Continente #022 - Drummond

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CONTEÚDO

Continente Multicultural

Especial – Drummond No centenário de um dos grandes poetas brasileiros, histórias de seu cotidiano e a importância de sua obra

Literatura – Nobel Mais uma vez cria-se a expectativa em torno do nome que receberá o maior prêmio das letras

Memória – Jorge de Lima Há 50 anos era publicado o livro Invenção de Orfeu, um marco da poesia brasileira de todos os tempos

Resgate – Qorpo Santo Aforismos satíricos inéditos do autor gaúcho criticam a sociedade de sua época

Ferreira Gullar – Universo cultural A obra de arte é o lugar não apenas do fazer estético, mas também do fazer único

Artes plásticas – Cópias Félix Farfan se apropria de quadros do passado como forma de exercício e também de homenagem

Conversa franca – Susan Sontag A escritora americana mostra por que é uma das mais instigantes intelectuais da contemporaneidade

Marco zero – Definições e metas Sem que se torne claro o conceito de cultura é difícil fazer um planejamento concreto na área

Estética – Nazismo Em duas obras-primas a cineasta Leni Riefenstahl conseguiu traduzir os ideais estéticos de Hitler

Cinema – Mostra BR A diversidade é a marca maior desta exibição de filmes que não passaram no circuito tradicional

Sabores pernambucanos – Fogão A preferência pelo sabor da carne cozida foi sempre generalizada entre os homens

Opinião – Dilemas pós-modernos As relações entre a existência no pós-modernismo e o complexo conceito de simulacro

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Poeta Carlos Drummond de Andrade Ilustração: Cau Gomez

Política – Moniz Bandeira A prisão, o exílio e os livros de um estudioso da política nacional em conexão com o mundo

Comportamento – Imigrantes Seguindo Tom Jobim, para quem a saída para o Brasil é o aeroporto, nordestinos vão para o Sudeste

Radialismo – Assis Ângelo Programa “São Paulo Capital Nordeste” tem repente, música, conversa, entrevista e festa

Música – Silvério Pessoa CD Micróbio do Frevo traz para o presente repertório carnavalesco de Jackson do Pandeiro

Diário de uma víbora – Joel Silveira Cronista revela sua inveja: queria ser Papa, Presidente da Fifa ou Diretor Geral do Louvre

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Cultura – Açúcar Exposição reafirma a importância da cana-de-açúcar para a economia pernambucana

Entremez – A aldeia e o mundo Alimentamos um sonho de criar uma arte universal a partir de matrizes brasileiras

Últimas palavras – Irresponsabilidade A maldade, a raiva e a fome, mais a má legislação, estão gerando toda esta violência

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Arte Manoela Leão e Luiz Arrais Editoração eletrônica Ilustradores André Fellows Zenival e Mascaro Tratamento de imagem Nélio Câmara Secretária Tereza Veras

Para o mundo Já devia uma manifestação aos produtores da magnífica revista mensal Continente Multicultural, que, a todo mês, nos alegra com sua chegada. Desta vez, não adiei o propósito. Ver o genial Suassuna (edição de agosto) ou mesmo ler sobre ele é algo que transcende um simples momento. Ainda tinha Patativa de Assaré, este fenômeno feito gente, para completar a densidade da aguardada publicação. Continente Multicultural, sem qualquer concessão, é Recife falando para o mundo... José Maria Couto Moreira – Diretor Geral da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais – Belo Horizonte – MG

Revisão Rodrigo Pinto

Colaboradores Affonso Romano de Sant’Anna, Alberto da Cunha Melo, Cau Gómez, Cristiana Tejo, Denise Espírito Santo, Felipe Porciúncula, Fernando Monteiro, Ferreira Gullar, Geneton Moraes Neto, Joel Silveira, José Castello, Luciano Trigo, Marcelino Freire, Marco-A Aurélio de Alcântara, Maria Lectícia Cavalcanti, Renata Victor, Ronaldo Bressane, Ronaldo Correia Brito, Rivaldo Paiva, Sebastião Vila Nova, Tatiana Resende, Weydson Barros Leal Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Cláudio Manuel, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Eliseu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 / e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: fone:3217.2551 / fax: 3222.4130 E-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Informações: informacoes@continentemulticultural.com.br Publicações: publicacoes@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Admiradora Tenho 18 anos e gostaria de agradecer a alegria que tive esse mês... Simplesmente eu amo Recife e amo Pernambuco. Sou uma grande admiradora de Ariano Suassuna e pude ler o belíssimo artigo que vocês prepararam com ele. Acho a revista uma coisa única e faço questão de tê-la em casa. Hei de realizar um sonho: conhecer Ariano e dar um poema que fiz para ele. Parabéns pelo sucesso de vocês. Ana Isabel Frazão de Carvalho – Recife – PE Hino à cultura Continente Multicultural é um hino à cultura, às tradições, e às belezas naturais de Pernambuco, além de ser ainda um banho de saudade a pernambucanos emigrados como eu. Sua publicação cultural, pelos sucessivos números que conheço, é um exemplo de tenacidade, de competência e de bom gosto que patenteia a


CARTAS capacidade criativa dessa terra e de sua gente. Traduzida agora em espanhol, ganhará, sem dúvida, novos horizontes e novos admiradores. Parabéns. Evanildo Cavalcante Bechara – Academia Brasileira de Letras – Rio de Janeiro – RJ

assíduo e comprador, isto é, continuo leitor assíduo, mas “comprador” (depois da on line)... sei não. Aproveito o ensejo e sugiro: que tal um livro publicado ao estilo antigo, folhetim? Géber Romano Accioly – Recife – PE

Diário Parabéns pela revista! O Diário de uma Víbora do jornalista Joel Silveira é de um humor ácido e eficaz; a matéria com Ariano Suassuna foi motivo de comentário durante dias com meus colegas de trabalho. Por fim a entrevista com Chico César estava deliciosa, só não entendi a foto de Caetano Veloso na matéria. Na próxima, quando houver alguma notícia sobre Caetano coloquem a foto de Chico, só para compensar. Novamente parabéns! Arthur Araújo – Recife – PE

Presente Pronto! Agora estamos combinados: é seu aniversário? Pois, então, tome cá este presente – a revista Continente Multicultural. Ela serve para todos os (bons) gostos, para todas as raças, para todos os homens e as mulheres de bom senso, muito riso e enorme vontade de ser feliz. Acabei de ler a revista número 20 e fiquei em estado de graça. Além de todos os artigos literários de ótima qualidade, há uma doçura de texto com sabor de “quero mais”: parabéns a Lectícia Monteiro Cavalcanti – seus textos cheiram a “suco de caju, mangaba e cajá”. Venusa Sá Leitão – Recife – PE

Fã Sou fã da revista e torno-me cúmplice da alegria de ver nas bancas uma revista com excelente nível cultural e de indiscutível qualificação profissional. É com grande pesar que recebi a notícia de que a revista não publica mais eventos culturais que acontecem no nosso estado, é uma grande perda. [Por razões óbvias de valorização do que acontece em Pernambuco.] No entanto, vocês poderiam fazer uma matéria sobre o teatro infantil desenvolvido no estado. Manoel Constantino, ator, diretor, jornalista e responsável pela Agenda Cultural da Fundação de Cultura da Cidade do Recife poderia ser o entrevistado, visto que ele tem experiência na área, bem como tem acumulado vários prêmios tanto como diretor quanto como ator. É uma oportunidade de levar para o conhecimento dos compradores da revista [que são pessoas formadoras de opinião, em sua grande maioria] que ainda se faz teatro infantil com muito respeito e profissionalismo. Constantin Stanislavsky, grande dramaturgo, afirmou que o teatro mais difícil de ser levado ao palco é justamente o infantil, porque a criança não acredita no que é falso. Ou ela entra na viagem proposta ou não. Mas isto é apenas uma semente a ser desenvolvida por vocês, ou não. Aldonez Valença – Recife – PE A melhor Falar que a melhor revista cultural do momento é a Continente é, além de uma tremenda “babada”, uma redundância. Mesmo não sendo assinante sou leitor

Gastronomia Gostaria de cumprimentá-los pela seção de gastronomia (cozinhar me parece a coisa mais próxima do ato de escrever...), um assunto que sempre mereceu a atenção de Gilberto Freyre, sempre tão atento a tudo o que diz respeito ao homem. Franklin Jorge – Recife – PE Turismo Bem, navegando pela net encontrei este site e achei muito interessante. Apesar de me envolver muito com a nossa cultura pernambucana ainda não conhecia esta revista. Melhor ainda que vocês estão com esta edição especial sobre Turismo em Pernambuco. Gabrielle Vasconcellos Guimarães – Recife – PE Continente Multicultural 3


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EDITORIAL

Em louvor de Drummond

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FOTO: REPRODUÇÃO

m poeta faz cem anos. Tanto faz. É Carlos Drummond de Andrade, para muitos o maior dos que cantaram em português. A sua poesia é um divisor de águas, que tornou possível João Cabral de Melo Neto, e a sua superação. A sua estréia coincide com uma dessas datas de transição (a Revolução de 30), úteis a professores e estudantes. Mas que nada dizem a alguma poesia que há nas datas. Drummond gostava das datas e das celebrações. Cantou o cinqüentenário de Manuel Bandeira (porventura a sua maior admiração literária no país), e depois os seus noventa anos imaginários. Aceitou a encomenda de Gilberto Freyre para cantar a sua filha recém-nascida. E também cantou a neta. Mineiro, hoje está de tal modo incorporado à alma nacional que vários dos seus versos viraram lugares-comuns. É um desses casos de glória literária em vida. Foi muito louvado. Agora volta a sê-lo, no seu centenário. É justo. Como justas são as palavras do poeta Marcus Accioly, que o louva em “Ó (de) Itabira”: “Vale a pena cantar (que não te ouça)/ o verme sob o corpo ou a pedra cega/ e a toupeira que cava a sua fossa// vale a pena sonhar – Carlos, sossega/ que as mulheres te amam com seus zelos/ e o verso entregue traz a inversa entrega/ do coração: as carnes e os cabelos/ para dormires entre o meio-sono/ e conhecê-los ou desconhecê-los”.

Carlos Drummond de Andrade, em 1986

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AO LEITOR

Cortesia cínica Ser gentil e cortês é condição necessária para as relações sociais e profissionais, mas não é o suficiente. A sociedade ainda paga caro pela burocracia cultural que avulta as relações sociais e avilta as econômicas Carlos Alberto Fernandes 6 Continente Multicultural


ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

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endo governado o Brasil holandês de 1637 a 1644, um dos grandes méritos que classificava Mauricio de Nassau como notável administrador foi a sua compreensão e identificação do caráter do povo que governava. O seu conhecimento das peculiaridades desta terra foi cadinho para algumas das suas divergências com a Companhia das Índias, que motivaram sua saída. Uma delas foi, sobretudo, por ser contrário ao rigor na cobrança dos financiamentos aos senhores de engenhos. Lição atualíssima para os burocratas de plantão. Como último ato de seu governo, deixou para o seu sucessor uma carta com recomendações de natureza civil, militar e eclesiástica, onde, destacarei apenas três, relacionadas a civil: 1. Despachar e assinar as petições e, se não fizerem assim, cairão no ódio e no descrédito público. 2. Os portugueses serão submissos se forem tratados com cortesia e benevolência, pois sei por experiência que o português é uma gente que faz mais caso de cortesia e do bom tratamento do que de bens. 3. O governo deve abster-se de lançar novos impostos, pois os tributos geram indisposições no povo. Nassau está morto, mas sua estratégia de lidar com nossa gente e suas impressões estão vivíssimas e imantadas no nosso caldo cultural, apesar da intensa imigração sofrida pelo Brasil neste século. Esse cacoete cultural identificado por Nassau sobreviveu ao movimento iluminista, à racionalidade weberiana, e à mecanização da revolução industrial. Sobrevive ainda, a todos os discursos de modernidade. Aos benefícios da tecnologia da informação. À chamada revolução pós industrial. Aos avanços e recuos da globalização. Até Che Guevara ao construir a expressão "hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás" demonstra o quão expressiva é essa influência lusitana na América Latina. Essa coisa cultural é tão forte que uma cunhada minha, de origem alemã, optou por trocar o seu sobrenome de Maissner para Silva. Talvez porque tenha sentido uma aguda necessidade de aculturação; pois recém chegada ao Brasil, ficou inteiramente constrangida e desnorteada quando ao fazer visita a uma nova amiga, sentiu nos olhos, na pele e na medula que aquela expressão "passa lá em casa!"era apenas uma forma cortês de falar. Vocês já imaginaram quantas pessoas andam pra lá e pra cá só cumprindo esse ritual de pseudo-cortesia? Quantos não são recebidos por presidentes, ministros, governadores, prefeitos, deputados, senadores,

“Os portugueses serão submissos se forem tratados com cortesia e benevolência, pois sei por experiência que o português é uma gente que faz mais caso de cortesia e do bom tratamento do que de bens”

secretários, dirigentes de empresas e,... por vereadores, para, a despeito da solução de problemas, cumprirem apenas rituais típicos de (des) honrosa atenção. Quantos acenam a cabeça com um sim, para dizer um não. Quantos encontros e reuniões ocorrem para decidir o que já está decidido. Os nossos costumes e nossa prática social precisam do seu Peter Drucker para deslocar o foco de nossas (re)ações dos meios para os fins, como foi feito no enfoque neoclássico, da teoria da administração. A nossa cultura social nesse campo de resolução de problemas, é deveras embaraçosa do ponto de vista da consecução de resultados. Está na hora de se colocar no custo-brasil, os dispêndios de tempo e energia relacionados a encômios sem objetividade aparente; sem resultado concreto para os reais beneficiários. Ser gentil e cortês é condição necessária para as relações sociais e profissionais mas não é o suficiente. A sociedade pagou e ainda paga muito caro por essa burocracia cultural que avulta as relações sociais e avilta as econômicas. No contexto atual, é deveras visível a incompatibilidade dessa cultura de relações sociais artificiais. Essa postura confronta com os desafios da qualidade, da cidadania e da liberdade, desejáveis por uma sociedade que ingressa no processo de globalização necessitando alavancar o seu crescimento. Daí ser importante combater não a razão pura de Kant , mas a razão cínica, mesmo.

Carlos Alberto Fernandes é economista, professor da UFRPE, Diretor Geral da Revista Continente Multicultural, ex-Secretário Adjunto do Tesouro Nacional

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ESPECIAL

Dizer quem é o grande poeta brasileiro é um exercício ocioso e perigoso. Porém, rever o que uniu e simultaneamente afastou os maiores entre eles talvez torne mais nítido o confuso mapa da poesia brasileira, marcado hoje pela dispersão e repetição. Poesia que deve grande parte do que é a Carlos Drummond de Andrade José Castello

Cândido Portinari: Retrato de Carlos Drummond de Andrade, óleo sobre tela

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tempestade


Cecília Meireles é o grande nome feminino da poesia brasileira no século 20. Em torno dela quatro poetas começaram a amar e a combater

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bem feminino. Em torno dela, quatro poetas puseramse a amar e a combater. Em volta dela, poupada um pouco pelo machismo, um pouco porque denunciou aquilo que não lhes interessava formular, quatro poetas tomaram posição e se situaram para o combate. Algo assim. No primeiro vértice, temos não um, mas dois poetas, Vinicius e Bandeira, autores de uma poesia marcada pelo lirismo, pelo trato sem freio das emoções, pelo intimismo (dito, em geral, feminino), pelo derramamento nas palavras e, até, pela proximidade do sentimentalismo. Poetas da paixão, se é que se pode reduzi-los, já que assim tanta coisa fica de fora. No segundo vértice, que ao primeiro se opõe, perfilase, solitário e desconfiado, João Cabral de Melo Neto, poeta que habita o universo do avesso, poeta da razão, da contenção, da frieza e (como os engenheiros, que tanto prezava) do cálculo. Poeta de pedra, autor de poemas de pedra – “e de cabra”, como Vinicius, um dia, disse, sem desejar poupá-lo. No terceiro vértice, quem sabe o mais alto, equilibrando-se sobre os dois anteriores, e lhes servindo de fecho, aparece Carlos Drummond de Andrade. Poeta da luta entre a emoção e a razão, poeta do conflito e da ambigüidade, da guerra contínua. Tanta luta que a vida um pouco lhe escapou, ao menos aquela “vida de

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omparar poetas? Medi-los, aferi-los e cotejá-los, como se fossem tapetes, ou automóveis? A idéia, ainda que impraticável, até agressiva, pode servir, contudo, nesse ano de centenário de Carlos Drummond de Andrade, e se escaparmos de todo juízo de valor para estimular uma reflexão sobre a poesia brasileira. Se for para dizer “quem é o grande poeta brasileiro”, o exercício se torna ocioso e perigoso. Porém, se o desejo for o de mapear aquilo que os uniu e simultaneamente os afastou, então pode fazer todo sentido. Assim, talvez, se torne um pouco mais nítido o confuso mapa da poesia brasileira que herdamos, marcado hoje pela dispersão e pela repetição. Poesia que deve grande parte do que é a Drummond; que está, em definitivo, associada a seu nome. O século 20 produziu, no país, cinco grandes poetas: além de Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Existem outros nomes que com eles ombreiam – basta pensar em Augusto Frederico Schmidt, para ficar numa mesma geração. Mas, por uma série de fatores, muitos deles de ordem extraliterária, esses cinco tomaram uma dimensão superior. Passaram a simbolizar a grande poesia do século e a sinalizar destinos, ou desafios, para aqueles que os sucederam. Não se escreve poesia, hoje, sem ter algum deles, ao menos, como horizonte. Ninguém se torna poeta sem ler Vinicius, Cabral ou Drummond. Para não nos perdermos em tanta riqueza, será talvez mais prudente deixar de lado Cecília, o grande nome feminino da poesia no século, cuja obra está sintetizada em versos de seu próprio punho: “A vida, a vida, a vida/ só é possível/ reinventada”. Cecília via a poesia como pura invenção. Mesmo o passado, talvez seu tema por excelência, devia ser submetido a uma depuração mágica; mágica não de magos, mas das palavras, cujo instrumento era o ato poético. Se o objeto existe, ou existiu, isso não lhe importava; importavalhe reinventá-lo, ou, para tomar emprestada uma expressão de João Cabral, dá-lo a ver. O que é bastante diferente de simplesmente ver. Talvez seja útil, então, deixar Cecília quieta, a sinalizar que tudo é invenção e nada deve realmente ser tomado tão ao pé da letra, para nos concentrarmos nos quatro homens. Não para esquecê-la, mas para dela fazer nosso ponto de fuga – ali onde, quem sabe, esses poetas possam se encontrar. Por desvendar o artifício do fazer poético, ele também invenção por excelência, Cecília pode ocupar, ainda, o coração de um triângulo. Seu furo, seu abismo, num destino, afinal,


Drummond não puxa tanto pela razão, como Cabral, nem tanto pela emoção, como Manuel Bandeira

poeta”, na maneira de ver dos românticos. Tanto que, E aí está o obstáculo de que fala o poeta, aquilo quando Vinicius morreu, Drummond se apressou em que impede qualquer esperança de solução – pudesse dizer: “De todos nós, ele foi o único que viveu como ser a matéria dura de Cabral, ou fosse a matéria lírica poeta”. Drummond tinha mesmo consciência do preço de Vinicius e Bandeira. Drummond não se decidia; pessoal que pagou para se manter no coração da luta. viveu, como disse Ricardo Piglia a respeito do destino Em ensaio recente, Drummond: A Magia Lúcida, Mar- dos escritores, em estado de completa vacilação, um pé lene de Castro Correia parece ter-lhe fisgado o espírito. na fantasia, outro no real, e nunca se decidiu sobre que Ela o vê como o poeta da guerra interior – um poeta lado tomar. “No meio do caminho tinha uma pedra/ partido ao meio e que, ao contrário de Cabral ou de Vi- tinha uma pedra no meio do caminho”, ele escreveu, nicius, não escamoteia, mas antes investe nessa cisão. naquele que é talvez seu verso mais célebre. Foi onde De um lado, as palavras – e com elas as idéias, a tradi- se instalou: sobre a pedra, bem no meio do caminho, ção poética, as teorias, o pensamento; de outro, as coi- pronto a acolher todos os conflitos de seu século. Ensas, quer dizer, os elementos ligados ao real, sentimen- contrava, talvez, um ponto de equilíbrio na ironia, e tos, paixões, coisas cotidianas. Drummond escreve por isso vai escrever também: “Mundo mundo vasto entre um “Eu todo retorcido” e a busca da manifes- mundo/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma ritação de um “sentimento do mundo”. Assim é a poesia ma, não uma solução”. Se soubermos ler, está tudo nos de Drummond, em dupla face, uma coisa e ao mesmo versos, não é preciso ir muito além deles: a tensão, o tempo seu contrário. Um paradoxo, exposto e não dis- gosto pelo paradoxo, a aposta na contradição; a certeza simulado. Drummond nem puxa para a mente, como de que a solução não existe, e se existe, falsa é. Tensão Cabral, nem repuxa para os sentimentos, como Vinicius dramática entre a paixão desenfreada e a ordem racioou Bandeira. Instala-se no meio, bem no meio, em nal, a poesia feita drama. Conflito que Cabral resolveu pleno coração da luta – e escreve para lutar, para festejar emparedando-se em seus poemas gelados (mas foram a batalha, para celebrar os conflitos que o configuram como Carlos Drummond de Andrade é o poeta da luta homem. “Semelhante dilaceraentre a emoção e a razão, poeta do mento interior só encontra paraconflito e da ambigüidade. Tanta luta que a própria lelo em Mário de Andrade”, vida lhe escapou um pouco Marlene avalia. Continente Multicultural 11


O embate entre estes grandes poetas – Bandeira, Vinicius, Drummond e Cabral – se expressa nos próprios versos e na troca de cartas e poemas que escreveram um para o outro mesmo?), e que Vinicius, ao contrário, recalcou entregando-se a seus poemas derramados (teriam sido mesmo assim?). Drummond não quis nem uma solução, nem outra. Optou pela ausência de solução, ou melhor, aceitou a ambigüidade inerente ao real, já que solução não existe, embora exista o desejo de solução; e é para substituí-la, e para consolar o poeta que sofre, que existe a poesia, ao menos tal qual Drummond a concebeu. Daí a grandeza de seus versos. Drummond escreveu poesia para enfrentar os opostos, e não para amansá-los, para alargar o conflito que Vinicius e Bandeira, de um lado, e Cabral, de outro, cada um a seu modo, desejaram “solucionar”. É verdade que também eles entreviram essa impossibilidade, tanto que Vinicius escreveu (em “Dialética”): “É claro que a vida é boa/ (...)/ Mas acontece que eu sou triste...”. Tinha consciência de habitar um abismo. No embate entre emoção e razão, Vinicius e Bandeira puxaram a poesia para o lado das coisas reais e dos sentimentos fortes; e com isso opuseram-se àqueles que julgavam que a palavra bastava, que ela

era, ou é, imune ao real. Basta lembrar o que está escrito num poema de Vinicius como “Carta aos puros”: “Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros/ E em cujos olhos queima um lento fogo frio/ Vós de nervos de nylon e de músculos duros/ Capazes de não rir durante anos a fio”. Foi para se contrapor a esses homens insossos, “iluminados a néon” e presos ao ressentimento que Vinicius se tornou poeta – não do ressentimento, mas do sentimento. Escreveu para combater virilmente os poetas sem carne: “Ó vós que vos negais à escuridão dos bares/onde o homem que ama oculta o seu segredo/ Vós que viveis a mastigar os maxilares/ E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo”. Esse projeto de enfrentamento, e esse exaltar dos sentimentos, configuram sua poética. Ecos dos românticos, e mais ecos de Rimbaud (que Vinicius tanto desejou ser), rebatem entre as palavras. Ou lembrar o que Bandeira escreveu em “Poética”: “Estou farto do lirismo comedido/ do lirismo bem comportado/ do lirismo funcionário público com o livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor”. Também Bandeira, ainda no mesmo poema, vai dizer: “Abaixo os puristas”. A estratégia que adota é semelhante à de Vinicius, a de

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Mesa de trabalho do poeta, com sua biblioteca ao fundo

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bater-se contra a contenção e o comedimento, e sobretudo contra “todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo”. Vai dizer, bem claramente: “Não quero mais saber de lirismo que não é libertação”. Ambos se empenham num embate contra a frieza, contra as armaduras racionais, contra os que param e vão “averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo”. Contra a postura livresca. E cabe pensar, desde já, que a imagem do funcionário público preso ao seu livro de expediente, citada por Bandeira, adere, fielmente, à figura viva de Carlos Drummond – durante anos e anos, em contraste com a vida fluida que Bandeira e Vinicius experimentavam, cheios de vida e de movimento, um pacato e imóvel funcionário do Ministério da Educação. Já João Cabral puxou o corpo da poesia para o lado oposto – o que não significa dizer que tenha deixado de freqüentar a mesma luta. Cabral escreveu poesia “como se” a emoção não o interessasse; “como se”

o lirismo lhe despertasse não prazer, mas, ao contrário, repugnância. Escreveu contra a retórica nordestina (retórica “de deputado”, ele dizia), contra os poemas de dor-de-cotovelo, de desabafo e de confissão; escreveu contra a poesia do Eu, privilegiando, em seu lugar, a coisa. Mas não escapou daquilo que desejou vencer. Sob a frieza de cada verso, lateja em Cabral sempre uma forte emoção; sob a impessoalidade, há um homem que sofre, e sofre tanto que nem quer saber de si. Daí, provavelmente, a angústia que o abatia em sua vida pessoal, e que ele tentou expulsar de seus versos “como se” pudéssemos dar ordens aos sentimentos. Angústia que, para ser real, Cabral deslocava para uma dor de cabeça crônica, que o perseguiu durante décadas, e que só desapareceu quando, numa cirurgia de úlcera no Porto, “lhe cortaram”, ele assim explicou, “o nervo vago”. Sugestivo o nome desse nervo... O embate entre esses grandes poetas se expressa, sobretudo, nos próprios versos. Está tudo no que escreveram um para o outro. Na troca de poemas, na troca de cartas. Numa saudação a Vinicius, um poeta que seguiu caminho semelhante ao seu, Bandeira escreveu (“Saudação a Vinicius de Moraes”): “Eu não sabia/ que no teu nome/ tu carregavas/ a tua cruz” – numa referência ao nome completo do poeta, Marcus Vinicius Cruz de Moraes. E saúda ainda “tuas selvagens/ raras imagens/ da mais pungente/ melancolia”. Melancólico ele também, Bandeira celebra a testemunha que encontra em Vinicius. Com ele compartilha a mesma poesia dolorosa, poesia que se escreve para doer. Já numa brevíssima “Resposta a Carlos Drummond de Andrade”, Bandeira escreve: “À mão que o dispensa deve/ o laurel sua virtude./ Grato, mas junto sou rude/ de quem Claro enigma escreve”. Refere-se, já aqui, à aversão que Drummond tinha a prêmios, títulos, homenagens e que tomou formas gritantes quando se cogitou indicá-lo ao Nobel de literatura. Quando Bandeira morre, é a vez de Drummond dizer: “Sua poesia pousa no tempo./ Cada verso, com sua música/ e sua paixão, livre de dono/ respira em flor, expande-se/ na luz amorosa”. Depois, conclui: “Agora Manuel Bandeira é pura/ poesia, profundamente”. E escreve isso quase com alívio, não que não sofresse com a morte de Bandeira, mas porque só assim ela escapa do tempo e se depura. Entre Vinicius e João Cabral a luta se torna mais tensa e, pelo contraste que os separa, mais surpreendente. Sem conter a ironia, Vinicius diz de Cabral, em “Retrato, à sua maneira (João Cabral de Melo Neto)”: “Exato e provável/ no friso do tempo/ adiante

Para a ensaísta Marlene de Castro Correia, só em Mário de Andrade há um dilaceramento interior semelhante ao de Drummond

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Vinicius de Moraes é o poeta do lirismo, da paixão. Já Drummond escreve com um “eu todo retorcido”

Ave/ camarada diamante!”. Nada melhor que um diamante, carbono puro e duro, para servir de metáfora à poesia pura e dura de Cabral. Quando se dispõe a responder, em vez de contestar o amigo, Cabral vem com uma declaração surpreendente, um reconhecimento de que sua opção pela poesia dura não é opção, mas destino, daquele que se sente incapacitado para a poesia lírica, à maneira de Vinicius. Está em “Resposta a Vinicius de Moraes”, de Cabral: “Não sou um diamante nato/ nem consegui cristalizá-lo:/ se ele te surge no que faço/ será um diamante opaco/ de quem por incapaz do vago/ quer de toda forma evitá-lo”. Gentilezas apenas? Não se podem reduzir as coisas assim. Há nesse reconhecimento surpreendente, ao contrário, a indicação de um laço invisível (e até imprevisível) mas resistente a uni-los. Laço, mas também nó, que Drummond tomará explicitamente como matéria poética. Já quando fala de BanO que distingue Drummond é a resistência a um deira, Vinicius é bem mais befecho, a capacidade de se manter de pé nevolente. Está em “Saudade de Manuel Bandeira”: “Não e escrever em plena tempestade. Muitos o citam sem a coragem de herdar o que ele suportou foste apenas um segredo/ de poesia e de emoção/ foste uma estrela em meu degre- que me mostrou uma poesia sem aquela oratória escordo/ poeta, pai! áspero irmão”. A ênfase, aqui, deve ser regadia que me irritava”, Cabral escreve – e ele levou encontrada no áspero, que designa a amizade viril e bem mais longe que o mestre essa lição, tomando-a ao que masculiniza o lirismo. Ao falar de si mesmo, por pé da letra e dela fazendo sua estratégia poética. Mas, fim, Vinicius diz, em “Poética II”: “Com as lágrimas nota Flora, em suas cartas Cabral já dá sinais dessa atido tempo/ e a cal do meu dia/ eu fiz o cimento/ da mi- tude mais radical, pois desvia-se sempre que parece nha poesia”. Aí tudo é dito claramente, sem meias pa- prestes a falar de si, esconde-se sob as considerações lavras, ou freios; a poesia é lágrima (é sofrimento), e é poéticas, camufla-se na teoria. Sintomas, já, de sua “estambém experiência (cal do meu dia); é o que o poeta tética mineral”, quer dizer, impessoal, de coisa (desprovida de sentimentos) e não de homem (afundado sente enquanto se bate com o real. Está também nas cartas – e nesse sentido o livro nos seus). Não se deve confundir aqui o rigor de de correspondência de Cabral com Drummond e Drummond com a dureza de Cabral: enquanto o Bandeira, organizado recentemente por Flora Süs- rigor leva Drummond a não fugir do conflito, a dureza sekind, é exemplar. As cartas trocadas entre Drum- serve de casca Cabral e (aparentemente) o protege mond e Cabral, reunidas por Flora, se concentram daquilo que não pode suportar. As 62 cartas trocadas entre Cabral e Drumentre 1940 e 46. O Drummond que escreve a Cabral já é um poeta maduro que, naquele ano de 40, publica mond, Flora nota, pautam-se pela formalidade. Em O Sentimento do Mundo. Confirmando sua imagem carta de 41, Cabral procura consolar Drummond da pessoal de funcionário público metódico e pacato, ele é acusação, cruel, de “burocrata”, que certos inimigos lhe também um sujeito comedido, formal e que mede imputam. Até que, numa carta incomum, de 42, Cabral sempre as palavras – atributos que configuram a ima- se abre com Drummond a respeito das crises de melangem do poeta “triste, orgulhoso: de ferro”; mas não se colia que o acometem. Mas o desabafo é muito rápido, deve confundir isso com um coração de ferro. Bem ao e logo, em bilhetes, cartões, notas breves, Cabral volta ao contrário do Bandeira que escreve para o mesmo estilo frio que o caracteriza. Drummond, em carta emCabral, mais expressivo, mais expansivo, mais voltado blemática, contudo, já não controla seu gosto pelos expara as coisas reais. Esse rigor de Drummond será cessos: “Sou de opinião de que tudo deve ser publicado, tomado depois, por Cabral, como lição poética, que ele uma vez que foi escrito”, aconselha a Cabral, cheio de irá radicalizar: “Foi a dicção áspera de Drummond dúvidas a respeito da qualidade de seus poemas.


Detalhe do Certificado de Reservista do poeta. Uma das características que identificam a linguagem de Drummond está na “dicção áspera” que Cabral aponta

É por fim na poesia do próprio Drummond que encontramos outras tantas pistas da posição que ele vem a ocupar no triângulo poético. Por um lado, desinteressa-se das modas, como diz em “Eterno”: “E como ficou chato ser moderno, agora serei eterno”. Recusa-se ao alinhamento automático aos padrões de gosto literário; busca, ao contrário e com firmeza, sua solidão. Quer estar sozinho – e a posição pessoal de burocrata, distante, lhe pareceu perfeita. Assim pôde se proteger do que não era. Ele não se incomoda com a palavra “eterno”, até porque diz: “A cada instante se criam novas características do eterno”. Em outro poema, “Estrambote melancólico”, ele diz também: “Tenho saudade de mim mesmo”; escreve, portanto, para, muito além de toda pose “de poeta”, se aproximar do que é. Basta-lhe ser, e a poesia não é um atributo especial, mas uma maneira de existir. Sobretudo para ele que não pôde “viver como poeta”, como fez Vinicius. É Drummond quem diz ainda: “O mundo é estreito. Uma prisão de água/ envolve o ser, uma prisão redonda./ Então me faço prisioneiro livre”. Habita um conflito que não pode ser resolvido, então

toma o conflito para si, faz dele sua prisão, mas também sua possibilidade de libertação. É o que distingue Drummond: a resistência a um fecho, a capacidade de se conservar de pé, e escrever, em plena tempestade. Resistência à ambigüidade, um tema radicalmente atual, como se dá na “Estória de João-Joana”: “Nem menino nem menina/ era João quando nasceu”. Pois Drummond é um poeta que trafega entre metamorfoses, que nelas se instala, e é aí que se sente confortável. Um poeta que se habituou ao desafio: “E tudo é proibido. Então, falamos”. Muitos hoje o citam e o tomam como referência fundamental sem, no entanto, suportar o que ele suportou. Sem a coragem de herdar o que ele deixou de mais próprio: a dúvida. Julgando-se descendentes de Drummond, ficam, contudo, aquém de Drummond. Carlos Drummond de Andrade deixou a ferida da poesia aberta, e é nesse espaço de interrogação, e não de respostas, que agora todo poeta, para merecer esse nome, deve se iniciar. José Castello é jornalista e escritor.

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Mesmo depois de sua morte, Carlos Drummond de Andrade continuou motivando histórias saborosas, como quando apareceu numa sessão espírita deixando recados dizendo à sua viúva que estava bem e elogiando o título do seu necrológio escrito por um amigo

Um gauche atencioso

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Affonso Romano de Sant’Anna

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ILUSTRAÇÃO: CAU GOMEZ

e bem-h humorado

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E

stava eu nesses dias lembrando-me de umas estorietas com o poeta com quem tive proximidade desde a adolescência, e sobre quem já escrevi densamente. Por exemplo, aquela sucedida no hospital, horas antes de ele morrer. Estava Drummond ainda meio lúcido, mas com dificuldade para falar. Sentiu aproximar-se de seu leito um dos netos que, carinhosamente, tentando amenizar a situação, começou a dizer ao avô que aquilo ia passar e que logo-logo o poeta estaria de volta à sua casa na rua Conselheiro Lafayette. Ouvindo aquilo e pressentindo que não era isto o que ocorreria, Drummond, que morreria horas depois, fez o último gesto irônico de sua vida. Levantou o braço e deu uma banana para a carinhosa frase do neto. *** Contou-me Candace Slater, uma brasilianista que dá aulas em Berckeley, que certa vez foi visitar o poeta. No meio da conversa, de repente, ele desferiu a frase: – “Você é bonita”. Ela ficou meio sem jeito, por várias razões. Sobretudo, porque tinha uma marca no rosto, que a constrangia. A conversa continuou, mas Drummond pegou o telefone, conversou com Pitanguy e Candace foi operada daí a dias.

*** Quando nos anos 60 estava eu escrevendo a tese de doutoramento – Drummond, o gauche no tempo, fui várias vezes à casa dele. Em seu escritório, oferecia-me um suco de caju ou maracujá, e conversávamos ele deixou que levasse emprestadas as centenas de críticas publicadas sobre ele. Naquela época eram umas seiscentas. Tinha pastas com tudo. Até com telegramas de congratulações pela publicação de seu primeiro livro, em l930. Quando a tese ficou pronta, mandei-a naturalmente para ele. Aconteceram alguns episódios reveladores da personalidade acurada e gauche do poeta. Percebi, por exemplo, que ele a lera atentamente, e que dava muita importância a esse tipo de trabalho, porque mandou-me cartas dando as fontes do poema da “Moça Fantasma” ou explicando que o poema intitulado “Maud” era uma homenagem à amante de Enrico Bianco, que morrera num desastre. Também depois da leitura da análise que fiz de “A bruxa” fez uma correção de um “nesse” por “neste”, e numa carta de 23.2.1970 acrescentava: “Para aquele vazio da segunda estrofe de ‘Isso é aquilo’, descoberto por você [eu nunca havia reparado na mutilação em jornal e depois em livro], providenciei este enchimento [último verso]: ‘o boliche e o relincho.’”

*** ***

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Quando Drummond, o gauche no tempo foi publicado, em sua primeira edição, pela Editora Lia, o poeta assim se manifestou: – Mas você me desaparafusou todo! Achei que era mais um comentário mineiro cordial. E quando o livro foi publicado, como sucede com os autores sobretudo jovens, passei por uma livraria no centro do Rio e resolvi indagar se meu livro estava lá à venda. – Acabou, disse-me o livreiro. “O poeta esteve aqui e comprou os dez últimos exemplares”. *** Meticuloso e implacável revisor, certa vez o leitor Messias Amaral dos Santos deixou com ele a edição da Aguillar, para ele autografar. Não apenas a autografou, mas fez-lhe um poema-dedicatória e ainda corrigiu todos os erros da edição. Já com a professora Clarice Fukelman, que foi minha aluna na PUC/RJ, aconteceu de Drummond

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Contou-me Geraldo Dolino, o pintor que era muito amigo de Maria Julieta e Drummond, que quando o irmão mais velho do poeta, Altivo, morreu, Drummond sentiu necessidade de fazer algo em homenagem àquele irmão que tinha um defeito na perna. Na rua, passou por um mendigo, que lhe pedia esmola. Parou e perguntou-lhe diretamente: – Você quer uma muleta? O mendigo, surpreso, respondeu que sim. Mas, prontamente, deu-se conta de que talvez pudesse tirar mais de seu generoso doador: – Na verdade, eu precisava mesmo era de uma cadeira de rodas, complementou. O poeta já estava quase concordando, quando o mendigo adicionou: – Mas de preferência uma daquelas elétricas, o senhor sabe... Meio impaciente, Drummond lhe disse: – Olha, é a muleta ou nada. Ao que o outro imediamente concordou, ganhando o presente, para ele, útil e, para o poeta, cheio de significado simbólico.


dar-lhe dezenas de livros para um trabalho de leitura que fazia com presos e pobres. Entre esses livros estava a edição das poesias de Dante Milano – poeta que ele admirava –, com uma série de correções que ele pacientemente fizera. **** Um dia estava em minha casa, à noitinha, quando da portaria me avisam que o “senhor Drummond” estava lá embaixo e me indagam se ele podia subir. Na hora achei que era uma brincadeira do Yllen Kerr, que às vezes se identificava ao telefone e até pessoalmente com outro nome, de pura galhofa. Então, disse, pensando que era o Yllen: “Pode subir”. E continuamos, Marina e eu calmamente, jantando. Eis senão quando, ao abrir a porta, nos deparamos com Drummond em carne e osso, portando sob os braços, como presente, um livro enorme de poemas dele ilustrado pela artista mineira Yara Tupinambá. Entrou, conversamos mineira e cautelosamente. Marina até escreveu uma crônica, A poesia passou lá em casa, registrando o episódio. ****

Sensação realmente estranha, estapafúrdia, ambígua e perfeitamente normal, no entanto, tive poucos dias antes da morte do poeta. Ele já estivera internado antes da morte de Maria Julieta. E a imprensa, prevendo que ele poderia morrer a qualquer momento, adiantava o obituário. É assim que a imprensa trabalha. Os jornais, para não serem pegos de surpresa, guardam obituários dos eminentes e iminentes candidatos à morte. Ora, eu havia substituído Drummond como cronista no Jornal do Brasil, e lá, Zuenir Ventura, que então chefiava o Caderno B, pediu que fizesse um ensaio sobre o poeta, porque ele poderia morrer a qualquer hora. Estranha, estapafúrfia, ambígua e perfeitamente normal a situação. Ele, vivo no seu apartamento, e eu, no meu, escrevendo o texto para após sua morte. No entanto, Drummond se restabelece e o que acontece é a morte de Maria Julieta de entremeio. Encontro-me com ele no velório da filha. Ele vivo, ali, na minha frente, e o jornal já com o meu texto sobre ele morto, não se sabia para quando. Pensei que deveria dar para ele ler. Acho que ele ia achar até engraçado. Ler vivo o que sobre ele se publicaria depois de morto. Após sua morte, um dia recebo o telefonema de uma ex-aluna, dizendo-me que Drummond aparecera numa sessão espírita e que havia mandado dois recados. Ouvi-os atentamente. Um era para Dona Dolores: que dissesse a ela para não se preocupar, porque ele estava muito bem. E pronuncioua a palavra GOVENA, pedindo que a transmitisse à Dolores, que ela saberia o que era aquilo. Quanto a mim, dizia a amiga espírita, ele mandava dizer que o que mais gostara fora o título daquele meu texto que o jornal publicara: “Vai, Carlos, ser gauche na eternidade”. Como se vê, do outro lado, ele continuava atento, atencioso e bem-humorado.

Drummond ao lado da filha, Maria Julieta

Affonso Romano de Sant’Anna é poeta

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Anotacoes sobre o 20 Continente Multicultural


Carlos Drummond de Andrade desponta com uma obra dificilmente equiparável em tamanho e riqueza, ou em magnitude e repercussão, embora sempre voltado para uma abordagem ora pessoal, ora social do drama e das angústias humanas Weydson Barros Leal

poeta

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L

embro uma conversa, há alguns anos, em que o meu interlocutor, escritor mineiro radicado em São Paulo, concedia a Drummond o título de maior poeta brasileiro. Terminamos o encontro pensando se o próprio poeta concordaria com tal distinção, ou quem sabe, nos diria: “O mundo é talvez, e é só. Talvez nem seja talvez”... E assim, com sua inteligência superior, nos confirmaria com sua incerteza. Ao lado de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, para citar apenas dois poetas modernos, Carlos Drummond de Andrade desponta com uma obra dificilmente equiparável em tamanho e riqueza, ou em magnitude e repercussão em outros poetas brasileiros, ainda que sempre voltado para uma abordagem ora pessoal, ora social do drama e das angústias humanas. Talvez, nesta mesma imensidão resida a fragilidade que muitos críticos anotam, que é dizer, uma irregularidade de alturas que põe em risco o conjunto de alguns livros. Mas, e é isto que vale, o que se pode recolher em sua obra como alta poesia se encontra em cada um de seus livros. Em Alguma Poesia, Sentimento do Mundo, A Rosa do Povo e Claro Enigma se concentram estas altitudes. Neste ano de 2002, o centenário de nascimento do poeta parece apagar a lembrança de um evento crucial para a consolidação e desenvolvimento de sua obra: a Semana de Arte Moderna de 1922, que então completa 80 anos. Assim como o período de sua vida perpassa todo o processo da Semana, seus efeitos e desmembramentos se fazem presentes na obra do poeta mineiro. Na poesia de Drummond está o melhor reflexo do nosso modernismo, o que ficou de melhor, seu eco ou vertente. Contrapondo sua poesia, por exemplo, à de Manuel Bandeira, o crítico José Guilherme Merquior escreveu, em 1962, que o modernismo drummondiano “não é assim ‘tradicional’”, e que “este poeta renovou a linguagem e o endereço de nossa lírica”. Três anos depois, o mesmo Merquior escreveria um dos melhores ensaios sobre o poeta: A Máquina do Mundo de Drummond. Difícil contar o número de teses, ensaios e dissertações sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Isto para ficar só na poesia. Sua obra como cronista é vasta e revelava-o exímio prosador. Como poeta, recorria a temas do cotidiano; como cronista, recorria à poesia das coisas, do significado das coisas, da luz em cada fato e em cada coisa. Continente Multicultural 21


Na página seguinte, Drummond em Belo Horizonte, 1927

Em Fragmento sobre Carlos Drummond de Andrade, o crítico Otto Maria Carpeaux conceitua-o como um arquiteto da palavra, pois “parece-se com um desenhista que elimina tudo o que é vago e supérfluo.” Para Carpeaux, Drummond transformava “qualquer assunto em matéria poética”, escrevendo uma poesia não exclusiva, mas “inclusiva”. E afirmava: “Encontraria na poesia de Drummond duas séries de símbolos: símbolos da coletividade e símbolos da individualidade.” Carpeaux identificou no autor de Boitempo a dualidade sutil, a transparência lingüística que fez de Drummond – assim como de um Mario de Andrade, um Manuel Bandeira ou um Vinícius de Moraes – um dos mais populares e lidos poetas brasileiros de todos os tempos: “A poesia de Carlos Drummond de Andrade exprime um conflito dentro da própria atitude poética: transformar uma arte toda pessoal, a mais pessoal de todas, em expressão duma época coletivista. Ou, para falar em termos pessoais: guardar, no turbilhão do coletivismo, a dignidade humana. A sua e a de nós todos. Eis o sentido social da poesia de Carlos Drummond de Andrade”. A dignidade de que fala Carpeaux, assim como a profunda melancolia drummondiana, não é fruto de uma sensibilidade poética apenas humanística, mas

principalmente de um poeta para quem o “sentimento do mundo” era a sua própria dor, sua angústia íntima, um olhar que sente mas que se ressente primeiro do próprio espelho: “O filho que não fiz/ hoje seria homem./ Ele corre na brisa,/ sem carne, sem nome./ (...) O filho que não fiz/ faz-se por si mesmo.” E assim como a angústia do poeta é pela morte do leiteiro lida no jornal ou pelo desaparecimento da moça Luísa Porto, ela é antes, ou maior, pela sua própria morte diária, pelo mundo que vê despedaçar-se pesado e triste como um elefante de madeira e algodão, pelo amor que só em sua madureza pareceu enfim resgatá-lo. Por isso, o que o salva e eleva é a mão da poesia, sua aproximação sobre os grandes temas da vida, tão simples e ao mesmo tempo intangíveis para o homem simples, como o que o poeta é e busca, o que apenas sente, em quem o amor e a existência lhe pesam como entendimento do mundo: “O amor não nos explica. E nada basta,/ nada é de natureza assim tão casta// que não macule ou perca sua essência/ ao contato furioso da existência.// Nem existir é mais que um exercício/ de pesquisar de vida um vago indício,// a provar a nós mesmos que, vivendo,/ estamos para doer, estamos doendo.” Weydson Barros Leal é poeta

DECLARAÇÃO DE AMOR Minha flor minha flor minha flor. Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro. Minha peônia. Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão. Minha gérbera. Minha clívia. Meu cimbídio. Flor flor flor. Floramarílis. Floranêmona. Florazálea. Clematite minha. Catléia delfínio estrelítzia. Minha hortensegerânea. Ah, meu nenúfar. Rododentro e crisântemo e junquilho meus. Meu ciclâmen. Macieira-minhado-japão. Calceolária minha. Daliabegônia minha. Forsitiaíris tuliparrosa minhas. Violeta... Amor-mais-que-perfeito. Minha ruze. Meu cravo-pessoal-de-defunto. Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte. (in A Paixão Medida)


TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO Eu também já fui brasileiro moreno como vocês. Ponteei viola, guiei forde e aprendi na mesa dos bares que o nacionalismo é uma virtude. Mas há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam. Eu também já fui poeta. Bastava olhar para mulher, pensava logo nas estrelas e outros substantivos celestes. Mas eram tantas, o céu tamanho, minha poesia perturbou-se. Eu também já tive meu ritmo. Fazia isto, dizia aquilo. E meus amigos me queriam, Meus inimigos me odiavam. Eu irônico deslizava satisfeito de ter meu ritmo. Mas acabei confundindo tudo. Hoje não deslizo mais não, não sou irônico mais não, não tenho ritmo mais não.

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(in Alguma Poesia)

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Um urso ao “Considero-me um usuário, não o proprietário da língua. Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático. Sou um leigo em língua portuguesa”. Tive a chance de entrevistar outro gigante da poesia brasileira, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, sobre a idiossincrasia telefônica de Drummond: “Era uma coisa engraçada: pessoalmente, ele falava menos” – constatava Cabral. “Mas tinha uma conversa longuíssima ao telefone. Quer dizer: quanto mais longe a pessoa, mais afetuoso ele era. Tenho a impressão de que ele não gostava era do contato físico”. O telefone terminou se transformando no caminho das pedras para a obtenção daquela que seria uma das maiores entrevistas já concedidas por Drum-

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Carlos Drummond de Andrade em seu apartamento na rua Conselheiro Lafayette, no Rio de Janeiro, em 1982

tenção, pesquisadores de curiosidades zoológico-poéticas: o apartamento 701 do prédio número 60 da rua conselheiro Lafayette, em Copacabana, era palco diário de uma cena esquisita. Lá, um urso polar adorava falar ao telefone. O auto-intitulado “urso polar” chamava-se Carlos Drummond de Andrade. Desde que virou uma quase unanimidade nacional, Drummond ergueu em torno de si uma couraça para se proteger das investidas do mundo exterior. Era o exemplo acabado do mineiro arredio. Usava uma suposta timidez – desmentida por amigos íntimos – para manter longe de si, na medida do possível, as inconveniências da celebridade, descritas nos versos amargos do poema “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz”: “Ah, não me tragam originais/para ler, para corrigir, para louvar/sobretudo, para louvar (....)//Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera (...)// Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta/ quando nasceu./Ele não nasceu./Não vai nascer mais./Desistiu de nascer quando viu que o esperavam garotos de colégio de lápis em punho/com professores na retaguardada comandando: //cacem o urso polar,/tragam-no vivo para fazer uma conferência (...). Durante décadas, Drummond fugiu dos pedidos de entrevista. Preferia repetir a resposta-padrão: tudo o que tinha a dizer estava em seus poemas e crônicas. Mas mantinha um flanco aberto: o telefone. Amigos chegaram a definir Drummond como um “ser telefônico”. Ziraldo escreveu que Drummond era, “ao telefone, um derramado, com uma voz entre rouca e afunilada, meio tênue e fina, com a respiração difícil como quem tem desvio de septo”. O “urso polar” cultivava esta pequena esquisitice: sempre que podia, fugia do contato pessoal, mas se mostrava surpreendentemente acessível a investidas telefônicas de intrusos como, por exemplo, este locutor-que-vos-fala. Um dos editores do Jornal da Globo, cultivei, pelos idos de 1986, o hábito de incomodar o poeta pelo telefone, em busca de declarações que eram transformadas, no ar, em frases que exibiam a assinatura de Drummond. O poeta jamais se esquivou de fazer rápidos comentários. A uma pergunta sobre o que pensava de uma reunião de professores de países de língua portuguesa em Lisboa para discutir uma proposta de unificação ortográfica, Drummond – tido como um dos maiores poetas já produzidos pela língua portuguesa – deu uma resposta tipicamente drummondiana:


sempre uma companhia: a imensa companhia de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”. 3. “Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Por outro lado, não tendo tido nenhuma ambição literária, fui poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético”. 4. “A popularidade nada tem a ver com a poesia. A popularidade pode acontecer. Mas um grande poeta pode também passar desperAuto-intitulado “urso polar”, cebido”. o poeta usava uma suposta timidez – 5. “Tive apenas o desejo de exprimir midesmentida pelos amigos íntimos – nhas emoções. Eu sentia necessidade de que elas para manter longe de si, na medida do se soltassem; era um problema mais de ordem possível, as inconveniências da psicológica do que de outra natureza”. celebridade. Mas sempre mantinha 6. “O jornalismo é uma forma de literatura. Eu, pelo menos, convivi – e mil escrium flanco de acesso aberto: o tores conviveram – com uma forma de jornaGeneton Moraes Neto telefone lismo que me parece muito afeiçoada à criação literária: a crônica”. 7. “O que lamento é que as novas gerações já não tenham os estímulos intelectuais que havia até trinta ou quarenta anos passados. As pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Hoje em dia, há escritores premiados que não conhecem a língua natal”. 8. “Sou uma pessoa terrivelmente coramond. Em julho de 1987, Drummond respondeu a setenta e seis perguntas que lhe fiz por telefone, em josa, porque não espero nada de coisa nenhuma”. 9. “Considero-me agnóstico. Sou uma pessoa duas sessões. Transcrita, a gravação da entrevista renque não tem capacidade intelectual e competência para deu cerca de duas mil linhas datilografadas. As palavras do urso polar ficam. Recolho um resolver o problema infinito que é se existe ou não existe uma divindade”. possível decálogo de nossa entrevista: 10. “Minha motivação foi esta: tentar resolver, 1. “Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a vinte através de versos, problemas existenciais internos. São anos – e eu já estarei no cemitério São João Batista – problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu ao mundo”. quero é paz”. 2. “A solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos, uma Geneton Moraes Neto é autor de Dossiê Drummond (Editora Globo), livro que traz a íntegra da entrevista de pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de Carlos Drummond de Andrade, além de depoimentos de 45 ler nunca está solitária, nunca está sozinha. Terá personalidades brasileiras sobre o poeta.

polar telefone

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A certa altura do seu livro o sr. diz que “o que se sente dá o que pensar”. É pelo sentimento que Drummond conhece o mundo, a si mesmo e ao poema? É. Mas é bom especificar a que me refiro como sentimento. É o sentimento como uma forma do pensamento. Há uma visão do sentimento. É o reflexo do mundo na interioridade, mediado pelo pensamento. Dobra-se sobre si mesmo e é constitutivo de uma visão do mundo.

O crítico literário Davi Arrigucci Jr.

D

entro das comemorações do centenário de Carlos Drummond de Andrade (Itabira-MG – 31/10/1902 – Rio de Janeiro-RJ – 17/08/1987), destaca-se o recente lançamento do livro Coração Partido – Uma Análise da Poesia Reflexiva de Drummond, de Davi Arrigucci Jr. (Cosac & Naify, 160 páginas, R$ 25,00). O crítico paulista parte da análise de cinco textos ( “Poema de Sete Faces”, “Sentimental”, “No Meio do Caminho, Áporo” e “Mineração do Outro”) para penetrar na maneira como sentimento e reflexão interagem na poética drummondiana, a ponto de não apenas servirem de metodologia para entendê-la como também de matéria para informá-la e enformá-la. O livro levanta pontos até então intocados no trabalho do poeta mineiro e reorienta visões tidas passivamente como certas. Mostra como a suposta compartimentação da poesia de Drummond esbarra na revelação de uma alta complexidade que se dá desde o primeiro momento (a lucidez que se esconde sob o chiste) até a chamada poesia “filosófica”. E demonstra como o poeta faz do enigma o ponto de encontro entre o conceitual (isto é, o abstrato) e o visual (o concreto). A seguir, Arrigucci responde, com exclusividade, a três perguntas de Continente.

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O sr. demonstra o rigor técnico de Drummond na construção dos seus poemas. Mas diz-sse que por ter publicado demais ele é um poeta irregular. Concorda com isso? Ele tem uma obra vastíssima e tem poemas de circunstância. De Alguma Poesia até Lição de Coisas, a obra é densa. Depois, é natural, pela vastidão, as crônicas, os comentários de circunstância, que haja coisas mais leves. Mas há uma diferença entre ele e Murilo Mendes, que é, este sim, um poeta irregular. Em Drummond, o caminho para a poesia é formado por obstáculos. É o seu caminho natural, que exige esforço, desde o início. O grau de exigência é muito grande. O poeta é muito autocrítico e fiel ao seu itinerário. O paradoxo é que a dificuldade está na vontade de precisão. A tensão traça o seu próprio caminho, que não é fácil. O feito estilístico é para dar certo. Sua prosa, por exemplo, é de alta categoria. Seus Contos de Aprendiz têm muito pouco de aprendiz. Na crônica, ele se iguala a Bandeira. Tem uma prosa fina, elegante. Drummond faz a crônica que está perto do ensaio breve. São comentários pessoais, com a marca da memória afetiva do homem. Tudo muito lastreado na experiência, à Montaigne.

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O sentimento como razao

Em Drummond, o coração está partido pela reflexão? Está. Desde o Poema de Sete Faces. E é recorrente em toda a obra. O poeta quer ver com precisão o que lhe vai no coração. É a busca do conhecimento pelo que vai no coração, que é central e leva ao pensamento. Desde o começo o coração é um tópico central. O sentimento de discórdia do poeta em relação ao mundo passa pelo coração. É a visão interiorizada de um mundo refletida no coração, o centro do sentimento.


Inedito sobre Drummond

O

obstáculo e a negatividade como modos de estruturação da poética drummondiana. Eis a premissa de que parte a ensaísta de São Paulo Betina Bischof, no livro A Razão da Recusa, a ser publicado ainda este ano. A seguir, um trecho inédito em que a autora aborda a razão da recusa do eu lírico à oferta maravilhosa da máquina do mundo: “A pergunta que busca a razão da recusa do eu lírico ao oferecimento ‘sublime da máquina’ abre-se para o mundo em que o poema foi escrito, delineando o enorme ‘contraste que há ali entre o oferecimento absoluto e sublime da máquina e o mundo corroído de onde parte a recusa a esse oferecimento’”. A máquina é repelida por um poeta que prefere, ao oferecimento sublime e epifânico, a escuridão de uma estrada mineira. Esta escuridão produz uma opacidade que estava totalmente ausente, por exemplo, da “máquina do mundo” desvelada por Tétis a Vasco da Gama, em Os Lusíadas. (...) Não há, no globo de Camões, o menor laivo de opacidade ou impureza, sobra ou escuridão. A máquina é vista em toda a sua nitidez. O obstáculo, a negatividade de um eu lírico que escolhe, ele mesmo, turvar o oferecimento da máquina, só aparecerá muito mais à frente – numa época em que a escolha do eu lírico remete não apenas ao escurecimento de si mesmo, mas também ao escurecimento do mundo. No poema de Drummond parece haver um repúdio à característica abstrata, metafísica (da máquina), em favor de um contato concreto com o mundo – mundo ensombreado, em que a noite física, como já afirmado, pode ser vista como uma metáfora para a delimitação de uma noite que envolve, igualmente, a subjetividade. O fato de o poeta não se abrir ao oferecimento da máquina insere-o na concretude da treva estrita, da estrada pedregosa, fazendo com que o poema se transforme num receptáculo para os diferentes tons de sombra em que se elaboram os objetos e a experiência, na modernidade – denúncia das diferentes espécies de treva, como viu Drummond, com acuidade, na obra de Goeldi. A busca fáustica, à qual se dedicara o eu lírico, na procura de conhecimento e verdade, segue, portanto, pelo avesso: o que se tem aqui é um Fausto que recusa o oferecimento de pleno conhecimento do

Carlos Drummond de Andrade no sepultamento da filha Maria Julieta, no Rio de Janeiro, em 5 de agosto de 1987

mundo: um Fausto ao contrário, para quem talvez seja mais importante a denúncia da sombra que toca a ele a ao mundo em que habita, do que o conhecimento de um nexo primeiro, de uma totalidade – que de resto não cabe, nem no tempo corroído e fragmentado a que pertence essa poesia – nem na expressão, marcada pelo fazer dificultoso e pelo obstáculo, que fundamenta a poesia de Drummond.” Outros – Dois outros livros estão sendo lançados nas comemorações dos 100 anos de CDA. O primeiro é Drummond: A Magia Lúcida, de Marlene Castro Correia (Zahar Editor), com ensaios sobre a poética de Drummond que mantém um contínuo diálogo entre si, com recorrência de motivos e reflexões. O outro é Drummond – Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas, de Vagner Camilo (Ateliê Editorial), que mapeia acertos e equívocos de recepção da guinada poética a partir de Claro Enigma, livro de Drummond lançado há 50 anos. A Editora Record, por sua vez, está relançando em nova proposta gráfica e com novos prefácios, todos os livros do escritor mineiro. Já a Fundação Casa de Rui Barbosa homenageia CDA com o IV Concurso Nacional de Ensaios – Ministério da Cultura/Nestlé 2002, que traz como tema O Poeta e o Mundo, e a criação do Banco de Dados CDA, com o levantamento de todas as suas crônicas em periódicos brasileiros, entre 1918 e 1987, material estimado em 6 mil textos.

A Record está relançando toda obra de CDA. Incluindo a reunião, pela primeira vez, das suas crônicas sobre futebol

O poeta, com a filha Maria Julieta e o neto Luís Maurício, vai passear no Corcovado, Rio de Janeiro, em 1955. Desenho de autoria do próprio Drummond

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LITERATURA

Nobel, Nobéis Além do alto prêmio em dinheiro, os autores aquinhoados com a medalha e o diploma a ouro têm as vendas dos seus livros decuplicadas no mundo inteiro, e as traduções se fazem em cascata Fernando Monteiro

C

omo já é tradicional, a Fundação Nobel avisou, em agosto, sobre as datas de anúncio do prêmio internacional que leva o nome do patrono da mais que prestigiosa instituição sueca. No dia 26 do mês passado, ficamos sabendo que os premiados de 2002 nas áreas de Medicina, Física e Química serão anunciados respectivamente nos dias 7, 8 e 9 de outubro, e que o prêmio Nobel da Paz será divulgado no dia 11, enquanto o prêmio de Literatura terá de esperar um pouco mais, como sempre, pela decisão da Academia que o indica, a seu critério.

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Isso quer dizer que, no saco das letras, os gatos continuam os mesmos, emendando bigodes, e, quando não há mais bigodes, pegando pelo rabo, ou, quando não há mais rabo, fazendo um de palha quente, a soltar fumaça o papa literário da vez: habemus nobelis? Onde há fumaça, há fogo, já dizia Branchú (ou alguém muito parecido com a cara do chinês Branchú, que é a cara do João Ubaldo Ribeiro). Quem será o escritor laureado de 2002? Depois de V. S. Naipaul (ou é S. V. Naupail?), e na falta de um “Lúcio Graumann” de carne e osso


trazendo o caneco sueco aqui para o caldeirão tupiniquim, as especulações correm soltas sobre o premiado na área (as demais que me perdoem) mais eletrizante: a da sopa de letras das celebridades livrescas, na expectativa de um anúncio que significa mais do que os milhares de dólares legados diretamente pelo inventor da dinamite, Alfred Nobel, há mais de um século (o testamento, com as disposições relativas aos prêmios, foi assinado em 1895, mas o primeiro escritor a ganhar um Nobel – Sully Prudhomme, alguém se lembra? – foi diplomado em 1901). Além do alto prêmio em dinheiro, os autores aquinhoados com a medalha e o diploma a ouro – dinamite pura – têm as vendas dos seus livros decuplicadas no mundo inteiro, e as traduções se fazem em cascata, quase imediatamente. Um ou outro pode sumir,

O escritor português José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998, em caricatura de Ulisses Culebro

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eventualmente, na voracidade da mídia, mas nenhum tiças do Nobel apenas porque a obra do tcheco só viria “desponta para o anonimato”, conforme escreveu o a ser amplamente divulgada após a morte do escritor – finado Paulo Francis, quando soube que Camilo Cela e pelas mãos discutíveis do seu amigo Max Brod.) – “quem é?”, perguntava ele – conquistara o prêmio de Há outros “esquecimentos” imperdoáveis, as1989. É verdade que o galego (autor de A família de sim como há premiados que permanecem risíveis, coPascual Duarte, La Colmena e outros romances de mo escolhas quase sem explicação. É o caso de John grande qualidade) não era nome muito conhecido fora Galsworthy, prêmio Nobel de 1932 (por The Forsythe da Europa, e Francis escrevia o seu “diário da corte” Saga), cuja real importância literária, hoje, se reduziu à desde os Estados Unidos... Contudo, o prêmio para de ter sido o “descobridor” de grande escritor esconCela foi mais do que justo, apesar de inesperado. De- dido sob a timidez do capitão de marinha Joseph Consagradável foi a surpresa de 1992, o prêmio “politica- rad. Passageiro num navio comandado por Conrad, o mente correto” para a afro-americana Toni Morrison, turista Galsworthy recebeu das mãos do comandante abiscoitando a láurea com alguns romances medíocres, um conto inédito, para ler, no qual o escritor de férias que não sobreviverão ao tempo implacável com a falta pôde enxergar todo o talento de um dos maiores estide talento branco, preto, amarelo, não importa. listas da língua inglesa (embora Conrad fosse polonês O alemão Guntër Grass viu a sua obra tene- de nascimento), digno de sair do mar do anonimato brista – à rude maneira germânica – ser afinal reconhecida pelos acadêmicos suecos, em Quanto a torcidas pessoais – e se fosse 1999, porém os mesmos sisudos senhores para consolar a América das torres fizeram a brincadeira (só pode ter sido!) de premiar o italiano Dario Fo, há cinco anos. O de orgulho ruídas em 11 de setembro de chinês que ganhou em (como é o nome dele? 2001 –, digo que ficaria muito satisfeito Gao Xingjian?) permanece admirado somen- de ver premiado o excelente dramaturgo te no circuito parisiense, onde pontifica como novaiorquino, de 87 anos, Arthur Miller dissidente da dissidência, e muita gente já desistiu de conhecer a obra dos dois japoneses (Kawabata e Oe) que ganharam um prêmio nunca para escrever obras-primas como Lord Jim e Heart of conferido a João Guimarães Rosa, a Jorge Amado ou Darkness – mas não para ganhar um Nobel, ao contráa João Cabral de Melo Neto. rio do inexpressivo John Galsworthy. A “última flor do Lácio” foi distinguida, até hoNeste mesmo momento, está se falando de o je, somente na pessoa mal-humorada do José autor da prêmio de 2002 talvez ir para as mãos latino-americaobra (apenas regular) de Saramago, em 1998. Entre os nas de Mario Vargas Llosa ou de Carlos Fuentes. Esescritores lusos, Vergílio Ferreira teria sido um roman- te, mexicano, seria premiado com mais justiça do que cista de fato merecedor, alguns anos antes – e o excelen- o peruano Llosa, com os dentes cavalares de quem te Lobo Antunes (da geração seguinte à de Ferreira) morde temas caçados em toda parte (Llosa já veio aboera o nome esperado, na verdade, quando se anunciou canhar aqui a guerra do fim do mundo que Euclides que José Saramago seria o levantado do chão para subir, da Cunha devorou, sem deixar sobras para ninguém). de tamancos alentejanos, ao pódio de Estocolmo. Ainda neste rincão de Macondos, o poeta Ferreira Olimpo nobre do veludo e da pena, lá são feitas Gullar recebeu nova indicação – do Brasil mesmo –, as avaliações “geopolíticas” da Academia sueca – fria mas suas chances são menos que mínimas, porque só até o dedão do pé do último dos gelados acadêmicos uma pequena parte da obra de Gullar se encontra traque levam em conta idiomas e regiões, línguas e más- duzida em idiomas acessíveis aos acadêmicos da Suélínguas e homenagens a escritores e “escritores”. As cia (e mais: a língua portuguesa foi premiada muito resolenes proclamações vêm (até o final de outubro, pon- centemente, para que se possam ter esperanças). tualmente) sem nenhum sinal de aspas, é claro, mas a Neste ano, mais uma vez a escocesa Muriel história da literatura jamais poderá perdoar o “esque- Spark aparece cotada, assim como se mencionam, de cimento” de Marcel Proust e de James Joyce, por novo, Margaret Atwood, Kurt Vonnegut, Umberto exemplo. (Franz Kafka fica de fora da lista das injus- Eco e outros menos votados, entre indianos que escre-

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FOTOS: REPRODUÇÃO ; DIVULGAÇÃO

vem em inglês, novos chineses desconhecidos, franceses que sentem o peso da sua literatura, italianos que imitam Borges e Calvino (mais dois dos “esquecidos”), argentinos que acham que o prêmio Nobel é mesmo uma “Copa” para se ganhar com la mano e ingleses bons, mas jovens demais (Ian McEwan, Martin Amis). Muitos são os cogitados, porém um só é escolhido, anualmente, na rodada quase lotérica de países e nomes analisados por nebulosos e boreais critérios escandinavos. (Em 1998, quando a decisão “política” teria sido, quem sabe, premiar pela primeira vez a língua de Camões, como imaginar que iriam preterir a obra de um criador de mundos – de raiz popular – do tipo popular de Jorge Amado, em favor do tatibitate pós-comunista de Saramago?...) O editores desta revista pediram que eu não concluísse sem eleger algum nome cuja premiação me faria abrir um “Quinta do Porto/10 anos”, e também que fosse feito algum prognóstico ou “palpite” a respeito do provável escritor nobelizado neste ano. Prognósticos são sempre arriscados, ainda mais em se tratando das decisões finais da Real Academia etc. Mas eu arriscaria dizer que o escritor americano de origem palestina Edward W. Said é uma boa pedida, uma vez que há mais de vinte anos não premiam um autor com vocação também para o ensaio alentado (Elias Canetti foi o último, em 1981). Said, só para lembrar, é o autor do fundamental Orientalismo: o Oriente como Invenção do Ocidente e de outras obras de indiscutível importância, como estudos da cultura crepuscular que, no momento, receia as ameaças do ranger Bush, armado até os dentes, louco para tocar fogo no mundo. Quanto a torcidas pessoais – e se fosse para consolar a América das torres de orgulho ruídas em 11 de setembro de 2001 –, digo que eu ficaria muito satisfeito de ver premiado o excelente dramaturgo novaiorquino Arthur Miller (87 anos), autor de uma sólida obra teatral profundamente enraizada neste nosso tempo de caixeiros-viajantes a caminho da morte e dispostos a pagar o alto preço dos desajustados que, mesmo depois da queda, contemplam a vida pelos óculos partidos dos últimos ianques.

Ao lado, a escritora canadense Margaret Atwood. Abaixo, o dramaturgo novaiorquino Arthur Miller

Fernando Monteiro é escritor e jornalista

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Um Nobel que Freud explicaria O novo romance de Fernando Monteiro é ousado em abordar e questionar, sendo nisso pioneiro, a literatura de ficção no Brasil, desde suas raízes Maria da Paz Ribeiro Dantas

S

e outros méritos não tivesse, e os tem vários, o novo romance de Fernando Monteiro ( O Grau Graumann, Editora Globo, 2002, 222 pp.), teria este, ao qual faz jus pela ousadia: o de abordar e questionar - e nisso é pioneiro - a literatura de ficção no Brasil, desde suas raízes, colocando a si próprio como referencial. Na trama, um escritor gaúcho, Lúcio Graumann, ganha o prêmio Nobel 2001.Recebe a notícia em Acaú, praia da Paraíba, onde se acha há algum tempo com Marcia, ex-garota de programa e atualmente amiga. Há um certo mistério em torno de Graumann, de por que ele está ali; a trama vai sendo tecida de forma esgarçada, capta-se uma atmosfera que parece vir de fora e entrar no romance. Chega a ficar quase que em segundo plano o fato de o escritor encontrar-se em precaríssimo estado de saúde, o que lhe tira a vontade de dar entrevistas e falar seja o que for, com quem quer que seja. Graumann fica entregue aos cuidados de Marcia, que bola uma maneira de ele driblar a mídia: fazê-lo deslocar-se para Piedade, praia pernambucana. É nessa terceira estação ( a segunda foi num bar de periferia, onde se desenrola um episódio que ilustra bem a interferência do presente real no tempo do romance), que se cumpre a via crucis de Graumann: ali, ele é encontrado morto no banheiro, por um antigo colega e subordinado, do tempo em que era chefe de redação num jornal de Porto Alegre. Mário Portela é essa testemunha da morte, vida e de Lúcio Graumann, ao qual chegou até emprestar o original de um romance seu, Como Visões de Arcturo, para uma apreciação. Acontece que Mário Portela, misto de escritor e repórter, guarda, "atravessada na garganta" a suspeita de que Graumann teria plagiado esse texto no romance O Mantenedor de Visibilidades. (A senda da surata e O mantenedor de visibilidades são títulos de dois

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romances de uma fase inicial de Fernando Monteiro, inéditos, e hoje descartados pelo autor.) Em Acaú, um original inédito de Graumann é encontrado por Mario Portela. Trata-se do poema As montanhas da lua, uma parábola sobre Ghengis Khan, o imperador da distante Mongólia, que sofre de um mal de estranhamento diante do mundo que o rodeia. O texto inédito de Graumann é uma ilha do visível no oceano de invisibilidade em que é colocado o personagem, aparentemente em primeiro plano neste romance que leva o seu nome. Na verdade, o primeiro lugar pertence à linguagem, e através dela ao tempo, presente a começar da epígrafe de Robert Desnos: Testemunhamos só na noite funda, agora / do dia esplendoroso e entretanto ausente. / Se não dormimos é para espreitar a aurora / que enfim nos provará vivermos no presente ; versos que remetem à espessura de atualidade, verdadeiro foco narrativo de O Grau Graumann. A consciência de que o tempo da física há muito deixou de ser o tempo absoluto de Newton, poderia ser um ângulo para se ver, na narrativa, algo como uma interconexão de tempos fragmentários, sugerindo um outro nível de realidade, acima (ou abaixo...) de uma ilusória duração temporal. Por aí se chegaria à não gratuidade quanto à intrusão de Laura Maria Bento Valadares e suas trágicas circunstâncias de suicídio e marginalidade, como um ruído de interferência do estranho. Ou ainda do episódio do lixo de Matacavalos repercutindo a leitura de José Veríssimo a bordo do avião, e, através dela, Machado de Assis, para daí chegar-se à reflexão sobre a literatura "desenraizada". As imbricações disso com um sentido mais entranhado textualmente se perdem ou extraviam-se quando há pressa em cortar caminho, como se a narrativa se fizesse num


nível plano. Vale uma analogia com o processo da chamada leitura dinâmica, o olho deslocando-se em outras direções além da linearidade do texto impresso. Na verdade, pode-se dizer que há dois níveis da escrita: aquele em que se relata o clima coletivo desencadeado a partir da notícia da premiação de Lúcio Graumann, e outro, ou plano em off – a visão de mundo de Mario Portela, projeção de uma metalinguagem que tematiza, de uma ótica cultural, com matiz sociológico, a tradição do romance na literatura brasileira. O narrador – incluído nessa tradição – se vê, não sem inveja, como um escritor menor, daí o pesadelo de ter sido plagiado; sua dúvida (inclusive quanto aos fundamentos da própria suspeita) aflora durante um surto de honestidade intelectual, inesperadamente quando, diante de si mesmo, reconhece a superioridade estética da obra de Graumann sobre o comum da produção literária no país que agora , através dessa obra, é premiado. O despeito, apesar disso, existe, velado, e explode em irritação diante da obstinação do "nobelizado" em se negar a dar a entrevista. É possível ver em Portela e Graumann pólos opostos que se atraem: Portela respondendo pela visão objetiva das coisas, na missão jornalística de entrevistar, e no escritor premiado, o homem que fecha-se como uma porta, contra a qual ele investe, desesperado. "para ouvir o nada que ele tinha a dizer". "Nada" que, nesse plano de metalinguagem, remete ao silêncio intrínseco à obra literária, "que

parece refratária a explicações mais ou menos simplificadoras do seu grau de complexidade nova, digamos assim, para além daquele núcleo identificável do que 'contam' uns oito romances onde não acontece rigorosamente nada..." Literatura "desenraizada", a de Graumann Portela reflete. À margem das suas anotações sobre a escrita de Graumann: escrita sem os cacoetes dos "esforçados aquarelistas da literatura folclórica 'que dá coco", caberia a pergunta: é possível uma literatura enraizada sem ser necessariamente "folclórica" ? Alfredo Bosi, autor do conceito de literatura enraizada, parece carregar menos nas tintas, quando a define. ("A literatura entre 'objetiva' e 'expressionista' que se forjou nesse processo de autoconhecimento do homem urbano, se chamará, com igual direito, 'enraizada' na medida em que as contradições da História compõem uma face interna, vivida e pensada, tão real quanto a dos destinos coletivos"). Se como jornalista Portela não esconde sua perplexidade diante da recusa de Graumann em deixar-se entrevistar, como filósofo da linguagem ele dá pistas (ao menos para o desconfiado leitor de suas anotações críticas sobre a escrita de Lúcio Graumann, reconhecida agora por ele como "o foco estranho de uma nova visão de vitral partido" (...) " da nossa alma composta de metal falso e cacos de cerâmica que procuram a sua origem numa torre de Gaudi porto-alegrense, furando o azulejo partido do céu contra o qual a inexplicável grua do título aliterativo se situa..." Essa " grua" que, anagramaticamente, dá o grau de Graumann, não poderia – compondo-se e se recompondo – apontar para uma consciência do romance que, ao se escrever, ao mesmo tempo se autodefine como "agulha indecisa entre o corte sociológico e a sátira literária"? E se toda obra de arte é sonho, por que Freud não a explicaria ? Ainda mais que ela se assume como tal: "Este é um sonho inventado para a outra face de algum sonho verdadeiro – que eu não recordo, não posso recordar, ninguém o consegue (duvido) seriamente. Acho que sonhos não podem ser descritos, não são redutíveis a transferências sem transcodificação, na máquina Enigma da série intranslata do 'sonhado' que se perde pelo fio de transmissão da recordação etc etc." Maria da Paz Ribeiro Dantas é poeta e ensaísta.

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MEMĂ“RIA 34 Continente Multicultural


Médico, romancista, crítico literário, pintor e político, Jorge de Lima fica na história cultural brasileira principalmente como poeta Sebastião Vila Nova

FOTO: REPRODUÇÃO / AE

“E por que não escrever um ensaio, que certamente seria longo, sobre os disparates de Jorge de Lima?” – sugeria um dia desses um amigo à propósito da minha confissão de perpetrar um artigo em comemoração aos cinqüenta anos de publicação do Invenção de Orfeu, do grande escritor alagoano. Isso porque, ao lhe falar da minha intenção, eu citara um belo verso de um dos muitos sonetos do Invenção: “A garupa da vaca era palustre e bela/(...).” Disparate para muitos, mas disparate de gênio, um perfeito exemplo do inusitado das imagens na poética de Jorge de Lima. Invenção de Orfeu, tantas vezes objeto de “pastiche” por poetas de todas as dimensões concebíveis, dos quais o maior terá sido porventura Mário Faustino, provocou na poesia brasileira uma revolução seguramente mais profunda do que a Semana de Arte de 22 poderá ter provocado. É livro único na nossa poesia, para a qual representa o mesmo que Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, significa para o romance nacional. Médico, poeta, romancista, crítico literário, pintor, político (chegou a ser Presidente da Câmara dos Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro), notabilizou-se em tantas atividades que é difícil entender onde arranjava tempo para realizar – e sempre com a marca do mestre – tanta coisa. Segundo o crítico José Fernando Carneiro, amigo do poeta, José Lins do Rego costumava dizer que “os dias de Jorge de Lima pareciam ter 48 horas, e as horas, 120 minutos”, enquanto Raimundo Magalhães Júnior “escreveu que não se espantaria se algum dia ouvisse alguém anunciar: ‘Meus amigos, agora vamos apresentar Jorge de Lima como comedor de fogo e engolidor de espadas’.”

Piadas à parte, Invenção de Orfeu é a maior das realizações artísticas de Jorge de Lima, sendo portanto como poeta que ele há de ficar na nossa cultura artística. Na sua vida, tudo converge para essa obra de gênio, e, na poesia brasileira, passado, presente e futuro convergem para a Invenção de Orfeu. Visivelmente surrealista, onírico, noturno, às vezes, não poucas, é camoneanamente clássico (é notório o seu gosto pelo verso heróico); outras, revela a grande influência que veio a exercer sobre poetas que o sucederam (João Cabral de Melo Neto, inclusive). Essa poética tão pessoal, tão original, está, no entanto, orientada por um sistema de fórmulas de composição que seriam cacoetes, não possuísse o poeta a extraordinária capacidade inventiva, condição necessária, embora não suficiente, a todo grande artista. Daí afirmar o mesmo José Fernando Carneiro: “Os defeitos de sua poesia são os defeitos próprios de quem chegou nesse fim de mar, e se Jorge jamais cai no pernosticismo, tende algumas vezes a cair nas associações de palavras puramente fonéticas, na logorréria, traindo através desse cacoete, que reponta, de raro em raro, a direção dos seus esforços.” Na verdade, nos parece que o poeta criou uma ajustadíssima “máquina de fazer poesia” com as peças das suas fórmulas, facilmente identificáveis por qualquer leitor mais atento (aliterações, jogo de palavrapuxa-palavra, enjambements, atribuição abusiva de função adjetiva aos substantivos, neologismos); máquina, porém, lubrificada pela mais alta capacidade inventiva, que só os verdadeiros gênios possuem. Sebastião Vila Nova é sociólogo e músico

Invenção de Orfeu e a “máquina de fazer poesia” de Jorge de Lima Continente Multicultural 35


RESGATE

Quase no final da vida, doente e emocionalmente arruinado, Qorpo-Santo reuniu aproximadamente 200 cadernos manuscritos para transformá-los na Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade

Os aforismos satíricos de Qorpo-Santo

O escritor Qorpo-Santo , autor da Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade

“Nem todos os mortos são ao mesmo tempo – defuntos” Qorpo-Santo

U

m século ou pouco mais nos separam do aparecimento dos fascículos da Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade, de Qorpo-Santo, coleção que foi concebida pelo autor entre 18601873 e impressa em sua própria tipografia, na cidade de Porto Alegre, no ano de 1877. Não fosse a grafia utilizada por Qorpo-Santo na maioria dos textos que levam a sua assinatura considerada um caso à parte, a sua Ensiqlopédia ganharia muito daquele modelo enciclopedista de alguns escritores do século 18, principalmente no que diz respeito a sua habilidade para reunir em nove volumes os assuntos mais diversos, escritos nos diferentes gêneros literários e nas formas discursivas mais abrangentes e complexas. O que ainda se mantém como um atrativo para a leitura dos seis fascículos restantes dessa raridade bibliográfica seria o tratamento dado pelo autor à série de textos e fragmentos escritos ao sabor das atribulações de sua vida pessoal, justificando em certa medida a fortuna crítica do escritor gaúcho, que cos36 Continente Multicultural

tuma considerá-lo como um precursor avant la lettre de correntes como o Futurismo e o Teatro do Absurdo. A despeito das opiniões divergentes em relação a sua obra, para nós interessa ao menos investigar o modo pelo qual o autor agrupou seus textos, conservando lado a lado e sem qualquer método mais preciso os aforismos, as peças teatrais, as poesias, os artigos políticos e religiosos e os fragmentos autobiográficos compostos de cartas e sátiras a personalidades da sociedade porto-alegrense do século 19. Os textos humorísticos e trabalhados dentro do registro do nonsense apontariam igualmente para uma vertente do desvio e da negatividade que foi característica do Romantismo de um modo geral. No caso da Ensiqlopédia de Qorpo-Santo, se observa a subversão dos valores e hierarquias consagrados às produções do período iluminista, o que determina uma abertura muito maior para tratar, no mesmo nível, tanto os textos mais sérios quanto os instantâneos da vida cotidiana. Procedimentos que conferem aos textos do escritor um caráter singular no contexto da produção literária do século 19 no Brasil. Será o caso, por exemplo, dos aforismos inéditos do autor que aqui se prestaram a uma breve

FOTO: FUNARTE

Denise Espírito Santo


incursão nessa série de achados e perdidos. Quase no final da sua vida, já doente e emocionalmente arruinado pelo processo de interdição judicial movido por sua esposa, que o acusara de insanidade mental, Qorpo-Santo reuniu aproximadamente 200 cadernos manuscritos e resolveu transformá-los na Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade (assim mesmo grafado, obedecendo a sua proposta de reforma ortográfica), agrupando, em cada volume, o tipo de produção literária dentro da variedade concebida. Assim, teríamos, no primeiro volume, as suas poesias e alguns textos em prosa; no segundo, os aforismos escritos no período de setembro de 1862 até junho de 1864; no quarto, as 17 peças teatrais; no sétimo, a reimpressão de alguns artigos dos seus jornais a Saúde e a Justiça – editados, entre 1868 e 1873, nas cidades de Alegrete e Porto Alegre; no oitavo, as cartas e os depoimentos autobiográficos; e no nono, as interpretações do Novo Testamento e textos diversos. Embora possamos reconhecer que, na sua totalidade, os textos de Qorpo-Santo aspiram a uma retórica que simbolizou as Academias dos séculos anteriores, num segundo momento o seu empenho

por dominar a universalidade dos temas corresponderia à própria figura do homem de letras do século 19, que se apresentava como uma espécie de raisonèur. É o que parecem indicar as divagações/meditações do autor e as suas tentativas por descrever, em linguagem científica ou literária, os fenômenos gerais da natureza e da sociedade humana. O que se revelou como uma característica da sua produção literária foi o modo de conceber o processo de escritura fora dos padrões do Romantismo, que via no escritor a figura de vate, gênio ou condor. No caso de Qorpo-Santo, o tratamento atribuído à linguagem valorizava os diversos aspectos materiais da escrita e da impressão, tornando-os objetos privilegiados de sua produção artística, como no poema À meia noite, que se encontra publicado no segundo volume da Ensiqlopédia: Com lápis rombudo escrevo Por falta de um canivete Mas inda assim me diverte Borrões que a fazer m’atrevo. De outro lado, não podemos deixar de considerar os elementos de uma poética moderna que deixariam impressa, na escrita de Qorpo-Santo, a Continente Multicultural 37


Embora se perceba uma crítica geral aos sistemas sociais e mais precisamente à sociedade gaúcha de sua época, as máximas, pensamentos e provérbios do escritor se desenvolveriam quase sempre na direção dos paradoxos

pesquisa pela experimentação com a linguagem, e como ganharia força na sua obra a experiência do choque, que se transformou numa espécie de leitmotiv da arte no século 20. Uma literatura da experiência, que creditou ao choque uma das funções mais importantes, representou, na obra de Qorpo-Santo, a possibilidade de abertura para o resgate de uma experiência dentro do seu trabalho artístico. Os aforismos satíricos de Qorpo-Santo se inscrevem como uma produção de alta definição crítica. Embora se perceba neles uma crítica geral aos sistemas sociais e mais precisamente à sociedade gaúcha da época, as máximas, pensamentos e provérbios do escritor se desenvolveriam quase sempre na direção dos paradoxos. Característica que não deixaria de possuir seus equivalentes numa tradição filosófica que existe desde Aristóteles, Platão, Montaigne, Nietzsche e Wittgenstein. O caráter de artifício e auto-ironia se converteria num suporte para as investigações filosóficas de Qorpo-Santo. Os seus aforismos satíricos se construíam na forma de generalizações engenhosas, chistosas e/ou satíricas, e mais de uma vez nos deparamos com um sem-número de aforismos bem sucedidos do ponto de vista das inversões sintáticas e pela habilidade em serem percebidos como insight: Quando não tenho dinheiro, gasto mais que quando tenho – porque gasto também crédito. Os fios elétricos nada valem comparativamente ao modo rápido e em tão grande extensão em que publico. Alguns desses fragmentos também indicariam uma crítica ao ambiente da província porto-alegrense (e, por que não dizer, do país de um modo geral), onde coexistiam dois mundos culturais divergentes: o primeiro identificava-se com as nações que exerciam forte influência na formação intelectual do país, algo importante para a configuração dos níveis de escritura que se estabeleceriam entre nós; o segundo marcava a herança portuguesa ibero-católica. Esses dois pólos se contemplavam e se julgavam num sujeito localizado no interior das suas contradições, 38 Continente Multicultural

como poderemos ver adiante, em dois fragmentos cujos temas soariam anacrônicos para uma sociedade colonial e aprisionada no regime da escravidão: A escravidão em alguns povos deve extinguir-se por todo o século vindouro. Sendo cada indivíduo um original sem cópia, é lógica e infalível a impossibilidade do comunismo entre muitos! E se assim pudesse ser, inúteis seriam todas as leis! Também na linha dos aforismos satíricos, é curioso identificar nos textos do gaúcho Bastos Tigre, natural de Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, um tipo de escrita chistosa e humorística. Contemporâneo de Qorpo-Santo, Bastos Tigre inaugura um tipo de composição que se destacaria pela maneira de articular o sentido da linguagem dentro do uso que se faz dela. Citados por Mendes Fradique em Gramática Portuguesa pelo Método Confuso, as máximas e moralidades de Bastos Tigre são curiosas e divertidas ao mesmo tempo, e confirmam um parentesco com o Qorpo-Santo: Medicina é a arte de curar; como se chama a arte de passar atestado de óbito? A mulher é um animal de cabelos curtos e idéias curtas, e saias curtas. Filho de peixe sabe nadar; e o pai também. Quem tem vergonha morre de fome; e quem não come, também. À Ensiqlopédia de Qorpo-Santo coube, no entanto, a qualidade de obra deslocada no conjunto da historiografia brasileira, em grande parte pela ausência total de interlocutores. Isso já seria o suficiente para entendermos o caráter escorregadio da obra qorpo-santense em relação aos cânones românticos e ao emblema de obra singular que ainda exerce enorme fascínio e curiosidade, a despeito da atitude sempre desconfiada da crítica brasileira. Não deixa de oferecer um grande prazer a leitura desses aforismos de Qorpo-Santo, sobretudo pelo caráter de descoberta de certos textos inéditos e guardados a sete chaves. Denise Espírito Santo é pesquisadora.


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FERREIRA GULLAR

Arte como fazer ético A revolução industrial provocou um choque entre as potencialidades do novo modo de produção em série e o procedimento artesanal. E nada conseguiu deter o curso modernizador da tecnologia, que se refletiu sobre o pensamento e as atividades dos artistas

O

crescimento do modo de produção industrial em detrimento do artesanal está na origem das profundas mudanças ocorridas na arte, a partir de começos do século 20. Como se sabe, a revolução industrial, deflagrada de modo decisivo nas primeiras décadas do século 19, provocou um choque entre as potencialidades do novo modo de produção em série e o procedimento artesanal, criador de obras individualizadas e únicas. Assim foi que, de repente, as colunas gregas do estilo revival passaram a ser imitadas e multiplicadas pela máquina. O movimento Arts and Crafts, criado pelo inglês William Morris, foi uma tentativa de defender a sobrevivência do artesanato e da própria arte, nele fundada, que a indústria parecia condenar à morte. Mas nada conseguiu deter o curso modernizador da tecnologia, que se refletiu sobre o pensamento e as atividades do artistas. Para melhor compreensão deste processo, voltemos um pouco atrás, quando o rigor neoclássico e as fórmulas acadêmicas, que ele gerou, dominavam a produção artística. Enquanto este estilo parecia apagar, na tela, os vestígios do trabalho manual do artista, o Impressionismo, que surge em plena revolução industrial, faz questão de exibi-lo, pela realização inacabada, pelas pinceladas deixadas à mostra. Este fato, que parece contradizer a impessoalidade da “linguagem” industrial, revela-se, de fato, o caminho para aprofundar a crise da pintura como expressão artesanal. A primeira manifestação explícita da ruptura se dá no Cubismo, quando Picasso e Braque passaram a colar na tela pedaços de jornal e de papel de parede, em substituição a imagens ou texturas tradicionalmente feitas a pincel pelo próprio pintor. Estava implícita, neste gesto, a afirmação de que o quadro não tinha que ser obrigatoriamente produto do trabalho artesanal. Desses papiers collés, os cubistas passaram à utilização, 40 Continente Multicultural

em suas telas, de pregos, barbantes, metal, areia... Se é verdade que tudo isto ainda era feito à mão, punha no entanto de lado o artesanato específico da pintura. É certo que, no começo, sem ter ainda criado sua própria linguagem, a indústria se valeu das formas criadas pelos artesãos e artistas, pondo colunas dóricas em máquinas de tecelagem e na fachada dos primeiros arranha-céus. Mas, depois, ela definiu sua linguagem, que deveria caracterizar-se por formas limpas: cilíndricas, cúbicas, esféricas, etc. Isto tem a ver com o Cubismo e particularmente com o Neoplasticismo, de Mondrian, que avança na direção da impessoalidade, da racionalidade e da simplificação. A conseqüência desta opção estética será o Construtivismo, de Pevsner e Gabo, surgido na Rússia, em 1917-18, movimento que já proclama abertamente sua adesão aos procedimentos tecnológicos e ao uso de materiais criados pela indústria. Este processo é, claro está, dialético, contraditório. A pintura futurista exalta a máquina, mas se vale exclusivamente da técnica artesanal, quase tanto quanto o Expressionismo, que odeia a máquina e quer resgatar as técnicas artísticas mais rudes, como a xilogravura. Como se vê, a defesa do artesanato coincide com o retorno às fontes primitivas da expressão, à vida selvagem e ao irracionalismo, que não tinham lugar no mundo moderno, urbano e tecnológico. Não obstante, todos esses movimentos artísticos eram “modernos”, mesmo os que se opunham ao mundo novo surgido do progresso técnico e da industrialização. Houve um fato aparentemente sem importância, a que nenhuma história da arte atual ou crítico faz referência, e a que aludi em meu livro Argumentação contra a morte da arte (Editora Revan, Rio, 1992). Trata-se de uma visita feita por Marcel Duchamp, Brancusi e Fernand Léger a uma exposição da Marinha,


FOTO: REPRODUÇÃO

em Paris, em 1906. O episódio, revelado por Léger numa entrevista, é o seguinte: os três se deparam com uma enorme hélice de navio, fundida em bronze, que os deixa admirados. Então, Duchamp pergunta a Brancusi se ele era capaz de fazer uma “escultura” igual àquela, e o escultor responde que não. Em seguida, Léger e Brancusi se afastaram mas Duchamp permaneceu encantado diante da hélice. Estaria neste episódio a origem do ready-made? Tendo a crer que sim, pois ali, pela primeira vez, revelava-se a Duchamp a possibilidade de uma forma nova e expressiva, realizada sem propósito artístico e sem qualquer intervenção manual. O ready-made é a expressão irônica da crise do artesanato; a arte com um não-fazer. Mas, como toda boutade, o ready-made não é solução para um problema que envolve a natureza mesma da criação artística. Na verdade, na arte, o trabalho artesanal é fundador e criador de significados e não, como na atividade manual comum, executor de atos e formas por assim dizer “rotineiros”. No plano da produção de objetos utilitários, a eliminação do trabalho artesanal leva à perda, pelo artesão, do seu instrumento de trabalho e a conseqüente alienação do produto, que deixa de lhe pertencer; já no plano artístico, o resultado

é a pura e simples morte da arte (estamos nos referindo às artes plásticas). Esta é a razão por que, desde que foi deflagrada a crise, as diferentes e sucessivas tendências artísticas que tomaram o apelido de “vanguardas” tiveram sempre, como epicentro, a questão do fazer, ora como expressão da racionalidade, ora como rejeição de qualquer controle objetivo, como nos casos do tachismo e da action painting de Pollock. A opção duchampiana, especialmente as “apropriações”, terminou por influir decisivamente no rumo adotado pelos artistas que se intitulam “conceituais” e que, como esta designação indica, descartam o papel fundamental do fazer. Outra propriedade da obra de arte é seu caráter de objeto único (ao contrário do produto industrial, que não tem original), a qual, como diz Giulio Carlo Argan, “tem o máximo de qualidade e o mínimo de quantidade”. Por isso também, a obra de arte é o lugar não apenas do fazer estético, mas também do fazer ético. Esses valores são constitutivos de um universo cultural (e portanto humano) que, com a morte da arte, se perderia para sempre.

A primeira manifestação explícita da ruptura se dá com o Cubismo, quando Picasso passa a colar pedaços de objetos na tela em substituição a imagens feitas a pincel

Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

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ARTES PLÁSTICAS

O homem que copiava Citações e recriações em Félix Farfan

A

apropriação de imagens na arte contemporânea não pode ser entendida sob os conceitos da arte moderna. Baseado na duplicação, cópia ou incorporação direta de uma imagem por um artista que a representa num contexto diferente, alterando seu significado e questionando as noções de autenticidade e originalidade, tão caras à produção modernista, esse conceito não encontra respaldo no evolucionismo moderno, já que fere dois de seus princípios mais importantes. No entanto, o “citacionismo” é condição básica para muitos artistas que emergiram a partir da década de 80. “A apropriação, as coisas tomadas oportunamente para o nosso uso, era a atividade a que todos 42 Continente Multicultural

nós estávamos condenados devido à nossa condição de pós-modernos”, situa Michael Archer em seu livro Arte Contemporânea – Uma História Concisa. Essa geração, acostumada a receber o mundo através de imagens mostradas à exaustão pela TV e pela mídia impressa, teve acesso ao trabalho de artistas exponenciais muitas vezes somente por intermédio de fotos dos livros e das revistas de arte, sem nunca ter tido contato com a obra original. Esse desprendimento em tomar para si o que é de seu agrado, relocando significados, está implícito na obra de Félix Farfan. O artista acreano, radicado no Recife há mais de uma década, utiliza em vários níveis

FOTO: ELPÍDIO SUASSUNA

Cristiana Tejo


Trabalho inspirado no quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, 2001. Coleção Rui Pereira

essa ferramenta criativa contemporânea. A nuance mais característica de sua trajetória é a apropriação de um repertório pop, de objetos e de materiais cotidianos que são incorporados a suas telas repetidamente, formando texturas e composições diferenciadas. Farfan busca ainda em matérias de jornais e revistas personagens, figuras e palavras que vão povoar várias de suas séries de pintura. Uma das vertentes mais interessantes de sua produção, se bem que ainda não expressiva numericamente (de cerca de 600 obras já executadas por ele, apenas 35 são recriações), é a que o artista denomina de cópia, e que consiste na recriação de obras que o agra-

dam ou que o influenciaram de alguma forma. Esse processo surgiu no início dos anos 90 e ainda se constitui num exercício contínuo. “Eu não renego influência e acho que copiar é uma forma de homenagear! Muitos quadros renascentistas foram feitos pelos alunos dos grandes mestres. Na atualidade, o que vale é a idéia...”, afirma Farfan. Entre as obras “copiadas” pelo artista estão Os Girassóis, de Van Gogh, que receberam oito versões do acreano, e A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt. Do pintor João Câmara, com quem trabalhou durante oito anos e a quem deve o aprendizado de relevo e texturas, Farfan copiou várias vezes O Boneco Continente Multicultural 43


O desprendimento em tomar para si o que é de seu agrado, relocando significados, está implícito na obra de Félix Farfan, que utiliza em vários níveis essa ferramenta criativa contemporânea O Juiz, inspirado num estudo de Giorgio de Chirico, 1989. Coleção Dominique Guadalupe de Vasconcelos

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FOTOS: ELPÍDIO SUASSUNA

Rosa Mística, Rogai por Nós, quadro baseado nos “santinhos de correntes religiosas”, 1988. Coleção Virgínia e Edson Victor


Não Acompanha Interruptor, trabalho feito em cima de uma série de decorações para quartos de crianças, promovida por uma loja do Recife, a partir de personagens de Walt Disney, 1996. Coleção Dominique Guadalupe Vasconcelos

Econômico. “Sempre quando estou sem dinheiro, eu peço permissão ao Câmara para copiar o Boneco. Ele não se incomoda. Esse é um quadro que vende muito”, costuma dizer Farfan, tentando ignorar sua contribuição criativa. Por vezes, o artista tenta captar o legado estilístico de outros artistas, como é o caso do cearense Leonilson, de quem Félix Farfan tira a síntese para compor

algumas obras. Mesmo entre versões do mesmo quadro, o leitor/espectador não deve esperar por reproduções fiéis, mas recriações a que são acrescidos elementos vários, bem ao estilo excessivo de Félix Farfan. Em algumas obras, a auto-referência é a fonte de inspiração. Cristiana Tejo é jornalista e Coordenadora de Artes Plásticas da Fundação Joaquim Nabuco

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CONVERSA FRANCA

P

Na outra página, a escritora norteamericana Susan Sontag

elo menos desde o final da década de 60, quando publicou as coletâneas de ensaios Contra a Interpretação e A Vontade Radical, Susan Sontag vem sendo reconhecida como a intelectual americana que tem mais coisas para dizer. Essa reputação se deve em parte ao fato de Susan ter sempre tocado nas questões mais candentes do seu tempo, além de ter apresentado ao geralmente desinformado público americano “novidades” européias, como o pensamento de Walter Benjamin, a obra de Elias Canetti ou o cinema de Jean-Luc Godard. Escritora e ativista incansável, Susan escreveu de forma independente e ousada sobre a guerra e o câncer, sobre a literatura e o cinema, sobre a política e a fotografia, sempre movida por uma insaciável curiosidade intelectual. Em 1978, quando descobriu que estava com câncer, assinou uma corajosa e ultrapessoal reflexão sobre o assunto em A Doença como Metáfora. Dez anos depois, foi uma das primeiras a pensar filosoficamente sobre o novo mal do século, em um texto ficcional (O Modo como Vivemos Hoje) e outro ensaístico (A Aids e suas Metáforas). No meio tempo, publicou novos e estimulantes ensaios (como Sobre a Fotografia e Sob o Signo de Saturno). Susan abordava com a mesma sem-cerimônia temas da alta e da baixa cultura, incluindo a pornografia. Lançou modas e criou conceitos. Mesmo em seus primeiros romances, O Benfeitor e Death Kit, lançados nos anos 60, existia uma preocupação evidente em refletir os problemas de seu tempo. Isso mudou. Embora de vez em quando ainda aborde temas como a Guerra de Sarajevo em ensaios esporádicos, Sontag está trocando cada vez mais a reflexão engajada sobre a realidade contemporânea por poéticas recriações ficcionais do passado. A primeira foi O Amante do Vulcão (1992), sobre o affair entre Lady Emma Hamilton e Lord Nelson; depois, em 2000, o romance Na América, sobre um grupo de poloneses que tenta fundar uma comunidade na Califórnia no século 19, foi premiado com o National Book Award. “Eu me sinto mais livre escrevendo romances”, afirma. “É o que eu sempre quis fazer”. Mas, embora declare preferir a ficção à reflexão, Susan não aposentou seu lado ensaísta. No Rio de Janeiro para participar do Colóquio Internacional Caminhos do Pensamento: Horizontes da Memória – que também contou com a presença de estrelas como o historiador italiano Carlo Ginzburg –, ela revelou nesta entrevista exclusiva a Continente que concluiu seu novo ensaio, Um Olhar Sobre o Sofrimento do Outro, horas antes de pegar o avião. Com cerca de cem páginas, o texto aborda as implicações éticas e estéticas da inflação de imagens sobre atrocidades na mídia, e seus efeitos sobre a nossa consciência. E, mais uma vez, ela mostra que tem uma relação de amor e ódio com a América, que a faz cada vez mais gostar de se sentir estrangeira: “O conforto isola; no exterior me sinto mais viva”, declarou. Aos 69 anos, Susan Sontag continua pensando – e incomodando – muito.

Escritora e ativista incansável, Susan Sontag escreveu de forma independente e ousada sobre a guerra e o câncer, sobre a literatura e o cinema, sobre a política e a fotografia, sempre movida por uma insaciável curiosidade intelectual Luciano Trigo

Uma intelectual

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FOTO: NITZAN SHORER / AFP

engajada

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Em seus ensaios, a sra. apresentou aos leitores americanos diversos autores europeus, como Roland Barthes, Elias Canetti e Walter Benjamin. A sra. se sente influenciada por esses autores, na medida em que eles também escreveram sobre questões políticas e culturais de seu tempo? Na verdade é mais simples que isso. Eu leio muito, e percebo que muitas coisas que leio são desconhecidas pelas outras pessoas. Então, baseada no meu entusiasmo, escrevo ensaios sobre elas. Isso aconteceu especialmente com escritores que não eram muito conhecidos na América nos anos 60 e 70. Outro personagem que apresentei aos leitores americanos, mais recentemente, foi Machado de Assis. Isso não quer dizer que esses autores tenham me influenciado: eu simplesmente gosto deles e quero compartilhar as idéias que tenho sobre esses que admiro e que não são muito conhecidos em meu país. Mas não escrevo necessariamente sobre quem me influenciou. A sra. escreveu dois romances nos anos 60 – O Benfeitor e Death Kit – e depois passou 25 anos se dedicando aos ensaios. Por que decidiu voltar à ficção em 1992, com O Amante do Vulcão, e mais recentemente com Na América? Eu perdi o meu caminho. Escrever romances foi o que sempre quis fazer, mas me desencaminhei, me perdi. Os primeiros ensaios que escrevi chamaram muito a atenção, então acabei me tornando prisioneira de um senso de dever de continuar participando do debate sobre temas que importavam muito às pessoas, quando o que eu queria mesmo era escrever ficção. Talvez isso tenha sido um erro, mas assim é a vida. Mas talvez isso tenha sido bom, porque o fato é que, quando voltei para a ficção, depois de tanto tempo, eu era uma ficcionista muito melhor. As melhores críticas que já recebi foram as dos meus últimos dois romances. E posso citar como um exemplo parecido o escritor português José Saramago. Quando ele era bem muito jovem, escreveu um romance. Depois se dedicou à política e ao jornalismo, e só escreveu seu segundo romance 20 anos depois, quando já era “José Saramago”. De certa forma, acho que foi positivo eu passar um longo período escrevendo somente ensaios, e deixar amadurecer o lado de ficcionista. Hoje prefiro a ficção, pois ela me permite abordagens mais amplas. A idéia do “estrangeiro” está muito presente em seus últimos livros. Por quê? 48 Continente Multicultural

“Eu perdi o meu caminho. Escrever romances foi o que sempre quis fazer, mas me desencaminhei. Os primeiros ensaios que escrevi chamaram muito a atenção, então acabei me tornando prisioneira de um sentido de dever de continuar participando do debate sobre temas que importavam muito às pessoas” Eu gosto de estrangeiros, e gosto de ser uma estrangeira. E de fato meus dois últimos romances são protagonizados por estrangeiros. O Amante do Vulcão se passa em Nápoles, no século 18, e fala sobre o almirante Nelson; já Na América fala sobre poloneses émigrés que tentam fundar uma comunidade na Califórnia. E meu próximo romance será sobre franceses que vivem no Japão. Talvez esses três livros constituam uma trilogia, e talvez eu escreva algo bem diferente depois. Mas, mesmo na vida cotidiana, eu gosto de não me sentir em casa. Acho que o conforto isola. Numa situação de estranheza eu me sinto mais viva. É uma questão de temperamento. Algumas pessoas gostam de estar em casa; eu, não. Talvez porque eu tenha sentimentos ambivalentes em relação a meu país, que tem coisas que eu adoro e outras que eu odeio. Talvez se eu fosse brasileira não gostasse tanto de me sentir estrangeira. Mas é difícil ser americana e ter uma consciência tranqüila. Por quê? Porque a América é um império, e um império muito poderoso. No Brasil vocês se preocupam com crimes, violência e outras injustiças que são cometidas por aí, mas pelo menos vocês sabem que não estão matando ninguém em outras partes do mundo. A sra. acha que o fato de ser mulher afeta a percepção que as pessoas têm da sua obra? Estou segura de que afeta. Mas odeio pensar nisso (risos). As pessoas ficam sempre preocupadas em destacar o fato de eu ser mulher, de “como uma mulher pode ser inteligente”... Odeio isso. Em tempos de triunfo global do capitalismo, a sra. ainda acredita na possibilidade de um novo movimento contracultural?


FOTO: REPRODUÇÃO

A cultura é sempre uma questão muito complicada. Sempre existem tendências conflitantes, a cultura nunca é uma coisa só. Existem elementos de conformismo convivendo com focos de resistência, como você pode ler diariamente nos jornais ou ver na televisão. Isso sem falar nas coisas que não aparecem na mídia, porque sua divulgação poderia ter conseqüências complicadas. A sra. acha que a globalização pode ter efeitos positivos para os países pobres? Os países pobres seguramente não pensam assim, ao contrário, está sendo horrível para eles. Como a globalização pode ser boa para os países pobres, se eles nunca irão alcançar os padrões de consumo dos ricos? Universalizar o padrão de vida americano é impossível. Basicamente, acredito que a disseminação dos padrões e valores culturais americanos no mundo é um veneno, pois destrói as culturas locais. Mas, no contexto dos países pobres, o Brasil não está tão mal assim. É um grande país, com um grande futuro, com uma população e uma cultura interessantes. Sua posição é muito melhor que a de outros países. Em termos

relativos, o Brasil está muito bem, é um país bem protegido dessa influência americana. O simples fato de vocês falarem português, e não espanhol, como todo o resto da América Latina, já é uma sorte. Por outro lado, se Machado de Assis escrevesse em inglês seria muito mais conhecido... Sim, mas se ele fosse italiano, francês ou alemão também seria mais conhecido. É certo que existe discriminação, mas acho que a cultura brasileira tem uma lógica interna com fronteiras bem definidas, o que a torna menos vulnerável à influência americana. Acho que é um grande erro considerar os países pobres em bloco, como se fossem todos iguais. Acho a expressão “Terceiro Mundo” bastante estúpida. O Brasil, a China e a África não têm nada em comum, esse conceito é ridículo. Por outro lado, embora não caiba a mim dizer isso, a situação atual da economia me parece bastante ruim. Os brasileiros com quem conversei estão pessimistas, achando que no próximo ano acontecerá no Brasil o que aconteceu na Argentina. Mas não tenho conhecimento suficiente para opinar sobre isso, e gosto de entender as coisas de uma maneira bem concreta antes de me manifestar.

Sontag diz que gosta de apresentar aos leitores americanos escritores que eles não conhecem, como Machado de Assis, por exemplo

A sra. prefere escrever sobre o passado, como em seus últimos romances, ou sobre as questões do presente, como na maioria de seus ensaios? Prefere trabalhar com material inventado ou autobiográfico? E por que o passado representa uma carga para os americanos? Não sei se o passado é uma carga para os americanos. Eu sou uma contadora de histórias. Gosto de inventar coisas. Não estou muito interessada em mim mesma, e sim no mundo. Posso até ter colocado características minhas em algum personagem, mas não estou interessada em contar a minha história. Então, o material inventado é mais interessante para mim. Mas essa é uma pergunta interessante, porque eu mesma fiquei totalmente surpresa com o fato de ter escrito dois romances sobre o passado. Nunca pensei que faria isso, mas me senti livre como nunca me sentira ao escrever sobre material contemporâneo. Mas muitos Continente Multicultural 49


autores escreveram romances situados no passado, não há nada demais nisso. Num certo sentido é até mais difícil, porque exige muita pesquisa... Mas, por outro lado, escrever romances históricos dá mais liberdade. Por exemplo, quando os autores sérios escrevem hoje sobre amor e romance, eles têm medo de ser sentimentais demais, então se sentem obrigados a dar um toque irônico ao texto, a ser um pouco cínicos. Mas se eu escrevo uma história passada no século 18 ou 19, me sinto à vontade para ser extraordinariamente romântica (risos). Umberto Eco diz que hoje é impossível alguém escrever seriamente “Eu te amo” num romance. É sempre preciso parecer irônico... Entendo o que ele diz, mas não é verdade. Qual é a função dos intelectuais hoje? Dizer a verdade. O que é difícil, porque a verdade é complicada, e é muito fácil seguir a corrente, querer agradar aos outros, ter a opinião adequada sobre as coisas e assim por diante. O intelectual deve

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procurar ser independente, ser original, um exemplo para os outros, e não seguir slogans e palavras de ordem. Eu critiquei José Saramago porque ele expressou opiniões sobre Chiapas antes de ter ido lá. Eu estive lá e conheço aquela realidade, então achei um ato irresponsável da parte dele, mesmo que o que ele escreveu seja basicamente verdadeiro. Freqüentemente os intelectuais são as pessoas menos entusiasmadas com a tecnologia. A sra. se inclui nesse grupo? Não gosto de falar pelos outros, mas provavelmente é verdade. Pessoalmente, nunca tive um aparelho de televisão na vida, mas sequer considero a televisão como tecnologia. Vejo-a como uma perda de tempo. Vou ao cinema cinco vezes por semana. Não gosto de ficar em casa, confinada. Gosto de sair, ir a concertos, peças de teatro. Ver televisão torna a sua faixa de atenção menos acurada. Por outro lado, eu adoro computador. Alguns escritores o detestam, mas eu acho que ele é a melhor máquina de escrever já inventada. Não tenho problema algum com a tecnolo-

FOTO: LOUISA GOULIAMAKI / AFP

Segundo Sontag, imagens fortes na mídia, como a das crianças num campo de refugiados da guerra da Iugoslávia, não chocam mais porque “tudo já foi mostrado”


gia, só não gosto de tornar minha vida desnecessariamente complicada. Há tantas coisas que quero fazer em vez de ver televisão, que é feita para exigir um baixo nível de atenção. Além disso, tenho aversão à manipulação que ela promove. O contato com o cinema de Jean-L Luc Godard foi decisivo na sua vida. Já que continua assistindo a tantos filmes, que diretores contemporâneos destacaria? Dúzias. Acho que o maior diretor vivo é o russo Alexander Sokholov. Mas há novos cineastas franceses excelentes também. O cinema é uma forma viva, como a literatura. Todo mês aparece algo novo, interessante. O que conhece da literatura brasileira? Só conheço os nomes mais óbvios. Machado de Assis é meu favorito. Também li Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Roberto Schwarz... Acho que sou uma ignorante bem informada.

FOTO: REPRODUÇÃO / AFP

O que acha da espetacularização da violência promovida pela mídia? Na verdade essa análise já está um pouco velha. Ela foi desenvolvida na França, nos anos 60, por um intelectual brilhante mas um pouco maluco, chamado Guy Débord, autor de A SociedadeEspetáculo. O livro teve uma importância enorme em todo o mundo, influenciou inclusive a mim. É um texto-chave, e a sua percepção é essencialmente correta. Mas, 40 anos depois, continuar dizendo que vivemos numa sociedade do espetáculo virou um beco sem saída. Acho que é muito mais preocupante a forma como a sociedade capitalista avançada manipula as pessoas, para que elas se transformem em consumidores, o tempo inteiro. Vejo a sociedade e o mundo hoje não como um grande espetáculo, mas como uma grande loja de departamentos. Portanto, é necessário encontrar maneiras de reagir a isso, mas é muito difícil ficar livre da sedução dos produtos que a economia avançada fabrica, pois ela exerce um efeito muito poderoso.

“Muito preocupante é a forma como a sociedade capitalista manipula as pessoas para que se transformem em consumidores o tempo inteiro. Vejo a sociedade e o mundo hoje não como um grande espetáculo, mas como uma grande loja de departamentos. É necessário encontrar um modo de reagir a isso”

Para a escritora, pessoas que ficaram marcadas pela experiência do Holocausto querem, na verdade, esquecer aquilo e não erguer memoriais

A sra. aborda esse tema em seu novo ensaio, cujo título é Um Olhar Sobre o Sofrimento dos Outros. Demorei um ano escrevendo esse ensaio, e só o concluí horas antes de tomar o avião para o Rio. Ele fala, entre outras coisas, sobre o impulso que nos leva a querer ver o sofrimento alheio. Eu mesma experiContinente Multicultural 51


mentei isso quando, aos 12 anos, em 1945, vi pela primeira vez as fotos dos campos de concentração de Dachau e Buchenwald. Por um lado foi um choque, o momento mais importante da minha vida. Pensei: “As pessoas são capazes desse grau de crueldade”. Mas não creio que hoje esse choque seja possível, já que vivemos cercados por imagens atrozes. Tudo já foi mostrado. Acho que a inflação de imagens sobre atro-

cidades, mais do que fazer as pessoas “lembrar”, tem como objetivo a fabricação de uma memória coletiva, que é engendrada ideologicamente. Por exemplo, as pessoas que realmente passaram pelo Holocausto e têm números tatuados na pele tentam na verdade esquecer aquela experiência, senão seria impossível para elas continuar vivendo. Eu acho que, para se alcançarem o entendimento e a paz entre os povos, o esque-

FOTO: REPRODUÇÃO

Fotografia célebre de homem sendo baleado na Guerra Civil Espanhola, de Robert Capa. Ao lado, havia um anúncio de creme de barbear

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“A parte séria das revistas é apenas um gancho para vender produtos anunciados. E hoje a fotografia publicitária é tão sofisticada, inteligente, artística, esteticamente estimulante, que o leitor pode não distinguir mais uma fotografia de Sebastião Salgado de uma imagem publicitária” cimento pode ser mais importante que a memória. É preciso saber esquecer, para que crueldades cometidas séculos atrás deixem de servir como pretexto para novas violências, como acontece nos Bálcãs ou na Irlanda. Por outro lado, é curioso que nos Estados Unidos existam museus que preservam a memória do Holocausto, mas nenhum museu que registre a infâmia da escravidão. A sra. cita fotografias que traduzem o poder de sedução da mídia... Sim. Quando eu estava escrevendo meu último ensaio sobre os efeitos do excesso de imagens de atrocidades na vida das pessoas, deparei com uma fotografia célebre tirada durante a Guerra Civil Espanhola, que mostra um homem que acabara de levar um tiro, curvado para trás, com os joelhos se dobrando e os braços abertos, e um rifle caindo de suas mãos. Talvez seja a fotografia de guerra mais famosa de todos os tempos. Em 1937, essa foto saiu na revista Life, e na página ao lado havia um anúncio de... creme de barbear. Isso já em 1937. Você vê a fotografia de um lado e pensa: “Isso é muito sério”; vê o anúncio na página ao lado e conclui: “Preciso comprar esse creme de barbear”. Foi algo obviamente intencional. A parte séria das revistas é apenas um gancho para vender os produtos anunciados. E hoje a situação é ainda pior, pois a fotografia publicitária é tão sofisticada, inteligente, artística, esteticamente estimulante, que o leitor pode não distinguir mais uma fotografia de Sebastião Salgado de uma imagem publicitária. Aliás, Salgado é hoje muito atacado no mundo da fotografia. As pessoas olham seu trabalho com suspeição, porque acham que ele estetiza a pobreza. Não concordo com isso. Luciano Trigo é jornalista

Livros de Susan Sontag (os publicados no Brasil seguem com o título entre parênteses): •Freud: The Mind of the Moralist, 1959 •The Benefactor, 1963 (O Benfeitor) •Literature, 1966 •Death Kit, 1967 •Against Interpretation and Other Essays, 1968 (Contra a Interpretação) •Styles of Radical Will, 1969 (A Vontade Radical) •Trip to Hanoi, 1969 •Duet for Cannibals, 1970 •Brother Carl, 1974 •On Photography, 1977 (Sobre a Fotografia) •Illness as Metaphor, 1977 (A Doença como Metáfora) •I, Etcetera, 1978 •The Story of the Eye, 1979 •Under the Sign of Saturn, 1980 (Sob o Signo de Saturno) •A Susan Sontag Reader, 1982 •Aids and its Metaphors, 1988 (A Aids e suas Metáforas) •Italy, One Hundred Years of Photography, 1988 (with Cesare Colombo) •Cage-Cunningham-Johns: Dancers on a Plane, in Memory of their Feeling, 1990 (with Richard Francis) •The Way We Live Now, 1991 (O Modo como Vivemos Hoje) •Violent Legacies, 1992 •The Volcano Lover, 1992 (O Amante do Vulcão) •Alice in Bed, 1993 •Conversations with Susan Sontag, 1995 •Homo poeticus, 1995 •In America, 1999 (National Book Award, 2000) (Na América) •Why Are We in Kosovo?,1999 •Where The Stress Falls, 2001


MARCO ZERO

Conceito: o hímen complacente da cultura A vacuidade teórica não pode orientar uma política cultural voltada para os problemas concretos de um Estado

Não acredito em mulher, Não tem essa nem aquela, Não merece confiança Nem no tempo de donzela. Eu não creio em fechadura Que toda chave dá nela. (Zé Catota)

E

m 1987, ao assumir pela segunda vez a Diretoria de Assuntos Culturais da FUNDARPE, órgão responsável pela execução da política cultural do Governo de Pernambuco, chamei todo o pessoal e pedi a cada técnico que sentasse em sua mesa e escrevesse a sua definição do termo cultura. Lembro-me de me ter chegado às mãos um punhado de textos que não poderiam ser considerados definições do ponto de vista da Lógica Formal, por faltar-lhes clareza, por haver inclusão do termo a definir, por serem aplicáveis a outros termos, e por aí vai. No entanto, lembro-me de que na grande maioria daqueles textos havia a tendência à generalização, ao aumento da extensão em detrimento da compreensão, e, com tal vacuidade teórica, não se poderia orientar uma política cultural voltada para problemas concretos de um único estado da Federação. Foi pensando nessa experiência que, mais tarde, quando solicitado a reunir as idéias básicas que norteariam as ações culturais do governo, escrevi o texto intitulado: “Cultura é sobrevivência”.

Quero acrescentar que os técnicos da FUNDARPE, naquela época, eram pessoas inteligentes, com curso superior e variada familiaridade com a ação cultural no âmbito do poder público. A confusão conceitual no setor é encontrada, também, nos próprios livros de Filosofia, Antropologia e nos diversos textos legislativos que deram origem, por exemplo, ao Ministério e às Secretarias Estaduais e Municipais de Cultura. Os outros ministérios e secretarias têm problemas de verbas e de interferências partidárias, enquanto os da Cultura, além de também os terem, sofrem de permanente crise de identidade conceitual, e, como já disse com outras palavras em outra oportunidade, por não saberem o seu lugar na máquina governamental, são geralmente ocupados por todo tipo de gente. Algum governador colocaria um engenheiro na Secretaria de Saúde? Disse antes que a confusão conceitual também estava na legislação. Nessa área, tenho uma desastrosa experiência a contar. Antes da promulgação da Constituição do Estado de Pernambuco, de 1989, participei de uma reunião de produtores culturais, que não suspeitava ser do tipo “aparelhada”, na definição de Brizola, para oferecer sugestões ao texto da Seção II – Da Cultura, daquela Carta. Lá para as tantas, ousei me rebelar contra o hoje Inciso IX do Art. 199, que preceitua “tratamento da Cultura em sua totalidade, considerando as expressões artísticas e não artísticas”. Procurei advertir que “não artísticas” englobaria até o ato de conceber e construir um poste elétrico. O mais

Alberto da Cunha Melo 54 Continente Multicultural


ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

retórico do grupo deu-me um nocaute que provocou gargalhadas, dizendo que “encostado àquele poste poderia estar um seresteiro com seu violão”. Calei-me, o Inciso continua lá e eu continuo um homem virgem: nunca ganhei uma discussão. Mas, de passagem, é preciso dizer que tais generalizações, politicamente convenientes, também estão na Constituição Federal de 1988, que estabelece, em sua Seção II – Da Cultura, Inciso II, do Art. 216, entre os itens do patrimônio cultural brasileiro, que devem ser promovidos e protegidos “os modos de criar, fazer e viver”, o que nada mais é que nova versão do conceito de fato social de Émile Durkheim (“maneiras de agir, de pensar e de sentir”). Olavo de Carvalho percebeu o viés antropológico constitucional, mas dirige sua crítica contra a imposição de proteger a produção de obras

que reforcem a identidade nacional, enquanto o que me preocupa é que esse conceito antropológico é muito abrangente e ineficaz para orientar pragmaticamente o planejamento cultural dos órgãos públicos. Quando fui contratado pela Fundação Cultural Capitania das Artes, da Prefeitura de Natal – RN, na gestão de Gileno Guanabara, para elaborar um plano de ação cultural para o biênio 1998-2000 (plano que não foi executado porque a descontinuidade administrativa também saqueia a área cultural), vi-me forçado a discutir os conceitos de cultura em seus níveis filosófico, antropológico, restrito e, o que, por falta de melhor nome, chamei de operacional. Parti do mais alto nível de generalização para chegar, através de reduções epistemológicas, ao que pretendo seja um conceito de máxima compreensão, a ser operacionalizado com relativa facilidade por técnicos seniores e juniores dos órgãos de cultura. Esse conceito está escondido nos artigos, parágrafos, incisos e alíneas dos textos legislativos sobre cultura. Está no “espírito da lei”. É o conceito estético, e sua extensão não é pequena como se pensa. Abrange todas as formas de arte, populares ou eruditas, tradicionais ou de vanguarda; o artesanato não exclusivamente utilitário; o folclore em suas manifestações de lendas, contos, danças, músicas, versos e magia. Para aqueles que consideram o diálogo um caminho para a verdade e não uma chance para ganhar mais uma discussão, o assunto continua em aberto no país.

Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo

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ESTÉTICA

Com seus mais famosos filmes, duas obras-primas de técnica, fotografia e mise-en-scène, a cineasta alemã conseguiu transmitir o ideal estético de Hitler

FOTOS: REPRODUÇÃO

Marco-Aurélio de Alcântara

Leni Riefenstahl ou a 56 Continente Multicultural


Ao lado, a cineasta alemĂŁ Leni Riefenstahl, como aviadora, no filme SOS Iceberg, em 1932

Na outra pĂĄgina, Hitler em visita de madrugada a Paris, em junho de 1940, em companhia de Speer (E) e Arno Breker (D)

estĂŠtica do nazismo Continente Multicultural 57


ensaio de Mário Hélio sobre Leni Riefenstahl – a cineasta preferida de Hitler – publicado, em agosto último, no Caderno Viver do Diario de Pernambuco, levanta o véu do silêncio entre nós sobre a estética do Nazismo, um assunto até bem pouco tempo considerado tabu nos círculos artísticos, pois Leni – que acaba de completar 100 anos de idade (22-0802) na sua casa nos arredores de Munique – sempre foi tida como uma apóstata da arte cinematográfica. Mas ninguém pode negar que seus dois mais famosos filmes – O Triunfo da Vontade e Olympia – o primeiro sobre o Congresso do Partido Nazista em Nuremberg, em 1934, e o segundo sobre as Olimpíadas de 1936 em Berlim – são obras-primas da técnica, principalmente da fotografia e da mise-en-scène, sendo que em Olympia ela conseguiu transmitir o ideal estético de Hitler, que era a perfeição física. A esse respeito, Walter Benjamin, o filósofo alemão, costumava dizer que “enquanto o Comunismo politiza a Arte, o Fascismo estetiza a Política” (v. Günther Berghaus, Fascism and Theatre – Comparative Studies on the Aesthetics and Politics of Performance in Europe, 1925 – 1945, Oxford). 58 Continente Multicultural

Se Hitler admirava Leni, como mulher, dela guardava uma certa distância física, pois o seu culto da mulher era Mariano. O próprio Speer, nos interrogatórios conduzidos pelos advogados e psicólogos norteamericanos em Spandau, onde esteve preso 20 anos, observou sobre o Führer: “Ele sabia como guardar a necessária distância (das pessoas). Ele era inacessível e imprevisível” (v. Richard Overy, Interrogations, The Nazi Elite in Allied Hands 1945, Penguim Press). Os Nazistas buscaram sempre utilizar a Arte e a Literatura como mecanismos de identidade nacional e propaganda. Nisso Hitler e Stalin se igualaram, procurando promover a chamada “arte das massas” com figuras de heróis como modelos plásticos. A esse propósito, Leni dizia: “Nos meus filmes, não busco heróis. Quero modelos (de beleza plástica)”. Leni entrou no círculo de Hitler não necessariamente como adepta, mas passou a ser vista como uma court intellectual do Poder Nazista. A associação de Leni Riefenstahl com Hitler mostra o velho “clichê” da convivência do intelectual com o Poder, que Norberto Bobbio descreve como

FOTO: REPRODUÇÃO

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Os nazistas sempre buscaram utilizar a arte e a literatura como mecanismos de identidade nacional e propaganda

uma relação de amor e ódio ou de gato e rato, no melhor estilo dos Cartoons, quando, no final, terminam amigos, sendo tão-somente parceiros. Em nenhum momento, Leni filiou-se ao Partido Nazista (NSAP – National Sozialistisch Arbeit Partei), e suas relações com Goebbels, Ministro da Propaganda, não foram sempre cordiais, antes conflituosas. O intelectual puro, diz Norberto Bobbio, prefere a política cultural, a Kultur pura e simples, enquanto o intelectual revolucionário, politicamente engajado, prefere a política da cultura. Com Speer a cineasta disputou arranjos e posições, principalmente no campo da iluminação, quando Speer concebeu os efeitos especiais de luz e som para o stadium de Nuremberg, que recebia os desfiles do Partido Nazista, dramatizando os espetáculos, que se baseavam em boa parte na marcha de grupos de burocratas. Leni deu seu depoimento sobre Speer à Gitta Sereny: “Speer era um homem extraordinariamente atraente e impressionante, e isto eu senti desde quando o encontrei, em 1933, época em que ele tinha, é claro, 28 anos. Para mim tornou-se o homem mais importante – e certamente o mais interessante – na Alemanha, depois

de Hitler”. Speer não chegava a ser bonito, dizem as mulheres, mas era atraente. Eva Braun, a amante de Hitler, que com ele se suicidou no bunker da Chancelaria, em 1945, gostava de Speer, e entre ele e Hitler pode ter havido uma certa atração homoerótica, segundo alguns analistas. É certo que Leni desfrutou o quanto pôde das “benesses” do Poder, como todo intelectual engajado, ao ponto de colocar um dos seus mais capazes cameramen como o “cinegrafista oficial da Luftwaffe” no Quartel General do Führer. O que primeiro chamou a atenção de Hitler relativamente a Leni Riefenstahl foi o seu filme Luz Azul. O fato é que, mais tarde, a estética de Leni ficou muito a dever à organização e domínio do espaço que Albert Speer criou, principalmente para as filmagens das Olimpíadas. Em Olympia, Leni pagou seu tributo à estética de Hitler, que era a estética do Nazismo, o mesmo padrão que ele procurou imprimir à Hitler Jugend (Juventude Hitlerista) – gente bonita, limpa, fisicamente perfeita, ariana, só músculos de aço – “duro como o aço da Krupp”, costumava dizer.

Mussolini, Hitler e Goebbels visitam a galeria Borghese, em Roma

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FOTO: REPRODUÇÃO

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Ao lado, o Projeto do Stadium de Nuremberg, para 400.000 pessoas

Gitta Sereny dá esse depoimento sobre Leni Riefenstahl, cujas pernas rivalizavam em beleza com as pernas de Marlene Dietrich (e chamaram também a atenção de Hitler), quando a escritora e jornalista austríaca visitou-a em 1994: “Ainda notavelmente bemapessoada quando nos encontramos, ela vivia com seu jovem e talentoso assistente Horst Kettner, que, ferozmente, a protege e talvez seja mais raivoso do que ela própria – e menos contido nos seus comentários francamente anti-semitas – contra os ataques contínuos dirigidos à cineasta”. Kettner estava encarregado, também, de guardar os arquivos fotográficos da cineasta, inclusive “câmera escura”, principalmente os extraordinários negativos dos filmes sobre a tribo Nuba, da África. Desde 1970, eles dois trabalharam juntos em fotografia submarina no Mar Vermelho e no Oceano Índico, onde ela realizou o seu mais espetacular documentário depois da Guerra. Kettner cozinhava e limpava a casa, enquanto a cineasta trabalhava na sua biografia, publicada na Alemanha, em 1987, e em inglês, no início de 1990.

Leni refuta as acusações de que tenha aderido à ideologia anti-semita do Nazismo. E à Gitta Sereny declarou: “Eu disse a Hitler, uma vez, que ele não deveria atacar os Judeus, pois eu não poderia desgostar de alguém só pelo fato de ser Judeu ou Negro”. E ele respondeu: “Você é jovem. Você aprenderá a compreender”. Conclui Gitta: “She is a complicated woman with formidable talents, and may well have come to believe her fantasies”. (“Ela é uma mulher complicada com talentos formidáveis, e talvez até tenha chegado a acreditar nas suas próprias fantasias”) (v. Gitta Sereny, Albert Speer, His Battle With Truth, Macmillan, Great Britain, 1995. Speer Leni disputaram sempre a autoria da Catedral da Luz. Qual o ideal estético que Leni transportou para os seus filmes? A resposta está na escolha das fotografias de Hans Peter, seu auxiliar durante algum tempo: “a de um jovem extremamente belo, quase nu, bronzeado e musculoso – o macho Nórdico ideal dos sonhos de Hitler.”

Na outra página, a Berlim do Reich dos 1000 anos, em projeto de Speer

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A fascinação exercida pelo nazifacismo na Europa dos anos 30 envolveu algumas das mentes mais brilhantes da França, e não apenas da Alemanha ou da Itália

A cineasta em foto de 1995, aos 93 anos

O escultor Arno Breker, que os intelectuais franceses fascistas sempre admiraram – inclusive Cocteau e Gide, pela valorização do nu masculino nas suas obras – e Josef Thorak privaram da amizade do Führer. Sabe-se que Hitler freqüentava, assiduamente, o ateliê de Thorak, conhecido pela modelagem de atletas e discóbulos gregos. Leni Riefenstahl cedo compreendeu que a estética Nazista apoiava-se nas grandes manifestações teatrais – artful spectacles, diria a imprensa inglesa –, como os desfiles da Juventude, os Festivais da Colheita, o uso de banners verticais (estão voltando, e a palavra é de origem germânica), o desfile das tropas da Wehr62 Continente Multicultural

Marco-Aurélio de Alcântara, jornalista, escritor, nasceu no Recife em 1937 e fez seus estudos de humanidades em Pernambuco. Licenciou-se em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Madri. Foi colunista do Diario de Pernambuco e fundou a Pool Editores e a Letras & Artes Editora. Editou, durante 12 anos, a revista Nordeste Econômico, Político & Cultural. Em Portugal, é sócio da Editora Iberamérica.

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Leni filmando Terra Baixa, em 1940

macht e SS. E mais: a saudação com o braço direito estendido, a distenção do braço em dois tempos – sobre o peito e, em seguida, na vertical, distendido, ao nível da perna direita. A fascinação exercida pelo Nazifascismo na Europa dos anos 30 envolveu algumas das mentes mais brilhantes da França – e não apenas da Alemanha ou da Itália. Na Alemanha, o caso mais célebre foi o do filósofo Martin Heidegger. Na França, não escaparam da sedução fascista Cocteau, Céline, Henri Massis, Jacques Bénoist, Méchin, Drieu La Rochelle, Robert Brasillach – que terminou fuzilado, após a Liberação – entre tantos outros agrupados na Radio Paris e na Nouvelle Revue Française. Na Espanha, Sánchez Mazas, Ernesto Gimenez Caballero, Calvo Sotelo foram alguns dos que se deixaram engolfar pela onda fascista que parecia tomar conta da Europa continental.... O que levou boa parte da intelligentzia francesa a aderir ao Fascismo? Naqueles tempos, a vida democrática parecia complexa, sem claridade: governos caindo todo mês, a descrença nos políticos, a depressão econômica, o desemprego. Os intelectuais pensavam, com o Fascismo, reconstruir o paraíso perdido, que remonta a um estado de segurança, ao Antigo Regime, às hierarquias, à força do Estado e da Religião. O Fascismo lhes parecia a solução tanto para afastar a Revolução Socialista como a insegurança da Democracia. Neste fim-de-século, a prevalecer a teoria dos corsi e ricorsi de Vico, estaríamos assistindo a uma volta dos regimes de Direita? Espero que não seja certa a resposta do escritor e jornalista português (viveu no Brasil) Victor Cunha Rego, quando, antes de morrer, lhe perguntaram: “Você está à espera de quê?” Ao que respondeu ele, que era um crítico como poucos e pessimista como nenhum: “Estou à espera do regresso do Fascismo, que pode vir com a globalização e a mundialização, via Internet”.


CINEMA Cena do making off do filme Gerry, de Gus Van Sant

FOTO: DIVULGAÇÃO

Panorama de um cinema plural A Mostra BR já é tradicional por exibir um painel diversificado do que vem se produzindo dentro e fora do país e que não entra no circuito cinematográfico comercial Felipe Porciúncula

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urante o ano inteiro, os paulistanos aguardam com ansiedade o mês de outubro para fazer aquilo de que mais gostam. Conseguir um lugar na sala escura e assistir a grandes filmes do mundo inteiro. É a 26º Mostra BR de Cinema, mais conhecida como Mostra Internacional de São Paulo, que acontece entre 18 e 31 deste mês. Já é tradicional por exibir um painel diversificado do que vem se produzindo dentro e fora do país e que não entra no circuito comercial. “Para mim, é um grande prazer fazer esse projeto, dar oportunidade ao público de ver obras com que dificilmente tomariam contato se não fosse a Mostra”, afirma Leon Cakoff, diretor do evento. Para montar a programação, Cakoff e Renata de Almeida, produtora e diretora de programação, são viajantes incansáveis à procura de filmes que tenham em comum a “identificação com o cinema independente e a pluralidade de idéias”. Eles passam os meses que antecedem a Mostra trilhando os principais festi-


Um dos diretores homenageados na 26ª Mostra BR de Cinema, Alberto Cavalcanti

As retrospectivas este ano vão homenagear o italiano Pasolini, o russo Sakarov e o brasileiro Alberto Cavalcanti

vais internacionais, como Cannes, Veneza e Berlim, para ver o que ninguém viu. “O segredo é não se prender a formalismos, mas mostrar o que há de melhor. Não importa onde o filme é feito. Isso é uma experiência fascinante para quem vê, que se depara com tamanha diversidade”, coloca Cakoff. Este ano, uma dessas novidades é a presença do filme Um Homem sem Passado, ganhador do grande prêmio do júri, no Festival de Cannes, dirigido pelo finlandês Aki Kaurismaki. Segundo Cakoff, “é uma comédia de humor patético sobre uma larga sociedade de excluídos, marginais de um sistema impiedoso e sem fronteiras”. Além de apresentar a película, Kaurismaki vai fazer o cartaz e a logomarca da Mostra. Essa idéia surgiu no ano passado, quando o cineasta Emir Kusturica foi o primeiro a estrear como designer. Kaurismaki também vai trazer a banda finlandesa Liningrad Cawboys, que participou de três de seus filmes e se apresentará na abertura da 26º Mostra BR. (Ele é irmão de Mika Kaurismaki, também cineasta, que mora no Rio de Janeiro e ainda não confirmou sua participação no júri). Um dos longas mais aguardados é Princípio de Incerteza, último longa do cineasta português Manoel de Oliveira. O formato da mostra mudou muito pouco. Foram mantidas as mesmas exibições e a premiação. O que muda são os filmes, mais de duzentos, exibidos em nove salas. As retrospectivas este ano homenageiam Pasolini, Sukorov e Alberto Cavalcanti. Quanto à premiação, a única novidade é que os vencedores, segundo a decisão do júri, receberão uma escultura criada pela artista plástica Tomie Ohtake.

FOTO: REPRODUÇÃO ; DIVULGAÇÃO

Cena do filme Sleeping Beauties, de Eloy Lozano


FOTO: DIVULGAÇÃO

Cena do filme The Stoneraf, de George Sluizer

A grande vedete da 26º Mostra BR de Cinema é a categoria Novos Diretores. Reúne cineastas talentosos, que só rodaram até três filmes e concorrem sempre com trabalhos inéditos no Brasil. É o caso de Denis Tanovic, diretor de Terra de Ninguém, que na Mostra do ano passado ganhou o prêmio de melhor filme pelo público e logo depois levou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2002. Um fato pitoresco é que a concepção desse filme começou há três anos, também na Mostra. “Tanovic conheceu dois produtores aqui e eles começaram a discutir as primeiras idéias para o filme. Depois deu no que deu”, diz Cakoff. Além de diretor da Mostra, Leon Cakoff e o programador Adhemar Oliveira criaram a Mais Filmes, uma distribuidora que foca seu interesse em muitos dos filmes exibidos na Mostra. Um indicador para eles é o comportamento do público em relação a cada filme. “Claro que não é só isso. A qualidade e consistência também pesam, mas só o fato de estarem nesse grupo seleto já é um bom sinal”, enfatiza Cakoff. Entre os campeões de bilheteria, que entraram no circuito

comercial através da Mais Filmes, estão Pão e Tulipas, de Silvio Soldini, e A Professora de Piano, de Michael Haneke. Uma outra iniciativa que ampliou muito o alcance da Mostra foi a parceria com a TV Cultura, que, até o ano passado, possibilitava a quem não vinha a São Paulo ter a opção de assistir a uma seleção dos melhores na telinha. Este ano, infelizmente, isso não vai mais acontecer, por falta de recursos. Cakoff torce muito, mas não sabe quando vai poder voltar a exibir os filmes em rede nacional. No início dos anos 70, a Mostra deu seus primeiros passos com a ida de Cakoff para o Masp – Museu de Arte de São Paulo, como programador da sala do museu. Ele contactou embaixadas para trazer filmes novos, ainda não exibidos aqui. Na época o país vivia sob a ditadura militar. “A censura nunca chegou a proibir nada, mas me deu muito trabalho. Muitas vezes eu era chamado para dar explicações sobre o tipo de filme que escolhia. Isso era apenas para me assustar”, ressalta Cakoff.


Cena do filme Samsara, de Pan Nalin

A primeira versão da mostra foi em 1977, na comemoração dos 30 anos do Masp. O museu era dirigido pelo arquiteto Pietro Maria Bardi, que propôs uma mostra de filmes. Cakoff topou. “Eu utilizei os meus contatos com profissionais de outros países e selecionamos vários longas. A idéia era exibir obras novas e interessantes, mesmo que fossem várias de um país só. E assim começou e assim continua”, lembra Cakoff. Laura Betti, diretora da Fundação Pier Paolo Pasolini, estará na Mostra fazendo a curadoria da retrospectiva de Pasolini com 22 filmes, a maior até hoje no país. Ela foi dirigida pelo cineasta italiano em Teorema (1968), que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza. Filmes como Gaviões e Passarinhos (1966); Medéia, a Feiticeira do Amor (1969) e Evangelho segundo São Mateus (1964) estão entre os selecionados, além do documentário Pier Paolo Pasolini e La Ragione di Um Sogno, da própria Laura Betti.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Cena do filme Little Red Tram, de Alexei Jankowski


FOTO: DIVULGAÇÃO

O diretor Christoph Stark do filme Jullietta

Este ano faz 20 anos da morte do cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, que só realizou três longas no país, pela Vera Cruz. A maior parte da sua vida ele passou entre a Inglaterra e a França, onde é muito conhecido, ao contrário do que contece ao Brasil. “Hoje a coisa mais difícil é ver um filme dele, pois a maior parte está fora. Essa mostra é preciosa. Várias das películas devem vir do British Film Institute”, garante a cineasta Tarciana Portela, tutora da obra de Cavalcanti no Brasil. Serão sete sessões de filmes, entre curtas e longas. O longa Arca Russa é considerado por muitos um marco do cinema, por ter sido filmado em um único plano-seqüência de 90 minutos. Sem cortes e sem montagem, é inteiramente rodado no Museu de

L’Hermitage, em São Petersburgo (ex-Leningrado na nomenclatura soviética), ex-palácio dos czares russos. Era um projeto antigo do russo Aleksandr Sokurov, que só agora pôde realizá-lo, graças à tecnologia digital. Pela relevância de sua obra, haverá uma retrospectiva com esse e vários outros filmes, como Confession, O Segundo Círculo e Moloch, além de produções suas para a televisão. Ele ainda não confirmou sua vinda a São Paulo. Além de apresentar a película, Sokurov fez o desenho da logomarca da mostra. Essa idéia surgiu no ano passado, quando o cineasta Emir Kusturica foi o primeiro a estrear como designer. Felipe Porciúncula é jornalista


SABORES PERNAMBUCANOS

Poder cozinhar os alimentos acabou sendo uma grande conquista, porque tornava esses alimentos digeríveis ou menos nocivos, e também porque, assados, eles acabavam ficando com melhor gosto

Forno e fogão A cozinha é uma alegoria do universo. Noëlle Chatelet (Le corps à corps culinaire)

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udo começou quando o homem dominou o fogo. A preferência pela carne cozida já era, na natureza, comum a todos os carnívoros. Depois de incêndios, ainda hoje é assim, animais procuram por carnes queimadas. Mas poder cozinhar os alimentos, a qualquer hora, acabou sendo uma grande conquista. Porque tornava esses alimentos digeríveis ou menos nocivos. E também porque, assados, esses alimentos acabavam ficando com melhor gosto. No início as carnes eram postas diretamente sobre a brasa. Depois o homem dominou a técnica de assar pelo calor – com espetos postos diretamente no fogo, com “assadores dentados” (que apoiavam melhor esses espetos) ou com espetos paralelos ao fogo. Esse processo de assar

pelo calor, conhecido como moquém, é o avô distante do nosso churrasco. Os primeiros objetos que podemos chamar de fogão eram bem baixos, quase rentes ao chão. Com o trabalho de manter vivo o fogo ou vigiar as panelas, obrigavam o cozinheiro a ficar agachado. Às vezes até sentado no chão. Tinham então, esses fogões, apenas a função de servir como apoio para panelas de pedra ou barro, utilizadas no preparo de caldos. Carnes, não. Que elas continuaram, por bom tempo, a ser assadas em espetos. E não apenas por ser isso prático. Também porque as cinzas lhes davam um gosto muito especial. Assim foi até começos do séc. 18, quando surgiram os primeiros “potager” – fogões construídos nas próprias

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 68 Continente Multicultural


FOTO: RENATA VICTOR

cozinhas, alimentados por lenha ou carvão vegetal. Já nasceram com várias bocas, para apoio das panelas. Só depois surgiram os fogões de ferro fundido, geralmente usando carvão mineral. O caminho do forno foi diferente. Desde a préhistória o homem usava fumeiros, em palafitas, para defumação de carnes. Como uma primeira forma de conservar a caça, durante os longos invernos. Depois esses fornos passaram a ser de argila. Mas sua evolução acabou sendo desigual. Na Nova Zelândia, por exemplo, há registro de buracos no chão onde nativos colocavam pedras. Sobre elas acendiam fogo. Depois, em seu interior forrado com folhas, colocavam peixes, carnes ou raízes, envolvidos com outras folhas. Deixando cozinhar, lentamente, pelo calor irradiado desse interior ainda quente. Em alguns casos salpicavam água, para provo-

car vapor. A geração seguinte desses fornos, como também a dos fogões, passou a usar ferro fundido. A cozinha era o ambiente no qual esses e outros equipamentos se encontravam. Grelhas, usadas para assar carnes e pão, eram privilégio de casas abastadas. Panelas, também. Primeiro as de barro. Depois as moldadas a partir de folhas de cobre. De todos os tamanhos. Havia até enormes caldeirões de bronze fundido, da mesma liga que se usava para fazer sinos. Deste metal também se faziam coadores (para filtrar os molhos), escumadeiras (para escorrer alimentos cortados em pedaços), ganchos de ferro (para recolher peças de carnes cozidas na água) e fôrmas de tortas. Utensílios de madeira, vários – saleiros, vinagreiras, baldes, amassadeiras, peneiras, tábuas, fôrmas de queijos, tampas de panelas, conchas e colheres. Almofarizes Continente Multicultural 69


também – feitos de uma pequena pedra redonda e chata (mó), usada para triturar os cereais – trigo, aveia, centeio. Depois os árabes aproveitaram essa invenção romana e conceberam grandes moinhos, compostos por duas grandes mós giratórias, sobrepostas. Para moer esses mesmos cereais, só que agora em quantidades bem maiores. Os primeiros moinhos eram manuais ou movidos a cavalos (atafonas). Passando, mais tarde, a ser movidos a água (azenhas). Só depois vindo os moinhos de vento. A cozinha medieval portuguesa era invariavelmente composta de fogões a lenha, chaminés generosas e um grande conjunto de utensílios. A do mosteiro de Avis, por exemplo, foi assim descrita pela Infanta Dona Maria de Portugal, no seu Livro de Cozinha (1336): “Uma caldeira grande; um caldeiro grande; duas panelas de cobre velhas; duas colheres de ferro, uma furada e outra sã; um gadanho de ferro; três espetos de ferro; umas grelhas de seis esteios e quatro pés; uma gameleta, um gral e um malhadeiro”. Do enxoval de D. Beatriz, rainha de Castela e futura mãe de D. Manuel, constavam: “2 bacios de cozinha, 1 tacho grande e outro pequeno, 1 caldeira grande de ter água, 2 tachos de desigual tamanho, 4 bacios de estanho, 1 forno de pastéis, 3 caldeirões (um com cobertura), 2 sertãs de ferro com sua viradeira, 6 espetos de ferro, 2 cavalos de ferro, 2 colheres de ferro, 2 grelhas de ferro, 4 ferros de chaminé,1 funil de cobre, 1 mão de Judas”. O colonizador português tentou reproduzir, no continente tropical da Vera Cruz, os ambientes de sua terra distante. Entre eles, com especial destaque, as cozinhas. Para cá então trouxeram chaminés francesas, fumeiros, fogões e fornos de ferro, pesados tachos de cobre, potes, panelões e algüidades. Mas pouco ali, no novo mundo descoberto por Cabral, lembrava a corte

portuguesa. E as adaptações acabaram sendo inevitáveis. Primeiro na geografia humana – sendo essas cozinhas, antes ambientes aristocráticos, agora partilhadas com negras e índias. Depois na arquitetura – que, por conta do clima, elas acabaram debaixo de um puxado, fora de casa, imitando a cozinha indígena. Finalmente nos objetos – com a presença indígena se mostrando, aqui, definitivamente forte. Havia o “jirau”, mesa feita com varas de madeira, onde eram preparados e armazenados os alimentos. O “trempe”, tripé de pedra ou de ferro, onde os panelões eram colocados no fogo. Além de utensílios nada europeus – panelas de barro, colheres de pau, pilão, cuia, cabaça, urupema. Manuel Bandeira, na sua “Evocação ao Recife”, fala da casa de seu avô: “Tudo lá parecia impregnado de eternidade”. Para mim esse espaço, impregnado de eternidade, é a cozinha da minha avó Maria José. Mais parecia uma enorme sala de visitas. Lugar proibido para crianças. Arquitetura forte, sóbria e nua. Armários de madeira pesada, sempre fechados, cheirando a pães, biscoitos, bolos e pecados. Geladeira importada – baixa, gorda, de uma porta só, dessas que não se acabam nunca. Fogão de lenha, claro. Tão diferente das cozinhas de hoje – pequenas, simétricas, iguais, feitas de fórmica e aço. Ainda posso ouvir o barulho daqueles ferros se tocando, da lenha queimando, das tampas batendo nas panelas. Ainda posso sentir o cheiro de verduras colhidas na hora, das carnes queimando lentamente, dos doces quase no ponto. Até posso lembrar nitidamente os rostos daquele tempo – Joana, Maria, Camila, Leu, Carminha. Saudades da minha avó. Saudades das cozinhas do passado. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora E-mail: jpaulo@truenet.com.br

RECEITA: BOM BOCADO

INGREDIENTES: 1 kg de açúcar, 2 copos d’água, 200 g de manteiga,12 gemas, 6 claras, 300 g de queijo do reino ralado, 100 g de farinha de trigo. PREPARO: · Faça uma calda rala com açúcar e água. Junte manteiga e deixe esfriar. Depois, junte também queijo e farinha de trigo. Por último, acrescente as claras, batidas em neve, com as gemas. Misture tudo, muito bem misturado. Deixe descansar por 1 hora. · Leve ao forno em forminhas bem untadas com manteiga. Asse em banho-maria. · Depois de prontos, desenforme e coloque em papéis de seda franjados.

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OPINIÃO

Replicantes, robôs ou simulacros Antonio Augusto Maciel

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uas premissas se incrustam na construção deste texto: a primeira é a de que estamos vivendo na pós-modernidade, o que por si só já é motivo de discussão; a segunda é baseada na interessante questão levantada por David Lyon, que utilizou o filme Blade Runner para ilustrar o conceito de simulacro e suas implicações. Lyon aborda a problemática dos “replicantes” – quase-pessoas produzidas pela bioengenharia que questionam e enfrentam seus criadores por não aceitarem o período de vida para o qual foram programadas (quatro anos). O que esses seres desejam é equiparar-se aos humanos. Os “replicantes” não são robôs, mas sim simulacros de humanos, cópias quase perfeitas destes. Distingui-los dos humanos só é possível através de uma série de testes extremamente complexos e de pouca comprovação científica. Ao questionarem a ordem de seus criadores, desejando uma equiparação com os humanos, os “replicantes” ameaçam a ordem constituída e põem em questão o poder e o saber que a sustentam, o que é inadmissível. Isso porque qualquer processo que abale as estruturas das elites, a exemplo da díade poder-saber, não é permissível em uma sociedade fechada. Aí está a pedra de toque de uma sociedade fechada e estereotipada como é a capitalista. Nela é ilegal qualquer espécie de questionamento estrutural aos detentores do poder. No macrocontexto, muda o cenário do moderno para o pós-moderno, mas não mudam os projetos de dominação. Hoje não há garantias de preservação das premissas universais, conforme a proposta do projeto iluminista, e nem certeza acerca da realidade, da identidade, da ordem. Como observa Lyon, a globalização, com as facilidades de comunicação e o consumismo que lhe são correlatos, eclipsa a centralidade convencional da produção e conduz à passagem do Logocentrismo para o Iconocentrismo. O imaginário invade o mundo. Tudo é relativizado. A estabilidade e o equilíbrio são apenas possibilidades. Não há mais preceitos universais. O que é a realidade? Seria a realidade múltipla? Eis uma das questões básicas do pós-modernismo.

Em Blade Runner o que se observa é a constante necessidade de verificação acerca da realidade e da identidade para que não haja um império da desordem. Na era pós- moderna, habitamos o mundo das coisas, do descartável, no qual real e virtual se confundem. E os “replicantes” são coisas. Coisas que já vêm com o descarte devidamente programado, e contra o qual não cabe questionamento. Para referenciar mais concretamente essa questão, recorre-se a um experimento utilizado em Física, chamado de “buquê invertido”. Nessa experiência, coloca-se sob uma caixa oca um buquê de flores e, sobre a caixa, um vaso. Em frente a esses objetos posiciona-se um espelho côncavo. O buquê será refletido como que saindo do vaso, dando a impressão de ser um buquê real. Na dependência de onde estiver o olho do observador, este verá como real um buquê imaginário. Aí está sugerido um dos dilemas da pós-modernidade: o problema do acesso ao real exclusivamente para os “escolhidos”, os “eleitos”, os donos do poder. Uma visada importante é que o dilema pósmoderno é um dilema platônico. O ideal platônico, na sua episteme, é o da constituição da Ciência, verdadeiro conhecimento e conhecimento da verdade. Para Platão, o simulacro é concebido como uma perversão da cópia, como uma imagem não semelhante ao modelo. As cópias platônicas são feitas à imagem e semelhança da IDÉIA. Não são imitações do modelo. Não refletem uma relação de exterioridade, mas fundam-se numa semelhança interna, derivada da própria IDÉIA. A característica fundamental do pensamento platônico não reside na oposição entre essência e aparência, entre modelo e cópia. E sim na diferenciação entre as cópias e os simulacros; isto é, entre as boas cópias – feitas à imagem e semelhança do modelo – e os simulacros. Este sim parece ser o grande “nó” do pós-modernismo: diferenciar a cópia do simulacro.

Antonio Augusto Maciel é psiquiatra e psicanalista.

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O poeta peruano Cesar Vallejo uma vez compôs um poema em que diversas personagens relatavam “o momento mais grave” de suas vidas. No seu caso, esse momento foi o exílio? A prisão? O momento mais grave da minha vida não foi nem o exílio nem a prisão. Creio que foi 1° de abril de 1964, o dia em que o golpe de Estado triunfou no Brasil, embora isso não constituísse surpresa para mim, pois a ameaça estava latente desde que Jânio Quadros 72 Continente Multicultural

“Em 1º de abril minha vida desmoronou” Mário Hélio

renunciara à Presidência da República, tentando compelir o Congresso a outorgar-lhe a soma dos poderes legislativos e a entrar em recesso permanente, como condição para que ele retornasse ao governo. Uma coisa, porém, era prever. Outra coisa era a confirmação da catástrofe. E em 1° de abril de 1964 ocorreu a catástrofe. Estava eu no Departamento de Correios e Telégrafos, no Rio de Janeiro, juntamente com o seu diretor, coronel Dagoberto Rodrigues, e outros inte-

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POLÍTICA

Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira nasceu em Salvador, em 1935. Começou como poeta, publicando livros que foram elogiados por Augusto Frederico Schmidt e Manuel Bandeira. Em 1960, formado em Direito e com doutorado em Ciência Política, na USP, transformou sua tese em livro, sob o título O Expansionismo Brasileira e a Formação dos Estados da Bacia do Prata, e a partir daí começou a se especializar na área. Com o golpe de 1964, Moniz refugiou-se no Uruguai. Pouco tempo depois voltou clandestinamente para o Brasil, participando da resistência ao regime militar, tendo sido preso político na Marinha de Guerra, nos anos 69/70 e 73. No ano seguinte, ao voltar à legalidade, reiniciou sua carreira, ensinando na Escola de Sociologia e Política, em São Paulo. Daí por diante exerceu diversos cargos importantes, até se aposentar pela Universidade de Brasília, em 1996, e assumir a função de adido cultural junto ao Consulado Geral do Brasil em Frankfurt/Main, na Alemanha. Publicou diversos livros sobre Ciência Política. Entre os mais recentes estão Do Ideal Socialista ao Socialismo Real: A Reunificação da Alemanha, Estado Nacional e Política Internacional na América Latina: O Continente nas Relações Argentina?Brasil, 1930 - 1992, 0 Milagre Alemão e o Desenvolvimento do Brasil: As Relações da Alemanha com o Brasil e a América Latina, 1949 -1994, De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina e O Feudo: a Casa da Torre de Garcia d'Ávila, da Conquista dos Sertões à Independência do Brasil. Ainda este ano estará lançando um livro de poesia, depois de várias décadas sem publicar no gênero, e participará de obra coletiva sobre o terrorismo no mundo da atualidade. Em entrevista exclusiva a Continente, Moniz Bandeira falou de poesia, do golpe de 64 e de sua visão da História.


grantes da Frente de Mobilização Popular, inclusive José Serra, então presidente da UNE, quando o general Osvino Ferreira Alves, comandante do I Exército, telefonou, informando-nos que não mais adiantava resistir, pois o golpe de Estado triunfara. Aí minha vida desmoronou e mudou completamente. Dali todos saímos, às 16h da tarde, para nos refugiar. A ida para o Uruguai, exilado, e a prisão, posteriormente, foram conseqüências que de uma forma ou de outra, desde então, já esperava, pois todo o meu esforço foi no sentido de participar da luta contra o governo militar. E essa foi a razão pela qual fui para o Uruguai, com a missão de fazer o enlace entre Leonel Brizola, que se dispunha a fazer o levante no Rio Grande do Sul, e a corrente política à qual eu estava vinculado e que passara a luta armada, uma vez que o governo emanado do golpe militar não tinha legitimidade.

coroa de sonetos, ou seja, quatorze sonetos em que cada um começa com o fecho do anterior, até formar um círculo, gênero raro, e por isso, muito difícil. Mas a minha atividade acadêmica, com tantos projetos de pesquisa e livros que escrevi e escrevo, absorve todo o meu tempo. Nos seus livros, você mostrou momentos dramáticos da história, como a revolução de Cuba e os episódios que culminaram na deposição de Jango. Como escolhe a temática dos seus livros? Não escolho propriamente uma temática para meus livros. Se você observar, quase toda a minha obra obedece a um vetor, que orienta as minhas pesquisas há mais de 30 anos. Sempre estive voltado para a política interna e externa do Brasil e para a política internacional, que quase sempre se entrelaçam. Meus primeiros livros de ensaio político, publicados quando eu tinha 25/26 anos, foram O 24 de Agosto de Jânio Quadros (1961) e O Caminho da Revolução Brasileira. Alguns anos depois, publiquei, com a colaboração de Clóvis Mello, meu querido amigo, e Aristélio Andrade, O Ano Vermelho: A Revolução Russa e seus Reflexos no Brasil. Pretendia dar continuidade a essa linha de pesquisa, mas os acontecimentos políticos me impediram de fazê-lo, pois a Auditoria de Marinha condenou-me, em 1969, por tentativa de subversão, e os militares que me prenderam carregaram toda a documentação que eu estava a pesquisar sobre o levante comunista de 1935. Quando saí da prisão, em fins de 1970, Enio Silveira, diretor da Editora Civilização Brasileira e meu amigo, sugeriu que eu pesquisasse e escrevesse sobre a influência dos EUA no Brasil. Daí o meu livro Presença dos Estados Unidos no Brasil, publicado em 1973, quando eu me encontrava outra vez preso no quartel do Regimento de Cavalaria Marechal Caetano de Farias. A pesquisa para escrever essa obra levou-me a compreender a relevância que a Bacia do Prata sempre teve na política exterior do Brasil. Esse tema também serviu para minha tese de doutoramento em ciência política pela Universidade de São Paulo, considerando, sobretudo, sua atualidade, na medida em que as relações entre o Brasil e a Argentina, àquele tempo, estavam a encrespar-se, em meio a controvérsias geradas pela construção da represa de Itaipu, na fronteira

Na juventude, você publicou poemas que foram bem recebidos. Esses poemas lidos vários anos depois da edição original, em livro, mantêm o interesse. Por que desistiu de escrever poesia? Como analisa atitude semelhante em Rimbaud? Conheço a poesia, mas não conheço bem a vida de Arthur Rimbaud. Apenas vi, há alguns anos, uma película sobre seu relacionamento com Paul Verlaine. Quanto a mim, comecei a escrever versos aos 14/15 anos de idade e publiquei-os em vários jornais de Salvador e do Rio de Janeiro. Em 1956, quando tinha 20 anos, saiu meu primeiro livro de poemas – Verticais –, editado pelo Serviço de Documentação do antigo Ministério da Educação e Cultura, por indicação de Augusto Frederico Schmidt. Depois, em 1960, a Livraria Progresso Editora da Bahia lançou outro livro meu de poemas – Retrato e Tempo –, e, em 1961, apareceu pela Editora Germinal a obra Ode a Cuba, traduzida para o espanhol e publicada também em Havana por volta de 1962. Tive também poemas incluídos nas antologias Poesia Revolucionaria Brasileña publicada em Montevidéu pela Editorial Nuestra América, em 1968, e Moderna Poesia Bahiana, editada, em 1967, por Tempo Brasileiro, sob a direção de José Paulo Moreira da Fonseca. Desde então apenas publiquei, em 1967, dois sonetos sobre a guerra no Vietnã, que Moacir Felix inseriu em um dos números da Revista da Civilização Brasileira, publicada então por Enio Silveira. Depois, passei muitos anos sem A compreensão de um fenômeno político escrever poesia. Mas não desisti e, recene/ou da política de um Estado temente, após mais de 30 anos, escrevi passa pelo conhecimento histórico uma para Margot, minha esposa: uma

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Por que, sendo cientista político, trabalha sempre com a história? Um vinculum substantiale une o passado ao presente. Para melhor compreender os fenômenos políticos e avaliar com mais clareza a sua evolução e conseqüências, é necessário situá-los em uma perspectiva histórica, de modo a perscrutar as tendências que essencialmente eles encerram. Os fenômenos, quando se manifestam, resultam de transformações quantitativas e qualitativas de tendências, que se delineiam e se desenvolvem ao longo do tempo. Eis a razão por que o método histórico sempre afigurou-se-me o melhor para a sua compreensão. Podem dificilmente se compreender a política exterior e as relações internacionais de um país sem situá-las em sua concreticidade his74 Continente Multicultural

tórica, em seu encadeamento mediato, em sua condicionalidade essencial e em sua contínua mutação. O passado, não o passado morto, mas o passado vivo, constitui a substância real do presente, que nada mais é do que um permanente devenir. Os médicos, para diagnosticar uma enfermidade, procuram geralmente conhecer o histórico pessoal e os antecedentes familiares do paciente. O conhecimento do que um indivíduo é ou pode fazer, sua capacidade e vocação, obtém-se através de informações de como atuou ou do que produziu ao longo de sua vida, ou seja, através do curriculum vitae ou do prontuário policial. A compreensão de um fenômeno político e/ou da política de um Estado passa, portanto, pelo conhecimento da história, pois, se nada é absolutamente certo, nada também é absolutamente contingente, casual. Os Estados nacionais possuem suas idiossincrasias. Daí por que o estudo das suas políticas exteriores, bem como de suas relações com outros Estados, demanda um conhecimento das tendências que nelas historicamente se manifestaram, sem o que não se alcançará a essencialidade, mas tão-somente a acidentalidade do fenômeno político. O conhecimento da história, decerto, não se pode limitar à classificação cronológica dos fatos. Ao escrever sobre a classificação das ciências, no século 19, um antepassado meu, o filósofo Antônio Ferrão Moniz de Aragão, que foi discípulo de Auguste Comte e um dos introdutores do positivismo no Brasil, ressaltou a necessidade de “comparar o encadeamento dos acontecimentos em diversas nações e o progresso da civilização, em cada época”, pois “os fatos históricos as-

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com o Paraguai. Essa foi a conjuntura em que elaborei o projeto para a minha tese de doutoramento – O Papel do Brasil na Bacia do Prata –, publicada, mais tarde, sob o título O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados na Bacia do Prata – Da Colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Esse projeto sobre o papel do Brasil na Bacia do Prata, que elaborei há cerca de 27 anos, agora desdobro e continuo com o lançamento de outra obra – Da Tríplice Aliança ao Mercosul: Conflitos e Integração na América do Sul – atualizando-o, organicamente, até a formação e a crise no Mercosul, enquanto Aufhebung (negação/conservação) dos conflitos, ao suprimir (aufheben) e conservar (aufheben/ aufbewahren) as contradições intrínsecas do processo histórico das relações internacionais na Bacia do Prata. Diversos outros livros meus, como O Governo João Goulart: As Lutas Sociais no Brasil – 1961-1964 e De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, representam o que eu chamaria uma espécie de close-up, um estudo mais aprofundado de certas questões, abordadas em outras obras que escrevi. Recentemente, a Editora SENAC de São Paulo lançou a terceira edição revista de Presença dos Estados Unidos no Brasil e a segunda edição revista e ampliada de Brasil-Estados Unidos: Rivalidade Emergente, em dois volumes, sob o título de Brasil – EUA no Contexto da Globalização.


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sim analisados e bem conhecidos podem ser A juventude alemã absorve, mais que a brasileira, o lixo cultural dos Estados Unidos. Por outro lado, os países coordenados num vasto da América Latina pouco têm a oferecer ao Brasil sistema, em que se achem todos ligados uns aos outros por todas as relações possíveis, o que nos logia da comunicação. E o Brasil não pode fugir à permite elevar-nos a um estudo ainda mais impor- influência dos EUA. Ela, atualmente, predomina em tante, que é o da explicação desses fatos pela inves- todo o mundo, inclusive na Alemanha, onde a juventigação de suas causas”. Por isso, sempre tratei de tude de certas camadas sociais, mais do que no Brasil, estabelecer a unidade e a interação entre política absorve o lixo cultural dos EUA: música, vestimenta internacional e política nacional, analisando como e etc. Por outro lado, os vizinhos do Brasil pouco têm a quando a política internacional condicionou ou oferecer ao Brasil, cujo sistema universitário é muito determinou a política interna na Argentina, Brasil, mais desenvolvido, com enorme produção acadêmica. Paraguai, Uruguai e outros países da América do Sul, Várias universidades, no Brasil, nada ficam a dever a bem como investigando as causas econômicas e sociais universidades americanas e européias. e os fatores de política interna que lhes determinaram Com as diversas personalidades importantes as relações e a política exterior, no século 20, dentro de um contexto em que os EUA se tornaram a nação para a história com as quais você conviveu, qual a que lhe deixou uma imagem mais marcante? Qual a mais hegemônica no hemisfério. decepcionante? É difícil dizer qual a personalidade importante Como especialista na América Latina, poderia explicar por que o Brasil mantém tão poucas relações para a história e com a qual convivi que me tenha culturais com os seus vizinhos e prefere “macaquear” deixado uma imagem marcante. Porém, a mais decepcionante é a imagem de Leonel Brizola, que desperaté os piores produtos dos EUA? O Brasil já sofreu extraordinária influência da diçou todo o acervo histórico que herdou e o que ele França, embora as relações econômicas e comerciais próprio construiu, por vaidade, sem perceber que o entre os dois países nunca tenham sido tão estreitas. tempo estava a passar. O slogan adotado na campanha Mas as relações culturais mais e mais se entrelaçam para Presidente da República, em 1989, foi ridículo: com as relações econômicas e comerciais, o que tende “Quem conhece Brizola vota no Brizola”. Acontece a acentuar-se com esse extraordinário avanço na tecno- que ninguém mais conhecia Brizola, muito menos seu feito heróico na campanha da legalidade, que assegurou a posse de João Goulart na Presidência. Quem se encarregou de sua campanha política e elaborou o slogan se esqueceu de contar, primeiramente, quem foi Brizola. E, entre 1961 e 1989, 28 anos já haviam passado, as gerações também, e a memória histórica se desvanecera. Brizola não soube sair de cena no momento exato e se deixou arrastar pela ambição, lançando-se outra vez candidato, em 1994, para obter apenas 3% da votação. Depois aceitou ser vice na chapa de Lula, para perder mais outra eleição. Quem diria? Greta Garbo foi parar no Irajá! Você vivenciou os bastidores de diversos episódios – chave para a história recente do Brasil. Poderia rememorar aspectos inéditos desses espisódios? Conheço vários aspectos inéditos, porém, para mim é difícil rememorar. Seria demasiado complicado.

A figura histórica mais decepcionante que conheci foi Brizola, que desperdiçou, por vaidade, todo o acervo histórico que herdou e construiu

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COMPORTAMENTO

Músicos pernambucanos mudam-se para o Sudeste, se estabelecem, lançam novos trabalhos, elogiam o profissionalismo da nova paisagem – e alguns até acenam com o exílio sem prazo de validade

Ronaldo Bressane

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Todo pernambucano é, antes de tudo, um desnorte. Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos – a lista de músicos que caíram na estrada e se deram bem no Sul maravilha, França e Oropa enche um cordel. Uns dizem que sair foi fundamental para descobrir as próprias origens. Outros lembram Tom Jobim: “A melhor saída para o Brasil é o aeroporto”, ruminava o carioca, que não tinha no Brasil o mesmo reconhecimento que nos Estados Unidos, onde, nos anos 60, já era visto como gênio total. Em escala menor, isso aconteceria também com os pernambucanos, em relação ao eixo Rio-SP? A melhor saída para a cultura do Leão do Norte passaria, necessariamente, pelas alfândegas de Guararapes? É preciso vencer fora para ser respeitado dentro? Continente conversou com cinco nomes da geração manguebeat que vivem ralam e produzem no Sudeste – alguns, estrelas já estabelecidas nacionalmente, como Otto; outros, nomes ascendentes, como Ortinho. Como você verá pelos depoimentos carregados de nostalgia, ir nem sempre é o contrário de ficar.

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Os novos retirantes


Mestre Ambrósio, ambivalente “Adeus.../ Que a saudade que eu já senti/ é mais que o tanto que eu sofri”, lamentou ele. Mas “Como posso saber de onde eu venho/ Se a semente profunda eu não toquei?”, perguntava-se Siba, 33, em Sêmen, letra escrita pelo recifense junto com Bráulio Tavares. Para sair dessa encruzilhada, Siba, com cinco anos de São Paulo, preferiu voltar. Desde janeiro deste ano, o rabequeiro e vocalista do Mestre Ambrósio reúne-se com músicos de Nazaré da Mata para perseguir suas musicalidades ancestrais – seu primeiro trabalho solo sai no começo de setembro. Sem banzo, cordas amarradas na cidade, Mazinho Lima, 39, já começa a trocar o baixo pelas mesas de gravação: atualmente, produz o primeiro CD da cantora paulista Renata Rosa. Gaúcho morando em Pernambuco desde a infância, ele não considera que mudar de cidade alterou a forma de fazer música: “Sempre tive meus ouvidos abertos – tiro um vinil do Luiz Gonzaga e coloco outro do Led Zeppelin na boa”, concede. Outro ambrósio estabelecido em São Paulo que prepara trabalho autoral é Sérgio Cassiano, 35, pandeiro e vocal, que, como Siba, olha mais de

Júnior Barreto, tímido

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“Qual é, mago?/ Tá com saudade da praia, é, nego?” Esses versos, que andam pela boca de muita gente há tempos, finalmente deixarão de ser inéditos. Júnior Barreto, o mais recatado dos pernambucanos – teve época em que cantava de costas no palco –, aos 38 anos grava seu primeiro CD solo. O aguardado trabalho do caruaruense sai até o fim de 2002, cercado de participações especiais. Integrantes do mundo livre s/a, Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Originais do Samba, Funk Como Le Gusta e nomes como Nelson

perto suas crias – pretende criar um espetáculo na direção de seu primeiro CD solo, ampliando pesquisas sobre samba, ciranda, baião e maracatu. O trio elogia na atmosfera paulistana o profissionalismo: “Em Pernambuco, o que sobra de criação falta em administração. A indústria cultural de lá precisa de uma chacoalhada”, analisa Cassiano. Para ele, o eixo Rio-SP “é muito limitante. Por que não há eixos regionais, como RecifeSão Luís, por exemplo?”. Outra reclamação é a ausência de lugares para se apresentar: “Falta palco no Recife”, manda Mazinho. A aproximação com artistas nacionais, em São Paulo, também é especial: “Por ter vindo a São Paulo, fiz trilhas de filmes, toquei com todo tipo de gente, de José Miguel Wisnik a Tom Zé. E, sem dúvida, nosso maior público é no Sudeste”, afirma Siba. Que, apesar disso tudo, retorna – “de vez, espero” – para Pernambuco.

Ayres, Simone Soul, Cibelle Cavalli, Ortinho e Alfredo Bello – co-produtor do CD – farão companhia ao tímido Júnior. Quem já ouviu seu trabalho fica impactado com a profundidade, o lirismo e a consistência de suas classudas composições, que adensam as aproximações entre samba, drum’n’bass, ciranda, trance e bossa nova fundadas por Nação Zumbi e Otto. Um de seus sambas, por exemplo, empilha quatro pandeiros diferentes – de samba, drum’n’bass, embolada e música árabe –, guitarra baiana, cordas de bossa nova e filtros eletrônicos. “Em minha vida, o que quero é isto: ampliar o universo musical, juntar Chiquinha Gonzaga com trance.” Para Júnior, morar em SP – está aqui há dois anos – engrossou o caldo de suas originais composições: “No Recife, minha criatividade estava no limite. São Paulo tem saídas para toda parte. Para mim, que busco muito a música eletrônica para compor junto às minhas raízes, no samba-canção, ter vindo conhecer a nova cena foi fundamental”.

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Otto, amoroso

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Ortinho, radical “Ô Lia/ Esta ciranda quem me deu foi você/ Mas aqui tá fazendo frio”, canta ele na ciranda do ex-ilhado Para Lia. Ex-líder do Querosene Jacaré, banda marcante na cena nascente do manguebeat, Ortinho lança em 2002 seu primeiro CD solo. Em Ilha do Destino, o cantor e compositor mixa maracatu, rock, rap, repente, ciranda e funk amparado por participações do naipe de Arnaldo Antunes, Chico César, Zeca Baleiro, Vange Milliet, Bocato, Júnior Barreto, Paulo Le Petit e Swami Jr. Ortinho tem algum ressentimento quando se refere à cena musical recifense: aos 32 anos, afirma ter sido preterido pela organização do Abril pro Rock com a justificativa de ser “muito velho”. “A verdade é que me boicotam em Pernambuco”, dispara o caruaruense, chateado com a falta de atenção ao seu trabalho: diz não encontrar, no Recife, nenhum empresário interessado em produzir seus shows. “Tocar de graça não dá. Fica chato para a gente, que divulgou tanto o estado. É inegável que o turismo de Pernambuco cresceu, principalmente junto ao público jovem, graças à revalorização da cultura local liderada por Chico Science e o manguebeat.” Apesar do rancor, Ortinho nunca nega a origem – mesmo após longa estada em São Paulo (“Vim para cá em 1998 fazer uns shows; quando vi, já morava”), o cantor-caramujo (“Aqui, já passei por sete casas diferentes e todo tipo de emprego, de diretor artístico de boate a garçom”) não tira a cabeça de lá: os altos de Recife, as ruas da Aurora e da Guia, a ilha de Itamaracá, a praia de Boa Viagem e a Black Street de Caruaru são personagens fundamentais de suas canções. Mas, Ortinho não pensa em voltar: “Infelizmente, parece que a cena musical de lá está voltando à timidez dos anos 80. Se tivesse ficado no Recife, provavelmente hoje seria vendedor de sapato”.

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Entre os músicos, há quem parta por razões que o coração bem conhece. Antes de se estabelecer no Sudeste, Otto, 33, criador de versos como “Eu já perdi você de vista/ Tua alma meu Deus levou/ Agora só resta uma foto/ Que o retratista deixou”, já deixou uma vez Pernambuco – mas foi por amor mesmo, não por trabalho. “Fui para Paris com 150 dólares, porque estava apaixonado por uma mulher que conheci no carnaval. Quando cheguei no aeroporto, metade já foi no táxi. Nos primeiros dias, fiquei na casa dela. Depois, ela disse: ‘Tu está aqui viajando, e eu, trabalhando. Se você quiser deitar aqui do meu lado, deita, mas não vamos trepar’. Aí peguei minha mala e fui viajar. Fiquei um tempão lá, tocando pandeiro. Foi importante para minha formação musical.” Na volta, Otto conheceu Chico Science e tocou, ao lado de Fred 04, como percussionista da mundo livre s/a, banda co-fundadora do manguebeat. Em seguida, causou impacto com Samba pra burro, trabalho inovador em sua mistura de eletrônica e ritmos pernambucanos. O CD seguinte, Condomblack, consolidou a fase paulistana de Otto, morando na cidade desde 1998. Porém, o amor voltou a colocar-lhe passagens na mão: apaixonado pela atriz Alessandra Negrini, o mais cosmopolita dos músicos de Pernambuco mudou-se com pandeiros, cuias e cuícas para a casa da namorada, no Rio de Janeiro, onde atualmente compõe trilhas para espetáculos teatrais.


Lirinha, dialético Para os que ficam, ele já cantou: “Os retirantes já cruzaram meio mundo/Eu fico aqui esperando outro batuque”. Para os que se vão, “Adeus povo, adeus árvores, adeus campo/Aceitai minha despedida”. Lirinha, 23, vocal e pandeiro do Cordel do Fogo Encantado, banda surgida na sertaneja Arcoverde, sabe que a retirada nem sempre é bem-vinda. “Ninguém sai do Sertão em busca de nova paisagem. Escapa-se por obrigação, sobrevivência. Não se nega que o desnível econômico empurra o artista nordestino para fora de sua terra. O poder aquisitivo do público do Sul e do Sudeste é muito superior: isso, para o artista, que vive de show, é tudo.” Para além da economia, Lirinha sugere a retirada para enfatizar o diálogo entre mar e Sertão: “Quando a gente ouvia Chico Science lá em Arcoverde, ficava doido. Mas não entendia por que, em Recife, não ouviam o que se fazia em Arcoverde”, conta. Para Lirinha, essa falta de dialética acontece no país todo: “O brasileiro, em geral, dá as costas para o seu interior”, metaforiza o cantador.

Discriminação e banzo “ Em São Paulo, nunca fui discriminado por ser nordestino” – é quase unânime a afirmação entre os novos retirantes. “No nosso meio artístico, a formação das pessoas é mais democrática, ninguém repara de onde você veio”, lembra Ortinho. “O acento não repele, atrai... muitas garotas pedem: ‘Que sotaque gostoso, fale mais...’”, ri-se o galante Júnior Barreto. A surpresa é que o preconceito muita vez se oculta no próprio Pernambuco. “Fui discriminado no Recife, quando cheguei de Caruaru”, lembra Ortinho. “O povo mangava de meu sotaque forte, me chamavam de matuto. Só adquiri respeito quando viram meu trabalho”, conta, para emendar: “Agora, discriminado mesmo fui em Blumenau, onde também morei. Uma vez, socorri um amigo alagoano que apanhava de neonazistas. O povo punha adesivo no carro: ‘Nordestino, fique no seu lugar’”. Para Lirinha – que, para marcar diferença, sempre faz questão de recordar, quando no Recife,

O herdeiro de Zé da Luz usa uma analogia curiosa para falar de São Paulo, onde vive desde 1999: “A cidade é um colo de osso, tem lugar para todos, nem que seja sob viadutos. Amo a cidade, tenho orgulho que meu filho João nasceu aí”. A vivência urbana contaminou profundamente o novo trabalho do Cordel, que, após a aclamação nacional, pretende lançar o segundo disco – ainda sem nome – em agosto. “Introduzimos vinhetas sonoras com ruídos urbanos sampleados... até o canto de um pedinte num metrô de Berlim, que nos lembrou um aboio de vaqueiro, faz parte do disco”. que vem “do Sertão” –, o grande problema está no inverso: o exagero do bairrismo. “No carnaval, a música mais tocada foi o hino do estado. Achei estranho”, conta. “Pode virar populismo”. Abaixar a cabeça, ao chegar “na cidade grande”, também pode dar pano para a manga da discriminação, emenda o cantor do Cordel: “O matuto chega com complexo de inferioridade – assim como o brasileiro se vê de ‘Terceiro Mundo’ – e acha que deve para o mundo todo”. Sérgio Cassiano completa: “Com o meu trabalho, posso ser humilde; mas nunca sou modesto”. E do que mais sentem saudade os exilados? “Da gréia, das festas”, muxoxa Mazinho. “De praia, galera, irmãos, amigas, mainha”, suspira Júnior Barreto. “De pagar boteco fiado”, chora Ortinho: “Aqui em São Paulo não tem disso, não. Talvez, por isso, eu tenha conseguido firmar minhas idéias. No Recife, é fácil se dispersar. Aqui, você fica frio, persegue os objetivos. E eu preciso tanto da loucura quanto do profissionalismo para chegar a um equilíbrio e criar”. Já para Lirinha, o banzo é condição do artista: “Saudade vira tempero para a arte”. Cassiano prefere lembrar outro exilado: “‘Sair é necessário para poder voltar’, dizia o Gil. Faz parte da missão do artista”. Ronaldo Bressane é jornalista e escritor paulistano – mas sempre pensa em se exilar no Recife.

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RADIALISMO

A voz do Brasil

A história do paraibano Assis Ângelo e o sucesso do seu programa de rádio “São Paulo Capital Nordeste”, de antenas sempre abertas para abrigar os novos e os velhos “retirantes” da música brasileira Marcelino Freire


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No ar, Assis Ângelo acende o charuto, vai começar o programa campeão de audiência no horário. Solta a voz, virado: – Vinte e uma horas em São Paulo, a capital dos bandeirantes e dos nordestinos. Cof, cof, cof. Quem tosse é o poeta repentista Andorinha. Assis Ângelo quase mata o passarinho. Mas para que reclamar do fumacê? O negócio é pegar na viola e homenagear Patativa do Assaré. “Canta, canta, Patativa Canta lá que eu canto cá Patrimônio do Assaré E orgulho do Ceará”. O programa só está para começar. – Só não me chame de comunicador nesta matéria, ele alerta. – Como eu devo lhe chamar, então? – Me chame só de brasileiro. Eu sou é brasileiro. Assis traz de seu acervo tudo o que vai tocar no programa “São Paulo Capital Nordeste” (ele tem um dos maiores acervos pessoais de música brasileira). Sem contar o que acontece, de improviso, ao vivo, com os músicos ali reunidos numa sala do tamanho de um ovo quadrado. – Já teve dia de ter 50 pessoas em pé, aqui dentro, esperando para tocar. Tocar para dezenas de milhares de pessoas que sintonizam, aos sábados, a AM 1040 kHz. Programa transmitido, idem, para todo o Brasil. E para o mundo inteiro, via Internet. A BBC de Londres já esteve gravando documentário sobre o programa.


Assis Ângelo, Luiz Gonzaga e o expadre João Câncio, numa das poucas fotos em que o Velho Lua aparece bebendo

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– O Brasil ainda precisa ser descoberto, meu velho. Para isso, ele veio para São Paulo, há 26 anos. Na verdade, veio para, primeiro, se curar de uma tuberculose. Cof, cof. Gereba, o músico baiano, agora é ele quem tosse. Precisa ir embora e ainda não chegou a sua hora. Assis Ângelo corre, acena para Alessandro, o sonoplasta, que acena para Santana e Zé Gomes. Kauê, o menino da produção, avisa que Dominguinhos está ao telefone. Na fila, Vital Farias, da Paraíba, quer dar uma palavrinha. – Palavrinha não. Aqui só entra palavrão. Tantos são os talentos pendurados na linha. Direto do Ceará, por exemplo, liga o jovem poeta Klévisson Viana. Às vezes o Tom Zé liga, às vezes liga o Tinhorão. Maysa Alves, a diretora, fica doida. – Tudo isso nada seria se eu não tivesse esta mulher na minha vida. Maysa foi quem batizou o programa. Idealizou, junto com Assis, a festa toda. Ela é também namorada do Assis, acompanha, dá bronca, diz que ainda falta tocar o outro poeta repentista, Sebastião Marinho. – Você não faz idéia de onde vêm esses músicos, e para onde eles têm de voltar quando a noite termina.

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Esteve também um pessoal da França, esteve o New York Times. Nos seus quatro anos, cerca de 2.500 artistas já foram ao estúdio, localizado na Nove de Julho, uma das avenidas mais pauleiras de São Paulo. – Pauleiras?!! Nada a ver com rock, sorry. Quem sempre pinta na parada, também ao vivo, é Zé Ramalho, Elba, Antônio Nóbrega, Boldrin, Inezita, Sivuca, Hermeto. Mestre Ambrósio e Cordel do Fogo Encantado etc. Além de artistas anônimos que procuram por ele na rádio. – O Falamansa é doido pra vir aqui, mas não entra. Quem enfrenta a fúria desse paraibano, nascido há 50 anos, no dia 27 de setembro? O homem estudou artes plásticas, música, história da arte. É jornalista profissional. Começou no jornal O Norte, de João Pessoa. Já trabalhou na Folha. É compositor, poeta, declamador, pesquisador, produtor de CD, cordel e o escambau. Escreveu, entre outros, O Poeta do Povo (CPC-UMES, 1999), o mais completo livro sobre a vida e obra do Patativa do Assaré, e Eu Vou Contar pra Vocês (Cone Editora, 1990), que traz revelações e causos surpreendentes sobre a vida do Rei do Baião, de quem era amigo pessoal.


O radialista, no traço do chargista Nássara

Patativa do Assaré não morreu. Capiba não morreu. Gonzaga não morre. Ninguém morre. Quem é grande não morre Repete, enfático, acompanhado de aplausos, fogos e buzinas: – São Paulo, capital dos bandeirantes e dos nordestinos. Assis se emociona, mais uma vez, quando fala do homenageado: – Patativa do Assaré não morreu, não. Meu Deus! Gente daquele tamanho não morre. Capiba não morreu, Gonzaga não morre, Jackson do Pandeiro. Não morreu Manezinho Araújo. Ninguém morre. Quem é grande não morre. E brinca: – Eu mesmo não nasci para morrer, não. Eu ainda me demoro. É hora da Triste Partida: 23 horas e oito minutos. Termina a transmissão do programa. Mas não a missão que pegou para si. Assis, debaixo de seu chapéu de couro, está molhado de suor. Apaga o charuto no cinzeiro, mas o fogo continua aceso. Ele ficaria ali a noite inteira. Mas é besteira. Deixa o microfone, pula ligeiro da sala. Convida todo mundo para tomar uma cachaça no restaurante Consulado Mineiro. Quem acompanha esse brasileiro? Marcelino Freire é escritor

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Assim, há efeitos eletrônicos, tempero jazzístico, dub com reggae, ska, hip hop, jungle, hard core, noise, groove, misturados com coco, samba, marcha, bossa nova, ladainha e frevo, é claro. Para participar desta salada, além das vozes gravadas de Jackson do Pandeiro, Nelson Ferreira e Capiba, Silvério Pessoa convidou o violonista de formação clássica Cláudio Almeida e o saxofonista Spok, para cuidar dos arranjos, mais instrumentistas de peso como Naná Vasconcelos, os cantores China (ex-Sheik Tosado), Canibal (Devotos), Mônica Feijó e Zé Brown, além das bandas Eddie, Matalanamão e Ataque Suicida. A participação mais emocionante para Silvério, entretanto, foi a de Almira Castilho, viúva e ex-parceira de Jackson do Pandeiro, que há 30 anos não entrava num estúdio.

O micróbio de Silvério Batidas Urbanas – Projeto Micróbio do Frevo recria o repertório carnavalesco de Jackson do Pandeiro dentro de uma perspectiva contemporânea

FOTOS: ROBERT FABISAK

MÚSICA Almira Castilho gravando com Silvério Pessoa

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cantor e compositor pernambucano Silvério Pessoa está lançando este mês o CD Batidas Urbanas – Projeto Micróbio do Frevo, em que recria o repertório carnavalesco de Jackson do Pandeiro, dentro de uma perspectiva contemporânea. “A idéia é criar um olhar diferente para o frevo, possibilitar cruzamentos, focar o lado promíscuo, cínico, expressionista, urbano, uma combinação entre o conceito de centro e periferia”, explica. Essa mistura de resgate da tradição com experimentalismo é traduzido em espasmos musicais: uma ousadia comedida ou loucura controlada. “O avanço”, diz Silvério, “vem da descontinuidade, a partir dos arranjos de metais, elaborados por uma moçada que além de frevo escuta soul music, black music e música eletrônica”.


Diz Silvério que, diante de tudo isso, “o projeto além de ser sobre músicas interpretadas por Jackson, sofreu uma ampliação, pois houve várias interferências de texto, melodias e arranjos que deram uma autonomia, uma identidade às faixas. Fui convidando os amigos, aqueles que já tinham me oferecido um discurso que contemplava o frevo como base, como batida. Embora eu puxe o gatilho, a moçada vem com toda munição”. Do repertório tradicional de Jackson, estão, entre outras canções menos conhecidas, clássicos como “Me Dá um Cheirinho” (Sebastião Lopes), “Quem Não Chora Não Mama” (Romeu Gentil e Paquito), “Tá Como o Diabo Gosta” (A.Garcia e Enoque Figueiredo), “Tô Com a Macaca” (Arno Provenzano, Otolindo Lopes e Jackson do Pandeiro) e “Vou Gargalhar” (Edgar Ferreira). A grande presunção, para Silvério, foi fazer um disco para tocar no ano inteiro, e não apenas no Carnaval. “Fabinho, do Eddie, me disse que era um disco de verão. Como aqui em Pernambuco é verão o ano inteiro, então, deve ser pro ano inteiro, pra sempre. Meu desejo e minha paixão é que todos gostem e se divirtam”. Apesar da ambição do projeto, o cantor não crê que esteja pregando uma revolução no frevo. “É perigoso falar em revolução, pois eu não quero ser visto como “dono”, “comandante” de uma idéia, ou gênero musical. Eu prefiro fazer guerrilha urbana, aquela que vai minando, vai proliferando, fazendo militantes e acampamentos. O Micróbio do Frevo não tem intenção de ser uma criação nova! Ou outro projeto da chamada Jovem Vanguarda, que termina sendo a nova elite da MPB, e que copia Jorge Ben, Banda Black Rio e Azymuth, coisa parecida com o que muitos estão fazendo, dublês de samba. Eu vejo esse disco como uma anfetamina.Você toma, vivencia os efeitos, principalmente os colaterais, e, se gostar, repete a do-

Capa do CD Micróbio do Frevo

se! Sei que vai causar algum incômodo, mas, incomodar é o papel de uma nova cultura que é popular porque vem da periferia, do trabalhador jovem que gosta de música, arte, tecnologia e diversão, uma resistência a uma possível cultura globalizada”. Jackson do Pandeiro foi o primeiro músico brasileiro, nordestino, a falar em misturar ritmos daqui e de fora, na música “Chiclete com Banana”. Ele tinha um jeito de cantar e uma quebrada rítmica muito originais. Sua temática era urbana, malandra, irônica, mas passou muito tempo eclipsado por Luiz Gonzaga. Por quê? “Luiz Gonzaga é uma matriz, uma cacimba de água interminável”, responde Silvério. “Criou uma levada a partir dos cantadores, fisgou o Baião. A questão é que a mídia nascente do Sudeste já tinha um eleito. Produtos comerciais, embalagens de mercado já tinham Luiz Gonzaga. Quando Jackson do Pandeiro surgiu, derrubou mitos, derrubou barreiras, era preto, pobre, analfabeto, inteligente e perspicaz. Não seria fácil mudar o paradigma. Mas, hoje, é claro, todos que fazem uma leitura coerente da história da música nordestina sabem que Jackson do Pandeiro foi o gênio pós-moderno, que preferiu atuar sobre o Coco e não o Baião. Não quis ser mais um emblema de um projeto econômico para o Nordeste. Diferente de Luiz Gonzaga, não usou gibão de couro, usou calça de boca sino, camisa estampada, chapéu de “malandro esperto”. Além de primar por uma linguagem correta, bem pronunciada, identificadora de um povo”. Micróbio do Frevo foi gravado com recursos da Lei de Incentivo do estado, e sai pelo selo independente Casa de Farinha.

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA

Tudo muda no Brasil, só o Brasil não muda Joel Silveira

1. MEMÓRIAS

3. PRODUTO PERECÍVEL

“Brasileiro não tem memória” – é o que a gente escuta todos os dias, a toda hora. Pois me excluam desse rol. Para meu desconforto, continuo a me lembrar de tudo e com a maior nitidez – o que, reconheço, muitas vezes é o meu tormento.

2. MEU ATEÍSMO

Quando a jovem e graciosa repórter me perguntou se eu tinha “muita coisa inédita na gaveta”, pensei em dar uma destas respostas: 1) não tenho gaveta; 2) não posso me dar o luxo de guardar inéditos. Mas achei mais simples responder: – Não. O que faço, por ser altamente perecível, é para consumo imediato.

Informa a manchetinha do jornal: – Deus é o pai do rock. Por esta e outras é que sou ateu.

4. ESCONDERIJO Doutrina o afável e sempre otimista trambiqueiro: – Se você se esconde e não é mais procurado, nem mesmo pelos credores, é porque deixou de ter qualquer importância. E já pode sair do esconderijo.

5. A VELHICE Ninguém tem o direito de proclamar-se velho se ainda não começou a resmungar.

6.AS CURVAS DA ESTRADA Nesta reta final da vida, a minha esperança, um tanto esgarçada e inconsistente, é que possam surgir imprevistas curvas e inesperados caminhos vicinais ainda não detectados pela Geografia e mapeados pela Cartografia. 86 Continente Multicultural


7.AS PROPOSTAS DO GOVERNO

10.SALTO PARA O FUTURO

Já é hora de as propostas do governo deixarem de ser propostas indecentes.

Garante a sumidade federal: – O Brasil tem todas as condições para dar um grande salto. É possível. Mas não custa nada estender uma rede protetora embaixo. Nunca se sabe.

8.MOTIVOS DE INVEJA Três empregos no mundo me matam me inveja: o de Papa, o de Presidente da Fifa e o de Diretor-Geral do Louvre.

9. HISTÓRIA DO BRASIL

11.MEUS FRACASSOS Conviver com o fracasso como se fosse um sucesso. Muitos conseguem. Como eu os invejo!

12.EFEITOS COLATERAIS São irreversíveis os efeitos colaterais que pode causar a indiscriminada produção de má literatura.

De seis em seis meses, tudo muda no Brasil. Só o Brasil não muda. Joel Silveira é jornalista

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CULTURA

Tradição açucareira em exibição

Moenda, cerâmica de Mestre Vitalino, acervo da Fundação Joaquim Nabuco, Museu do Homem do Nordeste, Recife – PE

Tatiana Resende

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té hoje, a cana-de-açúcar é o produto mais importante de Pernambuco, tendo sido responsável por 40,2% das exportações do estado no ano passado, o que corresponde a 560 mil toneladas da safra de 1,09 milhão de toneladas. O montante não era tão grande há cinco séculos, mas a contribuição do produto para o desenvolvimento da região é incontestável. Um pouco dessa história será contada a partir do dia 17 de outubro no Instituto Cultural Bandepe, com a exposição O Açúcar. O historiador Leonardo Dantas Silva, responsável pela curadoria histórica da mostra, lembra que coube a Duarte Coelho a implantação, de forma sistemática, das bases da agroindústria açucareira. “Ele trouxe novas técnicas de fabrico do açúcar com a vinda dos engenhos e dos mes-

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Exposição contará a história da cana-de-açúcar em Pernambuco, através de gêneros artísticos como arquitetura, literatura, pintura, que ajudaram a entender a economia açucareira desde o princípio da colonização


tres especializados da Ilha da Madeira, e, sobretudo, com a importação de capital judeu para o financiamento do empreendimento. A cana-de-açúcar foi o suporte econômico da grande marcha civilizadora de Pernambuco, responsável pela colonização de todo o norte do Brasil”, explica. São quase 400 peças entre maquetes de engenhos, fotos, quadros, louças, estátuas e outros objetos que ajudam a entender a economia açucareira desde os primórdios da colonização. “Pela importância do tema, esperamos receber cerca de 70 mil pessoas, incluindo muitos estudantes. A exposição será bem

didática, pois nosso objetivo é que todos entendam o que está sendo mostrado e não fiquem simplesmente achando bonito ou feio”, comenta Carlos Trevi, presidente do Instituto Cultural Bandepe. A idéia do tema surgiu no ano 2000, quando Trevi organizou uma exposição sobre o café em São Paulo, no hall do Banco Real, com a colaboração da artista plástica e historiadora Ruth Tarasantchi, que repete a parceria fazendo a curadoria artística de O Açúcar. “Desde então, penso em como seria importante relembrar a tradição açucareira, orgulho pernambucano”, revela Trevi. Portinari, Cícero Dias, Vicente do Rego Monteiro e Lula Cardoso Ayres foram alguns dos artistas que deram sua visão sobre o tema. As obras foram cedidas para a exposição pelo Museu do Estado, Museu do Homem do Nordeste, Fundação Gilberto Freyre e por colecionadores particulares. “Cada artista retratou o período com sua própria linguagem, alguns enfocando mais o lado social,

como Cícero Dias, que pintou em suas telas a ótima vida dos usineiros e o sofrimento dos escravos. Em um dos quadros, intitulado Engenho Noruega, ele consegue mostrar todas essas diferenças”, comenta Ruth Tarasantchi, que revela ter descoberto um artista que muito lhe agradou. “Não conhecia o trabalho de Luiz Jardim e fiquei encantada”, diz, com a autoridade de quem passou os últimos quatro meses imersa no assunto, pesquisando em museus, livros, jornais e realizando entrevistas. “Fico feliz de saber que a exposição servirá também como um suporte para as escolas, que, inclusive, vão receber um catálogo com mais de 150 fotos e os textos dos três curadores”, afirma Carlos Trevi. A publicação está sendo organizada por Maria Lúcia Mendes, coordenadora de projeto de O Açúcar, e terá seu conteúdo disponibilizado na Internet (www. culturalbandepe.com) a partir do dia 17 de outubro. Os escritores responsáveis pela vasta literatura regional voltada para o Ciclo do Açúcar também não serão esquecidos. Entre eles estão Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Ascenso Ferreira, sendo deste último os versos “Cana-caiana/cana-roxa/cana-fita/cada qual a mais bonita/todas boas de chupar...”, extraídos de “Trem de Alagoas”. Os aspectos arquitetônicos ficaram a cargo da curadoria de Geraldo Gomes da Silva, que estuda a tipologia dos edifícios dos antigos engenhos de açúcar de Pernambuco desde a década de 80, tendo defendido tese de doutorado sobre o assunto, em 1990, na Universidade de São Paulo. O trabalho, intitulado Engenho & Arquitetura, virou livro em 1998, quando foi publicado pela Fundação Gilberto Freyre. Maquetes de um engenho, de uma moenda e de uma moita com cerca de 1,20 m vão ajudar a visualizar as construções, além de quadros de Frans Post e das fotos obtidas no acervo de Geraldo Gomes. “Todas as fotografias são importantes, mas algumas se destacam, como a da capela-mor do Engenho Bonito mostrando o altar, que depois foi roubado”, destaca o arquiteto que estudou detalhada-

Engenho de Açúcar, Henry Koster, litografia aquarelada, ilustração da obra Travels in Brazil, 1ª edição, 1816, coleção particular

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Como os Indígenas cortam e tratam a cana-de-açúcar, Pieter van der Aa, gravura em metal (sobre desenho de Theodore de Brie, 1631), século 18, Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro – Brasil

mente os quatro edifícios distintos: casa-grande, senzala, capela e moita. Os quadros e desenhos assinados por Frans Post têm importância fundamental na reconstituição daquela época, especialmente do chamado engenho real, comandado por agricultores de grandes posses, em oposição às engenhocas, um tipo de fábrica de menor proporção. “A capela era sempre no meio da casa-grande, dividindo o espaço dos moradores e dos hóspedes, ou ao lado da residência. E quanto mais dinheiro os senhores de engenho tinham, mais suntuosas eram as construções. A capela do Engenho Bonito, por exemplo, não ficava nada a dever a qualquer igreja barroca do Recife”, comenta Maria Lúcia Mendes, acrescentando que as casas-grandes seguiam o modelo europeu, obedecendo a padrões que já existiam em Portugal. Progresso – Vários investimentos poderiam ter sido feitos para melhorar o processo de plantio e produção da cana-de-açúcar, mas, enquanto não houve necessidade imediata, a modernização foi sen-

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do adiada. “Havia engenhos movidos à roda d’água no século 20, quando isso já era considerado obsoleto no 19. A madeira só foi trocada pelo bagaço da cana, como combustível, quando começou a faltar”, destaca a coordenadora de projeto da exposição. Foi justamente no século 19 que houve um grande progresso para a indústria açucareira em Pernambuco. “Particularmente por conta da queda da produção nas ilhas do Caribe e da Revolução do Haiti, além da abertura dos portos brasileiros às nações amigas pelo Príncipe Regente Dom João. O Recife veio a se transformar no porto de maior movimento comercial do Brasil”, ressalta Leonardo Dantas Silva. A nova ordem econômica, conseguida com a agroindústria do açúcar, transformou o produto de especiaria de alto luxo a gênero constante nas mesas das classes menos abastadas. O historiador destaca ainda que a grande maioria dos senhores de engenho rurais vivia sem saber o que acontecia no mundo. “O viajante inglês Henry Koster observa que ‘a maioria dos plantadores vivia em extrema ignorância, admirados ao saber que existiam outros agricultores além deles e que o Brasil não era o único país do mundo a produzir açúcar. Até pouco tempo não sabiam da existência de outra nação fora a deles e imaginavam Portugal como sendo senhor de tudo que tinha importância no mundo’”, relata. O senhor de engenho era a figura de maior importância da aristocracia açucareira, tendo privilégios concedidos pelos reis de Portugal e da Espanha. “Em uma das imagens da exposição, uma tapeçaria, é possível observar toda a opulência rural deles, que costumavam ser carregados em redes por escravos”, comenta Maria Lúcia Mendes. Em 1570, viviam no Brasil entre dois mil e três mil negros trabalhando na lavoura da cana-deaçúcar. Já no século 17, no ápice da produção, foram importados cerca de 500.000 escravos, em sua maior parte antes de 1640.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Portinari, Cícero Dias, Vicente do Rego Monteiro e Lula Cardoso Ayres foram alguns dos artistas que deram sua visão sobre o tema.

Dois touros, tapeçaria Gobelin em lã, Bélgica, século 20, acervo da Fundação Joaquim Nabuco, Museu do Homem do Nordeste, Recife – PE


FOTOS: DIVULGAÇÃO / NELSON KON

Garrafas de cachaça, em promeiro plano, Xamêgo, rótulo criado por Lula Cardoso Ayres

Por volta de 1642, os senhores de engenho eram os principais devedores da Companhia das Índias Ocidentais. “Foi desta classe, liderada por João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, que partiu o movimento, por eles denominado de Insurreição Pernambucana, visando expulsar os holandeses. Tal movimento, iniciado no Engenho São João da Várzea, em 13 de junho de 1645, tinha por senha a palavra açúcar”, salienta Leonardo Dantas Silva. Várzea, Dois Irmãos, Camaragibe, Apipucos, Casa Forte, Cordeiro, Torre e Madalena são alguns dos bairros que herdaram seus nomes de engenhos. Segundo o historiador, foi o açúcar, e não a esperança de descobrimento de minas, o motivo principal da invasão holandesa a Pernambuco. “Na primeira metade do século 17, a riqueza da capitania, bem conhecida em todos os portos da Europa, veio despertar as atenções dos Países Baixos, que, em

guerra com a Espanha, sob cuja coroa estavam Portugal e suas colônias, necessitavam de todo o açúcar produzido no Brasil para suas refinarias”, afirma. A exposição do Instituto Cultural Bandepe também abre espaço para dois produtos provenientes da cana-de-açúcar: a cachaça e os doces. A famosa bebida brasileira é a terceira mais vendida no mundo, entre os destilados. Só no Brasil, é consumido anualmente 1,3 bilhão de litros. Já os doces são ressaltados desde a primeira edição de Casa-Grande & Senzala, no qual Gilberto Freyre afirma que o escravo africano dominou a cozinha colonial, enriquecendo-a de novos sabores. Dantas Silva conta que, em 1939, quando foi lançado Assucar – Algumas Receitas de Bolos e Doces do Nordeste do Brasil, Freyre escandalizou os conservadores ao escrever, de forma pioneira, um livro com receitas culinárias seculares recolhidas junto a famílias e engenhos da região. “O próprio conde João Maurício de Nassau, ao regressar à Holanda, em 1644, levou em sua bagagem, além dos quadros produzidos pelos pintores Frans Post e Albert Eckhout, 103 barriletes de frutas confeitadas”, declara o historiador.

Tradicional de Pernambuco: o bolo de rolo

Serviço: Exposição O Açúcar, de 17 de outubro a 24 de novembro, no Instituto Cultural Bandepe (3224-1110). De terça a quintafeira, das 14h às 20h, e de sexta-feira a domingo, das 14h às 22h Tatiana Resende é jornalista

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ENTREMEZ

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lejo Carpentier acreditava que a grande tarefa do romancista americano seria inscrever a fisionomia das suas cidades na literatura universal, esquecendo-se dos tipicismos e costumes. Isso é o mesmo que tomar o partido de uma literatura urbana, negando espaço aos regionalismos. Carpentier nasceu em Cuba, mas era um cidadão do mundo, sobretudo europeu. Esteve ligado aos surrealistas Artaud e Prévert, nos seus onze anos de exílio. Era culto, refinado, e como Jorge Luis Borges, transitava com desenvoltura pelos mais variados temas. Sua ficção mergulhou fundo na realidade da América Latina, foi às entranhas da nossa história, mas não se deteve nessa proposta de urbanismo. Numa passagem rápida pelo Recife, a coreógrafa alemã Pina Bausch recebeu homenagens, provou da nossa culinária, viu os grupos de danças populares, o Balé Grial, e até submeteu-se a uma entrevista, coisa a que se diz avessa, por conta da timidez. A bailarina e coreógrafa armorial Maria Paula Costa Rego, do Grial, foi quem abriu a conversa com Pina, afirmando sua

procura de uma linguagem brasileira para a dança, inspirada nas nossas raízes negras, índias e ibéricas. Quis saber até que ponto Pina Bausch tomava como referência a cultura alemã para a criação do seu trabalho à frente do Tanztheater Wuppertal. Pina confessou que buscava expressar os pensamentos e anseios dos homens de qualquer lugar do mundo, independentemente das suas nacionalidades. Afirmou sua recusa aos modelos estabelecidos pela dança, dizendo-se aberta a todas as sugestões. Que a música dos seus espetáculos ela mesma cria, ouvindo compositores de vários países e épocas. A descoberta do gesto novo de um bailarino pode redirecionar a construção do seu teatro-dança. E que tudo muda, a cada dia, até a estréia, quando já aconteceu de substituir-se a própria música, um pouco antes de abrir a cena. Este culto ao impermanente, a constante rotação de emoções e imagens, sugere a ausência de um estilo. Mas Pina Bausch tem um método de trabalho, que é incorporado e imitado por outras companhias. Sua busca lembra a afirmativa de

Ronaldo Correia de Brito 92 Continente Multicultural

FOTO: HANS MANTEUFFEL

Cena do espetáculo As Visagens de Quaderna ao Sol do Reino Encoberto, pelo Grupo Grial de Dança, dirigido por Maria Paula Costa Rego

Cultura, nacionalismo, provincianismo e blá, blá, blá...


Pina Bausch e Alejo Carpentier põem em choque as motivações de muitos criadores nordestinos. Não abandonamos o regionalismo e ainda levamos a sério o pensamento de que o homem que canta sua aldeia canta o mundo Carpentier: “As nossas cidades não têm estilo. E no entanto começamos a descobrir que possuem o que poderíamos chamar um terceiro estilo: o estilo das coisas que não têm estilo.” Esse não-estilo das cidades homogeniza as culturas urbanas, fazendo São Paulo igual a Tóquio, Nova Iorque, Londres e Berlim. Pina e Carpentier põem em choque as motivações de muitos criadores nordestinos. Não abandonamos o regionalismo e ainda levamos a sério o pensamento de Kazantzakis, de que o homem que canta bem a sua aldeia canta bem o mundo. Aspiramos à modernidade com um pé na tradição, como fizeram os primeiros modernistas pernambucanos, há oitenta anos. O grande êxodo rural, que mudou a feição do Brasil, fazendo dele um país urbano, aconteceu muito recentemente. Carregamos as marcas da tradição oral e dos brinquedos populares. O campo veio para as cidades grandes, mas ficou nas suas periferias, nos morros e mangues. Vivemos um apartheid social e cultural. A mistura dos três povos pode ter acontecido no sangue, mas permanecemos divididos em ricos, pobres e

miseráveis. Temos uma das piores distribuições de renda do mundo. Olhamos a arte popular na dança, na música, na pintura e no teatro, acreditando na possibilidade de um sincretismo com a arte chamada culta, da classe média, resultando daí um filho híbrido, de feição morena, brasileiro. E enquanto se busca firmar essa cultura mestiça, hasteando-se a sua bandeira, o povo que a produz permanece analfabeto, consumido pela fome, as doenças e a violência. Alimentamos um velho sonho nacionalista, que já morreu para o resto do mundo, de criar uma arte universal partindo de matrizes brasileiras. No Nordeste, essas matrizes são exclusivamente ibéricas, negras e índias. A nossa indigência econômica e cultural não nos dá a liberdade de transitar pela cultura de todos os povos, como faz o Pina Bausch. Sofremos um complexo de castrados, fruto de anos de colonialismo. Quando Picasso buscou inspiração na arte primitiva africana, foi porque na França e na Espanha ela já não existia. No entanto, ele não recusou o direito de usá-la. A formação em grandes centros, a convivência com artistas de outras nacionalidades e o contato com várias disciplinas contribuem para a formação de criadores mais cosmopolitas, com o estilo sem estilo de que fala Carpentier. Ainda estamos longe disso. Por trás da emoção que marcou o encontro de artistas populares e de classe média com Pina Bausch, era possível a leitura de um subtexto, como dizemos no teatro. E o que se lia era o nosso deslumbramento pela arte daquela mulher famosa e aclamada, filha de uma Alemanha rica e poderosa, que produziu muitos outros gênios, além de um louco como Hitler. E ao mostrarmos nossa dança, maracatus e caboclinhos, com um misto de timidez e orgulho, parecíamos implorar a validação do que fazemos, um reconhecimento que só tem valor se vier de fora. Evito lembrar os nossos índios das Reduções, esforçando-se em parecer com os colonizadores europeus. Porque ao mesmo tempo em que os nossos artistas iam às lágrimas diante de Pina e do que ela representava, faziam questão de parecer pernambucanos. Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor

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Castelo de exemplos Gustavo Maranhão O Recife está ganhando um dos espaços mais nobres do País para a contemplação da arte. Uma réplica de castelo inglês foi construída pelo empresário e colecionador Ricardo Brennand, na Várzea. É a sede do instituto que será aberto oficialmente em março do próximo ano para visitação pública. O acervo, totalmente original, sobressaindo o gótico e o medieval, é composto de esculturas, pinturas, armaduras, tapetes, móveis, espadas, adagas e outros objetos amealhados pelo empresário durante meio século de paixão e paciência. Este é o primeiro exemplo: o despojamento. Homem de negócios bem-sucedido, Ricardo poderia se dar ao direito de manter sua vasta coleção no seio da família. Mas, como um faraó às avessas, não deseja levar nada disso para a posteridade. Para a posteridade, fica o nome do instituto e o gesto de doação, cujo valor total, tanto pela qualidade e quantidade das obras doadas quanto pelo significado para a sociedade, é inestimável. Todo o ímpeto que animou uma vida inteira de amor à arte lança agora os frutos para o deleite da comunidade, e dos turistas que aportam na cidade. Antes da disponibilização do acervo, porém, já será possível para o

pernambucano e os visitantes de outras paragens conhecerem o salão erguido para megaexposições que necessitam de cuidados especiais. Graças ao Instituto Ricardo Brennand, Pernambuco recebe pela primeira vez um conjunto de telas de Albert Eckout, pintor holandês que retratou o que viu no Brasil do século XVII: as paisagens, o povo e a cultura de nosso estado. Para se ter uma idéia do que isso representa, basta lembrar que os quadros de Eckout jamais deixaram o Museu Nacional de Copenhagen, na Dinamarca, em 350 anos. A vinda das 24 telas da mostra para o Recife só foi viável por causa da alta tecnologia de conservação contra a umidade, presente no IRB. Trata-se de fato importantíssimo para a cultura pernambucana e brasileira. Tanto que o próprio príncipe Frederik, da Dinamarca, virá para a abertura da exposição. Eis o segundo exemplo contido no gesto rico de exemplos de Ricardo Brennand: a valorização de um trecho marcante de nossa história. O período holandês é o destaque agora com Eckout, e será também com Frans Post, a partir do ano que vem, e com outras referências espalhadas pelo castelo. A escolha vem preencher uma lacuna, e o


preenchimento serve para nos reavivar a memória. E, como não faltam os críticos, serve ainda para o questionamento mais profundo de nossa identidade. Encravado num dos mais belos bairros da metrópole, nas cercanias da Universidade Federal de Pernambuco, o Castelo Brennand, como vem sendo chamado, remete para uma viagem no tempo e no espaço, através da História da Arte, em geral, e da História de Pernambuco, em particular. É um outro exemplo a destacar: o caráter educativo do IRB, que dissemina informação, conhecimento, formação estética e gosto pela arte. Dá até para antever o fluxo incessante de excursões escolares e universitárias oriundas de todo o Nordeste e de outras partes do país para o local, nos anos vindouros. Uma viagem como essa geralmente encontramos nos castelos da Europa. Mas em plena Várzea? Não admira que a visão do diferente cause algum espanto, ou até preconceito. O IRB traz um pouco do Velho Mundo para cá. Para a nossa contemplação, para a nossa educação, para a nossa sorte. Um detalhe que não se pode deixar de mencionar em relação a este grandioso e inédito presente que recebe a cidade do Recife é justamente o usufruto franqueado aos cidadãos. Se o IRB pretende ser auto-sustentável, não quer dizer que o objetivo seja ganhar dinheiro cobrando ingresso. E mesmo que tenha por sede um castelo, o Instituto está longe de ser algo parecido

com o “castelo de Caras”. O sonho de Ricardo Brennand não foi idealizado e construído para uma elite – como equivocadas ou maldosas línguas podem falar. Pela vontade e virtude – como dizia Cícero – de seu criador, o IRB estará sempre de portões abertos a qualquer um, a entrada é universal e gratuita. Mais uma vez, ressalte-se a intenção democrática do empreendimento, num notável exemplo de consciência pública. Prova de amor pela nossa terra e nossa gente, o Instituto Ricardo Brennand, pela sua origem, deve mexer com a consciência de cada um dos pernambucanos que possam, a seu modo e dentro de sua capacidade, fazer algo pela coletividade. Nosso acervo cultural seria outro e nossa oferta de cultura seria outra se houvessem mais gestos como o de Ricardo Brennand. É dele o mérito do pioneirismo, da visão larga, e da ação objetiva. São dele os exemplos que habitam um castelo e fundam um novo paradigma de apoio à arte entre nós. Daqui em diante, cabenos segui-lo. Ecoar seu gesto e seu sonho, multiplicá-los, e cuidar para que o Instituto Ricardo Brennand, em toda sua dimensão e porte, seja apenas a semente de uma nova mentalidade – e o esboço de uma cidadania comum no Recife do Século XXI.

Gustavo Maranhão é empresário


ÚLTIMAS PALAVRAS

É coisa dos homens

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maldade, a raiva e a fome. Tudo isto e mais alguma coisa é que geram esta danada violência que nos vitima todos os dias no Brasil – o efeito da má legislação que nos impuseram com a sanção da Constituinte de 1988. No afã de vingança pelos chamados anos de chumbo vividos pelo nosso povo durante o regime militar instalado em 1964, a sociedade dos políticos ao auferir a glória da anistia resolveu modernizar nossa lei maior como se o País fosse a Suíça ou o Principado de Mônaco. Foi no que deu. Poderes de banditismo paralelos, regalias na punição de criminosos (de gravatas e menores) e vai por aí afora. Quando chega época eleitoral a grande maioria dos candidatos nos contagia de excrementos de mentira e enrolação, falsas promessas de segurança e ainda por cima jogando a culpa na polícia – sua falta de preparo profissional, conivência em acertos pecuniários oriundos de furtos etc e tal. Esquecem que são eles os responsáveis, principalmente quando se aboletam em luxuosas transações nas coxias de seus gabinetes refrigerados e atapetados do Congresso Nacional, omitindose de legislarem. E o Poder Judiciário? Como pode agir com rapidez e lisura se as leis são caducas ou modernas demais para nossos costumes subdesenvolvimentistas? – Todo delinqüente que seqüestra, rouba, tortura ou mata pela primeira vez tem o direito constitucional de requerer esperar em liberdade o julgamento, por ser réu primário, ter residência fixa e profissão definida, tolhendo o senhor juiz de sequer poder avaliar o grau de periculosidade do mesmo e a crueldade do crime praticado. Que acham? Que tal começar por se alterar a lei de Execução Penal? Depois da condenação o hilário: a pena máxima é de 30 anos, mas o distinto só cumprirá um terço (quando muito) se for bem comportado e seu boletim penitenciário for de honra ao mérito (o chamado abrandamento da pena) ou não fugir pela porta da frente. E os menores – coitados menininhos parrudos de 16, 17 e 18 anos, que não podem nem levar um cascudo pelos delitos cometidos? Ah! Ai daquele policial que tocar num adolescente desses – logo aparecem, das

brumas da ira justiniana, as organizações pró-direitos humanos (que chegam a admitir que os mocinhos cheirem cola, alegando ser este o único prazer de suas vidas) com falas públicas e notas oficiais. A França, berço da democracia ocidental, reduziu a imputabilidade penal para os 14 anos de idade. Ora, os governos não pagam bons salários – a maior parte dos policiais chegam a morar com suas famílias em favelas ou em duplex de flats montados sobre artesanais pilotis de palafitas; não os reciclam tecnicamente com um mínimo sequer de seriedade; não os armam decentemente e pior, os marginalizam da sociedade, compungindo-os e aos seus, tornando-os alvos de chacotas perante as elites – que os reduzem a pajens lustrosos de vestimentas animais à serviço de suas mordomias de seguranças particulares. Esta é a realidade, meus caros leitores – o resto é o que não se quer ver. No mundo, as causas têm outras nomenclaturas. A guerra bélica dos donos do planeta impondo, pela onipotência de suas arrogâncias, a humilhação da pobreza aos países completamente desassistidos de respeito e liberdade, gerando, por conseguinte, a não menos crueza da represália abominável do terrorismo. Assim como os empresários das drogas, que, mesmo das cadeias ou à beira mar, achando estarem no templo da magnitude da maldade, ditam Unamuno, persuadindo de forma inversa o convencimento do direito e da razão com a supremacia de um quinto cavaleiro do apocalípse. No final, coisas dos homens impuros e abjetos. Melhor, como a Geni de Chico, é amar os bichos. Rivaldo Paiva é escritor

Rivaldo Paiva 96 Continente Multicultural




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