Continente #030 - Woody Allen

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EDITORIAL

A visão de mundo de um cineasta Foto: Divulgação

Allen no set de filmagem de Dirigindo no Escuro, que estréia no Brasil agora em junho

Um dos mais produtivos cineastas contemporâneos – realiza um filme por ano e tem mais de 30 ao longo da carreira –, Woody Allen, é autor de alguns clássicos da filmografia mundial, como: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Manhattan, Zelig e Todos Dizem Eu Te Amo. Ao mesmo tempo, consegue trabalhar para Hollywood sem se render a Hollywood, ou seja: faz, com enorme talento, um cinema de autor, em que está impressa uma inconfundível visão de mundo. Lançando um novo filme, Dirigindo no Escuro, em que apresenta a originalíssima idéia de um diretor cinematográfico cego, Allen, em entrevista exclusiva, revela-se surpreendentemente modesto, dizendo que a crítica tem sido benevolente com ele e recusando ser classificado como um intelectual. Prova de maturidade difícil de encontrar no cintilante mundo do cinema.

Prova de maturidade democrática deu o Brasil ao eleger para presidente um homem que “veio de baixo”. Para analisar o fato e seus desdobramentos, antecedentes e decorrências, numa perspectiva histórica, Continente ouviu três cientistas sociais brasileiros – Alberto Oliva, Eduardo Giannetti e Renato Janine Ribeiro – e um norte-americano – Kenneth Maxwell –, que concordaram quanto à relevância das mudanças em processo no país, mas apresentaram opiniões diferentes sobre elas, a partir de suas formações acadêmicas e do viés ideológico de cada um. Esses são apenas dois dos destaques da edição, que traz ainda, entre outros assuntos, para reflexão e deleite do leitor – Literatura, Música, Artes Plásticas, Tradições, Fotografia e Memória – a permanência da denúncia de George Orwell contra todas as formas de totalitarismo. •

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CONTEÚDO

Fotos: Divulgação

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Orwell: 100 anos

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Woody Allen e o cineasta cego

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CONVERSA

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08 Ana Maria Machado vinga Monteiro Lobato na

46 Jairo Arcoverde experimenta novos suportes

Academia Brasileira de Letras

Morre Al Hirschfeld, o rei do traço

MEMÓRIA

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12 Há 100 anos nascia George Orwell, o criador do »

CAPA

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"vindo de baixo" »

MÚSICA

LITERATURA

78 A música popular hispano-americana no Brasil

28 Umberto Eco vê identidade entre obras literárias

Três CDs em homenagem a Luiz Gonzaga

e a vida Raimundo Carrero mistura sexo e morte em seu novo romance Relançado livro clássico sobre a adolescência Jorge Mautner mostra que também é escritor e filósofo »

BRASIL 62 O que significa a eleição de um presidente

16 Woody Allen fala de Dirigindo no Escuro, seu novo filme

FOTOGRAFIA 54 São Paulo vista enquanto formas de luz e sombra

Big Brother »

ARTES

CONTO 42 Diálogo de americanos sobre o cadáver de Saddam Hussein

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TRADIÇÕES 86 O que há por trás dos Bois de Parintins

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CENÁRIOS 90 Uma visita a Lowell, onde nasceu Jack Kerouac

»

PRETO NO BRANCO 94 Dicionário sobre Gilberto Freyre esquece autores importantes

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Ilustração: Ral

CONTEÚDO

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Fotos: Divulgação

» O Brasil que veio de baixo

» A presença da música

» Os segredos dos Bois de

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Estado mínimo enfraquece relação Governo/Sociedade

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 44 No Brasil, poesia e livro são coisas desprezadas

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 52 Primeira instalação surgiu na Alemanha, em 1919

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 58 As múltiplas formas de saborear o milho

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 74 Bush tem muitas dívidas para com a História

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 85 Só os ricos e ingênuos acreditam que Deus é brasileiro

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Quem são os ladrões do povo?

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CRÉDITOS Encher os olhos A Continente faz encher os olhos! De conteúdo inquestionável, o trabalho que os amigos fazem na edição dessa Revista é digno de continuados elogios. Desejamos, em breve, ter um produto semelhante, aqui, no nosso Estado. Lúcio Gonçalo de Alcântara – Governador do Estado do Ceará

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert

Continente Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Camilo Soares, Daniel Piza, Fábio Lucas, Fernando da Mota Lima, Fernando Monteiro, Guilherme de Alencar Pinto, José Teles, Kleber Mendonça Filho, Lailson de Holanda Cavalcanti, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Marcelo Abreu, Marcelo Pereira, Schneider Carpeggiani, Weydson Barros Leal Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Douglas Rocha Borba, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Editor: editor@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente junho 2003

Junho Ano 03 | 2003 Foto: Mitchell Gerber/Corbis

Mensagem Adorei a Revista Continente! Marisa Alvarez Lima – Rio de Janeiro – RJ Confuso Felicitações pela Continente Documento (número 8) e pela publicação da Continente em geral. Os temas escolhidos são interessantes e inteligentes, mesmo se os autores dos mais variados universos são pouco familiarizados com a arte literária. Este aspecto “salta aos olhos” na leitura do artigo do arquiteto José Luis Mota Menezes, Continente Documento número 8. Apesar do interesse do tema tratado e do trabalho de pesquisa feito, o texto me parece gramaticalmente confuso e a linguagem usa de uma certa arrogância. Zita Vidailhet – Paris – França Samba Com relação à maravilhosa matéria Onde o samba nasceu (edição número 28), Siba e Fred 04 deveriam saber que, hoje, só se pode fazer um disco de música autenticamente nordestina e colocar um título onde conste a palavra samba, a exemplo dos seguintes trabalhos: Tecer o Samba, Fuloresta do Samba, Rádio FM S.A.M.B.A e Samba pra Burro, devido ao trabalho de desbravamento feito por Bernardo Alves, pois, há 20 anos, ninguém se atrevia a isso, podem verificar nos vinis dessa época. Segundo o autor de A Pré-História do Samba, “estamos retomando o legítimo hábito de chamar corretamente os nossos temas, nosso motivos musicais, de samba, como era vulgar nos anos 30”. Dito de Teté – Recife – PE Qualidade Gostaria de cumprimentá-los pela excelente qualidade da Revista. Sergio Marinangelo – por e-mail Espetacular Sou jornalista, tenho 25 anos, e acompanho o trabalho espetacular da Continente. Vivianne Santos – por e-mail Prazerosa Leio a Continente desde o seu primeiro exemplar e, mensalmente, aguardo ansiosa por mais uma leitura prazerosa. Parabéns Pernambuco, parabéns Continente. Rosane Ferraz – Macaparana – PE


CARTAS Alienado Pelo depoimento alienado e alienante de Fred 04, percebe-se facilmente que o mesmo não leu o livro do professor Bernardo Alves e fala sem o menor conhecimento de causa, refletindo, assim, todo seu preconceito. Dizer que uma obra revolucionária como A Pré-História do Samba é “pouco produtiva”, subestimar o resultado de mais de 20 anos de pesquisa, a dedicação de monge de um homem que tem quase uma obsessão pela verdade, e uma das pessoas mais sérias de que já tive notícia é, no mínimo, uma atitude ridícula. Sr. Fred, seu depoimento foi desrespeitoso, do tipo “não li e não gostei”, ou, ainda, “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”. É por causa de comportamentos retrógrados e obscurantistas desse tipo que muitos valores nossos sucumbem antes de dar bons frutos. Os grandes homens da nossa terra só são reconhecidos quanto são premiados lá fora. Está na hora de acabar com isso, como fez agora a Continente Multicultural – que deve ser orgulho de todo pernambucano. Margarida Cristina – Recife – PE A caravana passa Felizmente existem pessoas sérias em todo lugar e foi o povo carioca que deu espaço, pela primeira vez, à minha tese sobre a origem do samba. A despeito disso, ou mesmo por incrível que pareça, existem conterrâneos que se sentem atingidos quando afirmo que o samba não nasceu no Rio de Janeiro, e partem em defesa do seu colonizador, pagando uma ridícula vassalagem. A cultura musical e dançante é tão importante quanto riquezas como ouro e petróleo. Não entendemos como, diante de alguém que está fazendo um trabalho em prol da cultura pernambucana, redescobrindo mais uma face rica da nossa cultura musical e dançante, exista pernambucano que torça contra. Mais parece a piada do caranguejo. Porém, os tempos são outros e nosso livro tem uma página na Internet que recebe diversas visitas de universidades do Primeiro Mundo. Ocupamos espaço nobre na imprensa brasileira, como é o caso deste último artigo da revista Continente Multicultural e, para comemorar, comemos caranguejos (sem cérebros) com cerveja, antes do almoço. Bernardo Alves – Recife – PE Novo endereço Solicito a gentileza de publicar esta minha carta que atualiza o endereço do sítio virtual Plataforma para a Poesia, editado por mim, uma vez que, quando da publicação do meu artigo, O Nicho da Poesia na Internet (edição de abril, número 28), nessa já consagrada revista cultural; ele ainda não havia mudado e tenho recebido algumas correspondências solicitando o endereço correto: http://www.plataformaparaapoesia.kit.net Cláudia Cordeiro Reis – Olinda – PE

Incômodo Primeiramente, parabéns à CEPE pelo sucesso da Continente, da qual me tornei assinante. A respeito da matéria sobre o “ilustrador publicitário”, Entre os dólares e a crítica, edição de abril, número 28, só tenho a lamentar pelo sentimento (ou ressentimento?) de alguns componentes da classe artística, sem visibilidade, de Pernambuco e do Brasil, que insistem em ignorar de várias maneiras os da “classe vista”. Romero Britto é conhecido e vive de sua arte, arte sim! Serão esses motivos suficientes para incomodar? Mariz – Recife – PE Maravilhosa Estou em Vila Velha, Espírito Santo, mas passei um ano no Recife e conheci esta Revista maravilhosa. Um grande abraço. Sandra Fátima – Vila Velha – ES ABL Tenho lido a Revista Continente Documento, e, com satisfação, o último número sobre a Academia Brasileira de Letras. Quero felicitá-los pelo excelente trabalho, tanto pela qualidade dos textos, quanto pelas fotografias. Mas, no texto Quem fundou deveria constar o nome de Lúcio de Mendonça. Ele aparece no volume apenas com uma referência sumária, de que partiu dele a idéia da Academia, no texto O que é. E referência igualmente sumária no texto do acadêmico Murilo Melo Filho. Lúcio de Mendonça foi o verdadeiro fundador da Casa, empenhando-se junto ao ministro da Justiça Alberto Torres para conseguir apoio oficial e, quando este foi negado, envidou esforços para a criação da Instituição. E, em prova de modéstia e equilíbrio, considerou que para conduzi-la a bom termo só havia a figura de Machado de Assis. Em conseqüência, não se justifica que o nome de Joaquim Nabuco apareça como fundador, salvo se fizesse a ressalva de que ele foi o fundador da cadeira número 27. Alberto Venâncio Filho – Rio de Janeiro – RJ Cultura Para falar da cultura brasileira, partir de Pernambuco é um bom começo, porém, restringir-se a ele é limitar-se demais diante da tamanha riqueza e diversidade étnicocultural do nosso vasto país, de Amazônia e cerrado, que vai muito além dos Sobrados e Mucambos insistentemente divulgados por esta Revista. Márcio Santana Sobrinho – Aracaju – SE Superlativa A Revista Continente Multicultural é motivo de orgulho para os pernambucanos. Graficamente belíssima, com textos profundos sem ser pedantes, é soberba, superlativa. Parabéns a todos nós! José Maria Castanha – Recife – PE

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Encantado Sou pernambucano, moro em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, há mais de 23 anos e acabei de assinar a Continente. Recebi o último exemplar e fiquei encantado, como arquiteto e professor, com a matéria do Theatro José de Alencar, O Teatro e a Cidade, edição de abril, número 28. Ângelo Marcos Vieira de Arruda - Campo Grande – MS Linha editorial Parabéns pela bela matéria sobre o Theatro José de Alencar, publicada na última edição. As imagens foram muito bem reproduzidas. Parabéns, também, pelo conteúdo e linha editorial da proposta de vocês. Tem conquistado muitos leitores. Patricia Veloso – Fortaleza – CE Textos Parabéns pelo excepcional trabalho editorial e jornalístico que desenvolvem. Os textos da Edição Especial, fevereiro, número 3, sobre Olinda e Recife estavam belíssimos, e as fotos, sem comentários. Roberta Maranhão – Recife – PE Colaborações Obrigado pela publicação do artigo Todo Poder às Ruas, edição de abril, número 28, e boa sorte na editoria da Continente. Esperamos que, agora que jejum foi quebrado – aliás, pelo visto não havia jejum algum, nós é que estávamos enganados...–, outras colaborações possam surgir em breve...Um abraço e até a próxima. Renato L – Recife – PE Tânia Christal Sou funcionária pública e li recentemente a matéria publicada no Suplemento Cultural sobre a artista pernambucana Tania Christal, e fiquei fascinada. Ao ler a citada reportagem, fiquei muito contente ao saber que ela está de volta e que, graças a Deus, conseguiu gravar seu Cd. Além de parabenizálos, por serem da mesma editora que publica o Suplemento, sugiro que façam uma reportagem com ela, na Continente Documento ou na Multicultural. Cleonice Bezerra – Recife – PE Nota da Redação: A Continente de março traz matéria sobre o recém-lançado CD de Tania Christal. Continente junho 2003

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

Exclusão consentida O Estado continua dominado pelos cartéis de interesses de curto prazo

“O homem nasce livre e por toda parte está agrilhoado.” Com esta instigante afirmação, Jean-Jacques Rousseau (17121778), inicia O Contrato Social (1762) em que buscava recriar o espírito comunitário e a liberdade política. Para Rousseau, o Estado tal como se constituía naquela época era injusto e corrupto. Dominado pelos ricos e poderosos, que o utilizavam para promover seus interesses, o Estado privava os seres humanos de sua liberdade natural, fomentando o individualismo egoísta que minava os sentimentos de reciprocidade e interesse do bem comum. Segundo Rousseau, o caráter humano era dignificado quando as pessoas cooperavam entre si e se preocupavam umas com as outras. Ele admirava a pólis grega, como uma comunidade orgânica em que os cidadãos deixavam de lado os interesses particulares a fim de alcançar o bem comum. Na sua visão, cidadãos justos e esclarecidos, imbuídos do espírito público, teriam o bom senso e a consciência moral de legislar conforme a vontade geral. Contraditoriamente, o que se vê no Brasil, é a expectativa vã de se alcançar o bem comum através da prevalência dos interesses particulares, seja na vida pessoal, na política ou nos negócios. Nesses, paradoxalmente, incluem-se os interesses do próprio Governo na medida em que as prioridades políticas oficiais nem sempre coincidem com os interesses da sociedade. Ressalte-se que, na nossa matriz cultural, o interesse pessoal ou de grupos encontra-se consagrado na cultura política.

Mesmo o que não é compreensível legitimamente, é explicado legalmente como artifício dialético da experiência feita. É essa cultura de resultados que está sendo cristalizada pela ideologia do liberalismo econômico, presentemente consagrada pelos ventos da globalização que ameaçam tornar mais agudas as desigualdades entre nações e entre pessoas. Nesse sentido, no Estado brasileiro, apesar de incorporar formalmente todos os princípios democráticos defendidos por Rousseau, sua prática tem sido outra. O Estado continua dominado pelos cartéis de interesses de curto prazo e pelos parâmetros predatórios da ideologia liberal. As prioridades econômicas têm predominado sobre todas as outras e a ideologia do mercado – estabelecida pelo Consenso de Washington – tem sido a espinha dorsal de todas as políticas de exclusão implantadas, mesmo no Governo do PT. De outra parte, apesar dos supostos avanços dos governos, as instituições não têm sido eficazes nem na prestação de bens e serviços sociais nem na defesa dos interesses da maioria. Os bens essenciais ao povo, tais como educação, saúde e segurança, não têm e não terão tão cedo a qualidade necessária para permitir a ascensão social da maioria. Sem o acesso a esses bens, a cidadania fica comprometida e os discursos de inclusão social se apresentam como meros slogans publicitários. Diante das declarações das autoridades, dá-se a impressão de que estamos apenas no estágio de combater a fome. E ademais, dentro do próprio Governo, não são visíveis os esforços para minimizar a insidiosa disparidade de rendas, que contribui para o aumento da taxa de excluídos. Nos três Poderes da República, há uma penca de exemplos onde o Estado mantém, para suas elites, os privilégios negados à maioria, particularmente aqueles relacionados a bens sociais e à retribuição salarial. As reformas administrativas, consideradas estrategicamente como de Estado, são o melhor exemplo dessas práticas concentradoras. Nesse aspecto é bom lembrar Denis Diderot (1713 – 1784), quando dizia que “a educação, os exemplos e a legislação ruins corrompem os homens.” A realidade inexorável é que as políticas inspiradas no Estado-mínimo enfraquecem a mediação de interesses entre o Governo e a Sociedade, colocando em cheque a cidadania, o crescimento e a distribuição eqüitativa de renda. Diante disso, os indivíduos sem capital social, intelectual ou político, continuarão a sofrer as agruras da exclusão social com a conivência do próprio Governo. • Carlos Alberto Fernandes - Diretor Geral da Revista Continente Multicultural.

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CONVERSA COM ANA MARIA MACHADO

A vingança de

Jeca Tatu

Com mais de 100 livros publicados no Brasil e em mais 17 países – 14 milhões de exemplares vendidos –, Ana Maria Machado é a primeira autora (entre autores) de literatura infanto-juvenil a chegar à Academia Brasileira de Letras

Ilustrações: Elizabeth Teixeira, do livro Abrindo Caminho/ Divulgação

Schneider Carpeggiani


CONVERSA

Quando soube da vitória de Ana Maria Machado para a cadeira de número 1 da Academia Brasileira de Letras, que pertenceu ao jurista Evandro Lins e Silva, falecido em dezembro, o presidente da instituição, Alberto da Costa e Silva, não resistiu e soltou: “ela vingou o criador do Jeca Tatu.” Afinal, Monteiro Lobato, o maior autor infantojuvenil da história do País, no início dos anos 40, bem que “flertou” com a imortalidade. Não foi bem-sucedido no seu flerte. E de lá para cá, nenhum outro nome voltado ao gênero conseguiu envergar o tal fardão de fios de ouro. O repentino reconhecimento do gênero foi seqüenciado, na recente Bienal do Livro, no Rio, com a outorga do Prêmio Jabuti/ 2003 ao escritor Arthur Nestrovski, na categoria Livro do Ano, pela obra Bichos que Existem e Bichos que não Existem. No caso da ABL, a nova acadêmica chega com números generosos. São 33 anos de carreira, mais de 100 livros publicados no Brasil e em mais de 17 países. São mais de 14 milhões de exemplares vendidos. Em termos de prêmios, a quantidade também impressiona. São tantos, que a autora até diz que já perdeu a conta. Alguns, entretanto, valem ser ressaltados. Em 2000, recebeu o Hans Christian Andersen (considerado o Nobel da literatura infantil) e, em 2001, o Machado de Assis, conferido pela Academia Brasileira de Letras.Um outro prêmio-chave para se compreender a importância do seu trabalho foi o Casa de Las Americas, conferido em1981. Ela ganhou com um livro para crianças que concorria com um para adultos. Lição da história: a literatura infantil não precisa ser “pequena”. A entrevista que segue foi realizada, por e-mail, durante um período apertado na vida da autora. Ana Maria Machado equilibrava seu tempo para lançar dois livros na Bienal Internacional do Livro do Rio, para autografar em uma feira na Guiana Francesa, para fazer uma viagemrelâmpago ao interior de São Paulo e, no meio disso tudo, ainda tinha os afazeres próprios do dia das mães: “Hoje (era um sábado), eu vou ver minha filha tocar em uma banda, passarei a tarde com ela. Ah, e amanhã é dia das mães, vai ter netos, filhos, a minha casa vai estar cheia, e é bom não misturar as coisas (risos).” Você é a primeira autora, com um trabalho voltado para o público infanto-juvenil, a entrar para a Academia Brasileira de Letras. Nem Monteiro Lobato havia conseguido isso antes. Acha que esse seu pioneirismo pode trazer mais respeito e visibilidade ao trabalho do escritor de livros infanto-juvenis no País? Provavelmente, sim. Mas acho, sobretudo, que o fato de eu ter sido eleita já demonstra que existe mais respeito por esse trabalho. Em grande

parte, creio que isso se deve ao fato de que a maioria dos acadêmicos leu os livros de Lobato em criança. É uma conquista continuada, que vem de muito longe. Mas também reflete uma maturidade inegável da literatura infantil brasileira agora, simbolizada pelos prêmios internacionais que ganhamos e pelo sucesso que estamos tendo com os leitores há mais de três décadas. Em Pernambuco, é grande o debate nos meios intelectuais sobre um certo perfil de autor, que vem abocanhando diversas cadeiras na Academia Pernambucana de Letras. É a turma dos médicos-escritores, profissionais que, depois de aposentados, decidem escrever. Para muitos, eles estão tomando o lugar de gente que sempre teve uma vida ligada à literatura. Na sua opinião, qual o perfil ideal de um acadêmico? É muito difícil a gente traçar um perfil assim meio abstrato, tipo receita, que sirva para todos os casos. Cada eleição é uma disputa entre candidatos diferentes, e se trata de escolher entre eles. Mas acho que, sem dúvida, uma Academia de Letras deveria privilegiar autores de literatura, muita embora possa também admitir alguns grandes expoentes de outra áreas.

Você é uma autora que tem livros publicados em diversos países e é bastante conhecida no Brasil. Já sobrevive de fazer literatura? E, apesar de grande, o mercado de livros infantojuvenis no Brasil é justo com seus autores? Consigo, sim. Sem luxos nem extravagâncias, mas dá para sobreviver. Mas escrevo há 35 anos, tenho mais de 100 títulos, obras traduzidas em 17 países... E ganhei muitos prêmios, tenho muita visibilidade. Para autores com outro perfil pode ser bem mais difícil, esta não é uma regra geral – embora Ziraldo, Pedro Bandeira, Ruth Rocha, João Carlos Marinho, Lygia Bojunga e vários outros também consigam viver do que escrevem . No meu caso, o que escrevo inclui também obras para adultos, ensaios, artigos na imprensa, palestras... Não é só direito autoral de livro vendido. E nenhum mercado é justo, acho que este não é um Continente junho 2003


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10 CONVERSA

adjetivo que caiba a esse substantivo. Mercado e justiça são departamentos diferentes. Em uma entrevista recente, a roteirista da Globo Adriana Falcão, que agora também anda escrevendo para crianças, disse que na hora de tramar um livro infantil, ela finge que desaprende tudo o que sabe para ir aprendendo aos poucos, junto com seu leitor. Como é o seu processo de escrever para um público mais jovem, já que você também escreve livros para adultos? Não sei falar disso, sou muito intuitiva. Só sei que, na hora de escrever, não fico pensando em quem é o público. Vou começando a escrever, palavra puxa palavra, as coisas vão saindo. Do meu ponto de vista, eu escrevo sempre a partir de duas coisas: o que eu lembro e o que eu invento. Memória e imaginação são as duas grandes fontes do que eu faço. Você já disse em entrevistas que, quando era criança nem pensava em ser escritora, queria ser uma atriz de cinema. Em algumas linhas, você poderia fazer um perfil da Ana Maria Machado-criança? Sonhava em ser artista de cinema, mas achava que ia mesmo era ser professora. Estudei para isso. E fui professora por um bom tempo. Só depois é que descobri que era escritora. Mas sempre gostei de escrever. Fazia diário, escrevia muitas cartas, fazia parte da equipe do jornalzinho da escola, essas coisas. Essa historia de ser “artista de cinema” (nem era atriz) é só um sinto-

ma de como criança não sabe o que quer nem o que pode ser. Eu queria era viver todas aquelas coisas dos filmes, ter aventuras no imaginário... Confundia personagem com atriz. O crítico Harold Bloom, recentemente, fez severas restrições ao Harry Potter. Ele chegou a dizer que esse era um dos livros mais fracos que tinha lido. O que você acha do Harry Potter? Eu acho toda essa história em relação ao livro muito divertida. Eu gosto dos livros, acho que eles têm uma linguagem que conquista as crianças. Mas não há nada de muito diferente no seu enredo, comparando com o que já foi escrito antes. Aquela trama se passando em um internato, por exemplo, é bem comum na literatura européia. Para você, quais os elementos que não podem faltar em um bom livro infanto-juvenil? Os mesmos de um bom livro adulto: boa linguagem, bons personagens, bom enredo, coerência interna, sei lá... E no caso do infantil, também uma porta aberta para a esperança. Você costuma participar de bienais, falar com a imprensa. Essa exposição lhe agrada, já que você disse que preferiria que o leitor se aproximasse mais do seu texto do que de você mesma? Não gosto muito, não. Meu natural é ser meio recolhida, quase tímida – embora adore conversar com amigos. Mas sei que sou uma profissional e isso faz parte do meu show, como dizia o Cazuza. Procuro, porém, ter muito cuidado para que certos limites sejam respeitados – tanto na qualidade quanto na quantidade dessa exposição. Até mesmo para

“O fato de eu ter sido eleita já demonstra que existe mais respeito por esse trabalho. Em grande parte, creio que isso se deve ao fato de que a maioria dos acadêmicos leu os livros de Lobato em criança”


CONVERSA 11

que ela não se confunda com imposição. E defendo com unhas e dentes meu direito de ser deixada em paz. Fico grata e mentalmente abençôo quem o respeita. Você tem um site pessoal muito bom (www.anamariamachado.com). Qual é a sua relação com a Internet, você costuma navegar? Não costumo navegar com muita freqüência, porque sempre tenho coisas mais interessantes para fazer e não tenho muito tempo. Mas de vez em quando navego, e gosto. Meu site é bom mesmo, não é? Todo mundo elogia. Alguns colégios até usaram como base para todo um trabalho de pesquisa – não apenas sobre mim, mas sobre o Brasil, a história recente, coisas assim. Foi feito por um pessoal incrível, da Tecnopop, uma turma jovem e talentosíssima, que dedicou um tempo enorme a esse trabalho, fazendo uma pesquisa grande e carinhosa. Fico muito feliz por ter confiado neles, porque o resultado foi excelente. Poderia fazer uma lista dos livros que, para você, são indispensáveis na formação de um bom leitor? Eu não acredito muito em listas assim, porque acho que cada leitor vai descobrindo seus próprios livros, aqueles que o chamam mais. É só começar, que uma leitura vai remetendo a outra, aprofundando esse processo sem fim. Mas no ano passado fiz um livro para a Editora Objetiva chamado Como e Por Que

“Acho que, sem dúvida, uma Academia de Letras deveria privilegiar autores de literatura, muito embora possa também admitir alguns grandes expoentes de outra áreas”

Ler os Clássicos Universais Desde Cedo. Nele eu abordo, capítulo a capítulo, os principais livros importantes na formação dos leitores ocidentais. Assim, quem estiver interessado nesse tema, pode dar uma olhada que lá encontrará uma lista bastante completa. Se eu fosse fazer uma relação agora, provavelmente esqueceria vários – e não teria espaço para explicar as escolhas. Mas , de qualquer modo, se não indico livros, indico alguns autores. Três estrangeiros (Homero, Cervantes, Shakespeare), dois clássicos em português (Eça de Queiroz e Machado de Assis), alguns poetas amados (Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral), alguns ficcionistas modernos (Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Lins do Rego) e contemporâneos (Rubem Fonseca, Lya Luft, Lygia Fagundes Telles), dramaturgos (Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna), autores infantis (Lobato, Ruth Rocha, Ziraldo, Lygia Bojunga, Sylvia Orthof). • Schneider Carpeggiani é jornalista.

Ana Maria Machado e alguns de seus títulos: Do Outro Mundo – Editora Ática, 123 páginas, 2002 Isso Ninguém Me Tira – Editora Ática, 120 páginas, 1998 Ilha de Mistério – Editora Ática, 56 páginas

Lançamento: Abrindo Caminho Editora Ática, 2003 40 páginas, R$15,50.


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12 MEMÓRIA

Orwell contra o Leviatã

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MEMÓRIA 13 »

George Orwell, que no livro 1984 criou a figura do Big Brother, continua atual no ano do seu centenário Daniel Piza

Quem imaginou que a literatura de George Orwell fosse datar – e não foram poucos – se deu mal. Ao menos é o que seu centenário de nascimento, neste mês, está comprovando. E não se trata apenas de sua ficção, mas também de seu jornalismo e ensaísmo: tudo que foi escrito por Orwell, na verdade Eric Blair (1903-1950), continua lido, admirado e, principalmente, discutido. Um sinal recente de sua ascendente reputação literária foi o prefácio a uma nova edição de 1984 (pela editora Plume) assinado por ninguém menos que Thomas Pynchon, o grande romancista americano, autor de V, O Arco-íris da Gravidade e Mason & Dixon. É claro que, a posteriori, vemos todos os sentidos em Pynchon assinar esse prefácio, com seu gosto pelas conspirações políticas e suas distorções lingüísticas; mas, dificilmente, o imaginaríamos assim tão entusiástico. Outro sinal, este de 2002, é a defesa muito bem feita por Christopher Hitchens, conhecido jornalista inglês radicado nos EUA e colunista da Vanity Fair. Em Why Orwell Matters (Basic Books), Hitchens argumenta que Orwell não pode ser roubado por uma esquerda socialista nem por uma direita anticomunista e que nisso, justamente, reside sua grandeza como autor. Pynchon, na mesma linha, mostra que 1984 é obviamente uma sátira ao totalitarismo soviético, mas a força literária de sua fantasia serve para demonstrar os ímpetos totalitários de qualquer sociedade. Um terceiro nome que veio recentemente emprestar valor à atualidade da literatura de Orwell foi o do crítico inglês John Carey, do Sunday Times, que organizou uma edição em capa dura dos melhores ensaios de Orwell para a Knopf. Não que fosse preciso que um escritor e dois críticos culturais de renome viessem confirmar a qualidade literária de Orwell. Mas tornam mais clara a sua pertinência no século 21. No meio dessa discussão está o espanto causado há cinco anos quando se revelou uma lista feita por Orwell para o governo britânico na qual haveria nomes de simpatizantes da então União Soviética, inclusive artistas como Charlie Chaplin. Essa nódoa ninguém vai tirar da imagem atual de Orwell. Não importa qual era a sua posição política, mas dedurar, ainda mais levianamente, pega mal em qualquer circunstância. Isso, porém, não permite - e esse é o ponto de Pynchon, Hitchens e Carey – que se ponham dedos em riste para banir o nome de Orwell dos bons debates políticos. Sartre apoiou Mao e ainda hoje isso não soa escandaloso, mesmo que Mao tenha sido um tirano com extenso currículo de fuzilamentos e chacinas. Diversos intelectuais caíram nas propostas falsamente igualitárias de Stalin ou Hitler. Orwell, apesar do falso passo, tem crédito pelo pensamento político independente que sustentou a vida toda. Qual era, afinal, a posição ideológica dele? Orwell era o que se poderia chamar de “socialista democrático”, ou seja, um intelectual que achava que pela via eleitoral, e sem perda das liberdades individuais, o socialismo poderia ser implantado aos poucos. Socialismo, aqui, entendido no sentido de uma social-democracia mais radical, com maior controle dos meios de produção pelos trabalhadores. Continente junho 2003


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14 MEMÓRIA

Orwell não pode ser roubado por uma esquerda socialista nem por uma direita anticomunista e nisso, justamente, reside sua grandeza como autor. Seu livro mais famoso, 1984, é obviamente uma sátira ao totalitarismo soviético, particularmente o stalinismo, mas a força literária de sua fantasia serve para demonstrar os ímpetos totalitários de qualquer sociedade

Além disso, era até certo ponto um nacionalista, como se vê mais claramente num ensaio como My Country Right or Left. Hoje seria considerado “de centro-esquerda” e desaprovaria seu homônimo, o primeiro-ministro Tony Blair, por ceder demais aos ditames americanos e praticar uma política voltada à – como se dizia mesmo? – “burguesia”. Mas é preciso colocar tudo na perspectiva histórica. Orwell chocou a esquerda dos anos 30 ao mostrar, em diversos textos, o quanto o desemprego alimentava as ilusões socialistas. E, numa época em que a maioria dos intelectuais ainda tinha ojeriza à “democracia de massas”, Orwell jamais levou a sério qualquer idéia de revolução, principalmente se conduzida por uma minoria de “intelectualmente eleitos”. E esse é o prisma conceitual que projeta o status colorido que Orwell desfruta hoje em tantas partes do mundo. Ao enxergar desde cedo as manipulações de políticos e intelectuais que vendiam o sonho de uma sociedade perfeita, programada, livre das oscilações psicológicas do ser humano, criou uma ficção que transcendeu aquelas gerações. Sua energia vem também de sua escrita, que é coloquial e precisa e muito hábil na criação de cenas, sejam as de terror em 1984 sejam as de ironia em A Revolução dos Bichos. Pelos mesmos motivos, foi um dos maiores jornalistas literários do século 20. Jornalista literário não é o que escreve sobre literatura, mas o que escreve reportagens e resenhas que incorporam recursos mais utilizados na literatura. Textos seus como A Hanging e Shooting an Elephant, que descrevem experiências de choque colonial em Continente junho 2003

Burma, são obrigatórios em qualquer antologia do gênero, assim como seus livros Homage to Catalonia, sobre a guerra civil espanhola, e Down and Out in London and Paris, sobre a vida dos mendigos nessas capitais européias. Burma é uma questão interessante. Orwell serviu ali ao Império Britânico, e consta que mais de uma vez reprimiu colonizados indianos pela força. Mas isso não o impediu de descrever, para desgosto dos políticos ingleses, a armadilha arrogante que era a colonização, à qual, em sua visão, a violência era inerente. Tampouco se deixou comover pelas ilusões do pacifismo; em Reflections on Gandhi, discute agudamente o que há de vaidade e ingenuidade no comportamento do “santo”. Por outro lado, não foi apenas em Down and Out in London and Paris que tomou partido dos pobres, dos socialmente excluídos. O ensaio How the Poor Die é uma das peças mais eloquentes sobre o então péssimo estado dos hospitais públicos ingleses. Nesses relatos em que mistura memórias, idéias e narrativas, Orwell atinge uma excelência técnica que jornalistas culturais de qualquer latitude devem estudar atentamente. Uma das qualidades menos lembradas de Orwell é seu humor. Quando decidiu abordar o tema do “Por que escrevo?” não se fez de rogado: “Até onde se sabe, esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê berrar por atenção”. Em outra ocasião, calculou o quanto gastava em livros e em cigarros e concluiu que ler é “um divertimento dos mais baratos”. E também gostava de defender maliciosamente o indefensável, como a culinária inglesa, considerada vergonhosa para aquela civilização.


MEMÓRIA 15

Capa de edição brasileira do livro 1984 que, retratando uma sociedade sob controle total do Grande Irmão (Big Brother), serviu de modelo para reality shows como o Big Brother Brasil

Escrevendo sobre literatura, no entanto, errava mais. Sobre Mark Twain, disse que ele dava importância demais para os contos cômicos e que, por isso, seus livros davam a impressão de que poderiam ser melhores. Quanto ao primeiro ponto, tem alguma razão. Mas, quanto ao segundo, como “melhorar” Huckleberry Finn? Também se queixou de que o poeta W.B. Yeats utilizava termos arcaicos em suas poesias. Mas, na melhor parte de sua obra, esse é exatamente um dos encantos de Yeats. Sobre Swift, repreendeu o conservadorismo do autor de Viagens de Gulliver, mas foi incapaz de entender que era justamente a aversão de Swift às ilusões humanas que punha fogo em sua fantasia satírica, assim como a aversão de Orwell aos sistemas perfeitos pôs fogo no imaginário de 1984. Pode-se dizer da ideologia de Orwell, hoje, além da tal lista de “criptocomunistas”, que ele via dois ou três graus a mais de autoritarismo na classe média do que o tempo demonstrou. Nem por isso o termômetro esfriou. Como crítico de livros, porém, não se pode dizer que Orwell foi apenas mediano. Sua produção toda tem qualidade e coerência – não essa coerência dos que morrem pensando o mesmo que pensavam quando eram adolescentes – e é difícil encontrar uma resenha sua que não faça o leitor refletir sobre alguma coisa. Criou algumas expressões que ficaram, como a dos “bons livros ruins”, para designar aquela literatura que, como A Cabana do Pai Tomás, é melodramática mas eficiente. E em ensaios como

Writers and Leviathan alertou que a manifestação política de um autor jamais pode servir como paliativo para sua falta de criatividade literária. Orwell foi, na verdade, a melhor encarnação desse ideal. Sua literatura, em ficção e não-ficção, sempre foi criativa e jamais abandonou a preocupação com o debate político, num momento em que este atingia muito mais decibéis nas conversas sociais. Se as descobertas recentes abriram ressalvas para sua independência como intelectual público, não têm o poder de derrubar sua enorme contribuição a esse valor ainda tão pouco praticado, a independência mental, mesmo em nossa época de milhares e milhares de publicações reais e virtuais. Orwell, como Bernard Shaw, Karl Kraus, H.L. Mencken ou Edmund Wilson, errou algumas vezes a mão nas canetadas políticas, mas, tanto quanto eles, construiu um estilo ao mesmo tempo inconfundível e acessível, que passeia com propriedade pelos mais diversos assuntos, que contesta o senso comum e as mentiras oficiais, que respira, enfim, uma liberdade intelectual que é contagiante. Ainda por cima, deixou as “distopias” de 1984 e A Revolução dos Bichos, que não são nem obras-primas nem “bons livros ruins”, mas bons livros duradouros, a berrar contra os delírios autoritários à direita ou à esquerda. • Daniel Piza é colunista de O Estado de S. Paulo. Organizou para a Companhia das Letras uma coletânea de ensaios de George Orwell que será lançada em 2004. Continente junho 2003

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Cineasta comenta seu novo filme, fala da crítica e do processo criativo, critica Hollywood e revela-se um romântico renitente Kleber Mendonça Filho

“Um cego poderia ter filmado isso”

Woody Continente junho 2003


Foto: Divulgação

Allen


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18 CAPA

Aos 67 anos, Allan Konigsberg (Woody Allen para o mundo) é um dos nomes mais respeitados do cinema. Já nos deu um legado invejável de obras repletas de astúcia que versam sobre o amor, as relações humanas, o poético ridículo do viver. Com uma média assombrosa de um filme por ano, Allen, que começou utilizando o microfone nos palcos novaiorquinos como comediante (“masturbação é transar com alguém que você realmente ama” é uma das suas piadas mais conhecidas, entre centenas), tem mais de 30 longas ao longo da sua carreira, muitos dos quais já considerados clássicos da filmografia humana, como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), Manhattan (1979), Zelig (1983) e Todos Dizem Eu Te Amo (Everyone Say I Love You, 1995). Esse ritmo de produção revela um autor sem medo de experimentar, e que domina não apenas o meio no qual atua mas também as suas idéias pessoais e sua visão de mundo, trabalhando tranqüilamente longe de Hollywood (vive e produz na sua adorada Nova York) e, ao mesmo tempo, para Hollywood. No Festival de Cannes de 2002, Allen apresentou Dirigindo No Escuro (Hollywood Ending, 2002), seu comentário sobre a indústria de cinema. Ele interpreta um cineasta que, por causa de uma crise nervosa, dirige completamente cego. O filme dentro do filme resulta num enorme sucesso, não nos EUA, mas na França, país que sempre acolheu carinhosamente seu trabalho e que estimula uma política bem delineada de valorização do autor. Nesta entrevista, feita em Cannes no ano passado, um Allen cheio de energia e sempre auto-crítico, como

poucos cineastas têm o hábito de ser, falou sobre cinema, sobre amor e humor, especialmente a partir de seu novo filme, que estréia no Brasil este mês. Disse que a crítica é condescendente com a sua obra e revela-se um pessimista em relação ao amor e à busca pelo bem-estar emocional entre duas pessoas. No final de Dirigindo no Escuro, o cineasta “foge” dos Estados Unidos para a França, país que o reconhece artisticamente. A sua participação no Festival de Cannes 2002 apresentando o filme em primeira mão seria a continuação da história? Pensando bem, hoje, é mesmo irônico o fato de eu estar aqui com o filme pronto. Com certeza, isso explica o porquê de o filme estar participando do Festival de Cannes, pois achei realmente que o público desse festival iria entender o tema principal de Dirigindo No Escuro. Nos últimos 10 ou 12 anos, diria que este é de fato o filme que realmente gostaria de levar para Cannes, uma vez que convites sempre foram feitos. O Sr. acha que se o diretor do filme dentro do filme tivesse visão perfeita durante as filmagens ele teria realizado uma obra menor e menos reconhecida? Sem querer soar pretensioso ou cerebral, eu realmente acredito que uma obra de arte vem do nosso inconsciente. Se o diretor do filme dentro do filme estivesse com a sua visão perfeita o tempo todo, talvez o resultado fosse objetivo demais, manipulador demais, vítima de uma tentativa desesperada de precisar realizar uma obra-prima. Os filmes que Hollywood

Memórias, com Charlotte Rampling, e

Simplesmente Alice, com Mia Farrow Na página ao lado, cena do filme O Escorpião de Jade

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fabrica são venalmente calculados para lucrar o máximo possível. Hollywood até que gosta quando um filme sai bom, mas eles gostariam muito mais de ver um filme que saísse não muito bom, mas que gerasse muito dinheiro. É por isso que vemos tanta coisa ruim, produtos de equipes inteiras que trabalham duro para dominar uma fórmula que engessa por completo o processo criativo, assim minimizando os riscos e aumentando a possibilidade de lucro. Não é uma coisa nova, vale acrescentar, pois quando nos referimos à época de ouro de Hollywood nos anos 30 e 40 também existia essa necessidade de fazer dinheiro. E a grande maioria dos filmes daquela época eram terríveis, com uma quantidade pequena de filmes especiais feitos por diretores que tiveram que brigar muito com os estúdios para conseguir impor suas visões. Se olharmos para os milhares de filmes feitos em Hollywood desde o início, a grande maioria é mesmo ruim. No filme, a França é mostrada como uma espécie de avalista cultural de um produto americano, ou seja, a obra antes ruim passa a ser boa depois de reconhecida pelos franceses. Alguns dos grandes artistas americanos foram reconhecidos na França. Edgar Allan Poe, William Faulkner, Henry Miller, músicos de jazz que nunca foram percebidos nos EUA até que os franceses os destacaram. Nós artistas reconhecemos essa sensibilidade, o que aponta para essa prédisposição européia de levar a arte com maior seriedade. Talvez a literatura e as artes plásticas recebam uma boa atenção nos EUA, mas certamente não a área de jazz. No filme, há toda uma preocupação do diretor e produtores em relação à palavra da crítica, uma vez lançado o filme. Qual a importância da crítica para o senhor, como realizador e autor? Eu não me preocupo com a crítica pelo simples fato de nunca ler críticas. Nunca leio nada sobre mim, seja a crítica, ou um artigo ou reportagem sobre eu mesmo como pessoa ou artista. Admito que lia quando comecei minha carreira, mas logo descobri que os Estados Unidos são um país muito grande e percebi que são escritas centenas e centenas de críticas quando comecei a fazer meus filmes. Ao tentar ler esse material, vi que uma parte do país gostava de uma coisa e uma outra parte detestava, algo que me deixou muito confuso. Isso fez com que decidisse parar de ler esse tipo de coisa. Desde então, não li mais

Fotos: Divulgação

“Parece que a crítica, mesmo nos Estados Unidos, escolheu fazer vista grossa com os meus erros e limitações, destacando sempre as coisas boas que eu fiz. Não que tenha sido assim sempre, mas percebo uma enorme generosidade”

nada sobre mim, de entrevistas a perfis ou televisão, nada. Sobre os críticos, em relação ao meu trabalho, posso admitir que eles foram e têm sido muito generosos. Parece que a crítica, mesmo nos Estados Unidos, escolheu fazer vista grossa com os meus erros e limitações, destacando sempre as coisas boas que eu fiz. Não que tenha sido assim sempre, mas percebo uma enorme generosidade. Mesmo nas vezes em que meus filmes não foram vistos por quase ninguém, eu tinha o apoio da crítica. Nós nunca vemos imagens do filme dentro do filme, especialmente nas seqüências onde o copião está sendo projetado. Eu não seria capaz de criar um filme mais interessante, ou curioso, do que o filme que acredito existir na cabeça do espectador. É mais engraçado poder imaginar aquele filme. Existe uma luta entre Woody Allen cômico e Woody Allen que comenta a vida e o amor em filmes considerados mais sérios? Comédias são sempre mais populares, as pessoas gostam mais e acho de verdade que sou melhor como comediante. É uma idéia cômica natural, por exemplo, o mote desse novo filme, o que me remete ao trabalho de um Jacques Tati, ou Chaplin ou Buster Keaton, tenho até certeza de que eles teriam feito filmes bem melhores com essa idéia. Existe um sistema de criação para o humor, a piada? É como falei antes, o processo de criação vem do inconsciente. Quando escrevo, o humor sai naturalmente e percebo as piadas da mesma forma que o público as percebe, eu rio sozinho Continente junho 2003


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se a piada for boa, porque ela se forma sozinha na minha frente. Não penso no que o personagem vai ou deve dizer, mas ele simplesmente fala o que precisar. Às vezes, vejo a piada no copião projetado e percebo que realmente funciona. Pode até não ficar na versão final. Aliás, essa parte do copião, quando você vê o que foi feito e recém-chegado do laboratório, é uma das partes mais difíceis. É exatamente aí que você diz para si mesmo “um cego poderia ter filmado isso...” O Sr. é um dos realizadores mais prolíficos do cinema. Já seria capaz de ver alguma “facilidade” no desenvolvimento de idéias? É difícil sempre, e o fato de você filmar muito não significa que há ali uma prática. O cinema, como toda arte, não é uma ciência exata, daí que cada filme é uma experiência totalmente independente. Tirando alguns aspectos técnicos que realmente

são o feijão com arroz, sinto-me exatamente como se estivesse fazendo sempre o meu primeiro trabalho em cinema. O Sr. já filmou o amor como poucos. Gostaria muito de saber que filme, especificamente, considera o seu preferido nessa questão do amor e do romance. Eu levo esse tipo de pergunta muito a sério e gostaria de tempo para respondê-la, mas de cabeça, agora, lembro bem de Roman Holiday (A Princesa e o Plebeu), de William Wyler, com Audrey Hepburn e Cary Grant, um filme americano muito bem sucedido nesse sentido. Relações amorosas nos apresentam as maiores dificuldades da nossa existência, são difíceis, não importa a idade. Jovens que se casam, velhos que ficam juntos, 75% do sofrimento humano está relacionado à dor trazida pelas relações amorosas e pelas tentativas de fazêlas funcionar. Se um relacionamento amoroso realmente fun-

“O processo de criação vem do inconsciente. Quando escrevo, o humor sai naturalmente e percebo as piadas da mesma forma que o público as percebe, eu rio sozinho se a piada for boa, porque ela se forma sozinha na minha frente” Continente junho 2003


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Ao lado, com Juliette Lewis em cena de Maridos e Esposas

Fotos: Divulgação

Abaixo, em cena de Dirigindo no Escuro

ciona, independe de idade, raça ou gênero, é algo raro e da mais extrema sorte. Não há generalização sobre esse assunto e tudo o que você investir provavelmente não terá um resultado ou um final feliz. É bom ver um filme que consegue condensar nem que seja um pouco do romance que todos nós procuramos. Um dos aspectos mais elogiados dos seus filmes é a escolha dos atores. Eu sempre escolho meus elencos tendo como base a idéia de quem seria o mais adequado para fazer o papel. Nesse sentido, sempre me cerco de atores e atrizes maravilhosos, dando-lhes a liberdade que eles necessitam. Ao longo dos anos, muitas pessoas chegam e dizem “não gostei tanto desse ou daquele filme, mas o elenco é incrível”, e eles eram incríveis antes de trabalharem comigo, foram durante o meu filme e depois também. Quando trabalham comigo, eles recebem pouca direção, na verdade, nenhuma direção (risos), muitas vezes eu nem falo muito com eles durante a filmagem. É incrível como os resultados são bons e as pessoas elogiam a forma como eu dirijo os atores quando, na verdade, eu apenas decido contratar os atores. A decisão de usá-los revela-se mais importante. Como sempre, nesse filme, eu achei que as pessoas ao meu redor eram as pessoas corretas para o trabalho, deixei-os criar e está aí o resultado que pode ser visto. • Continente junho 2003


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22 CAPA

Fotos: Divulgação

A arte como um feliz e rentável acidente Continente junho 2003

O título do novo Woody Allen não deixa de intrigar: o original (Hollywood Ending) ou o nacional (Dirigindo no Escuro) mostram-se sintonizados, mesmo que em frequências diferentes. Em inglês, revela-se irônico ao referenciar um final que seria hollywoodiano não apenas pelo fato de ser um final “feliz”, mas por ser uma trama sobre a inadequação de um artista americano dentro do seu próprio país. No Brasil, o título do filme, que nos mostra esse mesmo cineasta passando por fase de “cegueira nervosa” ao filmar pela primeira vez em anos, parece respeitar Dançando no Escuro, de Lars Von Trier, sobre uma mulher que, a cada dia, perdia a sua visão. Com esses filmes, tanto Von Trier quanto Allen parecem nos dizer que, de fato, “ninguém precisa de olhos para ver”. Se em Dançando no Escuro, essa frase de efeito estava a serviço de um bizarro melodrama repleto de referências inteligentes ao nosso ver e também ao ver do cinema, Woody Allen revela-se irônico com o estado permanente do cinema


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americano (hollywoodiano), enfocando a batalha sem fim entre mercado e arte. Curiosamente, ele parece fazer um comentário sobre sua própria situação como realizador-autor num mundo cinematográfico feito por cegos, produzido por cegos e consumido por um público que não sabe ver, seja esse público simpático ou não a um determinado filme. Isso vindo de um Allen que ocupa posição invejável no cinema, fazendo em média um filme por ano mas que já pode estar mostrando sinais de cansaço. Dono de uma obra singular e pessoal, seus filmes são considerados baratos para os padrões da indústria hollywoodiana e o respeito que atores grandes e pequenos têm por ele e por sua obra explica a presença constante de grandes nomes (Julia Roberts, Robin Williams, Michael Caine, Demi Moore, etc) nos seus filmes. Sabe-se que trabalharam com Allen por cachês simbólicos. Há quatro anos, ele brigou com uma das suas mais antigas colaboradoras, a produtora Jane Doumanian, e assinou contrato com o estúdio Dreamworks na condição de que faria comédias mais ou menos rasgadas. O primeiro resultado dessa parceria foi Trapaceiros (Small Time Crooks, 2000), filme surpreendente por ter se tornado um dos maiores sucessos financeiros da sua carreira, mas também para os que achavam que Allen, depois de chegar aos 60 anos de idade, havia se interessado por obras (excelentes, por sinal) auto-reflexivas sobre artistas que precisavam ainda amadurecer como homens, como são os casos recentes Desconstruindo Harry (1997) e Poucas e Boas (Sweet and Lowdown, 1998). Dirigindo no Escuro vem do mesmo contrato que deu origem a Trapaceiros. Ambos são tecnicamente simplórios, para não usar a palavra “precários”, as piadas são um tanto esforçadas demais, com forte tendência para um humor físico um tanto artrítico, o resultado geral tem um quê de tosco. Resgatado do ostracismo da publicidade de 2ª. categoria – onde a concorrência é Peter Bogdanovich, piada maldosa com o hoje esquecido diretor de A Última Sessão de Cinema – pela sua ex-esposa produtora Ellie (Téa Leoni), hoje casada com o protótipo do executivo hollywoodiano, Hal (Treat Williams), o cineasta Val Waxman (Allen) recebe a proposta de dirigir um misterioso noir de época. Curiosamente, o espectador nunca realmente entende esse filme dentro do filme, sobre o que é, como é ou do que se trata. Estimulado pelo seu empresário Al (Mark Rydell) e pela namorada aspirante, a atriz Lori (Debra Messing), ele decide aceitar o projeto mas descobre-se cego no primeiro dia de filmagem. É vítima de uma cegueira nervosa, somada ao fato de seu diretor de fotografia ser chinês e não falar uma palavra de inglês. Caberá a esse cineasta cego realizar um filme detestado por uns e amado por outros. Isso por estarmos comentando o trabalho de um artista responsável por filmes emocionalmente ricos como os já citados Harry, Poucas e Boas, Crimes e Pecados (Crimes & Misdemeanors, 1988) e Manhattan (1979). Ou comédias sofisticadas que beiram o físico como Um Assaltante Bem Trapalhão (Take The Money and Run, 1974), Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) e Zelig (1983). No caso de Dirigindo no Escuro, há uma crítica ao cinema, ao sistema que visa ao lucro sempre e tem na arte nada mais que um feliz acidente que será, com alguma sorte, consumida por muitos. •

Na página ao lado e acima, cenas de Dirigindo no

Escuro, que estréia no Brasil em junho

Kleber Mendonça Filho é jornalista. Continente junho 2003


Fotos: Touchston/AFP

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24 CAPA

Woody Allen ficará pela sua captação nervosa do que foi ser um novaiorquino, antes do 11 de setembro: sem medo, à caça de mulheres, música e restaurantes Fernando Monteiro

Paixão por


CAPA 25 » No dia 11 de setembro de 2001, pelo menos duas coisas (além da segurança interna) aumentaram de importância na América: a música Manhattan (de Rodgers & Hart) – de preferência cantada pelo desespero-sobcontrole de Dinah Washington – e os filmes “novaiorquinos” de Woody Allen. A loucura de Bin Laden (Que Loucura! é o titulo de um dos livros de contos de Allen) veio, por tabela, tornar mais pungente Manhattan e as demais obras que Allen realizou porque conhece e ama a cidade que nunca mais foi a mesma (jamais o será), entre Gershwin e fogos de artifício, assinantes do The New Yorker e frequentadores dos concertos do Lincoln Center e do Moma aberto às filas intermináveis, mesmo no inverno que nunca fechava mais cedo os restaurantes da Rua Central Park West.

Caminhe devagar e você ainda sentirá, no ar, o aroma de alguma das delícias do Zabar – na esquina da Broadway com a Rua 80 – enquanto o vento enfuna seu casaco não muito diferente daqueles dos passantes, em grande parte judeus de classe média como Allen Stewart Konigsberg, o nome de batismo do cineasta cujos “filmes de NY” sempre irão guardar a Big Apple como ela era integralmente, numa idade ainda distante da queda das duas torres de orgulho (cujo desastre, ainda por tabela, também levou um King Kong do Texas a abraçar de novo – com seu “carinho” de tamanduá-bandeira – a cidade-símbolo dos Estados Unidos que o Bush-orangotango julga ser dele, para ele e por ele).

Nova Iorque


Mas, falemos do que ficará. Woody Allen ficará, creio, simples e superficial e apenas fazendo diversão daquelas coisas, pela sua captação nervosa do que foi ser novaiorquino sem isto é tudo que elas pretendem ser.” medo, à caça de mulheres, homens, livros, filmes, restauÀ medida que envelhece e sofre com os anos, as mudanças rantes, música, teatro, obras de arte, existencialismo, onto- de Nova York e os processos dolorosos como o movido, logia, hermenêutica, Maulraux, Kafka, Wittgenstein, judicialmente, por Mia Farrow (acusando-o de seduzir a filha Max Planck, Hannah Arendt, murais de Orozco, Stra- adotiva do casal), Woody Allen aumenta de irônica acidez e vinsky, T. S. Eliot.. melancolia, nos seus últimos filmes – seja um novo Zelig como A lista é infindável – e não é minha. É de S. Schoenbaum, Poucas e Boas ou a obra mais recente, sobre o cineasta cego que outro judeu nascido em Manhattan, e que poderia lhe acres- se estrepa com Hollywood e é “salvo” pela França. É como se centar a turma de escritores influentes sobre um então jovem a visão de microcosmo de um carreira cinematográfica como a Allen: Carl Sandburg (“li um bocado dele, nas minhas fases de do personagem pudesse, de algum modo, refletir a macroler só poesia”, diz o cineasta), Walt Whitman, William Carlos situação do país em decadência que teme novas catástrofes, tem Williams, Saul Bellow (“pra mim, ele está no topo das de suportar George, o Pé Grande, e ainda tomar, todos os dias, realizações em termos de textos humorísticos. Penso que o metrô apinhado, com medo de não voltar para casa, agora que quando você lê alguma coisa como Humboldt's Gift, a os anos de ouro passaram (“a verdade era minha”, canta Sinatra, sagacidade é tão fluente, tão maravilhosa, que o mafioso de olhos claros). Woody Allen é, me lembra do sentimento que tive quando vi Os filmes da tolerante Nova York – o pela primeira vez Mort Sahl com aquela sabemos, um humorista engraçado é que ela, e não Kansas, é que foi a fundamentalmente capacidade inventiva interminável”) e Yeats, atingida – serão, dentre os de Woody, os títulos Emily Dickinson... Seu ouvido se treinou americano. Ele começou cada vez mais “sagrados” para os que acham bem e sua visão recolheu qualquer coisa que pelo que chama de seus seu cinema “fantástico”, seus contos “ótimos”e fica ali entre Ring Lardner e Damon filmes “de humor mais seu clarinete... bem, ele não toca mal. Jô Soares Runyon, como gosto citadino (“adoro o idioe Tony Ramos não arremedam os saxofonistas? descarado” e caminhou, Hollywoody pelo menos toca de verdade, ma americano e aqueles textos que exalam depois, para um noites sem fim, numa boate frequentada por imagens e linguajar americano. Sempre soa amadurecimento forrado jazzistas e turistas que compram uma mesa de muito bonito para mim”). Woody Allen é, sabemos, um humorista – de inúmeros filmes sob a pista para ver o músico de cabelos ruivos (rareando) improvisar sobre seu amor à cidade básica e fundamentalmente americano. Ele influência de Ingmar também naquele instrumento de sopro do começou pelo que chama de seus filmes “de Bergman coração “simples e superficial – como ele diz – humor mais descarado” e caminhou, depois, para um amadurecimento forrado de inúmeros filmes sob a de alguém infinitamente menos inteligente, menos culto e menos influência de Ingmar Bergman, mais do que todos – até ir se dotado do que Dostoievsky, Tolstoi e Kafka, com uma sensibiemancipando das obras européias que admirava (as quais não se lidade diferente, completamente diferente, uma sensibilidade de transplantam, sem perda, para o meio ianque ou qualquer cinema e das ruas de Nova York”. É isto. outro). Resta dizer, por fim, que Woody Allen também é Ninguém coloca o assunto melhor do que o próprio tagarela compulsivo: “Tenho dito muitas vezes que não sou, não tenho importante por demarcar uma fronteira do cinema mais ou nenhuma pretensão de ser um intelectual. Apenas faço um men os independente, vital para manter respirando os bocadinho de cultura render bastante, digamos. Mas, apesar guetos de expressão pessoal num corpus americano tomado disso, as pessoas escrevem que eu sou um intelectual. Então, pela baixa temperatura autoral (?) dos Spielbergs, cuja aqueles que são genuínos intelectuais lêm isso e se aborrecem, gama de interesse gelado vai de Ets a soldados, passando com razão, e dizem: ‘Quem é este palhaço que pensa ser um por holocaustos filmados com olho na bilheteria e o dedo de intelectual e se apresenta como tal, quando não é?’. Eu tenho quem põe o gosto ruim da indús tria em tudo que toca uma facilidade para o arremedo, isto é tudo. Não é diferente, (Steven Spielberg é o Midas da bosta). Nunca fui fã ardoroso de Woody Allen, mas posso perceber num certo sentido, do que quando um cara imita Humphrey Bogart ou Marlon Brando. E as pessoas escreverão e se bem que, sem ele e sem Altman, os filmes de verão e a infanquestionarão se eu realmente compreendo essas coisas sobre as tilização do cinema que já foi, um dia, da trinca Hawks-Fordquais estou escrevendo ou filmando, ou quando faço referência Wilder, seriam hoje o único prato oferecido, todos os dias dos a vários livros ou poemas ou seja lá o que for. E eles se meses de todos os anos, às platéias do planeta inteiro feito à questionarão se eu os li, e, se li, será que realmente os compre- imagem e semelhança da América do Macaco Júnior. • endo? Ou estou apenas sendo simples e superficial? É sim! É Fernando Monteiro é escritor e crítico de cinema. isto! Não sei de outra maneira para colocá-lo. Eu estou sendo

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28 LITERATURA

Foto: Divulgação

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O semiólogo e romancista italiano Umberto Eco reflete sobre a relação entre a literatura e a vida no seu novo livro de ensaios Luciano Trigo

Eco

Umberto Eco encerra o volume de ensaios Sobre a Literatura com o mais autobiográfico – e autocrítico – de seus textos, Como Escrevo. Respondendo a uma série de questões sobre o seu processo criativo, lá pelas tantas o romancista e semiólogo italiano lembra que, ao redigir sua tese de graduação (sobre o problema estético em Tomás de Aquino), incluíra na versão final, para espanto de seu orientador, não apenas as conclusões, mas também as hipóteses descartadas e as “pistas falsas”, como se fizesse o relato de uma investigação, e não uma tese acadêmica. “Reconheci que minha tese era exatamente como ele dizia, mas não o sentia como um limite”, escreve Eco. “Mais, foi justamente naquele momento que me convenci de que toda pesquisa deve ser ‘contada’ deste modo. E assim acredito ter feito em todas as minhas obras ensaísticas seguintes. Podia, portanto, ficar tranqüilamente sem escrever histórias, pois satisfazia efetivamente minha paixão narrativa de outra maneira; e quando depois me pus a escrever histórias, não poderiam ser outra coisa senão o registro de uma pesquisa”. Isso ajuda a entender por que se lêem os ensaios de Eco com a facilidade com que se lêem romances – e também por que seus quatro romances (O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault, A Ilha do Dia Anterior e Baudolino) apresentam uma certa densidade ensaística, fruto de exaustivas pesquisas, mas sem que isso comprometa a leveza do texto, sem a qual tais romances não seriam fenômenos de venda. O interessante, porém, é observar que, do ponto de vista do “produtor”, não existe diferença entre ficção e ensaio, aspecto que Eco analisa de forma original neste e em outros textos de Sobre Literatura. Centrado na reflexão sobre os limites da interpretação das obras literárias, o novo livro de Umberto Eco convida o leitor para um agradável passeio pelos bosques da ficção, visitando, em diversos níveis de leitura, a obra de escritores tidos como “difíceis”, como Dante, Nerval, Joyce e Borges. Agradável, mas também desconcertante, já que, a todo momento, o autor lança questões perturbadoras sobre a relação ambígua entre a linguagem e a vida, entre as palavras e as coisas.

Um escritor sem fronteiras


LITERATURA 29 » Eco abre o volume com o ensaio Sobre Algumas Funções da Literatura, no qual pergunta para que serve, afinal, este bem imaterial, mas poderoso e elevado, que é a literatura, e oferece diversas respostas. A literatura serve, entre outras coisas, para preservar a língua como patrimônio coletivo, e embora a língua de um povo tenha vida própria, ela é bastante sensível às sugestões da literatura. Por exemplo, sem Dante não haveria um idioma italiano unificado; e, sem Manzoni, Svevo e Moravia, não seria o idioma corrente que é hoje. Serve também, o que é mais importante, como instrumento para combater a barbárie: segundo Eco, a violência, não importa que máscara assuma, parte sempre daqueles que estão excluídos do universo do livro, da educação e dos valores e idéias morais que eles transportam – é a função educativa da literatura, que se torna cada vez mais premente nos tempos difíceis e desordenados em que vivemos. Citando exemplos que vão de Stendhal a Lewis Carroll, de Dumas a Tolstoi, Eco demonstra ainda que os grandes personagens literários “tornam-se indivíduos que vivem fora das partituras originais”, chegando a determinar, muitas vezes, os nossos comportamentos na vida real. No ensaio sobre James Joyce, A Portrait of the Artist as a Bachelor, Eco lança a tese – reafirmada em outros textos – de que todo escritor desenvolve uma única idéia seminal no curso de toda a sua vida. O que, no caso do autor de Ulisses, remete ao projeto dantesco de criar uma linguagem poética nova e perfeita, o que por sua vez evoca o debate sobre a língua adâmica ou edênica, o trauma babélico e o nome secreto de Deus, temas por sua vez explorados por Jorge Luis Borges em mais de um ensaio. Como se vê, a teia de referências interligadas é complexa, talvez infinita. Joyce queria reinventar o mundo reinventando a linguagem; Finnegans Wake é o modelo de um universo em expansão, ponto de partida para infinitas interrogações, demonstra Eco. Jorge Luis Borges é personagem dos dois ensaios seguintes, Entre La Mancha e Babel e Borges e a Minha Angústia da Influência – curiosamente, Eco usa este conceito de Angústia da Influência em diversos momentos do livro, mas sem citar o crítico americano Harold Bloom, que o criou há 30 anos. No primeiro, Eco estabelece um interessante paralelo entre o Dom Quixote de Cervantes e a Biblioteca de Pierre Ménard, do escritor argentino: o herói do primeiro tentou encontrar no mundo fatos, aventuras e damas que sua biblioteca prometera; ou seja, quis e acreditou que o universo fosse como a sua biblioteca. Já Borges criou uma biblioteca que era como o universo, e não sentiu mais necessidade de sair dela. Num e noutro caso, o leitor vê diluir-se o sentido das fronteiras entre realidade e ficção. Eco tem em comum com Borges e Joyce o fato de tomar a cultura universal como terreno de jogo: fascinante jogo de palavras e idéias, que transforma o

leitor em um novo Quixote, encantado por moinhos de vento da linguagem. Ao analisar Borges, Eco evoca Proust e sua busca pelo tempo perdido, e lá pelas tantas sugere uma “psicanálise das influências”: “A coisa mais importante é que os livros falam entre si”, escreve. Basta Eco tocar, por exemplo, no tema do “duplo” para que se estabeleça um diálogo entre seu romance A Ilha do Dia Anterior e a ficção de Dostoievsky e Italo Calvino: as obras se espelham (fazem eco?) mutuamente, de forma a confundir precursores e sucessores. O tema volta a ser explorado em Ironia Intertextual e Níveis de Leitura, no qual Umberto Eco lança mão de conceitos como “metanarratividade”, “dialoguismo” e double coding para investigar as razões do sucesso dos chamados “best sellers de qualidade” – categoria na qual podem ser incluídos seus próprios romances, diga-se de passagem, mas também A Divina Comédia e muitos outros livros hoje considerados clássicos. A distinção que Eco estabelece entre o “leitor semântico”, que se prende puramente ao enredo, e o “leitor estético”, que se interessa mais pela forma narrativa, é fundamental para todos que se interessem pela atividade crítica. Complementam Sobre a Literatura leituras originais do Paraíso (“Dante imaginou um paraíso humano, acessível aos sentidos e à imaginação”) e do Manifesto Comunista, de Marx e Engels (“Deveria ser religiosamente analisado nas escolas para publicitários”). Igualmente interessantes, embora para um público mais restrito, são os textos em que Eco retoma suas pesquisas semiológicas, inauguradas nos hoje clássicos Obra Aberta e A Estrutura Ausente, nos anos 70: é o caso de Sobre o Símbolo, Sobre o Estilo, A Poética e Nós e As Sujeiras da Forma. E voltamos assim ao ensaio que encerra o volume, e com o qual iniciamos esta resenha: Como Escrevo. Para os admiradores da ficção de Umberto Eco, é um texto valiosíssimo, não apenas por explicar o seu método de criação e seu processo de trabalho em cada um de seus quatro romances, como também por incluir parágrafos de comovente teor autobiográfico, nos quais o autor relembra episódios de sua infância, e até mesmo a descoberta do amor. É sem dúvida o mais confessional de todos os textos que Eco já escreveu. Há um momento em que ele afirma: “Certas histórias deve-se lê-las ao infinito”. O mesmo se passa com seus ensaios, tão agradáveis quanto profundos, tão abrangentes quanto sedutores. • Luciano Trigo é jornalista.

Sobre a Literatura, de Umberto Eco. Tradução de Eliana Aguiar. Editora Record, 310 páginas, R$38,00

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RAIMUNDO CARRERO

Acuado pela Romancista e contista, vencedor do Prêmio Jabuti/2000, conclui nova obra, diz que se considera um músico frustrado e desvenda o seu universo criativo, onde a vida, a morte e a violência são os temas centrais Marcelo Pereira

O amor e a morte rondam o escritor Raimundo Carrero. Povoam vida, pensamento e obra, levando-o a extremos consumados, impondo-lhe desafios. Amor e morte rondam os personagens de Ao Redor do Escorpião uma Tarântula, que a editora Iluminuras faz chegar aos seus leitores em agosto. Relações tensas e viscerais formam a teia de relacionamentos do autor consagrado de Somos Pedras que se Consomem (Prêmio APCA), Sombra Severa, Sinfonia para Vagabundos, A Dupla Face do Baralho e As Sombrias Ruínas da Alma. São relações que, por incrível que possam parecer, tornam-se demoradas, ainda que no limiar da ruptura, com a de Leo (alter-ego, Leão, força bruta) e Alice (espelho e alma). “Tudo em Ao Redor do Escorpião uma Tarântula se resume em uma trepada, na relação sexual durante uma noite na vida de um casal. Eles estão querendo se matar, estão querendo viver. A relação sexual é uma relação de morte e vida. É a história de um casal que deseja se matar. Que se odeia com um grande amor. Que tem ternura pelo amor e que tem uma grande ternura pelo ódio. É a exorcização do caráter através do amor.” Carrero tem uma Continente junho 2003


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vida Foto: Heitor Cunha/DP

explicação freudiana para o segundo binômio que sustenta a sua obra e o atemoriza: a morte, pois em tudo que escreve há sempre um crime em potencial rondando, um dilaceramento maior que a compaixão. “É meio doloroso responder isso para mim. É difícil começar a pensar nisso assim. A primeira morte que marcou a minha vida, e pode ser por aí, foi a da minha mãe, quando eu tinha 12 anos. E você sabe que no Sertão a gente tem que assistir à morte. Não tem isso do menino dizer não quero ir, não quero ver. Eu me lembro de que estava dormindo e tive que me levantar. Eu perdi minha camisa, tive que procurar porque não sabia onde ela estava e tive que ver a morte de mamãe, como estou vendo você aqui na minha frente. E anos depois tive que ver a morte do meu pai do mesmo jeito. Tive que ficar ao lado da cama, acompanhando a morte dele como se acompanha qualquer outro ritual. Com certeza a morte é uma coisa muito poderosa em minha vida e que me acompanha por toda a vida. E eu, se pudesse, seria uma assassino, se pudesse seria um suicida.” Graças a sua fé, tornou-se escritor. Um escritor persistente. Depois de várias incursões e quatro versões da história, Carrero encontrou os dois amantes de Ao redor do Escorpião uma Tarântula muito enjaulados, tentando compreender um ao outro, não pelo outro, mas por si, tentando compreender as emoções, o que é muito da natureza humana, pelo seu ponto de vista e não pelo outro. “O livro foi carregado nessa direção. Os dois gostariam de se odiar eternamente, até o momento em que achei que a relação sexual era a melhor maneira de se amar se odiando, porque ambos estão se devorando e devorando o próximo. É uma cena bárbara. Estamos naquele momento derrotando e sendo derrotados. Não adianta refletir de outro modo. Era o caminho naquela hora. À maneira que fui envelhecendo, eu comecei a considerar que o homem é a sua alma.” Carrero diz que sua história, a princípio, seria apenas um livro policial, “não como Agathe Christie, mas como Edgard Wallace, com sensação, com coisa boa, crime. Meu filho não gostou muito do título porque existem mais de dez filmes com esse título. Depois mudei para Natureza Perversa e em seguida para Comigo a Natureza Enlouqueceu e depois para o Delicado Abismo da Desordem. À medida que escrevia, sentia que tinha em minhas mãos um potencial muito grande para jogar fora. Enfim, até achar o que eu chamo de pulsação narrativa, que é o momento em que o autor se encontra com o segredo e com o mistério de sua obra e com o mistério e o segredo do leitor, isso demorou quatro anos”. Um largo campo de investigação literária de Carrero são as oficinas literárias que realiza. “Acho que quem aprende mais ali sou eu, porque questiono, procuro, busco”. O escritor lembra que estava na terceira ou quarta versão desse livro, e após ter passado o dia escrevendo, encontrou com um aluno, Continente junho 2003


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“A literatura é a busca da realização sim, mas da felicidade não, mesmo se você tem o reconhecimento do público. Só me sinto feliz quando estou escrevendo”

chamado Lula (músico da banda A Mula Manca), e ele perguntou se estava “escrevendo de improviso”. Improviso, foi a palavra-chave para Carrero. Foi quando descobriu que poderia levar a linguagem do jazz para a literatura, mesmo sabendo que poderia complicar a recepção por parte do leitor, uma vez que o ritmo da leitura não é o mesmo da música. “A música é o único segmento artístico que não precisa de ninguém, não precisa nem do músico. É a única arte que independe do homem, não depende de um olhar, de uma palavra... A música depende apenas da respiração e é isso que eu trabalho. É por isso que eu digo que a literatura responde pela pulsação narrativa do personagem e não do narrador – e isso muda a minha obra –, que não é o narrador, mas o personagem. Quem define é o personagem. Você vai encontrar a respiração dele”, teoriza Carrero. Ao Redor do Escorpião uma Tarântula não é um livro fácil, de narrativa direta. Carrero dá um passo ousado na escritura do livro, ao abolir as normas recorrentes de pontuação, ao utilizar o travessão como respiração do autor e também do pensamento do escritor e revelar os vãos e desvãos, dúvidas, silêncios do personagem. Ele impõe um rigor de leitura para o leitor. É um passo de ousadia que poucos autores ousaram (na língua inglesa um Joyce, na italiana um Calvino, na hispânica um jogador como Cortázar e na brasileira um Guimarães Rosa, uma Clarice Lispector, ou destruição da linguagem de Ferreira Gullar, um Osman Lins). “Os formalistas russos chamavam esse leitor que eu busco de leitor inteligente. Uma das perguntas essenciais que Samuel Leon (o editor) me fez quando o livro chegou à Iluminuras foi: ‘Você quando atinge seu melhor momento como autor, quer mudar tudo? Perder os leitores que você tem, jogar pela janela todo um cartaz que você formou entre a crítica’. E eu respondi: ‘No dia em que eu passar a ser um autor medroso, eu prefiro não ser autor, no dia em que eu não puder formular a minha própria obra com trabalho, esforço e sacrifício eu não vou escrever mais nada nem publicar mais nada’. Ele achou que a resposta era convincente e me disse que me admiraContinente junho 2003

va muito como autor porque eu não fazia concessões nem à crítica nem ao leitor.” Carrero faz questão de lembrar Autran Dourado, um dos autores de sua predileção. “Autran disse uma coisa que é mais ou menos o seguinte: o escritor corre sempre o risco de ser um personagem da crítica. A crítica diz que ele é bom nisso, então ele vai ser bom nisso para o resto da vida, como é o caso de Jorge Amado, que saiu se repetindo a vida inteira porque a crítica e os leitores diziam que aquilo é que era o caminho dele. Como não levo em consideração a profissão de escritor, embora eu tenha vivido mais como escritor do que como jornalista, no sentido de que eu vivo mais do que ganho com minhas oficinas, mesmo com os problemas que há em viver com pouco dinheiro, eu não vivo como operário, mas daquilo que escrevo, dos artigos que faço. Mesmo assim eu não poderia ceder.” Leonardo e Alice travam a última batalha de suas vidas. O amor é um jogo. A morte, o prêmio. No início, quem ataca é Alice, com Leonardo dormindo e ela a observá-lo. Isso até a metade do livro. Depois o jogo se inverte. “É um jogo de sutileza também, porque na verdade a literatura é um grande jogo.” Carrero é um grande jogador, assim como Cortázar, “que também disse que se não fosse escritor, gostaria de ser músico”, lembra. “Eu sou o maior músico fracassado na história da música, em qualquer época do tempo. Eu sempre quis ser músico, desde os 12 anos eu já era músico. Tocava requinta, depois toquei clarinete, depois toquei sax tenor, depois toquei sax alto e voltei para o tenor. Tenho discos gravados. Muita gente não acredita, mas tenho. Minha grande mágoa é não ser um grande improvisador, embora eu brinque com os amigos dizendo que quem improvisa é quem não conhece música. Como se ser músico fosse ser um gramático da música, que soubesse ler partitura. Quem improvisa vai inventar. Queria ser um Dave Brubeck, um Dizzie Gillespie... O velho Charlie Parker já tá bom”, brinca o jazzman literário. “Na literatura


LITERATURA 33 » também ocorre muito isso, pelo menos em meu espírito, em minha alma, na forma que concebo a obra de arte. Por isso que muito mais do que uma experiência, é o impulso da minha alma, do meu coração que está sendo colocado naquele livro”. Como um músico impulsivo, que a cada improviso cria uma nova melodia, Carrero segue em frente no seu fraseado. “Agora mesmo estou escrevendo outro, que eu não sei parar. Na verdade estou escrevendo dois. Um chama-se O Segredo da Ficção, que é um livro sobre técnicas de literatura e de escrever romance. O outro chama-se O Amor Não É Feito de Bons Sentimentos, que tem um dos meus personagens recorrentes, Leonardo.” Carrero faz uma revelação surpreendente ao leitor, uma vez que não é de muito falar de sua vida pessoal. “Eu me separei depois de 31 anos de casado e não tinha onde morar. Comprei um apartamento que vão me entregar Deus sabe lá quando. Então me restou morar na casa da minha irmã, lá no Janga, o que significa uma distância incrível do meu local de trabalho como jornalista, de onde dou minhas oficinas e dos lugares que freqüento. Só que eu não tinha mais computa-

dor, biblioteca, onde sentar. E o processo de criação de Ao Redor do Escorpião uma Tarântula se deu justamente nesse momento bastante difícil. Para Carrero, até a paixão é sofrimento, uma violência, um defloramento, a consumação traz a dor, talvez pelo vazio do orgasmo. “O que me preocupa, que me carrega e me impulsiona é a capacidade da irrealização, como se isso nunca fosse acontecer e que de repente fosse acontecer agora. Ou eu resolvo agora ou não resolvo mais nunca. Não tenho nenhuma perspectiva de futuro. Não penso no que vou fazer amanhã, até porque a vida fica escura dentro de mim, muito fechada.” A saída que ele encontra é pela fé? “Sou um homem fervoroso, gosto, me dou muito bem com Deus e Deus se dá

“A literatura responde pela pulsação narrativa do personagem e não do narrador – e isso muda a minha obra –, que não é o narrador, mas o personagem. Quem define é o personagem”

muito bem comigo. Eu rezo todos os dias. Vou ao terço. Tenho grande fé em Nossa Senhora e em minha mãe.” Apesar do sofrimento e da morte andarem lado a lado com seus personagens, eles não se acovardam. Para explicar o porquê, Carrero volta ao passado. “Eu vivi num estado de violência minha infância toda. Embora Salgueiro fosse uma cidade tranqüila, eu vi pessoas sendo assassinadas a facadas na minha frente. Além disso, fui repórter policial durante muito tempo. Então, não sei se é atavismo, mas a morte por violência esteve sempre muito perto na minha vida. Me inquieta muito esse assunto e essa resposta. A violência é algo muito forte em minha vida e interiormente eu sou uma pessoa muito violenta. Exteriormente não. Trato bem as pessoas, sou amigo, me controlo, as pessoas que convivem comigo me consideram de boa convivência, agora, muito vezes eu só acredito que a saída para as coisas é a violência”. É por isso que ele não consegue ver a literatura como uma busca da felicidade. “A literatura é a busca da realização sim, mas da felicidade não, mesmo se você tem o reconhecimento do público. Só me sinto feliz quando estou escrevendo. Publicidade para mim não representa nada, nem um orgasmo. Só me coloco em expectativa diante da vida, mas escrever o livro é como morrer, não tenho nenhuma esperança.” Mesmo na hora de escrever Carrero se sente acuado, não pelo Recife. Mas pela vida. “Sou uma pessoa que vive acuada pela vida. Viver para mim é complicado, é pesado. Sou uma pessoa que carrega um doido nas costas, eu tenho que conciliar meus problemas com minha loucura. Sou uma pessoa que tem medo de elevador, de escuro, de gente (muita gente me maltrata)... viver para mim é um tormento muito grande. Eu não tenho nenhuma felicidade de viver, não. E ao mesmo tempo essa carga é para mim uma benção divina, porque só a partir dessa força que eu tenho que fazer é que eu consigo escrever. A minha força vem da força de ter que viver. Viver é irritante, é complicado.” Aos 55 anos de idade, Carrero sabe que não tem mais tempo a perder. Nem você, leitor. • Marcelo Pereira é jornalista. Continente junho 2003


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O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye), de J.D. Salinger, é um estranho fenômeno editorial brasileiro. O romance chegou ao Brasil em 1965 (até hoje já vendeu 200 mil cópias), e nunca parou de ser reeditado. A Editora do Autor (criada por Fernando Sabino, Rubem Braga e Walter Acosta) faz mais um relançamento de O Apanhador, que chega às lojas, em uma caixa, acompanhado do livro de contos Nove Estórias e Franny & Zooey. Nos Estados Unidos, onde nunca saiu de catálogo, ele se tornou uma espécie de O Pequeno Príncipe. Adolescentes costumam recebê-lo de pais que o leram quando também eram adolescentes, algo de que Salinger tampouco deve orgulhar-se. O Apanhador no Campo de Centeio é sobre um adolescente, mas não é um livro especificamente para pessoas desta faixa etária. Seu enredo é aparentemente simples. Holden Caulfield é um garoto de classe média abastada, vive em Nova Iorque, não consegue adaptar-se ao mundo que o cerca. Um outsider, como tantos outros personagens literários. Porém, como bem ressaltou o ensaista americano Louis Menand nas páginas da revista New Yorker (que por sinal recusou os originais de O Apanhador), a angústia existencial de Holden Caulfield tem paralelo em outro famoso personagem da literatura mundial, Hamlet. Ambos sofreram perdas (Hamlet perde o pai, Caulfield, o irmão). A dor da perda leva à descrença, ao despespero, ao entendimento de que, por mais que se doure a pílula da vida, a morte é a constante e inevitável resultante dessa equação. Por esse ângulo, O Apanhador não é, definitivamente, um livro para garotos. É um livro sobre a guerra. Melhor dizendo, um livro cujo autor viveu os horrores de uma guerra. Ian Hamilton e Paul Alexander, biográfos de J.D. Salinger, defendem a tese

Fotos: Reprodução/ Divulgação

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Histórias de perdas num mundo que não gira bem O oportuno relançamento de O Apanhador no Campo de Centeio, com mais dois livros de J. D. Salinger José Teles

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Salinger, o recluso, em uma de suas fotos raras, em 1980


LITERATURA 35 » de que o modo de pensar do escritor foi profundamente moldado pela Segunda Guerra Mundial, uma experiência que anuviou sua sátira e temperou de tristeza o seu humor. Conjecturas à parte, Salinger, no final da guerra, logo em seguida à rendição da Alemanha, sofreu um colapso nervoso e foi internado em um hospital em Nurembergue. Ao ter alta, perambulou algum tempo pela Europa. Foi nesse período que escreveu um conto em que Holden Caulfield aparece como narrador. O embrião de O Apanhador no Campo de Centeio sintomaticamente intitula-se I'm Crazy (Estou Louco), e foi publicado pela revista Collier's em 1945. J.D. Salinger serviu numa unidade de contra-inteligência, na 4ª Divisão de Infantaria, com ela passou quase a guerra inteira. A divisão chegou às praias da Normandia quatro dias depois do Dia D, e foi envolvida numa das batalhas mais sangrentas que os americanos enfrentaram na Europa, na floresta de Hürtgen e em Bulge, em 1944. Foram tantas as baixas sofridas nesses combates que o escritor, em um carta da época, revelou ter ficado traumatizado. Ele participou por onze meses da luta para conquistar Berlim, e só deu baixa do exército com o término do conflito. Foi com esse sentimento de perda que ressurgiu Holden Caulfield, porém um personagem bastante mudado. Não foi em I'm Crazy que ele apareceu pela primeira vez numa história de Salinger. A estréia, do nome pelo menos, está no conto Slight Rebellion off Madison (Uma Ligeira Rebelião Fora de Madison). Holden Caulfield namora com uma moça chamada Sally Hayes (outro personagem de contos posteriores do autor), e em vários outros escritos de Salinger, até chegar ao perplexo adolescente de O Apanhador no Campo de Centeio. Perplexo porém não louco. Caulfield conta sua história enquanto está internado em um sanatório, não para malucos, mas sob suspeita de ter contraído tuberculose. Curioso é que a mesma New Yorker que hoje tece loas ao recluso escritor e que publicou vários contos dele, negou-se a publicar O Apanhador no Campo de Centeio alegando que além de os personagens adolescentes serem brilhantes demais, o livro não passava de um exibicionismo literário, em que o autor mostrava mais sua habilidade em escrever do que contava uma história. A revista, parado-

xalmente, comprou, em 1941, o conto I'm Crazy, origem de O Apanhador. Antes da obra-prima de Salinger, a New Yorker havia publicado seis histórias dele, entre os quais o melhor, e mais conhecido dos seus contos, A Perfect Day For Banana Fish (Um Dia Perfeito Para o Peixe Banana, que está no Nove Estórias), uma história de desfecho trágico e mais diretamente ligada à guerra do que O Apanhador no Campo de Centeio. Aqui Salinger repete seu truque, ou seja, uma de suas criações, Seymour Glass é um dos personagens principais do conto. Seymour acaba de voltar da guerra e de sair de um hospital (qualquer semelhança com o autor não é mera coincidência), tem caráter psicótico, e dá cabo à vida num final surpresa. Seymour apareceria em outros livros de Salinger, entre os quais Carpinteiros Levantem Bem Alto A Cumeeira e Seymour: Uma Apresentação (Raise High The Roof Beam, Carpenters and Seymour: An Introduction), cujos direitos no Brasil pertencem à Cia. das Letras. O Apanhador no Campo de Centeio passou de bestseller a mito em meados dos anos 50. A inquietude e desesperança de Holden Caulfield encaixou-se como uma luva num país que temia a qualquer momento que as bombas russas caíssem sobre suas cidades (mais ou menos como acontece atualmente nos EUA, com a diferença de que eles tiveram o fatídico 11 de setembro). O clima criado pela Guerra Fria gerou os beatniks, o be bop, a literatura beat, o rock and roll, e, posteriormente, os hippies (o link obrigatório ao assunto é o ensaio The White Negro, de Norman Mailer). Holden Caulfield, o outsider por excelência e virou mito de uma geração de outsiders. O clima atual nos EUA (e por extensão no resto do mundo) não é de Guerra Fria, é de guerra insana, sem ideologias, e que põe em xeque as regras e o futuro da sociedade como a conhecemos. Holden Caulfield poderá virar novamente o anti-herói da geração WTC/ invasão do Iraque, afinal, voltando ao ensaio da New Yorker, O Apanhador no Campo de Centeio não é uma história sobre juventude, mas sobre perdas e um mundo que não gira bem. • José Teles é jornalista.

O Apanhador no Campo de Centeio, Franny & Zooey e Nove Estórias J.D. Salinger Box com três livros Editora do Autor, 2003 Preço: 81,00

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Mais conhecido como músico, Mautner, que estreou na literatura com 18 anos, tem edição de suas obras completas

O Kaos com k de Jorge Mautner

Mariana Oliveira

Escritor, músico, cantor, compositor, ator, diretor de cinema... Estas são algumas faces das múltiplas personalidades de Jorge Mautner. O carioca, de descendência judaica, é mais conhecido por seu trabalho como co-fundador do Tropicalismo, cantor e compositor de músicas famosas a exemplo de Maracatu Atômico e Vampiro, gravadas por Chico Science – Nação Zumbi e Caetano Veloso, respectivamente. Além do CD Eu Não Peço Desculpas, em parceria com Caetano, ele lançou, em 2002, pela Azougue Editorial, a caixa Mitologia do Kaos, que reúne seus doze livros, incluindo o inédito Floresta Verde Esmeralda. Mautner teve sua estréia literária aos 18 anos, com um ensaio publicado na revista Diálogo. Logo depois, em 1962, seu primeiro livro, Deus da Chuva e da Morte, é lançado e ganha o Prêmio Jabuti de Literatura. De acordo com Mautner, sua literatura se estrutura em arquétipos. “Ela não é naturalista, não é gramática. Ela é trágica e cômica, mas fundamentalmente feita de arquétipos. E a minha música é a minha literatura cantada, nada mais do que isso”, define. As influências foram muitas. Meio a sério, meio brincando, ele afirma que foi lendo Padre Antônio Vieira que teve um “estalo” que o levou a escrever. Autores tão díspares como Fiedor Dostoievski, José Lins do Rego, Nicolau Gogol, Monteiro Lobato, Jorge Amado, William Faulkner, Nietzsche, Gilberto Freyre, Fernando Pessoa marcaram, segundo ele, sua maneira de escrever. Na apresentação do seu primeiro livro, Dora Ferreira da Silva diz que ele é um Oroboro, serpente mexicana que morde sua própria cauda, morde suas raízes. “Eu acho que essa comparação é muito bem aplicada. O ciclo é a celebração da vida”, relaciona o escritor. A compreensão total da obra tortuosa de Mautner só é possível com uma leitura completa. “Ela é um pensamento todo. Um raciocínio que busca todas as tentativas de explicações”, diz. A idéia de juntar toda sua obra era antiga, mas só agora ele lança sua coletânea.


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“A minha literatura não é naturalista, não é gramática. Ela é trágica e cômica, mas fundamentalmente feita de arquétipos”

estávamos montados sobre os ombros dos mesmos gigantes”, salienta. O filme O Demiurgo foi produzido nesta época e Mautner dirigiu e atuou no longa Paralelamente ao Kaos, ele se juntou a Gil e Mautner: "A minha música é minha literatura cantada, nada mais que isso" criou, em 1980, o Figa Brasil. Esse outro movimento buscava realizar uma nova A rota presente na literatura de Mautner compõe a filosofia abolição no Brasil, acabando com todos os preconceitos. De do Kaos (Kriativos Autônomos Organizados Socialmente), acordo com Mautner, a maior expressão do movimento Kaos/ criada por ele, por volta de 1956. “Na verdade, a Mitologia do Figa Brasil na atualidade é Gilberto Gil no Ministério da CulKaos pertence à fenomenologia do filósofo alemão Edmund tura. O escritor, que já concorreu a uma vaga de vereador pelo Husserl”, explica, mostrando, mais uma vez, que o retorno às Partido Verde, no Rio de Janeiro, e não ganhou por 300 votos, origens (Oroboro) é uma vertente muito forte no seu trabalho. foi chefe de gabinete de Gil quando ele era vereador de SalO Kaos com K está muito ligado também às teorias relativistas vador. Hoje, sua relação com a política é apenas de total apoio e existencialistas. A angústia passa a ser a condição autêntica da ao Ministério da Cultura. “Depois do nascimento da minha filha Amora, essa foi existência. “Nos meus livros a angústia está sempre presente. Em quase todos, há um ar melancólico, está sempre chovendo”, minha maior emoção”, comenta, referindo-se à experiência explica. Segundo o escritor, a filosofia do Kaos é esse rela- de gravar com Caetano Veloso. A turnê de Eu não Peço Destivismo, é ter pelo menos quatro personalidades simultâneas. culpas, considerado o segundo melhor disco de 2002 pelo Outro ponto importante é a total oposição ao nazismo e a New York Times, deve passar por Recife e pelo Japão ainda este ano. qualquer tipo de preconceito. Mautner está reunindo tudo o que escreveu sobre Gilberto Durante algum tempo, ele teve uma coluna, Bilhetes do Kaos, no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, onde mostrava toda Gil em um livro ainda sem título, que deve sair também em a essência do Kaos e sua visão do mundo baseadas na trilogia 2003. E está musicando, junto com seu eterno parceiro Nelson “sexo, sangue e futebol”. Mautner articulava tudo aquilo que Jacobina, o texto de uma ópera de Gerald Thomas. As obras Fundamentos do Kaos e Floresta Verde Esmeralda fosse antagônico. “Tentava conciliar a esquerda com a direita e com o centro. Eu escrevo como Dostoiévski: para me libertar vão ser relançadas isoladamente, neste segundo semestre, junto com o livro do jornalista baiano César Rasec, que traz dos demônios e alcançar a solução”, diz. Nascido em 1941, Mautner é filho de pais judeus que uma interpretação do pensamento “mautneriano”, mais devieram ao Brasil fugindo da guerra. “Eu sempre digo que eu poimentos de Luis Caldas, Paulo Bonfim e Nelson Jacobina, entre outros. • seria cinza de forno crematório de campo de concentração nazista, não tivesse nascido Mariana Oliveira é jornalista. no Brasil”, afirma, justificando toda sua veneração pelo país, muito presente em suas obras. “Eu fui induzido, seduzido, produzido e fabricado para isso”, diz, referindo-se Mitologia do Kaos – Obras Completas a sua vocação para a música e para a literatura. Jorge Mautner Ele acredita que sua participação na Box com três livros criação do movimento tropicalista foi indireta. Editora Azougue, 2002 “Segundo Caetano e Gil, eu os precedi, mas nós Preço: 160,00 Continente junho 2003


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38 LITERATURA

Sexo, natureza e misticismo Primeiro livro, Deus da Chuva e da Morte, escrito ainda na adolescência, ganhou o Prêmio Jabuti Luiz Carlos Monteiro

O primeiro livro de Jorge Mautner, Deus da Chuva e da Morte, deixou muita gente perplexa no início dos anos 6 0. Autor precoce, Mautner nasceu em 1941 e escreveu este livro entre os quinze e os dezessete anos, obteve o prêmio Jabuti de 1962. Sua escrita trazia os anseios de parte de uma geração que foi fruto da Segunda Guerra Mundial, sedenta de vida após a contabilização de tantas mortes. Geração que correspondeu à dos beatniks nos Estados Unidos, marcada pelo desespero, pelo hedonismo e pelo desregramento rimbaudiano de todos os sentidos. Na época, tal escrita perfazia uma pretensa linguagem de iniciação. E transpunha para a literatura valores de pequenos grupos de pessoas que conviviam de perto para melhor resistir. Vivendo em São Paulo, o carioca Mautner intentava representar a voz de uma juventude composta por artistas e intelectuais tidos como loucos e marginais. Auto-intitulava-se profeta do Kaos, e assim sustentava sua ideologia de mão dupla, numa dialética incansável do choque e da contradição permanente. Estabelecia a oposição entre o novo e o antigo, em termos de hábitos pacifistas e vivências sociais e individuais de cunho anarco-humanista. Ele tanto fazia parte como, paradoxalmente, combatia uma classe que tinha o individualismo burguês como premissa básica de vida. O questionamento do comunismo era também paradoxal – ao mesmo tempo em que não descartava o seu advento, tentava miná-lo em suas raízes, pelas razões totalitárias hoje sumamente conhecidas. A religiosidade mostrava-se como uma forma de integração total ao mundo da natureza. Sua simbolização máxima era a “chuva”, como aceitação da tristeza e da an-

gústia, que deviam também ser cultivadas. A “morte” configurava-se na solidão e no isolamento extremamente necessários à criação artística. Leituras em família – alimentadas pelo pai judeu e a mãe eslava, que chegaram ao Brasil fugindo de Hitler – mostraram-se definidoras na formação do jovem Mautner. Marx, Nietzsche e Einstein foram um aprendizado constante, presentificando-se em seus textos, tanto de modo direto como indireto. Talvez Einstein tenha lhe fornecido o suporte relativístico para o seu conceito de Kaos como reação alternativa à bomba atômica e aos pensamentos e prática da esquerda e da direita, embora absorvendo nuances e posicionamentos de ambas. A estrutura romanesca de Deus da Chuva e da Morte é desencontrada e labiríntica, como se convivessem vários livros num só, destruindo as noções de partes e capítulos. Palavras se repetem e se acumulam numa mesma frase ou parágrafo, sem obedecer a critérios de coerência gramatical. Jorge era personagem de si mesmo, o que envolvia claramente o sujeito existencialista de Sartre e o sujeito histórico e subjetivo da pós-modernidade (aqui, sem que ele o soubesse ainda). Os amigos, a exemplo do artista plástico José Roberto Aguilar, aparecem no livro com seus nomes verdadeiros ao lado de personagens inventados. É tríptico o eixo da poética mautneriana: sexo, natureza e misticismo. A partir desta conjunção o Kaos se elastece e corrobora a sociedade sem classes, o antiburocratismo, a revolução carnavalizada e o anarquismo pacifista, entre outras coisas. Quarenta anos depois, estas bandeiras levantadas por ele, em seus livros e canções, perderam muito de sua força revolucionária e seu sabor de novidade. Mas continuam válidas e à espera de concretização por aqueles que sempre as defenderam ou ainda as defendem. •

Luiz Carlos Monteiro é poeta e crítico literário.


LITERATURA 39 »

A GRANDE AVENTURA DA ALIMENTAÇÃO

Morning Grace, óleo de Martin Maddox, 1991

“A alimentação é, após a respiração e a ingestão de água, a mais básica das necessidades humanas. Mas, como ‘não só de pão vive o homem’, a alimentação, além de uma necessidade biológica, é um complexo sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos, etc”. Assim começa o livro Comida e Sociedade – Uma História da Alimentação, cujo projeto é claramente ser uma introdução ao vastíssimo e multifacetado tema. E é o que ele é, mas que introdução! Em suas escassas 186 páginas, o autor, Henrique Carneiro, doutor em História Social pela USP, traça um panorama da alimentação humana, abrangendo uma ruma de disciplinas: História, Ética, Economia, Sociologia, Antropologia, Nutrição, Biologia, Agronomia, Geografia, Botânica, Zoologia, Medicina, Arqueologia... “A história da alimentação – adverte ele – abrange mais do que a história dos alimentos, de sua produção, distribuição, preparo e consumo. O que se come é tão importante quanto quando se come, como se come e com quem se come”. A partir daí, o livro é uma viagem, escrutinando cada aspecto da questão, da Pré-História ao fast-food,

dos tabus religiosos às implicações políticas e ideológicas, passando pela luta mundial, ainda malsucedida, contra a fome e culminando com o registro, nos dois capítulos finais, da historiografia internacional e brasileira sobre a alimentação. Como trabalho de rigor acadêmico, o texto explora as várias vertentes dos estudos sobre o tema, contextualizando-os e registrando as divergências entre correntes de pensamento, mas não é avaro em fornecer ao leitor autênticos acepipes. Tais como: a divisão dos alimentos entre quentes e frios pelos antigos, para quem o chocolate era tão quente que não deveria ser dado às crianças; as epidemias de delírio coletivo causadas pelo ergot, um fungo do centeio; as plantas-civilizações, como o arroz, o milho e o trigo; a influência do sal na Revolução Francesa; o papel do açúcar na escravidão humana; as supostas relações entre o consumo de carne e o espírito guerreiro (que o autor parece endossar, esquecendo o caso dos japoneses, nãocarnívoros mas com uma corpulenta história de guerra e expansionismo); a invenção do leite em pó pelo suíço Henri Nestlé, em 1867; as explicações materialistas para interdições religiosas, como a proibição da carne de porco entre os judeus e de vaca, entre os hindus; a relação entre vegetarianismo e castidade na Idade Média; a pimenta movendo as naus dos descobridores, na travessia para a Modernidade; a importância do descobrimento da América para a culinária italiana; a revolta pelo uso da farinha de trigo para empoar as perucas da nobreza européia; a importância da aguardente como indústria de guerra. E por aí vai. Com um texto escorreito, a obra, para além da sua natureza iniciatória, pode ser lida como um saboroso romance da grande aventura humana. (Homero Fonseca) Comida e Sociedade - Uma História da Alimentação, Henrique Carneiro, Editora Campus, 186 páginas, R$ 39,00

AS MENINAS DE VOLTA Era o ano de 1973. Tempos de ditadura militar, repressão, censura. Ano em que Lygia Fagundes Telles lançou As Meninas, seu terceiro livro. Decorridos 30 anos, o romance ganha sua 32ª edição e mostra-se tão vivo e sedutor quanto à época do seu lançamento. Classificado pelo exigente Otto Maria Carpeaux como “romance de alta categoria”, o livro narra as histórias de três jovens, em São Paulo, às voltas com suas fantasias, seus medos, suas inquietações, num mundo em plena transforma-

ção. É das primeiras obras da Literatura Brasileira a focalizar, como um dos seus panos de fundo, a tragédia política da época. Com ele, segundo o crítico Paulo Emilio Salles Gomes, Lygia, que acaba de completar 80 lúcidos e produtivos anos, inscreveu seu nome, “em definitivo, na primeira linha” dos ficcionistas brasileiros. As Meninas, Lygia Fagundes Telles, Editora Rocco, 284 páginas, R$ 33,00 Continente junho 2003


40 LITERATURA

PRESENÇA DE TOBIAS

BORGES PROFESSOR

O livro Arnaldo Tobias - Singular & Plural, organizado por Glauco Guimarães e editado pela Mauritzstadt, em convênio com o Instituto Maximiano Campos, traz fortuna crítica do poeta, contista, autor de livros infantis e artista gráfico pernambucano, assinada por seus colegas da Geração 65, além de uma seleção de seus contos, poemas, marcas, desenhos e poemas visuais. Morto recentemente, Tobias se destaca entre seus pares pela idealização de personas ou heterônimos, como Balalaica, Tenente Fúria e a guerrilheira Ana Marguerite, esta última, “autora” de provocantes poemas. Tobias foi também o criador do jornal Pró-Texto, “um alternativo de grandes textículos, alinhado estritamente pela esquerda”. O livro está sendo publicado neste mês, em comemoração a um ano de existência do IMC, comandado por Antonio Campos, que também lança uma reunião de seus artigos editados em jornais. O IMC já publicou as obras completas de Maximiano Campos e livros de Cícero Belmar, Orismar Rodrigues, George Moura, além de promover o lançamento de livros de outras editoras.

Em 1966, Jorge Luis Borges ministrou um curso de Literatura Inglesa na Universidade de Buenos Aires. Preocupados com colegas que, por motivo de trabalho, iriam faltar, alguns alunos gravaram as 25 aulas. Quase quatro décadas depois, dois pesquisadores, Martin Arias e Martin Hadis, conseguiram editar e corrigir as transcrições feitas pelos alunos (as fitas se perderam), resultando num belo livro: Curso de Literatura Inglesa. Por sorte, os alunos preservaram a “fala” de Borges, que já estava cego àquela altura, e que impressiona pela erudição espontânea, sem precisar basear-se em apontamentos. Também chama atenção a maneira do escritor argentino abordar seus eleitos: fala de suas vidas, de suas características físicas e de seu caráter (sem ocultar vícios e defeitos), antes de analisar e citar suas obras. Também se destaca a escolha dos autores abordados, pautada inteiramente no seu gosto pessoal: Chaucer e Shakespeare são esquecidos em prol de William Morris e Robert Browning.

Arnaldo Tobias – Singular & Plural, org. Glauco Guimarães, Mauritzstadt e Instituto Maximiano Campos, 185 páginas, R$ 30,00

Curso de Literatura Inglesa, Jorge Luis Borges, org. Martin Arias e Martin Hadis, Editora Martins Fontes, 442 páginas, R$ 42,50

DÚVIDAS

MARGINAIS

FANTASIAS

Em O Dia de um Escrutinador, Italo Calvino descreve as horas em que um jovem comunista fiscaliza a seção eleitoral situada no hospício Cottolengo, em Turim. O local está cheio de deficientes mentais e ele está ali para denunciar os padres e mesários que porventura tentem influenciar os doentes a votar no partido da direita. O convívio com aqueles infelizes e seus parentes leva-o, entretanto, a questionar-se a respeito de pontos políticos e existenciais, fazendo-o perceber a fragilidade de suas verdades e certezas.

Jornalismo, autobiografia e ficção são reunidos por João Antônio em Dedo-duro. São sete textos: há um atual retrato da fabricação de celebridades; o potencial da oralidade através das histórias de guias-mirins; as aventuras de um vagabundo; e um conto autobiográfico que relata o começo de vida do escritor. No conto que dá título ao livro, João Antônio conta a história de um malandro frágil que passa para o lado do inimigo; e em Bruaca traça o perfil de um velho sinuqueiro. Sempre com a prosa direta e forte que lhe é característica.

Duas Narrativas Fantásticas, reúne dois textos situados entre o conto e a novela, publicados pela primeira vez na revista Diário de um Escritor, editada por Fiódor Dostoiévski, entre 1876 e 1881. São dois monólogos envolvendo a morte. No primeiro, um homem tenta entender o que levou sua jovem esposa ao suicídio. No segundo, outro homem, este disposto ele mesmo a se matar, adormece diante do revólver carregado, e tem um sonho delirante. São duas obras-primas provando que, sob a pena de um gênio, qualquer assunto pode tornar-se sublime.

O Dia de um Escrutinador, Italo Calvino, Companhia das Letras, 88 páginas, R$ 21,00

Dedo-Duro, João Antônio, Cosac & Naify, 176 páginas, R$ 27,00

Duas Narrativas Fantásticas, Fiódor Dostoiévski, Editora 34, 128 págs., R$ 23,00

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42 CONTO Fernando Monteiro

CNN O jovem capitão estava afobadíssimo do outro lado da linha, em qualquer ponto a oeste de Tikrit: — O árabe garante que é o corpo de Hussein, senhor! E parece mesmo! — Calma, capitão. Que árabe é esse? — De uma tribo! Um fundamen... — Fale sem as exclamações, tenente. — Capitão, senhor. Pois é, eu, quer dizer, aqui o pessoal pode virar a turma que... — “Turma”? — É, senhor. Nós. Um oficial e dois soldados que acharam o corpo do cara. Tem um repórter da CNN também! E eu sou de Milwau... — Não importa de onde você é. O que importa é onde está e o que acha que está fazendo. O repórter está por perto? — Está com o cadáver, senhor. — Sozinho? — Ele e um cinegrafista. — E você? — Eu estou aqui. Achei que devia me reportar ao senhor para informar... — Fez bem. — Obrigado, senhor. — Embora eu não seja o seu superior imediato. — Não, de fato. — E apesar de ser um assunto talvez grande demais para você. Que é o...? — Capitão Bormann, J. P. Bormann Junior, do sexto-regimen... — Filho de alemães? — Hein? — Dos alemães filhos da puta... — A ligação está ruim, senhor. O senhor disse “alemães”? — É, capitão. Meu pai morreu em Berlim, em 1945. Não chegou a disparar um tiro, sabia? — E morreu como? — Um prédio inteiro caiu em cima dele. — .... — O senhor está rindo, capitão? — Não... senhor... quer dizer, eu estou nervoso. Continente junho 2003

— Nervoso? Nervoso uma ova. Patton sabia o que era um homem nervoso e como tratar deles. Sabe quem foi Patton? — Com todo respeito, eu não estava... — Se não estava, vai rir agora. Meu pai estava fodendo, quando o prédio caiu. Fodendo uma maldita alemã, se é que me entende. É, pode rir à vontade. — Senhor, o senhor é mesmo (riso)... Foi ótimo ter escolhido o senhor para... — Ah, você me “escolheu” é, Bormann? — Bem, podia ter sido o próprio general... — Sim, eu compreendo. Estou muito grato, seu alemão escroto. — Senhor? — Disse que você é um filho da puta de um alemão oficial do exército dos Estados Unidos. — É uma piada, senhor? — Não, não é. E a sua notícia? — Notícia? — A do corpo. — Pois é. O árabe jura que é o corpo de Saddam Hussein! — Ele não morreu. — Morreu. O corpo dele tá aqui. Pelo menos é o que o árabe está dizendo... — Diga mais. — Está sem bigode, meio careca, mas é parecido... — Com o seu pai alemão? — Meu pai? Meu pai não era um maldito árabe, senhor. — Era? — Era. Ele já morreu. E não foi fodendo ninguém. — Ele não fodia ninguém e você quer me foder?


CONTO

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— Não entendi, senhor. — Quer me dizer que está aí em Tikrit, sentado bem em cima do cadáver de Saddam Hussein? — O corpo está lá fora, senhor. — Fora de onde? — Estamos numa mesquita antiga... — Não há ordens para ocupar as mesquitas. — Não estava funcionando como mesquita, senhor. — Quem é seu superior? — O major Willard. — Onde ele está? — Não está aqui. E eu estou. Desculpe, senhor, mas eu mesmo pretendo... — Chame Willard. — Conhece ele? — Não. E espero que não seja outro espertinho como você. — Espertinho? Então, é isso... — Isso o quê? — Desculpe, senhor, mas do jeito que está falando... — Não acredito! — Parece até que... — Que boche atrevido você é, Bormann. — Sou americano, um oficial americano, e protesto pela forma como... — Faça uma concha com a mão e proteste para o seu cu, JP. — Senhor! O senhor está querendo tascar, por telefone, o corpo do meu homem? — Fale inglês. — Estou falando. — “Tascar” não é inglês. E eu não sei, ainda, de corpo algum. O que está acontecendo aí? — Pois é. É o que eu queria informar, se me permite. Estamos aqui com eles... — “Eles”? — Um corpo e mais um árabe que diz que (confabula)... aliás, são dois... não, três árabes... ei, o morto!, são quatro... Filhos da... socorro, senhoor! Ei... Ahh... — Capitão Bormann! O que está... Hello! O barulho estalado de tiros se fez ouvir, depois gritaria, um ruído final e silêncio, lá onde diabo estivessem aquele Bormann e seus homens, com o corpo de Saddam... Mais um. Dois já estavam sendo examinados, naquele mesmo momento (e eram sósias perfeitos, com bigode, cabeleira e bolsas debaixo dos olhos). Precisava sair correndo para saber o que havia acontecido com aquele capitão descobridor da América e seu “cadáver” careca, sem bigode e muito vivo em Tikrit, cidade natal do ditador da qual ainda podiam sair muitas surpresas. E havia os caras da CNN... “Meu deus, mais um jornalista morto não!” — foi o que pensou, arrancando da poltrona para ir chamar a inteligência menos inteligente do mundo, enquanto olhava para a TV, de passagem pela mesa de receptores ligados 24 horas por dia. Se Bormann e os outros houvessem morrido (maldito alemão), a notícia só seria real quando estivesse ali. Continente junho 2003


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44 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Poesia, patinho feio do mercado A poesia erudita, no Brasil, virou fruta de fim de feira

Sempre posto em desassossego, começo a folhear Poemas Escolhidos, de Jorge de Lima, publicado em 1932 por Adersen-Editores, com belíssima capa em estilo art noveau de Manoel (com o) Bandeira, conterrâneo do Manuel (com u) Bandeira. O nome da editora me pareceu estranho. A José Olympio, a que mais fez pela literatura brasileira, até hoje, só seria criada em 1934. Suspeito que o dono da editora seja um daqueles antigos livreiros, de que fala Darcy Ribeiro, que na década de vinte do século passado começaram a editar e imprimir livros no Brasil. A grande maioria era de imigrantes ou seus descendentes, como Bertaso, Briguiet, Garnier, Garroux, Laemmert, Leuzinger, Plancher, Pongetti e Vecci, entre tantos outros. Poemas Escolhidos não é o melhor livro do autor, mas é uma espécie de antologia de sua primeira fase pósparnasiana, com temática popular e folclórica, prefácio entusiástico de José Lins do Rego, e onde estão alguns dos poemas de Jorge de Lima que mais admiro, como Pai João, Madorna de Yayá, Essa Negra Fulô, Inverno, Boneca de Pano, Poema das Duas Mãozinhas e Cantigas. Mas, não estou agora preocupado com a grande obra do poeta alagoano. O que me deixou perplexo foi saber - porque está lá impresso – que um livro de poesia, de um poeta novo, com apenas 37 anos, publicado no Brasil, em 1932, tivera uma edição de 5000 exemplares. Sabendo, de antemão, que Manuel Bandeira publicara, em 1917, o seu Cinza das Horas, numa humilde edição de duzentos exemplares. Quanto a mim, com 61 anos, meu último livro, Meditação sob os Lajedos, teve apenas 450 exemplares. Entrevistada pelo poeta Mário Hélio, em 1999, a diretora editorial da Record, Luciana Villas-Boas disse que “o livro no Brasil é caro, porque só uma elite lê”, e que a média de tiragem de sua editora é de dois a três mil exemplares, enquanto nos Estados Unidos nenhuma primeira edição “seja lá do que for”, nunca é menor que vinte mil exemplares. Por tudo isso me espantou a edição de 5000 exemplares dos Poemas Escolhidos, pela misteriosa editora carioca Adersen-Editores. Tudo indica que a poesia foi, ao longo do tempo, perdendo prestígio, neste país. E, quanto mais refinada, mais corre o risco do desprezo editorial. Entrevistado pelo jornal eletrônico Agulha, Cláudio Willer disse que “a tiragem média de livros de poesia no Brasil é exatamente a mesma de Porto Rico, país cuja população equivale a 2% da brasileira”. Que diabo o brasileiro tem contra a poesia? Não seria falta de publicidade? Porque a mídia vende até merda enlatada. Conversando com meu amigo, o sociólogo Pedro Vicente Costa Sobrinho, que dirige editoras desde a juventude, ele me informou que “a poesia tem-se tornado uma arte marginal no mercado editor: os livros de poesia, ou são publicados por iniciativa do próprio poeta ou com o apoio de órgãos públicos”. Cada vez mais me convenço de que estou certo quando digo, nas entrevistas, que a poesia é uma antimercadoria. Essa história da Internet de que, no Japão, os poetas de qualidade têm edições de cem mil exemplares, eu só acredito vendo e não tenho dinheiro para ir lá ver. O exemplo editorial da Adersen-Editores, que homenageio neste artigo, é bastante significativo da visão humanística daquela estranha empresa, que em sua

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MARCO ZERO 45

Ilustração: Zenival

“Nota dos Editores”, finaliza dizendo: “estamos certos de prestar um grande benefício às letras pátrias, oferecendo ao público uma preciosa antologia da obra moderna desse grande poeta moço, que honra a literatura de todos os tempos no Brasil”. O tempo e a crítica se encarregaram de comprovar o acerto do investimento. O desprezo pela poesia não se limita apenas às editoras comerciais do Brasil, todas elas mesquinhas e tão desatenciosas que não dão satisfação aos autores sobre os originais que lhes mandam, gastando dinheiro com cópias e postagem. Pedro Vicente me chamou a atenção para o fato de nos catálogos das editoras universitárias, como a UNESP, UNB e USP, não constarem títulos de poesia. Mas esse menosprezo pelas musas

não é generalizado no universo das editoras universitárias, basta lembrar os exemplos das Editoras da UFPE e da UFRN, com muitas obras publicadas, a maioria delas por iniciativa do poeta César Leal e do próprio Pedro. Mas, no Brasil, não é somente a poesia que é desprezada. O próprio livro é um objeto de luxo a que poucos têm acesso. Segundo o presidente da Câmara Brasileiro do Livro, Raul Wassermann, a média de leitura per capita, no Brasil, é de um título por ano, enquanto nos países desenvolvidos chega a 15. O que se pode esperar de um país onde 89% dos seus 5.700 municípios não têm livrarias? • Alberto da Cunha Melo é poeta, sociólogo e jornalista.

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46 ARTES

Dono de uma linguagem própria, o pintor explora outros suportes além da tela, como o pano, a cerâmica e o desenho em papel Weydson Barros Leal

um desafio à própria arte Em meados do ano 2000, o pintor pernambucano Jairo Arcoverde – autor de uma das mais importantes obras das artes plásticas contemporâneas – assinou seu último quadro. É o que ele mesmo afirma, ao justificar a mudança de método e de linguagem na realização de sua obra. Desde então, dedica-se à pintura de tecidos e cerâmica – que prepara com a mesma dedicação com que fazia um quadro – e, com um vigor renovado, a uma nova obra: o desenho. Os motivos que levaram o artista ao afastamento das telas são muitos, entre eles “a ausência de galerias” e “o problema dos arquitetos, que não querem mais quadros nas paredes”. Sua última grande exposição realizou em 1996, no Recife. Jairo Arcoverde, 63, nascido no município de Água Preta, interior de Pernambuco, parece buscar desafios. Quando ainda pintava quadros não usava cavalete, tendo apenas uma mesa como apoio para as telas. “Esse é o melhor exercício: a melhor maneira de dominar o ofício é trabalhar da forma mais desagradável possível”. Hoje, ao “pintar” e desenhar, modificando completamente os materiais e a linguagem, Jairo desafia a própria arte. Casado há 32 anos com a também artista plástica Betty Gatis, Jairo Arcoverde orgulha-se da grande família que construiu ao redor de si e, principalmente, de uma relação de 24 horas diárias com a mulher. Têm cinco filhos, que também desenham, pintam, modelam. Há dez anos, um enfarte o fez rever alguns conceitos. Desde então, diariamente vai de bicicleta de sua casa, em Olinda, até o município vizinho de Paulista. Como esportista, proclama-se exímio jogador de pingContinente junho 2003


ARTES 47 »

O colorido alegre marca a pintura de Jairo Arcoverde

Os desenhos, guardados “sob sete chaves”, são mostrados por Continente pela primeira vez

pong e frescobol. Entre as contra-indicações, mantém a coleção de cachimbos, onde tem um para cada dia da semana. A carreira como pintor iniciou em 1966, numa exposição coletiva no Recife. A partir daí, durante mais de 30 anos obteve os mais importantes prêmios em Salões de Arte do Estado, além de participar de diversas mostras em galerias e espaços nacionais, como o Salão Negro do Congresso, em Brasília, em 1979. Sua pintura, que desde 2000 faz apenas sobre tecidos, reflete bem o espírito do autor. Sempre inquieto, Jairo Arcoverde revela um humor às vezes sarcástico sob uma visão crítica do mundo. Esta verve contestatória, ora irônica, ora alegre, traduz-se numa linguagem plástica de feição abstrata, em que suas formas e cores o identificam antes da assinatura no quadro: “Apesar de ter feito Escola de Belas Artes, eu criei um alfabeto pictórico. Eu não poderia partir para o academicismo porque o meu organismo renegava, mas precisava fazer uma coisa no mesmo nível da melhor figuração, pelo menos para a crítica. Foi aí que descobri Paul Klee, Miró e toda a pintura abstrata européia em livros. Percebi que gostava daquilo, que aquilo era o que me enchia a vista, aquela pintura com jeito de trabalho infantil, com cara de criança, ou uma pintura dos loucos. A partir daí eu fui desenvolvendo a minha linguagem.” Perguntado sobre a validade de uma “pintura sobre tecido” ou se os críticos não poderiam torcer o nariz para a seriedade dessa produção alternativa, Jairo responde: – “É apenas uma questão semântica. Ocorre que a tela tem o preço da minha cotação para o mercado de arte. Aqui, eu faço pinturas em tecido com tinta para tecido. Assim posso vender muito mais barato, sem prejudicar os colecionadores de meus quadros. Por outro lado, o que vendo como tecido não deixa de ser uma pintura, que o comprador pode colocar em um chassis, e tem um quadro. Como disse, é apenas uma questão semântica, pois a minha pintura está ali. Seria uma maneira de fugir da crise do mercado de arte e continuar pintando e vendendo.” Em todos os seus quadros, a referência acadêmica dilui-se numa abstração cuja riqueza está sedimentada na paleta de cores puras, claras, onde se reflete toda luz. Seu “classicismo”, se assim podemos chamar, situa-se na raiz da pintura moderna, com os citados Klee e Miró, além de um Picasso ou de um Kandinsky. Ao lembrar sua opção pela pintura não figurativa, ele explica: “Eu freqüentava a Escola (de Belas Artes) mas não fazia curso nenhum, pois só assistia às aulas que queria. Eu não tinha espírito para ficar estudando dorso ou fazendo escorço de modelos de gesso do ideal grego. Isto é o apanágio de muita gente que não tem talento mas que passou a vida fazendo, e de tanto fazer e desmanchar, copiar e apagar, terminou aprendendo. Mas talento, criar mesmo, é outra história, não se aprende. Eu tinha um grilo com isso, e assim tinha uma repulsa natural pelo desenho acadêmico. O domínio acadêmico consiste em dar ao pintor a habilidade de fazer Continente junho 2003


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48 ARTES

“Os primeiros desenhos eram só o traço preto no papel puro. Depois, eu introduzi a aguada, e depois a cor, com aquarela. O processo não é novidade nenhuma, mas para mim era”

uma orelha igual a uma orelha, e para as pessoas que não entendem nada de pintura, isso é o máximo.” Fazendo arte há pelo menos 40 anos com uma linguagem própria e por isso capaz de atrair e cativar admiradores, Jairo, contudo, parece desacreditar de qualquer influência que sua obra possa exercer sobre artistas mais jovens, e relembra as idiossincrasias do meio: “Não sei se a minha pintura tem a capacidade de influenciar alguém. Aliás, à exceção dos meus amigos, os confrades nunca gostaram muito. Acho que incomodava. Na época dos Salões, alguns pintores não queriam que seus quadros ficassem do lado dos meus”. Talvez por isso, nos últimos anos seu interesse pelos Nos desenhos, a figura surge apenas como referência quadros tenha diminuído até o absoluto silêncio. Suas últimas obras em acrílico sobre tela, como ele diz, datam de 2000. Estes quadros, de diferentes tamanhos, não são expostos, ou melhor, primeiros desenhos eram só o traço preto no papel puro. Depois, alguns podem ser vistos apenas em paredes aonde visitantes de eu introduzi a aguada, e depois a cor, com aquarela. O processo sua casa em Olinda não têm acesso. “Meus quadros estão não é novidade nenhuma, mas para mim era.” Sobre o que guardados. Raramente os vendo. Porque só mostro para peschama “processo”, Jairo explica assim a construção de alguns de soas que vêm especificamente para isso.” seus desenhos: “Se eu quero desenhar uma figura humana, essa Foi nesse período, no entanto, que o artista iniciou um figura me serve como suporte, não me interessa suas angústias, trabalho até hoje inédito para o público: sua obra em desenho. isso é para a literatura. Uso-a apenas como uma referência, Todos os desenhos de Jairo Arcoverde, guardados “sob sete como poderia usar uma pedra, qualquer coisa. Estou me chaves” e mostrados pela Continente pela primeira vez, expõem referindo ao meu lado figurativo. O que eu faço é partir da uma linguagem figurativa distante do “alfabeto pictórico” reifigura e deformá-la.” vindicado por ele em sua pintura. Suas figuras, ainda que sob Apenas no desenho Jairo Arcoverde exercita sua vertente deformações ou reinvenção dos elementos humanos, compõem figurativa. Nele, estão elementos do traço humano como peum idioma novo dentro quenos símbolos, ora Divulgação Quando ainda da obra do pintor, neste caricaturais, quase sempintava quadros, caso mais perto de pre minimalistas, ou influências surrealistas como reminiscências de Jairo não usava ou de um Klee da prialguma inspiração rucavalete. “Esse é o meira década do século pestre. Observando sua melhor exercício: a XX: “Em 1983, fiz a produção em pintura, melhor maneira de primeira série de desedesenho ou mesmo em dominar o ofício é nhos. Eram pequenos cerâmica, vemos que trabalhar da forma cartões de papel Canem cada obra ou opção son em que eu deseplástica, a temática, asmais desagradável nhava com bico de pena sim como a forma de possível” umas figuras a que abordá-la, varia bastanchamei Os Anormais. Eram figuras como presidiários, num tom te de suporte para suporte. No tecido, o gesto é solto, livre, sombrio. Só há dois anos, quando eu estava numa livraria no despojado de uma precisão maior; na pintura sobre telas ou juta, centro do Recife, encontrei outra vez os bicos e tive vontade de as formas assumem uma exatidão geometrizante, e finalmente voltar a desenhar. Então comprei as tintas, as pontas, pincéis e no papel, o detalhe, a despeito do desenho à mão livre, apresenuns álbuns de papel creme, porque não gosto do branco. Os ta uma riqueza milimétrica. Seria o suporte o que define o gesto, Continente junho 2003


ARTES 49 »

O artista revela um humor, às vezes, sarcástico

a forma?: “É o suporte porque este já está relacionado com a minha disposição de espírito, de fazer aquilo, ou seja, quando decido pela tela ou o papel, o meu espírito está pedindo que seja feito assim. Então faço séries de dez, vinte trabalhos. Depois, no caso da pintura, uso espátula, pincel grosso, fino, tinta dissolvida ou não, mas de uma maneira que seria totalmente estranha a uma arte acadêmica.” Leitor de romances e obras literárias que lhe estimulam a criatividade, Jairo tem entre as prateleiras de sua sala autores que lê e relê, como Thomas Mann, Italo Svevo, Elias Canetti, Umberto Eco, Montaigne, Foucault, e clássicos como o Quixote e As Mil e Uma Noites, que se orgulha de ter relido duas vezes. O estímulo da leitura o faz, algumas vezes, assinar pequenos textos em cadernos e agendas que guarda entre desenhos e outros livros. Entre muitos desses textos ilustrados, às vezes cômicos, às vezes caricaturais, anotamos pequenas frases que o artista imprime como legendas ou guias de seu próprio divertimento: “Viva D. Sebastião, um homem de bom coração”, “Dom Cara de Leão estava jogando pedra numa vaca profana”, ou ainda, “Um senhor chamado a prestar depoimento sobre a morte de Pinto Cagão”. Seja na pintura ou no desenho, seja sobre cerâmica, tela ou tecido, os talentos de Jairo Arcoverde são exercícios de um artista que reencontra no ato de criar o gesto silencioso da sobrevivência do espírito. Por isso, seu recolhimento não parece ser um revide ao mundo que não encontra mais espaço para quadros; antes disso, seria uma resposta num diálogo que ele mesmo enriquece dentro de sua própria obra: “Não polemizo porque os contrários são possíveis. Eu acredito nessa dialética.” • Weydson Barros Leal é poeta e crítico de arte.

No seus quadros há uma visão crítica do mundo

Entre fins dos 90 e início de 2000, Jairo assinou seus últimos quadros

Sob deformações ou reinvenção, o elemento humano compõe um idioma novo dentro da obra do pintor


50 ARTES

Uma linha difícil de ser vista divide o que se chama de Humor Gráfico do que é chamado de Belas Artes. Como delimitar nos Caprichos de Goya onde acaba a expressão lúdica e onde começa o desenho de um mestre da arte? Guernica seria, talvez, a mais contundente charge feita contra a estupidez de todas as guerras? Na obra de Al Hirschfeld esta questão se torna absolutamente pertinente: era Hisrchfeld “apenas” um mestre da caricatura – considerada uma arte menor – ou verdadeiramente um dos maiores desenhistas das Américas, um retratista que redescobriu e reinventou a linha, registrando a cena teatral e social do Século 20, chegando a tornar-se até mesmo um verbo (pois se utilizava a expressão “ser Hirschfeldeado” significando que um novo ator ou atriz fora retratado pelo traço genial deste artista)? Por mais de 80 anos os retratos deste norte-americano nascido no ano de 1903 em Saint Louis, Missouri, regis-

Al Hirschfeld era apenas um grande caricaturista ou um dos maiores desenhistas das Américas?

traram a história da Broadway e do Cinema nas páginas do New York Times e de outras importantes publicações, criando uma escola de grafismo onde a linha reina absoluta numa síntese perfeita, onde o menos significa muito mais. Sua representação de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em Casablanca, transformando o casal em uma peça única como uma escultura bidimensional (Hirschfeld também foi escultor e definia esculturas como “desenhos nos quais você pode tropeçar no escuro”) é uma obra-prima de síntese e representação gráficas, assim como a interpretação linear de Liza Minelli, realizada em 1999, quando o artista já contava 96 anos. Hirschfeld mudou-se para Nova Iorque em 1914 e lá freqüentou a National Academy of Design onde aprendeu, segundo suas palavras, as “coisas que podiam ser ensinadas, como perspectiva e anatomia”.

Ilustrações: reproduções

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Lailson de Holanda Cavalcanti

O mestre da linha Continente junho 2003


ARTES 51

Na página anterior, seu autoretrato No alto, à esquerda, músicos do Harlem Acima, cena do filme

Casablanca À direita, Liza Minelli Abaixo, Diana Ross

Mas sua educação prática iniciou-se no departamento de publicidade da Goldwyn Pictures em 1920, tornando-se diretor de arte da Selznick Pictures aos 18 anos, ao mesmo tempo em que estudava à noite na Art Student´s League. Seu estilo pessoal, porém, só surgiria depois do seu encontro e associação com o caricaturista mexicano Miquel Covarrubias, com quem abriria um estúdio de arte em 1924. Sua interpretação do Harlem, tanto no registro da vida noturna quanto no retrato do dia-a-dia dos seus habitantes é um dos mais belos registros da realidade social e cultural da Nova Iorque dos anos 40 do século passado. A princípio Hirschfeld incutia em sua arte um viés político contestador bastante forte, chegando a passar seis meses na Rússia soviética em 1928. Mas a fascinação pela arte da caricatura tornou-se cada vez mais importante em sua obra, principalmente após uma temporada na ilha de Bali onde, ao perceber que a forte luminosidade do lugar parecia transformar a realidade em linhas puras sem cor e as pessoas em desenhos ambulantes, ele abandonou outras técnicas onde também era mestre como o óleo ou a aquarela e dedicouse a descobrir por quase um século os segredos e as infinitas possibilidades da expressão linear. Segundo ele, o clima europeu favoreceu o desenvolvimento de uma pintura rica em detalhes, volumes e cores, enquanto que o Sol influenciou a arte do Egito, Pérsia, Índia e ilhas do Pacífico, criando o grafismo na arte. Dizia ter muito mais influência dos desenhos de Harunobu, Utamaro e Hokusai em seu estilo do que dos pintores ocidentais. Hirschfeld concluiu sua linha da vida aos 99 anos de idade, faltando poucos meses para completar seu centenário; as linhas que traçou, porém, permanecerão vivas, mostrando uma realidade que ele, como ninguém, era capaz de perceber e representar com absoluta maestria. • Lailson de Holanda Cavalcanti é cartunista e artista gráfico.

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52 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

O inventor das instalações A obra Merzbau foi construída por Kurt Schwitters, no decorrer de dez anos, pelo método de assemblage, na sua casa em Hannover O dadaista Kurt Schwitters inventou uma palavra – Merz – para desigar a arte que fazia. Esse nome – pedaço da palavra alemã Komerz – passou também a designar uma revista por ele criada. Os quadros de Schwitters eram compostos com restos de coisas que ele juntava na rua – tampas de garrafa, selos, bilhetes de trem, pedaços de pano – e ia colando na tela. A certa altura – em 1919 –, começou a construir em sua casa uma obra a que deu o nome de Merzbau (Construção Merz), uma espécie de coluna que ia crescendo, a cada dia, ao sabor dos “achados” de Schwitters. Tudo o que ele achava na rua e lhe parecia interessante trazia para casa e o acrescentava à sua “construção”. O Merzbau foi, assim, crescendo, atingiu o teto do primeiro andar, que o artista furou para que a obra continuasse a subir. Prosseguiu acrescentando elementos àquela espécie de árvore artificial ou escultura viva. Já a “escultura” chegava ao teto do segundo andar quando o nazismo tomou conta da Alemanha e deflagrou-se a II Guerra Mundial. Schwitters mudou-se para a Noruega. Uma bomba destruiu este primeiro Merzbau. Em Lysaker, perto de Oslo, ele começa um novo Merzbau, interrompido anos depois com a invasão do país pelos nazistas. Schwitters transfere-se, então, para a Inglaterra e, numa fazenda de Ambleside, em Lake District, inicia o terceiro Merzbau, que foi “interrompido”por sua morte, em janeiro de 1948. Esta obra foi, creio eu, a primeira instalação. Com o Dadaísmo, em 1915-16, algo de novo acontece no mundo cultural. Dá-se uma tomada de consciência da situação da arte, da crise que a envolve e da necessidade de uma mudança profunda no comportamento do artista. Conforme observa Alfred Barr, os dadaístas revoltam-se contra a guerra e as convenções vazias da religião e da sociedade, denunciam o rearmamento e as loucuras políticas e econômicas das classes dominantes. “Os artistas – diz o primeiro manifesto Dadá – são criaturas de sua época. A arte mais elevada será a que representa no conteúdo de sua consciência os múltiplos problemas da época.” Banem de seu vocabulário as palavras que consideram pomposas – ética, cultura e interiorização – “que são apenas proteção para músculos fracos”. Opõemse ao comodismo (“ficar sentado, um instante que seja, numa poltrona, é expor sua vida ao perigo”) e à inserção na tradição burguesa, denunciando quem “busca já hoje a apreciação da história, da literatura e da arte e se candidata à aprovação burguesa honorável”. Isto porque, no seu modo de ver, a arte não é fruto das experiências sedimentadas mas nasce da participação na vida diária, o artista deve expor-se aos acontecimentos. Nada de discrição: “O horror à imprensa, à publicidade, ao sensacionalismo, ‘é próprio dos que preferem a poltrona cômoda à agitação das ruas”. A arte é dos homens ativos. “Ser dadaísta pode às vezes significar ser comerciante, político mais do que artista; ser artista apenas por acaso”. O Dadaísmo é, assim, o primeiro movimento artístico de homens que “não se comportam de maneira estética diante da vida”. Os dadaístas abandonam os valores e os instrumentos aceitos pela cultura artística da época e se abrem para “a relação mais primitiva com a realidade circundante”, certos de que “uma nova realidade faz valer seus direitos”. É a realidade da sociedade de massas, das cidades cosmopolitas: “Dadá é a expressão internacional de nosso tempo”.

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TRADUZIR-SE 53

Fotos: reprodução

Merzbau, Kurt Schwitters, 1923-32

Kurt Schwitters toma um caminho próprio dentro do Dadaísmo, muito embora também procure, como Duchamp, apagar as fronteiras entre o homem comum e o artista. Segundo contou Raoul Hausmann, ele andava sempre de cabeça baixa, explorando o chão com o olhar, tendo os bolsos cheios de troços que recolhia, enquanto seguia pelas ruas, a caminho do escritório, com a pasta debaixo do braço. Vê-se então que, no caso dele, o trabalho artístico, o fazer da obra, já não se restringe ao momento em que se recolhe ao atelier para realizá-la: estende-se a todos os momentos de seu dia, mistura-se às suas atividades mais diversas, integra-se, por assim dizer, em sua vida. Entre os dadaístas e os impressionistas existe uma relação: ambos saem do atelier para o ar livre e com isto manifestam a mesma necessidade de livrar-se do enclausuramento e abrir-se ao mundo. Mas enquanto os impressionistas saíam para redescobrir a natureza e oporem suas cores vibrantes à vida cinzenta da cidade, os dadaístas aderiram à vida urbana e a aceitaram como uma segunda natureza: Schwitters constrói seu Merzbau com detritos achados nas ruas, como se coletasse restos “arqueológicos” do presente... Ambos trabalham fora da história da arte que, para eles, tornara-se um território fora da história do homem, ou seja, desligado do acontecer cotidiano, le bruit de la rue. Por isso, entregando-se ao acaso e negando-se a qualquer perspectiva determinada (o verdadeiro dadaísta é, inclusive, antidadá, porque “os valores mudam a cada minuto”), perdem-se em sua liberdade. Fazer obra de arte dadaísta é uma contradição, pois, se funde a atividade artística com as demais atividades da vida – que por sua vez é vista como a sucessão ininterrupta dos acontecimentos – torna-se impossível realizar uma obra que não seja, ela também, outro acontecimento (happening?) que se dissolve nos acontecimentos seguintes. O Merzbau é, por isso, a obra dadaísta realmente coerente, já que é inconclusível como a vida: só se conclui com a morte do autor. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.

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54 FOTOGRAFIA

Contornos do

concreto Camilo Soares

Desencontros, São Paulo, 2002

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Uma visão extremamente particular de São Paulo é apresentada neste ensaio. Em preto & branco, seus clics captam aspectos surpreendentes da grande metrópole um dia classificada de desvairada por ilustre filho. O autor, Camilo Soares, é jornalista pernambucano, fotógrafo e atualmente está cursando cinema em Paris. Participou de exposições individuais e coletivas de fotografia no Recife e em Belo Horizonte. Sobre este trabalho – Contornos do concreto – feito em São Paulo, entre junho e agosto de 2002, afirma: “Encontrar vida nas formas e personagens que compõem a metrópole fria, plana e cinza, foi minha maneira de conhecer um pouco mais sobre a humanidade, pastel e chopps”.


FOTOGRAFIA 55 »

O Homem e a Imagem, São Paulo, 2002

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Arco-íris, São Paulo, 2002

O Vigia e o Coração, São Paulo, 2002 Continente junho 2003

Conexão, São Paulo, 2002


FOTOGRAFIA 57

Descanso, S達o Paulo, 2002

Escape, S達o Paulo, 2002

Desenrijecimento, S達o Paulo, 2002 Continente junho 2003


58 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Comida de milho O milho cultivado pelos tupis do litoral brasileiro era só comida de passatempo. Espigas assadas diretamente sobre a brasa. Com ele faziam também mingau grosso. E, sobretudo, uma bebida muito apreciada, o “abaati” – em que caroços de milho cozido, mastigados por mulheres da tribo, eram colocados n’água para ferver e fermentar. Gabriel Soares de Souza assim descreveu a cena: “este milho come assado por fruto, e fazem seus vinhos com ele cozido, com o qual se embebedam, e os portugueses e os mestiços não se desprezam d’ele e bebem mui valentemente”. Até muito depois da chegada do colonizador, foi apenas alimento de animal e de escravo. “Plantam os portugueses este milho para mantença dos cavalos, e criação das galinhas e cabras, ovelhas e porcos; e aos negros de Guiné...”, continua o relato de Soares de Souza. Nunca foi para nossos índios, como cultura, tão importante quanto a mandioca. Os escravos foram depois criando novos jeitos de preparar esse milho. Juntando ingredientes que lhes era permitido usar – açúcar mascavo, leite de coco, mandioca. Variando apenas a técnica usada no preparo desses pratos. Da fusão de experiências indígenas, africanas e portuguesas acabou se formando uma culinária de São João. Entre as festas religiosas trazidas pelo colonizador, foi sempre a mais apreciada por nossos índios. Talvez por conta das fogueiras que se espalhavam pelas aldeias. Nessas fogueiras assavam milho plantado, segundo a tradição, no dia de São José (19 de março) – quando sempre chove. Assim foram surgindo pamonha, mungunzá, canjica, angu, polenta, bolos e pães. Além do cuscuz – adaptação de prato nacional mouro (“kuz-kuz”) – em sua origem

"Sou a pobreza agradecida a Vós, Senhor/ que me fizestes necessário e humilde./ Sou o milho." Cora Coralina

Foto: Hans V. Manteufell

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Do milho surgiram pratos como a pamonha e a canjica Continente junho 2003


SABORES PERNAMBUCANOS 59 »

preparado com semolina, arroz, farinha de trigo e sorgo. No Cozinheiro Nacional (autor desconhecido, segunda metade do séc XIX), conjunto de sabores autenticamente brasileiros, havia receitas de todos os tipos – onça, tamanduá assado, lontra, ariranha ensopada, macaco cozido com banana, cobra frita, arara, papagaio, periquito refogado, caramujo recheado, tanajura frita. Com milho sendo só ingrediente do cuscuz. Portugueses e africanos já chegaram ao Brasil conhecendo esse cuscuz. No mosteiro da Celas (Coimbra), por exemplo, se fazia cuscuz doce. Dom Sebastião, quando tentou reprimir o excesso de gastos nas refeições, proclamou “que pessoa alguma possa comer à sua mesa mais que um assado e um cozido e um picado ou desfeito ou arroz ou cuscuz”. Gil Vicente relata queixas de um escudeiro, irresignado com cruzado gasto pelo personagem Ana Dias – “‘porque aquele que me deste,/ Em cuscuz o comeu ela” (Juiz da Beira). Aqui, em um Brasil que se formava, esse cuscuz foi tomando nosso jeito. Passou a ser feito com massa de milho pilada, temperada com sal, cozida em vapor d’água e depois umedecida com leite de vaca ou de co co. Enraizou-se em nossa cultura. Acabou virando prato de resistência das mesas nordestinas. Vendido até nos tabuleiros de pretas velhas – como “Sá-Biu-do-Cuscuz”, imortalizada por Ascenso Ferreira (“Folhas Verdes”). E foi se sofisticando aos

poucos, misturado a carnes, sardinhas, camarões, tomates, ovos e pimentões – sobretudo em São Paulo e Minas. Milho é produto genuinamente americano. Está presente nos relatos da primeira expedição de Colombo – que partiu do porto de Palos (Espanha), em agosto de 1492, com três caravelas e a chance de realizar seu sonho – descobrir um novo caminho para as Índias. Para honra e glória de Isabel e Fernando, reis de Castela. Nessa viagem enfrentou de tudo – fome, tempestades, doenças e motins. Três meses depois chegou onde hoje é São Salvador. E, logo em seguida, Cuba. Dois marinheiros, explorando a ilha antes do desembarque, trouxeram à esquadra dois sacos de “mahiz” – assim os nativos o chamavam. A espiga era semelhante, na aparência, ao “sorgo”que conheciam da África, Índia e China. Mas seu gosto era muito melhor. A partir daí foram encontrando plantações em praticamente todas as tribos. Junto a outras culturas que não conheciam – batata, feijão, abóbora, amendoim, tomate, pimentão, cacau, baunilha, goiaba, abacate, abacaxi. Os índios da América praticavam uma agricultura então bem mais avançada que a dos europeus. Colombo ainda faria mais 3 viagens ao Novo Mundo. Ao fim das quais caiu em desgraça na corte, escreveu livros defendendo seus privilégios, foi abandonado pelos amigos, acabando na miséria e com fama de doido – mas essa é outra história. Foi a primeira planta cultivada pelo índio americano. Registros dessa cultura remontam a 7.000 anos atrás, no vale do Tehuacán (México). Foi alimento básico de astecas, incas e maias. Está retratado em velhas pinturas cusquenhas, no templo do Sol (Coricancha) ou no túmulo de Sechura – em que o deus da agricultura segura haste de milho, imitando um cetro. Depois, a bordo das caravelas, esse milho atravessou o Atlântico. Junto com a batata e a pimenta. Desembarcou no “Paço dos Reis” (Espanha). Daí sendo levado para o norte da África, Oriente Médio e, só depois, resto da Europa. Foi ganhando nomes, nessa caminhada. Na Espanha, por exemplo, continuou sendo maiz – porque assim aprenderam os homens de Colombo. Na Turquia roums (grão estrangeiro). Na Itália granturco (grão da Turquia). Na Inglaterra Indian corn – sendo corn uma palavra largamente usada, na Europa renascentista, para nomear qualquer partícula de cereal (cereal da Índia). Mas esse milho não causou, na dieta européia, o impacto de outras culturas americanas. Exceção para o norte da Itália, onde passou a ser usado na polenta – receita que remonta ao pulmentum romano, um alimento para gente humilde. Por toda parte era sobretudo alimento para matar a fome. Em Portugal também – “milho é o mantimento mais ordinário para gente vulgar, quase em toda Beira e Continente junho 2003


SABORES PERNAMBUCANOS Foto: Lumiar

Foto: Acervo CEPE

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BOLO CREMOSO DE MILHO VERDE INGREDIENTES: 8 espigas de milho verde, 3 ovos, 3 ½ xícaras de açúcar, 2 pitadas de sal, 150 gr de manteiga derretida, 1 xícara de leite de coco.

Entre-Douro-e-Minho”, assim escreveu PREPARO: Severim de Faria. Depois foi, aos poucos, ganhando importância. Aparecendo em receitas como broa; papelabersa (caldo • Bata, no liquidificador, os grãos de milho com o leite de coco. com farinha de milho e couves, também Peneire e reserve. chamado de mexuda); papas com carne • Bata as claras em neve. Junte gemas, açúcar e sal. (Trás-os-Montes), primeiro se cozinhan• Junte o milho peneirado, a manteiga derretida e as claras do carne, presunto, chouriço moído, (anteriormente misturadas com gema, açúcar e sal). A mistura fica porco, para só depois acrescentar farinha rala. Coloque em forma untada com manteiga. de milho; papas com coquilles (ou sar• Asse em forno pré-aquecido e quente. dinhas) no Algarve; papas de milho frito, servidas na Ilha da Madeira, como acompanhamento de pratos salgados ou doces; ou papas com leite sileiros conheciam técnica parecida. Jogavam milho cru no “borralho” (braseiro coberto de cinzas) e, depois de e açúcar, servidas como sobremesa. Faltando só dizer que o milho de que é f eita essa estourar, o catavam em meio às cinzas. A esse milho pipoca que saboreamos nos cinemas é variedade chamavam “popoka”(pele estalando). Em suas andanças descoberta pelo fazendeiro americano Olmested Ferris pelo Brasil, quando aqui chegou por mãos de D. João VI (séc 19) – o calor estoura o grão (que contém mais (para ser professor da Academia de Belas Artes), até umidade que o milho normal), fazendo com que se abra, consta que o pintor Debret experimentou dessa “popoka” imitando uma flor. Antonio Pinto, em seu Dicionário do e ficou encantado. Pena que não tenha registrado a cena, método confuso na lógica do absurdo, definiu pipoca como um em um de seus belos quadros. • “milho pelo avesso”. O termo inglês é popcorn – pop Maria Lecticia Cavalcanti é professora. (onomatopéia de estalar) e corn (grão). Os índios braContinente junho 2003


ANÚNCIO


62 ESPECIAL

Ilustração: Ral

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Continente junho 2003


ESPECIAL 63 » O que significa, do ponto de vista da perspectiva histórica, a eleição no Brasil de um presidente "vindo de baixo"? Três cientistas sociais brasileiros e um norte-americano abordam essa questão e seus desdobramentos em entrevistas exclusivas à Continente. São pontos de vista diferentes, que abrangem aspectos conjunturais e estruturais, analisando as recentes mudanças políticas brasileiras em seus vieses político, ético, sociológico e econômico. Todos concordam, entretanto, que a ascensão de Luís Inácio Lula da Silva, migrante nordestino, ex-operário metalúrgico e sindicalista à presidência da República, marca um novo ciclo na trajetória do Brasil enquanto nação. Mas as concordâncias param aí. Questões como coerência política, ética, modelo econômico, relações internacionais, mobilidade social, comportamento das elites e expectativas sociais são vistas a partir das distintas formações acadêmicas e matizes ideológicos dos intelectuais ouvidos. Entrevistas exclusivas com Alberto Oliva, Eduardo Gianetti da Fonseca, Kenneth Maxwell e Renato Janine Ribeiro Fábio Lucas

Mutações

brasileiras

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64 ESPECIAL Foto: Divulgação

ALBERTO OLIVA

Um país

aquém

A eleição de Lula representou uma novidade: sua origem humilde e pobre é tida como sinal de ruptura ou amadurecimento democrático. Mas até que ponto Lula é algo novo para o Brasil? O poder é sempre exercido por uma elite. Com Lula, chega ao poder um quadro de destaque do movimento sindical, e não um destacado membro das elites políticas tradicionais. Lula é a prova cabal de que a busca da novidade, em certas circunstâncias, pode ser mais forte que a exigência de formação intelectual formal. Ninguém chega à presidência, conquistando a maioria do eleitorado, sem estar afinado com os desejos e sem vocalizar as inquietações de amplos setores da sociedade. A vitória de Lula foi então a expressão de um desejo de mudança. Poderá ser uma mudança efetiva? A dificuldade reside menos em identificar o que o eleitorado quer, muitas vezes de forma irrealista, e mais em saber criar as condições que permitam melhorar a tão criticada realidade. Do contrário, o discurso do candidato profusamente otimista e voluntarista se transmuta, uma vez conquistado o poder, na fria retórica de conformação aos fatos duros. E, com isso, se frustram as enormes expectativas de grandes e fáceis mudanças. A tecla da mudança foi tão batida durante a campanha que o governo de fato tem gerado um certo anticlímax. Falta no Brasil a agenda mínima. Como não há consenso em torno do fundamental, as forças políticas quando em disputa pelo poder enfatizam a tal ponto suas diferenças que parece subsistir um fosso intransponível entre elas. E quando se vêem obrigadas a assumir as duras tarefas de governar ficam extremamente parecidas. Isto não quer dizer, evidentemente, que Lula reeditará FHC em pormenor, e sim que, em relação aos grandes desafios da vida nacional, o cardápio de soluções não é tão variado quanto se tende a pensar ou a apregoar. Para chegar ao poder, será que o PT tinha que exagerar na dose da esperança? Lula teria conquistado a presidência mesmo que tivesse optado por um discurso menos promesseiro e otimista. Há um momento em que a sociedade se cansa da situação e quer ver a oposição no Continente junho 2003

Há exigências macroeconômicas que são necessidades sistêmicas e, se desconsideradas, levam a uma piora geral da situação

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Alberto Oliva

poder. E as dificuldades para seu governo seriam menores se algumas das reformas, também hoje consideradas prementes, tivessem sido feitas, com o apoio do PT, no governo FHC. Qual a função que se pode atribuir ao PT e a Lula na evolução recente da história brasileira? Em comparação com os discursos grandiloqüentes e as bravatas de quando estava na oposição, o atual núcleo duro do poder tem mostrado realismo e, em alguns casos, humildade, para reconhecer que no passado a corrida pelo poder impediu apoio a medidas que depois viriam a se revelar imperiosas e urgentes. Esse PT com “os pés no chão” mostra didaticamente aos nefelibatas que o voluntarismo ideológico é imprestável quando reconhece,


ESPECIAL 65 » ao menos implicitamente, que há exigências macroeconômicas que não dependem de se optar por uma ideologia de esquerda ou de direita. São “necessidades sistêmicas” que, se desconsideradas, levam a uma piora geral da situação. Na oposição, Lula e o PT cumpriram importante papel de cobrança, muitas vezes exacerbada, como eles próprios admitem hoje. Mas é difícil negar sua contribuição para o sentimento de cidadania no país. Agora, como Lula e o PT podem estimular a cidadania, sem medo de ser feliz governo? Toda sociedade se beneficia da vigilância que a imprensa e os partidos de oposição exercem sobre os atos administrativos e sobre as políticas implantadas pelos governos. Sem esse controle externo, os maus governantes ficam à vontade para cometer ilicitudes e insistir em projetos administrativos ineptos. É natural que, hoje, as atenções críticas se voltem para o governo do PT. Sua performance precisa ser diuturnamente avaliada pela sociedade. E se o governo mostrar transparência e permitir o mais amplo acesso às informações que ensejem entender a natureza das decisões que toma, isso muito contribuirá para que a sociedade possa monitorar seus passos. No seu livro A Solidão da Cidadania, o Sr. diz que “com a história dos povos não se aprendem lições de ética”. A chegada da esquerda brasileira ao Planalto se enquadraria nessa regra? Em quase todas as campanhas eleitorais, a corrida pelo poder acaba por acarretar a imolação da ética. Tanta coisa se promete que das duas uma: ou o postulante ao cargo não tinha conhecimento da inviabilidade técnica de cumprir as promessas

que estava fazendo, ou disso tinha conhecimento, mas não titubeou em fazê-lo em nome da conquista do eleitorado. No primeiro caso, temos o exemplo clássico do candidato despreparado, no segundo o do candidato sem ética. Quer isto dizer que a sociedade acaba dirigida ou por incompetentes ou por arrivistas. A autocrítica serve para atenuar o choque que essas constatações causam junto a um eleitorado que se sente esbulhado. Mas não dá para desculpar a retórica que se descola completamente da realidade. Que cenários o Sr. apontaria para o futuro, levando em conta as possibilidades de sucesso e fracasso das promessas mudancistas de Lula? Está mais do que claro que Lula sonha com a reeleição e está convencido de que, se fizer algumas das reformas que FHC não conseguiu levar a cabo, poderá levar o país a voltar a ter taxas expressivas de crescimento econômico. E que com o “marketing” dos programas sociais, retomará parte da agenda que tanto enfatizou como candidato. Se o Brasil, feitas as reformas, voltar a ter expressivo aumento do PIB e os programas sociais se mostrarem bem focados e operacionalmente eficientes, Lula poderá apregoar que tudo fez para que a parte essencial do programa que propôs como candidato se tornasse realidade. É nisso que está apostando e é isso que os radicais de seu partido não conseguem perceber. • Alberto Oliva é filósofo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPQ. É autor de A Solidão da Cidadania, pela Senac, São Paulo. Foto: Marcello Jr./ABr

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66 ESPECIAL

EDUARDO GIANNETTI

Fim de

ciclo

O senhor concorda com a visão de que, com Lula presidente, o Brasil completa o ciclo de amadurecimento democrático iniciado com Tancredo e Sarney? A vitória de Lula foi, sem dúvida, um fato novo na história republicana brasileira. É a primeira vez que um candidato de origem popular, líder de um partido oposicionista de esquerda, alcança a presidência da República. Se alguém ainda possuía qualquer dúvida de que a democracia brasileira era genuína – de que ela não passava de jogo de fachada, comandado de cima pelas elites e pela mídia –, então agora não há mais do que duvidar. Lula ganhou nas urnas, assumiu o cargo, montou o ministério e está governando dentro da mais perfeita normalidade institucional. Sua eleição completa um ciclo e revela um claro amadurecimento de nossa democracia: a renovação periódica dos governantes pelo voto e a possibilidade de alternância no poder é a razão de ser do sistema democrático. Não é estranho que a estabilidade econômica tenha vindo antes da estabilidade institucional? Creio que a conquista da estabilidade monetária – grande legado de FHC – foi um pré-requisito desse Foto: Júlio Jacobina/DP

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O Brasil que aí está: “Não existe atalho para o Brasil que sonhamos”

Continente junho 2003

amadurecimento – e isso não só das instituições, mas do próprio PT. É difícil imaginar um Lula ou PT vitoriosos em meio a um cenário de descontrole fiscal e inflação galopante. O medo venceria a esperança. Não temos um presidente revolucionário, como alguns temiam e outros torciam. Mas não se pode dizer que a eleição de um representante das camadas populares da sociedade é algo revolucionário num país marcado pela desigualdade social? A palavra “revolucionário” é vaga. A eleição de Lula é, sim, algo novo, algo inédito em nossa história política. Mas é preciso manter o senso de perspectiva, isto é, evitar os excessos simétricos do fatalismo e do voluntarismo que volta e meia costumam dominar a nossa percepção do futuro. A desigualdade social tem uma longa história e raízes muito profundas na vida nacional. Infelizmente, não se trata de algo que possa ser resolvido à base de truques, curas milagrosas ou arroubos voluntaristas. Lula representa uma diminuição do hiato entre o Brasil “que está aí” e aquele “que poderia ser”? Não existe atalho ou via expressa ligando o Brasil que aí está ao Brasil que sonhamos – um Brasil capaz de se livrar da pobreza em larga escala, que desumaniza a sua população, um Brasil que ofereça reais oportunidades de realização pessoal e econômica à totalidade de suas crianças e jovens. A solução dos nossos gravíssimos problemas sociais – saúde, educação básica, privação, violência e desigualdade – demandará o trabalho consistente não de um ou dois governos federais, mas de várias gerações de brasileiros. O caminho será longo e passa necessariamente pela aceleração da formação de capital humano, planejamento familiar e geração de empregos por meio da retomada do crescimento e de uma corajosa reforma trabalhista (diminuição de encargos, flexibilização da legislação e redução da incerteza no contrato de trabalho). E o que a eleição de Lula pode representar para a ética brasileira? Novamente, por mais esperança e boa vontade que se tenha, não creio que as coisas possam mudar da água para o vinho em curto espaço de tempo. Quem acreditou que as velhas oligar-


ESPECIAL 67 » Foto: Divulgação

A solução dos nossos gravíssimos problemas sociais demandará o trabalho não de um ou dois governos federais, mas de várias gerações

Eduardo Giannetti

quias regionais brasileiras tinham sido afastadas de uma vez por todas do poder, graças à renovação dos ares políticos em Brasília, claramente enganou-se. Sarney é presidente do senado (com total apoio do PT) e ACM acaba de livrar-se de mais um escândalo envolvendo a sua atuação política. Com um presidente vindo de baixo, que comportamento tendem a ter o povo, a classe média e as elites? O fato de o novo presidente ter “vindo de baixo” mostra que a sociedade brasileira é aberta e dotada de razoável mobilidade na esfera da competição política, mas nada nos diz sobre a sua postura ética. Se a conduta do governo Lula, ao longo do mandato, corresponder à expectativa e à enorme esperança que nele foi depositada e, principalmente, se houver uma percepção clara de que a impunidade não mais prevalece entre os “donos do poder”, isso poderá ter um efeito-demonstração benéfico não só no resto do sistema político, mas no conjunto da sociedade brasileira.

Qual deverá ser o papel da ideologia no decorrer do governo petista? A pergunta toca em ponto crucial. O poder transforma os homens. Para o bem ou para o mal, ninguém passa incólume pelo exercício do poder. Há líderes que crescem, outros que encolhem; alguns revelam o que tem de melhor, outros o que tem de pior. A grande incógnita é saber como será Lula na presidência, especialmente quando a lua-de-mel terminar. Muito dependerá da arte de agir no momento propício – o sentido de ocasião que é a marca dos grandes líderes e que os gregos antigos cha7mavam kairós. O alerta de Shakespeare, pela voz do estóico Brutus em Júlio César, vai ao nervo da questão: “Há uma maré nos afazeres humanos que, se for aproveitada na cheia, leva ao êxito; mas, se for perdida, toda a viagem de uma vida desemboca em águas rasas e infortúnios”. O êxito do governo PT dependerá da capacidade de Lula de agir no momento propício, ou seja, enquanto é tempo. Se perder a maré cheia do primeiro ano de mandato e não fizer logo, com muita coragem, ousadia e firmeza, o que precisa ser feito na área fiscal, é difícil imaginar que tenha condições de fazer algo mais tarde. No Brasil, o primeiro ano de um novo governo, seja ele qual for, tem maior valor em termos de poder transformador do que os três anos restantes. E como se pode imaginar a evolução do quadro ideológico nacional, a partir de Lula? Um dos efeitos do nosso individualismo exacerbado é a falta de coerência e firmeza ideológica em nossa vida política. Crenças são usadas, adaptadas e descartadas com a mesma facilidade com que astros de Hollywood trocam de cônjuges. E tudo com a maior inocência e boa consciência deste mundo... O grande mérito deste início de governo Lula foi a capacidade de se abrir para a realidade objetiva da situação com a qual se depara o Estado brasileiro, após quase uma década de aumento progressivo da carga tributária e crescimento explosivo da dívida pública. O fato é que a lógica da situação se impôs. Confesso que me surpreendi ao pegar o jornal outro dia e ler na manchete principal a declaração de Lula dizendo que o déficit da previdência do setor público é hoje o maior obstáculo ao desenvolvimento brasileiro. Há pelo menos cinco anos eu venho batendo nessa tecla e o PT só contestando, acusando esse discurso de “neoliberal”, “Consenso de Washington”, etc. Pois bem: agora é Lula quem diz. Falta fazer. • Eduardo Giannetti da Fonseca é economista, PhD pela Universidade de Cambridge, professor das Faculdades Ibmec-SP e autor, entre outros livros, de Felicidade e Auto-Engano, Companhia das Letras. Continente junho 2003


68 ESPECIAL Foto: Joedson Alves/AE

KENNETH MAXWELL

Sinal de

esperança O que significa historicamente a eleição de Lula, no contexto da formação política nacional e da tradição latino-americana? A eleição de Lula teve uma importância clara na história contemporânea – e não apenas no contexto latino-americano. É de fato muito raro que uma pessoa com a origem dele chegue à presidência de qualquer país. Mesmo nos chamados países socialistas, os governantes raramente foram trabalhadores – veja Cuba, por exemplo. É notável que o Brasil, com todas as deficiências e obstáculos à mobilidade social que se conhece muito bem, seja ao mesmo tempo um lugar onde a oportunidade para a mobilidade política e social do tipo exemplificado por Lula possa acontecer. É um sinal de grande esperança. Claro que isso, no entanto, não garante por si só que ele será um bom presidente. Lula encarna um brasileiro típico, oriundo da classe baixa e produto de uma modernização democrática que trouxe o Partido dos Trabalhadores. O que essas características reunidas dizem acerca do Brasil para o resto do mundo? A ascensão do PT é um elemento importante na democratização da política e da sociedade no Brasil. Não há nenhum outro partido parecido na América Latina de hoje, onde muitos dos partidos das velhas oligarquias clientelistas e populistas entraram em decadência sem que novos partidos surgissem para substituí-los. Existe assim um enorme e perigoso abismo entre o povo e os governos, sem qualquer mediação efetiva de organizações representativas entre eles. Isso favorece a violência e torna o governo mais difícil, como nós vimos na Venezuela e, em certa medida, na Argentina. Partidos políticos saudáveis são essenciais para a democracia. Será interessante observar, igualmente, como as forças conservadoras da sociedade brasileira irão responder a uma administração petista bem-sucedida, já que a centro-direita também precisa de um partido articulado e modernizado para estabelecer uma oposição legítima e democrática. Isso também é importante para a democracia, a longo prazo. Por suas origens e por sua trajetória, Lula é uma figura cujo carisma também se reflete lá fora, onde um toque de exotismo acompanha o charme de esquerdista latino-americano. Como tem Continente junho 2003

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É um fato muito raro que uma pessoa com a origem de Lula chegue à presidência de qualquer país Kenneth Maxwell

ocorrido com outros líderes de outros países, Lula corre o risco de ser maior para a história do Brasil visto de fora do que de dentro? É um risco, de fato. Os outsiders tendem a projetar suas próprias fantasias e utopias irrealizáveis sobre a América Latina. Mas no final é o eleitorado brasileiro que conta. Acho que Lula compreende isso melhor que seu antecessor. Qual seria a causa desse fenômeno? A atenção estrangeira em relação ao Brasil é fragmentada. Os banqueiros prestam atenção na economia, os sindicalistas nos sindicatos, os ambientalistas no destino da Amazônia, os turistas nas praias, enquanto outros preferem a música, e assim por diante. Ainda há uma cobertura pouco abrangente, por parte da imprensa internacional, sobre a política no Brasil, por exemplo.


ESPECIAL 69 » Foto: Reprodução

Marquês do Pombal (ao centro): exemplo de manipulação do sistema em

A eleição de Lula dialoga com as raízes culturais portuguesas do sebastianismo? Não acho que seja o caso. O sebastianismo é um fenômeno de melancólica nostalgia do passado. O efeito Lula não é isto, absolutamente. Representa muito mais uma esperança no futuro e na justiça social para aqueles que têm sido excluídos na sociedade brasileira. De que forma isso será viabilizado pela ação governamental, e transformado em condições melhores de vida, percebidas pela maioria da população durante o mandato, é outra questão. O Sr. concorda com a tese de que Lula fecha um ciclo na história democrática brasileira, e inicia outro? É o que precisamos ver. Este é, sem dúvida, o desafio dos próximos quatro anos. Quais os riscos e vantagens de um novo sentimento nacionalista, numa época em que se observa justamente uma desnacionalização (pela integração global) crescente? Pessoalmente eu não acho que seja possível ou desejável ficar de fora do sistema internacional. Fazer isso seria desastroso para o Brasil. O Brasil não é só parte do sistema, como é um de seus maiores participantes. Na minha visão, os melhores governantes, historicamente, foram os que tiveram habilidade para manipular o sistema em prol da vantagem nacional. Esse foi o grande desafio no século 18, quando Portugal e seu império ficaram totalmente dependentes dos britânicos. O Marquês de Pombal encontrou uma forma muito

sutil de minar a influência britânica, sem que eles notassem, usando suas próprias técnicas contra eles. O Brasil foi uma peça-chave nos cálculos políticos do Marquês. Quer dizer, o uso inteligente do interesse nacional é essencial. O Brasil precisa fazer o sistema trabalhar para ele! A burocracia pode vencer a esperança? A burocracia será um obstáculo tremendo, não há dúvida. Esse será o principal campo de batalha – nem sempre óbvio para o público, porém crucial assim mesmo. A reforma da previdência social irá trazer isso rapidamente à tona. A imagem idealizada do novo presidente brasileiro – um exoperário e líder sindical, imigrante nordestino em SP – deve se prestar a que tipo de conclusões realistas acerca do futuro do país? A realidade vale mais do que a imagem. Realismo político, negociação, mobilização de pressões quando necessário, determinação, tudo isso é o que realmente conta. Que certezas o Sr. tem hoje a respeito do novo presidente brasileiro? A certeza de que Lula e a liderança do PT sabem que essa é sua melhor chance. Eles sabem que, se falharem, não haverá outra. • Keneth Maxwell é PhD em História pela Universidade de Princeton e autor dos livros Mais Malandros: Ensaios Tropicais e Outros e Chocolate, Piratas e Outros Malandros: Ensaios Tropicais,Paz e Terra, São Paulo. Continente junho 2003


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70 ESPECIAL

RENATO JANINE RIBEIRO

Integração

é revolução

À primeira vista, a grande mudança do novo governo é que o PT trocou a ética de princípios weberiana pela ética de resultados tucana. Como o Sr. analisa essa impressão? O que ela representa para a política brasileira, na medida em que toda ética de princípios parece fadada ao fracasso? Discuti a questão das duas éticas weberianas, a de princípios e a de resultados, no final de meu livro A Sociedade Contra o Social. É inevitável que o político, em especial se ele se coloca na perspectiva do poder, considere os resultados. E para nós, cidadãos, é melhor que ele produza resultados do que se ele se contentar em enunciar princípios. Mas eu nunca diria que toda ética de princípios está fadada ao fracasso. O que penso é que

uma ética da responsabilidade (ou de resultados), que é a do político, exige dele o sucesso. Se ele fracassar, restam-lhe poucas desculpas. Se eu fracassar, mas estiver baseado só em princípios, sempre conservarei a consciência limpa. Se fracassar depois de fazer concessões em política, será mais difícil manter minha imagem e minha dignidade. A política de concessões pode gerar bons resultados. E quando não gera? Aqui entra o lado trágico do poder, que os tucanos tamponaram, quando não assumiram responsabilidade por seus fracassos: se o PT fracassar redondamente, ele não terá desculpas. Terá de assumir a tragicidade que está presente na derrota do político, mesmo o político de resultados. Agora, nada disso justifica os radicais dentro do PT. Acho errado cogitar-se sua expulsão, mas o fato é que política democrática exige sempre o diálogo, o reconhecimento do outro, e portanto um certo desconto no radicalismo dos princípios. Mais que isso, quem votou neles quer melhoras. Você só melhora, agindo. E para agir os princípios não bastam. Os ideais de Lula e do PT não devem ter mudado, embora a forma de implementá-los esteja passando por uma evidente

Foto: Ricardo Fernandes/DP

“O que impede uma ditadura militar não é tanto a mobilização dos partidos, mas os shopping centers”

Continente junho 2003


Foto: Divulgação

transformação. Na sua visão, até que ponto a alteração dos meios (ética da responsabilidade) pode prejudicar a execução dos fins nobres, que estão na base de uma ética de princípios? Dez anos atrás, escrevi um artigo para O Estado de S. Paulo no qual eu opunha a questão dos meios e dos fins. Dizia que a esquerda tinha perdido a noção do que são meios eficazes, pois continuava ligada ao poder do Estado, à tutela, ao controle, enquanto a direita (ou o capital) tinha gerado meios muito mais aptos a produzir resultados. E na época nem tínhamos a dimensão do que seria a Internet! Por outro lado, porém, eu acrescentava que a direita tinha perdido a noção dos fins. Seus fins tradicionais eram a família e a moral, mas ela os sacrificara ao indivíduo e ao lucro. A esquerda, contudo, conservava uma idéia de fins, que eu resumiria na palavra solidariedade.

Na esteira de um desejo realizado, que foi o controle da inflação. A estabilidade monetária era um modo de estabilizar a psique, no interior de um pensamento da ciência política que cada vez se proclama mais racional. O PT tem uma dinâmica diferente. Ele ofereceu sonho. O PSDB coloca, nos seus outdoors, seriedade, honradez e competência. O PT falava em não se ter medo de ser feliz e transformava a estrela em emblema intensamente afetivo. Daí que, embora também falasse nas necessidades, atingisse o seu eleitorado em boa medida pelo anseio de se ter mais conforto, mais qualidade. Talvez um artigo meu sobre o consumo-cidadão, vários anos atrás, tenha sido um dos primeiros a chamar a atenção para este novo fato: o que impede um golpe de Estado, um regime militar, uma ditadura não é tanto a mobilização dos partidos, mas os shopping centers. Ordem unida, continência, uniforme cor cáqui não se casam com tênis de grife, fast food e paquera junto do pipoqueiro. E acho que o PT expressou esta mudança. Alguns radicais não concordariam com esse equilíbrio. Nem sempre o partido teve ou tem consciência disso. Muitos dos seus líderes conservam o discurso da necessidade, da seriedade, contra o consumismo e mesmo o consumo.

O que o PT representa, enquanto ideal ou imagem, é que os de baixo passem a ter não só os artigos necessários mas os desejados .

Como “a democracia é o regime da cidadania como desejo”, na sua definição, é coerente a eleição de Lula sob o mote da esperança, já que a ascensão do ex-operário ao poder fecharia um ciclo de democratização plena no Brasil? É perfeitamente coerente. O que o PT representa, enquanto ideal ou imagem, é que os de baixo passem a ter, não só os artigos necessários, mas também os desejados. Fernando Henrique prometeu atender às necessidades, quando agitou os cinco dedos da mão, em 1994, como emblemas da saúde, segurança, educação, emprego e esqueço o último. Não importa que tenha ficado aquém do prometido. O que conta é que prometeu satisfazer as carências, levar as pessoas a um equilíbrio entre a necessidade e a realidade, zerar a psique.

Renato Janine Ribeiro Contudo, penso que seu eleitorado dá muita importância a esta idéia ou pulsão elementar: ser cidadão, ser igual aos de cima, significa – entre outras coisas – consumir o que eles consomem. Para ser mais exato, significa ter acesso ao mesmo supérfluo que eles. O jogo político se dá em larga medida em torno do supérfluo, do acesso ao glacê sobre o bolo. Em nosso tempo, o desejo é mobilizado cada vez mais por isso, do que pelo essencial ou pelo necessário. • Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo e publicou, entre outros livros, A Marca do Leviatã, Ática, e Ao Leitor sem Medo – Hobbes Escrevendo Contra o seu Tempo, Editora UFMG. Fábio Lucas é jornalista. Continente junho 2003


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74 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito com ilustração de Zenival

As mil e uma noites nunca mais O que não perdôo em Bush é a sua absoluta alienação da história do homem, como se ele e o os americanos fossem seres à parte, únicos predestinados a viver e sobreviver

Continente junho 2003

George W. Bush tem muitas dívidas para com a história: a desmoralização da ONU, a destruição de um país, as centenas de mortes de civis iraquianos, e ter posto em risco a frágil paz mundial. Mesmo não acreditando que a vontade de um único homem impulsiona nações para a guerra, responsabilizo Bush por esses crimes cometidos. Mas a dívida a que ninguém se refere, bem mais sutil e insignificante que uma única vida humana, é a de ter destroçado, em nós, um sentido de Oriente que séculos de história ajudaram a construir. Esqueço o imperdoável incêndio de bibliotecas, queimando livros raros e preciosos. Esqueço a pilhagem de museus que guardavam os tesouros das civilizações mais antigas. Esqueço até mesmo que as precárias ruínas da Babilônia estiveram a ponto de desaparecer. O que não perdôo em Bush é a sua absoluta alienação da história do homem, como se ele e o os americanos fossem seres à parte, únicos predestinados a viver e sobreviver. Relatam que um bárbaro, que participava do cerco e tomada de Roma, passou-se para o lado dos romanos, tamanho foi o seu fascínio por aquela civilização. César e Marco Antonio não resistiram aos encantos do Egito e da rainha Cleópatra. Alexandre da Macedônia, depois da conquista do Oriente, deixou de ser apenas grego para também se tornar um persa. Os povos do Islã se referem a ele como Alexandre Bicorne, porque tem os dois chifres, o do Oriente e o do Ocidente. Morreu aos trinta e três anos na Babilônia que Bush mandou bombardear sem nunca ter conhecido. Bush desconhece o resto do mundo, não transpõe o umbral da Casa Branca. Pratica a guerra moderna, matemática, cirúrgica, feita de longe, por meio de bombardeios aéreos. Nunca sente o cheiro do sangue que está derramando, nem olha de perto o rosto do conquistado. O seu sentido de heroísmo está longe dos guerreiros que lutavam corpo a corpo. Até Napoleão Bonaparte seguia ao lado dos seus exércitos. Na campanha contra a Rússia, realizou um sonho acalentado por anos, de entrar em Moscou, a cidade mais fascinante a oriente. Alexandre da Macedônia conhecia história, foi aluno de Aristóteles e dormia com a espada e um exemplar da Ilíada debaixo da cabeceira. E Bush, esse texano de olhar paranóico, o que terá lido? Quem são os seus heróis? Será que alguma vez folheou um exemplar de As Mil e Uma Noites, mesmo na tradução de Antoine Galland, a mais simples e ocidentalizada? Com certeza leu a Bíblia. Mas deve ignorar que duas nações foram essenciais para a formação da nossa cultura ocidental: a Grécia e Israel.


ENTREMEZ 75

Israel, que já foi um país oriental e não é mais, mesmo estando geograficamente assentado no Oriente Médio. Através da Bíblia, ele deveria ter compreendido que a cultura de um homem tem tanta significação em sua vida como o sangue que corre em suas veias. E que não se pode negar o nosso passado oriental, o nosso judaísmo cristão, nem o legado da Mesopotâmia, seja a Suméria ou a Bagdá do califa Harum alRaschid. O que é o Oriente? Será que Bush se fez essa pergunta uma única vez? Desde os gregos, esse espaço indefinido geograficamente nos fascina. Heródoto nos faz a revelação do Egito, longínquo porque naquela época se demandava um longo tempo para percorrer as distâncias. As navegações eram perigosas e o desconhecido, misterioso. E é justamente o mistério que se associa a esse mundo remoto do sol nascente. Ocidente e Oriente sempre se movimentaram um em direção ao outro, quase sempre de forma trágica, porque o saldo maior das guerras é a tragédia. Mas foram os viajantes, como Marco Pólo e os menestréis que acompanhavam os cruzados, que trou-

xeram as histórias daquele mundo fantástico, cheio de tesouros e aventuras. Histórias que eram recontadas e acrescidas das fantasias do narrador, formando um imaginário que só fez avolumar-se ao longo dos anos. Viajantes franceses, ingleses, alemães e espanhóis trouxeram os relatos de As Mil e Uma Noites e de livros eróticos como O Jardim Perfumado, que reescreveram de modo ocidentalizado. O teatro de Molière, no século 17, vinga-se do desprezo do Império Otomano pela corte de Luís XIV, em paródias e bailados grotescos sobre os turcos, em que o exagero é a tônica. Mas nada se compara ao cinema americano na construção desse imaginário oriental. Em filmes de segunda, são mostradas odaliscas licenciosas, gênios da lâmpada, tapetes voadores e califas cruéis e arbitrários como o próprio Saddam Hussein. A cultura americana de consumo especializou-se em ficar na superfície de tudo o que aborda. Forjou um mundo sem mistério, sem noção de sagrado, cujos maiores ícones são a coca-cola e a batata frita. O que não perdôo a Bush é ter mostrado ao mundo apenas um oriente de barbáries. Como se nos Estados Unidos, todos os dias, não se praticassem atrocidades: filhos assassinando pais e crianças metralhando professores e colegas de escola. Quando Alexandre da Macedônia mandou que os seus soldados destruíssem Tebas, pediu que deixassem de pé a casa do poeta Píndaro. Por mais cruel que ele tenha sido, foi capaz de um gesto de clemência para com a poesia. Na guerra do Iraque, os americanos e ingleses bombardearam de uma só vez a civilização suméria, os impérios assírios e babilônicos, e o califado de Bagdá. Além de homens, mulheres e crianças mataram o nosso passado e a nossa história. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Continente junho 2003


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78 MÚSICA

Foto: Reprodução/AFP

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Loco por ti ,

América

A música popular hispano-americana teve no Brasil uma recepção muito díspar: dos sucessos da primeira metade do século 20, aos poucos foi ficando associada exclusivamente à nostalgia e ao exotismo, mesmo na época em que o “latino-americano” se converteu num instrumento de resistência. Porém, o diálogo cultural continuou o seu caminho e ainda não foi dita a última palavra Guilherme de Alencar Pinto


Na primeira metade do século 20 o consumo de música hispano-americana foi muito alto no Brasil. A partir dos anos 20, os Estados Unidos funcionaram como uma importante antena de retransmissão de informações, sobretudo através do cinema, que difundiu, entre outros, Carlos Gardel. O comércio de música nessa época não estava tão racionalmente setorizado nem era unidirecional como nos nossos dias: os músicos hispano-americanos faziam sucesso nos Estados Unidos e esse sucesso se percebia em filmes musicais para todo público (não era apenas para um “mercado latino”), como por exemplo Bathing Beauty, no qual Xavier Cugat (com banda, cachorrinho e tudo o mais) e Carlos Ramirez eram números, entre outros, de um conjunto de “variedades”. Os brasileiros os recebiam e

absorviam com espírito entusiasta. Porém existia muita “circulação direta”, facilitada pela proximidade geográfica e a identidade cultural (da qual nem se falava, porque estava aí, evidente demais para se tornar objeto de comentários ou reflexão). Os cassinos brasileiros apresentavam com freqüência números musicais hispano-americanos. As sucessivas modas dos países da costa atlântica chegavam com fluidez e fincaram raízes: o tango, o bolero, a rumba, o mambo, o cha-cha-cha, consumidos na forma inocente, vital, sem intelectualizar, do mesmo jeito que se ouvia a totalidade da música popular. Cielito Lindo incorporouse ao folclore brasileiro sob o nome de Tá Chegando a Hora. Em 1939, dos dez maiores sucessos estrangeiros , quatro foram hispano-americanos (de Agustín Lara, Cadícamo/Cobián, e Continente junho 2003


80 MÚSICA

Canaro). Gardel, Pedro Vargas, Lucho Gatica, Bienvenido Granda, Pérez Prado e o Trío Los Panchos foram estrelas consagradas. O bolero se incorporou como gênero usual: condenado pelos nacionalistas e desprezado pelos modernistas, perpetuou-se camuflado sob a forma do samba-canção, e boa parte da produção de músicos famosos como Chico Buarque, Edu Lobo ou Ivan Lins, não é outra coisa senão bolero (gênero que dominou até faz pouco tempo todo o lucrativo setor chamado de “brega”). A queda começou progressivamente na década de 50. Em meio de um período de considerável expansão industrial, o Brasil desenvolveu uma série de manifestações culturais que o instalaram no próprio coração da modernidade. O cinema novo, a poesia concreta, a prosa de Guimarães Rosa, a arquitetura de Niemeyer, o desenho gráfico do Jornal do Brasil, a urbanística de Brasília e as formas de comportamento da juventude do bairro de Ipanema no Rio, puderam ser vistos desde qualquer lugar do mundo, e sobretudo pelos próprios brasileiros, já não como um simples “estar em dia” com a modernidade alheia, senão como uma nova pauta, com valor absoluto em relação ao que é “moderno”. A “bossa nova” também, e, daí em diante, quase toda a música brasileira mais refinada contribuiu para definir essa pauta. O aval dos Estados Unidos era bem-vindo, mas se não chegava, coitados, que se

Em Soy loco por ti, América, sem menosprezar a fertilidade cultural dessa estranha homenagem ao Che Guevara, os gestos hispanoamericanos são basicamente caricaturas (basta reparar na parte do órgão elétrico do acompanhamento ou observar que a figura instrumental dos cortes é a vinheta publicitária da Varig)

Nas páginas anteriores, Carlos Gardel – estrela também no Brasil Ao lado, o disco Tropicália, que contém farta referência ao universo latino-americano Continente junho 2003

podia esperar dessa gente branquela que ia à praia de meias e dançava o samba sem ginga nenhuma? O Brasil impôs seus próprios critérios. Os últimos furores hispano-americanos no Brasil vieram diretamente dos Estados Unidos, dos músicos americanos que cantavam em castelhano, como Eydie Gormé ou Triny López, no começo dos anos 60, que deram lugar, mais tarde, a fenômenos pré-fabricados, intensos, mas passageiros, como Menudo. O hispânico fica relegado, desde a perspectiva brasileira, fundamentalmente a associações nostálgicas. Deixa de existir um “agora” hispano-americano, e qualquer incursão nesse território se converte na evocação de uma época passada. É como na antropologia do século 19, que buscava nos povos tribais uma compreensão do homem pré-histórico: a América hispânica passa a ser a sobrevivência do homem pré-moderno. Esse novo sentimento fica marcado, por exemplo, nos discos do movimento tropicalista, lançado em 1967. Original contrapartida brasileira à tendência psicodélica internacional, o tropicalismo é farto em referências ao universo hispano-americano. Em Tropicália ou Panis et Circensis (disco-manifesto de 1968) a súbita entrada das estridências do tipo cha-cha-cha de Três Caravelas cortando o suave iê-iê-iê de Baby, pode ser considerada parte do mesmo espírito com que os Beatles, em Sgt. Pepper´s (1967), ostentavam seus bigodes e ternos do tipo Foto: DivulgaçãoP

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Fotos: Reprodução/AE

Exército de Salvação, canções “de vovós” ou alusões a um circo do século precedente. Mas no caso dos brasileiros, com relação aos hispano-americanos, havia ênfase maior nos aspectos grotescos. O hispano-americano aparece no mesmo patamar, integrado no mesmo espírito e valor semântico que as referências a Carmem Miranda com seus chapéus de abacaxis e bananas. Isto fica ainda mais claro em Soy Loco por Tí, América composição de Capinam e Gilberto Gil, que virou sucesso na voz de Caetano Veloso (1967). Sem menosprezar a fertilidade cultural dessa estranha homenagem ao Che Guevara, os gestos hispano-americanos são basicamente caricaturas (basta reparar na parte do órgão elétrico do acompanhamento ou observar que a figura instrumental dos cortes é a vinheta publicitária da Varig). El Justiciero, de Os Mutantes (1971), é diretamente uma sátira – desde a perspectiva da inteligência brasileira semi-informada de então. Aqui, como sempre no tropicalismo, a visão é enriquecida por leituras de segunda ou terceira série; neste caso, percebe-se um clima de spaghetti-western que pode se referir não à visão própria do hispânico, senão a do ítalo-estadunidense, estabelecida no prólogo em inglês: Once upon a time when the hot sun faded behind the mountains/The shadow of a strong man, with a gun in his hand,/Raised to protect the poor people of the haciendas. Segue-se uma série de clichês de um “espanhol” comicamente descuidado, feito a partir das conversões mais comuns de elementos fonéticos do português para o castelhano, sistematicamente mal aplicadas (tiengo chocolate quiente). A declamação dramática central, interpretada por Rita Lee, com ares de pastelão, mistura elementos de italiano – aparecendo como pseudocastelhano–: El Justiciero, yo tengo 30 hijos con hambre/ La güerra, la güerra me ay strupatto tanto bena/ Socuerro, El Justiciero/ Ajuda-me por favor. (A confusão com o italiano lembra os Beatles de Sun King, de 1969, imbuído de um espírito muito semelhante). Fica claro que o que está sendo caricaturado em El Justiciero é mais o clichê da coisa mexicana que o mexicano mesmo, mais a canção resulta hilariante para os brasileiros na medida em que essa visão é compartilhada pelos ouvintes. O humor perde vigor – como acontece com o filme Bananas, de Woody Allen – quando o ouvinte pede à mensagem alguma certidão de maturidade. De fato, no repertório dos tropicalistas não há contra-exemplos que sugiram uma visão do hispanoamericano como possível ator da modernidade ou da emancipação. Depois da etapa tropicalista, Caetano não deixou de recorrer ao repertório latinoamericano. Pouco depois, suas versões deixaram de ser corrosivas e passaram a ser pura e simplesmente expressivas. O ponto de transição é a sua versão de Tú me Acostumbraste, de 1973, e a nova modalidade firmou-se, daí em diante, com Drume Negrita e La Flor de la Canela (1975). Porém, a seleção do repertório e as escolhas nos arranjos são significativas. Nesse sentido, é eloqüente o enfoque condensado em Fina Estampa de 1994, álbum dedicado por completo ao repertório hispano-americano. Caetano, epítome da modernidade musical brasileira desde 1967, ponto focal de suas vertentes mais produtivas desde então, quando aborda o hispano-americano, sistematicamente deixa de lado qualquer coisa que possa ser considerada “moderna”, progressista, vanguardista. Sempre bem disposto a eletrizar o carnaval ou o baião, ou a informar o samba com o rap, Caetano, quando recupera o hispano-americano, opta pelo mundo dos cassinos, dos Havanna Cubans boy´s, camisas com flores, brilhantina, ou pelo ambiente rural pré-capitalista. A instrumentação é acústica e orquestral. Piazzolla e Fito Paez estão representados em canções à moda antiga (entre os brasileiros é muito mais conhecido o Fito de Un vestido y un amor, gravada por Caetano e Yo vengo a ofrecer mi corazón, por Milton Nascimento, do que o Fito roqueiro). A versão de Lamento Borincano, nada tem de satírica, é comovente, mas em definitiva o jibarito da canção coincide com a poor people of the haciendas de El Justiciero no sentido de que seu único recurso é despertar a piedade alheia. Caetano conhece razoavelmente o castelhano e a música do continente, mas para o brasileiro médio – que o ignora – o idioma está vinculado a conotações eróticas por causa

Carmem Miranda (ao alto), valor semântico hispano-americano Xavier Cugat, absorção entusiasta

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Foto: Divulgação

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Os Mutantes: sátira de várias leituras ao mexicano, em El Justiciero

das muitas prostitutas argentinas que trabalhavam no Brasil (na dramaturgia brasileira as cafetinas dos bordéis e os apresentadores de circo sempre têm acento castelhano); quando não aparece associado a uma emotividade visceral e às paixões violentas (posse, ciúme, navalhas, pessoas que se arrastam pelo chão ou fazem gestos vigorosos ao modo tanguero – freqüentemente misturado com castanholas, lenços negros e pasodobles: não há uma diferenciação muito fina). Agora que o contato com a cultura hispânica praticamente ficou para trás, o único canal de absorção (não muito bem sucedido no Brasil) é a maquinaria “latina” de Miami. O rótulo “latina” foi rapidamente incorporado pelos brasileiros, mas sem se incluir nela (para as categorias do Grammy, a música brasileira não é “latina” mas world music). A geração de Rick Martin e Gloria Estefan tem um impacto bastante secundário no Brasil, mas a informação apóia a imagem de uma música “cabeça oca”, piegas, e que, para maior desgraça, perdeu o encanto exótico (a idéia que geralmente se tem dos latinos – chamados de cucas – de cucarachas– em São Paulo). Os que tiveram sucesso foram os boleros interpretados por Luis Miguel, porque aludem a um repertório já cultivado. O ciclo Buena Vista Social Club, de aceitação mais maciça, é contemporâneo de Fina Estampa, com quem comparte muitos traços estéticos. Nesse meio tempo houve uma exceção na década de 70: a moda “latino-americana”. O termo, formulado dessa forma (não condensada na expressão “latino”, cujas conotações mencionamos acima), tem uma repercussão política. A partir do entusiasmo geral das esquerdas pela chegada ao poder de Salvador Allende, espalhou-se pelo Brasil (e pelo mundo) uma associação dos gestos musicais folclóricos andinos e da região noroeste da Argentina com a resistência de esquerda. Sem entrar em julgamento da consistência que pudesse ter esse projeto geopolítico, num nível menos consciente, essa classe de mensagens esteve sempre vinculada no Brasil a uma idéia de “volta a”: ponchos, instrumentos artesanais, indigenismo, valorização Continente junho 2003

hippie do rural e comunitário. A figura mais representativa dessa adesão foi Milton Nascimento, quem, por causa da censura, usou de maneira especialmente criativa essas conotações para fazer canções políticas com textos herméticos ou diretamente sem texto. Mas tudo isso passou a ser imediatamente “brasileiro”, e nunca deixou de ser vinculado a uma indefinida utopia pré-industrial. No que diz respeito ao repertório propriamente hispânico, ouviu-se Gracias a la Vida e Volver a los 17 em versões lavadas, mas nada da Violeta Parra radicalmente transgressora de El Gavilán, tampouco de Daniel Viglietti. O objetivo desta nota foi apenas sinalizar uma tendência marcada no tipo de recepção que o brasileiro faz do hispânico, que parece excluir muitos dos elementos de que o brasileiro se orgulha em suas próprias canções: a picardia, o desenvolvimento técnico, a capacidade de absorver e integrar (“antropofagizar”) a música dos povos dominantes sem se descaracterizar, integrandose à modernidade com critérios próprios – e portanto, a capacidade dos estilos de cada país para servir de veículo a reflexões sobre a modernidade, sem ser forçado a migrar para o rock. O campo da canção popular é um veículo especialmente importante no Brasil, e geralmente menos mediatizado pelo intelecto que outras manifestações (como a literatura de Borges, por exemplo, ou a de Cortázar, de García Márquez ou Vargas Llosa; o humor de Quino e o cinema hispano-americano não-comercial do circuito dos festivais, apreciados no Brasil de uma maneira muito menos condescendente e mais respeitosa). Por causa desse caráter menos consciente, mais próximo de um diálogo, não tanto entre “intelectuais”, senão entre pessoas comuns, o que acontece com a música popular pode ser um bom ponto de partida para indagar, com maior profundidade, aspectos pouco verbalizados da reflexão entre ambas regiões idiomáticas, e, talvez, de incidir sobre eles. • Guilherme de Alencar Pinto é músico e pesquisador brasileiro, radicado no Uruguai. Artigo originalmente publicado na revista on-line Todavía, de Buenos Aires. Tradução de Marcelo Perez.


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MÚSICA 83 »

Três CDs – Quinteto Violado e convidados; Dominguinhos, Sivuca e Oswaldinho; e Maria Dapaz – homenageiam Luiz Gonzaga Mariana Oliveira Luiz Gonzaga e o Quinteto Violado na concepção do artista J. Caxiado. Abaixo, o Rei do Baião no início da carreira

Velho Lua dá o tom do São João As sanfonas já estão no terreiro e dão o ritmo do forró, do xote e do baião de Luiz Gonzaga. Já faz um bom tempo que é difícil separar as festas juninas de Gonzagão e de suas músicas. Apesar de tocarem os ritmos regionais o ano inteiro, sanfoneiros, zabumbeiros e admiradores do grande mestre têm um maior fluxo de trabalho no mês de junho. Certamente, este é o momento em que o pernambucano de Exu, filho de Januário e Santana, é mais lembrado e mais tocado. “Tudo. A sustança, o tutano do corredor do boi, a vitamina, a proteína, Padre Cícero, Frei Damião, Ascenço Ferreira, Lampião, Nelson Ferreira, Zé Dantas, tudo”, essa foi a definição, dada por Luiz ‘Lua’ Gonzaga, em entrevista à Rede Cultura de Televisão, sobre o Quinteto Violado, e é assim que começa o mais novo CD do grupo Retirantes de Sanfona e Violadas, lançado no ano passado. Das 14 faixas, sete são músicas de Gonzagão. O objetivo do Quinteto era fazer uma homenagem e imortalizar, à sua maneira, o Rei do Baião, que completaria 90 anos, em dezembro. A música São João de Seu Luiz insinua que o santo (São João) não deve ter ciúmes de Gonzagão. São João não vai se incomodar de dividir com o Rei as honras de seu mês, diz a canção, refletindo o maior destaque que Luiz Gonzaga ganha durante esse período. Aproveitando o início dos festejos juninos, será apresentado o clipe dessa música, que tem a participação direta de muitos artistas locais e nacionais. Nele, estão Elba Ramalho, Chico César, Silvério Pessoa, Gisele Tigre, Paulinho Mosca, Patrícia França, Cleiton e Cleidir, Santana, enfim, os mais variados artistas cantam e louvam Gonzagão junto com o Quinteto. Além do clipe, um DVD e um espetáculo, dirigido por João Falcão, estão começando a sair do papel.


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Inúmeros grupos musicais, cantores e cantoras gravaram Luiz Gonzaga. Mas, de longe, é perceptível o envolvimento emocional e familiar do Quinteto Violado e seus 31 anos de carreira, com o artista, eleito a personalidade pernambucana do século passado. “A diferença são as histórias que temos para contar da nossa intimidade com ele. O show e o disco têm um enfoque na relação com o homem Gonzaga, tanto que abrimos o CD com um depoimento dele falando do Quinteto”, explica Dudu Alves, tecladista do grupo. A música do clipe, composta pouco depois da morte do Velho Lua, é de Toinho Alves, integrante do Quinteto desde a primeira formação. Essa relação de cumplicidade foi conquistada ao longo do tempo. Gonzaga foi um dos inspiradores de alguns dos integrantes do grupo. O primeiro contato do percussionista Roberto Medeiros com o Rei do Baião foi num show, em Garanhuns, quando ele tinha oito anos.”Foi uma grande emoção tocar com ele logo que eu entrei no Quinteto”, revela. Os arranjos das músicas são outro diferencial do disco. O Quinteto Violado buscou a inovação, transformando um baião numa ciranda ou numa salsa. A única música que permanece intacta é Asa Branca. O grupo explica: o próprio Gonzagão se emocionou quando ouviu, pela primeira vez, a versão do Quinteto de uma de suas músicas mais famosas. Ele afirmou que era o melhor arranjo que escutou dos mais de 100 feitos para Asa Branca. Trio sanfoneiro – O CD Os Três Sanfoneiros: Cada um Belisca um Pouco, que está sendo lançado este mês, também traz uma homenagem ao Mestre Lua. Os sanfoneiros Sivuca, Dominguinhos e Oswaldinho gravaram o disco com boa parte dedicada às músicas de Gonzaga. O idealizador do projeto foi o produtor José Milton, que tinha juntado o trio em outra ocasião, quando os três sanfoneiros tocaram juntos no projeto É Xote, é Forró, é Baião, Viva Gonzagão, de 1994. “Foram sete anos para concretizar a idéia de juntar três músicos excepcionais, três gênios do instrumento”, diz o produtor. A intenção não foi lançar o disco no mês do São João para aproveitar o gancho mercadológico do período. Segundo José Milton, o objetivo central era unir, mais uma vez, os três melhores sanfoneiros da atualidade, em um disco que ele não classifica como “junino”. Mesmo acreditando que a sanfona toca o ano inteiro, não só em junho, Dominguinhos acredita que o momento é oportuno. “Essa época é Gonzaga na cabeça. São João não existe sem Luiz GonContinente junho 2003

Da esquerda para a direita: Joquinha Gonzaga, Alcymar Monteiro, Gisele Tigre, Geraldo Lins, Maciel Melo, Roberto Medeiros e Dudu Alves, na gravação do clipe

zaga. Fica difícil separar”, comenta o herdeiro musical do homenageado. Foi um encontro de velhos amigos e de gerações. O sanfoneiro Valdones fez uma participação especial. Durante os três dias de gravação, os sanfoneiros escolheram as músicas e os arranjos, num clima casual, de reencontro, “como no tempo antigo”, diz Dominguinhos. Os critérios para escolha das canções vieram do coração. Os sanfoneiros e o produtor valorizaram a emoção. Segundo Dominguinhos, as sanfonas, no disco, fazem o papel dos sopros e do piano, produzindo improvisos próximos aos das melhores sessões de jazz e das rodas de chorinho. Nesse caso também existe uma proximidade entre os sanfoneiros e Gonzagão. Aos cinco anos, Dominguinhos se deparou, pela primeira vez, com a figura carismática e forte de Gonzaga. Alguns anos depois, o Rei do Baião o presenteou com uma sanfona de oito baixos. Já Sivuca cruzou com ele em 1946, na Rádio Clube de Pernambuco. Os elogios de Gonzagão serviram de incentivo ao sanfoneiro. O pai de Oswaldinho, Pedro Sertanejo, por seu lado, era amigo do Mestre Lua, o que garantiu ao sanfoneiro um reconhecimento prematuro da relevância da obra de Gonzaga. Dapaz – O CD tem 13 músicas, porque Luiz Gonzaga nasceu no dia 13. Essa é a explicação que a cantora Maria Dapaz dá sobre a seleção das músicas do seu novo disco Vida de Viajante. O repertório é todo de Gonzaga. Algumas das músicas nunca foram regravadas e não são muito conhecidas pelo público em geral. Os arranjos são fiéis aos originais. O diferencial fica por conta da interpretação da cantora pernambucana, pioneira na gravação de um disco todo de Gonzaga. Vários amigos de Luiz Gonzaga seguem fazendo releituras de sua obra consagrada. Dessa forma, não deixam de atender ao desejo do artista, externado nos seus últimos dias de vida: “Não deixem que eu morra nesta cadeira de rodas! Eu, que amei tanto meu povo, filho de Januário e Santana. Gostaria de ser lembrado como sanfoneiro de Exu, pernambucano da gema, o cantador do sertão...” • Mariana Oliveira é jornalista.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 85 » Joel Silveira com ilustração de Zenival

O prefixo musical do Rio agora é a sirene da polícia ENGANO Além dos ricos, só os ingênuos e os débeis mentais continuam a acreditar que Deus é brasileiro.

O COFRE São Paulo não é o Estado mais rico do Brasil. É apenas o menos pobre.

O PREFIXO De anos para cá, o prefixo musical do Rio não é mais aquela marchinha Cidade Maravilhosa, mas a sirene da polícia.

NUNCA, NUNCA Grita a propaganda na televisão : “Ligue já”, “Compre já”. Jamais ligarei, jamais comprarei. O PIOR De Paulo Mendes Campos, injustamente esquecido : — O pior bêbado é o que tem uma razão para beber. AMIZADE Para que se saiba como ando em matéria de amizades, basta dizer que já perdi de vista o meu amigo mais próximo. GRACILIANO Quando completou 40 anos, no dia 27 de outubro de 1932, Graciliano Ramos desabafou numa carta à mulher, Heloísa : — Que horror ! IMPRÓPRIO O Brasil, infelizmente, ainda continua impróprio para menores. CHEIRO Como identifico um verdadeiro poeta? Pelo cheiro. O verdadeiro poeta não cheira, o mau poeta cheira demais. TELEGRAMA Telegrama de Curitiba: “O senhor está convidado para um debate com os estudantes daqui”. Nem pensar. O que sei eles não sabem. O que eles sabem eu não sei. • Joel Silveira é jornalista e escritor. Continente junho 2003


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A poética

do imaginário O que fortalece e sustenta a festa do boibumbá, no Festival Folclórico de Parintins, é muita paixão – nas cores vermelha e azul –, organização comunitária e tradição nordestina Isabelle Câmara


TRADIÇÕES 87 » As três últimas noites de junho na Ilha de Parintins, Amazônia, têm brilho, cores e calor diferentes. Todos os anos, há 35, acontece o curioso e lendário embate entre dois importantes personagens do folclore regional: o confronto entre os bois-bumbás Garantido e Caprichoso, que movimenta os povos da floresta, mas também os visitantes vindos de todo o planeta. Durante esses dias, ainda que na inusitada união de suas divergências, os dois bumbás lutam, combatem e medem forças para provar o improvável: quem é melhor na arte de dar vida à poética do imaginário. Caprichoso e Garantido: companheiros inseparáveis, rivais mortais. Contradição? Não. Em Parintins vale a teoria do contrário. O Festival Folclórico se nutre exatamente dessa atração de opostos. Um não vive sem o outro, e depende do outro. E no entanto, todos os dias, principalmente nas noites da festa, a rivalidade e a disputa são acirradas entre os dois grupos. E os torcedores se dividem em duas metades idênticas, até no comportamento – o que conta pontos para o boi do coração. Quando é o seu bumbá que se apresenta, aplaudem, cantam e dançam ao som das músicas típicas da festa, as toadas. Quando é o “contrário”, o silêncio é respeitoso e absoluto. Sentindo a empolgação que agita a ilha nesse período, fica difícil imaginar que, há cerca de oito anos, o Festival Folclórico de Parintins não passava de uma pequena manifestação local – ainda que pujante – com origens claramente enraizadas no tradicional bumba-meu-boi nordestino. Por trás do megaespetáculo de criatividade e inventividade, música e dança, luzes e alegria, corre muito dinheiro, trabalho, suor, estresse e paixão. É o que afirma Edílson Souto Freire, mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia e autor da dissertação “O Festival de Parintins – Estudo de uma Manifestação do Folclore Amazônico Vista à Luz dos Princípios da Administração”. Estima-se que cada boi invista três milhões de reais nas suas apresentações, com uma parte dos recursos vinda de empresas patrocinadoras, como a Coca-Cola, e do Governo do Estado do Amazonas, que investe principalmente na infra-estrutura da ilha para os visitantes. “A maior fatia, no entanto, é garantida nos concorridos ensaios e festas nos currais mantidos pelos dois grupos em Parintins e em Manaus, onde se cobra ingresso. Estes grupos vêm aprendendo, ano após ano e de forma sinérgica, o significado e o valor do verdadeiro trabalho em equipe”, avalia o pesquisador. A grande fonte de renda de Parintins é a comercialização de gado. O município detém o maior rebanho do Amazonas. Também possui culturas permanentes, como o guaraná, detendo 65% da produção amazonense, a castanha (56%) e a tangerina (35%). Com o Festival, a economia da cidade esquenta. Moradores recebem hóspedes em casa,

“Marujada” (percussão) do Boi Caprichoso, o “boi da elite”

Carro alegórico do Boi Garantido, o “boi do povão”

A sinhazinha é uma figura agregada à história tradicional

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88 TRADIÇÕES

“Em casa de caprichosos e garantidos, é simplesmente proibido mencionar o outro boi. ‘Ninguém garante nada’, dizemos. ‘Aqui a gente assegura, a gente capricha’. Quando os filhos chegam em casa contando que estão de namoro com alguém, a pergunta vem na bucha: – De que boi é essa pessoa?!”, alerta Simão Assayag, escritor, folclorista e ex-diretor de arte do Caprichoso. E explica: “A gente tem de pensar logo nisso, porque, de repente, casa com um contrário e vêm as conseqüências”. Se o quesito organização comunitária contasse pontos, os dois bois empatariam todos os anos. De acordo com a tese, as organizações dos bois-bumbás – duas ONGs que estenderam suas ações à comunidade, criando escolas e centros culturais – se envolvem de tal forma que muitas residências são transformadas em “quartéis-generais”, onde até os brincantes de um mesmo boi são proibidos de entrar. “É nos QGs que as ilusões viram realidade”, diz Freire. Artistas, artesãos, costureiras transformam palhas, tecidos, sementes, plumas, isopor, papelão, tonéis de cola e tinta em fantasias, adereços e alegorias. “Reza a lenda que alguns artistas e certas costureiras chegam a vendar os olhos do participante, a fim de que ele não veja a roupa que usará no dia do espetáculo, enquanto a experimenta”, relatam Andréas Valentim e Paulo José Cunha, nos seus livros Caprichoso: a terra é azul e Vermelho: um pessoal garantido.

A cunhã-poranga, junto com o pajé e o boi, surge na arena de forma especial

produz-se o artesanato ligado aos bois, CDs com as novas toadas chegam às lojas. “A presença do boi na cidade é de importância ímpar, especialmente pelo que propicia em termos de trabalho e renda, gerando, no mínimo, 1800 empregos diretos e indiretos e uma grande movimentação econômica”, contabiliza Edílson Freire. “Os bois se transformaram em duas ‘facções’ que dividem a cidade: os bumbás Garantido, que acastela a cor vermelha, e Caprichoso, defensor da cor azul”, ressalta. A disputa promove situações curiosas: a cidade é dividida por uma linha imaginária, tendo o Bumbódromo como marco. Do lado caprichoso, casas, cavaletes de trânsito são azuis. E os semáforos não sinalizam em vermelho a hora dos carros pararem. Esse é o único lugar do mundo onde a Coca-Cola, patrocinadora oficial do evento, imprime sua logomarca em azul. E o banco Bradesco também. Continente junho 2003

Tradição histórica – Mas como se explica a festa do boi-bumbá em pleno coração da Amazônia? Como pode, justo o boi, bicho sagrado na Índia, idolatrado no Egito, mitificado na Grécia e reverenciado na Espanha e Portugal merecer tamanha honraria nessas selvas? Há, sim, uma explicação histórica. A história do bumba-meu boi, que deu origem ao boibumbá, é simples e sua origem, ao certo que é nordestina, se perdeu no tempo: mãe Catirina, mulher do vaqueiro pai Francisco, grávida, tem desejo de comer a língua do boi preferido do patrão (o amo ou fazendeiro). Pai Francisco, para que mãe Catirina não perca a criança, mata o boi. O crime é descoberto e pai Francisco, preso. Invoca os poderes do doutor, do pajé e do padre, que se unem e ressuscitam o boi, para que tudo termine numa grande festa. A primeira notícia oficial sobre essa migração foi publicada em 1840, no jornal O Carapuceiro, do Recife. “O boi subiu a costa, veio pelo Piauí, Maranhão, Ceará, entrou na Amazônia, onde virou boi-bumbá”. A história original foi enriquecida pelos elementos lendários e míticos da cultura indígena da região amazônica. A festa de Parintins representa a fusão da cultura dos colonizadores com a dos nativos e a magia da Amazônia. O auto, tal como é apresentado nos terreiros e quintais das cidades nordestinas, já não é representado na arena amazônica. Mas


TRADIÇÕES 89 algumas figuras típicas do bumba-meu-boi foram preservadas em Parintins, como o amo do boi, pai Francisco, mãe Catirina e os vaqueiros que lá se transformaram num quesito importante, chamado vaqueirada (grupo de quarenta vaqueiros que se apresentam dançando ao ritmo da toada). Às figuras tradicionais, outras foram agregadas: a sinhazinha da fazenda, a cunhã-poranga (mulher bonita) e as tribos indígenas – alas de centenas de brincantes que desenvolvem coreografias detalhadas. E como não poderia deixar de ser, até hoje, Garantido e Caprichoso disputam para saber quem é o mais antigo. Os únicos registros indicam que ambos começaram em 1913. O Caprichoso, foi fundado em 20 de outubro de 1913, tem as cores azul e branco e é representado por um boi preto com uma estrela azul na testa. Nasceu em Manaus e depois foi levado para Parintins. Seu reduto está localizado na parte baixa, a mais antiga da cidade. Já o Garantido foi fundado na Baixa do São José, em 12 de

A primeira notícia oficial sobre essa migração foi publicada em 1840, no jornal O Carapuceiro, do Recife. “O boi subiu a costa, veio pelo Piauí, Maranhão, Ceará, entrou na Amazônia, onde virou boi-bumbá”

junho de 1913, véspera do dia de Santo Antônio. “Corre em Parintins que o nome Garantido teria surgido numa das primeiras brigas entre os brincantes dos dois bois. Na briga, o chifre do Caprichoso caía longe. O do Garantido ficava sem quebrar. E se dizia: ‘Nosso boi sempre sai inteiro. Isso é garantido!’. Outra versão: um certo repentista desafiou: ‘Este ano se cuide que eu vou caprichar no meu boi’. E alguém retrucou: ‘Pois capriche no seu, que eu garanto o meu!’”, conta o pesquisador. Independentemente das disputas que fundamentam o Festival, anuncia Freire, a briga do boi – “último templário da Amazônia”, o guardião da floresta – agora é chamar a atenção do país para a problemática amazônica: agressões ao meio ambiente, índios com os seus territórios cada vez mais reduzidos. “Não se pode permitir que o espetáculo seja desfigurado pela indústria do entretenimento, apesar da espantosa cifra que já movimenta. Por enquanto, com o povão entrando de graça no Bumbódromo e com as toadas tocando praticamente durante todo o ano nas ‘gaiolas’ – os imensos barcos de linha ou ‘ônibus fluviais’ da Amazônia –, a tradição mantém seu caráter popular. Na tribuna de honra e nos poucos camarotes fechados – e pagos –, os convidados especiais e as estrelas televisivas ainda não são os donos da festa, mas apenas perplexos e alegres espectadores”. • Isabelle Câmara é assistente de edição da Revista Continente.

Festival Folclórico de Parintins Quando: dias 28, 29 e 30 de junho de 2003 Onde: Centro Cultural de Parintins (Bumbódromo), Amazonas - cerca de 325 km de distância de Manaus. Maiores informações: Secretaria de Turismo de Parintins: (92) 533. 3109; Secretaria de Turismo do Amazonas: (92) 233.9973; www.parintins.com

“Para ser porta-estandarte a cunhã tem que ser bonita e saber dançar as toadas”, ressalta Edílson Freire

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A Lowell de Jack Kerouac Fotos: Marcelo Abreu

“Tive uma bela infância, meu pai era tipógrafo em Lowell, mas, perambulava pelos campos e pelas margens dos rios dia e noite, escrevia pequenos romances no meu quarto, o primeiro aos onze anos, mantinha também longos diários...”. É assim que Jack Kerouac começa a expressar no livro Viajante Solitário seus sentimentos em relação a Lowell, a cidade onde nasceu, no norte do estado de Massachusetts, costa leste dos Estados Unidos. Com seus prédios de tijolos vermelhos, velhas indústrias e altas chaminés desativadas, calçadas semidesertas e tranqüilos bairros residenciais de casas de madeira à margem do rio Merrimack, Lowell é um desses lugares onde parece muito improvável ter sido gerado qualquer criador de um movimento literário revolucionário como a Beat Generation. Nada no ambiente operário das primeiras décadas do século 20 faria prever o surgimento na cidade de um rapaz que escreveria On the Road – Pé na Estrada, livro que forneceria a inspiração necessária para poder colocar uma geração inteira à procura da poesia de uma vida nômade. Da mesma forma, ninguém poderia prever que, depois de consagrado como o escritor que popularizou o mito das viagens hedonísticas, como o artista fundamental que estabeleceu as bases para a Continente junho 2003

No estado de Massachusetts, uma pequena cidade industrial homenageia o escritor que colocou a geração dos anos 60 na estrada Marcelo Abreu


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A casa na rua Lupine, onde nasceu Jack Kerouac, em 1922 Foto: Reprodução

sensibilidade boêmia do movimento beat e da geração dos anos 60, Kerouac fosse tão ligado à suas origens provincianas a ponto de voltar a morar em Lowell, na casa da mãe, em vários momentos de sua vida – e acabar vivendo seus dois últimos anos também na cidade. Lowell foi a primeira cidade criada para abrigar a então nascente indústria têxtil norte-americana. Localizada a 45 quilômetros ao norte de Boston, foi fundada em 1826 para aproveitar as águas do rio Merrimack, que rodavam os moinhos que processavam a extração do algodão para a indústria têxtil. A cidade passou a atrair trabalhadores imigrantes, inicialmente ingleses, escoceses e irlandeses. Depois, gregos e poloneses. Mais recentemente, cambojanos, vietnamitas e até brasileiros que fazem negócios na área de Boston. A cidade viveu seu apogeu durante meados do século 19, quando liderava a produção têxtil no país. Chegou a ter 120 mil habitantes mas já se encontrava em decadência quando Kerouac veio ao mundo em março de 1922. Kerouac nasceu em uma família de imigrantes canadenses que haviam fugido da perseguição no Québec. Eram, portanto, falantes do francês. Os ancestrais de seu pai vinham da Bretanha, na França, e se consideravam celtas, tema que no futuro viria a despertar muito interesse no escritor. A família Kerouac havia se estabelecido em Centralville, o bairro mais simpático de Lowell que concentrava a população francofônica no norte da cidade. Foi lá onde Jean Louis Kirouac (assim foi registrado) nasceu no número 9 da rua Lupine, em uma casa de madeira ainda existente, construída com dois pavimentos no estilo bangalô do começo do século passado. Desde pequeno, Kerouac conta em seus livros, sempre conviveu em um ambiente multiétnico, com amigos de várias origens. Ele mesmo, conhecido como “Ti Jean” – algo como “Joãozinho”, no francês falado na Nova Inglaterra – só aprenderia o inglês na escola, a partir dos sete anos. Ao longo da vida, andou com amigos de origem italiana, polonesa e judia, namorou com a “irlandesa” Maggie Cassidy (Mary Carney, na vida real) e casou-se no fim da vida com a “grega” Stella Sampas. Numa tarde de verão, um passeio a pé por Centralville revela, além da casa de nascimento, duas outras residências onde a família Kerouac viveu ao longo dos anos 20 e 30. Kerouac moraria em Lowell até 1939, quando seguiria para Jack Kerouac em 1953, quando escrevia Os Subterrâneos

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92 CENÁRIOS Nova York para concluir os estudos secundários e depois encontrar a sua turma de boêmios escritores na Universidade de Columbia (Allen Ginsberg, William Burroughs, Gregory Corso). Mas foi ainda em Centralville que o menino Jack desenvolveu seu catolicismo fervoroso – que mais tarde misturaria com influências budistas – seu interesse por futebol americano e pela vida dos vagabundos que, naquela época, ainda percorriam o país em cima de trens. Adolescência – Como testemunho dos seus anos de vida em Lowell, ficaram cinco livros – todos autobiográficos – que se passam na cidade. No primeiro, Lowell é a cidadezinha de The Town and the City (1950), o único romance de Kerouac escrito antes dele descobrir a chamada “prosa espontânea”. Depois viriam os romances sobre a infância e adolescência como Maggie Cassidy e Dr. Sax (ambos de 1959), Visions of Gerard (1963), Vanity of Duluoz (1968). Livros que transmitem a imagem de uma Lowell gelada em noites de inverno, onde o menino Jack passava o tempo acompanhando o futebol americano pelo rádio, idolatrando o irmão Gerard (que morreria ainda criança), indo a bailes e ao cinema com sua irmã mais velha, Caroline. Curiosamente, esses livros que se passam em Lowell são os menos conhecidos no Brasil. Nenhum deles foi traduzido para o português, ao contrário dos mais movimentados livros da “fase da estrada”, que saíram no Brasil nos anos 80, como On the Road – Pé na Estrada, Viajante Solitário, Big Sur, O Livros dos Sonhos e Os Subterrâneos. Da primeira fase de sua vida resultaram obras de reminiscências intimistas, sobre os sonhos e a timidez da juventude, a influência católica da família, os amigos, os esportes, o rádio, os pequenos prazeres da vida interiorana e os primeiros desejos de cair fora. Em Maggie Cassidy, onde narra seu maior amor da adolescência, Kerouac se reporta a um mundo de casas de madeira rodeadas por grandes jardins. No terraço de uma delas, ele namorava Maggie. Em algumas noites, ficava com a namorada até tarde e perdia o ônibus que o levaria de volta a seu bairro distante. Caminhando os quatro quilômetros de volta à sua casa, por ruas silenciosas, no rigoroso frio de inverno do nordeste dos Estados Unidos, Jack se imaginava como “um viajante de um lugar distante procurando um lugar para dormir”. Grandes caminhadas se tornariam um hábito na sua vida, quando passou a percorrer cidades em várias partes dos Estados Unidos e da Europa, sonhando sempre em voltar a Lowell e encontrar Mary o esperando na janela de uma “cabana coberta de rosas”. “Eu estava indo pra casa em outubro. Todo mundo vai pra casa em outubro”, diz Sal Paradise, o personagem que representa Kerouac em On the Road, mostrando que no meio de suas aventuras continentais, a cidade natal e o conforto de casa nunca lhe fugiam da memória. Reclusão – Depois de anos na estrada, vivendo períodos variados em Nova York, São Francisco, Cidade do México, na Carolina do Norte e na Flórida, Kerouac voltaria a Lowell para morar em 1967 com o objetivo de cuidar da mãe doente. Quando a vida boêmia dos hipsters dos anos 40 e 50, profetizada em On the Road, agora se tornava realidade para muitos, com os hippies no chamado “verão do amor”, Kerouac era já um homem precocemente envelhecido, com apenas 45 anos de idade. Viveu dois anos em Lowell, amargurado e alcoólatra, passando o tempo entre os livros da Biblioteca Pollard e o Nicky's Bar. Morreria logo depois, em 1969, em St. Petersburg, na Flórida. Lowell, que hoje luta para recuperar as glórias do passado e tenta restaurar a pitoresca arquitetura dos anos da indústria têxtil, homenageia seu único filho fa moso com o festival Lowell Celebrates Kerouac, que ocorre sempre no mês de outubro, aproveitando a menção ao mês em On The Road, o mais famoso livro do escritor. Continente junho 2003

Muito presente na vida do centro da cidade é a Lowell High School, o colégio onde Jack fez seus estudos secundários. Existe também no centro uma exibição permanente sobre a vida dos trabalhadores que ao longo dos últimos 180 anos fizeram a vida da cidade. A mostra, intitulada Exibição da Classe Trabalhadora de Lowel, mantida pelos guardas florestais do Serviço Nacional de Parques num velho prédio industrial restaurado, dedica uma sala a Kerouac. Lá pode observar-se uma velha máquina de escrever Underwood, utilizada para datilografar seus livros, e alguns apetrechos usados em viagens pelo país e durante as temporadas de isolamento em montanhas, quando trabalhava como guarda florestal: uma


Conhecimento CENÁRIOS 93

Acima, o parque em homenagem a Jack Kerouac; no centro de Lowell, à direita, Biblioteca Pollard, frequentada por Kerouac em vários períodos de sua vida, e abaixo, Lowell High School onde Kerouac estudou, antes de se mudar para Nova York. Ao lado, vista de Lowell

O rio Merrimack e as usinas desativadas de

mochila de lona clara, um conjunto de caçarolas, um kit de costura, um abridor de garrafas de vinho, entre outros objetos. Em 1988, foi inaugurado em Lowell o Jack Kerouac Commemorative Park, uma praça no meio da qual o artista plástico Ben Voitena ergueu um parque de esculturas em granito e aço. As esculturas, em formas de grande painéis, estão dispostas em círculo, formando uma mandala para representar a influência do zen-budismo no católico Kerouac.

Nos painéis estão escritos trechos de seus principais livros. Se a contradição muitas vezes é combustível para grandes Fo to: Re pro obras, Kerouac tem tamdu ção bém as suas: o menino, que aprendeu inglês tardiamente, tornarse-ia um mestre na exploração dos recursos fonéticos de sua segunda língua, usando na prosa e na poesia muitas onomatopéias e outros recursos sonoros que dão ao seu

texto uma intensa dimensão musical. O caroneiro, o amante da poesia, das luzes da cidade grande e das carrocerias de caminhão sob as estrelas, o viajante intrépido que colocou uma geração inteira na estrada, não conseguia se libertar de seus laços com a vida simples do interior, com o conforto da casa dos pais. Mas Jack Kerouac nunca teve grandes pretensões. Na introdução de Mexico City Blues, ele afirma: “Quero ser considerado apenas um poeta do jazz, soprando uma longa melodia numa jam session vespertina”. Marcelo Abreu é jornalista. Continente junho 2003

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NO BRANCO

Livro esquece autores que deram importante contribuição crítica à obra do sociólogo pernambucano Fernando da Mota Lima

SOBRE GILBERTO FREYRE DE A A Z Um dado notável no livro que Edson Nery dedica a Gilberto Freyre reside no crédito concedido a uma infinidade de autores ocasionais cuja contribuição para o estudo da vida e obra de Freyre é nula. Ilustres desconhecidos são aquinhoados com verbetes extensos tão-só por merecerem prefácio cordial de Gilberto Freyre quando da publicação de alguma obra obscura. Noutros casos, figuram no dicionário dada a razão aparente de terem escrito algum artigo ou ensaio de ocasião em louvor do mestre de Apipucos. A inclusão de tais autores seria acaso justificável na hipótese de Edson Nery adotar, para a composição do dicionário, um critério cuja abrangência favorecesse tanto a quantidade quanto a qualidade dos nomes contemplados. Considerada, porém, a omissão de nomes merecedores de registro obrigatório em obra de semelhante natureza, tal a qualidade inegável da contribuição efetivamente crítica que trazem ao estudo da obra de Gilberto Freyre, fica evidente a omissão e parcialidade do livro. Ilustrando um pouco o que a obra encerra de omissões inexplicáveis, como entender a ausência de verbetes referentes aos modernistas de São Paulo e aos representantes da escola paulista de sociologia liderada por Florestan Fernandes? A não ser que se entenda a obra e a vida de Gilberto Freyre como uma seleção arbitrária de nomes, fatos e registros anedóticos, há que situá-las na interação viva com as idéias e autores que lhes especificam o perfil histórico. Ora, a obra capital de Freyre emerge num período assinalado por amplas mudanças culturais. O Modernismo, compreendido enquanto processo de renovação literária e sobretudo cultural, condensa as grandes questões e realizações do período. Daí considerá-los indissociáveis. Tanto é verdade que Freyre se declarou modernista, embora tradicionalista e regionalista, como admitiu ao frisar a particularidade da sua inserção no movimento cultural da época. A presença de Mário de Andrade, por exemplo, é tão inevitável que, se de um lado Edson Nery lhe recusa um verbete próprio, de outro vê-se forçado a citá-lo mais de uma vez em verbete alheio. Passando ao plano da Sociologia e da História Social, sabese que a interpretação do Brasil proposta por Freyre compete sobretudo com as de Sérgio Buarque de Holanda e a de Caio Prado Jr., além de, a partir dos anos cinqüenta, confrontar-se Continente junho 2003

com a obra de Florestan Fernandes e em seguida a dos seus discípulos. Boa parte dos estudos sobre o assunto envolvem direta ou indiretamente as visões do Brasil propostas por esses autores. As referências que faço, meramente indicativas, têm o propósito de sugerir o contexto intelectual e ideológico dentro do qual a obra de Freyre deve ser considerada. Edson Nery passa ao largo de tais questões, expondo-se assim ao risco de compor uma obra restrita à dimensão do verbete de curiosidades e registros anedóticos. Outro aspecto fundamental da obra de Gilberto Freyre liga-se às controvérsias e contestações que inspirou. É surpreendente, portanto, a completa omissão de autores cujo mérito é inegável. Dante Moreira Leite foi dos primeiros a investir contra as interpretações fundadas na noção de caráter nacional. Identificando em Gilberto Freyre um dos alvos da sua análise, antecipou o movimento de negação crítica procedente de São Paulo. Seguem-no Carlos Guilherme Mota e outros representantes da esquerda uspiana. Do Rio irromperam vozes discordantes como a de Luiz Costa Lima e Luiz Antônio de Castro Santos. Este, aliás, mereceu de Edson Nery um artigo áspero publicado no periódico Ciência e Trópico. É impossível citar todos os críticos de Gilberto Freyre. Devo, porém, ressaltar as omissões maiores do dicionário. Tornam-se elas ainda mais estranháveis quando considero que o autor teve a liberalidade de dedicar um verbete a Assis Claudino, talvez o crítico mais estreito e panfletário de Gilberto Freyre. Também Joaquim Inojosa é brindado com um verbete. Sua importância histórica é inegável. Não obstante, era um modernista de palanque, tão medíocre que se distingue por ser

“A não ser que se entenda a obra e a vida de Gilberto Freyre como uma seleção arbitrária de nomes, fatos e registros anedóticos, há que situá-las na interação viva com as idéias e autores que lhes especificam o perfil histórico”


PRETO NO BRANCO 95 “Se este (Freyre) teve comportamento ideológico deplorável durante a vigência da ditadura militar, seus críticos e inimigos ideológicos foram de uma intolerância grosseira, impondo-lhe em muitas universidades um silêncio de duas décadas”

um diluidor da primeira hora. Os modernistas de São Paulo nunca o levaram a sério. Que critério justifica a inclusão desses autores no dicionário enquanto Moreira Leite, Luiz Costa Lima e outros de importância similar são omitidos? Voltando ao tema das muitas controvérsias suscitadas pela obra de Freyre, um livro como o de Edson Nery deveria não apenas registrá-las, mas também indicar o ritmo de suas oscilações, nestas incluídas atos de mea culpa e revisões públicas como as tantas manifestas à volta do centenário de Freyre. Afinal, se este teve comportamento ideológico deplorável durante a vigência da ditadura militar, seus críticos e inimigos ideológicos foram de uma intolerância grosseira, impondo-lhe em muitas universidades um silêncio de duas décadas. Dando provas de que somos um país sem nervura ética e ideológica, críticos implacáveis e intolerantes de ontem somam-se hoje ao coro dos louvadores acríticos. O que fazem, em suma, é meramente inverter o sinal da adesão intolerante e iletrada. Passando à cena internacional, soa também estranhável a omissão de vários estudiosos. Digo estranhável por saber que o autor tem pleno conhecimento do assunto. No seu artigo polêmico contra Castro Santos antes citado, ele arrola muitos sobre os quais inexplicavelmente silencia no dicionário. É o caso de Alistair Hennessy, autor de uma excelente resenha crítica publicada no Times Literary Supplement. Escrita com o fim de saudar a republicação da trilogia de Freyre, Hennessy a revisa com fino discernimento crítico. Acrescento a esta omissão mais algumas igualmente graves: David Haberley, autor de excelente estudo sobre literatura e relações raciais no Brasil, Thomas Skidmore, Eugene Genovese, Ludwig Lauerhass Jr., Daniel Pécaut. A prata da casa é a mais generosamente aquinhoada no conjunto do dicionário de Edson Nery. Dado o fato de que o autor a tantos distingue com sua apreciação generosa, como explicar a completa omissão de muito do que na cena local se publicou sobre Gilberto Freyre? A insuficiência de espaço impede-me de anotar as omissões referentes a este tópico, assim como ao pertinente à produção nacional recente. A matéria de alguns verbetes merece correções. No verbete referente a Hermilo Borba Filho, Edson Nery erra ao entender que O Cavalheiro da Segunda Decadência é um romance publi-

cado em 1967. Na verdade, o título foi escolhido por Hermilo para designar uma tetralogia composta pelos seguintes romances: A Margem das Lembranças, A Porteira do Mundo, O Cavalo da Noite, Deus no Pasto. Noutro verbete, dedicado a Otávio de Freitas Júnior, o autor menciona o prefácio que Mário de Andrade escreveu para Ensaios do Nosso Tempo. Erra porém ao afirmar que o prefácio de Mário de Andrade foi agregado ao volume O Empalhador de Passarinho, já que de fato ele é parte de um outro livro: Aspectos da Literatura Brasileira. Verbete merecedor de revisão mais séria é o que dedica a Luís Roberto Salinas Fortes. Antes de registrar a colaboração de Salinas Fortes integrada a Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte, escreve candidamente o autor: “Infelizmente, faltam-nos informações sobre este estudante de Direito de São Paulo na década de 60...” Ora, este suposto desconhecido foi professor de História da Filosofia da USP, além de bastante citado devido a alguns livros que publicou. O mais divulgado foi com certeza O Iluminismo e os Reis Filósofos, volume integrante de uma coleção ainda muito popular publicada pela Brasiliense. Discípulo de Claude Lefort, traduziu conjuntamente com Marilena Chauí um conjunto de ensaios assinados por seu mestre, reunidos no volume intitulado As Formas da História. Interrompo por aqui a lista das omissões, antes que o leitor erradamente entenda mover-me neste artigo o propósito de lançar sobre o autor mais fatos, muitos até miúdos e dispensáveis, do que argumentos de peso. Se me detive na indicação de tantas fontes omissas foi por dever de fundamentar minha crítica. Mais que tudo, intento captar por sob a rede de lacunas identificáveis na obra um critério coerente de composição. Chegado a este ponto, depois de tantos fatos e argumentos acumulados, devo concluir pela ausência de um tal critério. Em suma, a obra de Edson Nery padece de uma insuficiência estrutural: a ausência de um princípio de composição passível de imprimir-lhe organização consistente e qualidades críticas que a credenciem como fonte de referência essencial para o estudioso da obra e vida de Gilberto Freyre. • Fernando da Mota Lima é professor de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Continente junho 2003


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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Cara de palhaço Está na hora de convocarmos os curupiras, caiporas e sacis

A economia, longe, muito longe, explode nos arsenais capitalistas internacionais, a imprensa noticia, e o vento cospe todas as migalhas de desenganos somente sobre as cabeças emergentes do nosso pobre povo – trabalhadores e servidores públicos estaduais e federais, filhos de um Deus, que ainda insistimos em nacionalizá-lo brasileiro. De quem é a culpa dos juros altos, do déficit na nossa balança comercial, da queda dos investimentos externos, da dívida interna, da falência dos Estados, da malversação do dinheiro público e de sua apropriação indébita? Quem ficou rico com os bens do povo?... Ora, ora, não sabem? O barnabé – tanto o ativo como o inativo. Sim, foram eles! Vilões vagabundos, impuros objetos do atraso e desqualificação da nação, que atropelam os brilhantes projetos do governo para reestruturação da máquina administrativa, criando o caos econômico-financeiro nacional, num profundo desrespeito à ordem e ao progresso do País. Agora, nossos políticos e tecnocratas, não! São briosos defensores da pátria e vivem, isto sim, a lutar com seriedade e competência para salvar nossa terra castigada por esses energúmenos seres de repartição pública que, há anos, só fazem sucatear nosso Tesouro!... Está na hora de convocarmos os curupiras, caiporas e sacis, bois-zebus e aparentados, com mandingas e sem quimbandas conversadoras, num esforço concentrado e sem jetons, a comparecerem às sessões extraordinárias do novo Congresso do Povo, a fim de ser resgatada a dignidade do poder maior. Afinal de contas, os servidores têm que pagar caro pelos descalabros econômicos causados, pelo desemprego e pela violência desoladora que cobre esta terra descoberta por Cabral (ou Pinzón), sem reza, sem vergonha. Quem mandou passarem a vida recolhendo, honestamente, suas contribuições para a Previdência? Por

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isso, hoje, são tratados pelos barbudinhos do PT como responsáveis pelo endividamento do País. Bem feito! Quem mandou acreditar nos homens!... O nosso popular presidente Lula, lá, vai taxar os súditos inativos do serviço público e aumentar a arrecadação do Brasil, desesperando viúvas ingênuas e órfãos famélicos. E os mesmos 3% dessa maldita elite que nos consome há anos-luz, está necas de pitibiribas ligando para as classes desprotegidas – tão louvadas pela paz e amor. Pode? Por demais, danado, caros trabalhadores, é termos que nos “mirar” nessa elite parlamentar. Batalhadores indefesos em prol do desenvolvimento estatal e pela melhoria das condições de vida do povo. Indormidos, roçam os calcanhares dos tecnocratas de cachimbo a se maravilharem com as escolas dos Taylor e dos Galbraith do mundo e de outros bichos. O que importa é o trabalho – dizem eles – e nada mais. Empurram suas teses macroeconômicas goela abaixo da gente, misturam estética com ética e fecham os olhos aos rapineiros do patrimônio da União – cuidam, sim, imediatamente, é deles mesmos, nunca punindo os verdadeiros culpados. E nós que arquemos com o ônus da prova. Austeridade é bom, mas com justiça. Aí o povo gosta. Não confundamos, porém, alhos com bugalhos. Já está no tempo do povo saber quem são os responsáveis pelos desmandos na nossa conta-corrente revirada. Ou, então, entreguem-se ao comodismo e ao velho cala-boca – instituição secular da repressão muda, todavia bem usada pelo autoritarismo manhoso dos “donos da bola” antigos e atuais. Ou que fique com cara de palhaço, pinta de palhaço, roupa de palhaço... Até o fim. Num amargor sem fim. • Rivaldo Paiva é diretor geral do Suplemento Cultural.




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