então o FMI precisa de mais poder, para que possa impedir esse rebanho de infligir tantos danos desnecessários a um país. Justamente, a conclusão de Vexame parece ser: o FMI está despreparado para salvaguardar a economia global neste momento de fluxo eletrônico de capitais. Por que então o FMI parece acumular cada vez mais poder? De fato, o FMI, freqüentemente, tem-se mostrado incapaz de parar o pânico num mundo de intenso fluxo de capital global, pelos motivos que já mencionei. Aparentemente, o FMI está mais forte do que antigamente. Mas o que acontece é que ele enfrenta um problema maior: os mercados se tornaram mais complexos e demonstram grande capacidade de alastrar pânico, o que tornou as intervenções do Fundo mais necessárias e mais freqüentes. Por isso ele parece mais poderoso, mas, talvez, seja uma interpretação mais lúcida da situação pensar que o FMI perdeu parte de seu poder, em relação aos mercados. Se o FMI foi criado para ajudar os países a corrigir os rumos e os fundamentos de suas economias, mas não se adaptou aos novos desafios, a situação do Terceiro Mundo estaria realmente pior se o Fundo não existisse? É muito difícil responder a esta pergunta de uma forma conclusiva, porque não sabemos em que medida a situação teria sido pior se alguns dos países atingidos pela crise não pudessem ter sido socorridos pelo FMI. Estou convencido de que a Coréia e o Brasil saíram da crise do final dos anos 90 em melhor forma do que eles estariam se o FMI não existisse. Por
outro lado, é difícil imaginar uma situação pior do que a que atingiu a Indonésia mesmo após a ajuda do Fundo. Acho que em vez de perguntar se o FMI piora ainda mais as crises, devemos formular a questão da seguinte maneira: o FMI foi capaz de evitar que muitos países sofressem muito mais do que mereciam quando foram atingidos pela crise? Mesmo que cada um daqueles países apresentasse algumas fraquezas em seus fundamentos, as crises foram desproporcionais a estas fraquezas, na minha opinião. Aqueles países tiveram um desempenho melhor do que o que teriam na ausência do FMI, mas também sofreram mais do que deveriam. Você acha que os grandes investidores têm o dever de participar da solução dos gigantescos problemas econômicos que ajudaram a criar em tantos países? Certamente! Em todos os casos, esses investidores – o “rebanho eletrônico” – puseram dinheiro em mercados emergentes, esperando ter lucros fabulosos, e quando as coisas começaram a andar mal, fugiram, infligindo danos terríveis neste processo. Eu documento isto em detalhes em meu livro. Mas nunca o senso de “dever” levará esses investidores a ajudar a resolver o problema, porque esses investidores são entidades privadas, afinal de contas, cujo objetivo maior é ter lucro, para si ou para os seus chefes ou sócios. A única maneira de fazê-los participar da solução dos problemas que criam é se instituições oficiais obtiverem e usarem o poder de forçá-los a fazer isso. Que breve comparação você poderia fazer entre as campanhas de estabilização da Tailândia, da Coréia, da Rússia e do Brasil durante a crise de 1997/99? Por que elas falharam? Como você resolveria os problemas atuais do Brasil, especialmente em relação à sua dívida esmagadora? Durante a década de 90, em cada um desses países, o FMI – apoiado na maioria dos casos pelo Banco Mundial, pelo G-7 e outras instituições, fez enormes empréstimos, como este feito agora para o Brasil. E, apesar do brilho dos economistas do Fundo, apesar das quantias astronômicas de dinheiro que foram gastas, apesar das promessas solenes de reforma que foram feitas pelos governos dos países em crise, estes programas falharam repetidamente. As moedas de todos esses países se desvalorizaram; em alguns casos, entraram em colapso poucas semanas após o anúncio dos pacotes do FMI. Evidentemente, a História tem
funcionar – e certamente ele não está funcionando até aqui – pode-se presumir que o governo será forçado, como foi, em janeiro de 1999, a tentar uma abordagem mais corajosa para reduzir o que você chamou muito apropriadamente de “dívida esmagadora” do Brasil. Não estou seguro de que abordagem específica eu sugeriria. Ainda estou tentando entender a situação objetivamente, como um jornalista, para o meu jornal. Tudo o que posso dizer é que se trata de um problema muito complicado. Ainda bem que o meu emprego não me obriga a apresentar uma solução!
FOTO: JORGE ARAÚJO / FOLHAIMAGEM
A diretoragerente do FMI, Anne Krueger, propôs ao fundo suspensões temporárias de pagamentos externos, para conter o pânico lições importantes para a situação atual do Brasil. Estou me repetindo aqui, mas a segunda operação de resgate ao Brasil, na primavera de 1999, funcionou bastante bem, bem como a segunda operação de resgate à Coréia. E o que fez estas operações funcionarem? Acredito que um fator decisivo foi que elas envolveram iniciativas dos governos do G-7 e outros países ricos para fazer as instituições financeiras parar de saltar fora dos países em crise. No atual programa do FMI para o Brasil não existe este fator. No meu livro, eu conto que na primeira operação de resgate ao Brasil, em novembro de 1998 – aquela que não deu certo – o governo brasileiro estava muito resistente à idéia de abordar as instituições financeiras internacionais de uma forma coordenada ou coercitiva, para induzi-las a manter as suas linhas de crédito. O ministro Malan estava bastante preocupado, por motivos compreensíveis, com a situação do crédito do Brasil a longo prazo, nos mercados financeiros mundiais. No fim das contas, depois do colapso do Plano Real em janeiro de 1999, o governo brasileiro concordou em participar de um esforço coordenado para induzir os bancos a “rolar” seus empréstimos. Se o atual empréstimo do FMI para o Brasil não
Como você analisa as manifestações antiglobalização, uma das quais terminou com uma morte, na Itália, durante uma reunião do G-77? Você acha que esse tipo de ação pode mudar os rumos da economia global? Acredito que o 11 de setembro mudou enormemente a dinâmica política do movimento antiglobalização. Isto por dois motivos. Primeiro, os protestos violentos se tornaram muito menos aceitáveis para a maior parte da sociedade, especialmente nos Estados Unidos. Segundo, os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono foram promovidos por forças que são, em última análise, os maiores inimigos da globalização, o que deixou o movimento antiglobalização numa situação muito delicada. Pelo menos por enquanto, esses fatores limitaram severamente a capacidade do movimento de atrair atenção e apoio popular. A proximidade das eleições presidenciais no Brasil está deixando o mercado muito nervoso. Em que medida isto resulta de manipulações e “terrorismo” políticos? Qual será o cenário se Lula for eleito, na sua opinião? Receio que os mercados estão nos dando uma resposta bastante enfática, pela sua reação à liderança de Lula e Ciro Gomes nas pesquisas. Isso pode ser uma injustiça tremenda por parte dos mercados. Afinal de contas, os mercados estavam muito apreensivos em relação a Carlos Menem quando ele foi eleito presidente da Argentina, e ele acabou se tornando o “queridinho” do mercado. No caso do Brasil, de repente a grande questão passou a ser saber se os 30 bilhões de dólares do programa do FMI serão suficientes para fazer os mercados esperar a eleição antes de dar o seu veredicto. Luciano Trigo é jornalista
ARTES PLĂ STICAS 48 Continente Multicultural
A
Volpi em Pernambuco
FOTOS: REPRODUÇÃO
É a primeira vez que um significativo número de trabalhos do pintor Alfredo Volpi, incluindo desenhos, estudos e telas, vem a Pernambuco
partir do dia 16 deste mês, os pernambucanos vão ter oportunidade, pela primeira vez, de apreciar um significativo conjunto de obras de um dos maiores pintores brasileiros: Alfredo Volpi. A mostra acontece na Galeria de Arte Cecília Brennand e integra as comemorações dos dez anos do Aria Espaço de Dança e Arte, comandado pela marchande que empresta seu nome à galeria. Fazem parte da exposição desenhos em grafite e nanquim sobre papel, da década de 50, mais 12 telas da década de 70 e, ainda, 40 estudos abrangendo quatro décadas (dos anos 40 aos anos 70), em têmpera sobre tela e cartão. Alfredo Volpi é um caso único nas artes plásticas do Brasil. Começou como pintor de paredes e terminou como um de nossos melhores abstracionistas, sendo considerado por alguns críticos como o único pintor nacional a criar uma linguagem especificamente brasileira. Isso tudo sem recorrer a elaboradas teorias, uma vez que era homem simples, intuitivo e avesso a falar muito. A exposição de Volpi foi viabilizada graças a uma parceria com a Galeria Sylvio Nery, do pernambucano radicado em São Paulo Sylvio Nery da Fonseca, que, juntamente com Cecília e Aloísio Câmara, coordena o evento, tendo conseguido a cessão das obras de colecionadores volpistas. As comemorações dos dez anos do Aria tiveram início no primeiro semestre, com a exposição do Mestre Didi, e continuarão com as mostras de Luiz Paulo Baravelli, em outubro, Dantas Suassuna, em novembro, e dos artistas da Geração 80 Leda Catunda, Marco Giannotti e Rodrigo Andrade, em março de 2003.
Na página anterior, Estudo. Têmpera sobre madeira, 29,1 x 22,9cm. Início da década de 70 Ao lado, Estudo. Têmpera sobre cartão, 27,5 x 17cm. Início da década de 50
Exposição: Alfredo Volpi – Desenhos, estudos e telas Local: Galeria de Arte Cecília Brennand – Aria Espaço de Dança e Arte – Av. Canal de Setúbal, 766. Piedade. Jaboatão dos Guararapes-PE. Fone (81) 3462.9095/3341.2859. Vernissage: Dia 16 de setembro, às 20h Visitação: De segunda a sexta-feira, das 9h30 às 13h e das 14h às 19h. Sábado, das 10h às 13h e das 14h às 18h. Até 20 de outubro. Continente Multicultural 49
Visão íntima de um mestre permanente
O pintor Alfredo Volpi, aos 90 anos
P
oucas vezes espaços não institucionais, não museológicos, têm realizado uma exposição com tanta importância e qualidade. Galerias não costumam ter maiores preocupações históricas ou críticas, e se limitam a cortes sincrônicos, a um momento ou uma fase da obra do artista, muito mais fáceis de fazer (e muito menos ricos) do que uma pequena retrospectiva como esta. Aqui se apresentam a Pernambuco mais de trinta estudos do grande Volpi, realizados ao longo de quase quarenta anos de trabalho. Contêm eles uma revelação privilegiada e intimista. Por certo estão longe de esgotálo, até porque não representam sua produção principal, a tela final de cavalete. Mas esta já é razoavelmente conhecida, sempre muito reproduzida, discutida e badalada. Os estudos, não. Constituem a face oculta da moeda, o domínio onde Volpi exercia em primeira mão uma inventividade quase insuspeitada. Visto que em arte não existe instrumento que meça mecânica e quantitativamente a grandeza, como uma febre se mede no termômetro, certas simplificações do tipo “o mais isso ou aquilo” são meras frases de efeito. Ainda assim, em alguns casos, há tal firmeza, tal unanimidade no consenso, que é difícil não tomar a sentença ao pé da letra. É o que tem ocorrido com Volpi. Desde os anos 70 – quando, pela primeira vez ele foi declarado o “maior pintor brasileiro vivo” –, cercao uma admiração entusiasmada e permanente, que perpassa todos os níveis do circuito abalizado: a his50 Continente Multicultural
tória, a crítica, a imprensa, os colecionadores, os marchands, as universidades, os museus. Grupos e ideologias estéticas que dificilmente se entendem quanto a todo o resto coincidem em reconhecer e aplaudir a obra singular do velho mestre do Cambuci – o bairro humilde em que ele morou a vida inteira. Pois em Volpi se reuniram certas características raras no contexto da arte moderna brasileira. A começar pela originalidade, matéria escassa num país necessariamente caudatário. Não é só em política e economia que o primeiro mundo dá as cartas mas também em cultura, pelo menos na produção que pretende integrar-se no segmento erudito. Sem nenhum demérito para o talento de nossos artistas – um talento ebuliente e caudaloso, que me impressiona cada vez que o posso cotejar com o do resto das Américas –, a verdade é que a nossa originalidade foi sempre a possível. Os movimentos decisivos e as invenções fundamentais de linguagem surgiram na Europa, e até hoje a meta de 90% dos artistas terceiro-mundistas continua lá, agora na Documenta de Kassel. Não é uma vergonha nacional, é um dado da realidade sócial, econômica e histórica. Graças a especificidades de sua personalidade e trajetória, no entanto, Volpi escapou a isso e pôde inventar, aqui, uma linguagem própria. Nesse sentido, talvez seja único. Mesmo a melhor Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, por exemplo, beberam em fontes estrangeiras (respectivamente,
FOTO: CLÁUDIO COHN
Olívio Tavares de Araújo
FOTO: REPRODUÇÃO
Em Volpi se reuniram certas características raras no contexto da arte moderna brasileira. A começar pela originalidade, matéria escassa num país necessariamente caudatário
Fernand Léger e Picasso – a rigor, dois Picassos diferentes), estabelecendo um padrão que se repetiria ad infinitum dentro da arte moderna brasileira. Volpi, não. Basta observar que sua pintura da maturidade – digamos, de 1950 em diante – não se parece com a de mais ninguém no mundo. Quando muito, contém um clima de poesia que às vezes se assemelha ao de Paul Klee – mas sem influência formal. Acontece que Volpi não esteve envolvido com o modernismo e seus ideais de aggiornamento, nem teve acesso à mesma informação. Pela idade, poderia ter até participado da “Semana” de 1922, mas, pela classe social, não. A “Semana” foi um movimento patrício, de elite, gestado em palacetes da Avenida Paulista e apoiado por barões do café. Se Volpi entrou alguma vez num desses palacetes, foi com baldes de cal e tamancos, para “decorar” paredes – já que essa era sua profissão de imigrante italiano. Datam daí, aliás, sua relação profundamente artesanal com a pintura e o exercício da arte como ofício, um dever a ser cumprido sem arrebatamentos nem dramas. Volpi não acreditava em inspiração nem buscava, exatamente, “expressarse”. Fazia apenas o que sabia fazer, cumpria diuturnamente sua tarefa, e mesmo depois de rico e famoso continuou produzindo manualmente seus pigmentos, solventes e telas, serrando ele mesmo as ripinhas de madeira, montando os chassis, esticando o tecido e preparando a superfície.
Estudo. Têmpera sobre tela, 47,7 x 24,8cm. Meados da década de 70
Estudo. Têmpera sobre papel com cartão, 28,7 x 14,3cm. Início da década de 50
Mas os deuses da criação também fizeram sua parte. O que em outro menos dotado poderia ter sido um handicap – a falta de formação erudita e a indiferença pelas vanguardas européias – acabou sendo o catalisador de uma conquista. No dia-a-dia semi-operário e no recolhimento do ateliê (se assim podemos chamar seus sempre exíguos espaços de trabalho), Volpi repercorreu sozinho, degrau por degrau, sem modelos nem atalhos, todo o percurso que, no século 20, foi da pintura figurativa à abstrata, abandonando a representação mimética em benefício da arte absoluta. Por certo ele não usava esses termos, mas era inteligente e arguto (e de modo algum rude ou naïf, como poderiam sugerir seu despojamento pessoal e sua linguagem incorreta), e estabelecia perfeitamente a distinção. Por “assunto” designava, meio pejorativamente, os conteúdos “literários” da arte – a mimese em seu sentido mais primário; e, por “pintura”, os conteúdos puramente formais – isto é, absolutos. Para essa questão fundante da contemporaneidade, Volpi encontrou uma resposta própria, baseado apenas em sua intuição e sua necessidade interior. Criou uma síntese, uma espécie de simbiose entre pintura figurativa e abstrata, que, dessa maneira e nesse nível, não ocorre em nenhum outro artista brasileiro – e, internacionalmente, talvez só ocorra, de novo, em Klee, mas com resultados visualmente diferentes. Com exceção do interregno em que ele se ligou ao concretismo, o público tende a ler toda a obra de Volpi como figurativa, e, assim como Di Cavalcanti ficou conhecido como o “pintor das mulatas”, Volpi foi transformado no “pintor das bandeirinhas”. Mas, sob uma observação mais rigorosa, isso é inexato. Mais uma vez, ele próprio o sabia e o dizia à sua maneira, com alguma
Estudo. Têmpera sobre cartão, 22,5 x 75,5cm. Início da década de 60
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ironia: “Eu não pinto bandeirinha. Quem pinta bandeirinha é o Pennacchi”. Tratemos de explicar. Chegado ao Brasil nos anos 30, o imigrante Fúlvio Pennacchi – um de seus antigos companheiros no “Grupo Santa Helena” – se encantou com a nova terra e, à certa altura, passou a pintar pequenas paisagens delicadas, com montanhas, céus azulinos, personagens, casinhas, igrejinhas, e muitas vezes mastros de São João, festões, fieiras de bandeirinhas. Em Pennacchi, as bandeirinhas são de fato uma representação, um signo icônico de um determinado objeto que faz parte da realidade descrita: a paisagem. Em Volpi, não. Desde o começo dos anos 50, quando as introduziu em suas “fachadas”, ele já não fazia pintura descritiva, e se encaminhava a passos largos para a fase rigorosamente abstrata, geométrica, durante a qual se ligou ao concretismo. Sob vários aspectos, nada mais diferente que Volpi e o movimento concretista, superintelectualizado, proselitista e radical. Ligaram-se circunstancialmente porque chegavam, no mesmo momento, ao mesmo ponto. Como conseqüência da evolução interna de sua linguagem – e só dela –, Volpi estava na iminência da abstração. Por sua vez, os concretistas se entusiasmaram com o acerto puramente intuitivo de um pintor mais velho e respeitado, cuja trajetória con-
tribuía para legitimá-los. O que aqui nos interessa, desse transitório casamento de três ou quatro anos, é, primeiro, que ele definiu para sempre, em Volpi, uma concepção decididamente abstrata de arte, reafirmando o caráter absoluto desta; segundo, justamente, que foi um casamento transitório. A verdade é que o rigor do concretismo – e seus horizontes em certo sentido limitados – jamais poderiam dar plena vazão a uma poética tão fundada no sensível, e não na teoria ou no conceito, ao mesmo tempo requintadíssima e ligada a raízes e vivências populares. Assim, na virada dos anos 60, Volpi deixa a abstração geométrica ortodoxa e retorna ao que à primeira vista parece-nos ser figurativo – mas a rigor é uma pura construção com signos livremente agenciados no espaço. Ele retoma seu universo anterior para nele escavar sua continuidade e coerência. Nas famosas “fachadas” (que assim chamamos por analogia e conveniência), retângulos transformam-se em portas – ou viceversa –, e telhados, em triângulos – idem. Analogamente, as bandeirinhas não são um tema, um “assunto”, como as mulatas para Di. São um módulo geométrico simples cuja forma deriva da bandeirinha, uma herança da obra figurativa, que agora serve ao pintor para criar superfícies ritmadas e festivas. Não pertencem mais ao universo da mimese, não pretendem ser narrativas nem evocar a realidade contemplada. Por tudo isso, tenho escrito que o Volpi definitivo, o artista ímpar pela originalidade da linguagem, é o que faz a síntese, após o concretismo. Antes, é certo que ele já tinha criado dezenas de obras-primas, e compreensivelmente as lindíssimas e raras “fachadas” dos anos 50 (anteriores ao concretismo) são seus quadros mais caros no mercado. Pertencem à melhor pin-
tura brasileira jamais realizada, e não foi por acaso que diante delas Sir Herbert Read, membro do júri da Bienal de 1954, impôs que o prêmio de pintura (que, pela ordem natural, devia caber a Di Cavalcanti) fosse dividido com Volpi. Se o que ele produziu entre 1940 e 60 já lhe asseguraria um lugar de honra, à luz do que ele produziu depois compreende-se melhor, e se pode valorar mais amplamente, seu projeto, e o todo cresce, e ele muda de patamar. Chegamos aqui à importância específica dos estudos, que dão uma idéia da inventividade inesgotável que antecede as obras “definitivas”, as de grande formato. Os estudos constituem, por assim dizer, a oficina em que Volpi experimenta, descobrindo e elegendo os quadros que vai, depois, desenvolver. No primeiro terço da carreira, Volpi foi um pintor “do natural”, como convinha a alguém de sua geração e formação. Ainda que, em seu caso específico, nunca tenha sido uma pintura realista, e muito menos acadêmica, atinha-se à noção de arte como visão modificada do mundo exterior. Ao longo da década de 1940, ele começa a trabalhar cada vez mais de imaginação, dentro do ateliê, prescindindo da interação imediata e in loco com a realidade contemplada. Como o quadro passa a conter problemas formais a serem intelectualmente resolvidos, surgem os primeiros estudos, ainda poucos. Nos anos 50, no momento áureo das fachadas antes do concretismo, eles se multiplicam, e nos anos 60 tornam-se parte sistemática do processo de criação. A partir dos anos 70, enfim, servem sobretudo para testar infinitas variações cromáticas, dentro das mesmas composições básicas. A pintura de Volpi se transforma essencialmente em cor, com uma riqueza inimaginável dentro de um projeto tão estrito.
Por “assunto”, Volpi designava, meio pejorativamente, os conteúdos “literários” da arte – a mímese em seu sentido mais primário; e, por “pintura”, os conteúdos puramente formais – isto é, absolutos
Estudo. Têmpera sobre papel com cartão, 24,3 x 14,1cm. Final da década de 50
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Por serem tão numerosas e ilustres, as bandeirinhas e fachadas podem ter dado em algum momento a impressão de que Volpi foi um artista de repertório reduzido. Nada mais inexato
Estudo. Têmpera sobre tela, 33 x 16,5cm. Meados da década de 70
Por serem tão numerosas e ilustres, as bandeirinhas e fachadas podem ter dado em algum momento a impressão de que Volpi foi um artista de repertório reduzido. Nada mais inexato. Nos primeiros tempos, até por dever do ofício, Volpi dominava todos os temas habituais da pintura. Depois do concretismo, tratou de extrair de todos eles os signos para construir as novas telas “figurativas”, de natureza abstrata. Assim, sempre por analogia, falamos também de “marinhas”, “velas e mastros”, “ampulhetas”, “laços”, “mosaicos”, etc.; cada um desses rótulos designado uma família de
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composições com traços específicos. Por outro lado, seu projeto da velhice foi o de um artista permutacional avant la lettre, semelhante, por exemplo, ao de Joseph Albers, com sua nunca encerrada série Homenagem ao Quadrado. Mas Albers era um intelectual alemão, um ex-professor da Bauhaus, que tinha, quase, uma tese a demonstrar. Volpi, não. Circunscreveu seus objetivos não por ideologias ou princípios, nem para limitar-se, e sim para aumentar o próprio desafio e os prazeres dele decorrentes – para si e para os outros. Pois uma coisa é inegável. Por um lado, em virtude de sua singularidade e da complexidade das questões que equaciona e resolve (de resto, com uma naturalidade tão espantosa), a obra de Volpi instiga e excita o espírito. De poucos artistas brasileiros haverá sempre tanta coisa a dizer. Por outro lado, poucos são, também, os artistas dotados de uma faculdade de comunicação tão direta, imediata e universal. Sua obra é imensamente sedutora, de uma sedução cristalina e candente, acolhedora, voltada, sem nenhum complexo de culpa, para a gratificação mais pura dos sentidos. Sob esse aspecto, faz-me pensar mais na música de Mozart que na de Bach – com a qual partilha, entretanto, a sabedoria de estruturas precisas e serenamente organizadas. Está na moda, hoje em dia, uma arte difícil, problematizadora, que seguramente reflete o momento de crise em que vivemos – mas não o esgota em sua inteireza. Volpi refletia e praticava o lado oposto, que igualmente existe. Fez parte daquele grupo de escolhidos que transitam pela vida com a missão de torná-la mais digna e leve para os outros. A thing of beauty is a joy forever, diz um verso sempre muito citado de Keats. Tenho certeza de que Volpi jamais leu Keats, nem sequer sabia, provavelmente, de sua existência. Mas assinaria em baixo, sorridente, sem nenhum grilo, porque de sua natureza fazia parte a simultânea intimidade com a alegria e a beleza. A pintura de Volpi é bela, definitiva, permanente.
Olívio Tavares de Araújo é crítico de arte
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA
Vulcão e mulher nunca estão extintos Joel Silveira
1.D˝VIDAS Pois é como dizia o outro, não lembro mais quem: – Com esses juros exorbitantes, aqui se faz, aqui se paga e aqui se fica devendo.
2. C O R R E ˙ ˆ O Um colunista inventivo escreveu que, quando adolescente, eu tive uma paixonite pela senhora Hebe Camargo. Dois erros: primeiro, nunca fui adolescente; segundo, se o tivesse sido, na época Dona Hebe já teria idade de ser minha sogra ou minha madrasta.
3.QUEM
?
Toda vez que à noite escuto a campainha aqui em casa, desperto em pânico, dou um pulo, suo frio e me pergunto: – Será o Déficit Público? E não consigo dormir mais.
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4. B O C A DE
URNA
Tradicional e poderoso cacique lá em Sergipe, o grave e austero Dr. Leandro Maciel nunca perdia uma eleição. Foi tudo: cinco vezes deputado federal, duas vezes senador, duas vezes governador. Mas, na última eleição a que concorreu, perdeu feio. Perguntei-lhe: – O que houve, Dr. Leandro? A resposta veio imediata e franca: – O povo enjoou de mim.
5. PAULISTA S Em princípio, não acredito em nada do que paulista diz. Pelo menos enquanto eles não se livrarem daquele sotaque de caipira contador de “causos”.
6.H O M E N A G E M
P STUMA
A mon avis, como dizem os franceses quando estão na Noruega (ou são os noruegueses que falam assim quando estão em Paris?), a pior homenagem que alguém pode receber depois de morto é ter seu nome dado a uma penitenciária. Se algum dia eu desconfiar de que pretendem fazer isso comigo, juro que irei viver para sempre.
11. O
MAL DO BRASIL
Pois é como vive dizendo o comprade: – Vulcão e mulher nunca estão extintos. Outra dele: – O mal do Brasil é que o país é brasileiro demais.
12.A B S O RVENTES 7.BICICLETA CAI
DO C U?
Diz o primeiro: – Andar de carro ou de bicicleta é mais perigoso do que voar de avião. Retruca o segundo: – Poder ser, mas em toda a minha vida nunca vi uma bicicleta despencar de uma altura de cinco mil metros.
Sempre que acontece um entrevero lá em Brasília, lá vem o monocórdico porta-voz com a frase mais que manjada: – O incidente, sem maior importância, já foi absorvido. Haja absorvente.
13. SOCI 8. ORGULHO
DE SˆO PA U L O
Não demora e o congestionamento diário na grande e emperrada São Paulo vai começar logo na saída de Cuiabá ou de Porto Alegre (na saída do Rio já começou). Quando tal acontecer, para os paulistanos será o êxtase total, o orgasmo coletivo, a glória das glórias.
Obrigado, Todo-Poderoso, por ter criado a Julia Roberts. E dizer que o Excelso não levou mais que um milionésimo de segundo para criar aquele monumento. Louvado seja.
10.Q U A L DOS
É não só pitoresco como também esquisito: no Brasil de agora, todo sociólogo é economista e todo economista é sociólogo. Conheço um agrimensor que quer ser Ministro da Justiça.
14. MEUS
9. O R A ˙ ˆ O
DOIS?
Pergunto eu, sob o ponto de vista ecológico e levando em conta o equilíbrio do meio ambiente, o que é mais necessário: um urubu ou um cantor baiano?
LOGOS & ECONOMISTA S
SIL˚NCIOS
Deu no jornal: “O Rio é a terceira cidade mais barulhenta do mundo”. O que não chega a afetar ou sequer perturbar meus silêncios, cada vez mais indevassáveis.
15. CAD˚
A VERGONHA?
O Brasil perdeu definitivamente a vergonha. E o pior é que não sabe onde a perdeu.
Joel Silveira é jornalista
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LITERATURA
Depois de receber o Prêmio Goncourt, na França, o romance Vermelho Brasil é lançado pela Editora Objetiva em tradução para o português
O escritor francês Jean-Christophe Rufin
Um Brasil tinto de sangue
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FOTOS: JEAN-PIERRE MÜLLER / AFP
Luiz Carlos Monteiro
Vista da Igreja da Glória tomada de Santa Tereza. Raymond Auguste Quinssac de Monvoisin. 1850
Detalhe da gravura Preparo da Carne Humana em Episódio Canibal. Theodore De Bry. Sem data
Q
uando viveu no Recife como adido cultural, no final dos anos oitenta, Jean-Christophe Rufin idealizou a escrita de um romance histórico sobre a ocupação francesa na baía da Guanabara. O livro, Rouge Brèsil (Vermelho Brasil), publicado pela Gallimard em 2001, obteve o prêmio mais importante da literatura francesa, o Goncourt. Tal premiação caracteriza-se por uma quantia irrisória em dinheiro, mas tem o mérito, por outro lado, de transformar as obras contempladas em best-sellers. Assim, com um tema à aparência árido, sem maiores atrativos e com freqüência posto de lado por franceses e brasileiros, o médico humanitário Rufin conseguiu impulsionar fortemente, de uma hora para outra, sua carreira de escritor, embora já dispusesse de dois romances traduzidos em vários países. Está saindo este mês no Brasil pela Editora
Objetiva, com tradução de Adalgisa Campos da Silva, R$ 44,90. Vermelho Brasil detalha em 408 páginas, onde literatura e história interceptam-se o tempo todo, o projeto colonizador conhecido como França Antártica. Sob o comando de Nicolas Durand de Villegagnon, vice-almirante da Bretanha e cavaleiro de Malta, a expedição de dois navios aportou no Rio de Janeiro em novembro de 1555. As naus traziam uma variedade considerável de animais, alimentos e instrumentos de trabalho. A tipologia humana fora recrutada em lugares como tabernas, prisões, portos, conventos, orfanatos e até em instituições religiosas calvinistas como o partido dos huguenotes. Entre os componentes da expedição que seriam particularmente responsabilizados pelo fracasso da empreitada, encontravam-se os Continente Multicultural 59
Capa do livro Vermelho Brasil, de Jean-Christophe Rufin
Floresta do Brasil (detalhe). Johann Moritz Rugendas. Sem data
católicos e protestantes. Destacaram-se o franciscano André Thevet, cosmógrafo do rei Henrique II, e o calvinista polêmico Jean de Léry (que viria depois, com Bois-le-Comte), que escreveram relatos pioneiros da viagem. As disputas pela afirmação religiosa entre os dois grupos fugiram ao controle de Villegagnon, tornando-se um micromodelo das futuras guerras religiosas da França. Dois anos depois, em 1557, Villegagnon solicitava mais três navios – Grande Roberge, Petite Roberge e Rosée –, comandados por seu sobrinho, Bois-le-Comte, numa expedição de cunho militar, para dar reforço à sua empresa, tendo em vista as constantes ameaças de expulsão pelos portugueses. A estratégia romanesca de Rufin, como ele próprio já reconheceu, apóia-se no romance clássico do
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século 19, em nomes como Alexandre Dumas e Mark Twain. Faz-se presente também a ensaística de Montaigne, particularmente um texto que tematiza os canibais, que influenciaria as idéias futuras de Rousseau sobre o mito do “bom selvagem”. A narrativa rufiniana volta-se em cheio para o Renascimento, com um olhar ampliado que não exclui a crueldade dos conflitos religiosos entre católicos e protestantes franceses durante a ocupação, ou o hábito antropofágico de nativos brasileiros. Aliás, o rouge do título refere-se tanto ao vermelho do pau-brasil, com sua tinta já usada desde o descobrimento pelos europeus em tecidos, quanto ao sangue proveniente das guerras quase sem tréguas movidas pelos conquistadores, notadamente portugueses e espanhóis, contra os índios. Mas os franceses, por seu lado, lograram relacionar-se de modo mais satisfatório com os silvícolas, alguns deles não tendo mais voltado para a França. Rufin chama a atenção, ao nomear as fontes de seu trabalho, para o esquecimento a que está submetido, no Brasil, o nome de Villegagnon. Contudo, recentemente, antecipando-se a Vermelho Brasil, já tinha sido publicado por aqui Villegagnon: Paixão e Guerra na Guanabara (1991), de Assis Brasil. Neste romance, o escritor piauiense biografa Villegagnon exaustivamente, colocando toda a ênfase histórico-ficcional
IMAGENS: REPRODUÇÃO
Jean-Christophe Rufin reforçou o seu romance com uma documentação abalizada e desenvolveu, também, uma crítica aos valores éticos e religiosos do Ocidente
nas peripécias do aventureiro francês, rastreando sua vida desde a infância em Provins, passando pela formação intelectual, profissional e religiosa, até a sua morte. Em Meu Querido Canibal (2000), o prosador baiano Antônio Torres trabalha esses inícios de nossa história detendo-se com bem mais força na atuação dos índios. Constrói a sua narrativa ludicamente, à maneira de uma lenda indígena, tendo como figura destacada o chefe tupinambá Cunhambebe, com quem estabelece um diálogo romantizado no livro. A leitura desta obra, mesmo trazendo informações indispensáveis do período colonial, pode ser feita sem prejuízos pelo público juvenil, pelo seu teor descontraído, que não raro emprega ditos populares ou a gíria mais corrente, numa linguagem dinamizada e agradável de se ler. Em Vermelho Brasil, dividido em quatro longas partes e um pequeno epílogo – Des enfants pour les cannibales, Guanabara, Corps et âmes e Sienne –, JeanChristophe Rufin talvez tenha empregado o melhor de sua verve de prosador ao encetar a história da formação de dois adolescentes, os irmãos Just e Colombe. Recolhidos num orfanato para servir de intérpretes junto aos índios, segundo costumes da época, não ima-
ginavam o que os esperava na viagem. O primeiro revelou-se notável guerreiro, passando a homem de confiança de Villegagnon, ficando com este até o seu retorno melancólico à França em 1559. Colombe integrou-se rapidamente à vida nos trópicos, adotando inclusive o costume indígena de viver nua. Ela representa, no romance, a natureza selvagem e em muitos pontos intocada, com a possibilidade de junção das duas culturas, a francesa e a americana. A relevância destes personagens na obra secundariza todos os outros, inclusive o próprio Villegagnon, sem falar em Mem de Sá, que promoveu a campanha de tomada do Forte Coligny e mandou expulsar os franceses e índios, em 1560, da Guanabara. Rufin reforçou a obra com documentação histórica abalizada e desenvolveu também uma crítica aos valores éticos e religiosos do Ocidente. Com o sucesso alcançado, ele não terá mais motivos para reclamar da indiferença brasileira ao seu personagem histórico. Nem do desinteresse dos seus patrícios franceses por um projeto que envolvia mais a permanência que a colonização, mas que não vingou.
Salvamento das Cargas e Tesouros do H.M.S. Thetis em Cabo Frio. John Christian Schetki. 1833
Luiz Carlos Monteiro é crítico literário
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CULTURA
Rio Grande do Norte: bienal em junho, bienal em setembro Depois da CBL, Universidade promove sua exposição de livros, com expectativa de 100 mil visitantes Nelson Patriota
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um espaço de quatro meses – de junho a setembro – o Rio Grande do Norte vai contabilizar um recorde brasileiro na área editorial: realizar duas bienais nacionais do livro num único ano. Embora esse tipo de evento só agora tenha chegado ao estado, as feiras de livro já acontecem aqui desde o ano de 1998, justamente por iniciativa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN, a qual, agora, se acha experiente o suficiente para encarar os desafios de uma bienal. Em junho passado aconteceu a I Bienal Nacional do Livro de Natal, realizada sob os auspícios da Câmara Brasileira do Livro – CBL. Compromissos assumidos previamente, quer pela coordenação da Bienal patrocinada pela UFRN – cujo principal artífice é o professor Pedro Vicente Costa Sobrinho, também diretor da editora da UFRN –, quer pela CBL, confluíram para um conflito de interesses insolúvel, levando à opção “duasbienais” Pedro Vicente vê com naturalidade essa solução: “Como não foi possível conciliar o calendário dos dois eventos, resolvemos que, desta vez, tanto a CBL quanto a UFRN farão suas próprias bienais. Quem sabe, possamos conciliar nossos interesses no futuro”. A Bienal da UFRN será assim: com um olhar firmemente voltado para três centenários: o da grande poesia de Carlos Drummond de Andrade, o do legado historiográfico de Sérgio Buarque de Holanda e o
de Os Sertões, de Euclides da Cunha. O primeiro será objeto de uma mesa-redonda reunindo em seu entorno o jornalista José Castello, o poeta Gilberto Mendonça Teles e o crítico João Alexandre Barbosa, sob a coordenação do poeta Márcio de Lima Dantas. A mesa-redonda A ciência e a literatura em ‘Os Sertões’ de Euclides da Cunha reunirá os professores Francisco Foot Hardyman (Unicamp/SP), Valentim Facioli (USP/SP) e José Carlos Santana (UEFS/BA) e terá a coordenação do professor Marcos Falchero (UFRN). A mesa-redonda Sérgio Buarque de Holanda e a redescoberta do Brasil terá avaliações de Luiz Costa Lima (PUC/RJ), Francisco Alambert (USP) e Raimundo Arraes (UFRN), sob a coordenação de Almir Bueno (UFRN). Mesas-redondas temáticas seguir-se-ão às de cunho comemorativo. É o caso, por exemplo, da mesa-redonda O ficcionista e o poeta: o criador e os seus personagens, que colocará o poeta Carlos Nejar, da Academia Brasileira de Letras, e os romancistas Raimundo Carrero e Fernando Monteiro face a face diante das complexas questões que envolvem a criação poética e ficcional. Os oitenta anos da revolucionária Semana de Arte Moderna não passarão despercebidos. Seus ecos, que repercutiram fortemente no Rio Grande do Norte, através da amizade que uniu o historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo aos modernistas da Semana de 22, especialmente a Mário de Andrade, serão tema da mesa-redonda 80 anos da Semana de Arte Moderna: um balanço histórico e crítico. Os responsáveis por esse balanço serão os professores Antônio Carlos Secchim (UFRJ), Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN) e Ruy Espinheira Filho (UFBA). A coordenação será do jornalista Vicente Serejo (UFRN). A literatura portuguesa, por sua vez, receberá abordagem específica, na conferência A poesia portuguesa do século 20, que será proferida pelo romancista e ensaísta português Casimiro de Brito. Escritores, poetas, artistas plásticos e professores norte-rio-grandenses terão uma participação não menos destacada, considerando que a eles estão reservadas duas mesas-redondas para as quais todo o Rio Grande do Norte estará voltado com intenso interesse: a primeira homenageia o escritor Vingt-Un Rosado,
criador da Coleção Mossoroense, a qual, com mais de três mil títulos em catálogo, constitui-se num dos maiores empreendimentos editoriais produzidos por um único agente literário: o próprio Vingt-Un. A outra homenagem não se afastará muito desse enfoque, já que discutirá o legado do livreiro e editor Walter Pereira, outro intrépido norterio-grandense que revolucionou o mercado potiguar, multiplicando livrarias e livros pelo estado. O incentivo à leitura será objeto de duas atividades: a mesa-redonda A formação do leitor por muitos caminhos: poesia e escrita, que contará com a participação de Marly Amarilha (UFRN) e Glória Kirinus (PUC/PR), tendo a coordenação de Lucilla Bezerra Quinderé da Cruz (UFRN), e a conferência intitulada A narrativa na escola, pela professora Eliana Yunes (PUC/RJ). Não será menos expressiva a participação das livrarias e editoras de todo o país na I Bienal Nacional do Livro do Rio Grande do Norte. Cinqüenta estandes de cerca de 40 editoras serão instaladas no Centro de Convivência da UFRN. Paralelamente à realização da I Bienal Nacional do Livro do Rio Grande do Norte, acontecerá na Praça Cívica do Campus da UFRN (distante cerca de 500 metros do Centro de Convivência) a 8ª edição da Cientec – Feira de Ciência e Tecnologia, evento que costuma atrair milhares de estudantes vindos de todas as partes do estado, atraídos não só pelas novidades científicas, mas também pelos lançamentos de livros, apresentações de artistas locais e nacionais, espetáculos cênicos, entre outros. Em vista da simultaneidade da Bienal e da Cientec, e da complementaridade dos produtos que serão colocados à disposição do público – literatura, arte, ciência e tecnologia –, a expectativa da coordenação da Bienal, de acordo com Pedro Vicente, é a de que comparecerão cerca de 100 mil pessoas aos dois eventos, unindo ao prazer da leitura o rigor da ciência num único espaço: o campus da UFRN. A I Bienal Nacional do Livro do Rio Grande do Norte, acontece de 9 a 14 deste mês.
Pedro Vicente Costa Sobrinho: coordenador da feira e diretor da editora da UFRN
Nelson Patriota é jornalista e editor do jornal cultural O Galo, do Rio Grande do Norte
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SABORES PERNAMBUCANOS
O século 19 foi o das saladas. Napoleão, em Santa Helena, comia quase que só carnes do Brasil e saladas
A leveza da salada “Toalha branca, sal na salada E uma lapada, pra mim animar. Arroz, farinha na feijoada E goiabada para completar”. Cantoria (Anônimo)
A
“
cumbari arde no lábio do guerreiro, tornando mais gostosa a carne assada no moquém”, escreveu José de Alencar (em Ubirajara). “Moquém” era um avô distante de nosso churrasco. E “Cumbari”, uma pimenta picante, cheirosa, braba, dessas que queimavam até quase a alma. Assim eram chamadas também as folhas comestíveis que se espalhavam em volta das pimenteiras – embora nossos índios, que matavam pela pimenta, não morressem de amores por essa comida a que chamavam “de brincadeira” – por ser leve, sem sustança, sem sabor. Nem eles nem nossos escravos. O gosto pelas folhas, portanto, devemo-lo exclusivamente ao colonizador português.
Durante muito tempo o homem não misturava os alimentos. Mesmo quando o cardápio foi aumentando. Em Roma já se conheciam mais de 100 vegetais. Destaque para alface, agrião, beldroegas e rabaça. Além do alho-poró, claro, o preferido de Nero. Ainda servidos um por vez, e sempre no fim das refeições – para ajudar na digestão. Mas, no dia-a-dia, os romanos continuavam preferindo esparregados – purês obtidos a partir do cozimento de folhas ou legumes. De espinafre, couve, malva, bredo, aipo, mostarda, rábano. Tudo muito natural. Que a salada continuava sendo prato típico de camponês – pela comodidade na coleta dos ingredientes e pela simplicidade no fazer. Na Idade Média essas folhas começaram a ter a companhia de flores. Passando a ser temperadas com gordura de peixe e sal – daí vindo a própria designação do prato, salada. Um nome de origem provençal – dialeto da região de Provence, sul da França. É assim por toda parte. Em francês, salade; inglês, salad; espanhol, ensalada; alemão, salat. Depois veio o vinagre. E azeite – introduzido na Península Ibérica pelos mou-
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 64 Continente Multicultural
FOTO: RENATA VICTOR
ros. Mais alho e cebola. Junto com novas receitas vieram também novos hábitos. Como, nos tempos de Luís XIV, o de nunca cortar folhas com faca. Que, por serem quase sempre de prata os talheres, acabavam todos oxidando. Culpa do vinagre. O século 19 foi o das saladas. Napoleão, em Santa Helena, comia quase que só carnes do Brasil e saladas. Começaram a ser servidas acompanhadas de molhos frios – que, combinando ingredientes, acentuavam seu sabor. A elas se juntaram, aos poucos, bacon picado, croûtons (quadradinhos de pão torrados e amanteigados), nozes, passas, sementes de girassol, gergelim, salsa, cebolinha, hortelã e outros temperos verdes. Mais azeite, vinagre, condimentos, casca ralada de limão ou de laranja, mel, creme azedo, iogurte, queijo. Passaram a ser preparadas artisticamente. Paris se encarregou de torná-las famosas. Alheia a todo esse movimento, a salada continuava, no Brasil colonial, sem nenhum prestígio. Era considerado alimento vulgar. “Quem gosta de folha é lagarta”, se dizia então. Sendo servida segundo costumes muito próprios, bem diferentes dos europeus. Por
aqui os vegetais, por exemplo, vinham à mesa sempre cozidos. Assim foi até 1808, quando aqui chegou a família real. Fugida dos franceses. Deixando o general Junot, no Alto de Santa Catarina, uma das sete colinas de Lisboa, “a ver navios”. Esses navios eram as 35 naus de Dom João VI, que já navegavam pelo Tejo, com 9.000 homens a bordo. Depois Junot foi vencido em Vimeiro e acabou se suicidando, mas essa é outra história. A salada passa então a figurar nos cardápios da burguesia, por imitação à aristocracia portuguesa. Com a família real, veio também a horta portuguesa. Uma horta de cheiros. O nome por aqui deu certo. Ainda hoje chamamos coentro e cebolinha de “cheiro verde”. O Cozinheiro Nacional, primeiro livro de sabores do Brasil (autor desconhecido), é da segunda metade do séc. 19. E nele já constavam vinte e uma receitas de saladas. Para todos os gostos – de alface (à alemã, à francesa, à inglesa, à mineira), de batatas, de beldroegas, de beterrabas cozidas, de sardinhas, de anchovas. No século 20 surge, no reino das saladas, uma grande novidade. A salada de frutas. No Doceiro Nacional, importante livro sobre sobremesas do séc. 19 Continente Multicultural 65
(também de autor desconhecido), ainda não há qualquer referência a ela. Até então frutas eram servidas sempre sozinhas. Juntar frutas era heresia. Essa era, por exemplo, a lição do Dr. Domingos de Castro Perdigão, médico em Natal – “Cumpre haver muito cuidado em não misturar muitas espécies de frutas na mesma refeição”. Ou do Dr. José Paulo Antunes: “Como cada árvore dá frutos de uma só qualidade, a lição da natureza é servirmo-nos, unicamente, de uma única espécie, até fartar. Não sabemos as reações misteriosas dessa mistura”. As crendices corriam soltas. Misturar laranja, mamão, manga, abacaxi, banana, sapoti e caju era perigoso. Até mesmo se levasse açúcar – na época, quase um remédio santo, usado contra todos os males. Manga junto com outras frutas, por exemplo, era susto certo. Apesar de tudo, essa mistura acabou caindo no gosto popular. O passo seguinte foi servir o prato gelado. Sobretudo em hotéis de luxo. Passou depois a freqüentar casas das famílias aristocráticas. Mas, para mim, e penso que para muita gente mais, salada de frutas tem sobretudo sabor de infância. É prato de que menino gosta. Lembra o passado. Cu-
riosamente, e aos poucos, essas duas saladas acabaram se encontrando. Sendo cada vez mais freqüente ver frutas em meio às folhas das saladas tradicionais – kiwi, pêra, morango, manga. Faltando só falar nas saladas que, servidas entre fatias de pão, acabaram ganhando nome próprio – sanduíche natural. Como deveria ser o prato perfeito? A resposta, em um mundo crescentemente globalizado como o nosso, deve considerar alguns pré-requisitos. Teria primeiro de ser barato, cabendo no bolso da maioria da população. Teria de ser de fácil preparação, ao alcance de qualquer um. Teria de ser leve, próprio para quem não tem tempo, quem tem de trabalhar logo em seguida à refeição. Especialmente nos trópicos. Teria de ser sobretudo saudável – longe de colesteróis, triglicerídeos e lipídios. Se for assim o prato perfeito, ele já existe. É nossa velha e boa salada. Com a vantagem adicional de ser saborosa. Muito saborosa.
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora E-mail: jpaulo@truenet.com.br
RECEITA: SALADA LAGOA AZUL INGREDIENTES: 1 pé de alface americana, 1 pé de alface francesa, 1 pé de radícchio, 1 pé de endívia, algumas folhas de rúcula, 1 kg de camarão grande, cozido e descascado, passa branca, queijo gorgonzola, manga (ou outra fruta, a gosto). MOLHO PARA TEMPERAR A SALADA: 1/2 copo de azeite, 1/3 de copo de vinagre aromatizado, 1 colher (de sopa) de vinagre balsâmico, 1colher de mostarda (de boa qualidade), 1 colher (de chá) de adoçante, sal e pimenta. MOLHOS PARA ACOMPANHAR A SALADA: MOLHO DE MOSTARDA: 1 iogurte natural desnatado, 1 colher (de sopa) de creme de leite, 1 colher (de sopa) de vinagre de champanhe, 1 colher (de sopa) de mel de abelha, 1 colher (de sobremesa) de mostarda de Dijon, 1 colher (de chá) de estragão. Bater tudo no liquidificador. Juntar amêndoas picadas e deixar na geladeira, até a hora de servir. MOLHO DE GORGONZOLA: 1 iogurte natural desnatado, 2 colheres (de sopa) de creme de leite, 150g de queijo gorgonzola, um punhado de folhas de coentro, molho inglês, pimenta. Bater tudo no liquidificador e deixar na geladeira, até a hora de servir. MOLHO DE CEREJA: creme de leite, 200g de cereja, 2 colheres (de sopa) de caldo de camarão, 1/2 limão, azeite de oliva, sal e pimenta. Bater tudo no liquidificador e deixar na geladeira, até a hora de servir. PREPARO Colocar as folhas em recipiente grande, de vidro, que vá à mesa. Juntar todos os outros ingredientes. Tampar hermeticamente com filme plástico, e ficar na geladeira até a hora de servir. Só então colocar por cima o molho para temperar a salada. Servir os outros molhos, em recipientes separados, ao lado da salada. Para serem usados conforme o gosto de cada um.
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CINEMA
Boca de inferno da América Comunicativo e bemhumorado, o cineasta americano Michael Moore é adepto do discurso “metralhadora giratória”, com grande domínio de mídia, autopromoção e capacidade de provocar polêmicas Kleber Mendonça Filho
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FOTOS: FRANÇOIS GUILLOT / AFP; FLÁVIO FLORIDO / FOLHAIMAGEM
M
ichael Moore, 48 anos, é hoje o “boca de inferno” da sociedade americana. Nos seus filmes, livros e programas de televisão, Moore tem apresentado um espelho sarcástico para os Estados Unidos se enxergarem como nação e cultura. Nos seus programas TV Nation e The Awful Truth (A Verdade Nua e Crua), armou provocações, como fazer uma carreta de 22 rodas, pintada de vermelho, com a foice e o martelo do comunismo nas laterais, viajar pelo sul conservador americano para observar o que aconteceria (o veículo terminou incendiado). Já invadiu uma praia privê de milionários em Long Island com um ônibus de despossuídos trazidos especialmente de Nova Iorque e, no seu primeiro filme, o documentário Roger & Me (1989), mostrou os efeitos sociais devastadores provocados pelo fechamento de uma fábrica da General Motors na sua cidade natal Flint, estado do Michigan. Seu último livro, Stupid White Men (Homens Brancos Burros), tem como alvo principal o presidente George W. Bush e está na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times já há seis meses. Moore, que já foi chamado de “perigoso” pela Casa Branca – “um pobre coitado da assessoria de comunicação falou isso”, menospreza falsamente –, é adepto de um discurso “metralhadora giratória” comunicativo e bem-humorado, com excelente domínio de mídia, inegável senso de autopromoção e uma queda freqüente pela ultra-simplificação de temas complexos como raça, liberdade e identidade cultural. A pessoa de Moore lembra alguma cria bastarda e improvável de Hanna Barbera, Oliver Stone e Miguel de Cervantes. Sua aparência obesa de “americano médio” (sua farda é o jeans e o boné de beisebol) o faz parecer decalque de alguma animação. Suas teorias de esquerda contra o governo dos EUA têm muito em comum com os filmes de Stone. Há ainda um tom inegável de Dom Quixote e Sancho Pança numa só embalagem por causa da sua cruzada de cidadão comum contra as grandes corporações americanas, mas com uma diferença: os moinhos que Moore combate são reais, e têm respondido a alguns dos seus ataques. No seu filme mais recente, o documentário Bowling For Columbine, premiado no último Festival de Cinema de Cannes, o moinho atacado por Moore é a NRA (National Rifle Association), que está por trás da poderosa indústria de armas de fogo dos EUA. No filme, Moore apresenta retrato contundente da relação que os americanos têm com armas e munição dos mais variados calibres, relação que Moore acredita influenciar a postura dos EUA perante o mundo como um todo. Em Cannes, Moore concedeu esta entrevista a Continente.
Em Roger & Me, o Sr. enfrentou a General Motors; no seu filme anterior, The Big One, as grandes corporações como um todo. Em Bowling For Columbine, parece abrir ainda mais o campo ao visualizar os Estados Unidos como um todo. É o seu filme mais ambicioso até agora? Considero Bowling For Columbine o filme mais provocador que já fiz, talvez por tentar entender algo que representa o problema que mais aflige o meu país. Quando eu era criança, a primeira coisa que me ensinaram na escola sobre a história dos Estados Unidos foi que “os peregrinos vieram para a América porque tinham medo de serem perseguidos”. Aí, o que aconteceu? Eles encontraram os índios e tiveram medo dos índios, mataram os índios. Aí, sem índios, começaram a ter medo deles próprios e a ver bruxas aqui e ali, e queimaram as bruxas. Vencem a Guerra da Independência, mas ficam com medo de que os britânicos voltem. Alguém escreve na Constituição que o americano terá o direito de portar armas no caso de os britânicos voltarem. Essa gênese do medo teve continuidade com o aumento da população escrava, que, em 86 anos, entre a Guerra da Independência e a Guerra Civil, aumentou de 700 mil para quatro milhões. Em algumas partes do sul rural dos Estados Unidos, existiam três negros para cada branco, e a população negra se amotinava. Foi assim que Samuel Colt inventou o Colt, revólver de seis tiros. A National Rifle Association – (NRA) foi criada para controlar o acesso de brancos às armas de fogo, e só brancos tinham o porte. Um dos pontos mais importantes que eu levanto no filme é o fato de a maioria das armas de fogo nos Estados Unidos pertencer a brancos da classe média, que moram nos subúrbios racialmente segmentados das grandes cidades. Eles têm tantas armas porque vivem com medo. No final das contas, meu filme não é sobre armas, mas sobre toda uma cultura que historicamente vive com medo, do medo e para o medo. A meu ver, isso está diretamente relacionado à forma como os EUA são
capazes de realizar atos de violência no âmbito doméstico e internacional. Como mostro no filme, no mesmo dia em que as mortes ocorreram na escola Columbine, Bill Clinton, à frente dos Estados Unidos, realizava o maior bombardeio de todo o conflito das Balcãs, em Kosovo. Em nome da paz, claro. Como vê a política do presidente George W. Bush nesse pós-111 de setembro? Bush tem utilizado a tragédia do 11 de setembro para empurrar sua política de direita, subverter a Constituição, tirar as liberdades civis do povo e amenizar os impostos dos ricos, porque “precisamos deles por causa do 11 de setembro”. Tem perfurado poços de petróleo no Alasca porque “precisamos deles por causa do 11 de setembro”. Ele tem distraído a opinião pública com a “Guerra Contra o Terrorismo” para que
Em seu último filme, Moore ataca a poderosa indústria das armas de fogo dos EUA
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ela não preste atenção no que está acontecendo com toda a falcatrua em grandes empresas, como a Enron. Vou lhe dar um exemplo: ao pegar um avião hoje nos Estados Unidos, há uma lista de objetos que passageiros não podem levar a bordo. A lista vai de abridores de garrafa a alicates de unha, agulhas de tricô e gelo. Gelo? Sim, não sei bem qual foi o último incidente terrorista envolvendo gelo, mas está lá. Agora, eu lhe pergunto, e por que isqueiros de gás butano e fósforos não estão nessa lista? O grande incidente num avião depois do 11 de setembro envolveu exatamente um isqueiro, com aquele cidadão que tentou tocar fogo no sapato. Pois bem, isqueiros e fósforos são permitidos em vôos porque a indústria do fumo fez um lobby violento junto ao governo americano para que esses itens ficassem fora da lista negra. Nossa segurança é menos importante do que as perdas da indústria do fumo, ou simplesmente não há tanto perigo? Isso me lembra 1984, de George Orwell, onde os líderes mantinham o povo num estado constante de guerra contra um inimigo onipresente. O medo sem tréguas era a única forma de controle do povo. E o povo acreditava. Quando Bush diz na TV: “Essa guerra não terá fim”, eu acredito. Esse medo está profundamente enraizado na sociedade americana. Há dez anos, quando fui morar em Nova Iorque, a cidade tinha uma média de 2200 assassinatos por ano. Hoje, esse número caiu para 600. Mesmo assim, a mídia criou mais espaço para o crime e a impressão geral é a de que a criminalidade e a violência aumentaram.
“Bush tem utilizado a tragédia do 11 de setembro para empurrar sua política de direita, subverter a Constituição, tirar as liberdades civis do povo e amenizar os impostos dos ricos” leis antiarmas possíveis e, mesmo assim, seríamos a mesma América, com a mesma ética e a mesma violência estimulada pelo Estado.
Há algo de diferente no DNA cultural do povo americano em relação à violência? Sim. Nos Estados Unidos, o sistema foi montado de tal forma que, se você adoecer na América, foda-se! Se você for pobre na América, foda-se! Os Estados Unidos batem nos próprios americanos que já estão caídos, essa é a ética da minha sociedade. Para mim, isso significa “terrorismo bancado pelo Estado”, atos de violência contra os pobres e aqueles que nada têm, ou que estão por baixo. A forma como a questão da raça é utilizada nos Estados Unidos para impor essa violência contra os pobres é uma doença social.
Como vê incidentes relacionados a armas de fogo em outros países, como os ocorridos recentemente na Alemanha, França e Suíça, com atiradores anônimos disparando em escolas e repartições públicas? Há um consenso de que tais atos lembram, imediatamente, os EUA. Sempre haverá alguém insano no mundo, cometendo atos insanos. De qualquer forma, atos como esses não têm a freqüência ou o grau de consistência que observamos nos EUA. Me preocupo mais com a transformação de culturas estrangeiras em estados americanos. Não tanto pela multiplicação de lanchonetes McDonald’s ou pela quantidade de filmes hollywoodianos que os cinemas exibem. Esses são problemas separados que também precisam ser administrados. Me preocupa mais a movimentação política rumo à direita que tem cada vez mais adotado uma política nitidamente americana de massacrar os pobres e imigrantes. Com isso, sim, o grau de comparação com a sociedade americana irá crescer junto com a violência socializada, e o número de armas aumentará a cada dia. Para evitar isso, é importante manter essa rede de segurança social que existe originalmente em muitos países, especialmente na Europa. Pelo que estou vendo, aqui na França, na televisão, já observa-se uma mudança ao longo dos anos na forma como a notícia é transmitida, estilo (Moore fala em tom sensacionalista) “Hoje, três membros de uma gangue atacaram um homem num subúrbio de Paris!”.
Isso vai além do simples fato de ser uma sociedade armada até os dentes. Sim. Se o número de armas e rifles nos Estados Unidos fosse drasticamente reduzido, claro, seria melhor para o país, mas me parece que esse não é o “x” do problema. Poderíamos aprovar no Congresso todas as
Com o seu trabalho, o Sr. nunca tem a impressão de estar pregando para os já convertidos? Não. Meus filmes têm sido exibidos em multiplexes suburbanos de pequenas e grandes cidades americanas. Meu trabalho e minhas idéias têm sido apresentados em redes nacionais, como a NBC e a
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FOTOS: SÉRGIO LIMA / FOLHAIMAGEM
Fox, meus livros vendem bem, minha mensagem tem chegado a um público branco, classe média. O que significa utilizar a mídia como instrumento de mudança social? O Sr. parece acreditar firmemente nisso. Sim, acredito. Posso lhe afirmar que boa parte do que eu já fiz foi capaz de promover algum tipo de mudança. A primeira vez que me dei conta disso foi com Roger & Me. O holofote que coloquei em cima do problema da dependência da cidade de Flint, no Michigan, em relação à General Motors foi um catalisador de mudanças. Não reverteu nenhum quadro, eles não deixaram de fechar fábricas nos Estados Unidos para abrir outras em países do terceiro mundo, explorando a mão-de-obra local e lucrando muito com isso. Mas, com certeza, desacelerou um processo que, de outra forma, seria uma seqüência de ataques inclementes. Compramos tempo para muita gente, as pessoas puderam repensar as mudanças que estavam sendo impostas a todo um modo de vida. Em The Big One, o presidente da Nike, Phil Knight, me desafiou ao vivo, num programa de rádio, para que o entrevistasse. Com a câmera ligada, ele falou uma quantidade impressionante de besteiras sobre como a Nike emprega crianças em países de terceiro mundo, e como “uma
criança de 14 anos na Indonésia é bem diferente de uma criança de 14 anos nos Estados Unidos”. Quando o filme foi lançado, ele ficou tão envergonhado com o seu próprio depoimento que organizou uma coletiva de imprensa para anunciar que a Nike deixaria de empregar crianças na sua fábrica da Indonésia. Knight utilizou o filme como referência. Em Bowling For Columbine, eu fui, acompanhado dos dois garotos sobreviventes de Columbine, à K-Mart e, depois de 90 dias, eles decidiram parar de vender armas de fogo e munição nas suas 2300 lojas. São pequenas brigas que alavancam mudanças, e que eu julgo importantes. Quais as dificuldades de levantar o dinheiro nos Estados Unidos para a realização de Bowling For Columbine, considerando que o lobby pró-aarmas de fogo é forte? Dinheiro é sempre a dificuldade que eu tenho para fazer o que faço, especialmente nos Estados Unidos. Neste projeto, sabia que teria dificuldades ainda maiores por causa do alvo em questão e da temática abordada. Dessa forma, decidi me poupar do constrangimento indo direto aos canadenses da Salter Street Films, em Halifax, Nova Scotia, que vêm produzindo o meu programa de TV anglo-americano, A Verdade Nua e Crua. Continente Multicultural 71
Moore diz que os bibliotecários são um grupo temido na indústria editorial
O Sr. sofre algum tipo de resistência pelo teor ferino da sua crítica? Como, por exemplo, o seu livro Stupid White Men foi recebido no clima confuso de patriotismo pós-111 de setembro, quando Bush atingiu níveis impensáveis de popularidade? Meu livro foi publicado pela HarperCollins. No dia 10 de setembro de 2001, foram impressas as 50 mil cópias da primeira edição. Obviamente, com tudo o que aconteceu no dia 11, o transporte das cópias foi adiado e a editora, um mês depois, decidiu não lançar mais o livro por considerar seu tom e conteúdo inadequados. Diziam que o livro era crítico demais em relação aos Estados Unidos, que não era patriótico e, especialmente, que era “excessivamente anti-Bush” numa época em que o (faz o sinal de aspas) “presidente” atingia os mais altos graus de popularidade. Me informaram que a única saída para o livro seria se eu reescrevesse 50% do seu conteúdo, polindo as críticas, especialmente as direcionadas ao (faz o sinal de aspas novamente) “presidente” numa carta aberta que escrevi para Bush, um dos capítulos do livro. Nessa carta, pergunto diretamente se ele considera-se “um bêbado, um criminoso ou simplesmente um analfabeto”. Depois de mais um mês, a editora me informou que destruiria as cópias para reciclagem porque o livro não teria futuro comercial. Embora tenha ficado deprimido com a idéia de perder o meu livro, vi um lado positivo nisso tudo. Nós da esquerda atingimos um grau tão sofisticado de patrulhamento que até os opressores pensavam em reciclar nossas idéias, transformando-as em material orgânico. A idéia de ver meu livro reciclado para que outros livros fossem feitos passou a me agradar. Bem, numa palestra, na Nova Jersey, toquei no assunto com a platéia, e, no recinto, estava uma bibliotecária que, mais tarde, espalhou a informação, em chats de Internet freqüentados por bibliotecários, de que o livro havia sido banido. A informação espalhou-se pelos Estados
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Unidos e, na semana seguinte, a HarperCollins foi inundada de mensagens de repúdio ao não-lançamento de Stupid White Men. Meu editor me liga e diz que a casa editora estava recebendo “cartas de ódio” de bibliotecários ao redor do mundo. “O que foi que você falou para os bibliotecários?”, ele me perguntou. Comecei a me dar conta de que bibliotecários são um grupo temido na indústria editorial. Você acha que é fácil ser um bibliotecário? Caladinhos ali no canto, repondo livros de 40-50 anos de idade pregados por fita durex, são sempre os primeiros a ser despedidos quando há cortes. É claro que eles são irados, são eles que planejam a revolução! Com isso, a HarperCollins mudou de idéia e lançou o livro naquele esquema “desculpem-nos por estarmos lançando esse livro”, afinal de contas, “o autor está fora de sincronia com o povo americano”. As 50 mil cópias foram vendidas em 24 horas. O livro entrou na sua 9ª edição depois de cinco dias nas livrarias. Está atualmente na 22ª edição, o que significa, para mim, que há muita gente que não aprova o que está acontecendo. Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema
FOTO: ERIC FEFERBERG / AFP
“Em carta aberta que escrevi a Bush pergunto diretamente se ele considera-se um bêbado, um criminoso ou simplesmente um analfabeto”
Sobre o filme e outras armas
FOTO: DIVULGAÇÃO
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ifícil pesar o trabalho de Michael Moore em filmes como o inegavelmente potente Bowling For Columbine (que chega ao Brasil este mês via Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro). Diferente de obras de ficção realizadas por cada autor, Moore faz filmes pessoais sobre fatos e pessoas. Ele revela-se cada vez mais um profissional das versões, um entertainer da verdade. Fica a impressão de que seu trabalho é obra de um comediante americano que pensa a sua sociedade com o olhar de um cidadão comum dotado de profundo sarcasmo, senso de oportunismo midiático e, talvez, até mesmo respeito pela verdade. É sempre desconcertante divertir-se tanto com verdades, e Moore sabe proporcionar diversão. Seus filmes (três ao todo: Roger & Me – O Homem Que Enfrentou a GM, The Big One e esse último) são tidos como documentários, ou seja, registros que o público enxerga como uma verdade apresentada. Em Bowling For Columbine (Jogando Boliche por Columbine, na tradução literal), Moore nos apresenta um retrato particularmente perturbador da cultura americana, assumindo a clara postura do seu crítico mais feroz. Num filme sobre a paixão americana pelas armas de fogo, talvez seja adequado atirar para todos os lados, e Moore o faz sem medo de faltar munição. Em Bowling For Columbine, Moore abre uma conta bancária no seu estado natal do Michigan e ganha de brinde um rifle. Nos apresenta os “loucos por armas” do meio-oeste, bandos paramilitares que acreditam ser uma obrigação do americano portar armas. Revela fatos cruéis sobre assassinatos políticos bancados pelos Estados Unidos ao redor do mundo, América Latina incluída, aborda o 11 de setembro e a tragédia de Littleton, estado do Colorado, onde 12 alunos e um professor foram fuzilados por colegas. Tudo isso, especialmente a tragédia de Columbine, é tratado com fúria e ironia por Moore, que chega a levar dois dos adolescentes sobreviventes baleados na tragédia a uma loja da Wal-Mart, a maior rede de supermercados dos EUA, para devolver as
balas que ainda encontram-se alojadas nos seus corpos. A Wal-Mart vendia armas de fogo e munição, e foi lá que a dupla de atiradores de Columbine adquiriu suas balas. A Wal-Mart “vendia”, porque, segundo o filme, a provocação de Moore resultou numa mudança na política da empresa. Se Moore atira tanto, e o espectador mal pode acreditar que uma sociedade tão absurda pode ser preocupantemente verdadeira, ele deixa para o final prova irrefutável de que há verdade nas suas investigações, por mais tensas, ou mesmo divertidas, que elas sejam. Charlton Heston, velho astro hollywoodiano, que encarnou as personas de Ben-Hur e Moisés no cinema, símbolo da América branca conservadora e vice-presidente da NRA – National Rifle Association, aceita ser entrevistado por Moore. É um dos momentos mais conflituosos do cinema recente, repleto de tensão e política, num combate que deixa Heston atordoado com os mísseis que recebe de Moore, ironicamente, o desarmado dos dois. (KMF)
Michael Moore empurrando a cadeira de rodas com um dos estudantes baleados por colegas na Colombine High School, em 1999, numa cena do filme Bowling for Colombine
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HOMENAGEM
Havia uma tríade – Antonioni, Fellini, Visconti – e os mestres do risorgimento do cinema sob a bota do fascismo – Rossellini, De Sica, Lattuada – nos anos de mamma sonhando com a riqueza distribuída entre os deserdados de Roma
Michelangelo Antonioni
Em louvor de um clássico
Fernando Monteiro
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ilmes da noite de aventura guiando cegos pela mão da insônia: eu os recordo entre tardes e noites do Trianon a nos surpreender, na segunda-feira morna, com o lançamento inesperado de filmes da era perdida do bronze do cine em preto-e-branco. (Cultivo uma rosa branca – na casa de Irene – para recordar paredes que podiam ser mais que cal e tijolos se, sobre o branco sujo, se recortava o corpo da atriz vestida com a capa ainda molhada da chuva.) Filmes que voltam na lembrança: não são os filmes da nossa infância, não somos cegos, neles, nem inocentes de todo. Começamos a ver a pele nua (que o “colorido” tornará creme) da carne da Bela Adormecida, logo substituída por Monica Vitti tirando, sensualmente, a roupa. Ela veio, de trem, dos cinzas de Ferrara – a cidade natal de Michelangelo – e acaba de chegar a Ostiense, nas cercanias de Roma. Vemos uma praia deserta, fincada de guarda-sóis vermelhos que a câmera lê como pontos negros de sombra cercados das dunas, onde se revela o corpo opulento nos lugares certos da nossa atenção atraída para “filmes proibidos para menores de 18 anos”. (Lamento a passagem do proibido para o permitido em longa escala que retira a graça do “censurado” por sobre as cercas puladas para ver mulheres jovens se banhando no rio do Pó secado no Piemonte.) Filmes de antes da água pesada de cores da Fontana lavando o ocre de Roma: nossa adolescência lia diálogos da desesperança e poemas sobre a beleza prestes a ser perdida quando, após a treva, os soldados abriam caminho acotovelando os partigiani. Nosso olhar foi obscurecido por justiça cega e mais outra mão sobre o rosto: a mão que a mão do nadador encontra, quando escava abaixo da linha do mar noturno – e o menino de antes, no percurso da noite, jaz transformado em rapaz de rua com o semblante an-
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sioso dos Mastroianni ou aquela face que envelheceu num instante, ao conhecer a solidão sem saída num quarto de hotel alugado na própria cidade. (Havia uma tríade – Antonioni, Fellini, Visconti – e os mestres do risorgimento do cinema sob a bota do fascismo – Rossellini, De Sica, Lattuada – nos anos de mamma sonhando com a riqueza distribuída entre os deserdados da Roma mais romana que já houve, na hora antes da alva e antes de Cinnecittà ser mudada para longe, sob chuva eastmacolor.)
FOTOS: REPRODUÇÃO / AE
O cineasta italiano Michelangelo Antonioni
Filmes de Michelangelo no verso lontano do pano de fundo da fome dos anos da vaga luz dos vagalumes fuçando os meninos per la prima volta fumando nos cinemas de bairro da distância. Filmes do eclipse de celacantos da Torre e de acalantos do ArtPalácio para o olhar distraído da comerciária que assistia a L’Avventura porque não podia ir pra casa debaixo do temporal caído sobre o centro alagado. Filmes dos palácios de perversidade se insinuando entre as fardas compostas de adolescentes gazeando
aulas de biologia e monotonia do Ginásio Pernambucano, que resta por submergir sob a verdadeira enchente de igrejas universais e salas de shopping – quando nos tornamos afinal escravos de Moloch & Miramax e toda beleza for americana ou nenhuma. Filmes do Morandi do cinema italiano: come un cieco m’hanno portato la mano, Michelangelo. Fernado Monteiro é escritor
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A cidade, o cinema, a escrita
Antonioni completa 90 anos no penúltimo dia deste mês. Considerado o cineasta da incomunicabilidade, é também o último grande “autor” do cinema italiano
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FOTOS: REPRODUÇÃO / AE
ichelangelo Antonioni certamente não será en- Filmado na Inglaterra, Blow-uup (Depois Daquele Beijo, contrado em Ferrara, na data do seu aniver- no Brasil), de 1967, se tornaria a sua obra de maior sário – quase sempre comemorado entre as névoas da sucesso, com elenco totalmente internacional. O filme cidade. Foi lá onde nasceu (e “treinou o olhar para as – baseado num texto de Julio Cortázar – apenas tancoisas”) o cineasta que completa noventa anos no pe- gencia a temática “policial”, mas possui principalmente núltimo dia deste setembro. um fascínio visual resistente até hoje, quando é visto O cemitério hebraico, com seus mausoléus fa- como uma espécie de ícone pop ainda irresistível (e imimosos (um deles mostra toda uma família em banque- tado por muitos cineastas, nos anos 70/80). Com toque te de mármore e bronze), os passeios “evitando a Gio- cada vez mais “internacionalizado”, Antonioni realizavecca e o centro de ruas com as pedras mudadas”, tudo ria Zabriskie Point, em 1970: era o seu filme que preisso está longe do agora nonagenário recolhido ao apar- tendia ser mais radical do que os anteriores, ideologicatamento romano onde se locomove com a ajuda da mulher, Enrica, após dois derrames de conseqüências sérias para a saúde de quem – no autobiográfico Comincio a Capire – recorda “a vida começando por se fazer mais entendida somente agora”. Ferrara e suas fumaças – diz Antonioni – o ensinaram a ver tudo refratado, tanto ali como em Roma ou na “muralha chinesa sinuosa sobre os montes da Ásia”. O diretor ferrarense é um dos filhos pródigos da cidade imortalizada por Giorgio Bassani (no romance O Jardim dos Finzi-C Contini), e que possui hoje um bem montado museu dedicado à obra do “cineasta da incomunicabilidade”. Iniciando-sse como crítico e roteirista nos anos da Segunda Grande Guerra, logo a seguir Antonioni se tornaria assistente de direção e autor de documentários neo-rrealistas (Gente del Po, Superstizione e L’Amorosa Menzogna são alguns dos seus filmes, entre 1947 e 1949). Cronica di un amore foi a sua primeira obra de ficção, em 1950, já trazendo a marca do tema do impasse nas relações humanas. Esse – e a busca da identidade – seriam o leitmotiv de um realizador cuja formação – como aluno da escola de artes – daria a seus filmes as características de rigor e refinamento de um “poeta das imagens” (conforme é considerado). O Deserto Vermelho (1964) foi o seu primeiro longa-m metragem colorido e tratado, mais do que isso, como um mural contemporâneo: filme “matérico”, com texturas compostas quase que quadro a quadro. 76 Continente Multicultural
mente, como denúncia da sociedade de consumo, mas o tema e o tratamento talvez estivessem mais de acordo com outros temperamentos artísticos (como o de Pasolini, por exemplo), e o filme não pareceu convincente nas mãos do autor elegante daquele cinema chamado de “existencialista”, no primeiro momento. A partir de então – e dando mostras de inesperadas inquietações – o cineasta realizaria um documentário de longa-m metragem sobre a China (Chung Kuo-C Cina, em 1972), voltaria a freqüentar o tema da identidade em Profissão: Repórter (1975) e realizaria, para a TV, um longametragem com base em texto de Jean Cocteau – O Mistério de Oberwald (1980) – do qual conseguiu fazer um filme apenas razoável. Ele ainda realizaria Identificazione di una Donna, em 1982 – três anos antes de sofrer o primeiro derrame cerebral – e seu último filme, Al de là Delle Nuvole, foi baseado em narrativas do próprio diretor, que se revelou excelente contista e memorialista, nos últimos anos: A Volte se Fissa un Punto foi lançado pela Editora Rocco (com o título de O Fio
Perigoso das Coisas) e Comincio a Capire, comovente recolha das suas reminiscências de Ferrara e Roma, ainda aguarda tradução em português. Nos últimos anos, ansioso por continuar trabalhando, Antonioni aceitou até mesmo a “imposição” de ter o alemão Wim Wenders a seu lado, como “diretor-rreserva”, durante a filmagem de Al de là Delle Nuvole (1996), pois os produtores receavam pelo estado de saúde do último grande “autor” do cinema italiano. Antonioni visitou o Brasil em agosto de 1994. Ele veio participar do Festival de Gramado, e desembarcou em São Paulo. Algumas pessoas que ele mandou consultar aqui garantiram-llhe que encontraria um calor de 35 graus e que, portanto, devia trazer sua roupas mais leves. Foi o que Michelangelo e Enrica fizeram, mas a capital paulista foi logo lhes apresentando um frio de 8 graus, no aeroporto em que viam, surpresos, todos os paulistas com grossos casacos. Alguém teve de ir, correndo, comprar agasalhos para o casal que tiritava de frio. (FM) A atriz predileta de Antonioni, Monica Viti, em cena do filme O Deserto Vermelho (1964)
FERREIRA GULLAR
O museu só paredes As sucursais do Museu Guggenheim andam mais preocupadas com a arquitetura e o local de sua construção, do que com o acervo artístico a ser mostrado
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ecentemente, no NY Times Magazine, Deborah Solomon publicou um longo artigo sobre o Museu Guggenheim de Nova Iorque, que, como se sabe, foi criado por Solomon R. Guggenheim, um magnata do cobre, que o fundou em 1937. Sua sede atual, na 5ª Avenida, é num edifício projetado por Frank Lloyd Wright, de forma cônica, com disposição interna inovadora e, segundo alguns, pouco propícia à exposição das obras de arte. De algum tempo para cá, depois que sua direção passou às mãos de Thomas Krens, o museu passou a criar “filiais” – se assim se pode chamar – fora de Nova Iorque, sendo a mais célebre delas o Guggenheim de Bilbao, na Espanha. Tem-se falado ultimamente na construção de um Museu Guggenheim no Brasil, ou em Recife ou no Rio de Janeiro, sendo mais provável a opção pelo Rio. Desde o primeiro momento, essa notícia provocou a reação de pessoas e instituições que não vêem propósito numa iniciativa que viria agravar ainda mais os problemas já enfrentados pela cidade no campo museológico, com poucos recursos para a preservação dos acervos e mesmo para o funcionamento dos museus. Deve-se esclarecer ao leitor que tudo o que Thomas Krens oferece é o nome do seu museu, ficando as despesas por conta da cidade que aceite a honra de ostentar uma sucursal do Guggenheim. Basta dizer que só o estudo de viabilidade do projeto já teria custado à Prefeitura do Rio cerca de dois milhões de reais. O custo da construção estaria por volta de 150 milhões de dólares, bancados pelo governo ou pela iniciativa privada, ou seja, pelo governo na verdade, uma vez que se trata de dinheiro da renúncia fiscal, do imposto de renda. As questões que esse projeto suscita são muitas. Thomas Krens já escolheu o arquiteto que fará o pro78 Continente Multicultural
jeto, sem consultar nem a Prefeitura nem o Instituto de Arquitetos do Brasil. Essa escolha fere a legislação brasileira, que obriga a realização de concurso público para edifícios dessa natureza. O museu ficaria localizado na região portuária, que será reurbanizada; e, como o projeto de reurbanização ainda não existe, é praticamente impossível saber de que modo o novo prédio se inseriria nela.
FOTO: RAFA RIVAS / AFP
Há outras questões: o estudo de viabilidade mostra que seria necessário um mínimo de 200 mil visitantes por mês para manter o museu funcionando. Uma freqüência média tão alta de visitantes só se tem conseguido, no Rio, durante exposições de excepcional interesse, como as mostras de Picasso e Rodin. Mesmo assim, a vasta maioria desse público é constituída de crianças, alunos de escolas, que não pagam ingresso. A conclusão é que, se for contar com a bilheteria, a manutenção do museu será inviável. Aliás, com custo muito menor, o Museu de Arte Moderna do Rio não tem condições de manter-se e, se continua funcionando, é graças à Prefeitura da cidade, que garante o pagamento dos funcionários. Como se vê, a construção da sucursal do Gug é, no mínimo, uma aventura de conseqüências imprevisíveis. A não ser por provincianismo ou oportunismo político, não há razão que a justifique. De fato, o Rio de Janeiro necessita desse museu? Por que, com tantos problemas sociais, além dos culturais, de que não dá conta, o governo da cidade assumiria esse projeto caro e sem propósito? Veja bem: se todos o custos serão pagos por nós – o estudo de viabilidade, o preço do projeto, as despesas com a construção e depois com a manutenção – qual a contribuição de Thomas Krens? O nome do seu museu! Então, pergunto: quer dizer que nós temos toda a grana para levar adiante a empreitada, só não temos um nome e, por essa razão, o pediremos emprestado ao sr. Thomas Krens? É isso? Parece piada. A sucursal do Guggenheim em Bilbao teve pelo menos um resultado positivo: fez da quase desconhecida cidade espanhola um ponto de interesse do chamado “turismo cultural”. Muita gente tem ido lá para conhecer a estranha
obra do arquiteto Frank Gehry – um prédio de paredes metálicas, com a aparência de um castelo medieval pós-moderno. E só para isso, uma vez que o museu não possui acervo de importância. Sucede que o Rio de Janeiro não é Bilbao, até bem pouco ignorada. O Rio é uma das mais famosas cidades do mundo, que, em matéria de arquitetura de museus, conta com o MAM, obra de um dos maiores arquitetos modernos, o brasileiro Affonso Eduardo Reidy; além disso, basta atravessar a baía para nos defrontarmos com o Museu de Arte Contemporânea, de Oscar Niemeyer, já considerado uma obra-prima da arquitetura contemporânea. Mas esse é um argumento que apenas serve para contestar a tese dos defensores do “projeto sucursal” (como o intitulo), porque, na verdade, museu é feito para guardar obras de arte, e todos eles, no passado, nasceram de coleções particulares que necessitavam ser conservadas e mostradas. E o Guggenheim não foge à regra, uma vez que o seu fundador foi antes um colecionador. Não obstante, conforme conta Deborah Solomon em seu artigo, outra é a concepção de Thomas Krens. Embora o seu museu esteja passando atualmente por sérias dificuldades (basta dizer que o orçamento anual caiu de 49 milhões de dólares para 25 milhões, levando-o a cancelar importantes mostras, como uma retrospectiva de Malevich), ele insiste em construir um novo edifício para o Gug, no valor de 680 milhões de dólares. Indagado sobre isso, respondeu: “É mais fácil conseguir dinheiro para construir um edifício que para uma exposição. Um edifício é permanente”. É certo, mas as obras de arte também o são. A aquisição de um quadro de Cézanne ou Rembrandt, de Kandinsky ou Morandi, é um investimento sem risco, de valorização garantida. Na verdade, o argumento de Thomas Krens é sofismático e tenta apenas justificar sua visão de diretor-incorporador-de-museu, segundo a qual um museu vale por si mesmo, como edifício, não precisa ter nada dentro. Deborah Solomon relembra, a propósito, em seu artigo, o “museu imaginário” de André Malraux, constituído apenas das obras-primas da arte mundial – um museu “sem paredes”. Exatamente o contrário do museu concebido de Krens: um museu sem obras de arte – só paredes.
O imponente Museu Guggenheim de Bilbao, Espanha
Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte
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MĂšSICA
O tropicalismo
e a MPB
FOTO: REPRODUÇÃO / AE
Se considerarmos o tropicalismo como a retomada da linha evolutiva da MPB, então essa linha terá de ser estendida da bossa nova ao tropicalismo Antônio Cícero Bethânia, Caetano, Gal e Gil no tempo do tropicalismo
Em 1966, Paulinho da Viola já falava da necessidade de incluir contrabaixo e bateria nos seus discos
Na página seguinte, o filósofo e poeta Antônio Cícero
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FOTOS: FLÁVIO FLORIDO / FOLHAIMAGEM; LEONARDO AVERSA / O GLOBO
F
oi em 1966 – pouco antes, portanto, do início do estava, na realidade, a esboçar a articulação dos seus tropicalismo, em 1967 – que Caetano Veloso fez projetos musicais, a partir da reflexão sobre o que a a sua famosa declaração sobre a “linha evolutiva” da Revista Civilização Brasileira considerava a “crise da música popular brasileira. Permitam-me citá-la ainda música popular brasileira”. Preocupavam-no questões mais uma vez: como a dificuldade de, nas palavras citadas, ter “orga“Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar nicidade para selecionar e ter um julgamento de criauma organicidade para selecionar e ter um julgamento ção”; e, ao enfrentar semelhantes questões, ele levava de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, em conta também as experiências de seus colegas, cotamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve mo Paulinho da Viola, Edu Lobo, Chico Buarque etc. o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em A QUESTÃO DA EVOLUÇÃO NA ARTE seus discos. Tenho certeza de que, se puder levar essa Quero também, desde já, enfrentar algumas necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, prováveis – mas nem por isso justas – críticas às paassim como João Gilberto tem contrabaixo, violino, lavras de Caetano, quer tomadas literalmente, quer na trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás, João Gil- interpretação que lhes dou. Uma dessas críticas podeberto para mim é exatamente o momento em que isto ria questionar a propriedade de se falar “da” linha evoaconteceu: a informação da lutiva da MPB, como se houvesse uma só linha modernidade musical utiliza- evolutiva na MPB, a saber, a linha que tem início com da na recriação, na renovação, o samba. Como o Brasil é um país musicalmente rino dar-um-passo-à-frente, da quíssimo, poder-se-ia perguntar com que direito música popular brasileira. Caetano privilegia o samba em detrimento do baião ou Creio mesmo que a retomada do frevo, por exemplo, como se o samba fosse a matriz da tradição da música brasi- de toda a MPB. leira deverá ser feita na meCreio que a melhor resposta a essa objeção é dida em que João Gilberto que a novidade da MPB que dera ensejo à noção de fez. Apesar de artistas como Edu Lobo, Chico Buar- “linha evolutiva” tinha sido a bossa nova; ora, a bossa que, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Maria da Graça nova se refere ao samba. “João Gilberto”, diz Caetano (que pouca gente conhece) sugerirem essa retomada, na entrevista citada, “tem contrabaixo, violino, trompa, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral”. sétimas, nonas e tem samba”. A bossa nova é samba e À época dessa declaração, a linha evolutiva a que não é samba: ela se distingue do samba tradicional se referia Caetano era apenas a que vinha do samba à mas, de certa forma, descende dele e ainda pode ser bossa nova; se, portanto, considerarmos o tropicalismo, vista como bossa nova do samba. O dado mais interesque surgiria no ano seguinte a essa declaração, como sante da bossa nova – não do ponto de vista estético, justamente a retomada da linha evolutiva da MPB, mas do ponto de vista puramente intelectual – era preentão essa linha terá de ser estendida da bossa nova ao cisamente a sua novidade. Enquanto toda música tropicalismo: a essa altura, isto é, em 1967, samba, popular brasileira – e praticamente toda música popubossa nova e tropicalismo serão os três pontos entre os lar, com a exceção notável da americana – queria verquais se terá traçado a linha da evolução da MPB; e, se como tradicional, a bossa nova se jactava de ser noem princípio, a mesma linha poderá projetar-se in- va: e, evidentemente, o era. Quando, portanto, Caetadefinidamente além do tropicalismo, rumo a uma série no, ao falar da “linha evolutiva da música popular futura e ainda indefinida de pontos consecutivos. brasileira”, se refere à linha que vai do samba à bossa Antes de prosseguir, preciso ressaltar que a nova, ele o faz não porque fosse essa a única linha evodeclaração de Caetano não tem nem nunca pretendeu lutiva possível – é evidente que outras linhas são ter caráter teórico, de modo e, já em 68, Gilberto Quando Caetano, ao falar da possíveis que ele não pode ser consideGil falava de Luís Gonzaga linha evolutiva da MPB, se como representante da evolução rado responsável pelos erros refere à linha que vai do ou equívocos em que eu acaso do baião – mas sim porque de incorra nas interpretações ou samba à bossa nova, ele o faz fato a bossa nova tinha sido, ilações que em seguida expoconscientemente, a mais ambinão porque fosse essa a nho. Jovem compositor, ele ciosa e bem-sucedida das utilizaúnica possível
ções “da modernidade musical... na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente, da música popular brasileira”. Outra provável crítica às palavras de Caetano acima citadas seria a que estigmatizasse, com o epíteto de “evolucionismo”, a própria aplicação da idéia de evolução à arte. Tratar-se-ia de uma crítica também equivocada. Não é verdade simpliciter que não haja evolução na arte. É concebível, por exemplo, que determinada arte, em determinado contexto ou tradição, evolua em riqueza ou complexidade morfológica, sintática, semântica etc. Por comodidade e clareza, doravante denominarei de evolução técnica esse tipo de evolução. Um dos casos mais incontestáveis de evolução nesse sentido é o da música ocidental, que vem do cantochão à polifonia, passando através do tonalismo e indo se dispersar no atonalismo, no serialismo e na música eletrônica. Não só é inegável que haja esse tipo de evolução no interior da polifonia e do tonalismo, mas, se considerarmos que cada período subseqüente mantém, ao menos enquanto possibilidade teórica, as aquisições dos períodos anteriores, de modo que, por exemplo, as regras da polifonia e do contraponto são válidas desde os séculos 13 e 14 até hoje (tendo sido retomadas e desenvolvidas pelo dodecafonismo), então pode dizer-se haver evolução, no sentido de complexificação, na música ocidental como um todo. Evidentemente, a complexificação de que falo não diz respeito às obras indi-
É concebível que determinada arte, em determinado contexto ou tradição, evolua em riqueza ou complexidade morfológica, sintática e semântica
viduais, mas à técnica a partir da Partindo-se da obra de primeiríssima grandeza de qual são produzidas as obras indi- João Gilberto, a hierarquia tradicional das artes, na viduais. Além disso, não se trata qual a música popular ocupa um lugar bastante de uma complexificação meramodesto, deve ser revista mente quantitativa ou extensiva, pois ela também (e principalmente) inclui um aspecto guarda. Fala-se, por exemplo, de uma “evolução da qualitativo ou intensivo. Assim, ainda que a música de pintura rumo à planaridade”. Na realidade, se há uma Machaut ou Gesualdo soem mais dissonantes do que progressão nesse sentido, ela não consiste numa evolua de Mozart, que lhe é posterior em alguns séculos, a ção técnica, mas numa evolução, ou melhor, numa elutécnica deste incorpora uma dimensão ausente à daque- cidação do conceito de pintura. Se a pintura se dirigiu les. Se não há a mesma complexidade contrapontística para a planaridade, foi ao abandonar a perspectiva. O em Mozart, trata-se de uma questão de escolha (sua caminho para a planaridade foi a demonstração prática e/ou de seu século, pouco importa), ao passo que o ho- de que a pintura sem perspectiva continuava sendo pinrizonte de resolução harmônica da música de Mozart tura: de que, portanto, a perspectiva não era essencial à não era sequer concebível por Machaut ou Gesualdo. pintura, tomada como uma das belas-artes. Diferentes Só é verdade que não há evolução na arte numa artistas, por diferentes caminhos, e empregando técniacepção muito precisa: a de que nada garante que a cas independentes umas das outras, contribuíram para obra mais evoluída nos sentidos já indicados seja tam- se chegar a esse discernimento. Tal contribuição consisbém artística ou esteticamente superior ou melhor do tia simplesmente (mas tome-se esse “simplesmente” que a menos evoluída nesses sentidos. Assim, é possí- cum grano salis) na produção de pinturas que, embora vel reconhecer que determinada canção bossa nova use sendo obras de arte, dispensavam a perspectiva. Fundamodulações, acordes e ritmos mais complexos do que mentalmente ela não foi, portanto, o resultado de uma os que eram empregados por determinado samba tra- evolução artística ou técnica, mas de uma elucidação do dicional, sem que isso implique tomar aquela por este- conceito da pintura que teve como resultado a negação ticamente superior ou melhor do que este. Por outro da necessidade, na produção de pintura, do emprego lado, o fato de que um artista possa produzir uma das técnicas artísticas – perspectivísticas – tradicionais. obra-prima a partir de recursos relativamente escassos Evidentemente, essa elucidação consiste na ampliação não significa que os artistas genuínos não desejem da extensão do conceito da pintura como arte, que deixa ampliar os seus recursos expressivos até onde não pos- de se identificar com a concepção elaborada na Renassam mais: mesmo sabendo que esses recursos não se- cença. A uma elucidação conceitual desse tipo pode rão garantias da produção de obras-primas, já que se- perfeitamente corresponder, ao invés de uma evolução, uma simplificação, ou melhor, uma voluntária “invomelhantes garantias não há. Independentemente disso, o fato de que se dá lução” técnica de determinada arte. A pintura moderna é uma arte excepcionalevolução na arte, em termos de complexidade, é verificável e até mensurável. De fato, é porque só ela pode mente apta para exemplificar a diferença e mesmo a ser considerada uma evolução real da arte que oposição entre a evolução técnica da arte e a elucidação Schönberg tem razão ao afirmar que “todo progresso, do conceito da arte. Na música, não se encontra a mestodo desenvolvimento conduz do mais simples ao mais ma oposição de modo tão claro, senão na segunda mecomplicado, e precisamente o mais recente desenvol- tade do século 20, com John Cage. Antes disso, são vimento da música, em virtude de sua complexidade concomitantes a evolução técnica e a elucidação do adicional, ainda aumenta toda a dificuldade e todos os conceito da harmonia. Desse modo, “a música do Ociobstáculos contra os quais o novo na música sempre dente”, como observa José Miguel Wisnik, referindotem que lutar”. À primeira vista parece, portanto, se ao historiador da harmonia Jacques Chailley, “se perfeitamente legítima a aspiração de Caetano a desenvolve ao longo da série harmônica, incorporando a cada fase um novo patamar que, incluído como disretomar a linha evolutiva da MPB. sonância ou como consonância parcial num período, torna-se consonância no momento seguinte. A ampliEVOLUÇÃO VS. ELUCIDAÇÃO Outra coisa inteiramente diferente são as “evo- ação da faixa daqueles intervalos aceitos como consoluções” não suscetíveis a esse tipo de verificação. Tenho nância iria seguindo historicamente os passos da série em mente grande parte da “evolução” da arte de van- harmônica”. Assim, o desenvolvimento da harmonia – 84 Continente Multicultural
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que, aliás, se deu simultaneamente ao desenvolvimento da orquestra – representou não só a evolução técnica da música, mas também, pari passu, a ampliação da extensão do próprio conceito de música. Entretanto, tal coincidência não é uma regra geral, mas uma exceção nas artes. De modo geral, é importante evitar a confusão teórica entre a evolução técnica e a elucidação do conceito de uma arte. A BOSSA E O CARÁTER DA MPB Se, depois dessas observações, voltarmos agora a examinar a “linha evolutiva” que antes tracei, o seu caráter nos parecerá mais duvidoso. Eu disse que essa linha se estende do samba à bossa nova, e desta ao tropicalismo. Ora, há sem dúvida uma evolução técnica, isto é, uma evolução no sentido de uma complexificação das estruturas musicais, quando se passa do samba à bossa nova, mesmo se essa passagem, constituindo, no final das contas, uma mudança não apenas quantitativa, mas qualitativa, não se reduz a uma complexificação; mas é evidente que não se pode dizer, sem mais, que se dê uma complexificação análoga na transição da bossa nova ao tropicalismo. Essa transição parece explicar-se melhor como a elucidação do conceito de música popular do que como uma evolução técnica. Examinemos a coisa mais de perto. Tomemos em primeiro lugar a bossa nova. Um fator extremamente importante a ser levado em conta quando se pensa na influência que ela exerceu é a qualidade de alguns dos artistas que a produziam, em particular a de João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Morais. Caetano já algumas vezes salientou o fato de que, para ele, João Gilberto é um dos maiores artistas
brasileiros. Em Verdade Tropical, ele conta que, à época do surgimento do tropicalismo, já considerava João Gilberto um artista maior, em todos os sentidos: “Um poeta, pelas rimas de ritmo e de frase musical que ele entretecia com os sons e os sentidos das palavras cantadas. Um criador revolucionário como Glauber Rocha sem os defeitos: sem mão pesada ou inábil. À altura de João Cabral e de João Guimarães Rosa, mas atuando para uma larga audiência, e influenciando imediatamente a arte e a vida diária dos brasileiros”. Com o tempo, o juízo de Caetano sobre João Gilberto se tornou ainda mais superlativo, de modo que, em algumas declarações, chega a afirmar que João Gilberto é o maior artista brasileiro de todos os tempos. Estará sendo hiperbólico? Creio que sim, mas pouco importa: o importante é ressaltar que João Gilberto é um artista de primeiríssima grandeza, cuja obra – como cantor e instrumentista – tem lugar entre as mais altas realizações artísticas do nosso tempo. Isso significa que tais realizações são possíveis no âmbito da música popular. Conseqüentemente, a hierarquia tradicional das artes, na qual a música popular ocupa um lugar bastante modesto, deve ser revista. Ordinariamente, “popular” se opõe, no contexto da música, a “erudito/a”. Quem qualifica de “popular” uma peça musical pressupõe conotativamente que essa peça possa ser excelente à sua maneira, mas que essa maneira é limitada: e que quanto mais os produtores e intérpretes da música popular reconhecerem essa limitação, melhor. Para semelhante modo de pensar, há duas maneiras diferentes, porém não excludentes, de conceber a música popular. Por um lado, ela pode ser tida como uma música que, ao contrário da erudita, se tenha atrofiado; uma música que, à margem da história, repita incessantemente os motivos e formas que conhece há tempos imemoriais. Por outro lado, ela pode ser considerada como, ao contrário, uma espécie de simplificação, diluição ou degradação eclética de determinadas formas de música erudita. É evidente que de fato existem esses dois tipos de música popular, e que eles se encontram mesclados das mais variadas maneiras e nas mais diversas proporções. Não é isso, porém, o que João Gilberto faz, nem é isso a bossa nova. Não é necessário provar, dado que estou falando justamente da novidade da bossa nova, que ela não consista numa repetição de motivos e formas imemoriais. Por outro lado, devo mostrar que ela não se reduz a uma simplificação, diluição ou degradação da música erudita. Fala-se, por exemplo, da influência de Debussy sobre Tom Jobim. Eu poderia responder que o in-
O compositor norteamericano John Cage
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ou da MPB. É por isso que nem a bossa nova nem música popular alguma precisam percorrer as etapas que a música erudita percorreu na sua evolução artística. Se ontem Debussy foi importante para tornar possíveis determinadas transformações da MPB, isso não quer dizer que amanhã ela deva se inspirar em Stravinsky ou Schönberg: amanhã ela talvez prefira Bach, por exemplo, ou a música modal dos pigmeus: ou talvez queira, pleonasticamente, encerrar-se em si própria. Seria cometer um grande equívoco, no que diz respeito à natureza da bossa nova e da música popular, pensar que, tendo incorporado intervalos de sétima e de nona, a bossa nova ou a MPB naturalmente devam evoluir de modo a incorporar, por exemplo, intervalos de 11ª aumentada e 12ª aumentada. Esse equívoco tem sido, de fato, cometido por alguns músicos que pretendem representar a vanguarda da música popular. Por outro lado, não seria menor o equívoco simetricamente inverso, isto é, o de supor que a música popular seja constitucionalmente incapaz de incorporar os ditos intervalos. De toda maneira, o caráter tendencialmente sintético do desenvolvimento da música popular, em oposição ao caráter tendencialmente analítico do desenvolvimento da música erudita, significa, entre outras coisas, que (1) não teria sentido uma “vanguarda” que promovesse a evolução técnica da música popular e que (2) a música popular de hoje não é o arremedo da música erudita de cinqüenta anos atrás.
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fluenciado não é necessariamente um diluidor daquilo que o influencia; a verdade, porém, é que não é essa a questão principal. No caso da bossa nova, de Tom Jobim ou de João Gilberto, o que tenho vontade de dizer é que basta ouvi-los para se saber que se trata de outra coisa muito diferente da música erudita, que possui outros recursos e cultiva outras ambições. Na verdade, creio que, enquanto a música erudita ocidental parece evoluir “ao longo da série harmônica” como resultado de um afã analítico, a constituição e a eventual progressão da música popular se dão como um empreendimento francamente sintético. Observe-se que não estou afirmando nem que a música erudita seja analítica nem que a música popular seja sintética: isso não teria sentido algum. A distinção que me interessa é a que se dá entre a natureza da história da música erudita e a natureza da história da música popular. O que estou querendo dizer é que, enquanto o desdobramento da música erudita se manifesta como a explicitação do que se encontra implícito naquilo que está a se desdobrar, a progressão da música popular se manifesta como o aditamento ao já dado de elementos que lhe são adventícios (o que não exclui a – alternativa ou concomitante – subtração de tais ou quais elementos ao já dado). Isso explica o fato de que, ao mesmo tempo que a evolução artística da música erudita ocidental parece, de certo modo, logicamente necessária, afigura-se problemática a própria aplicação da palavra “evolução” ao que se passa na música popular. Com efeito, qualquer transformação estrutural da música popular parece ser-lhe inteiramente contingente: assim como ocorreu, poderia não ter ocorrido; ou poderia ter ocorrido de outro modo. Acima afirmei que, na passagem do samba à bossa nova, manifesta-se uma evolução técnica, isto é, uma evolução no sentido de uma complexificação das estruturas musicais. Isso é verdade, mas essa complexificação não deve ser entendida como um desenvolvimento autônomo do próprio samba. Trata-se, sim, da incorporação – sem dúvida, felicíssima – ao samba de alguns componentes da música erudita moderna. Para se constituir, a bossa nova precisou desses componentes da música erudita e os utilizou. Embora, do ponto de vista de uma análise estritamente musical, isso possa ser interpretado como uma evolução, tal evolução artística não faz parte de nenhuma linha evolutiva prolongável. A bossa nova é, em última análise, um feito maravilhoso que poderia jamais ter sido realizado, pois não se encontrava inscrita nem nos inexistentes genes nem na inconcebível essência do samba
Enquanto a música erudita ocidental parece evoluir como resultado de afã analítico, a eventual progressão da música popular se dá como empreendimento sintético
musical na recriação, na renovação, no dar-um-passoà-frente da música popular brasileira. Ao afirmar a “linha evolutiva”, ele estava simplesmente se opondo àqueles que combatiam qualquer inovação na música popular. Ora, se eu estiver certo, a música popular não tem obrigação alguma: nem a de evoluir tecnicamente, como pensavam alguns vanguardistas, nem a de permanecer no ponto em que se encontra, como pensavam os defensores nacionalistas da sua “pureza”. Era contra estes que Caetano afirmava a “linha evolutiva”.
A cada instante, a natureza sintética e, portanto, contingente das transformações da música popular permite-lhe tanto permanecer no mesmo lugar quanto escolher entre inúmeros caminhos contingentes a seguir. Como mostrou a bossa nova, é possível que alguns desses caminhos configurem evoluções técnicas. Embora isso queira dizer que a música popular é capaz de conhecer evoluções pontuais, não significa que ela tenha uma linha evolutiva. É possível também que alguns dos caminhos da música popular representem uma elucidação do seu próprio conceito. Tentarei mostrar que tal é o caso do tropicalismo. Contudo, a maioria esmagadora das transformações da música popular não significa nem a sua evolução técnica nem a elucidação do seu conceito: são simplesmente diferentes combinações de elementos já dados. Eu disse, no início desta conferência, que a linha evolutiva a que se referia Caetano era a que vinha do samba à bossa nova, linha que, em princípio, poderia estender-se até o tropicalismo. Na realidade, não poderia haver tal linha. Se o que venho afirmando está correto, a transição do samba à bossa nova foi antes um acontecimento singular, sem prolongamentos. Nesse sentido, Caetano estava errado ao falar de “linha evolutiva”; mas, como já observei, a sua declaração não tinha pretensões teóricas e, se a lermos com cuidado, veremos que, desde o princípio, o que realmente lhe interessava era manter viva a possibilidade, aberta pela bossa nova, de utilizar a informação da modernidade
VANGUARDA VS. RESGUARDO Assim, numa entrevista concedida a Augusto de Campos, em 1968, Caetano afirma: “Quando cheguei ao Rio eu compartilhava de uma posição que se resguardara. Aos poucos fui compreendendo que tudo aquilo que gerou a bossa nova terminou por ser uma coisa resguardada, por não ser mais uma coragem. Todos nós vivíamos num meio pequeno, numa espécie de Ipanema nacional... E quando no Rio eu comecei a me enfastiar com o resguardo em seriedade da bossa nova, o medo, a impotência, tendo tornado a bossa nova justamente o contrário do que ela era, as coisas menos ‘sérias’ começaram a me atrair. E a primeira dessas coisas foi a que mais assustaria os meus colegas de resguardo: o iê-iê-iê. Passei a olhá-lo de outra forma...” A noção de “resguardo” é, aqui, de extrema importância. Resguardo é o ato pelo qual, por medo ou impotência, se resguarda, isto é, se põe a salvo, se defende, se reserva, se poupa, se isola alguma coisa. Em arte, o que se quer resguardar são, ostensivamente, sempre as formas: as formas de se fazer e as formas das coisas que são feitas. Parece haver um medo de que se destruam as formas habituais. Pois bem, é fácil destruir coisas individuais, mas difícil destruir formas. Para destruir uma forma artificial, seria preciso destruir não somente todos os exemplares da forma em questão, para que não houvesse mais paradigmas ou protótipos que pudessem ser imitados, como seria preciso também destruir a técnica (ela mesma uma forma) de produzi-los: ora, para destruir uma técnica seria necessário destruir toda memória (escrita ou não) dessa técnica. Isso é, em geral, praticamente impossível. Por isso, normalmente, nada é mais irracional do que o temor da destruição das formas. Na realidade, o que se teme não é tanto a sua destruição quanto a descoberta de que outras formas são possíveis: de que as formas habituais eram apenas habituais ou convencionais, e não naturais. É para se manter a ilusão de que determiContinente Multicultural 87
Capa do livro Verdade Tropical, de Caetano Veloso
nadas formas são naturais – ou, às vezes, sobrenaturais – que se tenta impedir a produção de formas alternativas. Teme-se, ademais, um efeito dominó na queda das formas: se algumas formas que se supõem naturais se revelarem apenas convencionais, que acontecerá com as demais formas convencionais? “Pois devemos nos resguardar”, diz Platão, “de mudar para uma forma nova de música, por ser algo extremamente arriscado. De maneira nenhuma se mexem os modos da música sem que se mexam algumas das mais importantes convenções sociais e políticas”. No pólo oposto ao de Platão, muitos artistas de vanguarda do século 20 denunciaram o perigo que representam a impotência e o medo para a evolução da sua arte. “A evolução”, dizia Kandinsky, referindo-se à arte em geral, “o movimento para a frente e para o alto só é possível quando o trajeto está desimpedido, ou seja, quando não há barreiras no caminho... O novo valor [artístico] é alvo de risos e invectivas”. Observese que a “evolução” a que se refere Kandinsky não consiste no que chamei de evolução técnica, mas sim no que denominei elucidação conceitual. As barreiras que essa elucidação deve remover são os pré-conceitos em conseqüência dos quais é excluída da arte em questão qualquer forma que não corresponda a determinadas especificações: por exemplo, preconceitos segundo os quais toda pintura autêntica é necessariamente realista ou representacional. Continuemos a lê-lo: “Trata-se do horror de viver... A alegria de viver é a irresistível e constante vitória do novo valor. Só aos poucos o novo valor conquista os homens... e, quando ele se evidencia em muitos olhos, esse valor, que foi inevitavelmente necessário hoje, é transformado em muro erigido contra o amanhã. Toda evolução, ou seja, todo desenvolvimento interior e toda cultura exterior são, por conseguinte, um remover de barreiras. As barreiras são constantemente criadas a partir dos novos valores, que deitaram abaixo as antigas barreiras. Vêse assim que o mais importante não é o novo valor, mas o espírito que nele se revela. E, mais ainda, a liberdade necessária para essa revelação. Vê-se assim que o absoluto não deve ser buscado na forma... A forma é sempre temporal, ou seja, relativa, pois nada mais é que o meio, hoje necessário, através do qual a revelação [artística] se manifesta, ressoa”. O parentesco da posição de Caetano com a de Kandinsky é óbvio. Ambos consideram a transformação da arte um valor positivo. Kandinsky ataca o horror de viver que erige muros contra o amanhã; Caetano ataca a falta de coragem, o medo e a impotência que
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levam a bossa nova a se resguardar; Kandinsky evoca a liberdade necessária para remover barreiras; Caetano confessa sentirse atraído pelas coisas menos sérias e que assustariam os seus colegas da bossa nova; quando, finalmente, Kandinsky elogia a alegria, como não pensar no próprio título da canção que lançou o tropicalismo? ELUCIDAÇÃO CONCEITUAL Em seu livro Verdade Tropical, Caetano descreve o processo minuciosamente planejado pelo qual foi construída a canção Alegria Alegria. Em determinado ponto, depois de contar que, inicialmente, tinha contemplado convidar a banda de iê-iê-iê de Roberto Carlos, o RC7, para acompanhá-lo na gravação (coisa que acabou não fazendo “mais por timidez do que por opção estética”), ele explica que era mais condizente com a estratégia tropicalista “utilizar uma ou outra sonoridade reconhecível da música comercial, fazendo do arranjo um elemento independente que clarificasse a canção mas também se chocasse com ela”, do que fazer um esforço conjunto “no sentido de encontrar um som homogêneo que definisse o novo estilo”. “De certa forma”, continua ele, “o que queríamos fazer equivalia a ‘samplear’ retalhos musicais, e tomávamos os arranjos como ready-mades. Isso nos livrou de criar uma fusion qualquer, uma maionese musical vulgarmente palatável”. A exclusão da tentativa de encontrar um som homogêneo, à maneira da bossa nova, mostra a novidade radical do tropicalismo, situando-o não no âmbito da evolução técnica, mas no da elucidação conceitual. Isso é evidenciado, na recapitulação de Caetano, pelo emprego do conceito de ready-made, que constitui, como se sabe, um dos marcos da arte conceitual. O interesse pelo iê-iê-iê mostra que não passava mais – se é que já houvesse passado – pela cabeça de Caetano que a bossa nova projetasse uma linha de evolução técnica à qual ele pretendesse tentar dar continuidade. “Eu tinha consciência”, afirma ele, no parágrafo citado de Verdade Tropical, “de que estávamos sendo mais fiéis à bossa nova fazendo algo que lhe era oposto. De fato, nas gravações tropicalistas podem-se encontrar elementos da bossa nova dispostos entre outros de natureza diferente, mas nunca uma tentativa de forjar uma nova síntese ou mesmo um desenvolvimento da síntese extraordinariamente bem-sucedida que a bossa nova tinha sido”.
FOTO: ALCIYR CAVALCANTI / O GLOBO
Os tropicalistas estavam utilizando a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da MPB Os tropicalistas estavam “sendo fiéis à bossa nova fazendo algo que lhe era oposto” não porque assim “preservariam” a “pureza” da bossa nova. Pensar isso seria esquecer que a própria bossa nova havia sido possível porque os artistas que a produziram foram capazes de “violar” a “pureza” do samba. Ora, se a própria “pureza” do samba não passa de uma quimera, que dizer da “pureza” da bossa nova? Ademais – e o que é mais importante – uma tentativa de “desenvolver” a bossa nova, fosse bem ou malsucedida, não arranharia em nada a síntese de João Gilberto/Tom Jobim, que continuaria a existir do mesmo modo, assim como esta não havia em nada arranhado a síntese anterior, isto é, o samba pré-bossa nova, que existe até hoje. Que os tropicalistas estavam fazendo algo oposto, de certo modo, à bossa nova é uma evidência tanto para quem ouve as canções tropicalistas quanto para quem lê a descrição, que acabo de citar, da construção de Alegria Alegria, ou para quem assiste ao filme de alguma apresentação tropicalista em algum programa de TV. Por que, então, Caetano considera essas canções ou performances como “fiéis à bossa nova”? É que, ao fazê-las, os tropicalistas estavam precisamente utilizando a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passoà-frente da música popular brasileira. Ora, desde o princípio, como já vimos, era nesse ponto que Caetano pretendia emular a bossa nova. De qualquer maneira, é evidente que a novidade introduzida por Caetano não se encontra em desenvolver do ponto de vista técnico a bossa nova, mas sim na elucidação conceitual da MPB. Ele o faz ao produzir canções que possuem duas qualidades: (1) ao invés de seguirem os modelos tradicionais da música brasileira (inclusive os da bossa nova), preferem experimentar coisas novas e “abrir as janelas/pra que entrem todos os insetos”, como ele diria em Janelas Abertas # 2; e (2) são consideradas por ele mesmo como pertencentes à MPB, e reconhecidas como tais pelo público. Sem a segunda qualidade, as canções que ele produzisse, como o iê-iê-iê, não chegariam a afetar a MPB, que manteria o seu resguardo. Ora, o fato é que as canções tropicalistas não adquirem todo o seu sentido e a sua força senão quando são consideradas como modificação, agitação e transformação revolucionária
da (genitivo objetivo e subjetivo) MPB, com a qual se confundem no momento mesmo em que dela tomam distância para comentá-la. O público brasileiro aceita essas canções como pertencentes à MPB por reconhecê-las como suas e por amá-las e admirá-las: “O que bem amas é tua herança verdadeira/o que bem amas não te será arrancado”. As músicas tropicalistas são brasileiras demais e boas demais para serem excluídas da MPB. Em suma, a elucidação conceitual efetuada pelo tropicalismo mostra que a MPB não tem limites préestabelecidos, pois a MPB não tem essência. Tal elucidação destrói as bases sobre as quais se consideravam como essencialmente ou privilegiadamente brasileiros determinados gêneros ou formas, em detrimento de outros; por outro lado, ela proporciona ao compositor/ cantor uma abertura sem preconceitos não só a toda a contemporaneidade como também a toda a tradição, de um modo que não era sequer concebível quando imperava a idolatria ou o fetichismo desta ou daquela forma tradicional. É por isso que o tropicalista é capaz de trazer à tona gêneros, canções e cantores que se encontravam condenados ao ostracismo pelos representantes involuntariamente provincianos do bomgostismo. Mas um reparo precisa ser feito à afirmação de que o tropicalismo, como a bossa nova, utilizou a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira: é que não era apenas a informação da modernidade musical que ele trazia para a MPB, mas a informação da modernidade simplesmente: a informação da modernidade musical, poética, cinematográfica, arquitetônica, pictórica, plástica, filosófica etc. Nesse contexto, a informação da modernidade deve ser entendida como a desfolclorização e desprovincianização da música popular, isto é, como a sua inserção no mundo histórico em que se desdobram as artes universais: nada menos do que a proclamação da sua maioridade.
Para Caetano, João Gilberto é um criador à altura de João Cabral e Guimarães Rosa
Antônio Cícero é filósofo e poeta
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MARCO ZERO
Os políticos brasileiros sempre reservaram à cultura o último prato do banquete político
Cultura, política e rabinho de lagartixa
A
esta altura dos conchavos, os candidatos já devem ter divulgado seus programas de governo. Ainda não os tenho nem sinto falta deles, pois são péssima ficção científica. O que me importa são as equipes a serem formadas pelos eleitos, depois das negociatas coligativo-partidárias. Garantida a vitória, os seres eleitos, noite adentro, retalham a lagartixa do poder em cabeça, pescoço, corpo e patas (ah, ia-me esquecendo, e rabinho), para o banquete privadíssimo de quatro ou oito anos. Na Fundação Joaquim Nabuco, eu e o hoje aclamado cientista político Roberto Aguiar chamávamos de “rabinho de lagartixa” à parte reservada ao social no planejamento governamental. Sei, hoje, que quem fica com o rabinho no prato não é o “social” dos políticos (saúde, educação, segurança...), mas apenas o que consideram um pingente dele, a cultura (enquanto Arte, Artesanato e Folclore). A explicação para que a cultura seja tida como um dispensável apêndice dos programas de governo (à direita e à esquerda) é que o Ministério e as Secretarias de Cultura sempre foram, senão um quarto de despejo, sem dúvida uns meros depósitos improAlberto da Cunha Melo 90 Continente Multicultural
ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL
visados para abrigar todo tipo de gente indicada por aliados ressentidos com a partilha do poder, ou para servir de sinecura a amigos e parentes do governante. A indicação do equivocado “eventólogo” Francisco Weffort para o Minc, pelo seu amigo há quarenta anos, FHC, é um bom, ou melhor, um mau exemplo do uso de tal prebenda. Juntase a ele toda uma legião de secretários ditos da cultura neste país. Para os políticos, o gerenciamento cultural é coisa fácil, que não requer experiência nem treinamento, reduzindo-se à mera organização de eventos de massa, eleitorais. E, para cuidar disso, qualquer indicação partidária serve, pouco importam quantas viagens, hotéis estrelados e diárias gordas o dito-cujo inventará para si nos quatro anos de sua dolce vita. Enquanto, geralmente, para o Ministério ou Secretaria da Fazenda é escolhido um economista; para a Infra-Estrutura, um engenheiro; para a Justiça, um jurista; para a Educação, um educador; e, para a Saúde, um médico, para a Cultura, bem... Dirá o chefe da nação ou do estado que não existe um profissional com essa especialização. Logo, convenientemente, pode ser qualquer um. Em sua rápida passagem pelo Minc, Celso Furtado preocupou-se com isso e lembrou que a Europa preparava profissionais para o gerenciamento cultural. Aqui, no Brasil, nem se criam cursos para a administração do setor nem se aproveitam os poucos nomes com longa experiência em planejamento, projeto e política culturais. E o resultado pela subestimação da área cultural é desastroso para o país. Em vez de investir em uma sólida política cultural voltada para o médio e o longo prazos, privilegiando instituições, atividades e processos, o poder público vem disputando com empresários e cervejarias o patrocínio de espetáculos de rua, desses que são ridicularizados pelo cinema norte-americano em cenas que retratam os países atrasados. Preconceitos ianques à parte, esse não é o papel do Estado no campo da cultura, mas sim o de expandir as oportunidades.
Para isso, é necessário descentralizar os recursos destinados à atividade cultural, como fazem a Inglaterra, com os seus “Arts Centers”, e o México, com suas “Casas de Cultura”. E criar centros multiplicadores de produção cultural (popular e erudita), tais como escolas de arte, artesanato e folclore, sob a orientação dos próprios artistas, artesãos e chefes de folguedo. Fazer, em suma, o contrário do que fazem os bancos: dar apoio a quem dele precisa. Quando se sabe que 85% dos recursos gerados pelas leis de incentivo à cultura estão concentrados no Rio e em São Paulo, só resta lamentar que a lógica da concentração de renda tenha se tornado hegemônica até nos setores mais elevados do espírito humano, com o beneplácito ou a omissão das nossas “carcaças gloriosas”, como diria o velho Grieco. Alguns endinheirados críticos da cultura brasileira, para descomprometer o Estado, costumam dizer bombasticamente que nem Dante nem Shakespeare nem Goethe precisaram do governo para criar suas obras-primas. Pura besteira. Se a Arte dependesse apenas dos gênios, não seria uma instituição social básica da humanidade, uma prática coletiva que vem atravessando milênios nos cinco continentes. Não só os gênios, mas também os pequenos e médios artistas fazem a Cultura, nesse seu sentido restritivamente estético. Voltando aos próximos eleitos, a pergunta que faço é a seguinte: já pensaram nas sobras humanas da campanha que ficarão com o rabinho de lagartixa, ou seja, o setor cultural, depois do esquartejamento do poder? Lembrei-me, agora, de que o Ministério e as Secretarias de Cultura ora são rebaixados de status, ora são extintos ou incorporados. Na verdade, os políticos não sabem o que fazer com eles, depois que se tornaram imperativos constitucionais. O importante é que eles, como os rabinhos das lagartixas, quando decepados, voltam a crescer. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo
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FOTOGRAFIA
O olhar tropical de um francês Na maior mostra individual de um fotógrafo realizada no Brasil, 600 imagens de ambientes mágicos, com sons de batuque, objetos de arte africanos e uma beleza visual extraordinária
Adjaweré – Benin 1948 – 1956
FOTOS: REPRODUÇÃO / PIERRE VERGER
Felipe Porciúncula
O
Olhar Viajante de Pierre Fatumbi Verger, título da exposição que comemora o centenário do nascimento do fotógrafo francês, traduz a essência do seu trabalho. Num ambiente de magia, com sons de batuques, objetos de arte dos ancestrais africanos e uma beleza visual incomparável, são mostradas cerca de 600 imagens. É a maior mostra individual de um fotógrafo realizada no país e é fruto de uma seleção de mais de 62 mil negativos que reúnem os cinqüenta anos de viagem de Verger pelo mundo. Inaugurada no Rio de Janeiro, em abril, ela já passou por São Paulo, e, até março de 2003, seu
roteiro inclui Brasília, Salvador, Recife, São Luiz e Belém. A parte mais significativa da exposição é dedicada aos seus estudos etnográficos de Verger na África negra e na Bahia, mas não se resume a isso. “A nossa intenção é pôr em discussão a obra dele como antropólogo da imagem. Da sua forma especial de perceber o outro. É uma obra muito centrada na pessoa. O grande foco é o ser humano”, afirma Raul Lody, curador da exposição. A montagem foi feita a partir de uma pesquisa minuciosa dos escritos de Verger sobre suas interpretações do universo multirracial. “Procuramos a
Penitenciária, Itamaracá Pernambuco – 1947
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Garanhuns, Pernambuco – 1947
sua voz e a voz da sua imagem. As próprias cartas e manuscritos vão apontando para algumas direções. Tanto é assim que as legendas das fotos criadas por ele foram mantidas”, lembra Lody. Na mostra há um painel formado com imagens do Brasil e da África, no qual se vêem situações semelhantes, seja nos rituais, nos trajes ou nas próprias expressões dos tipos humanos. Essa influência mútua entre os dois povos também foi tratada por Verger em seus livros. Em Fluxo e Refluxo, considerado a sua maior obra, o autor descreveu as relações comerciais, tratou das revoltas e rebeliões de escravos, das formas de emancipação, das condições de vida, da legislação, do retorno à África e da vida dos descendentes de brasileiros. “Muitos dos pretos, ao voltarem libertos 94 Continente Multicultural
para a África com costumes brasileiros, fizeram lá uma espécie de Brasil, assim como se formou aqui uma espécie de África”, dizia Verger. Esse trabalho consumiu cerca de vinte anos de pesquisas e foi reconhecido como de grande valor pela Universidade de Sorbonne, de Paris, que, em 1966, concedeu ao fotógrafo o título de Doutor em Estudos Africanos. O trabalho foi publicado em 1968, em francês, posteriormente traduzido para o inglês e o português. Um marco na vida do fotógrafo francês é a sua vinda em definitivo para a Bahia, em 1946. É quando ele escolhe a cultura negra como seu tema principal. Antes disso, foram quatorze anos em que ele viajou o mundo com um olhar que já denotava seu interesse de pesquisador, quando fazia fotos para jornais, agências de fotografias e centros de pesqui-
Um marco na vida de Pierre Verger é a sua vinda definitiva para a Bahia, em 1946. É quando ele escolhe a cultura negra como seu tema principal
sas, com sua Rolleyflex de 1932 (que está na exposição). Nessa época, andou pela Ásia, Antilhas, Estados Unidos, México, Guatemala e América do Sul, tendo trabalhado para o Museu de Etnografia de Paris e o Museu Nacional de Lima, no Peru. Sua mudança para o Brasil fez com que ele mergulhasse no mundo do candomblé. Existe até quem diga que sua escolha por Salvador se deve à leitura do livro Jubiabá, de Jorge Amado, que já era seu amigo nessa época. Apesar de Verger negar, o universo tratado no livro é justamente o que o atraía. Talvez por isso é que, nessa cumplicidade, Dorival Caymmi e o artista plástico argentino Carybé vieram a se tornar seus grandes amigos na busca das raízes africanas da Bahia (inclusive Carybé ilustrou seu livro Lendas Africanas dos Orixás). Amado, Carybé, Caymmi e Verger tinham em comum a proteção espiritual de Mãe Senhora, do candomblé Ilê Axe Apô Afonjá, onde se encontravam com freqüência. A Bahia, sem dúvida, teve uma importância fundamental na obra de Verger. Uma prova disso é que, em 1988, ele próprio resolveu transformar sua casa em Salvador na sede da Fundação Pierre Verger (FPV), que, com sua morte, em 96, tornou-se a mantenedora de todo o seu acervo. São fotos, livros, filmes, vídeos, coleções de documentos, correspondências e objetos de arte ritual. Além do catálogo da exposição, um outro lançamento editorial da FPV, previsto para este ano, é o livro que reúne as fotos produzidas por Verger para a revista O Cruzeiro, onde trabalhou a partir dos anos quarenta, como fotojornalista. Dois anos depois de se mudar para o Brasil, Verger ganhou uma bolsa de estudos do IFAN – Instituto Francês da África Negra, para ir ao Senegal. O resultado disso é que ele produziu dois mil negativos e textos antropológicos sobre as suas observações de autodidata. Passou, então, a fazer essa ponte área entre a Bahia e a África, particularmente o Golfo de Benin. Em uma dessas viagens, foi batizado com o nome de Fatumbi, que significa “renascido graças ao Ifá”. Na cultura ioruba, Ifá é o deus da adivinhação, cujo culto é celebrado pelos babalaôs que usam um colar chamado “opelé” para fazer jogos de adivinhação. Verger foi iniciado nesse culto em 1952, tornando-se um dos últimos babalaôs no Brasil. Esse fato iria marcá-lo para o resto da vida, tanto que o fotógrafo incorpora esse título a seu próprio nome.
Acima: Harlem, New York – 1934. Abaixo: Bom Nome, Pernambuco – 1947
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Arquitetura Recife, Pernambuco – 1947
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Como forma de homenagear Verger, a exposição será mostrada em todos os locais onde ele captou imagens. Mas como parte de um só mundo
Carnaval Recife, Pernambuco – 1947
Bapuré, Togo
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Rosto Pequim, China – 1934
Uma instalação foi criada em forma de círculo com mais de 200 fotos. Ininterruptamente, uma luz circula por todo o espaço visual, focando uma seqüência de imagens. Ao entrar, o visitante tem a sensação de estar envolvido por um universo de expressões humanas. Seguindo adiante, o caminho é trilhado por fotografias de negros, em várias partes do mundo, e, principalmente, são mostradas as diferentes negritudes das cidades brasileiras onde isso é mais presente. Há uma grande mesa, montada com objetos do candomblé, sobre a qual é possível folhear álbuns com imagens que revelam essas semelhanças e diferenças. Como forma de homenagear o próprio Verger, a exposição deverá ser mostrada em todos os locais onde o fotógrafo francês captou imagens. Mas todas essas imagens estão sincretizadas de maneira que não se consegue vê-las separadamente, mas como parte de um só mundo. “A sensibilidade e o humanismo são o seu grande legado”, reconhece Lody. Felipe Porciúncula é jornalista
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Cigana Grenade Espanha – 1936
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ENTREMEZ
Pobreza, mediocridade e bocejos
E
u sou do tempo da folha-corrida da polícia. Um documento sem muito significado hoje, mas que nos anos de ditadura era um verdadeiro terror. A Secretaria de Segurança Pública emitia o tal documento. Para se ter acesso à Universidade, ou qualquer outro serviço público, precisávamos comprovar os nossos bons antecedentes políticos e sociais. Sempre experimentei um pânico quando solicitava a minha folha, numa delegacia. E se eu tivesse cometido algum crime de que nem me lembrava? Sou sonâmbulo e tenho as minhas pulsões. E também costumava pensar e expor com segurança os meus pontos de vista. Quem me
Para que não se desperdice a larga experiência burocrática do Império à Revolução, sugiro que se reinstitua a folhacorrida da polícia para os candidatos políticos garantia a minha absoluta idoneidade? Naqueles tempos nebulosos éramos sempre culpados, até prova em contrário. De qualquer coisa, por menor que fosse. Como todo católico, que no ato de contrição confessa ter pecado muitas vezes por pensamentos, palavras e obras. A folha-corrida era o nosso Auto de Fé.
Ronaldo Correia de Brito 100 Continente Multicultural
FOTO: REPRODUÇÃO / AE
Cena do espetáculo O Lago dos Cisnes, pelo grupo de balé Kirov
Um amigo foi preso por equívoco. Também foi espancado por equívoco e penou para conseguir uma folha sem mácula, que lhe desse direito ao ingresso na Universidade. Humilhavam-nos todos os anos para fornecerem a prova da nossa inocência. Humilhação maior só mesmo o atestado de que éramos pobres na forma da lei. Parece mentira, mas existia esse documento perverso, exigido para se ter acesso a bolsas de estudo e à residência universitária. Aos juízes, bispos e delegados se outorgava o poder de afirmar a nossa penúria. Quem morava na Casa do Estudante, anualmente, tinha de dobrar-se diante de um meritíssimo, ou beijar o anel de algum bispo para merecer a sua assinatura, numa folha de papel datilografada, com os dizeres: “Atesto que fulano de tal é pobre na forma da lei”. Por sorte, quase todos os cidadãos brasileiros se tornaram miseráveis fora da lei, e esse atestado foi proscrito. Agora, basta provar que é brasileiro. A seleção para a Casa do Estudante Universitário não se fazia por critérios intelectuais, por aptidões científicas, filosóficas ou artísticas. Escolhiam-se os não-transgressores, sem vocação política e que preferentemente não pensassem. Nas longas entrevistas com uma assistente social bocejante, representávamos o papel de bons rapazes, educados nos princípios cristãos, preocupados com um futuro de sucesso financeiro. Repetíamos um texto decorado, que não feria os princípios da Revolução de 64. Deveríamos parecer medíocres e ser pobres na forma da lei. A história recente do Brasil já rendeu canções de protesto, versos camuflados, torturas, mortes, e ainda provoca revolta ou tiradas de humor bufo. De tão absurda parece mentira. Leon Tolstoi, no livro Guerra e Paz, arrisca-se a falar do caráter de alemães, france-
ses, italianos, ingleses e dos próprios russos, pelo traço de segurança que cada um expressa. O russo, afirma, está seguro de si mesmo porque não sabe de nada e de nada quer saber, e porque não crê que se possa conhecer perfeitamente o que quer que seja. Um pouco parecido conosco. O talento para a farsa já nos rendeu muitas definições de brasilidade, mas ainda precisamos inventar epítetos e conceitos que melhor definam o caráter nacional. Para que não se desperdice a larga experiência burocrática acumulada do Império à Revolução, sugiro que se reinstitua a folha-corrida da polícia para os candidatos políticos. Que eles provem bons antecedentes, total isenção nos desvios de verbas, tráfico de droga e outras falcatruas. E que, ao final de cada mandato, apresentem um atestado de pobreza pela forma da lei, onde não constem as gordas contas bancárias nos paraísos fiscais. E que provem, também, que o atestado não foi uma negociata com juízes, bispos e delegados de polícia. Assim, essas jóias da burocracia nacional, que serviram para transformar os oprimidos em doidos, voltarão ao pleno uso. E a nossa ridícula censura, responsável por comédias mais hilariantes que os quadros do Casseta e Planeta, como a proibição do balé russo O Lago dos Cisnes, fica representada pelos revisores de texto. Nesses cidadãos sobreviveu o espírito dos censores. Para eles, devemos escrever artigos balofos e previsíveis, de frases bem polidas e palavras rebuscadas. O sonho de todos eles é corrigir os erros do Grande Sertão:Veredas. Será a glória. Aí, quem sabe, teremos a grande “obra” nacional. Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor
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ÚLTIMAS PALAVRAS
O que há nas soleiras deste Brasil?
H
á uma campanha eleitoral em andamento. Até quase fins do século 19 quando o País ainda sobrevivia aos encantos da realeza, éramos fortes e respeitados “primeiro-mundistas”. Somente Pernambuco pagava quase a metade das nossas dívidas internas, e abocanhava, junto com São Paulo, as maiores trocas no comércio da importação e exportação. Comíamos, bebíamos e vestíamos o que havia de melhor das finas hostes européias. Aí veio a República. Cresceram os interesses políticos. Assobiavam anarquias. Bilac fazia versos nem tanto satânicos. Nabuco despontava, com sua palavra de ordem, nas tribunas oficiais e populares contra a escravidão, ecoando seu grito até nos escanchados sertões do Araripe de Bárbara de Alencar (primeira mulher brasileira a se aninhar contra o sofrimento dos negros). Benjamim Constant endossava o coro libertário. Nosso último imperador se mandava para Portugal, abarrotado de sentimentos nas caçapas do colete, após os militares tomarem o poder político, com Deodoro traindo a Corte e sendo, depois, deposto pelo vice Floriano. Uma zorra parcial, pois, ao romper de 1900, a cultura brasileira abria o maior dos sorrisos nervosos da alegria, com o hoje ainda imortalizado Machado de Assis contando e editando Dom Casmurro. Abriam-se portas para um povo festeiro e trabalhador. Só que a tal República cantada, no compasso de uma liberdade de aparência democrata, esbugalhava os olhos da ganância pessoal dos políticos e latifundiários que, num extravagante desejo de enganar o povo, desenvolviam a cultura da corrupção intrapoderes comerciais e eleitorais, com extensivo raio de ação, ensejando todos os seus aurículos a levar vantagem em tudo. Aí caímos do pedestal para um conciliador “segundo-mundismo”, com todo direito à liquidação extrajudicial, numa promoção de remexer as pretensões estrangeiras. Pois, muito bem. Civis e militares começaram a se estranhar com golpes e quarteladas, reações e conformações de ambos os lados. Tudo ótimo quando na-
da ainda estava mal. E foi só Vargas pegar o leme singrando o trabalhismo populista, para logo baixarmos para o “terceiro-mundismo”. Veio a 2a Grande Guerra, e depois de muita “maria-me-leva”, “vento-nos-traz”, recebemos milhares de gringos norte-americanos para defender nossa costa marítima contra o famigerado nazismo, que então se espalhava além-mar. O general Ike assume a presidência dos EUA e solta a frase de uma doçura impactuante: “Precisamos proteger nossos irmãos de todo o continente americano... Sem eles nada seremos”. Dali, nunca mais passamos de um país em desenvolvimento, depois emergente, e mais adiante vindo a receber o título honroso de “oitava economia do mundo”. A política continua sendo uma arte tão difícil quanto divertida. Portanto, meus caros brasileiros de todos os santos, agora é preciso mais cuidado ao votar, pois, Ortega Y Gasset – para quem o homem é a sua circunstância –, teorizou, quiçá Foucault, a nos ensinar a necessidade de o poder ter sempre o contrapoder, para que os vencedores tenham uma governabilidade não tanto plena, nos deixando sempre atentos para sabermos o que há nas soleiras do nosso Brasil – e porque ele nunca mostrou sua força. Vai ser uma enrascada danada de doida, sem “a rebelião das massas”. Rivaldo Paiva é escritor
Rivaldo Paiva 104 Continente Multicultural