EDITORIAL
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Reprodução
Os meus avós, os meus pais e eu. Frida Kahlo, 1936 – A pintora é a menina de cerca de três anos. Do lado esquerdo, os avós maternos, e, do direito, os paternos. No centro, os pais, no dia do seu casamento.
A cor do sentir
A história de Frida Kahlo é daquelas que o lugar-comum diz “daria um filme” como antes se dizia “dá um romance”. Mas nenhuma obra de ficção poderá retratar com todas as cores as dores que sentiu. De que cor será sentir?, perguntou Fernando Pessoa numa carta em que retratava ao seu amigo Sá-Carneiro todo o seu sofrimento. Disto foi feita em grande parte a vida da grande artista mexicana, notabilizada não só pelos tantos autoretratos e outros quadros em que a sinceridade e a máxima crueza são implacáveis, mas por sua atuação política. Sabe-se que, pouco tempo antes de morrer, participou de um ato contra a interferência norte-americana nos assuntos internos da Guatemala. Daí é que os mexicanos mais críticos dos seus vizinhos repudiaram o filme rodado em inglês em que a atriz Salma Hayek representa a pintora. Na entrevista exclusiva que concedeu ao jornalista Luciano Trigo, a diretora, Julie Taymor defende a sua produção, uma homenagem àquela que começou a pintar por acidente e fez da sua pintura a única forma de vida possível, até o fim, aos 47 anos de idade. A pintura foi a única forma de vida possível também para Cícero Dias, que como os seus colegas mexicanos, cultivou o mural, mas, de modo diferente deles, elegeu a abstração para cantar as cores e coisas de sua terra, e nisto foi um pioneiro na América Latina. A sua morte entristece todo o mundo da arte no país. Pernambucano incurável, ele aceitou generosamente participar do Conselho Editorial desta revista, a que esteve vinculado até o fim dos seus dias. Continente . fevereiro, 03
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CONTEÚDO
Foto: Projeto Lambe-Lambe
Imagem: Reprodução
Foto: Tereza Maia
» 39 CÍCERO DIAS E A COR TROPICAL
» 50 AS MÁSCARAS DO FOLIÃO PERNAMBUCANO
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A HAVANA PESSOAL DE PEDRO GUTIÉRREZ
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CONVERSA
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10 Escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez abre o verbo »
AUTORES
58 Diretora americana Julie Taymor defende o filme Frida »
14 A esquina da Cidade com a Escrita, por Antônio Torres 18 Querido Mário (de Andrade), Caro Carlos (Drummond) 20 A poesia rebelada do inglês Swinburne »
28 A luz do Rio na vida e na obra de Manet 32 Schapiro disseca a essência do Impressionismo »
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CONHECIMENTO 72 Os mistérios do cérebro, da mente e do cosmos »
TRADIÇÕES » 80 Pastoril de Ponta de Rua mantém energia telúrica
36 A obra documental de Rugendas no Brasil 39 O pintor Cícero Dias entre Paris e o Recife
SONS 42 Quando o frevo fez sucesso com a crônica do dia-a-dia
FOTOGRAFIA 50 Retratos do Carnaval criativo de Pernambuco 54 Coleção mostra o valor de Félix Nadar
Continente . fevereiro, 03
FILMES 68 Deus é brasileiro entre o carinho e o cartão-postal
22 Contos de Walter Moreira
BELAS ARTES
CAPA
MEMÓRIA »
82 Frei Tito e Patativa do Assaré: visões convergentes
PATRIMÔNIO 85 Num volume, os 100 mais belos prédios do país » 88 A história da Arquitetura, dos primórdios ao futuro 90 Azulejo nas fachadas das casas é invenção brasileira
PRETO NO BRANCO 92 Por que os EUA querem defenestrar Hugo Chavez
CONTEÚDO
Foto: Divulgação
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Foto: Reprodução
» 58 A VIDA DE UMA PINTORA APAIXONADA
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OS PONTOS ALTOS DA ARQUITETURA BRASILEIRA
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CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 09 As estúpidas vacas colombianas
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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 O ministro da Cultura assusta alguém?
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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 34 A importância real de Cândido Portinari
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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 46 Depois da folia, um delicioso chá »
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito »
76 Histórias verdadeiras de rainhas do maracatu
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira »
84 Caravana a uma cidade que não existe
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Tio Bush se julga o domador do mundo
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CRÉDITOS
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena
Diretor Industrial Rui Loepert
Continente Multicultural
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Arte Luiz Arrais, Hernanto Barbosa, Iraildo Oliveira e Zenival Editoração Eletrônica André Fellows Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Cláudio Manuel, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Eliseu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra
Fevereiro Ano 03 | 2003 Foto: Divulgação
ANTÔNIO TORRES é romancista, autor, entre outros, de Um cão uivando para a Lua (1972), Essa terra (1976), Um táxi para Viena D’Áustria (1991) e Meu querido canibal (2000). Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (2000). FERNANDO MONTEIRO é ficcionista, poeta e cineasta, autor dos romances O Grau Graumann (2002), A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro (2001), A Cabeça no Fundo do Entulho (2000) e Aspades, Ets, Etc (1999). KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema do Jornal do Commercio (Recife) e videasta. Fez o filme Enjaulado e criou o site Cinemascópio (www.cinemascopio.com.br). JARBAS MACIEL é matemático, músico, físico e graduado em Filosofia. É um dos fundadores do Departamento de Informática da UFPE. Autor de Elementos de Teoria Geral dos Sistemas, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1974. JOSÉ TELES é jornalista, escritor, humorista e crítico de música. Autor do livro Do Frevo ao Mangue Beat, Editora 34, São Paulo, 2000. LUCIANO TRIGO é jornalista e escritor. Foi editor do suplemento Prosa & Verso, de O Globo, e editor-assistente do Idéias, do JB. É autor de seis livros. LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA é doutor em Ciência Política e professor aposentado de História da Política Exterior do Brasil. Tem mais de 20 obras publicadas. MÁRCIA CAVENDISH WANDERLEY é mestra em Sociologia, doutora em Literatura Brasileira e especialista em crítica genética. Tem contos e poemas publicados. RAUL LODY é antropólogo e museólogo, tendo cursado as cadeiras de Etnografia e Etnologia no Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra, Portugal. RÉGIS LOPES é professor da Universidade Federal do Ceará e Diretor do Museu do Ceará. WALTER MOREIRA SANTOS é autor de Ao longo da curva do rio (Ed. Cone Sul, SP, 2001, Prêmio Xerox do Brasil); Um certo rumor de asas (inédito vencedor do Prêmio Nacional de Romance Fundação Cultural da Bahia 2000); e da peça O doce blues da salamandra (Prêmio Cidade do Recife 2000). WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de arte. Publicou O aedo (1989), Os ritmos do fogo (1999). É autor de biografia do pintor e ceramista Francisco Brennand (1997).
Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Editor: editor@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Foi editor do “Commercio Cultural”, do JC (Recife), da revista Pasárgada e colaborador do Jornal da Tarde (SP). CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor de UFRPE, ex-secretário adjunto do Tesouro Nacional e diretor geral da revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema sujo, Dentro da noite veloz, Muitas vozes, Cultura posta em questão, entre outros. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de diversos livros, entre eles A luta dos pracinhas e Tempo de contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. Tem inédito livro sobre gastronomia pernambucana. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – uma história de poder. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Parceiro de Zoca Madureira e Assis Lima em diversos espetáculos teatrais, publicou também o livro de contos As noites e os dias.
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CARTAS Burle Marx Vocês estão de parabéns. Pernambuco é magia em qualquer lugar: na arquitetura, nas ruas, nas praças e na cultura. É uma magia e adorei a reportagem “O Recife de Burle Marx”, na Continente Multicultural, edição de janeiro. São pessoas como vocês que fazem esta cidade ficar cada vez melhor. Alexandre dos S. Viana – São Paulo – SP
Drogas Fiquei impressionada com a entrevista “A geopolítica das drogas” (edição de janeiro), com a pesquisadora Adriana Rossi. É incrível como é complexo o universo do narcotráfico internacional e quantos interesses ocultos estão agindo nele. Matéria muito esclarecedora, essa. Continuem assim. Débora Marcondes Pires – Brasília – DF
Carnaval Que revista fantástica! Adoro a Continente Multicultural. Estou de olho na de fevereiro, quando virá com reportagem especial do Carnaval de Pernambuco. A revista está de parabéns e nos dá uma grande satisfação de pernambucanidade. Rinaldo Almeida – Recife – PE
Poesia Sou poeta e gostei muito de duas matérias publicadas na revista Continente Multicultural de janeiro: Mergulho em todas as águas e Os objetos do mundo. A primeira, falando da poesia surrealista na América Latina e a segunda sobre o poeta francês Francis Ponge. Nomes como o de Ponge ou o do cubano Lezama Lima sempre merecem melhor divulgação, já que são grandes escritores mas praticamente desconhecidos do grande público brasileiro. É muito importante que uma revista de cultura faça este trabalho. Carlos Crista – Salvador – BH
Excelência Prezada gente da Continente: a revista é excelente!!! Edgardo Mario Ruiz – Buenos Aires – Argentina Lêdo Ivo Gosto muito da revista Continente Multicultural porque é uma publicação que acredita na cultura do país e a desenvolve através de reportagens bem compostas e desenvolvidas. A prova disso é que ano passado li uma bela reportagem do Geneton Moraes Neto na revista, se não me engano, a respeito do poeta Lêdo Ivo. Edito o jornal UPF Cultura da Universidade de Passo Fundo – RS, sede da Jornada Nacional de Literatura, que abarca cinco mil pessoas em cada assunto discutido. Roberta Scheibe – Passo Fundo – RS Teatro Parabéns ao Alexandre Figueirôa pela matéria “Para os dias de hoje”, na edição de janeiro. Ele foi muito feliz ao valorizar a importância da Cia. Teatro de Seraphim e trazer um texto como esse à cena local e brasileira. Num país, e especificamente, numa cidade tão plural, é bom ler, assistir, conferir caminhos estéticos e abordagens que fujam do formato “oficial” ou de possibilidades puramente comerciais. A peça Meia-sola é rasteira no verbo, mas voa longe para mergulhar nos subterrâneos humanos. Valeu! Hilton Azevedo – Recife – PE Mistura A Continente sempre me surpreende pela mistura de assuntos que apresenta e até mesmo pelo seu alcance, digamos, territorial. Desde questões locais, como o trabalho de certos artesãos e poetas populares, como Seu Nino ou Patativa do Assaré, até traduções inéditas de Faulkner ou entrevistas exclusivas com figuras da dimensão do crítico literário americano Harold Bloom. É uma maravilha. Débora Queiroz Feitosa – Olinda – PE
Culinária Aprecio muito a coluna “Sabores pernambucanos”, assinada pela Maria Lectícia Cavalcanti. Tem um texto gostoso (adjetivo bem a propósito do assunto) e informações curiosas. Embora diferente na abordagem e no estilo, me lembra a extinta minicoluna do Apicius, no Jornal do Brasil, sobre gastronomia. Ou seja, um texto meio erudito e meio espirituoso. E digo “meio” porque o resultado era bem leve. Fiquei sabendo, inclusive, através de uma amiga do Recife, que a Maria Lectícia está pretendendo juntar seus artigos num livro. Acho que fará o maior sucesso. Maria C. Gomes – Belo Horizonte – MG Reynaldo Faço questão de parabenizar o Weydson Barros Leal pela bela matéria com o mestre da pintura Reynaldo Fonseca. Num tempo em que se prega o “fazer feio e sujo” na pintura, quando não o “fazer chato” das instalações de arte conceitual, é um alívio constatar que ainda existem artistas cultivando a arte em sua majestade intemporal. Que a Continente continue aberta a todas as manifestações artísticas e não se curve ao império de “curadores” que, procurando nos impor como opção exclusiva modismos ultrapassados, na verdade estão contribuindo é para adoecer a arte nacional. João Gomes Teixeira – João Pessoa – PB Violeiros Sou um grande apreciador da cultura popular e fiquei muito alegre em ver que a Continente deu sua nobre capa para uma matéria sobre violeiros e cantadores nordestinos. Muito bem! A gente tem que valorizar o que a gente tem de bom, não é mesmo? Carlos de Assis – Caruaru – PE
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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax Torquato Quero parabenizá-los pelo artigo “Os últimos dias de Torquato Neto”, na edição de novembro da Continente. É um poeta vigoroso, ríspido, crítico e que não tem sido devidamente valorizado. Por isso é tão importante que se fale nele e em sua obra. Raul Feliciano da Hora – Picos – PI Amarelo Manga Achei muito boa a matéria de Kleber Mendonça Filho sobre o filme Amarelo Manga (edição de janeiro). Ele é um crítico que não fica apenas no que está na tela, nas questões técnicas ou de roteiro, mas extrapola o sentido dos filmes que examina e faz relações entre este sentido, a cidade e seus habitantes. É uma forma mais ampla de fazer crítica cinematográfica. Um exemplo está num comentário que ele fez sobre assistir a um filme em Nova York, cujo tema é Nova York e, ao sair do cinema, se deparar com o cenário do filme. É como se, de repente, você estivesse dentro do filme. Muito interessante, essa colocação. Amaro Lisboa – Bezerros – PE Padre Amaro Ainda não vi o filme mexicano O Crime do Padre Amaro, abordado por esta revista na edição de janeiro. Nem sei se vou ver. Parece-me pura provocação para com a Igreja Católica. Esse negócio de um padre vestir uma menina como Nossa Senhora para realizar fantasias eróticas é blasfêmia das grandes! Genoíno Filgueira – Recife – PE Iniciativa Gostaria de parabenizar a Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, pela bela iniciativa de ter dado à cultura do Estado esta revista exemplar e ímpar que é a Continente Multicultural. São atitudes com esta que fazem um governo se destacar. Que a Continente tenha muitos anos de vida! Carlos Alberto de Amaral – Olinda – PE Errata Na edição de Continente Multicultural nº 25 (Janeiro/2003), o artigo “Repentistas em cantorias”, à página 13, saiu sem assinatura, quando o autor é o professor José Maria Andrade, antropólogo, pesquisador associado da Universidade de Estrasburgo I, na França, e professor visitante em universidades brasileiras.
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CONTRAPONTO
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Carlos Alberto Fernandes
NÃO É NOSSA A CULPA Como os outros, os fazendeiros repetiram que a culpa não era deles: era da vaca
Fora um longo caminho, sacudindo nossos laptops por estradas esburacadas e expondo nossos sapatos à destruição por produtos químicos nos curtumes e na lama. Descobrimos que os fabricantes de bolsas colombianas não podem competir no mercado americano porque suas vacas são estúpidas. Essa, foi a pitoresca conclusão a que chegou uma empresa de pesquisa, contratada por líderes dos setores público e privado da Colômbia, para identificar alternativas estratégicas de exportação para os produtores de bolsas de couro daquele país. Em Nova York, onde foram entrevistados cerca de dois mil compradores de todo o país, os dados iniciais da pesquisa, apesar de muito complexos, mostravam que os preços das bolsas eram muito altos e a qualidade muito baixa. Na própria Colômbia, ao entrevistar os fabricantes, eles indicaram que a culpa era dos curtumes que forneciam o couro. Os simpáticos proprietários de curtumes - que poluíam a água e o solo com pesados produtos químicos - disseram também que a culpa não era deles. Era dos matadouros. O couro era fornecido com baixa qualidade porque se preocupavam mais com a venda da carne, por ser mais lucrativa. Ao visitar o campo, encontraram matadouros com vaqueiros, açougueiros e gerentes, usando cronômetros. Eles informaram que a culpa não era deles. Era dos fazendeiros, porque marcavam demais suas vacas, para evitarem roubos e com isso estragavam o couro. Por fim chegaram aos fazendeiros.Estes, repetiram como todos os outros que a culpa não era deles. A culpa é da vaca. As vacas são estúpidas, explicaram. Esfregam o couro no arame farpado para se coçarem e se livrarem das picadas dos mosquitos da região. Esta pequena história inspirada num texto de Michael Fairbanks, mostra efetivamente como as pessoas adoram pôr a culpa nos outros pelas mazelas que a vida traz. Ela apenas nos mostra a prevalência do modelo mental atrasado das elites, ao explicarem os seus atos de pouca racionalidade. É esse modelo replicado que ainda é correntemente usado pelos dirigentes para justificação de seus atos falhos. Para manter a dramaturgia administrativa construída pela complacente inocência técnica de gestores de plantão.
Foto: Manuel Novaes / Titular
A propósito, de quem é a culpa pela nossa iníqua dívida social? Pela precariedade do nosso desenvolvimento social e cultural? Pelos repetidos desequilíbrios fiscais do setor público? Pelos atrasos nas reformas, algumas delas consideradas erroneamente, como de Estado? Pelos benefícios e privilégios aumentados e renovados para uns e, surrupiados de tantos outros? Enfim, pela instabilidade repetida para aqueles que sonharam durante tanto tempo com alguma estabilidade? A culpa, certamente não é da vaca. Resta observar, que a euforia produzida pelo triunfo do capitalismo e pela expectativa de que a crença liberal democrática será aceita universalmente tem curta duração. A esperança de que a globalização produza igualdade, seja de conseqüência ou de oportunidade é simplória. A sociedade em que vivemos nunca esteve tão dividida em termos de riqueza, poder e acesso à informação e ao conhecimento. A desintegração social em todos os níveis, da família à nação, é uma séria preocupação no mundo inteiro. Assim, mesmo que a democracia liberal como ideal seja amplamente aceita como aspiração universal do mundo ocidental, a alegação de que ela automaticamente se tornará o único discurso dominante, não passa de uma fantasia. A realidade atual já dá visíveis sinais de que não o será. E certamente, não é nossa a culpa.
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10 CONVERSA
Fotos: Divulgação
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Luciano Trigo entrevista Pedro Juan Gutiérrez
Realismo Sujo Proibido em seu país, o cubano Pedro Juan Gutiérrez mostra o lado escuro de Havana, mas rejeita uma leitura política de seus livros
Depois do sucesso internacional de seus romances autobiográficos Trilogia suja de Havana, Animal tropical e O rei de Havana, Pedro Juan Gutiérrez poderia estar desfrutando os louros da glória em qualquer parte do mundo. Mas Pedro, uma das vozes mais transgressoras da literatura cubana atual, prefere continuar morando, como nos últimos 16 anos, no oitavo andar de um prédio caindo aos pedaços, sem elevador e com banheiro compartilhado, no centro de Havana, com a mulher e uma filha de 2 anos. A obra de Gutiérrez não circula em Cuba. Sua linguagem crua e sem adornos, a alta dose de erotismo de suas narrativas e o realismo sem concessões com que retrata a crise econômica em Cuba nos anos 90 – o eufemisticamente chamado “período especial” – não agradam ao dogmático regime comunista. Os motivos são óbvios: são livros povoados por travestis, prostitutas, bêbados, mendigos, marginais de todos os tipos. Sobretudo na Trilogia, o sexo aparece com uma válvula de escape para a precariedade da existência, para o desespero e o caos: é a história da “involução” de um homem, da condição de Não dialogo com jornalista a mendigo, reduzido a uma condição quase animal. História verdadeira: escritores cubanos. Pedro Juan sentiu na carne quase tudo o que relata. O ambiente em que Além dos três livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras, Gutiérrez se desenvolve minha já lançou na Espanha El insaciable hombre-araña. Em abril, será lançado na Esobra é muito mais panha o quinto e último romance do Ciclo de Centro-Habana, Carne de perro. pobre, sujo e Depois disso, o escritor fará uma pausa na autobiografia, quando publicará o sórdido que o deles. romance GG em Havana, uma fantasia policial-erótica protagonizada pelo esPara mim, a critor Graham Greene.
literatura é conflito
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CONVERSA 11 »
agradável, mesmo que me julgassem marginal, delinqüente ou machista. Eu me sentia à beira do precipício. Ou escrevia a Trilogia daquela maneira ou enlouquecia, ou me matava, ou continuava fumando dois maços de cigarro e uma garrafa de rum por dia. Não foi um projeto intelectual e literário, mas sim um desabafo. Muito da Trilogia é inteiramente autobiográfico. As coisas aconteceram exatamente da forma descrita.
Capa de Animal tropical: uma literatura feita de fúria
Trilogia suja de Havana fala de duas crises, uma coletiva e outra individual. A situação melhorou para a sociedade cubana? Na verdade a situação do país só melhorou um pouco, economicamente, para algumas pessoas na capital, mas nada mudou para a maioria, especialmente para quem vive nas províncias. Acho que a crise continua e vai se prolongar durante muito tempo. Não sou otimista a curto prazo. De fato em meados dos anos 90 a crise econômica e social era mais aguda, e em Havana algumas zonas melhoraram. Mas em outras a situação continua terrível.
Você vai publicar um romance policial sobre Graham Greene. De onde vem seu interesse por ele? Eu poderia seguir escrevendo textos autobiográficos indefinidamente mas decidi interromper o ciclo para escrever esse romance policial. A literatura não precisa ser autobiográfica sempre. Graham Greene foi um escritor fantástico, é autor de mais de 60 livros, que sempre me maravilharam. Mas como pessoa ele também era interessantíssimo. Era um tipo que tinha uma vida dupla inacreditável, quando vinha a Havana freqüentava shows de pornografia no Barrio Chino, e ao mesmo tempo o catolicismo o esmagava, e ele escrevia de maneira muito correta. Sua vida é tremenda: combina sexo louco, infidelidade e uma intensa fé religiosa.
Quem são seus interlocutores na literatura cubana atual? Você se sente um escritor cubano, apesar de não ser publicado aqui? Não me sinto um escritor cubano, nem pela temática, nem pela linguagem. Na verdade, eu não me sinto sequer um escritor latino-americano. Quando se pensa em literatura cubana, vem logo à mente um certo barroquismo de linguagem, ligado a Lezama Lima e Alejo Carpentier, que não tem nada a ver com o que escrevo. Minhas leituras preferidas são Kafka e Julio Cortázar, mas seguramente fui muito mais influenciado pelos autores ameE em relação à sua crise pessoal, relatada na Trilogia e em ricanos dos anos 50, como John dos Passos, Sherwood Anderson outros livros? e Hemingway. A ação de O velho e o mar se passa muito perto Melhorei muito. Eu bebia e fumava muito, e me alimentava daqui. Henry Miller não me influenciou, apesar do que dizem os mal. Comecei a escrever a Trilogia em 1994 no meio de uma crise críticos, que gostam de pôr etiquetas. Charpessoal muito forte e violenta. Eu me vi sem les Bukowsky eu só conheci em 1999, pordinheiro, sem comida, sem casa, sem móveis que seus livros não são publicados aqui. e cheguei a pensar em suicídio. Como jornaSobre autores cubanos, gosto de Três tristes A literatura tem que lista, eu tinha casa, carro e a geladeira sempre tigres , de Cabrera Infante [escritor cubano cheia de comida. Tinha uma família, e de ser verdadeira. É exilado em Londres], mas seus romances se repente fiquei sem nada, quando perdi o emclaro que mesclo desenvolvem em outro ambiente, a vida noprego por causa de meus livros. Mas hoje faço elementos de ficção, turna de Havana, a gente boêmia... Eu não exercícios, faço ioga, recuperei peso. Vivo mas um escritor não quero escrever sobre os boêmios do Vedado outra situação. [bairro chique de Havana] mas sobre gente pode viver que tem que se virar para sobreviver, seja Como jornalista você já tinha planos de exclusivamente no vendendo livros velhos ou marijuana. Não escrever romances? mundo dos livros. mantenho nenhum contato com os círculos Eu escrevo poesias desde os 18 anos. intelectuais de Cuba. Tenho, sim, alguns Também já tinha escrito um romance, Todo amigos que me apoiaram na União de Escribajo control, e um conto de espionagem, tores quando perdi o emprego de jornalista. Valise diplomática, mas era uma literatura Fora isso, não dialogo com escritores cubanos. O ambiente em muito convencional, sem nada de “realismo sujo”. Quando fique se desenvolve minha obra é muito mais pobre, sujo e sórdido quei desempregado e comecei a escrever Trilogia em tempo inteque o deles. Para mim, a literatura é conflito. gral, deixei de me importar com o leitor. Não queria mais ser
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Foto: Teresa Maia
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12 CONVERSA
Você gosta de ser visto como um marginal? Sim, no sentido americano que dão à expressão outsider, um tipo que vive a vida à sua maneira, um pouco liberal e anárquica, sem crenças políticas nem religiosas. Um tipo que vive à margem da sociedade para poder analisá-la melhor, explorá-la, retratá-la. Não me interessam prêmios e cargos. Escrevo com muita fúria. Eu me irrito muito quando um escritor ganha um cargo diplomático, porque na verdade ele está sendo comprado, já que não poderá mais dizer coisas que incomodem o poder estabelecido. Não me interessa ganhar dinheiro nem prêmios, não quero me vender, prefiro ter poucos e bons leitores a vender milhões.
Gutiérrez não escreve sobre os boêmios do Vedado, bairro chique de Havana, mas sobre gente que vende livro velho ou marijuana
Quais foram suas principais influências? Há fortes doses de sexo em seus livros. Que papel a sexualiEu tive meu insight literário quando li Breakfast at Tiffany’s dade desempenha na sua obra? [Bonequinha de luxo], de Truman Capote. Decidi que queria No período mais grave da crise econômica, o sexo era uma escrever como ele, sem nenhum intelectualismo, como se a própria válvula de escape para todos em Cuba. Por outro lado, para mim vida estivesse sendo capturada pela linguagem. Mas sempre li bastannão existe separação entre homossexualidade, heterossexualidade te, em Matanzas havia boas bibliotecas, e aos 14 anos já tinha lido e bissexualidade. Somos todos mamíferos. Entre os cachorros, poSartre. Aos 17 anos já tinha decidido me tornar escritor, e fazia uma de haver relações sexuais entre dois ou até quatro machos. Somos verdadeira salada de leituras: Kafka, Dostoievski, Tolstoi, um poeta seres sexuais e devemos encarar nossa sexualidade com serenidade. cubano chamado Eliseo Viejo, escritores americanos como John dos Cada um tem direito a desfrutar sua sexualidade da maneira que Passos, algo de Hemingway, sobretudo O velho e o mar... Lia quiser, inclusive pela masturbação. O machismo tropical me muito, mas não queria me aproximar da liteincomoda muito. Eu não condeno nenhum ratura por uma via intelectual ou acadêmica, comportamento sexual. Acho a tolerância porque achava que isso podia influenciar de fundamental, o respeito às diferenças é nePara mim não existe uma forma prejudicial o meu estilo. E tamcessário para se criar uma sociedade forte. separação entre bém porque acredito que um escritor é ele homossexualidade, mesmo somado à sua circunstância, que ele Os travestis e homossexuais são persoheterossexualidade e tem um dever em relação à situação que o nagens literariamente interessantes? bissexualidade. Somos cerca, isso é fundamental. Eu tive uma vida Em Cuba a sociedade é muito machista, todos mamíferos muito intensa e a matéria-prima que tenho à e todas as minorias têm poucos direitos. Os minha disposição é a vida do meu bairro, que homossexuais não podem se expressar e por é de pessoas fortes, violentas, agressivas. Hoje Centro-Habana é uma isso mesmo me interessam como personagens. Conheço vários das zonas mais marginais e violentas de Havana. Então não preciso travestis em Habana Vieja que são pessoas muito valentes. Poralterar muito a realidade para produzir uma história. A literatura tem que, numa sociedade como a cubana, é preciso ter muita coragem que ser verdadeira. É claro que mesclo elementos de ficção, mas um para viver desta forma. Eu não teria culhão para me vestir de escritor não pode viver exclusivamente no mundo dos livros. Tem mulher, pintar as unhas e entrar numa cafeteria em Havana, porque ser autêntico, escrever sobre o que realmente o preocupa, o que poderia ser preso, molestado e espancado por isso. E se algumolesta ou o obceca. Eu me considero um escritor muito intuitivo, mas pessoas querem ser prostitutas, que sejam, desde que se cuiescrevo de forma inconsciente e dou muito valor às imagens. Talvez dem, usem preservativos... É claro que existe uma relação entre a porque eu também tenha sido muito influenciado pelo cinema. Via prostituição e a miséria, mas em todos os países é assim. Quando de tudo, a minha formação foi marcada basicamente por aqueles estive no Brasil e fui a Fortaleza fiquei assombrado com a prostifilmes. Talvez por isso eu também goste de pintar. tuição infantil. Na praia, vi meninas de 9, 10 anos, se prostituindo.
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Foto: Teresa Maia
A persistência de problemas sociais em Cuba, como a pobreza e a prostituição, inspirou o romancista a escrever a Trilogia suja de Havana
Aqui em Cuba elas começam com 12 ou 13 anos. Isso me dói muito. Às vezes os próprios pais, não tendo de onde tirar dinheiro, encaminham as filhas à prostituição.
CONVERSA 13
que, portanto, devem interessar ao leitor. Não pretendo fazer história, nem política, nem antropologia. Um escritor não é um teórico, ele simplesmente conta uma história e depois as pessoas fazem as leituras que querem. Não gosto de ser pedagógico, porque procuro um leitor cúmplice, inteligente e culto. O que ocorre é que a maioria dos autores escreve sem molestar o leitor, de forma politicamente correta. Isso acontece não somente em Cuba: a literatura européia hoje é a mais aborrecida do mundo.
Você já foi acusado de racismo e machismo. Como responde a essas críticas? A Revolução de 1959 combatia a prostituição e a miséria. Não sou racista. Minha mulher é mulata, minha filha tamNão é frustrante ver que mais de 40 anos depois esses problemas bém. O que ocorre é que a sociedade cubana é muito racista, e acontecem? eu simplesmente registro isso em meus romances, principalmente Sim e foi por isso mesmo que comecei a escrever Trilogia suja em Carne de perro. Legalmente é proibido, mas existe um racisde Havana. Eu sentia raiva e fúria, um enorme sentimento de mo camuflado e hipócrita em Cuba, até frustração com a situação do país. Mas mesmo dos negros em relação aos nehoje adoto um pensamento da filosofia gros. Não estou interessado em fazer chinesa, segundo o qual a História é circuEu não faço política, só uma análise antropológica ou sociológilar, e tudo regressa ao começo. conto histórias que me ca desse fenômeno, isto cabe a outras parecem fortes e pessoas. Sobre o machismo, surpreenComo você se situa politicamente em interessantes, com as dentemente as feministas receberam relação à Revolução cubana? quais eu próprio me muito bem os meus romances. Na FranNão gosto de falar sobre política. O assombro e que, ça, chegaram a elogiar a forma como reque posso dizer é que, nesta altura de portanto, devem trato as mulheres, que têm sempre perminha vida, com 52 anos, eu não acredito interessar ao leitor. sonalidade forte e não se submetem ao mais nem na política nem nos políticos. domínio do macho latino-americano. Nem nas ideologias, sejam elas de esquerda ou de direita. Eu me dediquei durante muito tempo a um projeto revolucionário humanista, mas isso se esgotou em algum momento, e desde então só faço o que gosto, que é escrever e pintar. Talvez isso tenha sido fruto de uma desilusão total. Por outro lado, tenho uma lembrança muito boa dos primeiros anos da Revolução, da alegria nas ruas daquela época. Foram dias inesquecíveis, foi algo muito forte, sobretudo devido ao ódio que se tinha ao regime anterior, de assassinos. Penso até em escrever outro romance autobiográfico, sobre a minha infância e adolescência na Havana no começo dos anos 60, mas ainda tenho que amadurecer a idéia. Mas há quem diga que você pretende desmistificar a Revolução em seus romances... Não. Eu não faço política, só conto histórias que me parecem fortes e interessantes, com as quais eu próprio me assombro e
A literatura teve uma função terapêutica para você? De jeito nenhum. Eu não acho que a literatura tenha uma função terapêutica, pelo contrário: ela serve mais para inquietar que para tranqüilizar um indivíduo. Qual é sua relação com a fé e a religiosidade? Durante muito tempo eu perdi completamente a minha fé, a minha vida espiritual. Nos anos 60 e 70, houve em Cuba uma grande propaganda contra todas as religiões. Eu era muito jovem e me deixei levar, porque me entreguei totalmente à Revolução. No começo dos anos 90, recuperei esse lado espiritual da vida, mas à minha maneira. Tenho a minha religião, mas não sou católico, nem umbandista, nem espírita. Misturei um pouco de cada uma, incorporei o que me agradava em cada religião.
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14 AUTORES Antônio Torres com ilustrações de Zenival
A esquina da Cidade com a Escrita A literatura dá voz à cidade e constrói-lhe o mito
Das cidades de sonho dos contos orientais às descritas por Marco Polo em O Livro das Maravilhas, das “invisíveis” de Ítalo Calvino à visibilíssima do nosso Paulo Lins, a civitas, ou polis, ou urbe, sempre foi, é e sempre será um espaço para fabulações. “Continente das experiências humanas, com as quais está em permanente tensão, como ambiente construído, como necessidade histórica, ela é o resultado da imaginação e do trabalho coletivo do homem que desafia a natureza,” no dizer de Renato Cordeiro Gomes, autor de Todas as Cidades, a Cidade. Eis aí o seu real significado para os escritores: um laboratório. De aprendizagem, experimentações, riscos, alegrias, decepções, inseguranças, ralações, derrapagens, trombadas – com quem você bateu de frente, hoje? –, frivolidades, “papo urbano e impopular” (copyright para o finado Scott Fitzgerald), papo cabeça, papo Jesus, medo, terror, competições, ultrapassagens. É pegar isso e bater no liqüidificador. Como quem pega um limão e faz a limonada. Edmund Wilson, o crítico literário norte-americano que sempre soube o que dizia, disse uma vez que só existem três personagens na literatura ocidental. Primeiro: o que vai do campo para a cidade e se deixa seduzir por ela. Segundo: o que faz o mesmo percurso, não se encanta com a cidade e volta para a sua aldeia. Terceiro: o da cidade.Donde podemos concluir que, se a cidade dá espaço para a escrita, esta lhe dá voz. E constrói-lhe o mito. Já desconfiava disso muito antes de ler Edmund Wilson. Nasci na roça. Mas com a cabeça, a alma e o coração povoados de cidades. Há a Cidade Eterna, a Cidade Santa (Jerusalém, para uns, Meca, para outros), a Cidade Maravilhosa, a Grande Maçã, a Santa Maria Reina de los Angeles e a Santa Maria de Belém do Grão Pará, a de São Salvador e a de Saint-Georges de l’Oyapock, na fronteira da França com o Amapá, onde diariamente crianças brasileiras atravessam um rio largo e profundo para estudar francês, na esperança de um dia poderem trocar o verde e vago mundo da selva amazônica pelo spleen da Cidade Luz. Reais ou imaginárias, há as utópicas, as que têm alma, as bonitas e as feias, as alegres e as tristes, as invictas, as heróicas, as complexas (São Paulo, por exemplo), as pobres de dar dó e as com a voz cheia de dinheiro (São Paulo também, para os nordestinos), as hospitaleiras e as que convém nem passar perto, as de paz (como o Rio) e as de guerra (idem), as onde o Judas perdeu as botas ou o vento faz a curva, as que nunca viram uma gota de chuva (Lima, Peru), as habitadas por fantasmas, como uma chamada Continente . fevereiro, 03
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Comala, inventada pelo mexicano Juan Rulfo em Pedro Páramo, sem esquecer A cidade do desassossego, de Gogol, A cidade de vidro, de Paul Auster, a Cidade perdida e a Babilônia revisitada, do já citado Scott Fitzgerald, que me fez conhecer o bar do Ritz, onde nunca estive, em Paris, cidade, aliás, que o leitor aqui já conhecia antes de pôr os pés lá, graças às páginas de Hemingway, Henry Miller, Proust e Boris Vian. Para nós, os leitores, que importância teria Praga sem Kafka, e Dublin sem James Joyce? Se o Rio de Machado de Assis não existe mais (no entanto é preciso lê-lo, para sabê-lo), Rubem Fonseca nos coloca cara a cara com a sua alta voltagem contemporânea. Agora, as outras que me perdoem, mas lendária mesmo foi Axuhy, a cidade dos escravos fugidos como protesto à desumanidade do chicote de seus ferozes senhores, que se tornaram muito ricos graças às audácias de seus saques. A lenda transformou-a num quilombo encantado, lá para as bandas dos campos da Lagarteira, perto das imensas dunas brancas dos Lençóis Grandes, às margens da Lagoa do Caço, ao leste da capitania do Maranhão. Era uma das muitas fábulas que corriam sobre os negros fugitivos. E acabou se tornando um dos episódios mais patéticos da história colonial portuguesa no Brasil. Quem contou isso foi Viriato Correa, em seu livro Terra de Santa Cruz. O espaço da cidade é o da fábula, da memória, da história, do mapa, da arte, da moda, da biografia, do trabalho, do estudo, do vizinho, do lazer, do sonho de quem nasceu no campo, da violência, etc. Surgida na Suméria no terceiro milênio a.C., ela viria a aglomerar a população num núcleo urbano e organizá-lo num conjunto político e econômico. Foram, porém, os antigos gregos que lhe deram uma estrutura acabada, permitindo o surgimento de uma florescente civilização, entre o 7º e o 4º séculos a.C. Na Antigüidade, o seu assentamento se fazia a partir de um ponto fortificado, como medida de defesa. Na Idade Média e nos Tempos Modernos, a Europa conhece o esplendor das cidades flamengas, alemãs, italianas, etc. As metrópoles do mundo – Londres, Paris, Nova York, Tóquio, Moscou – chegam ao apogeu na era industrial, que faz o homem do campo Continente . fevereiro, 03
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16 AUTORES
marchar para a cidade, num fluxo migratório que nunca mais iria ter fim. Hoje, são cerca de duzentas cidades com mais de um milhão de habitantes, e mais de vinte acima dos 5 milhões, boa parte delas na América Latina (Cidade do México, São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires), Ásia (Xangai, Calcutá, Bombaim, Déli, Karachi) e África (Cairo, Lagos, Kinshasa). O mundo se torna cada vez mais urbano e a urbe um espaço problemático: já não há lugar para todos. E aqui chegamos ao nosso tempo. Parece que foi ontem. E foi. Eu me recordo. Meninos, eu vi a chegada do primeiro caminhão. O impacto foi maior do que as imagens na TV do homem pisando na Lua. Primeiro, foi a visão fantasmagórica de dois imensos olhos acesos que apontaram de repente na Ladeira Grande. Depois, a inquietação para saber-se de que se tratava o estranho objeto luminoso, mais amedrontador do que o fogo-fátuo, pois roncava e emitia sons de um instrumento musical desconhecido naquelas brenhas – fon-fon –, aumentando de intensidade à medida em que o objeto não-identificado se aproximava. E ele chegou mesmo, como um celerado. Volumoso, poderoso, assombroso. Mas temente a Deus, pois passou a tocar um bendito: “Louvando a Maria, o povo fiel...” Parecia querer anunciar-se como um enviado dos céus. Para o menino desta história, foi um deus-nos-acuda. Pedi pernas para correr e me esconder daquela assombração, muito mais apavorante do que as histórias de zumbis, lobisomens, mulas-sem-cabeça, boitatás, almas penadas, gralhas mal-assombradas.
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Na manhã seguinte lá estava ele, repousando debaixo de uma árvore. Grandão e perigoso. Mesmo de longe o bicho dava medo. Mantendo distância, aos poucos o menino foi se informando do que se tratava. Mas só fui me dar conta da revolução que a chegada do caminhão causara àquele remoto sertão muito tempo depois. Ele espalhou nos nossos ares o cheiro da gasolina. As garotas do lugar endoideceram. Ninguém ali cheirava igual ao motorista do caminhão. Nem se vestia do seu jeito e falava ao seu modo. Tabaréus da roça, nunca mais. Agora elas ficavam de olho na Ladeira Grande, esperando algum rapaz da cidade. Humilhados e ofendidos, nós, os indesejados rapazes da roça, assim que vestíamos umas mal-ajambradas calças compridas e nos sentíamos próximos da idade adulta, passávamos a sonhar em dar o fora. Queríamos ser como ele, o motorista. A chegada do caminhão era o corte epistemológico do sertão. Tinha de acontecer. Um dia eu também ia subir num caminhão no rumo de uma cidade. E depois da primeira veio a segunda, a terceira, e outra e mais outra. Até chegar aqui, para contar a história. Comecemos pelo Aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de vinte anos chegou, olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do
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Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de Moraes. Ano: 1961. O passageiro estava em trânsito. Vinha da Bahia com destino a São Paulo. Desceu aqui para fazer uma conexão, depois de cinco horas preso numa cadeira de uma geringonça ensurdecedora e vagarosa, relíquia aeronáutica da Segunda Grande Guerra. Um pau-dearara do ar chamado curtis commander que, mal avistava uma pista de aterrissagem, ia baixando. Descer no Rio havia sido uma bênção. Para os seus ouvidos, suas pernas, seus olhos. Assim o vejo: olhando a cidade por trás dos vidros que o enjaulavam no saguão do aeroporto, enquanto aguardava a chamada para o embarque. Azul era também a cor do seu paletó. Ele estava convenientemente vestido para a sua primeira viagem de avião. Trajava até uma gravata vermelha sobre uma camisa branca. E os seus sapatos espelhavam, de tão bem lustrados. Numa das mãos, portava uma maleta com tudo o que possuía de seu, aos vinte anos – o que incluía meia dúzia de livros – além da roupa do corpo. Já que não podia sair, contentou-se em olhar a distância a cidade que só conhecia de prosa e verso, cinema e canções. E tudo nela, que vinha dela, o fascinava. E dava medo. Imaginavaa fora da rota dos imigrantes, inatingível para principiantes. O Rio era a corte – dos sabidos e malandros. Suas artes e letras, sua natureza deslumbrante o atraíam. “Deus fez o mundo em sete dias, dos quais tirou um para fazer o Rio de Janeiro”, dizia a voz de ouro de Luiz Jatobá, num documentário de Jean-Manzon. Mas a manchete do jornal comprado na banca do aeroporto o amedrontava. Era sobre uma operação de extermínio chamada de mata-mendigo. E ali estava ele, entre duas visões da cidade:
uma sedutora, outra assustadora. Teve vontade de ficar. A chamada para o vôo o levou em frente. Tinha que ir para São Paulo. Assim estava escrito na sua passagem. Era um baiano do interior, um tímido roceiro, e estava indo para a locomotiva da nação, onde sempre haveria de caber mais um. Voltaria ao Rio um dia, para vê-lo de perto, entrar nele, conhecê-lo nas solas dos seus sapatos, se para tanto não lhe faltasse coragem. E algum preparo. O Rio não era uma cidade para capiaus, tabaréus da roça. Trinta e cinco anos depois, um passageiro diário das linhas urbanas Copacabana-Centro, Centro-Copacabana vai retornar ao Santos Dumont. A pé. Para tentar descobrir o que foi mesmo o que aquele garoto interiorano viu – e se por um momento poderia voltar a ser a mesma pessoa, ainda capaz de ver a cidade com um olhar de novidade. A história continua. Dia após dia a cidade abre espaço para a escrita dos que chegam, atraídos pelas suas luzes verdes, seu orgiástico futuro. Se tudo for uma ilusão, pouco importa. Procuraremos fazer disso uma ficção.
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Fotos: Reprodução
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18 AUTORES Homero Fonseca
Cartas de
gigantes
Correspondência entre Carlos Drummond e Mário de Andrade revela intimidades, afazeres, idéias e visões do mundo de dois gigantes do Modernismo brasileiro
Difícil imaginar personalidades tão diferentes. Um, católico, eloqüente, apaixonado, múltiplo, vulcânico. O outro, agnóstico, reservado, cético, singular, irônico. Entretanto, durante 21 anos foram amigos e confidentes e, principalmente, construíram uma obra literária fundamental. O paulista Mário de Andrade nasceu em outubro de 1893 e morreu de infarto em fevereiro de 1945, com 52 anos incompletos, tendo escrito poemas, ensaios (especialmente sobre música popular e folclórica), romances (Macunaíma), artigos e cartas, além de exercer uma liderança marcante no movimento da arte moderna no Brasil. O mineiro Carlos Drummond de Andrade, por muitos considerado o maior poeta brasileiro, nasceu também no mês de outubro, em 1902, e morreu em agosto de 1987, com quase 85 anos, incorporando versos ao linguajar do povo brasileiro, como a expressão “E agora, José?” Conheceram-se em 1924, quando Mário esteve com alguns intelectuais em Belo Horizonte e foi procurado por Drummond. Durante 21 anos, corresponderam-se assiduamente, relatando experiências pessoais e, principalmente (do ponto de vista literário), trocando idéias sobre a arte, o mundo, a vida. Essa correspondência de grande valor está sendo publicada, agora, pela nova editora BemTe-Vi, com organização e notas do crítico e escritor Silviano Santiago, num calhamaço de 615 páginas. É um banquete para os gourmets literários. Na alentada introdução, inexplicavelmente encerrada de forma abrupta no ano de 1935 (quando a correspondência entre os dois escritores vai até 1945), Silviano adverte com propriedade: “Passaremos por experiência única: a de penetrar na intimidade de dois entre os gigantes do movimento modernista brasileiro”. Ao analisar a atração que esse tipo de publicação desperta, em boa parte voyeurismo puro, o crítico ressalta, entretanto, citando Baudelaire, que “o comportamento privado e público do grande arContinente . fevereiro, 03
Retrato de Mário de Andrade, Anita Malfatti, 1922
tista sempre foi corajosamente imitado pelos jovens, hipocritamente lastimado pelos bem pensantes, injustamente condenado pela comunidade e até pela Justiça, devidamente resgatado pela história”. Vamos ao resgate, pois, com a vantagem de podermos nos abeberar de conselhos como o de Mário (mais velho nove anos, já famoso pela Semana de 1922, adotando a posição de Mestre, enquanto Carlos assume naturalmente a de discípulo): “(...) puxar conversa com gente baixa e ignorante! Como é gostoso! Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição livresca”. Na correspondência, que traça involuntariamente um painel literário, econômico, político e social do Brasil entre os anos 20 e 40 do século passado, “não se trocam apenas cartas e idéias; trocam-se também poemas de altíssimo nível” – adianta Silviano Santiago, para definir o intercâmbio como “um complexo jogo de espelho, a mineração do outro”. Numa apresentação escrita em 1958 para a publicação das cartas de Mário, Drummond as define como “o mais constante, generoso e fecundo estímulo à atividade literária, por mim recebido em toda a existência”. Foi diante desse estímulo, que CDA descobriu, no início da troca de cartas (outubro, 1924), que “ser brasileiro é uma coisa única no mundo, é de uma originalidade delirante”. Ao que Mário responde, criticando a propensão do mineiro ao desânimo e ao abatimento: “Eu acho, Drummond, pensando bem, que o que falta pra certos moços de tendência modernista brasileiros é isso: gostarem de verdade da vida”. Ao que Carlos treplicou, humilde
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Carlos e Dolores, a esposa, Belo Horizonte, 1932.
Primeira carta de Carlos Drummond de Andrade a Mário de Andrade, 1924.
e determinado ao mesmo tempo, como sói acontecer com os tímidos: “Obrigadíssimo pela sua carta que me encheu de alegria, sim, de viva alegria, embora não concorde com muitas coisas que você aí deixou”. Mas nem só de salamaleques vivem os intelectuais. Em 1941, um incidente não especificado esfriou a amizade e durante um ano inteiro a correspondência foi interrompida. Seria reatada no ano seguinte, somente encerrando-se de vez em fevereiro de 45, poucos dias antes da morte prematura de Mário. Mas já muito antes, podia acontecer um arrufo entre os dois, como a queixa do autor de Paulicéia Desvairada, em março de 1926, em sua peculiar sintaxe: “Uma feita numa carta você foi duma perversidade juvenil comigo que me machucou terrivelmente. Nunca me esqueci das palavras ameaçadoras que você escreveu e que além de ameaçadoras estou certo que estão erradas. Foi um dia em que aplaudindo qualquer coisa que escrevi, não me lembro o quê, você partiu dali pra considerações sobre a nossa amizade e concluiu que se ela existe e por mais forte que seja, verdadeiramente o fundamento a base e a necessidade dela era a irmandade literária e o alimento de espiritualidade pensativa. Me lembro mesmo que você foi tão áspero a ponto de verificar ou profetizar não me lembro bem que a nossa amizade se acabaria se essa literaticidade dela se acabasse. Eu perdoei e fiquei bem caladinho, sofrendo quieto”. Na resposta, Drummond, depois de relatar a vidinha que vinha levando no interior e de expressar dúvidas sobre seus próprios méritos literários (“E talvez eu não tenha nascido mesmo para escrever livros, e nesse caso me contentarei em ler os livros dos outros”), nega que houvesse tido a intenção de ser cruel, finalizando com uma candura comovente: “Meu amigo... Que mais te posso dizer senão que estou triste e que sou a maior besta do mundo?”
Carlos & Mário – Organização e notas de Silviano Santiago – Editora Bem-TeVi, Rio de Janeiro, 2002. 615 páginas. R$ 190,00. Continente . fevereiro, 03
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20 AUTORES Marcia Cavendish Wanderley
A poesia rebelada de Swinburne Traduções pioneiras de Jorge Wanderley revelavam sua marca Poesia no mundo – assim se chamava a coluna literária assinada por Jorge Wanderley no Suplemento do Diário de Pernambuco do Recife no início dos anos 70. Convidado por Renato Carneiro Campos, grande estrela deste mesmo Suplemento na época, dividia com ele a alegria de ver seu texto semanalmente publicado em poemas que embora não fossem de sua autoria, traziam sua marca quando recriados pela tradução. E as comemorações deste encontro, sempre regadas a cuba-libre como ambos gostavam, lavavam a alma e a juventude destes dois generosos amigos e literatos pernambucanos. Grandes poetas ingleses como Yeats, Gerard Manley Hopkins, Ted Hughes, Dylan Thomas, Denise Levertov, e americanos igualmente geniais como e.e.cummings, Marianne Moore, Robert Lowel, Sylvia Plath, entre muitos outros, foram apresentados a um público leitor receptivo que, em sua maioria, não havia tido a chance de conhecê-los anteriormente. Ali Jorge começa sua carreira como tradutor de poesia, uma atividade que amava e que só viria a se concretizar completamente no Rio de Janeiro 20 anos depois, através de tantas publicações, entre as quais 22 Ingleses Modernos: Uma Antologia (Civilização Brasileira, 1992) e Antologia da Nova Poesia NorteAmericana (Civilização Brasileira, 1993). Mas a atividade literária de Jorge, sempre febril e incansável e bem maior do que a vinda publicamente à tona, inclui ainda traduções do poeta inglês Algernon Charles Swinburne, um romântico tardio que certamente já fazia parte do elenco escolhido por ele nos saudosos 70, e que permaneceu escondido entre as dobras do tempo de sua estrada tão intensamente vivida, emocional e literariamente. A balada A despedida resgata ambos, poeta e poeta/tradutor, dentro do mundo da poesia. O poeta britânico Algernon Charles Swinburne nasceu em Londres em 1837, descendente de velha família da Northumbria, civilização anterior à inglesa, citada por Jorge Luis Borges em um de seus poemas. Filho de almirante e neto de condes, passou a infância na ilha de Wight e estudou em Eton e Oxford mas abandonou a universidade para dedicar-se inteiramente à sua obra poética, caracterizada pelo abuso de efeitos como a aliteração e as rimas. Viveu numa Inglaterra de costumes vitorianos contra os quais rebelou-se sua poesia eminentemente sensual e mórbida que sacrificava, às vezes, a pureza do pensamento em favor da beleza dos sons despertados pela reunião das palavras. Mas foi também
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um poeta comportado e clássico que escreveu em estilo grego sua mais famosa peça Atalanta in Calydon (1865), uma das integrantes de um enorme elenco de dramas poéticos inspirados em temas os mais variados que incluíram tanto uma romântica peça sobre Mary, Rainha da Escócia (Mary Stuart, 1881) quanto um épico sobre a libertação italiana inspirada em Garibaldi (A Song of Italy). Sua atraente musicalidade aparece exacerbada em seus Poems and Balads (1866) que chocaram seus contemporâneos pelo insulto à tradicional reserva inglesa, e em sua segunda série (Poems and Balads, 1878) tão musical quanto a primeira, porém mais casta no conteúdo. Foi esta sonoridade que exerceu irresistível charme sobre o também musical poeta, Jorge Wanderley, levando-o a traduzir duas de suas mais conhecidas baladas: A leave-taking (Uma despedida) e Beford (Bem antes do início dos anos).
AUTORES 21 » Uma despedida Charles Algernon Swinburne Tradução de Jorge Wanderley Vamos, canções, ela não ouviria Sigamos sem temor por nossa via. Silêncio, o tempo de cantar passou, Passou já tudo o que se quis um dia. Ela não quer o amor que nos marcou. Fôssemos a voz de um anjo em melodia E ela não ouviria. Vamos partir. Ela não saberia. Vamos ao mar, como é da ventania, Soprando areia, espuma, que fazer? Nada a fazer, que a vida é mesmo fria, E o mundo é lágrimas e é padecer. Mostrássemos a dor que em nós havia E ela não saberia. Para casa! Ela não sofreria. Demos de amor, sonhos demais, e dias E flores mortas, frutos condenados, Dizendo:”Ceifa, como `a fantasia” E nada resta: foi tudo ceifado. Visse em nós, que plantamos, a agonia, E ela não sofreria. Ao descanso! Ela não nos amaria Nem vai ouvir a nossa litania Nem ver que amar caminha em dor, no mundo. Vamos daqui, cessemos a porfia. O amor é mar amargo, hostil, profundo; Pudesse o céu dar flores- sim, daria, E ela não amaria. Desistamos! Ela nem cuidaria. Dourasse a estrela os mares que alumia, Dourasse o mar a vaga que estremece E a flor da lua a flor da espuma espia, E as ondas todas sobre nós trouxesse, Lábios cerrasse, a mão deixasse fria, E ela nem cuidaria Vamos canções, ela não nos veria. Uma vez mais, cantemos, todavia. Talvez ela relembre o que dissemos E queira ainda ouvir nossa elegia, Mas nós, nós já partimos. Nem viemos! Quem vê sabe da dor que me agonia, Mas ela não veria.
A leave-taking Let us go hence, my songs, she will not hear Let us go hence together without fear; Keep silence now, for singing-time is over And over all old things and all things dear. She loves not you nor me as all we love her . Yea, though we sang as angels in her ear, She would not hear. Let us rise up and part; she will not know . Let us go seaward as the great winds go, Full of blown sand and foam; what help is here? There is no help, for all the things are so, And all the world is bitter as a tear And how these things are, though ye strove to show, She would not know. Let us go home and hence;she will not weep We gave love many dreams and days to keep, Flowers without scent, and fruits that would not grow, Saying 'I thou wilt, thrust in thy sickle and reap' All is reaped now; no grass is left to mow And we hat sowed, though all we fell on sleep, She would not weep. Let us go hence and rest; she will not love, She shall not hear us if we sing hereof, Nor see love´s ways, how sore they are and steep. Come hence, let be, lie still; it is enough, Love is a barren sea, bitter and deep And though she saw all heaven in flower above, She would not love Let us give up, go down; she will not care. Though all the stars made gold of all the air, And the sea moving saw before it move One moon-flower making all the foam-flowers fair; Though all those waves went over us, and drove Deep down the stifling lips and drowning hair, She would not care. Let us go hence, go hence; she will not see Sing all once together; surely she, She too, remembering days and words that were, Will turn, a little towards us sighing; but we, We are hence, we are gone, as though we had not been there. Nay, and though all men seeing had pity on me She would not see.
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» 22 AUTORES Walter Moreira Santos com ilustrações de Miguel
Postais do abismo Para Nielson Varela
AS FOMES DE UM ESCRITOR Na kitinete o telefone toca. O editor cobra o livro. O escritor dá uma desculpa e volta ao trabalho. O escritor trabalha com afinco em sua obra. Não importa se vive em um país de analfabetos. Dói saber que seu trabalho alimenta o editor, o livreiro, o tradutor – ad infinitum – enquanto ele recebe menos que a faxineira da livraria. A longa barba branca de sábio, por exemplo, não é charme: tem a ver com falta de dinheiro. Os trajes despojados, idem. Nas entrevistas o escritor tem pavor de que lhe perguntem quanto vende. O telefone toca outra vez. O editor. O escritor não quer perder tempo com palavras porque seu estômago arde. Pede um pouco mais de tempo e desliga, é preciso continuar escrevendo. A obra se avoluma; custará caro o livro, uma feira. Ninguém o comprará, o escritor sabe que seus compatriotas, além de analfabetos, são miseráveis. Iguais a ele. Apenas a cultura e a obsessão – ou maldição – o separa da plebe. A loucura, talvez. O escritor sente fome, mas não descansa. Sai à rua. Precisa de material para pesquisa. Então vai às livrarias, à biblioteca municipal, munido de uma grande sacola, e furta tudo aquilo de que necessita. É uma vergonha, além de crime; é claro, o escritor sabe disso. Mas o escritor não tem escolha. O telefone – o editor, outra vez. O editor ameaça: Esperará até amanhã. Na manhã seguinte o telefone não toca. A linha foi cortada por falta de pagamento. O editor envia uma carta comercial: O livro não lhe interessa mais. Passar bem. O escritor põe fogo em sua obra – enquanto observa as chamas surge uma inspiração, Calíope, a Grande Musa, não o deixa em paz. O escritor começa tudo outra vez.
AMOR (ROBERTO, O RATO) Ei, aqui embaixo! É isso mesmo; sou eu, Roberto, o Rato. Rattus norvegicus, para ser preciso. Ratazana de esgoto, no popular. “Roberto” é culpa de Zilda, a louca. E, por sua vez, o nome dela é culpa da pequena cidade, que a apelidou assim. Meu Deus! Uma senhora de 89 anos! “A doida do rato”, é o que dizem. Não, não existe respeito. Mas as pessoas são assim mesmo: 99 por cento delas não valem nada – e o outro um por cento não se encontra. 99 por cento delas não produzem nada mais que fezes e lixo. (E merda das mais fedorentas – lixo atômico-apocalíptico da pior espécie.) Zilda, pelo menos, escreve poemas – uns poemas bestas, vá lá – e me alimenta. Fica jogando seu arroz branco na borda do bueiro em frente a sua casa velha. Gosta de me ver, me ama, e é odiada. As pessoas não gostam de velhos – quase tanto quanto não gostam de ratos. Meninos lhe atiram pedras, senhoras mudam de calçada. O mau cheiro de Zilda, alegam. Ninguém quer saber da água que lhe cortaram, ou do sacrifício que faz para sobreviver com a aposentadoria. Um rato não viveria melhor. Ninguém se pergunta o porquê da casa caindo aos pedaços, ninguém mesmo. Nem os filhos (uns oito, a julgar pelas fotos espalhadas). É... as pessoas são o que são. Eu fico olhando o cinza desbotado da solidão de Zilda e concluo que a humanidade não presta. Dá vontade de vomitar – mas ratos não vomitam, embora se enojem. Então vamos ao arroz grudento.
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AUTORES 23 » DURANTE A QUEDA Durante a queda esqueci o porquê de haver pulado do trigésimo quinto andar do edifício da Previdência Social. Eu estava desempregado? Estava. Há milhões de desempregados pelo país a fora, mas só eu estava caindo. Falhara em conquistar o amor de Hilda? Falhara. Há milhões de malsucedidos no amor, mas só eu caía. Por mais que se esforçasse não conseguia me lembrar, por que eu pulara. Apelei para os Céus: Por queeeeeeeeeeeeeeeeeeeeê? A queda transformou meu apelo num horrendo grito. A pergunta e a angústia, portanto, continuavam, como eu, no ar. Por muito pouco. Porque o tempo nos impõe mais limites que o desespero, a falta de dinheiro ou o desejo. E na queda, como na vida, o tempo se esgota antes da resposta.
BALÕES Ao me levar ao parque meu pai não comprava balões – e eu hipnotizado pelo vermelho-vivo, o amarelo, o azul esticado nas bexigas flutuantes. No fim, voltava arrastando minha frustração; custava tão pouco, a felicidade. Hoje sei. Com aquele gesto rude, meu pai visava me guardar da fragilidade das esferas. Adiar meu choro. Meu pai não queria que eu descobrisse, tão cedo, a finitude de tudo.
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» 24 AUTORES UM BLUES Se amaram durante cinco meses. “Tudo bem. Cinco é um pentagrama, um número mágico, símbolo do homem, o microcosmo”, consolou-se um, que era místico, magro, e artista plástico. O outro, estudante de medicina, tímido e prático, pouco falava. O primeiro chegou a expor no estrangeiro, mas acabou se matando. (O valor dos seus quadros vem subindo.) Se mataria, de qualquer forma, aquela história: cigarros demais, álcool demais, e ansiolíticos de menos. O outro (calou-se de vez): formatura, cidade do interior, consultório, casamento, um filho; que no final do dia costuma abraçar com uma ternura imensa.
ÚLTIMA LENDA Eu era apenas um velho baú onde ela depositava estrelas, planetas, galáxias. Ambiciosa que era jamais prestou atenção em mim: velho baú de carvalho. Não me amava. Eu possuía o universo. Ela, não.
AMANHÃ, TALVEZ Quando o escritor morrer publicaremos meia dúzia de biografias. Em uma delas irá constar que o escritor era ateu; na outra que era homossexual; em uma outra que fumava haxixe, violentava meninas, era comunista, torcia pelo Náutico, colecionava pêlos púbicos, e por aí afora. Quando o escritor morrer, criaremos em sua memória um prêmio de cobiçados 440 mil; batizaremos ruas com seu nome e o Patrimônio Histórico tombará sua antiga e modesta morada. Reeditaremos todos os seus livros. E descobriremos quatro obras inéditas. No primário, alunos decorarão seus versos; no colegial, a contragosto lerão seus livros. Quando o escritor morrer, seu nome constará em todos os exames vestibulares. O troféu que em vida nunca recebeu, agora lhe dedicaremos – in memoriam. A platéia se levantará e depois dos aplausos observará um minuto de silêncio. Quando o escritor morrer, tudo isto e muito mais faremos. Continente . fevereiro, 03
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TEXTOS PARA ILUMINAR E DIVERTIR Muitas pessoas que hoje têm o hábito da leitura hão de se lembrar com delícia do momento em que ler um livro deixou, súbita e maravilhosamente, de ser uma obrigação de sala de aula, para se tornar um divertimento indizível, graças à descoberta de um novo livro ou texto. Pode ter acontecido com Tesouro da Juventude ou Os Três Mosqueteiros ou O Conde de Monte Cristo ou A Ilha do Tesouro ou Tom Sawyer ou, ainda, Sherlock Holmes, não importa. Um dia, o que era prosa cerrada e enfadonha se transformou em leitura alada e emocionante, proporcionando um prazer que só a leitura pode dar, porque através dela somos obrigados a imaginar, ou seja, a sermos co-autores do livro. Por mais que o escritor detalhe a aparência de um personagem, cada leitor vai imaginá-lo diferente, assim como os gestos, as expressões, a movimentação e o cenário. E, o que é melhor, a cada leitura, em idades diferentes, tudo ganha
uma coloração nova. Foi tentando seduzir os novos leitores sem subestimálos, que o crítico norte-americano Harold Bloom organizou a coletânea Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades (Editora Objetiva, 144 p., R$ 21,90). Ele reúne textos de Rudyard Kipling, Lewis Carroll, Stevenson e Lafcadio Hearn a outros de Keats, Shakespeare, Chesterton e Esopo, por exemplo. “Eu mesmo li quase tudo que reuni neste livro entre cinco e 15 anos de idade, e continuei a ler esses poemas e histórias dos 15 aos 70 anos”, atesta. Bloom acha que os textos normalmente classificados como “literatura infantil”, em nosso tempo, refletem “um emburrecimento que está destruindo nossa cultura literária”. Ele sustenta, com razão, que os textos por ele escolhidos “se acham abertos a verdadeiros leitores de qualquer idade. Nada há aqui que seja difícil ou obscuro, nada que não ilumine e divirta”. E tem razão. São textos inteligentes e sensíveis, que podem despertar o prazer de ler.
CLARICE E A BUSCA ZEN
ESTANTE DE CINEMA
HISTÓRIAS DO BRASIL
O livro Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector: uma literatura de vida e como vida, d (Editora Unesp, 160 p., R$ 29,00) propõe que a busca do autoconhecimento pode ser feita através da prática da meditação Zen como também pelo discurso da escritora brasileira, com o cuidado de não cair numa leitura esotérica da autora de Perto do Coração Selvagem. Também busca a aproximação do texto de Clarice com a pessoa de Clarice, mas também evitando uma aproximação redutora como a da crítica biográfica do século 19. “Clarice não se conta”, ele explica, “não se narra. Abre caminho para si e para o receptor, à medida que se busca por intermédio da arte.”
A coleção Artemídia, da editora Rocco, tem foco no cinema. Além de ensaios variados e roteiros originais, já publicou 26 títulos sobre filmes específicos, de autoria de escritores das mais variadas áreas e tendências. Os dois últimos lançamentos são Shane – Os brutos também amam (direção de George Stevens), por Paulo Perdigão, e O anjo exterminador (direção de Luís Buñuel), por Bráulio Tavares. O primeiro aborda o clássico “western” na categoria dos mitos americanos. O segundo analisa o intrigante filme à luz da literatura fantástica. Ambos têm 188 páginas e custam R$ 25,00. Integram a coleção, entre outros, O mágico de Oz, por Salman Rushdie, e Os pássaros, por Camile Paglia.
Se há algo que o jornalista gaúcho Eduardo Bueno conseguiu provar é que o público brasileiro gosta de ler História. Seus títulos A viagem do descobrimento, Náufragos e Degredados, Pau-Brasil, alcançaram a impressionante cifra de 600.000 livros vendidos, tornando-o um dos maiores best-sellers brasileiros. Agora está lançando um novo livro pela Editora Ática – Brasil: uma história (447 páginas, R$ 49,90). Como os demais, o segredo está em, deixando de lado o jargão acadêmico, adotar um texto ágil, vivo e vibrante, numa prosa leve e saborosa. É livro para iniciantes, profusamente ilustrado, e tem o mérito de poder fazer a nova geração tomar gosto pela História.
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26 MARCO
ZERO
Alberto da Cunha Melo com ilustração de Zenival
Quem tem medo de Gilberto Gil? Talvez os dias do cantor como ministro da Cultura não sejam tão longos como deveriam ser Para começo de conversa, sempre estive mais para a Bossa Nova que para o Tropicalismo. Mas, se dependesse de mim, não escolheria João Gilberto para ministro da Cultura. Não por colocar em dúvida sua capacidade executiva, mas simplesmente porque um artista comprometido com uma visão estética, queira ou não queira, terminará tentando privilegiá-la em sua administração. Daí porque se preferisse o Tropicalismo à Bossa Nova, também não indicaria Gilberto Gil para aquela pasta. Dizem que o Tropicalismo teve vida curta e extinguiu-se com o advento do AI-5, em 1968, a prisão e, depois, o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Mas, numa entrevista em 17 de dezembro passado, Gil disse querer “que o Tropicalismo chegue ao Ministério da Cultura”. No show de posse de Lula a grande atração foi a nefanda dupla “sertaneja” Zezé Di Camargo & Luciano. Quem, afinal, assumiu o Ministério? Na condição de leitor de periódicos nacionais e locais, por dever de ofício, fui ficando cada dia mais horrorizado com a chuva de cartas à redação, condenando a indicação de Gil para o Ministério da Cultura. Que diabo está acontecendo? Perguntava a mim mesmo, depois de lembrar que esses missivistas ficaram calados durante os oito anos em que o ministro Francisco Weffort usava a sua pasta para aumentar a concentração de renda neste país, enquanto fazia mais de quinhentos vôos nos jatinhos gratuitos da FAB, para participar de banquetes nos quatro pontos do país. E, também me perguntei: por que esses correspondentes postais e internautas ficaram calados quando Ipojuca Pontes, o demolidor, destruiu toda a estrutura do MinC, em poucos meses, no governo Collor? A imprensa nacional convocou os especialistas para explicar uma rejeição nacional que se estendeu ao New York Times, nos Continente . fevereiro, 03
EUA, e ao Le Monde, na França. Ou seja, uma rejeição globalizada. E eu continuava a me perguntar por que a indicação de Pelé para o Ministério dos Esportes foi aceita consensualmente e a de Gilberto Gil para o Ministério da Cultura está causando tal celeuma? Um jogador para o Ministério dos Esportes é normal. Um cantor e compositor, um artista, para o Ministério da Cultura, é uma aberração. Por quê? Aturdido com essas contradições, só conseguiu tranqüilizarme a entrevista de um sociólogo pernambucano que é, também, um grande músico e poeta, Sebastião Vila Nova. Diz ele: “Essas críticas são um racismo maldisfarçado que, no caso de Gil, é alimentado por ele ser negro e artista, porque as pessoas têm uma visão preconcebida dos artistas”. E vejam que Vila Nova, como eu, pertencemos ao universo estético da Bossa Nova, do genial Tom Jobim... Ele é perfeito em sua análise, porque o preconceito racial, no caso de Pelé, é neutralizado pela unanimidade que o futebol representa, enquanto valor, para o povo brasileiro. Quanto ao artista, os estereótipos, os estigmas e os mal-entendidos fazem parte de seu calvário e de sua redenção. Gil é artista, logo, não é confiável como executivo ou como ministro. Mas comecei esta crônica falando de minha não aceitação de pessoas ligadas a uma proposta estética para conduzir os destinos das verbas públicas para a cultura. Quando Gil, numa de suas entrevistas, disse querer que o Tropicalismo “chegue ao Ministério da Cultura”, procurei pescar o que, durante sua longa e gloriosa carreira artística, ele teria conceitualmente sedimentado como Tropicalismo. Numa outra ocasião, ele explica que o movimento surgiu de uma proposta que fez a Caetano Veloso, a de juntar os valores melódicos e rítmicos da banda de pífanos de Caruaru ao Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (álbum dos
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Beatles lançado em 1967). Em outra entrevista ele defende como missão do Ministério da Cultura criar um “espaço de abertura para a cultura popular e para novas linguagens”. Ora, se a Bossa Nova foi a fusão da música brasileira com o Jazz, o Tropicalismo foi a fusão do pífano de Caruaru com os Beatles, ele parece defender uma boa proposta universalista de cultura, sem que esse universalismo, eu creio, signifique a subserviência de uma cultura à outra. Não se trata de dobrar a espinha dorsal de nosso país à invasão dos audiovisuais norte-americanos, por exemplo. Invasão que, na Europa, fez retardar, na primeira metade da década de noventa, a transformação do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) na OMC
(Organização Mundial de Comércio), com a resistência olímpica de apenas dois países, a França e a Grécia. Depois do desastre neoliberal e concentracionista do ministro Francisco Weffort, a indicação de Gilberto Gil, para mim, é como a assunção ao poder de Gabriel, o anjo da Anunciação. No entanto, como já estou velho, e sei que a ala paulista do PT tinha como certo que, se controlara o programa cultural do partido, assumiria tranqüilamente o Ministério da Cultura, e não o assumiu, os dias, como ministro da Cultura, de Gilberto Gil, não serão tão longos como, talvez, deveriam ser. A esquerda, neste país, ainda continua burra, burríssima, quando se trata de cultura.
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28 BELAS
ARTES
Fernando Monteiro
Manet no Rio: A luz é a principal personagem de um quadro. (Édouard Manet, citado por Claude Monet)
Fotos: Reprodução
Manet: descoberta da luz e da cor do Rio, no Carnaval de 1849
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Às vésperas do Carnaval de 1849, o navio Havre-et-Guadaloupe chegava diante da entrada da barra carioca, no dia 4 de fevereiro, e sua tripulação se postava na amurada para ter as primeiras impressões do porto, dos morros, da cidade e da luminosidade que ficaria para sempre na retina do jovem guarda-marinha Édouard Manet, nascido em 23 de janeiro de 1832, na rua Petits-Augustins (hoje rua Bonaparte). Já havia sinais das festas de Momo no ar, com gente comprando “limões-de-cheiro” – registrou Manet – e outros adereços de fantasias que depois seriam vistas nos “corpos sólidos das moças nas janelas”. Em carta à mãe, Eugénie-Désirée Fournier (que, na despedida, lhe pedira: “escreva cartas bem longas!”), Manet descreve o carnaval improvisado a bordo, com os foliões pintados de preto (“alguns da cabeça aos pés”), e a discreta participação até do capitão Besson, “homem encantador” que, agora, na chegada ao Rio de Janeiro, estava ali no convés, por acaso ao seu lado. Por intermédio do comandante do navio, o jovem guardamarinha respeitoso (Manet seria sempre respeitoso na vida, embora rebelde na arte) ficou sabendo que o desembarque só se daria no dia seguinte, lá pelo meio da tarde, sob vento favorável. Tal desembarque – “ansiosamente esperado por todos” – aconteceria quase dois meses após a partida do Havre, sendo o Rio uma espécie de miragem, de encontro com o rude e com o quase selvagem. Ao longo da travessia Havre-Rio, Manet se dera ao prazer de esboçar alguns desenhos -”inevitáveis” no jovem artista que o ambiente burguês da família e mais a censura do magistrado Auguste Manet (seu pai) tentavam abortar. Entre a vontade do velho Manet – de vê-lo também juiz – e a vontade, própria, de ser pintor (cedo revelada pelo menino Édouard), fora encontrado um meio termo conciliador: Édouard seria marinheiro, buscaria os oceanos e não as salas abafadas dos cartórios e dos tribunais. Reprovado na Escola Naval em 1848, Manet – no limite da idade para prestar novos exames – tinha ainda o recurso de embarcar em navio, mesmo da marinha mercante, para gozar da prorrogação desse prazo (caso o candidato à Escola pudesse comprovar experiência mínima de pelo menos seis meses de embarque). Portanto, Manet estava literalmente “correndo atrás do prejuízo”, ao embarcar no Havre-et-Guadaloupe, e, além dos muitos esboços das horas de folga de gajeiro, formara na “turma”, tradicional, da pintura do navio, em face do porto brasileiro. Mas, a sua “estréia como artista”, Manet não considerava que fosse esse trabalho tão coletivo e costumeiro. A verdadeira história é mais saborosa (literalmente): o jovem Édouard fora chamado à presença do capitão Besson, à vista do porto carioca, e este lhe informara que não só o navio estaria precisando de alguns retoques. Havia um carregamento de queijos holandeses, de cascas antes vistosamente vermelha, que haviam sofrido atrito e outros percalços da longa viagem e agora talvez “necessitassem do seu talento”:
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– Como você é artista, pinte a crosta destes queijos, meu jovem, bem vermelha... Antonin Proust recorda que Manet, anos mais tarde, ainda se recordava dos queijos. – Quando desembarcamos no Rio, brilhavam como tomates. Foi essa a minha estréia como artista... O caso dos queijos não se encerraria aí, entretanto. Segundo Henri Perruchot, “mal desembarcada, a carga logo se vendeu. A gente do Rio regalou-se tanto com estes queijos flamengos que até a casca foi degustada. Alguns dias depois, manifestou-se na cidade uma certa inquietação, por se registrarem diversos casos de colerina. As autoridades publicam um aviso para tranqüilizar a população: não se trata, garantem, senão de intoxicações devido ao abuso de frutos mal amadurecidos. Mas Édouard desconfia bem da verdade (e o capitão Besson também): a pintura que dera aos queijos o seu aspecto apetitoso tinha uma base de chumbo. “Caleime e fiz bem – recordava Manet – porque o capitão tratou-me, a partir daí, com uma consideração excepcional. Não seria ele a perguntar-me se eu tinha talento. Disso estava mais do que convencido”. Talvez por isso, Manet também se tornou “professor de desenho”, no navio atracado (e a pedido do capitão Besson de novo). É que estavam previstas aulas de desenho, para os guardas-marinhas, durante a estadia no Rio de Janeiro... e o capitão alega “não se ter encontrado professor de desenho na cidade”. Claro que havia! – inclusive franceses – mas Besson por algum bom motivo quis distinguir o seu jovem aprendiz, de talento comprovado...
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30 BELAS
ARTES
Primeiras impressões Quais foram os primeiros registros da experiência brasileira de Manet, de acordo com a correspondência preservada ? Há uma carta para a mãe, bastante vívida nas primeiras (e bombásticas) impressões da atracagem, datada de 5 de fevereiro de 1949: “Querida Mamãe: Estamos finalmente fundeados no ancoradouro do Rio, após dois meses de mar e de acentuado mau tempo. Às três horas da tarde, entramos na baía, passando diante do primeiro Forte; fomos chamados às falas, sendo impossível saber o que nos perguntavam. O segundo Forte também nos interpelou. Não tendo, por sua vez, entendido as nossas respostas, deunos um tiro de aviso. Não sabendo o que desejavam, continuamos navegando, quando o Forte fez contra nós um segundo disparo. Decidimos então ancorar diante dele, e ainda bem que o fizemos, pois íamos receber outro tiro e desta vez com uma bala de canhão...” Continente . fevereiro, 03
Mais do que com tiros, o Brasil irá impressionar Manet de outra maneira. Com toda razão, o crítico Antônio Bento afirma: “O contato com a natureza do Brasil daria, por outro lado, ao jovem Manet uma visão pura, instintiva e virginal das coisas, afastando-o da secura, do vazio, da falta de inocência e de humanidade a que havia chegado a arte dos pintores de sua época, em cujas mãos degenerara a tradição renascentista (...) Tendo gravado em sua retina supersensível a intensidade de nossa luz, Manet foi sobretudo o primeiro pintor, da época, a suprimir as sombras escuras, as gradações delicadas, os matizes sutis, e a recorrer diretamente às grandes chapadas de cores simples e puras. E, partindo das observações no Rio, desde logo verificou que a sombra, na arte acadêmica, era apenas o trompe-l’oeil do sol. Passou conseqüentemente a simplificá-la, tornando-a ao mesmo tempo mais luminosa, para desespero dos colegas de ofício, dos críticos e do público de sua geração.”
BELAS ARTES 31 » Fotos: Reprodução
A negra no quadro Olympia, confundida com uma oriental, é uma autêntica mucama brasileira
A criada negra que se vê numa obra-prima de Manet (Olympia) é uma típica mucama autenticamente brasileira, bem diferente da “oriental” pela qual foi equivocadamente tomada. Para comprová-lo, basta contemplar um dos estudos dessa importante personagem de fundo do quadro (que causou tanto escândalo), intitulado Négresse, no qual Manet detalhou o busto da crioula, os cabelos enrolados num óbvio pano da Costa e a camisa ou bata branca, além de brincos de pérolas pendentes e colar típico do figurino das “baianas”. Com algumas dessas belas mulatas, Édouard Manet terá feito, muito provavelmente, a sua iniciação sexual, uma vez que ele reclama, em carta, do recato das brasileiras brancas (“não merecem de modo nenhum a reputação de leviandade”)... o que também se depreende das entrelinhas das cartas sobre uma “escapada” – courir une bordée – que ele confessa estar “ainda tentando”, em carta um tanto sôfrega da oportunidade de corresponder à vitalidade violenta do Trópico lhe entrando por mais do que os olhos e os poros. Manet reconhece que as negras são “bastante bonitas” – algumas – ora nuas da cintura para cima, ora “vestidas com muito apuro; umas trazem turbantes, outras arranjam artisticamente seus cabelos encarapinhados e quase todas usam saiotes enfeitados com imensos babados.”
Quanto às brasileiras brancas, ele informa que “são geralmente lindas; têm olhos e cabelos magnificamente negros. Muitas estão penteadas à moda chinesa e andam nas ruas sem chapéu. A roupa é igual à das colônias espanholas, vestuário muito leve a que não estamos habituados em nosso país...” Há uma boa quantidade de cartas – para a mãe, o pai, o irmão Eugène, o primo Jules Dejouy – contando as impressões de um jovem de 17 anos, num país exótico. Não são – nem poderiam ser – observações mais agudas do que se costuma fazer nessa idade, e os assuntos tratados não têm tanta importância, se cotejarmos o volume dessas anotações ligeiras com a imponderável luz que não faz o menor peso, na sua bagagem da volta. Ele a havia descoberto, ao longo da temporada de sessenta dias na capital brasileira, no fim da qual Manet já não poderia ser o mesmo que chegara, guarda-marinha pintando crostas de queijos. A sua própria “crosta” burguesa está arranhada para sempre... e o jovem pintor partirá, no dia 11 de abril de 1849, de volta para Paris, mudado não só como o bom-Édouard-de-boa-família-francesa. Porque o ex-marujo navega, agora, nas águas tempestuosas que irão tornar a pintura um testemunho mais real da experiência do mundo.
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ARTES Fotos: Reprodução
Claude Monet, Impressão, sol nascente, 1872 óleo sobre tela, 48 x 63 cm, Musée Marmottan, Paris
Um
ideal modernista
Historiador e crítico disseca o valor do Impressionismo e sua contribuição para a arte moderna Os franceses chamavam a mão de tinta lisa sobre a parede de impression. Assim, peinture d’impression era sinônimo de pintura de paredes. Quando, em 1874, um grupo de pintores, rejeitados pelo Salão Oficial da França, resolveu fazer sua própria exposição, estava lavrando um protesto e desencadeando uma revolução nas artes. Eram não mais que 10 artistas – Claude Monet, Pierre-Auguste Renoir, Alfred Sisley, Frédéric Bazille, Camille Pissarro, Paul Cézanne, Bherte Morisot, Armand Guillaumin, Edgard Degas e Édouard Manet – e o estilo comum que os unia, as rápidas pinceladas na tela, apenas esboçando o objeto, valorizando a cor e a luz, foi batizado por um crítico de “impressionista”. O termo era pejorativo: pretendia-se que, diante das artes clássica e romântica, aquelas obras imprecisas não passavam de pintura de parede. O mundo roda, a vida continua e o Impressionismo terminou sendo uma formidável guinada no modo de ver e pintar, influenciando tudo o que veio depois, isto é, a arte moderna. Para o crítico e historiador da arte Meyer Schapiro, o mais influente dos Estados Unidos no século 20, ao se contextualizar a obra dos impressionistas emerge um legado portentoso: “O que esse grupo tinha em comum não era simplesmente um traço singular, mas um conjunto de metas relacionadas, que seus membros concretizavam em graus diferentes – todos eles foram fiéis a um ideal de modernidade que incluía a imagem do realmente
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visto como parte do mundo comum e abrangente do espetáculo, em oposição à inclinação da época pela história, mito e mundos imaginados. Tratar as suas obras como uma unidade que define uma época continua sendo esclarecedor, sobretudo por suas relações com o que as precedeu e o que as sucedeu. As conexões com a arte anterior e posterior são de tal modo significativas que sua originalidade é bem mais compreendida se considerarmos sua realização como um amadurecimento coletivo”. Filho de imigrantes judeus lituanos, Schapiro, nascido em 1904, chegou a New York com três anos de idade, ali vivendo até sua morte, em 1996, aos 91 anos de idade. Durante seis décadas dedicou-se à Universidade de Colúmbia, onde tornouse professor emérito em 1973. Um dos mais completos teóricos da arte, pronunciou conferências antológicas, reunindo centenas e centenas de ouvintes. Nele, o saber erudito tinha uma função, servindo para esclarecer, elucidar, confrontar, discernir, ao contrário dos que fazem da erudição uma faca sem lâmina a que lhe falta o cabo, como diria o Barão de Itararé. Entre seus livros, estão A unidade da arte de Picasso (Cosac & Naify, 2000), Mondrian: a dimensão humana da arte abstrata (Cosac & Naify, 2001) e Impressionismo: reflexões e percepções, recém-lançado no Brasil pela mesma editora. Nessa última obra, um autêntico compêndio sobre o Impressionismo, Schapiro disserta com segurança e brilho sobre
Fotos: AFP
BELAS ARTES 33 » como o movimento assentou uma parte essencial das fundações da arte moderna. Em seu estudo, resultado da compilação de conferências proferidas sobre o tema em Colúmbia, o crítico e historiador vai muito além das características intrínsecas da pintura impressionista, para situá-la no tempo de Paris e do mundo das últimas décadas do século que mudou tudo. Ele definiu assim “o modo de ser” dos impressionistas: “Nessa história da investigação da experiência visual na arte, o Impressionismo ocupa um lugar único e memorável. Mais do que qualquer outro estilo de pintura anterior, ele explorou e retratou ocasiões e objetos cotidianos, que deleitam nossos olhos e que valorizamos por suas qualidades sensoriais. Alguns dos seus temas apareceram antes, principalmente na arte holandesa e veneziana, como temas secundários, e até mesmo com formas pictóricas que se aproximam da moderna. No entanto, para os impressionistas, esses temas banais constituíram a base da representação; a restrição a eles significou um programa inseparável de diversas características do estilo. Do mesmo modo como temas religiosos forneceram os principais objetos da representação cristã medieval e como figuras imaginadas da história e dos mitos foram os principais temas da arte posterior, os impressionistas criaram uma imagística do seu próprio e valorizado ambiente cotidiano.” Schapiro não se limitou a analisar cada artista do movimento, entre os quais destaca Claude Monet, não como superior, mas como modelar. Ele procurou agrupá-los numa visão de conjunto que fornece um fôlego extraordinário à sua análise que abrange, além das características estéticas da pintura, aspectos como sua relação com a filosofia, a ciência, a literatura, detendo-se em especial nas mudanças sociais e tecnológicas que colocaram a humanidade no centro do redemoinho chamado modernidade. Nesse sentido, é curioso o capítulo sobre Impressionismo e trem de ferro, onde é dissecado, de forma brilhante, o impacto da ferrovia na vida das pessoas e, conseqüentemente, nas obras daqueles artistas cujo manifesto era retratar “o realmente visto”. Por fim, a obra expõe conhecimentos pertinentes relacionados a outras épocas e outros estilos artísticos, como a pintura egípcia antiga, explicando por que os pintores do Nilo mostravam as pessoas de perfil mas com os olhos frontais. E, com encantadora naturalidade, dá uma dica “comum” de como apreciar verdadeiramente uma obra de arte – colocando-a de cabeça para baixo, “de modo que a familiaridade com os objetos representados não interfira na avaliação das cores e relações das formas quanto a sua harmonia ou coerência como partes da composição”. (Homero Fonseca)
Impressionismo: reflexões e percepções – Meyer Schapiro. Cosac & Naify, São Paulo, 2002. 360 páginas, R$ 128,00.
Pierre-Auguste Renoir, Baile no Moulin de la Galette, 1876, óleo sobre tela, 131 x 175 cm, Musée d'Orsay, Paris
Edgar Degas, Bailarinas praticando na barra, 1976-77 óleo misturado com terebentina sobre tela, 75,6 x 81,3 cm, The Metropolitan Museum of Art, Nova York
Édouard Manet, Bar no Follies-Bergère, 1881-82, óleo sobre tela, 96 x 130 cm, Courtauld Institute Gallery, Somerset House, Londres Continente . fevereiro, 03
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34 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Revendo Cândido Portinari
Imagem: Reprodução
O prestígio do artista se deveu em parte a fatores circunstanciais, mas também graças às suas qualidades
Neste ano de 2003, quando o pintor Cândido Portinari completaria cem anos de nascido, talvez seja difícil para as gerações mais novas imaginar o enorme prestígio de que gozava este artista até o começo da década de 1950. Decerto, o nome de Portinari não se apagou de todo da memória artística brasileira, mas o que resta de seu prestígio é muito pouco em comparação com o que afirmava a crítica de sessenta anos atrás, E não o afirmava sem motivo, pois, de fato, a presença do pintor dominava o cenário das artes plásticas de tal modo que ultrapassou o âmbito restrito dos admirados da arte moderna para tornar-se uma referência popular: as figuras deformadas que povoam os seus quadros e murais tornaram-se sinônimos de pintura moderna. Não me arriscaria a dizer que o povo gostava de seus quadros ou tampouco que os “entendia” mas a verdade é que o estilo “portinaresco” passou a fazer parte do imaginário brasileiro. Não obstante, quando ele morreu, em 1962, não apenas a sua presença na vida artística nacional esmaecera, como a crítica, que outrora o exaltava, passou a situar sua obra num plano inferior à de contemporâneos que seu prestígio ofuscara e a ver aquele prestígio – pelo menos em parte – como o resultado de sua adesão ao culto do nacionalismo alimentado pela ditadura de Getúlio Vargas. Portinari, Lavrador, 1939, óleo sobre tela, 1 x 81 – Museu de Arte São Paulo
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TRADUZIR-SE 35
Em face disto, devemos perguntar como se avaliaria hoje a obra de Cândido Portinari, quando muitos fatores que influíram na radicalização daquelas opiniões já se dissiparam. Não resta dúvida de que as mudanças ocorridas no cenário artístico – e que resultaram na revisão dos valores em nome dos quais sua arte foi subestimada – torna possível, agora, com maior objetividade e isenção, avaliarlhe as qualidades artísticas e o papel que desempenhou naquela fase da arte brasileira. O caminho certo para esta reavaliação será, sem dúvida, rever a sua obra, olhar com olhos de hoje suas telas, seus murais, seus desenhos, e procurar compreendê-los no contexto histórico em que surgiram, desde a fase dita “acadêmica”, passando pela descoberta da linguagem moderna até as obras da última etapa, quando ele opera uma espécie de síntese de suas buscas temáticas e estilísticas. Moço do interior paulista, Portinari começa seus estudos na Escola Nacional de Belas Artes, nos anos 20, sem nada conhecer da arte moderna, e não era o Rio a melhor cidade para conhecê-la nem a ENBA a escola própria para ensiná-la. Por isso mesmo, enquanto o Modernismo fervia em São Paulo, após a Semana de 22, Portinari seguia as lições de mestres que não ousaram ir além de um Impressionismo moderado. Mas ali aprendeu as técnicas da pintura, o uso dos recursos gráficos e cromáticos, lições que o acompanhariam para o resto da vida. De fato, os seus quadros desta época revelam, a par de um inegável talento de desenhista, o rigor na construção do quadro e na sua execução. Tão imbuído estava desta exigência técnica e estética que, quando Antônio Bento lhe mostrou a reprodução de alguns quadros modernos, não mostrou qualquer interesse por eles. Em 1929, viaja para a Europa, no gozo do prêmio de viagem do Salão Nacional e tampouco ali descobre o novo caminho que a arte tomara. Descobre, no entanto, que o seu caminho era fazer uma pintura brasileira, que expressasse os diferentes aspectos da nossa gente e de nossa cultura. De volta ao Brasil, em 1931, um ano após a Revolução de 1930, encontra um país em plena efervescência; os artistas e intelectuais estão agora menos preocupados com a visão pitoresca do país, derivada do Modernismo, do que com o Brasil real. O contato com Mário e Oswald de Andrade e depois, através de Gustavo Capanema, com Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, vai determinar a sua conversão definitiva à pintura moderna.
A mudança, no entanto, não se dá de um salto, mas progressivamente, como se pode ver comparando o retrato de Manuel Bandeira, por ele pintado em 1931 – onde o tom moderno é dado mais pelo fundo de paisagem carioca – com os de Mário de Andrade e Carlos Drummond, feito três anos depois, em que a leve desproporção anatômica e o fundo espectral, imprimem-lhe uma estranheza anti-realista. Aliás, já estão aí as características básicas da pintura de Portinari, durante toda a década de 30 e que consistem numa conciliação entre a representação da anatomia humana na linguagem tradicional da arte (desde o classicismo grego até o realismo) e uma estilização deformante, que parece inspirada na fase dita “clássica” de Picasso, datada do começo dos anos 20 (em geral, figuras de mulheres volumosas, de pernas e braços muito grossos). Este tipo de concepção anatômica é adotada por ele na tela O Café (1935) e também nos afrescos do Ministério de Educação e Cultura (hoje Palácio Gustavo Capanema), concebidos entre 1936 e 1944. Neste mesmo ano, porém, pinta uma série de telas versando o tema dos retirantes da seca, nas quais usa de uma linguagem expressionista chocante, cuja dramaticidade beira o sentimentalismo e o maugosto. Não seria exagero classificá-las como uma versão cabocla do realismo-socialista, que ele abandonaria em seguida, retornando à lição picassiana da Guernica. Ainda nesta década, recebe a encomenda para pintar A primeira missa no Brasil, têmpera em tela de grande formato, para a sede do Banco Boavista, no Rio. Assim inicia uma série de obras que retratam episódios da história brasileira, como a Chegada de Dom João VI ao Brasil e Tiradentes, a que se juntariam os dois painéis A Guerra e A Paz, pintados para a sede da ONU, em New York. São painéis que se caracterizam por uma composição em blocos independentes, articulados não pela visão da perspectiva clássica mas por uma visão “cubista”, que divide o espaço da tela em área de cor geometricamente definida. Em que pese uma certa frieza decorrente do formalismo da composição, essas obras dão testemunho de um pintor dotado de grandes recursos pictóricos e vigorosa imaginação plástico-temática. Neste aspecto, ele é um exemplo raro, na moderna pintura brasileira, de um artista que realizou uma obra preponderantemente épica, identificada com o sentimento de nacionalidade. O outro é João Câmara Filho que, no entanto, ao versar o tema histórico, o dessacraliza, enquanto Portinari o mistifica, e este pode ter sido um dos fatores que o aproximaram de um público mais amplo e do reconhecimento oficial, enquanto, por outro lado, o afastaram da “modernidade”. Esta questão exigiria maior aprofundamento, que não cabe aqui. De qualquer modo, é justo dizer que o prestígio alcançado, em vida, por Cândido Portinari, se deveu em parte a fatores circunstanciais, decorreu indiscutivelmente da força de sua personalidade e de suas qualidades de artista.
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36 BELAS
ARTES
Weydson Barros Leal
O Brasil de Rugendas Livro Rugendas e o Brasil é o mais completo levantamento sobre a obra do artista alemão no país Fotos: Reprodução
A única obra capaz de disputar em valor documental e estético com a pintura “brasiliana” de Jean Baptiste Debret (1768-1848) é a do desenhista, gravador e pintor alemão Johann Moritz Rugendas. Um pecado, talvez, pode ter contribuído, abaixo do Equador, para que o jovem Rugendas não obtivesse até hoje a mesma glória do contemporâneo francês: ter optado pelo desenho ou gravura muito mais que pela pintura. Rugendas e o Brasil (Ed. Capivara, 2002, 344 p) é a mais abrangente publicação sobre a obra deste retratista da paisagem e dos costumes nacionais do começo do século 19. Outros estudos sobre ele publicados no Brasil podem ser lembrados, mas nenhum terá o caráter de catálogo completo, a qualidade editorial ou a abrangência crítica e biográfica deste que é uma espécie de “Rugendas definitivo”. O pesquisador chileno Pablo Diener, autor do livro, em co-autoria com sua mulher, a professora paulista Maria de Fátima Costa, já havia publicado na Europa um volume exaustivo sobre o desenhista, mas por não ser em português e não abordar especificamente sua produção brasileira, não teve repercussão por aqui. O texto da nova edição é resultado de uma pesquisa realizada durante anos pelo casal.
Fetos arbóreos na selva tropical brasileira, 1830. Óleo sobre tela; 45 x 35,5 cm, coleção não identificada
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Figuras de índios botocudos: gravuras de P. Vigneron, Casa Litográfica Engelmann, Paris.
Como estudo ou como livro de arte, Rugendas e o Brasil é uma obra singular. Não apenas pela grandeza do projeto editorial, mas acima de tudo pelo rigor e amplitude enquanto estudo e documento. Um ou outro “pecado”, compreensível diante da magnitude da edição, poderá ser anotado por um leitor mais atento: por exemplo, o tamanho da letra utilizado para os textos explicativos das pinturas é inexplicavelmente maior que os usados para Jovem negra as abordagens das gravuras; ou ainda, na traamamentando dução de títulos de obras, a palavra franuma criança, 1846. Lápis cesa enterrement é trazida para o portusobre papel, guês ora como “enterro” ora como “en12,1 x 115, cm. Coleção Pedro terramento”. Mas toda e qualquer falha Corrêa do Lago, que possa ser detectada aqui perderá São Paulo. força, principalmente, diante do projeto gráfico de Victor Burton, irrepreensível em cada trabalho que assina. O jovem desenhista João Maurício Rugendas – é assim que ele é chamado pelos autores do livro – veio ao Brasil duas vezes. A primeira, em março de 1822, dias antes de completar 20 anos, fazendo parte da Expedição Langsdorff. Até maio de 1824, quando finalmente teve início esta expedição, permaneceu no Rio de Janeiro, registrando em desenhos os costumes e a paisagem da cidade que lhe encantava. Programada para atravessar São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, a expedição se encerra para ele ainda em Minas, quando por uma briga com o chefe, a quem chamou de “cachorro”, desvinculou-se do gruDetalhe de po. Tudo e cada detalhe de fatos e Estudo de uma impressões anotados por Langsdorff e, onça, 1822 a claro, pelo próprio Rugendas, são trazi1824. Lápis e aquarela sobre dos ao leitor através dos registros de papel. Coleção viagens feitos por ambos em seus diários. Dias de Castro, São Paulo. Além destes, cartas enviadas pelos dois a amigos e familiares nos servem de janelas por onde descobrimos o espírito crítico e as íntimas opiniões de cada um. Através dessas correspondências, podemos testemunhar a relação entre o jovem artista e o homem de ciências Alexandre de Humboldt, já ilustre na Paris da época, que se torna admirador de Rugendas e passa a lhe encomendar desenhos de plantas brasileiras, principalmente palmeiras. Assim como um Ingrés, Humboldt também teria exercido influência marcante na obra do Continente . fevereiro, 03
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38 BELAS
ARTES
Embocadura do rio Cachoeira, 1827, 22,6 x 28,2 cm. Gravador: R. Bonington
desenhista. Curiosidades biográficas são uma constante no livro, como o fato de Rugendas, morando no Rio, ter conhecido Debret ou acompanhado a coroação do novo Imperador D. Pedro I pelas ruas da cidade. Foi ainda nesta época que se tornou o artista preferido da família imperial, realizando retratos de seus integrantes. A importância histórica do desenhista/documentador Johann Moritz Rugendas seria hoje só equiparável a dos melhores fotógrafos especializados. Sendo maior o valor do nosso viajante por ele usar, em seu trabalho de registro, artes distintas para distintas abordagens. Por sua qualidade, os próprios rascunhos e estudos para gravuras, desenhos ou pinturas enriquecem as obras finais, como são mostrados e analisados por Diener e Costa. Isto também justifica a criteriosa distinção para cada segmento do livro: “Rugendas, o artista viajante”, “Quadros a óleo de tema brasileiro”, “Um ensaio sobre o Viagem Pitoresca” e “Rugendas desenhista”, que por sua vez são subdivididos em capítulos mais detalhados, como “Costumbrismo”, “População”, “Ambiente”, “Alegorias históricas”, “Retratos”. Destaque-se aqui o capítulo sobre o Continente . fevereiro, 03
Auto-retrato: Rugendas no Brasil. Lápis sobre papel; 45 x 31,5 cm. Coleção Olguita Lindholm Huneeus de Prieto, Santiago do Chile.
álbum Viagem Pitoresca através do Brasil, considerado, como lembram os autores do estudo, “um dos mais belos livros de viagem realizados no oitocentos sobre a América Latina”. Apesar deste livro dar prioridade à produção do artista realizada no Brasil ou sobre o Brasil, nele também são apresentadas obras feitas por Rugendas em suas viagens pelo México, Argentina ou Peru. Isto amplia o ângulo de observação e enriquece a análise. Rugendas e o Brasil é um livro completo no que se propõe: o estudo de uma obra dedicada ao Brasil. Cabe a nós a obrigação e o prazer de conhecê-lo.
Rugendas e o Brasil, de Pablo Diener e Maria de Fátima Costa. Capivara Editora. Fone: (11) 3167.0066. contato@capivaraeditora.com.br 366 p. R$ 120,00
BELAS ARTES 39 » Mário Hélio
Todo feito de cor e de luz O pintor pernambucano Cícero Dias viveu quase 96 anos ocupado no único ofício que lhe interessou Fotos: Reprodução
Na juventude e na velhice, Cícero foi fiel a si mesmo. Abaixo, Galo ou abacaxi, Lisboa, década de 40, óleo sobre tela 100 x 80cm, Coleção Ivo Pitanguy, Rio de Janeiro
Um dia, numa carta a um amigo, o pintor Cícero Dias achou que o consideravam uma espécie de Matusalém, tal a demora de cinqüenta anos para receber um livro prometido. Com humor assim é que ele viveu os quase 96 anos – mais de oitenta ocupados no único ofício que lhe interessou. A chamada “alegria de viver” o animava porque estava sempre praticando aquilo a que os romanos chamaram de carpe diem. E Cícero soube muito bem aproveitar os santos dias que Deus lhe deu, e viveu, literalmente, a vida que a Ele pediu. Cícero Dias viveu para a pintura e pode-se dizer que morreu no dia em que não pôde mais fazê-lo. Os artistas não são gente comum cuja vida se explica pelas datas bem ordenadas nas cronologias. Um pintor vive de fazer arte, e se isto começa na infância a frase se torna ainda mais literal. Menino buliçoso, travesso, arteiro, impulsivo e “impossível”, Cícero dos Santos Dias nunca saiu de verdade do Engenho Jundiá. Como uma vez disse, lá era a capital de sua infância, onde continua a brincar. Feito todo de cor e de luz, esse mundo está com ele agora. Para além da matéria e das dores da carne. Olhando a sua obra, é fácil entender que quem tanto se acompanhou de misticismo e erotismo só se harmoniza com a vida. Continente . fevereiro, 03
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40 BELAS
ARTES
Cavalo, década de 20, aquarela e nanquim sobre papel, 35 x 48cm, coleção Ricardo Simões, São Paulo
Sem t tulo, 1928, aquarela e nanquim sobre papel, 35 x 55cm, coleção particular, Paris
Havia tal incompatibilidade dele com a morte que os seus amigos iam se acostumando de que estivesse sempre em Paris, para recebê-los quando lá fossem. Mas desconfiavam que logo se preparasse para outras viagens a outras Jundiás, porque já não pintava, e ia desbotando aos poucos. Os que o amavam nunca se acostumarão de que não fale mais ao telefone, nem atenda à porta quando uma visita chegar. Quem ama guarda sempre esse egoísmo secreto de que os seus amigos estejam sempre à disposição. E se impacientam com a morte porque ela insiste em roubar boas horas de riso e do sono, numa ótima rede pernambucana num certo ateliê na rue de Longchamp. É provável que Cícero Dias nunca tenha sabido que escapou da morte em 1931, quando se submeteu a uma operação de apendicite, no Rio. Os médicos acharam incrível a sua recuperação. Do milagre que foi a sua vida e a sua arte é fácil atestar quadro a quadro. Nem seria demais achar que estando dormindo no dia em que a morte foi procurá-lo, não tenha atendido à porta. Enquanto a “indesejável” insistia, ele teve tempo de metamorfosear-se em todas as cores, e é nesta forma bonita que será visto agora e por todos os santos dias.
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BELAS ARTES 41 Ateliê de Cícero Dias, em Paris, onde morava
À direita acima, Flora flor, década de 30, aquarela e nanquim sobre papel, 50 x 50cm, coleção particular, Rio de Janeiro
À direita abaixo, Sonoridade da Gamboa do Carmo, Recife, década de 30, óleo sobre tela, 78 x 75cm, coleção do artista, Paris
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42 SONS
Quando o frevo imperava
JOSÉ TELES
Foto: Arquivo / DP
Dos anos 50 até meados dos 70, o frevo fazia sucesso contando e cantando a crônica do cotidiano nacional
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Por volta de 1976, as implosões entraram em moda no Brasil e viraram atração televisiva. O Recife não poderia ficar de fora. Em 1977 encomendaram a uma empresa de São Paulo a implosão da Ponte da Torre. Na data programada para a primeira implosão em Pernambuco, deu TV transmitindo ao vivo e torcida organizada. Na hora exata, o engenheiro, um japonês responsável pelo evento (tornou-se um evento mesmo), autorizou a implosão. As bombas foram detonadas. Quando a fumaça dissipou-se, a ponte continuava no mesmo lugar, invicta, como, aliás, até hoje está. A implosão virou piada, e acabou num frevo-canção intitulado E a ponte não caiu, de Mario Griz, interpretado por Beto de Paula. A letra: Eu ri, você também/ todo mundo riu/ a bomba estourou/ mas a ponte não caiu/ o engenheiro pela
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TV/ anunciava a nova implosão/ E a galera na beira do rio/ mandava o japonês/ para a ponte que não caiu. Assim como a marchinha carioca, com a qual mantinha afinidades, o frevo-canção tanto podia ser lírico, quanto bem-humoradas crônicas, registrando acontecimentos tais como o da malfadada implosão, ou explorando ditados populares. Teve seu auge nos anos 50 e 60, começando a declinar nos anos 70 e acabando na década seguinte. Sua fase de maior sucesso coincidiu com a existência da Rozemblit, durante duas décadas a grande gravadora da região, e com os bailes carnavalescos dos clubes. Lançados pelo selo Mocambo, da Rozemblit, geralmente em outubro, no Carnaval os frevos-canções já estavam na boca do povo. Naquele tempo havia o hábito, infelizmente desaparecido, de as rádios locais tocarem a produção musical pernambucana. Aliás, não apenas as emissoras locais, mas de todo o Nordeste, graças ao bem azeitado serviço de divulgação da gravadora Rozemblit. O comentarista esportivo da Rádio Jornal, Luiz Cavalcanti, recorda, que a partir de 1954, os suplementos de 78rpms da Mocambo (o selo confundia-se Acima, com o nome da empresa) começaram a chegar à Carnaval Cantado de Nelson Ferreira: O que eu fiz... e você Rádio Sociedade de Ilhéus, onde ele começou sua gostou! carreira: “Até então o único frevo que eu conhecia era ‘Vassourinhas’”, testemunha, Cavalcanti. Ele mesmo, Abaixo, a contracapa do LP anos mais tarde, seria compositor bissexto de frevocanção. Ao lado, implosão da ponte que não Os defensores mais ortodoxos do frevo considecaiu e virou tema de frevo ram o frevo-canção uma descaracterização da “autêntica e revolucionária música pernambucana”, conforme ressalta Ruy Duarte, em História Social do Frevo, atribuindo a culpa por essa degeneração a jornalistas e intelectuais “que entenderam que frevo tinha que apresentar uma letra, quando a música, por sua própria natureza, não foi feita para ter a parte do canto”. Enquanto isso Ariano Suassuna, em um artigo sobre Capiba, escrito em 1951, defende a autenticidade desta modalidade de frevo: “O frevo-canção tem sido detratado em Pernambuco como uma forma híbrida e não regional. Admitem somente estes detratores a forma orquestral do frevo. Este combate, entretanto não tem razão de ser. Surgiu o frevo-canção da marcha e do dobrado, da mesma maneira que o orquestral; apenas o frevo-canção guardou daquela o canto, fato que não sucedeu com o outro”. Suassuna, no mesmo artigo, lembra que os primeiros frevos de que se têm notícias eram cantados. Em seu antológico Frevo, Capoeira & Passo, Valdemar de Oliveira define os traços básicos do frevo-canção: “Se parece com a marchinha carioca: uma parte introdutória, outra cantada, começando ou acabando por estribilho. Duas coisas, porém, as diferenciam. Primeira: a parte introdutória tem todas as características do frevo autenticamente pernambucano, rasgado, desabrido, furioso. Depois ameniza, dando passagem ao canto. Segunda: o andamento da marchinha Continente . fevereiro, 03
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o, o LP baix a e a racapa d lume III m i c t o A n V o – c e vo capa l do Fre a t i p Ca
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carioca é moderado: o do frevo-canção, bem mais vivo”. Estas nuances desenhadas por Valdemar de Oliveira não alcançavam os regentes das orquestras que gravavam os frevo-canção no Rio de Janeiro a partir de 1923. Neste ano chegou ao disco o primeiro frevocanção, “Borboleta não é ave”, de Nelson Ferreira e Jota Jorge Diniz, interpretada por Baihano e o Grupo Pimentel. Os frevoscanção (como também os de rua) continuaram por mais três décadas sendo gravados no Rio, por grandes nomes do rádio da época. Em 1953, José Rozemblit, comerciante de móveis, eletrodomésticos e discos, na Lojas do Bom Gosto (localizada na rua da Aurora) decidiu acabar de vez com este esquema. Patrocinou um 78rpm de frevo, que seria o embrião da Gravadora Rozemblit. O disco trazia de uma lado “Boneca” (de José Menezes e Aldemar Paiva), e do outro o frevo “Come e Dorme”, de Nelson Ferreira. Conta o maestro Zé Menezes que quando foi convidado para gravar seu frevode-rua, composto para o Clube Náutico Capibaribe, Nelson Ferreira não se entusiasmou. Acostumado a ter suas composições gravadas no Sudeste ele parecia não acreditar no sucesso da empreitada. Mudou logo de idéia. Tanto que quando os irmãos Rozemblit criaram a Fábrica de Discos Rozemblit, com estúdio, prensa e gráfica, Nelson Ferreira passou a ser o diretor artístico da gravadora. A partir da Rozemblit o frevo-canção disputou com a marchinha carioca a preferência dos foliões. Carece ainda de um levantamento a caudalosa produção de frevos-canção da Rozemblit. Além dos LPs lançados anualmente, a exemplo da série “Recife Capital do Frevo”, chegavam às lojas e rádios centenas de compactos de frevos-canção saídos da fábrica da Estrada dos Remédios. Os álbuns gravados por Claudionor Germano com o repertório de Capiba e Nelson Ferreira foram campeões de vendagens (continuam bem vendidos até hoje), e mantinham uma qualidade que transcendia o período carnavalesco. Outros compositores partiam para o lúdico, fazendo frevos-canção circunstanciais, nos quais o humor predominava. Eram gravados por artistas hoje esquecidos: Ray Miranda, Penha Maria, Mêves Gama, Jô Gomns, Edilásio Lopes, Bianor Batista, Nerize Paiva, a lista é longa. No tempo em que politicamente correto era o parlamentar que não se metia em falcatruas, escreviam-se letras que hoje seriam alvo de polêmicas, senão caso de polícia. Um bom exemplo é o frevo-canção “Operação Macaco” (Sebastião Lopes/Nelson Ferreira). No final de 1959, surgiu um boato de que um certo profeta havia preconizado que em 1960 os negros iriam virar macacos (sic). Os compositores imediatamente aproveitaram a deixa e fizeram o frevo-canção “Operação Macaco”, cantado por Nerize Paiva. A letra é impensável nos dias atuais: Dizem que em 60 nego vai virar macaco/ora vejam só que grande confusão/Se for verdade essa Operação Macaco/ penca de banana vai custar um milhão/Quem mata um gato tem sete anos de azar/tem nego como o diabo fazendo tchuitchui/ Se for verdade o que diz o profeta/O que seria de Pelé ou do Didi?/ Nego é gente igual a gente/Muito preto existe pra ninguém botar defeito/Profeta toma jeito/cuidado com a negrada/Se ela te pega vai dizendo, olha a papada. Capa d Meio o LP Nels o Sécu lo de n Ferreira Frevo – de Ru a
Fotos : Ace rvo F onote ca da
Fund aj
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O “olha a papada” do final era um bordão de programa humorístico muito popular no início dos anos 60 no Recife. Não havia um acontecimento de relevo que não tivesse uma versão em ritmo de frevo. Da Segunda Guerra Mundial (“Qué matá papai, oião?”, de Nelson Ferreira); a primeira viagem espacial tripulada, feita pelo russo Yuri Gagarin: “A lua disse” (Gildo Branco), um grande sucesso: Gagarin subiu, subiu, subiu/ Foi até o espaço sideral/ Chegou perto da lua e sorriu/ Vou embora pro Brasil/ Lá o negócio é Carnaval. O ex-deputado Manoel Gilberto, em “Menina de hoje”, mistura as novas tendências da moda feminina com a conquista espacial: De calça comprida, cigarro e boné/Já fez seu programa, vou dizer como é: Dar o braço a seu playboy/Entrar no lunik/E lá detrás da lua fazer piquenique. Distante do movimento de liberação feminina, em 68, René Barbosa mandou ver “Pancadinhas de amor”: Você que só vive a passear/A noite ainda vai ao quemme-quer/Tá enganada, tá enganada/Se tá pensando que não se bate em mulher. A variação do tema está em “Homem é luxo”, de José Lopes/José Bartolomeu: Você pensava que seria sempre boa/Ficou coroa e não casou/Agora quer casar/Um conselho vou lhe dar/Pegue um terço e vá rezar. Os ditados populares inevitavelmente acabavam em frevoscanção. Sebastião Lopes usa dois deles em “Qual é o pó?”, de 1965, (o título já é um ditado então em voga), e termina com Nerize Paiva citando outro ditado: “àquelas tuias”. Obviamente havia lugar para um lirismo de “Trombone de Prata” (Capiba), “Terceiro dia” (José Menezes), “Serpentina partida” (Artur Lima Cavalcanti/Maximiano Campos), “Voltei, Recife” (Luiz Bandeira), “Saudade” (Aldemar Paiva) “Cabelos brancos” (Nelson Ferreira). Mas não evitavam derrapadas no bom gosto, como em “Me Abufelei” (Aldemar Paiva), cujos versos diz que a mulher “Está folote” (sic). Com o gênero já praticamente extinto, Carlos Fernando oxigenou o frevo-canção com o projeto Asas da América, em 1980. Reunindo estrelas da MPB – Chico Buarque, Elba Ramalho, Caetano Veloso, Gilberto Gil – ele atualizou não apenas as harmonias, como também os temas. Na mesma época J.Michiles (campeão de concursos carnavalescos já em 1968) assinou alguns dos últimos frevos-canção que emplacaram no rádio, na voz de Alceu Valença: “Diabo louro”, “Roda e avisa” (parceria com Edson Rodrigues), “Queimando a massa” (três dos mais cantados). Infelizmente, a produção dos anos 90, quase toda escoada nos festivais patrocinados pela prefeitura, não teve a mesma sorte. Não dá nem para analisar se possuía ou não qualidade, pois foi esnobada pelo rádio (a não ser na Universitária FM). Portanto não foi julgada por quem sempre referendou os sucessos de outros carnavais: o público. Continuam-se fazendo frevos-canção. Porém, sem tocar no rádio, não há interesse de compositores em mostrar suas músicas, ou de cantores em gravá-los. José Menezes, aos 79 anos, tem vários frevos-canção inéditos, mas o único disco ao qual eles chegaram foi ao disco rígido do computador, onde estão armazenados para a posteridade.
Prop
agan da do s dos disc elo M o ocam s bo
Frevo do Futucado Carmélia , por Alves, 78 rpm que pertence u ao acer vo da Rád io Jornal do Commerci o
o, Frev l do apita de 1977, C P L val jos arna arran do C as e erreira ic s ú F m com e Nelson d Continente . fevereiro, 03
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46 SABORES
PERNAMBUCANOS
Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Chá preto e pente "Apregoava aos gritos qualquer coisa contra qualquer pessoa,bastava que lhe pagassem. No pequeno tabuleiro que conduzia pendente do pescoço, pacotinhos de chá preto e pentes Jangada". Fernando Menezes (Coisas do Recife)
O melhor remédio para os efeitos colaterais da folia é o chá em suas muitas variações
Carnaval, para valer a pena, tem que ter muita folia. E também, como amargo preço, ressaca, fraqueza, cansaço, rouquidão, insônia, estômago embrulhado, amores rápidos, arrependimentos tardios, ilusões perdidas. Além das dores de sempre – de barriga, de cabeça, de cotovelo. Para tudo isso o melhor remédio foi, durante muito tempo, apenas chá. De alecrim, pela manhã, para recuperar a voz. De moela de galinha com alfazema, antes das refeições, para lavar o estômago. De boldo, depois delas, para recuperar o fígado. De folhas de mamão, no meio da tarde, para aquietar a cabeça. De mulungu, à noite, para dormir pesado e esquecer os pecados. Essa preferência por curar com chás, especialmente no nordeste brasileiro, é vício que remonta a nossos índios. Ao longo do dia, tomavam vários banhos de ervas. Afastando doenças e maus espíritos. Para curar ressaca de alué, açuí, tiquira ou cauim, usavam ajucá, ayahuasca ou caxixi feito com casca de cipó. Em cultos religiosos, abusavam de chás quase sempre alucinógenos – cânhamo, psilocibe, amanita muscaria. Era a medicina da época. E com ela curavam quase tudo. Guilherme Piso (em 1637), médico de Nassau, conheceu aqui esses chás. E logo proclamou, com humildade, “a superioridade da terapêutica indígena”. O colonizador português também. Logo abandonando os tradicionais chás de cura que usavam na distante Europa. Feitos de quase tudo – inclusive pó de crânios humanos, fezes de ovelhas e restos de múmias. O jesuíta (por vocação) e boticário (por profissão) Manuel
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de Carvalho por exemplo oferecia, a quem lhe procurava, chá para todos os gostos – até, como prometia, para virgindade perdida. Mas, durante todo esse tempo, esse chá foi usado apenas como remédio. E assim foi até quando por aqui chegou Dom João VI. Mais por força das legiões napoleônicas de Junot que por vontade própria, em verdade se diga. Com a corte portuguesa nos veio também um outro jeito de tomar chá. Não para curar, como se remédio fosse. Mas apenas para degustar, por ser saboroso e apascentar os espíritos. Dom João até que tentou produzir algum chá de qualidade, em terras brasileiras. Inclusive determinando o plantio de 6.000 mudas de “thea sinensis”, no Jardim Botânico do Rio de janeiro (1812). Depois José Arouche de Toledo, empresário que dedicou toda sua vida à produção e ao comércio de chá, fez novas tentativas. Em descampado que hoje leva seu nome, “Largo do Arouche”; e no centro da cidade de São Paulo – passando o lugar, depois, a ser conhecido como “Viaduto do Chá”. Nenhuma dessas experiências deu verda-
SABORES PERNAMBUCANOS 47 » Foto: AFP
deiramente certo. Porque não se sabia então que a planta do chá requeria altitude, solos e climas especiais – nenhum deles encontrados no Brasil. Vindo os melhores chás, não por acaso, dos altiplanos Himalaios. O chá nasceu na China, há mais de 5.000 anos. Segundo a lenda, quando algumas folhas de “theas sinensis” caíram na água que o imperador Shen Nung fervia, para evitar pestes e outras doenças. Dando um gosto especial a essa água. De lá vindo também seu próprio nome. No dialeto falado nas províncias chinesas de Amory e Fukien, o ideograma que representava essas folhas se pronunciava “t’é” – daí vindo “te” entre os malaios, “tea” na Inglaterra, “thee” na Holanda, “thé” na França, “te” na Suécia,”tea”na Alemanha,”té” na Espanha. Já no mandarino de Cantão, a pronuncia era “ch’a” – daí vindo “sháy” entre os árabes, “cháy” entre os turcos, “chaí” na Rússia, e “chá”(como em português) na Persia (hoje Iran). Ao Ocidente chegando só bem depois, com os navegadores portugueses. Não por acaso tendo a viagem de Cabral, como destino oficial, o porto de Calicute. No mesmo Golfo de Oman, Índia, onde, dois anos antes havia desembarcado Vasco da Gama.
O hábito de tomar chá foi, durante muito tempo, privilégio apenas de nobres. Até pelo menos 1662 – quando se casou Dona Catarina de Bragança, filha de D. João IV. Com D. Carlos II, rei da Inglaterra, Escócia e Irlanda. O mesmo que se aliou à França, para expulsar os holandeses do Novo Mundo. Passando New Amsterdam, em razão disso, a ser New York – como homenagem à capital de Yorkshire, às margens do Ouse e, também, a um seu irmão. Valendo lembrar que, desde o século XVI, o título de “Duque de York” é concedido a todo segundo filho dos reis da Inglaterra. Ainda dando, em honra à mulher, novo nome a um bairro – o de Queens. Depois a tributação do chá acabou levando à independência dos Estados Unidos – mas essa é outra história. Voltando a Catarina, certo é que seu dote era composto das cidades de Tânger e Bombaim, de 500.000 libras e da liberdade de comércio dos ingleses com as colônias portuguesas. Além de enorme arca com folhas de chá. Catarina não deu herdeiros ao povo inglês. Mas deu-lhe a bebida feita com aquelas folhas. Chá das cinco é costume tipicamente inglês. Que começou com a Duquesa de Bedford e suas convidadas diárias. Passando esse costume rapidamente, da aristocracia para a gente simples do povo. Em fins do séc 18, escreveu o grande La Rochefoucauld – “não há camponês que não tome esse chá pelo menos duas vezes, da mesma forma que o cidadão mais rico”. O leite no chá vem da tentativa de reproduzir as xícaras de porcelana chinesa. Os artesãos ingleses simplesmente não conseguiam imitar sua resistência ao calor. Daí surgindo a idéia de acrescentar leite frio, antes da água – para equilibrar a temperatura e evitar que a xícara rachasse com a água fervente. Acabou virando hábito. Faltando só falar de outro inglês, Thomas Twining. Ele abriu a primeira casa de chá, no inicio do século 18, a “Thomas Coffee House” – a princípio freqüentada só por homens; depois, passando as mulheres também a experimentar a novidade, do lado de fora, claro, em carruagens ou no meio da rua. Ainda lançando, no mercado, aquela que (ainda hoje) é a mais famosa marca de chá do mundo – “R. Twining and Company Limited”. O chá é usualmente classificado a partir do processo de tratamento das suas folhas. Verde é mais suave, de cor clara, feito a partir de folhas não fermentadas (“Gunpowder grees”). Oolong tem a cor do cobre que as folhas adquirem, ao passar por rápida fermentação (“oolong peach”). Os chineses o chamam de “chá vermelho”. E preto é o que passa por fermentação mais longa. Por alguns entusiastas definido como o “vinho tinto” dos chás. Talvez os britânicos até esperem que algum enólogo devolva a gentileza. Dizendo, por exemplo, que um bordeaux fosse “o chá dos vinhos”. Mas essa esperança, própria talvez de quem sofre os males da folia, parece francamente exagerada.
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PERNAMBUCANOS
Foto: Leo Caldas / Titular
48 S ABORES
RECEITA: COMO PREPARAR O CHÁ Use sempre água fria e pura. Ferva a água, mas não por muito tempo. Para evitar perda de oxigênio – o que tornaria o chá insípido. Assim que a água começar a ferver, desligue o fogo e coloque dentro o chá. Faça repousar, de 3 a 5 minutos, para ocorrer a infusão. Mexa só uma vez e sirva. Evite bules de alumínio. Os melhores são de louça. Ao lavar os bules, nunca use detergente. Apenas bastante água. Antes de servir o chá, escalde com água bem quente. Evite usar tampa ou abafador. Isso faz com que o chá fique muito forte. Paladares mais exigentes desaprovam o uso de açúcar. A melhor medida é um saquinho por xícara. Esses saquinhos, usualmente, já vem com misturas que podem incluir até 15 ou mais folhas de diferentes procedências. Entre eles os mais famosos, o “English Breakfast Tea” – combinação de chás fortes e encorpados da Índia e do Ceilão; o “Earl Grey Tea” – combinação de chás pretos “Keeman” e “Darjeeling”, aromatizado com óleo de tangerina; o “Rússia Caravan Tea” – chás finos da China, Formosa e Índia; o “Jasmine” – chá verde perfumado com flores de jasmim; e o “Vintage Darjeeling” – considerado néctar dos deuses, combinação de puros chás Darjeeling, cultivados nas encostas do Himalaia. Há certos chás que melhoram o gosto com o acréscimo de leite. Coloque então, primeiro, o leite na xícara. E só depois o chá. Ficam bem com leite “English Breakfast”, “Assam” e “Irish Breakfast”. Sem leite sirva “Lapsang Souchong”, “Rouse Pouchong”, “Jasmine”, “Traditional Gunpowder”, “Chummee”, “Sichuan” e “Vintage Darjeeling”. Também deverão ir sem leite as infusões herbáceas e os chás com aromas de frutas.
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50 FOTOGRAFIA
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Breno Laprovitera e Jarbas Júnior
O Carnaval, que é catarse e inversão, também é representação e teatro. Nos cenários das ladeiras de Olinda ou nas ruas do Recife Antigo, as fantasias desfilam um elenco interminável de personagens – de Pierrô a Superman, de Carlitos a Padre Marcelo Rossi, passando por palhaços, políticos e papangus. Desde 1995, as fantasias mais criativas do Carnaval pernambucano são registradas, quadro a quadro, pelo Projeto Lambe-Lambe, iniciativa de fotógrafos que, de espectadores-testemunhas passaram também a protagonistas da festa, vez que muitas pessoas se fantasiam especialmente para o palco armado por eles, ao ar livre. Lambe-lambe, como se sabe, é o nome do fotógrafo ambulante encontrado nas ruas, feiras e mercados das cidadezinhas ou dos bairros populares das capitais brasileiras. A seguir, uma amostra da folia de 2002.
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FOTOGRAFIA
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De Nega Maluca a Gueixas, as fantasias exprimem personas num perĂodo determinado
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Interpretam-se personagens famosos, como Ghandi ou Bin Laden, anônimos ou fantásticos
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Máscaras e adereços nas faces e cabeças de atrizes por um dia
Projeto Lambe-lambe – A fotografia do Carnaval de Pernambuco Fotos de Breno Laprovítera, Daniel Berinson, Fred Jordão, Jarbas Júnior e Roberta Guimarães. Texto: Adriana Dória Matos. Recife, edição dos autores, 2002. R$ 45,00
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54 FOTOGRAFIA Marco Polo
Procura sem tréguas pelo melhor Coleção do editor Carlos Leal mostra o talento de Nadar como retratista A Editora Francisco Alves está lançando um livro que interessa não apenas aos fotógrafos, mas também aos escritores, atores e artistas plásticos. E, numa dimensão maior, a todas as pessoas que se interessam por cultura. Trata-se de Nadar – O retratista de um século, mostrando a coleção de fotos do francês pertencente ao editor e empresário do Rio de Janeiro, Carlos Leal. São mais de 80 fotos retratando escritores como Théophile Gautier, Alexandre Dumas (pai e filho), George Sand, Charles Baudelaire, Emile Zola, Guy Maupassant, Gustave Flaubert, Jules Verne e Victor Hugo; músicos e pintores como Gustave Doré, Jaques Offenbach e Charles Gounod; personalidades como Santos Dumont, D. Pedro II (em seu leito de morte), Lady Randolph Churchill (mãe de Winston Churchill) e a atriz Sarah Bernhardt. O livro traz artigo introdutório de John Updike, que acentua algumas das qualidades de Nadar como fotógrafo: “Ele não tinha pressa nas sessões, conquistando a confiança do modelo e ajustando os refletores com que carinhosamente manipulava a luz natural, produzindo efeitos de claro-escuro semelhantes aos de Rembrandt e Van Dyck.” O próprio Nadar diz, a respeito da arte de fotografar: “O que não pode ser ensinado, eu lhe direi: é a percepção da luz, é a apreciação artística dos efeitos produzidos por diferentes e combinadas qualidades de luz. O que pode ser ensinado menos ainda é a rápida compreensão da personalidade do seu modelo, é a sensibilidade ágil que o coloca em comunhão com o modelo... O que também não pode ser ensinado é a integridade do trabalho: em um gênero tão delicado como a arte do retrato, é o fervor, a busca, a perseverança incansável na procura sem tréguas do melhor”.
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O imperador brasileiro D. Pedro II, em seu leito de morte
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O poeta Théophile Gautier, mestre do parnasianismo
Sarah Bernhardt, uma lenda dos palcos
O maior poeta romântico francês, Victor Hugo
Além deste talento e fervor, outro trunfo de Nadar foi sua amizade com a nata da inteligência cultural de seu tempo, o que lhe possibilitou documentar uma das paisagens humanas mais importantes do mundo. Aliás, o grande poeta Charles Baudelaire tinha ojeriza a ser fotografado e só foi convencido a posar graças à eloqüência do amigo. Talento múltiplo, experimentou uma meia dúzia de profissões, sendo o pioneiro em diversas atividades, mas sua grande obra está na fotografia. Updike exemplifica: “Um retrato fotográfico é uma questão de interação; o charme e o entusiasmo do fotógrafo contagiam o modelo. Os olhos de Rossini brilham de encanto por trás das olheiras; Michelet parece estar mordendo uma réplica sagaz na ponta da língua (...) Um ar insolente de confrontação centelha dos rostos de Dumas “père” e do famoso palhaço Kopp. Os poetas estão assombrosamente vivos: Gerard de Nerval, que se suicidaria um mês após o seu retrato, está mirando diretamente a lente com um olhar úmido, e Baudelaire, em um par de fotografias bem diferente, exibe, de pé, um lado frenético, e depois, sentado, um belo e inteligente sossego”. Poderia se referir a mais, como ao exuberante retrato de Théophile Gautier, como que flagrado num momento de reflexiva contemplação de um fato importante, interiorizado, sem a mínima percepção de pose em sua atitude; o rosto relaxado e o olhar pensativo de Georg Sand; a atitude entre tensa e cansada de Victor Hugo; o
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olhar triste de Santos Dumont; a expressiva pose de Gustave Doré ou o risinho divertido de Jaques Offenbach. São fotos que revelam o profissional capaz de deixar o modelo num estado de à vontade que permita o que só os grandes fotógrafos conseguem captar: além do rosto físico, a personalidade, a alma do retratado. Um detalhe: Nadar fotografa sobre fundo neutro, concentrando sua atenção (e a do espectador) no modelo. A coleção de Carlos Leal (ele começou a se interessar por fotografia ainda criança), além de compor este livro, tem itinerado em exposições na Casa França Brasil (Rio, 1994), Museu Imperial (Petrópolis, 1995), Pinacoteca do Estado de São Paulo (1999) e III Bienal Internacional de Fotografia (Curitiba, 2000). Nadar – O retratista de um século tem edição bilíngüe (português-francês), cronologia da vida do fotógrafo e resumo biográfico dos retratados.
Charles Baudelaire, o criador da poesia moderna
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O brasileiro Alberto Santos Dummont, Pai da Aviação
Alexandre Dumas, o precursor dos autores de best-sellers
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Uma vida inquieta
Félix Nadar fotografado: homem múltiplo
Gaspar Félix Tournachon & Maillet foi um sujeito extraordinário sob diversos pontos de vista. Nascido em Paris, em 5 de abril de 1820, ficou conhecido pelo pseudônimo Nadar como um dos maiores fotógrafos do mundo. Mas ele não foi só isso. E sua vida daria um filme movimentadíssimo. Já aos seis anos é expulso do pensionato e do Collège Bourbon, por ter causado a explosão do aquecedor a gás de sua sala de aula, provocando um princípio de incêndio que feriu alguns colegas. Apesar de tudo, em 1837 começa a estudar Medicina mas logo no ano seguinte inicia uma carreira jornalística e literária que renderia uma vintena de livros e milhares de textos em mais de 70 periódicos diferentes. Trabalhou também como diagramador e caricaturista. Em 1939 lança a revista literária Le livre d’or. Em 1942 inicia sua colaboração no Le Commerce, jornal político e literário e no mesmo ano é fichado na polícia como subversivo. Em 1948 engaja-se na luta pela libertação da Polônia e realiza uma missão de espionagem na Prússia. Em 1986 inaugura seu primeiro estúdio fotográfico e torna-se tão conhecido que, já no ano seguinte, os cocheiros passam a chamar a rua Saint Lazare, onde estava localizado, de rua Saint Nadar. Neste mesmo ano faz as primeiras experiências de fotografias com iluminação
elétrica. Em 1954, publica a caricatura Panthéon Nadar, a maior litografia feita até então, com um metro por um metro e quarenta, reunindo 300 personalidades da cultura francesa. No mesmo ano, lança a revista de caricaturas Les Binnetes Contemporaines. Em 1958 faz a primeira fotografia aérea da história, a bordo de um balão amarrado sobre o Hipódromo de Paris. Três anos depois, inaugura seu Atelier Rouge, num grande estúdio, onde tudo é pintado de vermelho e ele, que é ruivo e tem um metro e oitenta, recebe os clientes também todo vestido de vermelho. Mais dois anos se passam e Nadar lança o maior balão do mundo, o Géant, com 45 metros de altura, 25 de diâmetro e quase 8 toneladas de peso, diante de uma multidão de 200 mil pessoas, no Champs de Mars. Em 1865, utilizando seus conhecimentos de iluminação elétrica, faz as primeiras fotos subterrâneas da história, nos esgotos e catacumbas de Paris. No ano seguinte, ele e o filho, Paul, fazem a primeira entrevista ilustrada fotograficamente da história, com o centenário Eugène Chevreul, para o Journal Illustré. Em 1870, com Paris sitiada pelos alemães, Nadar cria o primeiro serviço de correio aéreo, usando balões do exército francês para enviar mensagens para fora da cidade. Quatro anos depois, empresta seu estúdio para que um grupo de pintores seus amigos realizem a primeira exposição impressionista. Em 1899 abandona a fotografia. Em 1906 volta à caricatura, fazendo um número especial da revista L’Assiette au Beurre, dedicado à miséria do cavalo, ganhando um prêmio da Sociedade Protetora dos Animais. (ele condenava veementemente a violência contra os animais). Mais quatro anos e Nadar morre. Apesar de desejar um enterro simples e solitário – como o do pai, que morreu esquecido –, seu corpo foi seguido por enorme multidão e o evento foi noticiado em mais de 300 jornais do mundo todo.
Nadar – O retratista de um século. Coleção Carlos Leal. Ensaio de John Updike. Editora Francisco Alves. Fone (21) 2221.6999 148 p. R$ 65,00
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58 CAPA Luciano Trigo (De Havana)
Salma Hayek disputou o papel com Jennifer Lopez e Madonna, que coleciona quadros de Frida
Frida, o filme
A diretora americana Julie Taymor defende o filme que fez sobre a vida e a obra da genial e controvertida artista mexicana
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Fotos: Divulgação
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Transgressora, além de ajudar Diego Rivera a pintar seus murais revolucionários – e posar para ele – Frida participou de manifestações organizadas pelo Partido Comunista e lutou pelos direitos dos índios e dos operários
Recém-lançado nos Estados Unidos, Frida, de Julie Taymor, prova que a biografia cinematográfica é um gênero cheio de armadilhas. A pretensão de abranger uma vida inteira em duas horas de projeção costuma “achatar” as ambigüidades, as nuances psicológicas e a personalidade do protagonista. O risco é ainda maior quando a personagem em questão é uma artista plástica que virou um mito, como a mexicana Frida Kahlo, que já teve a sua trajetória existencial e sua obra esmiuçadas por diversos ângulos – inclusive em outro filme, o já clássico Frida, natureza viva, do cineasta mexicano Paul Leduc. É difícil responder se a cineasta americana – mais famosa por dirigir musicais na Broadway, como O Rei Leão, marcado por uma orgia visual, que pelos filmes que fez, incluindo Titus Andronicus, uma versão sangrenta e performática de Shakespeare, estrelada por Anthony Hopkins e Jessica Lange – foi bem-sucedida em seu ambicioso retrato da pintora mexicana. Frida foi exibido no último Festival de Cinema de Havana, em dezembro, com a presença da diretora, aplaudida de pé.
Julie Taymor é bonita e não aparenta ter idade suficiente para fazer cinema há 30 anos, como diz. A primeira pergunta que lhe faço é se ela assistiu ao filme de Leduc. Ela desconversa, diz que conhece Natureza viva, mas que são duas visões muito diferentes. (Por sua vez, aliás, o diretor mexicano, também presente no Festival, não quis sequer assistir ao trabalho de Julie). “Não conheço Paul Leduc” – ela afirma. – “Vi seu filme há muito tempo, e a minha interpretação é diferente, o enfoque das personagens é outro. Cada diretor tem sua maneira de contar uma história. Não existe uma só verdade sobre Frida, ela é uma mulher múltipla. Nunca pretendi fazer um documentário, nem filmar uma biografia, mas sim contar a história romântica e muito pessoal de uma artista. Meu filme é a história de como o amor resiste e de como se agüentam os golpes que a vida dá. É sobre lealdade e infidelidade, sobre uma mulher que ama um homem com altos e baixos”. É inegável que, até pela sua experiência na Broadway, Julie Taymor desenvolveu um agudo senso de espetácu-
lo. Isto não a impediu de enfrentar diversos obstáculos em seu ambicioso projeto, e o principal deles é o preconceito anti-americano. Apesar da calorosa recepção da platéia, que lotou os quase dois mil lugares do Cine Chaplin, em Havana, nos bastidores do festival o comentário geral era que ela havia feito uma versão “americanizada” da história de Frida – que, como se sabe, teve uma vida de folhetim, pautada por desgraças, paixões e uma obra revolucionária. “Eu pinto a minha realidade”, dizia Frida. E sua realidade foi bastante dolorosa a partir dos 18 anos, quando quase foi morta num acidente de bonde que deixou seqüelas horríveis em seu corpo e problemas de saúde exasperantes. Manca e estéril, obrigada a passar longos períodos de sua vida na cama, entre coletes ortopédicos, agulhas e bisturis, com um proverbial bigode bastante atenuado na caracterização da atriz Salma Hayek (que disputou o papel com Jennifer Lopez e Madonna, que coleciona quadros de Frida), bissexual, promíscua, comunista, companheira de Diego Rivera, amante de Trotski (Geoffrey Rush), Josephine Baker e Tina Mo-
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60 CAPA
Sua relação com Rivera é uma das maiores histórias de amor do século 20
dotti, o personagem é um prato cheio para uma saga bem ao gosto do público americano. De fato, Frida, o filme, se concentra mais na superfície da trajetória da artista – o sexo e a política, as bebidas e as brigas, a fama e a ruína – que na dimensão interior da personagem e no seu processo criativo. Talvez por ser americana e ter-se apropriado de uma realidade alheia – e cara aos mexicanos, para quem Frida Kahlo se converteu num verdadeiro mito – Julie tenha enfeitado demais a história. Ela se defende lembrando que foi em Nova York que Diego Rivera e Frida Kahlo alcançaram projeção internacional como artistas. “Meu filme fala sobre conflitos comuns a todos os países e todas as culturas, como os que envolvem a lealdade e a fidelidade. Quem não entende o que é ser traído pela pessoa que ama? Além disso, eu morei quatro anos na Ásia, não sou uma americana típica. Hoje, vivo em Nova York, não em Hollywood. E mais da metade da equipe técnica do meu filme é composta por mexicanos. Frida não é um filme americano” – assegura. É verdade. Só roteiristas foram oito, que trabalharam sobre uma biogra-
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fia escrita por Hayden Herrera. Além disso, o filme, que teve um orçamento baixo, de 14 milhões de dólares, foi rodado quase totalmente na Cidade do México, incluindo cenas nos quartos da casa do casal Diego e Frida. E a direção de arte é considerada excepcional mesmo pelos críticos mais severos. As seqüências em que Frida “sai” de suas próprias pinturas são impressionantes, sugerindo a simbiose entre vida e arte que a diretora almejava. Mas a relação de Frida e Diego – um amálgama de fervor político, respeito profissional e apetite sexual – é retratada de forma um pouco fria. Tirando algumas simplificações novelescas e excessos cosméticos, Frida é bem-sucedido ao representar o ambiente efervescente da sociedade mexicana das décadas de 20, 30 e 40. Julie Taymor também exibe talento na criação de uma atmosfera que evoca o realismo mágico e o surrealismo, com imagens dignas de Gabriel García Márquez – que também estava presente no Festival de Havana, comparecendo a todas as cerimônias e festas e sempre muito simpático, mas se recusando a dar entrevistas. A relação tempestuosa de Frida e Diego é o eixo narrativo de Frida. O filme cresce quando Julie Taymor dilui a
barreira entre a fantasia e a realidade, fazendo a narrativa se soltar em explosões de cor, imaginação e música, que evocam o espírito corajoso, anárquico e iconoclasta da artista. As seqüências oníricas são muito bem feitas, e, para muitos espectadores, o tórrido tango dançado por Salma Hayek e Ashley Judd (no papel da fotógrafa Tina Modotti) já será motivo suficiente para ir ao cinema. Outros coadjuvantes de luxo são Antonio Banderas (como o pintor e muralista David Siqueiros) e Edward Norton, namorado de Salma (como o milionário e patrono das artes Nelson Rockefeller). Apesar de “adotada” por André Breton, Frida rejeitava o rótulo de surrealista – já que nunca pintou sonhos, mas a sua própria realidade, segundo afirmava. Ela própria uma pintora amadora, Julie Taymor se sente à vontade para falar sobre sua retratada, quando pergunto sobre a origem do projeto: “Durante oito anos Salma Hayek correu atrás desse sonho. Quando li o roteiro, fiquei comovida pelo seu alto teor dramático, e não apenas pelos aspectos biográficos. Chorei por dentro. A arte de Frida surgia de sua própria existência. Sua relação com Rivera é uma das maiores histórias de amor do século 20. Ela era uma apaixonada pela vida. Meu filme retrata antes de tudo uma história de amor pela vida”. Frida Kahlo (1907-1954) começou a pintar aos 15 anos, após sofrer o acidente que a deixou de cama durante meses. Com fraturas múltiplas na coluna e na bacia (atravessada por um pedaço de ferro), ela passou o resto da vida sentindo dores terríveis, que diversas cirurgias não conseguiram aliviar. Impossibilitada de ter filhos, Frida viveu um calvário que só terminou com a sua morte, aos 47 anos, depois de ter sido operada 32 vezes. Foi neste contexto dramático, agravado pela relação ruim com a mãe e pelo envolvimento turbulento com Diego Rivera, o muralista da Revolução Mexicana (com quem se casou duas ve-
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zes, em 1929 e 1940) que Frida aprimorou a sua sensibilidade artística. Pintou centenas de auto-retratos perturbadores, que realçam as suas sobrancelhas unidas e espessas, o seu bigode, o seu olhar triste e os seus trajes e adornos tipicamente mexicanos, que usava para se identificar com o povo. Frida também expressou a frustração de não poder ser mãe em quadros que retratam os diversos abortos por que passou. “Como também sou pintora, eu me sinto mais próxima de Frida Kahlo que muitos mexicanos, porque temos uma sensibilidade parecida”, afirma Julie. “Muita gente no México acha seus quadros horríveis”. Transgressora, além de ajudar Diego Rivera a pintar seus murais revolucionários – e posar para ele – Frida participou de manifestações organizadas pelo Partido Comunista e lutou pelos direitos dos índios e dos operários. Em casa vivia rodeada de animais, especialmente macacos e pavões. Consta que foi traída dezenas de vezes pelo marido, que, 21 anos mais velho e num estado de permanente embriaguez pelo álcool e pelo sucesso, era presa fácil para suas jovens admiradoras. Frida escreveu um dia, como aparece no filme: “Sofri dois grandes acidentes na minha vida, um foi o bonde, o outro foi Diego”.
Antonio Banderas é o pintor David Siqueiros
Avessos às convenções sociais, Diego e Frida promoviam festas nas quais, agarrada a um copo de tequila, ela divertia os convidados cantando canções populares e contando anedotas picantes madrugada adentro. Ela sentia prazer em chocar as pessoas com atitudes e roupas masculinas. Antecipando a relação contingente de Sartre e Simone de Beauvoir, Frida também se entregou a relações efêmeras, com homens e mulheres, incluindo o revolucionário Lev Trotski e a pintora Georgia O’Keefe. Indagada sobre um eventual excesso de humor em seu filme como uma concessão aos espectadores, Julie responde: “O humor não é uma concessão. Frida tinha uma visão cômica da vida, e era uma grande provocadora, como Diego Rivera. Artistas costumam ser indivíduos torturados e angustiados. Frida era assim, mas também tinha um lado engraçado. Como Nietzsche, ela achava a alegria mais poderosa que a tristeza. Ela queria desfrutar a vida ao máximo, apesar dos sofrimentos penosos que atravessou. Não quis retratar Frida como uma mártir”. Um dos pontos fracos do filme é o registro dos debates dos comunistas mexicanos, esquemático e pueril, com simplificações grosseiras: é um dos momentos em que, definitivamente, Julie
Taymor não consegue esconder que é americana. Após a exibição no último Festival de Veneza, o jornal italiano de centro-esquerda La Repubblica acusou Frida, com razão, de ser um panfleto que ridiculariza as aspirações comunistas no mundo dos anos 40, além de retratar Lev Trotski de forma caricata. Hoje a pintura de Frida é idolatrada no mundo inteiro, e sua cotação cresce cada vez mais no mercado de arte internacional. Um dos seus auto-retratos foi vendido recentemente por US$ 1,5 milhão, o preço mais alto já alcançado por uma obra latino-americana, num leilão da Sotheby’s. Na música e nos figurinos, Julie demonstra competência, evitando os clichês sobre o México que se reproduzem à exaustão nos Estados Unidos. Já o elenco não é tão feliz. Salma Hayek, que tem 36 anos, não compromete interpretando Frida da adolescência até sua morte, aos 47 anos. Mas é um rosto conhecido demais – e bonito demais – para que seja possível desassociá-lo de outros papéis. Nascida no México, como Frida, Salma conquistou o mercado americano com filmes que exploravam sua beleza e sensualidade. A personagem é maior que a atriz, de recursos interpretativos limitados. Já Alfred Molina deixa a desejar como Diego Rivera,
Bissexual, Frida foi amante da cantora Josephine Baker Continente . dezembro, 02
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pois não imprime qualquer densidade psicológica à personagem, que funciona quase como uma “escada” para a interpretação de Salma. Quando foi exibido em sessões especiais no México, o filme de Julie Taymor não agradou, aliás, aos discípulos de Frida Kahlo. Frida foi acusado de cair em falsidades e imprecisões, incluindo o caso de Diego com Cristina Kahlo, irmã da pintora. Outro aspecto incorreto do filme, segundo apontaram, é a idéia de que o casal vivia uma orgia perpétua, já que Diego e Frida se dedicavam com muita seriedade às suas obras e às suas convicções políticas. A escritora mexicana Guadalupe Loaeza foi mais explícita: insatisfeita com a interpretação de Salma, ela acha que a atriz não conseguiu transmitir para a tela a paixão da pintora. Por fim, criticaram também o fato de o filme ser falado em inglês (com todos os atores se esforçando para falar com um estranho sotaque), já que Frida desprezava os americanos.
A diretora Julie Taymor (ao centro) diz que não quis fazer uma biografia, mas sim contar a história romântica e muito pessoal de uma artista
Como a personagem que retrata, Frida é, nas intenções, um filme honesto em seu compromisso artístico. A inserção da arte de Frida Kahlo e Diego Rivera na narrativa é feita de forma a um tempo simples e criativa. Trata-se, em suma, de uma bela produção, um agradável afresco de época, de colorido próprio, com recursos fotográficos e visuais sofisticados usados de forma eficiente e funcional – como na seqüência da viagem do casal aos Estados Unidos, que combina texturas e colagens em pretoe-branco e cor, ou a seqüência de animação do delírio da jovem Frida no hospital (que lembra o estilo de Tim Burton), ou ainda as diversas inserções dos impressionantes auto-retratos de Frida na narrativa. O acidente de ônibus, no começo do filme, é seguido de uma assustadora seqüência animada, cuja iconografia de esqueletos e pedaços de corpos quebrados é inspirada nas pinturas de Kahlo e no folclore mexicano que a fascinava.
Quanto mais longe fica do naturalismo sóbrio, melhor o filme fica. Mas o resultado final é bastante convencional, com tudo muito “explicadinho”. Frida é um filme suave demais para uma artista atormentada, que viveu tantos dramas e obsessões – reflexo talvez da busca da produtora Miramax por um difícil equilíbrio entre o cinema independente e Hollywood. Julie Taymor deveria ter ido mais fundo na exploração de alguns aspectos apenas esboçados, como a transformação da dor em arte, a pintura como catarse. Se Frida se preocupasse menos em enumerar cronologicamente os episódios da vida da artista, e mais em capturar as sensações que alimentavam sua arte, seguramente seria um filme bem melhor. Mas Julie Taymor gosta de desafios. Seu próximo projeto é filmar a novela Cabeças Trocadas, de Thomas Mann.
CAPA 63 »
Cara aos mexicanos, Frida Kahlo se converteu num verdadeiro mito. Manca e estéril, foi obrigada a passar longos períodos de sua vida na cama, entre coletes ortopédicos, agulhas e bisturis
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64 CAPA
Cores e dores da vida Apesar da existência dramática e marcada pela dor a mexicana Frida Khalo fez uma pintura exuberante
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No alto, ela se retrata tendo Stalin ao fundo No centro, o ateliê da artista Nos demais quadros, uma fixação: o auto-retrato
A festa da morte que ocorre no México todo dia 2 de novembro é menos fruto de uma morbidez que sempre atrai o senso comum e mais de uma ancestral aposta na sobrevivência do homem. Do mesmo modo deve ser entendida a vida cheia de tantas dores da pintora Frida Kahlo (1907-1954). Com o sentido de transcendência. Pode-se dizer que a sua tragédia começou muito antes de ela haver nascido: a avô uma vez lhe mostrou as cartas de um antigo namorado que se suicidara ao seu lado. “Esse homem vivia sempre em sua memória”, recordou-se do que ouvira quando tinha só 11 anos de idade. Aos 18, viveu ela própria com um namorado um acidente que, se não a matou (disseram os médicos que por milagre), lhe tirou a possibilidade de engendrar outras vidas. Porque voltou para pegar uma sombrinha esquecida terminou por entrar num ônibus que bateria num bonde. A barra de aço que se soltou desse entrou pelo lardo esquerdo da pélvis e saiu pela vagina. Cravou-se como uma “espada a um touro” (nas suas próprias palavras). Tudo isso piorou a situação de um corpo que, aos 6 anos de idade, aprendera a dura lição da poliomielite. Sabe-se que como conseqüência disso a sua perna direita era mais fina e curta que a esquerda. A prática de muitos esportes (incluindo boxe e futebol) ajudou-a a enfrentar e superar o problema. Mas não impediu as gozações dos colegas, nem a solidão e circunspeção que isso imporia a uma menina travessa como Frida. O seu namorado que, com ela viajava no banco de trás do ônibus, e não sofreu mais do que umas pequenas contusões, conta sobre minutos após o acidente: “Algo estranho ocorreu. Frida estava completamente nua. O choque desatou sua roupa. Alguém que ia no ônibus, provavelmente um pintor, levava um pacote de ouro em pó que se rasgou, cobrindo o corpo ensangüentado de Frida. Quando as pessoas a viram, gritaram: ‘A bailarina, a bailarina!’ Por causa do ouro sobre seu corpo vermelho e sangrento pensavam que era uma bailarina.” Era uma bailarina destroçada, com uma coluna vertebral que se deslocou em três lugares, clavícula e costelas fraturadas, além de 11 fraturas na perna direita, a pélvis quebrada em três lugares e o ombro esquerdo deslocado. Dizer que o acidente mudou sua vida e de que começou a pintar por acidente não é recorrer a um tolo chavão, e sim em ser rigorosamente exato. Se a condenou a ter sérias dificuldades para engraviContinente . janeiro, 03
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66 CAPA
No alto, Frida se retratou com Diego Rivera. Ela começou a pintar na cama, quando estava convalescendo do acidente que quase a matou
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dar (os vários abortos comprovariam) também a fez dedicar-se à pintura. No início, apenas para passar o tempo ou distrair o sofrimento. O próprio hábito de auto-retratar-se (mais da metade da sua obra é composta disso) vem da convalescença quando a família arranjou um espelho para que ela se tivesse como modelo. “Pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o tema que conheço melhor”, ela dizia. A história de Frida hoje pode ser vista no museu que tem o seu nome no México, por iniciativa de Diego Rivera (1886-1957). Funciona na casa onde ela nasceu. A sua história começa às 8h30 da manhã do dia 6 de julho de 1907, em Coyoacán. Recebeu o nome de Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón. Era a mistura de um alemão judeu com a mãe mexicana – filha de espanhóis mestiços. As suas famosas sobrancelhas eram herança da avó paterna. Na lenda que soube bem construir ainda em vida, consta que ela mudou o ano do nascimento por nacionalismo: queria coincidi-lo com o início da revolução mexicana: 1910. Há outra inscrição no seu museu que também é fruto de uma doce idealização: lá teria vivido com Diego Rivera de 1929 a 1964. Sabe-se que os dois casaram-se e se divorciaram mais de uma vez, moraram quatro anos nos Estados Unidos, e tiveram vários amantes – no caso dele, incluiu a própria irmã da pintora, Cristina, e dela, gente famosa como Trotski, e até mulheres. A idealização parece bem adequada a uma vida que superou tragédias. A sua obra foi ao mesmo tempo uma sublimação e uma libertação. O reconhecimento começou nos Estados Unidos, com uma exposição em 1938. A mostra em Paris, no ano seguinte, embora tenha sido um fiasco do ponto de vista financeiro, iniciou o interesse por sua obra a ponto de algum tempo depois ser a primeira artista mexicana do século 20 a ter um quadro adquirido pelo Louvre. No México, só um ano antes de sua morte é que realizou a primeira individual, organizada pela fotógrafa Lola Alvarez Bravo. Deitada numa cama é que viu o vernissage. A sua saúde piorou muito nos meses seguintes, teve a perna direita amputada até o joelho, e passou a ser o que os populares chamam um molambo de gente. Pensava muito em suicídio. As dores se multiplicaram, e somente cessaram na noite de 12 para 13 de julho de 1954. Descansava em paz, literalmente, pois o alemão Frieda do seu nome quer dizer só isto: paz. (M.H.)
CAPA 67
Frida Khalo foi a primeira artista mexicana do sĂŠculo 20 a ter um quadro adquirido pelo museu do Louvre
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68 FILMES Kleber Mendonça Filho
O Brasil é de Deus?
Fotos: Divulgação
Novo filme de Cacá Diegues expõe uma paixão pelo Brasil, mas tem um evidente apego ao país dos cartões postais
O ator Stepan Nercessian tenta acertar a mira, dirigido por Diegues.
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Curioso o filme Deus é Brasileiro (Brasil, 2003), de Carlos Diegues. Fui vê-lo numa sessão especial no Rio de Janeiro, algumas semanas antes de estrear nos cinemas. Saí com a sensação engraçada de que não entendi o que vi. Três dias depois, comecei a sentir aquela coisa estranha que só me ocorre no Rio, a sensação desagradável de estar preso dentro de um cartão-postal. Já tinha sentido algo do tipo antes, mas isso me levou a uma conclusão sobre Deus é Brasileiro: me dei conta do quanto cartões-postais fazem parte do atual cinema de Carlos Diegues. É o cineasta das vistas brasilis. Mesmo com cartões-postais em mente, o filme parecia exigir algum carinho desse espectador, provavelmente pelo fato de a narrativa (é um “road movie”) percorrer uma rota amorosa dentro do próprio Brasil. Como em Central do Brasil, essa rota amorosa poderá ser interpretada como “a culpa do sulista abastado”, vendo o Brasil com os olhos românticos de um turista gente boa. Há a impressão de que existe no filme uma obra carinhosa brigando internamente com outras francamente toscas. Há uma paixão clara e evidente pelo país, como geralmente ocorre em filmes de Diegues (Bye Bye Brasil seria o melhor exemplo). De alguma forma, é como se essa paixão careça de uma melhor utilização da sua energia. O problema é que o diretor parece estar se apegando cada vez mais ao Brasil que existe nos cartões-postais.
Seus dois filmes anteriores, Tieta do Agreste (1996) e Orfeu (1999), talvez sejam as maiores evidências disso. Juntandoos a Deus é Brasileiro, temos uma trilogia capaz de fornecer praias, dunas, montanhas e tomadas aéreas ensolaradas suficientes para quatro aberturas do Fantástico. Ao construir o Brasil a partir desses cartõespostais, Diegues tenta preencher os espaços que sobram com a nossa realidade já maquiada. O resultado é um híbrido de comercial da Embratur com minissérie telenovelesca. Sinto falta do país que corre na veia. Deus é Brasileiro chega também numa fase notável do cinema nacional que tem mostrado de perto, e objetivamente, a configuração social do Brasil (O Invasor, Ônibus 174, Cidade de Deus, Madame Satã). Esses filmes nos apresentam um Brasil que, ao que tudo indica, é feio e não tem Deus, nem cartões-postais. São filmes de realizadores jovens (Beto Brant, José Padilha, Fernando Meireles, Karim Ainouz), cujas estéticas não dão voltas ao redor do quarteirão, mas chegam batendo forte na porta, querendo entrar.
FILMES 69 » O filme de Diegues não tem essa urgência ou energia, é de uma outra escola. Talvez exista aí um choque de gerações, com Diegues tentando projetar imagens “bonitas” do país enquanto realizadores mais jovens optam pelo feio real. Há inegável choque se compararmos o toque de Diegues em Deus é Brasileiro com os buracos infernais de São Paulo filmados por Brant, as favelas violentas de Ônibus 174 e Cidade de Deus, ou a Lapa noturna de Madame Satã. Alguns poderão defender Diegues no campo da visão lúdica, poética, mas vale lembrar que Deus é Brasileiro nos filtra, em locações reais, um Brasil que existe de verdade. Segundo o material de imprensa, “a produção viajou 18 mil quilômetros” para (essa é a minha opi-
nião) filmar um Brasil que não existe, ou existe para abastecer as necessidades de uma comédia de costumes. Nesse cinema de Diegues, observam-se cada vez mais detalhes matematicamente posicionados em cena por assessores visuais e patrocinadores (uma camisa da mecenas distribuidora BR ao léu, num varal, um lanche improvável de Deus e seus amigos numa loja de conveniência BR Mania, planos gerais chapa-branca que parecem trazer no bojo da imagem a informação
Paloma Duarte é Madá – versão morena da pecadora bíblica
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FILMES
Cenas no caminhão: lembrando Bye-Bye Brasil
“apoio Governo do Tocantins”). Forma-se uma paisagem falsa na imagem verdadeira. Isso me lembra fato dos mais interessantes. Em janeiro, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva visitou o bairro de Brasília Teimosa, Recife. A prefeitura trabalhou para deixar a comunidade mais limpa e arrumada nos dias que antecederam a visita, algo irônico uma vez que a idéia era ver de perto as condições de vida numa autêntica comunidade pobre do Brasil de 2003. Houve congestionamento nas ruas estreitas e marcou-se a abertura do governo Lula com evento midiático relacionado à pobreza que existe no país, muito embora a pobreza aqui estivesse maquiada. O fato curioso é que, em Deus é Brasileiro, também há uma visita à mesma Brasília Teimosa, numa seqüência que sinaliza a segunda aparição do Recife na recente produção nacional, em cores vivas e CinemaScope (a primeira participação da cidade foi em Amarelo Manga, de Cláudio Assis). Isso é notável, numa cidade pobre de sua própria imagem. Depois de Lula, a comunidade recifense recebe Deus, no corpo de um Antônio Fagundes trajando discreto guarda-roupa de fazendeiro barba-branca, calça tergal de azul celestial, camisa branca de tecido com botões, suspensórios e bengala-guarda-chuva. A imagem de Fagundes lembra um arremedo de Francisco Brennand sob a luz do Pina. O Deus de Fagundes, embora nobre e altivo, não demonstra ter a sensibilidade de um artista. Esse Deus é composto pelo roteiro (adaptado de um conto de João Ubaldo Ribeiro por Diegues, João
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Como em Central do Brasil, a rota amorosa do filme poderá ser interpretada como “a culpa do sulista abastado”, vendo o Brasil com os olhos românticos de um turista gente boa
Deus é Brasileiro traz algo de carinho. É provável que o filme só funcione no Brasil. Sua identidade cultural, seus defeitos e excessos só podem ser compreendidos por brasileiros
Emanuel Carneiro e Renata de Almeida Magalhães) como um burguês brasileiro, misto de coronel com intelectual e algo de empresário. Como o satanás na letra de Simpathy For The Devil, dos Rolling Stones, o Deus de Fagundes fala das coisas que já fez, como dançar valsa em Viena ou recapitular engodos importantes da sua história, como a ressurreição de Lázaro (“era catalepsia...”). É passivo em momentos de testemunhar a dor alheia, orgulhoso da sua criação (homem, espaço, planeta), cansado (do ser humano), estressado. Não está à procura de uma geografia da fome, mas viaja pelo Nordeste e Tocantins para achar um substituto que possa assumir as suas funções divinas enquanto tira férias “nas estrelas”. Vem ao Brasil, país religioso que nunca teve um santo, para tentar encontrar esse substituto temporário. Passa a ser acompanhado por Taoca (Wagner Moura), um verdadeiro Chicó de Suassuna, herdeiro também de Didi Mocó, de Renato Aragão. É a representação típica e já cansada do homem “nórdéshhtinu”, sem cultura mas feliz, analfabeto inteligente, matraca pitoresca. Taoca é pescador e borracheiro com expressão corporal de saltimbanco trapa-
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Cordel do Fogo Encantado, talento filmado com pressa
lhão. Ganha o pão furando pneus na estrada de Maragogi, Alagoas, para poder oferecer conserto. Taoca vira guia e alívio cômico, juntando-se mais tarde a Madá (Paloma Duarte), desgarrada de uma família hipócrita no sertão pernambucano. Deus é Brasileiro assume sua função inevitável de road-movie social, interpretação talvez obrigatória e generosa para o filme. Para mim, no entanto, Diegues leva seu filme em direção à ficção científica com uma insistência quase juvenil na dessaturação digital da imagem, numa experiência visual que não parece ter dado certo. A imagem CinemaScope ambiciosa do filme tremula com ruído digital no meio da caatinga, algo que me deixou curioso para saber qual teria sido a intenção de enfear tanto o quadro. Seria apenas uma séria precariedade técnica ou o desejo de deixar um filme caro e de tela larga com a aparência de um vídeo gigantesco? Mesmo assim, e me pergunto o porquê disso, Deus é Brasileiro traz algo de carinho. É provável que o filme só funcione no Brasil, aspecto que não deve contar como defeito. Sua identidade cultural, seus defeitos e excessos só podem ser compreendidos por brasileiros. Talvez haja alguma coisa aqui que me lembra José Wilker celebrando a neve que faz de um país “nação de primeiro mundo”, grande momento de Bye Bye Brasil (1980). A cena em questão aqui pode ser a de uma apresentadora estilo Xuxa (Suzanna Werner) que distribui presentes numa vila miserável. O momento é de uma ironia inesperada nessa obra. Talvez esse carinho venha na maneira como o povo brasileiro aparece sempre de relance no filme, ou de novos talentos apressadamente filmados como a banda Cordel do Fogo Encantado, ou a seqüência final que referencia Limite (1931), de Mario Peixoto, realçada pelo melhor efeito visual já utilizado num filme brasileiro.
A cena de uma apresentadora estilo Xuxa (Suzanna Werner) que distribui presentes numa vila miserável é o momento de uma ironia inesperada nessa obra
Elementos como esses talvez expliquem um sentimento de carinho que fica do filme. Pode existir ali uma dessas experiências de interesse no cinema que funcionam mais pela carga de sensações que trazem do que pela seqüência de cenas e situações apresentadas. Seria Deus é Brasileiro um comentário pitoresco sobre um país à deriva, sem um Deus que cuide dele e do seu povo? No filme, a Sua presença pode significar uma fartura para os que são Dele. A grande pergunta é: nós, brasileiros, somos os Dele? Fica a impressão que não, e essa possibilidade é tão mais importante do que o mais lindo cartão-postal.
Fagundes (c), um Deus cansado e estressado Fotos: CinemaZ / Divulgação
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72 CONHECIMENTO Jarbas Maciel
Cérebro, mente e cosmos “A coisa mais incompreensível acerca do universo é que ele é compreensível” (A. Einstein)
A nossa mente está ligada a dois fatos misteriosos do universo – a consciência e o pensamento. Popper, o maior dos especialistas em conhecimento científico do século 20, e Eccles, o grande neurofisiólogo, resumiram magistralmente o debate que há séculos se arrasta em torno desta questão: “A emergência da plena consciência, capaz de refletir sobre as coisas e sobre si mesma – e que parece estar ligada ao funcionamento do cérebro humano – é, de fato, um dos maiores milagres”. Einstein postou-se também perplexo diante desse milagre que é a nossa mente e o nosso cérebro. Estamos aqui, de fato, diante daquela encruzilhada a que se referia Chomsky, onde nossa ignorância diante do poder e da imensidão do cosmos se bifurca entre “mistérios” e “problemas”. A natureza do debate filosófico e científico sobre a relação mente/cérebro é daquelas que podem rapidamente nos enredar em uma verdadeira floresta amazônica de detalhes técnicos que só têm interesse para o especialista. O fato essencial a destacar é que nós estamos cada vez menos longe da superação das dificuldades postas desde o início pelo chamado “dualismo cartesiano”, que dividiu a realidade em dois tipos de “coisa” – res extensa e res Continente . fevereiro, 03
CONHECIMENTO 73 »
Ilustração: Nono Nonono
cogitans, ou seja, matéria e mente (ou espírito). Há cerca de 10 anos, a solução encontrada pela Ciência para esse aparente becosem-saída era a do chamado materialismo emergentista. Segundo esta interpretação, a consciência surge como uma propriedade “emergente” do cérebro humano, sob a pressão seletiva da “linguagem” (Popper/Eccles). Já a resposta da Filosofia, embora convergindo com a da Ciência para uma interpretação emergentista do fenômeno da consciência, possui o atrativo de evitar uma tomada de posição materialista diante da questão. Isto ela o faz admitindo alguma forma de pluralismo ontológico, ou seja, postulando a presença na realidade de uma ordem de fenômenos radicalmente “nova” e “irredutível” à ordem dos fenômenos físico-químicos – a ordem do espírito. Agora, tudo bem que a decifração do enigma da relação cérebro/mente resida nesse modelo emergentista de explicação. Mas, o que vem a ser “emergência”? Ela pode ser resumida assim: nós vivemos em um mundo de sistemas; tudo está ligado a tudo; não há coisas totalmente isoladas (e isso vale para o nosso cérebro e para a nossa mente); como também não há coisas imutáveis (tudo flui, como dizia Heráclito de Éfeso); toda coisa é sistema ou componente de um sistema; o universo, conjunto de todas as coisas, eventos e processos, é um sistema de sistemas, um “cosmos”, como já afirmavam os Antigos; esses sistemas estão em fluxo permanente, quer dizer, transformam-se continuamente; essas transformações, embora incluindo um inevitável fator de acaso, são normológicas, ou seja, são regidas por leis; além disso, esse cosmos é infinitamente variado, vale dizer, as coisas, propriedades, suas relações, processos e transformações existem em número infinito; embora as leis que relacionam essas coisas, propriedades e processos existam também em número infinito, há um certo número de leis que são básicas e, portanto, de grande abrangência; os seres que têm em comum o fato de obedecerem a essas leis básicas agregam-se naturalmente em classes ou gêneros; surpreendentemente, o número desses gêneros é “finito”; a Ciência, bem como a moderna Ontologia (a mais abstrata e poderosa dentre as disciplinas filosóficas) parecem identificar, no estado atual da evolução do universo, apenas “quatro” grandes gêneros de sistemas reais – o físico, o químico, o biológico e o social; parte da maravilhosa variedade do universo é resultante da mudança; nem toda mudança é quantitativa – há, também, senão principalmente, mudança “qualitativa”, quer dizer: há fatos novos no universo; o surgimento da novidade no universo se dá basicamente de dois modos: por mudança na estrutura dos sistemas (por exemplo, as transições isoméricas de uma molécula), ou por acréscimo, ou aumento da composição (ou número de componentes) dos sistemas; ou seja, há não só sistemas complexos, mas também uma tendência ao aumento de complexidade dos sistemas; todos os sistemas complexos, inorgânicos ou orgânicos, se constituem por um processo de aumento de complexidade Continente . fevereiro, 03
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74 CONHECIMENTO
através de estágios – quanto mais complexo um sistema, mais numerosos são os estágios de seu processo de constituição; a complexidade dos sistemas situa-os naturalmente em “níveis” de organização diferentes e hierarquizados, ainda que os seres de um determinado nível sejam compostos de seres do mesmo nível ou de níveis “inferiores” na hierarquia; quer dizer, todo sistema, na ordem da evolução das coisas, tem predecessores nas coisas que lhe são preexistentes; assim, as propriedades de um sistema (chamadas globais) são, em geral, diferentes das propriedades das coisas que entram em sua composição (chamadas locais); essas propriedades globais podem ser de duas espécies: propriedades meramente resultantes, e propriedades “emergentes”; as primeiras não representam fato novo, porque são propriedades “hereditárias”, ou seja, propriedades já possuídas por cada uma das partes do sistema (é o que acontece, por exemplo, com a energia); as propriedades “emergentes”, estas sim, constituem fato novo, porque são propriedades não-hereditárias, no sentido de que “não” são propriedades das coisas que integram a composição do sistema (por exemplo: a estabilidade); finalmente, as propriedades resultantes, em um dado nível de complexidade, podem ser reduzidas a propriedades das coisas em níveis precedentes, mas as propriedades emergentes “não podem ser reduzidas”. É essa “irredutibilidade” que dá força ao pluralismo ontológico sustentado, em geral, pela Filosofia. Pois bem: a biosfera exibe uma estrutura hierárquica, com níveis emergindo desde o da célula viva, passando pelo órgão, pelo organismo, pela população, até alcançar o nível do ecossistema. Os seres vivos são sistemas complexos, compostos por sistemas bioquímicos e possuindo propriedades emergentes em relação ao nível dos quimiossistemas. Assim, cada nível da biosfera possui suas próprias leis, de modo que as pautas normológicas vigentes ao nível das células são emergentes, por exemplo, em relação àquelas das macromoléculas, o mesmo se podendo dizer dos organismos, das populações e do pró-
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prio ecossistema. Portanto, o nível biológico é emergente em relação ao físicoquímico, ou seja, a matéria viva, embora composta de quimiossistemas, representa um fato novo, no sentido de que constitui um todo relativamente autônomo, cujo comportamento não pode mais ser “completamente” explicado em função do comportamento daqueles quimiossistemas. A emergência significa, sempre, que se está diante de um “salto qualitativo” ou, melhor ainda, de uma descontinuidade qualitativa. Nesta perspectiva emergentista, o fenômeno da consciência “emerge” naturalmente do funcionamento do cérebro, não podendo entretanto ser “reduzido”, “tout court”, ao modo-de-ação dos seus órgãos componentes. Em Ontologia, quando duas ordens de fenômenos enlaçam sistemas em que duas formas de realidade tão diferentes como cérebro (algo material) e mente (algo imaterial) emergem uma da outra, lançamos mão do conceito de mediação para fazer brilhar uma luz sobre uma interação que, de outro modo, nos parece sumamente misteriosa, se não impossível. No caso de Descartes (no que foi seguido por Spinoza), o princípio de mediação entre matéria e espírito evocado foi Deus. Já Popper, em nossos dias, coloca o problema da relação mente/cérebro ancorandoo no que ele chamou de “mundo 3” – o mundo da cultura –, atribuindo o papel de elemento mediador à linguagem humana. O homem já não vive em um universo puramente físico, como os animais e os demais seres, mas sim em um universo simbólico. O símbolo, enquanto forma portadora de sentido, está na base mesma da linguagem. O papel de mediador, aqui, está a cargo da informação. É ela que está por trás da organização da matéria e da energia em sistemas cada vez mais complexos e destes em “reinos” emergentes uns em relação aos outros, desde o infinitamente pequeno das partículas e dos campos quânticos, passando pelo homem – e, portanto, pelo cérebro! – até a escala do infinitamente grande das estrelas e das galáxias. Os Antigos mais uma vez estavam certos, quando afirmavam que o
mundo é kósmos; quando negavam o vazio e, principalmente, quando sustentavam uma visão interconexionista da realidade: tudo está ligado, existe uma união profunda entre nós e o universo, o princípio da ordem cósmica – o tao dos chineses – é o mesmo que se manifesta no logos dos gregos e, portanto, em nossa consciência. Filósofos e cientistas como J. R. Searle, S. Pinker e M. Bunge, trabalhando em alguns dos mais importantes centros de investigação do mundo, estão levando adiante as pesquisas em torno do papel da informação como o processo central da
CONHECIMENTO 75 Ilustração: Nono Nonono
mediação entre cérebro e mente, de que emerge a consciência. Esta é, talvez, a mais espetacular ruptura causada pela Revolução da Informação de nossos dias em nossos velhos modos de pensar. Embora seja verdade que a comunidade científica, no estado em que se encontram as coisas atualmente, não tenha nenhuma motivação suficientemente forte para aceitar a emergência de uma esfera da realidade a que possamos chamar propriamente de espírito, vale lembrar que a Ciência – queremos dizer, a Grande Ciência, a ciência dos einsteins, dos plancks – não foi feita para negar a existência das
coisas, estreitando preconceituosamente os horizontes de possibilidade do Ser, que são necessariamente infinitos. Por uma questão de método, ela deve manter uma sadia atitude de dúvida cética diante de seus problemas – inclusive do poder da razão de penetrar na essência das coisas. Em conferência memorável, Max Planck afirmou: “Vejo a tarefa primordial da ciência hoje como uma luta incessante em direção a um objetivo que ela já sabe que nunca será plenamente alcançado, porque, por sua própria natureza, esse objetivo é inalcançável. Ele tem um caráter eminentemente metafísico e, como tal,
estará sempre além de nosso alcance”. Pascal, nos seus Pensées, exorta-nos a uma atitude de cautela: “É uma doença natural do homem acreditar que possui a verdade diretamente e disso decorre que está sempre disposto a negar tudo o que lhe é incompreensível (os itálicos são nossos). O supremo passo da razão está em reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam”.
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76 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
A rainha sem coroa O aniversário de dona Santa era celebrado no Ponto de Parada, com o devido fausto
Dona Madalena foi quem me contou a história. No tempo em que eu tomei por obrigação conhecer e registrar os brinquedos populares do Recife, armado de um pequeno gravador e de uma máquina fotográfica. O meu parceiro Bergson Queiroz preparou uma lista de vinte perguntas, que fazíamos aos entrevistados. Quando um dono de caboclinho, la ursa ou maracatu falava demais, era um prejuízo. Nosso dinheiro curto só permitia a compra de poucas fitas e cada entrevistado não podia falar mais de uma hora. Com uma disciplina de monges budistas, todas as noites subíamos morros e descíamos ladeiras atrás dos brinquedos que se apresentavam no Carnaval. Nesse tempo, não fazia medo se meter pelo Córrego do Jenipapo ou pela Linha do Tiro. Nas andanças, que duraram alguns anos, eu tive a certeza dos vários Recifes que formam a nossa cidade. Descobri etnias, estratos de culturas, religiões e trabalhos. Constatei que os artistas populares guardam um saber arcaico na forma de narrativas, danças, gestos, cantos, risos e falas. Nada teorizam sobre essa memória, importando-se apenas em repeti-la e ensiná-la. Quando a história aconteceu, dona Madalena era rainha do Indiano, e dona Santa reinava absoluta no carnaval do Recife, como última rainha coroada, segundo a tradição dos reis de Congo. Os colonizadores brancos criaram esse ritual no século 17 e o objetivo é bem fácil de adivinhar. Desejavam manter os escravos agregados em torno das “majestades” e de uma corte eleita por dois anos, em tudo semelhante às cortes européias. Com isso evitavam a insubordinação e as fugas. Os reis e rainhas dos negros eram coroados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, por um padre ou bispo católico, na presença de autoridades políticas. Após a solenidade, desfilavam pelas ruas da cidade, seguidos de cortejo e batuque. Essa é a origem mais provável do maracatu, que terminou achando lugar no Carnaval, como tudo nesta terra. O reinado de Santa começou no Leão Coroado. Dizem que ela assumiu o Elefante para substituir a mãe, que morrera, ou porque se casou com o dono do Maracatu. Ninguém sabe ao certo. O que todos afirmam é a sua imponente majestade. Madalena, antes de ser rainha do seu próprio maracatu, dançara na corte de Santa. Espalharam que as duas não se gostavam, o que não sei se é verdade. Além das disputas entre maracatus, que às vezes terminavam em pancadarias e mortes, Madalena nutria um despeito contra Santa, porque não fora coroada oficialmente. A Igreja, que sempre estivera a serviço do poder instituído, recusava-se a fazer novas coroações. Santa era, portanto, a única rainha de direito. Só ela, além de padres e bispos, poderia coroar uma sucessora. Costumavam celebrar o aniversário de dona Santa, na sua residência no Ponto de Parada, com o fausto devido a uma rainha. No ano em que a história se passa, convidaram caboclinhos, blocos, troças, alguns maracatus, mas não chamaram o Indiano, nem Madalena. As duas mulheres, poderosas no meio do seu povo humilde, eram também ialorixás, mães de santo, com uma legião de filhos e mães pequenas. Santa, pelo costume de trajar sempre a cor branca, seria filha de Orixalá e naturalmente calma. Mas não tenho certeza. Madalena era filha de Ogum, orixá dos ferros e da guerra, recebia uma corrente forte, de determinação e luta. Juntou o povo da sua corte e comunicou que todos iriam à festa de Santa e do Elefante, mesmo não tendo sido convidados. Houve protestos, temores, gritos. Consultaram Ifá, o oráculo. Ele mandou que fossem.
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ENTREMEZ 77 Foto: Eduardo Queiroga / Lumiar
Rei e rainha de maracatu de baque virado
Na manhã da celebração, Madalena e os seus desceram o Alto do Pascoal, vestidos a caráter: estandarte na frente, damas de paço, damas de calunga, corte, rei e rainha resguardados do sol pela umbela. Quando avistaram a casa terreiro de Santa, tocaram nagô. Silêncio. Madalena enviou um emissário e aguardou resposta. Os minutos duravam horas. O emissário retornou acompanhado de um pajem com o estandarte do Elefante. O vassalo curvou-se diante do estandarte do Indiano, cruzando as duas bandeiras no alto, em sinal de cumprimento e boas vindas. O cortejo foi recebido e Dona Santa, sentada num trono, pediu que Madalena ficasse à sua direita durante toda a festa. – Madalena – perguntou lá pelas tantas –, você sabe como é que se coroa uma rainha? – Não sei não, senhora – respondeu a majestade do Indiano. – É na Igreja do Rosário dos Pretos – disse Santa e fechou-se em silêncio. – Venha me visitar uma tarde dessas, que eu lhe ensino tudo. Vou coroar você rainha. O resto não se escutou. Os batuques de todos os maracatus presentes decidiram tocar juntos. As vozes ficaram abafadas como a verdade desses povos negros que teimam em resistir. Apesar de todos os inventos dos empresários de cultura, que a cada ano lançam na rua os seus maracatus caça-níqueis, sem linhagem de santo, sem vínculo de nação. Simulacros grotescos, cortejos mortuários de nagôs, jejes e xambás. Estilizações, arremedos exaustos de gestos milenares. Alheios a qualquer tradição. Indiferentes ao elevado sentido de etnia que movia Santa, no seu desejo de coroar uma sucessora. Coisa que não fez. A morte a levou poucos dias depois da promessa.
Continente . fevereiro, 03
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80 TRADIÇÕES Raul Lody
O velho é um cafetão brincalhão, germinalmente pornográfico
Para divertir o Deus-m menino A energia telúrica do Pastoril de Ponta de Rua
Foto: Roberta Guimarães / Imago
“Formosas, bem-feitas, morenas ou retintas quais legítimas embaixadoras da Pérsia ou de Sabá, de saias vistosas e camisa de renda, com relicários e grossos cordões de ouro em voltas, encobrindo-lhes o pescoço, de pulseiras de corais, e de pencas de chaves, entremeadas de figas, verônicas, e dentes de marfim, lá estalavam elas o salto das chinelinhas nas pedras das calçadas...” Do século 16, provavelmente dos autos gilvicentinos, em Portugal, o teatro sacro católico, louvando o nascimento do Menino Salvador diante dos presépios, no interior das igrejas, ganhou mundo, ganhou este mundão de meu Deus. Chegou ao Brasil, ficou brasileiro em temas, em jeitos de ser, traduzindo tropicalmente personagens do inverno europeu para o verão nacional, tempo de frutas carnudas e doces – manga, caju, graviola, jambo, abacaxi, banana. Tempo das praias cheias. Tempo das misturas de festas de Natal, Ano-Novo e preparativos para o Carnaval.
“Ai, Painho Calor na bacurinha Calor não é na sua Calor só é na minha.” Continente . dezembro, 02
TRADIÇÕES 81 Pastoril de Ponta de Rua é feito por adultos e para adultos rirem entre um e outro gole da branquinha ou da lourinha suada. O público, quase sempre um ajuntamento de homens que co-participa das cenas, dá maior aproximação e intimidade com as meninas. É discutível o uso dos rótulos pastoril profano e pastoril religioso, o primeiro sensual e o segundo sagrado, contudo ambos são manifestações para divertir e louvar o Deus-Menino.
Foto: Leo Caldas / Titular
“As moças são maravilhosas, Lindas e formosas, Frescas como a aurora.”
Foto: Roberta Guimarães / Imago
O velho do Pastoril é o mestre de cerimônia, o animador, geralmente o dono, que comanda o teatro na rua, na esquina, no chão ou sobre tablado. Na praça movimentada ou em calçada perto de pega-bebo, botequim. O Pastoril é organizado em dois cordões, o encarnado e o azul, que são mediados por um personagem híbrido, a Diana pastora, ostentando as duas cores. Muita gente acha que essas meninas são quengas, mulheresdamas, mas “não é não”, como os velhos explicam. São moças de predicados para divertir a mundiça, o povo, povão-gente que corta cana, trabalha no cais, que se subemprega, integra essa crescente população dos excluídos neste país das crises. Entre os muitos momentos do teatro, o culminante é o do leilão. Leilão das pastoras. Aí o velho começa: “Quem dá mais pela coxa, quem dá? Quem paga mais pelo beijo, pelo cheiro da menina? Quanto vale o peito direito? E o esquerdo?” O velho com cara pintada, como a de um palhaço, exibe máscara que estabelece os limites da pessoa e do personagem. É cômico por excelência, contudo explora o drama, tocando
Tem gente que pensa que as meninas são quengas. Não, são moças de predicados para divertir a mundiça
as emoções, fazendo com que se estabeleçam trocas permanentes entre o elenco e a platéia. O velho é um cafetão brincalhão, germinalmente pornográfico. O Pastoril de Ponta de Rua ganha energia telúrica em teatro tropical nordestino, anualmente esperado, trazendo repetições de textos, de música, de dança, e também renovando nas emoções: os aplausos e os vivas para os cordões azul e encarnado. Assim persiste o Pastoril, identificado com a festa e com o brilho das noites quentes e de brisa mansa dos rios Capibaribe, Beberibe e do mar do Recife.
O Pastoril é organizado em dois cordões, o encarnado e o azul
Continente . dezembro, 02
82 MEMÓRIA Régis Lopes
Olhares convergentes A correlação entre as visões de Frei Tito e Patativa do Assaré, que não se conformavam com o visto e faziam de suas vidas um misto de anúncio e denúncia
Foto: Osmar Onofre/Museu do Ceará
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Foto: Reprodução / Museu do Ceará
MEMÓRIA 83 Os óculos de Frei Tito: para além da função utilitária
Há 28 anos. 10 de agosto de 1974. Um morador dos arredores de Lyon encontrou o corpo do dominicano Tito de Alencar, suspenso por uma corda. A imagem – que em princípio seria suicídio – tornou-se enigma. Dialética sem síntese, na peleja da pergunta evidente e indizível. Estava à sombra de um álamo, acima do chão e abaixo do Céu, como aqueles que repousam na terceira margem do rio, para todo sempre. Na cruz do cemitério, ficou escrito: “Frei da Província do Brasil. Encarcerado, torturado, banido, atormentado... até a morte, por ter proclamado o Evangelho, lutando pela libertação de seus irmãos. Tito descansa nessa terra estrangeira. “Digo-vos que, se seus discípulos se calarem, até as pedras clamarão. (Lucas, 19:40)” A notícia correu o mundo: era mais um absurdo da ditadura instalada no Brasil. Como muitos outros da sua geração, Tito havia sonhado e lutado por um país mais fraterno. Fazia política através da religião e religião através da política. A repressão foi além da crueldade. Durante as sessões de tortura, no início de 1970, Tito ouviu: “Se não falar será quebrado por dentro. Pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de uma valentia”. À sombra do álamo, frei Tito transformou sua carne em memória libertária. A história ergueu-se como desafio para os vivos. Tratava-se da encenação radical de um drama coletivo, que fora sintetizado e ao mesmo tempo despedaçado. Escândalo que fez tremer a própria noção de humanidade. Abalo sísmico que afetou a porosidade da pele – essa instável fronteira entre os nós e o mundo. Os poetas gritaram: “... Onde estavam o guardião, o ecônomo, o porteiro, / a fraternidade onde estava quando saíste, / ó desgraçado moço da minha pátria / ao encontro desta árvore?...” (Adélia Prado). O tempo passou, e a história de frei Tito assumiu a condição de grande símbolo da luta pelos direitos humanos. No centro do Memorial Frei Tito (Museu do Ceará) estão expostos seus óculos. O tema sugerido é a visão: como frei Tito enxergava a sua própria história no meio de muitas outras. Imagino a posição privilegiada das lentes: entre ele e o mundo. Afinal, quem era esse homem corajoso e fraterno? Como é que ele via o mundo e a sua própria vida? Que forma de (re)ver o existente foi capaz de fazer o que ele fez? Além de tudo, ou antes de tudo, os óculos trazem uma drama inominável: foram testemunhas da fronteira crucial, quando o nó apertou e a carne se fez verbo.
Na maneira pela qual os objetos foram expostos no Memorial, há propostas para o ato de interpretar a complexidade do passado. Emergem poéticas da memória. Ao redor dos óculos que faziam parte de seu rosto, repousam outros objetos: o rosário que é presença e veículo da oração, livros que alimentaram leituras diante do mundo e o desejo de transformá-lo, certidão de nascimento, título de eleitor, carteira de trabalho, fotografias, cartas, a Bíblia grifada... Pedaços da luta individual e coletiva, território entre o passado e o futuro – esse lugar de interseção temporal onde optamos e fazemos a história nossa de cada dia. Uma história puxa outra e, enquanto escrevo, lembro que, também no Museu, no andar de cima, estão os óculos de outro cearense: Patativa do Assaré. Fico pensando que, por vias distintas, frei Tito e Patativa enxergavam de modo semelhante: tinham olhos de desejo. Não se conformavam com o visto e faziam de suas vidas um misto de anúncio e denúncia. Quando Patativa fala do olho perdido, pode-se imaginar, na referência teológica, a voz de frei Tito: “Nasci dentro da pobreza / e sinto prazer com isto, / por ver que fui com certeza / colega de Jesus Cristo. / Perdi meu olho direito / ficando mesmo imperfeito / sem ver os belos clarões. / Mas logo me conformei / por saber que assim fiquei / parecido com Camões”. (Depoimento gravado por Gilmar de Carvalho) Cada par de óculos, um claro e outro escuro, tinha sua utilidade específica. Para frei Tito, que também fazia poemas, as lentes ajustavam o foco, e no rosto do Patativa a função era amenizar a claridade e esconder a mutilação do sarampo. Criaturas e criadoras da vontade de ver, as lentes inventam na fisionomia um outro formato. E isso é tão forte que até fica difícil lembrar as feições de frei Tito e Patativa sem a presença dos óculos. Com o uso corriqueiro, tais objetos transcendem o papel utilitário mais imediato e assumem a condição de ícones, imaFoto: Fernando Silva gens que alimentam relações de pertença, identificação e memória compartilhada. É por isso que o poeta Affonso Romano falou: “Não deveriam / deixar pelo mundo / espalhados / os objetos órfãos do morto, / pois eles são, na verdade, fragmentos / de um corpo.”
Patativa escondia uma mutilação sob as lentes escuras Continente . fevereiro, 03
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84 DIÁRIO
DE UMA VÍBORA
Joel Silveira
A MINHA CARAVANA DA FOME Que espécie de dinheiro pode guardar a agência bancária na praça daquela cidadezinha? Arte sobre foto de Alceu Ferreira/DP
Pergunto onde fica a escola. Apontam-me uma casinha de fachada escalavrada, no fim da rua. E de longe já escuto o zumbido da colméia infantil. Na salinha angustiada, de chão de terra batida, algumas dezenas de meninos e meninas cantam a tabuada, em ritmo de ladainha, guiados pela régua da professora miúda e de óculos. E os hospitais - ou melhor, o hospital ? Bem, aqui não existe hospital. E os doentes que necessitam de atendimento urgente e mais sério ? São mandados para a cidade maior, mais de cem quilômetros ao sul - mas isto somente no caso de o paciente ter recursos. Se não tem (e a grande maioria não tem), entrega a alma a Deus, sem queixume, sem revolta, pois, como me disse o padre local, de batina surrada, “aqui são todos muito devotos”. Do boteco, onde, com a ajuda de um café requentado e ralo, mastigo a broa de consistência de pedra, fico a olhar o imponente edifício (imponente porque se destaca entre as casas e casebres onde foi recentemente erguido) da agência bancária, plantada no melhor ponto da praça principal. Fico a imaginar que espécie de dinheiro pode guardar seu cofre.Tirado de quê ? Tirado de quem ? As moscas zumbem, o ônibus parte aos solavancos, o papagaio grita, o sol impiedoso arranca centelhas da porta metálica do banco. Em volta de nós, a gente local murmura uma conversa ciciante e nos vigia com o canto dos olhos. Será que não devemos ir embora ? Sim, devemos, porque aqui somos intrusos. Esta cidadezinha, aliás, não estava no nosso itinerário. E, pensando bem, ela não existe.
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Foto: Cristiano Mascaro
PATRIMÔNIO 85
Igreja de São Pedro dos Clérigos (1760)
Antologia de um
Uma bela viagem pelos primeiros quinhentos anos da história e da arquitetura do Brasil. Eis o que O Patrimônio Construído (Ed. Capivara, São Paulo, 2002) apresenta em 432 páginas de um livro de arte, que como tal é ferramenta imprescindível ao resgate da cultura de um país. Para o leitor sensível, além das cidades, paisagens e das construções nelas inseridas, há a história e o detalhe que em cada uma recriam um povo cuja formação religiosa, social e política é retratada por suas casas, igrejas e palácios. São cem edificações – principalmente igrejas – que foram selecionadas por um comitê de seis especialistas, entre os quais estão os autores dos textos que compõem o livro. Como se pode imaginar, não foi fácil para os membros do comitê decidir os cem endereços eleitos, uma vez que, pelo critério adotado, a se considerar apenas as construções que o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tombou ao longo do século XX, contaram pelo menos 1.500. Segundo o editor Pedro Corrêa do Lago, exatamente pela seleção restrita aos prédios preservados pelo IPHAN, órgão de nível federal, “infelizmente” não puderam constar
patrimônio
Lançamento de O Patrimônio Construído reúne pela primeira vez em livro "as 100 mais belas edificações do Brasil"
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86 PATRIMÔNIO
Fotos: Cristiano Mascaro
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“edifícios notáveis que só foram até hoje beneficiados por tombamentos estaduais ou municipais”. Por outro lado, no universo das construções selecionáveis, além dos cem escolhidos, “pelo menos vinte outros prédios de grande importância poderiam perfeitamente integrar o livro, e foram estes que os membros do comitê e os autores tiveram mais dificuldade em deixar de fora”, afirma o editor. Em sua apresentação, Corrêa do Lago explica o processo de edição e não se furta a uma crítica honesta ao dizer que “com relação aos séculos XIX e XX, a raridade relativa de prédios representativos da arquitetura eclética deve-se a uma má vontade notória do IPHAN na preservação de tais edifícios, refletida nos pareceres emitidos até a década de 1980”. Como livro de arte e arquitetura, O Patrimônio Construído é um precioso guia para o leitor interessado na memória nacional. Mais que isso, por virtude do projeto editorial realizado, os autores abordam períodos distintos de nossa História, o que dá ao leitor três detalhados estudos introdutórios, cabendo os séculos XVI e XVII a Alexei Bueno; o século XVIII – o mais rico em número de construções – a Augusto da Silva Telles, e os séculos XIX e XX a Lauro Cavalcanti. Dentro desta cronologia, cada construção é ainda acompanhada de uma breve mas minuciosa nota de apresentação assinada por um dos autores, independente daquele a quem cabe o período. De acordo com a importância do edifício, estas notas trazem mais ou menos detalhes históricos, sempre de duração perfeita para o leitor, que não cansa, sendo estimulado pela velocidade e exatidão dos textos a descobrir a próxima página. Mas um livro de arte, também por sua função de resgate iconográfico, não pode prescindir de um tratamento visual que o torne agradável de se ver antes mesmo de ser lido. É este o caso de O Patrimônio Construído, graças ao trabalho do fotógrafo Cristiano Mascaro, considerado “o mais destacado do país na área de arquitetura”. Ao contrário dos textos do livro, que levam três assinaturas, a opção por um único fotógrafo proporciona à edição uma unicidade plástica que ajuda até mesmo a uma “costura” dos textos, servindo-lhes como denominador comum a inspirar o idioma. Para o trabalho de fotografia, que durou 5 meses, Mascaro viajou o Brasil produzindo “vários milhares de registros”, entre os quais foram selecionadas as mais de 500 imagens do livro. O resultado é uma coleção de fotos cujos ângulos e luminosidades dão ao leitor uma proximidade do todo e de detalhes de cada obra que o olho humano, mesmo diante das construções, perderia. Somese a isto a dificuldade – ou impossibilidade, em alguns casos – do visitante comum ter acesso a imóveis tombados ou de acesso restrito, como os palácios de Brasília. Como não poderia deixar de ser, a primeira edificação apresentada é a Igreja de São Cosme e Damião, em Iga-
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Apartir do alto: Casa dos Contos (c. 1750-1790) Ouro Preto/MG – Bairro de Ouro Preto Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (c. 1785) Ouro Preto/MG – Bairro de Ouro Preto Igreja e Convento de São Francisco (1708) Salvador/BA – Praça Anchieta, s/n
Fotos: Cristiano Mascaro
rassu, Pernambuco, datada de 1535. Considerada a mais antiga do Brasil, esta pequena igreja se impõe por sua sobriedade e sua história. O livro encerra apresentando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1953-1968), um marco de nossa arquitetura moderna. Não obstante a abertura se dar com uma igreja de Pernambuco, os estados que oferecem uma maior concentração de edifícios tombados pelo IPHAN são Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, que por suas importâncias política e econômica sempre concentraram a maior parte dos movimentos de colonização e urbanização do país. Desses estados vem a maioria das edificações escolhidas. Para cada uma, outra vez dependendo da importância histórica ou mesmo do estado de preservação do imóvel, são dadas duas, quatro ou até seis páginas, como no caso da Catedral Basílica de Salvador-BA, de 1604, da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Ouro Preto-MG, de 1770, ou do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, construído entre 1937 e 1943. Será difícil para o leitor discordar da seleção de prédios nomeados neste livro. Certamente as ausências serão mais notadas do que alguma inclusão questionável, como é o caso do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra (ou Monumento aos Pracinhas), no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Mesmo assim, tal ou qual preferência sempre dará ao livro o sabor da perfeição, que se há para uns, por um detalhe falta a outros. O que se tem, no fim de mais de quatrocentas páginas de arte e humanidade, é a certeza feliz de que por livros como este ainda vale a pena conhecer, registrar e guardar cada pedra do rico caminho de nossa história. (WBL)
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Escadaria principal do Teatro da Paz Belém/PA
Palácio da Alvorada (1956-1958) Brasília/DF
O Patrimônio Construído – As 100 mais belas edificações do Brasil. Textos de Alexei Bueno, Augusto da Silva Telles e Lauro Cavalcanti. Fotos de Cristiano Mascaro – Capivara Editora. Fone: (11) 3167.0066. contato@capivaraeditora.com.br – 500 p. – R$ 143,00
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pela arte da moradia
Fotos: Reprodução
Jonathan Glancey mostra a arquitetura desde a Mesopotâmia até a globalização
Viagem
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O domínio da luz na grande cúpula de vidro criada por Norman Foster para o Reichstag, em Berlim, em 1999
Portão de Ishtar, na Babilônia, construído entre 605 e 563 A. C
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Numa história da arquitetura mundial, desde os primórdios até nossos dias, uma primeira coisa chama a atenção: o fascínio humano pelo monumental e espetacular. Desde as pirâmides do Egito e os jardins suspensos da Babilônia, até o CN Tower, de Toronto – com 554 metros o prédio mais alto do mundo – e o Museu Guggenheim, de Bilbao, confirma-se este aspecto da arquitetura. Mais que moradia ou funcionalidade, o que se destaca é a manifestação do maravilhoso. Este, mais o exercício – às vezes delirante – da criatividade e a influência do contexto econômico-cultural, são os dados que logo saltam à vista de quem percorre o livro A História da Arquitetura, de Jonathan Glancey. Em formato 21 x 28, todo em cuchê, com capa dura e esplendidamente ilustrado em cores, traça o desenvolvimento das moradias humanas, desde o tempo em que “havia espécies de insetos e pássaros que construíam casas mais refinadas do que as dos nossos antepassados caçadores e coletores”, até a pós-modernidade, apontando, ainda, para as perspectivas do futuro. O livro começa mostrando como a arquitetura é decorrente do nascimento das
cidades, que surgem, por sua vez, quando o homem abandona o nomadismo para se fixar em lugares onde cultiva a agricultura. A arquitetura mais antiga surge no Egito, Israel, Iraque e Irã, composta de lares, santuários, palácios e túmulos. Escavações revelaram casas anteriores a 8 mil anos antes de Cristo, naquelas regiões. Glancey divide seu livro em capítulos que abordam o Egito Antigo, a curiosa arquitetura da África Primitiva, o Mundo Clássico da Grécia e Roma Antigas, com todo seu esplendor, a arquitetura bizantina, o Oriente, o Ocidente e as Américas, desde os maias e astecas. Percorre as escolas como o Gótico, o Renascimento, o Barroco e o Rococó, o Neoclassicismo, a Art Nouveau e a Art Déco, a Bauhaus e a arquitetura moderna. Os palácios, templos, fortificações, arranha-céus, pontes e cidades industriais são amplamente analisados, numa riqueza de informações impressionantes. E a linguagem é sempre clara e acessível. O livro traz, inclusive, um glossário de termos técnicos para ensinar que “tambor” é a parede circular ou poligonal que sustenta
PATRIMÔNIO 89 Fotos: Reprodução
uma cúpula, “dintel” é um tipo de viga de sustentação e “hexastilo” é um pórtico com seis colunas de sustentação, por exemplo. Traz também detalhadas vinhetas históricas contextualizando as tendências arquitetônicas de cada época. Todos os grandes arquitetos são lembrados, em algumas linhas ou capítulos inteiros, dependendo de sua importância. Os pioneiros Marco Vitrúvio Polio, que viveu em Roma no século 1, autor do tratado De architectura; o Abade Suger, parisiense do século 12, que reformou a igreja de sua abadia no primeiro exemplo de estilo gótico; John Wastell, o brilhante mestre-pedreiro da catedral de Canterbury, no século 16, responsável pelas capelas orientais da catedral de Peterborough; Donato Bramante, primeiro grande arquiteto do Alto Renascimento. Os gigantes Andréa Palladio, do século 16, um dos mais influentes arquitetos de todos os tempos; Karl Friedrich Schinkel, o primeiro funcionalista; o pirotécnico Augustus Pugin; o genial Frank Lloyd Wright; o originalíssimo Antoní Gaudí; o refinado Mies van der Rohe; o radical Le Corbusier; e o inspirado arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Entre dezenas de outros profissionais brilhantes não são esquecidos também os gênios do nosso tempo, como o canadense Frank Gehry, o holandês Rem Koolhaas ou o japonês Kisho Kurokawa.
Para o futuro, Glancey prevê que graças aos novos materiais e computadores – que proporcionam ao arquiteto “saltos extraordinários de imaginação visual” – aliados a um grande senso de liberdade, criam-se possibilidades amplas para a arquitetura, mas aponta a necessidade de maior preocupação ecológica e de envolver os moradores nos projetos de edifícios. Também aponta para tendências que se cristalizaram desde os anos 70 do século passado. Como a arquitetura orgânica, do húngaro Imre Makovecz, que construiu salões comunitários em forma de aves de rapina, tendo árvores como colunas; a reutilização de edifícios, como o Tate Modern, de Londres, que foi instalado numa fábrica reformada; e o desconstrutivismo de Frank Gehry, que “quebra a caixa” do edifício em angulações inusitadas. Finalmente, alerta para a necessidade de se pensar as cidades como um todo orgânico, inclusive recuperando áreas industriais desativadas e transformando-as em lugares de lazer e cultura. (MP)
Igreja de Borgund, na Noruega, construída em 1150. Toda em madeira, é decorada com cabeças de dragão entalhadas
A História da Arquitetura, de Jonathan Glancey. Tradução de Luís Carlos Borges e Marcos Marcionilo. Edições Loyola – Fone (11) 6914.1922. www.loyola.com.br 242 p. R$ 59,90
O Domo da Rocha, em Jerusalém, erguido entre 688 e 692, é o mais primitivo monumento do Islã. Ao lado, o desconstrutivismo de Frank Ghery no Vitra Museum, da Alemanha
Interior da igreja de São João Nepomuceno, em Munique, construída entre 1733 e 1746. Demonstração perfeita do ideal barroco
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Azulejaria viva Livro estuda o uso dos azulejos nas fachadas das casas pernambucanas O livro O Azulejo na Arquitetura Civil de Pernambuco – Século XIX analisa mais de 100 padrões de azulejos franceses e portugueses utilizados na arquitetura do Recife, Olinda, Litorais Norte e Sul, Zona da Mata e Região Agreste de Pernambuco, num total de 11 cidades. Iniciada como um trabalho da arquiteta Sylvia Tigre para a municipalidade, a pesquisa evoluiu a partir de uma grata surpresa: apesar da degradação dos imóveis, decorrente do empobrecimento da população dos bairros mais antigos da cidade, aliada à falta de conscientização da importância histórico-cultural dos imóveis, e da ausência de fiscalização, os azulejos estavam todos lá! Sylvia sabia, também, que o engenheiro português António Cruz tinha feito em 1982 um levantamento de fachadas azulejadas do Recife e Olinda e resolveu acoplar os dois trabalhos num livro, levando o projeto para a Caixa Econômica Federal, que aceitou patrociná-lo. O resultado é um belo livro em que, sabiamente, se privilegiam as fotos, com textos curtos e objetivos, mas ricos de informações. Além de explicações técnicas sobre os diversos tipos de azulejos, com suas características formais específicas, a autora faz um resumo histórico do desenvolvimento deste elemento decorativo, sempre em função do Brasil. Explica que azulejo vem do árabe “al zuleyche”, denominando uma placa cerâmica pintada, usada já nas primeiras civilizações do Oriente Médio, provavelmente na Pérsia. Trazida pelos árabes para a Itália e Espanha, chega ao Brasil via Portugal. Já no século 19 foram importados outros tipos, da França, Holanda e Inglaterra. Até hoje, algumas cidades brasileiras – São Luís do Maranhão, Belém do Pará, Recife, Salvador e Rio de Janeiro – ainda conservam casas decoradas com azulejos. Mas, segundo o grande mestre da azulejaria luso-brasileira, o português João Miguel dos Santos Simões, “é em Pernambuco que o azulejo se ‘nacionaliza’ brasileiro”. Sylvia Tigre salienta que foi nos anos 1830/1840 que surgiu no Brasil o hábito de azulejar as fachadas das casas: “além do aspecto decorativo, de embelezar o imóvel, o azulejo tinha ainda a função utilitária de proteger contra a umidade (que trazia mofo e fungos) característica do clima tropical de nosso país”. Antes, os azulejos só eram usados em igrejas e conventos, e quase sempre em ambiente interno. Continente . fevereiro, 03
Acima, azulejo português com influência holandesa, na Rua do Bom Jesus, no Recife. Abaixo, parte superior de fachada com azulejos franceses, na Rua Padre Floriano, também no Recife
Fotos: AFP
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Curiosamente, segundo o próprio João Miguel dos Santos, o Brasil terminou exportando para Portugal a nova tendência: “Seja como for, o certo é que a azulejaria do século XIX no Brasil tem interesse particular e não só para o próprio Brasil como para Portugal! (...) Foi do Brasil – continuação de Portugal – que veio para a metrópole a nova ‘moda’ do azulejo de fachada (...) Curioso fenômeno de inversão de influências! Extraordinário exemplo de comunhão cultural”. Entretanto, conforme Sylvia Tigre constatou, está se fazendo necessário um grande trabalho de conservação da azulejaria recifense. Dos 141 prédios que constam no levantamento de António Cruz, só restam 60, ao contrário de Olinda e das cidades do interior, onde tem predominado o trabalho de restauro e manutenção desse patrimônio que, pelo visto nas fotos selecionadas para ilustrar o livro da arquiteta, têm valor não só histórico e cultural, mas também estético: algumas dessas fachadas são verdadeiras obras de arte. E o livro que Sylvia Tigre organizou é uma excelente documentação disso. (MP)
Fotos: Divulgação
No alto da página, detalhe de frontão e friso na fachada da Câmara Municipal de Olinda. Acima, detalhe da fachada principal de solar no bairro da Madalena, Recife
O Azulejo na Arquitetura Civil de Pernambuco – Século XIX. Pesquisa e texto de Sylvia Tigre de Hollanda Cavalcanti e António de Menezes e Cruz. Fotos de Tuca Reines. Metalivros. Fone (11) 3672.0355. e-mail: www.metalivros.com.br 192 p. R$ 70,00.
Vestíbulo da casa-grande do Engenho Gaipió, em Ipojuca, Litoral Sul de Pernambuco. Caso incomum de revestimento interno com azulejos na arquitetura civil do Estado Continente . fevereiro, 03
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PRETO NO BRANCO
Luiz Alberto Moniz Bandeira
A política exterior dos EUA, vis-à-vis da América Latina, nunca foi, na realidade, consistente com os princípios democráticos norte-americanos, que sempre constituíram um elemento marginal, para efeito de retórica
OS EUA E A CRISE NA VENEZUELA Em 1989, apenas alguns dias após a ascensão de Carlos Andrés Pérez, da Acción Democrática, à presidência da Venezuela, o povo saiu às ruas de Caracas para expressar repúdio ao pacote econômico, um duro plano de ajuste, nos moldes exigidos pelo FMI e que ele pretendeu aplicar. A violenta série de distúrbios e saques culminou com quase 300 mortos e o ambiente de descontentamento recresceu de tal modo que levou o tenentecoronel Hugo Chávez, comandando cerca de 300 homens, a tentar um golpe de Estado, em 3 de fevereiro de 1992. O golpe fracassou, mas Chávez tornou-se tão popular que se elegeu legal e legitimamente presidente da Venezuela, em 1998, à frente do Movimiento V República (MVR), com a promessa de promover “una revolución pacífica y democrática”. Orientado pelo princípio de que o povo integrado como nação constituía poder soberano e podia romper revolucionariamente com o regime jurídico, político ou sócio-econômico que não se adequasse às suas aspirações ou que fosse obstáculo ao seu progresso, ele convocou um referendum para votar nova Constituição, aprovada por 71,21% dos eleitores, mudando as estruturas políticas e jurídicas e o nome do país para República Bolivariana de Venezuela. Essa Constituição rompeu o modelo democrático tradicional, dentro do qual, durante 42 anos, dois partidos – Acción Democrática, de tendência social-democrata, e Copei (democrata-cristão) de centro-direita, repartiram o poder. E Chávez, cujo mandato de presidente da República foi ampliado para 6 anos e confirmado através de novas eleições realizadas em 2000, modificou não apenas as diretrizes econômicas como reorientou a política exterior da Venezuela, estreitando relações
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com Cuba, com a qual firmou um acordo para a venda de 53.000 barris diários de petróleo a preços de mercado, bem como com o Iraque e a Líbia, vistos como inimigos dos EUA. A Venezuela, com a tendência de Chávez para o nacionalismo de esquerda, configurou mais outro obstáculo às negociações para o estabelecimento da Alca, e colocou os EUA, dos quais era um dos principais fornecedores de petróleo, diante do problema de ter de respeitar a vontade popular, mantendo coerência com a política de promoção da democracia, empreendida nos anos 90, e evitar ao mesmo tempo que ela se convertesse na Cuba de pós-Guerra Fria e Hugo Chávez se transformasse em vítima, em um segundo Fidel Castro, dado o sentimento anti-norte-americano existente em toda a América Latina. Apesar de que a Venezuela fosse, juntamente com o Equador, um dos dois únicos países da América do Sul a ter, na segunda metade dos anos 90, saldo positivo na sua balança comercial, devido às exportações de petróleo para os EUA, Chávez não teve condições de conter a crise econômica e social, agravada pela fuga de capitais, bem como pelas enchentes e desabamentos que ocorreram em fins de 1999 e causaram enormes prejuízos, avaliados entre US$ 15 e US$ 20 bilhões. A situação na Venezuela deteriorou-se e em fins de 2001 tornou-se bastante instável, a indicar que um processo de desestabilização do governo estava em curso. E, dada a sobrevalorização da moeda venezuelana – o Bolívar – Hugo Chávez alternativa não teve, senão liberar o câmbio, no início de 2002, abandonando o sistema de bandas, a fim de estancar a sangria nas reservas internacionais, que caíram de US$ 16,1 bilhões de dólares em janeiro de 2001 para US$ 12,2 bilhões, em dezembro, a maior
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A Venezuela, com a tendência de Chávez para o nacionalismo de esquerda, configurou mais outro obstáculo às negociações para o estabelecimento da Alca
queda em uma década, o que reduziu as reservas do Banco Central em 23,7%. Cerca de US$ 700 milhões evadiram-se da Venezuela somente na primeira semana de fevereiro de 2002. A redução das reservas internacionais, acompanhada pela queda dos preços do petróleo, deixou-lhe pouco espaço de manobra. A administração Bush tinha decerto profundas razões para preocupar-se com a América Latina, apesar de que suas atenções estivessem voltadas, sobretudo, para a guerra no Afeganistão e a crise no Oriente Médio, onde o conflito entre Israel e os palestinos recrudescia. Collin Powell, perante o Comitê de Relações Exteriores do Senado norte-americano, observou, no início de fevereiro de 2002, que os EUA estavam a vender mais para a América Latina e o Caribe do que para a União Européia e que seu comércio era maior dentro do Nafta do que com a União Européia e o Japão somados. A Venezuela mereceu, entretanto, especial menção, ao declarar Colin Powell que as ações do presidente Hugo Chávez preocupavam a administração Bush, devido aos seus comentários sobre a campanha contra o terrorismo, bem como ao fato de não tê-la apoiado tanto como poderia haver feito e escolher para visitar alguns dos “lugares mais estranhos” (Iraque e Cuba), qualificados como “estados párias” pelos EUA. Esse pronunciamento provocou diversas reações do Governo Chávez, que acusou Washington de atentar contra a soberania venezuelana. Em abril de 2001, a atmosfera para o golpe de estado conformou-se, quando a Central dos Trabalhadores Venezuelanos (CTV), controlada pelos partidários de Carlos Andrés Pérez, convocou, no dia 6, uma greve geral de 24 horas, por motivos salariais, contando com o respaldo da poderosa organização patronal – Fedecámaras – e outros setores civis. No dia 10, a greve foi tornada por tempo indeterminado e convocou-se uma marcha contra o Palácio Miraflores. E na seqüência dessa demonstração de protesto e atos de violência, em que as tropas da Guarda Nacional intervieram e pelo menos 15 pessoas morreram e cerca de 110 resultaram feridas, por balas que partiram, segundo algumas versões, de agentes provocadores, franco-atiradores colocados em janelas de alguns edifícios de Caracas, o golpe de estado foi perpetrado. De 11 para 12 de abril, após esses acontecimentos, três generais prenderam Chávez, levaram-no para o Forte Tiuna, escoltado pelo antigo ministro da Defesa, José Vicente Rangel, e pelo chefe da segurança do Palácio Miraflores, Manuel Rosendo, e o general Lucas Rincón Romero, chefe do Estado Maior do Exército da Venezuela, anunciou que ele renunciara à presidência da República. Pedro Carmona Estanca, presidente da Fedecámaras, assumiu então o governo da Venezuela, contando com o apoio dos meios de comunicação, TVs, rádios e jornais.
Os EUA, obviamente, encorajaram esse golpe de estado, através da CIA e outras agências, que orquestraram as operações encobertas, tal como fizeram no Brasil, em 1962/1964 e no Chile, em 1971/73 . Desde junho de 2001, pelo menos, o coronel Ronald MacCammon, adido militar dos EUA na Venezuela, e seu assistente, tenente-coronel James Rogers, já estavam a examinar com os militares venezuelanos a possibilidade de derrubar Chávez, segundo Wayne Madsen, o antigo agente do serviço de inteligência da marinha norte-americana, revelou ao jornal inglês The Guardian. E, na medida em que a situação econômica e a segurança da Venezuela deterioraram-se, sobretudo a partir dos fins de 2001, o governo de George W. Bush tratou de aproveitar o crescente caos na Venezuela para unir as forças da oposição e as prover com planejamento e recursos de inteligência de modo a converter a greve dos trabalhadores na indústria de petróleo em movimento para derrubar Chávez da presidência, ainda que isto significasse uma ruptura da legalidade constitucional e do regime democrático. Naquele ano, 2001, os EUA canalizaram centenas de milhares de dólares para os grupos americanos e venezuelanos adversos ao presidente Hugo Chávez, inclusive a CTV, através da National Endowment for Democracy, agência criada pelo Congresso, que quadruplicou as doações, elevando seu orçamento para a Venezuela em mais de US$ 877.000, assim que as condições em Caracas se agravaram. E os agentes da CIA e da DIA atuaram junto aos militares venezuelanos, aos dirigentes da Fedecámaras e aos líderes sindicais, com o objetivo de coordenar a conversão do que seria uma pequena greve em uma demonstração de protesto e indignação contra nomes designados por Chávez para integrar o corpo de diretores da companhia estatal de petróleo (PDVSA), com o claro objetivo de criar uma atmosfera de incerteza na Venezuela, ao paralisar sua mais importante indústria, responsável por cerca de 80% das exportações do país e por quase 15% das importações de petróleo dos EUA, percentual esse maior do que o da Arábia Saudita. Destarte, conforme Alex Volberding e Larry Birns, do Council on Hemispheric Affairs (COHA), se Henry Kissinger estava correto ao insistir em que qualquer ameaça externa aos depósitos de petróleo da Arábia Saudita constituiria um casus belli para os EUA, o mesmo poderia ser argüido com respeito à Venezuela, que era o quinto maior exportador de petróleo do mundo e o terceiro maior fornecedor dos EUA, em cujo mercado sua indústria energética crescentemente se integrava. O respaldo dos EUA ao golpe de estado logo se evidenciou. Charles Shapiro, que em 9 de março assumira o posto de embaixador dos EUA em Caracas, visitou imediatamente Pedro Carmona, o que implicitamente significou o reconhecimento do seu governo,
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O comércio dos EUA é maior dentro do Nafta do que com a União Européia e o Japão somados
enquanto o FMI, anunciava, no mesmo dia 12, que tinha recursos financeiros para a Venezuela, se necessário, procedimento diverso que adotara com respeito à Argentina. E o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, disse à imprensa que os detalhes não eram muito claros, porém culpava Chávez pela crise ao tentar suprimir uma demonstração pacífica. Ari Fleischer, no entanto, teve de reconhecer que altos funcionários do Governo Bush se encontraram com vários personagens da oposição a Chávez, mas, justificando tais conversações como “normais”, afirmou que eles não estimularam a intentona. Uma fonte do Pentágono também confirmou que até o próprio chefe do Estado-Maior do Exército da Venezuela, general Lucas Romero Rincón, que se recusou a enviar tanques para proteger o Palácio Miraflores e anunciou a renúncia de Chávez, tivera, em 18 de dezembro, uma reunião com o adjunto do secretário de Defesa Assistente, Roger Pardo-Maurer, e ouviu que os EUA “inequivocamente” não aceitariam “golpes ou ações inconstituconais”. Mas, por isto mesmo, recomendaram decerto a montagem da farsa, a encenação conforme um script similar ao que o ex-secretário de Estado na administração de Lyndon B. Johnson (1963-69) Dean Rusk produzira para disfarçar o golpe de estado no Brasil, em 1964, ao enfatizar a necessidade de que o movimento contra o então presidente João Goulart tivesse aparência de legitimidade, de modo que os EUA pudessem fornecer a ajuda militar aos sediciosos. Funcionários da Administração Bush comunicaram ao Congresso que Chávez renunciara à presidência da Venezuela e, ao invés de condenar a ruptura da ordem constitucional, saudaram o acontecimento como vitória da democracia. Continente . fevereiro, 03
Os EUA estavam preparados para reconhecer o governo de Pedro Carmona. E a fim de facilitar essa iniciativa, dado que a Carta Democrática Interamericana condenava qualquer ruptura da legalidade, Phillip Chicola, funcionário do Departamento de Estado, pediu, no dia 12, que a transição conservasse as formas constitucionais, ou seja, que a Assembléia Nacional e a Corte Suprema aprovassem a renúncia de Chávez e novas eleições, com observadores da OEA, fossem convocadas para dentro de um prazo razoável. Não obstante, os setores mais conservadores e radicais do Opus Dei, representados pelo o contra-almirante Carlos Molina Tamayo e o multimilionário Isaac Peréz Recau, induziram Pedro Carmona a firmar um decreto, com que ele se reservou a faculdade de destituir governadores e prefeitos eleitos, derrogou a Constituição aprovada em referendum, em dezembro de 2000, e dissolveu a Assembléia Nacional, prometendo convocar eleições “livres e democráticas”, no prazo de um ano. Ao mesmo tempo, ele anulou as leis econômicas e sociais aprovadas legalmente pelo governo de Chávez e imediatamente ordenou a interrupção do fornecimento de petróleo a Cuba. Com esta medida, das primeiras adotadas nas poucas horas em que ocupou a presidência da Venezuela, Pedro Carmona atendeu ao interesse do secretário-assistente de Estado para os Assuntos do Hemisfério, Otto Juan Reich, que, entretanto, no mesmo dia 12 de abril, sexta-feira, telefonou para Pedro Carmona manifestando-lhe, pronta e urgentemente, o interesse da administração Bush em que fosse mantida a “aparência da continuidade democrática”.
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A greve geral e as manifestações de rua, desencadeadas em 2 de dezembro de 2002, configuraram uma nova modalidade de golpe, com o objetivo de tornar o país ingovernável
Contudo, Pedro Carmona, imaginando que o apoio dos bairros ricos de Caracas e das classes médias altas significava respaldo popular, excedeu-se, encorajado possivelmente pelos elementos mais radicais da oposição e tirou a máscara da legalidade, com que os EUA pretenderam encapar o golpe de estado. Dissolveu a Assembléia Nacional, a Suprema Corte e o Tribunal Eleitoral. E esta sua iniciativa assustou o chefe das Forças Armadas, Efraín Vásquez, que havia apoiado a manifestação popular e ordenara a detenção de Chávez, e ele retirou o apoio dos quartéis, reconhecendo que fora um erro deixar-se levar por uma pessoa que ia conduzir o país a um banho de sangue. A CTV, que não havia sido consultada a respeito de tais medidas, sentiu-se traída. A aliança contra Chávez, entre a CTV e a Fedecámaras, dirigida por Pedro Carmona, assim se esfacelou. E, enquanto as camadas mais pobres da população, favoráveis a Chávez, ocupavam as ruas de Caracas, saqueando as lojas, espraiando-se a agitação pelas cidades de Guarenas, Los Teques, Coro e Maracay, a brigada de pára-quedistas, comandada pelo general Raúl Baudel, bem como outros regimentos se sublevaram contra a presidência de fato de Pedro Carmona, já desafiado por William Lara, líder da Assembléia Nacional da Venezuela, que anunciou, de dentro do palácio Miraflores, que o vice-presidente Diosdado Cabello assumiria até a volta Chávez ao governo. Se não tinha condições internas de sustentar-se, apenas respaldado pelas classes médias e altas, o governo da coalizão empresarial-militar, emanado do golpe de 11/12 de abril, defrontou-se, outrossim, com enormes dificuldades externas para o seu reconhecimento. O Grupo do Rio, que realizava na Costa Rica a 16ª Cimeira presidencial, condenou prontamente a ruptura da ordem constitucional na Venezuela e solicitou ao embaixador César Gavíria, secretário-geral da OEA a convocação urgente do Conselho Permanente,de acordo com o Art. 20 da Carta Democrática Interamericana, aprovada na sessão plenária de 11 de setembro de 2001, incorporando a resolução AG/RES. 1080 (XXI-O/91) . E seus embaixadores na OEA aprovaram uma resolução, em que condenaram “a alteração da ordem constitucional na Venezuela”. Somente em face da atitude de todos os demais estados da região, inclusive México e Canadá, de repudiar a quebra da ordem constitucional na Venezuela, a delegação dos EUA na OEA resignouse a subscrever a moção que condenava ao golpe. Mas só o fez no sábado, 13 de abril, quando as manifestações de massa haviam compelido Carmona a renunciar e Chávez retornou ao poder. Destarte, os EUA, embora tenham avalizado golpe de estado na Venezuela, não tiveram condições de legitimá-lo.
A política exterior dos EUA, vis-à-vis da América Latina, nunca foi, na realidade, consistente com os princípios democráticos norte-americanos, que sempre constituíram um elemento marginal, para efeito de retórica. O respaldo tácito ao golpe de estado na Venezuela demonstrou mais uma vez que Washington somente admitira e respeitara os regimes democráticos nos países da América Latina, enquanto funcionaram em favor dos seus interesses econômicos, políticos e estratégicos. O governo do presidente George W. Bush, tudo indica, não desistiu de derrubar o presidente Hugo Chávez. Condições internas, na Venezuela, havia. O governo de Chávez continuou a enfrentar severa oposição de certos setores sociais, adversos à Lei de Terras, por contrariar os interesses dos latifundiários e especuladores urbanos, e a Lei de Hidrocarburos, mediante a qual a PDVSA não mais poderia absorver 80% de sua receita com as exportações de petróleo, a título de custos operativos, em detrimento das finanças do Estado. E não se podia descartar a hipótese de que a CIA, em dezembro de 2002, estivesse a manipular essas contradições sociais, encorajando a greve geral, que atingia, sobretudo, as atividades da PDVSA, e as manifestações de rua, promovidas pela Coordinadora Democrática, com o apoio da imprensa, a fim de exigir a renúncia de Chávez e eleições antecipadas. Esses acontecimentos caracterizaram vasta manobra para desestabilizar o governo na Venezuela e forçar sua queda, dado que a via do golpe militar, que rompesse a legalidade constitucional, não era muito exeqüível. O general Raúl Baduel, comandante da Quarta Divisão Blindada e Guarnição Militar de Maracay, vizinha do Batalhão de Pára-quedistas, rechaçou várias vezes pedidos para que desse um golpe. Sem dúvida, a greve geral e as manifestações de rua, desencadeadas em 2 de dezembro de 2002, configuraram uma nova modalidade de golpe, com o objetivo de tornar o país ingovernável, a tal ponto que não restasse a Chávez alternativa senão renunciar à presidência. A situação, entretanto, demonstrou as contradições domésticas em que a administração de George W. Bush se debatia, bloqueada pela resolução da OEA, e a enfrentar, de um lado, pressões dos que, como Otto Reich, insistiam na remoção de Chávez, e a temer, de outro, que a crise na Venezuela, responsável por quase 15% do abastecimento de petróleo dos EUA, desbordasse em um conflito armado, no momento em que se preparava para fazer a guerra contra o Iraque.
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Rivaldo Paiva
Apocalypse now? Nunca a humanidade imaginou um novo milênio com tanta desumanidade
O céu nos afaga com seu infinito; o perdão fará despejar o consolo da paz; os mistérios de Mântua serão revelados e Shakespeare gritará muito barulho para nada; o apogeu monárquico, espelhado por Luís XIV, sob o magistério espiritual de Bossuet, será explicado, reforçando a doutrina da soberania que traz o absolutismo (pelo favor excepcional das circunstâncias). Mas o declínio do poder, progressivo e, a princípio, insensível, explode no resgate de todo o feixe de idéias políticas herdadas da Idade Média, mesclado por correntes intelectuais radicalmente distintas, aceitando os ensinamentos de Jean Jacques, revelando-as como correntes irresistíveis da “modernidade”. Briga-se por razões étnicas, religiosas, conceitos extraídos dos hábitos remotos de suas civilizações já perdidas no tempo. Qualquer motivo. Econômico, principalmente, pois como sustentar as indústrias bélicas instaladas no mundo capitalista? Nunca a humanidade imaginou um novo milênio com tanta desumanidade. Creio no conhecimento; na elevação espiritual; na flor que nos encanta; no sorriso de uma criança; na vida extraterrena; na força de um Deus supremo – que nos testa há bilhões de anos luz. Não creio nos imbecis, narcisistas, tampouco nos poderosos sem almas. Penso em Maquiavel. Sendo minha intenção escrever coisas proveitosas para quem as entenda, pareceu-me mais conveniente seguir a verdade efetiva, de fato (verità effectuale), da coisa, do que a sua imaginação. Muitos imaginaram repúblicas e principados que nunca foram vistos nem tidos como verdadeiros. Mas existe uma tão grande distância entre a maneira como se vive e aquela como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz pelo que se deveria fazer, aprende mais a se perder do que a se conservar. Temos uma enorme dívida para com o príncipe de Florença e alguns outros, como Francis Bacon, que descreveram o que os homens fazem, e não o que deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente à inocência da pomba, quando
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não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o seu dardo. Os bolchevistas de Putin e os rebeldes chechenos. Os Bin Ladens e seus talibans amaldiçoados. O Tio Bush, que se julga domador do mundo, recheado de cafunés do “Sir” Tony, o Blair manchestiano e trabalhista, perfumado pela essência dos demais agregados ocidentais da OTAN e os Saddams e Kims coreanos. Os Sharons endemoniados e a milícia intempestiva dos sonsos Arafats. Estas as serpentes que editam as facções em conflitos, por enquanto, apenas encenando o prólogo das revelações de João
Evangelista, teológicas e aterradoras, escritas durante o reinado de Domiciano em Roma, no ocaso do Século 1 – os desígnios da história da Humanidade, até os fins dos tempos, bem próximo e irascível do que desejamos. Que decifremos o Livro do Apokalypsis (último do Novo Testamento, nos caps. 1 e 22), quando o autor, desterrado na ilha grega de Patmos, saudava as sete igrejas da Ásia – e de três visões: do Cordeiro que abre o livro dos sete selos, das sete trombetas e das sete copas (seriam os maiorais do hoje planeta da ONU que “decidirão” a queda da Grande Babilônia, cuja ruína será anunciada por um anjo, e apresentará a vitória do Verbo e a renovação do Universo?). O que nos amedronta é o epílogo, pois Cristo afirmou a verdade apocalíptica bem antes da despedida de João, impressionando vivamente o mundo cristão. Ah, se as rosas falassem!... Se as bombas pensassem, como Rodin? – são teleguiadas por animais. Ah, se o amor não fosse tão forte para sustentar o mínimo de sentimento aos infelizes! – há muito, os inocentes teriam voltado ao pó – de onde nunca deveriam ter saído os idiotas do mando, dos mísseis e da lama. Não há circunstância que justifique a odienta ação do homem contra a paz. Benditos sejamos nós à vontade do Senhor e simplesmente não desistiremos dela.