Continente #028 - Arte perigosa

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EDITORIAL

Fotos: Divulgação

Contradições de um mundo fragmentado Atos ferozes como o atentado terrorista a Nova Iorque ou a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque são amplificações gigantescas das contradições que atormentam o mundo pós-moderno. Contradições que também se manifestam nas esferas do comportamento e da arte. As denúncias de pediatras e padres envolvidos em atos de pedofilia ou o exemplo do bizarro astro pop que acha normal dormir com crianças chocam-se com a constatação de que a sexualidade infanto-juvenil sempre fascinou artistas de todas as épocas e lugares. Do inglês Lewis Carrol fotografando Alices, em poses sensuais, à sedução da Lolita do russo-americano Nabokov, passando pelas ninfetas que obsessivamente habitam os quadros do francês Balthus, até que ponto a contemplação deste abismo está próxima do crime? No extremo oposto, os quadros do pernambucano Romero Britto, que alcançam preços de até 120 mil dólares, e têm como compradores personalidades como o ex-presidente Bill Clinton, são criticados justamente por serem inócuos. Espécie de Paulo Coelho das artes, Britto, apesar do sucesso, é constantemente desqualificado pela crítica. Para um, sua obra não é arte porque não causa inquietação; para outro, seus quadros são apropriados apenas para enfeitar ambientes infantis. Não há como, obviamente, comparar o p op naïf de Britto com a genialidade de Matisse, mas numa discussão como essa, impossível não lembrar a frase do mestre francês em que diz esperar de seus quadros o mesmo efeito que uma velha e confortável poltrona causa num homem que chega de um dia extenuante. O filósofo alemão Adorno, entretanto, há de retrucar que, depois de Auschwitz, escrever um poema é um ato bárbaro. Estamos, pois, num mundo em que a arte não pode mais aspirar à inocência ou à alegria dos homens?

Sue Lyon, em cena do flme Lolita , de Stanley Kubrick, baseado no romance de Vladmir Nabocov

A resposta pode estar no discurso surrealista do cineasta Jean Rouch, que convenceu a rainha da Inglaterra a liberar um filme censurado, contando-lhe uma anedota. O mesmo Jean Rouch que tinha entre seus discípulos gente muito séria, como o talentoso Truffaut e o inquietante Godard. No pórtico de seu vasto livro, Baudelaire chama o leitor de hipócrita e irmão. Não cometeremos tal insulto nem tal excesso de intimidade. Apenas esperamos que nosso leitor entre de mente e coração abertos no debate que a Continente propõe, sobre esses temas tão pertinentes ao nosso fragmentado e inconcluso mundo pós-moderno. Continente . abril, 03


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CONTEÚDO

Foto: Divulgação

Foto: Camilo Soares

» 30 Frans Post em exposição no Instituto Ricardo Brennand

» 60 Fotos de crianças: obscenidade?

» 08 Jean Rouch, um cineasta surrealista

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CONVERSA

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08 O cineasta Jean Rouch e o documentário surrealista »

AUTORES

52 Liêdo, o colecionador da cultura popular »

13 Há 50 anos morria Graciliano Ramos

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D. Rita, a escritora que é um mistério O dicionário de Gilberto Freyre A Carta de Caminha em Oswald de Andrade O espaço da poesia na Internet

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ARTES

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SONS ESPETÁCULOS 45 Companhia teatral comemora 15 anos

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FILMES 46 Festival muda de nome e homenageia mulheres Documentários conquistam espaço As semelhanças em Sokúrov e Godard Continente . abril, 03

PATRIMÔNIO 72 A história do Theatro José de Alencar

FOTOGRAFIA 78 As cores fortes do Reisado de Buíque

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CONTEMPORANEIDADE 84 Romero Britto: um comerciante da arte?

40 Pesquisador diz que samba nasceu no Nordeste »

ESPECIAL 60 Pedofilia: os limites entre Arte e Moral

30 O Recife tem a maior coleção de Frans Post Fragmento e consistência em Aprigio e Frederico »

RITOS

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PRETO NO BRANCO 94 Movimento Mangue reafirma que está vivo


Foto: Reprodução

Foto: Reprodução

» 46 Cine-PE abre espaço para as mulheres Foto: Reprodução

» 84 Sucesso de Romero Britto não encontra eco entre os críticos

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 A convicção conduz aos caminhos desejados

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 28 Torcendo para a loteria dar certo

»

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 38 A pretensão do movimento Fluxus

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 56 Peixada: de Portugal ao Nordeste

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 76 Um erro médico e um susto mortal

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 92 Gilberto Freyre, um anarquista construtivo

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Um planeta em conflitos sem trégua

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Arte Luiz Arrais, Gilvan Felisberto, Iraildo Oliveira e Hernanto Barbosa Ilustrações Zenival Editoração Eletrônica Gilvan Felisberto Edição de Imagens NØlio Chiappetta Revisão Maria Helena P rto Secretária Tereza Veras Colaboradores Adriana Dória Matos, Alberto da Cunha Melo, Alexandre Figueiroa, Anco Márcio Tenório Vieira, Camilo Soares, Cláudia Cordeiro Reis, Evaldo Parreira, Fábio Lucas, Felipe Porciúncula, Fernando Monteiro, Ferreira Gullar, Fred Zeroquatro Montenegro, Joel Silveira, Lourival Holanda, Luiz Carlos Monteiro, Luiz Ernesto Mellet, Maria Lectícia Cavalcanti, Patrice Dunaigre, Raul Córdoba, Renato L, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia Brito, Tatiana Resende, Valdivia Siqueira Beauchamp, Weydson Barros Leal Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Cláudio Manuel, Douglas Rocha, Elizabete Correia, Elizeu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Reda ªo: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Editor: editor@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br W ebmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente . abril, 03

Abril Ano 03 | 2003 Foto: Stock Photos

Importância As manifestações culturais e musicais de Pernambuco constituem um dos maiores acervos da cultura brasileira. Entretanto, lamentavelmente, ainda são pouco conhecidas pelos demais brasileiros. Congratulo efusivamente a equipe pelo teor das matérias da revista Continente — que, em pouco tempo, se constituiu em uma das mais importantes revistas culturais do país —, em especial da edição dedicada ao Carnaval pernambucano (Continente Documento de fevereiro). Seria uma significativa contribuição para que os brasileiros se conscientizassem da importância de nossa cultura se Continente viesse a ter ampla circulação nacional. Paulo Sérgio Maciel Negrão – Gabinete do Ministro da Cultura Diversidade cultural Gostaria de parabenizar a equipe pela qualidade da revista. Leio-a aqui, nos Estados Unidos, através da assinatura de minha mãe, que mora no Recife. Muitos de meus professores em Roanoke College, Virginia, ficaram interessados pelo conteúdo da mesma. Gostaria de saber qual a possibilidade de conseguir autorização de vocês para tradução de algum dos artigos. Mais uma vez, parabéns por promover diversidade cultural e contribuir para uma sociedade mais intelectual. Juliana Luna Freire – Virginia – EUA Fã Morador de Brasília e fã incondicional do pernambucano Ariano Suassuna, somente agora soube da existência da Continente e da edição que entrevistou brilhantemente o genial escritor. Antonio Henrique Vaz Santos – Brasília – DF Perfeição Um prazer não só ler a Continente Multicultural como também vê-la. A revista tem um excelente projeto visual. O que a faz ainda mais atrativa. A edição 27 deixoume muito contente, já que abordou muito bem temas pernambucanos, o que faltou na edição 26. Essa é uma das poucas revistas pernambucanas. Temos que aproveitar exaustivamente esse fato, abordando cada vez mais assuntos pernambucanos. Sem deixar, obviamente, os assuntos universais de lado. O meio termo faz parte da perfeição. Carolina Vanderlei – Recife – PE Felicidades Mais uma vez a Continente me proporcionou felicidades. Essa semana meu professor de História, Márcio, nos deu um presente: indicou para todos a revista como fonte de informação com qualidade e competência. Valeu, Continente!!! Ana Izabel Frazão – por e-mail Abrangência


CARTAS É com imenso prazer que falo, sem medo de engano, que o trabalho de vocês superou as expectativas de qualquer leitor assíduo de literatura e ávido de cultura popular e culta. Deixa-me muito feliz saber que tenho à mão tal veículo de informação, com tamanha abrangência em informes. Não me estranha tantos elogios muitas vezes regados de orgulho nordestino – que recebem os autores e colaboradores da Continente Multicultural. Embora seja praxe esta frase, não esgota o sentimento de orgulho de ser pernambucano: Meus parabéns ! Clodovaldo Gomes de Carvalho Silva – Recife – PE Correções Primeiro: parabéns pela revista, que tem melhorado a cada edição. Segundo: sinto perceber que não existe uma "segunda leitura" ao que está para ser publicado, pois há erros primários na matéria de Capa e seção Filmes. Capa: diz-se no início que Frida sofreu "o acidente" aos 18 anos e depois que foi aos 15 anos, qdo começou a pintar. Quem não souber sua história ficará sem saber em que informação acreditar. Ela sofreu o acidente aos 18, quando começou a pintar. Tenho certeza de que o autor sabe disso. Filmes: Deus é Brasileiro. Madá não nasceu no sertão de Pernambuco, mas em PenedoAL. E Suzanna Werner não estava distribuindo "presentes numa vila miserável", mas arrecadando dinheiro (Deus, disfarçado de Suzanna, precisava de dinheiro para comprar a informação sobre onde estaria o "Santo"). Uma revisão bastaria para perceber essas coisas (a não ser que ninguém além de Kléber Mendonça Filho tenha assistido ao filme). Patrícia Gomes – por e-mail Amador Boa a matéria sobre o nosso Festival, porém desde o ano de 1994 a Federação de Teatro de Pernambuco - Feteape não tem o termo "amador". Sendo hoje a mais antiga entidade de representação da classe teatral no Estado de Pernambuco, mantém em seu quadro de filiados mais de cem grupos da capital e do interior, desenvolve atividades em todas as áreas, sem ostentar o termo "amador" e sem fugir de seu objetivo principal: o movimento federativo nacional. Roberto Carlos – Presidente da Feteape – Recife – PE Site Estive visitando, algumas vezes, o site de vocês e achei a publicação superinteressante. Parabéns e sigam esse ótimo trabalho. Ana Maria Brambilla - Porto Alegre - RS Sucesso Muito boa a matéria Van Gogh – O artista como sofredor exemplar, da edição

de março. Sou fã incondicional deste artista. Parabéns! Gostaria de parabenizálos pela revista, que é sem dúvida nenhuma um das melhores da América. Sucesso, sempre! Ed Primo – por e-mail Cortejos Observei que na revista Continente Documento sobre o Carnaval, na maioria das matérias, utilizam-se imagens de alguns Cortejos (Maracatu e Afoxé) - falo destas manifestações, precisamente, por pertencer a esse mundo extremamente delicado. Das imagens que vi, em nenhum momento, nem como nota de rodapé, vocês escrevem o nome do Cortejo. Exemplo: “Menino batuqueiro em maracatu...” (página 7), se não me falha a memória, a criança em questão pertence ao Maracatu Nação (Nagô) Leão Coroado, importante e antigo Cortejo Negro, que figura em seu estandarte o ano de Fundação – 1863. Em relação ao Afoxé “Candomblé de Rua” – essa “explicação” não cabe mais, diante até mesmo de várias pesquisas que estão sendo feitas sobre o tema. Acredito que esteja ocorrendo lapso, ou confusões nas informações. Não imaginam a confusão que podem desencadear por conta da frase: “No Recife, o Afoxé Ilê de Egbá (do Alto José do Pinho) se destaca, assim como os olindenses Araodé, Alafin Oyó e Oxum Pandá” (p. 18). Por favor: respeitem a hierarquia e os mais novos: Ilê de África, Axé Nagô, Ara Odé, Alafin Oyó, Ylê de Egbá, Oxum Pandá, Oba Ayrá, Filhos de Ogundê, Timbaganjú, Filhas de OxumOpará, Omin Sabá e Filhos de Kêtu. Alãfia! (Paz!) Tatiana Gouveia – Olinda, PE Parabéns Acabei de conhecer o belo trabalho que vocês realizam, parabéns! Luiz Henrique Moura da Rocha Lima – por e-mail Sucesso Olá, pessoal! Parabéns pelo grande sucesso que vem sendo essa revista. Admiro muito saber que isso é fruto da nossa terra, e também admiro os grandes profissionais que compõem essa revista. Sou estudante de Publicidade e Propaganda da Unicap. Renata Maria de Albuqueque Dantas – Recife – PE Orgulho Gostaria de parabenizar a excelente revista. Assim que bati os olhos, fiquei impressionada com a qualidade gráfica, o bom gosto, as cores. Enfim, sou assinante, e com muito orgulho. Ilana Ventura – Recife – PE Indicação Parabéns pela revista. Fiz uma indicação dela no Guia de Poesia.

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Recebam meu abração fraterno Luiz Alberto Machado – por e-mail Poesia popular Gosto muito da Revista Continente, principalmente por ser culturalmente pernambucana. Gostei muito da Continente Documento (A Poesia Popular). A matéria “O universo poético do Nordeste”, por Ésio Rafael e Wilson Freire, mostra que eles têm um grande domínio na área da cultura popular. Flávio Magalhães – Recife – PE Puxada de orelha Às vezes nos tornamos insensíveis a aspectos importantes do nosso quotidiano, fundamentais na formação da nossa identidade cultural, tão bem evidenciados pelo autor do texto Yankees, come home, na revista nº 1. Cabe sentirmo-nos envergonhados pela “puxada de orelha”, especialmente por partir de um norte americano... Excelente matéria, aliás, como quase tudo publicado na Continente Multicultural! Getúlio Bessoni – por e-mail Contribuição Primeiramente, quero parabenizá-los pela excelente e riquíssima contribuição que a Continente tem prestado ao universo cultural, ainda muito pouco valorizado em nosso País. Tive acesso à Revista através de exemplares que recebemos aqui na Câmara dos Deputados, mensalmente, e não pude deixar de expressar meus mais sinceros elogios ao belíssimo trabalho desta editora que prima pela irrepreensível qualidade em todos os sentidos. É uma verdadeira viagem ao mundo da cultura... Atenciosamente, Adriana Rosa Alves – Recife – PE Errata Na edição de Continente Multicultural nº 26 (fevereiro/2003), a legenda da imagem da obra as Bailarinas de Edgar Degas, página 33, saiu datada de 1976-77, quando foi feita em 1876/77. Na página 57, na resenha Uma Vida Inquieta, existem algumas datas grafadas como sendo do século 20, mas, na verdade, todas se referem ao século 19. Continente . abril, 03

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

Reformas: consenso ou convicção No terreno político, o Governo tem que fazer a separação entre democracia e demagogia Foto: Claus Meyer/Tyba

Apesar das vicissitudes em torno dela e de sua importância relativa no mundo real, a verdade é como o sal na ferida, dói, mas não deixa apodrecer. É a perspectiva dessa transparência que vai fazer povo e governo abrirem os olhos e descobrirem que a felicidade geral não será alcançada, mesmo com o êxito das reformas tributária e previdenciária. Nesse aspecto, além das reformas,que aparecem como pré-requisitos para a ação de desenvolvimento com inclusão social, o grande desafio do Governo para atender às expectativas geradas com o seu discurso é um só: compatibilizar o conflito entre acumulação de capital e distribuição de renda. É nesse ponto que muitos pretensos estadistas sucumbem ao tentar compatibilizar a democracia que estimula reivindicações e exige compromissos com a acumulação que pressupõe autoridade para adiá-las e disciplina para investir; e, com a distribuição que requer renda e consumo no presente, sob pena de frustrações, protestos e insatisfações Nesse sentido, acredita-se que a política do consenso - ao estilo do falecido Tancredo Neves – apesar de necessária, não será suficiente para transpor os desafios que o Governo terá de enfrentar. Faz-se necessário muito mais. Faz-se imprescindível unidade de crença pessoal e coletiva. Faz-se essencial a convicção em torno de um ideário. No terreno político, o Governo tem que fazer a separação entre democracia e demagogia. Consoante a tradição, a demagogia pode vencer porque parece mais cômodo prometer soluções e transferir problemas, do que enfrentar a impopularidade de soluções que desgastam uns e prejudicam outros, embora beneficiem a maioria. Exemplo dessa natureza é a reforma política que, nas atuais condições do Congresso se apresenta como utopia. Só aparece como prioridade para aqueles que não têm agenda definida. A propósito de verdades, pelo menos a sociedade deseja a verdade fiscal tributando com fidelidade e coibindo a sonegação; a verdade monetária com juros realistas e correção dos salários dos trabalhadores; e a verdade tarifária impedindo que as empresas privatizadas (de energia, transportes e comunicações, entre outras) se excedam na cobrança de tarifas erroneamente submetidas às flutuações do dólar.

Para tanto, o Estado tem que ser o executor e o fiador de uma política de desenvolvimento com segurança... pública.O Executivo tem que ser forte, o Legislativo mais ágil e mais fiscalizador e o Judiciário mais confiável, menos burocrático e mais transparente. Formalmente, nada mais consensual. Na prática... Parece que o Governo está concentrado em manter a atenção e as expectativas do povo, mas a tendência, a médio prazo, é ver esgarçados esses laços de afeição, pois a realidade certamente superará as boas intenções. As pesquisas de opinião já começam a refletir, com transparência, a inquietação popular e a frustração dos anseios esperados, particularmente, aqueles relacionados ao curto prazo. Apesar dos discursos voluntariosos do Governo, a sociedade deve tentar compreender que o desenvolvimento e a estabilidade econômica não são uma prova de velocidade, mas de resistência. O polêmico Roberto Campos dizia que “nada substitui na visão do estadista a perspectiva histórica. Até porque sem ela a gente se arrisca a cair na perspectiva histérica”. E aí, o consenso foge às possibilidades. Em realidade, é preciso governar sem a ansiedade e a pressa que aniquilam o verso porque o sucesso não é permanente, o poder é limitado e as frustrações acontecem. A história nos ensina que a essencialidade da mudança dos modelos mentais exige uma visão não-estreita das coisas, do tempo e dos homens. Exige do governante a compreensão do tempo tríbio, defendido por Gilberto Freyre. Portanto, nada mais plausível que, quando as nações exigem grandes reformas, é mais eficaz uma política de convicção do que uma política de consenso. O consenso leva ao democratismo das indecisões unânimes. A convicção conduz à construção dos caminhos desejados. Não obstante, ambos exigem experiência e sabedoria, em detrimento de juventude e esperteza.

Carlos Alberto Fernandes, economista, professor da UFRPE, diretor geral da Revista Continente Multicultural.

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CONVERSA

Foto: Camilo Soares

Jean Rouch

Palavras de um mestre louco

Um dos pais do documentário moderno e iniciador da geração da Nouvelle Vague, Rouch é também conhecido como grande criador de polêmica e militante surrealista Camilo Soares

Em 1954, um documentário sobre rituais de possessão da seita dos Haoukas, Nigéria, causou tamanho mal-estar no Festival de Veneza, que muitos do público, inclusive africanos, pediram a destruição do filme já em sua premier. Os Mestres Loucos e seu diretor, Jean Rouch, conheciam seu primeiro escândalo internacional. Pioneiro do cinema etnográfico, explorador, diretor científico do Instituto Francês da África Negra, Rouch construiu uma impressionante produção, em viagens constantes à Nigéria, Senegal, Mali e Gana. Tais documentários apresentam um toque especial, raro

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entre seus colegas: levar em consideração o impacto sobre o espectador. Ele faz parte dos documentaristas que sabem que a realidade filmada não se pode pretender imparcial, ou seja, não pode ser imposta como absoluta. Por isso, reinvidica o direito à subjetividade, na criação daquilo que ele chama cinetranse, estado no qual se encontra quando está atrás de sua câmera. Aos 86 anos, o velho aventureiro não perdeu o jovem espírito surrealista; suas respostas, absurdas num primeiro instante, encontram um diabólico sentido ao final. Artimanhas de um contador de histórias.

Aos 86 anos, o velho aventureiro não perdeu o jovem espírito surrealista


CONVERSA

Qual o aprendizado mais precioso tirado de tantas viagens, sobretudo para a África? Que não se pode parar. Atualmente, estou preparando um filme sobre a Guerra, que filmarei com amigos, introduzindo elementos bem particulares. Por exemplo, no dia em que ia me apresentar no concurso para entrar para a Escola de Pont et Chaussée (engenharia), recebi o convite de (André) Breton (poeta central do surrealismo francês): “ Estou expondo numa galeria nova em Saint Germain de Près, venha me apoiar, já que você é do pedaço”. Hesitei entre o convite e a prova, o que é completamente idiota. O que era o ensino das grandes escolas em comparação a um sujeito como Breton ? Nós lhe dizíamos sacanamente : “Glória àqueles para quem o escândalo existe. O que é o escândalo pra quem não tem emprego? O escândalo é que ele tem que comer”. Ao mesmo tempo, ele nos deu a chave para todas as aventuras que seguiriam.

“Meu filme foi censurado num festival inglês e me disseram que só a rainha poderia mudar aquilo. E lá fui eu. A rainha me recebe gentilmente. Fala francês muito bem, mas pede para eu falar em inglês pois gosta de ouvir meu inglês de subúrbio"

Esse choque entre arte e ciência, engenharia ou Breton, parece ter sido uma constante em sua vida. Quando estava no Museu do Homem, um dia, no ônibus 63, encontramos (Claude) Lévi-Strauss (etnólogo e antropólogo franco-belga). Ele nos diz que vai apresentar um trabalho na École des Hautes Etudes, na Sorbonne, e que estava muito inquieto pois Breton disse que estaria lá. Eu lhe disse : “Mas Breton não é também nenhum monstro”. “Ah, ele é pior que um monstro, ele é temível”. “Olha, a gente vai para sua apresentação, em troca você volta conosco no mesmo ônibus e aceita a nota que lhe daremos por sua aula” Ele era muito inteligente, mas um tanto receoso com estudantes como a gente. Demos então a ele 15 sobre 20 com menção “pode fazer melhor”. Acho que isso foi de enorme valor para ele.

“Aqueles jovens, com quem me encontrava para ir beber uma cerveja depois dos filmes, chamavam-se Godard (foto), Truffaut...”

Falando em encontros, sua audiência com a rainha da Inglaterra é cercada de muito mito. O que realmente aconteceu? Meu filme Os Mestres Loucos foi selecionado por um festival inglês. Chego em Londres e os organizadores, que eram meus amigos, me dizem que meu filme tinha sido recusado pela censura. Eles me dizem que apenas a rainha poderia anular a censura, e só eu, que era um mestre louco, seria capaz de convencê-la. E foi lá que comprei esse blazer. E lá fui eu, bem vestido, com certa coragem e um estranho sorriso no rosto. A rainha me recebe gentilmente. Ela fala francês muito bem, mas pede para eu falar em inglês pois gosta de ouvir meu inglês de subúrbio. Então, com meu inglês de subúrbio expliquei a situação. Ela me diz : “Compreende minha posição, sou a rainha da Inglaterra! Em que o senhor pensou ao vir me ver nessa manhã?” Pensei numa história maravilhosa. É a história de dois encanadores, que se passa em Londres. O mais jovem pergunta ao mais velho o que significa tact (tato, gentileza). O mais velho responde : “Você é chamado para reparar uma banheira, a porta está aberta e tem uma mulher na banheira. O que você diz ?” O mais jovem diz : “Desculpe, senhora”. “Não. Você diz : Desculpe, senhor”. E isto é que é tact. A rainha me disse rindo : “Oh, muito obrigada, é uma história muito divertida. O rei menciona que o senhor é um francês sacana. “Ganhamos, a censura foi retirada.” O senhor encabeçou uma greve no Museu do Homem no ano

Foto: Gerard Julien/AFP

Ele não disse nada, nenhuma resposta? Quando ele entrou na Academia Francesa, pediu dinheiro aos amigos para comprar a espada de acadêmico. Meus amigos e eu tivemos uma idéia maquiavélica de lhe mandar uma fantasia de acadêmico comprada numa loja de brinquedo. Mas não o fizemos. Quando resolvemos contar a ele a brincadeira ele disse : “Vocês deveriam ter feito, pois quando vamos ficando velhos, vocês vão ver, temos a tendência de só nos dar o papel do mocinho”. (Risos) Nós respondemos : “É nosso dever, tentaremos fazer o melhor possível”. Ele disse, então: “Ainda lhes falta muita coragem, visto que não me mandaram o unifome de criança”.


10 CONVERSA

Foto: RV/AFP

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“André Breton nos deu a chave para todas as aventuras: Glória àqueles para quem o escândalo existe”

passado, em protesto pelo esvaziamento do arquivo da casa. Falta sensibilidade política para a importância simbólica dessa instituição? Eu encontrei Chirac (Jacques Chirac, presidente da França) duas ou três vezes. Ele mora ao lado da minha casa, o pai Chirac. Outro dia, ele veio tomar um café aqui, ele tem olhos azuis magníficos. No filme que farei, ele pode interpretar um papel muito importante, o de Napoleão, fuzilado por seus próprios soldados. Ele retomou o comando no último instante : “Soldados de Rivoli, de minhas antigas batalhas. Em posição! Direto ao coração! “É assim que fabrico o cinema, com essas pequenas histórias”. O senhor, que já fez mais de 100 documentários, nunca viu um projeto frustrado por falta de verba ? Digo-lhe uma coisa agora : é preciso fazer filmes ; para fazer filmes, é preciso achar grana. Aqui (ele aponta para uma caminhão de cerveja que pára em frente ao bar onde estamos) o acaso quer que encontremos de frente aquele que vai ser nosso financiador, o senhor Heinneken. Para mim, será ele que vai nos prover os créditos para filmarmos meu filme, o do Napoleão de olhos azuis. Então, é o acaso que introduz a solução. O senhor disse antes que alguns cineastas eram “fazedores de cinema” que não ousam se aventurar por vias perigosas, ajuntando que “somente os mestres, os loucos e as crianças ousam apertar os botões proibidos”. Isso ainda vale para hoje? Você é uma dessas crianças que ousam apertar esses botões, e não há muitas. Durante a guerra, meus amigos e eu aprendemos coisas extraordinárias. Vimos que uma obra de arte é como uma ponte : desenha-se antes, calcula-se depois. Os “fazedores” são aqueles que abordaram tais problemas mas não foram até o fundo.

“Durante a guerra, meus amigos e eu aprendemos coisas extraordinárias. Vimos que uma obra de arte é como uma ponte: desenha-se antes, calcula-se depois. Os ‘fazedores’ são aqueles que abordaram tais problemas mas não foram até o fundo”

Mas o senhor não acha que o avanço da tecnologia digital permite aos novos diretores uma maior liberdade? Eles têm tudo à mão, mas falta a coragem de ir lá dentro. O senhor trabalha sempre na fronteira entre ciência e poesia, valores separados no mundo atual. É um falso paradoxo? Elas são opostas ou complementares ? Talvez tenha chegado o momento em que as duas se reencontrem. E isso vem, às vezes, de maneira estranha. Minha mulher é enfermeira, ela também cuida de mim. É, então, um duplo emprego. Os comentários em seus documentários são mais etnológicos ou poéticos? Continente . abril, 03


CONVERSA 11 » Poéticos. Nossa formação se deu no período entre guerras, justamente pelos surrealistas. Gloria àqueles para quem o escândalo existe. Nossa moral era essa. Mas não seria nesse condensamento de áreas o lugar onde será possível encontrar novos caminhos de criação? Mas isso é trabalho para vocês, jovens. Cabe a vocês encontrar o momento de apertar o botão quando chegar o assunto. Lá dentro, eu posso ter um papel com meus filmes, como quando fui dos primeiros auditores da Cinemateca Francesa. Lá tinha jovens rapazes como vocês, com olhos igualmente inteligentes, que vinham ver os filmes que a gente exibia. Nesse tempo, as mulheres de Paris usavam longos chapéus, então a única maneira de os evitar era se sentar na primeira fila da pequena sala de cinema. E essa primeira fila, de semana a semana, foi ficando mais cheia. Esses jovens, com quem me encontrava para ir beber uma cerveja depois dos filmes, chamavam-se Godard, Truffaut. E esses sujeitos descobriram um dia que eu era um dos que tinham feito alguns filmes que foram projetados. Eles tiveram uma imensa emoção, dizendo “encontramos um diretor”. Eu lhes dizia : “Nada disso, os diretores são vocês. Vocês serão os realizadores se vocês aprenderem a lição” (risos). Então foi nesse clima de brincadeira que conheci toda essa gente lá e que eles mostraram a que vieram.

Foto: Joel Robine/AFP

No entanto, seus filmes são criticados sob o argumento de não darem voz àqueles que são filmados. As pessoas que estudei viraram cineastas. Então, eu sou o pai de criação desses artistas, que seguiram as pegadas que deixei passando por grandes riscos. É bem verdade que o senhor sempre procura trabalhar com técnicos locais, especialmente com engenheiros de som que conhecem a lingua do povo filmado. Aí você coloca um problema que é verdade, o papel do engenheiro do som é catastrófico. É o único que no momento da filmagem tem a imagem e o som. É o primeiro espectador do filme. Mas não se pode exagerar, pois o som é complemento. O que importa é a imagem. Claro que quando fiz Crônicas de um verão, com Edgar Morin (etnólogo e documentarista francês), os diálogos foram importantes. Como foi essa experiência ? Foi um filme complicado de fazer. Morin desapareceu um pouco antes da edição, pois ele caiu numa espécie de melancolia de gênio não-reconhecido. É idiota, pois ele desempenhou um papel muito importante naquilo tudo, que é um filme que adoro. É um filme que fala de Paris ocupada pelos alemães sob a vista de uma ex-refugiada, Marceline Leridon. Aproveitamos que estavam filmando outro filme sobre a mesma época, para fazermos o nosso, pois já tínhamos nossa decoração, como todos os slogans e indicações em alemão. O filme conta a vida da família de Marceline. Eles chegaram do exílio, de trem, na Gare de Lyon. É o pequeno irmão de Marceline que a reconhece na multidão. Mas ele chega junto a ela e diz : “Você não é Marceline !” Ela cai em prantos. Filmamos isso tudo. E isso para mim é a chave. É sempre assim : é através do escândalo que conseguimos realizar algo.

“Lévi-Strauss nos disse que ia apresentar um trabalho na Sorbonne, e estava muito inquieto pois Breton estaria lá: ‘Ele é pior que um monstro’, disse”

Sei que o senhor conhece o Brasil. Quais foram suas impressões ? Gosto muito do Brasil, é um lugar, sem dúvida nenhuma, impressionante. Mas me pergunto se o Brasil não é rico demais; se não é um conjunto de burgueses fracassados. Não foi muito simpático o que disse, não é mesmo? Lula, que é hoje bem célebre na França, não representaria um sentimento geral para mudança? Sim, mas é a vocês que cabe fazerem, não a ele. Ele não pode ser mais do que um artesão de sua própria decadência. Vou lhe dar a chave de tudo isso. Um de meus estudantes africanos vem defender sua tese sobre a Batalha de Tróia, em grego antigo. Ele é negro como não se pode ser mais e fala grego antigo fluentemente. Camilo Soares é Jornalista. Colaborou Ernesto Belo. Continente . abril, 03


12 CONVERSA Foto: Acervo Pessoal de Jean Rouch

O deus moreno e o diabo louro

Glauber para Rouch: “colonizador e agente do cinema francês”

O dia em que Glauber Rocha espinafrou seu amigo Jean Rouch Foto: Paulo Moreira/ AG

Amigos de outros carnavais, Jean Rouch e Glauber Rocha foram protagonistas de conturbado encontro durante o Festival de Cinema de Brasília, em setembro de 1979. Rocha, irritado por não ter sido convidado para o evento, resolveu tomar satisfação pública em pleno hall do Hotel Nacional, na festa de abertura. Por ironia do acaso, o primeiro convidado com quem o diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol encontrou pela frente, quando chegou para expressar o seu protesto foi um velho conhecido seu, Jean Rouch. Partidários do Cinema Verdade, do transe na arte, além de compartilhar o amor pelo Continente Africano, os dois costumavam ter encontros mais amistosos. Glauber chegou a escrever, no texto A Revolução da Nouvelle Vague (1965), que “Jean Rouch pode ser considerado um dos grandes reveladores da África para o mundo”. Desta vez, os adjetivos seriam “colonizador, agente do governo francês, vindo ao Brasil para investigar lugares estratégicos para servir às potências imperialistas”. Felizmente, o documentarista parece não ter levado muito a sério os insultos glauberianos, talvez ciente do comportamento paranóico que o antigo companheiro vinha apresentando nos últimos tempos. (CS)

Glauber: transe na arte e na vida

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Foto: Reprodução/AE

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GRACILIANO A razão de escrever A escrita do Mestre Graça desenha o duro desejo de dizer a crueza do mundo Lourival Holanda Consagração acadêmica e classificação escolar podem prejudicar a irradiação permanente de um escritor: Graciliano Ramos é muito mais que um autor de festejos circunstanciais – é sempre um autor atual. A questão que levanta Graciliano, ao longo de seus livros, é: por que escrever? É a questão mais pertinente para aqueles que, pela paixão da palavra, seguem querendo inquirir o sentido do mundo. É interessante notar os tantos que escrevem, nas obras de Graciliano: escreve-se em Caetés, escrevese em Angústia, escreve-se em São Bernardo. Aqui, sobretudo: Lúcio Gondim escreve, Madalena escreve. E Paulo Honório vai xingá-los por essa ocupação onde ainda não vê sentido — mas finda fechando o círculo: mesmo que desajeitadamente, Paulo Honório escreve, como forma de exorcizar seus demônios interiores.

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Antes que um pessimista, ele seria um moralista interessado num programa de demolição com espaço para a reconstrução possível

A resposta de Graciliano sobre a validade do escrever vem desenvolvida numa seqüência de negativas, páginas de uma rara densidade na literatura brasileira. Aqui e ali, ao longo de seus livros, ele dispersa, em filigrana, um distanciamento irônico — que o avizinha, à primeira vista, de um marcado pessimismo; quando não, de um certo cinismo. No entanto, Graciliano quer tomar suas distâncias da idéia romântica, beletrista, de literatura enquanto sorriso da sociedade. Sua literatura desenha o duro desejo de dizer a crueza do mundo. Em geral, os personagens de Graciliano Ramos são gauches na vida: desconhecem a mecânica social que rege o controle dos corpos pelo condicionamento das consciências. A quem coube mundo e momento mesquinhos, como ser otimista? “Enorme tristeza por não perceber nenhuma simpatia ao redor...” (Infância — mas, quanto isso não traduz a voz de tantos meninos de rua, feridos de desamor desde a infância? Ainda no limiar da vida, e vendo, já nesse limiar, quase um limite dessa mesma vida?). Há uma violência primeira, a social. E essa, sobretudo, limita a dimensão de vida devida a cada qual, enquanto cidadão. Ao leitor, a primeira constatação: não sabendo ler as leis do mundo social, eles são subjugados pela crueza de certos arranjos do poder de plantão. E que eles arremedam mal: Paulo Honório, querendo em tudo ver posse possível; apropria-se do trabalho alheio até na composição do livro suposto. O registro sarcástico é notável: “imaginei construir o livro pela divisão do trabalho...”; mas há proContinente . abril, 03

pósito aqui: Paulo Honório quer, com o arremedo de divisão do trabalho, poupar esforços e garantir-se enquanto beneficiário: “Eu traçaria o plano, introduziria na história uns rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria meu nome na capa”. Graciliano sabe que não há inocência social nem no meio literário: os grupos, as associações, as academias reproduzem as mazelas e interesses que mesclam valores econômicos aos culturais. Luís da Silva, (em Angústia) seguindo, cego, seu desejo por Marina, substituindo seu gozo impossível, pelo olhar ciumento – possuído, ele também, pelo desejo de posse; Fabiano, como as tantas vidas “severinas” deste Nordeste nosso, levado pela esperança como por um mau vento, concebe, vagamente, no impulso da necessidade, o sentido último da vida. Fabiano, (em Vidas Secas) despossuído de si, porque sem o sonho de uma possibilidade “outra”, fica preso nessa rede de pressões que findam por dar a cada um de nós uma definição redutora. Por isso agarra-se às palavras de Sinhá Vitória para não aceitar que um mau momento, circunstancial, seja a definição da vida. “As palavras de Sinhá Vitória encantaram-no. Iriam para adiante, alcançariam terra desconhecida”. Em Caetés, também João Valério, “passa horas escutando as histórias de Nicolau Varejão”. Porque a palavra pode ter a força de disseminar sonhos e ações. A literatura não dá o existente: aponta o possível. Certa feita, Alfredo Bosi disse que os personagens de Graciliano estão sempre no limiar da


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Escrever é buscar as marcas da memória: viagem ao desconhecido em si

palavra. Sempre à cata da palavra: sentem ou pressentem que a palavra é vida. Sinhá Vitória: “se ficasse calada ia mirrando, feito um mandacaru”. A reivindicação da palavra, necessária como a do pão. Uma sociedade que concede tanto ao barulho, sacrifica nossa singularidade, cobrindo seu silêncio com a circularidade do anódino — que torna espesso o espelho social, impedindo, ao individuo, a visão de si. E, o que é politicamente de maior peso, impedindo a insubmissão à realidade insatisfatória. Escrever é buscar as marcas da memória: viagem ao desconhecido em si. Para tanto, o movimento da escritura pede um outro ritmo. Tenta suspender o movimento do moinho do tempo, triturador de tudo. Em Memórias do Cárcere, Graciliano dá indícios dessa composição lenta, do trabalho obstinado: “Sempre compusera lentamente; sucedia-me ficar diante da folha muitas horas, sem desvanecer a treva mental, buscando em vão agarrar algumas idéias, limpá-las, vesti-las”. Nos manuscritos de Vidas Secas está: “a gente não podia entender as coisas assim de chofre não, precisava tempo sossegado”. Esse, o tempo da lite-

ratura; sua forma de enfrentação do real, desfazendo, pela leitura do texto, o espelho da convenção social. A realidade perde, assim, sua consistência determinista: é possível ver diferente; é possível viver diferente. Graciliano não seria um pessimista porque sua literatura, de parcos louvores, acusa a crueza da vida. Ele seria, antes um moralista: quando des-moraliza a convenção, (mos, mores: costume). Há, num tal programa de demolição, o espaço de uma reconstrução possível. É por aí, certamente, que se há de entender como pode seu aparente pessimismo não traduzir, mas contradizer-se no empenho de fazer, com tanto afinco, uma obra literária durável. E também, no plano social, perceber como pode alguém tão desencantado com o presente, apostar politicamente num mundo melhor, mais socializado.

Lourival Holanda é professor de literatura na UFPE, autor de Fato e fábula sobre Euclides da Cunha.

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A perpetuação de um D. Rita Joana de Sousa teria sido grande escritora, filósofa e pintora do século 18, mas não se sabe onde foram parar suas obras Anco Márcio Tenório Vieira Quando, em 1826, o francês Ferdinand Denis publicou a primeira história de uma literatura brasileira – Resumo da história literária do Brasil –, uma única escritora se fez presente na sua obra: d. Rita Joana de Sousa. Talvez seus leitores tenham estranhado a presença da pernambucana nascida em Olinda, quando duas outras importantes escritoras brasileiras, que tiveram suas obras publicadas no século 18, estavam ausentes do seu livro: Teresa Margarida da Silva e Orta (autora do primeiro romance brasileiro conhecido: Aventuras de Diófanes, de 1752) e Ângela do Amaral Gurgel. No mínimo, era uma decisão controvertida, essa de Denis. Creio que, para alguns, até pouco defensável. No entanto, sua omissão tinha uma base ideológica. Como bom romântico, o crítico francês privilegiava o local de nascimento como critério para se definir a nacionalidade de um autor, bem como a temática por este explorada. No caso específico de Teresa Margarida da Silva e Orta, mesmo nascida no Brasil, vivera quase toda sua existência em Lisboa (saíra de São Paulo aos cinco anos, em 1716, acompanhando seus pais e o seu irmão mais velho, Matias Aires, futuro autor das Reflexões sobre a vaidade dos homens). Mais: sua obra não fazia nenhuma alusão ao rincão que a viu nascer. Sendo assim, teria raciocinado Denis, sua vida e sua obra não pertenciam ao Brasil, e sim a Portugal. Já no caso de Ângela do Amaral Gurgel, a questão passava pelo fato de ter escrito a quase totalidade da sua obra poética em espanhol. Em sua época, particularmente no mundo que o português criou, essa era uma escolha tida como elegante, de bom gosto, uma forma de distinção intelectual e social. Com o advento do Romantismo, toda essa produção poética, que prevaleceu nos séculos 17 e 18, passou a ser condenável. Aqueles que fizeram uso de tal exercício lingüístico passaram a ser acusados de traírem a língua portuguesa. De Denis, passando por Almeida Garrett, até o cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, para ficarmos em alguns nomes ilustres, todos foram unânimes em condenar os escritores que trocaram a língua de Camões pela de d. Luís de Gôngora. Garrett chegou mesmo a escrever no seu Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa (1826), que “[...] de toda essa safra de versos castelhano-portugueses pouco ou nada há que espremer”. É bem verdade que a referência de Denis a d. Rita Joana de Sousa se dá numa singela e breve nota de rodapé. Mas indiferentemente dela ser citada em rodapé de página ou não, o fato é que Denis perpetuava, naquele ano de 1826, com seu texto inaugural, o mito tantas vezes decantado de uma escritora (?), filósofa (?) ou pintora (?) que, entre os intelectuais do século 18, fora considerada um Continente . abril, 03

mito

Fotos: Reprodução

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dos maiores nomes que as letras do Brasil já produzira. Sem questionar a veracidade de tais afirmativas que o precederam, o crítico francês reitera o que era tido como a verdade dos fatos, e, no seu livro, não titubeia em afirmar, em pouco mais de duas linhas, que “Dentre as mulheres ilustres de que se honra Pernambuco, conta-se d. Rita Joana de Sousa, natural de Olinda; faleceu em 1719. Cultivou com êxito as belas-artes e a literatura; deixou diversos tratados”. Ao contrário de Teresa Margarida da Silva e Orta e Ângela do Amaral Gurgel, que tinham suas vidas e obras conhecidas, o pouco que Denis sabia, ao seu tempo, dessa poetisa e pintora nascida a 12 de maio de 1696, vinha das suas leituras do então já clássico Biblioteca lusitana, do abade Diogo Barbosa Machado (o terceiro tomo dessa obra, com o verbete da escritora olindense, fora publicado em 1752), ou talvez da então decantada obra de Cyrillo Volkmar Machado: Coleção de memórias: relativas às vidas dos pintores, e escultores, arquitetos, e gravadores portugueses, e dos estrangeiros, que estiveram em Portugal (1823). No entanto, mesmo que tenha se valido da leitura da obra de Volkmar, tudo o que este escreveu sobre d. Rita foi esta breve apreciação: “[...] na curta idade de 23 anos que teve de vida, fez tão grandes progressos na pintura como na filosofia: foi natural de Olinda, e faleceu em 1719”. Toda essa brevíssima informação, por sua vez, Volkmar certamente copiara da aludida obra de Diogo Barbosa Machado. Nesta, o ilustre abade registra que Rita Joana de Sousa “[...] deixou eternizado o seu nome na Arte da Pintura, lição da História, e notícia de Filosofia natural em que escreveu vários tratados. Na florente idade de vinte e três anos a despojou a morte da vida em o ano de 1719”. Por sua vez, observamos que Diogo Barbosa revela-se um crítico pouco original quanto as suas opiniões. É que a fonte para o seu verbete ele fora encontrar num outro erudito português: frei João de São Pedro. Este, no seu Teatro heroíno, abecedário histórico, e catálogo das mulheres ilustres em armas, ações heróicas, e artes liberais etc., publicado em 1736 (logo, dezenove anos antes de Diogo Barbosa publicar o terceiro tomo da sua Biblioteca lusitana), assinala que “[...] [a] filha do doutor João Mendo Teixeira se fez recomendada na posteridade pelas obras de seu juízo e engenho. Na arte da pintura, os mestres, que não excedeu, igualou. Na filosofia natural escreveu diversos Tratados, e na lição das Histórias foi tão aplicada, que revolveu as de Espanha, e França”. Em 1826, assim como ainda em nossos dias, pouco se conhecia da vida ou da obra dessa escritora que morrera, segundo os ensaístas Joaquim Norberto de Souza Silva, em sua Brasileiras célebres (1862), e Augusto Vitorino Alves Sacramento Blake, em seu Dicionário Bibliográfico Brasileiro (1902), aos 21 anos de idade (ou seria aos 23 anos, como fora defendido por Barbosa Machado e Cyrillo Volkmar), no ano de 1718; ou mais precisamente em abril de 1718, como assinala com tanta convicção Francisco Augusto Pereira da Costa em seu Dicionário biográfico de pernambucanos célebres (1882). O fato é que, passados quase trinta anos da publicação do Resumo da história literária do Brasil, de Denis, Joaquim Norberto de Souza Silva pouco ou quase nada vai acrescentar ao que dissera o

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crítico francês. Em seu pretensioso Brasileiras célebres, obra de pouco mais de 220 páginas, Norberto dedica não mais do que três páginas de frases redondamente retóricas (como diria Gilberto Freyre) à vida e à obra de d. Rita Joana de Sousa. Entre frases empoladas, nada nos revela sobre o destino que foi dado aos seus escritos e às suas pinturas. Contenta-se em afirmar, com uma certa autoridade intelectual tão comum aos de sua geração, que “[...] passou ela [d. Rita de Sousa] a sua mocidade alegre e ruidosa no entretenimento próprio da pintura, e, quando depunha os seus pincéis, o tento e a palheta, era para se entregar ao estudo da história e da geografia, que faziam os seus encantos, e sobre o que escreveu algumas investigações, que talvez ainda se conservem sob a poeira dos anos, ou tenha, o que é mais certo, levado o descaminho, que tem tido tanta riqueza literária, graças ao nosso descuido e incúria, e o nenhum apreço das nossas cousas”. Esse tom redondamente retórico também perpassará todo o capítulo que, em 1879, Henrique Capitolino Pereira de Mello dedicou, em seu Pernambucanas ilustres, a d. Rita Joana de Sousa. Seu texto é, na verdade, um arremedo grosseiro do de Joaquim Norberto, a quem ele o toma para epígrafe do capítulo. O mesmo caminho será percorrido por Pereira da Costa, em 1882, que apenas repete o quase nada que fora dito pelos seus antecessores, reforçando o mito intelectual e literário de uma mulher que, no século 18 brasileiro, teria deixado contribuições importantes no campo da história, da geografia, da filosofia e da pintura. Segundo ainda Pereira da Costa, Damião de Fróes Perim, frei João de São Pedro e o abade Barbosa Machado ainda teriam tido acesso aos “[...] documentos comprobatórios dos seus méritos artísticos e literários [...]”. Na verdade, nenhum desses autores citados por Pereira da Costa acrescentaram alguma informação nova além do que Denis escreveu na década de 20 do século 19. Como já vimos, frei João de São Pedro e o abade Barbosa, por exemplo, não dão nenhum sinal, em suas citadas obras, de ter posto os olhos na mítica produção intelectual de d. Rita Joana de Sousa. Sem nenhum documento substantivo à mão, a controvérsia e o mito Rita Joana de Sousa continua a desafiar os intelectuais ao longo do século 20, sem que nenhum passo seja dado além do que já fora dito por frei João de São Pedro, Diogo Barbosa ou Ferdinand Denis. Quem pretende nos oferecer alguma possível pista da obra que teria sido escrita pela escritora pernambucana é Américo Lopes de Oliveira, no seu Dicionário de mulheres célebres (1981): “Deixou manuscritos, alguns Tratados de filosofia natural e Memórias históricas, que não chegaram a ser publicados”. Digo que Américo de Oliveira pretende oferecer alguma possível pista, porque o que ele faz é nada mais do que transcrever o que dissera Sacramento Blake, em sua obra citada, que, por sua vez, já recorre a Fróes Perim: “Escreveu: – Memórias históricas – que nunca foram publicadas. – Tratados de filosofia natural – como afirma F. Perim, e que também não foram

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publicados [...]”. Na verdade, os “tratados” e as “memórias” citados aqui teriam sido antes, se é que um dia existiram, escritos dispersos sobre filosofia ou história do que títulos de obras em si. Por fim, para completar toda essa névoa que paira sobre a pessoa e a obra da escritora setecentista, névoa com um certo gosto de personagem borgiano ou de mistério de romance policial, dom Domingos Loreto Couto afirma, em seu Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco (1757), que d. Rita “Faleceu de vinte e três anos, e alguns meses no [ano] de 1618”. Ou seja, um século antes do que todos os seus “críticos” tinham afirmado ou viriam a afirmar: 1718 ou 1719. Como sabemos, a obra de Loreto Couto, apesar de ter sido escrita em 1757, só fora publicada em 1904, nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, particularmente nos volumes 24-25. Essa edição foi possível graças ao trabalho de paleografia que fora realizado a partir do manuscrito que estava depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa. Como a segunda e última edição dessa obra é de 1981, e mesmo assim é fac-similar da de 1904, de duas uma: ou estamos diante de um erro tipográfico grosseiro (em nossa opinião, a hipótese mais provável), que passou desapercebido tanto pelo primeiro, quanto pelo segundo editor, assim como do posfaciador da edição mais recente, o historiador José Antônio Gonsalves de Mello (tão atento a qualquer erro de datação histórica), ou Loreto Couto, como homem nascido no Recife, provavelmente em 1696 (o mesmo provável ano, então, do de d. Rita de Sousa), sabia o que estava dizendo: ele não fora coetâneo da escritora olindense. Nesse caso, todas as outras datações – tanto as do século 18 quanto as dos séculos 19 e 20 – estão erradas. A dúvida só poderia ser resolvida na consulta aos manuscritos de Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, a que não tivemos acesso e, até onde averiguamos, ninguém mais pôs os olhos desde que foi realizada a edição paleografada de 1904. O fato é que entre tantos mitos intelectuais que foram criados pela historiografia brasileira (muitos carecendo ainda hoje de uma revisão rigorosa), o de d. Rita Joana de Sousa parece encantar, ao mesmo tempo que desafia, gerações e gerações de brasileiros. A existência de uma mulher, nos primeiros anos do século 18, que, no Brasil Colônia, conseguira, em tão tenra idade, produzir uma obra que alinhavava várias áreas do conhecimento humano, parecia ser o testemunho que os românticos brasileiros precisavam para provar que intelectualmente eles foram “superiores” àqueles que os colonizaram. Mito que seduziu um Ferdinand Denis, mesmo que tenha posto suas observações sobre a escritora pernambucana numa singela nota de rodapé. Talvez não pudesse ser de outra forma, principalmente quando se estava diante de alguém que pouco ou quase nada era conhecido da sua real existência. O fato é que, em rodapé ou não, o mito sobrepujava a verdade histórica dos fatos e viria a ser alimentado a cada geração de brasileiros.

Anco Márcio Tenório Vieira é professor e escritor.

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Os leitores da obra freyriana têm agora à sua disposição um livro de grande valia e utilidade, escrito na forma de dicionário, Gilberto Freyre de A a Z. Elaborado por Edson Nery da Fonseca, foi publicado recentemente no Rio de Janeiro, numa edição conjunta da Fundação Biblioteca Nacional e Zé Mário Editor. Edson Nery, que é profundo conhecedor da vida e obra de Gilberto de Mello Freyre (1900-1987), organizou e prefaciou nove livros do sociólogo, inclusive o póstumo Antecipações (2001). Além disso, reuniu e comentou a fortuna crítica do primeiro e mais importante livro do escritor, o que resultou no volume Casa Grande & Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944, publicado pela Cepe em 1985. Na feitura do dicionário, Nery adverte em sua Nota do autor, que a idéia do trabalho não foi dele, e sim do bibliófilo, já falecido, Moacir Souto Maior. Revela ainda que se dedicou durante três anos (19972000) ao que prefere chamar de “enciclopédia freyriana”. Por outro lado, a magreza do livro não se constitui em defeito, pois as informações gerais e de caráter didático de maior interesse sobre o autor de Sobrados e Mucambos podem ser ali encontradas. O subtítulo Referências essenciais à sua vida e obra já esclarece e limita o alcance numérico da obra (192 p.), de vez que nela nada se mostra supérfluo ou dispensável. Nessa linhagem de obras de referência, O Brasil de Gilberto Freyre (2000), do jornalista e escritor Mário Hélio, representa um dos livros de mérito inconteste. Ao prefaciá-lo, Edson Nery torna relevante a sua função de desvelamento e iniciação, quando afirma: “Assim desbarroquizado e didatizado o pensamento freyriano fica acessível aos leitores mais jovens”. Este é também o objetivo de um outro livro, Seleta para jovens , que teve várias edições desde 1971, e contém trechos selecionados pelo próprio Freyre com a colaboração de Maria Elisa Dias Collier. Em Gilberto Freyre de A a Z estão incluídos verbetes de variada origem e teor, como os antroponímicos. Versam sobre pessoas vivas ou mortas, gente brasileira e de outros países, e todos aqueles que de algum modo estiveram ligados ao escritor Continente . abril, 03

Gilberto Freyre

de A a Z

Edson Nery da Fonseca publica livro de referência sobre a obra de Gilberto Freyre Luiz Carlos Monteiro por laços familiares, de amizade, intelectuais, políticos ou artísticos. Não faltam nem mesmo seus desafetos intelectuais, a exemplo de Oliveira Viana, Joaquim Pimenta e Alceu Amoroso Lima. O Dr. Alceu teimava em não reconhecer qualidades de crítico literário em Freyre, como este se queixa em seu livro Vida, forma e cor. Os verbetes biblionímicos aparecem também em quantidade considerável, listando os livros e opúsculos freyrianos. Nos verbetes institucionais encontra-se tanto um sobre a Baylor University, no Texas, onde Freyre estudou de 1918 a 1920, como outro sobre a Internet, contendo indicações que levam às home pages da Biblioteca Virtual Gilberto Freyre. Os verbetes toponímicos, relativos a lugares que o marcaram e sensibilizaram, são os de menor quantidade, e, ainda assim, não foi localizado o verbete “Belém do Pará”. No caso dos verbetes temáticos, enseja-se a produção diminuta do escritor nos


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Foto: Divulgação

gêneros ficção e poesia, suas prisões, o que pensava sobre sexo, entre outros. Com relação à ficção, ele escreveu alguns contos de configuração principalmente erótica, a “seminovela” Dona Sinhá e o filho padre (1964), que teve continuidade em O outro amor do Dr. Paulo (1977). A sua poesia resume-se aos volumes Talvez poesia (1962) e Poesia reunida (1980). Contudo, acresça-se também o registrado no verbete “Gilberto poeta: algumas confissões — Caixa de compensado revestido de papel marrom, contendo 8 pranchas de texto e 5 de reproduções de guaches originais de Aldemir Martins, Jenner Augusto, Lula Cardoso Ayres, Reynaldo Fonseca e Wellington Virgolino, formato 72 x 49,5 cm. Tiragem de 110 exemplares. Posfácio de José Paulo Moreira da Fonseca”. O verbete remete ainda aos livros de poesia anteriormente citados. Apesar de ter escrito poucos poemas, não se pode negar o valor literário de um poema como Agosto azul, de 1951, centrado na expressão paisagística e no poder sugestivo de tempo, clima e cor: “Agosto azul/ sem retórica nem literatura.// Quase não se enxerga o cor-de-rosa das casas.// A luz do sol cru/ dói nos olhos de quem chega.// Quando a luz é muito forte/ ninguém entende o que dizem/ as coisas e as paisagens”. Manuel Bandeira o incluiu na sua Antologia de poetas bissextos contemporâneos, com o poema “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”. Este poema traz versos como “Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes/ eu detesto teus oradores, Bahia de Todos os Santos/ teus ruisbarbosas, teus otaviosmangabeiras/ mas gosto de tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus”. Versos que contemplam, no mesmo passo, ironia e sexualidade caracteristicamente gilbertianas. No verbete “Prisões”, há referência a uma crônica de Rubem Braga, intitulada Recordações pernambucanas, que conta como Freyre foi preso pela primeira vez em 1935, da qual recorta-se o trecho: “Gilberto naquele tempo andava pelos 35 anos, já publicara Casa-Grande & Senzala e estava acabando de escrever Sobrados e Mucambos; e era solteiro. E eu também era,

Odilon Ribeiro Coutinho, Gilberto Freyre e Edson Nery no jardim da Fundação Joaquim Nabuco, em setembro de 1984

o Cícero Dias também era. Assim fomos os três, num trenzinho da Great Western, à estação de Prazeres para subir o morro e participar da festa de Nossa Senhora, naquela igreja que domina as colinas de Guararapes, onde brasileiros e holandeses se guerrearam. Usava-se ir às antigas trincheiras apanhar folhas para benzer, pois as plantas dali tinham sido regadas pelo sangue dos heróis. E nas trincheiras aconteciam casos de amor. A certa altura Gilberto sumiu e, depois de muito procurá-lo, Cícero Dias e eu fomos até a estação: lá estava ele preso por um sargento, pois atentara contra o pudor público fazendo amor com uma jovem mulata no capim de uma trincheira. Custou muita conversa e algum dinheiro, mas libertamos o sociólogo. Coisa que convém referir para que não seja esquecida em sua biografia. Nestes seus maravilhosos 82 anos de idade”. No entanto, Edson Nery põe em dúvida a veracidade do relato, ao arrematar que Gilberto Freyre disse a seu filho Fernando

Freyre que tal prisão nunca ocorreu. Observa-se, então, que mesmo numa obra didática e de consulta, um autor pode revelar-se polêmico, ao trazer à luz, com a sinceridade mais crua, vivências e fatos incômodos sobre a biografia de alguém. No verbete Sexo, Edson Nery insere trechos de famosa entrevista concedida por Freyre à Playboy em 1980, com alusões explícitas a experiências sexuais do entrevistado. Pela forma como Nery concretizou seu dicionário, em estilo leve e altamente compreensível, deduz-se que ele pode ser lido e consultado sem grandes dificuldades por leitores de perfis os mais distintos. Leitores que envolvem desde estudantes dos vários níveis de ensino, passando por simples admiradores do texto freyriano, até chegar a pesquisadores, estudiosos, ensaístas e especialistas na sua obra. Luiz Carlos Monteiro é poeta e crítico literário. Continente . abril, 03


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"...A Poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi". Oswald de Andrade

A metamorfose lírica feita “através da visualização do mundo exterior e interior se dá pelo movimento”, e entre o instante poético e a descoberta desta realidade, acontece a troca entre o signo ou mito que virá se materializar. Revelada pelo “caminho artístico, a sensação de surpresa, inconsciente, dos primeiros navegadores, predispunha-os a uma percepção sensorial dos relevos geográficos,fauna, flora e aventuras, ao ponto de descreverem suas imagens como se num choque poético. Dentro dessa lógica examinaremos um segmento da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, ao El-Rei Dom Manuel, em 1500 anunciando a descoberta de uma terra que seria mais tarde a terra do Brasil e uma interpretação dada por Oswald de Andrade. “E assim seguimos nosso caminho por este mar de longe, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra estando (distantes) da Ilha, segundo os pilotos diziam, cerca de 660 ou 670 léguas os quais (sinais) eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamavam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-deasno. E quarta-feira seguinte pela manhã topamos com aves a que chamam fura-buchos. Neste mesmo dia, a hora de véspera, houvemos visto terra”. O texto da Terra firme, revivido por Oswald de Andrade durante a implantação do Modernismo do Brasil, no começo do século 20 , repetiu uma poética de movimento. Sua poesia intitulada Pero Vaz de Caminha, em Pau Brasil, mantém a mesma metamorfose lírica que se dá entre o mito da gênesis e a sua concepção literária. Oswald explorou essa poesia em velocidade, dentro da estética a qual gostaria de chaContinente . abril, 03

O texto da Carta de Pero Vaz de Caminha, revivido por Oswald de Andrade, mantém uma metamorfose lírica Valdivia Siqueira Beauchamp

Uma poética de

movimento


mar sensorial. Acreditamos que a poesia significava o estado de uma intensidade organizada. Começou a inventar um idioma poético capaz de exprimir a cinética de vida. Segundo Fernand Léger, amigo do poeta, o lirismo novo acentuou o estado do espanto, ou seja, caminho artístico esse que envolve uma transmutação da contemplação ativa, o flash mental, o choque poético. “Seguimos nosso caminho por este mar de longo, até a Oitava da Páscoa. Topamos aves e houvemos vista de terra”. Oswald transforma o texto histórico — a Carta de Pero Vaz de Caminha — em poesia onde o lirismo caminha com Caminha. Em seu artigo L'ABC do Cinéma, publicado entre 1919 e 1921, Cendrars já considerava que as técnicas cinematográficas seriam a solução para o impasse da literatura. Oswald de Andrade obviamente adota esta teoria e desenvolve uma noção pessoal de tempo e espaço, suprimindo o estético na escrita, através da velocidade que o obriga a condensar, a misturar planos, dando a ilusão de um objeto em movimento. Ações que acontecem em épocas diferentes se entremeiam, se completam e dão a impressão de uma montagem cinematográfica presente. O autor vê girar a sua volta um mundo que ele registra, ao fluir vivo dos ruídos, dos cheiros, das cores. Os objetos são percebidos sob diversos ângulos ao mesmo tempo, como se fossem a linha do horizonte, avistada da perspectiva de uma ilha. São tantos flashes de consciência de um homem, que em um bar, ou na rua, anota ao correr o que experimenta, registrando tudo onde o seu olhar pousa. Ele recompõe tudo pelo movimento do cérebro,ao invés do projetor de uma câmara. Dentro dessa ótica, sentimos que sua poesia nos dá sensação de energia e surpresa, ao contrário de correspondência às convenções já estabelecidas, desta maneira coincidindo com o choque mental dos navegadores. Oswald não somente vê com olhos de cineasta, como de artista plástico em suas construções. “E o ouro se encaixa No coração da muralha negra Recortada Laminada Verde “ As experimentações do autor encontram seu sentido unificado nessa velocidade.O volume Poesia Pau Brasil continua a pesquisa dos efeitos cinematográficos. Poderíamos dizer que o poeta faz da sua viagem a Minas Gerais, um filme escrito em versos. O leitor é constantemente obrigado a perceber que está vendo um filme: “Bananeiras monumentais mas no primeiro plano. O cachorro é maior que a menina. Cor de ouro fosco” O cachorro é maior oticamente. A poesia de Oswald de Andrade, como um filme, usa uma lógica associativa ao invés de uma linguagem cinematográfica: “São José Del Rei O sol O cansaço da ilusão Igrejas O ouro na serra de pedra A decadência” Note-se como o poeta não insiste no significado deste texto, mas quer nos fazer ver. E é neste sentido de nos querer fazer ver, que a arte de Oswald nos é apresentada numa visão antropofágica das artes plásticas. Sua poesia é cheia de surpresas sem vínculos com nenhum padrão, ou convenção, puramente visual, de onde emerge muita energia. O texto histórico — a Carta de Pero Vaz de Caminha ao El-Rei Dom Manuel, em 1500, é transformado em vívida poesia, e como a voz importante é a voz da pátria (que está ausente), o fenômeno da descoberta da língua poética indica o caminho artístico do navegador Caminha e do cineasta Oswald.

AUTORES 23 »

Valdivia Siqueira Beauchamp, recifense, é professora de português e espanhol no exterior, com mestrado em Purdue University e New York University(USA). Continente . abril, 03


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24 AUTORES

O nicho da poesia na

Internet

O poder de nomear, inerente à poesia, é surpreendentemente exercido na web Cláudia Cordeiro Reis Obviamente não estamos no momento, no dia, no mês, no ano, no século próprios à poesia. Obviamente o homem perdeu seu poder ontológico de nomear os seres, as coisas e os sentimentos. Somos a civilização de sílabas desconexas, palavras que espelham apenas o significante, nunca decifrado, pois não há o que decifrar, a não ser as cifras bancárias. Será que a arte poética está fadada a mofar nos porões das editoras ou ser virtualmente “deletada” dos computadores da imprensa? Mero lixo virtual. Será? A resposta seria afirmativa se analisarmos que as leis do mercado transformaram-nos unicamente em mercadoria. Anônimo, pura abstração na engenharia econômica, o ser foi reduzido a cifras no dever-haver cotidiano das instituições financeiras. Amorfa, então, a grande maioria busca identificar-se com os padrões estabelecidos de prosperidade: o carro do ano, a grife vestindo o corpo — não mais que um corpo —, o cartão de crédito e toda a parafernália de uma tribo mergulhada no abismo do ter, ou melhor, do não-ser. Campeiam, então, o absurdo e a vulgaridade, o kitsch facilmente absorvido pelas massas. O cineasta Robert Altman disse uma vez que os filmes de Hollywood são agora dirigidos pelas pesquisas de mercado. Mas não só a indústria cinematográfica busca atender à voracidade do lucro, mas também a fonográfica que joga no mercado, cotidianamente, nada mais que jargões de tribos distantes, ruídos ensurdecedores, no máximo esgares do não-ser. Às vezes, é possível perceber que a legião de gentes que se apropria de gestos e refrãos, na absurda saga da vulgaridade, reverbera estranhos rituais do berço da civilização. Sem que isso represente uma proposta consciente e rebelde ao status quo, como o foram as propostas modernistas de 1922. Pelo contrário, representa a mais pura alienação. Mas, quando escrevíamos este artigo recebemos uma mensagem de Silvana Guimarães (MG), uma das editoras do Projeto Diário de Literatura, dando-nos conta do segundo livro de poesia do Papa João Paulo II: Tríptico Romano. O Sumo Pontífice não abdicou do poder também de nomear sua paixão pela Arte Poética e convocou a imprensa internacional para anunciar a sua mais recente criação. Acessamos portais de busca e logo vieram inúmeras referências dando conta das preciosas quatorze páginas que serão traduzidas para o inglês, italiano, francês, alemão e espanhol. Mas a versão em Continente . abril, 03


AUTORES 25 » polonês já vendeu 300 mil exemplares. Presume-se, assim, que será durante muito tempo o livro de poesia mais vendido no mundo. Mais que isso: renova-se o poder inolvidável da Poesia enquanto instituição social, estimulando os milhares de talentos que veiculam seus poemas pelos mares da web, na falta de políticas editoriais que dêem vez à publicação em livro. Esse fato animou-nos a procurar resposta à interrogação inicial deste artigo que, em parte, se vincula à do fórum de debates do sítio virtual, Trilhas Literárias: “Poesia na Internet: banalização ou resistência?” Acessamos então o Google, um dos maiores portais de busca do mundo, e digitamos a palavra “poesia”. Vieram-nos 864.000 páginas. A seguir, digitamos a palavra “dinheiro”, 856.000 páginas. Pelo menos nos portais de busca, vencemos. Mas isso não é argumento que derrube a sanha do mercado nem a agiotagem dos banqueiros, nem que traga para as páginas impressas os volumes de poesia que mofam nos porões das editoras. Muito menos que arrefeça a solidão do poeta diante desse mar de abismos distanciando o ser dos outros seres, e o ser dele mesmo. Mas algo se anuncia insofismavelmente: não estamos sozinhos. Mesmo sitiados pelas contingências, lançamos nosso grito a outros através do etéreo poder da web. Indiscutivelmente, ela passou a ser o ponto de encontro dos que fazem poesia, dos que lêem poesia. Essa “antimercadoria”, como a nomeia o poeta Alberto da Cunha Melo. Um salto, sim. Entre nós, Lautréamont, o poeta maldito, abriria um sorriso ao ver se confirmarem suas palavras: “A fraternidade não é um mito”. Não, não é um mito, uma ficção, uma farsa. A fraternidade é possível. Não importa se a poesia veiculada pela web seja falsa (se os seus produtores pensam apenas em títulos gravados nos túmulos da burocracia do sistema) ou verdadeira (se impregna à palavra o sopro de vida, dando nome e voz ao ser), pois o tempo cuidará de trazer à luz a verdade que sangra sua incompletude, nas telas dos computadores, a avisar que o tempo é de fraternidade, que o ser desperta devagarzinho, envolvido que está com a gosma do sistema, para um mundo renovado, onde se construam pontes sobre os abismos das nossas solidões. Ao inesperado poder virtual a poesia se une e se alteia, vencendo aos poucos o ceticismo, o tédio e o ódio, em nome dessa fraternidade, em nome do mais nobre e ontológico poder delegado ao homem: o poder de nomear, fundamento primeiro da verdadeira poesia. Animemo-nos com as palavras do pontífice-poeta João Paulo II, em sua Carta aos Artistas, de 1999, que pode ser facilmente lida, na íntegra, acessando o endereço virtual (www..vatican.va): “Ninguém melhor do que vós, artistas, construtores geniais de beleza, pode intuir algo daquele pathos com que Deus, na aurora da criação, contemplou a obra das suas mãos. Infinitas vezes se espelhou um relance daquele sentimento no olhar com que vós — como, aliás, os artistas de todos os tempos —, maravilhados com o arcano poder dos sons e das palavras, das cores e das formas, vos pusestes a admirar a obra nascida do vosso gênio artístico, quase sentindo o eco daquele mistério da criação a que Deus, único criador de todas as coisas, de algum modo vos quis associar”. Amém!

Montagem sobre quadro de Reynaldo Fonseca

Cláudia Cordeiro Reis é professora de Literatura Brasileira e editora dos sítios virtuais, Trilhas Literárias (www.trilhasliterarias.kit.net) e Plataforma para a Poesia (www.plataformaparapoesia.hpg.com.br). Continente . abril, 03


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O TIROTEIO DAS VANGUARDAS Fruto de um “Seminário sobre as Vanguardas na Itália e no Brasil” e organizado por Lucia Wataghin, o livro Brasil & Itália: Vanguardas (Ateliê Editorial, 310 p., N$ 30,00), além de se transformar num manancial de informações das relações entre o Futurismo italiano e o Modernismo brasileiro, mais especificamente, entre Marinetti e Mário de Andrade, também traz esclarecimentos sobre o compositor francês Edgard Varèse e o impacto de Nova Iorque sobre seu trabalho; o poeta, ensaísta e artista plástico italiano Emilio Villa e suas relações com o Brasil; a relação de Ungaretti com a poesia de Oswald de Andrade; a surpreendente importância da Língua Macarrônica (mistura de italiano com português criada pelos imigrantes) na Vanguarda Modernista; as atitudes de Pasolini e Ítalo Calvino diante das vanguardas; o Decadentismo de Luchino Visconti e a Neovanguarda Italiana dos anos 60. Um dos aspectos que se destacam no livro é o de como o Futurismo se nutriu de uma atitude agressiva e panfletária que pregava um nacionalismo facistóide, a guerra como “a única higiene

do mundo”, a destruição de museus e cidades antigas, como Veneza, e a construção de cidades e arte baseadas nos conceitos emergentes do industrialismo: velocidade e funcionalidade. Casas e esculturas, por exemplos, deveriam ter suas formas ditadas pela sua função, tal como um motor toma a forma necessária ao seu funcionamento. Curiosamente, a criatividade do jovem arquiteto Antonio Sant'Elia se sobressai no meio desse tiroteio. É dele a idéia dos elevadores panorâmicos (por fora dos edifícios) e a criação de esteiras rolantes (que ele preconizou para as ruas mas que hoje são usadas em grandes aeroportos internacionais). No entanto, “o gosto pelo leve, pelo prático, pelo efêmero e pelo veloz”, que atravessa a estética da arquitetura futurista, leva aos extremos totalmente despropositados: “As casas durarão menos que nós. Cada geração terá que fabricar a sua própria cidade”. Mas se imbrica num conceito de que o projeto é mais importante que a realização, base de boa parte da chamada arte contemporânea.

AVENTURAS DE UM CONCEITO

PEGANDO PESADO

PERMANENTE INACABAMENTO

Ação, reação. Esta dupla complementar está tão inserida em nosso cotidiano que nos parece banal. Entretanto, nem sempre foi assim. Em Ação e reação — Vida e aventuras de um casal (Civilização Brasileira, 433 p., R$ 40,00), Jean Starobinski mostra que na Grécia Antiga Aristóteles relacionava ação com movimento e seu oposto seria paixão, ou seja, sofrer uma ação sem reagir. Foi na Alta Idade Média que surgiu uma versão ativa para o sofrer: a reação, conceito logo utilizado em física por Galileu e Newton. A partir daí, Starobinski, num projeto teórico de lingüística histórica, segue a fascinante “carreira” desta dupla, ação/reação, nas ciências, na teologia, na filosofia e na literatura.

Búlgara radicada em Paris, Julia Kristeva é uma as mais celebradas intelectuais da Europa nas áreas de filosofia, semiologia, lingüística, teoria literária e psicologia. Mas também escreve romances policiais. E em Possessões (Rocco, R$ 29,00) pega pesado. Já na primeira página o leitor se depara com uma mulher drogada, estrangulada, apunhalada e decapitada. Esse cadáver incrível vai conviver com um arrivista e uma mulher frívola, um estudante epilético e uma camponesa recalcada, um psicanalista pomposo e um menino autista, entre outros. Tudo entremeado com digressões sobre psicanálise e feminismo, artes plásticas e música erudita, em 212 páginas embrulhadas com humor cáustico.

Mais de uma pessoa já sentiu um grande desconforto diante dos corpos distorcidos que habitam a pintura do inglês Francis Bacon. Que diferença em relação àqueles corpos harmônicos e belos criados por Michelangelo! O que aconteceu? Seguindo a condição de fragilidade a que as descobertas científicas e a evolução do pensamento foram levando o homem, os artistas da modernidade cada vez mais buscam na fragmentação e dilaceramento a única maneira de “reencontrá-lo por inteiro, não mais na sua ilusória completude antropomórfica, mas em seu permanente inacabamento”. Esta é a conclusão a que chega Eliane Robert Moraes em O Corp o Impossível (Iluminuras, 249 p. R$ 35,00).

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28 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

O bicho da cultura O destino da política cultural, no Brasil, é um caso de loteria?

Ilustrações: Reprodução

O Jogo do Bicho, no Brasil, é assim: 1- avestruz, 2- águia, 3- burro, e por aí vai. O Ministério da Cultura de Gilberto Gil quer criar uma loteria da cultura, para reforçar a gorjeta orçamentária que lhe cabe todos os anos. E podemos imaginar um outro Jogo do Bicho que, ao invés de vinte e cinco irracionais, começasse assim: 1Machado de Assis, 2-Aleijadinho, 3-Nelson Rodrigues, em diante. No entanto, a prevalecer a ala populista do PT, que pretende nivelar o povo por baixo, o jogo seria mais ou menos assim: 1-Zezé de Camargo, 2- Gugu, 3-Ratinho... Como vocês estão vendo, eu estou pensando numa loteria cultural um pouco diferente da que o PT já fez em nível estadual e, agora, quer ampliar para o país inteiro. Isto é, que o velho Jogo do Bicho seja a loteria da cultura, no âmbito oficial, o que seria uma ótima oportunidade de legitimá-lo, tirando-lhe a pecha de contravenção penal. Na esteira dessa legitimação, poderíamos ter nossos cassinos legais e uma ou duas Las Vegas, para aplicar em impostos, no Brasil, o que iria quotidianamente para os bancos suíços. Cassinos contratam artistas e poderiam ampliar a oferta de emprego para músicos, cantores, encenadores e outros mais. O Jogo do Bicho está na letra do samba, está no âmago da cultura brasileira. Está nos sonhos e nas piadas do nosso povo. Um dia desses ouvi uma anedota sobre um matuto que ficou junto de uma banca de bicho dizendo a todo mundo que apostava: — Jogue em “trigue”. Só um sujeito jogou no tigre e ganhou. Quando foi receber o dinheiro, o matuto ainda estava lá. Ele lhe deu um dinheirinho e perguntou sobre o palpite. O matuto lhe respondeu que teve um sonho em que um menino com um balaio de pão tropeçou na frente dele e foi pão pra todo lado. Ele então perguntou: — E que tem a ver o pão com tudo isso? O matuto lhe respondeu na hora: — E pão não é feito de “trigue”? A loteria cultural é uma boa idéia e, fora de brincadeira, tanto faz que ela se pareça ou não com o brasileiríssimo Jogo do Bicho. Já deu certo na Itália e nos Estados Unidos e, provavelmente, em outros países de que não tivemos notícia. No entanto, não me animam os cálculos preliminares que estimam a geração anual de R$ 200 milhões para o MinC, algo correspondente a uma modesta superprodução do cinema norte-americano. De qualquer maneira é uma cifra quase igual aos R$ 264 milhões orçamentários. Mas não podemos esquecer que o ministro viajante que antecedeu Gilberto Gil, antes de terminar seus Continente . abril, 03


MARCO ZERO 29 oito anos de mandarinato, divulgou uma pesquisa, encomendada pelo MinC, mostrando o alto retorno do investimento na cultura em geração de emprego e renda para o país. Os que definiram o orçamento, ou não leram a pesquisa ou nela não acreditaram. No Congresso Nacional funcionam os lobbies ruralista, policial, banqueiro, jurídico e até futebolístico. Só o lobby cultural não funciona. A lei federal de incentivo à cultura (nº 8.813/91), que destina 4% sobre o imposto de renda devido, para o setor, mostrou-se, ao longo do tempo, mais um pernicioso instrumento de concentração de renda, no país, pois 80% da captação vêm sendo aplicados em projetos culturais do Sudeste. A equipe do ministro da Cultura, pelo que sei, está estudando alterações naquela legislação. O investimento público na cultura é curto e mal distribuído, além de a fiscalização ser falha e facilitar fraudes; isto vem colocando em risco o soerguimento, por exemplo, do cinema nacional, que produziu 190 longas-metragens de 1995 a 2002. Parece que tudo precisa ser repensado em termos de política cultural neste país. Vamos apostar no Bicho da Cultura, na loteria cultural, mas vamos planejar o investimento desconcentrado dos recursos por ela gerados. Em primeiro lugar, como Estado, precisamos estar atentos ao príncipio básico do ministro Gilberto Gil, em um dos seus pronunciamentos: “Não vamos produzir cultura, mas fomentar a sua produção . Mas, como desconcentrar os investimentos quando não conhecemos toda a realidade nacional? Existem cadastros industriais e comerciais, mas falta ao país um cadastro cultural, porque só com ele podemos planejar uma justa distribuição dos recursos. O que me desanima é saber que mesmo havendo um cadastro industrial o setor está altamente concentrado no país, e o estado até agora nada pode fazer para evitar a guerra fiscal e implantar uma nova política industrial. Será que o mesmo não aconteceria com a cultura? Alberto da Cunha Melo é jornalista, sociólogo e poeta.

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Enquanto as expedições anteriores traziam soldados, comerciantes e padres para o Brasil, o Conde João Maurício de Nassau inovou e trouxe em sua comitiva uma equipe de cientistas e artistas. Um deles, Frans Post, marcou seu nome para a posteridade por ter sido o primeiro pintor a retratar o Novo Mundo para os europeus. Quinze quadros do artista e edições originais e coloridas dos livros de Piso e Marcgraf e de Barlaeus sobre o período da ocupação holandesa no Brasil fazem parte da exposição (já aberta ao público) Frans Post e o Brasil Holandês na Coleção do Instituto Ricardo Brennand. Como o próprio nome da mostra já indica, todo o acervo que o público poderá apreciar pertence à coleção particular do empresário Ricardo Brennand. Post é o autor de 27 das 56 gravuras do livro de Gaspar Barlaeus, Rerum Per Octenium In Brasilia, que tem mapas e plantas de sítios e fortificações, cenas da frota holandesa, combates navais, paisagens e vistas marinhas. “O Instituto tem um exemplar colorido da primeira edição da publicação, que, junto com a obra de Piso e Marcgraf, são considerados os livros mais importantes do século XVII”, destaca a curadora da exposição Beatriz Corrêa do Lago. A intenção de Maurício de Nassau era divulgar o Novo Mundo para a Europa e, para isso, reuniu todo o material necessário e contratou os serviços de Barlaeus — que nunca esteve no Brasil — ao retornar à Holanda. A obra foi publicada em latim em Amsterdã (1647), traduzida para o alemão (1659), o holandês (1923) e o português (1940), sob o título História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. “Algumas gravuras presentes no livro poderão ser vistas, ampliadas, na exposição”, adianta Beatriz. Sempre pensando no registro histórico, Maurício de Nassau também patrocinou o livro Historia Naturalis Brasilae (1648), de George Marcgraf e Willem Piso. “Este estudo sobre a flora e a fauna brasileiras é fundamental para entender aquele período e há apenas seis exemplares coloridos à mão em todo o mundo”, destaca Beatriz Corrêa do Lago. Integrante da expedição de Nassau, o médico e naturalista holandês Willem Piso deixou observações detalhadas Continente . abril, 03

Além de ter a maior coleção de obras de Frans Post, o Instituto Ricardo Brennand é o único lugar do mundo que possui obras dos quatro períodos do artista holandês

Tatiana Resende

Fotos: Agência Imago

Detalhe da tela Paisagem do Recife, Frans Post, data desconhecida, óleo sobre madeira, 68,5 x 66,5 cm


ARTES 31 Âť Folha de rosto do livro Historia Naturalis Brasiliae de Guilherme Piso, 1647

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sobre as enfermidades brasileiras, as propriedades terapêuticas das plantas e o efeito do veneno dos animais. Já o alemão George Marcgraf era pintor, cartógrafo, astrônomo, naturalista e desenhista. Ajudando Piso, ele se dedicou à atividade científica, classificando plantas e animais, fazendo a descrição do clima e dos habitantes e estudando as estrelas do Hemisfério Sul. Foi ele o responsável pela construção do primeiro observatório astronômico das Américas, encomendado por Nassau para acompanhar o eclipse de 1640. O livro reúne 429 ilustrações de autoria dos pintores da comitiva de Nassau e algumas xilogravuras do próprio Marcgraf. Post — Muitos estudiosos afirmam que Frans Post seria apenas mais um paisagista se não tivesse vindo para o Brasil e se dedicado às paisagens tropicais com a qual ficaria identificado até o fim da vida. Sem competidores na Europa, o artista é considerado o grande documentarista do Ciclo do Açúcar, tendo produzido mais de cem quadros sobre o Brasil depois de deixá-lo, baseado em desenhos feitos in loco. Post nasceu na Holanda em 1612, vindo para o Brasil aos 25 anos a convite do Conde Maurício de Nassau. O pintor era filho do pintor de vitrais Jan Post e irmão do famoso arquiteto Pieter Post, que deve tê-lo indicado ao nobre holandês já que era seu arquiteto particular. Entre as telas que serão apresentadas na exposição, o destaque é o Forte Frederik Hendrik (1640). Dos dezoito quadros que Post pintou durante os sete anos em que permaneceu em Pernambuco (1637-1644), apenas sete sobreviveram aos dias atuais. Quatro estão no Museu do Louvre (França), um na Casa de Maurício de Nassau (Holanda) e dois em coleções particulares, sendo uma delas a de Ricardo Brennand. “A tela está voltando para

Paisagem, sem data, óleo sobre madeira, 68,5 x 66,5 cm Continente . abril, 03

casa. O mais interessante é que cada um dos quadros pintados no Brasil retratam uma região, um local importante. A do Instituto mostra justamente uma paisagem local: os bairros de São José e Santo Antônio, que ocupam agora o antigo território da Ilha de Antônio Vaz”, ressalta a curadora da exposição. Os quadros que mostravam a topografia e as belezas naturais das províncias serviram inicialmente para decorar a residência de Maurício de Nassau, que conservou o conjunto por 35 anos. Em 1679, presenteou o então rei da França, Luís XIV, com 42 obras de arte, sendo 27 trabalhos de Post, incluindo os 18 “brasileiros”. Não se sabe o que aconteceu com as onze telas que estão desaparecidas. Podem ter sido destruídas ou estar perdidas em algum porão, sem a devida identificação. De acordo com os estudos feitos por Beatriz Corrêa do Lago e o marido Pedro Corrêa do Lago, pesquisador da obra do artista, o trabalho de Post pode ser dividido em quatro fases: aquela em que viveu no Brasil, os anos imediatamente posteriores à sua volta para a Holanda (1644-1656), o período que vai de 1656 a 1667 e o que compreende os últimos anos de vida, quando as mãos não estavam tão firmes e os quadros têm menos qualidade. “Além de ter a maior coleção, o Instituto Ricardo Brennand é o único lugar do mundo que possui obras dos quatro períodos. Todas adquiridas nos últimos anos, num esforço do Instituto, que se voltou para o tema da dominação holandesa em Pernambuco e comprou tudo o que


ARTES 33 »

Tela Fort Frederik Hendrik com ilha de Antonio Vaz, de 1640, óleo sobre tela, 61,6 x 88,9 cm. Detalhe: o forte está à esquerda, na altura do horizonte

podia para melhorar o acervo”, conta Beatriz. A coleção do Instituto retrata todo o Brasil Holandês, que chegou a compreender a área que vai de Sergipe até o Maranhão, mas a maioria das telas é sobre Pernambuco. “Além desses quadros, Pernambuco ainda dispõe de duas outras obras de Frans Post, que pertencem ao acervo do Museu do Estado”, lembra a museóloga do Instituto Ricardo Brennand Regina Batista e Silva. Ma p as — Na exposição, poderão ser vistos ainda onze mapas, inclusive do início da ocupação holandesa (1630-1654), como o mapa de Pernambuco de Hessel Gerritz (1631). No ano seguinte, a vitória de Hendrick Loncq foi eternizada por Claes Visscher. “Este mapa inaugura, com o anterior, a representação impressa de Pernambuco na cartografia holandesa. O cerco de Olinda e a subseqüente conquista da região por Loncq e suas tropas são o pretexto para este mapa comemorativo, realizado por um dos maiores cartógrafos do período na Holanda”, explica a curadora. Há ainda quatro mapas de George Marcgraf mostrando Sergipe, o sul de Pernambuco (atual estado de Alagoas), outro mapa de Pernambuco (incluindo Itamaracá) e um mapa da Paraíba e do Rio Grande do Norte. “Estes são considerados os trabalhos mais importantes de Marcgraf no levantamento geográfico do Brasil Holandês. Como ele morreu no seu retorno a Holanda, em 1644, estes mapas foram gravados por artesãos por volta de

Muitos estudiosos afirmam que Frans Post seria apenas mais um paisagista, se não tivesse vindo para o Brasil e se dedicado às paisagens tropicais com as quais ficaria identificado até o fim da vida 1655 para o livro de Barleaus, e gravuras executadas a partir de desenhos de Frans Post foram acrescidas para ornar as áreas vazias desses mapas”, conta Beatriz Corrêa do Lago. A museóloga do Instituto Ricardo Brennand ressalta a importância das obras pois mostram as primeiras idéias de limite do Brasil, no século XVII. “O território ainda era mal explorado e as fronteiras ainda não estavam bem definidas”, completa Regina Batista. A museóloga chama a atenção também para as tapeçarias e as moedas de ouro e prata cunhadas em Pernambuco no período da ocupação holandesa, por determinação da Companhia das Índias Ocidentais. Normalmente, o metal era cunhado na Holanda e em Portugal. “Há ainda taças feitas de coco e prata, com cenas da vida brasileira, como pássaros, holandeses em redes e negros sendo chicoteados”, detalha. Tatiana Resende é jornalista.

Serviço: Exposição Frans Post Instituto Ricardo Brennand Engenho São João, s/n, Várzea A partir do dia 08 de abril de 2003 Terça a domingo das 10h às 17h

Tela Casa de Fazenda e Engenho, de 1660, óleo sobre madeira, 50 x 69 cm


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Os idiomas do

Encontro

Em Percurso Tátil, os artistas pernambucanos Aprigio e Frederico Fonseca reúnem no Museu de Arte Contemporânea de Olinda (MAC) mais de duas décadas de arte Weydson Barros Leal

O conjunto da obra de Aprigio e Frederico Fonseca representa o exercício da arte como plenitude e construção, como fragmentação e consistência. Diante de qualquer obra criada por estes artistas irmãos, o que temos é um trabalho de pesquisa e decodificação do mundo tangível — o chão, o muro, os elementos da terra, o alimento — em metáforas concretas, ou ainda imagens de uma memória íntima e coletiva que transforma o objeto de arte em representação de algo cognoscível mas único, original mas reconhecido. Isto traduz a emoção adocicada diante dos quadros em que quase sentimos o cheiro do açúcar, o gosto dos doces, a presença das casas nordestinas vistas ou inventadas, o chão dos pátios da infância onde a areia e o barro inventavam as cores da terra. Mas algo extrapola uma simples análise desta obra. E não seria exagero ou mesmo redução tratá-la apenas como pintura, uma vez Foto: Rômulo Fialdini

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Foto: Rômulo Fialdini

ARTES 35 »

PÆtio,1990. Areia, pó de mármore, madeira, cerâmica, porcelana

que todos os materiais utilizados por Aprigio e Frederico —pigmentos, areia, terra, pó de mármore e outros — convergem para a representação pictórica. O que está além da nomenclatura, o que constitui em cada quadro um a priori secreto de humanidade e elevação, é que exatamente aqueles materiais, em convergência perfeita, nos aproximam de nossas raízes humanísticas, de nossos instintos de convivência e preservação. É como se em toda cor, em toda forma reinventada pelo olho que uma nova textura acende, reencontrássemos os vestígios de uma passagem memorizada, de um imaginário alcançado. E uma música se incorpora à visão, e um ritmo que se desprende deste silêncio se traduz em elegância: esta, a palavra que resume todos os conjuntos de cores e formas que em Aprigio e Frederico são sua marca ou seu instinto. A exposição Percurso Tátil —1978-2002 reúne parte significativa da produção em conjunto dos irmãos pernambucanos. Não obstante, aqui também se encontram, para melhor entendimento do processo de adição das fontes criadoras, títulos individuais, revelando as origens que se fundem nos trabalhos assinados pelos dois. No caminho por que passa a obra desde 1978 (em trabalhos que ambos viriam reunir na exposição Que viva Canudos), é possível apontar sementes individuais do que, a partir de Pátio (1990), passaria a marcar suas criações posteriores. Mas o que é notável, e se mostra latente a partir da série de 90, é o direcionamento, para não usarmos o termo evolução, dessa pintura da matéria em busca de sua desmaterialização. É como se, vencidos os limites propostos por esta mesma matéria, os artistas buscassem uma máxima tensão pictórica com um mínimo de apropriação plástica. Ou seja: a matéria, em sua diminuição, iluminando os signos de sua presença. Mas isso não se alcança apenas pela subtração dos veículos. A pintura passa a exigir uma sofisticação de símbolos, de método, um idioma em que os silêncios desenham uma nova altura, um novo

Diante de qualquer obra criada por estes artistas irmãos, o que temos é um trabalho de pesquisa e decodificação do mundo tangível — o chão, o muro, os elementos da terra, o alimento — em metáforas concretas

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36 ARTES Fotos: Roberta Guimarães e Fred Jordão

À esquerda, Assucar, 2001. Verniz e pó de mármore sobre madeira, 122 x 43cm. Ao lado, Assucar, 2001. Verniz e cerâmica sobre pele artificial, 35cm de diâmetro

entendimento para um mesmo chão. É o que ocorre com extrema nitidez na série olanda, olenda, olinda (1993/1998) onde os materiais utilizados (madeira, placas de bronze, pó de ferro, papéis e vernizes) constroem a ponte entre a objetividade concreta das placas de Pátio (1990) e as levíssimas imagens de Assucar (2001-2002). Neste percurso, cujo fio condutor é guiado pela inteligência e inventividade, Aprigio e Frederico nos apresentam a série onde a idéia e sua realização assumem o máximo contato com aquele que vê. Em Assucar, série inspirada no brevíssimo livro homônimo de Gilberto Freyre — livro de “receitas de bolos e doces dos engenhos do Nordeste” — os artistas recorrem mais uma vez à abordagem de um elemento real como acesso a um mundo de todos. Também por isso, sua exploração plástica através do pó de mármore, da resina, da madeira, de objetos e papéis, aponta para um elenco de possibilidades infinitas de representação. São quadros de açúcar. E mel de açúcar. Mais, são quadros de tudo o que a doçura da cana pode criar: açúcares brancos, queimados, finíssimos, granulados, misturados em melado, ou ao mel servindo, como numa mesa de açúcar, para seus desenhos derramados, em que os tons do amarelo imitam a lembrança do fogo. Na série Assucar, a variação de formas e tratamentos de seus suportes reflete a riqueza de seu tema. Em retângulos de madeira vertical ou horizontal, o pó de mármore e o verniz recebem ainda o acréscimo do papel, do couro, da resina, da cerâmica, da porcelana, em planos e ordenamentos ora suaves ora inquietantes. Há ainda as formas ogivais, circulares, os objetos que como pratos carregam os desenhos do verniz derretido ou até o próprio doce envernizado — uma rapadura , em sua forma comumente encontrada. Em Assucar , o encaminhamento do discurso pictórico de

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Aprígio e Frederico atende à lógica secreta de suas obras. De uma arte telúrica, a partir da utilização de seus materiais, até uma consciência histórica e social referida em expressões por vezes figurativas, suas obras confirmam, nesta exposição, que têm o timbre coerente do conjunto, a consistência fluente do mais limpo rio.

Weydson Barros Leal é poeta e crítico de arte.

Tejupares ( 2 peças), 1998. Técnica mista sobre madeira, 45 x 160 cm

Exposição Percurso Tátil, de Aprígio e Frederico Fonseca Local: Museu de Arte Contemporânea — MAC, Rua 13 de Maio S/N, Cidade Alta — Olinda Vernissage: Dia 9 de abril, às 20h Visitação: De terça a sexta-feira, das 9 às 21h30. Sábados e domingos, das 14 às 17h. Até 9 de maio


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38 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Fotos: Silverman Foundation

Dirt Water, de Ben Vautier

Fluxus, uma tola pretensão

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O movimento Fluxus surgiu no começo da década de 1960, dizendo-se herdeiro das vanguardas históricas e especialmente da LEF e do Dadaísmo. Seu fundador e principal teórico, o lituano George Maciunas, pretendia que não houvesse distinção entre as obras de arte e os objetos comuns, como os que se compram nas lojas. Este movimento, que se estendeu até os anos 70, não é muito conhecido no Brasil, a não ser por um grupo restrito de artistas e críticos que se interessam ou acompanham as tendências ditas experimentais. Somente agora, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, tem o público a oportunidade de conhecer um número considerável de obras dos artistas fluxus. A exposição reúne dezenas de obras, todas elas pertencentes a um colecionador particular. São, como raríssima exceção, trabalhos de pequeno porte e que podem ser classificados, de modo geral, como obras gráficas, colagens e conjuntos de objetos. Os trabalhos das duas primeiras categorias não são mais que variações de experimentos realizados pelos dadaístas e surrealistas, só que, diga-se de passagem, como muito mais humor e originalidade; é na terceira categoria, ou seja, dos conjuntos de objetos que se situam os trabalhos mais tipicamente fluxus. Mas que objetos são esses? Às vezes são brinquedos comprados em lojas ou, por exemplo, pedras de xadrez, pesos de vidro, tubos de vidro, um ovo de plástico, um cofre em forma de porquinho, etc. Tais objetos estão quase sempre apresentados dentro de pequenas caixas de madeira ou de plástico transparente, ou em bauzinhos forrados de tecido; nem


TRADUZIR-SE 39

sempre todos os objetos estão dentro das caixas; na maioria das vezes estão, em parte, fora delas, cuidadosamente colocados ali, de modo a resultar um conjunto interessante. Tanto na escolha dos objetos como na sua disposição impera um extremo bom gosto. Nada, portanto, que lembre a rebeldia, a contundência ou o inconformismo dos dadaístas e surrealistas. Pelo contrário, pode-se afirmar, sem exagero, que tais conjuntos de objetos parecem feitos para enfeitar a sala de visitas de delicadas senhoras de bom gosto. Afora isto, a impressão geral que a exposição me deixou foi de déjà vu, não por ser uma retrospectiva já que, para nós, o movimento Fluxus era até então praticamente desconhecido. Creio que a sensação de déjà vu está em sua origem mesma, uma vez que não trouxe qualquer contribuição nova à arte contemporânea. Trata-se de fato de uma diluição do que já havia sido feito muitos anos antes. Até mesmo o conjunto de objetos são uma decorrência dos read-mades de Marcel Duchamp, mas sem a ácida irreverência do dadaísta: em vez do urinol, o bibelô... Para resumir, em poucas palavras, o pensamento de Maciunas, diria que se trata, no plano teórico, de uma decorrência da visão anti-arte de Duchamp, particularmente no que se refere ao read-made. Duchamp afirmava que, ao escolher, entre os objetos comuns, um read-made, procurava fazê-lo sem qualquer emoção ou interesse estético, quase com indiferença. Não é outro o pensamento de Maciunas quando diz que não deve haver qualquer diferença entre os objetos comuns e uma obra de arte, chegando mesmo a profetizar o dia em que a arte desaparecerá e os artistas passarão a se ocupar de outras coisas. Não obstante, escreve manifestos e promove exposições de suas obras e de seus seguidores, em galerias de arte e museus, numa atitude que contradiz as suas teorias. Se o ideal fluxus é não haver distinção entre e arte e não-arte, o coerente seria não fazer obra alguma, uma vez que selecionar objetos e dispô-los em conjuntos artisticamente concebidos, é

Colagem de Robert Watts

levar o espectador a fazer a distinção que consideram indevida e tentar inseri-los na categoria de obra de arte. Esta é a contradição insuperável que constitui o impasse dos movimentos anti-arte. Se de fato o seu interesse fosse não fazer arte, limitar-se-iam a ocupar-se de outra coisa qualquer. Fazer anti-arte é na verdade tentar fazer arte fora de todos os fatores e princípios consubstanciais a ela. Aliás é o que afirmou um outro teórico do Fluxus: “remover do conceito de arte o que estabelecia a distinção (com os demais objetos): a inspiração, a exclusividade, a complexidade, a individualidade, a raridade, a ambição, a importância.” Faltou incluir aí a inventividade, a criatividade e a emoção.O movimento Fluxus quer substituir a obra de arte por objetos corriqueiros, feitos sem intenção artística, como brinquedos, vidros de remédios, etc. O impasse consiste em que, sem aquelas qualidades, o que for feito, não expressará nada de próprio, não terá qualquer relevo ou importância — perder-se-ia na mesmice dos inumeráveis objetos produzidos em série para atender a um público sem qualquer exigência estética. Só chamam a atenção, se são destacados dos outros, isolados, como fez Duchamp com seus read-made. A pergunta é: o que se ganha em não criar nada que contenha criatividade e emoção? O que se ganha em exterminar a arte e os artistas? A atitude de Maciunas e seus seguidores é apenas a anulação da capacidade criadora do artista, que é assim estigmatizado como um ser indigno e desprezível. Noutras palavras, a afirmação da banalidade, da massificação em detrimento da individualidade criadora. Não por acaso, eles mesmo comparam esta atitude à da Revolução Cultural Chinesa que transformou artistas e poetas em meros trabalhadores noturnos, vendo nisto uma “atitude radical de igualdade”. Assim se explica também a afirmação de Josef Beuys, segundo a qual “todo mundo é artista”. Claro, se o que não é arte passa a ser tido como tal, não é preciso ser artista para fazê-lo. Esta atitude de suposta humildade — que vê na criação artística não a necessidade de criar mas apenas mera pretensão e vaidade — decorre de uma visão equivocada e primária da igualdade dos seres humanos. Só mesmo sectários do tipo maoísta não percebem que os homens são iguais em direitos e deveres mas não em suas qualidades pessoais. Do mesmo modo que não é qualquer um que pode compor a Tocata e fuga, não é qualquer um que joga futebol como Ronaldinho ou possui a capacidade matemática de um Einstein. Negar o talento criador das personalidades artísticas e nivelar todas as pessoas por baixo é um exercício de infantil niilismo que desconhece a função da arte na fundação dos valores sociais e na vida das pessoas. Ou seja, uma bobagem pretensiosa e nada mais.

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Onde

nasceu o

samba

Pesquisador pernambucano sustenta que o samba não é negro e muito menos carioca. Seria nordestino e indígena e teria vindo dos primórdios da colonização Adriana Dória Matos Ressuscitem Donga, Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade. Tragam lá de cima também Sílvio Romero, Fernão Cardim, Pereira da Costa, Euclides da Cunha. O pesquisador Bernardo Alves, 49 anos, tem uma conversa boa para levar com eles e outros mais que por acaso desejem à Terra descer. Trata-se de um ajuste de contas com a história da música brasileira. Para os intimados acima e os novatos no assunto, estejam de acordo ou não, Bernardo oferece uma clara teoria: o samba não é negro, nem carioca; o samba nasceu caboclo, no sertão nordestino. E, para que não reste dúvida, ele mata a cobra e mostra o pau, através das provas reunidas na pesquisa que empreendeu, intitulada A Pré-História do Samba. Desde criança, quando morava em São João de Garanhuns, trazido bebê do interior de São Paulo, Bernardo ouvia o pessoal do sítio dizer que “ia a um samba”, que os músicos “faziam um samba”. Depois, morou um tempo no Sertão do Cariri e lá também ouvia samba. E aquele samba não tinha nada a ver com o estilo que assim se convencionou chamar, o das batucadas cariocas. Começou a se perguntar o que havia de estranho naquela discrepância. Bernardo Alves chegou ao Recife em 1969, durante o Regime Militar. Pensando em ingressar na faculdade – Letras ou Música –, foi fazer o supletivo, mas logo desistiu do ensino formal. Aborreceu-se quando o professor de História disse que em Cuba houvera um golpe e aqui se vivia a Revolução. Ele nunca iria acreditar e tampouco escrever aquela lição escolar. A decepção com o conhecimento acadêmico empurrou Bernardo Alves para o autodidatismo, fincado na certeza de que quem busca a verdade e quer descobrir coisas novas não pode ir somente pelos caminhos já trilhados. A pesquisa que Continente . abril, 03

empreendeu sobre a origem do samba testemunha o quanto acredita na própria sentença. Faz vinte e seis anos que Bernardo escarafuncha o samba. Morava em São Paulo e lia O Termo Samba, do maestro Batista Siqueira, quando resolveu saciar a curiosidade pessoal, respondendo às indagações que se fazia quanto à natureza do ritmo pelo acesso a documentos, livros, fontes primárias. Entre 1977 e 1979, de volta ao Recife, exibia aos amigos os primeiros escritos, anotações e argumentações. Eles as recebiam com entusiasmo, mas também com inevitável ceticismo. Para quem se acostumara à história oficial de que o samba nascera negro e carioca, no começo do século 20, nas rodas da casa de Tia Ciata, das quais participaram Pixinguinha, Sinhô e Donga, entre outros bambas, e que sua primeira gravação, registrada em 1917, fora a música Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida, era difícil assimilar a idéia de que tudo começara com índios catequizados do Nordeste. Mas, para se ter uma idéia da diferença encontrada entre a história tornada oficial no século 20 e fontes anteriores, que a refutam, em A PréHistória do Samba, Bernardo identifica a presença da palavra samba em 1699, na Arte de Grammatica da Língua Brasílica da Naçan Kiriri, escrita pelo padre Luiz Vincêncio Mamiani, que vivia no alto sertão nordestino. Mamiani foi um dos 100 autores consultados pelo pesquisador, que contou com o incentivo inicial do musicólogo Padre Diniz, membro da Academia Brasileira de Música e ex-professor do maestro Marlos Nobre. Como afirma Bernardo, mesmo não apoiando diretamente a tese, Pe. Diniz apoiou o pesquisador, abrindo-lhe sua rica biblioteca. Bernardo conta que, na seqüência, passou anos no Arquivo Público, no Gabinete Português de Leitura. Leu os escritos de viajantes ingleses, portugueses, de pesquisadores africanos, indianistas e não teve preconceito em consultar pasquins e jornais alternativos, para os quais pesquisadores formados em geral torcem o nariz, por menosprezo


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Foto: Breno Laprovitera

Bernardo Alves vem pesquisando o tema há mais de 20 anos e acha que há boicote ao autodidata

à fonte. Foram vários carnavais com pranchetas à mão, para conversar com mestres de sambadas. Para manter-se firme em sua tese, Bernardo teve não apenas obstinação em buscar fontes que a comprovassem, mas convicção de que estava no caminho certo. Teve a coragem de não desistir, de discordar de autores respeitadíssimos, considerados incontestáveis, de debruçar-se sobre jornais antigos – sobretudo do século 19 – e esperar até que pudesse, enfim, publicar o que coletou em livro. Ele conta que logo no começo das pesquisas pediu a Gilberto Freyre para indicar uma literatura regional que contivesse dados relacionados ao samba daqui. Bernardo achou que o mestre não tinha entendido a história ou o estava desprezando, pois lhe disse para procurar Renato de Almeida, um dos que haviam ajudado a criar a confusão em torno da origem do samba. Bernardo compreendeu ao longo

do tempo, também, que os pesquisadores de academia não dão atenção – e até boicotam – pesquisas autodidatas. Do mesmo modo, está convicto de que a exclusão de menção quanto à origem nordestina do samba resulta de “interesses inconfessáveis”, pois “toda história malcontada serve a alguém”. Esta serviria aos cariocas, que capitalizam bem o fenômeno samba como atração para os setores do turismo e da indústria fonográfica. Bernardo alega que a história do samba foi escrita por autores hegemônicos do Sudeste e por africanistas, daí as argumentações geográficas e etnográficas em favor do Rio de Janeiro e dos negros. Entretanto, a argumentação de Bernardo Alves não peca por bairrismo. No seu estudo, ele enfatiza a necessidade de se cumprir com o dever da verdade, comparando a situação do samba no Brasil com a do blues nos Estados Unidos, onde é sabido que o estilo nasceu em

Nova Orleans e se consagrou em Chicago. Portanto, não desmerece a evolução do samba feito no Rio de Janeiro, mas enfatiza que quando muito este poderia ser chamado de samba de batucada, já que o samba original está mais próximo do coco e da embolada. Bernardo conta que o samba nordestino que chegou ao Rio de Janeiro foi acolhido por compositores de outra cultura musical, “pois o Rio, que na época, vivia do maxixe, da polca, do tango, da modinha e do lundu, começou a se ‘contaminar’, acharam de utilizar aqueles temas folclóricos dando-lhes uma roupagem à sua maneira, ou seja, amaxixada”. Samba de pé-de-serra, samba-de-roda, samba de coco, coco sambado, samba de matuto, samba de caboclo, samba de velho, samba-de-almocreve seriam antecessores e precursores do samba carnavalesco carioca, do samba de partido alto, samba-enredo, samba-debreque, samba-canção, samba-choro. Continente . abril, 03


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Ancestral que – quem diria – levaria até a criação da bossa nova, esta, um samba cool de influência jazzística. O fluxo migratório do samba, originário da nação cariri, teria seguido do interior ao litoral nordestino pelas mãos dos almocreves (comerciantes que viajavam sobre jumentos, sempre portando uma viola) e corumbas (mamelucos e caboclos que vinham do alto sertão para trabalhar na cana em épocas de seca). No litoral, teria recebido influências dos negros bantos e daí para o Sudeste como cultura da plebe – negros e índios escravizados, soldados vindos da Guerra do Paraguai. A pesquisa de Bernardo quer passar esses pontos a limpo e dizer que o samba tem uma nação como origem, a nação cariri. Mesmo que a história oficial omita, os fatos aparecem em registros de alcance de massa, como na letra da música de João de Deus (compositor do conjunto Samba 5, do Rio, no disco Olinda, a cidade simpatia do Brasil, 1981), O Samba é Carioqueiro, da qual se extrai o trecho: “O samba é carioqueiro / Criou fama no Rio, em solo brasileiro / Há quem diga ele ser nordestino / Oriundo do Agreste e do Sertão / E que os índios por obra do destino / Já o dançaram batendo com os pés no chão / Mas não concorda a grande maioria / Os cariocas foram quem deu expressão / Trouxeram da África a magia / E no ritmo colocaram mais percussão.” A composição de João de Deus não foi incluída na tese de Bernardo, mas nela há outras músicas, que afinam a história do samba. Lançada em 2002 em edição do autor com apoio da prefeitura de Petrolina, numa pequena tiragem de 400 exemplares, A Pré-História do Samba está com a segunda edição pronta. Nela, o autor pôde inserir a revisão ignorada na primeira edição, alterou a ordem dos capítulos e acrescentou outros, onde mostra os resultados conseguidos desde a publicação da primeira matéria jornalística sobre a tese, em 1981. Bernardo Alves mantém a loja Discos Raros no primeiro andar do número 370 da Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista, Centro do Recife, de onde irradia boca-a-boca suas idéias e promove rodas de debates e recitais de poesia.

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Outras interpretações para o samba O músico Fred Zero Quatro, líder da banda Mundo Livre S.A., não está preocupado com o sexo dos anjos. Se o samba nasceu no Recife, no Sertão do Cariri ou no morro carioca, a polêmica não lhe interessa, por lhe parecer complicada, além de pouco produtiva. Para ele, os registros históricos se diluíram. “Já na época de Pelo Telefone o samba era um apanhado de várias tendências. Definir o estilo musical samba também é tarefa complexa. Os historiadores dizem que a salsa cubana não é um estilo musical, mas ganhou este nome nos clubes de dança norte-americanos, que colocaram um termo genérico para designar vários ritmos caribenhos. Também dizem que o choro não é estilo. Aqui mesmo em Pernambuco os mestres de maracatu rural discordam sobre Naná Vasconcelos reger, durante o carnaval, uma orquestra com vários grupos diferentes. Os que são contra alegam que cada maracatu tem sua tradição, sua batida, seu santo, mantendo como único elo o uso das alfaias. Lá nos Estados Unidos, um jornalista de Seattle deu o nome de grunge a estilos musicais heterogêneos. Essa discussão nos leva aonde?” Mesmo sendo afirmativo sobre esse ponto, Zero Quatro acha positiva a busca de pesquisadores em desvendar os processos históricos da música brasileira, sobretudo para quebrar a hegemonia dos centros acadêmicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, os mais influentes do país, que acabam defendendo registros locais e ocultando os de outras regiões. A esse respeito, lembra a polêmica sobre a criação da primeira rádio nacional, onde o Rio de Janeiro defende a Roquete Pinto, registrada em 1922, quando a Rádio Clube do Recife já o fizera três anos antes. Zero Quatro não leu A Pré-História do Samba. “Não conheço a tese do Bernardo. Sobre a história do samba, minha maior referência é o ensaio de Hermano Vianna, O Mistério do Samba, de onde vem o mesmo título da música que gravamos no CD Por Pouco. O livro procura desvendar os motivos por que o sambista era perseguido e acabou se relacionando com outros segmentos da sociedade até se tornar a própria referência do Brasil como nação”. Numa coisa Fred Zero Quatro concorda com Siba


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Foto: Geyson Magno / Lumiar

Foto: Reprodução

Fred Zero Quatro: samba são tendências

Siba: palavra tem várias conotações

Sandroni: raízes diferentes

Veloso, músico que há pouco lançou trabalho fora do grupo nardo, diz que se a pesquisa dele está ocupada em revelar a Mestre Ambrósio, o Fuloresta do Samba, CD que tem a parcontribuição indígena na formação da música nacional, já ticipação de mestres de sambada de Nazaré da Mata, município cumpre uma importante função cultural ao tirar o leitor de da Zona da Mata Norte pernambucana. Para ambos, a palavra uma perversa ignorância sobre o assunto. samba recebe diferentes conotações em várias partes do Brasil. Na opinião do etnomusicólogo carioca Carlos Sandroni, No interior ela designa festejo, brincadeira; pode ser um folentre as contribuições de A Pré-História do Samba, a que ele considera mais interessante é o registro de grupos recifenses guedo, um ritual religioso ou simplesmente algazarra. “A palaque se autodenominavam de samba, no início do século 20. vra samba é central para entender a cultura brasileira”, avalia Radicado no Recife há cinco anos, onde atua como professor Siba, para quem o samba é, acima de tudo, um momento de de graduação em Música e pós-graduação em Antropologia encontro das pessoas através das festas de rua, presentes em na UFPE, além de coordenar o núcleo de Etnomusicologia da todo o Brasil. mesma universidade, Sandroni é autor de Feitiço “Esses encontros e confraternizações através da Decente, Transformações do Samba Carioca, dança e da música na rua geraram vários ritmos e 1917-1933 e aponta defeito estrutural na suas nuances partiram das influências étnicas história do samba. que sofreram”. Para Siba, também, todo Para outros “De fato houve uma concentração coco é samba. “Caboclinho, maracatu e de produção de pesquisas no Sudeste e coco se constituem samba na Zona da estudiosos, os estudos sobre música popular puMata”. Há treze anos pesquisando e cona palavra samba blicados há algum tempo estavam fovivendo com os mestres de maracatu recebe conotações rural na região, o músico ressalta que lá cados nas manifestações desta rediferentes em lugares o sentido mais amplo da palavra ocorre gião. Hoje, há verdadeira consciência e épocas diversos quando dois ou mais grupos de maracatu da necessidade de ampliação das áreas de se encontram para uma sambada, onde canpesquisa e a existência de um núcleo de tam, dançam e enfrentam os rivais em desafios etnomusicologia na UFPE é um testemunho poéticos, alguns deles irmanados com o repente. disso. O que não acho justo na pesquisa de “Por contingências históricas, políticas e econômicas, o Bernardo Alves é a acusação de preguiça por samba urbano carioca passou a ser considerado de maior releparte dos pesquisadores que o antecederam ou mesmo a vância. Mas a questão da legitimidade não me preocupa. Para afirmação de que tenham agido de má fé”. mim, em todo lugar o samba é legítimo”. Sandroni afirma ser procedente a pesquisa de Bernardo, na Nas pesquisas musicais que empreende, Siba Veloso enqual identifica méritos indiscutíveis. Entretanto, faz um senão contra conexões ricas entre gêneros diversos. Ele afirma, por ao trabalho: “O problema é que ele confunde elementos difeexemplo, que o samba rural paulista de hoje está bastante ligarentes que têm o mesmo nome. O samba do século 19 certado ao maracatu rural pernambucano de 40 anos atrás. Enconmente não se constitui o mesmo ritmo do samba do século 20, tra elementos de união entre o boi de zabumba do Maranhão, assim como não podemos afirmar terem a mesma raiz”. o maracatu rural local e o samba carioca. Adriana Dória Matos é jornalista. Ainda que Siba apenas tenha ouvido falar do livro de Ber-

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O DESABROCHAR DE TANIA CHRISTAL

O disco da cantora e compositora Tania Christal é original e criativo

Há artistas que têm sua vida dividida em duas fases. Na primeira, eles estão tateando,buscando o rumo certo, aquela senda que parece lhes ter sido destinada com exclusividade. Na segunda, e é maravilhoso quando isso acontece, eles desabrocham de vez, encontraram finalmente sua voz real e então se expressam com total propriedade e exuberância. Esta segunda fase parece estar sendo inaugurada por Tania Christal no CD que leva seu nome. Pode-se dizer, tranqüilamente, que é o disco mais criativo de uma intérprete brasileira desde o desaparecimento de Cássia Eller. A começar pela arregimentação dos instrumentos, mínima, esquelética, funcional ao máximo, o que dá ao conjunto um clima cool e ao mesmo tempo informal, amador (no sentido de feito com amor). Os arranjos também são simples, mas criativos, com algumas sacadas realmente brilhantes, como a quebrada de maracatu dentro do Samba do Bombeiro. As melodias fogem ao óbvio, que está devastando a

música popular brasileira, e revelam da parte da compositora e seus parceiros (Numa Ciro, Nabuco dos Santos, Claude Burg e Flávio de Lira) uma inventividade melódica que, em certos momentos, rompe a moldura harmônica para ressaltar uma informação dramática (no sentido da teatralidade) do texto. Este, ou seja, as letras são também um destaque, graças à ironia crítica, acentuada pelas melodias e pela interpretação peculiar de Tania. Interpretação precisa que, em certos momentos, parte para a vocalização, sem cair no virtuosismo exibicionista e bailarino que, na maioria das vezes, termina por prejudicar os cantores. Há certos momentos em Vigésima Hora e A Cigana que mostram a eficácia desse recurso, quando usado com propriedade. Há, ainda, nas letras, um toque de contemporaneidade e cosmopolitismo (algumas são em francês e inglês), sem falar na maneira original de tratar os temas. O Homem Lobisomem, por exemplo, narra o ato sexual de uma mulher com um lobisomem: “Suas mãos cresceram/ Seus pelos cresceram/ Suas unhas cresceram/ E me deixei arranhar/ Como marcas ao tempo”. Quer algo mais inusitado? O CD T nia Christal pode ser encontrado pelo fone (81) 3326.3651

FORRÓ DE QUALIDADE EM DISCO INDEPENDENTE O gênero forró tem sido aviltado, de uns tempos para cá, pela vulgaridade e lugar-comum. Não é o caso do segundo CD do compositor cearense radicado em Pernambuco, Xico Bezerra, recém-lançado em produção independente. Forroboxote2 traz 14 composições inéditas (xotes, baiões e, variando de gênero, um chorinho e um frevo de bloco). É música de qualidade, com melodias bem construídas e letras deliciosas ("Se tu quiser / eu crio um sentimento pra gente se amar / descubro um jeito novo de te abraçar / te beijo com um beijo / que ninguém nunca beijou”), arranjos e acompanhamento musical típico de forró-pé-serra, sob a batuta do sanfoContinente . abril, 03

neiro Genaro. E conta, ainda, com participações especiais de Maciel Melo e Arlindo dos Oito Baixos — dois ícones da música popular nordestina. Todas as faixas são interpretadas por Cléo Dantas, ex-c rooner da famosa Banda do Camarão, com um timbre de voz que se aproxima do de Dominguinhos, mas pessoal e intransferível. Xico Bezerra, nascido no Crato (“na esquina do Ceará com Pernambuco”), criado no Sertão, é formado em administração e trabalha no Banco Central.

O disco pode ser encontrado nas lojas Opus, Vivace, Oficina da Música e Aky Discos, ao preço de R$ 10,00.

Xico Bezerra tem músicas bem construídas e letras deliciosas


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Teatro para

energizar

O Armazém Companhia de Teatro completa 15 anos com lançamento de um livro Cena de Sob o Sol em meu leito ap s a Ægua

“O teatro não é um lugar para relaxar, mas para se energizar. O público tem de sair do teatro energizado. Não precisa sair de lá com a vida dele modificada, mas lotado de energia”. A declaração do diretor teatral Paulo Moraes sintetiza o objetivo final do Armazém Companhia de Teatro, que comemora 15 anos de palco com o livro Para ver com olhos livres. Assinado pelos jornalistas Marcos Losnak, Lionel Fischer e Valmir Santos, o livro explica a consolidação da Companhia dentro do chamado teatro de pesquisa ou teatro experimental da cena carioca. O grupo começou em 1987, em Londrina/Paraná, com um grupo de adolescentes batizado irreverentemente de Companhia Dramática Bombom Pra Que Se Pirulito Tem Pauzinho Para Se Chupar. Entusiasmados e transpirando vitalidade, o grupo estreou com Aniversário de Vida, Aniversário de Morte, espetáculo seguido de Périplo (88), A Construção do Olhar (90) e Alabastro (91). A essa altura já tinham assumido o nome mais sóbrio que trazem hoje, numa referência aos galpões antigos que utilizavam para ensaios. Três fatores contribuíram para o profissionalismo do grupo e para o direcionamento que tomaram. Primeiro, o direcionamento da vida para o teatro. Muitos deixaram trabalho, escola e família com esse objetivo. Segundo, manter um espaço constante, próprio e alternativo para ensaios diários e apresentações. Terceiro, exercer uma disciplina rígida na exploração do trabalho de ator. Em 1993 o espetáculo A Ratoeira é o Gato, abordando a violência urbana, é um marco na história do Armazém. Com os atores Patrícia Selonk, Marcos Martins, Simone Mazzer, Simone Vianna e Narlo Rodrigues, que integravam a Companhia desde o início, o trabalho do grupo se solidifica, desaguando em mon-tagens como A Tempestade (94), Édipo (95), Esperando Godot (96), Out Cry (97) e Sob o Sol em Meu Leito Após a Água (97). Sem ficar estagnado nas conquistas, a cada espetáculo novas soluções cênicas eram pesquisadas e criadas. Em 1999, o Armazém mudou-se para uma das salas da Fundição Progresso, sob os Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, montando Alice Através do Espelho e Da Arte de Subir em Telhados Continente . março, 03

(2001). Sem concessões de mercado ou modismos, ao contrário, com muita personalidade, o grupo foi conquistando definitivamente o aplauso da crítica especializada. E novos fatores foram apontados para sua conquista de qualidade: o trabalho em grupo, a sistemática exploração da voz e do corpo do ator, a criatividade nos cenários, figurinos e iluminação. E a valorização da palavra, da força do texto teatral, o que aliás se revela pela escolha de repertório do Armazém. Sobre o trabalho de ator, Patrícia Selonk comenta: “Gosto de dizer que eu não era uma atriz talentosa quando comecei. O talento foi aparecendo quando meu corpo de atriz foi se tornando mais expressivo. Fui melhorando por insistência”. Não é para menos que um dos bordões do diretor é a frase: “A resposta está no corpo”. Patrícia confirma isso: “Aprender a ouvir o que o corpo quer fazer, requer treinamento. Sinto que, no Armazém, conforme vamos caminhando, ganhamos mais lucidez do corpo. É incrível perceber como uma mínima mudança física interfere na paisagem interior”.

Para Ver Com Olhos Livres — Armazém Companhia de Teatro R$ 25,00 - 95 p. Livraria da Travessa/Rio e-mail: armazemteatro@openlink.com.br Fotos: Divulgação

Cena de AniversÆrio de vida, aniversÆrio de morte


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O papel das mulheres no CinePE

Fotos: Divulgação

Depois de mudar de nome para CinePE, o antigo Festival de Cinema do Recife homenageia o sexo feminino e propõe um conceito mais amplo dos produtos audiovisuais Alexandre Figueirôa

As mulheres são as estrelas do CinePE Festival do Audiovisual, nova denominação do Festival de Cinema do Recife, cuja sétima edição movimenta o Centro de Convenções de Pernambuco, em Olinda, entre 24 e 30 de abril, prometendo mudanças. Revelando o Talento da Mulher é o tema do evento para este ano e aproveitando o mote, diretoras, produtoras, atrizes, jornalistas serão reverenciadas com a Medalha de Mérito Carmem Santos, referência a um dos grandes nomes do cinema brasileiro. As homenageadas, entre outras, são Glória Menezes, Glória Pires, Darlene Glória, Tata Amaral, Laura Cardoso, Cássia Kiss, Bete Mendes, Lucélia Santos, Kátia Mesel, Lais Bodansky, Jane Malaquias e Assunção Hernandez. Um atrativo do CinePE será a inauguração da Mostra Mulher, uma competição em caráter especial com curtas metragens em 35 mm feitos por mulheres. As inovações prosseguem com o troféu de premiação que agora em vez de Passista chama-se Calunga, numa alusão à boneca do maracatu, e a realização de sessões com entrada franca no Teatro Guararapes, nas tardes de sexta, sábado e domingo, dos curtas em competição nas categorias ficção em 16 mm, documentário em 35 mm e animação em 35mm. Com isto a organi-

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Geninha da Rosa Borges e Paulo Autran no curta Teatro da menina Geninha

zação do evento pretende enxugar a grade de programação para cada noite, evitando que a exibição dos curtas e longas-metragens de ficção em 35 mm da mostra competitiva entre pela madrugada. Uma das atrações do CinePE será o esperado longa pernambucano Amarelo Manga, de Cláudio Assis, confirmado para ser exibido hors concours no encerramento do Festival. Este ano não haverá documentários na mostra competitiva de longas-metragens, pois houve apenas cinco filmes inscritos e, entre eles, quatro não puderam garantir estarem concluídos a tempo. Por outro lado o cardápio de ficção parece bem variado com a exibição de filmes como Apolônio Brasil, de Hugo Carvana, último trabalho para o cinema do ator José Lewgoy; Lua Cambará, de Rosemberg Cariri; Celeste e a Estrela, de Betse de Paula; Viva Sapato, de Luiz Carlos Lacerda; À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel; Concerto Campestre, de Henrique de Freitas Lima; Samba-Canção, de Rafael Conde; Lara, de Ana Maria Magalhães. A garantia de filmes inéditos não é uma tarefa fácil diante dos interesses comerciais dos distribuidores e também de outros festivais. Mas como já é sua marca, o Festival recifense permanece uma excelente vitrine para os cur-


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Atrizes brasileiras marcam presença nos curtas que serão exibidos no CinePe

Km 0 (RJ)

Furos do Sofá (RS)

A Partida (PE)

Achados e Perdidos (RJ)

tas-metragens e este ano o número de filmes inscritos atingiu a marca de 126 produções, sendo selecionados 37. O organizador Alfredo Bertini, diretor da BPE (Bertini Produções e Eventos), promete fortalecer a premiação de curtas, sobretudo oferecendo prêmios em serviço. Entre os pernambucanos selecionados estão, A Partida, de Sandra Ribeiro; A Menina do Algodão, de Daniel Bandeira e Kleber Mendonça Filho; e O Teatro da Menina Geninha, de Silvana Marpoara e Tathiane Quesado. O CinePE também prossegue no seu intento de ser um fórum de discussão da produção audiovisual nacional e de fortalecer a possibilidade de concretizar o Recife como um pólo regional. Para isto o festival incorpora nas suas atividades o Encontro Regional do Congresso Brasileiro de Cinema, de 22 a 24 de abril, que acontece na Fundação Joaquim Nabuco; a Reunião Preparatória do Congresso Brasileiro de Cinema, nos dias 24 e 25 de abril; e os debates Nova Tecnologia do Audiovisual, no dia 22 de abril e A Mulher e o Audiovisual, no dia 28. Estes encontros prometem trazer ao Recife o secretário do audiovisual do governo federal Orlando Senna; o presidente da Ancine — Agência Nacional do Cinema — Gustavo Dahl; Assunção Hernandez, presidente do Congresso Brasileiro de Cinema; e o ministro da cultura, Gilberto Gil. Embora em sua reformulação o festival tenha incorporado um conceito mais amplo com relação ao audiovisual, só na próxima edição haverá iniciativas mais evidentes direcionadas ao vídeo e a televisão. Bertini garante, todavia, que colocará em pauta questões como a regionalização da programação das emissoras de televisão e que os novos compromissos com projetos sociais do festival já podem ser observados. Ele aponta a realização de oficinas comunitárias com jovens de Brasília Teimosa, coordenadas pela cineasta Kátia Mesel, e a proposta de interiorização do festival com exibição de filmes premiados em cidades do interior de Pernambuco como ações concretas desse compromisso. O concurso de roteiros, que o festival realizava todos os anos, foi suspenso, mas ele está sendo reestudado para voltar no próximo ano sob novas bases. Os organizadores do CinePE esperam um público de 40 mil pessoas durante as sete noites do evento. Para as sessões noturnas os ingressos custarão R$ 6 e R$ 3 (meia) e já existem pontos de venda distribuídos pela cidade. Além da mostra de filmes, o CinePE reeditará a Feira do Audiovisual para mostrar as últimas novidades tecnológicas nas áreas de cinema, vídeo e TV. Também não está descartada a possibilidade de ser realizada durante o evento a primeira exibição em Recife de cinema com equipamento digital.

Alexandre Figuerôa é jornalista, professor universitário e crítico de cinema e teatro. No Bar (SP)

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A vez dos documentários Festival É Tudo Verdade comemora o melhor momento do filme documentário no Brasil

Fotos: divulgação

Felipe Porciúncula O filme Edifício Master, de Eduardo Coutinho, é um exemplo de como está crescendo o interesse do público brasileiro em ver documentários. Apesar do número absoluto de pagantes ter sido baixo, a média do desempenho ponderado de espectadores, nas salas em que o filme foi exibido, é uma das doze maiores do cinema brasileiro em 2002. Superior ao sucesso de Cidade de Deus. Um dos que acreditam que Coutinho não é uma exceção, é o crítico de cinema Amir Labaki. Além de fundador, há oito anos ele dirige o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade que a cada versão vem sendo ampliado. Este ano, entre os dias 3 e 13 de Abril, serão exibidos 104 filmes, de 24 países, em oito salas de São Paulo e duas no Rio de Janeiro. Logo na abertura, será a pré-estréia de Nelson Freire, o mais novo longa de João Moreira Salles. "Em cem anos de cinema é o melhor momento para o documentário. Nunca se falou tanto no gênero e a própria economia do audiovisual começa a se abrir um pouco mais para o documentário nas tevês e os exibidores e distribuidores nos cinemas", enfatiza Labaki. Uma das novidades deste ano é que o longa brasileiro vencedor vai participar da competição internacional. Uma outra boa notícia é que as películas premiadas pela GNT e TV Cultura serão veiculadas em rede nacional. "Queremos nos aproximar cada vez mais da televisão. Já estamos negociando com a TV Continente . abril, 03

Cena de Exílio em Sedan

Senac para fazer um programa fixo durante o ano inteiro, onde possamos discutir e exibir vários desses documentários que passam no Festival", acrescenta Labaki. De um total de 600 concorrentes, foram selecionados 15 documentários estrangeiros e nove nacionais, além de 12 curtas, também brasileiros. Serão concedidos 12 prêmios, perfazendo um total de 57 mil reais, sendo 36 mil reais em dinheiro e o restante em equipamentos e serviços de pósprodução como revelação, telecinagem, edição de áudio, ou


FILMES 49 » ainda, entrega de negativos. A escolha dos vencedores será feita por dois júris. O brasileiro é formado por Consuelo Lins, professora de cinema da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o videoartista Lucas Bambozzi e o crítico de cinema José Carlos Avelar. Do internacional fazem parte Jean-Pierre Rehm, que foi o responsável pelo Festival Internacional de Documentários de Marselha, Anna Glogowski, integrante da equipe de programação do Paris Cinema (que acontece em julho) e o escritor André Paquet. Talvez pelo momento de incerteza que o mundo vive, muitos dos filmes da versão internacional tratam de como a população reage ao poder autoritário do Estado, em várias partes do planeta. Um dos destaques é o Sol da Manhã, de Richard Gordon, Carma Hinton e Geremie R. Bermé, que aborda a revolução cultural de Mao TséTung, quando morreram milhões de chineses, com o olhar de quem nasceu junto com ela. "Na grande curva da história do documentário você passou da visão épica para o mais cotidiano. É como se você, ao filmar a Guerra do Iraque, ao invés de seu foco ser o que aconteceu com Saddam Hussein ou na Casa Branca, com George W. Bush, você mostrar o que aconteceu com uma determinada família que morava na periferia de Bagdá e teve a sua casa destruída", salienta Labaki. Impressionante também é a narrativa de Exílio em Sedan, de Michaël Gaumnitz, em que o diretor conta o dilema de seu pai alemão que sobreviveu a um campo de concentração nazista e que, após a guerra, resolve se exilar numa cidade francesa odiada pelo alemães. Ou ainda Os Meninos de Pinochet, de Paula Rodriguez, filme sobre como três amigos, de uma mesma geração, viveram sob uma das mais cruéis ditaduras latino-americanas. Um outro filme muito aguardado é o de Simon Brook em Brook por Brook, um retrato íntimo, que aborda a relação do diretor com seu pai, o famoso teatrólogo Peter Brook. Na competição brasileira, a diversidade é a tônica. Uma das presenças impor-

tantes é a de João Batista de Andrade, com o seu O Caso Mateucci, que fala de um massacre de uma família nos anos 50, em Goiás. A violência é tema de dois outros filmes, que têm em comum tratar do Carandiru (presídio já desativado em São Paulo). São eles Carandiru.doc, de Rita Buzzar (sobre as filmagens do último longa de Babenco que se baseou no livro Estação Carandiru, de Drausio Varella) e O Prisioneiro de Grades de Ferro (autoretratos), de Paulo Sacramento (quando os próprios detentos filmam suas histórias). Um outro a que vale a pena assistir é Recife/Sevilha, João Cabral de Mello

Cena de Rio de fevereiro

Neto, de Bebeto Abrantes, que conta aspectos da vida e da obra do poeta pernambucano, incluindo um depoimento inédito dado dias antes de sua morte. Com esse desafio de revelar a um público, interessado em ver documentários, o que de mais inovador vem se fazendo no Brasil e no mundo, o Festival É Tudo Verdade investe pesado também nas suas várias mostras paralelas. Uma das mais significativas são as retrospectivas. A internacional será com nove filmes do dinamarquês Jorgen Leth, que daqui a dois meses deve lançar seu novo filme, corealizado com o diretor Lars von Trier, um dos criadores do movimento Dogma 99 e autor do filme O Idiota. Vivendo desde 1991 no Haiti, Leth é um cineasta original por trafegar em pólos opostos de narrativa. Um é o do uso das imagens como ensaísta e o outro, buscando no improviso da reportagem o que quer dizer. "Um filme é uma série de imagens justapostas. Não uma seqüência, não uma história, mas uma série de imagens,

nada além disso. A ordem das imagens é menos importante do que cada uma delas. A conseqüência final dessa afirmação é que as imagens podem ser colocadas juntas, de olhos vendados. Que sua ordem pode ser determinada por um componente forte de acaso.", relata o próprio Leth sobre seu estilo de filmar. A outra retrospectiva é com o brasileiro Eduardo Escorel. Com treze filmes, a mostra é um grande painel desse cineasta, que por muitos é considerado o maior montador em atividade no país. "Eu sempre considerei o Escorel um dos grandes realizadores brasileiros por vários motivos. Um pela facilidade com que ele transita do documentário para a ficção e de uma maneira muito criteriosa. O resultado é que sua filmografia é de alta qualidade. Além disso, tem uma personalidade extremamente interessante, pois traz para o cinema informações da alta cultura. O fato dele transitar do trabalho mais técnico como a montagem, para a direção – sem pestanejar –, nos últimos trinta anos, parece-me um gesto de generosidade e de amor ao ofício do cinema que poucos têm.", confessa Labaki. Duas vertentes da sua trajetória estão bem presentes nessa mostra. Uma é o diálogo que ele faz com a obra de Mário de Andrade e uma outra é o seu interesse particular em como a violência está presente na história brasileira. Completando o festival, vão acontecer mais duas mostras: O Estado de Coisas, com dez filmes e as Mostras Especiais com nove longas. Paralela a isso, será realizada a 3ª Conferência Internacional do Documentário, realizada em São Paulo e pela primeira vez no Rio de Janeiro. "Sou razoavelmente otimista sobre o que está acontecendo e sobre o que vai acontecer no futuro imediato. Vejo que essa produção tem crescido, tanto é que o Festival é um resultado disso. O documentário vem interessando a um público muito mais amplo que aquele que inicialmente se pensava, vencendo o estigma que existia sobre o gênero", analisa Labaki. Felipe Porciúncula é jornalista. Continente . abril, 03


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Fotos: Reprodução

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O cineasta russo Aleksandr Sokúrov autografando uma foto sua

O classicismo de vanguarda Com Arca Russa, o cineasta Aleksandr Sokúrov alinha-se à galeria dos mestres da estirpe de Jean-Luc Godard Fernando Monteiro

Hesito sempre — desde os dezoito anos de idade — antes de usar a palavra “vanguarda”, porém aqui não cabe outra para designar o tipo de “classicismo” que o cinema de Aleksandr Sokúrov respira pelos poros extremos da inquietude do cineasta que veio a São Paulo recentemente, mostrar Arca russa (seu novo longa-metragem de, digamos, “ficção documentária”), entre outras antinomias que ele cola com garra, certa inocência e muita coragem. A Arca foi exibido na 26ª Mostra Internacional de Cinema, junto com mais meia dúzia de curtas e médias metragens do cineasta reconhecido como um novo mestre russo (o “sucessor de Andrei Tarkóvski”, etc.) e agora alcança o circuito comercial em São Paulo, a “arena” de touros onde vale recomendar ao espectador: hable con ella. Mas, Sokúrov não é Almódovar, desde logo lhe seja advertido. Suas criações são radicais, uma vez que o seu trabalho se apóia num sentimento de liberdade de que só Godard foi (ou é) capaz, e traz aquela novidade que o enfant terrible da Nouvelle Vague ainda persegue, aos 72 anos, no contexto das linguagens “engessadas” que ambos deploram, rejeitam e tentam compensar, cada Continente . abril, 03

um ao seu modo. (E eu gostaria de sentar esse russo na mesma sala de projeção com Jean-Luc, para, juntos, assistirem — o quê? The Searchers, de John Ford? Podia ser, como vértice do triângulo estranho, regado a vinho suiço e vodka de Irkutsk.) Almodóvar é bem conhecido dos leitores desta revista, Godard o é muito menos e Aleksandr Sokúrov, suponho, é praticamente um desconhecido das multidões alheias à Mostra de São Paulo — sendo um homem relativamente jovem para a estatura de “mestre” internacionalmente aclamado. Ele nasceu na longínqua Sibéria Oriental, em 1951, na cidade de Podorvikha — que sumiu do mapa, sepultada pelas águas de uma hidroelétrica — e entronca seu cinema com a melhor tradição da pintura, por exemplo, numa característica da escola russa que evoluiu observando a vida quase tanto quanto admirando a arte pictórica como memória e invenção, arca e museu da imaginação, depósito e paiol de munição estética. Estranhos eslavos. O Hermitage da história nacional de Sokúrov consegue se associar — e não só pela contrafação da ousada tomada “única”, de 96 minutos — ao mais sincopado filme godardiano, na guarda avançada da reinvenção dos filmes como visões


Filmagem de Arca russa, filme feito em uma única tomada de 96 minutos

reordenadoras da realidade. “O cinema está bem aparelhado para adivinhar a natureza das coisas”, ensinava Rudolf Arhein, no Sarah Junnor College — se bem que já foi muito mais livre para tal adivinhação, acrescentaria eu, que ouvi também as aulas da poesia visual de René Char dispensando a intermediação fonética, os sons de palavras como peixes debaixo de um rio congelado (“os esquimós têm mais de trinta vocábulos diferentes para neve”), cujas águas passam em frente do palácio seletivo da memória que enumera os fatos quase sempre aos saltos, abaixo da linha do fluxo da consciência. O cinema já foi livre assim. Em La chinoise, Godard discursava sobre essa liberdade — desesperado de buscá-la em alguns filmes nos quais, sejamos justos, ele tentou ensinar a olhar para as coisas que se “perdem” por fixação demasiada, segundo outro René (o pintor Magritte): “se alguém olha para alguma coisa tentando descobrir o que significa, deixa de prestar atenção à riqueza imediata de uma imagem negada no seu mistério de imagem esmagada pela interpretação”. Parêntese: para mim foi uma surpresa constatar a “nova” incompreensão votada ao cineasta de Viver a Vida — simplesmente porque as gerações mais novas talvez julguem desnecessárias as liberdades para as quais não há lugar no mundo do olhar domesticado. Jean-Luc Godard gozou da nossa mais exemplar má vontade, no tempo em que era um jovem (e os outros eram “velhos”), e agora desfruta da mesma antipatia, ao que parece, dos jovens críticos da sua velha-forma-nova de entender — com Merleau-Ponty — que uma câmera, mostrando duas árvores, deveria ser capaz de captar também o intervalo de espaço entre elas. Ora, em três ou quatro filmes que realizou com indiscutível gênio, Jean-Luc fez isso e mais do que isso, como o sujeito que, há quarenta mil anos, se esmerou em pintar um bisão ferido porque assim seria mais fácil caçá-lo em grupo, com flechas, varas e fumaça. Mais tarde, o esforço — e o engano — seriam parte do relato parietal da primeira arte do mundo... porém não podemos esperar que o cinema siga hablando con ella, a mágica musa comatosa. O cinema teve a chance de limpar os nossos olhos, de varrer a imagem produzida pela acumulação de símbolos e soprar o véu de Maya sobre a vista, recuando para trás da barreira do som tornado icônico, no caminho da “terceira qualquer coisa” da linguagem literária (que cria a sua realidade). Mas, cinema não é literatura acabo de descobrir o Brasil-que-descobriu, dois pontos: “cinema é cachoeira”, via Humberto Mauro. E, fora da cachoeira, cinema é limite. Por isso, Mário Peixoto (1908-1992) fez um filme que ainda vai nascer nas nossas cabeças cortadas pelo discurso que tomou conta do cinema “literário” vigorando mais do que nunca, no trilho mais largo do consumo de narrativas cinematográficas. Contra isso, trabalha ainda Godard — e começou a trabalhar Sokúrov, o mais “espiritual” dos jovens cineastas que a glasnost liberou das amarras do Estado, numa Rússia pré-capitalista e pós-devastada. Operando nessa “passagem

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subterrânea” — que agora nos livra das amarras da montagem -, o seu filme mais novo (embora não o mais radical) pode ser visto um pouco como o Limite russo da modernidade, filme de fronteira e da imagem autônoma (vide o pernambucano Evaldo Coutinho), sem o hífen-colado da “regra de surpresa” ensensteiniana: da justaposição de um plano a outro, o resultado é sempre uma terceira qualquer coisa que nunca sabemos exatamente o que será. Sokúrov marcha com Godard, estranhamente, na desmontagem da caixa de monotonia do cinema que, entre outras coisas, segue fielmente as regras. Desde A voz solitária do homem — seu primeiro longa — ao festejado Arca russa (passando pelo enigmático Mãe e filho), o que ele faz prolonga e amplia as suas perguntas, aquelas que os Almodóvares nem colocam: A quem o cinema vai interessar quando atingirmos a maturidade? Porque, receio, essa tendência à mercadoria pode tomar o lugar do amadurecimento que buscamos. Continuaremos com o dilema de uns verem e outros não? Onde está a arte cinermatogfráfica pela qual lutamos? O legado de Bresson está aí, mas quem o vê? Sim, o cinema é um meio de compreensão do mundo, mas a pesquisa está dispersa. As perguntas que temos de fazer devem ser buscadas no reino do caos”... Fernando Monteiro é ficcionista, poeta e cineasta. Continente . abril, 03


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Liêdo é considerado por Ariano Suassuna um dos maiores conhecedores da literatura de cordel

O escriba dos excluídos O pesquisador Liêdo Maranhão passou boa parte dos seus 77 anos, garimpando folhetos, depoimentos e registros de toda espécie, formando um valioso acervo da cultura popular nordestina Luiz Ernesto Mellet

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Cruzando o quintal de chão de cimento onde se deitam os galhos de duas mangueiras, em meio a esculturas de ferro contorcido que mais lembram espantalhos, chega-se aos fundos da casa. Claramente se percebe que o ambiente é improvisado. O espaço não é grande e tem na parede — com tinta descascada — , pendurados: cartazes, quadros, um capacete da Primeira Guerra Mundial. Há ainda escrivaninhas, prateleiras, uma cadeira de balanço velha e milhares de volumes e registros sobre a cultura popular nordestina. Com seu nono livro no prelo, Rolando Papo de Sexo, que será lançado este ano, o pesquisador Liêdo Maranhão passou a maior parte dos seus 77 anos juntando folhetos de cordel pelas feiras do interior do Nordeste e colhendo depoimentos de populares nas ruas do Recife – especialmente o Mercado de São José e suas circunvizinhanças –, ao mesmo tempo em que garimpava publicações antigas nos sebos da cidade. Ao longo do tempo reuniu um espantoso acervo que cabe, com sobras, para organizar um museu. Exercendo o ofício de guardião da memória da cultura popular em nossa história mais recente – estudo que lhe rendeu oito livros –, este recifense, nascido e criado no bairro de São José, não sabe agora que destino dar ao conteúdo empilhado nos fundos da sua casa em Olinda. O problema é que ele não encontra aqui a quem confiar sua coleção repleta de documentos e objetos raros, que inclui até mesmo uma curiosa prensa de absurda engenhosidade, construída no início do século passado pelo poeta paraibano Francisco Firmino. Não se acha explicação para a falta de interesse pelo acervo de Liêdo Maranhão no país – particularmente em seu próprio Estado –, quando


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No meio da sala entulhada, uma prensa antiga de absurda engenhosidade

universidades e instituições na Europa e Estados Unidos estão dispostas em arrematá-lo. A Universidade de Sorbonne em Paris e as Universidades do Arizona e a Law Center University de Washington já manifestaram interesse em abrigar a biblioteca que reúne publicações sobre uma infinidade de assuntos, almanaques farmacêuticos, biografias e fotos de emboladores, poetas, tipos populares desvairados e, sobretudo, folhetos de cordel. A sua história começa no final dos anos 40, quando recém-formado em odontologia, resolveu desfazer o consultório que mantinha no centro do Recife para ir à França. Naquela época era grande a influência da terra de Victor Hugo na cidade. As lojas, farmácias e salões de beleza tinham nomes em francês e nos bares se escutava Edith Piaf. O predomínio da língua era tamanho que algumas palavras se aportuguesaram como madame, por exemplo, que ainda em nossos dias designa dona de casa. Qualquer jovem sonhador na época queria conhecer a França. Com Liêdo não foi diferente. Com um pandeiro e uns discos de Nelson Ferreira na mala, comprou um bilhete de 3ª classe num navio, partindo do Rio de Janeiro para uma viagem de 14 dias até Marselha. Durante uma festa a bordo, Liêdo se exibiu dançando frevo e deixou boquiabertos os passageiros ao declamar Cacimba, do cordelista paraibano Zé da Luz e L’Invitation au Voyage

do simbolista Baudelaire. O comandante, que era francês, providenciou rapidamente um camarote para ele na primeira classe. A veia artística de Liêdo o ajudaria a viver três anos na Europa, a maior parte do tempo na Espanha onde casou e teve uma revelação. Ao visitar o Palácio de Alhambra, ele ficou impressionado com o enredo daquela magnífica herança da arquitetura moura erguida na cidade de Granada. O palácio que estava em ruínas havia sido restaurado graças a um estudante da cultura Islã, Washington Irving, que morou no local em companhia de ciganos e escreveu um livro de contos que teve sucesso, sensibilizando as autoridades do país a recuperar o patrimônio que hoje é um dos mais visitados. Liêdo imediatamente lembrou do Mercado de São José e pensou que poderia fazer alguma coisa parecida ali. Então, decidiu voltar. As décadas de 60 e 70 ele consumiria visitando o mercado diariamente, convivendo com a casta de pagãos que borbulhava no pátio em frente à Igreja da Penha onde, quando criança, o hoje ateu confesso Liêdo ia aos domingos à missa, de mãos dadas com a mãe. Ele conta que já nesse tempo se sentia desvirtuado da profissão de fé da Santa Igreja por causa do Continente . abril, 03


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RITOS

Editado há duas décadas, O Povo, O Sexo e A Miséria ou O Homem é Sacana lançou por terra a idéia sustentada por muitos teóricos de esquerda de que o povo era naturalmente bom e solidário

Acervo particular tem milhares de folhetos

cheiro de jaca que um vendedor oferecia no adro da Basílica. “É que só se comungava em jejum e eu ia para lá com uma fome danada”, diz. Foi adquirindo aqui e ali livros e revistas com especial atenção à Literatura de Cordel. Ao notar que o comércio dos folhetos obedecia a um ordenamento por assuntos e que isso orientava as transações entre os poetas e negociantes, Liêdo escreveu Classificação Popular da Literatura de Cordel, editado pela Vozes e que se encontra esgotado, a exemplo dos seus outros títulos. Na obra o autor dividiu os versos em títulos que povoam o imaginário nordestino – pelejas sangrentas entre cangaceiros, feitos de bravuras de vaqueiros, milagres do Padre Cícero e por aí afora. Dessa forma, ele deu inicio a um mapeamento, possibilitando a distribuição dos aspectos pitorescos encontrados no romanceiro popular do Nordeste e que, estranhamente, não se via em nenhum estudo acadêmico. A pesquisa se arrastou anos a fio nas feiras dos interiores do Maranhão à Bahia onde o incansável Liêdo estudou o funcionamento da venda dos folhetos e os temas mais procurados. O enorme esforço do autor em entender o mecanismo de negócio da folhetaria recebeu elogios dos mais respeitados escritores e poetas brasileiros. “Liêdo Maranhão é um dos maiores coContinente . abril, 03

nhecedores da Literatura de Cordel do Brasil. Com uma particularidade: enquanto todos nós – estudiosos, como Manuel Diégues Junior, ou simples curiosos, como eu – conhecemos os folhetos como um bando de eruditos de gabinete, ele vive e convive com todo o seu estranho, pobre, fascinante, mágico e duro mundo”, disse Ariano Suassuna. Ainda a respeito desta obra, Carlos Drummond de Andrade afirmaria que “o livro orienta e elucida o estudioso no assunto. E o faz com a autoridade de um perfeito conhecedor, que este é o caso de Liêdo Maranhão.” Editado há duas décadas, O Povo, O Sexo e A Miséria ou O Homem é Sacana também chamaria atenção. Ainda que não fosse a intenção do autor, o livro lançou por terra a idéia sustentada por muitos teóricos de esquerda de que o povo era naturalmente bom e solidário. Isso não se observava nas transações de comércio que havia no mercado, quando cada um usava das mais escusas estratégias para enganar o outro e, também, na relação entre os sexos, onde a dominação da mulher pelo homem entre as classes sociais não alterava em nada a sua condição de objeto de descarga de desejos. A escritora feminista Rose Marie Muraro foi uma das que na época foram tocadas pela leitura da obra. “Quando fechei a última página me senti deprimida. O que acabava de ver era o corte de um mundo essencialmente masculino em que a mulher não tinha vez. Ficou evidente que a dominação da mulher pelo homem atravessa a distinção de classe social, pois, se não me engano, nenhum dos freqüentadores do Mercado São José pertence à classe dominante”, afirmaria. Ao lado da religião e do futebol, o sexo compõe a trilogia que governa a vida e faz com que o povo brasileiro experimente um pouco de compensação e prazer na sua existência mundana. É sobre o assunto – um dos principais norteadores da sua vasta pesquisa de campo – que Liêdo discorre em sua biografia, Rolando Papo de Sexo, que está na pauta das Edições Bagaço (Recife) para sair no decorrer deste ano. Uma obra, dizia o ideólogo do Partido Comunista italiano Gramsci, podia ser nula esteticamente mas ter grande importância cultural. Desse modo, para ter noção das idéias em circulação na sociedade era preciso estudar não só as obras-primas mas também a mais baixa literatura – seria o caso das revistinhas de sacanagens, “os


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Para Raymond Cantel, ele é a maior autoridade das ruas do Recife

catecismos” de Carlos Zéfiro e os folhetos de safadeza ou putaria, que tiveram grande demanda durante a ditadura, fazendo com que seus agentes enfrentassem a repressão para tornar possível o esvaziamento da tensão sexual das camadas populares mais oprimidas. A circulação desses subscritos pornográficos provocaria o fechamento de várias gráficas e a prisão de seus autores por “perturbação da ordem pública”. Alguns desses folhetos raros foram parar nas mãos do pesquisador que não aceita o conceito generalizado que julga este gênero de literatura como pervertido e degradante. Para Liêdo, esta opinião quase sempre resvala na miopia daqueles cuja máscara do preconceito não deixa ver o relevo da libidinagem modelando a cultura popular. “É de um moralismo estreito menosprezar tema tão fascinante”, diz. Não fosse a visão aberta com que Liêdo enxerga as coisas, muitas preciosidades do universo lúdico do povo nordestino se perderia para sempre. Foi no Mercado de São José que ele lançou maior foco de luz na construção da sua obra etnográfica, formando um enorme fichário com personagens da geografia humana que faziam do pátio defronte à igreja uma reedição do antigo teatro grego, com engolidores de fogo, comedores de vidro, contorcionistas, telepatas, vendedores de ervas miraculosas, prostitutas e vigaristas de toda espécie. Foi convivendo com essa gente e extraindo algumas gemas valiosas no meio da ganga impura dos sebos recifenses que Liêdo Maranhão se transformou num pesquisador com reconhecida competência no exterior. “É a maior autoridade das ruas do Recife” atesta Raymond Cantel, diretor do Centro de Pesquisa Luso-brasileiro da Universidade de Sorbonne, em Paris. O livro O Mercado

O enorme esforço do autor em entender o mecanismo de negócio da folhetaria recebeu elogios dos mais respeitados escritores e poetas brasileiros

de São José é um monumento sobre a cultura popular do Nordeste”, ressalta Mark J. Curran, chefe do Departamento de Línguas Estrangeiras da Universidade do Arizona. Interessado nas formas que as pessoas encontram para ludibriar as pressões sociais, o filósofo francês Michel Maffesoli sustenta que o frívolo deveria ser visto com muita seriedade porque serve para humanizar as relações na sociedade. Nascido em família operária e elevado à posição de vedete do atual pensamento europeu, Maffesoli defende a tese do “reencantamento do mundo” que somente será possível através do resgate da frivolidade. “Minha proposta é o não desprezo ao frívolo. O que quero dizer, como Nietzche, é que existe o verdadeiro conhecimento. O conhecimento de fato, que resulta no amor em andar pelas ruas”, sustenta ele. Liêdo Maranhão não só passou a vida andando pelas ruas; desvendou seus segredos, também.

Luiz Ernesto Mellet é jornalista. Continente . abril, 03


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PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Cerâmica de Francisco Brennand

Peixe para todos os gostos "Como um peixe me afogo No ar frio da manhã fria E morro dessa asfixia Na mansa luz da manhã" Edmir Domingues (Cidade Submersa )

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Os portugueses encontraram ao chegar, na terra a que primeiro chamaram de Vera Cruz, uma sociedade indígena com divisão de tarefas muito bem definida. Mulheres faziam artesanato (cerâmica, cestos, adornos), cuidavam da lavoura, preparavam alimentos e bebidas. Aos homens cabiam as tarefas mais duras — caça, pesca, construção das ocas e defesa dos territórios de cada tribo. Havia, então, luta feroz entre tupis e guaranis, pela conquista do litoral e das margens dos rios, porque existia, nessas áreas, grande quantidade de alimentos — crustáceos, moluscos, mariscos e sobretudo peixes. A esses peixes deram nomes que, ainda hoje, permanecem: beijupirá, camurim, caramuru, curimã, jaú, piaba,

piranha, saúna, surubim, tambaqui, traíra, tucunaré. Além de pirarucu, com língua que usavam para ralar guaraná. Todos eram assados no moquém, tendo como tempero apenas pimenta pura ou misturada com sal — o ionquet. Esses peixes foram descritos com entusiasmo em cartas e relatórios dos primeiros missionários jesuítas — Nóbrega, Anchieta, Cardim, Leonardo Nunes, Francisco Soares — ou de escritores como Gândavo, Gabriel Soares de Souza, Cristóvão de Lisboa, Simão Vasconcelos. Em que sobretudo comparavam sabores, buscando semelhanças entre os peixes da terra nova e aqueles que conheciam em Portugal — caramuru com amoreas, camurim com robalo, piaba com pechões, pi-


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ranha com sargo, beijupirá e jaú com solho, curimã e saúna com tainha. O gosto do homem por peixes vem da mais remota pré-história. Primeiro os de margens e praias, mais fáceis de capturar. Depois, com o domínio das técnicas de navegação, os de grande porte — com destaque para esturjão, merluza e cação. Gregos chegavam ao requinte de tentar adivinhar, pelo gosto, em que águas haviam sido pescados. Tinham o hábito de levá-los à mesa quase ao natural. Embora curiosamente usassem, na preparação de outros pratos, temperos finos extraídos desses peixes — como o muria, líquido que escorria do atum, depois da adição de sal; ou o garum, mais caro e menos conhecido, resultado da mistura de peixes fermentados com cogumelo.

Romanos, para criação de alevinos, construíam viveiros — a que chamaram piscinae. E tão grande era ali o prestígio desses peixes, que em 301 d.C., no congelamento de preços registrado pelo Édito Diocleciano, 1 libra de peixe do mar custava 24 dinares imperiais; enquanto 1 libra de carne de boi, ou de bode, apenas 8. Em Lisboa do século IX, havia funcionários, chamados almotacés, contratados exclusivamente para vigiar vendedores e compradores de peixe. Crescendo ainda mais o prestígio do peixe na época das grandes navegações — em que viagens a terras distantes exigiam alimentos que pudessem ser conservados durante longos percursos. Com preparo simples — primeiro eram secos, e depois salgados. Fácil de fazer e de conservar.

Começando, por essa época, o apogeu do bacalhau. Entre os livros censurados pela Inquisição em Portugal (a partir de 1536) estava Ditos Portugueses Dignos de Memória, de autor desconhecido. Dele restaram poucos exemplares. Tudo culpa de Dom João III, ironicamente conhecido como “o Piedoso”. Queimou mais de 1.500 hereges. Torturou mais de 25.000 ateus. E perdeu-se a conta dos que morreram por seus punhais “piedosos”. Mas como aqui se faz e aqui se paga — teve vários filhos e nenhum lhe sobreviveu. Foi seguido no trono por Dom Sebastião — que, muito jovem ainda, se aventurou em cruzadas pela África. E desapareceu, na batalha de Alcácer Quibir. Por ele ainda esperavam, em Canudos, os devotos de Antônio (Vicente Mendes Maciel) Conselheiro. Mas essas são outras histórias. Voltando ao livro, seu sucesso deveu-se a observações irreverentes e bem humoradas sobre o quotidiano português. Com destaque para hábitos gastronômicos. Para o Rei, “fidalgos são como salmonetes — que são poucos e custam muito”; enquanto “gente simples são como sardinhas — que fartam, são gostosas e custam pouco”; sem esquecer que “cabeças de gorazes deixam para segundo plano qualquer honraria”. Pelo livro também ficamos sabendo que a raia era barata (e “proibida para judeus”). O linguado “caro como fogo”. Atum e bacalhau freqüentavam a mesa real. Solho, de tão ruim, nem os necessitados queriam. Azevias fritas só quando servidas nas tavernas e no “malcozinhado” — onde o freguês entregava o peixe para fritar, “pagando apenas a mão de obra da fritura, o pão mole e o vinho fresco”. Nos tempos atuais, de comida natural e saudável, peixe é prato imbatível. Por ter carne nutritiva, magra e sem gordura, bem diferente das carnes vermelhas. E por ser rico em proteínas, ferro, iodo, potássio, ácidos graxos e vitaContinente . abril, 03


PERNAMBUCANOS

minas A, B e D. Faltando só dar algumas sugestões, para quem quiser preparar um bom prato de peixe. Que seja sempre fresco — carne firme, olhos e escamas brilhante, guelras úmidas e vermelhas. Que seja sempre lavado com água e limão. Que seja quase sempre feito da maneira simples, sem muito tempero, para conservar seu sabor. Podendo levar sal grosso, pimenta, ervas frescas e azeite de oliva. Que seja preparado a gosto — no vapor, grelhado, assado ou cozido. Que se tenha sempre cuidado com molhos, que os muito elaborados escondem seu sabor. Os melhores são os simples, feitos de caldo preparado com cabeça e espinha do próprio peixe, juntando creme de leite e aromatizando com ervas e manteiga. Que seja usado, a gosto — em sopas, saladas e prato principal; ou como recheio de massas, coquilles e gratins. Para tirar o cheiro de peixe, alguns conselhos úteis: Para tirar o cheiro das mãos, lavar com leite gelado; nas panelas, usar limão; e na cozinha (enquanto refogar o peixe), pano embebido em vinagre, entre a panela e a tampa. A sugestão final fica para quando quiser realmente agradar a algum convidado de fora; nesse caso aposte, sem medo de errar, no prato perfeito — a peixada pernambucana. Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti é professora. Continente . abril, 03

Foto: Acervo CEPE

58 SABORES

PEIXADA PERNAMBUCANA INGREDIENTES: 3 kg de postas grandes de peixe (de preferência camurim, garoupa, ou sirigado); suco de 3 limões; sal e pimenta a gosto; 2 xícaras de azeite; 3 cebolas em rodelas; ½ kg de tomate bem maduro cortado em rodelas; 1 pimentão vermelho e 1 amarelo cortado em tiras; 2 folhas de louro; leite de 2 cocos; 4 cebolas inteiras, descascadas e cozidas; 5 cenouras inteiras cozidas; 4 ovos cozidos; 1 repolho cozido; 1 maço de couve cozido; 20 vagens inteiras; 2 bananas compridas cozidas; 3 batatas doces cozidas; 8 batatas inglesas cozidas.

PREPARO: Lave e tempere o peixe com suco do limão, sal e pimenta. Reserve. Enxugue o peixe, passe na farinha de trigo e frite ligeiramente no azeite. Reserve. Cozinhe as batatas inglesa e doce, as cebolas inteiras, as cenouras, o repolho e os ovos, em caldo feito da cabeça do peixe e verduras. Reserve. Em panelão grande coloque azeite, cebola, tomate, pimentão e refogue. Junte o peixe, com cuidado, para não quebrar as postas. Acrescente o leite de coco. Deixe cozinhar, até o peixe ficar macio e firme. Junte, então, as batatas — inglesa e doce, as cenouras, a cebola, o repolho e os ovos. Tempere com sal e pimenta. Desligue o fogo. Acrescente um fio de azeite. Na hora de servir arrume em travessa grande e junte a couve (cozida na hora, para não amarelar). Regue, generosamente, com o molho do peixe. Sirva pirão para acompanhar.

Pirão: 5 xícaras do molho do peixe e 1 ½ xícara de farinha de mandioca. Leve o molho ao fogo. Quando estiver fervendo, junte levemente a farinha, sem parar de mexer, até tomar consisência de mingau e ficar transparente. Junte por cima um pouco do peixe desfiado.


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60 ESPECIAL

Enredo perigoso Autor de polêmico livro sobre pedofilia diz que critica o culto excessivo à juventude e o medo da sexualidade Fábio Lucas

Fotos: Reprodução

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O pintor francês Balthus (1908 - 2001) tinha a obsessão de retratar "jeune filles". Acima, La jupe blanche, 1937. Abaixo, Thérèse, 1938

O livro provocante é um bom livro? Paulo Mendes Campos sugeriu que o livro precisa dizer-nos que o mundo está errado. Mas e quando é o mundo que se volta contra a literatura, empurrando contra a parede obra, criador e criaturas? E o enredo de fora se torna maior do que de dentro? A obra assume o segundo plano da polêmica, e ao invés de querer saber o que os personagens dizem, discute-se se o autor poderia ter dito o que disse. A guerra da censura contra a liberdade suplanta qualquer interesse, supera qualquer estória. O romance Rose Bonbon, de Nicolas JonesGorlin, é um caso típico de (pre)texto literário que afronta a realidade. O narrador é um pedófilo declarado que conta suas fantasias e aventuras despudoradamente. O livro causou um verdadeiro rebuliço na França, quando lançado, no final do ano passado. Uma das maiores editoras européias, a Gallimard, viu-se enredada na justiça pela acusação de incentivo à pedofilia, chegando a suspender sua distribuição. No calor do debate sobre liberdade de expressão, voltou atrás e relançou o escândalo no mercado com um aviso na sobrecapa, em que podia ser lido: “Rose Bonbon é uma obra de ficção. Nenhuma aproximação pode ser feita entre o monólogo de um pedófilo imaginário e Continente . abril, 03


ESPECIAL 61 »

No romance Rose Bonbon, de Nicolas Jones-Gorlin, o narrador é um pedófilo declarado que conta suas fantasias e aventuras despudoradamente. O livro causou um verdadeiro rebuliço na França, quando lançado, no final do ano passado

uma apologia da pedofilia”. Será que não? O que seria considerado como incentivo ao comportamento pedófilo? Existe alguma ligação objetiva entre a ficção descompromissada e a realidade concreta dos abusos sexuais? Se há conexões comprovadas entre a violência no cinema e na TV, por exemplo, e a violência das ruas, por que não pode haver um elo entre o pedófilo de mentirinha e os criminosos de carne e osso? Por outro lado, é difícil discordar do ministro da Cultura francês, Jean-Jacques Aillagon, instado a se posicionar sobre o caso. Ao contrário de outros integrantes do governo, Aillagon defendeu o direito de publicação e comercialização do livro, dizendo que a arte existe justamente para “explorar os meandros da alma humana”. Até que ponto os meandros agüentam a exploração, é outra conversa. Com apenas 30 anos, Nicolas Jones-Gorlin acompanha com interesse e curiosidade a polêmica sobre seu terceiro romance, Rose Bonbon. Em entrevista a Continente, o escritor definiu o livro como uma “ficção metafórica sobre duas doenças européias: a obsessão pela juventude eterna e o medo da sexualidade”. Porém, antes de tudo, diz ele, Rose Bonbon é uma comédia — definição provavelmente sob medida para atiçar ainda mais a cara feia dos que não acharam graça nenhuma na obra, ou no tema escolhido. “Quando escrevi o livro, não percebia que os franceses fossem tão puritanos”, conta. “Sabia que a pedofilia era um assunto inflamável, mas não imaginava que fosse proibido falar ou escrever ficção a respeito”. O autor tampouco esperava que pudesse ser o centro de um debate sobre liberdade de expressão. No início, ele diz que ficou assustado: “Sou um escritor jovem, e era muito inocente”. Mas passado o susto, vieram o orgulho e a vaidade por Rose Bonbon ter sido usado como bandeira de liberdade. “Isso é algo

Jeune fille à toilette, 1949-51

que só acontece uma vez na vida de um escritor”, justifica. Para Jones-Gorlin, a reação ao livro, que houve na França, poderia facilmente ocorrer em outros países, sobretudo na Europa. Segundo o escritor, uma onda de puritanismo começou a surgir no continente após o movimento de maio de 1968, e o período de liberação que se seguiu. Nos anos 70, a Aids e as crises econômicas deixaram as pessoas amedrontadas, na sua visão: “Elas então buscaram segurança e proteção”, acredita. E a única maneira de resolver a questão hoje, para ele, é a conciliação: “Temos que conciliar a segurança com a liberdade, e a lei com o desejo”. No entanto, ao despontarem questões morais, fica difícil achar o ponto de equilíbrio. Até no que diz respeito aos limites entre a ficção e a realidade. Rose Bonbon é um exemplo dessa dificuldade. A pedofilia não é bem aceita como tema literário, exatamente no instante em que há uma cruzada mundial contra redes virtuais de pedofilia, através da Internet. O autor concorda que o tema é tabu: “Provavelmente os leitores não aceitam que alguém escreva um livro sobre isso, do mesmo modo que não aceitariam um livro sobre drogas, prostituição, ou clonagem”, avalia. Talvez o autor francês subestime o tabu que escolheu para trabalhar. Romances e filmes sobre tráfico de drogas e prostituição não são mais novidade na cultura ocidental. E a pedofilia, tratada como foi por ele, de Continente . abril, 03


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62 ESPECIAL

forma realística numa peça fictícia, parece ter mais peso, porque incide diretamente sobre o núcleo da instituição familiar: a criança. O foco da resistência que o escritor chama de puritana se encontra na família, e na preservação de um valor maior, a dignidade infantil. O próprio Jones-Gorlin é pai de um bebê de colo, e não menospreza esse aspecto do controle do corpo social. Porém, para ele, a ficção está fora desta jurisdição. “A imaginação é a terra da liberdade, onde qualquer um pode inventar o que quiser”, argumenta. “Não há restrições nessa “terra”: você pode ser um serial killer, o super-homem, um ditador... Aliás, quando descrevo os pensamentos de um pedófilo, sinto-me como Charles Chaplin fazendo o papel de Adolf Hitler”. A comparação evoca o direito artístico de expressão, tido por muitos como intocável. Será um outro tabu? É possível, uma vez que a obra, sob o manto da arte, não traga qualquer significado, pergunta ou resposta, em tempo algum, para os contemporâneos ou os pósteros. O que não é o caso de Rose Bonbon, segundo Jones-Gorlin. Polêmicas à parte sobre o enredo, o autor diz que procura tecer uma crítica que ataca ao mesmo tempo os conceitos de “Paraíso Infantil” e de “Inferno da Velhice”. É o autor quem explica: “Do meu ponto de vista, a pedofilia trata dos dois fenômenos. O medo de envelhecer, de se tornar adulto e encarar uma nova vida de responsabilidades é a principal característica de Simon, o protagonista. Para Simon, a infância é um Paraíso e a solução para a sua angústia”. Com toda a celeuma — e propaganda — em torno do livro, Nicolas Jones-Gorlin faz questão de esclarecer sua posição a respeito da sexualidade infantil, para ele completamente diversa da sexualidade de um adulto. “Quando um adulto dá uma resposta sexual para a carência afetiva de uma criança, ele cria uma confusão, e é nessa confusão que se baseia a pedofilia”, aponta. De acordo com o autor, a sedução infantil é diferente, e é por isso que a lei proíbe tal tipo de relação, protegendo as crianças. “O mais importante é proteger as crianças e encontrar meios de prevenir os abusos”, diz ele, indicando que cabe aos pais e

André Derain, 1936, quadro de Balthus. Insinuação pedófila?

aos professores fazê-lo. E o criador da trama pedófila também demonstra horror pela violência sexual contra as crianças. “Quem estupra uma criança é, antes de mais nada, um sádico”. Onde se enxerga a intenção nítida de separação entre o pai de família e o escritor cioso de sua liberdade de ofício. Uma liberdade inspirada, em parte, pela música pernambucana, em especial a de Chico Science. “Ele criou um novo tipo de música, misturando rock, percussão nordestina e até uma espécie de rap, com o espírito livre”, comenta o escritor, que esteve no Recife durante uma semana, em 2000. Mas até que ponto o espírito aberto é suficiente (ou mesmo necessário) para se apreciar um livro como Rose Bonbon? A proibição em si, assim como a censura pública, se já esconderam grandes obras, igualmente douraram pílulas sem gosto. Um tema polêmico não basta para a grandeza do estilo. Inversamente, o clamor social não derruba a verdadeira obra de arte. Somente com a crítica do tempo sobre mais este livro proibido, saberemos se não irá se revelar, mais tarde, a provocação maior que o livro.

Fábio Lucas é jornalista. Continente . abril, 03


Sob o Sol sem inocência A feia, a feíssima pedofilia tem longa tradição artística Fernando Monteiro

Pedofilia é uma daquelas palavras feias, cujo som combina com o significado tabu — aos ouvidos da nossa decadência ocidental cheia de cidadãos com muito mais medo da polícia e das sentenças do que dos pensamentos e culpas. O médico-pedófilo paulista (e olhe aí a palavra ainda mais horrível, debruçada sobre a cama de uma clínica) recentemente denunciado na TV — com direito a todas as cenas furtivas dos seus atos de lesa-medicina — é, para a maioria, talvez mais horrendo do que o médico-monstro Mengele, que se escondeu no Brasil e aqui morreu com um sorriso bondoso colado na cara operada para fugir dos seus crimes patrocinados pela máquina do Estado nazista. Ainda mais antiga do que a medicina, a feia, a feíssima “pedofilia” tem, entretanto, longa tradição artística, desde a contemplação de efebos e ninfetas cuja relação precoce com o sexo se dá por iniciativa de adultos atraídos por crianças e adolescentes. É uma doença, claro, mas a Grécia antiga foi cheia de pedófilos que se sentiam sãos, assim como, na Roma imperial, a carícia de uma criança podia levar ao poema cuja beleza imortal fica hoje até comprometida, debaixo do carimbo “poesia pedófila” — por cima de estrofes condenadas pelo Vaticano do Banco do Espírito Santo envolvido com a Máfia exploradora de pornografia infantil (tão horrível quanto a fome da criança que morre de inanição nas Áfricas deste louco planeta). Os japoneses costumam reivindicar para a cortesã Murasaki Shikibu a primazia de ter escrito, no século 11, o romance um do mundo — Contos de Genji — e o primeiro onde aparece o que chamamos de pedofilia, usando a feia palavra que assustaria um velho samurai daqueles tempos, melancólico em face de adolescentes que perdem o frescor, inexoravelmente, como a flor do verso de Foscolo (“da juventude, a flor caída”). É sabido que, no país do Sol Nascente, os tabus sexuais são um moralismo importado - e que o olho da arte nipônica não recusa mesmo o maior escândalo, ou a prática mais “anormal” (pelos atuais padrões)... embora, na eras Heian (749-1184) e Kamakura (1185-1333), elas fossem variações,

Charles Chaplin se viu envolvido em inúmeros casos com menores

Foto: Photos12/AFP

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Foto: Reprodução/AE

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No filme Morte em Veneza, um velho compositor se encanta com o menino Tádzio

tão somente, do amor de qualidade triste que, quase mil anos depois, o alemão Thomas Mann emprestaria ao personagem Gustav Aschenbah contemplando o menino Tadzio, na atmosfera de morte de uma Veneza doentia sob o sirôco e a febre. O Mann de Morte em Veneza nos traz para o Ocidente moderno (onde o Oriente é mesmo uma ficção sobre que nada sabemos), em contexto — o da pedofilia — no qual já se tornou até cansativo referir o vício secreto do professor Charles Lutwitge Dodgson: fotografar meninas em poses insinuantes. Usando o nome de Lewis Carrol, ele escreveu pelo menos uma obra-prima — Alice no país das maravilhas — ao mesmo tempo em que as fotografias e cartas (para as jovens modelos) lhe garantiam o equívoco direito de ser considerado o pedófilo ocidental mais citado, quando o assunto é a atração por crianças perturbando uma mente poderosa. Charles/Carrol foi o mais velho dos filhos de um clérigo que teve onze herdeiros (oito meninas e três rapazes), cada um com um pequeno problema. Charles era surdo e gaguejava (um pedófilo gaguejante: nada mais sintomático). Ele gostava de lógica, matemática, poesia e — todos ficaram sabendo — padecia daquela “desagradável patologia referente a garotas”, para usar a forma elegante de dizer o que o professor era. Desde os anos 50, entretanto, um outro escritor - bem mais explícito do que Carrol - pôs a pedofilia no cerne de um romance de alta qualidade. Vladimir Nabokov era também professor numa universidade americana quando publicou a história de um emigrado apaixonado pelas “ninfetas” que vai encontrando (ainda mais encantadoras) na América das colegiais sorvendo milkshakes. O nome do aristocrata de origem russa, emigrante como o seu personagem Humbert-Humbert, ficará para sempre associado ao escândalo da Continente . abril, 03

Vladimir Nabokov era professor numa universidade americana quando publicou o romance Lolita, a história de um emigrado apaixonado pelas "ninfetas" que vai encontrando

publicação de Lolita, nome que viria a atravessar a fronteira para o território da grosseira pornografia (o termo usado acima — ninfeta — foi por ele lavrado, mimeticamente, para aludir à personagem como a larva de uma mulher). Mas Lolita não é, de modo algum, pornográfico. Longe disso, é um romance que restaura, na nossa época, aquele sentimento dúbio — de tristeza velada pela carga erótica - que aproximava samurais entristecidos das belas crianças. Humbert-Humbert tem fascinações difíceis de se resumir num texto curto. Ele se vê tantalizado — em todas e qualquer Lolita autêntica — pelas transformações da crisálida que vira borboleta (Nabokov era apaixonado pela entomologia) e há, na narrativa sombria, um tão melancólico registro das mudanças físicas na vida de uma menina, que a leitura nos faz esquecer a pedofilia às escâncaras nessa fábula, superiormente perversa, do sexo e da brevidade


Foto: Pierre Verdy/AFP

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Vencedor do Oscar de Melhor Diretor, Polanski está impedido de ir aos EUA onde é acusado de corrução de menores

de tudo que nos cerca. Duas versões cinematográficas ajudaram a popularizar a obra, sendo a primeira assinada pelo gênio de Stanley Kubrick (cuja marca se vê logo na cena inicial, antológica: Humbert, ajoelhado, pinta as unhas dos pés infantis de Lolita). A chamada “sétima arte” teve um pedófilo sobre o qual se murmurou por trás das câmeras: Charles Chaplin se viu envolvido em inúmeros casos com menores, como se fosse um Balthus - o pintor das adolescentes em poses preguiçosas (de acídia ou de lascívia?) — incapaz de filmar Lolitas, mas pronto a persegui-las na vida real. O Duque de Windsor — que gostava de mulheres mais do que maduras, tranqüilizemse — disse que Chaplin foi “o homem mais triste que ele conheceu” (e conheceu relativamente bem: o duque foi hóspede na mansão do ator e diretor). Aqui volta, portanto, o tema da tristeza como variação recorrente sempre que lidamos com a sonata do pássaro da — extrema — juventude. No filme Le Souffle au Coeur (1971), o cineasta francês Louis Malle foi mais longe do que ninguém: um menino desperta o desejo sexual de uma mulher madura (invertendose os clássicos papéis) que é ninguém menos que a própria mãe. O tema iria ser revisitado por Bertolucci, em La Luna (1979), enquanto o cinema franqueava a passagem de alguns tabus, nos últimos anos. O mesmo Louis Malle filmaria a cena de violação de uma menina, num bordel (em Pretty Baby, de 1978), em tom que lembra a franqueza de certas gravuras dos mestres japoneses, ainda hoje desconcertantes. Há leis severas contra os pedófilos (Roman Polanski está impedido de entrar Estados Unidos, onde é réu em processo de corrução de menores), mas há também admiração por obras que vão desde recriações eróticas de “Chapeuzinho Vermelho” às pinturas de pré-adolescentes que Francisco Brennand tornou um dos núcleos temáticos da sua pintura. No Brasil, apareceu pelo menos um “Louis Malle” das praias (tinha que ser), o

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Há leis severas contra os pedófilos, mas há também admiração por obras que vão desde recriações eróticas de Chapeuzinho Vermelho às pinturas de préadolescentes que Brennand tematizou

cineasta Alberto Salvá, abordando o assunto em tom ligeiro. Salvá adaptou o seu conto A Menina do Lado — prêmio de “melhor conto erótico” da revista Playboy — para o cinema, retratando o verão quente da relação de um quarentão distraído (Reginaldo Farias) com uma garota inesquecível na interpretação de Flávia Monteiro, ainda na puberdade. Chupando picolés na varanda vizinha, a menina arma toda uma estratégia de sedução fatal do “cara” do lado, que terminará quase como o personagem do belo filme O homem do crânio raspado (De Man Die Zijn Haar Kort Liet Knippen), de André Delvaux, cujo assunto é a louca paixão de um maduro professor pela “Lolita” do seu colégio... Enfim, rodamos à volta do tema e, na arte (como na vida), só encontramos a areia movediça de Eros e Tânatos, no fundo do poço onde talvez reste apenas a solidão humana pedindo socorro — mesmo através de obsessões inconfessáveis — sob o Sol sem inocência.

Fernando Monteiro é ficcionista, poeta e cineasta. Continente . abril, 03


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Vanessa e Maia, fotografadas por Sturges em Montaliveti, França, em 2000

Fotógrafo diz que não fotografa apenas crianças nuas, mas sim, pessoas nuas

A imagem

da polêmica Continente . abril, 03

Fotografar adolescentes nuas já é considerado por muitos como um ato de perversão. Expor essas fotos para o público como arte digna de apreciação, então, é o mesmo que cometer um crime e apresentar as provas, declarando-se culpado diante de jurados chocados. O fotógrafo americano Jock Sturges vem enfrentando o julgamento de seu trabalho nestes termos desde sempre. A polêmica acompanha sua carreira. Em 1990, seu estúdio foi invadido pelo FBI, sob a alegação de que suas fotos de arte encobririam motivos menos nobres. Equipamentos e fotos foram confiscados: a sua ousadia teria que ser proibida. Após mais de um ano de investigação, o fotógrafo foi inocentado da acusação de pornografia infantil. O método utilizado por Sturges, no entanto, revela, na sua visão, a enorme distância que o separa da pornografia. Um de seus principais argumentos é a proximidade mantida com as modelos e suas famílias. Bebês clicados por ele aos três meses de idade continuam posando depois de adultas, aos 20 ou 30 anos de idade, e a maioria delas, senão todas, desenvolveram uma relação de amizade com o fotógrafo. Ami-


zade que atravessou gerações: filhas de mulheres que posaram para ele reiniciaram o processo, posando também, desde pequenas. A razão do envolvimento é simples, segundo ele. “Minhas fotos são “verdadeiras” — imagens honestas de seres humanos. Eu não fotografo apenas crianças nuas. Fotografo pessoas nuas”, define. Para Sturges, que atualmente finaliza três novos livros, a obscenidade está no olho de quem olha. “Quando alguém acha uma representação da experiência humana “obscena”, e as imagens em questão não contêm qualquer comportamento sexual manifesto, então o apelo não é de quem produziu a imagem, mas de quem vê tal coisa. É aí que se encontra a patologia”, ataca. Da trincheira do fotógrafo, um desnível conceitual pode explicar a ira dos que não se contentam nem com a sua palavra, nem com a palavra das modelos e de seus pais, que durante décadas vêm avalizando o seu trabalho. E o desnível seria entre os conceitos de nudez e de sexo, misturados a ponto de não se perceber uma distinção essencial, segundo Jock Sturges, de uma foto de nu artístico para uma foto pornográfica: “O mero fato de estar nu não é um comportamento sexual. Nós nascemos assim, feitos à semelhança de Deus”, diz. E para a turma do “não vi e não gostei”, Sturges faz questão de esclarecer que a retratação de crianças envolvidas em comportamento sexual impróprio para sua idade seria grosseiramente ofensiva — e ninguém poderia dizer outra coisa. Porém a associação direta, imediata e obrigatória de nudez com sexo é, para ele, um equívoco. “Acho a roupa muito mais provocante sexualmente do que sua ausência”, pondera, dando como exemplo a tradição brasileira de biquínis minúsculos, que mostram quase tudo do corpo, e atrairiam uma atenção bem maior do que se todos na praia estivessem nus. “O que está escondido é que fascina a nossa curiosidade”, acredita Sturges, que também faz fotos para grandes revistas de moda. E se a nudez não é tão provocante quanto a sugestão dela, obscenidade é uma palavra inexistente no dicionário do fotógrafo. “Eu não vejo nenhum ponto, no arco de nossas vidas, do nascimento até a morte, que seja obsceno. Nenhum”, repete enfaticamente. Para um descobridor de ninfetas, trata-se de uma visão de mundo apropriada. Afinal de contas, nada mais comum do que a fé de um artista na liberdade de sua arte, principalmente se vigoram contra ela a censura e o cerceamento — muito embora o mesmo tipo de argumentação pudesse ser levantado por um fo-

Alice Lidell, fotografada por Lewis Carrol. Foi inspirado nela - e para ela - que ele escreveu a obraprima Alice no País das Maravilhas


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68 ESPECIAL

tógrafo pornográfico. Cabe à sociedade escolher quem tem razão. Naturista – O naturismo, filosofia de vida com milhares de adeptos no planeta, é o enquadramento da fotografia de Jock Sturges. Isso significa que, caso o naturismo fosse mais praticado e conhecido, seu trabalho seria menos polêmico? Sturges concorda. “Os naturistas não apenas acham o que faço totalmente normal, como têm uma enorme dificuldade em acreditar que alguém possa pensar o contrário”. Ele conta que o pai de uma menina colocou a questão da seguinte maneira: “É repugnante que achem as fotos que você faz de minha filha obscenas, pois o que estão dizendo, na realidade, é que ela é obscena. Isso é ridículo.” Difícil é resolver o conflito que opõe, de um lado, a liberdade de expressão, e de outro, o direito das crianças. Parece que se cai na velha problemática que lança o indivíduo contra a coletividade. Para o fotógrafo, talvez não seja bem assim: “Há um paradoxo aqui. O país europeu com o mais alto padrão ‘moral’ — onde a Igreja católica tem maior influência e onde qualquer tipo de nudez em revistas ou em qualquer lugar era até bem pouco tempo agressivamente reprimida — é a Irlanda. A Irlanda também tem a mais alta incidência per capita de abuso infantil e crimes contra mulheres em toda a Europa”, aponta. E compara, em seguida, com um caso inverso: “Já a Holanda tem os padrões mais liberais de censura no continente. Nenhum tipo de exposição e de pornografia infantil é ilegal. E lá o índice de abuso infantil é o mais baixo entre todos os países europeus”. Baseado nessa discrepância, e se utilizando um pouco de psicologia infantil, Sturges chega à conclusão de que é a repressão que cria o pervertido. “Os pedófilos são criados por essas pressões sociais”, afirma. A observação se confirma em todo canto, segundo ele: quanto mais um sistema social é sexualmente imaturo e repressor, maiores são as possibilidades de que mulheres e crianças sejam molestadas. O traço de romantismo juvenil em defesa da expressão artística viria se aliar ao amor pela forma mutante de uma essência imutável: a vida humana. Jock Sturges, como todo fotógrafo, busca capturar a beleza externa e ampla, indefinível, em imagens instantâneas e limitadas. Se o objeto primordial dessa busca é o corpo humano em desenvolvimento, seria inevitável a preferência pelo frescor da juventude. O fotógrafo, porém, discorda. “Eu vejo beleza em todos os corpos.

Continente . abril, 03

Beatrice Henley, fotografada por Lewis Carrol

Vejo a beleza dos jovens repetida enquanto eles crescem e criam seus filhos. É a beleza da vida, simplesmente”. Na descrição da inocência de suas modelos após décadas de experiência, Sturges explica a atração que exerce a juventude. “Os jovens têm a pele e os olhos nítidos e contornos simples. Existe uma pureza e uma ausência de tristeza nisso que atrai todos nós, porque à medida que a vida adiciona carga às nossas vidas, é difícil não pensar na liberdade infantil com uma certa nostalgia. Há também a fabulosa promessa do que está por vir em todos esses traços simples, de maneira que os jovens dirigem a nossa imaginação para o futuro”, analisa. O papel do fotógrafo Jock Sturges é igualmente nítido e simples, para ele: “Nas minhas fotos, o futuro chega e podemos comparar o que imaginamos com aquilo que de fato se passou”. Sem privilégios, concessões e predileções que pudessem ser tidas como distorções, assegura. “A dança inteira é bela para mim. Toda ela.” (FL)


Foto: Reprodução/AE

ESPECIAL 69 »

A criança é um sujeito sexuado, mas não é um

objeto sexual Há obsenidade quando a nudez infantil é mostrada sem referência com sua identidade específica

Patrice Dunaigre

Stanley Kubrick filmou Lolita, em 1962, com Sue Lyon. Ela tinha 16 anos e fez o papel de uma menina de 14

A criança é uma pessoa, um sujeito sexuado. Não é um objeto sexual. É um ser dependente, tanto no plano biológico quanto no plano afetivo, psicológico. Se a criança, nas etapas de seu desenvolvimento e de sua maturação, pode ser considerada como inacabada, incompleta, sabese hoje que ela também é um sujeito por inteiro, dotada de capacidades específicas para compreender e para aprender. De modo algum, se trata de um adulto em miniatura, nem de um ser que seria alienado passivamente aos desejos dos adultos, que poderia projetar sobre ela seus desejos. Se, de fato, a criança tem uma lógica, e cada idade tem a sua, ela não procede somente de aproximações, de tentativas, de erros. Isto é particularmente válido para tudo que diz respeito a seu corpo, e em particular à sexualidade. A criança, porque ela é procriada pelo ato sexual de duas pessoas de sexo diferente, porque ela é reconhecida por natureza como dependente do adulto, sempre teve um lugar específico no conjunto das regras que presidem as práticas sexuais nas sociedades humanas. Nenhuma sociedade ou cultura autorizou ou organizou institucionalmente as relações sexuais entre crianças de idade pré-púbere e adultos. Este interdito toma seu sentido em relação ao interdito do incesto do qual ele é muito próximo.

Foto: Reprodução

Charles Lutwitge Dodgson, que, com o pseudônimo de Lewis Carrol, escreveu Alice no País das Maravilhas, nutria um amor platônico por meninas

Sexualidade infantil – É essencial precisar o sentido dessa palavra quando ela é empregada a propósito de uma criança. Inicialmente a criança é sexuada, masculino ou feminino. Desde seu nascimento, e mesmo durante a gravidez, ela é investida por seus dois pais como tal, ou seja, como sujeito sexuado e não como objeto sexual. É como tal que ela vai ser inscrita Continente . abril, 03


70 ESPECIAL

Foto: Reprodução/AE

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Neste sentido, a sexualidade enquanto prática autônoma e distinta visando a um objetivo preciso no seu uso (definição da sexualidade adulta) não tem estritamente nenhum sentido para uma criança, mesmo se ela é objeto de sua parte de teorias, imaginações, representações estritamente pessoais e íntimas. Nós sabemos hoje que esse tempo de construção psíquica é absolutamente necessário à criança, nenhum adulto tendo o direito de interromper esse processo, impondo à criança a realidade de uma relação que diz respeito à sua integridade corporal. E mesmo o aparecimento de sinais de puberdade deve de modo algum autorizar a transgressão deste interdito, sobretudo quando aparece com pouca idade, na medida em que as representações que são ligadas à zona genital não estão ainda maduras e orientadas em direção do outro, sobretudo quando se trata de um adulto.

Aliás, a liberdade de expressão, no psiquismo humano, é objeto de uma censura, como testemunha o esquecimento diurno de certos sonhos noturnos, mas também a organização de sintomas no caso de patologias mentais; esses sintomas sendo construídos por formas psíquicas de censuras. Existem em todas as sociedades censuras editadas em nome de crenças de diversas naturezas incluindo ou não a dimensão religiosa, por exemplo. Essas censuras “moralizantes” impõem o interdito e condenam toda a palavra. Assim, elas correm o risco de se encontrar ulteriormente desqualificadas. Existe uma outra forma de censura pronunciada em nome de saberes comprovados, de conhecimentos validados, mesmo que eles não sejam unânimes. Eles dizem o interdito, o justificam, mas não proíbem o debate e até mesmo o alimentam. O que é comumente chamado liberdade de expressão é, então, somente uma aproximação, mas não pode ser um álibi utilizado para esconder vícios de linguagem, uma confusão voluntariamente alimentada sobre o sentido de algumas palavras, os amálgamas redutores, a desqualificação sistemática de conhecimentos adquiridos. Neste sentido, me parece indispensável que as questões relativas à sexualidade da criança sejam objeto de um debate contraditório o mais amplo possível. Porque sobre esse assunto, como sobre tantos outros que dizem respeito ao humano, a autêntica liberdade de expressão é aquela que aceita e até mesmo provoca a expressão de uma contradição.

Liberdade e censura – No psiquismo humano, a sexualidade ocupa um lugar particular: aquele do objeto de um jogo de representações e de fantasias as mais diversas, mas sempre organizadas a partir de uma construção radicalmente pessoal e íntima e que, por esse fato, não poderiam ser realizadas na comunidade humana. Porque a pessoa, enquanto sujeito, é alienada à sua história, a essa construção. Nem a liberdade, nem a expressão são inocentes, quer dizer que fazem lei em nome de um suposto livre arbítrio podendo ser imposto ao outro.

A questão da arte – Porque ela é inscrita como irracional, a sexualidade foi e é ainda uma fonte de inspiração para os artistas. Mas a opção de uma estética que caracteriza todo trabalho artístico é somente utilizada no quadro de um projeto que recontextualiza o objeto escolhido, e isso quaisquer que sejam os meios utilizados para representar este desvio. Neste sentido, a nudez da criança não pode pretender ser, em si mesma, artística, e mostrar a nudez não é suficiente para estabelecer uma ficção criadora. Há nudezas de criança obs-

Reginaldo Farias e Flávia Monteiro, em A Menina do Lado, de Alberto Salva. O filme mostra o relacionamento entre um “quarentão” e uma adolescente

numa genealogia, qualquer que seja seu meio social, cultural ou religioso; quer dizer que sua natureza sexuada não é tomada no sentido genital, mas numa relação imaginária, historizada, temporalizada através dos avós, dos ancestrais, etc. Nada a ver, então, com a sexualidade adulta da qual a criança, durante muito tempo, não saberá nada, o que não vai impedir de se mostrar intrigada, curiosa, inquieta face a esta parte do seu corpo da qual ela vai tentar progressivamente decifrar o enigma. Ela poderá, aliás, ter uma idéia dessa sexualidade somente através de todas as experiências estruturantes que ela vai poder viver e que não concernem de forma alguma ao uso de seu sexo, nem evidentemente de relações sexuais efetivas. Assim, na criança, a sexualidade não é imediatamente genital, mas se investe nos campos das experiências que progressivamente constroem seu pensamento e seu corpo. É no quadro de relações que não são precisamente sexuais que a genitalidade vai progressivamente se construir. A satisfação das funções orais, da aquisição de uma autonomia corporal, da linguagem, da limpeza, é privilegiada, mas no quadro restrito de adultos tutelares, que precisamente consideram a criança não como objeto sexual, mas como um sujeito a acompanhar na construção de uma integridade corporal, alimentando na criança representações psíquicas. É a soma dessas experiências que vai organizar o acesso a uma sexualidade genital, a um momento ulterior dito puberdade.

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ESPECIAL 71 cenas, porque a criança é mostrada como o objeto cortado de toda a referência com sua identidade específica, com sua natureza. Esta maneira de exibir a criança é totalmente equivocada e em oposição ao trabalho artístico que propõe um outro olhar do que aquele do voyeur. Aliás, o projeto artístico também não tem por objetivo incitar práticas exteriores ao seu campo. O álibi de uma suposta beleza do corpo jovem confunde cultura com culturismo. Sabese que o culto da beleza do corpo e da juventude provém freqüentemente de ideologias cujo projeto é baseado sobre o ódio do outro, o estabelecimento de práticas discriminatórias, e impõe a idéia de uma raça superior. Não se pode, enfim, abafar os desejos cuja criança é objeto da parte da economia mercantil, como fonte de lucros consideráveis. Criança adultificada, mercantilizada, alvo da publicidade, caricaturada em espetáculos com pretensão artística. Outra maneira de abusar dela é de a transformar em objeto de uma cultura mercantil. Valores – Os atos sexuais cometidos por adultos sobre crianças, as pseudoteorias tendendo a justificar essas relações visam negar a dimensão humanizante das diferenças, e especificidades que existem entre crianças e adultos. Neste sentido, não é somente a integridade física da criança que é atingida, mas, também, a estruturação de sua identidade infantil, quer dizer, de uma pessoa que tem o direito, por um tempo, de ser inacabada e distinta do modelo adulto. Esta necessidade, este direito não dependem de um sistema de valores, mas de uma lei humanizante que prevaleceu até então. É certo que ela se baseou em crenças empíricas, em preceitos morais ou religiosos que impuseram o imperativo. Assim, o interdito das relações sexuais entre adultos e crianças pré-púberes era mantido em silêncio e não era objeto de nenhum debate sobre sua razão de ser. Isso não impediu numerosas

transgressões veladas pelo mesmo silêncio. O que é novo hoje é que se fala um pouco mais sobre isso. O que é novo é que se sabe um pouco mais sobre os efeitos que essas transgressões produzem na criança. O que é novo é que podem ser pronunciados outros discursos do que aqueles da moral ou da religião para indicar a necessidade radical que esses interditos sejam respeitados pelos adultos. O que é novo, é que sobre esse assunto um silêncio acabou. É de nossa responsabilidade afirmar que falar sobre esse assunto não é autorizar a transgressão do interdito, mas pelo contrário, reafirmá-lo dentro de seu valor humanizante. Isto não é novo. Se algumas sociedades se interrogam sobre o lugar da criança, é porque, sem dúvida, elas não estão satisfeitas com as práticas de alguns adultos que se atribuem o direito de realizar com crianças. Hoje se sabe que a maioria das crianças que tiveram que viver situações de maus-tratos sexuais ou físicos da parte de adultos desrespeitosos correm um grande risco de se tornarem eles mesmos adultos violentos ou estupradores. Espero, por minha parte, que os esforços acionados para evitar que as crianças sejam expostas a estas violências te nham um belo futuro. Cada um em seu lugar pode participar deste esforço.

Patrice Dunaigre é psiquiatra infantil na Liga dos Direitos Humanos da Comissão sobre os Direitos da Criança, em Paris, França.

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72 PATRIMÔNIO

Livro conta a história do Theatro José de Alencar, de Fortaleza, um dos mais belos do país Marco Polo Acaba de ser lançado, em edição impecável, o livro Theatro José de Alencar – O Teatro e a Cidade, com texto de Oswald Barroso e coordenação editorial de Patrícia Veloso. Traz toda a história do teatro e farto material fotográfico, de época, das reformas, e de sua situação atual. Inaugurado em 1910, o Theatro José de Alencar, de Fortaleza, é o mais completo exemplo da arquitetura eclética na capital cearense. Totalmente reformado entre 1989 e 1991, hoje é um centro de projetos nas áreas de teatro,dança, música e manifestações de artes cênicas contemporâneas. Em anexo abriga escolas de dança, teatro, a orquestra Eleazar de Carvalho e uma biblioteca aberta ao público, além de salas de ensaio, dança e canto.

Foi o último filho da belle époque cearense, que começa no final do século 19, com o comércio algodoeiro imprimindo um grande crescimento ao Estado. As elites rurais ocupam a capital, visitam o Velho Continente e, como conseqüência, há um afrancesamento nos costumes e na arquitetura viceja o etilo eclético que, sob o pretexto de sintetizar o melhor de diversas épocas, oscilava entre a exuberância e o mau-gosto. Em 1904, o presidente do Ceará, Antonio Accioly, retoma um antigo projeto de ter Fortaleza um grande teatro. O oficial de artilharia do Exército Bernardo José de Melo, engenheiro construtor, venceu a concorrência pública. A firma Boris Frères, de Paris, foi contratada para concretizar o

projeto. As estruturas metálicas foram encomendadas a Walter MacFarlane & Co., de Glasgow. O local escolhido, a praça da Igreja do Patrocínio, depois Marquês de Herval, hoje Praça José de Alencar. A idéia geral, um teatro-jardim, avarandado e aberto, próprio à região tropical. As obras foram iniciadas em 6 de junho de 1908 e dois anos depois o Theatro José de Alencar estava pronto. Seu orçamento inicial, de 400 mil réis, tinha alcançado o valor de 553,084$497. Não importava. A elite cearense tinha, orgulhosamente, não só um teatro com uma caixa de cena espaçosa, alta e com inovações técnicas até então inusitadas para o Estado, como também um espaço de platéia com jardins, varandas, escadarias, passarelas, camaFotos: Reprodução

A primeira fachada do Theatro José de Alencar, que serve como anteparo aos ruídos da praça

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rotes e frisas vazadas, enfim, o cenário perfeito para todos desfilarem sua vaidade. Grandes portas em arco, colunas, janelões com sacadas em granito e ferro trabalhados, estatuetas e pinturas decorativas, completavam o magnífico espaço. A fim de atualizar suas maquinarias e restaurar o prédio, o Theatro José de Alencar passou por várias reformas. A primeira, em 1918, substituiu a iluminação a gás pela elétrica; a segunda, em 1937, foi geral, pois o teatro estava “em petição de

miséria”, como se dizia na época; a terceira, em 56/57 incluiu modificações em quase todas as dependências, com erros e acertos: entre os primeiros, a substituição das cadeiras austríacas de palhinha por outras de plástico verde, entre os segundos, a retirada das divisórias de madeira entre os camarotes para colocar grades de ferro iguais às das frisas. Em 1973, já tombado, o Theatro passa por nova reforma porque até a estrutura metálica já estava se avariando. Desta vez,

foi praticamente refeito: do teto ao piso, vitrais, madeiras, pinturas, ferros, panos, tudo foi trocado. As cadeiras originais voltaram, reformas positivas foram feitas, incluindo bilheterias e banheiros, bem como a sala onde se instalou a biblioteca. No pátio, uma novidade: a abertura de portas laterais, dando acesso aos jardins, o grande sucesso da reinauguração. Mas, com o surgimento de outras casas de espetáculos e o abandono em que tinha caído a área mais antiga da cidade, na qual Continente . abril, 03


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74 PATRIMÔNIO

A “caverna luminosa” do Theatro; ao lado, com a boca de cena; abaixo, com a platéia

o Theatro estava instalado, em 1989 a situação tinha chegado a um ponto limite. O prédio estava em ruínas e o perigo de incêndio era iminente. A secretária de Cultura Violeta Arraes sensibilizou o governo a restaurar o velho TJA e, logo, esse ato passou a ser visto como um ótimo pretexto de uma estratégia para revitalizar o centro de Fortaleza. A empresa Sole & Castro, responsável pela restauração, foi ouvir o público e os artistas, a fim de fazer um trabalho que, juntamente com o prédio, recuperasse a emoção, o brilho e a importância que o cercavam no seu início. Um novo edifício foi incorporado à área do teatro, aumentando-a em 2.200m², e nele foi instalado um Centro de Artes Cênicas, com espaço para ensaio de teatro, dança, música, exposições, biblioteca, acervo, oficinas de apoio cênico, um bar-teatro a céu aberto, um miniteatro fechado, transformando o lugar num verdadeiro centro de cultura e lazer. O jardim foi recriado por Burle Marx e uma central de ar condicionado foi instalada. O TJA ficou dividido em três espaços: o prédio da frente, uma fachada de palácio civil que o resguarda do barulho da praça; o segundo, a sala de espetáculos, verdadeira “caverna luminosa”; e a caixa de cena, com tecnologia totalmente atualizada. Continente . abril, 03


PATRIMÔNIO 75 Em todos os detalhes, há o cuidado arquitetônico com a função e a beleza

O Theatro possui várias salas. Nesta, são feitos recitais de música de câmara

Escadaria externa em forma de espiral, feita de ferro trabalhado

Na manhã de 26 de janeiro de 1991, começaram as festividades de reabertura do Theatro José de Alencar, com um grande espetáculo teatral de rua, concebido e dirigido por Ademir Haddad. Espetáculo este que começou pela manhã e estendeu-se pela tarde, terminando dentro do teatro, numa integração simbólica entre externo e interno, público e privado, praça e palco. No restante da década de 90, o TJA teve a maior movimentação de sua história. Entre os espetáculos internacionais apresentou o Odin Theatre, de Eugênio Barba, o Quinteto de Sopros da Filarmônica de Berlim e a companhia londrina Not The National Theatre; dos nacionais, destaque para Grupo Corpo, Bibi Ferreira, José Celso Martinez, Bia Lessa, Denise Stocklos, Egberto Gismonti, Ana Botafogo e Marília Pêra. Sem falar em grandes nomes cearenses como Fagner, Belchior e Tom Cavalcante. É bom notar que, em seu texto, Oswald Barroso evita o obaoba indiscriminado e faz pertinentes críticas ao que deve ser criticado, desde os desmandos do governador que autorizou a construção do prédio, até a situação conjuntural do mesmo na atualidade. Recuperada a importância do TJA como sala de espetáculos, Barroso levanta uma questão fundamental. A de que a revitalização do centro de Fortaleza, da qual o Theatro seria ponta de lança, não se verificou. Assim, alerta as autoridades do momento: “A pobreza e a violência urbana cercam suas frágeis grades e sua delicada arquitetura. Justifica-se, a partir de então, a pergunta: ajudará o Teatro recuperado e em franca atividade a reordenar o centro da cidade, ou a ruína do centro o levará de roldão?”

Theatro José de Alencar – O Teatro e a Cidade. Coordenação editorial de Patrícia Veloso. Texto de Oswald Barroso. Fotos de Gentil Barreira, José Albano, Celso Oliveira e Fernando Sá Terra da Luz Editorial - Fone: (85) 261.0525 www.terradaluzeditorial.com.br R$ 70,00 156 p. Continente . abril, 03


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76 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito com ilustração de Zenival

O canceroso imaginário Até ouvir a fala curta e seca do meu colega médico, eu estava cheio de planos para o futuro

Juro que não estou com câncer. Pelo menos por enquanto. Mas durante cinco dias vivi a possibilidade de ser portador de um melanoma maligno, uma das formas mais traiçoeiras da doença. Pela primeira vez nesta coluna estou falando como médico. Até dois meses atrás, escreviam junto do meu nome as minhas duas profissões. Certamente desejavam associar-me a Guimarães Rosa, Jorge de Lima ou Pedro Nava, que além de médicos foram excelentes escritores. Mas ser discípulo de Hipócrates não garante um bom futuro literário a ninguém. Sobretudo nos tempos de hoje em que a medicina se tornou uma profissão de técnicos, afastando-se da filosofia, da religião e da arte. Soube que poderia estar com câncer, no consultório de um dermatologista. Um pequeno sinal nas costas era suspeito: tinha coloração escura, contornos irregulares, superfície plana. Eu fora me consultar por causa de um prurido, coceira como dizem os leigos. O especialista mostrou-se calmo, afirmando que eu poderia adiar a retirada do sinal, mas deveria faze-lo o mais breve, e enviar a peça (é assim que chamamos o fragmento retirado) para exame histopatológico. Até ouvir a fala curta e seca do meu colega médico, eu estava cheio de planos para o futuro: plantar café num sítio em Taquaritinga, publicar um novo livro de contos, morrer só depois dos noventa anos. Agora, poderia ter uma sobrevida de oito anos ou viver apenas ridículos três meses. Dependia da evolução do melanoma, se confirmado. Enquanto dobrava papéis com receitas e solicitações de exames, me perguntava o que acontecera. Eu era o mesmo Ronaldo Correia de Brito de quinze minutos atrás (tempo que durou a consulta): saudável, cheio de apetite e vontade de viver. Não. Não era. Um médico, detentor do poder da ciência, lançara uma dúvida sobre o meu frágil destino no planeta Terra. Sempre soube que ia morrer. Nunca duvidei disso. Mas assim, tão de repente, sem mais nem menos, sem ter cometido Continente . abril, 03

nenhuma transgressão, nenhum crime. E a sentença pronunciada sem qualquer humor, sem toques de trombeta como no juízo final. Liguei para um amigo cirurgião oncologista. Ele foi categórico: “Se você não retirar o sinal para a prova dos nove, nunca mais terá sossego.” Regateei: “Mas eu estou perfeito, não dou um espirro, acabei de dosar o colesterol e os triglicerídeos, minha pressão é de criança.” Conversa fiada. A dúvida me comia por dentro. Retirei o sinal e aguardei o resultado. Foram cinco dias terríveis. Comportava-me como um candidato a defunto, inventariando as pequenas coisas que lamentava deixar “nessa vida de ilusões”. Por azar, enquanto aguardava o resultado da biópsia, uma colega de turma morreu de linfoma e uma vizinha de carcinoma, nomes do “dito cujo”. Apostei que o próximo seria eu. Não fui. O histopatológico conclui por uma queratose, lesão muito besta e, por isso mesmo, ótima para mim. Decidi mudar radicalmente de vida, o que não fiz, ainda. Passei da condição de quase morto para a de ressuscitado. Admiro os progressos da medicina. É possível extirpar tumores com raios laser; a cirurgia de catarata tornou-se tão simples que o fantasma da cegueira na velhice já não existe; o diagnóstico e tratamento precoce do câncer diminuíram o pavor que cercava esta doença. A altíssima tecnologia a serviço do diagnóstico transformou os médicos em superespecialistas, homens cibernéticos. Só que a técnica, do grego technikós, que quer dizer relativo à arte, passou a significar estritamente o domínio de um instrumental científico, muitas vezes mecânico. A arte, no seu elevado sentido de busca do Bem e do Belo, cedeu lugar à indústria ou ao mero artesanato. Para os gregos, a cura sempre esteve ligada à busca do autoconhecimento. Na entrada do oráculo de Delfos uma inscrição orientava os que procuravam ajuda: “Conhece-te a ti mesmo”.


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Mas a medicina também recorreu à magia simpática e nunca prescindiu da relação entre médico e paciente, de gestos simples como o olhar, o toque, a escuta e a fala. Quando Heráclito afirma “agora eu vou sair em busca de conhecer a mim mesmo”, inaugurando o logos, ou a ciência, rompendo com o pensamento mágico da Grécia mítica, ele também inaugura uma nova maneira de ver o homem e de buscar a sua cura. Que não nega o humanismo essencial à prática médica, esquecido nesses tempos em que a magia do toque das mãos foi substituída pelo sacolejo de um aparelho de ressonância magnética. O meu dermatologista agiu corretamente ao indicar a retirada do sinal. Não questiono o seu procedimento. O que nós médicos precisamos rever é o poder que muitas vezes assumimos de arbitrar sobre a vida e a morte. Algumas sentenças médicas, pro-

nunciadas sem maiores compromissos, causam transtornos irreversíveis. Os escritores clássicos sempre ironizaram a empáfia do médico e fizeram dele as piores caricaturas. Mas ninguém o tratou pior que o teatro de commedia dell'arte, na Renascença. Il Dottore, o médico, é representado por um ator, que move apenas a cabeça de um lado para o outro. O eixo vertebral rígido como uma coluna de concreto representa o poder e a arrogância. Os olhos fixos no horizonte não enxergam o doente à sua frente, que, apavorado, espera uma sentença sobre o seu destino. Que na comédia, graças a Deus, é somente um simples: “Ahn!”

Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.

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O Cristo Rei Tradição cada vez mais rara, o Reisado é uma folia trazida pelos portugueses que colonizaram o Brasil Evaldo Parreira


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de Buíque


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O Reisado é uma folia característica do povo brasileiro, que comemora o dia de Reis na data de 6 de janeiro, quando os três Reis Magos — Belchior, Baltazar e Gaspar — visitaram o Menino Jesus na sua manjedoura, cumprindo uma profecia. É uma tradição que foi trazida pelos portugueses, e a cada dia, infelizmente, torna-se mais raro ser encontrada, principalmente no Nordeste, região onde primeiro se sedimentou a cultura ibérica. O fotógrafo Evaldo Parreira registrou o Reisado Cristo Rei de Buíque, do mestre Seu Atílio. A folia, embora seja dançada principalmente no dia de Reis, estende-se em algumas regiões até a Páscoa. Também é apresentada no Carnaval.

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CONTEMPORANEIDADE

ganhar dinheiro é uma

arte Publicitário, o sonho de Andy Warhol era ser reconhecido como artista, tornarse uma estrela e ficar rico, muito rico

Na biografia que Klaus Honnef escreveu sobre Andy Warhol, o subtítulo é esclarecedor: A comercialização da arte. De fato, é impossível dissociar o papa da arte p op de uma visão mercenária da arte. Frases suas, que podem ser interpretadas como simples boutades, muito provavelmente têm um cruel fundo de verdade: “Pedi a dez ou quinze pessoas que me dessem idéias, até que uma amiga me fez a pergunta certa: Qual é a coisa de que você gosta mais? Foi assim que comecei a pintar dinheiro”. Ou então: “Ganhar dinheiro é uma arte, trabalhar é uma arte, fazer bons negócios é a maior de todas as artes”. Filho de imigrantes tchecos, Warhol começou como publicitário, mas desde o início queria se afirmar como artista. Para isso, armou toda uma estratégia. Fascinado pelo mundo das estrelas da mass media seus primeiros trabalhos que chamaram atenção eram reproduções de botas (fetiches) de Elvis Presley, Mae West, James Dean e Judy Garland, entre outros, feitas na técnica de colagens com folhas de ouro, linhas impressas artesanalmente e pequenos adereços. Seu sucesso começou quando partiu para quadros de maior impacto. Como, por exemplo, logo em seguida à morte misteriosa de Marilyn Monroe Continente . abril, 03

(suicídio, acidente, assassinato?) começou a reproduzir seu rosto em serigrafias coloridas. Da mesma forma, quando o presidente John Kennedy foi assassinado, dedicou-se a explorar o rosto da viúva Jackie, em expressões de dor. Isto é, uma série de oportunismos que não explicam toda sua glória — não se pode negar seu talento, nem sua importância para a história da arte —, mas que são demonstrativos de toda uma estratégia de ascensão. Henry Geldzahler, seu amigo de longa data, disse: “Ele nunca perdeu de vista seu verdadeiro objetivo: ser um artista e, embora nunca o tenha dito, uma estrela”. Atento à decadência do Expressionismo Abstrato, que tinha imperado até então nas artes plásticas norte-americanas, Warhol começou a perceber o fascínio que os objetos de consumo poderiam exercer e o surgimento, no início dos anos 60, da cultura de massa. É quando passa a pintar garrafas de Coca-Cola e latas de sopa Campbell's. No terreno pessoal, preocupa-se em elaborar a própria imagem, ela própria um elemento que ele “venderia” amplamente. Conta David Bourdon, que com ele convivia na época, que “a sua transformação num homem da Pop Art foi pensada e bem


ponderada. Transformou-se numa espécie de teenyp opper, aparentemente ingênuo, a mastigar chiclete, voltado para as formas mais triviais da cultura pop . Quando esperava a visita de alguma personalidade importante do meio artístico, defensores da Arte Nova, como Ivan Karp ou Jenry Geldzahler, substituía o disco de música clássica por um de música pop”. Sua grande virada se deu no início dos anos 60, quando percebeu que os objetos, com que ganhava dinheiro fazendo publicidade, render-lhe-iam muito mais se os erguesse à categoria de objetos artísticos. Os gritantes símbolos da publicidade de massa passaram a ser seus temas, das histórias em quadrinhos aos produtos de supermercado, passando pelas fotos dos jornais. Um episódio característico da acuidade de Warhol, em perceber qual o caminho certo a ser percorrido, deu-se em relação às histórias em quadrinhos. Quando soube que outro artista, Roy Lichtenstein, já vinha explorando o filão, e com maior competência, abandonou-o imediatamente. Sabia que não adiantava ser o segundo numa trilha, se quisesse alcançar o topo. Partiu para descobrir qual o percurso que ainda não tinha sido explorado. E acertou em cheio. No auge da fama e da riqueza, vivia cercado de gente que praticamente produzia tudo para ele. O mestre apenas dava o aval ou o acerto final para que o produto, ou seja, a obra de arte, pudesse ganhar o mundo com a sua assinatura, ou seja, grife. Sua própria persona era um produto: de aparência tímida e aérea, mas muito seguro e atento a tudo, todo vestido em couro preto, com uma peruca cor de prata, avesso a dar entrevistas, mas fértil em frases de efeito, tinha chegado lá: mais que um artista, tornara-se um superstar.

“Foi uma daquelas tardes em que pedi a dez ou quinze pessoas que me dessem idéias, até que uma amiga minha me fez a pergunta certa: Qual é a coisa de que você gosta mais? Foi assim que comecei a pintar dinheiro"

Andy Warhol começou a ser reconhecido, como um dos expoentes da pop arte, ao retratar símbolos da cultura de massa, como a sopa Campbell's e a atriz Marilyn Monroe

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» 86 CONTEMPORANEIDADE

Whaam!, 1963, Roy Lichenstein (detalhe)

Segundo David McCarthy, autor do livro Pop Art, no início dos anos 60, em pleno século 20, o furor dos expressionistas abstratos que dominara a cena do decênio anterior, extingue-se de repente. Em vez de grandes telas cobertas raivosamente de tinta, surgem imagens retiradas do mundo “popular”, desde a banda desenhada até os gêneros alimentícios vendidos nos supermercados. Passa-se, portanto, da exibição da complexa interioridade do artista para a reprodução do quotidiano óbvio, não reinterpretado , não filtrado, apenas confirmado na repetição mais ou menos fiel.

Ainda antes dessa tendência se afirmar nos EUA, já os artistas ingleses tinham se inspirado na sociedade de consumo, nos seus símbolos e ritos quotidianos, e , em 1952, forma-se, no seio do Institute of Contemporary Art de Londres, o Independent Group, constituído por artistas, arquitetos e críticos. Em 1956, Richard Hamilton (1922) figura, ao lado de Peter Blake (1932), David Hockney (1937) e Allen Jones (1937), entre os principais representantes da pop art inglesa. A sua colagem intitulada Just what is it that makes today's homes so different, so appea-

ação

Uma antropofágica A Pop Art apropriou-se de signos da cultura de massa para criticá-la. Ou não Continente . abril, 03


87 ling?, que pretende questionar a originalidade das casas modernas, mostra a sala de estar de um apartamento repleto, ou melhor, a abarrotar de produtos da sociedade de consumo: o gravador, a televisão, o aspirador, e mesmo a pin-up e o culturista, que segura um gigantesco chupa-chupa pop. O sense of humour de Hamilton é requintadamente inglês; enquanto os artistas pop americanos recorrem a uma linguagem mais direta, por vezes mesmo brutal, os ingleses recorrem a processos sutis e provocatórios. As referências ao sexo e ao erotismo também são mais sarcásticas nas obras dos artistas britânicos: em Hatstand, Table, Chair, (1969) e Allen Jones que utiliza manequins femininos idênticos, colocados em diferentes poses, para denunciar a condição de mulher-objeto, as perversões sadomasoquistas e o kitsch potencialmente presente em todas as práticas quotidianas. Nos EUA, Andy Warhol (1928-1987) repete a imagem de um produto sempre presente na despensa de qualquer família americana média, as latas de sopas Campbell, ou alinha caixas de detergente Brillo, como se estivessem em prateleiras de supermercado, sem revelar qualquer ironia, mas refletindo apenas os gostos e os hábitos alimentares predominantes na sociedade americana do seu tempo. É com o mesmo desencanto que Warhol olha para o objeto ou para uma personagem famosa, “consumida” através da imprensa ou da televisão, como um produto comestível. Um aspecto mais lúdico caracteriza as obras de Roy Lichtenstein (1923-1997), que reproduz, ampliando-os, excertos de banda desenhada: os heróis e as heroínas, retirados do contexto original, surgem como figuras muito mais improváveis. Como improváveis, acabam por ser objetos supradimensionados de Claes Oldenburg (1929): um interruptor construído em material mole, uma colher de pedreiro monumental, hambúrgueres, tortas e alimentos vários em matéria plástica e de cores berrantes. Os nus de Tom Wesselman (1931) provocam efeitos paródicos: uns põem em evidência os seios, o púbis e os lábios; outros reproduzem maliciosamente as pin-up s dos cartazes publicitários. Apesar das diferentes origens, ao longo de toda uma década, a Pop foi um dos mo-

Madona americana número 1, 1962, Allan D'Arcangelo

vimentos centrais da arte britânica e americana, impondo várias personalidades como artistas de primeira categoria, afetando diretamente, em todo o mundo, o curso de arte subseqüente e reconfigurando o nosso entendimento da cultura do século 20. A Pop Art evitou deliberadamente as severas críticas de algumas manifestações do modernismo, em prol de uma arte que era tanto visual como verbal, figurativa e abstrata, criação e apropriação, arte manual e produção em massa, irônica e sincera, complexa e dinâmica como o momento, e como os artistas que lhe deram vida.

Forças Armadas - Sincronizadas, 1962, Peter Phillips Continente . abril, 03

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88 CONTEMPORANEIDADE

Entre os

dólares e a crítica

A trajetória de Romero Britto, artista que, para a crítica, não passa de fenômeno mercadológico

Contratado para diversas campanhas publicitárias, Britto vende quadros por até 120 mil dólares

Em 1990, o sueco Curt Nycander, um dos altos executivos da vodka Absolut, que até então vinha pegando carona no sucesso de artistas como Andy Wahol, por ela contratados para promover a bebida, achou que estava na hora de promover um desconhecido. Entrando numa galeria, deu com os quadros coloridíssimos do pernambucano Romero Britto, que estava tentando a vida nos Estados Unidos, sobrevivendo como jardineiro e lavador de carros. De uma hora para outra, Britto se viu com 65 mil dólares na conta e seu trabalho em milhões de exemplares de 61 revistas americanas, entre as quais New Yorker, Vanity Fair, Rolling Stone, Art in América, ArtNews, etc. Hoje, ele vende quadros por até 120 mil dólares e tem obras nas coleções de Bill Clinton, André Agassi, Whitney Houston, Ted Kennedy, Madonna, Michael Jackson, Arnold Schwarzenegger, Sylvester Stalone, Carlos Menen, Michael Jordan, Elton John, Gloria Estefan e Paloma Picasso, além dos brasileiros Fernando Henrique Cardoso, Xuxa, Fernando Collor e Roberto Marinho. Possui casa à beira de um lago em Miami, apartamento em São Paulo e um sítio no Estado de Nova Iorque.

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A crítica brasileira, entretanto, não concorda com a qualidade do pintor. Para Agnaldo Farias, o que Romero Britto faz não é arte, porque não provoca inquietação. O crítico considera-o mais um ilustrador publicitário que um artista de fato. Já o jornalista pernambucano José de Souza Alencar diz que seus quadros ficam bem decorando quartos infantis. O diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, do Recife, acha que Britto “dilui uma série de influências coloristas do imaginário da arte p op. Faz isso com competência, é certo, mas criando um trabalho que já nasce inerte, porque se instrumentaliza em se adequar ao senso comum da cultura de massa. Ou seja, oferece o prato que já é esperado e por isso não tem pulso para se impor como um trabalho original”. Em recente entrevista à Continente, o pintor Ismael Caldas foi mordaz em relação ao trabalho do colega: “As pessoas estão fazendo de conta que aquilo é pintura: ora, aquilo não é nada. Nada diluído em coisa nenhuma”. O crítico Paulo Hekenhoff também é drástico. Indagado sobre o que acha da pintura de Romero Britto, reage com ironia: “Nem


CONTEMPORANEIDADE 89 » me faça esta pergunta. Eu lido com arte”. A seguir, Romero Britto rebate as críticas, em entrevista a Weydson Barros Leal: Você é o artista brasileiro de maior sucesso no exterior e, mesmo assim, tem sua arte bastante questionada. Por que você provoca isso? Eu imagino que entre o público que a minha arte alcança, existe um grupo que vive no passado, e talvez por isso não está aberto a arte pop. Muita gente não entendeu e até hoje não entende a idéia da arte pop, e quer que o artista também viva naquele passado em que tinha de sobreviver às custas de uma realeza ou de alguma classe social que mantinha a sua arte. A arte pop busca exatamente atingir o grande público, e eu quero que o maior número de pessoas possível possa desfrutar de minha arte. Ter grandes nomes da música, dos esportes e da política americana como colecionadores de seus quadros, impulsiona o mercado? Isso é uma bola de neve? Acho que quanto mais pessoas interessantes disserem que gostam ou que colecionam a minha pintura é melhor para mim. Se personalidades da sociedade, pessoas que o público admira por seus trabalhos dizem que gostam do meu trabalho, isto quer dizer alguma coisa. Como referência para o grande público, não importa se é uma pessoa famosa ou uma grande empresa que está ligada à minha arte, o importante é que essa ligação transmita a minha idéia através do meu vocabulário. O artista, em geral, sente a responsabilidade da arte como veículo de contestação. Você sente essa inquietação? Qual o seu papel na história da arte? Eu estou aqui para fazer arte, não para fazer história. Faço a minha arte, não tenho nada calculado. A história se encarregará disso depois que eu morrer. Sou um poeta das cores. Quero através da minha arte passar alegria para as pessoas. No caso das empresas que me procuram para utilizar imagens minhas em seus produtos, por exemplo, estão apenas buscando a mensagem que passo através do meu trabalho. Você disse que com sua pintura quer levar alegria a quem a vê. Talvez por isso, alguns críticos afirmem que lhe falta a reflexão crítica do mundo. Você evita essa investigação ou acha que isto não cabe em sua arte? Admiro a obra de grandes pintores do passado, como Caravaggio, Picasso... Respeito os grandes desabafos revelados através de suas obras, as grandes angústias, os sofrimentos, seus statements... Mas no mundo de hoje, esse sofrimento está no dia-a-dia dos jornais, da CNN. Não quero repetir a tragédia que a CNN já revelou ao mundo ao vivo, no instante em que tudo acontece. Quero pensar o mundo de forma diferente, por isso não estou preocupado com a história da arte. Os artistas que buscam esse "drama humano" querem buscar o triste e o pesado de nossa condição. Eu não quero isso. Quero o alegre, a alegria que há na vida. Não quero na minha arte o conflito. Quero revelar a paz e a tolerância. Será que isso também não é importante na vida das pessoas? Suas referências na pintura situam-se principalmente entre o cubismo e a pop art, através de nomes como Picasso e Andy

A campanha da vodka Absolut abriu para Britto as portas do sucesso

Warhol. O primeiro é quase uma unanimidade como gênio do século XX, o outro é pura polêmica, inspirando discípulos e detratores. Estaria entre os dois, não só a origem, mas também o resultado de sua obra? O meu trabalho é uma grande homenagem à alegria. As pessoas que me criticam não colecionam o meu trabalho, e por isso não se beneficiam do meu sucesso. Esses críticos não entendem o que estou fazendo porque não entendem a pop art. Falta informação, falta participação para compreender tudo isso. E não participam e não compreendem porque não têm capacidade para isso. Na maioria das vezes, as pessoas elogiam aquilo de que se beneficiam. Se você não se beneficia, aquilo não é importante. Hoje em dia, em vários lugares do mundo, começando por Miami, onde você tem seu ateliê, já há falsificações e imitações de sua obra. Isso lhe incomoda? Não penso muito sobre isso.A única coisa que me preocupa é o que estou fazendo, é o meu trabalho. Não penso nos que me copiam ou falam mal. Acho ótimo quando uma obra minha inspira alguém a fazer algo verdadeiro, inspira a sua arte. O ato de copiar algo de sucesso, tem a ver com a coisa financeira, e por isto eu tenho desdém, acho uma coisa criminosa. Quando você se inspira, você parte para criar algo bom. Por isso quero fazer a minha arte, porque quando você faz algo legal, atrai coisa legal.

“Eu estou aqui para fazer arte, não para fazer história. Faço a minha arte, não tenho nada calculado. A história se encarregará disso depois que eu morrer. Sou um poeta das cores”.


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90 CONTEMPORANEIDADE

Uns são

artistas, outros não Para o mercado, que prefere o lucro ao almejado sentido da arte, não interessa o artista livre Raul Córdula

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Uns são artistas, outros não é o título de um instigante livro-de-artista de autoria de Antonio Dias, artista brasileiro que vive há décadas na Europa, onde impressiona o meio culto da arte. O livro tem poucas palavras e muitas imagens, ele se refere à abordagem mercadológica que se contrapõe à sua abordagem crítica, culta e autêntica. Deixa claro que o mercado compra prestígio, não arte, compra objeto de decoração, não signo de conhecimento. Temos escrito que o artista, ao se libertar das amarras que o poder historicamente lhe impõe, tornando-o um porta-voz de sua ideologia ou um apêndice da sociedade rica, libertou-se também do olhar burro, que o queria pintando (representando) apenas os seus desejos. Mas o artista, libertando-se, liberta também o olhar da sociedade como um todo, ricos e pobres, liberta sua cultura para seguir seu caminho sem obstáculos. Para o mercado, que prefere o lucro ao almejado sentido da arte, não interessa o artista livre, interessa o artista que continue sendo um tradutor de idéias alheias e um instrumento a mais para otimizar o ritual de acumulação de bens que gratifica o capitalismo. O pintor Romero Britto é um fenômeno mercadológico. Exímio artesão da pintura, seu meio de expressão é uma dádiva para quem detém o poder e necessita comunicar à massa consumidora, os símbolos desse poder. Perguntados, onde está, além do grande pintor que ele é, o tão anunciado artista? Raul Córdula é artista plástico e curador de arte.


CONTEMPORANEIDADE 91

Avatar da

alegria

futura Não exijam de Romero que ele seja triste, porque não o inquieta a angústia que ele, sem culpa, não sente Fernando Monteiro

Romero Britto é um fenômeno de afirmação no campo artístico internacional, cuja força talvez ainda não tenha sido devidamente avaliada — no Brasil, pelo menos. Pernambucano do Recife, de família pobre, sua ascensão meteórica num setor disputadíssimo, surpreende — “choca” — e incomoda. Por quê? Primeiro, porque o sucesso de Romero se irradia dos Estados Unidos — e, pior, de Miami. Isso é duplamente imperdoável. O terminal EUA põe a carreira entre as estrelas, com a pompa p op cercando Romero de brilhos, sinais alegres de otimismo, bom-humor e sucesso. Segundo, estamos num país onde fazer sucesso é perigoso — e muitos forçarão para que Romero continue um “artista de Miami”, embora tenha conquistado a Fiac, de Paris e Vancouver. Tal preconceito — como toda rejeição baseada num pré-julgamento - ignora o conteúdo essencial daquilo que pretende rejeitar e, no final, como todo prejuízo típico dos preconceitos, mais encurta a compreensão — como generosidade da mente. Romero é bom? Claro que é. Ele fala com sotaque americano? Sim. Isso importa tanto? Não. Britto alonga o braço pop da arte contemporânea? Sem dúvida. Seu autodenominado new cubism p op é uma releitura de Warhol, Haring e - pausa - Brennand (que não é p op, claro — pelo menos por enquanto)? Eu diria que sim. Romero Britto levou para o meio da estética saída dos comics o traço pesado (de contorno) do nosso mestre da Várzea — é o próprio Britto quem confessa a influência e a admiração. Como uma onda no mar - contra essa maré — é que se erguem os rios de cor tropical desse “artista de Miami” cumprindo sua cerimônia sanfranciscana de alegria — ao espalhar o arco-íris como se houvesse escutado cânticosbrados na Lincoln Road. Ora, não exijam de Romero, que ele seja triste - porque não o inquieta a angústia que ele (sem culpa) não sente. E não se impeçam de admirar sua capacidade de crença, esperança e otimismo de um mundo não-cinzento — para ele. Romero vê as coisas pelo lado bom — e talvez pretenda anunciar uma boa nova da cor. Diria mesmo que ele pode estar agindo como um avatar da alegria, futura, antecipada em tempos de dor. Já é muito para um recifense que o mundo inteiro começa a admirar — francamente. Fernando Monteiro é escritor e crítico de arte.

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92 DIÁRIO

DE UMA VÍBORA

Joel Silveira

Foto: Arquivo Continente Multicultural

Uma lembrança

recifense

A perna esquerda estendida sobre um dos braços da velha poltrona de couro,o bloco de papel apoiado na coxa e munido de uma caneta esferográfica barata,dessas que a gente compra em qualquer camelô da esquina — era assim que Gilberto Freyre escrevia,numa letra regular,firme e facilmente legível no seu talhe bem desenhado. À sua volta,a total desarrumação de livros,quadros recém-pintados, pincéis,jornais e revistas nacionais e estrangeiros, velhos e recentes; e mais mil objetos,os mais diversos,dezenas e dezenas de souvenirs trazidos de viagens pelo mundo,tudo dando a impressão de um caos irremediável, absoluto,ao qual o dono da casa de há muito tivesse desistido de impor qualquer ordem ou disciplina. Mas o que ao estranho pode parecer desordem e confusão era para Gilberto Freyre a sua “ordem”. Definindo-se como um “anarquista construtivo”,Gilberto Freyre me diz que tem diante de si “um mundo a realizar as mais surpreendentes acrobacias sociais fora de sua rotina”: — O menino que persiste em mim vê esse espetáculo de olhos arregalados e espantados.O provecto indaga: — Aonde vamos? Falta-lhe a capacidade do menino de simplesmente desfrutar o que vê de surpreendente.Preocupa-se.Dentro das perspectivas gerais, a do Brasil é a de uma importante parte do mundo — a que não falta,ou não vem faltando,a singularidade observada por Aldous Huxley: a de um país, o nosso, onde muito do que acontece é impossível, mas funciona! Joel Silveira é jornalista e escritor. Continente . abril, 03

Gilberto Freyre na juventude


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PRETO NO BRANCO

Fred Zeroquatro Montenegro e Renato L

Uma resposta ao artigo de Geraldo Maia

TODO PODER ÀS RUAS Antes de mais nada, gostaríamos de agradecer ao colega Geraldo Maia pela oportunidade que proporciona à cena mangue de, enfim, estrear como tema de tão prestigiosa publicação. Afinal, nem mesmo o aniversário de 10 anos do manifesto Caranguejos com cérebro — comemorado no ano passado — foi capaz de despertar interesse numa pauta específica, entre os editores e colaboradores dos veículos mais influentes da mídia local. Fôssemos ingênuos, tal solene omissão nos deixaria de certa forma intrigados: como se explica uma cena que já inspirou numerosas teses em alguns dos principais centros acadêmicos do mundo, além de reportagens e extensas entrevistas em revistas de referência — inclusive para a própria Continente Multicultural — como a Bravo! e a República, ser desconsiderada em seu próprio berço como tema culturalmente relevante? Conhecedores, entretanto, da mentalidade essencialmente conservadora de boa parte das elites pernambucanas, nunca tivemos problemas para desvendar esse falso enigma, para nós tão ilusório quanto um dos pressupostos da argumentação de Maia. Ao contrário do que imagina nosso interlocutor, jamais existiu uma hegemonia mangue entre os núcleos de poder locais. Nossa influência, comparada, por exemplo, à dos armoriais, é pateticamente modesta. Nunca “fizemos” um secretário de cultura ou diretor de fundação. Nunca fomos patrocinados por uma grande (ou média) empresa. E, nenhuma surpresa portanto, até esta edição permanecíamos inéditos por essas paragens multiculturais. Feitos os agradecimentos devidos a Geraldo Maia, somos obrigados a nos debruçar sobre outros pressupostos do seu artigo, que também consideramos equivocados. O alegado sentimento de exclusão provocado pela ditadura de uma suposta estética mangue, ignora um fato incontestável: nesses últimos dez anos, artistas e bandas pernambucanas dos mais diversos estilos ganharam destaque no cenário nacional. Não há quase nada em comum entre as sonoridades do mundo livre s/a e do Mestre Ambrósio; ou entre as performances ao Continente . abril, 03

Ao contrário do que imagina nosso interlocutor, jamais existiu uma hegemonia mangue entre os núcleos de poder locais. Nossa influência, comparada, por exemplo, à dos armoriais, é pateticamente modesta.


PRETO NO BRANCO

vivo da Orquestra Santa Massa e do Textículos de Mary. No entanto, nem as guitarras sufocaram os samplers, nem a rabeca afastou o cavaquinho dos caminhos que levaram aos prêmios da crítica e aos aplausos do público. Tamanho reconhecimento é a maior prova da eficiência do chip antipadronização embutido, desde o início, no conceito mangue. A alegoria inspirada na biodiversidade dos manguezais impediu a reprodução no Recife — como pretenderam em 93 a Sony e a WEA — de um fenômeno semelhante ao da axé music, que tanto asfixiou, em termos criativos, a música baiana. Por outro lado, a acusação de discriminação direcionada a alguns produtores soa estranha quando se observa artistas como Sá Grama, Lia de Itamaracá e Comadre Fulozinha se apresentando nos palcos dos maiores festivais - a despeito de não lançarem mão de “parafernália eletrônica, beats e loop s em profusão, barulho, muito barulho, gritaria, instrumentos desafinados...”. Aliás, no quesito “portas fechadas”, Geraldo Maia não tem por que se sentir em desvantagem: desde que foi reinaugurado, o Teatro de Santa Isabel permanece interditado aos artistas da cena mangue, enquanto os horários de pico das rádios, sejam elas comerciais ou educativas, continuam cúmplices da lógica do jabá ou agentes do preconceito conservador. Sem falar de nossa luta comum contra as incertezas do sistema estadual de incentivo à cultura. Fica no ar uma dúvida. Se o disco lançado recentemente por Geraldo Maia - com a participação, a seu convite, de vários músicos dessa “paupérrima e tediosa” cena — tivesse conquistado uma aclamação nacional semelhante à das recentes estréias em cd do DJ Dolores, Bonsucesso Samba Clube e Tania Christal (“...e as artérias pernambucanas continuam a bombear sangue criativo para o Brasil”, proclamou, há poucas semanas, o exigente crítico Pedro Alexandre Sanches, em matéria de página inteira na Folha de São Paulo), estaria agora o nobre cantor e compositor solicitando-nos a morte do mangue? Super- homem algum é capaz de decretar a morte ou a sobrevida do que quer que seja. Esse poder pertence, em última instância, às multidões. Hoje, quando percorremos as ruas de Peixinhos, dos Quatro Cantos, do Alto José do Pinho ou as largas calçadas da Aurora, o que sentimos é pulsação firme e cheiro de vida. Nada que lembre um cadáver pedindo para ser sepultado. Por isso, nesse caso, proclamamos: Abaixo Nietszche! Viva a sutileza! Viva Zapata! Viva Zumbi!

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A alegoria inspirada na biodiversidade dos manguezais impediu a reprodução no Recife — como pretenderam em 93 a Sony e a WEA — de um fenômeno semelhante ao da axé music, que tanto asfixiou, em termos criativos, a música baiana.

Fred 04 é líder da banda mundo livre s/a. Renato L é jornalista e um dos mentores do Movimento Mangue.

Nota da Redação: A Continente Multicultural dedicou oito páginas da edição de março de 2001 a Chico Science e ao Movimento Mangue. Continente . abril, 03


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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Ventos brancos Precisamos da fumaça branca que ruge e protesta contra todo o mal

O simbolismo que enverga a real mensagem de paz encontra-se seriamente comprometido. É a globalização feroz que abraça países, suas capitais e cidades interioranas por todo o mundo. Um planeta em conflito, cujas bombas, alimentos e agora panfletos de “boa vontade” se confundem, pairando pelos ares, num despejo aéreo horripilante, sem trégua e com absoluta falta de sensibilidade política — tática e racional. Os Estados Unidos estão fazendo isto. Misturando sua vingança em seu nome e dos povos ocidentais com o apego religioso do verdadeiro Islã, esquecendo que o uso da sua alta tecnologia de guerra poderá esbarrar noutra forma de contra-ataque: o bioterrorismo, além do antiamericanismo – uma antipatia da maioria dos povos de boa vontade. A ambigüidade deste ato pode ser uma arma de propaganda extremamente útil. Ao insinuar sem comprovar, ao sugerir sem definir, ao criar imagens fantásticas que inspiram o fascínio e o terror sem oferecer uma clara interpretação de seu significado, você decerto irá despertar a curiosidade de muitas pessoas - se, em sua mensagem, você assegurar uma recompensa àqueles que seguirem suas idéias. Aí seu sucesso estará praticamente garantido. É o que pensa o senhor Bush e seus irracionais falcões republicanos. Quer fazer desta guerra contra Saddam um conflito mais do que moderno – inusitado. Quer que não haja reação das Armadas iraquianas, que todos os soldados se entreguem, que não filmem os prisioneiros nem liguem para seu chefe e muito menos para suas tradições religiosas milenares, acenando com um futuro de liberdade democrática e farta mordomia. No livro O Fim da Terra e do Céu, de Marcelo Gleiser (também professor de física teórica do Dartmouth College, de Hanover), lançado pela Companhia das Letras, o autor explora

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a história das perspectivas não muito divergentes da ciência e da religião, complementando noutro trecho que, assim foi com o (livro do) Apocalipse, que prometia nada mais do que a salvação ou a danação eterna. É o afago de lobo à compreensão religiosa das ovelhas atacantes. Ovelhas brancas — da cor da paz, mas com a fumaça branca do pó bacteriano que ronda, hoje, inúmeros civis recebedores de missivas sem explicações, pelo mundo inteiro. Um confronto belicoso como este a que assistimos envolve, paradoxalmente, um estado de fé religiosa e a ciência. Em tempos de dificuldade, tal o que se passa no momento, incomodando, profundamente, gente de paz como nós brasileiros, uma interpretação literal do Apocalipse visualizado seria mais favorecida, como Gleiser escreve, enquanto, em tempos de relativa calma, a sua interpretação tornava-se mais alegórica. Nada de filmes de Coppola ou peças teatrais de Oscar Wilde – nem de renascimentos virtuais de Jurassics Parks. Precisamos mais urgentemente da fumaça branca inovadora das chaminés do Vaticano, dos talcos de saudosos carnavais, do que daquelas que enegrecem os desertos babilônicos dos famintos inocentes ou a das que deixaram empoadas as catedrais do capitalismo naquele fatídico 11 de setembro. O vento que venta aqui não é o mesmo que venta lá - Elis cantou. Lá a areia come no centro. E cá, encrespa as ondas do mar e assanha as palhas dos coqueiros — ventos brancos e brandos brandindo ainda o romântico pacifismo, rugindo o protesto por todo mal. Sabem de uma coisa? A guerra que nós enfrentamos por aqui mesmo — contra o maldito pó branco dos donos de favelas, nas ruas e no trânsito, sem cavernas de talibãs, nem assentamentos palestinos, sequer os gases mostardas das arábias — está matando mais gente do que pelas searas de Husseins, Ladens, Arafats e Sharons, e que Deus nos proteja.




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