Continente #024 - Ela sabe tudo sobre você

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EDITORIAL

Renovando Há exatos dois anos, Pernambuco inaugurou esta revista, que tenta refletir um pouco o complexo e rico universo cultural, sem limites tacanhos de geografias ou ideologias. A decisão ousada e corajosa do governo Jarbas Vasconcelos permitiu que se consolidasse um veículo sem preconceitos, de periodicidade mensal e de temática abrangente. Desde o seu número zero, a revista vem sendo um esforço permanente: o de espelhar o melhor que se produz no estado e fora dele. A iniciativa da Companhia Editora de Pernambuco encontrou uma acolhida generosa de um número cada vez mais crescente de leitores. Em atenção a eles é que, a cada mês, se procura ousar e arriscar em continente e conteúdo. E agora nesta edição continuamos a tarefa de renovação da forma, mas sem abrir mão da densidade, buscando-a ainda mais, consciente de que o trabalho de editar é interminável, na medida em que democratizar informações culturais é processo e não produto.

Marcelo Maciel

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Empetur


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CONTEÚDO

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IVAN JUNQUEIRA VOLTA A TRADUZIR T. S. ELIOT

NOVO FILME DE POLANSKI REVISITA O TRAUMA DO HOLOCAUSTO

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REYNALDO FONSECA CONTA TUDO SOBRE COMO FAZ SUAS PINTURAS

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CONVERSA

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AUTORES 50 Ivan Junqueira revisita T. S. Eliot

10 Uma lição de História com Mary del Priore

54 Traduções inéditas de Sylvia Plath, por Jorge Wanderley

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58 Era mesmo louco Edgar Allan Poe?

CINEMA 14 O grande vencedor do Festival de Cannes fala de O pianista

62 Vanderley Caixe faz da poesia uma arma

18 Como a Igreja disse amém ao nazismo

64 Conto de Rodrigo Lacerda

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RITOS

BELAS ARTES

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24 A nova exposição de Reynaldo Fonseca

68 Novas subversões no que foi a velha União Soviética

28 Perfil de Cássio Loredano, que lança livro de caricaturas

72 Um homem que vive de olhar para a lua

32 Os desenhos de botequim e Carnaval de Cavani

» 74 Passeio por paraísos boêmios e proibidos

ESPETÁCULOS

SONS

82 Uma peça de teatro de Picasso

34 Arto Lindsay fala do CD Invoke 36 Evocação de Paulo da Portela

» 38 Os 90 anos de Luiz Gonzaga

CAPA 40 Christiane Jatahy dirige peça baseada em Memorial do convento 46 O homem duplicado traz novas críticas à sociedade atual

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86 Vinte anos de experiências do Galpão 88 José Celso Martinez Corrêa carnavaliza Os sertões

PATRIMÔNIO » 92 Um museu para toda a memória e imaginação 96 O “Deus bissexual” de Freud e das raízes judaicas

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PRETO NO BRANCO 100 Três novas (e péssimas) antologias poéticas


CONTEÚDO

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» 68 PIRATARIA EXPLÍCITA NA UCRÂNIA

» 92 COMO EMANUEL ARAÚJO ESTÁ CONSTRUINDO O MUSEU DO IMAGINÁRIO DO POVO BRASILEIRO

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 9 Choques de realidade e mercado egocêntrico

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 22 Uma reflexão de Picasso sobre infância e arte

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 48 Saudades de Waldick Soriano e José Guilherme Merquior

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 76 Uma ceia com receitas de pessoas muito especiais

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito »

90 Jesus Cristo, Marilyn Monroe e o peru de Natal

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira » 99 A víbora ataca de novo baianos e portugueses

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 104 A importância das pequenas coisas

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Dezembro Ano 02 | 2002 Foto capa: Mariana Leal

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Projeto Gráfico Manoela Leão

Colaboradores desta edição: ABEL MENEZES é médico pós-graduado em Antropologia. Publicou os livros Delírica dança (1988) e A gargalhada final (1996). BATIA LEDERMAN é israelense e mora no Brasil há 28 anos. Formada em Psicologia, é também psicanalista e membro da Sociedade Psicanalítica do Recife. BRUNO BERNARDES é jornalista e editor do programa Fantástico, da TV Globo. FÁBIO LUCAS é jornalista. Foi editor de opinião e repórter da Gazeta Mercantil (DF). FELIPE PORCIÚNCULA é jornalista. Foi editor do programa Campo Livre (TV Pernambuco) e consultor da Unesco e da Unicef. GILDSON OLIVEIRA é jornalista e autor dos livros Luiz Gonzaga – o matuto que conquistou o mundo e Câmara Cascudo – um homem chamado Brasil. GUILHERME CASTELO BRANCO é professor da UFRJ e autor de 16 livros sobre Filosofia.

Arte Luiz Arrais Editoração eletrônica André Fellows Tratamento de imagem Nélio Chiappetta

KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema do Jornal do Commercio (Recife) e videasta. Fez o filme Enjaulado e criou o site Cinemascópio (www.cinemascopio.com.br). LUCIANO TRIGO é jornalista e escritor. Foi editor do suplemento “Prosa & Verso”, de O Globo, e editor-assistente do “Idéias”, do JB. É autor de seis livros.

Revisão Rodrigo Pinto

LUIZ CARLOS MONTEIRO é poeta, crítico literário e autor de Poemas (1998), entre outros livros de poesia. Tem inédito livro sobre o poeta Carlos Pena Filho.

Secretária Tereza Veras

MARCELO PEREIRA é jornalista, poeta e editor do “Caderno C” do Jornal do Commercio (Recife), onde assina a coluna “Rec-Beat”.

Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2551 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Editor: editor@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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IVO BARROSO é poeta e tradutor. Publicou mais de 30 livros sobre vários autores de renome. Em 2001 lançou sua antologia, A caça virtual e outros poemas.

MÁRCIA CAVENDISH WANDERLEY é mestra em Sociologia, doutora em Literatura Brasileira e especialista em crítica genética. Tem contos e poemas publicados. PEDRO LYRA é doutor em Letras pela UFRJ (1981). Publicou 20 livros, entre eles Sincretismo – a poesia da geração-60 (1995) e Visão do ser – antologia poética (1998). RODRIGO LACERDA é autor dos livros O mistério do leão rompante (Prêmio Jabuti de melhor romance), A dinâmica das larvas e Tripé. SÔNIA VAN DIJCK é doutora em Letras. Como crítica literária, tem estudos sobre a obra de Mário de Andrade, Luiz Ruffato e Vanderley Caixe, entre outros. SUELI CAVENDISH é doutora em Literatura Comparada pela UFRJ e mestre em Sociologia pela UFPE. Traduziu Bloomsbury, de Clive Bell (1994). WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de arte. Publicou O aedo (1989), Os ritmos do fogo (1999). É autor de biografia do pintor Francisco Brennand (1997).

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Foi editor do “Commercio Cultural”, do JC (Recife), da revista Pasárgada e colaborador do Jornal da Tarde (SP). CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor de UFRPE, ex-secretário adjunto do Tesouro Nacional e diretor geral da revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema sujo, Dentro da noite veloz, Muitas vozes, Cultura posta em questão, entre outros. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de diversos livros, entre eles A luta dos pracinhas e Tempo de contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. Tem inédito livro sobre gastronomia pernambucana. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – uma história de poder. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Parceiro de Zoca Madureira e Assis Lima em diversos espetáculos teatrais, publicou também o livro de contos As noites e os dias.


CARTAS Drummond 1 Tenho acompanhado a Continente. Espetacular o número do Drummond (edição de outubro). Ri às pampas com Affonso e me diverti com o Zé Catota do Alberto da Cunha Melo, que me ilustrou muito com seu texto sobre política cultural. Para completar, o máximo o texto do Marcelino Freire sobre o programa do Assis Ângelo. Jozé Nêumanne – São Paulo – SP

senvolvermos com mais eficiência o nosso trabalho. Confesso que ficamos emocionadas no momento em que a revista Continente chegou a nossas mãos, consolidando, assim, a coroação do nosso projeto. Por essa valiosa contribuição, cumpre-nos expressar-lhes os nossos sinceros agradecimentos. Elizabeth Primo C. Meneses – Diretora da Escola Olga Benário Prestes – Recife – PE

Drummond 2 Gostei bastante das matérias especiais da edição de outubro sobre o centenário do inesquecível Carlos Drummond de Andrade. O artigo “Drummond na tempestade”, de José Castello, por exemplo, apresenta uma abordagem rica e contundente, ao comparar grandes poetas brasileiros, como Vinicius de Moraes, João Cabral e Manuel Bandeira, com o eterno gauche. No entanto, discordo do autor quando coloca Manuel Bandeira – na minha opinião, o maior poeta que o Brasil já teve – no mesmo patamar poético e sentimentalista de Vinicius. Bandeira apresenta, sim, uma emoção forte em sua obra, mas não a mesma de Vinicius, muito mais romântico. Como nenhum outro poeta, o pernambucano soube fazer do sentimento algo absurdamente real, humano, gritante, depressivo e muito mesmo irônico, fato que Castello omite para coroar as contradições de Drummond. Olívia Mindêlo – Recife – PE

Ariano 2 Quero parabenizá-los pela maravilhosa idéia de trazer o meu amado Ariano Suassuna na revista Continente de agosto. A revista é extraordinária! Verinalda Gomes de Lima – Recife – PE

Drummond 3 Penso que a homenagem que a Continente prestou a Drummond foi a mais completa e mais significante. Como maior e mais completo poeta da literatura brasileira, Drummond pode ser considerado, pelo conjunto da sua obra e pela riqueza da mesma, como um revolucionário tímido e pessimista. Um poeta mais que poeta. Um visionário e conseqüente enriquecedor do nosso léxico. Salve Continente e o poetacontinente! Salve a pedra, salve o gauche, salve a Rosa, salve o mundo-sentimento. E agora, José? Daniel F. Viana Filho – Recife – PE Assis Ângelo Parabéns pela matéria “A voz do Brasil”, na edição de outubro. Emocional e emocionante. O Assis Ângelo merece. Donizete Costa – São Paulo – SP Ariano Suassuna 1 A Escola Olga Benário Prestes parabeniza e agradece a essa importante revista pela fantástica reportagem sobre o escritor Ariano Suassuna. Esta escola, que tem como alunado reeducandas da Colônia Penal Feminina, foi presenteada com essa magnífica reportagem no exato momento em que vivenciava o projeto pedagógico que teve por tema “A personagem Ariano: o Rei, o Palhaço e o Profeta”. A revista nos deu, assim, subsídios adicionais para de-

Ariano 3 Fico lisonjeada por vocês incentivarem meus sonhos. Dia 10 de outubro tive o prazer único e inigualável de visitar Ariano Suassuna e entregar-lhe uma poesia. Além de realizar um sonho, fiquei encantada com a simpatia e a sabedoria de Ariano. Foi uma tarde inesquecível e marcante que faço questão de compartilhar com vocês, incentivadores de minhas poesias e de minha vida. Ana Isabel F. de Carvalho – Recife – PE Maravilhada Fui presenteada com alguns exemplares de Continente. Fiquei maravilhada! Agora, sou assinante. Estudo turismo e sou fascinada por gastronomia, literatura de cordel (que será Nobel), Ariano Suassuna e o Nordeste. O trabalho de vocês é muito rico – não se limita ao Pernambuco, mas mostra o Brasil. Parabéns pela edição de outubro. Iolanda Carneiro – Brasília – DF Lia de Itamaracá Excelente revista, parabéns! Cada edição melhor que a outra. Já saiu alguma matéria sobre Nascimento do Passo ou Lia de Itamaracá? Itajaci Machado – Recife – PE García Márquez Parabéns, mais uma vez, pela excelente edição da revista de novembro. Apesar de demorar muito para conseguir adquirir a revista, adorei a matéria com Gabriel García Márquez. Sempre fui um fã de seus livros e adorei a visão “popstar” que a revista tirou do escritor. Continuem sempre assim, valorizando nossa cultura e a cultura latino-americana. Luiz da Fonseca – Recife – PE Susan Sontag Sou estudante de administração e sempre leio a revista. Muito legal a entrevista com Susan Sontag na edição 22. Não conhecia a autora e fiquei muito interessado em comprar algum de seus livros. É bom saber que existem intelectuais americanos que discordam da política de seu país. Ela

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2551 – 81 3222-4130 fone/fax me pareceu uma pessoa bastante consciente da situação global. Parabéns também a Luciano Trigo, que sempre faz excelentes entrevistas. José Guilherme Pontes – Recife – PE Concretismo Adoro poesia, principalmente a dos autores nacionais. E estou cada dia mais feliz com a revista Continente. Primeiro, foi a excelente edição sobre Drummond. Agora, uma bela matéria sobre os cinqüenta anos do concretismo, um estilo tipicamente brasileiro. A homenagem a Torquato Neto também não podia ter ficado de fora. É a “geléia geral” brasileira mostrando toda a sua criatividade. Gustavo Ramos – Recife – PE Publicidade Finalmente a revista Continente tem a divulgação que merece. Estou achando excelente a campanha de propaganda da revista. O outdoor da revista de novembro ficou muito bom. Continuem assim. Vitor Costa – Recife – PE Gabo Fiquei muito gratificada com a matéria que dá capa à edição de novembro da revista Continente Multicultural. Comprova a capacidade criativa do escritor colombiano Prêmio Nobel da Literatura, Gabriel García Márquez. A narrativa que ele contou numa conferência e que terminou virando argumento cinematográfico é uma prova disso. Só não entendi a inclusão daquela crítica feroz do cineasta Pier Paolo Pasolini. Parece que ele tenta acusar Gabo justamente de ser imaginativo! Ele queria que um contador de histórias fosse o quê? Daniela Martins – Rio de Janeiro – RJ

Errata No texto de Gilmar de Carvalho, Nino, o encantado (edição 23), foi publicada a foto do artista popular Manuel Graciano no lugar de “Seu” Nino, retratado na foto acima. Continente . dezembro, 02

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AnĂşncio turismo


CONTRAPONTO

Amistosidade unilateral Os mercados vão ter de duelar prioridades com a miséria e a fome Num governo predominantemente de centro-esquerda, nada é mais curioso e instigante do que falar sobre mercado, preços e competitividade em detrimento de estatização, regulação e concorrência. Nada é mais constrangedor do que tratar de produto interno bruto (PIB), câmbio flutuante e superávit fiscal quando o que desestabiliza mesmo é a fome, a miséria, a desigualdade social. E deixa estar que, nas profundezas da intimidade do poder, o coração supera a razão e explode. É esse choque de realidades que dialeticamente vai fazer o Brasil acordar dos devaneios retóricos da globalização. As declarações metafóricas do equilíbrio fiscal e as virtuais omissões das compensações sociais também farão jus a esse despertar. Concentrados na retórica econômica, os excessos involuntários da mídia transformaram meios em fins. Ofuscaram a transparência em nome da democratização das informações. A responsabilidade fiscal foi endeusada e a responsabilidade social, amaldiçoada. E a mídia... foi anestesiada pelos excessos de informações (econômicas) e escassez nas interpretações (sociais). Nesse cenário de profusão de informações e contradições, surge com significância a força dos mercados, que agora vão ter de duelar prioridades com a miséria e a fome. E essa força, ao contrário do que se pensa, não vem amparada teoricamente por animosidades. Ela chega amistosa e apresenta-se inserida numa nova teoria do desenvolvimento. Conhecida pelos seus efeitos, essa teoria tem nome e chama-se Abordagem Amistosa do Mercado (Market Friendly Approach). Identificada pela sua estratégia, ela requer: 1. setor privado saudável; 2. reduzido papel do governo; 3. abertura (com competitividade) para o resto do mundo; e 4. estabilidade macroeconômica. Politicamente correta, ela pretende constituir-se numa terceira via em relação à abordagem neoclássica típica (visão liberal pura) e à abordagem dita estatizante. Gostem ou não, essa é a visão atualmente predominante no Banco Mundial em relação aos países emergentes e consis-

tentemente adotada no Brasil. Sérgio Buarque de Holanda deveria estar vivo para ver que a virtual cordialidade do relacionamento pessoal também se estende a racionais modelos de desenvolvimento. A cortesia cínica – traço histórico do Brasil Holandês – também se faz presente na funcionalidade dessa parceria multicultural. Pelas suas práticas, o Estado é o garantidor dos fundamentos macroeconômicos necessários ao funcionamento eficiente do mercado. E o modelo requer, ainda, sistema financeiro forte, investimento em capital humano e ambiente favorável ao acesso de tecnologias. Todavia, apesar do manto de cordialidade do paradigma, o seu viés exportador escancara a economia e coloca toda a nação desnuda aos pés do mercado, esteja ou não preparada para isso. O curioso é que, amistosamente ou não, a realidade do mercado acaba atropelando as teorias e se impondo sobre os desejos e expectativas da sociedade. As intervenções funcionais usadas para superar suas falhas, na maioria das vezes, fracassam. Com efeito, neste Brasil de hoje, o enfrentamento de contradições entre a estigmatização da riqueza e as vicissitudes da pobreza ultrapassa a racionalidade limitada desses modelos. Traz à tona questões em que a especulação dos mercados e a fome do povo não são circunstâncias tão diferentes como se imagina, pois ambas agridem a cidadania.

Terminal de containers do Porto de Santos (SP)

Foto: Itamar Miranda / AE

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10 CONVERSA Fábio Lucas entrevista Mary del Priore

História mal contada A coordenadora do Arquivo Nacional, que lança neste mês novo livro pela Topbooks, ataca os equívocos e omissões da historiografia do Brasil

O que há de errado com a história do Brasil é o que há de ausente em nosso passado. A omissão é, em parte, culpa dos historiadores, que se deixaram guiar por interesses políticos dominantes, mas também é, em parte, culpa da sociedade. Quem diz isso é uma autoridade no assunto, a historiadora Mary del Priore, coordenadora-geral do Arquivo Nacional (AN) e co-autora, juntamente com Renato Pinto Venâncio, do Livro de ouro da história do Brasil, que acaba de ser lançado pela Ediouro. Professora da USP por treze anos e depois da PUC-RJ, a doutora em História pela USP e mãe de três filhos quer transformar o AN em um “centro ativo e dinâmico de informações a serviço do cidadão comum”, de acordo com suas próprias palavras. A ativa e dinâmica historiadora dirige ainda uma coleção de novos talentos em ciências humanas para a Editora Campus. Seu próximo livro já está no prelo, e sairá neste mês pela Topbooks: O mal sobre a terra: uma história do terremoto de Lisboa de 1755. O título é extraído de frase de Voltaire sobre o fato, que marcou o século 18. Nesta entrevista, del Priore ressalta a transparência inédita que os historiadores encontram hoje para pesquisar nos arquivos públicos do país, ao mesmo tempo que critica a predominância do eixo Rio-São Paulo na narrativa historiográfica nacional. “Vivemos num país cuja história desconhecemos”, avalia. Para a historiadora, a história no Brasil – como em qualquer lugar – não se repete, mas permanece, gerando problemas crônicos que não são responsabilidade exclusiva das elites, e sim de toda a sociedade.

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Foto: Antonio Augusto / Ediouro


CONVERSA 11 »

Personagens como Frei Caneca são preteridos. Há uma espécie de monopólio no eixo Rio-São Paulo. São essas duas cidades que ditam os modismos da historiografia

Quais os principais erros ensinados na história do Brasil? Não se trata apenas de fazermos um inventário de equívocos historiográficos, como, por exemplo, a Inconfidência Mineira, que é sabido que foi uma rebelião de ricos, brancos, em prol de seus próprios interesses. O maior equívoco da historiografia brasileira é não estar fazendo suficientemente história. A história do Brasil está por ser feita. Não há nenhuma desculpa, nem a precariedade dos arquivos ou das bibliotecas, nem as dificuldades de acesso à universidade, que justifique a falta de um maior número de gente produzindo textos de história do Brasil. O que há de ruim na tradicional história brasileira, dada nas escolas? É importante contar a história desses Brasis que ainda não foram contados. A história do Norte, por exemplo. A história do Nordeste, que foi tão importante ao longo do século 19. O Brasil começa no Nordeste, diriam alguns autores. Tudo isso está para ser incorporado, reinterpretado e contado. Nas universidades do Sudeste, não se freqüentam esses temas. O maior problema que temos hoje é que estamos num país cuja história desconhecemos. Personagens como Frei Caneca foram injustiçados de alguma forma? Eu diria que são preteridos. Há uma espécie de monopólio no eixo Rio-São Paulo. São essas duas cidades, suas universidades e seus departamentos de História que ditam os modismos da historiografia. E ditam também uma História que, no mais das vezes, conta a história dos próprios estados. Rio e São Paulo fazem o papel de centro e tudo mais no Brasil é periferia. Essa história periférica é evitada, porque, em

primeiro lugar, é desconhecida – os historiadores do Rio e de São Paulo raramente conhecem a história do Nordeste, do Norte, do Centro-Oeste, e mesmo do Sul. A Sra. diz que a história não se re pete. Mas na história brasileira, às vezes tem-se a impressão de que há uma repetição de ciclos. Como retirar essa impressão? Basta que você substitua a sensação de ciclos por uma evidência histórica, essa sim, muito interessante de ser observada no Brasil, que é a das permanências. Não se trata de ciclos. As pessoas reconhecem determinados fenômenos de repetição, mas na realidade eles não estão se repetindo: eles são uma permanência. São coisas que existem há muito tempo. Qual seria um exemplo de perma nência? O descaso com a criança de rua. Imaginamos que seja algo de grande atualidade o menino que vem no farol pedir dinheiro. Ora, as primeiras crianças de rua são trazidas para o Brasil no século 16 pelos padres jesuítas. Meninos recolhidos nas cidades portuárias de Portugal, e que vêm trabalhar, prestando-se a uma espécie de mão-de-obra escrava, não negra, mas branca, nas escolas jesuíticas. Essas crianças também foram drenadas para dentro do processo ultramarino, compondo uma classe de serviçais desclassificada nos navios. Esse é um exemplo de permanência. Pelo visto, não deve ser um caso isolado. Há muitos exemplos de permanências. Vejamos o descaso com a educação das camadas desfavorecidas. Sabemos que, embora a escola pública tenha si-

do criada por D. Pedro na primeira metade do século 19, já nesse período ela é uma escola para crianças brancas, absolutamente proibida para os escravos. As crianças mulatas e negras começam a freqüentar a escola apenas no final do século 19. É necessário que imigrantes italianos e espanhóis, anarquistas, venham para o Brasil, e exijam, através de sua agenda política, um melhor destino para suas crianças, para que a escola pública então se torne uma realidade para a maior parte das nossas camadas desfavorecidas. Assim sendo, que esperança pode ter o historiador, que vê a continuidade de problemas tão longos? O historiador não deve trazer esperança. O historiador traz questões. Isso ajuda o historiador a se colocar outras questões, como, por exemplo: por que não há rupturas para esse padrão? Por que não há mudanças? O historiador acaba por perceber que, contrariamente ao que se diz, a meu ver até de forma um pouco caricatural, não apenas os Estados e os governos são responsáveis: a sociedade tem uma parcela de culpa muito grande. Muitos problemas não seriam, en tão, como se aponta com freqüência, culpa das elites? Vou lhe dar um outro exemplo de permanência onde a sociedade é majoritariamente responsável: o trabalho infantil. Não apenas o trabalho da criança escrava, mas o trabalho da criança pobre é uma realidade que atravessa 500 anos de nossa história. Hoje, um dos maiores problemas que os programas de educação vêm enfrentando é o de extirpar da mentalidade dos pais a idéia de que o trabalho não é regenerador. O trabalho, nas camadas Continente . dezembro, 02


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12 CONVERSA

Aclamação de D. Pedro I no Paço Imperial, de Jean-Baptiste Debret. A História brasileira sempre foi contada a partir da “corte”

desfavorecidas, é sempre identificado com uma coisa que vai ajudar a construir uma boa personalidade. Esse menino tem que trabalhar porque ele vai crescer, vai ficar longe do vício, o trabalho é bom, o trabalho constrói. Como arrancar da pele das pessoas essa tradição? Vemos que a sociedade é, em grande parte, responsável por certas permanências. Como o racismo, que a mestiçagem não consegue curar, porque o mulato tem preconceito contra o negro. A história do Brasil não prima exa tamente pela democracia contínua. O historiador brasileiro tem condições hoje de trabalhar com transparência, com um acesso à informação mais privilegiado do que antes? O historiador brasileiro hoje tem livre acesso, estamos de fato numa democracia. Ele tem livre acesso a todos os arquivos públicos. Aos arquivos privados, não, porque, no caso do arquivo privado, cabe ao seu detentor dizer se quer ou não que esse arquivo seja pesquisado. Mas além de termos acesso a todos os arquivos públicos, contamos também com mídias e com uma opinião pública que vigiam a interdição

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Não apenas o trabalho da criança escrava, mas também o da criança pobre é uma realidade que atravessa 500 anos de nossa História das informações, a censura, e perseguem também as informações privilegiadas. Isso aumenta a responsabilidade do historiador? O grande compromisso do historiador brasileiro hoje não é criticar, olhar para trás pelo retrovisor da história. É fazer mais história, e fazer uma história cada vez melhor, cada vez mais rigorosa, cada vez mais voltada para documentos, arquivos, quer dizer, para uma relação séria com seu ofício. A mídia, quando fala da história, geralmente trata do passado com uma certa solenidade... Ou de forma caricatural, como nas minisséries. ...e, quando fala do presente, ou é de maneira indiferente, sem alcançar o significado dos fatos, ou sensacio nalista, amplificando seu poder de audiência. Como a imprensa brasileira tem se relacionado com a história do

país, no seu entendimento? Na realidade, nós somos pouco informados pela mídia. Tão bombardeados estamos com as mais diversas formas de informação, que acabamos passando batidos pelas informações que são viscerais. Dada a formação hoje da nossa imprensa, que visa buscar a última informação, muitas vezes falta qualidade na informação. É preciso que os jornalistas também façam a sua parte, adquirindo uma erudição maior, um conhecimento maior acerca dos temas que percorrem a mídia, antes de entrevistar, antes de levar questões para os atores da história. Os jornalistas poderiam fazer de seu trabalho um instrumento de conscientização crítica da realidade. E a postura do historiador, já que o historiador também usa a imprensa como fonte de seu trabalho? O bom historiador sempre interroga o documento. Ele jamais toma o documento por uma coisa certa, acabada, destituída de armadilhas. O Imagem: Reprodução


CONVERSA 13

ofício do historiador consiste justamente em submeter o documento, seja uma gravação radiofônica, uma fotografia, uma imagem de jornal, um texto de editorial, a toda sorte de crítica. Uma crítica objetiva e uma crítica das subjetividades contidas nesse documento. O historiador hoje também é uma espécie de lingüista preocupado com as palavras, que vai analisar o sentido de cada palavra. Ele tem todo um aparato instrumental para virar e revirar esse documento, até que ele se revele o mais próximo possível da objetividade. É possível chegar à verdade histó rica? O historiador não está em busca de uma verdade, porque as verdades são construídas, mas está em busca de uma informação objetiva, na qual ele tenha a mais absoluta imparcialidade. É mais fácil para o historiador ler o jornal do dia e fazer uma análise mais aproximada do que aquilo representa? Certamente que sim. Dotado de uma bagagem de informações, ele vai saber interpretar se esse fato é conseqüência de algo que já estava em gestação. Mas o jornal do dia coloca para o historiador um grande problema: ele traz um fato que ainda não acabou. E o historiador é o especialista do fato, quando o fato já teve o seu desenvolvi-

mento, quando ele já está finito. O historiador então recua no tempo, para fazer uma análise do fato finito. A história do tempo presente não está acabada, nós não sabemos o que vai acontecer. O Brasil é um país jovem, e como todo jovem, tem uma idéia fixa: o futuro. Como essa idéia fixa aparece na história brasileira? Através das várias utopias. No século 16, por exemplo, temos um movimento utópico interessantíssimo, desenvolvido pelos nossos índios Tupi. Eles leram a chegada dos portugueses, e toda a destruição que os portugueses causaram, significando que algum dia eles poderiam, graças a tantas misérias, encontrar um futuro melhor. Canudos foi uma utopia. A nossa história é atravessada de utopias. E a utopia tem a função de revelar o mal-estar da sociedade. Enquanto nós estivermos vivendo utopias, é porque ainda não estamos vivendo a nossa plenitude como uma sociedade democrática, como uma democracia de inclusão. A história de utopias está na raiz do otimismo do brasileiro? A utopia não deixa de ser a manifestação de uma cultura que consegue se pensar numa chave assertiva, que consegue se enxergar um dia melhor. A nossa história é de fato marcada pela

perspectiva de um dia melhor. Não me refiro apenas ao passado, às grandes lutas, como Canudos, em que houve derramamento de sangue, mas me refiro à própria cultura brasileira, nossa música e nossa dança, onde a visão de um futuro melhor está sempre presente. Uma explicação para as permanências, a que a Sra. se referiu antes, não seria essa preferência pelas utopias, fazendo com que o brasileiro olhe mais o futuro do que a realidade? Entendendo que a utopia é alguma coisa que alija, que aliena, poderia ser. Mas quando digo que a história do Brasil está para ser feita, é porque não conhecemos suficientemente bem todas as formas de luta, de resistência, que foram empreendidas por todas as camadas de brasileiros, em todos os rincões do país, em busca de uma realidade material melhor. Quando pudermos fazer esse balanço, veremos que, contrariamente a essa idéia de que o brasileiro é acomodado, engessado pelo Carnaval, pela festa, pelas utopias, vamos nos deparar com verdadeiros heróis. Heróis anônimos.

O primeiro trio elétrico de Salvador, em 1950. Quando o Brasil fizer um balanço de sua História, vai ver que o povo não é acomodado nem engessado pelas festas como o Carnaval Foto: Reprodução

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Âť

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Família Szpilman observa pela janela o terror do Holocausto

Holocausto sem clichês Novo fiLme de Polanski prega a tolerância

Nascido em 1933 em Cracóvia, na Polônia, Roman Polanski passou parte de sua infância no gueto judeu, durante a Segunda Guerra. Viu soldados nazistas enviarem sua mãe para o campo de concentração de Auschwitz, e seu pai ser deportado. Passou por privações, viveu escondido em casas de camponeses e aprendeu a escapar da morte como um exercício diário. Mas foram necessárias quatro décadas de cinema – sua estréia foi em 1962, com Faca na água – para que o diretor polonês decidisse levar à tela o Holocausto, através da adaptação das memórias do pianista Wladislaw Szpilman, que morreu em 2000, aos 88 anos. “Acho que hoje existe um grande número de jovens interessados em saber o que aconteceu no Holocausto”, declarou o cineasta de 69 anos (que parecem 50) a Continente. “E, como eu estou envelhecendo, pensei que esta poderia ser a minha última oportunidade de fazer um grande filme de época. Eu sempre quis dirigir um filme assim, mas precisava esperar ficar maduro, para ganhar uma perspectiva maior em relação àqueles acontecimentos. Quando li as memórias de Szpilman, soube imediatamente que tinha encontrado o material certo.” Fotos: Divulgação

Grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, O pianista só estreará no Brasil em fevereiro de 2003, mas foi exibido no Rio de Janeiro em sessões especiais do Festival do Rio BR, em outubro, que contaram com a presença do diretor. Embora a comparação com a superprodução A lista de Schindler, de Steven Spielberg, seja freqüente, o filme de Polanski evita as convenções e os clichês habituais nas grandes produções americanas sobre o tema. Em lugar de chocar o espectador com um relato impactante e sensacionalista do extermínio em massa, prefere se ater aos detalhes, mostrando o horror e o absurdo da perseguição aos judeus da forma como eles eram vividos cotidianamente, por um único indivíduo. Filme e livro narram os acontecimentos de forma objetiva, evitando as armadilhas do sentimentalismo e do maniqueísmo: nem todos os alemães são monstros, nem todos os judeus são bonzinhos. O pianista prega a tolerância, e não o ódio – sentimento que está na raiz da lógica de todas as guerras. Naturalmente, Polanski recorreu às próprias lembranças da infância no gueto, como na cena em que o pai de Szpilman é esbofeteado por um soldado nazista, ou no momento em que uma jovem é assassinada apenas por fazer uma pergunta. “A pior violência para uma criança é ver seus pais serem humilhados. E, para mim, mais duro que o frio, a fome ou o medo, foi ter de me separar de meus pais.” Continente . dezembro, 02


O judeu pianista é salvo pelo seu talento

O pianista é o retrato duro de um pesadelo, de uma ferida que nunca fecha. É como se víssemos o horror através da fresta de um esconderijo ou pelo buraco de uma fechadura, o que remete a uma estética da dissimulação presente em diversos filmes do diretor. Narrado do ponto de vista de Szpilman – que estava tocando um noturno de Chopin no estúdio de uma rádio em Varsóvia quando os alemães invadiram e destruíram o edifício –, O pianista faz o espectador compartilhar com o protagonista a pressão de experiências que o esmagam, destruindo a sua identidade e reduzindo todos os seus sentimentos ao impulso primário de sobrevivência. A interpretação contida do expressivo ator americano Adrien Brody (revelado por Ken Loach em Pão e rosas) contribui para o estranhamento produzido pelo filme. Quase todos os parentes de Szpilman morreram no campo de concentração de Treblinka, mas Polanski não está interessado na exibição de cadáveres ambulantes. O pianista é um filme sobre o medo e sua superação, mais do que sobre a violência. Fiel aos fatos narrados na autobiografia de Szpilman (escrita imediatamente após a guerra, em 1946, mas só publicada na Alemanha e nos Estados Unidos no ano passado), o cineasta não pretende transformar seu personagem num herói, segundo moldes hollywoodianos. E mostra que Szpilman acabou sendo salvo por um oficial nazista, que morreria mais tarde num campo de prisioneiros soviético, sem que o pianista conseguisse retribuir o favor. O pianista passa uma mensagem de perdão e esperança no futuro, não

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somente por mostrar a imensa capacidade de sobrevivência do ser humano nas condições mais adversas, mas também por exaltar o poder da arte. Polanski, porém, evitou transpor diretamente suas próprias experiências para a tela: preferiu usar as memórias de Szpilman para realizar um filme catártico, um acerto de contas pessoal com aquele período sombrio. “Eu não quis fazer um filme autobiográfico, mas é claro que o fato de eu ter testemunhado episódios do Holocausto me ajudou muito na reconstituição do período. Não precisei recorrer a intermediários para contar a história, sabia tudo de primeira mão. Mas há diferenças: eu era uma criança, e Szpilman já era um pianista famoso. E o gueto de Varsóvia, onde ele viveu, era muito maior que o de Cracóvia. Além disso, eu jamais transformaria a minha própria vida num filme. Não gosto de lavar minha roupa suja em público.” É certo, porém, que a vida de Roman Polanski daria um filme bastante movimentado, e não apenas pelo drama da sobrevivência ao nazismo, na infância. Parte de sua trajetória foi contada no livro Roman, escrito em 1984 – e que só dedica, porém, poucos parágrafos a dois episódios marcantes e escandalosos: em 1969, o assassinato bárbaro de sua mulher, a atriz Sharon Tate (que trabalhou em seu filme A dança dos vampiros e estava grávida do diretor), pela seita do fanático Charles Manson; e a acusação de ter seduzido, em 1977, uma menina de 13 anos, após uma festinha na casa do ator Jack Nicholson. O processo valeu a Polanski seis meses de


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detenção nos Estados Unidos, sob observação psiquiátrica. Convencido de que não teria um julgamento justo, fugiu do país, o que até hoje o impede de pisar em território norteamericano. Polanski estudou cinema na Polônia e trabalhou como ator em diversos filmes, incluindo o clássico Geração, de Andrzej Wajda – com quem voltou a trabalhar no ano passado, em Vingança. Ainda hoje ele atua no palco, de tempos em tempos, mas “não tanto quanto gostaria.” A repercussão de seus filmes Repulsa ao sexo (1965), com Catherine Deneuve, e Cul de sac (1966) o projetou internacionalmente, mas ao mesmo tempo associou seu nome a uma imagem de gênio temperamental, dado a excessos e obcecado pelo erotismo e pela violência, inclusive na sua sangrenta adaptação de Macbeth. A consagração veio com Chinatown, com Jack Nicholson, uma releitura do cinema noir que ganhou quatro Oscar em 1975. Em 1976, Polanski dirigiu e protagonizou O inquilino na França, um estudo perturbador sobre a desintegração da personalidade de um indivíduo. E, em 1979, dirigiu Nastassia Kinski em Tess, uma adaptação do romance de Thomas Hardy. O pianista proporcionou a Polanski a oportunidade de voltar a filmar na Polônia natal, depois de quase 40 anos. “Quando voltei à Polônia pela primeira vez, após a queda do comunismo, demorei a me acostumar com a idéia de que podia conversar abertamente sobre qualquer assunto, na rua.” Indagado sobre outro filme que abordou a tragédia do Holocausto de um ponto de vista heterodoxo, A vida é bela, Polanski responde com entusiasmo: “Eu amo esse filme. Roberto Begnini teve uma atitude muito corajosa ao dirigir uma comédia sobre esse assunto. Mas, se pensarmos bem, existe algo de quase cômico no projeto nazista de exterminar um povo inteiro. É algo tão absurdo que seria engraçado, se não fosse trágico.” Atualmente, Polanski vive em Paris com sua mulher, a atriz Emanuelle Seigner (estrela de seus filmes Busca frenética e Lua de fel), e os dois filhos do casal. Em relação a projetos futuros, o diretor guarda na gaveta um roteiro baseado no romance O mestre e Margarida, do dissidente russo Mikhail Bulgákov. O projeto foi rejeitado pelos executivos das grandes produtoras, para grande frustração do diretor. Mas, após o sucesso de O pianista, tudo pode mudar. “Hoje só o que interessa às produtoras é fazer dinheiro em larga escala. Os grandes estúdios não ficam mais satisfeitos se um filme ganha prêmios mas não é um êxito comercial. Sinto saudade do tempo em que me davam total liberdade financeira para dirigir filmes como O inquilino, O bebê de Rosemary ou Chinatown.”

Adrien Brody, que interpreta Szpilman, ouve orientações de Polanski

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18 FILMES Kleber Mendonça Filho

Amém

ao anticristo Costa-Gavras polemiza com a Igreja Católica que ficou indiferente às vítimas do nazismo Eu ainda era adolescente quando vi o primeiro filme de Konstantin Costa-Gavras. Foi Missing (Desaparecido), numa sessão de vídeo na Inglaterra, em 1983. Na época, tínhamos amigos peruanos, bolivianos e chilenos estudando ou exilados na Grã-Bretanha. Vimos o filme na casa de uma chilena viúva, exilada. Missing mostra um pai americano O polêmico cartaz desenhado por Oliviero Toscani (Jack Lemmon) à procura do seu filho, desaparecido no vendaval brutal promovido por Augusto Pinochet no coup d’état que depôs o presidente chileno eleito pelo povo Salvador Allende, em 1973. Para mim, Missing (Desaparecido) passou como um filme de terror e não como um “thriller político”, como indicava a embalagem do VHS. Também difícil esquecer a atmosfera de emoção que tomou a sala. Foi a primeira vez que entendi existir um diálogo entre a política e o horror. Devo isso a Gavras. Curiosamente, 19 anos depois, tenho a oportunidade de conversar com o homem. Costa Gavras, 69 anos, foi um dos convidados do Festival do Rio BR, em outubro último. No festival, apresentou em primeira mão no Brasil seu último filme, o controvertido Amém. Conversamos no Copacabana Palace, num fim de tarde. Gavras é grego de Atenas, mas mora em Paris há mais de 40 anos. Tem lugar reservado na história do cinema por ter filmado o que ele próprio chama de “conflitos humanos”, mas que a maioria interpreta como “histórias políticas”. É o “cineasta político” por excelência. Utiliza um formato cinematográfico visto pelo mercado como “thriller”, mas sempre pontuado por temas sociais. Defensor ferrenho dos direitos humanos, seus personagens geralmente encontram-se injustiçados politicamente, ou à procura de uma informação importante que irá mudar a percepção que eles têm do mundo. “Hoje em dia, a palavra ‘política’ amedronta as pessoas. Há uma descrença generalizada nos políticos e na política, e isso faz do chamado ‘cinema político’ uma péssima escolha para produtores. Prefiro acreditar que, ao invés de ‘política’, filmes devam abordar temas relevantes para a sociedade. Antes de serem considerados ‘políticos’, observe que meus filmes enfocam o aspecto humano, conflitos que homens e mulheres são obrigados a enfrentar, a capacidade que as pessoas têm de resistir. Isso, para mim, é política, e qualquer filme é político”, diz Gavras. Atualmente, uma das indagações mais óbvias para um cineasta que filma a política seria a possibilidade de filmar os

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Fotos: Reprodução


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eventos de 11 de setembro, e seus desdobramentos. “É cedo demais”, diz Gavras. “A palavra ‘terrorismo’ tem sido utilizada em demasia. Parece existir hoje um dogma contra o terrorismo, o que é bom no sentido de combatê-lo, mas ruim porque a palavra ganha um significado cada vez mais solto e genérico. Creio também que o presidente Bush é o grande responsável por isso, pela forma como tem combatido esse monstro que ele próprio alimenta.” Nos anos 80, Gavras fez seu primeiro filme com dinheiro de Hollywood, Missing (Desaparecido), levando a Palma de Ouro de 1982 no Festival de Cannes (dividida com o turco Yol). Gavras diz ter excelente relação com Hollywood, relação construída dentro dos seus próprios termos. “Recebo roteiros sempre, muita coisa não me interessa. Os filmes que faço por lá devem se encaixar dentro de minhas especificações. Devo ter controle total sobre roteiros, elenco, montagem e pós-produção, sempre feita em Paris. Só filmo também com a minha própria equipe francesa. Os meus filmes americanos, Desaparecido (Missing), Atraiçoados (Betrayed, 1987), Muito mais que um crime (The music box, 1989) e O quarto poder (Mad city, 1998) foram feitos nesse esquema.” Nos anos 60 e 70, a trilogia que transformou Gavras em autor respeitado pela crítica e público é composta por filmes franceses que já traçavam as linhas de um cinema humano, de linguagem clássica e comunicativa, freqüentemente desdenhada por causa de um suposto flerte dele com o cinemão. Em Z (1969), que ganhou Oscar de Filme Estrangeiro e Montagem, abordou a política da Grécia sem, em momento algum, localizar a ação ou o país. No entanto, o filme traz um audacioso letreiro na abertura que diz o seguinte: “Qualquer semelhança com personagens e acontecimentos reais é intencional.” Estado de sítio (État de siège, 1973) analisava a presença dos Estados Unidos na América Latina (Uruguai) como agente catalisador de uma política antiesquerda. Sessão especial de justiça (Section spéciale, 1975) enfocou o período francês de Vichy. Esses três filmes, assim como Missing (Desaparecido), tiveram problemas no Brasil com a Censura Federal, durante o

regime militar, período em que o nome “Costa-Gavras” era sinônimo de “interdição” e “cortes”. São filmes que, de certa forma, comentam o Brasil da época. Na memorável sessão inglesa de Missing (Desaparecido), observamos com certo choque a presença bem posicionada de um torturador com sotaque carioca na assustadora seqüência do túnel, no campo de futebol. A cena foi cortada no lançamento do filme nos cinemas do Brasil, em 82. “Em Estado de sítio também há uma referência: na cena de tortura há a bandeira brasileira ao fundo...”, lembra Gavras com o tom de quem é espectador do seu próprio filme. “O Brasil nos meus filmes tinha a presença discreta e forte que um grande vizinho merece. Estado de sítio e Missing (Desaparecido) são ambientados na América do Sul. O Brasil, pelo seu desenvolvimento político notório nos anos 60 e 70, estava lá, não tinha como não estar. Hoje, minha visão desse país é confusa. O Brasil é claramente muito rico, mas tem forte aspecto de terceiro mundo. Talvez os líderes brasileiros dos últimos 50 anos tenham algo a responder”, diz. Sobre censura, Gavras afirma que a de hoje talvez seja até mesmo pior do que a de antigamente. Reflete sobre a censura do dinheiro e exemplifica: “Veja o caso de Berlusconi, na Itália, que criou um sistema perfeito [para ele], de certa forma idêntico ao formato soviético de produção e propaganda, com o acréscimo de que funciona em regime capitalista. Ele controla a TV estatal, é banqueiro, publica livros, produz e distribui filmes, é dono de supermercados, tem um time de futebol e, claro, é o Chefe de Estado! Para fazer cinema, é necessário obter dinheiro de bancos e TVs. Berlusconi, de fato, está à frente de um regime não menos do que ‘soviético’. Na Itália, hoje, roteiristas e diretores têm enorme dificuldade de pôr em prática idéias que irão contra esse regime forte.” Gavras me disse ainda que Amém será lançado nos EUA por uma distribuidora pequena. “Nenhum estúdio de porte quis chegar perto. Na verdade, a Paramount considerou, mas terminou dizendo não.” Censura. A história de censura e controvérsias na obra de Gavras tem continuidade com seu trabalho mais recente. Em Amém, ele volta ao Holocausto, tema que abordou com certa distância em

Cenas do Holocausto real A partir da esquerda: “Os judeus não são bem-vindos aqui”, placa que podia ser vista em toda a Alemanha. Estas 38 escolares formam parte das 634 vítimas do regimento da 55 Der Führer, em 10 de junho de 1944, em Oradour-sur-Glane, França. O campo de concentração de Auschwitz recebia os prisioneiros com as plavras “o trabalho os tornará livres.” Cardeal August Hlond, conhecido pela discriminação contra os judeus que não se convertiam ao catolicismo. Insígnias dadas aos oficiais da SS, polícia da Alemanha nazista, que se destacavam pela rudeza e disciplina. Número de identificação do judeu Edwin Chwedyk, que ficou prisioneiro num campo de concentração na Polônia. Continente . dezembro, 02


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Muito mais que um crime (The music box, 1989), Urso de Ouro no Festival de Berlim, sobre uma filha americana que descobre lentamente que seu pai imigrante foi um carrasco nazista. Amém lembra que o Vaticano (Papa Pio XII) ignorou relatos do oficial nazista Kurt Gerstein sobre o que acontecia nos campos de concentração. O filme foi atacado pela Igreja Católica. Gerstein descobriu horrorizado que o gás Zyklon B, invenção sua para uso em animais, passara a ser usado no extermínio de seres humanos. “Amém não é sobre a Igreja Católica, mas talvez sobre o poder dessa igreja, sobre um tipo de inércia que só os poderosos são capazes de promover.” Sobre o torturado personagem verídico Gerstein, Gavras o vê como alguém importante que foi obrigado a fazer escolhas dramáticas perto demais do poder. “Ele ficou entre saber e fazer. Poderia ter sabido de tudo e decidido abandonar seu mundo imediato com a família, fugindo para a Inglaterra ou para a Suíça. Ou ficar, como ficou, e achar uma maneira de lutar contra aquilo que ele sabia. Gerstein escolheu a segunda opção, tentando conversar com as pessoas e descobrindo, no processo, que ninguém queria realmente saber de nada. Finalmente, decidiu continuar fazendo o que era esperado dele, ou seja, fornecer o gás Zyklon e esperar para, mais tarde, servir de testemunha com toda a informação que seria capaz de fornecer.” Gavras acha que o fato de Gerstein ter acreditado na História e ter tentado servir de testemunha mais tarde representa enorme otimismo da parte dele. “Ele sabia intimamente que um sistema brutal como o nazismo não duraria muito tempo, estaria fadado ao colapso. Essa crença na História mostra também uma certa ingenuidade de sua parte, uma vez que, com o fim do nazismo, os aliados não estavam preparados para ouvir um nazista [Gerstein] que foi visto como ‘mais um monstro arrependido’, em meio a dezenas de oficiais da SS que diziam ter sido vítimas do sistema.” Eu perguntei, em tom até certo ponto crítico, sobre a abordagem relativamente branda de Amém em relação ao Holocausto, especialmente se comparada à dureza de O pianista, de Ro-

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man Polanski. Respondeu que não teria a capacidade de recriar o horror do Holocausto. “Não conseguiria me imaginar dirigindo uma seqüência com atores e figurantes dentro de uma câmara de gás: vocês são judeus, o gás vai começar a sair, podem se abraçar agora...” Gavras diz ter optado por estimular o espectador para que sentisse as imagens, sem necessariamente mostrá-las, utilizando o poder da memória e da história que faz parte da bagagem de cada um. “Não é um dogma que estou impondo, mas o meu ponto de vista pessoal”, ele esclarece. “Mas Missing (Desaparecido) sempre me pareceu um filme de horror”, retruquei. Gavras respondeu: “Missing trazia tema mais recente e o horror me parecia mais imediato, a presença militar nas ruas, soldados atirando nas pessoas. Sim, isso é aterrorizante. Em muitos aspectos, para mim, não parecia passado, mas presente, e era mesmo. Tive a participação no filme de exilados que me contaram coisas terríveis, inclusive de um general da aeronáutica que fugiu para a Bélgica, personagem não muito distante de Gerstein. Ele não conseguiu administrar o horror que acontecia no Chile, na sua frente. Talvez tudo isso tenha facilitado nessa expressão mais dura do horror.” Perguntado sobre como enxerga a Igreja Católica, Gavras diz saber de personalidades formidáveis aliadas à Igreja, mesmo que ela própria não aprecie muito o trabalho delas. “Lembro-me de Dom Hélder Câmara, que conheci em Paris, há 15 anos, num grande jantar organizado por Miterrand. Figura formidável com a aparência de um santo, baixinho, magrinho, voz inesquecível. Foi uma noite especial, discutimos o trabalho dele e ele falou longamente sobre meus filmes. Sempre lembro algo que Dom Hélder me disse (risos). É o seguinte: ‘Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que os pobres estão com fome, me chamam de comunista.’ Uma pena que personalidades como essa não sejam, historicamente, bem vistas pela elite da Igreja. Mesmo assim, prefiro enxergar a Igreja como um todo.”


Confissão do oficial nazista Freit Gerstein ao jesuíta Ricardo Fontana e o Papa Pio XII enquanto o benzia

Entre a espada e a suástica Os filmes de Costa-Gavras parecem sempre girar em torno de informações importantes, da revelação e da descoberta. O pai que procura saber o que aconteceu com seu filho no Chile de Pinochet, em Missing (Desaparecido). A filha que teme saber do passado nazista do pai, em Muito mais que um crime. As interpretações de diferentes verdades em Z. No seu último trabalho, Amém (2002), Gavras nos mostra dois homens munidos de informação e, por isso, brutalmente imprensados pelo poder. Aqui, o poder (a Igreja Católica) manifesta-se pela sua capacidade de promover a inércia. O filme é também a história de uma confissão que a Igreja preferiu não ouvir. Recebido no último Festival de Berlim sob os protestos dos católicos, o filme é material para controvérsia já a partir do seu cartaz, uma criação do italiano Oliviero Toscani, responsável por algumas das campanhas polêmicas da marca Benetton. A arte nos mostra a união gráfica da cruz com a suástica de Hitler. Sintetiza de forma provocante a história do oficial da SS Kurt Gerstein (Ulrich Tukur), que, horrorizado com o que vira em campos de concentração, parte para divulgar o que sabe via Vaticano. O Papa Pio XII e seus assessores não dão a devida atenção, fato histórico comentado em 1999 por João Paulo II como “fraqueza ou erro de apreciação, por tudo o que foi dito e feito de forma indecisa e imprópria”. Gerstein, no entanto, encontra no jesuíta Ricardo Fontana (Mathieu Kassovitz), próximo do Papa, ressonância que considera adequada. Os dois serão esmagados pela força de suas consciências. Gerstein, sanitarista, desenvolveu o gás Zyklon B, originalmente usado para abater animais e depois adotado pela SS para o “processamento” de milhares de “unidades” (seres humanos) semanalmente. É condecorado pelo seu trabalho e repudia intimamente a admiração dos superiores. São três os tipos de interlocutores desse trágico (e freqüentemente patético) personagem: os que não acreditam nele por ser o relato absurdo demais para qualquer tipo de compreensão; os que não querem saber e os que acham a idéia de exterminínio em massa interessante. A Igreja prefere não saber de nada. Quando devidamente informada, vira peso morto, e o Papa Pio XII não se procuncia a respeito, como na sua histórica mensagem do natal de 1944, quando balbuciou mansamente sobre o espírito natalino fazer-se presente entre os homens. Gavras nos apresenta um sumário político de informações enxutas. A Igreja não teria se pronunciado com receio de virar um novo alvo de Hitler, ou de, no final das contas, fortalecer os comunistas. Costa Gavras diz: “A indiferença sempre existiu, é parte do ser humano. Não é específica da Segunda Guerra nem do Holocausto. Os Estados estão acostumados a ignorar monstros. Basta observar o quanto somos passivos diante de um continente como a África.” (K.M.F) Fotos: Divulgação

A partir da esquerda: As irmãs Renate e Innes Spanier olham pela escotilha do navio St. Louis. Mulheres judias fotografadas na maternidade Rothschild, em Paris. Todas morreram no campo de concentração de Auschwitz. Um clérigo entre os prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald. Judeu crucificado numa suástica. Um guarda do campo de concentração reduzido à impotência sem suas armas de castigo.

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22 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

A criança e o artista Uma reflexão que parte de Picasso e avança por Matisse e Klee

Já tive oportunidade de manifestar minha opinião sobre um aspecto da personalidade de Picasso – a sua precocidade no domínio da arte de pintar. Todo mundo conhece a história – talvez parcialmente inventada – acerca da reação do pai do artista quando este, aos quatorze anos, pintou a tela Ciência e caridade, de impressionante realismo e perfeição acadêmica. O pai de Picasso, que era pintor, ao se ver superado pelo talento do filho, teria-lhe entregue a paleta e os pincéis, dizendo: “Tome-os para você, pois a partir de hoje não pintarei mais.” Pode ser que a coisa não se tenha passado exatamente assim e que essa anedota tenha sido inventada para evidenciar o impressionante talento de Picasso, que tão cedo se manifestara. De fato, um garoto de quatorze anos pintar daquela maneira, com tal domínio da técnica e tamanha expressividade, era de causar espanto. Refletindo sobre isso, engendrei uma explicação para o desempenho futuro do artista que, em lugar de se manter fiel à linguagem conquistada, rompeu com ela e provocou uma verdadeira revolução na história da arte. A explicação é a seguinte: como já tão cedo dominara a linguagem pictórica vigente, a alternativa que lhe restava não podia ser outra, senão a de arrebentar com ela. A leitura recente do livro de Brassaï Conversas com Picasso fez-me voltar à questão do talento precoce. Brassaï, que passara anos fotografando as obras de Picasso, certo dia levou-lhe os desenhos de um menino de sete anos que impressionou o mestre, que depois de elogiar-lhe o talento, observou: “Por mais espantosos que sejam seus desenhos, esse dom não lhe pertence... Contrariamente à música, as crianças-prodígios não existem na pintura. (...) O que se tomaria por um gênio precoce é o gênio da infância, que desaparece sem vestígio, com o passar da idade... É possível que esse garoto se torne um dia um verdadeiro pintor, ou mesmo um grande pintor, mas para isso terá de recomeçar de zero... Quanto a mim, não tive esse gênio... Meus primeiros desenhos jamais teriam podido figurar numa exposição de desenhos de crianças... A imperícia infantil, sua ingenuidade, era quase ausente deles... Muito rapidamente ultrapassei o estágio dessa maravilhosa visão... Na idade desse garoto, eu fazia desenhos acadêmicos... A minúcia, a exatidão de meus desenhos, me assustava... Meu pai era professor de desenho e provavelmenContinente . dezembro, 02

Paul Klee. Revolução do viaduto, 1937. Óleo sobre fundo de algodão num esticador, 60x50cm. Hamburgo. Hamburger Kunsthalle

te foi ele quem me impeliu prematuramente nessa direção.” Essas observações de Picasso são, a meu ver, extremamente importantes para o entendimento de sua própria história de artista, mas também instigantes da discussão de alguns problemas fundamentais da arte moderna e contem-


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Henri Matisse. Ramo de folhas, 1953. Recortes em guache. 294x350cm. Los Angeles (CA), Wight Art Gallery, University of California

porânea, que de certo modo começa com a ruptura das regras acadêmicas e o defrontar-se com a liberdade sem limites. Para bem entendermos o que se passou no começo do século 20, cabe atentar para o fato de que a arte acadêmica nascera da racionalização dos procedimentos pictóricos e plásticos, ou seja, a espontaneidade, a intuição, a descoberta inusitada de soluções novas tinham sido eliminadas quase inteiramente do trabalho do artista. Por isso mesmo, o assunto ou tema literário (histórico, religioso ou dramático) assumiu o primeiro plano no interesse do artista e da crítica, uma vez que, no plano da linguagem pictórica propriamente dita, tudo se reduzira a fórmulas. A rebelião contra isso começa com Delacroix, amplia-se com os impressionistas e radicaliza-se com Cézanne, que, segundo a observação ingênua de sua mulher, “não sabia pintar.” E ela, na sua ingenuidade, tinha razão: sem o apoio das regras acadêmicas, pintar voltou a ser um “não saber”, uma viagem para o desconhecido, a busca do inusitado. Foi também nessa época que se descobriu a criatividade presente na pintura naîve de Rousseau e das crianças, que, pelo padrão acadêmico, não passava de coisa canhestra, sem valor artístico. Henri Matisse e mais tarde Paul Klee buscavam manter viva em sua arte uma “ingenuidade” equivalente à da infância, que era, no seu entender, fonte genuína da criação artística. Essa valorização da ingenuidade infantil conduziu em certos casos a alguns equívocos, em funImagens: Reprodução

ção dos quais passou-se a confundir a liberdade criativa da criança, anterior ao domínio da expressão, com a liberdade do artista, fruto daquele domínio e por isso mesmo posterior a ele. E daí a pertinência da lúcida observação de Picasso, no trecho já citado, quando diz que a expressividade dos desenhos do menino iria desaparecer com a idade e que, para se tornar um pintor de verdade, ele teria de recomeçar do zero. Trata-se de uma questão delicada que, com o fim das normas acadêmicas, tornou-se ainda mais indefinida: se a intuição e a espontaneidade são a fonte da arte e ambas estão presentes em toda criança, não será mero preconceito distinguir a arte da criança da arte do adulto? A rigor, não. Lembremos a afirmação de mestre Picasso: ele diz que o gênio da infância desaparece com ela. Noutras palavras, como ninguém permanece criança a vida toda, aquela espontaneidade, que era fruto da inexperiência e do desconhecimento da realidade, desaparece, dando lugar a um novo relacionamento com o mundo, menos fantasioso e mais problemático. Isso não significa que o adulto tenha do mundo uma visão mais verdadeira que a da criança, já que o preço da objetividade adulta é a perda da fantasia, do convívio com o maravilhoso. Por isso mesmo, pode-se afirmar que o artista é um adulto que manteve viva, nele, a criança. Mas se essa é uma condição necessária, não é suficiente para fazer do adulto um artista, já que ele perdeu a capacidade criativa espontânea da infância. O que faz do adulto um artista é o domínio da linguagem da arte, ou seja, de um instrumento que o torna capaz de reinventar a maravilha. E aí ele se defronta com uma contradição inevitável, que está na origem do academicismo artístico e do rompimento com ele: toda linguagem implica uma técnica que, por sua vez, tende a inibir a espontaneidade e a intuição. Por isso que a melhor arte resulta da superação dessa contradição, quando o artista consegue, pelo domínio da linguagem artística, recuperar a espontaneidade – o paraíso perdido.

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Weydson Barros Leal com fotos de Helder Ferrer

A força da forma As cenas íntimas e o virtuosismo da técnica na pintura de Reynaldo Fonseca Um dos mais importantes nomes da arte brasileira, Reynaldo Fonseca, vive cada dia para o ofício da pintura. Em seu apartamento, na praia de Boa Viagem, no Recife, onde tem seu ateliê e de onde raramente sai, o pintor trabalha durante 6 ou 7 horas diárias, mas “só enquanto há luz natural, e sempre de pé.” Atualmente, prepara uma exposição de 20 novas telas para a Simões de Assis Galeria de Arte, em Curitiba, a se realizar em março de 2003. Em casa, vive cerNo espelho, figuras constituem um enigma. cado de livros de arte e quadros, muitos quadros, por todas Moça, menina e espelho, óleo sobre tela, 70x50cm, 1999 as paredes, todos assinados por ele. Entre 1984 e 1985, suas obras estiveram em leilões de arte latino-americana organizados pela Galeria Christie’s, de Nova Iorque. Hoje, seus quadros estão em importantes coleções particulares brasileiras, americanas e em vários países da Europa. Reynaldo de Aquino Fonseca nasceu no Recife, em 31 de janeiro de 1925. Desde muito cedo, revelou o talento que, já em 1944, no Rio de Janeiro, seria reconhecido por um de seus mestres, Cândido Portinari. Em 1948, durante uma viagem de estudos à Europa, esteve em Paris, e lamenta não ter conhecido, naquela época, o pintor Balthus, uma de suas mais importantes referências modernas, apenas visto a partir dos anos 50. “Dos pintores modernos, me interessam Balthus e Freud, o sobrinho-neto do cientista.” Reynaldo é um pintor que domina todas as técnicas de seu ofício. No entanto, do lápis ao pincel, passando por trabalhos em gravura e aquarela, sua grande obra é realizada em óleo sobre tela ou duratex. É, indiscu tivelmente, o que pode-se chamar um virtuose do desenho. Toda a sua obra, a despeito do longo período de produção, obedece a uma “Mama”: para o pintor, a mais difícil solução pictórica. unicidade de temas e estilo que lhe permite o reconhecimenPintor e modelo, óleo sobre tela, 81x100cm, 2002 to imediato, o que revela uma consistência raramente equiparável na pintura moderna. “Eu procuro melhorar cada vez mais, mas não sinto necessidade de mudar. Acho que essa coisa de ‘fase’ começou com Picasso, antes não havia. Na obra de qualquer pintor clássico, a pintura é igual.” A dificuldade do óleo, reconhecida pelo pintor, não parece dizer respeito à pintura que realiza com rigor milimétrico. A exatidão de suas figuras, objetos e animais faz supor que o ato de pintar, para ele, está cercado de mistérios, de ritos, mas também de uma poesia fluente que se revela na conjugação da solidão e do silêncio. E há curiosidades nesse processo: “Eu só pinto com um espelho em frente ao quadro – como se outra pessoa estivesse vendo –, pois quando olho pra ele, vejo o quadro ao contrário. Também coloco o quadro de cabeça para baixo, que é outra maneira de vê-lo como se fosse outra pessoa. Com o quadro de Continente . dezembro, 02

Divertimento: desenhos na agenda como passatempo diante da televisão


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Ateliê do artista, no Recife. Quadros, desenhos e imagens invertidas no espelho

“Eu só pinto bichos com fotografia. De memória, só figuras humanas.” As três idades, óleo sobre tela, 81x100cm, 2002

Cena musical: presença de instrumentos e objetos cotidianos. Músicos, óleo sobre tela, 100x81cm, 2000

cabeça para baixo, a gente vê muita coisa errada... Porque passa a ver a coisa como abstração. Aliás, acho que a minha pintura tem alguma coisa a ver com abstração. São formas muito simples, e por isso, afinal de contas, formas abstratas. Não é o abstrato do ‘não ser nada’, mas são formas com força própria.” A percepção de sua pintura figurativa como abstração tem o seu fundamento no clima de sonho e mistério em que as “cenas familiares”, como ele chama seus quadros, parecem estar envolvidas. Por outro lado, um sentido de estranhamento, como resultado de figuras e animais improváveis, encontra respaldo na opinião de diversos críticos, para quem os personagens de Reynaldo Fonseca “são de porcelana, já morreram há muito” (Walmir Ayala), ou, assim como seus objetos, têm “alguma coisa de inefável” (José Roberto Teixeira Leite). Pergunto-lhe o que pensa da observação crítica de que suas figuras não são humanas: “Acho que não são mesmo... Elas estão fora do tempo e do espaço... Já me acusaram de usar roupas muito antigas nas figuras. Eu não faço isso, as roupas são muito simples, eu não uso enfeites, golas, rendas. É que a pintura assume o clima de coisa antiga. Para mim, estão apenas fora do tempo.” Ao falar sobre “pintura abstrata”, lembro-lhe que ele mesmo, em alguma época, já pintou quadros abstratos: “Foram dois ou três... Um eu dei a meu irmão, que gostou muito. Mas, numa mudança, o quadro caiu, rasgou e ele jogou fora... (risos). Os outros eu acho que ficaram por aí, ou eu joguei fora. Não eram quadros grandes, eram telas pequenas. Isso foi na década de 40. Eu não senti nada com a pintura abstrata. Engraçado... Sei que tem que ver essa coisa de relação de formas, de cor, mas para mim sempre foi um vazio total.” Reynaldo raramente usa modelos. Suas figuras, na grande maioria, são pintadas “de memória”, como ele diz. No caso dos animais, presentes em suas telas, observa-os, invariavelmente, em fotografias. “Eu só pinto bichos com fotografia. De memória, só figuras humanas. Murilo La Greca me disse uma vez que não era bom eu fazer a figura de memória e o bicho, de foto. Ele dizia que ficava uma figura muito realista e a outra não. Mas eu nunca consegui desfazer isso.” Talvez o real só habite o modelo ou o próprio espelho: “Uso muito fotografias de jornal, revistas... Mas modifico completamente, sai outra coisa. Quando preciso, uso o espelho ou peço a minha sobrinha para posar para mim. Num quadro que estou pintando agora, tem duas mãos um pouco difíceis, então fui pro espelho...” No que se refere à pintura que se faz hoje, sua análise é rigorosa, contundente, seja em relação à arte ou à inconveniência que percebe em nomenclaturas que julga inconsistentes: “Eu não entendo por que pintura moderna e pintura contemporânea. Acho isso uma coisa tão louca... Por Continente . dezembro, 02


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exemplo, pintar uma tela toda de azul: é uma maneira de se expressar, não há dúvida, mas qual o prazer? A não ser que seja dizer: ‘Uma tela azul pra mim é um quadro...’ Uma vez eu disse a um crítico: ‘Olha, a pintura atual, essas coisas todas, eu posso até achar interessante, mas não me emociona como um quadro de Velázquez’. O crítico ficou calado.” O silêncio é sempre lembrado quando falamos sobre o ato de pintar. Quero saber, buscando decifrar um universo pictórico tão singular, qual ambiente que o cerca nas horas em que está diante da tela, as condições que, para sua pintura, permitem sua fruição. “Eu sofro muito com a pintura. Eu luto muito com ela. Não consigo pintar com a casa cheia ou conversando. Isso eu jamais conseguiria. Basta uma pessoa estar perto, falando, e já não consigo. Até mesmo um toca-discos me atrapalha. Mesmo os Cantos Gregorianos, que gosto muito, me atrapalham na hora de pintar. Prefiro o silêncio, que nunca é total por causa dos carros, do ruído das ruas...” Na mesa do ateliê vejo alguns livros de pintura. Dentre eles, um grande livro sobre Rembrandt se destaca. Noto que todos, pela forma como parecem manuseados, fazem parte do arcabouço de fontes do pintor, como fogos para sua inspiração. Reynaldo atesta: “Os grandes gênios são minhas referências. Eu vivo rodeado de livros, Rembrandt, Velázquez, Vermeer, pintores maravilhosos que temos que estar olhando o tempo O brinde, óleo sobre tela, 70x50cm, 2002 todo.” Com essa confirmação, compreendo melhor os ambientes (sem“Uso muito fotografia de jornal, revistas... Mas modifico tudo completamente.” pre interiores) de suas “cenas familiares”, a presença dos objetos comuns ao nosso cotidiano, antigos às vezes, como os velhos instrumentos, mas também atemporais, como livros, copos, mesas... Penso que, na pintura de Reynaldo, a presença de Rembrandt se dá principalmente por uma tentativa de retratar o espírito humano em cada mínimo gesto de seus personagens. Uma pintura do gesto, sim, mas também psicológica. Sob esse ângulo, porém, Vermeer sobrepõe-se a tudo. Sua especialidade, a cena de interior, buscava não só retratar, mas também traduzir a intimidade das casas sob seus mais recatados aspectos. Vermeer, até mais que Rembrandt, influenciou contemporâneos mas também pintores modernos, como Monet ou ainda Van Gogh, que muito o admirava. Em Vermeer, identifico a força da pintura de Reynaldo. Outros mestres podem ainda ser lembrados quando analisamos atentamente sua pintura. Num sentido mais subjetivo, Michelangelo e Leonardo suscitam relações insuspeitadas pelo próprio pintor. Seria o caso de sutilíssimos temas como, por exemplo, nos quadros A dama A maçã vermelha, óleo sobre tela, 70x50cm, 2002 do arminho, de Leonardo, e Menina e carneiro, “Cenas familiares”: tentativa de retratar o espírito humano de Reynaldo, onde figuras femininas (em posições invertidas) seguram nos braços pequenos animais. Tento encontrar novas relações entre os quadros e objetos que estão no ateliê e a pintura desses livros. Lembro que assim como Vermeer notabilizou-se por cenas de interiores, Rembrandt pintou aproximadamente 60 Continente . dezembro, 02

Fotos dos quadros: Divulgação


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auto-retratos e pontuou sua obra com belíssimas cenas bíblicas. Digo a Reynaldo que por toda a casa, assim como no seu ateliê, vi inúmeras imagens de santos e santas, algumas em enormes esculturas em madeira. Pergunto-lhe qual sua relação com os símbolos religiosos, com os ícones da Igreja: “Não sou religioso. Mas a presença dessas figuras me faz bem. Não como imagens religiosas, mas como escultura, como obra de arte, como peça antiga. No entanto, tenho respeito, apesar de não ter sentido religioso para mim. Mesmo assim, pintei vários santos. São Francisco, por exemplo. Tenho um no meu quarto. Mais recentemente pintei um São Francisco e um Santo Antônio. Também pintei Santa Luzia, protetora dos olhos...” Estamos diante de alguns quadros em que elementos recorrentes na pintura de Reynaldo Fonseca me provocam curiosidade. Numa das telas, uma figura se olha num pequeno espelho. Algum crítico afirmou que, em seus quadros, uma figura no espelho dificilmente é a mesma que o olha, parecendo, figura e reflexo, duas personagens distintas. Seria proposital? Reynaldo sorri: “Não! Eu gostaria que parecesse espelho! Mas como eu raramente uso modelos... Talvez seja por isso...” Diante de um nu feminino, quero saber que parte da anatomia humana lhe oferece maior dificuldade para a solução pictórica: “A mama é difícil. Talvez seja a mais difícil...” Mas acrescenta: “Figura de costas é muito difícil. Lembro um quadro – acho que estava com um colecionador do Rio – em que pintei a figura de costas. Quem posou para esse quadro foi minha mãe. A figura era uma pintora, de costas, diante de um quadro, com outra figura sentada no chão.” E sobre partes do corpo humano, outra vez relembra um conselho de Portinari: “Ele me dizia: ‘Nunca pinte uma orelha de memória, porque cada pessoa tem uma orelha diferente. Portanto, procure ver uma orelha, e desenhe aquela orelha, mesmo que a figura seja de memória!’” Dentro do ateliê, quadros ainda não terminados estão sobre cavaletes. Alguns somente iniciados, com figuras apenas riscadas. À frente de um deles, o grande esIntimidade, óleo sobre tela, 81x100cm, 2002 pelho, testemunha silenciosa do artista, inRembrandt e Vermeer: “Os grandes gênios são minhas referências.” verte seus personagens. Reynaldo passeia entre as telas, olha as paredes, aponta datas e lembra histórias que viraram “anedotas”, como a da modelo que se recusou a pôr as mãos sobre a mão do rapaz que também posava porque era noiva. O artista, por isso, precisou de um dublê para suas mãos. Em cada recordação, os velhos amigos, os conselhos dos mestres, as figuras de memória que habitam o inconsciente real do pintor estão presentes. Para o artista, tudo é história da pintura. Tenho uma última pergunta: a assinatura, em um quadro, constitui o ponto final? Reynaldo esclarece: “Posso continuar trabalhando indefinidamente, mesmo já tendo assinado. Mas é muito raro. Quando dou por terminado, não costumo voltar. A não ser que eu descubra alguma coisa...”

Reynaldo Fonseca: “A pintura atual não me emociona como um quadro de Valázquez.”

Exposição de Reynaldo Fonseca Março de 2003 Simões de Assis Galeria de Arte Alameda Dom Pedro II, 155 – Curitiba – PR Tel: (41) 2322315/ 2333389 Fax: (41) 2299167 www.simoesdeassis.com.br geleria@simoesdeassis.com.br Continente . dezembro, 02


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ARTES

Luciano Trigo

Gustave Flaubert, Lygia Fagundes Telles e Alejo Carpentier

Letras e caras Cássio Loredano publica livro com retratos de 300 escritores O caricaturista mais importante do mundo queria ser jogador de futebol, cantor de rádio, e foi expulso do colégio antes de completar o ginásio. Ainda bem. Assim, ele pôde se dedicar ao desenho. Hoje, aos 54 anos, Cássio Loredano é reconhecido como mestre de mais de uma geração de caricaturistas, no Brasil e na Europa, onde morou em diversos países. Mas somente agora a sua obra recebe um livro com o capricho editorial que merece. Com apresentação de Millôr Fernandes, Alfabeto literário reúne em 250 páginas caricaturas de cerca de 300 personagens. O livro está sendo lançado por uma nova editora, a Capivara, do bibliófilo Pedro Corrêa do Lago. Continente . dezembro, 02

Filho de militar, Cássio nasceu em 1948 em Deodoro, subúrbio do Rio de Janeiro. O mais velho de oito irmãos, passou a infância viajando, sem criar raízes. Daí, talvez, a dificuldade como estudante. “A escola me largou, fui jubilado, então o velho me botou para trabalhar como office-boy” – lembra, divertido. “Foi então que entrei em contato com uma turma diferente da classe média da qual eu provinha, e encasquetei de ser jornalista.” A palavra veio antes do traço: Cássio começou escrevendo crônicas. Chegou a trabalhar como bancário depois de brgar com o pai, mas logo estava empregado no Diário do Grande ABC. Trabalhava como revisor, e seu apreço pelo bom português levava à loucura os repórteres

de polícia “analfabéticos” e os linotipistas do jornal. Foi também redator de um programa da Rádio Bandeirantes, em São Paulo, e, em 1970, entrou para a sucursal de São Paulo de O Globo. Para se divertir, fazia caricaturas dos colegas de redação, que chamaram a atenção do editor de economia do jornal. Ao mesmo tempo, Cássio participava em São Paulo de um grupo de desenhistas liderado por Elifas Andreato e pelo argentino Luis Trimano – uma influência decisiva. Quando a redação do Opinião, no Rio, pediu um caricaturista, Elifas, responsável pelo layout do jornal, indicou Cássio. Lá ele publicou sua primeira caricatura de Drummond, que estava completando 70 anos. Isso em novembro de 1972, há 30 anos: Cássio largava definitivamente o texto escrito para escrever através de suas caricaturas. Mas o gosto pela literatura ficou.


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Publicados, em sua grande maioria, nos jornais El País e na revista Claves, da Espanha, e no Estado de S. Paulo, os desenhos reunidos em Alfabeto literário podem ser divididos em dois grandes grupos. Alguns são altamente rebuscados, ricos de detalhes; outros, minimalistas, com poucas ou uma única linha. Em comum, a inteligência e o refinamento do traço. Cássio não se limita a fazer uma caricatura: ele interpreta a alma de seu retratado. “Inconscientemente, tenho um lado de psicólogo, até porque o século que acabou estava todo embebido de Freud, mesmo para quem não o leu. Mas não fico pensando como o sujeito é por dentro, quando desenho... Vejo o que é mais expressivo.” Cássio também já publicou centenas de caricaturas de políticos e figuras públicas, mas prefere escritores: “Eles têm as

caras mais interessantes. Detesto desenhar atores, por exemplo, porque eles mudam de rosto o tempo todo. Aliás, não gosto de cinema. Prefiro me distrair lendo.” Pelo menos uma caricatura política não agradou nada ao retratado: foi quando Cássio publicou no Jornal do Brasil um desenho de Delfim Netto como um sapo, com uma faixa que trazia a data do acordo feito com o FMI, desastroso para o país. “Eu soube que ele ficou bravo, mas geralmente gostam. Na Espanha protestaram muito contra uma caricatura que fiz de um ditador africano, Obiang, da Guiné Espanhola, conhecido pela prática de canibalismo: ele comia os adversários, não no sentido bíblico, mas literalmente. Veio uma chuva de cartas, e eu me defendi dizendo que uma série de brancos também passaram pelo meu

lápis de maneira pouco favorável, e que adoro diversos negros, como Cruz e Souza e o negrão (Pelé). Metade da beleza de meu país se deve à África, à contribuição negra, eu disse. Curiosamente, os próprios africanos gostaram do desenho, que foi mimeografado e distribuído em vários países.” Nos anos 70, Cássio viajou pela primeira vez à Europa. Ele atribui seu temperamento errante ao lado cearense da família materna (“Cearense não pára quieto”). “Isso também deve ter a ver com a minha infância sem parar no lugar, o que foi muito sofrido, porque eu não tinha continuidade na escola, mas me conferiu uma enorme capacidade de adaptação”, lembra Cássio. “Mas eu queria, em primeiro lugar, conhecer o mundo. Primeiro, fui a Portugal, em 1975, por minha conta. O diretor de O

James Joyce e Rachel de Queiroz

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Jornal, de Lisboa, tinha elogiado um desenho meu no Opinião, que foi reproduzido lá. Fiz as malas e fui bater na porta dele.” Cássio voltou ao Brasil, para em seguida viajar à Alemanha, porque queria aprender alemão para ler Thomas Mann no original, sem recorrer a traduções. Foi para ficar dois meses e ficou cinco anos. Mostrou seus desenhos na redação de outro jornal, o Süddeutsche Zeitung, e de lá foi para o Die Zeit, em Hamburgo. “Perguntaram se eu queria vender alguma coisa, e eu disse que não, ou melhor, sim (risos). Mostrei os desenhos, eles gostaram, mas me perguntaram: ‘O que vamos fazer com isso?’ Peguei um suplemento literário e mostrei uma foto do Pablo Neruda: olha, o Neruda já morreu. Vocês vão ficar publicando essa mesma foto até o fim dos tempos? Se tiver uma caricatura, ela será exclusiva do seu jornal.”

O argumento foi convincente, tanto que na edição especial de livros seguinte saíram cinco desenhos de Cássio, em abril de 1977 – para espanto de seus colegas na Faculdade de Comunicação Visual em Offenbach. Cássio também viveu na Itália e na França, voltou ao Brasil mais uma vez, e depois foi morar na Suíça e na Espanha, em Barcelona, por seis anos e meio. “Voltei definitivamente em 1992, porque estava morrendo de saudade do Brasil. Mas mantenho até hoje uma colaboração semanal no jornal El Pais, de Madri. Mando os desenhos por e-mail.” Perfeccionista, Cássio já apagou vários desenhos inteiros, para assombro dos seus amigos, porque estavam “uma porcaria”: “Isso já aconteceu várias vezes. Rasgar é difícil, só se eu estiver com muita raiva, porque o papel é caríssimo (risos).” Cor só entra em alguns deta-

lhes. Cássio não considera isso uma limitação, mas uma opção estética, como ele explica apontando para uma caricatura de Clarice Lispector: “A linha pura tem uma faculdade maravilhosa, que depende da capacidade de abstração do ser humano. Dentro e fora da linha é papel branco, mas dentro é Clarice Lispector e fora não é nada. Se você usar a linha para limitar campos de cor, ela perde essa função soberana.” Sobre seu processo de criação, ele explica: “Picasso dizia que inspiração existe, mas tem de te apanhar no batente. Não adianta ter uma idéia brilhante no ônibus. Acontece de eu ser visitado por uma boa idéia, em geral, quando estou mais ausente de mim mesmo, completamente concentrado. Se você desenha com vaidade, se achando brilhante, em geral isso estraga o desenho. O acaso e os prazos também afetam a qualidade, é cla-

Nélida Piñon e Edgar Allan Poe

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Gonçalves Dias, Eça de Queiroz e Sérgio Buarque de Holanda

ro. E eu vivo meio apertado, dá para pagar a escola das crianças, mas termino o mês necessariamente no vermelho.” Pesquisador, Cássio já organizou quatro livros de desenhos de J. Carlos (“Infelizmente não deu mais tempo de ele me influenciar, porque eu já tinha mais de 20 anos de carreira quando me aproximei da sua obra; ele foi um monstro incompreendido”) – de quem, aliás, está escrevendo um perfil, que será seu primeiro livro de texto. Também organizou coletâneas de outros caricaturistas, como Guevara e Figueroa. Sobre os que vieram depois dele, Cássio deixa de lado a modéstia: “Influenciei algumas gerações. Depois de mim, e por causa do meu trabalho, vieram o Lula e o Cavalcante, que se conheceram e viraram ami-

gos quando viram uma exposição minha na Funarte, em 1983, e decidiram fazer caricaturas. Depois deles já vieram Alvim e Leo Martins, entre outros.” Cássio conclui a entrevista fazendo um balanço do espaço dedicado pela grande imprensa à caricatura: “No começo do século 20, a caricatura saía na capa dos jornais. Depois foi expulsa para as páginas internas pela fotografia. Por outro lado, a fotografia deu liberdade ao desenhista, que não precisava mais fazer retratos. Desta ruptura saíram Picasso, Francis Bacon, os caricaturistas ingleses e o expressionismo alemão. Mas a fotografia se vulgarizou tanto que hoje todos os jornais têm mais ou menos as mesmas fotos, ficou tudo muito parecido. Então a caricatura voltou à primeira página, porque é ex-

clusiva de cada jornal. O Chico Caruso é só d’O Globo, ninguém mais o tem. Por outro lado, me parece que diminuiu o respeito que os profissionais da imprensa tinham pelo caricaturista, com exceção das grandes estrelas. O Lula, por exemplo, é um desenhista melhor do que eu. Não é mais importante que eu, porque não tem obra, mas a qualidade da linha dele é superior. E ele não tem espaço. Isso é lamentável, porque o público adora caricatura.”

Alfabeto literário, de Cássio Loredano Editora Capivara 260 p. R$ 59,00

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Visões secretas

Botequim do Hugo

Nos desenhos de Cavani Rosas, os recantos paulistanos e o carnaval de Olinda “Um mundo onde um deus subalterno e canhoto empunha um bico-de-pena e, de grão em grão, de quark em quark, dá forma a esse Universo, com o fervor pontilhista de quem desfaz uma montanha com uma agulha.” É dessa forma que o poeta Bráulio Tavares define as motivações artísticas do seu amigo Cavani Rosas. Dos seus 50 anos, 32 deles dedicados à escultura e ao desenho, Cavani está particularmente interessado nas nuanças, imperceptíveis aos mais apressados, mas a que ele próprio se refere como “visões secretas”. Aos poucos, essas “visões” tomaram forma. Um dos primeiros momentos em que isso aconteceu foi quando retratou o Botequim do Hugo, um bar em São Paulo (o desenho é parte de uma série que vem fazendo sobre recantos paulistanos). Nele os traços percorrem o ambiente sem esquecer nem a poeira do chão. “Procurei mostrar o lugar com o seu movimento. Eu não coloco ninguém no bar, mas fica evidente que por lá passaram muitas pessoas que deixaram seus rastros”, explica. Apesar de ter se mudado para São Paulo, Cavani continua sendo regido pelos sons, ruas e passos do Recife. E pelo Carnaval. Quer produzir imagens da festa que ainda estão frescas na sua cabeça e mostrá-las numa exposição só com desenhos, marcada para o próximo mês. “Quero recuperar minhas memórias de infância, quando eu ia fantasiado para a rua do Imperador, ver o desfile.” (F. P.) La Ursa Continente . dezembro, 02

Fotos: Luciana Cavalcanti


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Transfusões No disco Invoke Arto Lindsay mistura bossa nova e punk anos 70

Mais conhecido no Brasil como produtor de discos de estrelas como Caetano Veloso, Marisa Monte e Carlinhos Brown, o músico americano Arto Lindsay lança Invoke, seu mais novo trabalho solo, e mantém seu estilo experimental. O disco deve chegar às lojas em janeiro, pelo selo Ping Pong, e Lindsay promete para o ano que vem um giro pelo país, com parada garantida no Recife. “Nem que eu tenha de bancar, o show irá à terra de que tanto gosto”, enfatiza Lindsay, que vai acompanhado de sua banda completa (Melvin Gibbs no computador e baixo, Juninho Costa na guitarra, e Micah Gaugh nos teclados e saxofone). Produzido pela gravadora Righteous Babe, o disco é distribuído na Europa, Estados Unidos e Canadá. A turnê de lançamento este ano fez 22 apresentações, incluindo o Japão, aonde o disco chegou pelo selo Avex. “Foi muito bom. A receptividade em lugares como a França, a Itália e a Espanha superou as nossas expectativas. Hoje meu trabalho autoral está crescendo. Posso dizer que tenho um público pequeno, no entanto fiel e espalhado pelo mundo inteiro”, afirma Lindsay. Quem não quiser esperar muito, pode comprar o CD no site da gravadora (http://righteousbabe.com). Invoke tem doze faixas e várias participações brasileiras. Uma delas é de Marisa Monte e Cezar Mendes, com os quais Lindsay compôs a música Delegada. As outras são de Lucas Santana, que também fez parceria em outra canção, e da Nação Zumbi, que toca Predigo (gravada nos estúdios da Fábrica, no Recife). Porém, a maior parte do trabalho foi feita mesmo no apartamento de Lindsay, em Nova Iorque, onde ele montou uma parafernália eletrônica com direito a muitos efeitos sonoros. O piloto dessa engrenagem foi seu baixista Melvin Gibbs. Lindsay

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Arto Lindsay canta e toca músicas do novo CD Invoke durante show em São Paulo


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garante que, apesar do aparato tecnológico, o disco tem muito de Bossa Nova, e também mantém sua marca “punk nova-iorquino dos anos 70”, herdada da época em que tinha a banda americana DNA, com a qual gravou vários discos. Para se dedicar ao novo trabalho, Lindsay deixou a vertente de produtor musical um pouco de lado. Mas não por muito tempo. “Este ano, a única coisa que fiz foram quatro faixas do novo disco da Nação Zumbi. Espero que apareçam outros convites, pois é isso que garante o meu ganha-pão e sustenta a minha independência artística”, afirma. Tudo começou meio por acaso. Em 1989, Caetano o contratou como seu tradutor em Nova Iorque. A partir de então, eles começaram a se conhecer e Caetano gostou muito do seu trabalho musical. “Foi quando a Polygram me convidou para ser produtor do disco O Estrangeiro, junto com meu parceiro Peter Scherer. Logo depois, em 1991, veio o Circuladô, que fiz sozinho, e acho que o resultado artístico foi até melhor. Aí, o caminho ficou mais fácil, pois a Marisa Monte me convidou e produzi três discos dela (Mais, Barulhinho bom e Cor-de-rosa e carvão). Com a Gal Costa, trabalhei n’O sorriso do gato de Alice. Depois, não parei mais”, ressalta. Fora do Brasil, os músicos mais conhecidos do público com quem trabalhou foram Laurie Anderson e David Byrne. Nessa época, Lindsay pôde reencontrar nos estúdios um antigo parceiro de adolescência, o guitarrista Robertinho do Recife. Eles se conheceram na década de 60, quando tocaram juntos na banda Contribution e chegaram a fazer shows em outras cidades do Nordeste. Foi sua iniciação musical, quando morou em Pernambuco (Recife e Garanhuns) até seus 17 anos. “Depois dessa fase, voltei aos Estados Unidos para estudar. Quando quis retornar, para gravar um disco com Robertinho, veio a Guerra do Vietnã. Aí, não pude mais sair da universidade. Se fizesse isso, teria de deserdar ou me apresentar ao Exército”, lembra. Tanto tempo se passou e novamente a guerra voltou a ocupar os pensamentos de Lindsay. Pelo menos, a capa do disco Invoke tem essa intenção. “Foi uma idéia do diretor de arte, Diego Cortez. Ele fotografou um cartaz da passeata liderada por Martin Luther King, nos anos 60, de um ângulo que mostra as torres do World Trade Center. Depois que eu fiz as letras, vi que isso tinha sentido. Comecei a perceber um certo ar de melancolia no disco, uma reação àquele momento terrível”, lamenta. Ele viu a tragédia do 11 de setembro da janela de seu apartamento, na Ilha de Manhattan, em Nova Iorque. Arto Lindsay espera que essa seja a sua forma particular e musical de protestar contra o belicismo americano. “Dava até para ver como aquilo tudo fortaleceria o presidente George Bush, que, apesar de tudo, foi eleito de forma legítima. É uma coisa muito triste de se ver”, conclui.

Trecho da música Delegada (Arto Lindsay/Marisa Monte/Cezar Mendes)

“Quando os vigias do Rio todos já dormem a gata espia sozinha a noite a passar É linda e alegre Sem deixar de ser dengosa”

CD Invoke, de Arto Lindsay Righteous Base Records U$15,00 (importado) Compras pelo site da gravadora www.righteousbabe.com

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Vai como pode Documentário ressuscita o sambista Paulo da Portela

Paulo da Portela na época da fundação da Escola de Samba Vai como pode

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“O meu nome já caiu no esquecimento/O meu nome não interessa a mais ninguém.” Esses são versos compostos por um amargurado Paulo da Portela, pouco antes de morrer. Se estivesse vivo, ele poderia constatar que seu samba revelou-se profético. Em 2001, ano do centenário de seu nascimento, o nome do fundador da Portela não foi lembrado. A escola carioca virou as costas para a própria história e apresentou na Marquês de Sapucaí um enredo sobre as diversas formas de poder. Conseguiu apenas um decepcionante décimo lugar. Na concentração, minutos antes do desfile, uma câmera registrava a única homenagem da noite: Paulinho da Viola e integrantes da Velha Guarda cantavam sambas de Paulo da Portela. Era o início das filmagens de um documentário sobre o sambista, uma solitária reverência à memória de uma das mais importantes figuras da música popular brasileira. Realizado em vídeo, Paulo da Portela – O seu nome não caiu no esquecimento mistura depoimentos de personalidades do samba – como Jair do Cavaquinho e Monarco – e ficção para contar a vida do compositor portelense. É também uma tentativa de reparar um injustificável descaso por sua obra. O professor de mestres-salas e porta-bandeiras Manoel Dionísio vive Paulo da Portela no vídeo. Ele percorre

os lugares que marcaram a história do sambista, como a casa onde morou, no subúrbio carioca. Com a reforma urbana implementada pelo prefeito Pereira Passos na década de 20, as famílias mais pobres foram obrigadas a se mudar para os bairros mais afastados. Assim, Paulo saiu de Santo Cristo, no centro da cidade, e foi parar muitas estações de trem adiante, em Oswaldo Cruz, na época ainda um humilde povoado. Foi lá que ele tornou realidade o sonho de fundar uma escola de samba, que seria a mais importante do Rio de Janeiro nas décadas de 30 e 40. Foi lá que Paulo Benjamin de Oliveira se transformou no legendário Paulo da Portela. Aos poucos, as rodas de jongo e caxambu deram lugar às rodas de samba em Oswaldo Cruz. Em 1923, junto com os amigos Antônio Caetano e Antônio Rufino, Paulo resolveu fundar uma agremiação. Batizada de Vai Como Pode, a escola conquistou o primeiro título em 1935. Ainda no mesmo ano, finalmente ganharia o nome pelo qual é conhecida até hoje: Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. A Portela se tornou uma campeã absoluta dos carnavais: de 40 a 47, foram sete títulos consecutivos. Paulo criou o formato moderno dos desfiles: “A escola de samba não tinha essa estrutura de narrativa, de uma música contar uma história. Isso foi ele que começou”, conta Dermeval Netto. Em 1939, pela primeira vez uma escola desfilou com fantasias inteiramente de acordo com o enredo. Uma inovação que logo seria imitada pelas concorrentes. Exibido no Festival do Rio, o vídeo destaca também a importância da luta de Paulo da Portela para tirar do sambista o estigma da marginalidade. No início do século passado, samba era caso de polícia. A desconfiança e o preconceito da classe média eram enormes. Com seu jeito manso, polido, e uma habilidade incomum para circular em todos os meios, Paulo conquistou o respeito e o reconhecimento da sociedade. No documentário, o jornalista Sérgio Cabral define com precisão: Paulo Fotos: Divulgação


SONS 37 » da Portela foi o primeiro “relações-públicas” do samba. Sempre bem vestido e elegante, Paulo se preocupava muito com a aparência. Chegou a exigir que os companheiros da Portela usassem sapato e gravata. Criou um lema: “Todo mundo de pés e pescoços ocupados.” Para muitos, essa foi uma concessão imperdoável: “Muita gente achou que o Paulo errou, porque ele usou signos do branco, símbolos da classe dominante, embranqueceu o negro”, conta Dermeval Netto. Mas não foram essas críticas que o abalaram. O incidente responsável pelo rompimento com a Portela aconteceu em 1941. Paulo, Heitor dos Prazeres e Cartola foram a São Paulo para uma apresentação do Conjunto Carioca, do qual faziam parte. De volta ao Rio, tentaram participar do desfile da Portela, mas foram impedidos de entrar,

por não estarem vestidos com as cores da escola, o azul e o branco. Paulo considerou a proibição um insulto. A Portela tinha fechado as portas ao seu fundador. No vídeo, são contadas diferentes versões da história. Marília Barboza, autora do livro Paulo da Portela – Traço de união entre duas culturas, não acha que o rompimento tenha sido tão radical assim. Paulo nunca esteve realmente afastado, acredita a pesquisadora. Tanto que foi o anfitrião durante a visita de Walt Disney à quadra da Portela. Marília também afirma que Paulo teria dançado para os desenhistas de Disney, e que dessa apresentação teria nascido o personagem Zé Carioca, inspirado no sambista. Definitiva ou não, a saída de Paulo da escola à qual dedicou quase vinte anos de sua vida deixou marcas. Os versos desiludidos do samba O meu

Paulo da Portela é interpretado pelo professor de mestres-salas e porta-bandeiras Manoel Dionísio

nome caiu no esquecimento são a prova disso. Na noite de 30 de janeiro de 1949, ao voltar de uma apresentação no circo, onde fora aclamado pela platéia, Paulo sofre um colapso cardíaco e morre. O enterro de Paulo da Portela parou a cidade: quinze mil pessoas acompanharam o cortejo. O jornal O Radical estampou na primeira página: “O Funeral do Samba”. A reportagem descreve a comoção que tomou conta das pessoas: “O bumbo marcava a cadência, uma espécie de cantochão, em fio de voz, saía dos lábios da multidão. As cuícas e o tarol acompanhavam surdamente. O túmulo de Paulo da Portela tinha o número 2.908. Foi a centena de ontem.” No jogo do bicho do dia 31 de janeiro de 1949, o resultado foi certeiro: deu águia, o símbolo da Portela. (B.B.)

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38 SONS Gildson Oliveira

Luiz Gonzaga tinha consciência da importância do seu trabalho artístico e, como qualquer mortal vaidoso, tudo fazia para ninguém esquecê-lo. Na última entrevista, em 1989, dois meses antes de morrer, nos fez o pedido, sugerindo que a imprensa o ajudasse na projeção da sua obra musical. Diante de políticos e autoridades que o visitavam no hospital, já gravemente enfermo, ele insistia no apelo. O então prefeito do Recife, Joaquim Francisco, foi um a quem Gonzaga desabafou: “Não deixe que eu morra nesta cadeira de rodas! Eu, que amei tanto o meu povo, filho de Januário e Santana, gostaria de ser lembrado como o sanfoneiro de Exu, pernambucano da gema, o cantador do Sertão...” Apesar dos apelos, Gonzaga continua esquecido, à margem do poder público e particular. Iniciativas concretas, do ponto de vista didáticocultural, até o momento não foram executadas, como tornar o seu trabalho menos estático, resumido a tímidas homenagens póstumas cansativas e improdutivas. Gonzaga é de tal riqueza humana que trai os seus “biógrafos”. Chega a parecer fácil escrever a respeito dele. As informações se amontoam, a gesta do tocador se oferece múltipla e cativante, aplainando dificuldades ou temores. Mas essa aparente facilidade é traiçoeira. A grandeza humana de Luiz Gonzaga não se entrega ao primeiro golpe de vista. Mais do que simples homem do povo, um artista excepcional, o filho de Estrela Santana é um homemíndice. Quero dizer, nela palpita o gênio de um povo, suas dores, angústias, revoltas e esperanças. Seu Lua é uma lava sonora, vem de camadas ígneas do inconsciente popular. Poucos cientistas desvelaram tanto a alma nordestina como esse matuto de Exu, que se fosse vivo completaria 90 anos de idade no dia 13 de dezembro. Naquela entrevista, a última concedida por Gonzagão, descobrimos nele, além de outras

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Triste partida Luiz Gonzaga continua esquecido e marginalizado em sua terra virtudes, que sua música, suas parcerias, a estranha força enfática do seu canto faziam dele um menestrel diferente, quase um cantor de raça, poeta errante de uma gente e uma terra assinaladas e grandes. Sentimos, quando parecia se entregar aos seus estudiosos, mas, de repente, negaceia, aperta o fole sábio, se esconde nas névoas de alguns baiões eternos. E foge. O que destacamos no livro-reportagem Luiz Gonzaga, o matuto que conquistou o mundo, que nos deu o prêmio Esso de Jornalismo Regional Nordeste, em 1990, na 7ª edição, foi a aproximação do homem Gonzaga e seu mistério. Nossa intenção, como repórter, foi promover o trabalho artístico e a memória do menino do velho Januário, a aventura de sua vida, o segredo de uma sanfona que aprisionou nos seus baixos a alma de uma gente. Luiz Gonzaga no início da A reportagem carreira e, abaixo, já consagrado como o Rei do Baião resiste ao tempo. Não só porque revela ângulos novos da vida de Luiz Gonzaga, penetra um pouco em sua densidade humana, tenta um retrato de corpo e espírito. Temos todos uma dívida impagável com Gonzaga.

Em comemoração aos 90 anos de nascimento de Luiz Gonzaga, a TV Cultura exibirá, no dia 14 de dezembro, sábado, às 21h, o documentário “As sanfonas do Lua”. Com 54 minutos de duração, o vídeo foi dirigido pelo jornalista Mário Rezende, que também foi responsável pela pesquisa e roteiro.

Fotos: Agência Lumiar e Antônio Carlos Mafalda / Folha Imagem


AnĂşncio cont. documento

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Tudo o que ela vê Letícia Sabatella vive, no teatro, a estranha personagem Blimunda, de José Saramago

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Letícia lê Memorial do convento. O autor disse à diretora Christiane Jatahy: “Ao abrir um livro meu, é preciso tomar cuidado, pois de dentro pode sair um personagem.”

Imagine uma mulher que, somente quando está em jejum, tem a capacidade de enxergar as pessoas por dentro. Mas não se trata de “enxergar” num sentido metafórico. Trata-se de algo mais concreto e mais perturbador: ela não vê a alma, a aura, e sim as entranhas. Seu olhar é tão penetrante que atravessa a carne, devassa o corpo. Ela é capaz de ver os ossos, as vísceras, o coração pulsando, o sangue correndo pelas veias. Essa estranha personagem, dotada de poderes sobrenaturais, agora tem rosto – por sinal, um belíssimo rosto: cabe à atriz Letícia Sabatella a tarefa de dar vida à Blimunda, uma das mais famosas criações do escritor português José Saramago, na montagem teatral baseada no romance Memorial do convento. Com a simplicidade e a pureza que consegue transmitir aos seus personagens, Letícia Sabatella foi a primeira opção para viver a Blimunda: “Acho que ela tem o mistério, o olhar, a profundidade, a humanidade e a consciência que essa personagem tem. Eu penso que a Blimunda não tem que ser feita só por uma grande atriz, mas por uma grande pessoa”, acredita Christiane Jatahy, a diretora da peça. (É preciso reconhecer que, pelo menos numa primeira impressão, parece que não houve escolha mais apropriada do que esta: Letícia tem a cara da Blimunda. É encantadora, sem ter aquela vaidade ostensiva. Exemplo: enquanto dava a entrevista, Letícia despreocupadamente descascava o esmalte das unhas. Conversava e prestava atenção às perguntas, mas não parava de descascar as unhas. E na mesa formava-se rapidamente um montinho de esmalte. Ela falava, daquele jeito cantado, e o repórter, quase hipnotizado, não sabia se olhava para a entrevistada ou para os restos de esmalte. De repente, veio à mente aquela cena de Lolita, em que Humbert Humbert pinta as unhas da sua ninfeta. Não me perguntem por quê. O fato é que esse é um comportamento um tanto quanto peculiar para uma atriz global durante uma entrevista. Mas cá para nós: ver Letícia Sabatella descascando as unhas só pode ser resumido numa palavra: sensacional!) Esta é a primeira experiência de Letícia no universo de Saramago, mas a responsabilidade de levar aos palcos a obra de um escritor reconhecido e admirado não a preocupa. Desde outubro, Letícia cumpre a mesma rotina: de segunda a sexta, das nove da manhã às duas da tarde, freqüenta os ensaios da peça no teatro do SESC, em Copacabana, e mostra que é aluna disciplinada. Ela tem lido os livros de Saramago, não só o Memorial do convento, mas também o Ensaio sobre a cegueira, para compor a personagem: “Eu sou uma atriz que aproveita tudo, tanto os laboratórios como as leituras, a intuição, os sonhos”, revela. O que é mais difícil na caracterização da Blimunda? “O mais difícil é trabalhar o olhar: tem que ser o mais limpo, o mais real. Tem que trabalhar a purificação do ego, ficar mais neutra, mais simples.” Publicado em 1982, o Memorial do convento foi o romance que tornou Saramago conhecido no mundo inteiro e o primeiro passo rumo ao prêmio Nobel de Literatura, que ganharia em 1998. O escritor criou uma parábola, a história da construção de um convento em Mafra, Portugal, no século 18, para questionar o discurso oficial da História e falar sobre o poder de resistência e criação do ser humano. Saramago mistura personagens que realmente viveram na época, como o rei D. João V e o padre Bartolomeu de Gusmão, com personagens ficcionais, e constrói situações em que o real e o fantástico se confundem. Continente . dezembro, 02


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Da esquerda para a direita: Marina Dezi, assistente de direção, Christiane Jatahy (de costas), Letícia Sabatella, Marcelo Valle (camisa branca), Fernando Alves Pinto e Malu Galli

A diretora Christiane Jatahy

Todo o elenco: na frente, Fernando Alves Pinto, Letícia Sabatella, Malu Galli; atrás, Marcelo Valle e Augusto Madeira

Uma trindade é a base do romance: Blimunda Sete Luas, o soldado maneta Baltasar Sete Sóis (Caio Junqueira), por quem ela se apaixona, e o padre Bartolomeu de Gusmão (Marcelo Valle), que é considerado louco pela Inquisição por ter o desejo de voar. Entre esses três personagens forma-se uma relação míticosimbólica: “A Blimunda tem uma comunhão com o padre, ela acredita no sonho dele, na possibilidade de sair daquela realidade de opressão. O Baltasar entra como o elemento construtor, o trabalhador, e a Blimunda complementa a mão que falta nele”, explica Letícia. A diretora Christiane Jatahy é apaixonada pela obra de Saramago e tinha o sonho de montar o Memorial do convento há 15 anos: “Foi um livro que me encantou. Li várias vezes, e de alguma forma eu vi ali uma mágica, uma teatralidade, que eu acreditava que podia transpor para a cena.” Faltava encontrar uma adaptação que fosse ao mesmo tempo respeitosa com as intenções e com o discurso de Saramago, mas que também conseguisse tirar o peso de uma obra literária e traduzi-la em dramaturgia, em algo apropriado para os palcos. Christiane e o autor espanhol José Sanchis Sinisterra conseguiram a proeza de transformar um denso romance de 358 páginas em um texto teatral de apenas 48 páginas, o que dará um espetáculo de aproximadamente uma hora e vinte minutos de duração. Mas Christiane garante que tem nas mãos uma síntese absolutamente fiel ao livro: “Não há uma única palavra no texto que não seja do Memorial do convento. A adaptação não reescreveu nada, ela é toda feita com trechos do livro. É uma aproximação muito singela do texto, com delicadeza, sem ser abrupta ou ansiosa.” Esta não é primeira montagem de um texto de Saramago no Brasil. Recentemente, esteve em cartaz no Rio e em São Paulo uma adaptação de O evangelho segundo Jesus Cristo, com Maria Fernanda Cândido. Christiane assistiu à montagem, mas é cautelosa nos comentários: “Acho que é uma proposta muito difeContinente . dezembro, 02


Marcelo Valle e Letícia Sabatella

rente. É um outro caminho, um outro teatro. A maneira pela qual pretendo contar essa história é mais íntima, mais próxima do espectador. É como ouvir uma história aconchegado em frente a uma lareira. Eu quero que o espectador se sinta mais próximo da cena.” Além da adaptação, feita por um autor espanhol, a montagem terá também a colaboração de um cenógrafo português: “Quem vai fazer a nossa cenografia é o José Manuel Castanheira, que é um dos mais importantes cenógrafos europeus”, diz Christiane. Uma das idéias para o cenário é cobrir o palco de areia. “Seria como se a gente estivesse trabalhando numa escavação e começasse a encontrar páginas do romance, do Memorial do convento, aleatórias, e a gente começasse a contar a história do nosso jeito”, explica o ator Augusto Madeira, que interpreta o rei D. João V na peça. O Memorial do convento conta também a história da construção da “passarola”, a célebre máquina de voar criada pelo padre brasileiro Bartolomeu de Gusmão. A diretora quer dar ao público a sensação de vôo, mas sem recorrer a efeitos mirabolantes. “Eu não penso em fazer grandes efeitos. Se você transforma os livros do Saramago numa sucessão de efeitos, você está desvirtuando a narrativa dele. A gente não quer criar o efeito de uma máquina espetacular voando, mas sim traduzir isso teatralmente”, afirma. A estréia está prevista para o dia 23 de janeiro, em Curitiba, mas a montagem ainda está na fase inicial: desde outubro, Christiane tem feito leituras do texto com o elenco e somente agora começa efetivamente a levantar o espetáculo. Como preparação, os atores têm aula de corpo e música (um dos personagens tocará piano e cravo em cena). A peça segue depois para o Rio, São Paulo e Porto Alegre. Por enquanto, não há nenhuma apresentação marcada para o Nordeste. “Queria muito fazer esse espetáculo no Nordeste. A gente tem esse enorme desejo”, diz Christiane. A história da construção de um convento em Portugal, no século 18, teria algo a ver com o momento político que vivemos, em que um trabalhador chegou à presidência da República? Christiane acredita que sim. “Saramago criou essa história para falar das relações entre o poder e o povo, da História que sempre foi contada pelos poderosos. Eu acho que o Memorial do convento é na verdade um livro sobre anônimos, os verdadeiros construtores de todas as histórias. E falar sobre isso hoje, no Brasil, eu acho muito apropriado. A partir de agora, um homem do povo vai começar a contar a nossa História.” Letícia também acha que a mudança no cenário político do país criou uma relação imediata com o texto de Saramago. “O povo brasileiro venceu muitos preconceitos para conseguir dar esse passo importante. Todos nós vivemos esse momento com bastante esperança, e foi uma coincidência feliz poder fazer essa peça exatamente agora”, diz. A atriz revela que aceitou participar do projeto mesmo sem ter lido a adaptação. “Foi um tiro às cegas. Mas quando veio o texto, e conversei com os outros atores, percebi que tinha feito a escolha certa.” A conversa continua, e Letícia fala sobre o documentário que está produzindo (ver box). Hora de encerrar a entrevista. Última pergunta: ela gostaria de ter os poderes da Blimunda, nem que fosse por um dia apenas? Letícia hesita, mas se lembra do célebre conselho do Tio Ben para o jovem Peter Parker, o Homem-Aranha: “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades.” Como Blimunda, Letícia gostaria de ter um olhar sem véus, mas que esse olhar ficasse apenas no campo da metáfora. Nada de bisbilhotar as entranhas de outras pessoas. “Eu tenho vontade de usar a metáfora para me libertar de algumas ilusões. Mesmo nos momentos de dificuldade, ter a capacidade de enxergar adiante. Quero ficar cada vez mais real e mais simples no meu olhar. Não importa se é rei ou se é trabalhador, Blimunda vê que todo mundo tem a mesma coisa por dentro. Tanto a mendiga na rua quanto a rainha da Inglaterra, todos têm a mesma essência.”

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Teatro nas tribos Do Marrocos para Portugal e, agora, para uma tribo indígena no Tocantins. Depois de viver a muçulmana Latifa, na novela O clone, Letícia Sabatella embarca num projeto que vem acalentando há tempos: produzir um documentário sobre os índios kraôs. Em parceria com a cineasta Leila Hipólito, Letícia pretende mostrar o trabalho dos “índios-atores”. “Nos momentos de crise, eles têm a função de elevar a auto-estima da tribo. Eles são os palhaços sagrados. Os kraôs foram massacrados pelos latifundiários, passaram por muitas privações, foram abandonados à própria sorte pelo governo brasileiro. Mas eles sobreviveram e se mantiveram íntegros, e a função de manter essa integridade da tribo é do ator.” A atriz quer ainda levar a cultura dos kraôs para as escolas de teatro. “Eu queria muito usar esse projeto na formação de atores. Eu lamento muito não ter tido contato com essa cultura teatral na minha faculdade. A gente aprende sobre o teatro dos gregos, a commedia dell’arte, e nada se aprende sobre o teatro nas tribos.” Continente . dezembro, 02

Memorial do convento, de José Saramago Direção: Christiane Jatahy Elenco: Letícia Sabatella – Blimunda Caio Junqueira – Baltasar Marcelo Valle – Padre Bartolomeu de Gusmão Malu Galli – D. Ana Maria Josefa Augusto Madeira – D. João V Fernando Alves Pinto – Domenico Scarlatti Adaptação dramatúrgica: José Sanchis Sinisterra e Christiane Jatahy Cenário: José Manuel Castanheira Música: Tato Taborda Movimento: Márcia Rubin Figurino: Marcelo Olinto Estréia: 23 de janeiro, no Teatro do HSBC, em Curitiba, seguindo depois para o Sesc Copacabana, no Rio, Sesc Belenzinho, em São Paulo, e Teatro São Pedro, em Porto Alegre.


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Lama na alma Em Memorial do convento, Lisboa cheira a podridão

O romance Memorial do convento permitiu uma virada repentina e talvez inesperada na carreira literária de José de Sousa Saramago. Apareceu em Portugal em 1982, quando o autor já contava sessenta anos, e no Brasil um ano após. Anteriormente, Saramago publicara outros livros de ficção, sendo o primeiro deles Terra do pecado (1947). Sem obter grande repercussão junto a um público mais ampliado, sua obra vinha incluindo, com maior ênfase a partir dos anos 60, poesia, crítica literária e peças teatrais. Em Memorial do convento Saramago tomou como suporte histórico a plenitude da vida portuguesa no século 18. Acontecimentos revelantes da corte ou do cotidiano das ruas e vilas misturam-se ao mais inacreditável e fantástico sugerido pelo romancista. As indicações temporais irrompem quase sempre de surpresa ao leitor, não perfazendo propriamente uma sucessão histórica linear e organizada. Sabe-se que a narrativa inicia-se em 1711, quando o autor informa que “S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze.” Quatro são os personagens principais: o rei D. João V, o padre Bartolomeu de Gusmão, o soldado Baltasar Sete Sóis e a vidente Blimunda Sete Luas. Mas, há personagens subalternos que têm um peso definidor, como o frade franciscano António de S. José, que promete desencavar a gravidez da rainha Maria Ana da Áustria em troca da construção de um convento na vila de Mafra. A obra do convento, que a partir da fundação e do transporte de uma pedra imensa mobiliza milhares de trabalhadores e bois, empurra a ação por muitas páginas e acidentes. Outra obra humana que se arma paralelamente é a “passarola” em forma de gaivota, engendrada secretamente para voar Imagem: Reprodução

pelo padre brasileiro, com a ajuda do soldado maneta e da mulher que via os homens por dentro. Numa ânsia de descoberta do que está oculto por trás das ações e da alma, das paixões e do pensar humanos, o relato de Saramago envolve digressões sobre a ciência, a filosofia, a história e a psicologia. Lança sérias dúvidas sobre a fé de religiosos sempre sedentos por mulheres e vinho e fustiga violentamente Lisboa que “cheira mal, cheira a podridão.” Se para o rei valem a soberania e o poder totais, diante do que não cabem as afrontas ou as contestações, para o padre seu protegido se aplica, contrariando o Santo Ofício e a Inquisição, a junção profana de três figuras humanas numa só – ele mesmo, Baltasar e Blimunda –, movidos pelo desejo de voar. O cosmopolitismo de Saramago é descritivo de objetos, lugares e pessoas, como, entre outras coisas, a cama da Áustria da rainha, as putas inglesas, os espanhóis em guerra, o ouro, o diamante e os condenados do Brasil pela Inquisição, a miniatura da basílica que o rei manipula e que teimará em construir em tamanho natural no convento de Mafra. Tudo isso colocado com sabedoria e humor, como mapeamento possível do visto e do sentido, do intuído ou já sabido.

Desenho alegórico da máquina de voar do padre Bartolomeu de Gusmão

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46 CAPA

Náusea do Outro Escritor português dá ao velho tema do duplo um halo de crítica social

A ordem – ou o caos – natural das coisas, identidade e consciência. Esses são alguns dos temas do novo romance de José Saramago, O homem duplicado. Com tiragem inicial de 80 mil exemplares, o livro do único prêmio Nobel de Literatura da língua portuguesa, que acaba de completar 80 anos, foi lançado simultaneamente em Portugal (Caminho) e no Brasil (Companhia das Letras). Em janeiro, deve sair a edição espanhola e, logo em seguida, a italiana. Um pobre português professor de História um dia se dá conta de que tem um completo sósia. Se a Igreja manda amar o semelhante e prega a igualdade entre as pessoas, o que dizer quando tudo isso vai além da metáfora e se torna algo real até à náusea? Tertuliano parece ter sido copiado célula por célula (aliás, mestra também em multiplicar-se), como fruto dessas máquinas modernas. É um homem duplicado (o próprio autor José Saramago parece uma duplicata física do jornalista brasileiro Duda Guennes). O tema do duplo na literatura é recorrente. Talvez o caso mais antigo seja o da Bíblia, que conta que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. Aqui, trata-se de uma imagem, um ídolo, uma ilusão, e não de um duplo. Mas não seria todo duplo uma ilusão, algo mesmo do estranho mundo da mimese a que está sujeito de modo inapelável o homem? Não seria cada coisa, cada ser, uma cópia? Essa visão platônica parece de tremenda atualidade, especialmente depois que a civilização cibernética obrigou a que problemas como identidade, verdade e autenticidade voltem de novo a perturbar os homens. O escritor argentino Jorge Luis Borges é um dos especialistas na temática do Outro e do duplo. No seu livro Discussão falou de Jekyll e Hyde, os famosos personagens de Stevenson. Repudiou outra forma de duplicar, que é a dublagem no cinema. Numa nota de rodapé, ele indaga: “Mais de um espectaContinente . dezembro, 02

dor se pergunta: já que há usurpação de vozes, por que não também de figuras? Quando será perfeito o sistema? Quando veremos diretamente a Juana González no papel de Greta Garbo, no papel da Rainha Cristina da Suécia?” No romance de Saramago a questão do duplo está posta de modo irônico: Tertuliano encontra o seu duplo justamente num ator coadjuvante de um filme a que assiste para enfrentar o tédio. Aí começa o seu desespero. Se abismo atrai abismo, cópias são feitas para engendrar outras cópias, num processo infinito que agradaria a Borges, para quem a duplicação dos seres é abominável e, por isso, são malditos os espelhos e a cópula. Poderia ser multiplicada várias vezes a série de exemplos da literatura que trata do duplo, mas basta um caso magistral, o conto O Horla, de Maupassant. Um homem anota no diário passo a passo a consciência de que a sua sombra ganhou autonomia e já lhe é uma ameaça. Há um aspecto pitoresco na sua história: o associar o terror e morbidez ao Brasil. No caso de Saramago, que vem desde há muito problematizando as questões do homem contemporâneo, não devem deixar de ser citados obviamente os versos do seu conterrâneo Mário de Sá-Carneiro, que escreveu: “Eu não sou eu nem o outro,/Sou qualquer coisa de intermédio: /Pilar da ponte de tédio/Que vai de mim para o outro.” Em entrevista recente, ele comentou a temática do seu livro: “Quem é o outro é uma pergunta assustadora, porque nos traz por resposta que sem os outros não somos nada, e as coisas complicam-se quando os outros são diferentes de nós... É o que acontece hoje na Europa com os imigrantes: indesejados mas necessários.”


CAPA 47

José Saramago, que teve recentemente adaptado para o cinema o seu romance A jangada de pedra, ganha montagem teatral no Brasil de Memorial do convento

O livro não é só uma parábola filosófica, é também uma crítica à sociedade atual. A referência ao outro por excelência, que são os imigrantes, evidencia isso. Quem bem observou o o recorte foi o crítico Eduardo Prado Coelho, em artigo publicado no jornal Público, no mês passado: “O que está em causa é o problema da identidade pessoal. E Saramago vai recorrer (como já o fizera no Ensaio sobre a cegueira) ao que poderemos chamar o paradigma epidémico. O mal espalha-se por contágio, é um movimento, como disse Baudrillard, de tipo viral. Mas se a cultura antiquíssima das epidemias está ligada à doença e ao mal, temos hoje algumas alterações nesta situação: por um lado, a nossa época é a primeira que procurou dar também um sentido positivo ao paradigma epidémico: que os duplos se multipliquem seria uma forma de nos libertarmos da obsessão da origem e da tentativa permanente de distinguir o original da cópia. A proliferação dos simulacros seria a libertação eufórica do domínio do fundamento e da origem. A problemática da serialidade na arte contemporânea vai neste sentido. Em segundo lugar, os mecanismos de terror são hoje também de tipo epidémico, atingindo o seu apogeu no confronto entre um sistema hierarquicamente organizado, como são os exércitos tradicionais, e um sistema reticular onde tudo se propaga sem fronteiras (como são os movimentos terroristas).” Parodiando Pessoa, pode-se dizer que morre um duplo, outros nascem, e assim por diante, num processo infinito, até que se acabe a raça dos homens e ela perca a consciência de que duplicar ou multiplicar parece a sinistra ordem que deu a si mesma a natureza. (M. H.) Foto: Divulgação

O homem duplicado, de José Saramago Editora Companhia das Letras 320 p. R$ 36,00 Livraria Cultura: (11) 3170.4033 www.livcultura.com.br

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48 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Bem kitsch, bem cafona José Guilherme Merquior foi quem melhor teorizou no Brasil sobre o filho bastardo da Revolução Industrial

Pois é, as coisas andam tão ruins nas rádios e TVs da vida, que me bate uma saudade bem kitsch, bem cafona, do velho Waldick Soriano, nestes tempos de inundações do chamado brega romântico. Pelo menos, parecia haver nos exageros de Soriano alguma irônica sinceridade, como se tivesse consciência das tolices que cantava. Mas quem merece, mesmo, a saudade nacional é José Guilherme Merquior, o melhor crítico da cultura que tivemos, falecido aos 49 anos e já horrorizado, em 1973, com o grau de alienação coletiva que a cultura de massa, através da poderosa indústria cultural, pode inocular, como um vírus, em um país. Falei em kitsch intencionalmente para falar de Merquior, que o considerava um filho bastardo da Revolução Industrial. Seu ensaio Kitsch e Antikitsch é, para mim, a última e definitiva palavra sobre o assunto. Ao seu modo elegante e erudito, ele procura mostrar que o kitsch é a cultura de quem perdeu a cultura, ou seja, de quem perdeu os valores autênticos mediatizados pela cultura popular. O kitsch ficaria, pois, entre a alta cultura e a cultura popular. Chega até a chamá-lo de monstro, para mostrar de modo quase sufocante que é um enclave deformante e alienante, que degrada o gosto e solapa a criatividade de um povo. Diz Merquior que “kitsch é a etiqueta alemã para os objetos, obras de arte ou espetáculos de mau gosto, franca ou tacitamente ‘comerciais’, mas com pretensões a exibir valores sublimes.” Do ponto de vista estético, ele afirma em outro trecho de seu ensaio, é “um simulacro da arte”, que sai das esteiras da indústria cultural. Gostaria, ainda, de tocar num ponto que diz respeito à palavra e que me interessa particularmente. Há uma “standartização” dos gêneros comerciais em maior oferta no campo da música kitsch: o pagode, o axé-music, a música sertaneja e o brega romântico. Parece haver uma ordem dos chefes de produção para que se evite, ao máximo, a metáfora, mesmo em sua forma degradada, a catacrese. Talvez a mais antiga figura de retórica (Homero fala nos “dedos róseos da alvorada”), que está na conversa de rua, no discurso político, na ficção e, principalmente, na poesia (embora o filme O poeta e o carteiro erre ao dar a entender que a metáfora é a própria poesia), a pobre da metáfora foi quase desterrada dos “hits” nacionais. Continente . dezembro, 02

Talvez porque cause algum problema digestivo, pois, como ensina Merquior, “a especialidade do kitsch consiste em digerir previamente a arte para o consumidor.” Papinha na boca. No entanto, eu me espanto com o sucesso que fez Frevo Mulher, de Zé Ramalho, que tem metáforas difíceis e belas como esta: “Outonos caindo secos no solo de minha mão.” Acredito que se possa fazer um excelente poema sem metáfora, e Earl Miner, em seu livro Poética comparada, fala da poesia japonesa sem aquela figura. Acredito que seria interessante pesquisar a “standartização” de elementos na produção kitsch escrita (best-sellers de ficção, obras esotéricas, livros de autoajuda...), nas telenovelas, nas artes plásticas e em outras manifestações estéticas infestadas pelo kitsch. Precisamos lutar contra a degradação do gosto popular, mas desde que os srs. Abraham Moles e Edgard Morin não nos ouçam, para não nos tacharem de elitistas. Contra eles e seus hipócritas descendentes só funcionaria, mesmo, a prodigiosa lucidez de José Guilherme Merquior, a mais refinada lâmina crítica que o Brasil já conheceu.


MARCO ZERO 49

Escultura em vídeo, de Nam June Paik, Voltaire, 1998, 300x200x55cm, do acervo da Galerie Beaubourg, Paris. A vanguarda ironiza com homenagem ao mestre do racionalismo francês e compõe um “totem” com veículos de massa e do kitsch.

Foto: Reprodução

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50 AUTORES Mário Hélio

Gato de um magnata polaco do século 18 em cama para ele especialmente desenhada. Os poemas sobre gatos de Eliot representam um grande desafio ao tradutor pela dificuldade de recuperar em português os localismos londrinos e o nonsense deliberado

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“Tradutor é sempre traidor” O poeta Ivan Junqueira traduz para a Siciliano a poesia e o teatro completo de T. S. Eliot

Ivan Junqueira estava em sua casa, posto no desassossego habitual dos poetas, com uma nova work in progress de poesia e um livro de ensaios já pronto. Foi quando o editor Pedro Paulo Sena Madureira (da Siciliano) resolveu desassossegá-lo ainda mais. Por telefone, convidou-o para traduzir toda a poesia e o teatro de T. S. Eliot. Finalmente, a Faber & Faber aceitara que os poemas e peças de teatro do autor de Crime na catedral aparecessem de forma integral na língua de Drummond, numa edição bilíngüe. A primeira atitude de Ivan foi recusar. Nem fôlego nem entusiasmo o moviam a voltar a um autor de quem traduzira o essencial e que é até hoje um dos maiores êxitos editoriais da Nova Fronteira. Quando saiu Poesia, no começo da década de 80, três edições esgotaram-se em dois meses. Foram as suas versões de A terra desolada e Os quatro quartetos que formaram toda uma geração de leitores de poesia no Brasil. “Vejo isso especialmente quando viajo pelo Nordeste”, diz. Eliot foi um dos primeiros alumbramentos de Ivan. Aos 23 anos, leu Os quatro quartetos, e um ano depois já estava a traduzi-los. A economia do poeta – escreveu menos de cem poemas – também o seduziu. Portanto, é uma paixão de toda a vida. Mas, aos 67 anos, quando recebeu o convite de

traduzi-lo todo, já não se animava. Sobretudo o tempo lhe faltava. As muitas obrigações – inclusive na Academia Brasileira de Letras, com o seu penoso circuito social – já não deixavam espaço para reencontrar A terra desolada, Os homens ocos e tantos outros textos antológicos do grande poeta. Mas não disse “não” de forma direta ao amigo editor. Cobrou um preço bem alto pela tarefa, julgando que assim o dissuadiria. Todavia ele aceitou a proposta e, desde março, Ivan Junqueira acrescenta ao seu já repleto dia-a-dia esse trabalho de Hércules. “Aquele Eliot que traduzi era o essencial. Ficaram faltando uns 58 poemas para ter a obra completa”, informa Ivan. “Vou aproveitar o que havia feito nos outros poemas, mas mexi profundamente neles.” As correções dizem respeito a erros de interpretação e outros cochilos. Por isso mesmo, o que o leitor deve esperar é de certo modo um novo livro, revisto, aumentado. Todo o trabalho será concluído em 15 de dezembro do próximo ano. Entre todos os poemas de Eliot, os de maior desafio ao tradutor estão sendo aqueles sobre gatos. Além do duro esforço de encontrar equivalentes para as rimas, há os localismos londrinos e todo um clima de estranhamento e nonsense deliContinente . dezembro, 02


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berado que são de recuperação complicada em português. Ivan também é autor de uma tradução de Baudelaire considerada modelar. Todas “as flores do mal” têm edição bilíngüe também da Nova Fronteira. Os dois poetas trazem dores de cabeça próprias para um tradutor. A dificuldade de Eliot consiste em poder transmitir para o leitor brasileiro a sua música de idéias, ele que fez sempre uma poesia reflexiva. “É poeta pensador”, diz Ivan. “A principal dificuldade de Baudelaire é a trama de relojoeiro dele.” No caso de As flores do mal, o tradutor levou cinco anos tentando resolver esses problemas. Outro poeta igualmente difícil enfrentado por Ivan Junqueira foi Dylan Thomas. “Ele vai aos limites da língua ingleO poeta Ivan Junqueira, que está a traduzir toda a obra poética e teatral de T. S. Eliot sa.” Junqueira teve de não só resolver as palavras-valises dos seus textos, na linha de Joyce, ve, terá uma edição italiana de uma seleção dos mas também recuperar sons e sentidos. “Recupeseus poemas, isso é bem acentuado. Até em línrar as duas coisas ao mesmo tempo é impossível. guas mais duras, como o dinamarquês e o Se tiver de escolher, eu prefiro o significado”, alemão. Às vezes, ele também se sente traído, afirma. Ivan lembra que Thomas está preso àquecomo numa antologia inglesa. la filiação barroca de grande luxúria verbal, de O Ivan Junqueira criador em breve lançará a hermetismo tremendo. “É como se o poeta dissua própria antologia pela editora Global, na fasesse: ‘Agora está muito fácil, vou complicar.’” mosa coleção Os Melhores Poemas. O selecionaComo será a sensação de um tradutor que dor é Ricardo Tomé, um discípulo do crítico Antambém é poeta ler os seus versos vertidos para tonio Carlos Secchin. Ele fez a tese de doutorado outra língua? Às vezes é de profundo estranhasobre a poesia do autor de Grifo. Essa coleção mento. No caso de Ivan Junqueira, que, em breatinge aquele público em formação. “Atingir esse público é muito importante para qualquer poeta brasileiro”, observa. Os leitores que, em geral, são tão difíceis de dimensionar no caso da poesia, às vezes motivam uma grande alegria. Um exemplo é o livro A sagração dos ossos, uma obra densa e dolorosa, já a partir do título. Daí a surpresa do poeta quando um seu amigo lhe disse: “Meu filho de 18 anos não larga o seu livro.” Como é conciliar a tarefa de poeta, tradutor e ensaísta? Ivan não tem dúvidas: “Não se trata de conciliação. Devo tudo ao fato de ser poeta. Eu não queria traduzir mais nada. Fui encostado na parede.” Seria mesmo todo tradutor um traidor, como reza o velho chavão? Ele não hesita: “É sempre traidor. Não há como escapar disso.” O poeta inglês T. S. Eliot, autor de Quatro quartetos e A terra desolada

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Fotos: Rogério Reis / Tyba e Reprodução


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Frederick Sommer, Coyotes, 1945. Center for Creative Photography, Tucson

O que disse o trovão (Trecho de A terra desolada)

Aqui água não há, mas rocha apenas Rocha. Água nenhuma. E o arenoso caminho O coleante caminho que sobe entre as montanhas Que são montanhas de inaquosa rocha Se água houvesse aqui, nos deteríamos a bebê-la Não se pode parar ou pensar em meio às rochas Seco o suor nos poros e os pés na areia postos Se aqui só água houvesse em meio às rochas Montanha morta, boca de dentes cariados que já não pode cuspir Aqui de pé não se fica e ninguém se deita ou senta Nem o silêncio vibra nas montanhas Apenas o áspero e seco trovão sem chuva Sequer a solidão floresce nas montanhas Apenas rubras faces taciturnas que escarnecem e rosnam A espreitar nas portas de casebres calcinados Se água houvesse aqui E não rocha Se aqui houvesse rocha Que água também fosse E água uma nascente Uma poça entre as rochas Se ao menos um sussurro de água aqui se ouvisse Não a cigarra Ou a canora relva seca Mas a canção das águas sobre a rocha Onde gorgeia o tordo solitário nos pinheiros Drip drop drip drop drop drop drop Mas aqui água não há (Do livro Poesia, 4. ed., Nova Fronteira, 1981) Foto: Reprodução

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54 AUTORES Márcia Cavendish Wanderley

Pulsão de morte Como talento, desespero e êxito formaram uma combinação explosiva que levou Sylvia Plath ao suicídio A promessa de uma vida sob o predomínio do azul, moldura de sua primeira infância passada à beira-mar em subúrbio bostoniano (Winthrop) dos anos 30, não se cumpriu para Sylvia. Na verdade, sua vida foi marcada pelo predomínio do negro, e a senda que trilhou bordejava a escuridão e o desespero nos episódios que culminaram em várias tentativas de suicídio, finalmente concretizado em 1963, praticamente no início de uma fecunda carreira literária. Talento e o reconhecimento público do mesmo não conseguiram salvá-la, pois, muito ao contrário, as grandes depressões coincidentemente manifestavam-se quando os respingos da fama e da notoriedade a borrifavam, podendo seu trajeto ser fascinantemente traçado a partir de um mapa desenhado por esses momentos. O primeiro deles ocorre no verão de 1953, quando, após ser a convidada de honra da revista Mademoiselle (uma experiência literária feminina no território da fama equivalente a uma coroação de Miss América, segundo Sandra Gilbert), tenta o suicídio através de uma overdose de drogas no porão de sua casa, onde permanece inconsciente por sete dias, até ser descoberta. Resgatada para a vida, nela embarca novamente com a força herdada por seu passado marínho, e segue para a Inglaterra com a prestigiada Bolsa de Estudos da Fulbrigth, obtida em 1955. Lá conheceria Ted Hughes, também poeta, e com ele casaria em 1956, passando a viver, agora em parceria, uma existência dedicada à literatura e à familia. Família rapidamente deteriorada. Em 1962 já estavam separados, apesar dos dois filhos que tiveram juntos e do vasto universo literário compartilhado. Em 1963, após a publicação e o sucesso do livro de contos The bell jar (A redoma de vidro), quando foi comparada a Sallinger, e também logo após as edições inglesa e americana bem-sucedidas de The colossus and other poems, Sylvia Plath consegue pôr fim à própria vida. Razões não lhe faltaram, dizem alguns. Angústias criativas, fragilidades femininas, um pai “nazista” e um casamento esfacelado. E, como acréscimo, uma necessidade incoercível de chamar a atenção sobre si própria e sobre sua poesia, ansiedade por um reconhecimento que apenas começara a obter e por um amparo emocional e amoroso que acabara de perder. Sua morte, até certo ponto anunciada (deixou bilhete dirigido “a quem a encontrasse ainda com vida” e com “indicação do médico que deveria ser chamado”, um detalhe curioso), dá-nos a medida de seus dramas e incertezas entre querer e não querer morrer e da difícil escolha entre o entregar-se ou não ao desespero, como desenlace. Dramas internos ocultos sob aparências diversas e metamorfoseados ora na imagem autoconstruída da filha exemplar, revelada em sua correspondência com a mãe, ou na reprodução fotográfica da american housewife bonita e banal que cede toda a cena ao marido poeta e famoso. Imagens que ocultavam a angústia mas também a arrogância da jovem de 25 anos, que se considerava “the poetess of America (as Ted will be the poet of England and her dominion)”, tal como revela em seu próprio diário, em 1958. Essa multiplicidade na singularidade talvez explique em parte a pluralidade de tons, temas, formas e perspectivas que animam sua voz poética: mitológica mas também política; romântica apesar de moderna; lírica sob o racional; feminina mas também feminista. Colher amoras é o melhor exemplo de sua face lírica, à qual, entretanto, não escapa alguma crueldade. Poema em que, sob um saguão repleto de maravilhas e imagens da Continente . dezembro, 02

Fotos: Reprodução


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felicidade possível, o terrível introduz-se sorrateiramente pela “fraternidade de sangue” que lhe propõem as amoras, quando “esbanjam entre seus dedos o sumo azul-vermelho” e introduzem na atmosfera radiosa e marinha do poema a darkness macbethiana. Mãos sujas de sangue a quebrar a leveza do azul seguidas de “gralhas negras em revoada cacofônica” prenunciam catástrofe: “Acho que o mar não aparecerá.” Entretanto, como num filme em que já se preparam os corações para o pior, nova mudança acontece no cenário quando, numa curva a mais, amoras e arbustos terminam e “tudo o que vem agora é o mar.” Um momento apoteótico de prazer e transcendência denunciador da anterior crueldade auto-inflingida, que desfrutamos aqui na bela tradução de Jorge Wanderley: Colher amoras

Ninguém nas veredas e nada, alem das amoras, Amoras de ambos os lados, embora mais à direita Uma aldeia de amoras descendo em curva e um mar Se alçando lá no fim. Amoras Grandes como meu p olegar e a silenciar como olhos De ébano nas sebes, gordas De sumo azul-vermelho. O sumo esbanjam entre meus dedos. Eu não pedira esta fraternidade de sangue: elas na certa me amam. E se acomodam em meu jarro, achatando-se os lados. No alto as gralhas negras, revoada cacofônica Pedaços de papel queimado girando num céu a pleno. É delas a única voz protestando, protestando… Acho que o mar não aparecerá. As campinas altas e verdes resplandecem como acesas por dentro Chego a um arbusto cheio de amoras tão maduras que o arbusto é de moscas Pendentes, suas barrigas verde-azuladas e os vitrais das asas numa tela chinesa. A festa de mel das amoras alvoroçou-as. Elas acreditam no céu Uma curva mais: amoras e arbustos terminam. Tudo o que vem agora é o mar. De entre dois morros uma súbita brisa se afunila em direção a mim E me esbofeteia a face. Esses montes são muito verdes e doces para quem provou sal Entre eles sigo a trilha das ovelhas. Numa última curva Alcanço a face norte dos montes, cor de laranja e rocha E a face olha para nada, nada exceto um grande espaço De luzes brancas metálicas; nada exceto um ruído de ferramentas sobre a prata, Os golpes e golpes sobre um metal intratável.

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Esse é um de seus poemas mais românticos. Mas a verdadeira Sylvia Plath é bem mais complexa e múltipla. Contém uma face negra que é a negação da “Sivy” carinhosamente construída por sua mãe. É o que se vê em um poema como Daddy, por exemplo, em que o ímpeto parricida latente da autora vem explicitamente à tona: Daddy

You do not do, you do not do, Any more black shoe In which I have lived like a foot For thirty years, poor and white Barely daring to breath or Achoo, Daddy, I have had to kill you, You died before I had time (...) Assim começa esse poema que se estende longamente numa cantilena infantil ao mesmo tempo pungente e cruel, pontuada pela idéia da morte, seja personalizada (a morte de seu pai) ou coletiva (a dos judeus no campos de extermínio nazistas). Não apenas pontuada, mas dedicada à morte, “a murderous art”, como a definiu. Segundo A. Alvares, seu mais antigo e perene crítico, a poesia de Sylvia Plath tem em Daddy seu momento mais cruel, pois alí ela destila sobre seu pai alemão (visto como nazista) o mais assombroso rancor através de uma aparentemente cândida linguagem. Maldade de ninfeta, Lolita às avessas, pois sua pulsão é mais letal do que sexual, a autora vai tecendo lentamente sua vítima e seu algoz, seu pai.


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Mesmo assim, “é um poema de amor”, reafirma A. Alvares em Sylvia Plath: beyond all this fiddle (Random House,1972), com o que concordamos, pois são muitas as formas de amor possíveis e impossíveis, quase todas certamente neuróticas. Ver essas formas de amor expressas em dicção rasgaventre, num momento em que o decoro da linguagem é ainda a moeda poética corrente, é muito interessante. Mais que isso, entretanto, é importante verificar as variações da recepção crítica ao poema, variações que vão do romantismo e subjetivismo claros de um A. Alvares, por exemplo, a correntes que tentam descobrir em Daddy uma abordagem deliberadamente social da tragédia histórica recentemente vivida por toda a humanidade: o flagelo nazista. Se acreditarmos na própria autora desse e de outros poemas, tal intenção nunca existiu explicitamente. Mas como criação ingênua não existe, e nem se pode confiar totalmente no depoimento do criador, desconhecedor das próprias raízes de sua criação, aceitamos, mas só até certo ponto, a interpretação freudiana que a própria Sylvia fez de sua heroína em Daddy: “The poem is spoken by a girl with an Electra complex. Her case is complicated by the fact that her father was also a Nazi and her mother very possibly part Jewish. In the daughter the two strains marry and paralyse each other – she has to act out the awful little allegory before she is free of it.” Embora a auto-análise não deva ser totalmente descartada, pois em Sylvia Plath “identity itself is the primary historical datum”, não é possivel negar o processo histórico a que essa identidade deve seu conteúdo. Não apenas à História (com H maiúsculo) da 2ª Guerra Mundial, que marcou toda uma geração no Ocidente, como à sua própria história de vida, filha de pai alemão e mãe quase judia, peculiaridade constrangedora e estigmatizante em termos sociais, especialmente naquele momento, e no lado de cá da sombra suástica. Ambas as histórias foram internalizadas por Sylvia de forma radical e transfiguradas em linguagem poética, igualmente inflexível, na revolta da ariana metamorfoseada em judia para denunciar o pai. Talvez por isso a recusa à “fraternidade de sangue” oferecida pelas amoras e a busca incessante do mar, que é talvez também a promessa do “fim” aonde chegou tão precomentente. Sua poesia, intrinsecamente ligada à própria vida e, na sua maior parte, trágica como ela, possui no entanto uma autonomia também intrínseca ao fenômeno literário que é de certa forma descartada por esse tipo de análise. Uma autonomia poética sim, mas uma tal cumplicidade na tragédia com outras poetas que não é possivel ocultar esse fato, como um dado concreto na análise histórica de uma geração.

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De cima para baixo: Sylvia, com os filhos Frieda e Nick, e o marido Ted, também poeta


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58 AUTORES Sueli Cavendish

Entre o lógico e o louco Os requintados frenesis do poeta Edgar Allan Poe à luz da crítica literária e da psicanálise

Tal loucura, tal poema: é essa a relação que a mais tosca e rombuda crítica da “escola moderna de biografia sócio-psicológica”, como é conhecida nos Estados Unidos, estabelece entre certos desvãos remotos da mente humana e a criatividade. Edgar Allan Poe será o seu paciente predileto. Em 1926, Joseph Wood Krutch, o mais notável representante dessa orientação, já colocava Poe na vanguarda dos maiores neuróticos de todos os tempos. Impotência sexual, fixação materna, aversão ao sexo “normal” respondem pela criação de um mundo ficcional de horror e destruição, “sem nenhuma relação concebível com a vida de qualquer pessoa.” Nem neste mundo se encontrariam vestígios de quaisquer doutrinas sociais ou intelectuais, nem nele se veria expressado o espírito de qualquer era. Servia apenas de refúgio ao poeta acossado por constantes atribulações. A “histórica” análise de Marie Bonaparte, que também atraíra Poe para o seu divã, é bem mais simpática que a de Krutch. A obra de Poe não seria apenas a expressão solipsista de estados mórbidos, mas também a de impulsos e instintos universais, partilhados mas em geral reprimidos pela comunidade humana, responsáveis pelo poder e fascínio exercidos pelos escritos do poeta. Ainda assim é violento e primitivo o quadro clínico que Bonaparte oferece do artista: “Se Poe era fundamentalmente um necrófilo, Baudelaire se revela um declarado sádico; o primeiro preferia presas mortas ou presas mortalmente feridas... o último preferia presas vivas e a matança.” Tratar o poeta como um maníaco e a sua poesia como sintoma é prática hoje condenada e vista como antediluviana. Fazê-la aqui comparecer tem o sentido apenas de contrastá-la com aquela – a dos franceses, principalmente – que já naquele tempo sustentava que Poe exercia um rigoroso controle sobre o seu ofício, Continente . dezembro, 02

calculando os efeitos de sua poesia sobre o leitor com todos os condões de sua genialidade. Tal contraste revela o duplo registro com que se inscreve o poeta na história literária, estabelecido à base de avaliações antípodas e inconciliáveis. Mallarmé, por exemplo, afirma: “...quanto mais prossigo mais sou fiel às severas idéias que me foram legadas pelo meu grande mestre Edgar Poe. O poema extraordinário O corvo assim o fez. E a alma do leitor goza absolutamente como o poeta quis que ela gozasse. Ela não experimenta nenhuma outra impressão que aquelas que ele havia projetado.” Em causa, portanto, para Mallarmé, a racionalidade do fazer artístico, e não o descontrole, a loucura e os processos compensatórios, como querem os adeptos da psico-sócio-biografia. Entretanto, o que se passa na origem dos atos criativos é um segredo zelosamente guardado por uma caixa-preta indevassável. É impossível, nos faz ver Wolfgang Iser, apoiando-se em toda uma filosofia que já o tentara, captar tais processos cognitivamente. Sabe-se apenas que há um jogo livre entre imaginação e razão, e que tanto mais livre é esse jogo quanto menos o seu produto contiver a cristalização de leis ou de conceitos, quanto mais se afaste do campo da ciência e mais se aproxime do campo do estético. Essa parceria das faculdades, o próprio Poe a dramatiza em sua trilogia de história de detetives e de mistério, ao fazer de C. Auguste Dupin, dotado de superpoderes analíticos, um misto de matemático e poeta. Em A filosofia da composição, Poe afirma que não é “um requintado frenesi” que assiste o histrião literário no ato, porém vicissitudes bem mais plebéias: “as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas exclusões e interpolações”, além de toda uma sorte de expedientes, que semelhando as engenhocas que se utilizam no palco Fotos: Reprodução


Viúva Viúva Gilles Gilles assassinada, assassinada, em em Villemonble. Villemonble. Fotografia Fotografia judicial judicial anônima, anônima, 1904. 1904. Acervo Acervo do do Museu Museu Nacional Nacional das das Técnicas, Técnicas, Paris Paris Os Os temas temas mórbidos, mórbidos, como como assassinatos, assassinatos, sempre sempre atraíram atraíram Poe, Poe, que que criou criou oo gênero gênero romance romance policial policial


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60 AUTORES

Estudos de movimento muscular sob efeito de choque elétrico. Guillaume Duchenne de Boulogne, 1852 – 1856. Acervo da Escola Nacional Superior de Belas Artes, Paris Continente . dezembro, 02


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O poeta Edgar Allan Poe, daguerreótipo de Harry N. e Edward H. Manchester, 1848. Acervo da American Antiquarian Society

para garantir certo efeito, aproximam a fatura literária da fatura teatral. Pende mais para esse tom a análise de David S. Reynolds, no livro Subterrâneos da Renascença Americana: a imaginação subversiva na era de Emerson e Melville. Pois o autor reconstitui o ambiente do mercado editorial da América no primeiro quartel do século 19, organizado para matar a sede das massas de violência e de sexo. E registra a reação de Poe, publicada no The Literati of New York City, à emergência dos chamados “penny papers”, dedicados ao bizarro e ao perverso, dos “panfletos de tribunais”, ocupados pelos crimes hediondos, e de uma literatura menor temperada com os ingredientes que faziam a felicidade das massas. Poe de fato considerava que “o impacto e influência dessa literatura na vida americana eram incalculáveis.” Reconhecendo nesse imaginário selvagem e nessa linguagem abusiva qualidades típica e distintamente americanas, Poe, ao contrário do que afirmara Krutch, extrai a matéria viva dos seus efeitos de estranhamento no caldo e caos cultural de sua época. Reflete sobre a literatura popular em sua crítica e tenta apoderar-se desse novo mercado emergente, utilizandose dos temas que nele circulam. De certa forma identifica-se com ela: “É, de fato, a mente popular infantil, indisciplinada e excitável que com mais perspicácia percebe a originalidade.” Quando a publicação de “Berenice” no Southern Literary Messenger provoca celeuma, Poe confia a seu editor: “É terrível demais, beira o mau-gosto... Mas para ser-se apreciado é preci-

so ser lido, e essas coisas são invariavelmente buscadas com avidez.” Gaba-se do sucesso de O escaravelho de ouro, que vendera 300.000 exemplares, e com orgulho declara que “o pássaro bateu o besouro”, referindo-se ao sucesso ainda maior de O corvo. As duas peças, confessa ele, escrevera-as com “o expresso propósito de vender... O mundo em toda a sua amplidão é a única audiência apropriada ao artista.” Reynolds indica até que ponto Poe bebera das fontes da imprensa sensacionalista: a revista The American Magazine of Wonders, a mais importante no gênero, publicou certa vez uma história acerca da “Humanidade de um corvo”, e outra sobre “Um macaco extraordinário”, que portava tesouras de barbeiro enquanto varava a cidade. Uma curiosidade que os aficcionados de Poe logo associarão a O assassinato na rua Morgue e ao seu mais famoso poema. Toda essa refrega com o irracionalismo da ficção de massas em nada reduzia, porém, o seu rigor estético. Sobre John Neal, pai da chamada “literatura subversiva americana”, Reynolds diz: “Não há precisão ou acabamento em nada do que ele faz – sempre uma força excessiva, mas muito pouco do refinamento da arte.” A absorção dos temas populares e a sua calculada transfiguração, artifício que empregam quase todos os grandes autores americanos, nunca será mais visível que em Poe, argumenta Reynolds. Sua crítica não se dá conta de que produzia ele respostas retóricas ao sensacionalismo popular. O seu método de “exacerbação” e “análise” é descrito pe1o autor mesmo, em carta de 1835: “O objetivo do escritor de ficção de terror deve ser o ridículo elevado ao grotesco; o terrível mesclado ao horror; o espirituoso transformado em burlesco; o singular convertido no estranho e no místico.” A trilogia Dupin é talvez o exemplo mais puro da faxina operada por Poe na irracionalidade que absorve em sua obra. Pois vai ela desde o mais sangrento dos crimes, em O assassinato na rua Morgue, cometido todavia por um irracionalismo neutro, desde que inumano, até a assepsia de A carta roubada, em que, antecipados ao leitor crime e criminoso, despontam a razão e a reflexividade como os verdadeiros culpados. Há método demais nessa loucura para que a ela se atribua a obra de um gênio. O limite imposto à abordagem psicanalítica de obras literárias é bem estreito, como o próprio Freud nunca cansou de lembrar.

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Agricultor em roça de arroz no sertão do São Francisco, na cidade de Cabrobó (PE)

Um canto da terra Versos políticos de Vanderley Caixe extrapolam a denúncia

Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, tem história de luta pelos valores nacionais. Ali, publicam-se inúmeras histórias dos que resistiram à ditadura militar do século passado – as novas gerações devem saber da coragem daqueles que acreditavam (e muitos estão vivos para continuar acreditando) no sonho de liberdade e de justiça social. Infelizmente, não há eficiente divulgação e distribuição desses testemunhos da província, e, nem sempre, as edições são bem cuidadas, guardando mesmo falhas de revisão. Entre os autores desses testemunhos está Vanderley Caixe, com o seu 19 poemas da prisão e um canto da terra (Villimpress, Ribeirão Preto). A primeira parte do livro traz 19 textos do tempo em que Vanderley esteve preso em Presidente Wenceslau (1972-1974). A segunda parte, “Um canto da terra. Dionila camponesa”, tematiza a questão agrária no Brasil. As duas partes guardam profunda intimidade, apesar dos anos que separam a gênese de cada uma. A unidade está na coerência ideológica, no compromisso político, no exercício da militância, que perpassam todos os textos, e se confirma em poema(s) e em canto. Para Vanderley, revisitar as contingências do indivíduo, vítima da violência e do arbítrio, ou interiorizar a dor de uma coletividade são atos revolucionários. Admitir a dor, cantar a dor, é pronunciar “um sim, numa sala negativa.” Continente . dezembro, 02

Nada mais subversivo do que falar da dor, seja individual ou coletiva. Principalmente, com a contundência de Vanderley. O sem-reservas de seu discurso traduz a dimensão da dor, que, em exercício de catarse e de proposta de comunhão, ganha a universalidade do canto, tornando radical a denúncia, não mais nos permitindo a doce comodidade do esquecimento ou da indiferença. E mantém viva a memória. Veementemente, recusa a barbárie. Os poemas são datados, mas o autor preferiu quebrar a ordem temporal ao organizálos, pois o tempo do eu não pertence ao calendário. Esse é um tempo interiorizado, tempo que se faz memória e testemunho de situações extremas. Discurso de denúncia? Tais versos extrapolam a denúncia. Ninguém se desnuda tanto ao falar do sofrimento só como atitude revoFoto: Léo Caldas / Titular


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Agricultor trabalhando em plantação de feijão, no sertão do Pajeú, na cidade de Serra Talhada (PE)

Sem-terra no acampamento de Aracapá, em Orocó (PE)

lucionária. O sujeito precisa manter sua integridade, sob pena de fragmentação ou despersonalização. Melhor é ler a catarse: são poemas de reencontro, na necessidade de vomitar as angústias, que afloram traduzidas no discurso poético – única forma possível de exorcizá-las, para realizar a passagem. Sabendo-se que os poemas foram compostos no período de confinamento, é inequívoca a catarse, então, como forma de sobrevivência diante da brutalidade e do arbítrio: fuga da fragmentação. Fotos: Léo Caldas / Titular e Maurílio Clareto/AE

A segunda parte do livro, “Um canto da terra”, pinta, com cores fortes, a situação dos trabalhadores rurais no Brasil. O tom é inflamado pela revolta e pelo objetivo de denúncia. Centrado na camponesa Dionila, Vanderley encontra, nessa mulher, a síntese do desespero e da desesperança de todas as vítimas da política fundiária. Como resultado, Dionila desindividualiza-se, adquirindo linhas emblemáticas, que remetem a uma proposta política. Liberta das circunstâncias imediatas, Dionila aproxima-se da Virgem Maria, enquanto protetora dos que padecem “neste vale de lágrimas”, e, como figura central na liturgia da luta, é invocada pelo autor como “nossa mãe camponesa.” Do livro de Vanderley recebemos lições de certezas. Uma é amarga: refere-se à permanência do arbítrio, que, camaleonicamente, muda sua atuação para atingir novas vítimas, em qualquer tempo, não importa o palco. A segunda é inquietante: livramo-nos do esquecimento e perdemos a indiferença. O discurso poético sugere que todos contribuam para o fim do arbítrio como rotina da História, que, renovada, um dia permitirá às Dionilas de todas as latitudes plantar e colher o feijão nosso de cada dia, sem o medo universal da violência devastadora.

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64 AUTORES Rodrigo Lacerda com ilustrações de Leugim

Outra Vida Com a barriga colada no balcão, o marido avança numa pilha de pão-filé-queijo-bacon-maionesepão-alface-tomate-ovo-cebola-maionese-pão. Um x-tudo apesar da madrugada nem haver terminado direito. Antes de cada mordida, ele enfia a bisnaga vermelha nas entranhas do sanduíche e aperta-a com vontade, sem tocar na outra, amarela, a sua frente no balcão. Enquanto mastiga, suas têmporas afundam, estufam, e nós saltam nos encaixes do seu maxilar. Ao cravar os dentes no pão, o molho brota do recheio, devolvido, desfazendo o guardanapo de papel e caindo no prato em gotas consistentes. Está na segunda lata de refrigerante, com o fôlego natural em três canudos. Tem quase dois metros; suas pernas ficam semidobradas junto ao banco alto, e ainda assim os dois pés estão bem plantados no chão. Sem ser propriamente forte, ou atlético, é largo, tem braços pesados, pescoço grosso, rosto quadrado; e é jovem, acabou de fazer trinta. Já a mulher não comeria ali – “Lanchonete de rodoviária é castigo” –, pediu só um café bem preto, que adoçou artificialmente, numa dose arbitrária e pré-estabelecida, sem provar para saber o quão amargo estava. Viu xícaras, pires e colherinhas sendo escaldados na água, brotando do vapor diante de seus olhos, mas para ela nada disso torna as condições sanitárias do lugar menos suspeitas. Faz a pequena xícara branca evoluir em seus dedos longos, mas só para ocupar as mãos – o café está pela metade, esfriando.

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É quase alta, alguns anos mais velha que o marido, mas a proximidade com ele não lhe faz justiça; parece menor e mais jovem do que é realmente. Com a bolsa bem junto ao corpo, o tórax espigado, firme sob o tecido da blusa, ela espera a família terminar de comer. A criança, uma menina, belisca sem vontade o pão de queijo, e já recusou um chocolate quente – amargo ela não gosta, e amargo é todo o chocolate diferente do que ela tem todo dia, sem o gosto de festa ou o sabor que alimenta aos quais supõe estar acostumada. A menina sente sono; os olhos vão pesando, o cabelo fino e amarelo cai no seu rosto, grudando na boca, olheiras tingem sua pele mais branca do que nunca. A madrugada se impõe, silenciosa, embaçando a luz do dia. São uma jovem família de três, diante do balcão da lanchonete. Para quem os vê, todos de costas, um do lado do outro e postos à prova pelos bancos altos, fazem uma escadinha íngreme que termina com a filha. Os três usam casaco, as malas fazem hora no chão. Há pouca luz, enquanto eles assistem à rodoviária vazia, a quase imobilidade nos espaços gerais, e, do outro lado das grades, nas plataformas, os passageiros indo e vindo num trânsito de sonho; o trabalho silencioso dos funcionários das empresas de ônibus e dos carregadores da madrugada. O caminhão com tudo o que têm saiu na véspera. Agora vão atrás da mudança. O carro, venderam, planejando comprar um novo na velha cidade para onde iam. Dormiram os três em colchonetes descartados, num apartamento já sem nada, e ainda estava escuro quando acordaram. A geladeira tinha ido, os armários embutidos estavam vazios – eram do proprietário –, nenhum prato nas gavetas, nenhum garfo ou faca, nenhum copo, e as marcas da rotina, normalmente escondidas pelos móveis e pelos quadros na parede, interrogavam-lhes em silêncio, numa incômoda perplexidade. Aquela manhã, concentrando todo o sofrimento dos últimos meses na viagem, expulsaram-se do apartamento muito antes do necessário. Ele, agora, concentrando toda a angústia da espera no sanduíche, bem debaixo do nariz, mastiga rápido e com energia. Sua imagem com as mãos na grossa pilha mordida e sanguinolenta tem algo de chocante; o jeito como engolem a massa de ingredientes primeiro, manoplas famintas, só depois empurrando-a para a boca aberta. Então o molho escorre em seus dedos – por chumaços de pão e bife –, fazendo-o perceber que acabaram os guardanapos. “Amigo!”, chama alto, apontando para o porta-guardanapo. A mulher finge um pequeno susto e o encara, gesto que ele não entende. Um balconista, magricelo e adolescente, ouve e executa: o novo porta-guardanapo chega abarrotado. “Obri...”, ele começa a dizer, mas se corta no meio, fecha a boca, termina de mastigar; entendeu agora o susto da mulher, de boca cheia. Distraído pela mortificação, “Merda!”, deixa cair molho na roupa. Olha onde caiu, a mulher também. O pano xadrez, fora da calça jeans, acusa a gota vermelha e enjoativa. O que resta do sanduíche, na ponta dos dedos, ele bota no prato. Meio sem jeito, puxa lentamente um guardanapo, e lentamente o esfrega na camisa. A mancha cresce, embora a força do vermelho diminua. A mulher olha para o outro lado, não há mais o que fazer. Ele também deixa pra lá. Perdeu a fome. E olha as horas. A grossa pulseira metálica e o mostrador largo do relógio ficam menores no seu braço. Seus gestos, seu andar, apesar da pouca idade, são mais largos; seu tempo é o de um grande animal visto a distância num safári. O gás do refrigerante teima, sobe, chamando a atenção, ainda que ele tape a boca na hora. A mulher se incomoda. O corpo do marido está em todo o lugar... Por sorte a filha os distrai; com sono, ela pára de roer o pão de queijo e empurra o prato. Os pais, interrompidos, assistem. A menina ameaça fazer o balcão de travesseiro. A mãe intervém: “É sujo.” A menina tenta apoiar o rosto no seu ombro, mas a mãe, ao terminar a frase, está se levantando para “Já voltar.” Então ela empurra a filha com gentileza, novamente sentando-a no banco, e olha para o marido, que também a olha. De bolsa no ombro, ela sai sem maiores explicações. Enquanto anda, o celular toca, ela atende e continua a se afastar. Continente . dezembro, 02


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Pai e filha se olham. A menina pula para o banco do meio, encosta a cabeça no ombro dele, mas não fica bom ainda; pula inteira para o seu colo. O pai a recebe, e o tamanho de seu tronco e de seus braços faz a garota quase sumir. Ele diz: “Dá tempo, fecha os olhinhos.” Mas a menina, antes, desce convicta do banco até o chão; seu motivo é pegar a boneca que a mãe havia guardado na mala. O pai saboreia a ingenuidade compenetrada da filha em movimento; uma seqüência de pequenos milagres animados e não: o ar grave, o sapato de fivela, a calça jeans em miniatura, o casaco de tricô, as mãos e os dedos roliços no zíper da mochila, a boca minúscula e macia se torcendo na hora de puxá-lo, a ponta da língua de fora, os cabelos finos e amarelos caindo no rosto... Já com a boneca, ela volta para o colo do pai. Agora sim vai dormir. Ele, com os braços em torno do peso querido e morno, ergue o olhar. No alto da parede da lanchonete, a televisão... o buraco negro iluminado por um tubo de imagem, mostrando cenas de uma guerra muito distante. Além de sanduíches abrutalhados e refrigerantes, pães de queijo e chocolates quentes amargos, bancos para sentar e esperar, bisnagas vermelhas e amarelas, porta-guardanapos, cafés e xícaras e águas e vapores escaldantes, o outro serviço da lanchonete são os resumos de aviões invisíveis, porta-aviões e radares, de mísseis inteligentes, bombas, satélites e armamentos; as tecnologias das baixas, as projeções de mapas nítidos demais num globo totalmente ilustrativo, as declarações políticas, falas de diplomatas, citações de analistas, fontes não identificadas, contraditórias, evidentemente manipulativas; e tudo isso ancorado numa voz sem dono, ou de um dono sem cara, que soa ao mesmo tempo como se condenasse e se admirasse das notícias do dia e da noite. Superpõem-se flagrantes de um país arrasado; colinas e escombros imóveis, em tons de cinza e marrom, imersos na poeira por todos os lados. Apenas rostos e corpos vibram ao redor de caminhões da ONU, da Cruz Vermelha e de veículos da imprensa internacional; dentro deles, além de soldados e médicos, a doença e a cura de mãos dadas, jornalistas têm a grande chance de suas futuras grandes carreiras, e por essa chance arriscam suas vidas e se esmeram no retrato imparcial dos genocídios para a posteridade. Alguns deles, no correr do conflito, serão emboscados pelas guerrilhas. Então suas execuções sumárias num ponto do planeta, e o sofrimento de suas famílias em outro, serão filmados, transmitidos pelo mundo afora, e todos diante da TV irão se comover. Acabada essa matéria, “Chega de guerra...”, vem outra, sobre as atividades do Congresso na última semana. E mais uma, suíte do Fantástico, sobre um casal favelado – ele alcóolatra, ela evangélica – que reconheceu o cadáver do filho traficante cinco anos depois dele ter fugido de casa. Aí vem o resultado do futebol, e depois a mulher chega de volta, guardando o celular na bolsa. “Gosta de um telefone”, ele pensa, satisfazendo-se com a sensação de conhecer muito bem os menores hábitos da esposa. Ela vem do banheiro, que insiste em chamar de toalete, e para onde só admite ter ido porque o marido parece fazer questão de ser explícito. O relógio de quatro faces, pendurado no teto da rodoviária, marca sete e quinze da manhã. Continente . dezembro, 02


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ETPIBKA Genéricos & periféricos O mercado clandestino e subversivo de Petrivka é um autêntico museu de tudo

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No mercado popular de Petrovka, em Kiev, Ucrânia, exUnião Soviética, centenas de pessoas estão à procura não de arroz, carne e verdura, mas de livros, discos de vinil e CDs, fitas-cassete e VHS, Video-CDs, Mini Discs e DVDs. São formatos velhos e novos que trazem registros diversos do que a indústria cultural tem para oferecer. Petrivka não mereceria registro se esses produtos fossem oferecidos dentro do que a indústria globalizada das grandes corporações – EMI, Sony, Fox, Warner, Microsoft – enxerga como “legal” e sob as leis que lhes garantem lucros. A questão é que, em Petrivka, letras, sons e imagens chegam, em grande parte, de maneira alternativa, em cópias clandestinas consumidas maciçamente pelo povo. Existem feiras semelhantes no Brasil, em São Paulo, Brasília ou Rio. Essas feiras de “genéricos” culturais são os prováveis resultados de culturas economicamente marginalizadas por uma globalização que usa a tecnologia como instrumento de comércio e, ao mesmo tempo, vê essa tecnologia fugir do Foto: Bohdana Smyrnova


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Quiosques de Petrivka, em Kiev, na Ucrânia. Genéricos da produção cultural internacional são comercializados em todos os formatos da indústria. Acesso livre à informação na ex-URSS

seu controle, desafiando o já muito divulgado conceito de “propriedade intelectual” defendido pela grande indústria. Nenhuma feira brasileira, no entanto, tem a organização e a dignidade da clandestinidade e subversão dessa. Não há “rapas” em Petrivka, mas uma calma oferta de cultura ilegalmente copiada e empacotada. Cada produto preza pela sua embalagem, à mostra em vielas limpas. Aqui, é possível comprar as obras completas de Dostoiévsky ou Tchekhov em edições antigas, prováveis fragmentos do espólio de alguém, apresentados em caixas expostas ao relento. É também possível levar CDs meticulosamente gravados em formato de compressão MP3, cada disco trazendo mais de 10 horas de música com tudo o que Moby, Fat Boy Slim ou Lou Reed já gravaram. As embalagens contêm até mesmo avisos de copyright dos responsáveis pela compilação. Cada CD sai por não mais que dois dólares. A obra completa de James Joyce, edição capa dura? Cinco dólares. Na Rússia e na Ucrânia pós-regime, persiste a idéia de que livros permaneçam baratos, quase isentos de impostos. Nas áreas da informática e do audiovisual, a oferta de Petrivka também impressiona. Bill Gates teria provável infarto ao ver todo o seu acervo de softwares compartilhado a preços que deveriam ser de banana, mas que aqui chamam-se Windows XP, Microsoft Office e Internet Explorer. São todos oferecidos nas suas últimas versões. Museus do mundo inteiro, do Louvre ao Prado, do Hermitage, em São Petersburgo, ao Moma, de Nova Iorque, podem ser comprados na quase totalidade dos seus acervos, digitalizados em CDs com milhares de imagens em excelente resolução. Dicionários, atlas e manuais de auto-mecânica também estão disponíveis. Hollywood marca presença em Petrivka com o que há de mais recente nos cinemas americanos. Filmes que ocupam as salas de Los Angeles encontram-se, na mesma semana, devidamente disponibilizados em VHS, DVDs e Video-CDs com rudimentares dublagens em russo. De Paulo Coelho Continente . dezembro, 02


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completo a Tolstoi, de Beatles a Manu Chao e Tom Jobim, de Tom Cruise a Steven Spielberg e Antonioni, Petrivka tem muita coisa, se não tudo. A subversão observada nas prateleiras e tabuleiros de Petrivka teve início há mais de três décadas, quando, durante o regime comunista, amantes das letras e das músicas procuravam no mercado informal livros, discos em vinil e fitas de rolo gravadas desses discos, trazidos do exterior ilegalmente, vendidos ou trocados numa espécie de mercado negro da cultura. Os próprios vendedores de Petrivka representam uma casta peculiar gerada pelo ambiente intelectual do extinto regime. Vladimir Kirill, 47 anos, responsável pelo box 63, vende livros clássicos da literatura e filmes em CD codificados no formato DIVX ou Mpeg 4 Video. Sobre os filmes, prefere os seus

Fellinis e Tarkovskys, carinhosamente separados, como livros numa biblioteca, em fitas VHS, numa ordem o mais próximo possível da alfabética. Kirill é o que se convencionou chamar melancolicamente, na ex-União Soviética, de “Ex-Inteligência”. A “Ex-Inteligência” é composta por ex-cientistas, ex-pesquisadores que não têm mais espaço ou emprego. Kirill ensinava literatura e diz que parte do prazer que tem de trabalhar em Petrivka é poder discutir poesia, em grande parte russa, com seus fiéis compradores. Ou cinema, com cinéfilos e estudantes. Para ele, vende-se muita coisa no mercado, mas também discute-se o que é vendido e, especialmente, o porquê de algo ser comprado. Sobre os filmes, Kirill diz recebê-los de distribuidores russos, de Moscou. “Eles são rápidos, em menos de uma semana, depois de lançados nos Estados Unidos, os filmes já estão dublados em russo e à venda aqui. A qualidade das cópias melhora com a passagem do tempo. Geralmente, quanto mais cedo o filme chega, mais baixa é a qualidade da cópia”, diz. Chamar as centenas de produtos copiados à venda em Petrivka de “pirataria” pura e simples seria uma espécie de miopia cultural. Não seria errada a impressão de que esses bens de consumo têm porte semelhante ao dos remédios que o Brasil tem oferecido à população com o rótulo “genérico”. A exemplo do que ocorreu com as patentes internacionais de medicamentos, quebradas pelo Brasil para a criação de genéricos acessíveis ao povo, os produtos da indústria cultural em países considerados periféricos não deixam de representar algum tipo de remédio. Alimentam a fome por informação de maneira mais democrática, com certa dose de uma anarquia moderna. A necessidade de consumir bens culturais de um povo não deve, necessariamente, acompanhar as dificuldades econômicas desse povo, atreladas às próprias dificuldades da nação. No


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caso específico da Ucrânia, essa clandestinidade parece apontar para um povo extremamente bem preparado cultural e intelectualmente, cuja sanha por informação não parece ter limites. Os ucranianos vêem-se às voltas com um país que ainda luta para inserir-se num contexto econômico internacional e, antes disso, com a sua própria independência recente da “Terra Mãe”, a Rússia da extinta União Soviética. Ryostik Koval, 26 anos, designer em Kiev, consumidor assíduo de Petrivka, acredita que a questão da pirataria nos países da ex-União Soviética deve ser vista como uma questão política, uma vez que “informação precisa necessariamente ser compartilhada. Estamos ligados ao mundo, mas também isolados de uma certa maneira que me parece ainda econômica. Com os instrumentos que temos à mão hoje, será difícil para as grandes corporações conter esse conceito de copiar seus produtos que, para eles, devem ser repassados a preços incompatíveis com a nossa sede por informação e realidade financeira. De qualquer forma, com a tecnologia atual, sempre me pergunto: o que é hoje uma cópia?” (K. M. F.)

No box 63, Vladimir Kyrill, “ex-Inteligência”, vende literatura russa e filmes em DIVX, Mpeg4 e VHS

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72 RITOS Abel Menezes

Enluarado O universo paralelo de Carlos Omena

Cheia, minguante, nova, crescente, água, chuva, o movimento das marés, o pulsar dos corações, a fertilidade da terra, a seiva subindo na árvore, o sangue escorrendo pelas pernas, a serpente mudando de casca, a morte e a ressurreição, a espiral, a via-láctea e o genoma, o ouvido e o caracol, a regeneração perpétua, o dia e a noite, o eterno retorno, a eternidade e o tempo, o primeiro instrumento de medida, a lua, uma estrela dos ritmos da vida. A mais antiga raiz etimológica, indo-européia, relativa aos astros, é a que designa a lua: me, que dá em sânscrito mâmi, eu meço. A lua é o instrumento universal de medida, e, talvez, na maioria das primeiras culturas, o segundo elemento de adoração religiosa, logo em seguida ao sol. Conheci Carlos Omena no momento de sua exposição de fotografias telescópicas, A cara da lua, em 1994, comemorativa dos 25 anos da alunissagem, em 20 de junho de 1969, Missão Apolo 11, com direito a roupa de astronauta, jipe lunar e tantos outros apetrechos. O primeiro astronauta tocando-a: “Para o homem um pequeno passo; um grande salto para a humanidade”, e dançou, brincando com a gravidade. Daí em diante, toda vez que encontro o Carlos, ele puxa um baralho de luas e me oferece uma, de presente. “Sou um recifense nascido em Palmeira dos Índios, em 11 de outubro de 1928, mas vim para cá com um ano de idade. Fomos morar no bairro de São José. Joguei pelada no beco da Alegria, perto da rua Velha, e, em 1946, cheguei até ao juvenil do Sport Club do Recife, meu time até hoje. Terminei o curso de Economia em 1955 e entrei na Sudene em 1962. Era um período de lutas salariais, e teve uma hora em que a situação financeira apertou. Peguei meu telescópio e instaleio na feira de Casa Amarela. Vendia uma olhadinha, das 19 às 21 horas. A fila arrodeava o quarteirão. Tinha gente que via e voltava pra o último lugar da fila. Ganhava mais dinheiro do que no emprego. A coisa se espalhou, os colegas comentaram, então fui chamado por Celso Furtado. Quando aleguei que era fora do meu expediente, ele se convenceu e até marcamos para, em um dia qualquer, fazermos algumas observações. Mas depois veio o golpe militar e ele partiu.” Continente . dezembro, 02

Carlos mora em uma esquina da Navegantes, Boa Viagem, e faz as suas fotos na pracinha em frente. Entrar em seu quarto é estar em um planetário, ou melhor, é alunissar. Logo na porta, fotos de Armstrong pisando em lua firme e uma noite de Terra crescente. Pelas paredes uma apoteose, um desfile de luas, em todas as fases, de todos os tamanhos e cores, por toda parte, em noites límpidas e nubladas, da beira-mar ao sertão do luar. Destaca-se uma seqüência de luas vermelhas, de um eclipse total, a chamada Lua Cris, quando a olho nu é possível vê-la em forma tridimensional, e não plana, mas carnuda. Fazendo um contraponto a essas luas, talvez a sua única concessão à paisagem terrestre, uma foto seqüencial de um girassol. Vídeos e livros de Astronomia, em especial os de Carl Sagan. Trazido de Paris, por sua filha, ao lado da cama, um guarda-chuva brilha ao abrir-se e vira a cúpula celeste. “Comprei meu primeiro telescópio em 1957, já fazendo parte de um grupo que procurava discos-voadores. Sou um amante da Astronomia e fui autodidata até a década de 70, quando entrei em contato com um pioneiro da astronomia pernambucana, o padre holandês Jorge Polman, que se ordenou em Recife, era professor de Ciências e construiu, junto com seus alunos, um observatório no Colégio São João, no bairro da Várzea. Lá, em 1972, fundou o Clube Estudantil de Astronomia (CEA) e, em 1973, a Sociedade de Astronomia do Recife (SAR), que funciona, hoje, no Espaço Ciência, entre Recife e Olinda. O Padre do Observatório da Várzea, como era mais conhecido, morreu em 1986, com 59 anos, perseguido pela inveja dos seus pares, que destruíram o observatório e jogaram o telescópio pela janela. Aprendi muito com ele. A minha primeira fotografia, da lua, só fui fazer em 1992. Aí não parei mais. Neste mesmo ano fiz, também, minha primeira exposição. Tenho levado essas exposições para as escolas, para o interior e outros estados. É uma peregrinação. A mais recente foi este ano, em junho. Tive e tenho muita alegria com a lua. E, também, muita sorte. Certa vez, um ladrão pulou o muro da minha casa e me encontrou apontando o telescópio. Estava todo sujo de graxa, nesse tempo os ladrões eram literalmente escorregadios. Ficou muito assustado, mas eu estava com muito mais medo. Quis saber o


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que era aquilo. Pedi-lhe que olhasse. Virou uma criança, de alegria saltitava. Ao sair, sem me roubar nada, comentou: ‘Valeu a pena ter perdido uma noite de trabalho.’” Carlos tem escrito, em pequenos cartões, pensamentos, que vão de Galileu, quem primeiro apontou um telescópio para o céu, até o russo Yuri Gagárin, o pioneiro das viagens espaciais, que de seu Sputnik revelou: “A Terra é azul.” Carlos coleciona tudo que se refere à lua, como, por exemplo, poetas que dela falam, de Casimiro de Abreu e Olavo Bilac a Vinicius, Drummond e Cecília Meireles. É de Drummond o Luar em qualquer cidade: “O luar deixava as coisas mais brancas/As estrelas desapareciam/As casas, as moitas: impregnadas não de sereno, de luar/Caminhávamos através da lua/E éramos dois seres habituais e dois fantasmas ao mesmo tempo/Lá longe era o mundo àquela hora coberto de sol/Mas haveria sol?/Boiávamos em luar/O céu, uma difusa claridade/A terra, menos que o reflexo dessa claridade/Tão claros!/Tão calmos!/Estávamos mortos e não sabíamos, sepultados, andando, nas criptas do luar.” E Cecília Meireles, em Lua Adversa: “Tenho fases, como a lua/Fases de andar escondida, fases de vir para a rua.../Perdição da minha vida!/Perdição da minha vida!/Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha/Fases que vão e que vêm,/no secreto calendário/que um astrólogo arbitrário/inventou para meu uso/E roda a melancolia/seu interminável fuso!/Não me encontro com ninguém/(tenho fases, como a lua...)/No dia de alguém ser meu/não é dia de eu ser sua.../E, quando chega esse dia,/o outro desapareceu...” “Hoje ninguém contempla mais nada. Sou um amante da Natureza, admirador do Universo e tenho um fascínio especial pela lua. Ela é nossa amiga das noites, companheira dos namorados e boêmios e fonte de energia mística e de inspiração poética. Espero, através deste trabalho, induzir as pessoas ao hábito de olhar a lua e assim proporcionarem-se momentos de recolhimento e deslumbramento, instantes de felicidade e paz de espírito.” Um amigo, plantonista do manicômio da Tamarineira, viu, um dia, alguém que fazia, ininterruptamente, o mesmo gesto: em um sobe-edesce, que ia da posição de cócoras até a ponta dos pés, girava a mão direita em espiral... Havia virado uma espécie de padrão informacional, sendo ele próprio a mensagem de um movimento essencial: o da luz pelo cosmo... Era como se ele tivesse chegado a um minimalismo exacerbado. Não é o caso de Carlos. Ele não é um lunático, nem um alua-

do, é mais um enluarado. Alguém que chegou ao mais difícil: ser um homem simples. Alguém que a lua escolheu para ser seu mensageiro e guardião. Não sei como Dona Terezinha, sua mulher legítima, suporta o ciúme de uma rival tão potente. Faltou-me a coragem de perguntar. Carlos pareceme resignado e mesmo feliz com seu destino. Lembro-me de uma canção que diz: “Há tanta coisa na vida que a gente não quer, mas o destino quis.” Carlos só lamenta que as pessoas só olhem, hoje, na horizontal ou para baixo, mas não desiste. Olho-o em silêncio, está longe. Parece pensar: para ver discos-voadores e outros astros, erectos humanos, no chão só os pés, voltar, ao céu, olhar. Com olhos físicos, por longo tempo, só assim é possível vê-lo: a Lua é o Sol no espelho. Volta-me outro fragmento da mesma canção: “A lua lá no céu, de negro vestida, com seu colar de estrelas, no espaço, perdida, me faz lembrar alguém, que amei na vida, alguém que lembro ainda...” Querendo além da medida, insisto na pergunta, esquecido de que navegar é que é preciso. “Olho porque a lua é linda!”

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74 RITOS Marcelo Pereira com fotos de Fred Jordão

Faltam escritores, sobram argumentos Geração que cresceu entre 70 e 90 tem muito o que contar, mas os livros não aparecem

A geração que vai chegando à casa dos 40 anos ainda não legou a Pernambuco um livro que trace um painel do que foram os seus anos de formação e início de maturidade, vividos entre fins da década de 70 até meados da de 90. Nada pelo menos que tenha tido ampla repercussão. É como se faltassem ao jovem escritor pernambucano a coragem e o talento para descrever, retratar, relatar, criar situações e personagens que dessem vida a uma geração que tem se expressado de forma vigorosa na música, nas artes plásticas, no cinema, no teatro, na dança e até mesmo na poesia. Pode-se atribuir o fato à falta de meios – jornais ou suplementos literários, principalmente – para publicação de textos originais, o que dificultaria o encontro com novos leitores e a divulgação dos textos. Na falta de um editor ou de um periódico que os publiquem, alguns autores recorrem à Internet. O jornalista Xico Sá, que vem engavetando há duas décadas poemas que o colocariam entre as principais vozes de sua geração, também um exímio domador da prosa ficcional urbana, por exemplo, é um dos poucos a exercer de forma intensa o exercício da escrita, revelando um pouco do que foram os anos vividos no Recife nos anos 80 nos textos bem-humorados do site O Carapuceiro. O satírico prosador vem escrevendo uma noveleta, A boyzinha, cuja personagem principal é uma lolita vendedora de amendoim que comercializava os grãos afrodisíacos na Praça do Sebo, também conhecida como Rua da Roda (antro boêmio entre as avenidas Guararapes e Dantas Barreto e a rua Siqueira Campos, no centro do Recife). Um dos poucos autores a mergulhar no underground recifense foi o corajoso Raimundo Carrero. Pelo menos dois de seus livros mais importantes invadem o universo marginal (daqueles que estão à margem): Sinfonia para vagabundo e As sombrias ruínas da alma. Carrero dá estocadas de pugilista no leitor ao som de um saxofone dilacerante, esgarçando aquilo que somos por dentro, sombriamente. De uma geração anterior, Clávio Valença também visita endereços menos requintados moralmente, mas de alguma forma familiares, no romance burlesco sobre o bordel de Lili do Grão Pará. Num rol de argumentos para um romance, novela, conto ou crônica sobre essa geração sem rosto estariam: as tentativas de sedução e taras pedófilas dos padres (madres) ou irmãos (irmãs) das ordens religiosas às quais pertencem os Continente . dezembro, 02

principais colégios privados onde estudavam os filhos de zelosos pais católicos; os romances às escondidas de jovens que transavam nas casas dos pais enquanto estes estavam foram ou alugavam quartos em motéis e hotéis, tendo mais cuidado em combinar com os amigos e amigas que haviam dito que tinham saído ou estavam estudando com eles do que em usar preservativos ou anticoncepcionais; os passeios de bicicleta à noite para a antiga Fecin, que mais tarde viria a ser transformada em Parque na Jaqueira, onde muitos adolescentes tiveram sua iniciação sexual com prostitutas que levavam em suas bolsas um lençol ou toalha para forrar a grama embaixo das fruteiras, onde hoje os casais namoram e as famílias brincam com seus filhos; as arriscadas experiências alquímicas para fazer loló. As aventuras de adolescentes que pegavam ônibus em subúrbios distantes para o abandonado Bairro do Recife, onde iam transar com prostitutas e pegar doenças venéreas com dinheiro da mesada dada pelos pais, pois a iniciação e o prazer sexual com as garotas do bairro ou da escola eram um tabu, e muitos temiam ter de casar depois de um caso ou namoro; a volta apressada dessa mesma aventura, não por medo da violência, mas por causa do horário do “bacurau”, o último ônibus de volta para casa; a boemia desses garotos nos puteiros do velho Bairro do Recife – Orion, Chanteclair, BlackTie; os primeiros porres, o cigarro e o perfume falsificado comprado dos atravessadores; a boa música que rolava nessas boates, onde muitos ouviram pela primeira vez Je t’aime... ma non plus, de Serge Gainsbourg, Careless whisper, de Gloria Gaynor, La vie en rose, com Grace Jones, Sexual healing, de Marvin Gaye, entre outros sucessos, incluindo todos os hits da era disco, de Abba a Donna Summer, passando pelo Village People. Ou ainda, a boemia desses garotos nos puteiros do velho Bairro do Recife. Aqueles quartos de colchão de mola surrados. O odor do perfume barato. A maquiagem carregada das putas. A foto dos filhos na penteadeira ao lado dos santos de devoção. O pôster da garota boazuda na parede, talvez para que, na hora do sexo, o cara tivesse um estímulo fantasioso extra e não prestasse muita atenção no corpo e no rosto de quem estava lhe vendendo prazer. O gozo rápido, fugaz. E a tentativa de conversão das putas. As promessas (falsas) ou declarações (também falsas) de tirar as mulheres de vida fácil daquele antro. As primeiras festas das bandas do movimento mangue nos puteiros Adilia’s Place e Bar do Grego. O deslumbramento das garotas que iam pela primeira vez ao baixo


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Entrada do antigo Bar do Grego, no Recife, com cenas do “amor” em movimento

meretrício. E os casais de namorados ou ficantes que alugavam um quarto ali mesmo no puteiro, para transar em meio às festinhas. Nos anos de repressão política, as primeiras participações em campanhas. Primeiro pela redemocratização, com as festas no Maconhão e no Bar do Holandês, em Olinda. O medo de ser preso pela polícia pichando palavras de ordem contra a ditadura militar e ser espancado. O comício para receber Miguel Arraes em Santo Amaro. A festa da primeira vitória de Jarbas no Pátio de São Pedro. A combinação perfeita entre militância política e febre amorosa juvenil. As brigas entre patotas por motivos banais – a maioria das vezes por garotas. A maioria provocada por bebedeira. O susto e o temor ao ser assaltado pela primeira vez na madrugada, num beco escuro qualquer do centro do Recife, por um malandro. A sexualidade posta à prova em idas a boates gays como o Bar do Barão ou a Misty, depois invadidas por casais de heterossexuais. A liberação sexual e a quebra de tabus nas festinhas em bares como o Abraxas, o Fundo do Poço, 3x4. Argumentos não faltam... Imago

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76 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti com fotos de Helder Ferrer

Ceia de Natal Numa mesa cheia de convergências Cada lugar tem seu jeito próprio de comemorar o Natal. Desde os tempos em que, por esta época, os romanos celebravam o solstício de inverno – período em que o sol está mais distante da terra. Com pão na mesa, em homenagem a Saturno – deus da fartura. Acabou convertido em festa católica, no ano de 350, por obra e graça do Papa Júlio I – que sagrou 25 de dezembro como data em que se deveria comemorar o nascimento de Jesus. Renovando-se, então, a velha tradição romana de comer e distribuir esse pão – que passou a simbolizar, na eucaristia, o próprio corpo do Cristo. Dos portugueses veio muito de nosso Natal. Em representações – como o pastoril, reproduzindo antigas lapinhas portuguesas, sempre encenado em frente a presépios. E em receitas para todos os gostos. Bolo de frutas, criado no convento de Santa Ana de Viana do Castelo, onde ainda conserva o nome de bolo real. Rabanada, receita da região da Beira Litoral – Coimbra, Aveiro, Figueira da Foz; que, no Nordeste, por ser servida a parturientes e convalescentes, acabou também conhecida como fatia-de-parida ou fatia-parida. Pastéis também, claro. E mais bacalhau, leitão e cabrito. Além da tradição de ter sempre na mesa nozes, castanhas, amêndoas, figos e tâmaras – todos tidos como símbolos da vida. Em Pernambuco ainda conservamos essa tradição da grande ceia – servida em seguida à Missa do Galo. Mesa farta para família e amigos. Mesa também de receitas tradicionais, passadas de geração a geração – de mãe para filha (e, nunca, de pai para filho). Neste ano, a celebração do Natal que imaginei será feita de convergências. Juntando algumas dessas receitas, reproduzidas por pessoas muito especiais. Aos amigos e aos leitores desejando, de coração, um feliz Natal.

PATO (OU MARRECO) COM VINHO E ERVAS Jarbas Vasconcelos INGREDIENTES

1 pato (ou marreco) de 2 kg, 10 dentes de alho picados, 2 cebolas médias picadas, 2 pimentões picados, 4 tomates picados, ½ garrafa de vinho tinto seco, 1 xícara de coentro, 1 maço de cebolinho, 1 colher de chá de tomilho seco, 3 folhas de louro, 1 colher de sopa de especiarias (açafrão, hortelã, alecrim, curry, ervas de Provence), sal e pimenta do reino a gosto. PREPARO

Lave, limpe e passe limão no pato. Tempere com todos os ingredientes. Deixe na geladeira até o dia seguinte. Retire o pato dos temperos (reservando todo o molho da marinada). Frite, até dourar, em panela grande e fogo alto, com o lado da gordura virado para baixo. Regue com o molho dos temperos, aos poucos. Tampe a panela e cozinhe em fogo baixo, até a carne ficar macia. Continente . dezembro, 02

Coloque em assadeira, ajuste sal e pimenta, regue de 15 em 15 minutos com o vinho e asse no forno baixo por mais ou menos 2 horas. A carne ficará macia e dourada. Servir com farofão. FAROFÃO 500 g de farinha de mandioca, 250 g de manteiga, 1 cebola média picada, 200 g de azeitonas pretas, 200 g de azeitonas verdes, 2 latas de milho verde, 1 pimentão verde picado, 1 pimentão vermelho picado, 6 ovos cozidos picados, 4 tomates picados, 2 tabletes de caldo de carne ou galinha, sal a gosto. Preparo: na manteiga derretida frite cebola, tomates, pimentões, tabletes de caldo de carne ou galinha. Junte todos os outros ingredientes. Adicione a farinha de mandioca. Se quiser, coloque também os miúdos do pato.


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BACALHAU AO FORNO Luzia Jeanne e João Paulo INGREDIENTES

½ kg de bacalhau, 1 lata de creme de leite, 3 ovos, 1 colher de sopa de manteiga, 3 colheres de sopa de queijo parmesão ralado, 2 colheres de sopa de trigo, 2 colheres de chá de fondor, 1 colher de sopa de molho inglês, 2 tomates (em rodelas finas), 1 lata pequena de palmito (em rodelas). PREPARO

Demolhe e afervente o bacalhau, separando-o em lascas grandes.Prepare molho com creme de leite, gemas, manteiga, queijo, trigo, fondor e molho inglês. Coloque metade do creme, em pirex. Depois uma camada de bacalhau, tomate e palmito. Repita as camadas. Cubra tudo com claras batidas em neve, misturadas com queijo ralado. Polvilhe com fondor e asse em forno médio.

PUDIM DE BACALHAU Docarmo Monteiro INGREDIENTES

300 g de bacalhau, 3 ½ xícaras de leite, 100 g de farinha de trigo, 5 ovos, 250 g de manteiga, 150 g de passas sem caroço. PREPARO

Demolhe e afervente o bacalhau. Refogue com todos os temperos. Passe na máquina de moer carne e reserve. Derreta a manteiga, junte trigo e leite. Mexa até engrossar. Acrescente gemas, bacalhau moído e passas. Misture bem. Junte então, cuidadosamente, as claras batidas em neve. Coloque a mistura em fôrma de buraco untada com manteiga e polvilhada com farinha de rosca. Asse, em banho-maria, por mais ou menos 40 minutos. Depois de frio, desenforme. Cubra com molho rosé (creme de leite, ketchup, molho inglês, conhaque, sal e pimenta). Continente . dezembro, 02


FRITADA DE PERU Dona Lylia Lyra e seu filho, Carlos Augusto Lyra INGREDIENTES

Miúdos e sangue de peru, pimenta do reino, cominho, louro em pó, cebola, alho, sal, coentro, cebolinho, tomate, pimentão, vinagre, azeite. Mais 4 batatas cortadas em cubo, azeitonas pretas e 4 ovos. PREPARO

Lave, bem lavado, os miúdos de um peru grande. Tempere com pimenta do reino, cominho (muito pouco), louro em pó, cebola, alho batido com sal, coentro, cebolinho, tomate, pimentão, vinagre (pouco) e azeite. Refogue, até que estejam bem cozidos, com o cuidado de não deixar secar. Corte – como se faz no sarapatel – os miúdos e também o sangue do peru talhado (para quem vai matar o peru em casa, atenção – não coloque nunca sal ou vinagre na vasilha que vai aparar o sangue, que isto faz com que o sangue não talhe). Coloque de volta, na panela, o molho do refogado, os miúdos, o sangue, algumas batatas cortadas em cubos, azeitonas pretas e azeite. Refogue mais um pouco. Bata 4 claras, em neve, com um pouco de sal. Junte as gemas. Coloque metade dessa mistura no refogado do miúdo e despeje em pirex. Na outra metade junte um pouco de trigo e despeje, cuidadosamente, por cima da mistura anterior. Enfeite com rodelas de cebola e tomate. Leve ao forno até dourar. Segredo de Dona Lylia: se, como ocorre algumas vezes, a quantidade de miúdo não for bastante para uma fritada grande, junte carne desfiada do pescoço a esses miúdos. Continente . dezembro, 02

FRANGO COM VINHO TINTO E ARROZ DE FUNGHI Janete Costa INGREDIENTES

6 peitos de frango cortados em filés grandes, bacon em fatias, 1 garrafa de vinho tinto seco, 1 colher de sobremesa de estragão ou sálvia, champignon, temperos para o refogado (tomate, cebola, alho, coentro, cebolinho), 1 colher de chá de trigo misturado com 1 colher de sopa de manteiga, sal e pimenta. PREPARO

Recheie os filés de frango com bacon, enrole e amarre. Tempere com sal e pimenta. Frite até dourar. Depois de frio corte em rodelas de 2 cm e reserve. Com o restante do frango faça um refogado com todos os temperos (cebola, alho, tomate, coentro, cebolinho). Depois de pronto, coe o caldo do refogado. Junte vinho tinto seco, estragão ou sálvia, champignon e o trigo misturado com a manteiga. Junte então as rodelas de peito recheadas de bacon. Sirva com arroz de funghi. Arroz de funghi: refogue o funghi com cebola e alho. Junte arroz, sal e caldo de galinha. Deixe secar.

LOMBO DE PORCO COM LARANJA Maria Lia Cavalcanti INGREDIENTES

1 lombo de porco, alho, sal, pimenta do reino, vinho branco seco, óleo, manteiga, suco de 2 laranjas.


SABORES PERNAMBUCANOS 79 PREPARO

Tempere o lombo, de véspera, com alho, sal, pimenta e vinho branco. Na hora de assar retire os temperos. Unte a forma com óleo e o lombo com bastante manteiga. Cubra com papel alumínio e asse em forno médio. Retire o papel, regue com o suco de laranja e deixe no forno até dourar. Sirva com farofa de ameixa.

BOLINHO DE NATAL Guita Charifker

PREPARO

Cozinhe o leite condensado em panela de pressão, por 45 minutos. Junte as gemas e as nozes picadas. Leve ao fogo – mexendo sempre, por 15 minutos. Quando esfriar junte o creme de leite (sem soro) e as claras batidas em neve. Misture bem, ponha em compoteira de cristal, enfeite com algumas nozes inteiras e leve à geladeira.

BOLO DE NOZES Cristina Ribeiro e Vilma Lima Cavalcanti

INGREDIENTES

1 kg de farinha de trigo, 5 ovos, 250 g de manteiga, 3 copos de açúcar, 700 g de goiabada (derretida com um pouco de água), raspa e caldo de 2 limões grandes, 2 colheres de chá de fermento em pó, passas, frutas secas, castanha e nozes. PREPARO

Misture ovos, farinha, manteiga, açúcar, fermento, raspa e caldo de limão. Amasse bem, até formar uma massa homogênea. Enrole, como rocambole, e corte em 6 partes. Cada uma dessas partes deve ser, novamente, bem amassada e depois esticada com rolo. Recheie com creme de goiaba e passas, frutas secas, castanhas, nozes picadas. Tornar a enrolar. Cortar em pedaços de 3cm. Assar em forno moderado.

INGREDIENTES

450 g de nozes raladas, 450 g de açúcar, 12 ovos, 2 colheres de sopa de farinha de trigo. PREPARO

Bata, muito bem, o açúcar com as gemas. Junte nozes, farinha de trigo e claras batidas em neve. Coloque em fôrma untada e asse em forno brando. Cubra com baba de moça, se quiser.

PÃO DE FRUTAS Elias Sutanum INGREDIENTES

2 xícaras de farinha de trigo, 3 colheres de sopa de fermento seco, 1 colher de sopa de açúcar, 2 xícaras de água morna. PARA O PÃO: 8 ovos, 1 ½ xícara de açúcar, ½ kg de margarina, 1 colher de sopa de sal, 1 xícara pequena de licor, 1 kg + 4 xícaras de farinha de trigo, 400 g de passas de uva, 400 g de frutas cristalizadas. PARA O FERMENTO:

BOM-B BOCADÃO DE QUEIJO Cristina Teixeira INGREDIENTES

1 kg de açúcar, 2 colheres de sopa (bem cheias) de manteiga, 12 colheres de sopa (rasas) de farinha de trigo, 12 colheres de sopa (bem cheias) de queijo do reino ralado, 12 ovos. PREPARO

Faça uma calda grossa com o açúcar. Quando a calda esfriar, junte manteiga, farinha, queijo e os ovos inteiros previamente batidos no liquidificador. Coloque em fôrma, para pudim, bem untada com manteiga. Leve ao forno, em banho-maria, por 1 hora e meia, coberto com papel alumínio. Retire o papel e deixe dourar, por mais meia hora. Retire da fôrma só depois de frio.

DOCE DE NOZES Lecticia Magalhães

PREPARO

Misture bem todos os ingredientes do fermento. Abafe e deixe descansar por aproximadamente 10 minutos. Junte no liquidificador ovos, açúcar, margarina, sal, licor. Acrescente também água morna até alcançar, junto com os outros ingredientes, 1700 ml do copo do liquidificador. Bata tudo por 1 minuto. Junte, em bacia de plástico de 5 litros, o fermento obtido da primeira mistura e os ingredientes que foram batidos no liquidificador. Aos poucos vá juntando a farinha de trigo. Junte, depois, passas e frutas cristalizadas. Incorpore tudo e deixe descansar por 10 minutos. Mexa para diminuir o volume da fermentação. Coloque tudo em 5 fôrmas, bem untadas, e leve ao forno até dourar. Desenforme ainda quente e pincele com uma calda de açúcar e limão.

INGREDIENTES

2 latas de leite condensado, 1 lata de creme de leite, 6 gemas passadas na peneira, 6 claras, 200 g de nozes picadas. Continente . dezembro, 02


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82 ESPETÁCULOS Guilherme Castelo Branco

As quatro meninas de Picasso Peça sintetiza toda a alma do surrealismo na dramaturgia

Continente . dezembro, 02

Tão ricas em vários campos da expressão artística, estética e política, as relações do movimento surrealista com a arte dramática não foram das melhores; na prática, são poucos os textos teatrais admitidos como verdadeiramente surrealistas pelos membros do movimento. A razão desse desprezo pelo teatro decorre do próprio espírito do surrealismo: partidários da escrita automática, os surrealistas são absolutamente contrários à representação, em toda acepção que tal palavra possa tomar. Dessa maneira, tudo que é considerado, tradicionalmente, como teatro é posto de lado, como a verossimilhança, a coerência e a estrutura psicológica das personagens, a unidade da intriga, a continuidade dos diálogos etc. Do pequeno elenco de “peças de teatro” surrealistas, doze no total, das quais pelo menos quatro foram escritas por Breton, destacam-se duas peças de Pablo Picasso: Le désir attrapé par la queue (1941) e Les quatre petites filles (1948). A importância das peças de Picasso não é pequena. Elas sintetizam toda a alma do surrealismo na dramaturgia e têm, além do mais, grande riqueza em cores, em humor, em surpresas. Picasso não foi somente grande pintor; foi, também, excelente escritor. Foram muito poucas as apresentações dos textos de Picasso, nos mais importantes centros culturais e museus de vanguarda do mundo. Na mostra Surrealismo, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil/Rio de Janeiro, entre os meses de agosto e novembro de 2001, dentro da programação do Segmento Idéias, levamos a cabo a leitura dramatizada da peça As quatro meninas, no dia 13 de setembro. Foi realizada a tradução, especialmente para essa atividade, por Ivo Barroso, consagrado tradutor e poeta. Somente ele seria capaz de manter a riqueza cromática e estilística do difícil texto de Picasso. Nosso convite a Ivo Barroso, como esperávamos, teve um resultado de excepcional qualidade. Os leitores de Continente terão a seguir a chance de desfrutar da acurada versão de Ivo Barroso para nossa língua.


ESPETÁCULOS 83 » Ivo Barroso MENINA I – chove chuva miudinha é a festa da sapinha chove chuva miudinha é a festa da sapinha chove neva tudo molha é a festa da piolha. MENINA II – queria que ela voltasse está faltando sol agora chove. O riso das flores rasga o vestido branco de xadrez e verde-gris e funde em acrobacias e saltos de humor o fundo da tela crucificada às minhas sandálias chame-a Jeannette solte grandes gritos para que ela retome seu lugar ao sol e tire o fio a prumo pela parte grossa da luneta MENINA I – deixe-a fazer sem dizer nada o silêncio deve pôr seu ovo no canteiro de seu destino feito em pedaços pelo jogo das grandes curvas atiradas a grande custo e múltiplas manigâncias por cima dos moinhos asas cortadas de todos os loureiros e bem felizes de ser tirados do comércio com preço tão em conta. MENINA II – você não me fará crer e se digo crer estou exagerando que sua partida e a sintética projeção de sua imagem seja de fato diluída no caldo imaginário desta tarde sujeito em seguida a ruidosas revelações e a audaciosas discussões cursivas. MENINA I – a chuva que aumenta pouco a pouco já dura dez séculos e compõe meticulosamente a página pintada tão minuciosamente com pequenos signos e linhas torvas desfazendo nós górdios e fichas antropométricas todas responsabilidades e conseqüências de um jogo imposto do outro lado. Lá ela nos causou muita alegria MENINA IV – ela nos fez sucumbir e não se dá conta de que chove para nós que gela que o sol se achatou por terra que caminhamos por cima que nos queimamos MENINA II – os pássaros têm chifres as flores roem as unhas e as nuvens servem para limpar as vidraças faz um calor sufocante no paraíso e os pássaros já acendem fogo sobre as nuvens. MENINA I – as flores cheiram à sopa que ontem à noite para o jantar minha tia pôs ao fogo a partir das cinco horas e que às dez para as sete de olhos esbugalhados a porta aberta do nosso pranto transporta corpos e bens ao paroxismo sim-não-simeu não sei – mas retoma o tempo bom seu cargo e afaga a paleta cheia até a borda da carga de seus porta-copos bebidos até a borra MENINA IV – parou a chuva já podemos brincar vamos correr em volta do poço vamo-nos divertir bancar as loucas o ramo da pereira deu um tapa no grande monte de nuvens e a ponta do pé do sapato da palmeira ronca acocorado na toalha de mesa rato que se cata vamos correr feito loucas – como as loucas e levemos conosco todas as flores as louras e as morenas as doces e as amargas as tenras e as duras de pedra e de algodão de óleo e de vinagre de tinta nanquim e de tinta simpática sem um erro de ortografia e com as quarenta e cinco mil vírgulas vamos correr brincar bancar as loucas (dançando) – loucas – loucas – loucas loucas loucas loucas loucas loucas. MENINA I – as folhas negras do quintal vão escrever sua vida com toda a rapidez os ramos sonharão com os arcos do futuro e serão doces e cordatos como as imagens votivas e tão berrantes quanto parecem tão domesticado é seu hálito sentadas diante do fogo lendo o jornal apontarão os golpes do destino sobre a ardósia. Carga de lembranças de braços cruzados a ronda desdobra suas músicas no ácido o grande carneiro alado soa o sino ao longe MENINA II – como estamos bem aqui e como estamos bem no campo ao sol derretidas no meio de sua pança brincando brincando e gracejando ao sol repleto de amoras o sol cheio de fitas cheio de pedras cheio de casquinhas de sorvete vamos todas rir e cantar e fazer comidinha traga seus cacos de copos de cor e procure os ossos de sépia que servirão de prato as plumas furta-cores dos ramos secos dos caroços de azeitona e as conchas de meu colar com a cinza do muro dos grandes plátanos untarão a fatia de pão misto da taça de frutas presa na armadilha da fonte vai buscar a vela de seda negra com que nos cobriremos todas para fazer a noite de núpcias que iremos passar no fundo do poço cheio de estrelas fritas a mãe de Jeannette na noite do casamento de sua irmã tinha um vestido cosido de lâmpadas elétricas de cor vão ver se as árvores já foram se deitar e dormem é preciso fazer tanto barulho quanto pudermos e iremos gritar com todos os nossos pulos de cabrito a alegria de estarmos sozinhas e loucas iremos amarrar a escada à árvore e vamos subir nela para acender o fogo da cozinha em cada folha que cerziremos ao algodão dos ramos espinhos de açúcar do mel amargo das agulhas dos espinhos das flores dos duplos eucaliptos (apanham a escada e a engancham nos ramos altos da árvore, deitam-se no chão de barriga para baixo e adormecem) e ouve-se a voz da MENINA III – é isto é isto é isto... MENINAS I – II – IV se levantam e começam a brincar de roda saltando e cantando – é isto é isto é isto é isto vamos à guerra guerra de casa anjos de malvaísco ratos e ratazanas noite de caramelo manhã de guiso a vida que passa fez nos meus lençóis – é isto é isto é isto a vida se empaca para ordenhar as vacas a vida é bela ocultemo-nos dela os novilhos morreram e têm asas a roda que gira desfaz seu vestido e mostra os seios sob as ervas a noite esconde seus peixinhos a bela pimpinela ama o seu pimpilim diz-nos rosa malva-rosa a aurora desta noite nos conta e nos faz rir levanta a tua golilha desembucha os teus rosários aponta-nos tua garrucha sobre o buquê de rosas murchas miserável miserere – estamos contentes contentes em atar amanhã depois de amanhã com o hoje e com o ontem. (elas rodam saltam e gritam cada vez mais rápido cada vez mais forte e caem no chão umas por cima das outras sorrindo) Continente . dezembro, 02


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84 ESPETÁCULOS

MENINA IV – nós bem que nos divertimos eu divirto tu divertes ela diverte feliz feliz feliz feliz feliz feliz MENINA II – feliz MENINA I – eu sou feliz eu sou feliz elas começam a gritar – é isto é isto é isto e ouve-se cantar inúmeros pássaros e uma chuva de olhos começa a cair sobre elas colando-se em seus cabelos e vestidos MENINA II – estamos cobertas de luz MENINA IV – estamos sujas de luz MENINA II – estou queimada MENINA I – estou gelada de luz MENINA II – olhem olhem no alto da escada um pássaro que se rasga estamos vendo seu coração gritar e com as garras ele arranca os olhos MENINA IV – as folhas em redor dele mostram os dentes-de-lobo e o ameaçam com suas mãos docemente fechadas MENINA I – é preciso ajudá-lo MENINA II – não toques nele queima está em chamas uma tocha MENINA I – vamos arrancar todos esses olhos de nossos vestidos ou esconder nas mãos esses olhares MENINA IV – vamos nos envolver no véu fazer-nos medo e à nossa volta façamos uma cerca em círculo de punhais plantados na terra pelo cabo MENINA I – vamos atirar-lhe todas as flores do jardim para que ele morra de rir MENINA II – representemos um drama vamos montar a cena diante do poço e disfarçar as árvores em vagas você aí será o náufrago você o raio e eu a lua você aí dirá às vagas que levantem suas redes e apanhem todas as estrelas e as conchas em suas presilhas e as atirem para nós em colares de pérolas e montadas em vacas desfilarem sobre a mesa azul e as cadeiras fazendonos caretas você a mais nova lhe oferecerá as cenouras as couves e os tomates que iremos colher cantando de joelhos segurando pelos quatro cantos a vela e você enquanto isso acenderá uma fogueira de alegria e jogará dentro dela todos os nossos vestidos ficaremos nuas e você também se despirá ao mesmo tempo e iremos nos esconder embaixo da mesa mas preste bem atenção para não se queimar na fogueira não aproxime dela suas ânforas cheias de vinho e as grandes folhas de ruibarbo que teremos trançado em torno farão a cortina mais negra para a corrida que a tempestade desencadeará quando as vagas vierem nos agarrar na garganta e nos envolver com seus musaranhos o mais ávido silêncio encherá sua ânfora de fogo e as asas quebradas do cavalo que arrasta as tripas sobre a cinza abrirão suas romãs ao espelho repleto de luas quando por sinais vocês farão sinal de morder nós todas nos levantaremos e unharemos o rosto até sangrar então o mel do poço transbordará todas as suas abelhas e fingindo-nos de mortas de medo riremos e cantaremos juntas e a plenos pulmões o barco com as velas todas desfraldadas reentrará em cena será carregado de leite e de sangue e em fogo iluminado por mil lanternas MENINA IV – diga-me diga-me o raio rirá rirá será infeliz ela terá medo no mar sob a mesa será ela loura e ruiva e longa com longos cabelos negros e amaranto terá um amante não me diga a verdade mas enormes mentiras quero ver com minhas mãos fuxicar o grosso colchão de estrelas cravado não importa como sobre o dorso do céu que passeia à beira do teto tão gracejador MENINA II – grande desilusão afinal de contas espontaneamente desenhada em complicados arabescos e circunvoluções matemáticas mas a grande questão é saber se sou absolutamente branca de mármore de penugem de cisne de papel branco de fio puro fio e coberta inteiramente de neve e sozinha de pé à beira do telhado e imóvel MENINA II – cale-se você nos chateia MENINA IV – não você fará aquela que vê e com seu pedaço de giz com os olhos fechados irá desenhando em tudo grandes olhares de homem MENINA I – esconda as mãos atrás dos olhos e leia o futuro verde primavera de folhas e de flores que regarão seus cabelos de músicas MENINA II – canto canto noite e manhã e não gosto de fazer comédia só gosto do ruidoso refúgio do silêncio sobre a minha barca em perdição e engodo é a bela estação MENINA IV – ora veja MENINA I – ah MENINA IV – dó ré mi fá sol lá si dó

Continente . dezembro, 02


MENINA I – dó si lá sol fá mi ré dó eis que um grande sol rola lentamente sobre a cena até aos nossos pés onde se estende de todo comprimento e nos lambe as mãos – como é bonzinho MENINA II – a flauta ao longe desmonta peça por peça o jogo de paciência irrigando a cor e pacientemente inventa o jogo de cena do grande barco vogando amorosamente nos véus da noiva do naufrágio coçando suas pulgas nos azuis acidulados do celeste com ambas as mãos agarradas ao arreio da égua e catastroficamente tomado de chances inutilmente fugazes MENINA I – o azul dirige a ponta de seu casaco azulidão azul-real anil cobalto azul celeste ameixa sobre o braço estendido do amarelo limão verde amêndoa e pistache contornando o malva lilás batido com os dois punhos pelo verde da laranja e a toalha de riscas azul-rei e azul-pervinca estridente confundidos aos seus joelhos e todo o acidulado arco-íris do branco enfaixado com o arco dos pés molhados no verde-esmeralda funambulescas batidas de gongo feridas de morte entre as meadas de cravos e de rosas tão malva-rosas MENINA IV – o azul o azul o celeste o azul o azul do branco o azul do rosa o azul lilás o azul do amarelo o azul do vermelho o azul limão o azul laranja o azul que transuda azul e o azul branco e o azul vermelho e o azul das palmas do azul limão das pombas brancas aos jasmins em campos de aveia em grandes cantos verde amêndoa esmeralda MENINA II – as espirais dos limões os grandes quadrados brancos das laranjas os losangos em limão dos ovais perfeitos dos círculos exasperados das rosas lilás dos tomates cantados cochichados pela oliva do roxo escondido no xarope de amoras MENINA I – branca a rosa vermelha o cravo e azul o branco amarelo do muro jorrando em ondas a baba de verniz do fogo encadeado às barras de aço do longo véu arrastado por imensas asas da pequena agulha espetada na face do círculo que arrebenta em vestido de lantejoulas de sarças luminosas MENINA II – doce entardecer doce doce uma tarde de doçuras doce entardecer doce MENINA IV – relógio cheio de abelhas ilhota de mel MENINA II – barca cheia de abelhas amamentando os vôos das pombas com as asas arrancadas levadas a grandes gritos de ramo jogo e cabriolas de riso em riso imaculadas e em embriaguez MENINA IV – os doze cavalos brancos alados que puxam a carroça feita de um grão de arroz inundam com seus grandes jarros azul amarelo e vermelho a imensidão do prato cheio de pastilhas de ouro dos feixes e das folhas de acanto trançadas em torno e os jatos de mercúrio da fonte irisam com seus vapores e suas melodias as espadas nuas de seus cantos MENINA II – melancia de azul picada de pregos tesouras cortando os fios trançados do rio que arrasta os cabelos na areia seu vestido rasgado ilegível à orelha do encanto rompido saltitante coxeando sobre a longa pata MENINA I – um grande oval amarelo luta em silêncio contra os dois pontos azuis com todas as suas garras retorcidas na queda de Ícaro do labirinto das linhas da armadilha do losango verde oliva estrangulado com as duas mãos pelo violeta tão terno do quadrado do arco vermelhão lançado tão longe pela tempestade MENINA IV – o azul o rosa o lilás o amarelo limão o verde pistache o verde da laranja e o azul e o violeta o malva e o lilás e o vermelho (Trecho de As quatro meninas)

Continente . dezembro, 02


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86 ESPETÁCULOS

Balanço de trapézio Os vinte anos do grupo de teatro Balcão, que mantém o jeito circense e o gosto pelo experimentalismo

O Grupo Galpão está com um novo projeto. A partir de março, eles começam a ensaiar com o diretor Paulo José, e a estréia será em agosto. O texto ainda está indefinido, mas existem alguns autores na mira, como Machado de Assis, Fernando Arrabal e, principalmente, Nicolai Gogol, com a peça

Eduardo Moreira, ator do grupo Galpão, maquiando-se no camarim

Madeira (Beto Franco) e Ana Florisbela (Inês Peixoto)

Continente . dezembro, 02

O inspetor geral, um antigo sonho do grupo. O namoro com Paulo José começou no ano passado, quando a peça A rua da amargura, inicialmente dirigida por Gabriel Vilela, em 1994 (tendo recebido os prêmios Shell, Mambembe, Sharp e Molière, além de vencer o Festival de Curitiba), foi adaptada pelo mesmo Paulo José para a TV Globo e exibida durante a Semana Santa com o título A paixão segundo Ouro Preto. A admiração parece ser antiga. “Hoje podemos afirmar que o Galpão já tem uma linguagem própria, em que se misturam Brecht e Stanislavski, as técnicas circenses com o teatro balinês, a música folclórica com os experimentos musicais mais contemporâneos, a dramaturgia clássica com o melodrama, Eugenio Barba com Gabriel Vilela, Eduardo Garrido com Shakespeare, marujadas com Molière, teatro épico com drama psicológico, o provinciano com o universal, a tradição com a transgressão”, revela o diretor e ator Paulo José. Uma das marcas do Galpão é exatamente ser um grupo de atores que experimenta de tudo. Muitas vezes eles dirigem seus próprios trabalhos, mas também apreciam o olhar externo nas suas experimentações. O estreante desse olhar de fora foi o diretor Ulisses Cruz, em 1986, que realizou uma grande oficina com o grupo. “Naquela época, tínhamos acabado de montar Arlequim, servidor de muitos amores, uma adaptação da commedia dell’arte e que foi o nosso grande fracasso. Não conseguimos dar consistência ao trabalho, e aí resolvemos ir atrás do prejuízo. A escolha de Ulisses Cruz se deveu ao fato de ele ter sido assistente de Antunes Filho e pela sua própria trajetória. Com isso, conseguimos sobreviver”, lembra Eduardo Moreira, um dos fundadores do grupo. Ulisses Cruz não montou nenhuma peça, mas as reflexões com ele foram muito importantes para a ascensão do grupo. Foto: Luciana Cavalcanti


ESPETÁCULOS 87 »

Fofinha (Lydia Del Picchia) e Lindinha (Teuda Bara), irmãs no espetáculo Um trem chamado desejo

Inês Peixoto e Teuda Bara

“O processo teve mais valor que o resultado”, lembra Moreira. Completando em 2002 vinte anos de existência, o Galpão tem muito o que comemorar. Para marcar a data, recentemente apresentou os últimos cinco trabalhos em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. No meio desse caminho, em 1992, aconteceu o grande sucesso do grupo: a montagem de Romeu e Julieta, de Shakespeare, com direção de Gabriel Vilela. Uma releitura do texto a partir das influências de Guimarães Rosa. Com esse espetáculo, o grupo foi reconhecido nacionalmente. Além de ganhar seu primeiro prêmio Shell, começou a receber convites para festivais e apresentações pelo mundo afora, e isso continua até hoje. O espetáculo teve um outro mérito: ele levou um dos maiores textos clássicos do teatro para a rua. (F. P.) Seu Coisinha (Rodolfo Vaz), uma espécie de Mateus que abre e fecha o espetáculo e participa das cenas de Um trem chamado desejo


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ESPETÁCULOS

Conselheiro tropicalista José Celso Martinez Corrêa reinventa com o público o não-dito sertanejo

Uma leitura própria, e interativa, de Os sertões está “em construção” no Teatro Oficina, em São Paulo, sob a direção do polêmico encenador José Celso Martinez Corrêa. “Não temos condição de realizar esse trabalho agora. Mas exatamente por isso é que precisamos fazê-lo”, enfatiza, bem ao seu estilo, José Celso. A grande marca dessa montagem foi a interferência direta do público durante todo o período de ensaios. Alguns espectadores iam a vários ensaios, participando da construção da peça. A estréia será dia 2 de dezembro, no próprio Teatro Oficina. A mão de José Celso está sempre presente. Sua visão do universo euclidiano é tropicalista e carnavalizada. A convivência de José Celso com a saga de Canudos começou no emblemático ano de 1968. Na época, ele dirigia a peça Roda viva, de Chico Buarque. Foi quando o Teatro Oficina se viu atacado pelo CCC – Comando de Caça aos Comunistas, um grupo paramilitar que atuou durante a ditadura de 1964. “Como houve essa tentativa de massacre do grupo, nós começamos a estudar o capítulo ‘A luta’, d’ Os sertões. Com o início da luta armada no país, pensamos todos em atuar como guerrilheiros da liberdade”, lembra José Celso.

O encenador José Celso Martinez Corrêa dirige adaptação de Os sertões. Abaixo, ensaio da peça, que está em cartaz no Teatro Oficina, em São Paulo

Nos anos 70, a repressão aumentou e o Oficina resolveu conhecer de perto o cenário inspirador de Euclides da Cunha. Então, pelo Brasil adentro, foi levada a peça Os pequenos burgueses, de Gorki, que tinha sido montada em 1963. A realização de um sonho de José Celso – apresentar-se para grandes platéias – aconteceu no interior de Pernambuco. Os personagens criados por Gorki entraram em cena no teatro de Nova Jerusalém, em Fazenda Nova. Além das temporadas em teatros, o grupo resolveu fazer um trabalho inspirado em capítulos de Os sertões que narram as andanças de Antônio Conselheiro antes de chegar a Canudos. O grupo percorreu várias cidades do Sertão nordestino.”A idéia era vivenciar um pouco do modo de vida de cada lugar. Como não podíamos falar muito, nós trabalhávamos em silêncio. Havia uma comunicação muito grande entre o não-dito sertanejo e o não-dito nosso. Até hoje nos inspiramos nesse homem do sertão, pois ele tem um sentido de sacralização da terra, e isso nos dá força para continuar aqui”, conclui Martinez. Os sertões também poderá ser visto em DVD, com lançamento previsto para o próximo ano, numa parceria com a gravadora Abril Music e direção de Tadeu Jungle. (F. P.) Os sertões Direção: José Celso Martinez Corrêa Em cartaz noTeatro Oficina Uzina Uzona Rua Jacaguai, 520 – São Paulo – SP Tel/Fax: (11) 31062818 teatroficina@uol.com.br Fotos: Luciana Cavalcanti

Continente . dezembro, 02


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90 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Procura-se um personagem Anjos, pastores, santos e soldados juntos num universo miraculoso onde cabia até Marilyn Monroe

Quem entrava na casa da minha avó materna avistava na parede da sala de visitas uma imagem do Coração de Jesus, litogravura suíça, herança de família. Logo abaixo dessa imagem, em tons verdes e pretos, lembrando um ícone russo, o retrato do meu avô, Pedro Zacarias de Brito, fotografado dentro do caixão em que o enterraram. Esses dois personagens reinavam absolutos na casa grande e antiga do sítio Boqueirão, no Crato. Era impossível não os avistar uma centena de vezes por dia, e mais impossível não se sentir olhado, vigiado e protegido por aqueles dois senhores. Minha avó Dália Nunes de Brito professava uma religiosidade popular, que parecia ter sido inventada por ela mesma. Nesse cristianismo sertanejo não aconteceram as sangrentas matanças dos cruzados, nem as fogueiras dos tribunais da Inquisição, e nunca se mencionou a usura de Roma, acumulando tesouros ao longo da história. Minha avó tinha desapego aos bens materiais e fazia questão de não possuir quase nada, além das terras que meu avô deixara. Os únicos objetos intocáveis naquela casa de portas escancaradas eram as imagens dos santos, a mesinha de altar com a sua toalha de renda de bilros, dois castiçais de vidro e uma jarrinha de porcelana. Ela rezava um rosário às três da manhã, outro ao meio-dia e um terceiro ao anoitecer. Valia-se do Coração de Jesus e do marido morto, em todas as agonias. Uma vez por ano se festejava o Sagrado Coração, na data em que ele fora entronizado na parede de onde nunca deveria sair. A renovação, como se chamava a festa, acontecia no mês de julho, época de fartura. Os reisados cantavam: “Quando eu entro nessa nobre sala, nessa nobre sala É pelo claro dessa luz Louvor viemos dar, viemos dar Ao Coração de Jesus.” As mulheres entoavam os benditos, os homens soltavam os fogos de caibro, serviam-se aluá de abacaxi, bolo de puba, pão-de-ló de goma, sequilhos e biscoitos. Tudo modesto e exíguo. Porém, não existia felicidade terrena maior que aquela. No Natal, o Sagrado Coração ficava um pouco esquecido e desprestigiado. Minha avó só cuidava do Jesus Cristinho, um meninozinho de madeira, rosado e risonho, vestido numa camisa de seda, esculpido lá longe, em Portugal, e recebido de presente da nossa tia-avó Nizinha. Diferia de todos os Meninos-Deus que conhecíamos, por ser igual a nós. Debaixo do vestidinho rendado, lá entre as coxas, tinha, como todos os meninos, uma pitoca e dois ovinhos. Minha tia Alzeni achava aquilo uma profanação e tentava por todos os meios esconder a sexualidade do Deus-Menino. Pensou em mandar castrá-lo, livrando-se da nossa curiosidade. Todas as vezes que passávamos diante da lapinha, levantávamos a saia do menino e olhávamos o seu sexo, comparando com o nosso. Era difícil imaginar que aquele camarada Continente . dezembro, 02


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deitado na manjedoura de palha, em tudo semelhante a nós, crescera e se tornara o Senhor onisciente pregado logo acima na parede, vigiando-nos com os seus olhos bondosos, mas severos. Minha avó confeccionava os enfeites da lapinha com lã de ciumeira e de barriguda. O pouco tempo livre de que ela dispunha, entre os trabalhos e as rezas, ocupava naquele artesanato minucioso, dando vida a carneiros, bois, burros e camelos. As figuras de José, Maria e dos Reis Magos, de louça modesta, eram as mesmas dos outros anos. Mais bonita que a lapinha da nossa avó, só mesmo a das irmãs gêmeas Alice e Alzira, famosas em todo o Crato. O ano tornava-se curto para elas construírem a cidade-cenário que ocupava quase uma sala. Havia de tudo naquele universo miraculoso: uma Jerusalém reproduzida, montanhas, lagos com cisnes e peixes, exércitos de soldados romanos, vilas, currais, bichos domésticos e selvagens, florestas, campos, pastores e pastoras em profusão, anjos e santos, tudo distribuído nos três níveis: o superior, divino; o intermediário e o terreal. Era impossível imaginar-se alguma coisa que não estivesse representada ali. Uma vez, eu juro, cheguei a avistar uma Marilyn Monroe, seminua, pendurada do galho de uma árvore. O cinema trouxe para o Crato o glamour hollywoodiano e a fantasia dos natais com neve e pinheiros. As lapinhas perderam o prestígio, como o catolicismo. Fellini anunciou o Foto: Montagem

fim da mitologia cristã, mas eu teimei em saudar o Jesus pagão da minha infância, em teatro e música, numa festa batizada com o nome de Baile do Menino-Deus. Um dia, convidaram-me em Recife para conversar com uma turma de colégio de classe média. A escola decidira fazer um espetáculo de Natal e os meninos, em torno de vinte, escreveriam o texto. Queriam a minha ajuda. Um empurrãozinho. Aceitei e fui ao encontro. Eram crianças inteligentes, com uma certa automação dos jogos de computador e video-games. Propus um começo. Anotaríamos a lista dos personagens do Natal, os mais importantes. Gritaram todos ao mesmo tempo. Pedi ordem. Surgiram os nomes, as figuras famosas das decorações natalinas dos shopping centers: Papai Noel, o trenó, as renas, a árvore de natal, a neve. Estranhei as respostas. Insisti. Lembraram os gnomos, os duendes, a oficina de brinquedos do Gepetto e os anõezinhos de Branca de Neve. Assustei-me. Não acreditava no que ouvia. Não é possível! Quem são os verdadeiros personagens da festa de Natal? Aqueles, sem os quais nada teria acontecido. Todos concentrados. Espera aí... espera aí... e nada. Não vinha um nome. Apelei. Lembrem pelo menos o principal, o mais importante, o que deu origem à noite de Natal. Por fim, um geniozinho gritou: “Já sei!” Que alívio! “Já sei!” E com um ar vitorioso anunciou: – O peru da Sadia.

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PATRIMÔNIO

Emanu

z u l a d a i r ó m e M

el Ara újo cri a Mus eu do Imagin ário

do Pov o Bras ileir

Emanuel Araújo e (acima, à direit a) o prédio do Museu do Imaginário , que ele está a criar

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o

Emanoel Com um talento multifacetado, s plásticas nos Araújo vivencia o mundo das arte ltor e gravuseus diferentes personagens. O escu lação sobre insta rista agora é retomado com uma á Oxalá. Já o a origem do mundo segundo o orix homenagem curador organiza uma exposição em Odorico Tavaao amigo e poeta pernambucano encarar novos a res. E o gestor cultural continua em que diridesafios. Consagrado pelos dez anos e conseguiu, giu a Pinacoteca de São Paulo, ond ltor francês Auentre outras coisas, tornar o escu ia nacional, seu man gust Rodin (1840--1917)) uma idéias que não maior feito ainda está por vir. São il. Para torná-las lhe saem da cabeça sobre o Bras pe, montar o vivas, resolveu, junto com uma equi o. Tudo isso ileir Bras Museu do Imaginário do Povo para o ano de 2003. da arte com um “O museu é um misto de história do território, da compromisso de resgate da cultura, a. Com um forileir gente, do povo e da memória bras alhar com celebrate traço cenográfico, iremos trab temporaneidade. ções, mitos do Brasil de 1500 à Con no sentido tradiO museu não deverá ter um acervo, r a obra, porque aliza cional do termo. Não vamos sacr ”, explica Araújo. ela estará em constante transformação porárias de médio O museu deverá ter exposições tem tura permanente que prazo (de 6 a 7 meses) e uma estru momento. Sua sede será implantada em um segundo ento de Ordem Políserá no antigo prédio do Departam construído no bairro tica e Social (Dops) em São Paulo,

Fotos: Luciana Cavalcanti


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da Luz (centro da cidade), no início do século passado, pelo arquiteto Ramos de Azevedo. Na abertura deverão ser montadas duas exposições: uma primeira sobre etnias africanas no Brasil (com a curadoria do novaiorquino George Preston) e uma outra elaborada pelo próprio Araújo, intitulada Negras memórias, memórias dos negros. “Queremos trabalhar esse ambigüidade de nunca esquecer a atrocidade da escravatura, lembrando como essa gente foi poderosa, de tal maneira que seja formado o conceito de nacionalidade e de brasilidade. Pretendo fazer um contraponto entre a África e a arte brasileira.” O projeto ainda precisa da aprovação do novo Secretário de Cultura do Estado de São Paulo, que tomará posse em janeiro. O museu será interativo com o público, que poderá trilhar visualmente caminhos e rotas, numa linguagem dinâmica a partir do uso do cinema e do vídeo. “Serão caminhos superpostos, do índio, do português e do africano. Queremos mostrar como a nossa população tornou-se mestiça, daí a cenografia com o sertanejo, o crioulo, o caboclo”, conta Araújo. Com sua eloqüência natural, Araújo enfatiza que seu olhar é para o lado de cá do Atlântico. “Um dos universos que desejo trabalhar é o de Guimarães Rosa, que tem um imaginário sobre o sertanejo. Mas sabemos também que o sertanejo tem o seu próprio imaginário. Que vai e volta. Que inspira e é inspirado. Então, queremos sempre fazer essa releitura do Brasil, bebendo na fonte de Sérgio Buarque, Antonio Candido, Mario de Andrade, Gilberto Freyre e tantos outros que estão nessa memória do cotidiano brasileiro, que estudaram o jeito de ser do brasileiro”, reforça Araújo. Essa sede em buscar suas raízes étnicas faz com que o escultor Emanuel parta para outras criações. Ele promete para o ano que vem uma instalação que chamou de Templo de Oxalá. Sua idéia é mergulhar na lenda da criação do mundo. “Será uma grande instalação de parede em que o branco é rompido com uma linha vermelha. Uma escultura longa que vem do chão ao teto.” Ela deverá ser montada no Instituto Tomie Othake, em São Paulo. Um outro projeto é uma coletânea do acervo de arte brasileira modernista do poeta pernambucano Odorico Tavares, uma homenagem pelos 90 anos do seu nascimento, com pre-

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visão de acontecer na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A obra de Emanoel Araújo reflete em larga medida a importância que ele dá ao exercício político da gestão cultural. Como artista, ele começou com a gravura, uma vez que esse tipo de obra tem mais fácil acesso ao público. Até suas esculturas ele gostaria de ver em praças públicas. Araújo relata que essa noção da importância e do respeito pelo espaço público começou quando ele estava no Museu de Arte da Bahia. Desde lá ele passou a trabalhar nessa direção. “É uma coisa que até hoje me encanta”, afirma. Nascido em Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano, Araújo chegou a Salvador no início dos anos 60, quando participou do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Três décadas depois, em 1992, o artista e empreendedor assumiu a direção da Pinacoteca de São Paulo, quando tomou para si como grande desafio a reforma do prédio. “Executada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o prédio, que era uma ruína, transformou-se em um espaço contemporâneo. As exposições foram importantes, é claro, mas todo aquele universo, os lindos banheiros, Continente . dezembro, 02

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o pátio, o piso de mármore, todo aquele lindo palácio levantou a auto-estima das pessoas que passaram a freqüentá-lo. O prédio tem um luxo usável”, diz Araújo, que lembra o fato de o projeto arquitetônico ter recebido o prêmio de restauro da Fundação Mies Van der Rohe de Arquitetura Latino-Americana. Mas o seu desafio maior era trazer de volta o grande público a uma área de belíssima arquitetura, mas marginalizada na cidade de São Paulo: o Parque da Luz, construído no século 19. “Queria fazer exposições sobre a temática do negro, que tocassem na questão da memória do povo brasileiro. Depois, estruturar o restauro e a catalogação, cumprindo todas as etapas. Foi muito gratificante o fato de a Pinacoteca ter mudado toda a área do Parque da Luz. Quanto às exposições, elas revelaram aos próprios paulistanos uma coisa de que eles nem tinham idéia, ou seja, que elas poderiam acontecer naquele espaço”, diz Araújo. As pessoas voltaram a freqüentar aquela região, e tinham um bom motivo para isso. Só a exposição de Rodin,

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em 1995, atraiu mais de um milhão de visitantes. O sucesso foi tal que a mostra viajou pelo Brasil e ainda inaugurou uma segunda etapa da vida da Pinacoteca: levar exposições pelo Brasil afora. Filas intermináveis também foram feitas por um público ávido para ver as esculturas de Francisco Brennand, em 1998, que, depois de exibidas na Pinacoteca, viajaram até para Portugal. “Ele é um dos artistas brasileiros mais eruditos que conheço. A sua obra está muito entranhada na tragédia, na cultura ocidental, nos mitos dos deuses gregos. Ele é um artista que é muito brasileiro na sua essência, mas sobretudo é universal. Brennand conversa de maneira generosa com a História. Foi muito interessante trazê-lo.” Para Araújo, existe um conceito importante que diferencia a Pinacoteca de um centro cultural: ela difere na forma de mostrar e de olhar. “Toda vez que você trabalha com a questão do espaço, da geografia, da cenografia, não precisa ser uma coisa extraordinária, mas é necessário exercer um


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Emanuel e (abaixo, à esquerda) a Pinacoteca do Estado de São Paulo, que ele dirigiu por dez anos

certo fascínio sobre o visitante.” Do seu lado, o público respondeu positivamente, incorporando em definitivo o hábito de freqüentar as exposições da Pinacoteca. “Na realidade, nós criamos uma dinâmica na linha dos projetos. Quem nunca tinha visto Rodin, passou a ver Moillol, Bourdelle, Camille Claudel, completando a seqüência da escultura francesa do século 19 e 20 com Niki St. Phalle. Aconteceu uma interação entre o edifício, as exposições e o passado de São Paulo. Foi isso que provocou esse retorno do público.” Neste ano, Araújo deixou a Pinacoteca, mas continua na Praça da Luz (o Museu do Imaginário fica na mesma região) e espera que essa seja a metáfora de sua vida. “Que essa luz possa se irradiar ainda mais para se criar uma consciência da necessidade de a cidade de São Paulo recuperar sua história perdida. A história da arquitetura, dos espaços que foram importantes e hoje estão esquecidos. A cidade se espichou como uma lagartixa e esqueceu-se de seu passado. A Pinacoteca foi uma idéia de trazer de volta a luz a esses espaços, e a continuidade aconteceu com o projeto do Museu da Língua Portuguesa e a Sala São Paulo (também localizados na Praça da Luz). Mas essa luz poderá se irradiar ainda mais por alguns outros trechos de São Paulo. Espero que esse seja um roteiro definitivo dessa história”, conclui Araújo. (F. P.)

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Batia Lederman

Muito já se falou sobre as fontes das quais Freud bebeu conscientemente, e que contribuíram para a formação de sua mente fértil e corajosa. A consciência, porém, não é tudo. A psicanálise que Freud criou nos incentiva a procurar o que está latejando por trás do consciente, escondido, porém vivo e ativo. Criado dentro da cultura judaica, Freud recebeu, desde a nascença, essa marca no seu inconsciente. Acredito que alguns aspectos que o judaísmo e a psicanálise têm em comum são o resultado da influência que a cultura judaica teve na maneira de Freud ser, perceber e pensar, chegando assim, à sua obra.

A marca da estrela Freud desenvolveu a sua obra sob o pano de fundo do judaísmo Na tradição judaica, a palavra tem muita força: o mundo foi criado pela palavra de Deus; ao longo dos séculos cada palavra da Bíblia foi interpretada e re-interpretada pelos estudiosos, na busca da compreensão do texto sagrado. A psicanálise também atribui grande importância à palavra. Tudo que é dito pelo paciente é valorizado como importante material de trabalho. A intenção de entender o que está escondido nas entrelinhas do texto é comum ao judaísmo e à psicanálise. O judaísmo se concentra na compreensão dos textos sagrados, enquanto a psicanálise se interessa pelo texto do inconsciente. Vemos no judaísmo a compreensão da existência do inconsciente. O Talmud (livro escrito no século 4, contendo comentários sobre a Lei de Moisés, regulando todos os aspectos do dia-a-dia: higiene, alimentação, sexualidade, trabalho), que, aparentemente, valoriza a Kavana, a intencionalidade consciente, para avaliar os atos e pensamentos do indivíduo, também reconhece que existe um saber além daquele que a pessoa sabe, o equivalente à noção freudiana do inconsciente, reservatório das pulsões e conteúdos reprimidos, fonte de todos os atos do ser humano. Assim, lemos no Talmud: “O homem também é responsável por seus atos involuntários” e “Um homem jamais comete uma falta de modo inteiramente acidental.” Vamos observar a questão dos sonhos. As culturas antigas interessavam-se pelo fenômeno do sonho e sua decifração, tendo em comum a idéia de que por trás do conteúdo manifesto existe algo latente, a ser decodificado. Continente . dezembro, 02

Na sua obra A interpretação dos sonhos (1900), Freud fez um avanço importante no pensamento analítico, afirmando que, nos sonhos, o material reprimido encontra métodos e maneiras de forçar seu caminho para dentro da consciência. No Talmud, lemos: “Não se mostra a um homem, em seus sonhos, mais do que os pensamentos do seu coração.” E também: “Um sonho não interpretado é como uma carta que não foi lida.” Tanto Freud quanto a Cabala (a escola do misticismo judaico, existente desde o século 1) não tentam interpretar o sonho como um todo, mas os seus detalhes; levam em conta as circunstâncias do sonhador; usam a associação livre e sustentam que interpretações diferentes e contrárias podem ser mantidas simultaneamente. Uma outra questão que nos interessa é o conceito da realidade psíquica. O Talmud percebe o ser humano como a sede de duas forças: a pulsão do bem (Ietser Hatov) e a pulsão do mal (Ietser Hará). Para compreender como o judaísmo lida com o bem e o mal, é preciso fazer referência aos conceitos de Dualismo e Monismo. O Dualismo descreve o indivíduo como uma entidade em que duas instâncias separadas de “bem” e “mal” lutam uma contra a outra, e as boas qualidades


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Um dos muitos medalhões com motivos geométricos que decoram as muralhas da cidade de Jerusalém, em Israel

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Interior da sinagoga do rabino Isaac Aboab, na cidade de Safed, em Israel Detalhe da sinagoga de Chodorów, em Lvóv. Reproduz signos do zodíaco, textos piedosos, animais e ornamentos de plantas

são conquistadas através da submissão do corpo, núcleo do mal. Já o Monismo percebe “mal” e “bem” como partes de uma só unidade, como dois lados de uma moeda. O judaísmo vê as pulsões pela perspectiva monista: elas não lutam entre si, mas o mal serve como uma “cadeira” para a pessoa subir e aproximar-se do bem. A Cabala diz que, em cada coisa, mesmo que ela pareça má, existe um núcleo bom. É preciso “descascar” as camadas para chegar a ele. O judaísmo não pretende extinguir a pulsão do mal, e sim transformá-la, pois entende que ela é uma energia, sem a qual “o homem não construiria uma casa, não casaria, não teria filhos, não trabalharia.” Na teoria da libido, Freud explica que um dos destinos da pulsão é a sublimação, isto é, a re-canalização da energia sexual de um objeto para outro, mais aceitável socialmente. Podemos perceber a semelhança entre essa idéia e a visão monista judaica da transformação da energia da pulsão. A tradição hassídica compreende a vantagem do uso da sublimação sobre o uso da repressão: “Só a fagulha acesa, e não a apagada, pode ser usada.” Quando um homem está rezando, se, de repente, é surpreendido por um desejo ou pensamento sexual, ele não deve reprimi-lo, e sim canalizá-lo à sua “rota original” (o amor a Deus). Tirando a questão religiosa, aí aparece a noção da sublimação. A pulsão, para Freud, era um conceito-limite entre o físico e o psíquico. O judaísmo também percebe a pulsão sexual numa esfera bidimensional, física e psíquica. Existe um diálogo entre o instinto físico (Ietser), a criação mental (Ietsira) e o Homem, a criatura (Ietsur). As três palavras vêm da mesma raiz lingüística (I.TS.R.). O judaísmo não reprime a sexualidade, mas coloca a continuidade pulsão-criação como uma fluência reguladora para a energia que a pulsão sexual produz, alternando desejos físicos e criação mental. No Talmud, lemos: “Quanto maior o homem, mais forte é a sua pulsão.” Em outras palavras, o crescimento psíquico e a pulsão sexual são interdependentes e alimentam-se entre si. Tanto Freud como o judaísmo percebem a sexualidade como um fenômeno natural, saudável e não pecaminoso. Freud chocou a sociedade do final do século 19 com sua visão da sexualidade, explicando sua existência no ser humano desde a nascença e mostrando sua evolução nas várias fases do desenvolvimento. O prazer, disse ele, que na fase pré-genital é o único objetivo da pulsão, continua sendo-o, porém, no adulto, a pulsão é subordinada à função reprodutiva. Na tradição judaica, percebemos uma compreensão semelhante. Imagens: Reprodução

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Freud e, ao lado, desenho que ele fez, a partir de Moisés, de Michelangelo, na década de 1930

O Zohar (o texto mais importante do misticismo judaico, escrito no século 2) explica que a relação sexual é para ser estimulada não só pela reprodução, mas também pelo prazer, porque o prazer contribui para a paz familiar. O conceito de desenvolvimento sexual formulado por Freud sustenta que o indivíduo nasce com uma constituição bissexual, e que a evolução sexual culmina na heterossexualidade. A Cabala também traz a questão da bissexualidade humana. Em Gêneses (1, 27), lemos: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”; e, logo depois (2, 21): “Então o Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas costelas, e fechou o lugar com carne. E a costela que o Senhor Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher, e lha trouxe.” Como resolver a discordância entre essas versões? Diz a Cabala que Adão e Eva, descritos no capítulo 1, eram uma única unidade, masculina/feminina, uma existência espiritual. No capítulo 2, o homem concreto é masculino, e dele foi criada a mulher. A cosmogenia judaica traz um paradigma igualitário de multiplicação e criatividade. O misticismo judaico atribui sexualidade a Deus. A relação sexual entre marido e mulher é comparada, simbolicamente, à relação sexual de Deus com a Shechina, uma espiritualidade feminina, parte do próprio Deus. Deus é um ser bissexual, e Adão, que foi criado à sua imagem, também o é. Na Cabala, masculino e feminino são dois pólos de uma unidade. No Zohar, lemos: “Toda figura que não engloba elementos masculinos e femininos não é uma figura verdadeira...” Os pais de Freud eram judeus de pequenas cidades no leste da Europa, onde o judaísmo era a única maneira de viver o dia-a-dia. Freud cresceu entre os judeus, leu a Bíblia desde criança, aprendeu hebraico. Seus heróis eram judeus, seus anti-heróis eram judeus, seus traumas eram os de um judeu enfrentando o anti-semitismo. Ele passou sua vida num “gueto” formado quase que exclusivamente de amigos e colaboradores científicos judeus, e tinha uma grande coleção de livros sobre judaísmo. Seus conflitos de identidade eram os de um judeu (“Três vezes apátrida: um tcheco entre os austríacos, um austríaco entre os alemães e um judeu em toda parte”, como disse Mahler). Freud era cultural, psicológica e intelectualmente judeu. Apesar de ateu, pensava e sentia o mundo como judeu e considerou esse fato essencial para a criação da psicanálise. Continente . dezembro, 02


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 99 » Joel Silveira com ilustrações de Miguel

AS ECONOMISTAS Todos os planos econômicos do governo deviam ser elaborados por donas de casa da classe média baixa. A BOMBA-RELÓGIO O Brasil me lembra uma bomba-relógio feita às pressas e de mecanismo defeituoso. Dessas que nunca explodem. LIÇÃO DE HISTÓRIA Dos 500 anos que o Brasil viveu, pelo menos 200 passaram em branco. CRÍTICA LITERÁRIA Os escritores e poetas brasileiros estão todos lendo menos e escrevendo mais. PATIFARIA O que me deixa perplexo é ver como os patifes conseguem encontrar num país pobre, como é o nosso, milhões e milhões para roubar. Ou somos pobres exatamente por isso? O LIXO Não existe a menor possibilidade de o lixo da História ser reciclado. BAIANIDADE – Você sabe por que baiano fala devagar, quase parando, como quem se espreguiça? – Não. – Para esticar o máximo possível a falta de assunto. TERRA À VISTA! Se o Brasil não fosse achado pelos desorientados portugueses, e por conseguinte não existisse, o mapa da América do Sul teria contornos pouco harmônicos, mas, em compensação, a Bolívia e o Paraguai ganhariam paradisíacas praias tropicais. CHIQUES E FAMOSOS Já está cientificamente provado que quem é dono de um iate de 200 pés não tem qualquer necessidade de saber com quantos paus se faz uma canoa – e muito menos uma jangada. HORA DO RECREIO Graham Greene tem razão: “Por serem inocentes é que as crianças são tão cruéis.” PROBLEMAS BRASILEIROS O fato é que, para a maioria esmagadora do povo brasileiro, o Brasil nunca foi uma solução e sempre foi um problema.

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100 PRETO

NO BRANCO

Pedro Lyra

MONTEJO, Adolfo (Org.). Correspondencia celeste: nueva poesía brasileña 1960-2000. Madrid: Árdora, 2001. 320 p. GARCIA, Xosé Lois (Org.). Antologia de la poesía brasileña. Barcelona: Laiovento, 2002. 532 p. BASTOS, Jorge Henrique (Org.). Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade. Lisboa: Antígona, 2002. 400 p.

TRÊS ANTOLOGIAS LAMENTÁVEIS Nossa moderna poesia acaba de ser distinguida na Europa com a publicação das três antologias em epígrafe, que selecionam a produção de nossas quatro últimas gerações – as que têm sua data-base de estréia em meados das décadas pares do século passado: a de Montejo abrange apenas duas (as de 60 e 80); a de García, três (recuando até à de 45); a de Bastos, todas as quatro (partindo de 22). Antes de tudo: é muito bom – e absolutamente necessário – que nossa poesia seja publicada no exterior. Mas que os antologistas não se limitem a seu gosto pessoal, para evitar ausências e presenças igualmente injustificáveis e prejudiciais. MONTEJO SOBREPÕE NOVIDADE À QUALIDADE Propondo-se a uma seleção “por um critério crítico e estético: o de recolher os versos/poéticas que renovam a linguagem lírica do Brasil” (p. 10), Adolfo Montejo reúne 34 nomes e opera basicamente com a idéia de geração – mas não formula um conceito nem propõe uma escala. Como a totalidade dos que recorrem impressionisticamente ao termo, acaba reduzindo geração a grupo, estética ou movimento e confundindo-a com década. Ele cobre a segunda metade do século, mas o que entende como “nova” é apenas a poesia da Geração-80 e a do segmento alternativo/marginal da Geração-60 – e divide mecanicamente a produção do período pelos respectivos decênios. Na apresentação “Razões para esta antologia”, declara (p. 11) que a sua é “antípoda” da minha (Sincretismo: A

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poesia da Geração-60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995) e da de Carlos Nejar (Antologia da poesia brasileira contemporânea. Lisboa: IN/CM, s/d = 1986). Não posso, portanto, ignorar o confronto, que ele mesmo prenunciou. No essencial, Montejo aceita a divisão que propus para a poesia da Geração-60 em três grandes segmentos: a Tradição discursiva, a Variante alternativa e o Semioticismo vanguardista. Assim como reuni apenas o discursivo (por considerálo o mais relevante), ele reuniu apenas o alternativo (por considerá-lo o mais original). Ora, muito mais original é o segmento vanguardista (com o Poema-Processo, a Arte-postal, a Vídeo-arte etc.). O que pode haver de novidade na poesia marginal deriva de seu referente histórico, não da criatividade de seus autores – a substância fornecida pela realidade social do momento e, necessariamente, as posições assumidas em torno dela. Porque, do ponto de vista da expressão, a dicção coloquial, a forma relaxada, a linguagem prosaica, a enunciação minimalista – tudo isso não é mais que uma simplória retomada da fase de ascensão do Modernismo. Mas a novidade de 22 era uma instauração, e foi fecunda; a de 70 foi estéril, já que era apenas uma restauração. Isso serve para demonstrar que a novidade, se conduz a poesia para a frente, nem sempre a conduz para o alto. Na introdução “Brasil, um continente poético” (p. 1334), Montejo tenta caracterizar cada uma destas cinco décadas, e destaca: na de 50, o confronto entre “classicismos e vanguardas”; nas de 60 e 70, “poesia versus sociedade”; nas de 80 e 90, “o território da pós-modernidade”; e, nos con-


PRETO NO BRANCO 101 » A novidade, se conduz a poesia para a frente, nem sempre a conduz para o alto tornos do novo milênio, umas vagas “outras vozes e outros rumos.” Essa introdução abre com uma afirmação inaceitável: “A poesia brasileira nasce na prática com o fenômeno do Modernismo.” Que prática? Simplesmente, a do plano da expressão – os recursos de formalização e de linguagem: “Os signos anteriores da poesia pós-colonial (...) anunciam a constituição de uma poesia nacional, porém mais por seus interesses espirituais que por seus recursos formais e estilísticos.” No caso do passado de um país como o nosso, submetido à colonização estrangeira, o caráter nacional da literatura se define sobretudo no plano da substância – o sentido das posições assumidas por seus autores. Nesse sentido, temos uma poesia bem antes do Modernismo, e já conscientemente nacional, na voz brasileiríssima de um Gregório de Matos. Montejo demonstra boa compreensão do nosso processo modernizante e consegue caracterizar com alguma precisão a obra dos grupos selecionados – mas, acolhendo apenas dois muito estilisticamente assemelhados –, não podia omitir nomes típicos como Chacal, Leila Mícollis e Geraldo Carneiro. Ao justificar a eleição pela sua suposta novidade, argumenta que sua antologia “começa com a inauguração de outro conceito de poesia, uma poesia pré-pós-moderna” (p. 9). Nem a desculpa pelo “jogo de prefixos” atenua a imprecisão terminológica: quando muito, teríamos a retomada de uma outra prática, já sem dúvida plenamente pós-moderna, não apenas “pré-pós”, mas não um outro conceito de poesia, que não foi formulado. A preferência pelo poema curto pode corresponder a esse conceito ausente, mas não instaura um outro – e é apenas uma tendência, que diz muito da constituição cultural de seus adeptos, não uma generalidade. Ela pode até ser a dominante no período, mas, por isso mesmo, não exclusiva, muito menos excludente. Nem a mais relevante. Quando tenta justificar a preterição do segmento discursivo, Montejo expõe argumentos também inaceitáveis: “Há todo um elenco de poetas que costumam estar agrupados sob o nome de geração sincrética, cujo máximo ofício é retomar os valores da Geração de 45” (p. 23). O “máximo ofício” (e não de toda a Geração-60, mas apenas do seu segmento discursivo) não foi retomar os valores de 45, mas os da tradição, ameaçada (não pela, mas) na aventura concretista, restaurando o verso e a imagem como elementos básicos da expressão poética. Depreciar os discursivos de 60 como conservadores equivale a mistificar os conceitos de discurso e de conservação: na verdade, são evolucionistas – porque desenvolvem a linha natural da evolução da nossa poesia. As apreciações críticas aos poetas, ordenados corretamente por estréia, o que têm de breves têm de exageradas: os textos escolhidos se encarregam de negá-las – a média é muito fraquinha. O leitor confronta a crítica com o texto e toma um choque: mas é disso mesmo que ele está falando? Parece coisa

de amigo. Todos reconhecem o fim da era das escolas, dos grupos esteticamente orgânicos, mas o comportamento continua sendo grupal. E Montejo fica cheio de dedos ao incluir/comentar poetas vinculados à tradição discursiva, como Adélia Prado, Orides Fontela ou Elizabeth Veiga (“Sem perder um raro, além de inclassificável, vigor poético, apesar de ser situada na corrente neodiscursiva”, p. 127). Justifica que as incluiu como “uma representação de honra dessa vertente” (p. 24). A vertente (aliás, o segmento) dispensa essa “honraria”: em antologia, ninguém representa mais que a si próprio. Tanto na introdução quanto nas apreciações, ele (sem citar e apenas remetendo vagamente para a bibliografia) recorre a algumas das teses que defendi na obra de 1995, como a própria designação de sincrética para a Geração-60. Isso o arrasta a uma confusão de conceitos, como ao falar várias vezes de uma “geração marginal” (p. 111, 185 etc.) ou de uma “vertente sincrética” (p. 267). A geração não é marginal e a vertente não é sincrética: marginal é um de seus segmentos, todos com várias vertentes, e sincrética é a própria geração. Ao falar das mulheres (todos proclamam a necessidade de evitar a discriminação, mas ainda discriminam), ele as confina num breve parágrafo final, como se fossem não de outro gênero, mas de outra espécie. E, acrescentando 13 dentre os “inumeráveis nomes” aos das incluídas ou apenas mencionadas, omite um dos maiores: Neide Archanjo (p. 34). Coerente com tudo isso, o título da antologia: Correspondencia celeste. Pensei que se tratasse do nome de uma coleção, procurei em todo o volume e não havia uma referência. Seria sugestão do que se afirmou (p. 149) sobre um dos antologiados? Só sei que, para uma antologia como essa, é o título absolutamente impróprio. Mais parece arquivo de místicos. Que fique bem claro: isso não é a nova poesia brasileira. É a da Geração-80 e a do segmento alternativo/marginal da Geração-60 – apenas isso. A atual poesia brasileira tem muito mais coisas – e muito melhores. Confrontem com os poetas de outros segmentos (o próprio discursivo) e vertentes (a social – num Affonso Romano de Sant’Anna; a épica – num Marcus Accioly; a lírica – num Carlos Nejar; a metafísica – num Ivan Junqueira; a metapoética – numa Marly de Oliveira) e dos demais estados (um Nauro Machado – no Maranhão; uma Lucila Nogueira – em Pernambuco; um Roberto Pontes – no Ceará; um Ildásio Tavares – na Bahia; um Brasigóis Felício – em Goiás; um Armindo Trevisan – no Rio Grande do Sul etc.). Mas, se mesmo para nós é difícil um domínio pleno da nossa totalidade poética, mais ainda o será para um estrangeiro. GARCÍA PRIVILEGIA OS DISCURSIVOS DA GERAÇÃO-60 A antologia de Xosé Lois García acolhe 44 nomes, sendo 12 da Geração de 45, 25 da de 60 (todos da tradição disContinente . dezembro, 02


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A preferência pelo poema curto diz muito da constituição cultural de seus adeptos

cursiva – inclusive o autor desta recensão) e 7 da de 80. Dirigindo-se especificamente ao leitor espanhol, explica que não incluiu os clássicos modernistas por já serem bem conhecidos em Espanha. Mas, acolhendo apenas dois dos nomes mais reconhecidos de 45 (Lêdo Ivo e Alberto da Costa e Silva), deixa muitos de fora, inclusive Cabral. E não toma conhecimento dos concretistas nem dos marginais. Já se pode deduzir que sua antologia é antípoda da de Montejo. García não escreve uma introdução histórica ou teórica: apenas faz breves comentários analíticos a todos os antologiados, dispostos em ordem de nascimento. Mas, pelo menos, abre com duas páginas de definição de critérios e justificativas, como no trecho reproduzido na contracapa, em que destaca nossa diversidade estilística e temática. E diz que realizou seu trabalho sob “uma ótica muito pessoal”, com “um mínimo de poemas por cada autor”, e que o limite do espaço editorial o obrigou “a renunciar a autores de incontestável valia” (p. 10). Essa renúncia se processa em detrimento da diversidade: sua seleção é bastante uniforme, restrita aos discursivos daquelas três gerações. Se aqui e ali fala em geração e em década, não optou nem por uma nem por outra. Também a introdução e as notas aos poetas são oferecidas em português e espanhol. Percebe-se facilmente, em qualquer página, que o texto em português (ou a tradução) não é de autoria de um nativo. Suas notas privilegiam o aspecto biográfico: falta uma bibliografia, tanto geral (da antologia) quanto particular (dos poetas). Apesar das dificuldades apontadas, encontram-se entre os antologiados nomes que mesmo no Brasil não lograram maior projeção. E, privilegiando-se o segmento discursivo da Geração60, omitem-se vários de seus nomes mais significativos. A MAIS ABRANGENTE E A MAIS LACUNOSA O paraense Jorge Henrique Bastos reúne 62 poetas, sendo 15 da geração modernista, 14 da de 45, 19 da de 60 e 14 da de 80. Apresentando-se como a antologia mais abrangente, resulta a mais lacunosa: dos modernistas, exclui Augusto Frederico Schmidt; de 45, inclui os experimentalistas, acolhe apenas 7 do segmento esteticista e, do participante, omite Moacyr Félix; da geração de 60, inclui apenas 9 do segmento discursivo, 3 do tipicamente alternativo e outros 7 mais identificados com os segundos; da de 80, recolhe os nomes hoje mais divulgados.

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Bastos começa com uma incoerência logo entre o título e o subtítulo: o título promete uma seleção da nossa poesia do século 20, mas o subtítulo a restringe às quatro gerações que se estendem dos modernistas à atualidade. E a Geração Decadentista, a dos pré-modernos? Também pertence ao século 20! Não se pode antologiar a poesia brasileira dessa época sem Raul de Leoni, sem Augusto dos Anjos, sem Moacyr de Almeida, sem Gilka Machado e alguns outros. A introdução (“Em busca da Modernidade”, p. 7-12) é ginasiana. Constata, no primeiro parágrafo, que essa busca envolve “várias gerações, escolas, tendências e experimentações”, e, também sem dizer o que entende por geração, supõe que possa apresentar esse grandioso conjunto em parcas 5 páginas e meia. Acaba omitindo dados e nomes importantes. Apoiado em historiadores que não cita, Bastos afirma que “as fases que dividem a literatura brasileira são constituídas pelo período Modernista, animado pelos autores que organizaram a Semana de Arte Moderna de São Paulo; em seguida, pela chamada Geração de 45 e a Poesia Concretista, surgida em meados da década de 50. Seguem-se os anos 60 e a poesia marginal dos anos 70. Os autores das últimas duas décadas não possuem nenhuma designação”. Esse trecho é pleno de equívocos: 1º) implica que antes do Modernismo não tivemos literatura nenhuma, repetindo o erro de Montejo; 2º) restringe o Modernismo à Semana, ignorando o grandioso elenco de 30; 3º) omite o Praxismo, o Poema-Processo e outras práticas vanguardistas; 4º) aponta vagamente para “os anos 60”, sem indicação de sua vasta e diversificada produção; 5º) ignora a designação já quase consagrada de performáticos para os poetas da Geração-80. Como Montejo, também Bastos se acomoda no esquema fácil e enganoso da seqüência de décadas, numa periodização mista, com dados cronológicos por sobre as configurações estéticas. E chega a falar em “efectivos períodos literários detonados a cada década” – um simplismo evidente. Muitas outras afirmações dessa introdução poderiam ser contestadas, mas me limitarei a uma: “Os concretistas dividiram as águas territoriais da poesia brasileira, acolhendo tanto a unanimidade como a revolta geral da nação.” Isso soa patético: como unanimidade, se gerou tamanha revolta? E quando o autor se reporta a nossa história, incide em equí-


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vocos como: “O recrudescimento político altera-se com o golpe militar de 64” (p. 10). Esse “recrudescimento” não se altera com o golpe – implanta-se. Alterou-se em 68. Quando saímos da introdução e penetramos na antologia, verificamos que a apresentação dos poetas também é algo caótica: nenhuma ordem – nem alfabética, nem de nascimento, nem de estréia. Apenas acompanha-se de modo impreciso a sucessão das décadas ou da atuação literária. Mas por que Cabral, que nasce e estréia depois, figura antes de Vinícius? Isso não só impede a apreensão das relações entre as gerações, mas também agride a evolução poética. É o resultado da ausência de um conceito/escala de geração e de um parâmetro histórico objetivo. As notas aos poetas são um misto de informação e crítica, mas todas muito precárias, sem técnica ou padrão identificável. Um exemplo: ao mencionar Macunaíma (p. 15), no lugar de citar a edição original, para situar a obra em sua hora, cita uma edição portuguesa recente – não por coincidência, da mesma editora da antologia. Em muitos autores, não é indicado um único livro: ficamos sem saber de onde vieram os poemas selecionados. É claro que essas notas tinham de relacionar a obra completa de todos os poetas, de preferência com a indicação de uma seleção crítica. Nem a bibliografia ao final do volume supre essas falhas. Também confundindo os termos, Bastos se desvia do enfrentamento do problema geração ancorando-se na comodidade do registro da década, mas sempre de modo confuso. Quando recorre ao conceito, só faz afirmações ingênuas, como ao dizer que Régis Bonvicino é testemunha “do fim de um ciclo poético, a geração de 70”, como se uma geração arbitrariamente batizada por uma década qualquer parasse de produzir no seu final, “e a passagem para um novo período, ou seja, dos poetas que começaram a publicar a partir dos anos 80” (p. 310). O período é novo no calendário – não necessariamente na poesia! Nenhum conceito estético ou histórico fundamenta afirmações tão impressionistas. NÃO HÁ UM SÓ NOME COMUM ÀS TRÊS ANTOLOGIAS O que tem caracterizado o segmento alternativo da Geração-60 e a maioria dos nomes da Geração-80 é o desinteresse ou a incapacidade de desenvolver poeticamente uma idéia lógica ou de desenvolver logicamente uma idéia poética. São poetas do miúdo – a poesia se curvando ao consumismo: livrinhos para ler rápido (retomar um espaço na mídia... fazer

mais uma festa... acrescentar mais um título à vasta bibliografia...), do contrário o consumidor muda de canal. Como se a poesia, que tem de ser prazerosa, fosse algo enfadonho ou compulsório. Apenas dois poetas – Khayyam e Reis – conseguiram se afirmar universalmente com poemas miudinhos. Mas quanta beleza, novidade e grandeza naqueles parcos versos! Tudo que falta a essa prática pós-moderna e que condensa o conceito de poesia como substância. O dilema desses poetas consiste na submissão às influências sofridas: muitos de seus componentes não conseguiram se libertar dos fantasmas de Drummond, de Vinícius, de Cabral e, particularmente, do Concretismo e do Tropicalismo (o que arrastou muitos deles a confundir poema com letra de canção). Sem encontrar uma expressão própria, não ficará ninguém fora dos círculos pessoais e dos meros registros históricos. E não adianta procurá-la: ou a trazem em si, porque sejam individualidades marcadas, ou não terão onde encontrá-la. Um dos antologiados de García percebeu muito claramente o nível em que sua geração se situa, o rumo que estava seguindo, e tratou de seguir por outro: “Não mais somente a arte minimal./Agora, grandiosos painéis de onde pululam os excessos...” Assim, nesse tom de manifesto, proclamou Verônica de Aragão (p. 499), em seu livro de estréia, até hoje só percebido por Olga Savary em recensão na revista Poesia sempre. Dois antidetalhes conclusivos, da maior importância: 1º) não há um só nome comum às três antologias; 2º) em nenhuma das três encontramos poemas de Marly de Oliveira, Marcus Accioly, Neide Archanjo e alguns outros nomes de valor. Isso não aconteceria com três antologias contemporâneas de nenhum outro país. Não estou convencido de que seja uma demonstração dessa nossa diversidade: antes, tendo a crer que o fato se deva a três fatores vinculados aos organizadores: seu grau de conhecimento, sua disponibilidade bibliográfica e suas opções e identificações íntimas. É esse o destino das antologias “pessoais”. E isso basta para pôr em questão a validade desses empreendimentos.

Os discursivos de 60 não são conservadores: são evolucionistas, porque desenvolvem a linha natural da evolução da nossa poesia Continente . dezembro, 02


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104 ÚLTIMAS

PALAVRAS

Rivaldo Paiva

A importância das pequenas coisas Lemas que podem levar a uma vida sem princípios

O povo brasileiro tem a mania de cometer pequenos e inusitados delitos com a maior tranqüilidade, como se aquilo que se está fazendo fosse uma coisa pequena e que não merecesse tanta atenção. Exemplo disso é o esquecimento do uso da cidadania para se combater o cometimento dessas constrangedoras transgressões da lei. Charles Handy diz no seu Across the board que a cidadania é a oportunidade de influir sobre o lugar a que você pertence. Assim, procuro sempre me cuidar para poder indagar das autoridades constituídas ou responsáveis a respeito dos pequenos grandes deslizes delas mesmas para com o direito do cidadão. É uma questão de princípios, pois o segredo de uma vida rica é ter mais princípios do que fins. Lendo Vicent Barry, contentei-me à sua constatação de que, quando andando pela Madison de Nova Iorque, surpreso, observou um aviso, em letras garrafais, pregado na porta lateral de uma elegante loja de grifes famosas, dirigido “Somente para funcionários” – lá estavam escritas duas regras essenciais para se viver bem: “Não dê importância às pequenas coisas” e “Todas as coisas são pequenas”. “Não dê importância às pequenas coisas” é um lema que, usado impensadamente, leva a uma vida sem princípios. É a melhor colocação que pude colher. Orgulhoso do meu berço nativo, confronto-me diariamente com a gostosa realidade das grandes e pequenas causas expostas, podendo argumentar o que possivelmente meus bondosos e persistentes leitores teriam vontade de dizer. Mantenho a mente livre em momentos de contemplação, como já preconizou, certa feita, Maria Tereza Madonado, permitindo que as boas idéias brotem.

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Pois, então! Estava eu num supermercado, sábado passado, a escolher meus vinhos tintos preferidos, para pelejar contra meu alto colesterol não endógeno e poder passar um natal baconiano, quando presenciei um garoto tirar um pirulito da prateleira, desenrolá-lo do celofane e chupá-lo, enquanto sua mãe enchia seu carrinho básico. Flagrado por um funcionário que andava de patins, o garoto pouco deu bola, obrigando o mesmo a interpelar educadamente a mãezona sobre o ato do filho, alertando que o pirulito estava à venda e não era amostra grátis. A mãe ficou uma arara, logo devolvendo em alto tom a defesa do filhote: “Pelo amor de Deus!... Reclamar por algo tão pequeno?” Fiquei a estalar uma pergunta em silêncio, tal Barry: quais critérios aquela senhora usaria para traçar a linha entre “pequeno” e “grande”? Entretanto, a mensagem transmitida pela mesma, publicamente, foi clara: roubar “pequenos objetos” é permitido; na verdade, nem chega a ser roubo. Com certeza aquele anúncio, “Não dê importância às pequenas coisas”, pode ser um bom conselho quando significa algo como “Mantenha o senso de proporções” ou “Evite exagerar”. Porém, usada sem cautela, essa máxima deixa de funcionar como orientação para a vida racional e torna-se um fundamento lógico para se viver sem princípios. Considerar o que cobiçamos como trivialidades nos dá um álibi para furtarmos impunemente. Os grandes infratores dificilmente sofrem a repressão da punibilidade. Para aqueles cuja honra não vale mais do que o preço de algumas “pequenas coisas”, o custo pode ser, algum dia, o casamento, uma amizade ou a carreira. Como Benjamin Franklin advertiu, uma pequena negligência pode se transformar em um grande erro. Nem pirulito dá jeito no que não tem jeito.




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