Continente #023 - García Márquez

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CONTEÚDO

Continente Multicultural

Especial – Os Sertões Ao completar 100 anos, livro de Euclides da Cunha continua a provocar debates

Literatura – Viver para escrever O Nobel Gabriel García Márquez lança o primeiro volume das suas memórias

Comemoração – Concretismo Há 50 anos era criado em São Paulo movimento que revolucionaria a poesia mundial

Memória – Torquato Neto Poeta não traiu sua arte, mesmo que tal ousadia significasse a própria morte

Correspondência – Tchékhov Cartas do escritor russo revelam seu dilema entre a medicina e a literatura

Marco Zero – Belo Monte Alberto da Cunha Melo escreve poema sobre a epopéia de Canudos

Artes plásticas – Dantas Suassuna Pernambucano recria seu percurso em desenhos, quadros e um “Diário Iluminado”

Registro – Rodolfo Mesquita Dono de obra densa e consagrada, desenhista permanece desconhecido do público

Arte popular – Nino Escultor cearense dava vida a bichos e homens em troncos de umburana

Ferreira Gullar – Vanguardas A arte conceitual é expressão da modernidade ou, também, uma negação dela?

Filosofia – Roberto Romano Filósofo critica as universidade brasileiras que favorecem o saber elitista

Comportamento – Cartões-postais Colecionadores transformam em artigo cult o que foi hábito de outras épocas

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O escritor Gabriel García Márquez Foto: Carlos Duque

Sabores pernambucanos – Goiaba Fruta nativa da América tropical foi logo incorporada pelos colonizadores

Mil palavras – Canoa Quebrada Praia cearense é dona de um tempo próprio e uma luminosidade especial

Cinema – Interior Projeto leva para cidades da periferia a magia dos atuais filmes brasileiros

Diário de uma víbora – Joel Silveira Um exercício estimulante: ir, com lucidez, cortando as pontes atrás de si

História – África Alberto da Costa e Silva traça o percurso da escravidão negra de 1500 a 1700

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Página 84

Entremez – Ideologia A morte do herói de um tempo em que se acreditou mudar o Brasil pela revolução

Últimas palavras – Igrejas Levar a palavra de Deus à gente simples é elogiável. Tirar-lhe os bens é crime

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Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Arte Manoela Leão e Luiz Arrais Editoração eletrônica Ilustradores André Fellows Zenival e Mascaro Tratamento de imagem Nélio Câmara Secretária Tereza Veras

Revisão Rodrigo Pinto

Seriedade Como jornalista de longa data sei como é difícil editar uma revista. Portanto, desejo que continuem realizando com seriedade e competência. Rachel de Queiroz – Academia Brasileira de Letras – Rio de Janeiro – RJ Rotas Somos estudantes de jornalismo, e realizamos expedições por Pernambuco, desbravando trilhas e rotas de difícil aceso, produzindo matérias publicadas em veículos impressos de grande circulação no estado, sites e realizando exposições fotográficas por vários locais do estado e fora. Gostaríamos de contribuir com a revista no que for necessário para divulgar as belezas pernambucanas. Rodolfo Scavuzzi – Recife – PE

Colaboradores Alberto da Cunha Melo, Alexandre Figueiroa, Antônio Arrais, Ariano Suassuna, Fábio Lucas, Ferreira Gullar, Frederico Barbosa, Gilmar de Carvalho, Joel Silveira, Luciano Trigo, Luis Ernesto Mellet, Luiz Carlos Monteiro, Marcelino Freire, Maria Lectícia Cavalcanti, Murilo Maia, Rodrigo Petrônio, Ronaldo Brito, Rivaldo Paiva, Tatiana Resende Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Cláudio Manuel, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Eliseu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 / e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2551 / fax: 3222.4130 / e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Editor: editor@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Simples e exata Achei simplesmente maravilhosa a matéria sobre Volpi, um dos expoentes máximos de nossa arte. O que me interessou mais ainda foi a maneira simples, exata, precisa do texto: disse o que tinha a dizer, esclareceu o necessário sem fazer uso de expressões metafóricas e afetadas para fazer-se erudito. Acho que o Volpi merecia um texto assim, essencialmente consistente, porém sem afetação. Parabéns! Que delícia ler algo assim. Neide Lucia Santos – Recife – PE Controlando a emoção Venho planejando esta carta há algum tempo, mas só agora, controlando um pouco a emoção, resolvi


Plínio Pacheco Com muita satisfação sou leitora assinante desta conceituada revista e, como pernambucana, filha de Fazenda Nova, sugiro que seja feita uma matéria com o grande Plínio Pacheco, idealizador e construtor do “maior teatro ao ar livre do mundo”. Para que as histórias permaneçam vivas é preciso recontá-las sempre e, embora sua obra permaneça plantada em torres de granito neste agreste de tantas paixões, é difícil virar a página e iniciar um novo capítulo da nossa história, pois Plínio Pacheco foi um homem de poucas palavras e infinita grandeza! Que Pernambuco preserve e reconte a sua história como patrimônio da nossa cultura. Mônica Mendonça – Diretora de Cultura – Prefeitura Municipal do Brejo da Madre de Deus – PE Parabéns Parabéns!!! Vocês são a Carta Capital cultural. Priscila Labanca C. Costa – Recife – PE Orgulho Sinto-me privilegiada, orgulhosa de ter acreditado desde cedo na melhor revista do país. Parabéns! Juliana Gomes das Oliveiras – Recife – PE Qualidade Venho acompanhando a trajetória da revista Continente Multicultural desde seus primeiros números e fico contente de poder afirmar que a qualidade da publicação tem se mantido todos os meses, às vezes alcançando alturas excepcionais, tanto em texto quanto visualmente. É motivo de orgulho para todo o Brasil. Gustavo Alan de Lima – Belo Horizonte – MG

Surpresa Conheci a revista Continente em viagem de trabalho ao Rio de Janeiro. Fiquei gratamente surpresa pela profundidade e consistência dos seus textos, explorando assuntos de interesse cultural, quase sempre os visualizando de uma ótica original. É muito bom para o país ter uma revista deste nível. Maria Amélia Azevedo – Manaus – AM Cumprimento Gostaria de cumprimentá-los pela entrevista feita com a intelectual americana mais estrangeira que existe, a Susan Sontag, na edição de outubro da revista. Como estudante de jornalismo, fiquei particularmente interessada em seu último ensaio, Um Olhar Sobre o Sofrimento dos Outros. Roberta Duarte – Recife –PE

Cada vez melhor Sou assinante da revista desde o início e nunca me arrependi. Ela está cada vez melhor. Que tal uma matéria histórica sobre o rio Beberibe desde a época de Duarte Coelho, o traçado do seu leito original e todas as transformações, aterros e desvios que sofreu até a nossa época? Adoro as matérias sobre a história de Pernambuco que vocês publicam com freqüência. Continuem ótimos! Lilia Gondim – Olinda – PE Nota da Redação: A escultura Diana do Pastoril, que ilustra a capa da revista Continente Documento, número 2, sobre Museus, é da autoria de Demetrio Albuquerque Silva Filho.

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CARTAS

resumir o imenso discurso que poderia fazer. Principalmente depois que li o último número, que traz como matéria de capa o grande Ariano Suassuna. Parabéns a Marco Polo (que eu já sabia competentíssimo) por ter transmitido até o som e a cadência da fala de Ariano. Que vocês são bons demais, todo mundo já disse. Que a revista é linda da primeira até a última página, também já se disse. Que é um orgulho saber que aqui se faz revista diferente e com gente da mais alta competência, é dito toda semana. Mas eu pergunto: lembram o “alumbramento” de Manuel Bandeira quando viu a “moça nuinha no banho”? Pois foi essa a emoção que senti quando conheci a Continente Multicultural. Fiquei visceralmente apaixonada. Anna Christina Salgueiro de Oliveira – Recife – PE


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EDITORIAL

As mil e uma noites de García Márquez

FOTO: CARLOS WREDE / AGÊNCIA O GLOBO

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ão é coisa a desprezar que os dois mais famosos narradores latino-americanos da atualidade hajam citado As mil e uma noites como uma das suas maiores influências literárias. Jorge Luis Borges e García Márquez são esses escritores que espalharam como sementes os mitos que leram e ouviram. A admiração de ambos por essas histórias da tradição oriental vem atestar o quanto está vivo o simples contador de histórias acima de todo o vanguardismo e experimentalismo que foram a razão de ser do romance moderno. Agora, García Márquez resolveu contar as suas próprias mil e uma noites, isto é, os dias da sua vida que conseguiu converter em palavras. Ao lançar no mês passado, exclusivamente em países hispânicos, as suas memórias, o colombiano já motivou as hipérboles de sempre quando se trata de um escritor que não tem mais simplesmente milhões de leitores, mas incontáveis fiéis, fanáticos. Bem longe vai o tempo em que era apenas uma espécie de “patinho feio” do boom dos ficcionistas latino-americanos que começaram a conquistar a Europa, numa mescla bem equilibrada de talento e promoção agressiva das editoras. Como bem atesta o seu biógrafo Dasso Saldívar: “Gabriel García Márquez, que já era um dos melhores escritores da América Latina, ainda padecia, pelo contrário, da felicidade infeliz de que seus primeiros quatro ou cinco livros fossem jóias quase secretas, restritas aos seus amigos e a um público de leitores paroquiais. Não conseguia ir bem em nada, exceto, é claro, em seu artesanato literário, em seu amor com Mercedes e na relação com seus amigos de sempre.” García Márquez é quase uma unanimidade de críticos e leitores. Quase porque há desmanchaprazeres como Pasolini (o poeta que filmou As mil e uma noites) que, num artigo pouco lembrado, ataca o autor de Cem Anos de Solidão. Artigo que Con-

tinente traz à luz, como também, em primeira mão, em português, trecho das tão aguardadas memórias do romancista colombiano. Esta edição traz, ainda, 14 páginas dedicadas aos 100 anos de publicação do Os Sertões, de Euclides da Cunha, obra fundamental da nossa literatura, cuja atualidade permanece, como arte e como denúncia.

Gabriel García Márquez: convertendo a vida em palavras

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AO LEITOR

(Nem) Marx (nem) Weber A nova economia é um mundo de símbolos onde “tudo que é sólido pode se desmanchar no ar”, como poderá estar a se desmanchar, para efeito desse novo tempo, grande parte das premissas que sustentaram as teorias de Marx e de Weber

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ode parecer paradoxal, mas o maior fabricante de calçados esportivos do mundo – a Nike – não possui fábricas, nem equipamentos ou imóveis. A Nike produz idéias e vende conceitos. Ela contrata fabricantes anônimos para produzir as formas concretas de seus conceitos. Na verdade, a empresa é um estúdio de pesquisa e design com uma fórmula de marketing e um mecanismo de distribuição fantásticos. Ela é para todos os efeitos uma empresa virtual, a exemplo de muitas outras corporações que deixaram o ramo industrial para fazer parte da área da cultura, da fantasia e do entretenimento. A vantagem comparativa que permitiu o seu sucesso foi a percepção antecipada de que o que está sendo comprado e vendido são idéias e imagens. E, na nova Economia – da informação e da tecnologia num mercado globalizado – a corporificação dessas idéias e imagens se torna cada vez mais secundária. A emoção vale mais do que qualquer razão. A sensação de um chiado (do bife na chapa) pode representar mais valor do que o próprio bife. 6 Continente Multicultural

Na nova economia, as idéias de Max Weber de “organizações” com uma estrutura relativamente estável, com regras e procedimentos bem definidos começam a se desintegrar. O mundo da tecnologia e do conhecimento requer organizações com estruturas flexíveis e formatos que possam mudar rápida e bruscamente. Nesse contexto, as organizações se tornam efêmeras e fugazes como as tecnologias utilizadas nos seus negócios. Nesse mundo, o processo é produto e a forma consubstancia o conteúdo. De outra parte, as idéias de Karl Marx no combate sistemático ao capital ruíram com a queda do muro de Berlim. A inevitabilidade histórica de que a classe operária industrial seria coveiro do capitalismo e seus grilhões se romperiam sozinhos não aconteceu, pelo menos no mundo desenvolvido. Registre-se como agravante que, ao contrário do capitalismo, o comunismo nunca aprendeu a produzir a riqueza que afirmava saber tão bem distribuir (nem tampouco o capitalismo sabe distribuir a riqueza que produz). Apelando para o contraditório, há autores que

FOTOS: REPRODUÇÃO

Carlos Alberto Fernandes


A emoção vale mais do que qualquer razão. A sensação de um chiado (do bife na chapa) pode representar mais valor do que o próprio bife

afirmam que o socialismo perdeu, mas o capitalismo não venceu. Essas idéias pontuadas por Marx e Weber circunstanciam uma era industrial caracterizada por um mundo de chaminés e força bruta. De operários e construções... físicas. Em contrapartida, a era pós-industrial e da nova economia é um mundo de formas platônicas. De idéias, imagens e arquétipos. De conceitos e ficções. É um mundo do espiritual e do compartilhamento emocional. É o novo espaço concreto da cultura. Esta nova realidade tem mostrado que o capitalismo que interessa à humanidade não é o produtivo. É o criativo. Não é fora de propósito que o estudioso italiano Domenico De Masi esteja fazendo sucesso pelo mundo afora com seus livros e palestras sobre o ócio criativo. Para De Masi, na passagem do capitalismo industrial para o cultural, o ethos do trabalho está cedendo espaço para o ethos do lazer. Na década de 70, o nosso Gilberto Freyre já defendia essas mesmas idéias, argumentando que, no futuro, as pessoas teriam mais tempo ocioso do que trabalho. E esse tempo ocioso seria preenchido com o lazer, sendo este, uma categoria fundamental do comportamento humano, sem a qual a civilização não poderia existir. Jeremy Rifkin pensa nessa mesma linha, quando afirma que neste século a produção cultural (incluindo o lazer) ascenderá ao primeiro nível da vida econômica, as informações e a tecnologia, ao segundo; a fabricação, ao terceiro; e a agricultura, ao quarto. Para Rifkin, as mudanças do capitalismo industrial para o

cultural, e a mudança de preocupação da propriedade para o seu uso vão modificar ainda mais os contratos sociais e o comportamento das pessoas e das organizações. Essas mudanças na forma e no conteúdo nos fazem crer que a cultura compartilhada não pode ser meio, deve ser fim. Os recursos culturais e os ritos sociais devem ser valorizados em si e por si mesmos. E, por mais que os produtos culturais possam ser vistos como commodities (mercadorias), não se pode ligar diretamente o símbolo do dinheiro a uma experiência cultural compartilhada, sem prejudicar os relacionamentos recíprocos que dão origem a ela. A cultura e seus ritos – essenciais à vida humana – independem de estereótipos econômicos para sobreviver. A economia cultural já é um mundo de símbolos onde “tudo que é sólido pode se desmanchar no ar”, como poderá estar a se desmanchar, para efeito desse novo tempo, grande parte das premissas que sustentaram as teorias de Marx e de Weber. De qualquer sorte, utilizar-se de um novo determinismo histórico para confirmar a realidade estratégica do futuro é por demais oportuno para todos aqueles que estão vendo e vivendo esta nova economia da sociedade pós-industrial. Nesse futuro, não há mais burocracias a serem preservadas nem correntes ou cadeias a serem destrancadas, a não ser as que estiverem nas mentes e cabeças de cada um de nós. Carlos Alberto Fernandes é economista, professor da UFRPE, Diretor Geral da Revista Continente Multicultural

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ESPECIAL

Cem anos de indignação Classificado como obra-prima por intelectuais eminentes e criticado por haver se baseado em teorias obsoletas, Os Sertões, de Euclides da Cunha completa um século, alcançando a marca de 750 mil exemplares vendidos em português e reconhecido como obra fundamental da cultura brasileira Homero Fonseca

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Os Sertões foi lançado, em dezembro Q uando de 1902, o impacto foi enorme. O livro

FOTO: REPRODUÇÃO

abordava a Guerra de Canudos (1896/1897), um massacre praticado pelo Exército contra uma comunidade miserável no sertão da Bahia, liderada pelo guia messiânico Antônio Conselheiro. Os conservadores imediatamente acusaram-no de ser um livro “de defesa dos jagunços”. O crítico Afrânio Coutinho classificou-o como “obra de ficção”. O escritor Mário de Andrade, ao conhecer a miséria do sertão e não perceber sinais de heroísmo nos grotões, achou-o “um livro falso”. Marxistas ortodoxos apontaram-lhe, depois, o pecado capital de não centrar sua análise na luta de classes. Outros incriminam-no, numa simplificação injusta, de ter cunho racista. Populistas contemporâneos repudiam-no por não elevar Antônio Conselheiro à condição de herói nacional. Entretanto, o livro freqüenta infalivelmente as listas dos clássicos nacionais. Uma enquete feita pela revista Veja, em 1994, entre críticos, escritores e professores conceituados, indicou-o como o maior livro brasileiro de todos os tempos, seguido por Casa-grande & Senzala e Grande sertão: Veredas. Bertholt Zilly, professor da Universidade Livre de Berlim e seu tradutor para o alemão, afirma que a obra tornou a tragédia social de Canudos parte constitutiva do imaginário nacional e base de legitimação para reivindicações. O historiador inglês Eric Hobsbawn não hesita em colocá-lo na categoria de obra-prima. O crítico americano, e seu tradutor para o inglês, Samuel Putnam o considera o maior livro produzido por um povo.

Ao lado: cena do filme A Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende 1997

I – A ÉPOCA Quando eclodiu a guerra de Canudos, em 1896, a República havia sido proclamada há apenas sete anos. A situação econômica do país era inquietante. O governo sufocara sangrentamente duas rebeliões – uma no Rio Grande do Sul e outra no interior da Marinha. A miséria espalhava-se como uma praga pelo vasto interior brasileiro. Os escravos libertos pouco antes vagavam pelos campos e pelas cidades, sem trabalho e sem meios para viver com um mínimo de dignidade. Antônio Conselheiro, percorrendo Continente Multicultural 9


urbanos representando a civilização à européia – e o sertão – a terra ignota e bárbara, habitada por um povo rude e supersticioso que deveria ser domado a ferro e fogo. Aconteceu então o que o romancista húngaro Sándor Márai (Veredicto em Canudos) chamou de “curto-circuito social”. A imprensa fez enorme amplificação do conflito, e o Exército foi acionado e derrotado em três investidas sucessivas. O caso tomou as proporções de uma cruzada nacional contra os “bárbaros monarquistas sertanejos”, e uma quarta expedição, mobilizando 14 mil soldados, acompanhada pelo ministro da Guerra em pessoa e pesadamente equipada, inclusive por canhões Krupp, foi enviada para exterminar o arraial. A guerra encerrou-se a 5 de outubro de 1897, com a aniquilação total do povoado. Estava consumado o genocídio, um dos mais vergonhosos episódios de nossa História. II – O HOMEM Euclides da Cunha, um homem de vida sofrida e temperamento arrebatado, era republicano convicto. Em 1888, como cadete da Escola Militar do Rio de Janeiro, estado onde nascera, arrojou seu sabre aos pés do então ministro da Guerra, durante uma solenidade

FOTOS: REPRODUÇÃO ; REPRODUÇÃO

os sertões com uma multidão de fiéis, a almejar a salvação eterna em contraponto à dura realidade dos campos latifundiários, instalou-se com uma grande comunidade na antiga fazenda Canudos, no alto sertão baiano. Belo Monte – nome dado ao novo e miserável povoado –, com seus 25 mil habitantes, chegou a ser a segunda cidade da Bahia em população. A proclamação da República ocorrera por um golpe militar, num quadro de agitadas modificações econômicas e sociais, em que novos setores produtivos e uma classe média emergente, em meio à qual despontava a oficialidade do Exército, confrontaram-se com a velha ordem oligárquica. Por conta dos desentendimentos com a hierarquia da Igreja e prepostos do governo republicano, açulados por grandes proprietários prejudicados pela fuga de mão-de-obra em toda a região, a Polícia foi acionada contra a comunidade e derrotada em choques armados com os conselheiristas. Por haver o Conselheiro, em suas prédicas, condenado certas práticas republicanas, especialmente o casamento civil, o movimento messiânico foi rotulado como uma revolta política, visando à restauração do antigo regime. Logo caracterizava-se um embate entre o litoral – os centros

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Folha de rosto da primeira edição de Os Sertões – dezembro de 1902

O movimento do Beato Lourenço, no Caldeirão, Ceará, foi bombardeado por aviões militares, um ano antes de Guernica. Caldeirão não teve um Picasso para pintar a tragédia. Mas Canudos teve Euclides da Cunha militar, em protesto contra o regime. Depois, serviu o Exército, já sob o novo sistema, e formou-se em Engenharia. Reformado da carreira militar como tenente, passou a exercer o ofício de engenheiro e a escrever artigos para os jornais, inclusive O Estado de S. Paulo. Muitos desses artigos foram assinados com o pseudônimo Proudhon. Teve sua formação influenciada pela filosofia positivista, criada na França pelo filósofo Auguste Comte, que preconizava a crença na razão e na ciência, acreditando que uma elite ilustrada promoveria o bem comum. Ele acreditava, pensando com a época, que o meio determinava o homem e a miscigenação produziria uma “raça degenerada”. Seus despachos como jornalista (Diário de Uma Expedição, organizado por Walnice Nogueira Galvão, Companhia das Letras, 2000) mostram o início de uma evolução no pensamento do autor. Na primeira matéria, de 7 de agosto de 1897, ainda a bordo do navio Espírito Santo com destino à Bahia, ressalta: “Em breve, pisaremos o solo onde a República vai dar com segurança o último embate aos que a perturbam”. E finaliza: “A República é imortal!” Carregado de preconceitos, chama o Conselheiro de monstro e Canudos de “povoação maldita”. Ao conhecer de perto o cenário da luta, começa a demonstrar admiração pela bravura

dos sertanejos (“Tem a mais sólida, a mais robusta têmpera essa gente indomável!”), cita atrocidades praticadas pelo Exército (bombas de dinamite derramando a devastação e a morte) e prega que a verdadeira vitória da República seria incorporar “nossos rudes patrícios”, em definitivo, “à nossa existência política”. A grande reviravolta, entretanto, ocorreria com Os Sertões. Euclides levou cinco anos escrevendo e reescrevendo o livro, pesquisando, estudando, pensando. E num eloqüente exemplo de honestidade intelectual, percebendo o choque entre a realidade e suas próprias idéias, concluiu que não se tratara de um movimento político pró-Monarquia, elogiou o sertanejo miscigenado como “o cerne da nacionalidade” e produziu um libelo indignado contra o genocídio praticado no sertão baiano. Ele próprio chamou a sua obra de “um livro vingador”. E assim a saga de Canudos ficou definitivamente gravada na memória nacional, ao contrário do que aconteceu, quase 40 anos depois, com o movimento do Beato Lourenço, no povoado do Caldeirão, Ceará, bombardeado por aviões militares, um ano antes de Guernica. Caldeirão não teve um Picasso para pintar a tragédia. Mas Canudos contou com Euclides como testemunha.

Foto de Euclides da Cunha aos dez anos / Acervo da Biblioteca Nacional

Na página anterior: prisioneiras de guerra de Canudos –1897 Flávio de Barros – Acervo da Fundação Joaquim Nabuco

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Na página seguinte: caricatura de Euclides da Cunha por Raul Pederneiras Acervo da Biblioteca Nacional

III – A OBRA Em artigos publicados no decorrer do conflito, Machado de Assis manifestava, nadando contra a corrente, uma irônica simpatia pelos rebeldes sertanejos. E numa crônica (Gazeta de Notícias, 14 de fevereiro de 1897) chegou a cobrar um livro definitivo sobre o assunto: “Ora bem, quando acabar esta seita dos Canudos, talvez haja nela um livro sobre o fanatismo sertanejo e a figura do Messias. Outro Coelho Neto, se tiver igual talento, pode dar-nos daqui a um século um capítulo interessante”(...). Ao se dirigir ao sertão baiano para fazer a cobertura jornalística dos fatos, Euclides já estava decidido a escrever esse livro. Lançado no dia 2 de dezembro de 1902, Os Sertões, cujos custos foram bancados em 50% pelo próprio escritor, no dizer do historiador e brazilianist Robert Levine, “inflamou a nação ao destruir o confortável mito que a elite nutria a respeito da realidade brasileira”. Com suas 637 páginas, o livro era um calha-

Sob o ponto de vista do autoconhecimento, da indignação e do remorso, depois da publicação deste livro radical, o Brasil nunca mais seria o mesmo maço, escrito num estilo barroco, grandiloqüente, épico. É uma leitura árdua, especialmente a primeira parte – A Terra, onde, em linguagem técnica, é descrita a paisagem brasileira e sertaneja. O próprio Euclides, certa vez, defendeu-se da acusação de uma escrita rebuscada, afirmando que não procurou palavras difíceis, mas “a palavra exata”. Definido pelo próprio autor como uma denúncia “do maior escândalo da nossa história”, o livro foi traduzido para inúmeros idiomas e alcançou no volume total de vendas em português, segundo Robert Levine, “a espantosa cifra de 750 mil exemplares” ao longo desses anos.

FOTOS: REPRODUÇÃO

Detalhe de Canudos ou Guerra do Sertão Tereza Costa Rêgo – Olinda – 1997 Acrílico sobre madeira, 2,20x1,60m


O sucesso imediato e duradouro da obra é explicado das mais diversas formas. O tradutor alemão Bertholt Zilly argumenta que “talvez um dos motivos seja, justamente, o caráter abrangente da obra, que pode ser encarada como summa. (...) O livro reúne as três formas básicas da literatura – a epopéia, o drama e a lírica –, como têm apontado muitos críticos, enfatizando principalmente os traços de epopéia e tragédia.” Para Lidiane Santos de Lima, mestranda em Literatura da Universidade Estadual da Bahia, “o livro foi um marco, o início da procura pelo verdadeiro país, esboçando os elementos em que vai ser pensado o problema da nossa identidade nacional. Esse livro perpetuou o tema da guerra e das injustiças no campo, e consolidou as formas de expressão dos temas nacionais; consolidou, da mesma forma, as bases de uma comunicação nacional ancorada em referenciais locais e uma formação de opinião pública, ancorada nos determinantes também nacionais. A importância deste livro, que praticamente guiou a cultura brasileira do século 20, justifica a atualidade e influência de Os Sertões sobre a nossa cultura contemporânea”. Com o que concorda a socióloga Eugênia Menezes, autora, em conjunto com Vernaide Wanderley, do estudo Sertão de Euclides da Cunha – Família e Poder: Uma Leitura (Fundaj, 1991), para quem a questão social no Brasil de hoje, onde as favelas urbanas e os acampamentos de sem-terra são “vários Canudinhos espalhados pelo país”, torna o épico euclidiano “de uma atualidade impressionante”. Ao mergulhar na realidade sertaneja de 1897, descobrindo horrorizado a face cruel da miséria e da violência, Euclides da Cunha nunca mais seria o mesmo. E, sob o ponto de vista do autoconhecimento, da indignação e do remorso, depois da publicação deste livro radical, igualmente o Brasil nunca mais seria o mesmo.

Para saber mais Existem pelo menos três recentes edições de Os Sertões à disposição do público. São elas: Os Sertões – Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro – 38ª edição – 1997, 654 págs, R$ 30,00. Os Sertões – Organização e notas de Leopoldo Bernucci – Ateliê Editoral/Imprensa Oficial, São Paulo, 2002, 926 págs, R$ de 56 a 64,00. Os Sertões – Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão – Editora Brasiliense, São Paulo, 1985, 728 págs, R$ 40,00. Outros livros em torno da obra: O Clarim e a Oração: Cem Anos de Os Sertões – Organização: Rinaldo de Fernandes. Geração Editorial, São Paulo, 2002. Textos inéditos de ensaístas, romancistas, poetas e jornalistas, entre os quais Ariano Suassuna, Alberto da Cunha Melo, Moacyr Scliar, Roberto Pompeu de Toledo, Augusto de Campos, Luzilá Gonçalves, Roberto Ventura, 600 págs, R$ 58,00. Roteiro de Leitura: Os Sertões de Euclides da Cunha – Adilson Citelli. Ática, São Paulo, 2001, 160 págs, R$ 12,00. O Sertão Prometido – O Massacre de Canudos – Robert Levine. Edusp, São Paulo, 1995, 393 págs, R$ 28,00. Diário de Uma Expedição – Euclides da Cunha. Organização Walnice Nogueira Galvão. Companhia das Letras, São Paulo, 2000, 301 págs, R$ 30,00. Terra Ignota – A construção de Os Sertões – Luiz Costa Lima. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1997, 298 págs, R$ 34,00. Fato e fábula – Lourival Holanda. Edua- Editora da Universidade do Amazonas, 1999, 210 págs, R$ 15,00. No Calor da Hora – A Guerra de Canudos nos Jornais – Walnice Nogueira Galvão. Editora Ática, São Paulo – 3ª edição – 1994, 510 págs, R$ 54,00. Perfil de Euclides e Outros Perfis – Gilberto Freyre. Record, Rio de Janeiro, 1987, 209 págs, R$ 17,00. Sítios na Internet, inclusive de centros de estudos dedicados a Euclides e sua obra: Casa de Cultura Euclides da Cunha – São José do Rio Pardo: http://www.casaeuclidiana.org.br/ Centro de Estudos Culturais Euclides da Cunha/Coletivo Euclidiano/O Berrante: www.berrante.com.tj Centro de Estudos Euclydes da Cunha – Universidade do Estado da Bahia – www.uneb.br/Ceec/Ceec.html Fundação Joaquim Nabuco – www.fundaj.gov.br/docs/canud/ Portfolium: www.portifolium.com.br TV Cultura – SP: www.tvcultura.com.br/resguia/outros/estbra/sertoes/canud.htm Continente Multicultural 13


Ao ler Os Sertões, na intenção de escrever o roteiro para um filme de Ruy Guerra, Mario Vargas Llosa teve uma experiência definitiva, da qual nasceu o romance A Guerra do Fim do Mundo, considerado por ele sua mais importante obra Antônio Arrais

“Creio que este é o mais importante dos meus livros e, em todo caso, se eu pudesse eleger – e não escrever nada mais; espero que isso não ocorra – gostaria de ser recordado por esse livro. É um livro que me custou muito trabalho porque foi a primeira vez que escrevia sobre um tema não peruano, sobre um tema que não era contemporâneo, de cunho histórico, e em que os personagens não falavam meu idioma, mas uma língua distinta. Tudo isso significou para mim uma grande dificuldade. Tive que fazer um trabalho de documentação bastante amplo, mas ao mesmo tempo o tema me apaixonava tanto, me foi apaixonando de tal forma, que isso me deu forças para terminar um romance que durante muito tempo tive a sensação de que nunca poderia terminar. Foi um trabalho muito intenso”. [Mario Vargas Llosa in O Globo, 21-08-1982, p. 29]

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ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

Vargas Llosa e o impacto de Os Sertões


FOTO: ALESSANDRO DELLA VALLE / AFP

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os oitenta anos de Os Sertões, o escritor Mario Vargas Llosa veio a Brasília, durante uma semana de agosto de 1982, colher os louros de um ano de sucesso de crítica e público do que foi, à época, o seu livro mais monumental – A Guerra do Fim do Mundo (1981), justamente um romance que resgatava, inclusive com elementos do realismo fantástico, a saga de Canudos. Vinte anos passados, este livro ainda se destaca na vasta bibliografia de Vargas Llosa e ombreia com outra obra sua – Conversa na Catedral (1969). Vaidoso, atencioso, sempre sorridente e condescendente, Vargas Llosa, então com 46 anos de idade, arrancou suspiros das jovens estudantes, que foram vêlo durante uma semana de agosto dentro dos “Encontros Internacionais da UnB (Universidade de Brasília) – Mario Vargas Llosa por Ele Mesmo”, embora a sua simpatia tenha contagiado também sisudos jornalistas, que se deixaram seduzir e envolver por sua atenção até mesmo às mais pueris perguntas, como a que eu tive a coragem de fazer-lhe: se havia lido Os Sertões em português mesmo. “Por supuesto”, respondeu, como querendo dizer: “É óbvio que sim”. Vargas Llosa repetiu em várias entrevistas a dificuldade que foi produzir o seu livro e o esmorecimento que o acometeu nos quatro anos entre o roteiro cinema-

tográfico, que foi o seu primeiro contato com Os Sertões, para um filme de Ruy Guerra, jamais realizado, e depois as exaustivas pesquisas até o texto final de A Guerra do Fim do Mundo, que veio a ser um dos seus best-sellers no Brasil – fato que, aliás, o surpreendeu muito: “Não esperava tanto sucesso. Foi uma coisa que me surpreendeu, e sobretudo me comoveu muito. Eu tinha bastante temor, devo confessar, à reação dos leitores brasileiros. Porque você sabe que há sempre esse nacionalismo um pouco absurdo, que pensa que os temas nacionais não devem ser abordados por estrangeiros, existe essa mentalidade em muitas partes. E para mim foi sumamente grato ver que os leitores brasileiros não são nada chauvinistas nem xenófobos, que tanto os leitores como a crítica foram muito generosos com o meu livro, e estou sobremaneira alegre que meu livro esteja sendo tão bem divulgado no Brasil”. Os primeiros contatos de Vargas Llosa com Os Sertões se deram como roteirista de um filme do cineasta Ruy Guerra, que nunca foi feito, depois como observador in loco dos sertões baianos, onde esteve em 1979, durante três meses, mas onde ele infelizmente já não pôde visitar as ruínas de Canudos, porque à época os seus vestígios estavam submersos pela barragem de Cocorobó. Soube-se, depois de sua passagem por Brasília, que o cineasta Ruy Guerra metera-lhe um processo de plágio, sob o argumento de que a base do livro era o roteiro não filmado. Llosa sempre lembrou que a base foi o livro de Euclides da Cunha, e que isso não era plágio: “Ler Os Sertões e isso foi definitivo. O livro é tão rico, tão estimulante, que compensa o esforço que eu tive a princípio para entrar dentro da linguagem complicada de Euclides da Cunha. Para mim, Os Sertões é das melhores experiências que tive como leitor. Foi realmente o encontro com um livro muito importante, com uma experiência fundamental. Um deslumbramento, realmente, um dos grandes livros que já se escreveram na América Latina. E isso foi decisivo, isso me deu toda uma curiosidade e um interesse enorme pelo tema de Canudos e também pelo personagem de Euclides da Cunha. Assim nasceu a idéia do romance”. No livro existem aspectos religiosos, sociais e políticos que estão perfeitamente colocados. O Sr. já havia convivido com situações semelhantes em seu país? “Sim. Eu acho que a razão principal para escrever este livro, além do objetivo inicial do roteiro, foi descobrir, no drama de Canudos, uma série de fenômenos que, para mim, são constantes na história latino-americana. O encontro violento de duas sociedades, incomu-

Vargas Llosa: “Descobri no drama de Canudos fenômenos que são constantes na história latino-americana”

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Washington, onde terminei de escrever o meu livro. Lá, eu encontrei, por exemplo, jornais de época que eu não havia encontrado aqui, sobretudo um diário que para mim era muito importante: O Jacobino, dirigido por um jacobino da primeira República, que se chamava Alendo Guanabara, um dos jornais que meteu mais cizânia à época da guerra. E eu queria ler esse jornal, e não encontrei senão uma poucas cópias aqui perdidas, em Salvador. Felizmente em Washington eu encontrei a coleção completa, a íntegra de O Jacobino, que me serviu muito. Supõe-se que me utilizei bastante de Os Sertões, mas não foi somente este material. Utilizei, li com muito interesse os artigos que Euclides da Cunha havia escrito antes de ir a Canudos, os

artigos que escrevia no jornal O Estado de S. Paulo, e depois as crônicas que ele escreveu quando estava na Guerra, e tudo isso era muito distinto do que ele escreveu mais tarde em Os Sertões. Essas contradições, essas mudanças de perspectiva, de opinião, para mim foram muito úteis. Há um personagem na novela que não existiria se não fosse por Euclides da Cunha, embora use muito Euclides da Cunha, que é o Jornalista Míope.”

Antônio Arrais é jornalista. Este texto reconstitui entrevista publicada em O Globo, em 21/08/82

FOTO: CLÁUDIO LIMA

Os Comandantes Descartes Gadelha Fortaleza, s/d, óleo sobre eucatex, 76x80cm – Acervo do Museu da Universidade do Ceará

nicáveis entre si, em tempos históricos distintos, com mentalidades distintas, uma mentalidade regional e outra européia, uma mentalidade liberal e outra religiosa, duas culturas distintas dentro de um mesmo país, que pela falta total de comunicação e diálogo se matam. Mas também a alienação ideológica, do ponto de vista político ou religioso. Todos os países latino-americanos devem ter vivido em algum momento de sua história – ou seguem vivendo até hoje – tragédias parecidas com Canudos e por razões muito semelhantes. Por falta de comunicação, por fanatismo muito mais religioso, isso hoje. Mas o elemento mais comovedor e positivo é que no mundo do sertão baiano, pobre e desamparado em todos os sentidos, a gente encontra um potencial humano com uma criatividade extraordinária. É uma gente que vive na miséria, sem diálogo, sem ajuda, mas que é capaz de criar suas formas de vida e partir de meios minúsculos. É uma cultura em fermentação.” Sobre o processo de criação, contou Llosa: “Quando comecei a escrever o romance não quis vir [ao Brasil, ao interior baiano] até que tivesse terminado uma primeira versão, um borrão. Parecia-me que poderia trabalhar com mais liberdade, sem conhecer os lugares, pelo menos nessa primeira etapa. Logo depois de uns dois anos que estava escrevendo, eu vim, e passei uns meses no Nordeste, e isso me ajudou muito – foi um mês em Salvador e dois meses no interior. Foi uma experiência extraordinária para mim. Em primeiro lugar, o encontro com a paisagem fez-me entender muitas coisas que para mim não estavam claras, a psicologia dos personagens, a idiossincrasia do sertanejo, do jagunço. E também o contato humano, ver que a história de Canudos estava ainda muito viva na memória das pessoas, as pessoas falavam tanto sobre ela. Isso me deu muito material para trabalhar. Recebi muita ajuda de muita gente. Aqui no Brasil me emprestaram livros, me enviaram fotocópias, artigos, depois tive ajuda em Salvador, e depois tive a sorte de trabalhar um ano na Biblioteca do Congresso, em


Ópera, um triângulo amoroso no Sertão A partir de Os Sertões, compositor francês Jouteux recria drama histórico-social

FOTO: REPRODUÇÃO

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compositor francês Fernand Jouteux (18661956) conseguiu, pouco antes de morrer, já velhinho, encenar a obra que consumira 10 anos de sua vida e se tornara quase uma obsessão: a ópera O Sertão, baseada no livro de Euclides. Jouteux veio, na virada do século 20, morar numa fazenda, batizada de Belle Alliance, em Garanhuns, interior de Pernambuco. A ópera foi escrita entre 1912 e 1922, mas a estréia somente aconteceu em 24 de novembro de 1954, com a Orquestra Sinfônica da Polícia Militar de Minas Gerais. Em 2001, o flautista e regente assistente da Sinfônica da PM mineira, João Jorge Soares, aluno do curso superior de Regência da UFMG, num trabalho de arqueologia musical, reconstituiu boa parte dos pentagramas no tom original, além de ter resgatados partituras em poder de participantes da primeira encenação ou de seus parentes. E nos dias 05 e 06 de agosto de 2002, encenou pela segunda vez a ópera, no teatro do Palácio das Artes de Belo Horizonte. O libreto da ópera de Jouteux foi publicado pela Imprensa Oficial de Minas, em janeiro de 1953, com tradução de Celso Brant. Eis um resumo do enredo: Cília, mulher de Antônio, é bela e pura. A mãe de Antônio tem ciúme doentio da nora. Cília pede ao cunhado, Patrício, que a leve a Antônio, em viagem há longo tempo. A mãe os flagra e acusa Cília de adultério. Chama secretamente Antônio e diz-lhe que o irmão vai fugir com a mulher. De tocaia, Antônio vê os dois partindo à noite, confirmando, assim, a denúncia da mãe. Pensa em assassiná-los, mas cumprindo a promessa à mãe, deixa-os partir.

Desesperado, ouve um chamamento místico: “Céus! Que vozes são essas, que me chamam ao longe, como se fossem preces? – Sim, sim, eu vos ouço, ó vós, os Deserdados, Mendigos, Atormentados, e vós, os Perseguidos”. Abandona tudo, torna-se um peregrino. Corta para o arraial de Canudos. Antônio já é o Conselheiro, o Filho do Homem. Um dia, Cília junta-se aos fiéis, passando a viver no arraial, sem saber que o pregador é o seu marido. Antônio, entretanto, a reconhece, mas disfarça. Vila Nova, lugar-tenente do Conselheiro, cai de amores por ela, que o repele, pois ainda ama o marido. Vila Nova chega a discutir com o Conselheiro por causa da mulher e ameaça duelar com João Abade, que toma as dores do Filho do Homem. Depois do cerco e destruição de Canudos, Vila Nova, sobrevivente com Cília, insiste para que ela o aceite. Nesse instante, o Conselheiro como que ressuscita, erguendo-se ferido dos escombros, e declara-se à mulher. Vila Nova foge espavorido. Cília está transida de felicidade. Os soldados federais avançam, aos gritos de “Vitória!”. Depois de reconciliar-se com a mulher, o Conselheiro, enfraquecido pelos ferimentos, cai finalmente morto. Os soldados se aproximam. Cília solta um fundo lamento (“Não tereis a glória de prender-nos vivos; porque morrer é mais doce, mais nobre, para a Memória dos valentes Jagunços, que sobreviver, algemados, à queda de Canudos!”), saca de um punhal e se mata, tombando ao lado do marido. Cai o pano.

Ária da Torrente: partitura original da ópera O Sertão – Fernand Jouteux

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Sergio Rezende: “Sertão devia ser um gênero cinematográfico” Cineasta autor de Guerra de Canudos afirma que o cinema é uma arte essencialmente narrativa e que estrutura do livro de Euclides tem a tensão dramática do cinema Como começou sua relação com Os Sertões, em que se baseou seu filme Guerra da Canudos? Comecei a pensar em filmar Guerra de Canudos em 1991. Eu estava em Londres, finalizando um filme feito em Moçambique (o curta-metragem Children from the South), e levei Os Sertões para ler. Li, reli e me apaixonei cada vez mais. Mas era a época do Collor, o cinema brasileiro tinha acabado. Fiz Lamarca, lançado em 94. Com o êxito do filme e novas leis sobre o cinema, o momento tornou-se propício para retomar o projeto. Em 1996, comecei as filmagens. Como foi a descoberta do livro? O estilo do livro é maravilhoso, as descrições são de um poder enorme, como aquela cena do final da

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guerra em que quatro canudenses enfrentam cinco mil soldados raivosos. É de um poder enorme. Os dois maiores livros do Brasil são Os Sertões e Grande Sertão: Veredas. Ambos têm a ver com o sertão. O tradutor d’Os Sertões para o alemão, Bertholt Zilly, surpreende no texto de Euclides “um olhar cinematográfico, com perspectivas panorâmicas, travelling, zoom, focalização de determinados objetos, close-uup, virada para a direita, para a esquerda etc.” Concorda com essa percepção? Acho que o assunto é mais complexo. Contrariando opiniões correntes, para mim o cinema não é uma arte essencialmente visual. É uma arte narrativa. Visualmente, o cinema está no século 19, não chegou

FOTO: DIVULGAÇÃO

Cena do filme A Guerra de Canudos 1997


ainda ao cubismo. De certa forma, vejo como um caminho contrário: a escrita gera as imagens para o cinema. O livro é um roteiro. Até por sua estrutura – a Terra, o Homem, a Luta –, começo, meio e fim, uma narrativa clássica, vinda dos gregos. O livro é construído pelas palavras, não pelas imagens. Sua grandeza é a grandeza das palavras. Manoel Benício (Nota: pernambucano, repórter do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, para o qual cobriu a guerra, escrevendo, em 1899, o livro O Rei dos Jagunços) viu mais coisas, narra mais fatos. Mas a diferença de Os Sertões está na palavra... E nesse sentido, o livro é cinematográfico, totalmente cinematográfico: uma grande história, grandes personagens, uma estrutura dramática poderosa... isso é cinema. Pegue Einsenstein. Euclides tem a mesma

“Contrariando opiniões correntes, para mim o cinema não é uma arte essencialmente visual. É uma arte narrativa. Visualmente, o cinema está no século 19, não chegou ainda ao cubismo”

grandiosidade dele, a mesma grandiloqüência, faz do minúsculo o imenso, como a cena dos óculos na escadaria (cena de O Encouraçado Potenkin, Sergei Einsenstein, 1925). Euclides faz isso na literatura. Zilly cita o close, mas o close não é invenção do cinema, é uma maneira de expressar na imagem o que está no olhar. Como vê a cinematografia brasileira em relação ao tema de Canudos? Acho que Canudos, o sertão, devia ser um gênero do cinema brasileiro, como a conquista do oeste é um gênero do cinema americano. De certo modo o é, mas devia ser muito mais. Devia haver centenas de filmes sobre os sertões, o sertão, cada cineasta vendo essa realidade à sua maneira. Há O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953), Glauber tem algo, em Deus e o diabo (1964), lá tem o beato etc. Canudos é o mistério do Brasil. Decifrar Canudos é decifrar o Brasil. (HF) Sérgio Rezende é autor, entre outros filmes, de Lamarca (1994), O homem da capa preta (1985) e Mauá – o rei do Brasil (1999). Está concluindo o filme Os Piadistas – que define como “uma comédia discreta” –, rodado no Ceará, com Juca de Oliveira, a história de um velho comediante aposentado que percorre o Brasil em busca de um parceiro.

Filmografia de Canudos A seguir, uma relação dos principais filmes sobre a temática de Canudos: • Euclides da Cunha – Documentário, P/B, 14 min, 1944, Brasil. Direção: Humberto Mauro. • Um Sino dobra em Canudos – Documentário, P/B, 1962, Brasil. Direção: Carlos Gaspar. • Deus e o Diabo na Terra do Sol – Ficção, 35mm, P/B, 125 min, 1964, Brasil. Direção: Glauber Rocha. • Canudos – Documentário, 35 mm, Cor, 70 min, 1978, Brasil. Direção: Ipojuca Pontes. • Memórias de Sangue – Documentário, 35 mm, Cor, 13 min, 1987/88, Brasil. Direção: Conceição Sena. • O Crime da Imagem – Ficção, 35 mm, 13 min, Cor, 1992, Brasil. Direção: Lírio Ferreira. • Guerra de Canudos – Ficção, 35 mm, Cor, 170 min, 1997, Brasil. Direção: Sérgio Rezende. • O Arraial – Animação, 35 mm, Cor, 13 min, 1997, Brasil. Direção: Otto Guerra e Adalgisa Luz.

Prisão de jagunço simulada no campo de batalha Foto: Flávio de Barros, 1897 Acervo Fundação Joaquim Nabuco

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Na primeira resenha publicada sobre Os Sertões, em dezembro de 1902, o Diario de Pernambuco vaticina a permanência do livro

OS SERTÕES

Por Euclydes da Cunha É um livro superior, um livro admirável, um livro admirável e de escritor cheio de observação e de vida – o volume que acaba de publicar o sr. Euclydes da Cunha. Ao ver esse grosso tomo: com cerca de 700 páginas, e ao ler na capa, em subtítulo, que ele se trata da campanha de Canudos, tem-se o receio de encontrar a narrativa minuciosa e fútil de todos os pequenos pormenores daquele triste ensaio da nossa vida nacional. Mas o livro não é isso. É, primeiro a descrição do interior do nosso país. E o interior do nosso país figura entre as regiões que mais desconhecemos. É, depois a psicologia do sertanejo. Do seu meio, do seu modo de viver, dos cruzamentos de que ele proveio, o autor veio até a formação da sua mentalidade: inteligência, sentimentos, vontade. Nada disto é feito com pedantismo, exposição dogmática e friamente. O autor tem estilo ao qual, a despeito de qualquer censura que lhe queiramos fazer, não se pode recusar estes grandes elogios: é pessoal, é vivo, é pitoresco. Na descrição tanto de indivíduo, como de cenas naturais, seu vigor de pena é extraordinário. Depois de ter exposto o que eram os jagunços e mostrado assim que a empresa do Conselheiro não foi um movimento político e, sim, uma das numerosas prédicas místicas que, a todo momento, nascem e se extinguem nos sertões, o autor nos pinta a campanha de Canudos. As páginas que ele escreveu a esse respeito são maravilhosas. Lêem-se febrilmente, com tristeza ou com indignação, mas lêem-se de um ato. A gente sente, vê, ouve... O autor não magnifica episódios mínimos. Para ele a campanha de Canudos foi um crime. Não lhe podia, portanto ocorrer a idéia de converter pequenos feitos de guerra em cenas épicas e gloriosas. Pelo contrário! A sua descrição é de quem esteve presente, de quem viu todos os fatos – fatos que ele nos força a ver,

com uma intensidade admirável de estilo, um estilo nervoso, colorido, original. E os incidentes que narra, quase sempre dolorosos e trágicos, levantam a indignação tumultuosamente dentro de nós. Essa parte se lê com o encanto de quem devora as folhas de um romance, desgraçadamente, esse romance foi uma realidade triste... Não há aqui espaço bastante para muitas citações. Rara é, porém, a página em que não se encontre a descrição de uma pequena cena, de um tipo qualquer desenhado com um relevo pujante. E vale a pena mencionar alguma coisa. Estava-se então na última fase da luta com os jagunços: “Na sede da comissão de engenharia o general Arthur Oscar, com atenção irresistível de um temperamento franco e jovial, centralizava longas palestras. Discorria-se sobre assuntos vários, de todo opostos à guerra: casos felizes do passado, anedotas hilárias, ou então alentadas discussões sobre política geral (p. 565)”. Às vezes os soldados apanhavam alguns jagunços: “Chegando a primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um Viva à República, que era, poucas vezes, satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe as cabeças e esgargalhando-lhe o pescoço e francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era então mais expedito: varavamna, prestes, a facão; um golpe único entrando pelo baixo ventre, um destripamento rápido... Tínhamos valentes que ansiavam por estas covardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionados pelos chefes militares (p. 585)”.

Uma página de história, 20 Continente Multicultural


Certa vez um cabo de esquadra levou um jagunço até a rede onde estava o seu general. O general fez um simples gesto. O cabo, “...famoso naquelas façanhas, adivinhou-lhe o intento. Achegou-se com o baraço. Diminuto na altura, entretanto, custou enleá-lo no pescoço do condenado. Este, porém, auxiliou-o tranqüilamente: desdeu o nó embaralhado: enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se... (p. 585)”. O autor citando estes e outros fatos, escreve esta frase crudelíssima: “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”. Há, entretanto, a narração de feitos comovedores: “Dias antes, um “schrapnel” arrojado da Favela e que passava beijando as cimalhas da igreja nova, arrebentara dentro do casario anexo à latada das orações. E dali ascendera imediatamente uma réplica cruel, perturbando os artilheiros do coronel Olympio: um longo e indefinível choro; assonância dolorosíssima de clamores angustiosos, fazendo que o canhoneio cessasse, à voz austera e comovida daquele comandante... (p. 561)”. Ver em plena campanha, naquela campanha tão feroz, a voz da artilharia calar-se diante do choro de mulheres e crianças é afinal uma nota de humanidade diante de tanta desumanidade. Outro episódio: “O comandante do 25°, major Henrique Severiano, teve idêntico destino. Era uma alma belíssima, de valente. Viu, em plena refrega, uma criança debatendose entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomoua nos braços; aconchegou-a no peito – criando com um belo gesto carinhoso o único traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz – e salvou-a. Mas expuserase, baqueou, mas mal-ferido, falecendo poucas horas depois (p. 618)”. A regra porém era outra: “Preso o jagunço válido e capaz de segurar a espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se, estripava-se. Um ou outro comandante se dava ao trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância, capaz de surpreender. Dispensava-a o soldado atreito à tarefa. Esta era, como vimos, simples. Enlear o pescoço da vítima numa tira de couro, num cabresto ou numa ponta de chiquerador: impeli-la por diante: atravessar as barracas sem que ninguém se surpreendesse e sem temer

que se escapasse a presa, porque, ao mínimo sinal de resistência ou fuga, um puxão para trás faria que o laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até a primeira cova profunda o que era um requinte de formalismo, e, ali chegados, esfaqueá-lo (p. 583)”. Na sede da comissão central de engenharia, o general Arthur Oscar, com a atração irresistível de um temperamento franco e jovial, centralizava longas palestras (p. 564)”. Havia entremeios curiosos: “Os soldados do 5° de Polícia, mau grado o ilusório abrigo dos espaldões de terra, que os acobertavam, matavam o tempo, em descantes mitigando saudades dos rincões do São Francisco. Se a fuzilaria apertava, pulavam de arremesso aos planos de fogo; batiam-se como demônios terrivelmente, freneticamente, disparando as carabinas; e tendo nas bocas, ressoantes, cadenciadas a estampidos, as rimas das trovas prediletas. Baqueavam alguns cantando; e aplacada a refrega, volviam ao folguedo sertanejo, à toada langorosa das tiranas, aos rasgados nos machetes como se fosse aquilo uma rancharia grande de tropeiros felizes, sesteando (p. 562)”. E basta de citações: Se as que aqui ficaram foram bem escolhidas, elas dirão que o autor de Os Sertões – que parece ser um militar – foi uma testemunha preciosa. Sabe ver e sabe contar. Valia realmente a pena que alguém, com esse vigor de estilo, fizesse. Seu livro não tem largos comentários. Os fatos falam por ele. Canudos não se rendeu. Morreram todos os seus defensores – todos, até os últimos, que de dentro de uma grande cova atiravam ainda contra as forças regulares. Ali mesmo ficaram. O sangue derramado foi imenso. Até os parlamentares, que se entregaram confiantes, foram degolados ou estripados! É com razão que o autor, denunciando este triste fato, se abstém de comentá-lo. Ele se comenta por si mesmo: é a ferocidade das guerras, que apaga toda a humanidade ainda nos mais nobres... O livro extraordinário do sr. Euclydes da Cunha ficará como uma página de história, como uma lição e, infelizmente, como um remorso.

J. dos Santos Diario de Pernambuco, 24 de dezembro de 1902

lição e remorso Continente Multicultural 21


CAPA

Viver para contar

Gabriel García Márquez O primeiro volume das memórias de García Márquez foi lançado em outubro, simultaneamente na Espanha e América Latina, com grande estardalhaço. Em primeira mão em português, apresentamos trecho de Viver para contar


FOTOS: REPRODUÇÃO

Sobre os escombros ainda quentes construiu a família seu refúgio definitivo. Uma casa linear de oito cômodos sucessivos, ao longo de um corredor com uma varanda de begônias onde se sentavam as mulheres da família a bordar em bastidor e a conversar à fresca da tarde. Os quartos eram simples e não se distinguiam entre si, porém me bastou uma olhada para me dar conta de que em cada um dos seus incontáveis detalhes havia um instante crucial da minha vida. O primeiro cômodo servia como sala de visitas e escritório pessoal do meu avô. Tinha uma escrivaninha, uma poltrona giratória de molas, um ventilador elétrico e uma estante vazia com um único livro enorme e descosturado: o dicionário da língua. Em seguida estava a oficina de ourivesaria onde o avô passava suas horas melhores fabricando os peixinhos de ouro de corpo articulado e minúsculos olhos de esmeralda, mais para seu gozo que para comer. Ali foram recebidos alguns personagens notáveis, sobretudo políticos, desempregados públicos, veteranos de guerra. Entre eles, em ocasiões distintas, dois visitantes históricos: os generais Rafael Uribe Uribe e Benjamin Herrera, os quais almoçaram em família. Aliás o que minha avó recordou de Uribe Uribe pelo resto da vida foi sua sobriedade à mesa: “Comia como um passarinho”. O espaço comum do escritório e ourivesaria estava proibido às mulheres, por obra de nossa cultura caribenha, como estavam as cantinas ao povo por ordem da lei. Aliás, com o tempo terminou por virar um quarto de hospital, onde morreu a tia Petra e padeceu os últimos meses de uma longa enfermidade Wenefrida Márquez, irmã de Papalelo. Dali em diante começava o paraíso hermético das muitas mulheres residentes e ocasionais que passaram pela casa durante minha infância. Eu fui o único varão que desfrutou dos privilégios de ambos os mundos. O refeitório era apenas uma extensão do corredor com a varanda onde as mulheres da casa se sentavam a coser, e uma mesa para dezesseis comensais previstos ou inesperados que chegavam diariamente

Capa da edição argentina das memórias de García Márquez

O espaço comum do escritório e ourivesaria estava proibido às mulheres, por obra de nossa cultura caribenha. Dali em diante começava o paraíso hermético das muitas mulheres residentes e ocasionais que passaram pela casa durante minha infância. Eu fui o único varão que desfrutou dos privilégios de ambos os mundos

Na página anterior: o escritor, à época do lançamento de Cem Anos de Solidão

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A famosa casa dos avós maternos, em Aracataca: vivências do romancista

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Tradução: Homero Fonseca

FOTO: EL TIEMPO / BOGOTÁ

para sempre. Eu o tinha esquecido, mas tão logo o vi me lembrei de mim mesmo chorando aos gritos com o macaquinho de florzinhas azuis que acabara de estrear, para que alguém acudisse a tirar as fraldas borradas de cocô. Eu apenas me podia manter de pé agarrado às barras do berço, tão pequeno e frágil como o cesto de Moisés. Isto foi motivo freqüente de discussões e brincadeiras de parentes e amigos, a quem minha angústia daquele dia parece demasiado racional para minha pouca idade. E mais ainda quando insisti em que o motivo da minha ansiedade não era o asco de minhas próprias misérias, mas o temor de que se sujasse o macaquinho novo. Isto é, que não se tratava de um problema de higiene, mas sim de uma contrariedade estética, e pela forma como perdura em minha memória creio que foi minha primeira vivência de escritor.

no trem do meio-dia. Minha mãe contemplou dali os cacos dos jarros das begônias, os restos apodrecidos e o tronco do jasmineiro carcomido pelas formigas, e recuperou o alento. – Às vezes não podíamos respirar de tão forte era o cheiro dos jasmins – disse, olhando o céu deslumbrante, e suspirou com toda a alma. Aliás, o que mais me faz falta até hoje é o trovão das três da tarde. Fiquei impressionado, porque eu também lembrava o estampido único que nos despertava da sesta como uma torrente de pedras, mas nunca tinha tido consciência de que somente era às três horas. Depois do corredor havia uma sala de recepção reservada para ocasiões especiais, pois as visitas cotidianas se atendiam com cerveja gelada no escritório, se eram homens, ou no corredor das begônias, se eram mulheres. Ali começava o mundo mítico dos dormitórios. Primeiro o dos avós, com uma porta grande para o jardim, e uma gravura de flores de madeira com a data da construção: 1925. Ali, sem nenhum anúncio, minha mãe me deu a surpresa menos pensada com uma ênfase triunfal: – E aqui tu nasceste! Eu não sabia, até então, ou tinha esquecido, mas no quarto seguinte encontramos o berço onde eu dormia até os quatro anos, e que minha avó conservou


A imagem diante do espelho

Nas memórias, o real parece impossível

CARICATURA: CÁSSIO LOREDANO

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Tomaz Eloy Martínez

s memórias de Gabriel García Márquez são tão fulgurantes como suas novelas, porém têm a vantagem de que as voltam a contar sob o prisma da realidade. A linguagem respira o mesmo oxigênio opulento e a mesma tensão de O Outono do Patriarca, o tempo tece suas teias de aranha feiticeira com um vaivém que se parece com o de Cem Anos de Solidão e, ao contrário dos romances, onde a força da narração torna verossímil o impossível, nas memórias todo o acontecido pareceria impossível se não se supõe que é verdadeiro. O ponto de partida do relato ocupa mais de 150 páginas das quase 600 que tem o livro, porém sem esse começo não haveria memórias nem tampouco, talvez, romancista. O que acontece a García Márquez num meio-dia de fevereiro de 1950, quando falta um mês para completar 23 anos, é uma epifania no sentido dado por Joyce a essa palavra, ou seja, a súbita manifestação espiritual do passado. Vale a pena resumir as circunstâncias para entender por que a vida do autor se parte em duas. É

quando sua mãe, Luisa Santiaga Márquez de García, pede-lhe que a acompanhe a Aracataca para vender a casa, a única possível, que é a dos seus avós maternos, onde García Márquez viveu até os oito anos. Vendemna, mas Gabriel volta da aldeia natal, dois dias depois, com o tesouro de quase todas as histórias que haveria de contar na vida. As memórias são intricadas como uma ramagem e exalam uma alegria que brota da substância mesma de sua linguagem. Em vez de Vivir para contarla o livro deveria haver-se chamado Vivir para gozarla, porque até os piores infortúnios da miséria, da fome e das enfermidades estão narrados com um humor invencível. Tal como sucedeu com a Autobiografia de Jorge Luis Borges, que se publicou pela primeira vez em espanhol há quatro anos, as memórias de García Márquez estabelecem desde o princípio o entrelaçamento sutil que une a história do escritor com a história de seu próprio país. Continente Multicultural 25


No legendário gênero das memórias, que talvez seja mais antigo que a escrita, os leitores encontram em geral um relato não do que o autor é, mas do que ele quereria ser diante da história

O coronel Márquez, o telegrafista García e todas as caudalosas famílias que ambos geram encarnam o destino da pátria não como protagonistas – com a exceção única do autor –, mas como vítimas ou testemunhas. García Márquez e seus antepassados são o ávido vento do Caribe que recolhe tudo o que encontra à sua passagem: desde as guerras civis de que participa o avô materno até o fuzilamento de três mil manifestantes durante a greve que acaba com a companhia bananeira, em 1928. O confuso episódio é contado nas memórias pelo direito e pelo avesso, numa ordem tão arbitrária e, ao mesmo tempo, tão certeira que o autor não podia concluir essa parte do relato senão com uma frase que talvez defina todo o livro: “Tantas versões encontradas foram a causa de minhas lembranças falsas”. As lembranças da juventude têm, aliás, o ar da verdade mais transparente: desde as escolas em Barranquilla até o poderoso tecido de amigos inseparáveis no qual García Márquez entra por direito próprio aos 21 anos, na costa caribenha. Todos esses detalhes contados como um delta sem fim vão desenhando o processo de formação e afirmação de um escritor que nasceu só para isso. Há várias histórias paralelas em Vivir Para Contarla que constituem, de per si, novelas à parte. Uma dessas novelas expõe a torrente sexual que quase afoga o autor, desde que, aos 12 anos, em Sucre, leva um recado ao bordel La Hora e uma das pupilas que dormia a sesta fecha a porta e ordena: “Vem cá”, até que na página 560 se despede de Martina Fonseca, a mulher radiante de um prático de vapores que o adestrou para as tretas da escola e para as da vida. Outras histórias paralelas são as mudanças de lugar, das quais a melhor contada é também a mais comovente: aquela na qual a mãe, que teme perder o pai para sempre nas tentações de Sucre,

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organiza uma viagem desde Barranquilla, com todos os filhos, e à última hora descobre que o dinheiro não dá porque o desconto para os menores de 12 anos é de 30% e não a metade da passagem. As que este crítico prefere impregnam todo o livro: uma é o romance pontual do romancista Gabriel García Márquez, que começa na página 118 das memórias. “Custei muito a aprender a ler”, escreve ali, pela falta de lógica de um alfabeto que tem letras mudas e outras que se chamam de um modo e se pronunciam de outro, como o eme. A esse afluente correspondem a revelação da origem da palavra Macondo e o ponto de partida de cada um dos seus livros publicados, com exceção do penúltimo, Notícia de um Seqüestro. A última é uma história de amor que começa em Sucre, ao cabo de uma das piores semanas de dissipação de toda a vida. García Márquez estava a ponto de terminar a escola secundária quando foi convidado para os três bailes de gala de Cayetano Gentile, que se converteria com o tempo no Santiago Nasar de Crônica de uma Morte Anunciada. Ali encontrou uma menina vestida de organdi, com a qual dançou as três noites e a quem, quase em seguida, propôs casamento com toda seriedade. Essa paixão súbita que estala à página 282 iria durar 60 anos, porém, no ponto em que terminam as memórias, Gabriel está indo à Europa pela primeira vez, e somente ali, em Genebra, recebe a resposta feliz à carta urgente enviada a Mercedes Barcha. No legendário gênero das memórias, que talvez seja mais antigo que a escrita, os leitores encontram em geral um relato não do que o autor é, mas do que ele quereria ser diante da história. O melhor que se pode dizer de Vivir para Contarla é que, de todos os admiráveis livros de García Márquez, é o que mais se parece com ele. Tomás Eloy Martínez é argentino, jornalista, escritor – autor dos romances Santa Evita e O vôo da rainha – diretor do Programa de Estudos Latino-americanos da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, EUA

FOTO: DIVULGAÇÃO

Tomás Eloy Martínez: livro mais parecido com García Márquez


Um pop star da literatura Para chegar lá, o grande romancista colombiano valeu-se de um aguçado senso de marketing pessoal e um talento exuberante, além das colheradas de óleo de fígado de bacalhau ministradas pela mãe diligente Homero Fonseca

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uando, em 1982, ao ser divulgada a notícia de que o Prêmio Nobel de Literatura daquele ano havia sido concedido ao escritor Gabriel José de la Concordia García Márquez, um repórter de uma rádio colombiana telefonou imediatamente para a casa da mãe do escritor, dona Luisa Santiaga Márquez de García (falecida em junho passado, aos 97 anos), e perguntou-lhe de chofre: – A que a senhora atribui a grande façanha do seu filho? Ele teve uma educação extraordinária? “Muito nervosa e sempre sincera”, na descrição do próprio escritor, dona Luisa Santiaga replicou ao vivo: – Ele é muito inteligente porque, quando era menino pequeno, tomou muita Emulsão Scott. O autor de Cem anos de Solidão (35 milhões de exemplares vendidos em 35 anos) descreveu essa anedota familiar em março de 1998, no México, numa sessão de leitura do primeiro capítulo das suas memórias – Vivir para Contarla, em espanhol – para uma platéia de duas mil pessoas que o receberam sob um rugido de aplausos e o assediaram, depois, em busca de ansiados autógrafos. De lá para cá, o escritor pro-

moveu outras sessões como aquela, publicou capítulos antecipados em jornais da Espanha, Argentina, Colômbia e México, distribuiu originais com amigos e personalidades, como Fidel Castro e Milan Kundera. Em suma, fez um intenso marketing. Finalmente, na primeira quinzena de outubro, o primeiro volume (virão outros dois) das memórias do escritor foi lançado simultaneamente na Espanha e América Latina, com a tiragem de um milhão de exemplares. O sucesso foi retumbante: em uma semana, 300 mil exemplares foram vendidos na Espanha e outros tantos nos demais países de língua espanhola. O êxito não surpreendeu as editoras, capitaneadas pela gigante Random House Mondadori, num negócio que envolveu os direitos do restante da obra do escritor e alcançou a cifra de 100 milhões de dólares, segundo o jornal El Pais, de Madri. Logo após o lançamento, o romancista e ensaísta mexicano Carlos Fuentes, amigo de Gabo e intelectual respeitado, afirmou que a obra “é somente comparável ao Dom Quixote.” No Brasil, a editora Record informou que colocará no mercado, no primeiro semestre do próximo ano, a tradução em português. Continente Multicultural 27


Esse primeiro volume, de 579 páginas, dividido em oito capítulos sem títulos, tem como eixo o surgimento da vocação do escritor, no contexto das relações familiares e tendo como pano de fundo a vida social e política da Colômbia. Vai do tumultuoso romance dos seus pais até o lançamento do primeiro livro (O enterro do diabo), em 1955. Além de escrita com o ritmo e a tensão de um romance, a história de vida do autor traz, para os estudiosos ou os leitores devotados, a chave de boa parte da obra garciamarquiana, narrando episódios reais que deram origem a contos, novelas e romances. Embora perigosamente tangenciando o sentimentalismo (a nostalgia impõe-se, inevitável, no escrutínio do passado), nele está inteiro o grande narrador, cuja con-

dição de pop star da literatura vem desde a publicação de Cem anos, considerado pela crítica um marco na literatura de língua espanhola. A partir de então, cada nova obra do colombiano virou um acontecimento literário. Boa parte dos seus romances tornou-se campeã de vendas, criando uma espécie de categoria – a dos “best-sellers atípicos”, como foi classificada a Crônica de uma morte anunciada pelo professor de literatura Jorge Kühni, da Universidade de Berna, Suíça, salientando a qualidade literária da obra ao lado do uso de certos recursos do romance policial típico. O escritor de aparência de cantor de boleros mexicanos já mereceu, em 1992, na Universidade de

Márquez é sem dúvida um fascinante enganador e tão certo é isso que os idiotas caíram todos

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condição de pop star da literatura mundial não alça García Márquez, entretanto, à condição de unanimidade. Em 1973, seis anos após o lançamento de Cem anos de solidão e nove antes da concessão do Prêmio Nobel, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini escreveu um artigo, intitulado “Gabriel García Márquez: um escritor indigno” em que acusa o colombiano de ser autor de roteiros cinematográficos, com “os tiques demagógicos destinados ao êxito espetacular” e não um romancista. O artigo foi reproduzido pela revista italiana Tempo, em 22 de julho daquele ano. Eis a crítica furiosa de Pasolini: “Parece ser um lugar comum considerar Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez (...) como uma obra-prima. Este fato me parece absolutamente 28 Continente Multicultural

ridículo. Trata-se de uma novela de um roteirista ou de um regionalista, escrita com grande vitalidade e excessos do tradicional maneirismo barroco latino-americano, quase para o uso de uma grande empresa cinematográfica norte-americana (se é que existem). Os personagens são todos artifícios inventados – às vezes com esplêndida maestria – por um roteirista: têm todos os tiques demagógicos destinados ao êxito espetacular. O autor – muito mais inteligente que seus críticos – parece sabê-lo muito bem: “Não lhe havia ocorrido até então – diz ele na única consideração metalingüística de sua novela – pensar na literatura como no único jogo para enganar à gente...” Márquez é sem dúvida um fascinante enganador e tão certo é isso que os idiotas caíram todos. Porém lhe faltam as qualidades da grande mistificação, as qualidades que possui, para dar um exemplo, Borges (ou em menor escala Tomasi di Lampedusa – sim, Cem anos de solidão lembra um

FOTO: AFP

Uma crítica furiosa


Zaragoza, Espanha, um seminário exclusivamente sobre o seu trabalho, durante as celebrações dos 500 anos de descobrimento da América, quando se reuniram 85 estudiosos de diversos países para dissecar sua obra sob os mais variados ângulos, da psicanálise à semiótica, da literatura comparada às questões fundamentais como vida, morte, tempo e solidão. Nos Estados Unidos, já em fins da década de 70, as teses universitárias sobre o universo macondiano ultrapassavam as cinco mil páginas. E este ano, sob os auspícios do Instituto Nobel, da Suécia, e do Clube do Livro da Noruega, 54 grandes escritores de todo o mundo foram convocados a eleger a maior obra de ficção da História. Venceu, disparado, com uns 50% dos votos,

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, mas García Márquez estava entre os poucos escritores que tiveram duas obras indicadas por seus pares – Cem anos... e Amor nos tempos do cólera. Num típico caso de tributo à fama, o escritor vem sendo vítima, na Internet, de um equívoco largamente disseminado: o meloso texto Marioneta, de autoria do ventríloquo americano radicado no México John Welch, tem sido atribuído a García Márquez, que já o repudiou. Por conta de um câncer linfático que acometeu o romancista em 1999 (e que o obrigou a recolher-se, acelerando a produção de suas memórias), a coisa é apresentada na rede mundial como “a despedida de García Márquez, um instante inesquecí-

pouco O Leopardo até nos equívocos que despertou no pântano do mundo que decreta os êxitos literários). Os críticos literários devem tomar nota de um novo “gênero” ou técnica, que já pertence historicamente à literatura: o roteiro cinematográfico e também o denominado “tratamento”. No roteiro e no tratamento, o autor tem consciência de que sua obra não é literária já que se trata de estruturas provisoriamente lingüísticas, que na realidade “querem” ser outras estruturas: estruturas, pontualmente, cinematográficas. O autor de um roteiro ou de um tratamento é tanto mais hábil literato quanto mais consegue obter a colaboração do leitor na visualização do que está escrito provisoriamente. O assumir tal provisoriedade (essa vontade da estrutura de ser “outra estrutura”) forma parte da técnica literária do roteirista e, potencialmente, de seu estilo. Com efeito, a maior parte dos roteiros e dos tratamentos são péssima literatura – como é o caso deste livro. Literatura indigna. Por que? O primeiro ato do escritor de roteiros consiste em identificar o leitor com o produtor. Aquele que deve colaborar com o autor na “transformação” da estrutura lingüística em estrutura cinematográfica é justamente aquele que paga. O destinatário da obra, uma vez mais, é o patrão. Então, vejamos: a maioria dos escritores cinematográficos provém de uma elite cultural: são pessoas que têm a obrigação, diria social, de considerar o patrão um idiota, um semi-analfabeto, um homem desprezível. Porém, ao mesmo tempo, devem fazer com que sua obra o agrade. E no momento em que o roteirista identifica o produtor com um destinatário “idiota, semi-analfabeto e desprezível” tem

apenas um modo de convencê-lo: a degradação de sua própria obra. Então, a inocente captatio benevolantiae que todo autor, em distintas medidas, utiliza para obter a colaboração do leitor, termina convertendo-se em uma operação imoral, que envolve o autor na degradação por ele planificada com baixeza. A colaboração do autor com o leitor-produtor tem, portanto, as características de uma abjeta cumplicidade: tende a fazer dele um companheiro e cúmplice, degradando-se ao seu suposto nível de estúpido, vulgar, conformista, cínico conhecimento das coisas humanas. Tal esforço por simplificar, por reduzir, por desdramatizar, por fazê-lo comunicável e sem problemas reais, termina virando uma atroz forma de adulação do patrão: assim, e para dizê-lo com suas próprias palavras, o roteirista, ainda que desprezando o patrão, e até pelo fato de ver-se obrigado por ele a um comportamento miserável, se faz “rufião” de si próprio. Porém, nenhum homem é aprioristicamente tal como o roteirista supõe que o produtor é: nenhum homem é aprioristicamente inferior a nós mesmos. E a primeira regra moral de um autor consiste em considerar o leitor como seu igual: e logo se identifica esse leitor como um produtor, conseqüentemente este produtor não pode senão ser considerado como seu igual. Atuar de modo contrário a esta elementar regra moral torna um autor indigno de sua profissão”. Pier Paolo Pasolini (1922-1975), poeta, narrador e ensaísta, ganhou notoriedade como cineasta. Entre seus principais filmes estão: O Evangelho segundo Mateus (1964), Teorema (1968) e Decameron (1970).

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vel da sensibilidade humana” (veja o sítio português www.sweet.ua.pt/~junior/letras/marquez.html). Em tempo: o escritor, que se tratou em Los Angeles, está recuperado da doença. Dividido entre o jornalismo, o cinema e a literatura, García Márquez, que completou 75 anos, sempre esteve presente no seu tempo: defendeu a Revolução Cubana, no seu início, e mantém-se até hoje amigo pessoal do ditador Fidel Castro (assim como do ex-presidente americano Bill Clinton, com quem compartilha uma admiração devotada a William Faulkner); participou de uma tentativa frustrada de conciliação em sua Colômbia natal dividida entre o narcotráfico, uma guerrilha ensandecida e uma elite insensível e cruel; fundou uma escola de cinema em Cuba, onde ministra, sazonalmente, cursos de roteiros; criou a Fundação para um Novo Jornalismo Iberoamericano e adquiriu e preside a revista semanal de informações Cambio, em Bogotá e no México. Na epígrafe de Vivir para contarla (o título em espanhol tem duas leituras: tanto indica ser a narrativa essencial à vida quanto se refere à expressão “No vivió

O primeiro volume das memórias de García Márquez já vendeu 300 mil exemplares na Espanha e outro tanto na América Latina e será lançado no Brasil no primeiro semestre do próximo ano para contarla”, para designar quem não sobreviveu a um evento fatal), García Márquez define sua visão de mundo e do significado da arte de escrever, numa síntese em 20 palavras: “A vida não é a que alguém viveu, mas o que se recorda e como se recorda para contá-la”. De todo o exposto, deve-se concluir que, para alcançar o pódio da glória, é preciso, mais do que umas colheradas de Emulsão Scott, muito talento – de preferência fermentado por um eficaz marketing.

FOTOS: DIVULGAÇÃO / AE ; DIVULGAÇÃO

Cena do filme Ninguém Escreve ao Coronel, uma das obras de García Márquez levadas ao cinema

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Presságio ou o conto que Gabriel García Márquez não escreveu

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o dia 11 de agosto de 1967, dois meses e uma semana após publicar Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez preparava-se para falar no Ateneu de Caracas, durante a sessão de encerramento do XIII Congresso Internacional de Literatura Iberoamericana, sobre o tema “O romancista e seus críticos”. Ele já havia publicado antes La Hojarasca (novela, 1955), Ninguém Escreve ao Coronel (romance, 1961), Os Funerais da Mamãe Grande (contos, 1962) e A Má Hora (novela, 1962). Mas o sucesso estava apenas começando então, com o estrepitoso êxito do romance de Macondo. Segundo relato do seu biógrafo Dasso Saldívar (Viagem à Semente, Record, 2000), ele estava apavorado, com as mãos geladas, esperando ser chamado como quem aguarda a vez de subir ao patíbulo. Chega a hora da conferência. E, então, narra Saldívar: “Em vez da dissertação acadêmica, dessas que tanto agradam aos ouvidos dos críticos e dos professores, contou uma história, simplesmente uma história, rebelando-se contra a solenidade e o academicismo do momento. O começo foi árduo, empedrado, tecendo as palavras com silêncios tão longos que manteve (sic) os ouvintes em total suspense nas cadeiras. Mas pouco a pouco foi armando a história completa (...) e levou uma ovação cerrada pela única coisa que, no fundo, estava interessado em ser: um contador de histórias”. O biógrafo não registra o conteúdo da narrativa. Mas a revista Sisifo, editada em Montevideu, publicou, em 1969, a íntegra do conto-falado de García Márquez. É a história de uma profecia que se cumpre por si própria, um exemplo literário da teoria do

sociólogo norte-americano Robert Merton – as profecias que se auto-realizam. Na narrativa oral, está todo o talento do escritor, como uma polpa concentrada de fruta. Durante anos, os que leram o artigo da revista ou tomaram conhecimento do fato esperamos o conto de García Márquez. Em vão. Ele jamais publicou a história, em nenhum dos seus cinco livros de contos ou qualquer outro meio. Mas a aproveitou, em 1974, como argumento para desenvolver, em conjunto com o diretor espanhol Luis Alcoriza, o roteiro do filme Presagio, rodado no México e que conquistou as mais importantes láureas do Prêmio Ariel (espécie de Oscar mexicano) da Academia Mexicana de Artes e Ciências Cinematográficas: Melhor Filme (juntamente com outras duas películas), Melhor Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante (Anita Blanch), Melhor Argumento Original, Melhor Roteiro, Melhor Fotografia, Melhor Cenário e Melhor Edição, além de um diploma especial para a atriz Cecilia Camacho. Pena que o filme não tenha chegado por aqui, pelo menos que saibamos. Recentemente, a versão em espanhol da narrativa foi divulgada na Internet, como sendo um exemplo que García Márquez teria dado, para que comparassem com o texto quando fosse escrito. A página da Web indica, ainda, que a fala do escritor no Congresso de Caracas havia sido divulgada também pela revista mexicana Cuentos, sem especificar data. A seguir transcrevemos o conto-falado de García Márquez, inédito em português, como uma preciosa curiosidade (HF) Continente Multicultural 31


I

maginem um povoado muito pequeno onde há uma velha senhora que tem dois filhos, um de 17 e uma filha de 14. Está servindo-lhes o café da manhã e tem uma expressão de preocupação. Os filhos perguntam o que se passa e ela lhes responde: “Não sei, mas amanheci com o pressentimento de que algo muito grave vai acontecer a nosso povoado”. O filho vai jogar bilhar e no momento em que vai fazer uma carambola simplíssima, o outro jogador diz-lhe: “Aposto um peso como não consegues”. Todos riem. Ele joga e não a faz. Paga seu peso e todos perguntam o que aconteceu, já que era uma carambola simples. E ele responde: “É verdade, mas é que fiquei preocupado com uma coisa que mãe disse sobre algo que vai acontecer a este povoado”. Todos riem dele e o que ganhou a aposta, na volta para sua casa, comenta: – Ganhei este peso de Carlos da forma mais simples, porque ele é um bobo. – E por que é um bobo? – Porque não conseguiu fazer uma carambola simplíssima, apoquentado com a idéia de que sua mãe amanheceu hoje com a certeza de que algo grave vai acontecer a este povoado. E sua mãe lhe disse: – Não brinques com os pressentimentos dos velhos, porque às vezes eles acontecem... Uma parente ouve isto e vai comprar carne. Ela diz ao açougueiro: “Dá-me um quilo de carne” e no momento em que ele a está cortando, acrescenta: “Aliás, corte dois quilos, porque andam dizendo que algo grave vai acontecer e é melhor estar preparada”. O açougueiro despacha a freguesa e quando chega outra senhora a comprar um quilo de carne, lhe diz: “É melhor levar dois porque as pessoas chegam dizendo que algo muito grave vai acontecer e estão se preparando e comprando coisas”. Então, a velha responde: “Tenho vários filhos, então me dê quatro quilos”. Leva os quatro qui32 Continente Multicultural

los e para não estender demais o conto direi que, em meia hora, o açougueiro esgota toda a carne, mata outra vaca, vende toda e vai espalhando o rumor. Chega o momento em que todo mundo no povoado está esperando que algo aconteça. Param as atividades e, às 2 da tarde, faz calor como sempre. Alguém diz: – Vocês não estão achando que o calor está demais? – Mas nesse povoado sempre faz calor... – Sim – diz outro –, mas a essa hora nunca fez tanto calor. – Ora, às 2 da tarde é quando faz mais calor. – Sim, mas não tanto calor como agora. Na praça deserta, pousa de repente um passarinho e corre a notícia: – Tem um passarinho na praça. – Mas, senhores, sempre tem passarinhos que pousam. – Sim, mas nunca a esta hora. Chega um momento de tal tensão para os habitantes do povoado que todos estão desesperados para se irem mas não têm coragem de fazê-lo. – Eu, sim, sou muito macho – grita um – e vou m’embora! Pega seus móveis, seus filhos, seus animais, os joga numa carroça e atravessa a rua principal, onde todos os vêem. Até que todos dizem: “Se este se atreve, nós também nos vamos”. E começam a desmantelar literalmente o povoado. Levam as coisas, os animais, tudo. Um dos últimos que abandonam o povoado diz: “Que não venha a desgraça a cair sobre o que resta de nossa casa”. E então a incendeia e outros incendeiam também suas casas. Fogem em um tremendo e verdadeiro pânico, como em um êxodo de guerra, e em meio a eles vai a senhora que teve o presságio, clamando: “Eu disse que algo muito grave ia acontecer e disseram que eu estava louca”.

ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

Algo muito grave vai acontecer neste povoado


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COMEMORAÇÃO

Noigandres:: 50 anos

Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, nos anos 50

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irando o nome de uma palavra misteriosa, utilizada pelo trovador provençal Arnault Daniel e comentada por Ezra Pound no Canto XX dos seus Cantares, e que posteriormente descobriram significar “antídoto do tédio”, três jovens paulistas, com pouco mais de 20 anos de idade, formaram, em 1952, o grupo Noigandres, que acabaria por revolucionar a poesia mundial. Reagindo contra o formalismo academicista da retrógrada geração de 45, e procurando recuperar o espírito permanentemente revolucionário de 1922, Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos investigavam, ao mesmo tempo

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que outros poucos jovens o faziam na Europa, como o suíço Eugen Gomringer, as possibilidades de uma poesia que fosse além do verso e procurasse novas formas de expressão. Demonstrando uma riqueza cultural descomunal, que em nada ficava devendo aos seus contemporâneos europeus ou americanos, e, por isso mesmo, livres da xenofobia covarde ou do complexo de inferioridade subserviente – os dois opostos complementares que sempre marcaram (e marcam) a maioria dos intelectuais e escritores brasileiros – propõemse, desde o início, a realizar a proeza sonhada pelo

FOTO: REPRODUÇÃO

Três jovens paulistas, com pouco mais de 20 anos de idade, formaram, em 1952, o grupo Noigandres, que acabaria por revolucionar a poesia mundial Frederico Barbosa


gramáticos – processos freqüentemente apenas esboçados e apontados por artistas do passado. Assim, passaram a estudar com afinco os momentos mais inventivos e radicais da produção poética nas diversas línguas que dominavam ou que, na sua curiosidade inquieta, passaram a estudar. Acabaram por sintetizar a essência de experiências que combinavam a palavra e a visualidade, como as de Símias de Rodes, poeta grego do período alexandrino, as dos poetas metaphysical ingleses Robert Herrick e George Herbert, assim como seu contemporâneo Gregório de Matos, os calligrammes de Apollinaire, as experimentações tipográficas do Un Coup de Dés de Mallarmé e dos poemas mais radicais de e.e. cummings, ou mesmo, no Brasil, os poemas de Oswald de Andrade que já uniam palavra e grafismo. Mesclaram ainda o estudo desses e de inúmeros outros poetas do passado à observação atenta da arte mais inovadora produzida então no mundo: tanto por artistas plásticos, como Theo Van Doesburg e Max Bill, ou, no Brasil, pelo grupo Ruptura, que lançara o seu Manifesto exatamente em 1952, quanto por músicos revolucionários, como Anton Webern, Schönberg e Pierre Boulez. Os estudos de Ernest Fenellosa sobre

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contra o tedio

“antropófago” Oswald de Andrade: produzir, no Brasil, uma literatura de teor, qualidade e importância universais. No célebre ensaio Tradition and the Individual Talent, de 1917, T. S. Eliot já apontava que todo artista que se tornou definitivamente significativo teve de encontrar meios de se inserir na tradição. Para tal, logo descobriram os jovens componentes do Noigandres, é necessário conhecê-la a fundo, principalmente para vislumbrar, dentro da própria tradição, formas de reestruturá-la, acrescentando algo de novo, muitas vezes sintetizando e tornando conscientes – e mesmo pro-

os ideogramas chineses forneceram uma formidável sustentação teórica para a defesa intransigente da concisão e da capacidade de síntese na poesia, já então representadas, no Brasil, por João Cabral de Melo Neto. Assim, em 1953, Augusto de Campos, aos 22 anos, compõe uma série de poemas coloridos e dispostos de maneira original na página. Inspirados na música de vanguarda de Anton Webern, os textos de Poetamenos podem ser considerados os primeiros exemplos da poesia concreta. No final de 1956, o grupo Noigandres organiza, com artistas plásticos e outros poetas que aderem ao movimento, uma exposição em São Paulo, transposta no início de 1957 para o Rio de Janeiro, em que a poesia concreta é lançada para o Brasil e para o mundo. Numa literatura que sempre se viu atrelada às modas que vieram de fora, este é um fenômeno único. Mas nem por isso a admiração pela poesia concreta é unânime. Ainda hoje o radicalismo da experimentação, como a destruição do verso, as experiências de disposição original das palavras na página, a desintegração da própria palavra ou a recusa à Continente Multicultural 35


Décio, Haroldo e Augusto estavam atentos à arte inovadora produzida no mundo por artistas de vanguarda, como o compositor francês Pierre Boulez

A poesia concreta é o primeiro estilo literário a surgir, se não antes, pelo menos ao mesmo tempo no Brasil e no resto do mundo. Numa literatura que sempre se viu atrelada às modas de fora, este é um fenômeno único

cal dos inventores da poesia concreta, mantém-se até hoje absolutamente fiel às propostas iniciais de uma poesia antidiscursiva, sintética, visual e contundente. Tem publicado vários livros de ensaios críticos sobre poesia e música. Atuante crítico de música na década de 60, foi um dos primeiros a reconhecer o talento poético de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em ensaios reunidos no livro No Balanço da Bossa (1968). Recentemente, além de dedicar-se a investigar novos meios para a poesia, como a holografia e a computação gráfica, lançou, em parceria com seu filho, o músico Cid Campos, um CD com leituras criativas de seus poemas e traduções, Poesia é Risco (1994), e, em 2001, uma reedição do seu livro Viva Vaia – Poesia 1949-1979. Além do trabalho poético próprio, destacam-se as traduções, de diversas línguas, feitas por Augusto e Haroldo e Décio: Mallarmé, Pound, Dante, Goethe, Donne, Shakespeare, Homero, o Velho Testamento, e. e. cummings, Gertrude Stein, Rimbaud, Maiakóvski, a lírica provençal, Hopkins, Rilke, Joyce, etc. Traduzindo, tornaram acessível ao leitor de língua portuguesa muito do que há de mais rico e instigante na literatura universal. Haroldo no momento finaliza a publicação de sua tradução da Ilíada, de Homero, que, curiosamente, tornou-se até um sucesso de vendas no enigmático mercado editorial brasileiro. Como se não bastasse isso, os concretistas revitalizaram o interesse por autores como Sousândrade, Kilkerry, Gregório de Matos e mesmo Oswald de Andrade.

Frederico Barbosa é poeta

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FOTOS: REPRODUÇÃO / AE ; DERLY MARQUES / AE

Os concretistas se dispuseram a realizar o sonho de Oswald de Andrade: criar no Brasil uma literatura de importância universal

poesia discursiva assustam e afastam a mentalidade conservadora brasileira, gerando polêmicas acaloradas ou, pior ainda, uma estratégia de rasura bastante evidente: no Brasil, muitos fingem que nada aconteceu, enquanto os seus criadores são homenageados e celebrados nas mais prestigiosas universidades dos Estados Unidos e da Europa. Até mesmo a infatigável busca das fontes inspiradoras das suas propostas, realizada pelos três fundadores do movimento, tem sido criticada. Alguns chegam a afirmar que isso comprova que não fizeram nada de original. Seria o mesmo que acusar um grande cientista, como Einstein, capaz de sintetizar as idéias que estavam no ar, porém dispersas, no seu tempo, de mero repetidor. Nesses 50 anos que se passaram desde a criação do Noigandres, os trabalhos individuais de seus membros – como poetas, tradutores, pesquisadores e críticos – em muito ampliaram as fronteiras das suas propostas iniciais. Décio Pignatari, que também realizou experiências com a “poesia semiótica”, em que usa símbolos e não palavras, introduziu a linguagem concreta na propaganda e tornou-se um dos maiores especialistas brasileiros em semiótica, tendo sido professor na PUC de São Paulo e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Levando seu espírito inquieto para além da poesia, publicou o livro Panteros, de prosa poética. Haroldo de Campos, o mais barroco dos concretos, além de incontáveis ensaios críticos, publicou, em 1984, seu “livro de ensaios”, na realidade, um longo poema em prosa, Galáxias, escrito entre 1963 e 1973, e, em 2000, o longo poema escrito em terza rima, A Máquina do Mundo Repensada. Já Augusto de Campos, o mais radi-


D5CI0 ANOS Uma conversa exclusiva com o poeta Décio Pignatari, um dos inventores da Poesia Concreta Marcelino Freire

– Você sabia que Noigandres significa “vencer o tédio”? Noigandres é o nome do grupo e da revista fundada pelo Décio Pignatari e pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos – e que acabou sendo a base teórica e prática da Poesia Concreta. – É uma palavra-montagem, sempre intrigante, pinçada do provençal. – O tempo é uma coisa espantosa. O tempo não passa por nós, passa sobre nós, diz o Décio. Ele mesmo, nascido em 1927, na cidade de Jundiaí, São Paulo. Atualmente, reside e trabalha em Curitiba. – Peguei a minha nova companheira e as suas duas crianças que não respiravam direito e fugi de São Paulo. Não agüentava mais a poluição, a violência, a correria. Eu precisava de um lugar para pensar. Onde eu pudesse respirar como respira um “intelectual europeu”. Décio é poeta, romancista, ensaísta, tradutor, professor de Comunicação e dono de uma “curiosidade sem limites”. Seu livro Errâncias, publicado em 1999 pela Editora Senac, uma coletânea de 30 imagens, nas quais Décio Pignatari apresenta lugares e personalidades que fizeram parte, direta e indiretamente, da sua vida. Lá encontramos João Cabral, Borges, Valêncio Xavier, Pound. Vemos o túmulo de Mallarmé. – Você tem algum projeto em vista, Décio? – Estou concluindo meu segundo romance, meu grande romance. Se terminar de escrevê-lo, dou toda a minha obra por concluída. O livro se chama, provisoriamente, Obras em Obras: o Brasil. Ao lado de Jakobson e de Umberto Eco, Décio fundou em 1969 a Associação Internacional de Semiótica. Sua primeira viagem pela Europa foi numa aven-

tura, “a 100 dólares por mês”. Viajou a bordo de um navio argentino carregado, entupido de gente. Conheceu os principais intelectuais de seu tempo. – Vivi em Paris dos anos 50. Naquela época, Paris era pobre, mas as idéias lá estavam vibrantes. Depois fui à Alemanha. Eu sempre estive interessado em desenho industrial. E era ligado ao grupo de artistas concretos de São Paulo, cujo guru era o Waldemar Cordeiro. Então foram dois anos em correspondência com os Campos, e a idéia concreta surgiu. Nós éramos aceitos mais lá fora do que no Brasil. Aqui, nos chamavam de alienados. – Alienados? – É. Porque seguíamos o Maiakóvski, que dizia: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. Esse era o nosso slogan. A gente já anunciava desde lá: “Um dia a grande obra dos formalistas russos virá à tona”. E foi o que aconteceu. Quem traduziu diretamente do russo todos eles? Foram os Irmãos Campos. A cultura brasileira deve, e muito, ao movimento que criamos.

O poeta João Cabral, na Espanha, em foto do livro Errâncias, de Décio Pignatari

Marcelino Freire é escritor

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38 Continente Multicultural

Os últimos dias de Torquato Neto

Torquato Neto nos tempos do Tropicalismo

Torquato Neto nasceu em 9 de novembro de 1944, no Piauí, e suicidou-se no Rio de Janeiro, em 1972, um dia depois do seu aniversário. Artista múltiplo e rebelde, com algo de neoromântico, nunca cedeu a pressões de ajustamento social Luiz Carlos Monteiro

FOTO: REPRODUÇÃO

MEMÓRIA

T

orquato Neto sempre fez questão de tornar explícitas as marcas individuais de um posicionamento artístico radical e dissonante. A miscelânea dos poucos escritos que deixou inclui poemas, cartas a amigos, composições musicais, um esboço de diário do hospício e artigos de jornal. Situada numa dimensão bem mais cultural que propriamente literária, essa produção resultou num livro organizado pelo poeta-compositor Waly Salomão e por Ana Duarte, artista plástica que foi casada com Torquato. Os Últimos Dias de Paupéria teve uma primeira edição no Rio de Janeiro, pela livraria Eldorado Tijuca, em 1973. A segunda, ampliada em novo projeto gráfico, saiu em São Paulo, em 1982, pela Max Limonad. Incorporava desenhos, fotografias e poemas visuais e trazia também o subtítulo “Do lado de dentro”. Recentemente começaram a circular, na Internet e em impressos, poemas que não tinham aparecido em Paupéria. Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu a 9 de novembro de 1944, em Teresina-PI, e terminou por suicidar-se no Rio de Janeiro, em 1972, um dia após o seu aniversário. Na sua performance de artista múltiplo e rebelde, com algo de neoromântico, não cedeu jamais a apelos e pressionamentos ideológicos de ajustamento social. A estrofe inicial do poema Cogito – que ficou conhecido após sua publicação na antologia 26 Poetas Hoje (1976), de Heloisa Buarque de Holanda – reflete um estado de espírito utópico e transgressivo: “Eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível”. Vinculado estreitamente ao tempo que lhe coube viver, não recuou diante do perigo e da paranóia que representava ser um marginal ou um “desbundado”, e assumi-lo inteiramente nos anos


FOTOS: REPRODUÇÃO ; MAURÍCIO DE SOUZA / AE

60/70. Em outra estrofe de Cogito, pregava: “Eu sou como eu sou/ presente/ desferrolhado indecente/ feito um pedaço de mim”. Um poeta maldito – ou um cult artist, na expressão do concretista Décio Pignatari – que conhecia os principais meandros da política marxista-leninista e da psicanálise reichiana, da antipsiquiatria e do existencialismo absorvidos pela juventude da época. Acuado no “ventre escuro” do imenso país tropical, constatou que eram vedados quaisquer passos e ações no sentido da construção de um mundo aberto, livre e desreprimido. Por isso, oscilava permanentemente entre uma vida normal de compositor e jornalista e o alcoolismo compulsivo. Além do mais, padecia de uma loucura indecifrada, com o conseqüente internamento periódico em sanatórios e hospícios. Em bases anarquistas, ensaiava a proposição de um mundo sem a presença opressiva do Estado burocrático totalitário, hoje parcialmente destronado pelo mercado financeiro, mas ainda assim a ditar regras para a massificação e controle da sociedade. Um mundo idealizado, sem a rigidez conservadora da família convencional zelosa e ciosa de seus valores freudianos e pequeno-burgueses. Esse tipo de anarquismo configurava-se, talvez, por outro lado, como uma resposta ao esquerdismo militante sectário e atávico. Traduzia-se também num código sensivelmente avesso ao engajamento como forma limitadora das ações humanas e da liberação de energias vitais e necessárias à criação artística. Não se imagine, no entanto, que essa atitude poderia desembocar, sem maiores questionamentos, numa atitude retrógrada ou alienada. Ao contrário, Torquato continuava alimentando suas idéias e sonhos libertários, e cultuando em certa medida e a seu modo seus “mitos necessários”. Entre eles, Jimi Hendrix (a quem teria conhecido pessoalmente) e Che Guevara, que, segundo palavras de Torquato em 1971, “morreu apenas para que se cantasse (chorando) o seu mito”. Um dos momentos de maior ressonância do fazer criativo de Torquato Neto foi, sem dúvida, a sua atuação à frente da coluna Geléia Geral, no jornal carioca Última Hora. Na Geléia Geral, que durou pouco mais de seis meses (de 19/8/71 a 11/3/72), pôs em prática a sua formação jornalística, utilizando-se de uma linguagem sugestivamente transgressora, ocupando diariamente brechas e espaços que aquele jornal semi-oficial permitia.

Entre 68 e 72, Torquato manteve um diário secreto – os textos “escondidos”, como a eles referiu-se Waly Salomão. Embora contendo poucos textos e com flagrantes interrupções temporais, este diário diz muito da sua persona lacerada, tanto artística quanto humana. Porque se ele tencionava uma junção total e irremissível entre a vida e a arte, ou mais precisamente, entre vida e poesia, sabia também que há instantes em que essa relação não se completa. Ninguém pode ser poeta em tempo integral, quando isto for sintomático do ilhamento do poeta em si mesmo, fechado ao mundo e à experiência que o cerca. Além disso, há fronteiras limitadoras e arestas não polidas no indivíduo, que permitem atitudes estúpidas e antipoéticas, levando-o a enveredar às vezes por caminhos indesejados. Torquato Neto jamais ousou trair a sua poesia, mesmo que uma tal ousadia significasse a antecipação cotidiana da própria morte. Afirmou em uma das “pílulas” (que mais se assemelhavam a bem acionados e contundentes torpedos) da Geléia Geral: “O poeta que trai sua poesia é um infeliz completo e morto”. E por não ter traído a si mesmo nem à poesia – “A poesia é a mãe das artes”, dizia – é que deixou, para reflexão geral, o testemunho singular de uma poesia que somente poderia se completar em fusão com a vida: “Um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo e sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela”.

O poeta Waly Salomão, um dos organizadores da obra póstuma de Torquato Neto

Torquato cultuava seus “mitos necessários”, como chamava. Entre eles, o guitarrista Jimi Hendrix

Luiz Carlos Monteiro é crítico literário

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CORRESPONDÊNCIA

E

ntre a mulher e a amante. É mais ou menos assim que Tchékhov diz se sentir em uma das cartas trocadas com o dramaturgo e editor do prestigioso jornal Novo Tempo, do qual foi colaborador: dividido entre a fidelidade à sua profissão de médico e seus casos mais do que freqüentes com a literatura. E esse é apenas um dos pontos interessantes que as cartas, trocadas entre os anos de 1886 e 1891, podem nos revelar a respeito de sua obra. Não é a única passagem em que o escritor associa a sua concepção de arte mais à sua profissão e a uma observação minuciosa da vida do que à adoção dos métodos das ciências naturais, em voga nos círculos letrados da época, dado que, per se, pode retificar muitas das interpretações críticas que o vinculam diretamente ao positivismo. Há uma série de outros pontos altos, e longe de tomar as particularidades da vida do autor para explicar sua obra, isso comprova que podemos muito bem recorrer a elas para sanar alguns equívocos que se criaram em torno desta. Tchékhov revê algumas de suas idéias sobre arte, na carta de número 8. Nela o contista defende a isenção dos escritores em seus escritos, e diz que o artista não pode em nenhuma hipótese ser o juiz de seus personagens. Um pouco mais adiante, faz uma explanação sobre a literatura de caráter psicológico, e a critica, já que, para ele, o escritor deve simplesmente apresentar os homens diante de determinadas situações, não inferir o que eles porventura possam estar pensando ou como e por que eles reagiriam a essas mesmas situações dessa ou daquela maneira. Essas considerações aparentemente simples parecem dar a chave para situar sua prosa em relação à dos seus antecessores e contemporâneos, e as dimensões desse realismo sui generis que ele pratica. Se por um lado Tchékhov se diz contrário ao realismo de extração psicológica, como temos em boa parte de Dostoievski e em Madame Bovary, ele também está longe de se render a uma pretensa explicação da sociedade por intermédio dos instrumentos da ciência, como Zola o fez a partir das idéias do fisiologista francês Claude Bernard. E é nesse ponto singular que o autor de Tio Vânia parece inscrever sua obra: em um realismo que poderíamos definir como clássico,

O escritor russo Anton Tchékhov

Entre a medicina e a literatura

Dividido entre a fidelidade à sua profissão de médico e seus casos mais que freqüentes com a literatura, Anton Tchékhov, em cartas a seu amigo Suvórin, faz considerações que esclarecem a situação de sua prosa em relação a outros escritores Rodrigo Petronio

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FOTOS: REPRODUÇÃO / AE

aquele que é o fundamento de uma longa tradição da arte narrativa, mas que não compactua com as camisas-de-força estilísticas e ideológicas que o século 19 criou para si. Esse também é um dos motivos de sua grandeza. A carta de número 20 acaba sendo complementar e esclarecedora nesse sentido. É nela que Tchékov fará uma crítica aberta à submissão da literatura às ciências, e recriminará toda especulação nesse sentido como fruto de um engano que não só produz devaneios incapazes de dar conta de todas as dimensões do fenômeno artístico, mas também pode empobrecê-lo. Em tempo, defende o que ele define como sendo uma filosofia da criação, a partir da qual seria possível de- avaliações há mais um compromisso com a arte da duzir a lei geral que regra todas as melhores obras de narrativa do que um exercício de vaidade ou de arroarte já criadas, e o que há de comum entre elas. Entre gância. A amante literatura mostrou ao médico Tchéessas e outras considerações, Tchékhov nos dá uma amostra preciosa de algo que se esvaziou e praticamen- khov que a vida não é passível de ser explicada pela te desapareceu: a capacidade de os artistas refletirem ciência, e a esposa medicina cultivou nele o bom gosto sobre os aspectos técnicos e conceituais de suas respec- e o bom-tom de nunca distanciar a criação da obsertivas artes, ainda que essa reflexão seja oposta a qual- vação imediata do mundo e o apreço pelo artesanato quer rigor acadêmico ou a qualquer erudição rebarba- verbal. No fundo, ambas o ensinaram a recusar a certiva. E é esse um dos pontos mais prazerosos dessas teza absoluta, bem como a desconfiar de toda dúvida. missivas, quando somos surpreendidos com reflexões Entre uma e outra, temos o autor de Uma Vida e sua muito apropriadas e precisas sobre o assunto no meio obra, que escapa a qualquer tipo de redução e é um dos de um arrazoado de informações circunstanciais, que marcos da prosa russa, ao lado de Dostoievski, Puchtratam de dinheiro, edições, amigos, colaborações para kin, Tolstoi e Gogol. Seria impossível analisar aqui o jornal, encenação de peças e das obras do próprio todos os aspectos que compõem esse conjunto de cartas. É um material de riqueza inestimável, pedra de Aleksei Serguéievitch Suvórin. Essa conversa franca nos demonstra nitida- toque para todos os estudiosos e especialistas que queimente a solidificação de uma amizade e, ao mesmo ram reconstruir o ambiente intelectual, artístico, jortempo, o amadurecimento de Tchékhov como escritor nalístico e, mais especificamente, literário e teatral da Rússia dos dois últimos decêe também como crítico. No final das cartas, o autor já Cartas a Suvórin 1886-1891 nios do século 19. Além disso, ao leitor curioso, é a oportutrata o poderoso editor de – Anton Tchékhov igual para igual, faz críticas Tradução de Aurora Fornoni nidade de contato com uma duras a alguns pontos de Bernadini e Homero Freitas das melhores vozes da prosa de ficção desse mesmo século, em suas peças e fala com a dede Andrade sua constante oscilação entre senvoltura dos homens exEditora Edusp – 408 págs. um humor de tipo francês, cerperientes, não mais como o R$ 48,00 to ceticismo e outro tanto da rapaz de 26 anos do início. Se o lastro de amizade cresce a ponto de Suvórin ceder mais saudável exigência artística. A tradução direta do sua propriedade em Teodósia, na região da Criméia, russo, assinada por Aurora Fornoni Bernadini e Hopara Tchékhov passar suas férias, paralelamente a ho- mero Freitas de Andrade, e a edição impecável, tanto nestidade intelectual se acentua, e o autor chega a ta- do ponto de vista gráfico quanto conceitual, vieram enchar a linguagem de algumas peças do seu editor de riquecer esse triângulo amoroso e pôr em evidência o ruim a desancar vários de seus contemporâneos. Além mérito mais profundo que o livro tem. disso, critica implacavelmente a si mesmo e se refere a certos contos como peças destituídas de qualquer inte- Rodrigo Petronio é poeta e ensaísta, autor de História Natural e resse, o que demonstra que por trás da dureza de suas Transversal do Tempo

Cena da peça As Três Irmãs, de Tchékhov, com Maria Padilha, Julia Lemertz e Claudia Abreu

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MARCO ZERO

Belo Monte "E eu sei?" (Resposta de uma prisioneira de Canudos a cada pergunta do general Arthur Oscar) "Avança! fraqueza do governo!" (Grito de guerra dos jagunços)

III Tabuleiro dos penitentes, o sol em brasa os cauteriza: um anjo queimaria as asas pousando nessas rochas vivas, e os desfolhados espinheiros se agarram, brigam o ano inteiro, enlouquecidos pela luz: lágrima e orvalho se evaporam, seca a ferida antes do pus;

Canto-chão

aqui é como, sem um grito, tudo aspirasse a ser granito.

I

Canto-gentílico

Onde Cristo ainda não nasceu, com seu orvalho, seu alento, lá bate o martelo de um Deus surdo, do Velho Testamento;

I

onde, ao invés, de flores e ninhos, coroas-de-frade e de espinhos,

Eram todos eles de um tempo governado por deus terrível; e, feitos de lenha e de rocha, todos sem carne, só espírito;

ali, chegou o Conselheiro, com alpercatas de couro cru, e a resistência do cardeiro;

na sua terra de promissão, era de fogo o seu pendão,

lá longe, onde só chega a lança, não da justiça, da vingança.

um certo tipo de estandarte que tremulava lá por dentro de suas almas, sem alarde,

II Belo Monte, grande umbuzeiro, lá, entre serras, isolado, arrastando no chão as ramas, sem a poda do sol, do gado: pátria solar dos indigentes, vagem, estojo de sementes que germinaram nos rochedos mais duros dessa vastidão, limpa de vícios e de medos; nova Atlântida, pardo ataúde de Canudos, sob um açude.

atiçando no olhar a fé de quem reza ou morre de pé. II Não há brancos nem pretos, todos pardos, parece terem vindo de algum sagrado cataclismo de folhas maduras, caindo umas sobre as outras, no chão comum da miscigenação; há, em todos, o mesmo brilho de alguma estrela interior, e o desespero talvez filho de um fantasmagórico rio que só corre à noite, vazio

Alberto da Cunha Melo 42 Continente Multicultural


III Eles não tinham uma terra fofa, como os homens do Sul, e ainda seguiram esse árido profeta de túnica azul;

De baixa estatura, o soldado sádico tenta, em vão, levar, ao pescoço do alto jagunço, o laço da forca, o colar

só temendo o vento Nordeste, o "vento da seca', da peste,

que, ao lado da degola, espera os guerrilheiros da tapera:

amavam as coisas remotas, móveis toscos, santos de pedra, velhos abismos, velhas rotas;

o jagunço toma-lhe o laço, coloca-o no próprio pescoço, presidindo seu cadafalso;

era, para eles, a alegria festa de Deus, na romaria.

fechada em si, aquela gente sabia morrer diferente.

Canto-guerreiro I Três volantes policiais perderam homens, aos milhares, e igual sorte também tiveram três expedições militares;

IV Um desidratado cadáver, há três meses, braços abertos, abraça o sol: é de um soldado deixado atrás, pelos desertos, tem da múmia a postura clássica, quando algum vento a desenfaixa;

mas a vitória do Arraial não é vencer o litoral,

perto dele, o cavalo morto parou com as patas dianteiras sobre um rochedo, a meio corpo:

é ser apenas esquecido, com suas forjas, seus curtumes, seu deus severo, seu castigo,

dentro do silêncio, a intervalos, vagens secas davam estalos.

o que quer, de fato, esse povo é ser inventado de novo. II Cinco mil soldados atiram contra cinco ou seis mil taperas, mas não era guerra de iguais, guerra de feras contra feras, mas só taradas invasões ao pombal, pelos gaviões; em meio aos pombos, Pajeú não respeitou a artilharia e atracou-se de corpo nu, ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

III

caindo varado, no chão corpo a corpo contra um canhão.

V Todo sonho, quando afogado, vira, sem saber, uma lenda; assim ocorreu com Canudos, nossa Atlântida: nesta fenda sertaneja, some a semente de outra nação e de outra gente, nela, a honra militar morreu na hora em que menos deveria: quando a República nasceu enlameada, sem pudor, nas mãos do próprio defensor. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo. Este poema consta do livro O clarim e a oração – cem anos de Os Sertões, Geração Editorial, São Paulo, 2002.

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ARTES PLÁSTICAS

IMAGEM: REPRODUÇÃO

Detalhe do quadro Azougue, técnica mista sobre tela

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Dantas Suassuna e os fragmentos do percurso O artista plástico pernambucano faz sua segunda exposição individual na Cecília Brennand Galeria de Arte, apresentando pinturas, desenhos e um Diário Iluminado, com anotações pictóricas

Quadro sem título, técnica mista sobre tela

O

artista plástico Dantas Suassuna começou a pintar com intenções de se profissionalizar em 1977, estudando com José de Barros, na Universidade Federal de Pernambuco. Depois foi aprender novas técnicas com Francisco Brennand. Mas sua “graduação”, como ele mesmo diz, ocorreu quando foi para o Sertão, estudar arte popular e arte rupestre, em 1987. De lá para cá, vem trabalhando no desenho, na pintura, na cenografia para teatro e shows musicais e na cerâmica. Parte deste percurso ele pretende sintetizar em sua segunda exposição individual, Fragmentos, que acontece na Cecília Brennand Galeria de Arte, a partir do dia 27 deste mês. Dantas vai expor pinturas e desenhos. Também integra a mostra a exibição em slides do seu diário ma-

nuscrito ilustrado, um caderno de folhas brancas e quadradas, no qual utiliza lápis, caneta e tinta para fazer “anotações” pictóricas, e que receberá o título de Diário Iluminado. Exposição: Fragmentos, de Dantas Suassuna. Local: Galeria de Arte Cecília Brennand – Aria Espaço de Dança e Arte – Av. Canal de Setúbal, 766. Piedade – Jaboatão dos Guararapes – PE. Fone (81) 3462.9095 / 3462.4095. Vernissage: Dia 27 de novembro, às 20h. Visitação: De segunda a sexta-feira, das 9h às 13h e das 14h às 19h. Sábado, das 10h às 13h. Até 20 de dezembro.

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Espadas luminosas e

Ariano Suassuna 46 Continente Multicultural

E

ntre os grandes artistas de sua geração, Manuel Dantas Suassuna ocupa, sem dúvida, um dos primeiros lugares. E, a meu ver, tal posição de destaque decorre de sua ligação com a pintura rupestre nordestina e com a arte popular do seu país. Faz muito tempo que, em sua pintura, começaram a aparecer um branco muito forte e um ocre muito diluído – branco e ocre, porém, aqui e ali entremeados por negros, vermelhos e amarelos, que dão cor a espadas luminosas, igrejas às vezes tumulares como a de Canudos, sóis, cruzes ou corações, estes quase sempre transfixados e sangrentos.

IMAGENS: REPRODUÇÃO

Na pintura de Dantas Suassuna são recorrentes o branco muito forte e um ocre muito diluído, entremeados por negros, vermelhos e amarelos, que dão cor a espadas, igrejas, sóis, cruzes e corações


corações transfixados

Nesta exposição, juntamente com quadros em que aparecem aquelas cores e aqueles elementos, Manuel Dantas Suassuna e Cecília Brennand resolveram ajuntar-lhes outros, marcados por um preto-e-branco que mantém a pintura adstrita à sua essência e origem, o desenho. Acho, mas não tenho certeza, que foi Ingres quem afirmou, um dia, que, no caso da pintura, o nó da questão era o desenho que, uma vez resolvido, bastava receber a cor (que ele, por si só, já indicava) para que o quadro se realizasse. Mas, diante das obras agora expostas, outra lembrança que me vem imediatamente ao espírito é

a da nossa extraordinária xilogravura nordestina, que conta com artistas do porte de José Costa Leite e J. Borges. De modo que não acredito estar cometendo nenhum exagero – causado pelo afeto e que viesse aumentar e deformar a admiração que tenho por ele – ao dizer que a pintura iluminada de Manuel Dantas Suassuna é hoje, entre outras coisas, uma espécie de ponte de ligação entre as obras dos dois maiores artistas brasileiros que conheço – Gilvan Samico e Francisco Brennand.

Série de quadros, em técnica mista sobre papel

Ariano Suassuna é escritor

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REGISTRO

Arte insurrecta

Dono de uma obra densa e consagrada porĂŠm insurgida, o desenhista Rodolfo Mesquita permanece desconhecido do pĂşblico Luiz Ernesto Mellet

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O ateliê do artista. No detalhe, Rodolfo Mesquita

ainda arborizada Quarenta e Oito, rua encraA vada no coração do Espinheiro, bairro do Recife,

FOTO: ELPÍDIO SUASSUNA

acabrunhada casa espremida entre espigões da

serve de residência e ateliê do desenhista pernambucano Rodolfo Mesquita. Três das cinco décadas vividas, ele passou debruçado sobre a prancheta onde, todas as manhãs, desafia a superfície branca do papel na construção de uma obra de intrigante linguagem gráfica, com mais de cem premiações conquistadas e que, apesar disso, continua completamente desconhecida do público. O isolamento no qual se vê imerso talvez se explique pela prolongada ausência do desenhista no

circuito das artes, desde que expôs pela última vez, em 1989. Soma-se a isso o peculiaríssimo estilo de complexo discernimento em que exibe o nonsense do cotidiano. Em seu trabalho, Mesquita reproduz fragmentos da realidade através da compilação de flagrantes, abordando uma teia de aspectos, sobretudo os mais escabrosos, que a maioria das pessoas finge não perceber, mas que estão em qualquer esquina e que se revelam a quem tenha a coragem de descer o vidro do carro e lançar um olhar em torno com devida atenção. As paredes e o chão da casa em que mora estão repletos desses desenhos que não são do tipo que Continente Multicultural 49


Acima, Sem Título, 2002, 38 x 55cm. Desenho em cor, técnica mista (nanquim e acrílica) Abaixo, Sem Título, Sem data. 35 x 46cm. Desenho em técnica mista (nanquim e acrílica)

qualquer um pendure na sala impunemente. Isso porque seus trabalhos exigem leitura aprumada e necessitam de algum repertório para que possam ser traduzidos. “O desenho de Rodolfo Mesquita é o trabalho que mais me emociona de toda a produção gráfica do Brasil. O grotesco de seu desenho não bebe o veneno da cólera, daí que seu olho seja mais terrível ao discernir com frieza os paralelismos entre o mundo real e suas alegorias autogeradas”, definiu o pintor João Câmara. A obra de Mesquita começou a ganhar projeção durante os anos 70, período mais profícuo da sua produção, quando a influência da pop art e a sátira política – representada na figura de sisudos generais – eram elementos constantes nos trabalhos. Essas características chamaram a atenção dos editores das publicações ditas de esquerda do país, que viram, equivocadamente, certo engajamento ideológico contido nos desenhos. Mesquita fez, então, algumas ilustrações para IstoÉ, Pasquim e até para a edição nacional de estréia da revista Rolling Stones. Ao mesmo tempo, freqüentava com assiduidade os salões e bienais, tendo sido selecionado em todos de que participou. Em 1976, o diretor do Museu de Arte de São Paulo, Pietro Maria Bardi, se empenhou pessoalmente na exposição do artista, quando o volume de desenhos intitulados Crítica do Horror Puro mereceu elogios da crítica especializada. Nesse ano, ele ganharia também uma viagem como prêmio e seguiria para a França, onde perambulou por dois anos por lá. Embora aparentemente nada de substancial tenha acrescido à sua obra, o período em que viveu na Europa serviu para acentuar ainda mais a sua veia circunspecta. Uma espécie de exílio estranhamente começaria a ganhar contornos após o retorno do desenhista ao Brasil. As premiações continuaram vindo, ao passo

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que as exposições se tornavam escassas. Certo dia, ao ver jogados num canto da casa medalhas, diplomas e certificados, achou que não deveria mais participar de salões e resolveu dar fim ao entulho. Uma dessas distinções, revestida num luxuoso estojo de veludo vermelho, foi parar nas mãos da dona de uma barraca na feira da Encruzilhada. “Ela ficou decepcionada ao abrir aquele troço bonito e encontrar, em vez de uma


FOTO: REPRODUÇÃO

jóia ou algo assim, uma placa de bronze gravada não sei o que sobre mim”, lembra. “Isso serviu para me mostrar que este tipo de coisa pouca ou nenhuma contribuição trouxe ao meu trabalho”. A partir daí, o desenhista se recolheu em casa na companhia de um rotteweiler. Com o passar do tempo, o jeito arredio e alheio às badalações que contaminam a atmosfera das vernissagens colaborou para distanciá-lo ainda mais do mundo artístico. Mesmo assim, consegue enxergar alguma vantagem na situação: “O lado positivo em não vender, ou me-

lhor, o único dele, é o de poder colecionar muitos trabalhos. A qualquer momento posso me reportar a um antigo e fazer um cover dele”, diz. A coleção de Mesquita reúne desenhos de várias fases, num experimento gráfico que sugere um ambiente impregnado de hiper-realismo. São esquemas técnicos, explicativos, bulas de objetos montáveis, planos de máquinas, plantas cartográficas, mecanismos gigantes e sinistros mal projetados, desenhos usados na propaganda e, sobretudo, figuras de gente, viva ou morta, que arrastam seus corpos pelas ruas. Traços, pontos e, até mesmo, impertinentes citações que produzem o efeito de um soco seco no estômago. Não se pode afirmar, contudo, que o trabalho de Mesquita reflita algum tipo de engajamento, mas também não se pode abrir mão disso, uma vez que seu estilo gráfico está intimamente identificado com a crítica social e segue a linha semelhante à encontrada na arte dessacralizadora e insubordinada de Marcel Duchamp e George Grosz. A originalidade contida na obra dele reside nos desenhos que parecem confabular uma história feita de factóides, espécie de simulacro da realidade que tenta é denunciar a sordidez dos excluídos e a estupidez daqueles que são os responsáveis maiores por esta exclusão. Exclusão que vitima também o próprio artista. Depois de anos, Mesquita decidiu voltar a participar dos salões. Recentemente, arrebatou o primeiro prêmio da Bienal de Desenho, promovida pelo Espaço Cultural da Paraíba. Talvez isso ajude a galvanizar o conhecimento do público a respeito do trabalho deste genial desenhista e sirva para libertá-lo da inconcebível proscrição em que se encontra. Porém, o mais provável é que – como nas vezes anteriores – este prêmio não signifique nada.

Acima, O Carnaval de Hamlet, Sem data. 38 x 55cm. Desenho em cor, técnica mista (nanquim e acrílica) Abaixo, Sem Título, 2002, 38 x 55cm. Desenho em cor, técnica mista (nanquim e acrílica)

Luiz Ernesto Mellet é jornalista

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ARTE POPULAR

Seu Nino, o encantado Nino criava animais da mitologia cariri: pássaros, onças, macacos, elefantes, um bestiário fantástico. Pura poesia visual Gilmar de Carvalho

E

ra uma vez, Nino. Do tempo em que os bichos falavam e faziam festas no céu. Ouviu tantas histórias de macacos sabidos, homens caçadores, e mulheres trabalhadeiras, que resolveu dar forma a tudo isso nos troncos de umburana. Cada peça era uma narrativa. Ele inventava os diálogos, explicava as situações e embarcava na magia do trancoso. Um mundo fechado, ao qual tínhamos acesso pelas frestas ou pelo caleidoscópio dos relatos míticos. Assim, Nino, nascido João Cosmo Félix, só Deus sabe quando (nem ele mesmo sabia, e os documentos de identidade tratavam de nos confundir ainda mais), foi compondo sua obra seminal e bruta, em sua delicadeza de grandes golpes e pequenos gestos. Troncos que mesclavam homens, bichos, árvores e frutos, como no grotesco da história da arte. Esculpidos por meio de formões, goivas, enxós. Animais da mitologia cariri, cujos ecos ele refletia e amplificava: pássaros (papagaios), onças, macacos (seus preferidos), um bestiário fantástico que incluía elefantes e tudo o que sua

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FOTOS: JARBAS OLIVEIRA

Nino e uma de suas criações


Figuras de um grupo musical criadas por Nino

imaginação ousava criar. Pura poesia visual. E a certeza do novo, de não se repetir nunca, ou de não diluir sua obra. Mesmo quando retomava um tema, seu olhar era outro, e cada peça era única, tinha aura. E foi se construindo o universo de Nino. Que começou juntando nós de madeira nas serrarias e cortando brinquedos que vendia nas portas das casas e na feira do Crato. Vieram os dezessete macaquinhos articulados, raridades de colecionadores. E peças de maiores formatos, como brinquedos grandes de um universo de sonhos. Onde pontificava, hierático, o Mateus do reisado. Personagem que não tem idade nem pátria, dionísiaco e sagaz. Nino tinha o domínio do espaço e uma noção de tridimensionalidade que o colocavam ao lado dos grandes escultores brasileiros. E não vale falar em extração popular: é ranço elitista. Nino era escultor de verdade. Desbastando toras de madeira, encontrava nelas o que considerava o mistério. Cada tronco tinha sua alma. Econômico, trabalhava com os elementos essenciais. Desenvolveu uma sintaxe só dele. Que passava pela assimetria, pelas cores fortes e pelo talhe inconfundível. E que podia até causar estranhamento. Consta que teria aprendido a desenhar seu nome, analfabeto que era, com outro mestre: Stênio Diniz. E os traços formavam Nino, marca que define a arte, em oposição ao artesanato. Essa marca o inseria no contexto dos autores, superando o anonimato de uma fase em que prevalecia o utilitário, ainda que lúdico.

Foi disputado por galerias do Rio, São Paulo e Nova Iorque. Vendia bem e por um preço de mercado, sempre tinha encomendas, mas vivia na miséria, em meio a gatos amarrados, cheiro forte de comida azeda e muito lixo. Em contrapartida, a casa da rua General Sampaio, 138, bairro do Pirajá, tinha um dos mais belos altares votivos da cidade. Com a segunda mulher, Perpétua, também escultora, travava uma permanente guerra conjugal, que passava pela disputa dos clientes. Calado, de fala mansa, se refugiava em seu trabalho. Era um xamã de antigos rituais, nos dando, por instantes, a ilusão de que este mundo poderia ser melhor. Nos últimos tempos, foi vítima de um câncer de pulmão, sua causa mortis, e de sua própria fragilidade e ambição. Uns vizinhos, que desbastavam os troncos, passaram a imitar suas peças, que ele e Perpétua compravam para assinar e vender. Mas isso não compromete sua imagem ou reduz sua importância no mundo das artes. Pode-se até pensar nos mestres das corporações, com seus aprendizes, mas, agora, infelizmente, tudo se apaziguará. Morreu dia 26 de agosto, em sua Juazeiro do Norte. Com ele se vai mais um grande mestre do povo. Foi fazer companhia a Leandro Gomes de Barros, Vitalino, Noza, Luiz Gonzaga, Ciça do Barro Cru, Mestre Dezinho, Cego Oliveira, Patativa do Assaré. Já é personagem de xilogravura e do cordel. Senhor rei mandou dizer que contasse mais quatro... Gilmar de Carvalho é professor da Universidade Federal do Ceará

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FERREIRA GULLAR

Nem toda vanguarda aponta para o futuro A revolução industrial provocou um choque entre as potencialidades do novo modo de produção em série e o procedimento artesanal. E nada conseguiu deter o curso modernizador da tecnologia, que se refletiu sobre o pensamento e as atividades dos artistas

N

o artigo anterior falei das relações entre a crise do artesanato na idade industrial e os rumos tomados pela arte no século 30. Esta reflexão levou-me a ampliar as indagações em torno deste problema, na intenção de melhor entender o que ocorre hoje com a expressão artística. No curso das referidas indagações, deixei temporariamente de lado o ready-made de Duchamp e suas conseqüências atuais, para examinar um outro aspecto da questão: e no Brasil, como se manifestou a crise do artesanato na arte? Revi a experiência concretista dos anos 50 e o seu desdobramento na arte neoconcreta e verifiquei com surpresa que, com esta, se se chega a uma rejeição mais radical do artesanato pictórico, ou seja, à negação da pintura, tampouco se avança na direção de uma arte efetivamente contemporânea da nova tecnologia. Lembrei-me dos Bólides de Oiticica, expostos recentemente no Paço Imperial, no Rio, cuja rusticidade artesanal chamou-me a atenção, e vi que era necessário repensar as relações do neoconcretismo com a crise do artesanato, ou seja, “lê-lo” sob esta outra visão. Para não me alongar muito, resumo: quando Malevitch, em 1917, pinta o quadro Branco sobre branco, ele chega ao limite da pintura, pois um passo adiante seria voltar à tela em branco, sem pintura. Pintar é criar na tela um espaço simbólico, representativo ou expressivo, diferente do espaço real. Se se elimina este espaço fictício, simbólico, a tela volta a ser um mero espaço vazio, que em nada difere de uma parede ou uma porta. Ora, a ação do pintor com seu pincel é uma ação simbolizante, ou seja, criadora de expressão (a

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pintura); se ele desiste da pintura, ou deixa a tela em branco e vai cuidar da vida, ou se insiste em expressarse, só lhe resta agir sobre a tela de modo “real”, como fez Lygia Clark, cortando-a, remontando-a, estufando-a e finalmente transformando-a numa escultura manuseável, o Bicho. Noutras palavras, ela abandona o artesanato pictórico mas o substitui por outro, o do marceneiro e do funileiro. Sua arte continua artesanal, como também a de Oiticica, não só nos já referidos Bólides como também nos Contra-relevos. E que passo adiante deram Lygia e Oiticica? Por caminhos diferentes, ambos recuaram para experiências pré-artesanais, anteriores a qualquer formulação: ou seja, limitaram-se a provocar no espectadorparticipante simples sensações. Como se vê, ambos descreveram um curso regressivo, que veio de uma linguagem artística constituída (a pintura) até uma espécie de pré-linguagem. Este recuo no plano da expressão significa, ao mesmo tempo, uma negação da atualidade cultural e da modernidade social. Equivale, noutro plano, à atitude dos expressionistas alemães, que negaram o progresso técnico e retornaram ao artesanato rude da xilogravura. Ou seja, Lygia e Hélio não negaram o artesanato para aderir às novas técnicas; na verdade recuaram a um idade pré-artesanal. Feita esta constatação, voltemos a Marcel Duchamp e à arte conceitual para examiná-los à luz deste novo enfoque. São expressões da modernidade, como costumam afirmar os críticos, ou, também, uma negação dela? Vejamos. No artigo anterior, tentei demonstrar como os papiers collés cubistas são o início de uma negação do


artesanato pictórico que encontra sua expressão plena no ready-made duchampiano. Agora, porém, percebo o outro lado da questão: a ambigüidade do ready-made, que, ao mesmo tempo que nega o artesanato pictórico, tenta ridicularizar a insistência nele, isto é, os pintores, que não perceberam ainda que “a arte acabou”. Para Duchamp, de fato, não poderia existir arte sem artesanato. E tanto isto é verdade que ele próprio, paralelamente aos ready-made, realizou suas duas obras

bigüidade de Duchamp em face da morte do artesanato: se ao produzir “obras de arte” em série (a edição original era de 20 cópias numeradas e assinadas pelo autor) desfazia o mito da obra original e única, ao produzi-las artesanalmente reafirmava, contraditoriamente, o trabalho artesanal. Talvez esteja aí o elemento central do “caso” duchampiano que, sabemos, não se rende a uma única interpretação. Mas dentro deste enfoque, cabe inter-

FOTO: REPRODUÇÃO

Bicho com Dobradiça, 1963. Lygia Clark

fundamentais (Grande Vidro e Étand Donnés), que são criações essencialmente artesanais, embora lançando mão de materiais outros que os usados na pintura tradicional. Glorie Moure, em seu estudo sobre Marcel Duchamp, refere-se ao enorme esforço que significou para ele a realização do Grande Vidro (cujo nome verdadeiro é La mariée mis à nu par ses célibataires, même). O uso do vidro em lugar da tela deve ser visto como uma tentativa de afastar-se da “falecida” pintura e do artesanato pictórico, uma vez que aquela opção implicaria inevitavelmente a utilização de outros materiais e outras técnicas, mas ao mesmo tempo um esforço para manter-se artesão. Que outra interpretação se poderia dar, igualmente, a suas “maletas”, onde pôs as miniaturas de suas obras? De novo aqui está à mostra a am-

pretar a obra de Duchamp como a resultante da crise da expressão artesanal e ao mesmo tempo como reação sarcástica mas inconformada com o impasse a que chegara. O que há de novo nesta interpretação é que ela mostra que a obra de Duchamp, se efetivamente rompe com o passado, não aponta para o futuro e, como a maioria das expressões de vanguarda, expressa um impasse. Diante dele, ou o artista recria a pintura e a reinsere na vida contemporânea, ou busca expressarse através das novas técnicas, inclusive as derivadas da fotografia: o cinema, o vídeo, etc. A verdade, porém, é que estas são outras linguagens, com novas possibilidades de expressão, mas que não podem expressar o que a pintura, a gravura, o desenho e a escultura expressam. Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

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FILOSOFIA

“Intelectual pensa que o saber é sua propriedade”

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professor Roberto Romano é um crítico ferrenho da falta de crítica que grassa nas universidades brasileiras. Para o filósofo da Unicamp, autor de livros como Conservadorismo Romântico – Origem do Totalitarismo (Unesp) e O Caldeirão de Medéia (Perspectiva), o medo de avanços científicos como a clonagem decorre de uma desconfiança natural do conhecimento técnico, mas também da ausência de criticismo no ensino contemporâneo, no mais puro sentido kantiano e iluminista. Por falar em Iluminismo, Roberto Romano lamenta uma lacuna histórica no Brasil: “Não vivemos a cultura das Luzes”, diz ele. Segundo o professor, a mídia e as universidades brasileiras são instituições contrarevolucionárias: favorecem o saber elitista, não o saber democrático. Fábio Lucas

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A educação não deveria atuar muito mais em nossos dias? A reação à clonagem, por parte de setores esclarecidos da sociedade, da mídia e da população em geral, dá a impressão de que estamos em plena Idade Média. Vivemos em uma época obscurantista? Todas as idades do ser humano têm a mesma distribuição de medo, esperança e desconfiança do trabalho técnico, que pretende ao mesmo tempo evocar o novo e reiterar o habitual. O ato técnico retoma algo que já existe, e por isso é possível inventar. Não existe invenção sem empréstimo anterior, não existe empréstimo sem invenção. Então como dizer que há invenção de fato? Este círculo aparente foi bem descrito por André Leroi-Gourhan, um grande etnólogo que estudou as origens do fenômeno técnico. Diz ele que nunca podemos encontrar um só instrumento, que incorpore

FOTOS: MARCO ANKOSQUI / FOLHA IMAGEM ; SÉRGIO LIMA / FOLHA IMAGEM

Professor e filósofo da Unicamp Roberto Romano


Para Roberto Romano, apesar do erro no ensino crítico, a educação formal jamais será superada

procedimentos e métodos, absolutamente original. Em nossa época, tanto o empréstimo, a circulação universal das técnicas, quanto a invenção unem-se estreitamente. Como o obscurantismo se inscreve neste cenário? Pessoas obscurantistas apegam-se ao “conhecido”, ao estabelecido, e tendem a recusar o novo, por desconfiança ou medo. Existem também indivíduos imprudentes que desejam o novo, sem passar pelo aprendizado do que já existe. Alguns prendem-se, deste modo, ao passado, outros se apegam a um presente sem solidez. As três faces do tempo são fundamentais. Simultaneamente, quando pensamos e agimos, é preciso levar em conta o presente, o pretérito, o devir. Isto, no Renascimento, chamou-se “prudência”, que foi desenhada numa figura de rosto tríplice, um jovem, um homem amadurecido, um velho. A dualidade produz conflito e empurra o avanço, ou o emperra. Não há como fugir dela? A dualidade existiu sempre, e vai sempre existir. Pois a natureza é infinita, e nós somos finitos. Não sabemos se a nossa espécie é infinita... Acho que não. E a certeza da mortalidade da espécie é algo que nos apresenta muita urgência. Temos receio de que um novo conhecimento técnico, em vez de ampliar nossa vida, a diminua. Daí vêm as críticas à civilização urbana: será que conseguimos viver mais tempo? Que tipo

de qualidade de vida nós temos nas grandes cidades? Há o saudosismo do campo, da vida sem barulho, etc. O imaginário é preenchido por representações regressivas, as quais não ajudam a melhorar o presente, apenas levantam nuvens cinzas de pessimismo social, o que não raro termina em conservadorismo político. O conservadorismo serve de escudo contra o desconhecido, ou simplesmente contra a mudança. Com tal postura defensiva, como conseguimos avançar? Os herdeiros de Rousseau têm um espólio duplo de idéias. Em primeiro lugar, a democracia e a igualdade. Mas em segundo, uma obscurantista militância contra as ciências, as técnicas, as artes, e a nostalgia de uma natureza virginal que só existe nas mentes românticas conservadoras. Ou seja, o que eles afirmam de um lado, a democracia, negam de outro, no campo efetivo da política. As questões da ciência e das artes, da política e dos valores, são todas sérias, qualquer que seja a resposta que recebam, mas elas não têm resposta única e simples. O fato é que hoje, apesar de todos os avanços científicos e técnicos, grandes massas desconhecem as bases do saber e estão alijadas do exercício artístico. Não teria medo de usar um termo gasto para descrever este traço de profunda desigualdade na distribuição dos conhecimentos: alienação. E quanto mais desinformação, maior a reação à mudança? Continente Multicultural 57


É preciso conhecer muito bem o campo científico que está sendo discutido, o âmbito social e o setor religioso. Se você os ignora, não sabe bem quem está falando, quem está com medo ou quem está vivendo a esperança. Um teólogo dedicado ao estudo da ética no campo da pesquisa biológica deve ter, obrigatoriamente, uma formação rigorosa em biologia de ponta.

E qual o outro lado? O outro, o seu oposto, é a concepção apenas conteudística do saber, como acúmulo erudito de fórmulas, de citações, de procedimentos “consagrados”. Francis Bacon, o pai da ciência experimental, repete uma anedota sobre o pedante que se insurgia contra o uso livre da cultura latina, e se dedicava ao culto quase religioso de Cícero, copiando servilmente o orador romano. Levei dez anos estudando Cícero!”, dizia o pedante em bom latim. “Asno”, repetia o seu crítico, em irreverente grego. Ou seja: os modelos devem ser seguidos, mas eles não são únicos, e devem ser encarados apenas como paradigmas, não como motivo de cópia servil. O pedantismo é uma praga para o saber? Sim. Quantos pedantes existem no mundo intelectual, como os que “seguem” servilmente este ou aquele teórico! Existem muitos “ismos”, “istas” e 58 Continente Multicultural

“anos” no mundo acadêmico. Esta é uma força que paralisa o pensamento nos campi. O pedante, segundo os seus críticos renascentistas, lia todos os livros, em muitas línguas, mas não entendia nenhum deles. Kant assim define o indivíduo que sabe de cor tudo o que se escreveu sobre um assunto, mas não consegue pensar os conceitos implicados, e não sabe ir do geral ao particular. Se lhe perguntam o que é isto, ou aquilo, diz que “isto é assim segundo...”. Aristóteles ou Platão, ou qualquer outro mestre. “E você, o que pensa do objeto?”. A resposta é o silêncio. Pois bem, este é o idiota, no entender de Immanuel Kant! Qual seria sua configuração atual? Hoje, podemos ter o pedante da Internet: a individualidade que sabe todos os sites, conhece todas as notícias, mas não pensa nenhuma delas. Com a Internet, nunca tanta informação útil foi veiculada no globo terrestre. E nunca tanta informação inútil foi veiculada no globo terrestre. Como separar o joio do trigo numa massa de informações desse porte? O processo de produzir a mente crítica é fundamentalmente o do ensino formal, no primeiro e no segundo graus, e o da Universidade. É preciso formar pessoas que saibam interpretar os dados. Saber o que perguntam, inclusive. Hoje existem sites de busca, como o Projeto Perseus, que realizam em algumas horas aquilo que um pesquisador em Filosofia antiga levava

FOTO: REPRODUÇÃO / AFP

O etnólogo francês André Leroi-Gourham

Jamais houve tanta informação e tanta liberdade formal no mundo. Mesmo assim, a defasagem educacional parece alcançar a maioria da população. Será que tanta informação e tanta liberdade não deveriam ter facilitado a educação? O saber não poderia ter ajudado a formar uma sociedade muito melhor do que a nossa? Justamente por isso, o ensino enquanto crítica é mais atual do que nunca. A crítica se exerce sobre determinado saber. Ninguém critica sem conhecer algo do setor estudado. Houve um erro aqui no Brasil, por exemplo, o de se ensinar a crítica sem expor os conteúdos. Você critica aquilo que sabe. Quando Kant escreveu a Crítica da Razão Pura, ele já sabia a física de Newton. A crítica é tentar entender como funciona a produção do conhecimento, no sujeito e nos objetos. A palavra grega que originou a crítica significa escolher, triar, comparar, julgar. Só é possível efetuar estas operações com algum conhecimento, pelo menos parcial. Criticar a partir de um suposto nada de consciência é falta de sentido. Toda consciência é consciência de alguma coisa. Este é um lado do problema.


“Não tivemos entre nós o desenvolvimento daquilo que existiu no século 18. Portugal proibia a circulação de livros, até de piedade, aqui. Não tivemos, portanto, a cultura das Luzes” 30, 50 anos. Mas é necessário que o sujeito saiba o que é Filosofia, que perguntas filosóficas é preciso fazer. O Projeto Perseus sublinha cada palavra de cada texto filosófico ou literário grego. Mas é preciso saber minimamente o que é um caso, um gênero, a semântica dos termos, além dos conceitos filosóficos, dos problemas da tragédia ou da comédia, dos assuntos políticos, dos jurídicos, etc. A figura do mestre ainda é indispensável, na sua opinião? A educação formal não está e não será superada. É balela dizer que se vai superar, através de meios de educação a distância, essa forma de educar face a face. Computadores dentro de uma escola formal ajudam enormemente a tarefa de ensinar – como os livros antigamente ajudavam muito. Mas é preciso que os estudantes saibam interpretar, discutir, analisar e, sobretudo, desconfiar. A universalização do saber crítico ajudaria a resolver o impasse atual do sistema democrático? Essa foi a grande esperança do século 18, o das Luzes, que levou à instauração da democracia francesa e da democracia moderna. Mesmo nos EUA, o sistema resulta dessa longa luta que veio do século 16 e culminou no século 18, em defesa da mais ampla distribuição de saber pela população. Aqui no Brasil, vivemos sob o signo da contra-revolução francesa. Em que momento os brasileiros foram iluministas? Quando se fala dos inconfidentes mineiros, por exemplo, não se menciona que a primeira coisa que os inconfidentes queriam, a partir da leitura de Bacon, de Rousseau, de Diderot, de Condorcet, era produzir uma Universidade aqui. Dentro de um Estado liberal. O que aconteceu? A Insurreição Mineira foi vencida, como todas as insurreições liberais, inclusive em Pernambuco, na ponta da espada dos exércitos de Caxias, com as bênçãos da Igreja e dos positivistas. Não tivemos entre nós o desenvolvimento daquilo que existiu no século 18. Lembre-se de que Portugal proibia a circulação de livros, até de piedade, aqui. Não tivemos, portanto, a cultura das Luzes.

Quais as conseqüências disso para o país? Isso naturalmente se reflete no estilo de distribuição desigual de saberes que temos hoje. A USP, por exemplo, foi fundada para as elites. Nos textos do professor Fernando de Azevedo, dos fundadores da USP, do jornal O Estado de S. Paulo, vemos como todos tinham a idéia de que a USP era uma universidade para a elite – e se possível, que nela não entrasse nenhum negro. Há um livro de Júlio de Mesquita Filho, chamado A crise nacional – reflexões em torno de uma data, de 1929, em que ele lamenta a existência, no Brasil (pode pôr entre aspas, que é uma coisa que vou lembrar até o fim da vida), da “massa impura e formidável de dois milhões de negros, subitamente investidos de prerrogativas constitucionais, fazendo descer o nível da nacionalidade, na mesma proporção da mescla operada”. Fecha aspas. É esse pessoal que criou a USP. Não é de admirar que se encontre, nas universidades brasileiras, a inexistência ponderável do elemento negro, que é o elemento pobre. O que torna a tese iluminista tão ameaçadora? No século 18, em Minas, a Enciclopédia de Diderot era lida pelo povo nas bibliotecas. As bibliotecas foram fechadas e as pessoas, presas. Diderot dizia que nunca será preenchida a separação entre o cientista e o povo, por mais educado que seja esse povo. Por quê? Porque o cientista está sempre na ponta dos saberes. Mas é preciso diminuir ao máximo tal distância, e esse é o alvo da educação pública. Por que o óbvio demora tanto a ser visto? Porque intelectual é um bicho muito estranho. Os intelectuais universitários, sobretudo, têm pouca responsabilidade social. Alexandre Kojève, descrevendo a “comunidade” acadêmica a partir de Hegel, diz que o mundo intelectual é o dos “ladrões roubados”. Cada um, a partir do acúmulo de saberes, apropriados como se fossem descoberta pessoal, produz conceitos, fórmulas, técnicas, que julga sua propriedade. Mas se todos agem assim, todos imaginam que seu saber é propriedade privada.

Fábio Lucas é jornalista

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COMPORTAMENTO

O cartão-postal como expressão de uma época

O livro Postaes do Brazil: 1893-1930, de Pedro Karp Vasquez, faz um mapeamento do cartãopostal no país e também um resumo de sua trajetória internacional, desde seus primórdios, passando por sua melhor fase, até seu ocaso

Marco Polo

FOTOS: REPRODUÇÃO

Bulevar Vila Isabel, Rio de Janeiro, postado a 19 de agosto de 1913


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vô do nosso atual e-mail, o cartão-postal deixou de ser um “veículo ideal para mensagens breves e objetivas”, no seu auge, e passou a ser um item de desejo dos colecionadores, após sua decadência, ganhando status de documento e arte: graças a ele podemos reconstituir como eram as vestimentas das pessoas, a arquitetura das casas, a organização do tráfego e da estrutura urbana, bem como o desenho das paisagens nos tempos passados, em vários lugares do mundo. Criado na Áustria, por sugestão do professor de economia política Emmanuel Hermann, que publicou o artigo Acerca de um novo meio de correspondência, em 1869, o cartão-postal tem na edição dos brasileiros, datados da década de 1890, raríssimos exemplares precursores no uso da fotografia, já que, até então, os cartões eram ilustrados por gravuras. Estas e outras informações estão no livro Postaes do Brazil: 1893-1930, de Pedro Karp Vasquez, um mapeamento muito bem-feito do cartãopostal no país, e também um bom resumo de sua trajetória internacional, desde seus primórdios, passando por sua melhor fase, até sua decadência. Adotado no império austro-húngaro, só nos três meses iniciais foram vendidos 2.926.102 exemplares, ultrapassando o número de 10 milhões de unidades antes do primeiro ano de existência. Essas quantias astronômicas são explicáveis. Prático, rápido e barato, além de bonito, o cartão substituía o telegrama, bem mais caro, e servia tanto para uma mensagem do front, “Ainda estou vivo”, quanto para um “Chegamos bem”, num caso de viagem; sem falar em mensagens natalinas, de aniversário, casamento, formatura e juras de amor eterno. O primeiro postal reproduzido por Paulo Berger no livro O Rio de Ontem no Cartão-Postal, 1900-1930 traz um recado sucinto que estimula a imaginação: “Odílio:/ Se eu não estiver às 7 horas não me espere para jantar./ Amanda”. O que talvez explique a precocidade do uso da fotografia no cartão-postal brasileiro seja o fenômeno oitocentista da venda avulsa de vistas fotográficas urbanas, marcadamente no Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belém e São Paulo, e, com menor freqüência, em Porto Alegre e Ouro Preto. Nossos primeiros cartões nacionais eram chamados de “bilhetes-postais” e começaram a circular em 1880. Havia dois tipos, o azul, para correspondência entre as províncias do império, e o laranja, para a internacional. Dois anos depois surgia o vermelho, para uso dentro da mesma cidade. Em

1872 apareceu o cartão duplo, com linha pontilhada entre os dois, uma parte usada pelo emissor e a segunda para a resposta. Em 1899, como no resto do mundo, por força do boom da cartofilia, as autoridades tiveram de abrir mão do monopólio estatal na produção dos cartões. Os primeiros cartões-postais a circular no Brasil eram de origem estrangeira. Vale ressaltar o pioneirismo de Albert Aust, de Hamburgo, Alemanha, que lançou a série Sud Amerika, com reproduções de “clichês” fotográficos de Recife, Salvador, Paraná, Pará e Rio de Janeiro. As legendas eram em português (algumas com tropeços gramaticais), o que mostra a intenção original de comercializá-los no Brasil. Em São Paulo, antes mesmo da quebra do monopólio estatal, surgiram edições privadas de cartões-postais. Foi em 27 de agosto de 1897, quando veio a público a primeira série, com 27 cartões litografados e multicoloridos, editados pelo Estabelecimento Gráfico V. Steidel & Cia. Em 22 de março do mesmo ano, entretanto, ainda na capital paulista, já tinha acontecido uma homenagem ao kaiser Guilherme I, pelos imigrantes alemães, com a edição de um cartão-postal com litografia monocromática de J. Bischoff. Mas pioneiro mesmo foi o Rio Grande do Sul, que havia publicado, no ano anterior, a primeira série de cartões-postais ilustrados. Desta forma, em 1899, mesmo ano em que foram beneficiados pela licença governamental, os cartões-postais ilustrados de tiragem particular já alcançavam no Brasil a

Capa do livro Postaes do Brazil: 1893-1930, de Pedro Karp Vasquez

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Ponte Buarque de Macedo, Recife, postado a 28 de novembro de 1906

cifra de aproximadamente 200 tipos diferentes. E na sua época de ouro, a produção de cartões chegou, literalmente, ao delírio. Além dos cartões com paisagens, comemorativos, jornalísticos ou publicitários, surgiram cartões musicais em 78 rotações, cartões que miavam ou mugiam, cartões calidoscópicos ou tridimensionais, com lingüetas, com efeitos só visíveis contra a luz, purpurinados, ornados com cabelos humanos, pêlos de animais ou penas, cartões em couro, tecido e alumínio, cartões panorâmicos (desdobráveis em duas ou três partes), cartões em mosaico ou quebra-

cabeças, que formavam uma grande imagem numa série de cartões combinados entre si, e assim por adiante. A decadência dos cartões postais, entretanto, começou a acontecer durante a Primeira Guerra Mundial. Um clima de embaraço e seriedade tomou conta das populações, após um combate assustadoramente sangrento e que durou muito mais tempo do que se esperava. Apesar da alienação dos jovens dos anos 20, os chamados “anos loucos”, de farras e orgias regadas a drogas e álcool, a vida tinha perdido a graça na Europa. E com o advento do crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, a crise mundial foi em crescendo até que chegou ao ápice com o início da Segunda Grande Guerra, exatamente dez anos depois. Não havia mais lugar para frivolidades, e o cartão-postal foi considerado uma delas. Agora, só lhe restava tornar-se cult. Postaes do Brazil: 1893-11930, de Pedro Karp Vasquez. Metalivros, 242 páginas, R$ 69,00.

FOTOS: REPRODUÇÃO

Primeiro cartãopostal da história: o Correspondez-Karte austríaco de 1869

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O cotidiano de ontem

Fotógrafos do final do século 19 e início do 20 contarão um pouco sobre os hábitos e lugares daquela época no livro Recife Cartão-Postal, ilustrado com o acervo de mais de 1.300 postais de Edilberto Sousa Tatiana Resende

S

enhoritas em uma loja de modas, um vendedor de águas, crianças brincando à beira do Rio Beberibe. Imagens corriqueiras imortalizadas pelas lentes de fotógrafos do final do século 19 e início do 20 contarão um pouco sobre os hábitos e lugares daquela época no livro Recife Cartão-Postal, ilustrado com o acervo de mais de 1300 postais de Edilberto Sousa. A obra tem o patrocínio da Caixa Econômica Federal (CEF) e deve ser publicada ainda este ano. Olhando os postais, é possível ter uma idéia do cotidiano da cidade décadas atrás. A nata da sociedade, por exemplo, encontrava-se na famosa Casa de Banhos, uma edificação de madeira, onde funcionavam um bar e um restaurante, e que ficava nos arrecifes nas proximidades da antiga Ponte Giratória. A diversão era tomar banho salgado numa piscina natural existente nos arrecifes, que foi aperfeiçoada pelo construtor da Casa de Banhos para a segurança dos banhistas. Em outro postal, somos transportados para 1904, quando o Cais do Apolo ainda recebia embarcações. Ou para o Porto do Recife, que tinha um calado (profundidade) tão baixo que os navios não podiam

atracar. Por isso, as pessoas e mercadorias chegavam ao solo trazidas em barcos. As pontes são os melhores referenciais, mostrando como a paisagem mudou através dos tempos. Da Ponte da Boa Vista, entre a Rua Nova e a Imperatriz, é possível ver a Praça Joaquim Nabuco ladeada por edificações bem diferentes das que existem hoje em dia. Da Ponte Maurício de Nassau (antiga Sete de Setembro), que liga o Bairro do Recife ao de Santo Antônio, dá para vislumbrar o Arco da Conceição, destruído em 1917. “Comprei muitos postais em feiras de antigüidade e lojas especializadas na Europa, mas só coleciono os que foram feitos até 1930. Depois dessa década, os cartões foram perdendo a qualidade artística”, acredita Edilberto. Em um deles, perto das residências que as

No alto, cartão publicitário da loja E. Brack & Cia, da Rua Barão de Victoria, em Pernambuco

Acima, Casa de Banhos nos Arrecifes, Pernambuco

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Na seqüência: Rua de Santo Antônio, em Garanhuns; Praça Conde D'Eu, no Recife; Feira de Caruaru; Vista de Olinda

famílias abastadas alugavam para passar o verão em locais mais frescos, como Apipucos, estão as casas de banho, gravadas na memória popular com o poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira: “Capibaribe/ Lá longe o sertãozinho de Caxangá/ Banheiros de palha/ Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo/ Ela se riu/ Foi o meu primeiro alumbramento”. Para o livro Postaes do Brazil 1893 – 1930, lançado recentemente, Edilberto cedeu três postais. “Nem são os melhores, porque, na época que o editor me procurou, muitos estavam emprestados para algumas pesquisas de resgate cultural, para as quais faço questão de ceder material sem cobrar nada”, ressalta. Apesar do vasto acervo, os cartões-postais de Edilberto Sousa só foram mostrados em exposição duas vezes, uma das quais com a apresentação de Gilberto Freyre. “Os mais valiosos são os que mostram costumes e monumentos que não existem mais, como o que retrata a Igreja Ingleza, que deu lugar ao prédio do Cinema São Luiz, e o Jardim Senado, onde agora existe a Secretaria da Fazenda e o Palácio da Justiça”, conta.

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Outra viagem no tempo pode ser feita observando como mudaram as vias do centro da cidade, a exemplo da Rua do Sol, do Imperador (antiga 15 de Novembro), Imperatriz (Floriano Peixoto) e Nova (Barão da Victoria). No postal da Praça da, a letra “O” no final da segunda palavra em vez do “A” tem uma explicação: os postais eram editados na Europa, por isso, os erros de português eram corriqueiros. Inicialmente, foram confeccionados 300 exemplares do livro Recife Cartão-Postal, mas como a edição não atendeu às expectativas da CEF, foi suspensa e está sendo refeita. Os textos ficaram a cargo do arquiteto José Luiz da Mota Menezes, e a programação visual é do artista plástico Jobson Figueiredo. A também arquiteta Sylvia Pontual, que fez uma vasta pesquisa histórica para escrever as legendas, conta que está sendo negociado um termo aditivo aos R$ 120 mil do orçamento do projeto para que sejam feitas mais mil cópias do livro, com capa dura e as modificações sugeridas pela empresa patrocinadora. Tatiana Resende é jornalista

FOTOS: REPRODUÇÃO

Rua 15 de Novembro, no Recife


A série Imagens do Recife, de Ana Farache, lançada em 1996 como brinde da Prefeitura, fez tanto sucesso que virou exposição, e mais de dez mil coleções foram comercializadas em livrarias

Uma técnica nostálgica D

izem que os moradores de um lugar são os que dão menos valor às suas belezas históricas e naturais. Quem vive no Recife tem essa certeza ao ver os cartões-postais de Ana Farache, fotografados em preto e branco e pintados à mão com aquarela. Retratadas com sensibilidade, paisagens prosaicas do dia-adia da cidade, como a Rua da Aurora, o Pátio de São Pedro, o Cais José Estelita e as pontes Velha e da Boa Vista, tomam dimensões artísticas e revelam o que o olhar apressado do cotidiano já se acostumou a deixar de apreciar. A série com doze cartões-postais intitulada Imagens do Recife foi lançada em 1996 como brinde natalino da Prefeitura do Recife para os jornalistas pernambucanos, mas fez tanto sucesso que virou exposição, e mais de dez mil coleções foram comercializadas em livrarias. “Sempre fui apaixonada pelos cartões do início do século e por álbuns de família retocados à mão. A técnica é uma tradição fotográfica do século 19”, comenta Ana. A idéia da série surgiu quando a fotógrafa acompanhava as obras de restauração do Bairro do Recife, o mais antigo da cidade, e que acabou se transformando em um dos principais pontos turísticos depois de recuperado. Com um certo tom nostálgico, Ana retratou a Rua do Bom Jesus, o Marco Zero e a Praça Rio Branco, que já não existe mais, pois perdeu as árvores e os banquinhos de madeira para dar lugar a um imenso pátio onde são realizados regularmente shows e eventos populares.

Ana revela que o maior tempo não foi gasto na pintura dos cartões, mas na revelação dos negativos da forma que desejava. “O postal que mais passei tempo colorindo foi o do vitral do Mercado de São José, no qual me esmerei muito para conseguir o tom certo”, conta. Seu primeiro contato com o processo de aplicação de cor em foto monocromática, aliás, se deu justamente naquele mercado por meio de um fotógrafo lambe-lambe, que usava anilina de bolo para pintar os retratos. Dar cursos sobre a técnica de colorir com aquarela e reeditar a série de Imagens do Recife são alguns dos planos para o futuro. Porém, o que mais anima Ana Farache é fazer um livro com paisagens de Pernambuco, que poderiam também virar postais. O processo seria o mesmo: fotografar em preto e branco, revelar, ampliar, colocar em tons de sépia para suavizar a imagem e, finalmente, colorir com tinta aquarela líquida bem diluída. “Não seria um projeto caro, principalmente porque já tenho muitas das fotos que usaria. As maiores despesas seriam com a gráfica, pois qualquer distração nas cores compromete o resultado final”, explica. Quanto à colorização por computador, bastante difundida atualmente, Ana diz que não tem nada contra, mas prefere o método mais artesanal. “Meus amigos nem me reconhecem quando estou pintando. Sou muito agitada no dia-a-dia, mas, quando estou com as minhas tintas, me tranqüilizo, me transporto.” (TR)

Rua da Aurora, no Recife, 1996

Pátio de São Pedro, no Recife, 1996

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SABORES PERNAMBUCANOS

Goiaba é planta nativa da América Central. O colonizador português não a conhecia, mas logo a incorporou ao seu cardápio. Depois os navegantes a levaram para colônias africanas e asiáticas. E ela se espalhou por todas as regiões tropicais do globo

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Cheiro de goiaba ...o cheiro das goiabas, arrumadas numa cuia, saturava por completo o ar. Gabriel García Márquez O General em seu Labirinto

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FOTO: LUDMILA ABREU

velho general venezuelano Simón Bolívar voltou a Mompox. Depois de toda uma vida cumprindo a promessa que fez, em Roma, de combater os espanhóis. Voltou para se despedir. A cidade estava em ruínas. Ele também. Foi descansar no colégio de São Pedro Apóstolo, “sobrado com um claustro monástico de samambaias e cravinas, que tinha nos fundos um pomar luminoso”. No quarto, pediu que “a janela ficasse do lado dos pés, e não da cabeceira, para que pudesse ver nas árvores as goiabas amarelas”. Fim da tarde, “cedeu à tentação de apanhar uma das muitas goiabas. Embriagou-se um momento com o cheiro, deu-lhe uma mordida ávida, mastigou a polpa com um deleite infantil, saboreou-a por todos os lados e a engoliu pouco a pouco com um longo suspiro da memória”. Assim descreveu Gabriel García Márquez os últimos dias do “Libertador das Américas”. Referindo seu amor a essa fruta que tem, para o escritor, cheiro e sabor de passado. Saudades de um tempo que não volta mais. Talvez venha daí o título de outro livro seu, Cheiro de Goiaba, que fala da terra onde nasceu, dos amigos de infância, de sua obra. Além do coronel Márquez e dona Tranquilina, seus avós, da boca de quem ouviu quase tudo que escreveu. Goiaba é planta nativa da América tropical – sul da América Central, norte da América do Sul. O colonizador português não a conhecia. Mas logo a incor-

porou ao seu cardápio. Foi como amor à primeira vista. Engraçado é que nossos índios, até essa época da colonização, não faziam distinção entre goiaba e araçá. Por (alguma) semelhança na árvore e na fruta. Daí os chamarem, indistintamente, de araçaíba, araçá-guaçu ou, apenas, cayhab (em tupi, fruta com muitas sementes). A fruta ganhou, em cada região das Américas, um nome indígena diferente – xaixocotl (México), shuinto (Peru), guava ou guayaba (Antilhas). A árvore, quase um arbusto, se adapta bem a todos os tipos de solo. Não é frondosa e raramente atinge os 6 metros. A fruta varia, no gosto, a partir de como se consome. Ao natural, melhor as inchadas – mais duras e mais gostosas. Fora daí – refresco, suco, sorvete ou doce – recomendam-se as maduras. Por fora, são quase sempre iguais; mas, na cor da polpa, variam muito – do branco ao rosa-escuro, do amarelo ao laranja-avermelhado. Também os animais são irresistivelmente atraídos por seu cheiro forte – o que explica sua rápida propagação, por todo o continente. George Marcgrave assim escreveu, em sua História Natural do Brasil (1638): “Aqui as aves comem esses frutos. E os grãos que se achavam nos excrementos medraram e daí procriaram muitas árvores e se propagaram indefinidamente, não havendo plantação em que não seja encontrada essa árvore”. Depois os navegantes a levaram para colônias africanas e asiáticas. E logo ela se espalhou por todas as

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

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regiões tropicais do globo. Só que, e sem que se saiba o porquê, em nenhum lugar são tão doces quanto por aqui. Não é possível pensar no Recife sem pensar em suas goiabeiras. Em todos os bairros. Em todos os lugares. Enfeitando o território de nossa infância. Da goiabeira, tudo se aproveita. Dela saem remédios eficientes para muitos males – diarréia (raízes); úlceras de pele, escorbuto, gengivite, dor de garganta (folhas); shiguela e salmonela (botões florais). E é grande o valor nutritivo da fruta – vitamina A, para a vista, pele e mucosas; vitamina B, para o aparelho digestivo; vitamina C, para combater as infecções, hemorragias e ajudar nas cicatrizações. Tem cálcio, fósforo e ferro – para a formação de ossos, dentes e sangue. Sua casca se presta ao combate de sangramentos e inflamações. É comida perfeita para quem quer boa saúde. E, também, para quem não quer engordar – por ter pouco açúcar e quase nenhuma gordura. Seu sabor marcante logo a transformaria em símbolo da arte da doçaria, no país. Está em doces – de corte, em calda, em pasta, geléias e compotas. Também nos recheios do bolo de rolo, do “bem-casado” e do “pastelzinho Lolita” – todos nascidos nas casasgrandes dos engenhos de açúcar. Impossível esquecer o cheiro do doce de goiaba quase no ponto, tomando conta de tudo. Feito em tachos de cobre pesados, ardendo sobre velhos fogões de lenha. Tudo sob o olhar vigilante de velhas pretas, com experiência e sabedoria, para não passar do ponto. Sem pressa. Para os doces em geral, e os de goiaba em particular, alguns conselhos de fogão são sempre úteis. Melhor fazer com tachos de cobre. Na falta deles, use mesmo os de alumínio, que toda casa tem. Colher sempre de pau. Que as de metal açucaram o doce. E que seja feito sempre em fogo baixo, brando. Faltando só falar do casamento entre goiabada e queijo. Combinação definida, por Gilberto Freyre, como “saborosamente brasileira”. Acabou apresentada ao mundo, como sobremesa dos deuses, por Assis Chateubriand – durante sua atribulada passagem por Londres, como embaixador do Brasil. É, de longe, nossa sobremesa mais popular. Preferência nacional. Sendo, por aqui, conhecida como Romeu (o queijo) e Julieta (a goiabada). Só que nesse nosso romance culinário tropical, e bem diferente da tragédia inglesa, tudo acaba muito bem. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora E-mail: jpaulo@truenet.com.br

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RECEITAS: DOCE DE GOIABA EM CALDA INGREDIENTES: 2 kg de goiaba madura 2 kg de açúcar

PREPARO: • Descasque as goiabas, corte ao meio e retire as sementes. Deixe de molho em bacia com água. • Faça uma calda com açúcar e água. Junte as goiabas. • Deixe em fogo brando. Quanto mais tempo demorar, mais vermelho fica o doce.

DOCE DE GOIABA BATIDA INGREDIENTES: 20 goiabas Açúcar 1 limão

PREPARO: • Descasque, lave e afervente as goiabas. • Passe no liquidificador e na peneira. • Coloque na panela a massa da goiaba e a mesma quantidade de açúcar (se forem 3 xícaras de massa, serão 3 xícaras de açúcar). Junte o suco do limão. • Mexa em fogo brando, com colher de pau, até que desprenda do fundo da panela.

SORVETE DE GOIABA INGREDIENTES: 10 goiabas bem maduras 500 g de açúcar 1 caixa de creme de leite

PREPARO: • Descasque e bata as goiabas, com pouquíssima água, no liquidificador. • Peneire e congele. • Bata no liquidificador, com o açúcar e o creme de leite. • Congele até a hora de servir.


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MIL PALAVRAS

Na praia de Canoa Quebrada, no Ceará, a luminosidade do ar, límpida e transparente, revela um mundo de cores intensas, recortes nítidos e sombras densas, dentro de um tempo que parece obedecer a um outro ritmo, mais lento e mais mágico

Luz de Canoa Quebrada Texto e fotos de Murilo Maia

A

quatro graus do Equador, no município de Aracati, a 150 Km a leste de Fortaleza, capital do estado do Ceará, na costa nordeste do Brasil, Canoa Quebrada é uma vila de pescadores que se estabeleceu em plena duna. Ocupação que, segundo o poeta e personagem histórico Zé Melancia, remonta a 1650. O nome se deve à avaria da canoa de um enviado do donatário do Rio Grande do Norte, que encalhou e terminou por ser destruída, permanecendo seus restos na praia por longo tempo. Em 1985, ao fim de 10 horas e 700 Km de viagem, partindo do Recife, Lena (minha mulher) e eu chegamos ao pé do complexo de dunas que escondia a miragem. 70 Continente Multicultural

Quando a conhecemos, Canoa Quebrada era um arruado tortuoso, tendo ainda muitas casas com cobertura de palha e chão de areia. A rua principal, lavada por um sol vermelho, fervilhava de atividades. Idosos conversando, sentados na areia, crianças brincando de pega e com carrinhos de lata de leite, mulheres comprando nas vendas, bolacha, café, gás para os candeeiros... Pescadores que chegavam com redes, velas, peixes e as histórias do dia. Mesclados numa pequena proporção, forasteiros que nos antecederam. Andarilhos, campistas, alternativos, hippies e artistas. Um homem louro com jeito de europeu pintando uma tela a óleo, o rádio do bar lascando um forró autêntico da época. Sorrisos. Gente


falando baixo, ninguém apressado ou incomodado. Harmonia num caos aparente. Um lindo bordado, delicado e como os trabalhos de labirinto (bordado tradicional do local) realizados em bastidores toscos e em pano branco. Era possível vê-los nas varandas, com as bordadeiras aproveitando o fim da luz da tarde. As encostas da duna, depois de descerem suaves, caíam abruptamente próximo à praia, formando barreiras, e então o mar, e o céu. A transparência tamanha, que avistávamos a curvatura do horizonte. A luz deste fim de tarde e a noite que se seguiu, pesada de estrelas, ficaram para sempre na memória. A lua crescente e a estrela formam o símbolo de Canoa Quebrada, inspirado num céu majestoso.

A luz trouxe o dia e revelou um quadro magnífico. O mar verde, a espuma, o céu azul denso, nuvens, barreiras vermelhas, curvas suaves, jangadas, barcos, velas, areia de várias cores, o vento, e as pessoas sintonizadas com o tempo, que parece ter outro ritmo por estas bandas. É a luz, sensual, quem revela e une tudo, com propostas suaves, contrastantes, diretas, oblíquas, escancaradas... Apresenta a paisagem grandiosa, frágil nos detalhes e mutante ao sabor das marés, do vento e das dunas. Esta beleza explícita é partilhada com quem chega, para ver ou para ficar. Canoa Quebrada aceita, assimila, seduz e transforma. Continente Multicultural 71


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A luz trouxe o dia e revelou um quadro magnĂ­fico. O mar verde, a espuma, o cĂŠu azul denso, nuvens, barreiras vermelhas, curvas suaves, jangadas, barcos, velas, areia de vĂĄrias cores, o vento, e as pessoas sintonizadas com o tempo, que parece ter outro ritmo por estas bandas Continente Multicultural 73


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É a luz sensual, que revela e une tudo, com propostas suaves, contrastantes, diretas, oblíquas, escancaradas... Apresenta a paisagem grandiosa, frágil nos detalhes e mutante ao sabor das marés, do vento e das dunas

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CINEMA Para os moradores mais velhos, a exibição de filmes evoca um clima de nostalgia dos tempos em que o cinema fazia parte do cotidiano

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Cinema no interior

O projeto Cine Sesi Cultural leva o cinema ao interior de Pernambuco. Uma tela de doze metros de comprimento por seis de altura é armada na praça das cidades visitadas

É num desses recantos longínquos que o ato de fruir do espetáculo cinematográfico talvez ainda guarde um certo frescor, tal como ocorria quando o cinema dava seus primeiros passos como uma das mais influentes artes do século passado Alexandre Figueirôa

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A

Nas cidades do agreste pernambucano, nos fins de semana, as ruas ficam desertas. A população fica em casa vendo TV

Os espectadores acompanham atentamente as peripécias de João Grilo e Chicó no Auto da Compadecida ou as façanhas de Lampião no Baile Perfumado

sétima arte – denominação até meio anacrônica nesses tempos pós-modernos – em sua trajetória de luzes e sombras, inventou modismos, forjou teorias estéticas e ganhou inovações tecnológicas, cujos resultados ainda são imprevisíveis diante da revolução da imagem digital. Mas, transcorrido mais de um século de sua invenção, o cinema continua sendo a maior diversão, tal e qual anunciava, até alguns anos atrás, uma famosa cadeia nacional de salas de exibição? Cinéfilo convicto, a princípio, não hesitaria em afirmar que sim. Apesar de concorrentes audaciosos e atraentes no reino do audiovisual, o ato de exibir e ver um filme em película, ou em qualquer outro sistema, respeitando o caráter ritualístico de fazer imagens mover-se em harmonia numa tela colocada ao fundo de um espaço escuro, permanece uma experiência fascinante, seja ela realizada numa sala ultramoderna no glamoroso Festival de Cannes, na Cote d’Azur, ou numa pracinha de uma modesta cidade do Nordeste. E mais: é, talvez, nesses recantos longínquos, à margem dos centros cosmopolitas, que o ato de postar-se diante de uma tela e fruir do espetáculo cinematográfico ainda guarde um certo frescor, tal e qual ocorria quando o cinema ainda dava

os primeiros passos como uma das expressões artísticas mais influentes do século que passou. Essa, pelo menos, é a sensação que podemos constatar todas as vezes em que esse respeitável senhor das ilusões resolve sair dos seus templos requintados, situados, a maioria, nos shopping centers das grandes cidades, e aventura-se em expor seu brilho nas ruas e praças das pequenas cidades do interior. As razões para tal conclusão são fáceis de verificar. Pude constatar isso, dia desses, ao acompanhar as projeções promovidas pelo Cine Sesi Cultural, no agreste pernambuca-


FOTOS: BRENO LAPROVITERA

no, onde, em boa parte das localidades, a vida social e cultural é escassa e a animação, prá valer, só existe nas grandes festas populares do ciclo junino ou do período natalino. Hoje, nos finais de semana, as ruas ficam desertas e boa parte da população permanece em casa vendo televisão. Já vai longe o tempo em que a praça central ficava cheia de gente passeando depois da missa e os moradores, à noite, colocavam cadeiras nas calçadas para jogar conversa fora. Também já entraram no sótão da memória as apresentações teatrais, os espetáculos dos circos mambembes e o cinema, espaço não apenas de diversão, mas de convívio social, que existia em quase toda cidade. Por isso, para os moradores de qualquer município do interior, o surgimento do velho e bom cinema, em plena praça pública, não deixa de ser algo inusitado e surpreendente. A população evidentemente fica curiosa e surpresa ao ver aparecer, como por encanto, uma tela que, depois de armada, tem doze metros de comprimento por seis de altura e capacidade para receber as imagens de um projetor Hi-light Xenon de 2000 watts, o qual, acompanhado por equipamento de som dolby-stereo de 2000 watts de potência, pode projetar filmes em cine-

Já vai longe o tempo em que a praça central ficava cheia de gente passeando depois da missa e os moradores, à noite, colocavam cadeiras nas calçadas para jogar conversa fora mascope com um alto padrão de qualidade até uma distância de 25 metros. Para os habitantes das cidades incluídas no programa, essa “engenharia” toda, instalada, uma parte – projetor e amplificadores –, num caminhão, e, outra, ao ar livre – telas e caixas de som – distribuídas em andaimes, é, porém, um dos detalhes. No final de contas percebe-se que o fundamental, para eles, foi a chance de poder usufruir de uma diversão, em geral, acessível apenas aos moradores do Recife, e ainda travar contato com uma face que eles quase desconhecem da produção audiovisual brasileira recente: filmes cujo cenário e temas pertencem a um universo cultural que lhes é familiar, mostrados comme il faut, ou seja, em película cinematográfica. A boa recepção das cidades visitadas põe por terra os clichês usuais de que o cinema, por conta da televisão, não desperta mais tanto interesse, e de que o povo não gosta de filme brasileiro. Os espectadores acompanham atentamente e com entusiasmo as peripécias de João Grilo e Chicó no Auto da Compadecida ou as façanhas de Lampião no Baile Perfumado, dois dos quatro longas selecionados para exibição pelo projeto do Sesi (os outros são Eu, Tu, Eles e o desenho animado A Era do Gelo, único filme americano do programa, exibido em versão dublada). Isso confirma o prazer do nordestino em assistir a filmes com temáticas que lhe são próximas e com as quais se identifica. Além disso, não deixa de ser positivo ter, a cada noite, uma média de duas mil pessoas, em silêncio, ao ar livre, ocupando seu tempo de lazer para adquirir informação cultural de qualidade. O acontecimento, como era de se esperar, mexe com os hábitos da população. Em alguns municípios as aulas das escolas são suspensas para os alunos assistirem à projeção das quintas e das sextas, e, nas rodas de conversa, o cinema passa a ser um dos assuntos mais comentados. Chuva não é problema. Em São João, cidade próxima a Garanhuns, por exemplo, choveu no segundo dia de exibição, mas ninguém arredou o pé. Boa parte dos presentes, sabendo dos caprichos do tempo na região, nos meses de inverno, estava prevenida com guarda-chuvas e sombrinhas. Os demais espremeram-se nas marquises, mas quase ninguém desistiu. Continente Multicultural 79


Os filmes tratam da realidade nordestina, o que duplica o interesse, e são apresentados comme il faut, ou seja, em película cinematográfica

A novidade, evidentemente, faz muito sucesso entre jovens e crianças, pois muitos deles estão, pela primeira vez, vendo um filme numa tela de verdade. Alguns, inclusive, passam o dia rondando o local da projeção, acompanhando curiosos a montagem do equipamento. Para os moradores mais velhos a ocasião não deixa de evocar um clima de nostalgia da época em que ir ao cinema fazia parte do seu cotidiano. E é comum encontrar, entre os espectadores, pessoas que há décadas não acompanhavam uma projeção cinematográfica, pois, agora, só vêem filmes na televisão ou através das fitas de vídeo emprestadas pelas locadoras, cujos acervos, nas pequenas cidades, nunca são superiores a 500 títulos; a maioria, filmes de ação americanos. Não raro, as projeções atraem antigos donos de cinema como João Lucas da Silva, cuja vida foi marcada pelos filmes que projetou. Aos 68 anos, ele dedicase, hoje, a fazer publicidade em carros de som, mas, durante cinco décadas, conviveu diariamente com projetores e películas, trabalhando como projecionista em salas exibidoras de Guarabira, na Paraíba, onde nas-

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ceu; de Natal, no Rio Grande do Norte; de Garanhuns; e do seu próprio negócio – movido, quem sabe, pelo mesmo espírito do filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore –, quando, com um projetor e cópias em 16 milímetros e a ajuda dos quatro filhos, realizava exibições em São João, Saloá, Paranatama, Iati e outros municípios do Agreste Meridional. E é por meio das memórias de João Lucas que podemos constatar o quanto o cinema estava integrado na vida social da população. Nos dias de feira de cada cidade – ocasião ideal para fazer a divulgação das sessões –, o povo comparecia religiosamente às projeções, muitas vezes realizadas nos clubes ou nos grupos escolares. São João, localizada a 16 quilômetros de Garanhuns, nesse sentido, foi privilegiada. Lá João Lucas alugou um prédio e instalou um cinema permanente, com 200 lugares, inaugurado no início dos anos 70, com direito a bênção do padre, coquetel e discurso do prefeito. Mas, como aconteceu em qualquer lugar do mundo, o Cine São João fechou suas portas, em parte, por causa do avanço da televisão, deixando órfãos os

FOTOS: BRENO LAPROVITERA

Um público médio de duas mil pessoas em silêncio, ao ar livre, e, às vezes, até mesmo debaixo de chuva, sem arredar o pé, confirma o interesse do nordestino em assistir a filmes com temáticas com as quais se identifica


Aos 68 anos, atualmente dedicado à propaganda, João Lucas da Silva primeiro foi operador de projeção de filmes, depois, dono de cinema Ao lado, a projeção faz sucesso entre os jovens que pela primeira vez estão vendo um filme numa tela de verdade

moradores que adoravam filmes de cangaceiros e melodramas nacionais, estrelados pelo cantor gaúcho Teixeirinha. Não foi, portanto, à toa, entre saudoso e impressionado com o tamanho da tela e a praça lotada, que João Lucas tenha exclamado: “É um presente para essa cidade!”. Os moradores, pela acolhida e os pedidos de “quero mais”, também aprovaram a experiência. Cinema, portanto, pode não ser a maior, mas, diante do que testemunhei, é, sem dúvida, ainda uma grande diversão. Alexandre Figueirôa é crítico de cinema

Abaixo, em contraste com a vida calma do interior, o caminhão do projeto Cine Sesi Cultural chama atenção


DIÁRIO DE UMA VÍBORA

Com lucidez e cálculo, ir cortando as pontes atrás de si Joel Silveira

1. CENA DE CEMITÉRIO

3. PALAVRAS DO MESTRE

Velório: encontro de hipócritas, maus piadistas e parentes que se detestam.

Nunca esqueci aquele final de Caetés – de Graciliano Ramos: – Ateu! Não é verdade.Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo: uma estrela no céu, algumas mulheres na terra.

2. GATO É MELHOR QUE LEÃO A verdade é que nunca vi no circo um gato fazer as disciplinadas tolices que um leão faz.

Bonito de arrepiar.

4. A CAMINHADA Ir aos poucos, com lucidez e cálculo, e sem qualquer arroubo, cortando as pontes atrás de si: um prazeroso, estimulante exercício.

5. SONHO Do que eu gostaria mesmo, neste final de guerra, era me apaixonar por uma mulher que me tratasse com a maior indiferença – e até com fastio. Eu mereço.

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10.O PODER DA FÉ

Brasília: esotérica e festeira comunidade onde todo mundo vive a dar medalha a todo mundo.

Já está exaustivamente provado que a fé, por mais fervorosa, é incapaz de mover uma montanha ou mesmo uma simples colina. Em compensação, quatro bombas de hidrogênio de bom tamanho, disparadas ao mesmo tempo, conseguirão em poucos segundos não apenas mover, mas remover e até mesmo volatilizar todo o conjunto orográfico da Terra – incluindo o nosso Dedo de Deus.

7.AS REDAÇÕES

11.AUTO-RETRATO

Nada mais triste do que ver um repórter sentado numa redação a olhar para o teclado, disponível e sem assunto, quando os assuntos, todos eles, estão lá fora enchendo as ruas.

– Fulano não gosta de você. – Então já são dois... – Quem é o outro? – Eu.

6.RETRATO DA CAPITAL

8. BALANÇO FINAL Reunidos num só lote, todos os ministros que o sr. Fernando Henrique Cardoso já teve nos dois mandatos dariam para eleger um vereador em Uberaba e dois em Xapecó.

9. NOTA MUSICAL Não sei o motivo, mas o fato é que não faço muita fé em orquestra sinfônica que não conte com uma violoncelista lourinha, magra e míope.

12. O GRANDE REPÓRTER Repórter mesmo, merecedor de todos os Pullitzers e Essos da vida, era aquele jornalista Carra, a quem Victor Hugo se refere no seu Noventa e Três. Poucos segundos antes de ser guilhotinado, ele virou-se para o carrasco e queixou-se: – Lamento morrer, mas gostaria de ver o resto.

Joel Silveira é jornalista

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HISTÓRIA O historiador e presidente da Academia Brasileira de Letras Alberto da Costa e Silva

Em A manilha e o libambo, o embaixador Alberto da Costa e Silva passa a limpo a História da escravidão de 1500 a 1700 Luciano Trigo

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FOTO: REPRODUÇÃO / AE

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iplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador, além de presidente da Academia Brasileira de Letras, Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo em 1931. Formado pelo Instituto Rio Branco, serviu nas décadas de 60 e 70 em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e Roma, antes de ser embaixador na Nigéria e no Benim (197983). Nesse período, embora apaixonado pelo tema desde a adolescência, ele foi contagiado pelo que chama de “vício da África”, que o levou a continuar seus estudos sobre o continente quando comandou as embaixadas em Portugal, na Colômbia e no Paraguai, nos anos seguintes, até 1995. Filho do poeta simbolista Da Costa e Silva, Alberto também se destacou na poesia, publicando, entre outros livros, As linhas da mão (1978) e Ao lado de Vera (Prêmio Jabuti em 1997). Escreveu um livro de memórias, Espelho do príncipe (1994) e, como crítico literário, publicou ensaios sobre Guimarães Rosa, Cesário Verde e Murilo Mendes – incluídos na seleta O pardal na janela, recém-lançado pela Academia. Mas foi mesmo como historiador e africanólogo que ele encontrou sua maior vocação, sobretudo com o lançamento de A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Dez anos depois, ele lança, pela editora Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, o segundo e alentado

O vício


volume de sua revisão da História da África negra e da escravidão: A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Além de apresentar, num estilo fascinante e fluente, as diversas etnias e linhagens do continente africano, relatando aventuras cheias de conspirações, traições assassinatos e perfídias de contornos shakespearianos, A manilha e o libambo contribui para desfazer vários clichês e mal-entendidos sobre a escravidão – e para explicar como um fenômeno puramente comercial e econômico em sua origem acabou descambando para o racismo e a discriminação. Mostra, também, que ao contrário do que se pensa, diversas regiões africanas apresentavam uma organização política e uma estrutura social sólidas, além de sociedades altamente hierarquizadas, com um grau de complexidade notável.

da África Continente Multicultural 85


01 – L’Execution de la punition du fouet 02 – Le colleir de fer 03 – Chatimens domestiques 04 – Punitions publiques

Ilustração do trabalho escravo no período colonial

A manilha e o libambo reafirma seu talento como historiador da África e da escravidão, já demonstrado em A enxada e a lança. A relação entre os dois livros é de pura continuidade? Você pode ler A manilha e o libambo sem ter lido A enxada e a lança, e vice-versa. Este terminava com a chegada das caravelas portuguesas ao Senegal. Começo o livro novo não com este episódio, porque achei necessários três capítulos para apresentar a posição do negro na antigüidade, quando a maioria dos escravos vinha do Mar Cáspio, dos Bálcãs e da Grécia, e portanto não era predominantemente negra. Mostro também como, no mundo árabe e muçulmano, o escravo negro se tornou mais comum, passando a constituir um tipo. E, por fim, mostro como a escravidão já existia na própria África. Só a antigüidade da escravidão na África explica a facilidade com que os portugueses que desembarcavam lá puderam adquirir escravos. Já existia uma longa tradição deste comércio, o que aliás fica claro quando se lêem os autores árabes dos séculos 11 a 14, e os próprios relatos dos primeiros viajantes portugueses. São capítulos sumários, sistemáticos, que ajudam o leitor a compreender melhor o que conto depois: a história dos reinos africanos, como eles foram afetados ou não pelo comércio transatlântico, e como a presença européia na África, até os séculos 18 e 19, foi superficial, costeira, e não chegou a afetar as estruturas

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de poder africanas. Nos dois primeiros séculos do tráfico negreiro, o comércio no Atlântico e no Índico influenciou a vida desses povos, mas eles preservaram a sua independência, as suas características culturais e tiveram uma evolução própria. Onde houve estabelecimentos europeus, estes eram consentidos, como o enclave português em Luanda, que era cercado de reinos africanos. O senhor põe em questão, entre outras teses, a de que a escravização do homem teve origem nos instrumentos e processos de domesticação dos animais... Eu proponho outra interpretação: acredito que a escravidão do homem veio antes da domesticação dos animais. Ao domesticar os animais, o homem usou os mesmos instrumentos que usou para domar os escravos: a corda ao pescoço, a castração, o corte da orelha, a marca com ferro... Veja, havia escravidão entre muitos grupos de índios americanos que não domesticavam animais, com exceção da lhama. Na África, só a galinha d’Angola era domesticada, os outros animais já vieram domesticados do Oriente Médio, pelo Mediterrâneo. Já a escravidão é muito antiga: quando

IMAGEM: REPRODUÇÃO

Na outra página, quadros de Jean Baptiste Debret, século 19

Explique o título de seu livro, A manilha e o libambo. Em A enxada e a lança, eu escolhi dois objetos que representavam uma oposição: a enxada era um instrumento das mulheres, e a lança, dos homens. A enxada era a vida, e a lança era a morte: a paz e a guerra. Manilha e libambo são duas palavras que desapareceram, nas acepções que tinham nos séculos 15 a 19. Várias palavras corriqueiras desapareceram com a escravidão. Uma se refere ao comércio, e a outra, à violência da captura dos escravos. A manilha era uma espécie de pulseira, tornozeleira ou braçadeira, aberta. Feita de prata, latão, ferro, bronze ou cobre, era a moeda principal para a compra de escravos, além de ser usada como ornamento. Libambo era a corrente de ferro que prendia as gargantilhas dos escravos, formando grandes fileiras. Mas a palavra também se referia à fileira em si, mesmo quando os escravos eram atados por corda, couro ou forquilhas amarradas. Então, escolhendo esse título, eu quis representar o comércio e a captura, dois aspectos de um mundo que felizmente já se acabou.


FOTOS: REPRODUÇÃO / ACERVO DA FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO – RECIFE

uma aldeia era atacada, e todos os homens eram mortos, as mulheres e crianças, sem ter para onde ir, muitas vezes acompanhavam os vencedores na condição de escravos. Outra tese questionada é a de que os africanos viam os brancos que desembarcavam em sua costa como deuses. Este é um equívoco europocêntrico. Os portugueses, franceses, ingleses e holandeses é que pensavam que os africanos os viam como seres superiores ou deuses. De fato, no Congo se acreditava que o mar levava ao reino dos mortos, e que os mortos eram brancos. Sucede que os portugueses não eram brancos, eram amarelos-claros. E os africanos logo perceberam que os portugueses adoeciam e morriam com facilidade. Mas desde a aventura de Cortez e Pizarro, os europeus passaram a alimentar essa visão. O próprio almirante Cook, quando chegou à Austrália, acreditou ser visto como um deus. Não. Ele era visto como um estranho a ser bem recebido e até evitado, conforme as circunstâncias. Os europeus eram mesmo vistos como seres inferiores. Primeiro, porque morriam em grande velocidade, por causa da malária, da febre amarela, das verminoses. Segundo, porque eram incapazes das proezas físicas dos africanos. Terceiro, porque andavam vestidos, dando a impressão de ocultar moléstias de pele. E também porque praticavam atos insanos e socialmente inaceitáveis, que uma criatura humana normal não praticava: cortavam árvores, matavam animais, comiam comidas estranhas. Por fim, o branco fedia a morto, a carne podre. O banho diário é uma invenção africana e americana: os europeus aprenderam a tomar banho diariamente conosco. Os portugueses não tomavam banho nos navios, nem trocavam de roupa durante meses, então, quando desembarcavam, era uma catinga pavorosa. Chegavam sujos, cheios de piolhos e pulgas, contrastando com o africano, que tomava três banhos por dia, passava azeite no corpo para manter a pele brilhante e tinha cuidados com a higiene corporal muito grandes, quase tão grandes quanto os dos orientais.

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Não somente os negros foram vítimas da escravidão. Como e em que momento a escravidão, que desde o Egito antigo era um fenômeno puramente comercial e econômico, resultou em ações de discriminação? Quando a escravidão virou preconceito racial contra os negros?

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Na própria África havia “Acredito que a domesticação escravos brancos, de senhores nedos homens veio antes da dos gros. A escravização racial é um feanimais. Havia escravidão entre nômeno americano. E ela virou muitos grupos de índios mais do que preconceito e discrimiamericanos que não nação racial: ela passou a identificar domesticavam animais” o negro com o escravo. Acho que isso acontece nas Américas em meados do século 17, mas é uma Mas na América não houve escravos brancos. suposição minha, que eu não conseguiria demonstrar Depois do malogro da escravização dos índios, por falta de documentação. Por outro lado, já entre os o escravo na América passa a ser somente o africano. muçulmanos começou a existir uma distinção entre os Curiosamente, os índios são chamados de “negros da escravos brancos, os sakalibas, e negros, os abd-sudam. terra”, para facilitar a tentativa de sua escravização. Nas tropas, e muitas eram formadas por escravos, os O europeu até poderia ter trazido europeus esnegros só podiam pertencer à cavalaria, e os brancos, à cravizados para a América, porque a população estava infantaria. Passou então a haver uma gradação no crescendo, e as prisões estavam cheias de bandidos e emprego dos escravos: escravo funcionário público só malfeitores que poderiam ser remadores das galés... alcançava certa hierarquia se fosse branco. Começa Mas só se escraviza o outro, ninguém escraviza um setambém a aparecer a teoria de que o negro tinha nas- melhante. E acontece que, a partir da segunda metade cido para a escravidão, embora esta ainda não fosse ra- do século 17, o cristão europeu passou a ver outros cial entre os muçulmanos. Surgem aí os primeiros cristãos europeus como semelhantes, não mais como escritos racistas, mas estes também consideravam o lou- “o outro”. Até ali ainda era permitida a escravização ro de olho azul um sub-homem, em relação ao trigueiro dos cristãos ortodoxos, mas esta passou a ser vista com mediterrâneo. maus olhos. Procurava-se escravizar então o pessoal 88 Continente Multicultural

IMAGEM: REPRODUÇÃO

Segundo Costa e Silva o homem negro era explorado como força de trabalho pelo simples fato de ser homem, mas se negava a este homem a humanidade, o que é uma contradição ideológica


que vinha da Criméia, do Mar Cáspio, do Mar Negro, e começou a se estabelecer uma identificação ideológica do negro como o outro absoluto, perfeito, completo, diferente na cor, nos costumes, nos cabelos, na constituição. Formou-se a ideologia que apresentava o negro como quase-homem, mas não exatamente um ser humano. Em relação ao índio brasileiro também houve muita discussão sobre isso, perguntava-se se eles tinham alma ou não. Mas, paradoxalmente, compravam-se negros exatamente porque eram homens, porque o escravo era capaz de fazer os trabalhos do senhor, de substituí-lo. O negro era explorado como força de trabalho porque era homem, tinha os mesmos atributos, não era um cavalo ou um boi. O escravo era comprado porque era homem, mas se negava a este homem a plenitude da humanidade. É a contradição da ideologia. Mas o comércio de escravos beneficiou os próprios africanos, do ponto de vista econômico. Vários Estados africanos, por pressões econômicas externas, adotaram a escravidão, que contribuiu para a riqueza de países como o Sudão... A escravidão contribuiu para a riqueza de vários países africanos, até porque, ao contrário do que diz certa historiografia, o escravo custava caro na África. Só muito no início da escravidão se comprava escravo com quinquilharia, mas é preciso entender bem o sentido desta palavra, marcada por um mal-entendido. Quando os africanos vendiam gente, borracha ou ouro por conchas, ou kauís, não estavam trocando ouro por quinquilharia: aquilo só era quinquilharia para o europeu. O africano estava trocando um produto que não tinha valor expressivo para ele por outro que tinha muito valor, que era a sua moeda. O kauí era uma boa moeda, vinha de longe, das Maldivas, era resistente, era divisível. E não saía tão barato, porque os portugueses tinham de viajar até as Maldivas, o Ceilão ou o Golfo de Bengala para comprar kauís, que vinham como lastro dos navios, e muitos naufragavam, com grande perda de vidas. E eram viagens que

demoravam seis, oito meses. As panelas de cobre também eram valiosas para os africanos, que eram carentes deste metal, considerado mágico. Em que medida a mestiçagem afetou o desenvolvimento das relações entre europeus e africanos no período abordado no livro? Meu livro tem um longo capítulo sobre os lançados, equivalentes na África aos nossos caramurus, que foram muito mais numerosos do que pensamos. Os portugueses desciam dos navios ou por vontade própria ou porque eram degredados, insubordinados, ou porque eram cristãos-novos e fugiam das perseguições e preconceitos. Desciam na África e, curiosamente, se africanizavam com uma velocidade espantosa. Alguns espanhóis, franceses e ingleses também, mas não num número tão grande. Esses marinheiros portugueses eram geralmente recrutados nas camadas mais destituídas da população. Estavam no mar obrigados, gostavam mesmo era de cultivar sua terrinha, e quando tinham essa oportunidade, lá corriam. Então se africanizaram, ao mesmo tempo que aportuguesaram as mulheres com quem viveram. Antes de termos uma sociedade crioula, mestiça, no Brasil, os portugueses sobretudo já tinham criado uma sociedade mestiça ao longo do litoral africano. Ou seja, eles já tinham produzido na África o embrião do tipo de cultura que produziriam no Brasil, sobretudo em dois lugares: em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que, no século 16, foi o Brasil do século 17. Os portugueses tinham uma capacidade extraordinária de aprender com os africanos, e trouxeram esse aprendizado mais tarde para o Brasil, como os métodos de fazer farinha de mandioca, a maneira de cultivar o inhame, de fazer o ferro... Vi as mesmas casas no Ceará e na Nigéria, iguaizinhas. E vi fornos mineiros idênticos aos africanos. Os portugueses tinham este espírito globalizador: aprendiam ao mesmo tempo que transferiam seus valores europeus aos africanos. “O antropófago é sempre o outro, o vizinho inimigo”... Não há um relato sequer de uma pessoa que tenha visto um homem ser comido. Só o de Hans Staden. No muito que tenho lido sobre isso, a antropofagia é sempre uma ignomínia que um outro grupo faz, o nosso nunca. Exceto na antropofagia ritual, que existiu em muitos povos. Mas o gosto, o vício de comer carne humana é sempre atribuído ao outro. Todos os viajantes que andaram pela África sempre se refeContinente Multicultural 89


rem não ao grupo que estão visitando, mas a um grupo inimigo, ou seja, jamais viram um antropófago. Tenho dúvida sobre se alguma vez existiram. Harris Melvyn, um sociólogo americano, diz que a antropofagia foi praticada por necessidade de carboidratos, mas é só uma teoria. Na África não existem relatos. Segundo algumas tradições, quando um rei substituía outro, tinha de devorar um pedaço de seu coração, para receber seus atributos. Mas este era um ritual. O preconceito racial é de uma definição complexa, mas até hoje há povos explorados por etnias ditas superiores

“Preconceituosos todos eram – e, aceitemos, somos”, o senhor escreve no prefácio. De que preconceitos o senhor tenta fugir em sua História da África e da escravidão? E que preconceitos são inescapáveis a um historiador não africano? Aí você me pegou, não sei responder. O preconceito está tão enraizado no nosso comportamento, que tendemos a resvalar para ele mesmo quando não queremos. O que posso dizer é que fui criado, menino, sem nenhum preconceito de cor. O maior amigo de meu pai era negro. Sua grande admiração literária, Cruz e Souza, era negro. Mas é possível que em algum momento certa forma de preconceito contra um grupo ou outro possa surgiu, até contra um tipo de europeu. Mas eu nem saberia identificar, é subterrâneo. Curiosamente um filho meu me criticou: “Pai, você escreve carapinha”. Ora, eu me refiro a carapinha justamente porque não sou preconceituoso, não tenho dificuldade em dizer que uma pessoa é mulata ou negra ou cafuza ou branquela. Nós não fugimos do preconceito mudando os nomes, este é um equívoco que os americanos estão cometendo há 50 anos. Primeiro era negro, depois black, depois colored, depois afro-american, agora african-american, e vão inventar outras palavras que não resolvem o problema, pelo contrário. À medida que vão acumulando palavras para disfarçar aquelas que passaram a ter conteúdo pejorativo, reforçam o preconceito. “Crioulo”, no Brasil, está virando uma palavra pejorativa, quando não era. Crioulo era o negro nascido no Brasil, tinha um sentido de qualidade. Ser crioulo em toda a América Latina é a qualidade de ser nativo da terra, pertencer à terra. Precisamos evitar essa conotação negativa e devolver a esta palavra a sua dignidade, sua função de distinguir entre o negro africano e o nascido no Brasil. Já a origem da palavra “mulato”, segundo dizem, é espúria. Refere-se a mula e deriva de uma falsa teoria de que os nascidos de cru-

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zamento entre branco e negra não procriariam, uma imbecilidade completa, como o andar na rua mostra. Os diferentes graus de desenvolvimento na África não se deveram também a fatores climáticos, como as monções, que provocavam secas enormes e periódicas, que levavam pessoas a se oferecerer como escravos, a vender os filhos e até a comer carne humana? De fato, durante as grandes secas as famílias ofereciam, na África, primeiro seus escravos, depois


FOTO: REPRODUÇÃO

agregados e depois seus filhos, para que eles escapassem da fome. Este é um fato bastante conhecido, sobre o qual existem vários relatos convincentes. Mas explicar por que um povo se desenvolveu de forma diferente de outro é muito complexo. Está ligado, em última análise, às invenções e descobrimentos, que, em algumas áreas, se propagaram mais depressa e de forma mais simples que em outras. Quando o europeu chegou aos Estados Unidos, encontrou um clima semelhante, um ciclo de estações parecido, solos parecidos, onde pôde aplicar seus inventos, cultivar o trigo e a cevada, criar boi, carneiro e cabra, construir casas semelhantes. Este mesmo europeu, chegando à Guiana, encontra clima diferente, sem estações, solos não propícios ao cultivo do trigo, centeio e cevada, e ele não pode criar animais da mesma forma. Tem de inventar ou aprender tudo com os povos locais. Então o português que chega ao Brasil tenta plantar parreira, oliveira, e não dá certo. Na África, em São Tomé, tenta plantar melão, maçã, e não dá certo. Então ele começa a plantar o que o pessoal da terra já tinha. É todo um processo de ajuste e adaptação, porque quem chega o faz com a prepotência de seu conhecimento e tem de se render a outra situação, mais atrasada. Aquele processo inventivo que vinha de antes é cortado, e os fatores climáticos evidentemente influenciam. Girafa e zebra não eram domesticáveis, apesar do esforço dos ingleses. Forçar motrizes como o arado não serve para solos rasos, porque estragam a terra. Então não havia condições ecológicas para que aqueles inventos fossem mais produtivos. Mas não sei se isso explica tudo. Tenho uma dificuldade muito grande em considerar que uma aldeia africana em que as relações familiares são harmoniosas, que produz festas regularmente, em que há entendimento entre os grupos, seja mais atrasada que uma cidade onde as pessoas vivem lutando, correndo contra o tempo, não sabem usar o ócio, perderam o sentido da festa, não sabem valorar os ancestrais, os mais velhos, nem sentem carinho pelas crianças. Uma das coisas que mais me impressionaram na África foi ver o carinho com que tratam as crianças, que são tidas como os bens mais importantes e valiosos. É a grande contradição da escravidão: vendia-se a maior riqueza, os seus jovens. Por fim, a África, como a América do Sul, ficou fora das grandes rotas comerciais, nunca foi a “esquina do mundo”, como foi o Mediterrâneo, onde todos os povos se encontravam e tro-

As crianças, na África, são tidas como os bens mais valiosos. É a grande contradição da escravidão: vendia-se a maior riqueza, os seus jovens cavam as suas experiências, descobertas e invenções. Isso poderia ter ocorrido na África se não houvesse o imenso deserto, bloqueador dos contatos, mais que os oceanos. A África do Sul ficou isolada do encontro de culturas, do contato com os barcos que fecundavam o Mediterrâneo. Existe um racismo às avessas, do africano contra o europeu? Esta questão é curiosa. Preconceito existe. Na Nigéria, chamavam os brancos de oibó, uma palavra depreciativa. Oibó fedorento, branco fedorento. Mas não a aplicavam aos brasileiros, éramos considerados especiais, até porque, como éramos cerca de 15 mil brasileiros trabalhando na rede telefônica, em casas populares etc., tínhamos mestres, engenheiros e operários de todas as cores. Um amigo meu me disse uma vez, na Costa do Marfim: “O Brasil é um país com pretos de todas as cores – . Por outro lado, os mercadores e escravos libertos que retornaram do Brasil para a África formaram uma elite comercial e intelectual, ocidentalizante, de apoio aos europeus. Mas, de certo modo, eles olham para o branco europeu com um certo preconceito. Todos os povos, todas as pessoas têm preconceito contra alguma coisa. A manilha e o libambo pára em 1700. O senhor planeja escrever um terceiro volume? Planejo. Neste momento estou escrevendo um livrinho pequeno, de umas 180 páginas, sobre a história de Francisco de Souza, mercador de escravos. Foi um baiano que, no início do século 19, se tornou o maior mercador de escravos na história do tráfico transatlântico. Vou contar sua trajetória inserida no contexto em que ele viveu. Em seguida começo a escrever o terceiro volume, ainda sem título.

Luciano Trigo é jornalista

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ENTREMEZ

C

ândido Pinto morreu. Lembrei o poema Milonga de Manoel Flores, de Jorge Luis Borges: “Morrer é um costume que sabe ter toda gente”. Não haveria nada de extraordinário no fato de Cândido Pinto morrer, não fosse a sua história, ou mais precisamente, um acontecimento de sua vida: o doloroso instante em que tudo tem início, ou principia a findar. E, como na milonga de Borges, esse começo é uma bala e “com a bala o olvido”. Poucos conhecem Cândido Pinto, nos dias de hoje. Mas na década de 60, quando agitava o meio estudantil com o seu discurso libertário, a polícia se informava de todos os seus passos. Uma fotografia da época, a última em que aparece de pé, revela um rapaz alto e magro, de ar tranqüilo e sonhador. Em 69, ao receber a bala que o matou trinta e três anos depois, já vivia na clandestinidade. O curso de engenharia elétrica, começado quatro anos antes, foi interrompido por repetidas

prisões e viagens a serviço da União dos Estudantes de Pernambuco. Eleito seu presidente, lutava para restaurar a União Nacional dos Estudantes, UNE, fechada pelos militares. Ao filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, optou pela luta armada, deixando de morar na casa dos pais e de freqüentar a universidade. Preso repetidas vezes e condenado pela justiça, apelou, fugiu e se escondeu, como fizeram muitos estudantes de biografia igual, na ditadura militar. No dia em que tudo começou, ele aguardava um ônibus na ponte da Torre, no Recife. Dirigia-se a uma reunião do partido. Como em outras histórias dos tempos da repressão, foi abordado por homens encapuzados e armados, que ocupavam uma Rural Jeep. Reagiu, temendo o destino que o aguardava. A primeira bala partiu os seus óculos, ferindo-o no rosto. A segunda penetrou pelo ombro esquerdo, atravessando o pulmão e

Ronaldo Correia de Brito 92 Continente Multicultural

ILUSTRAÇÃO: ZENIVAL

Milonga de Cândido Pinto


É possível que Cândido Pinto seja o herói de um tempo em que se acreditou mudar o Brasil pela revolução social, não faltando quem para isso sacrificasse a vida e a família

lesando a coluna vertebral. Cândido tombou na ponte e nunca mais experimentou o movimento das pernas, nem sentiu ter um corpo, abaixo do peito. Mesmo com a forte censura, a imprensa local noticiou o atentado, os estudantes entraram em greve, houve protestos e denúncias. Para Cândido, que sonhava sacrificar a vida pela causa comunista, a perda dos movimentos era um preço bem menor. Começa uma nova luta para manter-se ativo numa cadeira de rodas, atuar politicamente, voltar a estudar, produzir, amar, ter filhos. Se “morrer é haver nascido”, Cândido não pôde esquecer um único dia, dos que viveu pela frente, essa morte que gostava de desafiar, nos tempos de luta armada. Instalada no seu corpo, paralisante e infecciosa, lembrava o encapuzado traiçoeiro. “Viver é perigoso”, diz Riobaldo Tatarana, e esse perigo pode ser um revólver apontado contra o peito ou uma silenciosa e ruminante bactéria. A história de Cândido Pinto nos faz pensar nas lutas políticas e suas motivações. Em Os Justos, de Albert Camus, um militante é escolhido para cometer um atentado: explodir uma carruagem em que viajam um duque e sua esposa, representantes do poder. Na carruagem também viajam os dois filhos do casal, crianças que não são culpadas pelas ações dos pais. Toda a tensão se constrói sobre a justiça desse ato, em que se sacrificam inocentes em prol de uma causa. Raskólhnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoievski, acredita que pode cometer um assassínio, justificando que Napoleão Bonaparte levou milhares de pessoas à morte em nome da vaidade e de um sonho imperialista. Penso que um jovem que se habilita a matar por um ideal, acreditando poder transformar o mundo, aceita a contrapartida de também ser morto por aqueles que, do

outro lado, se opõem aos seus ideais, em nome de outros. Existe alguma diferença essencial entre a lógica do crime político e a do crime comum? Leon Tolstoi faz essa mesma pergunta nas páginas de Guerra e Paz. Há quem defenda que o crime cometido por ideologia está dentro de uma noção de grandeza que exclui a medida de bem ou mal. Porém, mesmo essa grandeza é por demais oposta ao que aprendemos sobre bem e justiça. Nunca perguntei a Cândido Pinto o que ele pensava dos seus impulsos de adolescente. Sempre que conversamos, preferimos discorrer sobre teatro, literatura, cinema e música, que me parecem temas mais abstratos e adequados. É possível que ele seja o herói de um tempo em que se acreditou mudar o Brasil pela revolução social, não faltando quem para isso sacrificasse a vida e a família. A meu filho de quinze anos, nascido num outro Brasil, custou compreender o clima de dor e celebração do enterro. Quando um dos companheiros de Cândido estendeu a bandeira de um partido sobre o caixão do morto, tentando estabelecer um elo com a bandeira pela qual ele se martirizou, o meu filho intuiu que também se morre por idéias. Mesmo sem nunca ter feito a pergunta, mesmo sabendo que Cândido desafiou a morte de perto, suponho que ele amava a vida. E que não estava feliz diante da morte finalmente consumada, após trinta e três anos de luta contra o espectro de uma bala. Lembrei mais uma vez a Milonga de Manoel Flores: “E apesar disso me dói Despedir-me da vida Essa coisa tão de sempre Tão doce e tão conhecida.” Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Os pastores do Marquesinho

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ão é de bom alvitre aviltar avidamente as vítimas de curandeiros e mensageiros de qualquer deus inventado, que trazem no bojo de suas caixinhas um receituário contendo filões rezadeiros com o veneno da serpente do éden tentador das maçãs e do dinheiro. Extraindo das milhares de maravilhosas historinhas cronificadas de Gabriel García Márquez, visitei La Sierpe, um país de lendas, alcançado através de tolerantes pântanos das hordas e orlas da costa Atlântica colombianas – cheios de malária, feitiçarias e superstições. A Marquesinha, assim conhecida, uma espanhola miúda e bondosa, era branca e loura, e morreu virgem. Dona de uma fabulosa riqueza – traduzida em animais representados em objetos de ouro e pedras preciosas –, vivia numa casa grande e suntuosa, protegida por imensas e pesadas portas e janelas de ferro no centro daquele povoado. Uma grande “igreja” realçando a localidade, na realidade, onde os colhedores de arroz e fabricantes de cachaça buscavam conselhos, benzeduras e a esperança para superar qualquer infortúnio de maus olhados e outros bichos. Devido ser uma região autenticamente habitada por fervorosos camponeses católicos – que, estranhamente, ditavam a prática da religião ao modo próprio – havia os oportunistas iconoclastas. Assim, contraponteando as normas clericais, comiam apetitosas carnes em abundância durante todas as Sextas-Feiras da Paixão – comemorando-as sempre na primeira sexta-feira de março, dia em que, segundo eles, “canta o gallinazo”. São pessoas que crêem em Deus, na Virgem Maria e na Santíssima Trindade e ainda choram a hora do sacrifício final de Cristo. No entanto, se divertem como todo mundo, se apaixonam como os latinos – espanhóis, mais definidamente – bebem demasiadamente, se esfaqueiam em espetaculares confrontos por nada e também se casam como todo obediente católico nas igrejas dos povoados circundantes. Mas, é uma gente que adora Deus em qualquer objeto que pensa descobrir faculdades divinas, por isso dispensando orações inventadas para cada deus icono-

gráfico escolhido. Todavia, acima de tudo, comenta Márquez – e nisto se diferenciam do resto dos colombianos – crêem na Marquesinha. Os homens e mulheres, inteiramente dogmáticos, se despojavam de qualquer bem para obter uma das orações secretas através de seus pastores, que vivem nababescamente, óbvio, bem menos que a sua líder. Se, por um lado, as faculdades secretas da Marquesinha foram compartilhadas por ela com os seus servidores que estiveram mais perto de seus afetos, por outro, a escala dos poderes “sobrenaturais” era exclusiva de meia dúzia de seguidores. Aos que não cumpriam os desejos dos ditos pastores arrecadadores de prendas, o castigo maior eram as picaduras de serpentes para cada décimo cliente – com uma advertência para os outros que a tudo assistiam: o poder contra as picaduras, concedido pelo diabo, exige uma vida por nove salvas. O sistema tem um nome: “Curar por dízimos”. Aqui no Brasil, em todas as margens litorâneas, pantanais e planaltos centrais, caatingas, serrados, serras e geleiras, temos todo tipo de igrejas e assembléias, da católica – sua maioria – à pentecostal e presbiteriana. Levar o conforto da palavra de Deus à gente simples, crente e honesta no trabalho é elogiável. Porém, tirar bens desse povo para se locupletar em luxúria é um crime. É incrível, contudo, neste nosso querido país, existe uma igreja que se diz Universal e vive cheia de pastores de caras lisas cumprindo ordens de um Marquesinho. É o reino de um bispão, que o extraordinário Gabriel não quer ver nem de perto.

Rivaldo Paiva é escritor

Rivaldo Paiva 96 Continente Multicultural




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