Continente #025 - O desafio de viver da poesia

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EDITORIAL

O sucesso do repente

Ilustração: Efeito sobre foto de Fred Jordão / Imago

A imagem dos repentistas nordestinos como pessoas rústicas, que sobrevivem de trocados apurados nas feiras, é falsa e exótica. Pelo menos em relação àqueles profissionais da cantoria que alcançaram o reconhecimento público. Já há algum tempo, escreveu o poeta Jaci Bezerra, no Livro dos Repentes (1991): “Na verdade, nos dias que correm, os violeiros impõem-se e impõem sua arte. São merecidamente reconhecidos e valorizados. Muitos estudam em universidades, exercem militância política, possuem agendas de apresentação capazes de causar inveja a muito artista consagrado. Participam de programas de rádio e televisão. Gravam comerciais, discos, publicam livros”. E arremata: “Não cantam mais ‘em troca de cachaça’”. É sobre esse universo dos artistas que souberam se adaptar às mudanças sociais, em especial a urbanização acelerada no Brasil e no nordeste, e conseguem viver de sua veia poética, a reportagem de capa desta edição. Que traz, ainda, um vasto cardápio, inclusive entrevista exclusiva com a pesquisadora italiana Adriana Rossi, desvendando a geopolítica das drogas, em que ela denuncia o que chama “a farsa da guerra ao narcotráfico”: quanto mais se investem recursos financeiros e materiais no combate ao narcotráfico, mais aumenta o negócio ilegal, que já movimenta a soma de 600 bilhões de dólares, anualmente. É um círculo vicioso em que se misturam interesses de hegemonia política e de grupos econômicos, inépcia de governos, mazelas sociais e alianças complexas e espúrias entre guerrilha e narcotráfico.

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CONTEÚDO

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OS VIOLEIROS NORDESTINOS ENTRARAM EM SINTONIA COM OS NOVOS TEMPOS

» 36 PRAÇA DE CASA FORTE, COM A GRIFE BURLE MARX

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CAPA

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CONTEMPORANEIDADE 48 O mapa das drogas na América Latina

8 Como os repentistas vivem da poesia

60 Gregori condena o terrorismo e seu avesso »

TRADIÇÕES

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16 Cavalo-Marinho sobrevive »

AUTORES

68 Salão de Pernambuco inova nas propostas »

FOTOGRAFIA

20 A poesia juvenil de Marx e Engels 24 Os surrealistas latino-americanos »

28 Ponge em tradução comentada

SONS

BELAS ARTES

72 Imagens da Bênção de São Félix »

ESPETÁCULOS 76 Peça tenta reatar diálogo com o público »

32 Glauber Rocha versus Cordel do Fogo

CINEMA

» 35 A música ocidental e a entropia

82 Seres presos aos lugares onde vivem »

86 Um padre apaixonado por uma adolescente

PATRIMÔNIO

PRETO NO BRANCO

36 As marcas de Burle Marx no Recife

92 A relação entre Estado e cultura

44 Arquitetura brasileira do começo ao fim

94 Culturas virtuais e guerra global


CONTEÚDO

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» 68 SALÃO DE ARTE APONTA PARA TRÊS TEMPOS

» 48 UNIVERSO DAS DROGAS ENVOLVE COMPLEXAS RELAÇÕES

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AMARELO MANGA REVELA UMA CIDADE

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 7 Identidade cultural e desenvolvimento político

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 30 O país deve brilhar por inteiro

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 64 Pratos e gostos no Palácio da Alvorada

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar »

70 Arte de pintar se inventa na ação

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito »

80 João Cabral de Melo Neto e o teatro moderno

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira » 89 A víbora, João Goulart e a camisa de Getúlio

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Na verdade, todos são culpados

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Janeiro Ano 03 | 2003 Arte de capa por Iraildo de Oliveira

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes

Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista, professor universitário e crítico de cinema e teatro. É autor de Barreto Júnior, o rei da chanchada, editado pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2002. EDUARDO SUBIRATS, espanhol, é filósofo, autor, entre outras obras, de A penúltima visão do paraíso. Atualmente é professor da New York University

Editor Mário Hélio

EGAS MONIZ BANDEIRA, 17 anos, aluno do Kurfürst Friedrich Gymnasium, em Heidelberg (Alemanha), fala 6 línguas, inclusive o chinês, e ganhou com 14 anos o 1° lugar em concurso sobre a China promovido por uma fundação do Ministério da Educação da Alemanha.

Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo

JOSÉ MARIA ANDRADE é antropólogo, pesquisador associado da Universidade de Estrasburgo I, na França, e professor visitante em universidades brasileiras.

Projeto Gráfico Manoela Leão

JOSÉ TELES é jornalista, escritor, humorista e crítico de música. Autor do livro Do frevo ao manguebeat, Editora 34, São Paulo, 2000.

Arte Luiz Arrais, Hernanto Barbosa, Iraildo Oliveira e Zenival

JULIO LUDEMIR é jornalista e escritor. Autor do romance No coração do comando, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.

Editoração Eletrônica André Fellows

KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema do Jornal do Commercio (Recife) e videasta. Dirigiu o média-metragem Enjaulado e criou o site Cinemascópio. (www.cinemascopio.com.br).

Edição de Imagens Nélio Chiappetta

LUIZ CARLOS MONTEIRO é poeta e crítico literário. Autor de Poemas, Edições Bagaço, Recife, 1998. Tem livro inédito sobre o poeta Carlos Pena Filho.

Revisão Rodrigo Pinto

MARIANA CAMAROTTI é jornalista. Trabalha na editoria de Economia do Jornal do Commercio (Recife).

Secretária Tereza Veras

MARÍLIA RODRIGUES é jornalista e fotógrafa. Iniciou sua carreira em 2000 fazendo trabalhos de free lance para jornais e eventos.

Gerente Gráfico Samuel Mudo

RODRIGO PETRONIO é poeta e crítico literário. Autor de História natural (poemas), Editora Gargantua, São Paulo, 2001.

Gerente Comercial Alexandre Monteiro

ROSSINI CORRÊA é ensaísta, poeta e romancista. Pertence à Academia Brasiliense de Letras, à Academia Brasileira de Ciências da Religião e ao Instituto Ibero-Americano de Direito Público.

Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Cláudio Manuel, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Elizeu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra

SEBASTIÃO VILA NOVA é doutor em sociologia, músico, pesquisador e professor. É autor, entre outras obras, de Introdução à sociologia, Editora Atlas, São Paulo, 1999. TATIANA RESENDE é jornalista. Trabalha na Folha de Pernambuco.

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2551 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Editor: editor@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Foi editor do “Commercio Cultural”, do JC (Recife), da revista Pasárgada e colaborador do Jornal da Tarde (SP). CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor de UFRPE, ex-secretário adjunto do Tesouro Nacional e diretor geral da revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema sujo, Dentro da noite veloz, Muitas vozes, Cultura posta em questão, entre outros. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de diversos livros, entre eles A luta dos pracinhas e Tempo de contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”.

Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095

MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. Tem inédito livro sobre gastronomia pernambucana.

Apoio: Governo do Estado de Pernambuco

RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – uma história de poder.

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Parceiro de Zoca Madureira e Assis Lima em diversos espetáculos teatrais, publicou também o livro de contos As noites e os dias.


CARTAS Diversidade Gostei da revista do mês de outubro, assim como já gostara das anteriores. Uma delícia ler o texto do Affonso Romano de Sant’Anna sobre Drummond. Interessante, também, os artigos de José Castello e Geneton Moraes Neto. Gostei muito, ainda, da entrevista com Ariano Suassuna, no número anterior (setembro). Além do texto de Sebastião Uchoa Leite sobre Lewis Carrol fotógrafo, a matéria sobre Patativa do Assaré, a entrevista com Kátia Lund e Fernando Meireles, diretores do filme Cidade de Deus, e com Chico César. Enfim, uma rica e instigante diversidade. Betina Bischof – São Paulo – SP Melhor Escrevo para dizer que a revista Continente está, a cada mês, cada vez melhor. A que tem um artigo sobre o belo livro do Pedro Vasquez (“O cartão-postal como expressão de uma época”, edição de novembro) está ótima. Parabéns pelo excelente trabalho que estão fazendo aí em Pernambuco. Antônio Agenor de Melo Barbosa – Rio de Janeiro – RJ Turismo Meus parabéns pela edição da Continente Turismo que tem como título geral “Recife e Olinda para visitantes”. Além de mostrar os aspectos que as revistas de turismo sempre apresentam – praias, monumentos, pontos tradicionais –, traz também indicações do cinema e do restaurante mais antigos, onde se toma o melhor maltado da cidade, enfim, detalhes da cidade que só os mais íntimos moradores conhecem. José R. Teixeira – Belo Horizonte – MG

Bom gosto Manifesto aqui o meu gozo por encontrar uma revista que por muito tempo procurava e que fosse capaz de oferecer-me uma leitura refinada e de bom gosto. Kleber dos Santos Lima – por e-mail Arte Matéria interessantíssima a “Dantas Suassuna e os fragmentos do percurso” (edição de novembro). Adoro arte. Parabéns. Ayrone Martins – Recife – PE Assinante Antes de mais nada, parabéns a Marcelo Maciel e ao corpo editorial pela revista Continente. Sou assinante desde o número zero e encaderno a coleção. Bruno de Moraes Lisboa – Recife – PE Profundidade Tomei conhecimento da revista Continente Multicultural, onde a dra. Sônia Van Dijck fez publicar texto-comentário sobre meu livro 19 poemas da prisão e um canto da terra, o que, aliás, agradou-me muito pela profundidade no trato com os temas. Vanderley Caixe – Ribeirão Preto – SP Genial Acabei de ler na edição de dezembro o artigo “Bem kitsch, bem cafona”, de Alberto da Cunha Melo, esse poeta lúcido e genial. Sou professora de Língua Portuguesa e uma apaixonada pela palavra. Entretanto, a cultura de massa vai degradando a linguagem, retirando-lhe o símbolo. Até as escolas estão afastando-se da poesia e mergulhando em interpretações de textos puramente informativos. Este é o mal do mundo hoje: oferece-nos o kitsch em vez da metáfora. A todos os que fazem essa genial revista, a qual nos emociona a cada página pelo conteúdo, pela forma, pelo projeto editorial, parabéns! Venusa Sá Leitão – Recife – PE Vontade A revista Continente Multicultural é a prova mais clara de que se pode fazer muita coisa em nível de cultura. Basta ter vontade e que haja decisão política. Maria Helena Barcellos – Recife – PE Excelente A Continente Multicultural é excelente e tem colaboradores de primeira linha. Dá de dez a zero em outras revistas culturais. Hosana Cardoso Tavares – Recife – PE

Coleção Oi! Gostaria de parabenizar a revista. É de muitíssimo bom gosto, bonita, inteligente e divertida. Coleciono desde a número zero, com todos os especiais e suplementos. Juliana Pedrosa – por e-mail

Valor Gostei muito da matéria “Cem anos de indignação” (edição de novembro), sobre Os sertões. É o tipo de coisa que eleva o valor e o conteúdo da revista Continente Multicultural. Também achei interessante terem publicado a foto de Euclides da Cunha aos dez anos de idade. Francisco Luiz Pereira – Vitória – ES

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2551 – 81 3222-4130 fone/fax História Gosto muito de história e filosofia e tenho apreciado o jornalismo histórico exercido nesta revista, apesar de achar que poderia ser mais científico. Sugiro matérias sobre a cultura cinematográfica do Nordeste e a cultura do cangaço. Carlos Alberto de Mello – Recife – PE Atemporal Dois dos motivos que me fazem gostar tanto da Continente são: primeiro, a profundidade e extensão dadas aos temas principais, às vezes abordando-os de diversas angulações; segundo, a publicação de ensaios sobre temas atemporais. Isso diferencia a revista das outras, evitando que se torne datada e descartável. Ao contrário, é uma revista atemporal, para se ler, guardar, reler, consultar. Isto sim é que é revista! Vale o dinheiro empregado. Jacques Vasconcelos – Fortaleza – CE África 1 Gostei imensamente da Continente Documento sobre a África. Primeiro porque, além de abordar de forma criativa temas já batidos como a relação entre a religião e música africanas e brasileiras, mostra que a África não é só savana e girafa, mas um continente múltiplo. Depois, porque traz artigos muito instrutivos sobre a literatura moçambicana e sobre o poeta negro pernambucano Solano Trindade. Jerônimo de Amaral – Rio de Janeiro – RJ África 2 Queria registrar meu interesse pela matéria “O vício da África”, publicada na edição de novembro da revista Continente Multicultural, na qual é entrevistado o diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva. Interessantíssima a revelação de que o branco europeu fedia por não ter o hábito do banho diário, hábito este que é uma invenção africana e americana. É por matérias como esta que a Continente se destaca no meio das revistas culturais brasileiras. Moacir de Assis Valente – Brasília – DF Errata Na revista Continente Turismo nº 2, de dezembro de 2002, na matéria sobre a presença estrangeira no Recife, no lugar de João Luiz Janot deveria estar José Luiz Janot.

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CONTRAPONTO

Em busca da cultura do desenvolvimento O êxito de uma nação não só depende da cultura mas da forma de pensar de seus líderes Uma nação é, essencialmente, seu povo. Um povo é, fundamentalmente, sua cultura. Nos matizes da formação da cultura brasileira, uma soma de muitas identidades isoladas. Raízes indígenas, africanas, européias e, mais recentemente, árabes e asiáticas. Todas elas formam a identidade de um só povo. Muitas faces, muitas cores, muitas histórias, reunidas numa só alma: a alma brasileira. Com efeito, essa enorme capacidade de assimilação cultural fez com que, apesar de sermos uma sociedade desigual, segregadora e injusta, nos tornássemos uma nação culturalmente rica. Uma sociedade excludente com uma cultura includente. Uma nação com nítidos avanços democráticos, atropelada pela realidade do mundo globalizado, cujo êxito não só depende da cultura, mas também, e fundamentalmente, da forma de ser e pensar de seus líderes. Diante dos perigos da imposição globalizada de um só modelo cultural, com propostas de massificação, de uniformização das expressões artísticas, o que surge, reforçada e espontânea, é a reafirmação das identidades culturais dos povos. Seja isso para permanecer no atraso, seja para ingressar num novo vácuo de desenvolvimento. A propósito, alguns pesquisadores defendem que os valores culturais são o principal fator de progresso material que definirá a performance social e política de uma nação. Todavia, isso está a depender dos modelos conceituais a serem adotados e da consciência de que as visões de mundo que nos orientaram no passado são insuficientes para explicar o presente e antecipar o futuro. Independentemente daquilo que queiramos, a cultura precisa mudar para abrigar a economia global. A questão básica é saber em que medida as pessoas terão de mudar seu legado cultural para participar de modo mais significativo da economia global. E, aí, o desafio é identificar como estimular as mudanças necessárias para criar padrões de vida consistentemente melhores no mundo em desenvolvimento, preservando nossos traços culturais. Ilustração: Zenival

O progresso econômico depende das mudanças na forma de pensar das pessoas sobre o processo de geração de riquezas. Isso significa mudar as atitudes, crenças e suposições subjacentes que guiam as decisões tomadas pelos líderes. Significa eliminar quaisquer idiossincrasias em relação ao conhecimento e ao mundo globalizado. É preciso ter consciência de que a relação positiva entre modelos mentais e prosperidade não força necessariamente nenhuma nação a uma homogeneização de sua cultura. Mas, mudar modelos mentais será um importante avanço que ajudará os novos líderes a criar países mais competitivos na economia global. A verdade defendida pelos conservadores é que a cultura, e não a política, determina o êxito de uma sociedade. A verdade aceita pelos liberais é que a política pode mudar a cultura e salvála de si mesma. Independentemente da dicotomia dessas visões, o fundamental é que elas são complementares. A cultura é o bem essencial que precisamos manter para agir com eficácia em nosso ambiente. As nossas elites não podem continuar a negar aos pobres a oportunidade de aprender padrões de comportamento fundamentais para a sobrevivência na sociedade emergente. Aliás, é bom lembrar que os êxitos dos tigres asiáticos foram produzidos pelo acesso ao sistema econômico mundial, e não por evoluções internas e autônomas. A mudança foi exógena e não endógena, como aparenta ser. O resto, a cultura fez. Nesse sentido, as virtuais boas impressões do novo governo do Brasil estão muito mais relacionadas a sua compreensão e assimilação de conceitos externos e à virtual mudança de modelos mentais do que às práticas de cultura política defendidas e praticadas pelo Partido dos Trabalhadores durante as suas duas décadas de existência. Conclusão: a cultura condiciona o desenvolvimento, mas a condicionante mais importante é a maneira de pensar dos líderes sobre a criação da riqueza. Assim, para que se tenha êxito nesse mundo novo é fundamental que se preserve a cultura, mas se mudem os modelos mentais. Continente . janeiro, 03


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CAPA

Homero Fonseca

Os profissionais da poesia Como os repentistas nordestinos se adaptaram às mudanças sociais das últimas décadas e sobrevivem unicamente de sua veia poética

Oliveira de Panelas e Ivanildo Vila Nova: poetas respeitáveis e respeitados

Fotos: Hans Manteufell / Breno Laprovitera


CAPA

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Esta palavra saudade Conheço desde criança Saudade de amor ausente Não é saudade, é lembrança Saudade só é saudade Quando morre a esperança. Pinto do Monteiro (1889-1990)

Eles são, provavelmente, os únicos poetas no Brasil a viver exclusivamente de sua poesia. A observação é do sociólogo e poeta Alberto da Cunha Melo e referese aos repentistas nordestinos – também conhecidos como cantadores ou violeiros –, que alcançaram o status de verdadeiros astros da poesia popular. A imagem do repentista como um analfabeto genial, um roceiro ingênuo e boêmio capaz de cantar a noite inteira por uns trocados, um lídimo representante da pureza do povo, é falsa, paternalista e exótica. O repentista é um profissional respeitável e respeitado, como faz questão de enfatizar Ivanildo Vila Nova, o mais famoso violeiro da atualidade, um dos responsáveis pela profissionalização da cantoria. Ele próprio é um bom exemplo: às vésperas de completar 40 anos de carreira, pode ser classificado como bem-sucedido, por qualquer parâmetro. Mora num confortável apartamento de classe média na praia de Piedade, vizinha ao Recife; tem agenda de apresentações para o ano inteiro, sob contrato prévio; tira férias por conta própria, religiosamente, todo mês de fevereiro; e anda matutando um “plano mirabolante” – a realização de um festival internacional de poesia improvisada, reunindo gente como os desgarrados de Portugal, os pleneros de Porto Rico, trovadores e repentistas da França, Cuba, Angola e Senegal. Filho de cantador, Ivanildo, 57 anos, também escreve folhetos e faz glosas (declamação de poemas improvisados sobre temas ou motes dados pelos ouvintes) como o pai, José Faustino Vila Nova. Como muitos cantadores da geração atual, começou ainda garoto, ganhou o mundo, cantou na Europa, Cuba e Estados Unidos. E igualmente teve a educação formal atrapalhada pelo nomadismo, mas, como vários colegas, concluiu o secundário prestando exames supletivos e passou no vestibular do

Todo passarinho canta Quando vem rompendo a aurora Só a pobre mãe-da-lua Quando canta logo chora... Assim eu faço também Quando meu bem vai se embora. Cego Aderaldo (1878-1967)

curso de Direito, abandonado por falta de tempo. (Existem, hoje, muitos cantadores com curso universitário, e até pós-graduados, como Sebastião Dias, com mestrado em História.) A mudança no mundo da poesia popular nordestina aconteceu em meados da década de 70, conforme assinalam os pesquisados Ésio Rafael e Wilson Freire, autores do livro Mourão da cantoria de viola, a ser lançado este ano. Foi quando os festivais, congressos e encontros, geralmente co-patrocinados pelo poder público, passaram a ser promovidos nas capitais e cidades grandes do Nordeste, reunindo, em praça pública ou teatros, multidões de duas, três, cinco mil pessoas. Os poetas passaram a receber cachês decentes – em alguns casos, de R$ 1.200,00 por apresentação – e seu público tornou-se predominantemente urbano. Eles gravam discos, lançam livros, fazem campanhas educativas e publicitárias, não dispensam cartões de visita nem o telefone celular. Hoje, há festivais durante todo o ano em cidades de vários estados, garantindo um mercado seguro para dezenas de repentistas – a elite dos poetas, é verdade. A maioria está fora desse circuito, por falta de oportunidade ou talento, como, aliás, acontece em toda profissão, como observam os próprios Ésio e Wilson, exemplificando com o caso dos jogadores de futebol. É comum os turistas depararem, nas praias e bares de capitais nordestinas, com violeiros dispostos a receber uns caraminguás em troca de versos elogiosos. São falsos poetas ou gente que ainda não alcançou um padrão para enfrentar o mundo competitivo dos torneios. Estima-se que exista um milhar de cantadores espalhados pela região, mas poucos são os escolhidos para figurar no panteão da glória. Tal como, entre milhares de futebolistas profissionais no país, somente um punhado tem chances de integrar a seleção brasileira. O que os dois pesquisadores lamentam é uma certa descaracterização da cantoria, a partir do momento em que o pé-deparede foi substituído pelas competições. Pé-de-parede era a cantoria feita em sítios, fazendolas, botecos de Continente . janeiro, 03 pequenas ci-


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10 CAPA

Vocês que estão no palácio Venham ouvir meu pobre pinho Não tem o cheiro do vinho Das uvas frescas do Lácio Mas tem a cor de Inácio Da Serra da Catingueira Um cantador de primeira Que não freqüentou escola Venham ouvir minha viola Puramente brasileira. Ivanildo Vila Nova (1945)

A política brasileira Está bastante precária Ninguém paga a dívida externa Com reforma tributária Sai ministro, entra ministro Ninguém faz reforma agrária. Mocinha de Passira (1948) Continente . janeiro, 03

dades, onde os cantadores se apresentavam sem pagamento fixo, ganhando o que os assistentes depositavam espontaneamente na bandeja ou chapéu. Com a espetacularização dos shows de viola nas grandes cidades e em grandes recintos, quebrou-se a cumplicidade entre poeta e platéia, os motes tornaram-se estereotipados para atender ao gosto do público urbano, a poesia engessou-se – na opinião de Ésio e Wilson, que reconhecem, entretanto, a inevitabilidade do processo. Com efeito, a temática dos cantadores tem se urbanizado cada vez mais, abordando com bastante ênfase questões da atualidade nacional e até internacional. Ao mesmo tempo, como a origem dessas platéias urbanas é, em grande parte, rural, e como a própria essência da poesia improvisada, conforme seus exegetas, vem de uma veia telúrica, continua-se a cantar a paisagem sertaneja, os mitos, os valores antigos, a nostalgia de um mundo arcaico. Mas essa ambigüidade às vezes produz cenas insólitas, como a registrada no Congresso de Cantadores ocorrido no Teatro do Parque, Recife, em 1º de novembro passado, quando o locutor, ao apresentar uma dupla de aboiadores, estimulou o público a “fazer de conta que aqui tem mato, bode, galinha...” Ivanildo Vila Nova, entretanto, vê com naturalidade tais mudanças, resultado inexorável das modificações na própria estrutura social – a urbanização, a tecnologia, a elevação do nível cultural da população: “As feiras perderam força para os supermercados; a França mítica de João de Calais está a poucas horas de avião; o cantador trocou os pés pelo jipe, pelo metrô; o caderno e o lápis deram lugar ao computador e ao e-mail; o povo saiu dos sítios e veio morar nas cidades e nós, artistas, viemos para onde o povo está”. Para ele, este é inclusive o segredo da sobrevivência da viola: a capacidade de adaptar-se aos novos tempos. Outro grande nome da poesia cantada nordestina é Oliveira de Panelas, 56 anos, morador de um casarão de dois pavimentos (“Tem muito verso embutido nessas paredes”), em meio a um sítio onde não faltam jaqueira, abacateiro, goiabeira, no bairro de Cristo Redentor, em João Pessoa. Oliveira, parceiro de Vila Nova em alguns desafios eletrizantes, conhecido como “o Pavarotti do Sertão” por sua potente voz de tenor, 10 livros de poesia e prosa publicados, 10 discos gravados (incluindo coletâneas de cantadores), também ganhador de centenas de troféus, está envolvido, no momento, com o projeto de escrever, em versos, a história dos irmãos maristas no Nordeste por encomenda da congregação religiosa, e com o lançamento, para breve, de uma home page na Internet sobre seu trabalho. Autodidata, Oliveira é um leitor voraz, gosta de um vocabulário rebus-


CAPA 11 » cado e cita com facilidade nomes como Shakespeare, Confúcio, Gibran Kalil Gibran. Artista múltiplo, tem feito apresentações solo, cantando músicas românticas, e atua eventualmente como mestre-de-cerimônias em shows de outros cantadores. Acaba de gravar 24 programas educativos do Sebrae para divulgação em emissoras de rádio e trabalha nos originais de mais uma meia dúzia de livros. Oliveira, filho de pequenos agricultores do agreste pernambucano, viveu em São Paulo na década de 70 durante cinco anos, dois dos quais sobrevivendo como pedreiro e cantador de fim de semana. De volta ao Nordeste, formou uma dupla vitoriosa com Otacílio Batista, cantador famoso, de uma estirpe legendária de poetas de onde saíram ainda Lourival e Dimas Batista. Como outros cantadores, Oliveira também fatura uns bons trocados nas campanhas políticas, com uma ressalva, a mesma dos colegas: “Só faço para os políticos em cuja proposta acredito”. Aliás, a politização das cantorias é crescente, talvez pelo fenômeno da urbanização já mencionado. Cada vez mais elas expõem opiniões críticas sobre governo, estrutura social, injustiças – temas hoje tão freqüentes nos festivais quanto saudade, amor, religião e heroísmo. Na própria casa de Oliveira de Panelas, a fachada ainda ostentava, até recentemente, a faixa “Agora é Lula”. Já Ivanildo, com uma história política de perseguições durante a ditadura militar, embora sem abrir mão de seus princípios, não se furta a criticar em versos: “Não conheço esquerdista que não mude, quando pega nas rédeas do poder”. Tanto Oliveira quanto Ivanildo, que já se apresentaram no Lincoln Center, em Nova Iorque, enxergam uma retomada da cantoria espontânea, o pé-de-parede, em novos moldes, entretanto. Ivanildo, em 2001, participou de seis cantorias desse tipo, mas, em 2002, esse número passou de 20. Esse ref luxo seria resultado do próprio sucesso dos grandes festivais e encontros, que revalorizaram a poesia cantada, aumentando a demanda pelas pelejas diante de pequenas platéias fervorosas. Mas com uma diferença: a retribuição dos cantadores agora é acertada previamente, não ficando dependente da disposição ou dos recursos dos ouvintes. Quem paga tudo? Os “promoventes” e “apologistas”, claro, que são uma espécie de mecenas a acompanhar, apoiar e promover seus ídolos, numa dedicação quase religiosa. E entre esses ídolos estão nomes que circulam por todo o Brasil, onde houver um admirador da inteligência, da cultura, da verve, da veia poética e da capacidade de improvisar de poetas como João Paraibano, Sebastião Dias, Valdir Teles, Geraldo Amâncio, Severino Feitosa e tantos outros, cujos nomes somam-se aos legendários Pinto do Monteiro, Lourival Batista, Antônio Marinho ou Inácio da Catingueira – os grandes mestres do passado.

Do gosto para o desgosto O quadro é bem diferente Ser moço é ser sol nascente Ser velho é ser um sol posto Pelas rugas do meu rosto O que fui, hoje não sou Ontem estive, hoje não estou Que o sol ao nascer fulgura Mas ao se pôr deixa escura A parte que iluminou. Lourival Batista (1915-1992)

Quando a dor se aproxima Fazendo eu perder a calma Passo uma esponja de rima Nos ferimentos da alma. Jó Patriota (1929-1992) Continente . dezembro, Continente . janeiro, 02 03


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12 CAPA

São Paulo, capital do repente Com quase dois milhões de nordestinos, a cidade de São Paulo é um dos principais mercados para os violeiros repentistas Nas emissoras de rádio, especialmente na Atual AM e na Capital, existem programas onde se ouve a voz dos cantadores, com sua inf lexão característica. Nas lojas de discos populares, proliferam os CDs de nomes consagrados da viola. Em bares e restaurantes, existem apresentações f ixas de nomes como Sebastião Marinho, um paraibano emigrado há 26 anos, presidente da Ucran – União dos Cantadores, Repentistas e Apologistas Nordestinos. E, desde 1997, a fórmula das competições impôs-se com força total – naquele ano, numa promoção da Umes (União Municipal dos Estudantes Secundaristas), realizou-se, no Memorial da América Latina, com ampla repercussão, inclusive na mídia, o 1º Campeonato Brasileiro de Repentistas, vencido pelo pernambucano Oliveira de Panelas. Outra competição foi realizada em 1999, atraindo poetas de todo o Brasil, inclusive os mais famosos residentes no Nordeste, como, além de Oliveira, Ivanildo Vila Nova, Louro Branco, Diniz Vitorino, João Furiba, Valdir Teles, Daudeth Bandeira, Raimundo Nonato e Nonato Costa. A Ucran estima haver cerca de mil violeiros nordestinos na capital paulista, duzentos dos quais associados à entidade. Reproduzindo o modelo em vi-

gor no Nordeste, apenas os nomes consagrados conseguem viver da poesia, especialmente dos torneios e apresentações em rádios, TVs ou campanhas publicitárias. Muitos se apresentam nas ruas – espaço desprestigiado – ou em cantorias pé-de-parede, promovidas por famílias nordestinas ou donos de estabelecimentos comerciais – em grande parte com acerto prévio, como no Nordeste, sem contudo abandonar a bandeja de contribuições dos ouvintes. Esse universo foi objeto de dissertação de mestrado no curso de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas, pelo pesquisador Gustavo Magalhães Lopes. Depois de apontar o início da presença de violeiros em São Paulo em meados do século passado, quando ocorreu o “bo om” da migração nordestina, Gustavo cita Sebastião Marinho, da Ucran, para quem, “hoje, São Paulo é um dos maiores centros da cantoria nordestina. Está melhor que no Nordeste”. Ele constatou que, mesmo trabalhando intensamente no Nordeste, muitos dos famosos poetas, residentes naquela região, visitam São Paulo constantemente. Entretanto, aponta Gustavo em sua dissertação: “Apenas parte dos indivíduos mais velhos costuma manter contato assíduo com o repente; na maioria das vezes, seus f ilhos ‘paulistas’ não demonstram nenhum interesse pelos cantadores. Ou seja, a identidade cultural dos seus descendentes estaria bastante diluída em meio às referências metropolitanas. Desta forma, não existe uma comunidade tão fortemente constituída e inter-relacionada que possibilitaria o surgimento de novas gerações de violeiros”. Então, indaga o pesquisador: “O f im do repente em São Paulo estaria próximo? Provavelmente, ainda não. No Nordeste, a hegemonia monopolizadora dos repentistas mais consagrados implica um processo de exclusão prof issional de novos nomes ainda em fase de aprimoramento. A f im de levar adiante sua prof issionalização, muitos jovens poetas saem de suas pequenas cidades em direção aos grandes centros urbanos nordestinos dominados pelo grupo de elite, na tentativa de conseguir algum espaço. Assim, São Paulo (e outras capitais, como Brasília e o Rio de Janeiro) continua a ser uma boa opção de trabalho poético para jovens cantadores desconhecidos”.


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Repentistas em cantorias Este continente poético fantástico abriga doutores e analfabetos, nele convivendo pacificamente literaturas orais e escritas Lembro que, nos anos oitenta, senti uma certa dificuldade de traduzir e explicar a alguém o fenômeno dos repentistas. Hospedava um colega, pesquisador, holandês, e em vez de explicá-lo o que era o repente, levei-o para um festival de violeiros no Recife, sem adverti-lo, portanto, do que ele iria descobrir. Pretendia assim que ele visse a própria coisa sem primeiro conhecer seus nomes – violeiros, cantadores, repentistas, trovadores... Eu deixava, pois, que meu amigo gringo fosse descobrindo aos poucos, e por ele mesmo, esse excepcional fenômeno artístico nordestino. Para meu amigo, foi um alumbramento, um verdadeiro trouvaille. Alguns pesquisadores estrangeiros parece que tentam redescobrir na poesia nordestina atual uma oralidade pura, primordial ou anterior a todas as escritas, inclusive lamentando que os poetas tradicionais defendam o acesso à escolaridade e cantem ciência e tecnologia. A depender dos termos dicionarizados, a palavra moderna repentista – de 1858, segundo o Houaiss Eletrônico –, substantivo como adjetivo, diz melhor do que seus sinônimos locais (violeiro, cantador) sobre essa arte poética medieval (provençal do séc. 12) e ibérica (galego-portuguesa do séc. 15) do improviso, que se fez nordestina e brasileira. O termo violeiro vem se generalizando pelo Brasil afora, significando mais do que cantador de viola nordestino, podendo confundir-se às vezes com cantores de músicas sertanejas, de músicas caipiras, com tocadores de violas diversas, além de seus respectivos fabricantes. No século 19, os sertões de Pernambuco e Paraíba se faziam útero de um (re)nascer dos poetas repentistas. No novo mundo, finalmente, novas condições de vida foram oferecidas, pelo ciclo do gado, à civilização sertaneja nascente. A autonomia e o ócio criativo dos vaqueiros, sua lírica e paixão foram lembrados pelo cantor e criador de bodes Elomar Figueira Melo, “sertaneso”, que canta: “Amor, viola e forria... dispois de ter cantado o dia inteiro/O rei me disse fica, eu disse não”. Ainda hoje, cumprindo um destino errante, chegam até as beiras de praias vaqueiros sertanejos sedentos de novos horizontes de vida, mas sonhando em sobreviver do velho roçado da poesia, neste mercado globalizado. As cantorias transmitidas por estações de rádio favorecem ou multiplicam os convites para novas cantorias nos sítios, fazendas, povoados, vilas e cidades. Os festivais de violeiros favorecem uma certa legitimidade à profissão de repentista, exercida também por uma nova geração de poetas eruditos, escolarizados e com diplomas universitários. As organizações dos próprios repentistas tentam manter esse fantástico mercado brasileiro do lúdico, gratuito e criativo. A criatividade define e redefine a poesia repentista, pois seus gêneros se multiplicam pelo Nordeste afora. Antes existiam os gêneros da quadra, sextilha, sete (linhas) pés; hoje são moirões,

décima ou martelos e galopes, parcela, quadrões, gabinete, toada alagoana, meia quadra, dez pés de queixo caído, gemedeira, ligeira. A poesia nordestina tem uma vocação cultural sublime para aquém e para além das escritas ou das escrituras. Neste continente poético fantástico podem conviver até doutores e analfabetos, convivendo pacificamente literaturas orais e escritas. Como nas cantorias nas rodas de folheto, os analfabetos ouviam e decoravam poemas antológicos, cantados quase em “recto tono”, rompendo-se dessa maneira as barreiras do alfabeto. Mas onde estão hoje os folheteiros e seus folhetos? Onde estão os folheteiros que vendiam seus textos cantando-os nas feiras? Meu primo cordelista, Marcos Aurélio, diz que atualmente 80% dos alfabetizandos da construção civil em João Pessoa – Projeto Zé Peão – não ouviram falar de cordel. Mesmo assim, analfabetos e mestres lutam juntos pelas letras e pelos números – contando histórias e recontando valores e valores.

Para saber mais: Revista Continente Documento – a poesia popular do Nordeste – Recife, janeiro de 2003 Um certo Louro do Pajeú – Alberto da Cunha Melo – EDUFRN, Natal, 2001 Livro dos repentes – Organizadores: Jaci Bezerra e Ésio Rafael – Fundarpe, Recife, 1991 Antologia ilustrada dos cantadores – Francisco Linhares e Otacílio Batista – Imprensa Universitária do Ceará, Fortaleza, 1976

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14 CAPA Maria Alice Amorim

Crânio

de

safira

As histórias de Francisco Sales Arêda Aquela figura imponente, recostada num muro, sobre o alto de uma calçada, chapéu de massa, portando um cajado à moda dos sábios, não imaginava que era ele o motivo daquela visita inesperada, no meio da tarde de um sábado, véspera de eleição presidencial. Após percorrer a feira de Caruaru, especulando o endereço entre raizeiros e poetas que o conheciam, foi a dica dos filhos do falecido cordelista Olegário Fernandes que facilitou o reencontro. Parecia um profeta, abstraído das vaidades terrenas, recém-chegado do recolhimento de um deserto, 86 anos bem experimentados em cantoria de viola, cordel, venda de casca de pau, lambe-lambe e, sobretudo, na total intimidade com as musas, desfilando por quadra, sextilha, septilha e décimas. “Ele é tão grande quanto os maiores. Tenho uma admi-

ração enorme pela obra dele.” É o imortal Ariano Suassuna quem avalia, comparando o poeta aos clássicos Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde, e fazendo questão de frisar que a única diferença é que Francisco Sales Arêda é um clássico que teve a sorte de conhecer. “Tenho especial admiração e predileção pelo folheto O homem da vaca e o poder da fortuna, em que me baseei para escrever A farsa da boa preguiça.” Aliás, esse cordel, com Os três irmãos caçadores e o macaco da montanha e o livro de época A pranteada morte de Getúlio Vargas, está, conforme Arêda, entre os que mais saíam, quando andava pelas feiras, cantando e vendendo os próprios trabalhos. “Filho de pais pobres, submetido ao grau diminutivo pela vida afora”, segundo ele próprio declarou, iniciou-se na poesia aos 15 anos, escrevendo: “Moço bêbado forçado/por ordens de Satanás/transformou-se um insolente/sem ter o que fazer mais/ espancou sua irmãzinha/e assassinou os seus pais.” Chico Sales é a forma carinhosa com que os amigos e poetas o tratam – Dila, José Severino Cristóvão, Manuel

Quirino, Olegário Fernandes, J. Borges tiveram o privilégio de conviver com o “crânio de safira”, durante algum momento na vida do artista popular que credita ao sobrenome exótico ascendência paterna francesa. Nas andanças pelos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, Dimas e Lourival Batista, Zé Vicente da Paraíba, Pinto do Monteiro, José Soares do Nascimento foram companheiros no baião de viola de quem passou 14 anos cantando desafio, apenas três meses na escola (“unicamente”, conforme o próprio poeta) e sempre demonstrou, nos versos escritos ou cantados, o domínio completo da métrica, rima e metáfora. Além da extraordinária capacidade de fabulação, da riqueza vocabular, do esmero na construção da narrativa, da rima e metro impecáveis, a construção da poética, em Arêda, suplanta o apuro formal e temático. Portanto, não é tarefa difícil compará-lo aos grandes nomes da literatura de cordel, sobretudo pela visível qualidade da produção poética. O ciclo do maravilhoso, das histórias de encantamento, perpassa significativa parcela dos folhetos produzidos pelo poeta – que também demonstra um gosto pelo humor refinado, aforismos e metapoesia. A garça branca do bosque e o gênio mal-assombrado, Os três irmãos caçadores e o macaco da montanha, O romance de João Besta com a jia da lagoa são apenas alguns títulos das histórias maravilhosas que criou, reunindo personagens fantásticos, reinos misteriosos, príncipe e lagoa encantados, ilha de diamantes, bosque malassombrado. A personagens da raça de anti-heróis, como João Grilo, dedicou As aventuras do amarelo João Cinzeiro Papa-Onça e As presepadas de Pedro Malazarte. Escreveu, também, uns títulos dedicados a profecia, Frei Damião, política e peleja fictícia. Pelas contas do poeta, para quem “poesia é como um sonho, e não é nem toda hora que a gente tem ela”, as musas foram muito generosas: calcula ter publicado cerca de 380 histórias de cordel. Isso, sem considerar os 14 anos de cantoria, de 1940 a 1954! Foto: Maria Alice Amorim

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CONVERSA 15 Âť

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Foto: Antonio Augusto / Ediouro

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16 TRADIÇÕES Mariana Camarotti

Desejos de Catirina O Cavalo-Marinho atravessou os séculos contando a história do boi que morre e torna a viver

Dissidência do Bumba-Meu-Boi, o Cavalo-Marinho tem personagens, indumentárias e músicas próprias

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Como se estivesse em um universo paralelo e lúdico, alheio ao surto de modernidade e urbanização, o Cavalo-Marinho sobrevive como uma das principais expressões folclóricas do povo nordestino. O folguedo, nascido ainda na época do Brasil-Colônia, atravessou os séculos enraizado na cultura da Zona da Mata, de parte do Agreste e das periferias metropolitanas. Após ensaios, que geralmente começam em setembro, e apresentações nos autos de Natal, o Cavalo-Marinho tem sua grande noite em 6 de janeiro – quando o interior do Nordeste comemora a Festa de Reis. Embora a quantidade e o nome das personagens variem de uma localidade para outra, o folguedo conserva como figuras centrais o Cavalo-Marinho, o Bumba-Meu-Boi, o Mateus e a Catirina. São eles os papéis mais importan-

tes, que despertam a maior atenção dos espectadores. A estória do boi que é morto e ressuscita no final é contada através de loas, anedotas, diálogos e danças. Em diversas passagens, o público é convidado a participar, completando loas, tentando adivinhar piadas, marcando passos ou dando algum dinheiro aos que se apresentam. Embora o enredo também varie de acordo com o local, Mateus e Catirina são sempre os protagonistas da estória. Uma das versões existentes é a em que Catirina, que está grávida, tem desejo de comer a língua de um dos melhores bois da região. O animal é morto para que a língua seja, então, comida. Como arrependimento da maldade, são chamados o Doutor e seu ajudante para que o boi seja ressuscitado. Foto: Hans Manteufell


TRADIÇÕES 17 »

Em outra, Catirina, grávida, ao passar pela porteira da fazenda e lá ver pendurada a cabeça empalhada de um boi, tem o desejo de comer sua língua. Para que o gosto na mulher seja satisfeito, o animal é ressuscitado. Outra variante é a em que dois ladrões roubam o melhor boi de uma propriedade e, depois, tentam vendê-lo ao dono, importante fazendeiro da região. Enganado, ele compra o animal e dele faz um churrasco, mas depois descobre que aquele era o seu mais querido animal. A polícia é chamada para prender os trambiqueiros e a festa se desenrola até que o boi torne a viver. No livro Espetáculos populares de Pernambuco, de Carlos Fonte Filho, está dito que a expressão Bumba-Meu-Boi viria do canto “Eh, boi, eh, bumba”, aboio feito por vaqueiros para conduzir o gado até o pasto. Como a festa é acompanhada pelas pancadas de zabumba, a origem estaria em dizer: “Zabumba, meu boi!”. No mesmo livro, Carlos Fonte Filho explica que o Cavalo-Marinho é uma dissidência do Bumba-Meu-Boi, um outro folguedo típico do Norte e Nordeste brasileiros. Porém, as duas apresentações têm personagens, música, indumentárias, enredo e diálogo próprios. Nos séculos passados, durante os ciclos da cana-deaçúcar e do gado, a apresentação era encomendada pelos senhores de engenho ou donos de fazendas que queriam animar sua casa. Hoje, é encenada em ruas e praças. Todo o espetáculo, por assim chamar, é acompanhado por uma música que lhe é bastante peculiar, instrumentada por rabeca, ganFoto: Leo Caldas/Titular

zá, bajé e pandeiro. “A essência da música criada pela união desses instrumentos remete à música árabe, que inf luenciou a Península Ibérica e foi trazida pelos portugueses ao Brasil”, conta Mestre Salustiano, um dos grandes conhecedores da cultura popular nordestina. Mestre Salu, em seu espaço Casa da Rabeca do Brasil, em Olinda, Pernambuco, mantém a apresentação do Cavalo-Marinho no último sábado de cada mês. A festa vara a noite, atraindo populares e curiosos. O palco do Cavalo-Marinho é, tradicionalmente, o chão batido, e, como nos teatros da Antiguidade, os espectadores se acomodam ao redor. “Boa-noite, meus senhores, boa-noite, dono da casa”, diz o Cavalo-Marinho, pedindo licença para iniciar a brincadeira e comandar a apresentação das demais personagens. Vestindo uma espécie de burrica com cabeça de cavalo, que dá a idéia de que ele está montado, o comandante leva um quepe na cabeça e veste uma roupa adornada com espelhos e fitas – símbolos de poder e autoridade. Todos os outros integrantes têm em comum a máscara ou a pintura carregada nos rostos, para que possam ficar bem caracterizados. As vestimentas, com saiotes e casacas, são confeccionadas com chitas e enfeitadas com fitas, rendas e lantejoulas. O Cavalo-Marinho é, curiosamente, uma brincadeira restrita aos homens, mesmo na encenação das personagens femininas. Às mulheres cabe apenas ajudar na elaboração das fantasias ou ocupar lugares na platéia. O Alto do Moura, próximo a Caruaru, no agreste pernambucano, foi palco de apresen-

As vestimentas são confeccionadas com chita enfeitada por espelhos, fitas e lantejoulas

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18 TRADIÇÕES

O comandante usa quepe, símbolo de poder e autoridade

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tações por mais de duas décadas. Lá, o artesão Manoel Eudócio ainda hoje guarda na memória os anos de 1940 a 1965, quando ele integrava o folguedo que se apresentava no local. Embora distantes, aqueles tempos são tão vivos em suas lembranças que ele materializa em bonecos de barro cada uma das personagens do Cavalo-Marinho. As peças, vendidas para várias partes do mundo, são cheias de detalhes nas vestimentas, máscaras, adereços, expressões faciais e trejeitos do corpo. Eudócio, um dos discípulos de Vitalino, se emociona ainda hoje ao falar das apresentações. “A brincadeira começava à noite, atravessava a madrugada e só terminava com o sol brilhando, depois que todas as personagens voltam à cena com a luta entre si e a ressurreição do boi”, conta. Enquanto isso, lembra ele, guloseimas de milho, pães, queijos e cachaça eram servidos como agrado do anfitrião aos participantes. Entre as 28 personagens do Cavalo-Marinho do Alto do Moura, Eudócio era o Primeiro Galante. Formava o cordão branco com o Segundo Galante, a Primeira e a Segunda Dama. Além dessas, o espetáculo é formado por muitas outras figuras, que se dividem em humanas, animais e fantásticas. Já o Cavalo-Marinho Matuto, de Mestre Salustiano, em Olinda, possui 76 figurantes.

A origem do folguedo é variada e incerta. Após pesquisar sobre o assunto, Mestre Salu chegou à conclusão de que o espetáculo nasceu no Brasil durante o século 16, espalhando-se pela Zona da Mata e Agreste nordestinos. “A brincadeira foi trazida por São Gonçalo do Amarante, padroeiro de Portugal, e se aperfeiçoou por aqui. É engraçado porque hoje nem lá em Portugal existe mais. O mesmo aconteceu com o Maracatu, que foi trazido da África e não existe mais por lá”. Assim como outros espetáculos populares que resistiram ao tempo, o Cavalo-Marinho é uma apresentação com essência religiosa, pois é encenado no Natal e na Festa de Reis. Apesar disso, é dito profano, já que suas personagens, diálogos e anedotas estão longe da inocência dos autos de Natal, dos presépios cristãos e dos pastoris religiosos. Além do mais, após a Festa de Reis, o Mateus e a Catirina entregam o BumbaMeu-Boi ao Rei Momo, para que todas as personagens possam brincar o Carnaval. A entrega marca o início dos dias de folia e simboliza a união de um folguedo de essência religiosa com a mais profana das festas brasileiras.

Foto: Leo Caldas/Titular


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20 AUTORES Egas Moniz Bandeira

Engels e Marx poetas Karl Marx e Friedrich Engels celebrizaram-se como filósofos que desenvolveram o materialismo histórico a partir da dialética hegeliana. Todos conhecem, pelo menos de título, o Manifesto Comunista, que eles dois escreveram e publicaram em 1848. Poucos, porém, sabem que Marx e Engels, quando jovens, também escreveram versos. Engels, como poeta, foi melhor do que Marx, e mais produtivo. Começou a escrever aos 16 anos. Publicou inúmeros de seus poemas em jornais, além de uma epopéia em quatro cantos, intitulada Der Triumph des Glaubens (O triunfo da fé), e uma tragicomédia. Também traduziu do espanhol para o alemão o poema A la invención de la imprenta, de Manuel José de Quintana (Die Erfindung der Buchdruckerkunst), além de ter escrito alguns versos dentro de cartas e outros que não foram publicados. Marx escreveu os cadernos de poemas Ao pai (An den Vater), Livro do amor (Buch der Liebe), em duas partes, e Livro das canções (Buch der Lieder). Também traduziu a primeira elegia dos livros de poemas Libri tristium (Livros da tristeza), de Ovídio. O Livro do amor e o Livro das canções contêm 56 poemas, entre os quais 11 baladas, e alguns deles incluem-se no caderno Ao pai, que compreende 39 poemas. Marx escreveu, entre outros poemas, quatro sonetos de amor dedicados à sua esposa, Jenny von Westphalen, mulher de extraordinária beleza, filha do Barão Ludwig von Westphalen, pertencente à alta nobreza da Prússia. Também escreveu inúmeros epigramas. Porém, não foi bom poeta. Muitos dos seus versos apresentam caráter de estudo e experimentação, como primeiro esboço, ao contrário dos poemas de Engels, que são bem melhores e mais bonitos. Ambos, Marx e Engels, usaram quase sempre formas clássicas com métrica e rima. Dos poemas de Engels, traduzimos Aos inimigos e Paisagens, este inserido em um artigo por ele publicado sobre diversas paisagens da Alemanha, Holanda e outros países, e sua conexão com a religião. No artigo, antes dos versos, Engels confessou que, ao sair da Holanda, se sentiu libertado de uma paisagem calvinista e monótona. De Marx, publicamos alguns dos epigramas em que ele troça com a filosofia de Hegel, satiriza o próprio povo alemão e critica seu maior poeta clássico, Johann Wolfgang von Goethe, autor de Fausto. Somente alguns desses poemas foram selecionados, dado que todos não caberiam no espaço de uma revista. A tradução foi feita em versos livres, para evitar possível distorção de sentido, acarretada pela necessidade de métrica e rima.

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Engels, na juventude, foi melhor poeta do que Marx

Marx escreveu sonetos, baladas e epigramas


AUTORES 21 » PAISAGENS “Telegraph für Deutschland”, Nr. 122, Julho de 1840 E agora esqueça os males que te foram feitos, e vá com coração inteiro pelo grande caminho livre. Curva-se o céu, confunde-se com o mar – e tu queres, outra vez rasgado, andar no meio dessa situação? Curva-se o céu, abraça o mundo, feliz pelas belas partes que toca, como se o mundo quisesse beijá-lo. E assim saltou a onda, e tu, rasgado, queres completar teu caminho? Vê como o deus do amor mergulha no mundo, e vê que o deus do amor permanece para o mundo e, fazendo-se homem, como dádiva, a ele se entrega! Tu não levas por tudo o deus em teu seio? Assim, deixe-o livremente mover-se e ser digno de si próprio.

AOS INIMIGOS “Der Bremer Stadtbote”, Nr. 4, 24 de fevereiro de 1839 Não podeis nunca deixar que séria e confiável ambição, bem intencionada palavra, ao seu modo se eleve e sem ruído tenha conseqüência? Decerto, quem quer, pode torcer toda palavra sem qualquer esforço. Oh! Vós podeis ver o mal no bem, mas nunca podeis tornar o bem em mal! Pensais que tereis vantagem, quando degradais a obra e palavra de outros? Não! A honra fugirá de vós Se não a sustentais com a própria força! Se quereis subir, deveis então agir por vós mesmos, produzir com vosso próprio espírito; não vos dará vantagem ir pelos caminhos que outros caminharam, depreciá-los! Dizei! Podeis prejudicar o mensageiro,

para o qual maliciosamente pondes armadilhas? Deixai-o então andar no seu caminho, quando ele traz suas mensagens por toda a parte! Pois, se ele traz a verdade, a verdade permanece verdade, e, erguendo-se por cima da astúcia e da fraude, um antigo provérbio no coração dele penetra: “Honrada ambição é auto-suficiente!”

EPIGRAMAS I Em sua poltrona, confortavelmente estúpido, está sentado, mudo, o povo alemão. Brama a tempestade para cá, para lá, fica nublado o céu, escuro e ainda mais coberto, sibilam os raios, serpenteando, e nada importa ao seu espírito. Porém, quando o sol desponta, os ventos sussurram, a tempestade acalma-se, o povo então se levanta, grita e escreve um livro: "o barulho passou". Começa a fantasiar sobre isso, quer sentir o elemento da coisa, pensa que não é a maneira certa, diz que o céu também brincava bastante esquisito, que deve fazer tudo mais sistematicamente, esfregar primeiro a cabeça, depois os pés. Porta-se até como criança, procura coisas, que apodreceram, teria, ao mesmo tempo, de compreender a atualidade, deixar o correrem céu e a terra, que apenas seguiam seu curso normal, enquanto a onda estoura tranqüilamente sobre as pedras. II.

EPIGRAMAS HEGELIANOS 1. Porque descobri o mais alto e encontrei a profundeza, refletindo, sou rude, como um deus, cubro-me de escuro, como ele. Por muito tempo investiguei e boiei nas ondas do pensamento, e então achei a palavra, e não a solto.

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22 AUTORES 2.

V

Ensino palavras, misturadas em movimento diabolicamente perturbado, e então que todos pensem o que quiserem pensar. Pelo menos, o poeta não é mais limitado pelas barreiras, que o encadeiam, inventa as palavras e pensamentos das pessoas amadas, como se fossem águas bramindo, caindo da rocha, e o que pensa e reconhece, e o que sente, cria. Toda pessoa pode sugar o refrescante néctar da sabedoria, e tudo eu sugo de vós, porque eu, um ninguém, vos disse!

Assim criticaram Schiller, que não pode deleitar bastante humanamente, que também leva as coisas alto demais, e não trabalha como devido nos dias úteis. Diz-se que decerto brinca com relâmpago e trovão, mas a ele falta completamente a graça das ruas. VI

3 Kant e Fichte vão com prazer ao espaço, procuraram lá um país distante, porém, eu só tentei entender bem, o que achei – na rua!

Porém, Goethe é excessivamente belo, prefere ver Vênus a ver farrapos, e, apesar de que comece em nível baixo tem-se obrigatoriamente que se elevar à altura; dá às coisas uma forma sublime, e por isso falta toda a consistência da alma. Pois Schiller fora melhor, o público podia ler as idéia em letras e dizer que foram impressas, mesmo que não encontrasse a profundeza.

4. Perdoai a nós, que fazemos epigramas, quando cantamos fatais melodias. Temos estudado Hegel, e ainda não purgamos sua estética. III Os alemães uma vez partiram, até alcançaram a vitória sobre os povos. E, quando isso aconteceu, podia-se ler em todos os cantos: “Aconteceram coisas estranhas, ir-se-á logo em três pernas.” Todos então enormemente se afligiram, começaram a ter vergonha deles próprios, “É que coisas demais aconteceram de uma vez, tem-se que andar bem calmo outra vez e o resto poderia ser encadernado em livros. Fregueses decerto seriam facilmente achados.” IV Tirai deles as estrelas por vós próprios, logo palidamente ardem, depois vivamente demais; o sol logo queima os olhos, e logo está por demais longe.

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VII NUMA CERTA CARECA Pallas Athene, sublime no impulso da vitória, saltou da testa de Zeus, cheia de pensamentos, como um raio nascido do relâmpago, e faísca, da distante sede das estrelas. E ela, penetrada de desejo, pulou em sua cabeça, E se Zeus, não venceu na profundeza, sabe com certeza, que por cima dele se encontra Pallas Athene.

NADA DISSO! (Aos falsos anos de peregrinação) 1 Schiller, pensa ele, fora razoável, se só tivesse lido mais na bíblia; seu Glocke seria até um excelente poema, se ainda só contivesse a história da ressurreição, e de como Cristo entrou na cidade montado num burrinho. Também deveria ainda acrescentar ao Wallenstein a vitória de David e as marchas dos Filistinos.


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Goethe é um horror para mulheres, pois não combina direito com as velhas; ele só agarrou a natureza e não a poliu com a moral. Deveria ter estudado o catecismo de Lutero, e daí então fabricar versos. Embora tenha às vezes percebido o belo esqueceu de dizer: “Deus o fez.” 3

Só o vício pode elevar Fausto, porque ele só quer viver para si mesmo. Ousou duvidar de Deus e do mundo e esqueceu que Moisés bem o segura. A estúpida Grete tinha de amá-lo, ao invés de apelar diretamente para a sua consciência, quando ele caiu à mercê do diabo e o dia do Juízo logo chegasse. 8

Estranho o interesse de estimar tanto Goethe. Ignóbil foi mesmo sua grande aspiração. Já deu ele sentido aos sermões? Apresentam-se nele firmes núcleos, com os quais o camponês e o sapateiro podem aprender, mas Goethe não tem o cunho divino dos gênios, nem resolveu um problema de aritmética.

Ainda poderia ser usada a “bonita alma”, mas ainda tem de ser apoiada com óculos e barrete de freira. “O que deus faz, faz bem!” Assim começa o verdadeiro poeta.

4 Ouvi agora como tudo do Fausto se evadiu e o poeta erroneamente o cantou. Fausto tinha demais dividas, foi desmazelado, dedicava-se ao jogo de azar, e quando não viu qualquer ajuda dos céus, quis vergonhosamente perecer, e por isso ficou com medo do inferno e da tristeza do desespero. Então pensou sobre a vida e a morte, A sabedoria, a ação e a perdição, e até falou muito no sentido obscuro e místico. Se o poeta não o podia ornar, não podia contar como dividas levam ao diabo, e como aquele, que perde o crédito, vende facilmente sua salvação! 5

EPIGRAMA FINAL AO MESTRE QUE SOPRA Faz assim teus bolos, mas, ainda, continuarás padeiro. Quem também queria exigir de ti que tu devias estar afeiçoado a Goethe? Ele mesmo não conhecia seu oficio, e como poderia chegar a gênio e inteligência?

Fausto ousa pensar, no dia de Páscoa. Assim, não necessita ele se dar como dádiva ao diabo! Quem ousa pensar em dias como esse é pelo próprio inferno recusado. 6 Também a probabilidade foi golpeada. Poderia a policia senão o tolerar? Não o teria posto na prisão? Ele viajou e não paga as dividas!

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Foto: Antonio Augusto / Ediouro

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24 AUTORES Rodrigo Petronio

Mergulho em todas as águas Floriano Martins mapeia a poesia surrealista na América Latina

O segundo volume do livro está em preparação

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Se a inteligência de um homem é proporciosenvolvimento do movimento nal à sua capacidade de estabelecer recusas, ao lançado por Breton em Paris, conversar com o cearense Floriano Martins em 1921, publicou recentetem-se a nítida sensação de estar diante de um mente o livro O começo da busca homem muito bem dotado dessa faculdade – o Surrealismo na poesia da tão mal distribuída entre os seres humanos, América Latina, que traça um sobretudo entre os intelectuais. Autor do liperf il histórico dessa estética, vro de poemas Alma em chamas, certamente emulando e invertendo o título de um dos acontecimentos poéticos das últimas um livro onde Octavio Paz faz esdécadas, e de uma obra volumosa que forço similar, La búsqueda del abrange ensaios, crítica, tradução e entrecomienzo. Agora prepara o seu sevistas com vários poetas, além de uma série gundo volume, que virá aprofundar, de inéditos, Floriano é um dos maiores desenvolver e complementar alguns conhecedores da poesia latino-americana aspectos do primeiro. moderna e contemporânea entre nós, e São múltiplas as causas da neglivem fazendo pontes das mais estimulangência brasileira para com a cultura de tes entre as literaturas desses países e o seus vizinhos e da nossa resistência a Brasil. Mas, para nossa surpresa, é uma um tipo de representação artística que voz solitária e praticamente isolada em ele crê das mais subversivas. E é entransua proposta. Pela importância e amdo nesses assuntos que a conversa esplitude desse trabalho, veiculado soquenta. Floriano só falta soltar fogo pelas bretudo em revistas estrangeiras, no ventas. Um dos principais motivos dessa jornal Rascunho e nas revistas virtuais barreira brasileira é o que ele chama de Agulha e Banda hispânica, das “falseamento da história”. Segundo ele, toquais é editor, assusta sabermos que do corte brusco e abrupto na história proele não tenha maior repercussão duz uma falsificação, pois apaga a multipliciaqui dentro. Também é de se estradade do fenômeno no momento em que ele nhar que o Surrealismo, por estava ocorrendo. Assim, a eleição da Semana exemplo, estética de grande de 22 como o ingresso do Brasil na modernipenetração no resto da América e dade não dá conta da diversidade dos fatos e do mundo, não tenha encontraequivale à “leitura do curso das águas em uma do a mesma acolhida em terras lagoa”. Muita coisa se perdeu nesse processo, e brasileiras. Floriano, para repaa extensa documentação sobre cantos populares rar esse lapso e historiar o decolhida por Alberto Nepomuceno, de quem FloFotos: Reprodução


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Poetas Cláudio Willer, Pablo de Rokha, Roberto Piva e José Lezama Lima: o primeiro e o terceiro brasileiros, os demais chileno e cubano, respectivamente

intermédio da figura do Señor vindicações são duras, passam longe da fala amaneirada riano escreveu uma biograBarroco, presente em um dos com a qual viemos nos acostumando nos últimos temfia, foi praticamente esqueciseus ensaios, acabaram sendo pos no âmbito do debate literário. Assim, ele começa da em proveito das pesquisas apropriados pelo Neobarroso do julgando que mesmo a trinca de ases que gozam de de Mario de Andrade. Por argentino Nestor Perlonguer, prestígio em língua portuguesa – Paz, Neruda e Boroutro lado, o Modernismo teque fez uma leitura distorcida do ges – deveria ser filtrada com maior seletividade e ria inaugurado um “regime de grande poeta, autor de Dador. E analisada de forma mais conseqüente. Porque Ocexceção”, por meio do qual nesse ponto Floriano parece dar as tavio Paz, que “sempre foi crítico da realidade que convalidou seu ideal de modercartas da tradição poética que realtinha à sua volta”, com o tempo começou a deinidade e de nacionalismo imbumente lhe interessa. Segundo ele, xar de sê-lo, e, como poeta, acabou se “cristaliído do Futurismo de Marinetti, todos esses autores tentaram, cada zando bastante cedo”. Neruda pôs em cena o e a partir do qual passou a criar um à sua maneira, “ser Deus”. E caseu ego monumental para a criação de suas os critérios eletivos para a formada vez mais lhe “parece que a grande obras “cosmogônicas”, mas não conseguiu leção do cânone literário no Brasil, tradição poética é consubstanciada var sua empreitada muito adiante, e Borges, critérios esses nem sempre de orpor quem se recusa a sê-lo” – arremasegundo Floriano, é um grande “fabulista”, dem estética, mas meramente ideota. É assim que trava o seu pacto lucium homem dono de uma grande capacidalógicos. E aqui entram o Surrealisferino com o anticânone das letras de de fazer de si o centro do mundo e de mo e a defesa de duas diretrizes: hispânicas, ou pelo menos com o lado criar mundos possíveis, mas que, como uma reavaliação urgente do lugar menos óbvio do mapa dessa cultura, e poeta, faz valer as palavras do crítico Geque Murilo Mendes e Jorge de Lima fala de suas predileções, como o poeta rardo Deniz, sendo muitas vezes “previocupam no cenário da literatura bravenezuelano José Antonio Ramos Susível e enfadonho”. sileira, instigando a crítica a desvincucre, que “se matou por não suportar Nesse diapasão de leitura crítica, lá-los de vez dos estigmas limitadores mais a presença de visões que lhe assompara Floriano, não só o nosso descoda “poesia em Cristo”, e a recusa desbravam a existência” e não vivia “em um nhecimento da literatura hispânica é ses dois poetas como sendo os únicos plano literário, mas sim na mesma diaviltante, como o que conhecemos é representantes do Surrealismo no Brasil, mensão excessiva de um Artaud”. Faz muitas vezes referendado sem muiaos quais Floriano soma os nomes de uma menção especial aos poetas do Chile, to rigor. E um caso onde essa disRoberto Piva, Claudio Willer e Sergio cuja “vertente múltipla encontra em Pablo torção se dá de maneira mais aguLima, entre outros. de Rokha, Rosamel del Valle e Humberto da é no que diz respeito ao cubaEssas faces se conciliam, no entanto. E Díaz-Casanueva uma fonte de renovação no Lezama Lima, um dos seus ele faz um traçado oblíquo onde procura que não desconsidera o autóctone e se maautores prediletos, mas cujo cademonstrar as lacunas do cânone literário nifesta no diálogo com a Europa”. Já no coráter algo “enciclopédico” da brasileiro, articulando-as à história do Surlombiano León de Greiff, “encontramos o obra e sua reivindicação de realismo e a uma série de poetas hispanomais surpreendente caso de polifonia na trauma estética autóctone por americanos desconhecidos por nós. Suas reiContinente . janeiro, 03


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Luiz Cardoza y Aragon, guatemalteco; Floriano Martins, o autor de O começo da busca; León de Greiff, colombiano; e Rosamel Del Valle, chileno

de regras intrínsecas, nem algo téria vital que a origina e dição poética latino-americana”, enquanto o que deve servir de veículo ou instransformá-la em um arguatemalteco Luiz Cardoza y Aragón “soube trumento de transformação desse ranjo de signos “apartado buscar na algazarra da modernidade uma voz mesmo mundo, porque senão ela da realidade”. Na ótica de que fosse a soma de todas”. Floriano ainda seria política sem ser poética, mas Floriano são mais ou menos repassa o nome do nicaragüense Pablo Anum misto dos dois. E é nesses teresses os ingredientes de um tonio Cuadra, que “estabeleceu uma nova mos que ele se refere a alguns dos novo falseamento da história, relação com o mito”. poetas brasileiros como “autislevado a cabo pelo ConcretisClaro que essa dificuldade de penetratas”: crêem que a autonomia nasmo. E mais uma vez, em 1956, ção do Surrealismo no Brasil não se deve ce de um “idioleto”, de uma fala temos um recorte “fabricado” da apenas a um fator ocasional e à formação exclusiva criada por eles mesmos história e um novo “regime de exdo cânone. Deita raízes em uma longa ou pela manipulação da linguaceção”. Se o “afazer” poético se tradição positivista, que se espraia em gem em uma dicção especiosa torna uma forma de “afasia”, e ao uma série de esferas da vida social e inque por ventura tenham enconinvés de construirmos uma linguatelectual e bloqueia qualquer iniciativa trado. A autonomia só nasce no gem que plasme e transfigure todas as de subversão de seus postulados. Para momento em que o poeta “merdimensões do mundo e todas as camaFloriano, nossa história é marcada tangulha em todas as águas” e sente das da realidade nós nos isolamos nela to pelo peso de teorias cientificistas, sua voz a tal ponto madura que como nefelibatas em suas torres de marno pior sentido dessa palavra, quanto pode nela plasmar a realidade que fim, sob a desculpa de só assim podermos por certa “chaga cristã”, que, por o circunda, não apenas descreconquistar aquela autonomia da linguagem exemplo, obstou uma efetiva “exvendo-a ou manipulando técnipoética inaugurada pela arte moderna, enplosão do ser” nas obras de Murilo cas, mas se imiscuindo em seu tão rompemos todos os vínculos entre o penMendes e Jorge de Lima, tornandevir e assim penetrando verticalsamento e a ação, e todo o projeto de criar do-os fraturados e divididos em mente o mistério “Ser”. uma arte inclusiva e de valor rigorosamente suas consciências entre a aspiraEssas considerações ganham continental vai pelos ares. ção a uma liberdade total e os liuma dimensão muito ampla se O interessante é que Floriano, em um dos mites motivados pelo pecado e pensarmos na história das estruseus livros, Fogo nas cartas, defende que a poesia, pela negação católica. Já o caráturas hegemônicas do pensamesmo sendo “intransitiva”, é filha da “alteridater cientificista das teorias posimento no Brasil. Basta lembrar de”. Política e poesia se complementam, assim cotivas, que encontrou ambiente que boa parte da nossa poesia e mo a reversibilidade do imaginário e do real pode fértil no Brasil, estimulou uma da nossa crítica literária atual gerar novos focos de luz, que podem por sua vez relação cada vez mais imanenf lertou ou ainda hoje mantém transfigurar a face da realidade que se nos apresenta. te e estrutural com a linguavínculos fortes com o EstruturaAssim, a chamada autonomia não é algo que se esgota gem poética, a ponto meslismo, com a Semiologia ou na linguagem, tomada em si mesma, composta a partir mo de desvinculá-la da maContinente . janeiro, 03


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O chileno Humberto Díaz Casanueva, o nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, o brasileiro Sergio Lima e o venezuelano José Antonio Ramos Sucre

gura e anima todos os seres, sejam tulados, ora os embaralhando, sem com as escolas mais recentes dos eles movidos pelo fogo, pela água contudo dar um passo sequer além da desconstrucionistas, que pregam ou por qualquer outro quinto elepobreza dessa descrição de mundo. E um recorte poético sincrônico e mento que esteja além da matéria, penso aqui na Antropofagia de Oswald atemporal, onde a poesia pairasque desconhecemos e que provavelde Andrade, que pretendeu eleger a se incólume, livre das contingênmente nunca viremos a conhecer. “forma brasileira” de ser, e no Concrecias e cristalizada sob a forma de tismo, que “fez da forma um conteúum puro enunciado discursivo. do”, como um caranguejo que se crê Por outro lado, há uma outra revolucionário por ter decidido andar tradição intelectual brasileira para frente. O fato é que, para qualque procura dar fundamentos quer pessoa que esteja interessada em ontológicos à história e é moviuma relação vital e vertical entre poesia da por uma busca romântica da e mundo, ambas não passam de um essência nacional que nos conspurgatório, e o que esperamos é uma titui, busca essa que, malgrado redenção, não um aprofundamento de ser frenética e muitas vezes pronossa própria esquizofrenia. ceder por meios tão equivocaO mergulho em todas as águas de dos quanto o mérito intelectual que nos fala Floriano Martins é providaqueles que a exercem, até que dencial e significativo. Aliado à perspoderia ser de bom talante, caso pectiva continental de sua visagem linão desprezasse os meios em terária e ao caráter libertário do Surrebenefício dos fins. Em resumo, alismo, sinaliza que ainda há muita no meio-fio entre essas duas água para correr pelo rio de Heráclito, correntes do pensamento, somuitas barragens a serem estouradas e mos marcados por uma história muitas lagoas, onde os sapos de onintelectual cuja chaga, para tem, sempre os mesmos, ainda coaalém de cristã, parece vir coroaxam, a serem arrebentadas pela fúria da pelo dilema infinito e pela de seu devir que há de explodir em disputa maniqueísta entre duas um futuro próximo, segundo carta de forças que funcionam como a O começo da busca – o Surrealismo na Pierre Naville que Floriano Martins poesia da América Latina mesma simetria de um céu e Floriano Martins cita. Quem sabe assim a dualidade do um inferno: Forma versus ConEscrituras Editora bem e do mal seja superada e possateúdo. Haja vista que mesmo as Fone: (11) 5082.4190 288 p. mos enfim auscultar a unidade parvariantes desses termos partem R$ 14,50 menídica do Ser essencial que confideles, ora invertendo seus posContinente . janeiro, 03


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28 AUTORES Luiz Carlos Monteiro

Os objetos do mundo Poema de Francis Ponge é traduzido e comentado em livro

A mesa, de Francis Ponge Edição bilíngüe Tradução e apresentação de Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson 328 p. R$ 45,00 Editora Iluminuras: (11) 3068.9433 www.iluminuras.com.br

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A poesia de Francis Ponge não renega em absoluto a prosa que contém. Uma faz-se inseparável da outra. Essa interpenetração de gêneros somente logra ser quebrada pelo tratamento distintivo e interno dado às formas no texto. No poema A mesa (La table) po-dem-se reconhecer nitidamente momentos nos quais Ponge está a fazer prosa inequivocamente poética, ou a cometer poesia com a organização típica e particular que a diferencia da prosa, ou ainda a juntá-las acintosamente em “proema” Publicado na França em 1981, A mesa chega ao Brasil traduzido e com estudos críticos de Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson (São Paulo, Iluminuras, 2002, 328 p.). Ante-riormente, Ponge havia sido traduzido em primeira mão por Haroldo de Campos (poema A aranha), além de ter recebido homenagens em poemas de João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes. Escrito à maneira de um diário (que os seus tradutores ora denominam “dossiê”, ora “diário de escritura”) devidamente datado, A mesa inicia-se em 21/11/1967 e finda em 16/10/1973. A folha 18 do manuscrito pongiano não deixa dúvidas quanto à sua condição de “proema”, um termo cunhado pelo próprio poeta: “Amo/a mesa que me espera, onde tudo está disposto para escrever/e onde não escrevo/mas sento-me bem junto, mantenhoa a meu f lanco, deito-me para trás e ponho os calcanhares em cima/para escrever em minha escrivaninha./posta sobre meus joelhos”. A mesa torna-se, portanto, o grande pretexto e motivação do poeta para escrever sobre o que mais o interessa e comove: os objetos do mundo

visível. Objetos em estado bruto ou transformados, inconfundíveis, animados, à mão. No caso particularíssimo da mesa, objeto ao alcance do cotovelo, calcanhares ou joelhos. Ele, que não se pretendia e não se aceitava poeta – trabalhava contra os poetas de seu tempo, como na citação que recolheu de Horácio –, fazia o tempo todo alusão ao ato de escrever. Revelava um modo idiossincrático e obsessivo de consulta a dicionários (um de seus preferidos era o do positivista Littré) e a utilização de um léxico que lhe trouxesse palavras antigas e esquecidas, para consolidá-las numa atualidade ambígua e ainda a cristalizar-se. O poema presta-se também ao questionamento da metafísica de Descartes, da lingüística saussuriana e dos posicionamentos políticos assumidos ao longo da vida. A sua ligação com os surrealistas e com os comunistas franceses, entre eles André Breton, cobre o período de 1930-47. O rompimento com o Partido Comunista Francês é explicitado na folha 37: “Ele não busca uma metafísica, e sim uma ‘física’ da palavra, o que sugere uma forte inclinação ao significante, ao científico e ao preciso. O referente ‘mesa’, apesar da tentativa de sua materialização no texto, guarda contra-ditoriamente com o imprescindível sujeito-poeta Ponge uma relação ‘materna’, emotiva e de afetividade”. Francis Ponge nasceu em 1899, em Montpellier, França, e morreu em 1988. Dedicou-se a escrever sobre coisas e bichos, tidos como não poéticos: mesa, camarão, chuva etc. Pouco conhecido pelo grande público brasileiro, tinha entre seus admiradores João Cabral de Melo Neto, que a ele dedicou um poema. A Gallimard, a mais prestigiosa editora francesa, prepara a publicação de suas obras completas.

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VINICIUS DE MORAES, EM VERSO E REVERSO O poeta Vinicius de Moraes (1913-1980) faria 90 anos em outubro próximo. Mas a Editora Bem-Te-Vi, do Rio de Janeiro, antecipou-se às comemorações e lançou, no finalzinho de 2002, a coleção Arquivinhos de escritores brasileiros, dedicando ao parceiro de Tom Jobim o primeiro volume. É uma iniciativa inusitada, num formato completamente fora do convencional. Num acabamento esmerado, usando vários tipos de papel e formato, estão reunidos numa bonita pasta vermelha documentos em fac-símile e reproduções de fotos, em páginas soltas, como num arquivo pessoal. Lá estão o manuscrito do Soneto da separação, com belo desenho de Carlos Leão; original de Pablo Neruda dedicado ao poeta brasileiro; cartas e bilhetes de Carlos Drumonnd, Manuel Bandeira, Orson Welles, Charles Chaplin; cartão-postal de

João Cabral, mandado de Barcelona; texto crítico de Antonio Candido, além de fotografias das mais diversas épocas e com várias personalidades. Por último, mas não menos importante, dois livrinhos: uma biografia sucinta do poeta, por André Gardel, professor de Literatura e autor de O encontro de Bandeira e Sinhô, e uma cronologia da sua vida, por Alberto Purcheu, poeta e professor. Na apresentação do conjunto, a editora Lélia Coelho Frota explica os objetivos da coleção: “(...) possibilitar um contato próximo, dessacralizado, com uma parcela representativa da obra e da personalidade de cada autor focalizado. (...) Buscamos o prazer do encontro espontâneo do leitor com o autor – e vice-versa – imaginando que será um estímulo para a freqüentação maior de sua obra. Ou simplesmente a abertura de uma nova porta para a fruição de textos que amamos, tratados com invenção gráfica e espírito lúdico”. A julgar por esse primeiro volume – Arquivinho Vinicius – o alvo foi acertado em cheio.

O MUNDO MÁGICO DE UMBELINA

AVENTURAS DAS PALAVRAS

INFERNAL TRANSPARÊNCIA

Lançado no final do ano passado, Umbelina e sua grande rival, do escritor e jornalista Cícero Belmar, é, na definição do romancista Raimundo Carrero, “um romance na mais exata e rigorosa classificação da narrativa tradicional brasileira”. Misturando personagens fictícios a reais, como Dom Hélder Câmara, Pinto do Monteiro e cordelistas, narra as aventuras mágicas de um povo do Sertão, na cadência dos folhetos populares do Nordeste, misturando a realidade e o fantástico. Com o romance, Belmar obteve o prêmio Lucilo Varejão, do Conselho Municipal de Cultura, versão 2001. Edição da Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, 310 p.

Segundo o poeta T. S. Eliot, uma das funções da poesia é dar nome a sentimentos ainda não identificados. Com a nomeação o conceito clareia e torna-se possível, racionalmente, identificá-lo e compreendê-lo. Alguns conceitos que hoje nos parecem óbvios passaram por esse processo. Ação e reação, por exemplo. É o que mostra o livro Ação e reação – vida e aventuras de um casal, de Jean Starobinski (Editora Civilização Brasileira, 433 p.). As duas palavras foram constituídas em tempos históricos diferentes e nem sempre reação foi considerada o oposto de ação. Percorrendo o modo como essas palavras são empregadas na filosofia, na religião, na ciência e na literatura, Starobinski teoriza num projeto de lingüística histórica fascinante, articulando as relações entre pensamento e palavra.

Certa vez, num trem, Jean Genet cruzou os olhos com um desconhecido e no mesmo instante teve a certeza de que “cada homem era eu mesmo, mas isolado temporariamente na sua casca particular”. E foi o seu próprio olhar que o escritor francês encontrou nos quadros de Rembrandt. O que o levou a escrever dois textos sobre o pintor holandês, unidos no volume Rembrandt, pela José Olympio Editora (85 p.). Ilustrado por obras de Rembrandt, o livro mistura poesia, acuidade e informações práticas, resultando numa obra ao mesmo tempo didática e sofisticada. Para Genet, Rembrandt é “esse dedo severo que separa os ouropéis e mostra... o quê? Uma infinita, uma infernal transparência”.

Fotos: Reprodução

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30 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Os campos de concentração da cultura O interior, sentado, assiste a tudo, pela televisão

Alguém se joga com seu carro no penhasco, ouvindo Bach nas alturas. O filme chamava-se Phedra, com a bela atriz grega Melina Mercuri. Estávamos na década de 70 e, enquanto eu assistia a seu filme, no Brasil, Melina lutava, na Grécia, contra a repugnante ditadura dos coronéis. Naquela década suja, escrevi-lhe um poema. Hoje sei que morreu em Nova Iorque, em 1994, aos 71 anos. O segundo e último encontro que tive com ela foi em 1984, na revista Caderno Cinza, editada pela RioArte, que, no número 1 (saíram outros?), publicou uma conferência sua, quando já ministra da Cultura da Grécia, proferida em Londres, no Institute for Contemporary Arts (ICA), em maio de 1983. Fiz essas digressões-homenagens porque o texto daquela conferência foi um dos mais lúcidos depoimentos que já li sobre o papel do Estado no processo de descentralização dos bens culturais, para que alcancem os talentos artísticos que brotam nas periferias. Talentos abatidos ou neutralizados em seus nascedouros, em virtude de uma concentração de riquezas que começa nos bens materiais e se expande para as expressões mais altas do espírito, representadas pela Arte, o Artesanato e o Folclore nacionais. O recado de Melina Mercuri não tem fronteiras ideológicas, pois tanto é pertinente à antiga União Soviética quanto à sede do capitalismo globalizante atual, os Estados Unidos da América: “Concentramos nas capitais a maioria de nossos teatros e cinemas, museus e orquestras. Fora das capitais estão os despojados, os privados. E, privando-os, ficamos também privados. Com pouco estímulo para criar, as forças potenciais não se desenvolvem e permanecem inativas. Recebendo os retalhos da expressão cultural, emudecem e silenciam a sua própria expressão”. Os que estão acostumados com os esboços de política cultural que são ensaiados neste país já cansaram de escutar o estribilho da interiorização dos investimentos, nos programas culturais e nas plataformas eleitorais dos candidatos a governador, principalmente. A interiorização (não só de eventos, mas de atividades permanentes) é uma necessidade de justiça, é um “dever ser” (como diria o sociólogo Cláudio Souto) tão óbvio, que ninguém jamais se arriscaria a contestá-la, nem mesmo os mais afetados e sinceros elitistas metropolitanos. Embora obviamente justa, é, também, uma exceção no tempo e no espaço, Continente . janeiro, 03

mesmo depois que a cultura virou artigo constitucional na França, em Cuba, no Brasil e em outras partes do mundo. Se há estudos da Unesco sobre o assunto, não chegaram ao meu conhecimento. Futuramente, os países terão cadastros culturais, como hoje dispõem de cadastros industriais e comerciais. Afinal, na área da cultura, a única coisa realmente cadastrada, acredito, é a indústria cultural, e essa tem todas as pesquisas de mercado de que precisa, todos os cálculos de retorno de investimento necessários, tudo que importa quando se trata de produtos “nobres” como Michael Jackson, Madonna ou duplas sertanejas, com suas vozes de galinhas chocas. Ao ocupar-me com a concentração de equipamentos culturais (espaços, centros de aprendizagem artística e artesanal, tecnologias), eventos formadores e também deformadores de público, nas capitais do país, sinto a inquietação dos atravessadores (porque também os há, na cultura), prontos para pular gritando que a concentração é traço característico da própria urbanização. E, com isso, procuram deslocar a conversa para os albores das urbes, na Idade Média. Pouco me lixo para a antiguidade de um erro, porque sei que nunca se esgotará o tempo de corrigi-lo.


MARCO ZERO 31

O caráter concentrador das capitais brasileiras faz contraponto lógico com o fato de o país se encontrar no pódio da concentração de renda do planeta (ora no primeiro, ora no segundo, ora no terceiro lugar). Por mais estranho que possa parecer, à medida que os governos federal e estaduais procuram distribuir recursos para a área cultural, através de leis de incentivo fiscal, eles só fazem aumentar os níveis de concentração já existentes, porque essas leis têm concentrado capitais nas capitais mais ricas do país. E isso se deve à voracidade dos lobbies empresariais, que se beneficiam de um conhecimento maior dos códigos burocráticos para o preenchimento das exigências legais comuns aos estímulos tributários, de uma proximidade maior do estamento

Ilustração: Zenival

funcional que controla a máquina do Estado e, por conseqüência, de uma proximidade maior, é claro, do cofre público. Pode-se argüir que uma capital, como São Paulo, tem ao seu lado cidades importantes e com as mesmas possibilidades de acesso à burocracia estatal, como Campinas, Soracaba, Santos, Ribeirão Preto e Bauru. Certo, mas o estado de São Paulo tem mais de 500 cidades... Embora me tivesse detido mais nas leis de incentivo à cultura, na verdade a capital vem sendo, ao longo dos séculos, o palco enquanto todas as outras cidades são uma mera platéia. Ou mais contundentemente: a capital tem sido sempre a protagonista e o resto do estado, um mero figurante. É preciso que cada estado, ou melhor, o país, como um todo, brilhe por inteiro.

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32 SONS José Teles

Cordel em transe Paralelismos entre os discos do Cordel do Fogo Encantado e os filmes de Glauber Rocha Qual a relação entre Deus e o Diabo na terra do sol e Terra em transe, filmes de Glauber Rocha, e os discos do grupo Cordel do Fogo Encantado (o primeiro batizado com o nome da banda, o segundo intitulado O palhaço do circo sem futuro)? Aparentemente a pergunta não tem sentido, afinal, João Paes Lira, Lirinha, o carismático letrista e vocalista da banda, confessa nunca ter assistido a esses dois clássicos do Cinema Novo. Mas os paralelos existem. Se Deus e o Diabo na terra do sol é o interior nordestino na visão do sertanejo Glauber Rocha, O Cordel do Fogo Encantado (o disco) é Lirinha e Clayton Barros regurgitando sua vivência sertaneja, em Arcoverde. Ambos não pretenderam passar uma versão romântica do sertão. No caso do Cordel do Fogo Encantado, isso fica explícito em uma das músicas do CD de estréia, Antes dos mouros, em que a dupla de compositores do grupo ressalta que anteriormente ao baião, ao repente, a qualquer outra coisa, já havia música em Pindorama: “Os trovões faziam um som”. Em Deus e o Diabo na terra do sol, Glauber Rocha vai do sertão à imensidão do mar. O mesmo mar que inicia Terra em transe e se torna um elo entre os dois filmes. O palhaço do circo sem futuro é o segundo ato: o primeiro é o disco anterior. O agrário deste dá lugar naquele à temática urbana. Se o primeiro disco inicia-se com um aboio (coincidentemente, Deus e o Diabo abria com um close no olho de um boi), o segundo começa com uma vinheta falada em alemão (um mendigo pedindo esmolas no metrô de Berlim, gravado quando o grupo esteve em turnê pela Europa). Em O Cordel do Fogo Encantado, o grupo recorre ao repente e à poesia brejeira de Zé da Luz (em Deus e o Diabo Glauber emprega sextilhas musicadas por Sérgio Ricardo). Em O palhaço do circo sem futuro, Lirinha rebela-se das amarras dos versos rimados valendo-se da poesia cerebral de João Cabral de Melo Neto (assim como, em Terra em transe, Continente . janeiro, 03

João Paes Lira, o Lirinha, é o carismático líder da banda Cordel do Fogo Encantado, que está lançando novo CD

Fotos: Divulgação


SONS 33 » Glauber Rocha põe na boca de um personagem versos de Mario Faustino, de muitas afinidades com o poeta pernambucano). Essa, por assim dizer, mediúnica semelhança estética entre os filmes do baiano e a música dos pernambucanos reforça-se ainda mais pelo fato de ambos serem singulares. Não há outro Glauber no cinema brasileiro. Não há parâmetros na MPB para o que o Cordel do Fogo Encantado faz. Sua música não se encaixa em nenhum gênero classificado da MPB. Um dado importante para o fenômeno. Crescendo em meio aos cantadores de viola, Lirinha é avis rara: o rock não faz parte da sua formação musical. No meio em que vivia, o rock só era citado quando se glosava algum mote pejorativo ao mais popular dos gêneros musicais criados pelos americanos. A banda é antes de tudo um fenômeno audiovisual. Seus discos só passam a ser melhor digeridos quando se assiste a uma apresentação da banda. Parte dos admiradores do Cordel (no Recife a banda já conta com fã-clubes e superlota teatros) viu erroneamente no quinteto uma espécie de guardiões da poesia popular nordestina. E muito pelo fato de que Lirinha conviveu desde criança com bardos lendários

do sertão (aos 14 anos apresentou-se pela primeira vez no palco do Teatro Guararapes, num festival de cantoria, convidado por Ivanildo Vila Nova). Mas a música do Cordel do Fogo Encantado, embora tenha elementos dos repentistas, e até indígena, é única, e irrotulável. Tem ligações com a tradição, mas não é tradicionalista. Não se inspira simplesmente na cantoria de viola, nem tem quaisquer resquícios dos grandes nomes da música nordestina, tais como Luiz Gonzaga ou Jackson do Pandeiro. É resultado da intuição de Lirinha, com as melodias liquidificadas por Clayton Barros (que ralou algum tempo no Recife como cantor de barzinhos), e do batuque de terreiro de candomblé de Emerson Calado, Nego Henrique e Rafa Almeida. Delírios glauberianos deste escriba à parte, poucas bandas sentiram tanto o fardo da síndrome do segundo disco quanto o Cordel do Fogo Encantado. E poucas conseguiram safarse dele tão bem, sem decepcionar seu considerável séquito de fãs e admiradores. O palhaço do circo sem futuro não rompe drasticamente com a estética do álbum anterior. As canções surgem entre poemas e vinhetas; a formação da banda permaneceu a mesma (continua prescindindo de baixo e bateria), no acompanhamento só a percussão e um violão. Desta vez, no entanto, o violão de Clayton Barros foi turbinado, tornou-se um verdadeiro dínamo, é percussivo e harmônico ao mesmo tempo, não raro soa como uma guitarra. A percussão é a mais potente desde que Chico Science equacionou a conjunção de alfaias de maracatu com ferramentas do rock and roll no Nação Zumbi. Se com João Cabral o grupo mostra que não está pretendendo manter nem levantar a bandeira da tradição, ao mesmo tempo tem consciência de que ninguém se livra assim facilmente de suas roots, bloody roots (apud Sepultura). A faixa O espetáculo é montada em cima de versos dos repentistas Manoel Chudú, Jó Patriota e Manoel Filó. Lirinha começa o disco declamando um poema – Os anjos caídos (ou A construção do caos) – com imagens e inf lexão vocal messiânicas, tais a de um beato de filme (olha aí ele de novo, Glauber Rocha). A música está cada vez mais irrotulável. Não é mistura, não é antropofagia de coisa nenhuma, não é mangue, nem é beat. Lirinha já foi rotulado em um jornalão do sudeste como “o Jim Morrison do Sertão”. Espera-se que não Continente . janeiro, 03


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34 SONS adjetivem o som do Cordel do Fogo Encantado de “Árido Beat” ou coisa que o valha. O palhaço do circo sem futuro foi produzido pelos próprios integrantes do grupo (que colocaram em prática os ensinamentos do mestre Naná, produtor do CD anterior). Contaram com poucas participações especiais (Chico César, Ortinho, ex-Querosene Jacaré). Parece-se muito com o CD de estréia e ao mesmo tempo é um disco completamente diferente. O atentado de 11 de setembro nos EUA serviu como fonte de ref lexão para os compositores, mas Nova Iorque para eles tem a ver com o sertão baiano. A matadeira, uma das faixas e ilustração do encarte, é o apelido de um canhão alemão, utilizado na guerra de Canudos. Se no toca-CD emociona, no palco o Cordel do Fogo Encantado, como se testemunhou no show apresentado no teatro da UFPE em novembro último, leva a platéia ao transe. Em sua performance, Lirinha é o próprio Dragão da Maldade. Isso posto, não será surpresa para este escriba se no próximo disco Lirinha incorporar um Antônio das Mortes. Ele confidenciou que, finalmente, pretende assistir aos principais filmes de Glauber Rocha. Shows Ao contrário das bandas surgidas em Pernambuco desde os anos 90, o Cordel do Fogo Encantado

A música da banda está cada vez mais irrotulável. Não é mistura, não é antropofagia, não é mangue nem é beat

tem preferência por fazer shows em teatro. Uma estratégia que se provou acertada. O último show que o grupo apresentou, em novembro, no teatro da UFPE, teve lotação esgotada. Lirinha considera que essa característica vem do embrião da banda, cujo nome vem de uma peça teatral, encenada em Arcoverde, lugar de origem de três integrantes do Cordel do Fogo Encantado: “Em 1998, viemos para o Recife e alugamos o Teatro Apolo. Não foi ninguém, a gente era um grupo desconhecido fora de Arcoverde. Quando começamos a trabalhar com Guti – empresário do Cordel – alugamos o Teatro Barreto Júnior. Ele estranhou, porque não era comum as bandas da cena tocarem em teatro. Mas a gente insistiu. Alegamos que não dava pra ficar esperando por festival. Fizemos um show para uma platéia pequena, umas duzentas pessoas”. A próxima investida foi ainda mais ousada. Alugaram o Teatro Guararapes, tendo que disputá-lo com empresários de outros artistas, e enfrentando preconceitos dos que não consideravam o grupo capaz de levar público para um teatro com quase três mil lugares: “Existia também uma questão cultural. As pessoas achavam que uma banda como a nossa não tinha a ver com o teatro. Fizemos o show, não lotamos, mas deu muita gente”. Muita gente deu no show que o grupo fez no Teatro do Parque, em 2001. Aliás, tanta gente que os portões foram fechados antecipadamente. Dezenas de pessoas, com ingressos comprados, f icaram do lado de fora. O Cordel do Fogo Encantado hoje tem fã-clube organizado em Pernambuco, seus discos vendem bem, sem tocar no rádio, mas Lirinha diz que a banda ainda não reúne condições de sobreviver sem sair do Recife: “O ideal seria morar aqui, receber as passagens e sair para fazer show. Mas a realidade é outra. São Paulo e o Rio ainda são o centro do show business, lá a gente recebe convite para shows pelo país inteiro”. Em 2002, o Cordel do Fogo Encantado foi o grupo pernambucano que mais viajou pelo Brasil. Tendo São Paulo como ponto de apoio, apresentaram-se de norte a sul, consolidando o nome da banda em lugares onde ele ainda não era conhecido. Este ano as investidas serão na Europa (onde estiveram há dois anos), e o alvo principal será a Península Ibérica: “Vamos concentrar esforços para penetrar na Espanha e Portugal. Pretendemos levar o show O palhaço do circo sem futuro completo, com cenário, luzes”, adianta Lirinha.

O palhaço do circo sem futuro, do Cordel do Fogo Encantado Independente Preço médio: R$ 20,00 Rec Beat: (81) 3461.1097 – 3341.3326 Continente . janeiro, 03

Foto: Divulgação


SONS 35

Música sem saída A música ocidental, racionalizada, caiu na armadilha da segunda lei da termodinâmica: a entropia

Quem por ventura terá feito uma mais eloqüente apologia da grandeza da música ocidental do que o mais notável pensador da modernidade, Max Weber? “O ouvido musical era aparentemente mais desenvolvido em outros povos do que entre nós: certamente não o era menos. Os diversos tipos de polifonia tiveram ampla divulgação em todo o mundo, a conjugação de uma pluralidade de instrumentos e a vocalização de partes da polifonia existiram em outras civilizações. Todos os nossos intervalos de som eram conhecidos e calculados por elas. Mas a música racional — tanto o contraponto quanto a harmonia –; a formação da sonoridade na base de três tríades com o terceiro harmônio; nossa cromática e enarmônica interpretadas não em termos de espaço mas, desde o Renascimento, de harmonia; nossa orquestra com seu quarteto de cordas como núcleo e com a organização do conjunto de sopro; nosso acompanhamento de graves; nosso sistema de notação (que possibilitou inicialmente a composição e o uso de nossos instrumentos e, depois, a sua própria sobrevivência; nossas sonatas, óperas e os instrumentos que lhes servem de meio de expressão – o órgão, o piano, o violino – só existiram no Ocidente, se bem que a música figurativa, a poesia tonal, a alteração de tons e a dissonância tenham existido como meio de expressão em várias tradições musicais)”(Max Weber – A ética protestante e o espírito do capitalismo). Certamente, ao leigo em matéria de música a linguagem de Weber parecerá extremamente esotérica. Mas, além de um dos pais fundadores da Sociologia, Weber foi também pianista, musicólogo e fundador da Música. No entanto, é a racionalidade, tão declamada por Weber, o que empurra a música ocidental para o abismo da segunda lei da termodinâmica: a lei da entropia, somente aplicável aos sistemas fechados, o que é precisamente o caso da música. Não da música em geral, mas da música ocidental, racionalizada e fechada na sua racionalização. Poderíamos defende r o emprego do quarto de tom como um expediente possível para a renovação da múFoto: Geyson Magno/Lumiar

sica ocidental. Mas, aí, depararíamos com um muro impossível de se galgar. Se o quarto de tom é possível, até certo ponto, de ser obtido por instrumento de corda com o braço sem trastes, como o violino, a viola, o violoncelo e o contrabaixo de corda, é rigorosamente impossível de ser obtido em piano, instrumento de afinação fixa. Ou num cravo. Um violonista hábil pode chegar próximo de um quarto de tom, imprecisamente. Posta de lado essa possibilidade, o que resta ao músico ocidental? O grande Piazzola, na sua inconteste genialidade, fez experimentos de vanguarda com o glissando, tanto ascendente quanto descendente, dos violinos. Pondo de lado as extravagâncias das polifonias do século 15, a rigor, e sem medo de errar, a música ocidental chegou ao ápice da sua perfeição com o Johan Sebastian Bach de “cravo bem temperado” (galicismo corrigível com o preciso “bem afinado”). Mas, como disse Mário de Andrade, na música ocidental “toda degringolada começou com o romantismo –, com a exaltação crescente do papel supostamente único do compositor. Passa pela beleza harmônica dos impressionistas, começa a mergulhar nos abismos da entropia com Stravinski e finalmente termina, totalmente tomada pelas vagas da entropia com Schoenberg e sua música serial, aparentemente só razão. E estamos no beco-sem-saída da mais absoluta entropia, a inexorável segunda lei da termodinâmica, como tão sutil e genialmente denunciou Thomas Mann em A montanha mágica.

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38 PATRIMÔNIO

agosto de 1909, filho de uma pernambucana e de um alemão. Morreu em junho de 1994 e é considerado um artista completo, pois acumulava as funções de pintor, desenhista, escultor, ceramista, tapeceiro, pesquisador, cantor e criador de jóias. O primeiro projeto de jardim público idealizado por Burle Marx foi a praça de Casa Forte, em 1934. São três jardins de formas regulares, sendo dois retangulares e um quadrado, que englobam um lago central com plantas aquáticas amazônicas – entre elas a vitória-régia –, um canteiro com f lora brasileira variada e outro com espécies exóticas. Enquanto a praça Euclides da Cunha tinha como modelo as estufas do Jardim Botânico de Dahlem, em Berlim, na Alemanha, a de Casa Forte era inspirada no jardim aquático de Kew Gardens, na Inglaterra. Segundo Vera Beatriz Siqueira, em Espaços da arte brasileira, “o paisagista gostava de repetir que não se preocupava com a originalidade de sua obras, não a perseguia como objetivo, pois o seu ideal era formular um jardim que cumprisse uma função social, que fosse útil”. Continente . janeiro, 03

No livro Jardins e parques de Recife, Burle Marx afirma que “sob o ponto de vista higiênico, o jardim moderno representa nas grandes cidades um verdadeiro pulmão coletivo; sob o ponto de vista educacional, tem como objetivo trazer para o habitante da cidade um pouco de amor pela natureza, fornecer-lhe os meios para distinguir sua própria f lora da exótica e dar-lhe uma idéia nítida da utilidade do jardim, simultaneamente a uma capacidade de distinção da verdadeira beleza do pieguismo baseado em concepções falsas”. Como o próprio paisagista disse em entrevista a Jacques Leenhardt, em Nos jardins de Burle Marx, “o fato de criar uma paisagem artificial não implica uma negação nem, bem entendido, uma simples imitação da natureza. É preciso saber transpor e associar, com base em critérios seletivos e pessoais, os resultados de uma observação atenta e prolongada”. Vivendo uma segunda fase de sua expressão artística, em 1957 Burle Marx concebeu a praça Ministro Salgado Filho, em frente ao Aeroporto Internacional dos Guararapes/Gilberto Freyre, com espelhos d’água, caminhos, canteiros e bancos, cercados por


PATRIMテ年IO 39 ツサ O artista plテ。stico Francisco Brennand executou em seu museu-oficina um projeto de praテァa feito pelo paisagista em 1992

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Na praça do Derby, além da vegetação e do espelho d’água, formas arquitetônicas e caminhos racionais

linhas curvas. “É uma unidade plástica que surpreende pela importância da vegetação”, afirma Ana Rita Carneiro. Segundo ela, o principal elemento da praça é o espelho d’água, que parece penetrar na vegetação variada e contínua, mostrando a combinação dos agrupamentos vegetais. O Conde Maurício de Nassau foi quem iniciou a criação do parque em torno do Palácio de Friburgo, que depois viria a se tornar a praça da República. O espaço logo se tornou o centro político-cultural do Recife, mas foi destruído pouco depois da expulsão dos holandeses. Com a construção do Palácio do Governo, em 1841, o Conde da Boa Vista começou a restauração daquele espaço. “Com a vinda de D. Pedro II e a estada da família real no palácio, em 1859, o local passou a ser chamado Campo das Princesas, sendo cogitado o seu ajardinamento. Em 1874, foi executada uma proposta de Emile Beringer”, conta Ana Rita. A denominação de praça da República surgiu um ano após a proclamação do novo regime. Na década de 30, aconteceram a inauguração do Palácio da Justiça e a reforma concebida por Burle Marx, que conservou os dois eixos ortogonais do projeto, colocando, no lugar do antigo coreto, um lago com uma fonte, demarcado por palmeiras imperiais e estátuas no entorno. “Na

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A praça Euclides da Cunha, inaugurada em 1935 com plantas sertanejas, provocou polêmica


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Com amplos espaços e vitórias-régias nos grandes tanques retangulares centrais, a praça de Casa Forte é uma das mais belas do Recife

reforma de 1999, houve poucas mudanças no projeto de Burle Marx, sendo preservados, inclusive, os caminhos que levam ao Teatro de Santa Isabel, à Secretaria da Fazenda, ao Liceu de Artes e Ofícios e aos palácios do Governo e da Justiça”, comenta a autora de Espaços livre do Recife. Famosa pela decoração de Natal, quando se torna atração turística, a praça do Entroncamento, nas Graças, também foi reformada pelo paisagista e se destaca pelas enormes palmeiras imperiais e mangueiras. Burle Marx criou ainda os jardins do prédio da Sudene, da Celpe e do entorno da Capela de Nossa Senhora da Conceição, no Parque da Jaqueira, além de ter deixado um projeto de paisagismo para o campus da UFPE que nunca foi executado. Em 2000, o artista plástico Francisco Brennand realizou em sua oficina, na Várzea, o projeto de uma praça feito por Burle Marx em 1992. As criações do artista estão espalhadas por todo o mundo. No Brasil, as principais obras são o parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, os jardins e esculturas para o parque Anhembi e o Jardim Botânico, ambos em São Paulo. Em Brasília, há ainda os jardins para o Eixo Monumental de Brasília e para o parque zoobotânico, além do projeto dos jardins, terraços e painéis em tapeçaria para o Palácio do Itamaraty. No exterior, os destaques são: o Parque de Las Americas (Santiago, Chile), os jardins de seis pátios internos, o edifício da Unesco (Paris, França), o Jardim das Nações (Viena, Áustria) – em colaboração com o arquiteto Karl Marg – e o jardim que circunda as Petronas Towers, na Malásia. As torres gêmeas são a principal atração turística de Kuala Lumpur, capital daquele país, pois são os prédios mais altos do mundo, com mais de 400 metros de altura. “Burle Marx é referência em todos os países. Eu não tinha essa dimensão até viver na Inglaterra, onde ele é considerado um expoente do paisagismo. O planejamento das cidades está voltando à discussão, ressaltando-se as importâncias dos espaços públicos. Fomos premiados por ter criações de Burle Marx aqui e elas precisam ser mais valorizadas. Estamos lutando para que suas obras sejam tombadas pelo Patrimônio Histórico da Humanidade”, adianta Ana Rita Sá Car-

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neiro. A atitude é totalmente apoiada por outro arquitetos, como o professor de arquitetura da UFPE Luiz Góis Vieira Filho: “Para criar uma praça, não basta apenas colocar banquinhos e luzinhas. Tem de haver um projeto que agregue uma função cultural ao espaço. É necessário se dar o devido valor à linguagem da arte nas construções da cidade”.

Visão da fonte ao centro da praça da República

A praça da República é cercada de prédios imponentes, entre eles o Teatro de Santa Isabel

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Praça Pinto Damaso, na Várzea, com suas fileiras de palmeiras imperiais


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PRAÇAS PROJETADAS POR BURLE MARX NO RECIFE: Praça de Casa Forte (1934) – Casa Forte – 14.148,47 m² Praça Ministro Salgado Filho (1957) – Ibura – 16.133,50 m² Praça da República (reforma em 1936) – Santo Antônio – 20.336,44 m² Praça do Entrocamento (reforma em 1936) – Graças – 5.824,14 m² Praça do Derby (reforma em 1934) – Derby – 26.900,71 m² Praça Euclides da Cunha (1934) – Madalena – 6.254,35 m² Praça Faria Neves (1940-50) – Dois Irmãos – 8.629,28 m² Praça Arthur Oscar (reforma em 1934) – Bairro do Recife – 2.905,46 m² Praça Dezessete (1935) – Bairro de São José – 2.049,72 m² Praça Pinto Damaso (anos 30) – Várzea – 6.647,02 m² Fonte: Livro Espaços livres do Recife

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Da oca à catedral Livro traça a evolução da arquitetura brasileira dos indígenas a Brasília

Casa-aldeia Yanomami

Concebido para integrar o Projeto UFPE – 500 Anos de Descobrimentos, da Universidade Federal de Pernambuco, o livro Arquitetura Brasil 500 anos – uma invenção recíproca, organizado pelo arquiteto Roberto Montezuma, ultrapassa a meta de mapear a evolução da habitação brasileira, desde os índios até a contemporaneidade, fornecendo subsídios para uma ref lexão sobre a própria nacionalidade. Financiado pela Lei de Incentivo à Cultura, o livro tem texto bilíngüe e apresentação gráfica apurada. São 327 páginas em formato 27x27cm, todo em cuchê e com capa dura, tendo ampla reprodução de fotos em P&B e em cores, desenhos, croquis, plantas e fac-símiles de documentos. Esse é primeiro volume de dois, e percorre o longo caminho que vai da oca à catedral de Brasília. O capítulo inicial é assinado pelo arquiteto Jorge Derenji. Mostra como a habitação dos indígenas era Continente . janeiro, 03

organicamente integrada ao ambiente, aos ritos e costumes sociais, além de proporcionar defesa e conforto. A partir de relatos, descrições e ilustrações deixados pelos europeus que aqui estiveram, desde Pero Vaz de Caminha, Derenji estabelece quatro tipos básicos de estruturas obedecidas pelas casas dos índios: o circular, o elíptico, o retangular e o poligonal. São habitações comunitárias e posicionadas em forma circular, retangular ou linear, neste último caso alinhadas paralelamente à margem de um rio. O capítulo dá mais ênfase ao aspecto técnico das construções, embora tangencie problemas como o avanço predatório do homem branco, descaracterizando a cultura indígena, o que também se ref lete em suas moradias, objeto primeiro do livro. Geraldo Gomes assina o capítulo que vai de meados do século 16 até as primeiras décadas do século 20. O arquiteto constata que a tão usada expressão


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No livro são apresentadas características técnicas de cada fase da arquitetura brasileira e sua contextualização

“arquitetura colonial” é imperfeita. “Colonial não é categoria de análise de arquitetura”, afirma. Para tornar as coisas mais precisas, mostra que de 1500 a 1809 a arquitetura brasileira foi maneirista, barroca e rococó. No fim do século 18, no Pará, surgiu uma tendência classicizante, e, a partir de meados do século 19, começou uma onda de ecletismo que cresceu até os anos 30 do século 20. Essa clarificação nos conceitos define bem o capítulo, talvez o mais didático de todo o livro. Alia descrições técnicas a comentários sobre a situação econômica, política e social, contextualizando cada tendência arquitetôFotos: Reprodução

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46 PATRIMÔNIO nica. Mostra como, por exemplo, a imigração estrangeira, no final do século 19, trouxe não só novos tipos arquitetônicos, mas também a idéia de que ser progressista era adotar modas e produtos europeus. Isso promoveu o surgimento de prédios como o Palacete de Manguinhos, no Rio de Janeiro, em estilo neomourisco, e chegou ao paroxismo com a construção de casas quase que em sua totalidade com materiais importados, como a loja Paris n’América, fundada em 1870, em Belém, ou a estação ferroviária de Bananal, pré-fabricada na Bélgica, em 1889. Geraldo Gomes subdivide o amplo arco de seu capítulo abordando, por tópicos, a arquitetura de defesa, com suas fortalezas; a arquitetura rural, com seus engenhos; as Casas de Câmara e Cadeia; a arquitetura das Ordens e Irmandades Religiosas; a arquitetura civil das

cidades coloniais, e mais o neoclassicismo, o ecletismo, a arquitetura do ferro e a arquitetura neocolonial. Um capítulo vital é assinado por Carlos Eduardo Comas. É o que cobre a incubação, emergência, consolidação, hegemonia e mutação da arquitetura moderna no Brasil. Esmiuçando detalhes técnicos de cada um dos prédios que marcaram o período, numa retórica vigorosa e colorida, Comas começa pela análise da construção dos históricos prédios do Ministério da Educação e Saúde – com projeto de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Azevedo Leão, Jorge Moreira, Affonso Eduardo Reidy e Ernani Vasconcelos, e consultoria de Le Corbusier, entre 1937 e 1943; e do Edifício-sede da Associação Brasileira de Imprensa – projetado pelos irmãos Marcelo e Milton Roberto, entre 1936 e 1938, ambos no Rio de Janeiro.

Estação ferroviária de Bananal, São Paulo, pré-fabricada na Bélgica, em 1889

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Interior da capela do Engenho Bonito, em Nazaré da Mata, Pernambuco

Depois enfoca o Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova Iorque, em 1939, que deu visibilidade internacional a uma arquitetura ousada: “Elegância e graça se aliam à ambigüidade, exuberância, extroversão e porosidade para falar da natureza risonha do trópico epicurista numa ocasião de festa e materializar ambiência adequada a um Pavilhão de Feira. O contraste entre as fachadas de rua e de jardim lembra o contraste entre fundo de palco e cortina do cenário, tem teatralidade que diverte na construção efêmera”, descreve. Comas registra, ainda, a progressiva independência dos arquitetos brasileiros ante Corbusier, tido como paradigma de inspiração para a escola carioca. O capítulo final é um testemunho pessoal de quem esteve presente no momento mais espetacular da história da arquitetura brasileira: a construção de Brasília. É assinado por Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa, o autor do Plano Piloto que norteou a instauração da nova capital do país. Elisa mostra como o contexto da época propiciou o ato revolucionário de construir no deserto toda uma cidade em tempo recorde; como a conjunção de quatro personalidade basilares – o presidente Juscelino Kubitschek, o construtor Israel Pinheiro, o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer – foi essencial para que o projeto desse certo; como o golpe dos militares traiu o espírito inicial da empreitada, a partir do desmantelamento da Universidade de Brasília, onde tinham se concentrado as cabeças pensantes mais criativas do país; e como é preciso manter atenção contínua para conservar o que preserva a qualidade inicial do projeto da cidade, consertar o que foi desvirtuado e criar novas soluções para os problemas sócio-urbanos que surgem. O livro se fecha com uma ref lexão do arquiteto Edson da Cunha Mahfuz a respeito da perda de rumos da arquitetura brasileira atual. Ele propõe que se volte o olhar para o que foi produzido entre os anos 30 e 60, porque, mais do que um estilo, ali estaria um modo de concepção formal atemporal. Um parâmetro para levar o país a ter, novamente, uma arquitetura autêntica, forte, própria.

Arquitetura Brasil 500 Anos – uma invenção recíproca. Org. de Roberto Montezuma Universidade Federal de Pernambuco/Instituto Arquitetura Brasil 328 p. R$ 130,00 Continente . janeiro, 03


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48 CONTEMPORANEIDADE Julio Ludemir entrevista Adriana Rossi

A geopolítica das drogas Pesquisadora alerta para as relações complexas (e perigosas) entre narcotráfico, guerrilha, militarização e interesses políticos, num quadro onde a Amazônia desempenha um papel vital A filósofa italiana Adriana Rossi, professora da Faculdade de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade de Rosário, na Argentina, pensa o tráfico de um modo muito diferente daquele dos nossos acadêmicos, que em geral o estudam muito mais no contexto da violência das favelas do que no das complexas relações internacionais. Apesar dessas diferenças, ela vem sendo sistematicamente convidada para os debates sobre as drogas. O interesse de Rossi pelas drogas se deu de um modo casual. Foi no ano de 1989, quando era diretora acadêmica da Associação LatinoAmericana de Direitos Humanos, cuja sede fica em Quito. Na época, viu refugiados colombianos chegando ao Equador, muitos dos quais perseguidos pela polícia, pelo exército e pelos nar-

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cotraficantes. O assunto pareceu-lhe fascinante e, com verbas da União Européia, fez o seu primeiro trabalho de campo, percorrendo ao longo de três anos todo o circuito da droga, da produção de matéria-prima à lavagem de dinheiro, passando pelas plantações de coca. Autora do livro Narcotráfico y Amazonia Ecuatoriana ela denuncia que a luta antinarcóticos está sendo usada como um pretexto para uma nova militarização da América do Sul. Ela está pesquisando o circuito ilegal das drogas, indústria bilionária que em seus cálculos movimenta cerca de 600 bilhões de dólares por ano e que estranhamente só faz crescer à medida que é combatida. Nesta entrevista, ela discute as razões por que as equivocadas estratégias de combate ao narcotráfico são mantidas.

Fotos: Nando Neves / TYBA ; Carlos Humberto TDC / Imaginatta


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Adriana Rossi na inauguração de uma loja comunitária subvencionada pela cooperação européia na zona cocalera de Yungas de la Paz, Bolívia. Na página anterior: comércio de cocaína, um dos elos da complexa rede do narcotráfico

Como a Sra. conseguiu acesso ao mundo do narcotráfico para fazer o seu trabalho de campo? Inicialmente, aproximei-me de pessoas que estavam estudando o fenômeno. Essas pessoas me puseram em contato com outras pessoas. Seguindo a cadeia de contatos, consegui chegar aos camponeses, aos produtores da pasta base e aos temidos sicários do Cartel Medellín, que na época era controlado com mão de ferro por Pablo Escobar. De que forma está se dando a luta antinarcóticos? Nesse momento, a luta antinarc óticos é uma luta militarizada. O narcotráfico devia ser, quando muito, uma questão policial, jamais um problema militar. Os militares não têm nada a ver com o problema.

Foto: Arquivo pessoal da Dra. Rossi

A Sra. sabe que, no Brasil, se fala muito na entrada dos militares nessa luta? Isso não é um problema brasileiro. A mesma reivindicação é feita em toda a América Latina. Na verdade, a construção desse discurso remonta a meados da década de 1970, nos Estados Unidos. Naquela ocasião, surgiu um discurso político, que posteriormente se tornou um discurso oficial, segundo o qual as drogas eram uma ameaça à sociedade norte-americana. Segundo esse discurso, as drogas punham em perigo o futuro dos Estados Unidos, pois eram consumidas por aqueles a quem caberia construí-lo, os jovens. Foi seguindo essa lógica que as drogas e os traficantes se tornaram uma ameaça para a segurança nacional. Dentro do país, a droga é uma questão policial para os Estados Unidos. Mas como o tráfico tem suas bases fora das fronteiras do país, surge um inimigo externo para eles. Abre-se então

uma porta para uma possível intervenção dos militares na questão. Mas como a Sra. mesmo disse, essa base do tráfico está além das fronteiras dos Estados Unidos e, portanto, eles não poderiam intervir sem o consentimento dos países envolvidos na produção da droga. Sim, a questão também envolvia os exércitos da América Latina, que não concordavam com o novo papel que lhes foi proposto. Para eles, a droga era uma questão policial. Foi aí que os Estados Unidos elaboraram uma nova teoria, segundo a qual o tráfico de dro gas estava diretamente vinculado à subversão. A subversão, segundo essa teoria, quer destruir os incipientes Estados democráticos da América Latina. Como era a democracia que estava em questão, justificava-se uma intervenção militar.

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Seria o pretexto para um novo ciclo militar? É o que me parece. Não sei se há condições para que ele saia vitorioso. Mas estão dadas as condições para a sua instalação. A sociedade latino-americana ainda vê com receio os militares, como na Argentina, por exemplo, onde a sociedade ainda hoje está traumatizada com os 30 mil desaparecidos da ditadura. De qualquer forma, em alguns países alguns deles, devido à sua postura política, se tornaram uma referência para importantes segmentos da população. Por outro lado, o povo aceita o discurso oficial e o internaliza, principalmente por causa dos altos níveis de insegurança que todos estamos vivendo. Também não podemos achar que os militares, que ficaram sem o inimigo tradicional e sem um papel definido com a derrocada mundial do socialismo e a globalização da economia, vão desaparecer institucionalmente. Eles estão procurando uma nova identidade, algo que substitua o discurso anticomunista por trás do qual o exército expandiu a sua esfera de inf luência

no período pós-guerra. E o exército precisa de conf litos, guerras, de algo que justifique o conceito de segurança nacional. Não somente ele, mas a própria indústria bélica. Nesse sentido, a luta antinarcóticos é perfeita. Ela envolve armamentos mais sofisticados, equipamentos de inteligência, toda uma nova tecnologia que modernizaria o equipamento dos exércitos latinoamericanos e impulsionaria a indústria bélica. Claramente hoje em dia isso vai aumentar graças à luta antiterrorista. Quer dizer que, por trás de toda essa paranóia contra as drogas, estaria apenas uma questão de mercado para a indústria bélica? Não sei o que vem primeiro no meio desse intrincado complexo de interesses. Mas há outras questões de que não falei até agora, como o controle sobre a região amazônica, tido como estratégico para o futuro do mundo, e a própria hegemonia econômica do continente, colocada na ordem do dia com a imposição da Alca e o desmantelamento do Mercosul.

Exército de El Salvador em treinamento contra a guerrilha

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Foto: Carlos Humberto TDC / Imaginatta


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Na prática, como está se dando a luta antinarcóticos? O narcotráfico, para os Estados Unidos, é um fenômeno que envolve todos os que trabalham nesse circuito ilícito da droga, dos barões do pó às mulas que transportam a droga de um lugar para outro, passando pelo garo t o que faz aviãozinho na rua e pelos próprios camponeses produtores de plantas ilícitas. Os Estados Unidos têm um discurso nivelador, tratando todos os elos da droga como perigosos narcotraficantes, sem fazer nenhuma diferenciação das responsabilidades que há dentro desse circuito. Eles esquecem que a maioria das pessoas vinculadas ao circuito ilícito das drogas não tem alternativas econômicas e culturais. Mas a realidade está aí. Basta olhá-la para ver que os chamados cocaleros são camponeses que se apossam de terras impro dutivas ou mineiros que perderam seus empregos depois que as minas bolivianas foram fechadas. Ou então são pessoas que não têm trabalho nas cidades, que foram expulsas de um sistema econômico e social. O pior de tudo é que, além da repressão, não existe nenhuma estratégia para retirá-las da economia ilegal. As que existem, como o chamado “desenvolvimento alternativo à economia ilegal”, não dão resultados por serem muito mal planejadas. O que a Sra. fala é um contrasenso. De um lado, há um Estado que se acha no direito de intervir militarmente na situação. Por outro, esse mesmo Estado ignora o problema social da população que, sem alternativas de sobrevivência, abraça o crime. Há um Estado que, em sua reestruturação, em nome da modernização e globalização da economia, de toda essa política de ajustes, se retira de determinados setores, cortando principalmente os recursos destinados à educação, à

Foto: Nando Neves / TYBA

saúde, enfim, à satisfação de necessidades básicas de uma população totalmente alijada da estrutura econômica atual. Impossibilitada de sobreviver com os pequenos trabalhos que podia fazer e hoje não existem mais, essa população vai encontrar no narc otráfico toda uma estrutura social que lhe dará o trabalho, a saúde, a educação e o dinheiro que o circuito legal da economia não lhe garante. Quer dizer então que o narcotraficante é um bom patrão? Não. Ninguém que coloque um empregado na ilegalidade, que torne criminosas as pessoas que entram para essa atividade, jamais será um bom patrão. Mas quando comparado às alternativas de que as pessoas dispõem no circuito legal da economia, o narcotraficante é um bom patrão. Pablo Escobar, que ficou famoso por ter matado muitas pessoas, também foi legendário por lembrar-se das pessoas cuja origem era semelhante à sua, vindas da classe pobre. Ele, por exemplo, construiu um bairro para as pessoas que não tinham casa. As pessoas tinham a

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Traficante no alto do Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro: para além da pobreza, deve-se perguntar por que as pessoas se drogam

impressão de que ele se preocupava com elas. Quando morreu, o povo de Medellín chorou sua morte. Ele pagava bem? Sim. Quanto? Não sei. Mas os meninos me disseram que o narcotráfico pagava bem. Aliás, eles sabiam se a pessoa que iam matar era importante ou não pelo cachê que recebiam. Nunca sabiam quem iam matar. Sabiam apenas as características físicas e o lugar em que ela seria executada. Mas antes de verem a repercussão na TV dos crimes que cometiam, os garotos sabiam se aquela pessoa era importante ou não pelo dinheiro que recebiam para matá-la. Garotos? Sim, garotos. Com 12 anos, os garotos tentavam mostrar serviço aos narcotraficantes, para que eles soubessem que são bons e podem ser contratados.

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No entanto, só se tornavam sicários com 15 anos. Com essa idade, eles já podiam receber encomendas para executar pessoas. Dos garotos que conheci, apenas um tinha mais de 18 anos. Quer dizer que eles só têm três anos de vida útil? Eles sabiam que não iam durar muito. Aproveitavam para dar o dinheiro para a família, principalmente para a mãe. Em sua maioria, vinham de famílias totalmente desestruturadas, com pais ausentes ou desempregados. Os garotos pegavam o dinheiro e davam para que a mãe pagasse os estudos dos irmãos. Essa era a troca. Essa era a única alternativa que tinham para uma vida totalmente miserável. Muitas vezes, iam à igreja antes de matar alguém. Lá, pediam à Virgem Maria para que lhes ajudasse a fazer o seu trabalho a contento. Perguntei então: por que a Virgem Maria? Eles diziam que a Virgem Maria era a mãe. E a mãe sempre perdoa os seus filhos.

Que belo! Sim. Mas que terrível! Que trágico! E o famoso acordo entre o narc otráfico e a guerrilha? Do modo como a Sra. fala, eles são inimigos. A situação é realmente muito complexa. Nesse momento, eu estaria mentindo se lhe dissesse que a situação é assim ou assado. Quando estive, em 1995, na zona fronteiriça de Equador e Colômbia, todas as informações que recebi e cruzei apontavam para a seguinte situação: em determinados lugares, o narcotráfico era muito poderoso e tratava de encurralar a guerrilha, dando combate a ela. Em outros lugares, onde a guerrilha era mais forte, o narcotráfico se submetia às leis da guerrilha, que cria uma espécie de Estado de Justiça Social nas zonas que controla. Nesses lugares, os narcotraficantes tinham de pagar bem os camponeses e os operários que trabalhavam na fabricação da pasta base. Caso

Foto: Nando Neves / TYBA


CONTEMPORANEIDADE 53 » contrário, a guerrilha intervinha e matava o traficante. Havia outros lugare s em que existia um equilíbrio de forças entre o narcotráfico e a guerrilha. Nesses lugares, palco de ferozes combates, eles faziam acordos de convivência. Os guerrilheiros mantinham afastados a polícia e o exército de um modo tal que o narcotráfico pudesse seguir com o seu negócio. Em troca de quê? Para manter os militares longe, os guerrilheiros exigiam um estado de paz social e armas.

Isso não seria o que o nosso Fernandinho Beira-Mar estaria fazendo na Colômbia? Não sei. Sei apenas que a guerrilha está em uma zona produtora de coca. Há setores da guerrilha empenhados em apresentar um plano para a substituição do plantio de coca, para que o camponês abandone o cultivo e se insira no circuito legal da economia. Mas há setores da guerrilha que, embora não tenham se metido no negócio da droga, têm relações óbvias com o narcotráfico. No momento, a situação é muito confusa. Não tenho ido à região e não posso fazer afirmações sobre a correlação de forças entre essas duas facções. Creio, no entanto, que há situações em que há alianças e outras em que há enfrentamentos. Nos últimos tempos, vieram à tona alguns fatos que implicam a guerrilha ao narcotráf ico, mas, mesmo assim, continuo sustentando que as coisas não estão de todo claras e uniformes. Na zona de Putumaio, há um grande enfrentamento entre guerrilheiros e paramilitares. Não é essa a região do Plano Colômbia? Sim, é lá que estão sendo feitas as fumigações. Mas lá não são apenas as plantações de coca que estão sendo destruídas. As culturas de subsistência dos cocaleros também estão sendo arrasadas. Em Putumaio, há uma massa de camponeses que possuem no máximo dois hectare s de terra. E eles não se dedicam ao cultivo da banana, da laranja ou de outras plantações legais simplesmente porque não há mercado para elas.

Jovem e criança na secagem de coca em Chapare, trópico de Cochabamba, Bolívia

Foto: Arquivo pessoal da Dra. Rossi

Eles não têm nenhuma alternativa aos cocales? O Plano Colômbia foi formulado pelo presidente Pastrana, em 1998. O objetivo inicial era o desenvolvimento da chamada zona cocalera, criando, com ele, uma alternativa econômica para que os camponeses e todas as pessoas envolvidas no negócio das drogas pudessem sair do circuito ilegal da economia. O Plano Colômbia original tam-

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Vereda da cocaína em Chipiriri, Chapare, trópico de Cochabamba, Bolívia

bém previa um combate ao narcotráfico, mas a luta proposta era contra as grandes organizações do norte do país, não contra as pequenas, que em sua maioria ficam no sul. Mas no momento em que o governo procura verbas internacionais para colocar em prática esse grande plano, surge o interesse dos Estados Unidos. E para financiá-lo, os Estados Unidos impuseram uma série de modificações que, na prática, o desfiguraram. O plano financiado pelos EUA fala de uma reforma do Estado, de uma reforma da justiça e de uma luta antinarcóticos com um componente militar muito forte. O plano atual visa erradicar, em seis anos, 50% das plantações e do tráfico concentrado na zona sul da Colômbia, aquela que faz fronteira com o Equador e o Brasil. Mas deixa de lado as grandes plantações mais ao norte, sobretudo na zona fronteiriça com a Venezuela, para onde se deslocou a poderosa organização do narcotráfico.

Ou seja, eles estão trabalhando na zona menos importante? Não. É uma zona muito importante. Porque somando os grandes com os pequenos, a produção é considerável. A região sul tem apenas os pequenos. Não, mas todos os pequenos estão lá. Mas o mais importante é que lá é uma zona de guerrilha, é bastião das FARCs. Como segundo eles existe uma narcoguerrilha, seria preciso eliminar esse perigo, que seria um perigo para toda a América Latina. Os Estados Unidos tentaram convencer uma série de países da América Latina de que há uma narcoguerrilha e de que existe uma possibilidade de expansão do conf lito. Foi esse o pretexto que usaram para convidarem os governos a participar diretamente do Plano Colômbia. A estratégia não teve muito êxito, mas

é possível que o tenha mais em um futuro próximo, sobretudo a partir da classificação da guerrilha colombiana (e, para dizer a verdade também, dos paramilitares que giram em torno da AUC, Autodefensas Unidas de Colombia) de terrorista. A luta contra o terrorismo é uma questão militar, embora as raízes do problema estejam nas desigualdades decretadas neste planeta por um sistema político, cultural e econômico discriminatório. Isso faz com que não haja mais necessidade de convencer através de teorias e conceitualizações muito rebuscadas. Agora basta saber com que critérios foram declaradas terroristas essas organizações. Nos encontramos de novo com discursos oficiais niveladores e generalizantes, onde o terrorista é guerrilheiro e o guerrilheiro é narc o. Essas generalizações são muito perigosas. Tudo pode não passar de um mito?

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Foto: Arquivo pessoal da Dra. Rossi


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No começo, eu creio que foi um grande mito. Depois a realidade se complicou tanto que ninguém em sã consciência pode dizer se há ou não a narcoguerrilha. Creio que estão utilizando em demasia o fato de que a guerrilha tem vinculações em alguma zona com o narcotráfico para dizer que, se há uma narcoguerrilha, ela vai se estender por toda a América Latina. O Brasil não quer se envolver no pro -

blema da Colômbia. O Brasil está tratando de fortalecer suas fronteiras, para impedir que esse conf lito envolva o país. O Brasil não quer nem os Estados Unidos nem os indesejáveis na selva. Quem são os indesejáveis? Os indesejáveis não são apenas os guerrilheiros ou narcotraficantes, mas os interesses transnacionais. Mas o que os EUA estavam fazendo? Estavam pro -

A luta antinarcóticos é uma luta militarizada. O narcotráfico devia ser, quando muito, uma questão policial, jamais um problema militar

curando um aliado para contrapor-se ao Brasil. E esse aliado está sendo a Argentina. Qual a importância da Argentina nesse processo? Com a Argentina, foi assinado um acordo depois da última reunião de cúpula, realizada em Manaus, no final de 2000. Essa reunião não definiu nada a respeito do Plano Colômbia. O documento produzido ao seu final admitia a existência do perigo do narcotráfico e sua conexão com a guerrilha, mas, nele, os países não se comprometiam com o Plano Colômbia. Mas, depois, os Estados Unidos, Chile e Argentina assina-

Grupo de operações especiais da Marinha Brasileira em treinamento na selva, de olho nas fronteiras

Fotro: Carlos Humberto TDC / Imaginatta

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Cartaz com foto de Pablo Escobar, assassino e traficante: o povo de Medelín chorou a sua morte

ram um acordo secreto, do qual se sabe apenas que vai haver um intercâmbio de informações que não podem ser compartilhadas com outros países, como se a Argentina não fizesse parte do Mercosul. Os brasileiros estavam enojados com isso. A Argentina também emprestou e continua emprestando seu território para que se façam manobras militares conjuntas, com a participação de militares de até 11 países. Essa é a primeira vez na história que tantos exércitos participam de manobras militares na América do Sul. Essas operações, todas elas financiadas pelos Estados Unidos, ganharam o nome de Cabañas 2000 e 2001, e fazem parte de um programa de treinamento chamado Sudistan. O Sudistan é o nome de um hipotético país dividido em dois, no qual surgiram milícias e guerrilhas. Ele prevê a entrada de uma força de paz multilateral para neu-

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tralizar a guerrilha, impedir que as milícias façam acordos e dar ajuda humanitária à população. Não se fala de uma luta antinarcóticos, mas de uma luta anti-subversiva. À luz do que está acontecendo com o Plano Colômbia, onde o componente da luta contra o narcotráfico foi oficialmente transformado em uma luta contra a subversão, por ser terrorista além de narcotraficante, essas manobras assumem sua verdadeira dimensão. Como é que a Sra. sabe disso, se esses documentos são secretos? Jornalistas sérios argentinos tiveram acesso a esses documentos e os divulgaram na imprensa. Pelo que a Sra. está falando, a principal arma dessa guerra é o mito. Sim.

A Sra. não estaria, como eles, criando um discurso a partir de uma visão paranóica da sociedade? Para mim, tudo não passa de um mito. Existe uma situação social muito difícil e muito dura na Argentina, que está atravessando um momento economicamente difícil e onde o povo está perdido, sem saber o que fazer. Existe algum risco de uma “colombianização” da Argentina? Não, de jeito algum. O que acontece é que se formam grupos de pro testo contra essa situação, e os militares estão utilizando o mito da narcoguerrilha para poder reprimi-los. Cá estamos nós falando do mito novamente. O narcotráfico é uma porta para os militares e os Estados Unidos dominarem a América do Sul, sobretudo os ter-

Foto: Antonio Scorza / AFP


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As relações entre a guerrilha e o narcotráfico na Colômbia são complexas, ora firmando alianças, ora partindo para o confronto

ritórios amazônicos. Não é de hoje que os Estados Unidos têm um grande interesse na região, mas agora, com o problema da água, que será um dos elementos mais importantes no desenho do mapa do poder, esse controle é fundamental. Quem controlar as fontes de água vai ter um grande poder porque, como todos sabemos, a falta desse recurso não renovável será responsável por uma crise muito forte que em breve o planeta vai enfrentar. A hipótese de conf lito mais próxima é determinada pela falta de água. Quem tiver o controle da fonte de água vai ter poder. Afinal de contas, o que se está combatendo, a guerrilha ou o narcotráfico? Os EUA temem o narcotráfico. Mas como segundo seu discurso a guerrilha está metida no narcotráf ico, eles matam dois pássaros com um só tiro. E como disse uma autoridade do governo

Foto: Luis Acosta/AFP

anterior, basta de falar se a guerrilha está metida ou não com o narcotráfico: o importante é que ela tem de ser eliminada. Então, por que a concentração das ações na região sul? A guerra contra as drogas é uma farsa. Em décadas, foram gastos milhões de dólares na luta antinarcóticos e isso só fez aumentar a extensão dos cultivos. Realmente, o Peru e a Bolívia hoje só têm pequenas plantações, mas, em compensação, as áreas da Colômbia dedicadas ao cultivo da coca são tão grandes quanto nos países de que provieram. Teria havido apenas uma transferência das plantações? Mais do que isso. A luta antinarc óticos deu uma dimensão continental a uma questão andina. Antes dessa para-

nóia, a produção e o tráfico estavam restritos ao Peru, à Colômbia e à Bolívia. No momento em que começa uma luta antinarcóticos, de enfrentamento do cartel colombiano, o que os narcotraficantes fizeram? Buscaram outras saídas. É aí que entra o Brasil. É aí que a rota argentina, que era absolutamente secundária, começa a ser mais usada e a se tornar importante. É aí que surge a rota do Equador, onde atualmente a droga passa por céu, por mar e por terra. A Venezuela também se tornou não só um país de trânsito, como também um produtor de coca. Quando o tráfico concentrado na região andina começou a ser combatido, as grandes organizações procuraram outros países para se instalar e montar sua estrutura. É o que aqui a gente chama de “política do cobertor curto”.

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58 CONTEMPORANEIDADE

Oficialmente, isso se chama “efeito globo”. Mas eu prefiro chamar de “mancha de óleo”. Hoje, não há nenhum país na América Latina que esteja a salvo do instituto ilegal das drogas – seja como produtor, seja como país de trânsito, seja como país lavador de dinheiro. O Chile, a Argentina e o Uruguai são países lavadores, principalmente o Uruguai, onde se lava que é um encanto. O Brasil, o Suriname e até a América Central entraram nessa história. Embora do modo como a luta esteja se processando ela não dê resultado algum, as pessoas insistem na mesma metodologia. Há alguma metodologia possível? Creio que o que se tem de fazer é eliminar a base social do narcotráfico, que são os pequenos produtores, tratando de encontrar uma saída para eles dentro de uma economia legal. Também não haverá solução para o narcotráfico se os países consumidores, que não são mais apenas os do norte, não começa-

A guerra contra as drogas é uma farsa. Em décadas, foram gastos milhões de dólares na luta antinarcóticos e isso só fez aumentar a extensão dos cultivos

rem a tentar entender por que as pessoas têm necessidade de se drogar. E a legalização? Há que se levar em consideração que as organizações narcotraficantes dependem de duas coisas – da expansão do consumo e da ilegalidade. A ilegalidade dá um enorme valor agregado à mercadoria. As drogas proporcionam uma acumulação de capital quase sem precedentes. No seu circuito, circulam 600 bilhões de dólares por ano. Creio que a solução do problema é parar de falar em termos de lutas ou confrontos. Falemos da solução do problema do consumo e da pobreza nos países pro dutores. Na África, por exemplo, estão aparecendo plantações de coca.

Mas os africanos estão no circuito há bastante tempo. Como rota da cocaína para a Europa, não como plantadores. Basta então que se solucione o problema da pobreza? Já disse que a solução também não será encontrada enquanto não se discutirem as razões que levam a sociedade a consumir droga. Mas com certeza a estratégia adotada até agora, a do confronto, se mostrou inócua, conseguindo apenas expandir o circuito ilícito das drogas para outros países quando a luta em um deles recrudesce. A luta se mantém porque há outros interesses por trás que não são propriamente a eliminação da problemática das drogas. Por trás de tudo, está o uso da luta antinarcóticos para militarizar um continente para poder ter domínio territorial sobre determinados recursos que estão concentrados justamente na zona de produção da coca, ou seja, o controle da selva amazônica. Em um continente que tem crescentes níveis de pobreza e no qual há movimentos de protestos violentos e pontuais de um povo que não encontra saídas e soluções para os seus problemas, o exército precisa ressuscitar a velha doutrina de segurança nacional para controlar a população. O inimigo agora não é mais o comunismo internacional, mas o narc otráfico, que, segundo o discurso ofical, tem relações com a subversão e, através desta, com o terrorismo. Então, para poder defender o sistema econômico e social que exclui a gente, que não soluciona

Coronel Hamilton, comandante do exército brasileiro, mostra a posição das equipes que fazem fronteira com a Colômbia e o Peru. Na página seguinte: colheita de coca em Chapare, Bolívia

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Foto: Antônio Scorza / AFP


CONTEMPORANEIDADE 59 » os problemas do povo, para poder mantê-lo, utiliza-se o pretexto do narc otráfico para poder intervir em segurança interna com a seguinte equação: pobre é igual a delinqüente, que por sua vez é igual a narcotraficante. Essa é a situação da América Latina. Não existe outra explicação para se manter a luta tal e qual ela vem sendo travada, embora a situação não tenha melhorado em nada. Se luto e, nessa luta, não obtenho êxito, evidentemente há algum erro em minha metodologia. Mas em vez de procurar outra solução, o que eles fazem? Resgatam o tema da segurança nacional. Somos um novo Oriente Médio? Não, não creio nessa possibilidade. São situações diferentes. Acredito mais em uma espécie de “balcanização” do conf lito do Plano Colômbia. O que as pessoas dizem dessas teses no Brasil? O importante nessa discussão é ter elementos para se discutir, para depois se formar uma opinião. Nesse sentido,

Foto: Arquivo pessoal da Dra. Rossi

ouvem-me, convidam-me, pedem-me artigos. Muita gente não concorda comigo, mas o importante é o debate. Po de ser que, no fim, eu mude. Mas, por enquanto, estou convicta das minhas concepções. O Brasil discute a droga do ponto de vista da favela, não do ponto de vista das grandes estratégias mundiais. O que a Sra. fala nos parece um pouco distante. Para nós, o problema é o traficante na esquina, a guerra de facções... No ano passado, camponeses equatorianos me convidaram para discutir os efeitos do Plano Colômbia, que, mesmo sem ter sido posto em prática, já implicava movimentações do outro lado da fronteira. Os camponeses se perguntaram que realidade ia surgir dali. Qual o significado do Plano Colômbia para eles? Eram camponeses, mineiros e agricultores que pertencem ao lado legal da economia, que não têm nenhum tipo de envolvimento com a coca, que estavam assustados com os efeitos da fumigação, que está deixando o outro lado da fron-

teira arrasado, todo amarelo. Será que isso vai nos afetar? – perguntavam-se. Já há problemas de saúde com a fumigação. A zona para onde fui era montanhosa, com problemas de comunicação com a Colômbia, sem a menor vinculação com o tráfico. Convidaram especialistas em diferentes campos para mostrar a situação do ponto de vista local e macro. Fo ram 200 pessoas ao encontro, que começou às 8 e foi até as 3 da tarde. Por que estou dando esse exemplo? Porque ele ilustra muito bem que o problema pode estar longe, mas, se deixarmos para discuti-lo depois, pode ser muito tarde para que se possa formular alguma contraproposta consistente. Creio que se precisa discutir isso. O povo tem direito de saber. Minhas pesquisas são pesquisas de campo, através da imprensa e dos documentos e dos organismos governamentais. Cruzei todas as informações e cheguei a essa conclusão. Posso dizer que não sou a única a pensar dessa forma. Somos poucos, mas há pessoas trabalhando nessa linha na América Latina.

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O Sr. Direitos Humanos Para José Gregori o terrorismo é injustificável, mas não se pode combatê-lo atropelando as conquistas da cidadania

Terrorismo, xenofobia, racismo, crime organizado, violência, corrupção. O currículo deste cidadão é impressionante. Não que ele esteja metido em qualquer dessas atividades criminosas. Muito pelo contrário. Sua trajetória de vida é toda ela dedicada à defesa da causa dos fracos e oprimidos. Aos 72 anos, o advogado e professor José Gregori, um paulistano corpulento de gestos suaves e fala serena, encarna a luta pelos direitos no Brasil. Exministro da Justiça (abril/2000 a novembro/2001), Gregori ocupa desde fevereiro do ano passado a embaixada do Brasil em Lisboa. Durante 10 anos, Gregori foi presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo em plena ditadura militar (1972/82), notabilizandose por um trabalho permanente de denúncia da tortura e da repressão política. Com a redemocratização, o ex-professor de direito e ética da PUC/São Paulo serviu em vários cargos da alta burocracia brasileira, como chefe de gabinete de ministérios, e integrou inúmeras delegações em fóruns internacionais, como a 7ª Conferência Internacional contra a Corrupção, em Beijing, China, 1995; a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, em Copenhague, Dinamarca, 1995; o Congresso Mundial da Pastoral dos Direitos Humanos, no Vaticano, 1998; a Conferência Internacional sobre

Gregori: a violência no Brasil tem múltiplas causas, não é como uma doença que tem um vírus e pode ter uma vacina

o Trabalho Infantil, em Oslo, Noruega, 1997 etc. Em dezembro passado, José Gregori esteve no Recife para participar de uma solenidade inusitada: a entrega do Prêmio José Gregori de Direitos Humanos a policiais civis e militares por promoção dos direitos da cidadania. Num saguão de um hotel à beira-mar, na praia de Boa Viagem, ele expôs sua visão sobre questões como terrorismo, violência, exclusão e xenofobia neste início de novo milênio. Gregori vê com tristeza o terrorismo como arma política alastrando-se pelo mundo, atravessando sem cerimônia a ponte do século 20 para o 21, e é taxativo ao condená-lo, por mais que se tente suavizá-lo por suas causas: “A ação terrorista é injustificável sob quaisquer aspectos, vai de encontro à civilização”. Fenômeno hoje globalizado, produz uma conseqüência altamente preocupante: “O combate ao terrorismo não justifica o emprego de métodos contrários aos direitos humanos. Não podemos combater

o terrorismo fazendo igual a ele”. Diplomaticamente, não cita nomes, mas o de George W. Bush soa como se houvesse sido pronunciado. Por fim, reconhece que as agências internacionais que têm o papel de promover a paz são hoje uma ilha num mundo conturbado, mas defende a necessidade de fortalecê-las. E o Brasil? Estamos em plena democracia. Os atentados políticos aos direitos humanos são coisa do passado. Mas parece estar se disseminando uma cultura da violência: torturas nas delegacias, grupos de extermínio, justiceiros. Do outro lado, há o crime organizado. E aumentam os casos de violência por motivos banais, entre vizinhos, dentro das casas, em brigas de trânsito. O que está acontecendo? Gregori pára um pouco para pensar. Com serenidade, analisa isso que alguns, hiperbolicamente, chamam “guerra civil não declarada”: “É verdade que tudo isso preocupa. Mas parece haver exagero. As causas da violência são muitas e complexas. Não é como uma doença, de que se conhece Foto: Lindauro Gomes / AJB

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um vírus e aplica-se uma vacina. São muitos os fatores. Hoje, a população aumentou, há mais gente nas cidades. Há famílias desajustadas, que não conseguem transmitir valores aos jovens. Há mais notícias circulando. Os meios de comunicação amplificam a violência. Passei um ano de minha vida (no Ministério da Justiça) tentando convencer os donos das emissoras de televisão a melhorar o nível da programação. Com poucos resultados. Eles enxergam as coisas como uma concorrência, uma coisa meramente comercial”. Haverá uma luz adiante? Gregori vislumbra um dado novo: o interesse da sociedade, das comunidades, a grande mobilização em torno da cidadania. “Às vezes, uma sociedade não percebe o que está acontecendo à sua volta. Não é sempre que percebe. Um dia, descobre que precisa cuidar da higiene pessoal. É a mesma coisa. Quase 100% das crianças e jovens brasileiros estão na escola. Para estudar e comer. Isso é importante. Hoje já há uma percepção do problema e o entendimento de que devemos enfrentá-lo”. Quanto ao estado das relações Brasil–Portugal, conturbadas, em tempo não muito remoto, por disputas no mercado de trabalho, envolvendo emigrantes brasileiros, o sr. embaixador navega num céu de brigadeiro: “Nossas relações atuais são boas e queremos que sejam melhores. O problema dos dentistas está resolvido. Há uma comunidade de 60 mil brasileiros. Não tem havido problemas. A maioria tem conseguido colocação. Lisboa hoje são várias Lisboas, há muita obra imobiliária, o pessoal menos qualificado tem conseguido trabalho e muitos ficam por lá. Há também empresas brasileiras atuando na construção de túneis e viadutos. E Portugal fez um enorme investimento no Brasil, no programa de privatização. Jogaram muito dinheiro aqui e têm interesse em acompanhar tudo”. Para exemplificar que as relações entre os dois países são “perfeitamente cordiais”, Gregori lembra que somente no ano passado os dois presidentes tiveram

dois encontros – em Brasília e em Portugal. Ele, então, faz uma espécie de prestação de contas: “Na área cultural, temos estreitado o intercâmbio – promovendo lançamentos de livros, levando artistas plásticos para expor. Com todo artista brasileiro que passa por Portugal a embaixada procura colaborar, apoiando. E temos estimulado os brasileiros que moAtentado terrorista à embaixada dos Estados Unidos, em Nairobi, Quênia, 1998

Foto: George Mulala / Reuters Continente . janeiro, 03


62 CONTEMPORANEIDADE ram lá a aproveitar a cultura européia, ir aos museus, conhecer a música, aproveitar a riqueza cultural de Portugal”. – Mas parece que há um certo desconhecimento de parte a parte. Paramos em Pessoa, Eça de Queiroz e Saramago. – Existe isso sim. Principalmente entre os jovens, dos dois lados do Atlântico. O jovem brasileiro de classe média que tem condições de viajar ao exterior não coloca Portugal no roteiro. E também os jovens portugueses não viajam em primeiro lugar para o Brasil.

as elites não construíram ainda um projeto de nação. Sem alterar nunca o tom da voz, Gregori comenta a provocação: – Confesso que tenho dificuldade em definir o que é essa elite hoje. Muita coisa mudou no país. Fabricamos aviões que são exportados e que não caem. Fizemos uma eleição em que votaram nas máquinas mais de 100 milhões de pessoas, e o resultado foi conhecido em seis horas. E há uma ascensão social enorme no país. A própria eleição do presidente é um atestado: um líder sindi-

A propósito, o romancista José Saramago, instado pelo repórter Geneton Moraes Neto (Continente Multicultural, nº 8, agosto/2001) a definir o Brasil em três palavras, fê-lo em forma de indagação: “Quando se decidem?” Uma leitura possível dessa boutade do prêmio Nobel:

cal e nordestino, e da região mais pobre, da seca. Muita gente ascende à elite, pela política, pelas artes. Aquela elite de que se falava, a elite monárquica, a elite dos tempos de Euclides da Cunha, não tem mais inf luência política. A elite dos clubes sociais não tem importância política.

Em seguida, fala o embaixador brasileiro em Portugal: “O Saramago é um amigo do Brasil. Sem sombra de dúvida. Ele disse isso para cutucar um amigo. Mas é apenas uma frase. Ora, o Brasil é um país grande e sou otimista quanto ao seu futuro”.

Em Portugal (Lisboa, na foto) há uma colônia de 60.000 brasileiros. As relações são “perfeitamente cordiais”

Foto: Alexandre Belém / Titular Continente . janeiro, 03


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64 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Sabores do Alvorada "Brasília é a alvorada de um novo dia para o Brasil". Juscelino Kubitschek

O presidente Lula gosta de pratos simples, entre os quais, a rabada

A porta de entrada não é como a porta de entrada de uma casa. Nem porta é. Apenas longas esquadrias de alumínio e muito vidro. O Palácio da Alvorada não é uma casa. Nem é propriamente um palácio – como os que guardamos em nossas lembranças. Mais parece repartição pública, impessoal e fria. Por fora e por dentro. Logo à entrada uma enorme sala de visitas, com poucos móveis e nenhum calor humano. Seguindo em frente, à direita, fica a sala de refeições. Ao mesmo tempo moderna e tradicional. Pé-direito também alto. Uma das paredes é só vidro – dando para vasto gramado frontal e colunas brancas que dão, a quem vê de longe, a sensação de que a construção se apóia num espelho-d’água. Mas quem ali faz refeições não chega a ter essa vista. Que as persianas estão (quase) sempre fechadas – para garantir um mínimo de privacidade e para proteger do excesso de luminosidade. A decoração é austera, refinada e equilibrada. No chão, enorme tapete persa. Na parede, uma natureza morta. Mesa, cadeiras e consolos são móveis brasileiros dos séculos 18 e 19. Sobre esses consolos, castiçais de prata e louça da Companhia das Índias. Copos de cristal. Talheres e baixelas de prata portuguesa. Em dias de festa, louça branca, com reprodução gravada em ouro das colunas do Alvorada nas bordas. No diário usa-se outra, mais simples, ilustrada com ramagens de café. Mas esse ambiente não lembra as salas de jantar a que estamos acostumados. Ninguém ali se sente verdadeiramente em casa.

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A sala mudou muito pouco, desde sua inauguração. O que tem variado são os cardápios nela servidos. E os inquilinos, claro. Primeiro foi o mineiro Juscelino Kubitschek (logo depois de breve estada no “Catetinho”), assim que Brasília foi inaugurada, em 1960. Era um amante das boas coisas da vida – inclusive comida. Entre os pratos de sua preferência, tutu à mineira, costelinha com ora-pro-nobis, leitoa assada, lombo de porco com fios de ovos, frango ao molho pardo, lombo de panela, empadão de galinha. Tudo acompanhado de angu, polenta, couve, batatainglesa, batata-doce, feijão, farofa e arroz. Sobremesa quase sempre era compota de laranja, figo e goiaba com queijo-de-minas. Além de baba-de-moça – seu doce preferido. Passa o tempo. Depois dele vieram muitos outros. Até Fernando Henrique Cardoso, com quem o refinamento afinal retornou ao Alvorada – apesar de ser tudo ali servido com muita simplicidade. Para comandar essa cozinha veio a chef Roberta Sudbrack, conhecida adepta de produtos frescos e naturais. Até plantou uma horta orgânica, por trás do palácio – onde se colhem ciboulette, sálvia, manjericão, mostarda, alface e alguns legumes. Com ela foram abandonados caldos enlatados, farinhas para engrossar molhos e carnes temperadas de véspera – que fizeram história em outros governos. Tempero só na hora de preparar o prato. Com sal e pimenta-do-reino – moída na hora, para realçar o sabor, o aroma e a textura de cada alimento. Os pratos preferidos de FHC eram salada com lascas de roast beef e

Foto: André Ferreira / Agência O Globo


SABORES PERNAMBUCANOS 65 »

mostarda de Dijon, queijo brie gratinado com alho-poró crocante, lagostins ao ragu de cogumelos, bacalhau com vinho do Porto, pargo poché em azeite de oliva e trufas, picadinho de filé com farofa de cenoura e banana à milanesa, carne assada com aipim, arroz de pato, frango ensopado com açafrão e milho verde, carne assada com aipim. De sobremesa, compota de goiaba, de abacaxi com baunilha, pudim de leite e ambrosia. Mais uma eleição e, a partir deste mês de janeiro, a culinária do Alvorada vai mudar. Por conta de novo hóspede, Luiz Inácio Lula da Silva. Nascido aqui mesmo, em terras pernambucanas – na Vargem Grande, atual Caetés. Se a chef Roberta Sudbrack quiser mesmo agradar ao novo presidente, vai ter de aprender ligeiro a fazer comida nordestina. Despojada, generosa, mas ao mesmo tempo forte e afirmativa. Como nossa gente. Café da manhã será a refeição mais forte, dando sustança para enfrentar o dia. Na mesa deverá haver sempre milho. De todo tipo – cozido, assado ou preparado no cuscuz, canjica, pamonha, angu. E mungunzá – que os africanos chamavam mu’kunza (milho cozido). Sempre servido em prato fundo, porque tem consistência de sopa. Macaxeira também – cozida, frita ou na tapioca, grude e bolo. Mais inhame, batata-doce, fruta-pão, banana comprida, charque frita, cabrito ou bode guisado, ovo, papa de sagu, aletria, araruta, coalhada adoçada com mel, queijo assado coalho ou manteiga (também conhecido como queijo do sertão) e pão. Tudo acompanhado de café, leite ferrado ou café

com leite, muitas vezes adoçado com rapadura – mais forte (rica em ferro e outros minerais) e mais gostosa que o açúcar. No almoço, aratu, siri, caranguejo, sururu, ostra, camarão, pitu (o mais saboroso dos crustáceos), lagosta. Peixes de rio – camurim, carapeba, tainha, tilápia, surubim, curimãs. E de mar – cavala (de preferência a perna-de-moça), cioba, garoupa, sirigado, beijupirá. Preparados de todas as maneiras. Mas usando, como ingrediente (quase) obrigatório, o coco. Também pratos mais fortes – mão-de-vaca, chambaril, sarapatel, cozido, dobradinha, tripa de porco (assada e misturada com farofa), bode, cabrito, carneiro ou porco guisado, carne de sol, galinha (guisada ou de cabidela). Tudo acompanhado de feijão, feito sem paio ou toucinho de fumeiro (como no sul), mas com ingredientes próprios da região – miúdos, osso de tutano, charque, costeletas de porco, lingüiça, jerimum, couve, maxixe, quiabo. Farinha também, de mandioca, de jerimum, de batatadoce. E pirão para acompanhar cozido, galinha ou peixe. Tudo arrematado por lapada de cachaça – para ajudar na digestão. No fim do dia, a ceia – que aqui, no Nordeste, se serve cedo. Na boca da noite, como se diz. Mas que, no planalto, vai sair quase sempre de madrugada. Começando com sopas de feijão, de milho, de jerimum, de batata, de verdura ou canja de galinha. Acompanhadas com alguns pratos do café da manhã. De sobremesa, sorvetes e doces de todas as frutas – mangaba, graviola, cajá, caju, goiaba, banana, manga, laranja-da-terra, carambola, araçá, mamão, jaca, abacaxi, coco. Além de batatadoce. E mais queijo – coalho, do reino ou do sertão. Sendo esses queijos, algumas vezes, cobertos com mel de engenho. Também bolos – de rolo, Souza Leão, quindim, pastel de nata. Com essas comidas pernambucanas, nordestinas a bem ver, o Palácio da Alvorada estará afinal pronto para receber, sem fazer vergonha a seu ninguém – primeiros-ministros, presidentes e reis. O presidente Lula é fiel a toda essa cozinha de Pernambuco. Com destaque para pratos simples. Entre eles charque com macaxeira e rabada. Só que sofreu inf luência das novas terras por onde andou. Para fazer companhia à rabada, gosta de polenta – prato de que aprendeu a gostar em São Paulo. Gosta de feijoada, prato típico do Rio. E gosta de churrasco, adaptação do moquém que nossos índios saboreavam mesmo antes da chegada do colonizador, em prato que acabou ficando com a cara dos pampas. Pensando bem, como é presidente de todos os brasileiros, nada melhor que começar a prestigiar todos os sabores do Brasil. Ao final, uma sugestão à chef Sudbrack. Em vez de usar vinhos importados com os quais está acostumada – Carbernet Sauvignon Elderton 98, Gewurztraminer, Cervaro Antinori, Chianti Clássico Fonterutolli, Moscato D’Asti, Vino Nobile di Monteponciano e, naturalmente, Romanée Conti – melhor servir os da região do São Francisco. Por exemplo, Vinho Branco Botticelli, Vinho Tinto Shiraz ou Espumante da Adega do Vale. Além do licor de pitanga, claro. Aproveitando, um brinde ao novo presidente – alvorada de um novo tempo, instrumento de esperança e luz do povo brasileiro. Tintim!

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66 SABORES

PERNAMBUCANOS

RECEITA: RABADA INGREDIENTES 2 kg de rabada de boi, 2 litros de água, 10 ml de vinagre, 2 cebolas picadas, 5 dentes de alho, 1 pimentão, 2 tomates picados, sal, pimenta, 3 folhas de louro, coentro, cebolinho, 2 colheres (de sopa) de extrato de tomate, 50 g de manteiga e farinha de mandioca para o pirão. PREPARO Corte a rabada na junção dos ossos e lave bem. Tempere com sal, pimenta e vinagre. Deixe tomando gosto, por algum tempo. Em outra panela, aqueça a manteiga e junte alho, cebola, folhas de louro e também a rabada. Refogue até que seque toda a água. Quando estiver bem dourada, junte pimentão, coentro, cebolinho, tomate, extrato de tomate e água (de preferência, quente). Deixe cozinhar por bastante tempo. A carne deverá ficar bem macia. Se preciso, junte mais água. PIRÃO Retire parte do caldo da rabada e leve ao fogo, em uma panela. Quando ferver, junte a farinha de mandioca, aos poucos, mexendo rapidamente, até chegar à consistência do pirão.

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Foto: Adriana Calderoni / Agência O Globo


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68 BELAS

ARTES

Marco Polo com fotos de Antônio Melcop

Salão em três tempos O Salão Pernambucano de Artes Plásticas pesquisa o passado, faz propostas para o futuro e mostra o presente

Fachada da Fábrica da Tacaruna, que abriga o Salão. Abaixo, Rinaldo preparando sua instalação

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Passado, presente e futuro se cruzam no 45º Salão Pernambucano de Artes Plásticas, que, sob o título A torre e o tempo, acontece na desativada Fábrica da Tacaruna, na divisa entre o Recife e Olinda, até o dia 16 de fevereiro. O passado está no módulo que reúne os movimentos artísticos do estado, desde 1900 até 2000. O presente está na mostra dos 28 artistas e nove grupos contemporâneos convidados. O futuro ficará com os projetos ganhadores de 14 bolsas para produção de ensaios e obras de arte. Sob curadoria do artista plástico e pesquisador Paulo Bruscky, com supervisão de José Carlos Viana, diretor de museus da Fundarpe, o salão evitou o formato tradicional, que premia artistas que produzem especialmente para o evento obras que nem sempre terão continuidade. Ao patrocinar projetos, cria a obrigatoriedade de um trabalho mais consistente, além de proporcionar meios aos artistas. O salão, que normalmente é sediado no Museu do Estado, está sendo realizado na Tacaruna por dois motivos. O primeiro é que aquele museu está em obras de ampliação. O segundo é que existe uma tentativa de iniciar o processo de transformação da fábrica num centro cultural. O contato com os grandes salões do local instigou os artistas convidados a partir, quase que em sua totalidade, para instalações e interferências. Delano, um tenaz defensor da pintura sobre tela, está expondo ampliações de seus trabalhos em computador; José Barbosa deixou de lado suas talhas e quadros, para pintar os postes internos da fábrica; Maurício Silva abriu um buraco onde vai en-


BELAS ARTES 69 terrar cem cabeças de barro que só poderão ser desenterradas dentro de cem anos; Roberto Lúcio pintou o chão da entrada do salão; João Câmara transformou a torre da fábrica num farol; Rinaldo fez sua primeira instalação; vários grupos e artistas realizaram vídeos, entre os quais vale a pena destacar Lula Wanderley, que, através de um computador, retirou as bolas de três gols feitos por Pelé, Maradona e Ronaldinho, deixando apenas o balé aparentemente gratuito dos jogadores no campo. Curiosamente, um dos grupos, que estava desfeito, ressuscitou só para participar do salão, como foi o caso do Formiga Sabe Que Roça Come; outro, como o Moluscos Lama, anunciou que essa é sua última manifestação; e o Quarta Cabeça nasceu a partir do convite de um de seus integrantes para participar do evento. Uma novidade foi a participação do Subgraf, grupo de grafiteiros urbanos. Eles ocuparam uma “rua” interna da fábrica, previamente trabalhada por pichadores de morro, escolhendo até as luminárias para o espaço. Todos os participantes receberam cachê e verba para viabilização de seus trabalhos. A pesquisa que cobre cem anos de artes plásticas pernambucanas mostra a trajetória da Escola de Belas Artes, da Sociedade de Arte Moderna, do Ateliê Coletivo, do Clube da Gravura, do Gráfico Amador, do Movimento da Ribeira, das Oficinas 154 e +10, do Movimento de Cultura Popular e da Oficina Guaianases. Reúne ainda a produção dos grupos contemporâneos, como Carga e Descarga, Formiga Sabe que Roça Come, Carasparanambuco, Telephone Colorido, Camelo e Aleph, entre outros. Segundo Paulo Bruscky, essa pesquisa será ampliada e pormenorizada, constando também de documentação fotográfica e levantamento bibliográfico, sendo editada em livro. Curiosidades como um Baile Surrealista, promovido pelo pintor Augusto Rodrigues, em 1930, serão lembradas. O livro vem bem a propósito porque, apesar de ser um estado de grande tradição nas artes plásticas, Pernambuco carece de trabalhos que teorizem sobre o assunto. Os quatro ensaios a serem contemplados com a premiação de R$ 5.000,00, cada, também deverão engrossar a massa crítica sobre a produção artística local. Cada um dos dez projetos de obras selecionados receberá R$ 1.200,00 mensais, por dez meses, ao final dos quais os trabalhos deverão ser exibidos ao público. Não há tema ou técnica pré-determinados: de xilogravura à vídeo arte, vale tudo, desde que tenha qualidade. O Salão ganhou o título de A torre e o tempo como referência à emblemática torre da Fábrica da Tacaruna e à fusão de tempos que aglutina.

Frederico no momento em que montava a instalação que assina com Aprígio

Eudes Mota e seus cubos. Abaixo, panorama da mostra, com trabalho de Petrônio Cunha, à esquerda, e

45º Salão Pernambucano de Artes Plásticas Fábrica da Tacaruna – Recife Visitação: de terça-feira a domingo, das 15 às 21h Mais informações pelo fone: (81) 3427.4424 Continente . janeiro, 03


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70 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

A arte como um não-saber Hortense, mulher de Cézanne, achava que ele não sabia pintar

Hortense era o nome da mulher de Paul Cézanne, o mestre impressionista que iniciou a revolução da pintura moderna. O casal morava em Aix-en-Provence, mas ela vivia boa parte do tempo em Paris, freqüentando os salões e as modistas. Cézanne pintou alguns retratos de sua mulher, que odiava posar para o marido: ele exigia do modelo, além de total imobilidade, intermináveis horas de pose. Certa vez, em conversa com o jovem Matisse, Hortense afirmou: – Cézanne não sabia o que fazia. Não sabia terminar seus quadros. Renoir e Monet, sim, esses conheciam seu métier. Matisse ficou escandalizado com a afirmação da viúva, que, por incrível que pareça, tinha razão: Cézanne não sabia terminar seus quadros. Não há dúvida de que Hortense, ao fazer tal afirmação, não tinha consciência do que havia de verdade em suas palavras, já que o caráter “inacabado” das telas de Cézanne parecia-lhe um defeito e não uma qualidade. Não obstante, esse “inacabado” era o que o pintor buscava, já que, conforme dissera certa vez numa carta a sua mãe, “o acabado é o prazer dos imbecis”. De fato, aquelas pinceladas soltas, que se sucediam deixando às vezes à mostra o branco da tela, eram a expressão de uma nova atitude do pintor em face da pintura, uma atitude revolucionária que conduziria, em última instância, a virar a arte de cabeça para baixo. Por que Cézanne dizia que o acabado era o prazer dos imbecis? Por que repelia de tal modo o fini na pintura? A resposta é: porque o fini era a principal característica da estereotipada arte acadêmica, voltada para a fiel imitação dos seres e das coisas, mas, sobretudo, preocupada em criar a ilusão de que a coisa pintada era real: o braço pintado tinha de ter a cor e a maciez da pele, a maçã tinha de dar água na boca... Ou seja, o fazer do pintor, por assim dizer, desaparecia sob a ilusão das imagens fotograficamente bem-acabadas, não se via uma só marca do pincel na pele daquele rosto de mulher. A imagem pintada era como uma aparição, criada por uma espécie de milagre, fora da contingência. Herdeiro dos pintores que haviam rompido com o procedimento acadêmico, Cézanne levou às últimas conseqüências aquela ruptura: se num quadro de Manet um braço de mulher já resulta de pinceladas que ali estão à mostra, na Montagne Sainte-Victoire, de Cézanne, a paisagem inteira não é mais que uma sucessão de pinceladas autônomas que valem Continente . janeiro, 03

Auto-retrato de Cézanne

mais por sua materialidade de manchas do que pela função figurativa. De fato, está evidente ali que o propósito de Cézanne era, como ele mesmo dizia, “mudar o mundo em pintura”, em vez de fazer da pintura uma cópia do mundo. Noutras palavras, o pintor não quer iludir o espectador, não quer fazê-lo pensar que tem diante de si uma paisagem, e, sim, uma pintura; ou melhor, uma paisagem que não pertence ao reino da natureza, mas ao reino da pintu-


TRADUZIR-SE 71

Hortense, mulher de Cézanne, retratada pelo marido

ra. Nesse novo modo de pintar, a intenção do artista não é tocar o espectador pela verossimilhança do que vê, mas pelos elementos pictóricos diretamente percebidos: as sensações de cor, de volume, matéria, enfim, as relações entre os elementos essencialmente pictóricos. Uma pintura-pintura, não literária, não teatral, não poética, não simbólica. Uma pintura “retiniana”, como a definiria mais tarde, pejorativamente, Marcel Duchamp. Esse, porém, era apenas um dos aspectos da questão. O mais importante é o que se expressa na rejeição de Cézanne ao “acabado”, ao fini, porque rejeitá-lo é conceber a obra como uma experiência permanentemente aberta, em que o que o artista diz e a linguagem que usa para dizê-lo são uma permanente busca e descoberta. Trata-se da rejeição de normas e soluções pré-estabelecidas, com o objetivo de manter o frescor e a surpresa da criação artística. Para isso, era necessário que o pintor “não soubesse” pintar. Mas como é impossível manter-se livre do saber – uma vez que o próprio fazer ensina a fazer –, a opção cezaneana implicava um outro tipo de sabedoria, de “técnica”, que era de fato o elaborar dialético da linguagem, no fio da navalha, quando Imagens: Reprodução

a solução pronta é substituída pela solução intuída no risco do instante. Enfim, um saber que não se congela em fórmulas e que é posto à prova a cada pincelada. Por isso mesmo, Hortense, já aborrecida e cansada após horas e horas posando para o marido, não vê o retrato encaminhar-se para uma forma acabada, conclusiva: pelo contrário, ele tornava-se cada vez mais inconclusivo, como se o objetivo de Cézanne não fosse pintarlhe o retrato, e sim produzir uma borrão parecido com ela. Daí ter concluído que o marido “não sabia terminar os seus quadros”. E, como eu disse acima, ele de fato não o sabia, mas certamente queria terminá-los, acabá-los, não no sentido em que o entendiam os pintores acadêmicos, mas num outro, muito difícil de definir, mesmo porque não podia ser conhecido a priori: tinha de ser descoberto, inventado no processo de pintar. É essa nova atitude em face do fazer artístico que vai determinar a arte do século 20.

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Âť

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FOTOGRAFIA 73 »

Rogai por nós Quando tento def inir como foi a experiência de fotografar a Bênção de São Félix, lembro-me de uma senhora. Ela está toda sexta-feira na porta da igreja. Teve o corpo queimado pelo f ilho e ainda assim acredita que “quem crê tudo pode!”; “crer é o mais importante na vida.” A Penha é para mim a imagem do sentimento dessa senhora. Quem se dirige à igreja, localizada ao lado do Mercado de São José, encontra dois mundos distintos. Na entrada, os pedintes. Passam horas sob o sol esperando a caridade dos, quem sabe, caridosos. Ao cruzar a porta de madeira talhada de santos, a surpresa de uma beleza pouco vista. A arquitetura é arrebatadora. Colunas imensas em mármore, detalhes em estilo coríntio, cúpulas e santos fazem do reduto da fé um lugar grandioso, o remédio de todos os males. Esses males existem e são vistos nas pessoas que buscam a bênção durante todo o dia. Após a comunhão, ao f im da missa, uma multidão se dirige a um altar no lado direito da igreja. São Félix os espera. E o milagre da fé acontece.

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74 FOTOGRAFIA


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76 ESPETÁCULOS

Para os dias de hoje

Encenação busca diálogo com o público e com a dramaturgia brasileira

A atriz Hermylla Roberto faz o papel da jovem prostituta Dilma

Entre Nelson Rodrigues e Plínio Marcos. Essa aproximação com dois grandes nomes do teatro brasileiro é a melhor referência para quem deseje assistir ao espetáculo Meia-sola, peça que estará em cartaz a partir de janeiro no Teatro Apolo, pela Companhia Teatro de Seraphim. A representação do texto do paulistano Benedito Rodrigues – já falecido – é inédita em palcos pernambucanos. Ele teve apenas uma montagem, em 1979, em São Paulo, após ser laureado, em 1976, com o Prêmio Anchieta do Concurso de Dramaturgia da Secretaria de Cultura daquele estado. Antonio Cadengue, que assina a direção pela Seraphim, conheceu o texto em 1978, quando participou de um Continente . janeiro, 03

curso com o teatrólogo Antonio Mercado. Já naquela época, Cadengue sentiu-se atraído pela escritura de Rodrigues, cuja estrutura, apesar de clássica, é capaz de surpreender ao provocar um diálogo original com a dramaturgia brasileira contemporânea. Meia-sola é ambientada em um casarão decadente onde vive uma família que, por necessidades econômicas, subloca alguns quartos da casa. A matriarca é uma mulher autoritária e amarga que tem de suportar o marido alcoólatra, os dois filhos desempregados, uma nora considerada anormal e uma filha adotiva insolente. Completam o quadro os hóspedes: duas prostitutas, um soldado quarentão e um

jovem michê. Os personagens compartilham uma vida miserável e têm como lema apenas viver, custe o que custar. Benedito Rodrigues, a partir desse universo, elabora um painel da realidade brasileira, construindo uma metáfora do país sem necessariamente enveredar por uma linguagem alegórica de nossas mazelas sociais. Sua dramaturgia vale-se do realismo e mostra seu sentido mais profundo por meio dessa significação ao colocar o submundo de personagens marginalizados, como vemos em Plínio Marcos, no contexto de um núcleo familiar, recorrência cara a Nelson Rodrigues. Esse deslocamento potencializa o viés dramático do enredo e constitui a força-motriz do espetáculo.


ESPETÁCULOS 77 »

Hilton Azevedo é Toninho, um pária homossexual que vai modificar a

Cira Ramos é Lídia, a nora meio anormal que realiza as fantasias de

Lúcia Machado é a matriarca autoritária que cede às obsessões do filho, Francisquinho, vivido por André Brasileiro. Ao fundo, Elias Mendonça, um soldado apaixonado pelo “michê” Ricardo, vivido por Igor de Almeida

A escolha da peça de Rodrigues, segundo Cadengue, afina-se com o caminho que a Companhia Teatro de Seraphim está trilhando no momento: trabalhar com o realismo das condições presentes, condições essas que fazem alusão não apenas ao percurso estético do grupo, mas também a fatores concretos relacionados ao quadro atual da produção teatral em todo o país. Para ele, o momento não está para peças megalomaníacas, de altos custos, nem de complexidade intelectual. “O desamparo das artes cênicas e a perda de terreno para outros meios de entretenimento deixaram os produtores teatrais sem condições de fazer empreendimentos portentosos”. Cadengue defende que hoje é tempo de plantar, trazer o público de volta às salas de espetáculos. “O teatro tem códigos que não são facilmente decifráveis. É preciso que o espectador readquira familiaridade com a linguagem teatral para desejá-la”.


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78 ESPETÁCULOS

Dilma e Lídia se enfrentam

Para conseguir esse intento, a Seraphim vem investindo na dramaturgia nacional e seguindo uma linha de investigação da realidade brasileira. A companhia, entre outros, montou originais de Paulo César Coutinho, João Silvério Trevisan, Nelson Rodrigues, Hermilo Borba Filho e, recentemente, Retratos de mãe, de Ronaldo Brito. O desejo do grupo, afirma Cadengue, é contar histórias sem preocupar-se se a peça é de vanguarda ou se teria uma mensagem revolucionária. Por isso ele está, há um certo tempo, buscando textos que falem de situações do cotidiano Continente . janeiro, 03

e dos excluídos socioeconômicos. A encenação de Meia-sola integra um projeto maior da companhia: o Projeto Peças de Família, que tem como próximo texto a ser montado Querida mamãe, de Maria Adelaide Amaral. A escolha do tema família, segundo Cadengue, é uma tentativa de compreender os conf litos inerentes às relações que se estabelecem entre o indivíduo e as convenções desse grupo social a partir dos valores que ele representa, com suas necessidades de ascensão e de poder político, econômico, social e espiritual. O projeto foi bem recebido e foi

um dos contemplados, em Pernambuco, do EnCena Brasil, do Ministério da Cultura e da Funarte. Também conta com recursos do Sistema de Incentivo à Cultura do Município do Recife e do auxílio-montagem da Prefeitura da Cidade do Recife. A produção é da Companhia Teatro de Seraphim e da Oficina 2 Rodrigues.


ESPETÁCULOS 79

REALISMO POÉTICO

Lúcia Machado, a matriarca, e Marilena Breda, a prostituta Sosó

A encenação de Meia-sola, de Antonio Cadengue, evita o naturalismo. O diretor preferiu trabalhar num registro que ele classifica como realismo poético. Para retratar o universo da classe média baixa enfocado pelo autor Benedito Rodrigues, Cadengue optou por retirar o excesso de “pliniomarquismo” do texto, dando-lhe uma feição mais leve. Ou seja, limpou-o de um certo tom soturno e pesado. Segundo ele, essa mudança não interfere na idéia principal da peça, que é mostrar a existência furada e sem perspectiva de seus personagens, embora no final ele deixe uma leve ponta de esperança. Cadengue glamourizou o enredo aproveitando as referências cinematográficas que a peça contém na sua estrutura – cortes, fusões, elipses – e num de seus personagens, que tenta viver, na relação conjugal, aspectos dos filmes de Hollywood. Segundo o diretor, algumas inspirações vieram do tempo em que ele próprio conheceu, quando jovem, a zona portuária do Recife, e nos seus olhos de adolescente as prostitutas vestiam-se como deusas. Meia-sola prende a atenção por sua intriga e aproxima-se do melodrama, podendo despertar no espectador tanto o riso, pelo patético de algumas situações, quanto a comoção. Um caminho que, sem dúvida, dialoga com as platéias modernas e onde fica clara a intenção de ajudar a revitalizar, junto a outros empreendimentos, a cena teatral pernambucana.

O psicótico Francisquinho vivenciando uma de suas crises

Meia-sola, de Benedito Rodrigues Companhia Teatro de Seraphim Direção de Antonio Cadengue Teatro Apolo – rua do Apolo, 121 – Bairro do Recife. Fone: (81) 3224.1114 De 11 de janeiro ao final de fevereiro Sábados 21h, domingos 20h Ingressos: R$ 10,00 inteira R$ 5,00 estudante Continente . janeiro, 03


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80 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Assassinaram João Cabral O que mais desagrada no teatro contemporâneo é o descuido com os textos

Não vi nenhum espetáculo do último Festival Recife do Teatro Nacional. Isto é um absurdo, pois me dedico a escrever peças teatrais e preciso conhecer as novas encenações. Mas é que nem sempre compensa o esforço de sair de casa para assistir a um espetáculo. Eu desejava ver Pólvora e poesia, sobre a relação de Rimbaud e Verlaine, Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, e o novo trabalho do grupo Parlapatões. Não vi nada. Há quem diga que não foi grande a minha perda. O que mais desagrada no teatro contemporâneo é o descuido com os textos.Como existe um consenso de que os espetáculos devem ser curtos, porque ninguém tem mais paciência de ficar ouvindo os atores declamarem as falas, todo encenador se acha no direito de picotar as peças alheias, ao bel-prazer, sem a menor piedade. Antunes Filho, um dos mais renomados diretores brasileiros, reduziu o Macbeth de Shakespeare a uma encenação de pouco mais de cinqüenta minutos. O excelente Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, de Minas, foi reescrito por um dramaturgo, que eliminou parte da trama e dos personagens. Os resultados foram bons, nos dois casos, mas são exceções. Justificam o maltrato dizendo que o público acostumou-se com as cenas ligeiras da tevê e do cinema americano. Para a nova geração prevalecem as imagens. Quem ainda se interessa por metáforas e poesia? O Racine dos versos alexandrinos, só adaptado. De preferência, em haicai. O tempo é o da conversinha de bar, onde a música abafa as vozes e não se escuta o que o outro está dizendo. Cada um fica no seu papo isolado, falando para si mesmo. Ionesco percebeu esse solilóquio do homem moderno, e as falas dos seus personagens nada mais são do que monólogos absurdos. Que os diretores transformam em gritos, porque outra característica dos espetáculos é serem gritados, as vozes num diapasão altíssimo, como se fôssemos surdos. Nenhum ator modula a voz. Ele começa o espetáculo numa altura e permanece nela até o fim. O famoso Gritos e sussurros, de Bergman, se reduziria a Gritos, na versão teatral brasileira. No Festival de Teatro de Guaramiranga, no Ceará, o prêmio para melhor texto original não foi concedido porque não havia textos originais. Optou-se, com muita generosidade, por se conceder um estímulo à dramaturgia, eufemismo usado para entregar o prêmio a um grupo que encenou uma lenda regional. No mesmo festival, um diretor resolveu “desconstruir” o Continente . janeiro, 03


ENTREMEZ 81

Morte e vida severina, em encenação de Gabriel Villela, em 1997, no Teatro Glória, Rio de Janeiro

poema Morte e vida severina, reescrevendo-o em prosa. Foi um desastre. João Cabral perdeu a sua força poética em falas coloquiais e prosaicas, sem nenhuma expressão dramática. Os conhecedores de João Cabral teriam dúvidas sobre o autor que se encenava, a não ser que tivessem lido o programa. E não adianta protestar. Os encenadores tripudiam sobre vivos e mortos. Eu reconheço que não é fácil assistir a um Hamlet na íntegra, mesmo em vídeo, na montagem de Kenneth Branagh. Não temos nada em comum com os cidadãos ingleses do passado, que se apinhavam no Globe Theatre, em Londres, para verem as tragédias e comédias de Shakespeare. Recebemos mais informações em um único dia das nossas vidas que um cidadão do período elisabetano em toda a sua existência. Talvez decorram dessa aceleração do ritmo de vida a nossa impaciência, desconcentração e ânsia por impressões novas, sucessivas e rápidas. A escuta de um texto exige uma concentração e serenidade que perdemos há muito. Habituamo-nos a clipes que chegam a ter sessenta imagens diferentes em um único minuto. Como desejar uma platéia silenciosa e atenta, com ouvido de psicanalista, se nos condicionaram à desatenção e perdemos o dom da escuta. Na Grécia Clássica, os festivais de teatro chamavam-se concursos poéticos. Interessava mais escutar a poesia declamada do que ver a encenação. Foto: Marco Antônio Teixeira/Agência O Globo

Esse gosto pela poesia tem uma história famosa que hoje parecerá piada. Ludovico Ariosto, poeta italiano do século 16, que escreveu o Orlando Furioso em estrofes de oitavas, caiu em desgraça junto ao seu mecenas. Como castigo, recebeu o governo de uma província, a Garfanhana, região retirada e perigosa, infestada de bandoleiros criminosos, que a tinham transformado em quartel-general do crime. Segundo Pedro Garcez Ghirardi, “já quase à entrada da província, ao percorrer a estrada solitária que para lá conduzia, o novo governador foi atacado por um bando de salteadores. Mas, ao obrigarem-no a entregar tudo o que levava, perceberam que ele tinha consigo o Orlando Furioso. Perguntaram-lhe, então, se conhecia o autor daquela obra. Ao saberem que estavam diante do poeta, os bandoleiros não só lhe devolveram tudo, como o deixaram seguir entre aclamações, enquanto recitavam episódios do poema”. Será que os bandidos da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, tratariam João Cabral melhor que os seus encenadores? Não sei responder. Mas, com certeza, a poesia já não goza o mesmo prestígio e respeito que na Renascença. Nem entre os bandidos.

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82 CINEMA

Janela aberta para a cidade Amarelo manga cria o bom choque de uma janela cinematográfica se abrindo para uma cidade pouco vista em filmes

Depois de assistir a Amarelo manga, filme de Cláudio Assis, me vinha à cabeça bem mais o que aquilo tudo representava (politicamente) e bem menos a crônica humana em si apresentada. Eu vi e lembrei que é possível existir mais verdade nos cantos de um filme de ficção do que na imagem frontal de um documentário engajado. Um dos grandes méritos do cinema, não importa o gênero, é a possibilidade de podermos ignorar a ação do primeiro plano para investigar o que está ali por trás. Esse filme, feito por pernambucanos no Recife e para a cidade, é documento raro de um jeito, estilo e identidade cultural que não têm sido filmados. De forma incidental, o cinema de ficção (como o de Amarelo manga) registra o conjunto daquele lugar onde se filma. Podem ser táxis e suas cores peculiares a cada cidade – como vemos nos filmes, os do Rio de Janeiro e Nova Iorque são amarelos –, a arquitetura dos prédios, os paralelepípedos nas ruas, as placas de sinalização, o tipo humano visto de relance, fora de foco o suficiente para ser reconhecido. Por questões sócio-culturais-econômicas diversas, Recife é uma cidade não filmada, é pobre de imagens. Na verdade, é paupérrima. Com Amarelo manga, temos o bom choque de vermos uma janela cinematográf ica se abrindo para a cidade. Aqui, a janela é aberta da cidade para a própria cidade. Entre uma e outra, há muita gente olhando. O filme é uma crônica humana que nos mostra ser impossível dissociar o homem do lugar onde ele vive. Como em Ulisses, de Joyce, que inspirou Nelson Pereira dos Santos a situar toda a Continente . janeiro, 03

O filme é uma crônica humana que nos mostra ser impossível dissociar o homem do lugar onde ele vive


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ação de Rio 40 Graus (1954) num período de 24 horas (Joyce usou Dublin; Assis, o Recife), o roteiro de Hilton Lacerda abre e fecha a ação com duas auroras. Transcorrem pouco mais de 100 minutos de cinema que emulam 24 horas de vida. Como em Rio 40 Graus, a inspiração para Amarelo manga é precisamente a mesma. Nos anos 50, críticos de esquerda como Alex Viany, Carlos Ortiz e Rodolfo Nanni publicaram uma série de artigos que defendiam um cinema “nacional” e “popular”. A inf luência do Neo-Realismo italiano deve ser levada em consideração nos dois filmes-manifestos daquela época, Rio 40 Graus e Rio Zona Norte (1957), o segundo também de Nelson Pereira. Todavia, o combustível principal era mesmo uma revolta por parte dessa crítica, e de realizadores como Nelson Pereira, ao não verem o Brasil real ali na tela de cinema. Isso, claro, na década das despretensiosas chanchadas. Essa revolta existe em Assis, que diz ter nascido em Caruaru, Alto do Moura, um lugar que é e representa “barro”. “Não sou porcelana, sou barro. Estou cansado de ver o cinema brasileiro pintando porcelana. Somos mais que isso, nosso povo é real”, me disse Assis. Os personagens desse diretor, e do roteirista Lacerda, têm as cores de onde estão e de onde são. Isso ficou bem claro no curtalaboratório Texas Hotel (2000), espécie de preparativo para Amarelo manga, inclusive com esboços preliminares para a tela mais abrangente do longa. Ao mesmo tempo, os lugares são formatados para e pelos personagens. É óbvio afirmar que essa obra tem sabor de manga, mas caju, pitanga e o maltado do Recife Antigo também vêm à mente. Inspira ainda o odor de urina comum nas ruas centrais da cidade, ou mesmo sangue, seja de homem ou boi. Em Amarelo manga, há a preocupação estridente de estampar ali na tela a cara de um povo que não tem o hábito de ser filmado. O filme inclusive estaciona para que isso aconteça, abraçando uma estética de quase instantâneos 3X4 feitos na rua, no centrão da cidade, na rua do Sol. Em Amarelo manga, essas imagens honestas (generosas até) vêm imbuídas de choque ainda maior, pois o formato de tela é o industrial e cinematográfico CinemaScope, aqui administrado por Walter Carvalho, também responsável pelas imagens de Texas Hotel. O filme representa uma interessante subversão do ver e do olhar de um povo. Subversão porque o CinemaScope foi criado nos anos 50 para combater o avanço agressivo da TV. Com telas maiores e composições retangulares, os filmes passaram a oferecer, mais do que antes, o espetáculo da imagem pela imagem. A tela larga transformou-se numa marca para a grandiosidade do cinema como arte popular, ou produto popular, para o poderio hollywoodiano, para a 20th Century Fox, para o superprodutor Darryl F. Zanuck e personagens bíblicos como Ben Hur. Durante décadas, a tela cinematográfica no Recife era passiva. Janelas eram abertas, em CinemaScope ou não, para imagens do mundo, freqüentemente dos Estados Unidos, nunca para a própria cidade. “Explico a minha opção por essa janela especial por abordarmos um mundo duro, daí a necessidade de chegarmos à Continente . janeiro, 03


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tela com a elegância desse formato. Há beleza no feio, e o CinemaScope me passa essa impressão”, diz Assis. Assistir ao filme de Assis poderá chamar a atenção do espectador para a melancólica constatação de que o Recife pouco existe em filme, particularmente em longas-metragens sobre a própria cidade: O Canto do mar (1952), de Alberto Cavalcante, o praticamente desaparecido O palavrão, de Cleto Mergulhão (1977), Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas e O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (1999), de Paulo Caldas e Marcelo Luna. Os quatro longas representam inventário cinematográfico minúsculo de uma cidade que poucas vezes pôde se enxergar no cinema. Isso nos leva à questão da escrita e da leitura, preocupação que Hilton Lacerda, também responsável pelo roteiro de Baile perfumado, entende de forma superlativa. “No caso do Baile perfumado, toda a visão que existia sobre o tema era o que podemos chamar de ‘estrangeira’, o ‘olhar exótico’. Nossa preocupação na época era como tornar essa visão sobre o cangaço, a partir de um dado histórico, numa visão que nascia de nós mesmos, subtraindo aspectos caricatos como ‘Lampião era herói ou bandido?’, o que menos interessava, na verdade. Dentro disso, existia a vontade de construir uma linguagem que resgatasse a própria resistência oral ao tempo. Os diálogos teriam o coloquialismo de hoje, mas reverberando como se fossem de época”, diz Lacerda. Em Amarelo manga, a principal preocupação, segundo Lacerda, era a de ser urbano, deixando o “rural”, o “nordeste”. Se em Baile perfumado existia um desejo de atualizar a visão do sertão e do cangaço, a temática ainda abria espaço para algo que pudesse parecer caricato. “No caso do Amarelo, alguns podem argumentar que aquela história pode se passar em qualquer lugar do terceiro mundo. Mesmo assim, o que deveria fazer o filme parecer extremamente pernambucano?”

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Cláudio Assis, à esquerda, de camisa amarela, dirige Amarelo manga. Acima, Jonas Bloch apontando

Ele considera essa a maior das preocupações durante a construção do roteiro. “O perigo era tudo virar uma piada, quando a idéia era montar um painel trágico dentro de uma determinada região. Os personagens se expressariam sem um verniz intelectual. Uma brincadeira que eu sempre fazia era perguntar: como alguém que não entende racionalmente o conceito de depressão consegue expressar que está deprimido?” Com um leque de personagens populares, torcedores do Santa Cruz, canalhas, necrófilos, bichas e crentes, Amarelo manga representa um estranho mix. Não é realista no sentido “Neo-Realista” porque os atores (Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes) são profissionais, dando ao filme um verniz talvez evitável de teatro, talvez evitável de profissionalismo. Toda vez que não-atores chegam de mansinho aos cantos da tela, ou ocupam o quadro inteiro na camada claramente documental do filme, Amarelo manga cresce. Fica o desejo de ver mais personagens tão autênticos como os casebres, o matadouro, as ruas fétidas que compõem eloqüentemente o filme. São elementos que se combinam. Fica o desejo de ver menos profissionalismo dramático almejando um simulacro da realidade. Lacerda, como roteirista, desenvolveu ainda a idéia de tirar todo o contexto intelectual das palavras, jogando-as na


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boca de gente comum. A idéia é boa, mas parte do efeito se perde pelo fato de atores profissionais não serem pessoas comuns. Há uma frase de Balzac perfeitamente jogada ao vento: “Quando o homem não sabe o que fazer, ele apela para a diplomacia”. Os mecanismos por trás da idéia são claros, o resultado pode parecer faux para alguns ouvidos, certamente para os meus. Amarelo manga é um filme que lembro com carinho crescente, mesmo ao preferir racionalmente me concentrar no valor total das imagens, do peso cultural da sua ambientação, e bem menos nos desdobramentos dramáticos e narrativos de uma crônica que aparenta ser cria direta do Bandeira 2, o lendário programa radiofônico que atualiza dramaticamente o pernambucano sobre o sangue da cidade na noite anterior. O filme, no entanto, não tem a f luência desse sucesso de comunicação de massa, muito embora fique claro esse desejo. Dentro dessa depressão inconsciente, Lacerda acha que o Recife muitas vezes é uma cidade dura com ela mesma, e isso o filme alcança com, até agora, incomparável sucesso. “Me parece que o geral da população é não saber expressar bem o que sente”, diz. Ele lembra que Cláudio Assis tem uma frase para definir a cidade. “Cláudio diz que ‘o Recife está sempre na vanguarda... na vanguarda da fudição’”.

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Choque no catolicismo O filme mexicano O crime do padre Amaro tem provocado polêmica nos lugares em que foi exibido

Carlos Carrera, diretor do filme

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No Brasil, convencionou-se chamar de “filme latino” toda produção não brasileira e não norte-americana (Estados Unidos e Canadá) que chega ao país vinda das Américas Central e do Sul. O rótulo “latino”, em grande parte comercial, ref lete a barreira cultural e globalizante que inegavelmente existe entre o Brasil e a distante “América Latina”, da qual nós não faríamos parte. É uma região unida pela geografia e, ao que parece, separada pela cultura. Nos últimos três anos, o cinema tem ajudado a quebrar essa barreira pela força de filmes “latinos” como Nove rainhas (Argentina), Pantaleão e as visitadoras (Peru), e, especialmente, os mexicanos Amores brutos, E sua mãe também e O crime do padre Amaro. Ironicamente, desses cinco filmes, três deles chegaram aos cinemas brasileiros via distribuidoras americanas (Fox e Columbia) que compram internacionalmente para lançar localmente. A exibição de filmes como esses para um público brasileiro desencadeia reações, na verdade, manifestações que têm na identidade cultural “latina”, ou “latino-brasileira”, seu maior palco. É como se, ao ver um filme “latino”, o público nacional estivesse diante de um genérico cultural brasileiro, mas sabendo estar diante de um produto estran-

geiro. Ficam evidentes os laços culturais comuns a nós, latino-americanos-brasileiros, e o castelhano lentamente deixa de soar tão estranho quanto o dinamarquês num universo cultural (o cinema comercial) onde o inglês é até um pouco mais familiar do que o português dentro de uma sala multiplex. Felizmente, isso está mudando. Enfoques “latinos” nesses filmes cobrem desde crises financeiras até a sensualidade, desde a falência social até o catolicismo. No caso do “thriller” Nove rainhas, argentinos tentam ludibriar um país que os ludibria diariamente. Brasileiros reagiram com compaixão e conhecimento de causa. Em Pantaleão e as visitadoras, a sensualidade da visitadora “Colombiana” encontra ressonância bem mais próxima do ideal de sensualidade que existe no Brasil, quebrando a idéia de importação constante, via Hollywood, de modelos de beleza e sexo que nem sempre funcionam por aqui. Amores perros e E sua mãe também despertaram associações instantâneas junto aos brasileiros em relação às suas respectivas paisagens. O primeiro seria o duplo de São Paulo Capital (Cidade do México), o segundo oferece algo do litoral do Nordeste do Brasil. São reações espontâneas que liberam uma controlada alegria de ver algo de muito familiar na tela. Fotos: AFP


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O filme conta a história do padre que se apaixona pela mais bela adolescente da cidade. Abaixo, Amaro com seu superior

Em O crime do padre Amaro (El crimen del padre Amaro, 2002), de Carlos Carrera, lançado no México em agosto último, e já o maior sucesso de bilheteria da história do país, o tema central é a Igreja Católica, base da cultura latina como um todo. Um vulcão de controvérsias no México, essa adaptação discretamente sensacionalista do romance português de Eça de Queiroz, publicado em 1876, perturba o espectador latino com as suas pedradas contra a Igreja. A obra de Eça nos apresenta um jovem padre que sempre quis o seminário, não por vocação, mas “por libertamento”. No livro, ele ainda tinha medo do inferno, “mas já havia perdido o fervor dos santos”. Como padre, via a oportunidade de chegar perto das mulheres de forma insuspeita. Pregava também uma vida que ele mesmo era incapaz de sustentar para si próprio, pura e virtuosa. Eça escreveu: “Via diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revés lubrificante; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca...”. O romance nos apresenta uma análise sarcástica do quanto a Igreja, através Fotos: Divulgação

de suas leis seculares, semeia absurdos que se chocam violentamente contra a natureza humana falha e f lexível à dor e à moral. Foi Nietzsche, em O anticristo, quem apresentou ref lexão adequada para complementar o romance de Eça de Queiroz: “É vício qualquer espécie de antinatureza. A mais viciosa espécie do homem é o padre; ele ‘ensina’ a antinatureza”. Considerações como essas nos passam sensação freqüente em adaptações de obras literárias para o cinema. A sensação é a de um “vampirismo” do cinema para com a obra escrita. No caso do filme, fica a impressão de que o interesse é o choque, e Eça é mesmo responsável por uma obra chocante para leitores católicos. O filme também tem esse efeito, mas se livrando de todos os matizes de cor que existem no personagem literário. O roteirista Vicente Leñero adaptou a ação trazendo-a de Leiria, Portugal, no século 19, para a mítica Los Reyes, no México, tempo atual. Gael Garcia Bernal (de Amores brutos e E sua mãe também) é um jovem padre que chega à pequena cidade e logo irá não apenas cuidar da alma e catequismo da devota Amélia (Ana Claudia Talancon), a mais bela adolescente de toda a paróquia, como também do corpo da meni-

Gael Garcia Bernal interpreta o jovem padre que chega à pequena cidade

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Em seus rituais eróticos, o padre veste a menina como uma Nossa Senhora

na, que ele veste como uma Nossa Senhora num dos seus rituais eróticos. Lembrado por seu superior devasso e corrupto (padre Benito) de que fez voto de castidade, Amaro responde secamente: “Porque me obrigaram”. Amaro comporta-se como jovem executivo numa empresa que lhe dá amplos poderes, tornando-se embriagado pelo próprio poder. O filme sustenta-se razoavelmente bem como narrativa popular folhetinesca, sem esquecermos que o seu verniz de novela é compreensível num país como o México, que, como o Brasil, exporta telenovelas. De qualquer forma, essa aqui não seria uma novela das sete, ou das oito, pois parece almejar a grade das 11 horas da noite. A estrutura narrativa foi montada para incluir número expressivo de estocadas na Igreja, e as estocadas são violentas, planejadas para mexer com todo o nosso adestramento católico de base. Por mais que hoje eu me considere um saudável ateu, a bagagem infantil vem à tona durante o filme (o livro), às vezes como simples parâmetro de choque, ou seja, como indicador de que aquele confronto irá incomodar.

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Essa relação de agressividade para com um dos pilares da latinidade tem se manifestado no cinema “latino”, e é fenômeno que deve ser observado de perto. Se, em O crime do padre Amaro, há esse esforço do choque, no bem-sucedido melodrama argentino O filho da noiva (El hijo de la novia) a Igreja também sai arranhada como estúpida e insensível. Em Fale com ela (Habla con ella), do espanhol Pedro Almodóvar, uma conversa jogada ao vento acusa padres de estuprarem freiras na África. “Mas nem todos os padres fazem isso”, defende alguém. “Sim, outros são pedófilos”, responde o crítico. A piada serve de prévia para um próximo projeto de Almodóvar que irá enfocar o tratamento de crianças na mãos de padres, a partir de experiências que ele mesmo viveu. Será relevante observar o efeito de O crime do padre Amaro no Brasil, país católico que passa, já há alguns anos, por uma espécie de “recondicionamento religioso” via crescimento dos evangélicos e carismáticos. O filme também oferece um espelho latino para temática comum a todos nós latinos, com sotaque diferente mas idêntico estofo cultural. (KMF)

Ana Claudia Talancon faz o papel de Amélia, a adolescente por quem o padre se


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 89 » Joel Silveira com ilustração de Samuca

O dia em que Goulart me falou da camisa de Vargas Quando o dr. Getúlio foi deposto, comecei a ver de perto o abandono em que o haviam deixado

O apartamento de João Goulart tem esse jeito meio desarrumado comum a toda casa de solteiro. Ou de quem pára pouco ali. Não há cozinheira nem arrumadeira. Quem cuida de tudo e à sua maneira é o peão gaúcho, trazido lá da fronteira. Quando lá estive, manhã ainda cedo, pedi água e me apontaram para a cozinha – creio que foi o próprio Jango. Sim, foi ele. No escritório, improvisado na sala não muito grande, uma biblioteca falha e eclética, colecionada ao acaso. Anoto os títulos de alguns livros: História dos sindicatos, as obras completas de Shakespeare (em tradução), a Mensagem presidencial de Café Filho, um Lenine – de David Shume, alguns volumes esparsos sobre legislação trabalhista, a biografia de Rui – de João Mangabeira. – Quando o dr. Getúlio foi deposto, a minha aproximação com ele fez-se maior, mais constante. Comecei a ver de perto o abandono em que o haviam deixado. Passavam meses e meses e lá não aparecia um só amigo. Horas inteiras, calado e cismarento, o dr. Getúlio ficava estirado na rede, estendida na varanda, fumando o seu charuto, os olhos perdidos na planura que

se estendia lá na frente, até a linha do horizonte. Muitas vezes o surpreendi assim, sozinho, calado. Não digo triste, apenas calado. Por onde andavam os “amigos” que ele tanto ajudara? Onde todos aqueles, centenas, que ele havia cumulado de favores, que com sua ajuda haviam se tornado ricos e poderosos? Não aparecia ninguém. Uma pausa. João Goulart acomoda-se melhor na poltrona, estira ainda mais a perna, prossegue: – Um fato – do qual ainda hoje me recordo – dá uma idéia precisa daquele abandono. Ao chegar à estância de Itu, surpreendi num dos quartos, sob um móvel, uma camisa suja que ali fora deixada certamente para ser lavada. No dia seguinte, viajei para Porto Alegre, onde permaneci algumas semanas. Quando voltei a visitar dr. Getúlio, e ao passar novamente pelo quarto, surpreendi a mesma camisa sob o mesmo móvel. Ninguém – dos poucos que lá apareciam – tivera o cuidado de recolhê-la e mandá-la à lavanderia. Aquilo tudo foi me enchendo de revolta, decepção, nojo. Comecei a conversar sobre política com o dr.Getúlio. Acabei virando político.

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PRETO NO BRANCO

Rossini Corrêa

Segundo a regra sociológica de Guerreiro Ramos, por ser global, o subdesenvolvimento a tudo subdesenvolve, inclusive as instituições e a cultura políticas de uma sociedade

EM FAVOR DA CULTURA A ref lexão sobre os desafiantes problemas da cultura no Brasil, em muito espaço para a dúvida, parece ter encontrado, entre as décadas de 20 a 60 do século findo, o seu ciclo de maior significado na história do país. De Mario de Andrade a Gilberto Freyre, passando por Sérgio Buarque de Holanda, Vianna Moog, Franklin de Oliveira, Roland Corbisier, Ariano Suassuna e Ferreira Gullar, para ser econômico, o efervescente e contrastante debate foi travado em torno do conceito, da defesa, da mudança e da promoção da cultura nacional. Sem desabono de nada nem de ninguém, diverso o momento, o escasso diálogo sobre a questão nacional raramente contempla em sua agenda de agora o problema da cultura brasileira. A recorrência da discussão em curso começa e termina nos limites prisionais do econômico ou nas armadilhas cotidianas do financeiro. E só. Como se fosse estéril ou parecesse desnecessário realimentar o pensamento quanto, por exemplo, aos direitos humanos, qualidade de vida, conquistas civilizatórias e estratégias solidárias, às quais não se chegará sem a recolocação em pauta da educação e da cultural. Em países como o Brasil, de passado colonial e de tradição excludente, as enumeradas temáticas adquirem aspectos dramáticos. As rendas educacional e cultural, entre nós, nunca foram partilhadas segundo o princípio de que a construção de uma autêntica nação, enquanto emergência conjunta, exige a constante promoção dos valores soberanos da vida, em busca, sempre, de um bem mais comum. Nação – nada obstante o

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prosaico desgaste da expressão – é uma edificação companheira, isto é, feita com aquele com quem há de ser partilhado o pão material e espiritual. Daí porque, comprometida com a liberdade e aspirando à justiça, a nação verdadeira tem como signo magno a ampliação consolidada da democracia. Segundo a regra sociológica de Guerreiro Ramos, por ser global, o subdesenvolvimento a tudo subdesenvolve. Inclusive as instituições e a cultura políticas de uma sociedade. Nos termos da sentença proposta, a poucas vezes desafiada cultura política subdesenvolvida da sociedade brasileira maltratou, e maltratou seguidamente, a dimensão cultura, muito embora, à sua revelia, um autêntica nação jamais encontre o destino que a justifique, de cidadela aberta da conquista, da promoção e da partilha dos bens soberanos da vida. Resgatando a esfarrapada linguagem que nominou o espectro ideológico da sepulta modernidade, se a direita foi negativamente elitista, o centro foi sistematicamente indiferente e a esquerda, por sua vez, foi viciosamente instrumental, em se tratando de compromisso com a cultura. Como na brincadeira dos quatro cantos, a direita aprendeu a ser instrumental (minimizando a voz política e maximizando o ato circense) e a esquerda passou a ser elitista (servindo o supostamente melhor para as classes médias que não a decifram e a devoram). A evidência mais recente, entretanto, é a de que todas as direitas e todas as esquerdas centralizaram as suas perspectivas, passando a comungar a mesma equívoca e perversa indiferença à causa da cultura.


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Em si mesma, a vocação da cultura é democrática e a democracia não é de direita ou de esquerda

Espetáculo constrangedor, de transição a transição, é o leilão do posto de Ministro da Cultura (e do Turismo e dos Esportes também), oferecido a cada um e repudiado por todos, qual se, menos que nada, fosse coisa nenhuma. Ora, o desprestígio do instrumento político (o Ministério) bem revela o inescondível desprezo (pela Cultura). E quando um artista luminoso como Gilberto Gil, por legítimas que sejam as suas razões privadas, estabelece como centro do debate público, nesse país de duzentos reais, se poderá ou não aceitar o convite para ser Ministro da Cultura por oito mil reais mensais, tudo o mais parece perdido. Chega mesmo a dar saudade do juízo prebendário atribuído a Fernando Lyra, que o foi da Justiça, segundo o qual a condição de Ministro, boa demais que é, mereceria ser objeto de pagamento, e não de recebimento, por quem a exercesse. Ao acessório não segue o principal, e o necessário debate deixa de ser travado, em um tempo em que as antigas crendices relativas à existência de culturas de esquerda e de direita não podem prosperar. Em si mesma, a vocação da cultura é democrática, e a democracia não é de direita ou de esquerda, mas um valor universal que a lição da história permite garantir que a ambas desafia. O abismo que distingue globalizantes e globalizados, com a indústria cultural de permeio, embarga o diálogo de civilizações e articula a uniformização planetária, sem que se discuta o destino da identidade brasileira em formação no mundo em crise.

De silêncio em silêncio, as desigualdades regionais, o direito à diferença, as emergências sociais, o sentido de mercado, o papel do Estado, o orçamento social das empresas, a responsabilidade dos meios de comunicação e as pontes entre o popular e o erudito deixam de integrar a agenda do relevante debate cultura, de frustrada cidadania no Brasil. O limite da retórica política termina por ficar explícito quando a cultura é posta no balcão de negociação como a mercadoria com a qual se rouba no peso e se engana o cidadão. Mal sabem os homens de Estado que a história não os absolverá, pelo menoscabo com que terão falhado quanto ao principal, por ser o elemento norteador da construção de uma verdadeira nação: a cultura. Eis o sentido da colocação de Claude Levi-Strauss, de que o Brasil corre o efetivo risco de se tornar decadente sem ter chegado a ser uma civilização. Cumpre à sociedade civil perseguir a sua organização, mobilização e participação, levantando a bandeira do muro contra a barbárie e obrigando o Estado a ser diferente quanto a problemas essenciais como o da cultura, semente da democracia no Brasil, que exige, portanto, tratamento dignificante, que será a medida histórica do julgamento de todos, inclusive dos homens de Estado que não terão chegado a estadistas.

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PRETO NO BRANCO

Eduardo Subirats

A diferença entre o liberalismo pós-moderno e as linguagens totalitárias que defendem a guerra global indefinida contra o Mal é que estas não tinham que afrontar imediatamente com suas conseqüências

DAS CULTURAS VIRTUAIS À GUERRA GLOBAL Durante mais de uma década, as retóricas políticas e financeiras da globalização se associavam alegremente com os paraísos liberais de empresas virtuais, operações financeiras delirantes, as arquiteturas fraudulentas que as acolhiam e um universal cinismo sobre os efeitos ecológicos, sociais e culturais que um sistema irresponsável de crescimento ia impor sobre o Terceiro Mundo, com conseqüências fatais para o Primeiro Mundo. As burocracias financeiras e culturais mundiais esgrimiam a bandeira de uma globalização virtual com a perfeita inconsciência de sua incompatibilidade real com um planeta radicalmente dividido econômica, social e militarmente. A crítica contra a devastação biológica dos habitats e culturas tropicais era desdenhada pelos meios corporativos como ilusões de apocalípticos e marginais. Os protestos contra as estratégias genocidas das grandes corporações ligadas à indústria militar, biológica ou energética na África, Ásia e América Latina eram reconstruídas mediaticamente como gritarias anárquicas. E os sindicalistas que haviam questionado os regimes de semi-escravidão no sudeste asiático, da margem fronteiriça do Rio Bravo ou das zonas sob controle militar da região amazônica eram assassinados por exércitos privados locais, subvencionados por administrações globais. A ordem virtual que a idade pós-moderna celebrada com slogans desconstrucionistas de imaginários sujeitos descentrados, rebeliões intertextuais e micropolíticas, e as estratégias simbólicas de um multiculturalismo e hibridismo perfeitamente banalizado pela indústria cultural, têm mantido um impenetrável biombo retórico e burocrático sob o qual se dirimia a destruição irreversível de amplos sistemas ecológicos, o genocídio macroeconômico, os mercaContinente . janeiro, 03

dos letais de armas e uma inextricável rede de forças militares especiais e exércitos privados e regulares. Repetidamente tem caído a cortina. As obscuras eleições do presidente americano, a crise econômica que se arrastava e a propaganda de guerra transformaram instantaneamente o sonho pós-modernista no pesadelo de uma violência generalizada. E o realismo mágico de dívidas financeiras estratosféricas, espetáculos democráticos de administrações políticas explicitamente corruptas, guerras nas estrelas e um conceito delirante de desenvolvimento ecológico e humanamente insustentável veio abaixo. Significativamente, veio abaixo através de uma ação militar terrível, a de 11 de setembro. Uma ação criminosa que só pode ser comparada às grandes operações militares de extermínio da sociedade civil desenvolvidas ao longo do século 20: os esquecidos bombardeios de Guernica ou de Dresden, as nunca citadas bombas incendiárias sobre Tóquio, o cinicamente batizado Little Boy de Hiroshima, o napalm sobre o Vietnã, as centenas de toneladas de urânio enriquecido sobre o Iraque ou a destruição biológica das selvas colombianas mediante herbicidas letais para a vida humana e o ecossistema... O discurso pós-moderno de paraísos eletrônicos, o doping financeiro multinacional, culturas industrialmente manufaturadas e retóricas intertextuais era tudo deleuzianamente esquizofrênico: ao mesmo tempo presumia a liberdade psicodélica dos megaeventos eletrônicos e negócios nas penumbras da legalidade e o extermínio ou as epidemias como sua conseqüência politicamente sustentável. Os ricos serão mais ricos; os pobres, mais pobres ainda, declarou sem nenhum pudor um dos porta-vozes globais do pós-modernis-


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O que faz a guerra global possível é o confinamento eletrônico da massa midiática

mo. Esta alegria, que hoje conta suas vítimas reais ou virtuais por dezenas de milhões, tem encontrado ampla expressão na indústria fílmica e nas universidades globais. Seu necessário complemento é a interpretação paranóica da realidade, as retóricas totalitárias do bem contra o mal, as guerras globais infinitas ou guerras santas em nome de arcaicas identidades civilizatórias ou raciais e princípios quiméricos de exclusão étnica, religiosa e geopolítica... A diferença entre o liberalismo pós-moderno e as linguagens totalitárias que defendem a guerra global indefinida contra o Mal é que estas não tinham que afrontar imediatamente com suas conseqüências. Por trás do ataque ao World Trade Center ninguém (nem sequer as administrações financeiras mundiais que tiveram que aceitar hipocritamente que depois de tudo a violência terrorista era uma resposta desesperada às políticas econômicas e militares de extermínio do Terceiro Mundo) pode ignorar que efetivamente existe um conflito entre o Terceiro Mundo e o Primeiro, e que eventualmente a população mundial de milhões de humanos sem função econômica no sistema das economias globais pode gerar choque armado de caráter local com gravíssimas conseqüências globais. A política norte-americana de Bush não é neste sentido o reverso da de Clinton, mas sim sua conseqüência. A guerra global não é uma simples resposta aos ataques terroristas. A guerra global se havia definido tecnicamente desde as crises do Golfo Pérsico e dos Bálcãs como um sistema de intervenção militar avançado ou suficientemente rápido para poder intervir simultaneamente nos diferentes cenários do Terceiro Mundo nos quais, num próximo futuro, terão lugar as catástrofes ecológicas que suscitarão o aque-

cimento global, ou os conf litos militares em zonas geopoliticamente significativas por seus recursos naturais (os casos do Iraque, Afeganistão e Colômbia). E enquanto a perspectiva política e econômica global seguir pressionando em favor do desperdício energético, da destruição de selvas, da exploração terminal de força do trabalho étnico e do apoio às ditaduras militares e corruptas, estes conf litos não deixarão de aguçar-se no próximo futuro. A natureza das armas anuncia na sua mesma estrutura tecnológica a ordem civilizatória chamada a se impor. E são fundamentalmente três estas dimensões tecnológicas e civilizatórias de uma guerra global. Em primeiro lugar, o que se põe em cena na guerra global é um aparato perfeito de escárnio mediático, de manipulação sistemática das consciências. O que as faz possíveis socialmente é o confinamento eletrônico da massa mediática pósmoderna e a instrumentalização mediática do terrorismo como um sistema propagandístico de dissuasão e controle totalitário da sociedade civil em escala planetária. A segunda característica da nova civilização é a destruição das culturas e memórias em escala planetária. A terceira condição civilizatória da guerra global é a perpetuação da violência sob as formas psicológicas e estéticas produzidas pela indústria cultural, sob a forma de conf litos armados locais controlados e sob a real ameaça do holocausto nuclear.

(Tradução de Marco Polo) Continente . janeiro, 03


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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Alternativa do diabo Lemas que podem levar a uma vida sem princípios

Os deuses, como os heróis, nunca são esquecidos – principalmente os do mal. E os do bem são escravizados, dentro da paranóia hollywoodiana, numa guinada metafísica – como escreveu o filósofo Boris Groys em artigo publicado na revista alemã Lettre – em relação à cultura cinematográfica européia, pois os donos do mundo da arte cênica só tratam de deuses, demônios, terroristas, alienígenas e máquinas pensantes. Heróis criados e assimilados por várias razões éticas, étnicas, estéticas e aéticas. Uns, erroneamente interpretados através de suas cartilhas religiosas, alimentando o ódio aos grandes, olho por olho, de Alcorão em punho, como se as doutrinas de Maomé, nesse livro sagrado, instassem seus seguidores a vencer o mal sem pregarem o bem – coisa de fanatismo absurdo que, agora, reacende a crendice nas profecias antigas, nos videntes novos e na globalização dos salvadores do mundo. Maldita seja essa globalização aí – bem distorcida, alucinadamente mal empregada e aterrorizante, que entusiasma os Saddams e Bin Ladens da vida, tanto quanto os frios capitalistas detentores da “verdade absoluta”. Não vou repetir o que já está cansativamente analisado por especialistas em relações internacionais, estrategistas militares ou por aqueles cientistas políticos do real e do ideal. No entanto o bem, a que nós, adeptos do humanismo, estamos acostumados, fica à mercê da desestabilização da paz e da liberdade entre os povos. Todos, de todos os lados, dizem acreditar em Deus – sabe-se lá que deus é esse que os ilumina, que inspira a matança de inocentes, que ativa o surgimento de heróis do horror. Tal como nos filmes, a realidade talhou, na fatídico 11

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de setembro, alguns desses heróis a mostrarem como destruir de cima para baixo, no mais breve intervalo, o que o poder das trevas acumulou ao longo de anos de trabalho; então, assim, estamos condenados a presenciar todas as magníficas criações desse poder ao calor de ruínas. O mundo, sem dúvida, vai entrar numa guerra de proporções alucinantes, que vai mexer com a vida de seres humanos desde as aldeias ucranianas, os arredores de Roterdã, uma casa de campo na Irlanda, os lagos texanos, as geleiras da Noruega, as miseráveis vilas africanas... aos sultanatos árabes, aos arrozais chineses, às f lorestas amazônicas, aos palácios britânicos, aos desertos petrolíferos, às ilhas nipônicas e às montanhas incas. Aterrorizante essa expectativa, pois diante da hegemonia econômica da indústria bélica, pouco importa a opção do cowboy Bush – que parece não vislumbrar outra senão a expressão do inevitável confronto que a tecnologia nos fará mostrar nas telinhas televisivas de nossas casas. Bem, mas qualquer que seja sua opção, muita gente vai morrer... É a alternativa do diabo – uma visão ficcionista de Frederick Forsyth, das mais atuais, escrita na década de 70 do último século. É a Coréia do Norte reafirmando que o comunismo não morreu. O Paquistão e a Índia brigando por uma porcaria de Caxemira. O exército de Sharon fazendo o que bem entende – pelo arrependimento irracional do seu chefe de não ter matado Arafat em Shatila. Os russos se avermelhando para os chechenos. E os norte-americanos e britânicos ditando a regra de suas bancas escolares de pose como guerreiros pacifistas das ameaças nucleares e escudos interestelares. Na verdade, todos são culpados – pela omissão, opressão e fanatismo. Por isso, quando a virtude não predominar, quando as consciências humanas se def lagrarem, quando nada se entender na terra, esta virará uma crosta seca... E o silêncio a dominará. Ninguém sairá vencedor.

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