Continente #031 - O eu virtual

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EDITORIAL

Foto: Divulgação

Real x virtual, utopia ou pesadelo

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os primórdios da Revolução Industrial, o Parlamento inglês aprovou uma lei condenando à morte quem destruísse uma máquina. Hoje, discutem-se a inteligência artificial e suas implicações éticas e morais, enquanto as possibilidades abertas pelos avanços na biotecnologia e na teleinformática tornam plausível um futuro em que cada um poderá escolher a realidade virtual na qual prefere viver. Por outro lado, teorias recentes afirmam que a natureza do universo é digital e já se fala no homem pós-orgânico, conectado a uma rede planetária de informações, o que certamente leva a uma nova maneira de ver o mundo. Para discutir perspectivas tão desconcertantes quanto atuais, pensadores como os franceses Jean Baudrillard e Edgar Morin se posicionam diferentemente: o primeiro, vendo o homem cada vez mais perdido de si mesmo; o segundo, considerando que o ser humano sempre se adapta ao que produz, e

pode fazer os mundos virtual e real interagirem. Ainda dentro da rede, o norte-americano John Perry Barlow, professor de Harvard, acende a polêmica sobre copyright ao defender o uso gratuito de textos e músicas na Internet, por considerá-los bens imateriais, ao contrário do disco e do livro, estes sim, objetos materiais passíveis do controle de direito autoral. São temas de grande atualidade e graves repercussões, merecedores de um tratamento aprofundado que Continente procura oferecer aos seus leitores, ouvindo com exclusividade filósofos, historiadores, matemáticos, antropólogos e outros especialistas que discutem se a imbricação entre o mundo real e virtual é um pesadelo ou uma utopia. Entre outros temas de várias áreas, esta edição aproveita o lançamento próximo de um filme, baseado numa história despretensiosa de Osman Lins, para focalizar a revalorização da obra experimentalista do escritor pernambucano, cujo 25º aniversário de sua morte registra-se neste mês de julho. •

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CONTEÚDO Foto: Divulgação

Foto: Reprodução

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Débora Falabella interpreta Lisbela

A arquitetura monumental dos ditadores (Varsóvia)

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ESPECIAL

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08 Filmagem de peça traz Osman Lins de volta »

CINEMA 20 Vida de Apolonio de Carvalho vira filme

DANÇA 66 Grupo Grial evolui e parte para a sede própria Mostra de Dança traz ao Recife bailarinos de vários Estados

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MÚSICA 71 A gramática inata e universal dos sons

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TRADIÇÕES 28 Museu reúne toda forma de escultura popular

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Antonio Candido, um exemplo de elegância As Suítes Brasileiras de Carlos Pellicer

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CONVERSA 50 Norte-americano defende Internet livre de leis restritivas

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monumentos »

CAPA 54 Baudrillard e Morin discutem a morte do Eu real

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REGISTRO 86 Açucareiros revelam gosto pelas formas belas

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ARTES 42 Tereza Costa Rego pinta sua visão dos bordéis

URBANISMO 78 Como as ditaduras substituem o passado por

LITERATURA 32 Lautréamont vira personagem de romance

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CULTURA 90 Empresas descobrem que é bom investir em arte

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PRETO NO BRANCO 94 Subirats aponta o pós-modernismo em Oswald de Andrade


Foto: Hans V. Manteuffel/ Divulgação

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Foto: Breno Laprovitera/ Divulgação

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O bordel imaginário de Teresa Costa Rego

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A expansão da dança armorial

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Educação pela educação não tem sido o melhor caminho

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 Universidades e academias deveriam ser renovadas

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 48 A expressão estética é mais que o efeito técnico

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 A evolução de talheres e etiquetas na boa mesa

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 76 Regionalista, hoje, é a arte que se faz fora do Sudeste

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 89 Cheio de graça e ironia, assim foi Drummond

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 São os Severinos brancos, pretos, amarelos

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert

Continente Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores André de Sena, Betânia Uchoa Cavalcanti Brendle, Carol Almeida, Daniel Piza, Eduardo Subirats, Ermelinda Ferreira, Ernesto Barros, Everardo Norões, Felipe Porciúncula, Jarbas Maciel, Luciano Trigo, Maria Filonila dos Santos Dias Regueira, Rodrigo Carrero, Tatiana Resende, Tereza Costa Rêgo Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Douglas Rocha Borba, Cláudio Manuel, Elizabete Correia, Eliseu Barbosa, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente julho 2003

Julho Ano 03 | 2003 Foto: AGE. Francois Brunelle

Gilberto Freyre de A a Z O artigo do professor Fernando da Mota Lima, publicado na edição de junho, me fez lembrar a crítica de um jornalista recifense ao filme de Nelson Pereira dos Santos Gilberto Freyre, o Cabral Moderno: a de que ele não ouvira os grandes amigos de Gilberto Freyre. Nelson respondeu que tinha o direito de não seguir o modelo de outros cineastas que fazem de seus documentários uma sucessão convencional de depoimentos. O que Freud certamente esclareceria era estar o jornalista despeitado por não ter aparecido no filme. Responsável pela cátedra Gilberto Freyre da UFPE e julgando-se, como tal, dono do assunto, o que o professor Fernando da Mota Lima desejaria era ter sido verbetizado em meu dicionário. Como não foi, acusa-me de restringir-me a “curiosidades e registros anedóticos” e indica omissões, inevitáveis em todo dicionário. Como professor de Sociologia, não devia ter omitido o fato do dicionário incluir verbetes temáticos como, por exemplo, raça, cultura, alimentação, medicina, islamismo, escola de Chicago, Franz Boas, Max Weber, Georg Simmel, etc. Na segunda edição do livro aproveitarei, agradecido, algumas de suas indicações que desconhecia, como, por exemplo, as referentes a Luis Roberto Salinas Fortes, Outra não, porque, ao contrário da ausência de critério de que me acusa, procurei incluir, entre os verbetes antroponímicos, os autores de livros, opúsculos e contribuições em obras coletivas sobre Freyre, de livros e opúsculos por ele prefaciados e prefaciadores de seus livros. Edson Nery da Fonseca – Olinda – PE Mil e Uma Noites Já se passaram uns bons anos, mas não esqueço as palavras de Ariano Suassuna, ditas num tom de desabafo, em um artigo de jornal. Ele afirmava (e que me perdoe se minhas palavras não forem tão fieis às dele) que iria parar de escrever, pois num mundo onde um ator de Hollywood (Ronald Reagan) estava no comando do mundo como num filme de faroeste, não havia lugar para o bom senso. E acrescentava que preferia um aiatolá que, pelo menos, seguia fundamentos religiosos, a um outro que, por interesses econômicos, punha em risco a paz, a frágil paz mundial. E agora, Ariano? E agora, nós? Quem responde a essas perplexidades do diaa-dia é Ronaldo Correia de Brito, magistralmente, no artigo As Mil e Uma Noites Nunca Mais (edição de junho): estamos hoje entregues aos bombardeios mentais do Sr. Bush. Vanusa Sá Leitão – Recife – PE Site Gostei muito do site e adoro a Revista Continente. Andrea Veruska – por e-mail


CARTAS Drummond Espero que a Continente continue inovando os conceitos de cultura e mostrando que Pernambuco e o Nordeste em geral podem mostrar muito mais que praias espetaculares. Embora um pouco atrasado, gostaria de agradecer pela revista com Drummond na capa. Só pude lê-la há pouco tempo, mas estou tranqüilo, pois Drummond é eterno. Ivanilson Martins – Olinda – PE

Apaixonada Sou apaixonada pelo nosso estado, principalmente, pela nossa cultura. Sou designer, formada há três anos pela UFPE e atuo na área de editoriais num escritório de design, no Recife. Por isso, além de gostar do trabalho editorial de vocês, todos os assuntos abordados são de grande interesse e utilidade para minha vida profissional. Roberta Maranhão – Recife – PE Iniciativa Tenho admirado a Revista e a iniciativa cultural, mais do que necessária, não só em nosso Estado, como em qualquer parte do mundo. José Eduardo Ferreira Alves – por e-mail DJ. Conheci a Revista de vocês, por acaso, e adorei! Curto todas as matérias. Gostaria de fazer um pedido: que tal uma matéria sobre o DJ Dolores? Renata Ribeiro Mattos – por e-mail

Woody Allen Sou fã do cineasta norte-americano Woody Allen e fiquei supercontente com a edição de junho da Continente, que o traz na capa. Uma ótima entrevista com ele mostra o quanto é despretensioso. Os dois artigos críticos que complementam a entrevista são também muito bons. Parabéns. José Carlos Nascimento – São Bernardo do Campo – SP Música Sensacional o artigo de Guilherme de Alencar Pinto (Loco por ti, América, edição de junho), sobre música latino-americana. Mostra de forma cabal como tem sido pobre o relacionamento cultural entre os países da nossa América, o que é uma pena. Gabriela Moraes – Brasília – DF Importância Comecei a ler a Continente faz pouco tempo, mas o suficiente para saber da importância desta Revista na minha vida. Estou passando por uma fase meio difícil, perdi minha única filha de três anos no Natal. Faz quatro meses que venho procurando me levantar. Graças a essa revista, venho conseguindo melhorar, pois ela me leva para um mundo mágico de sabedoria. Adorei saber que vocês existem. Nunca uma Revista me emocionou tanto como a Continente. Adorei a que traz matéria sobre Carlos Drummond de Andrade (edição de novembro de 2002). Marylin Neto – por e-mail Identificação Conheci a Revista Continente numa palestra promovida pelo Fórum de Museus e a identificação com o trabalho de vocês foi imediata. Parabéns pela Revista. Lana H. Reis Raposo – por e-mail

Fotografia Gostaria de parabenizar a todos que fazem a CEPE e a Continente, principalmente pelas fotografias do Cristo Rei de Buíque (edição número 28), maravilhosas! Maria de Fátima Velloso – por e-mail Artigo Excelente o artigo de Fred 04 e Renato L (edição número 28). É preciso que o leitor, e quem gosta de cultura em geral, fique por dentro dessa conversa, a fim de saber quem é reacionário na cultura. João – por e-mail Fluxus Matéria magnífica (Fluxus, uma tola pretensão, edição número 28). Sem o que tirar ou pôr. E não serve apenas ao movimento Fluxus, mas a muita arte que se faz ainda hoje por aí. Parabéns a Ferreira Gullar pela lucidez cortante. Rodrigo Petrônio – por e-mail Marketing A Revista Continente está se transformando no melhor cartão de apresentação editorial de Pernambuco. Todavia, não vejo a briosa classe empresarial pernambucana, através das agências de publicidade, marcar presença na Revista. Acho que está faltando investimento num trabalho de marketing mais agressivo. Patrício Macedo – Brasília –DF Melhor É incrível como vocês conseguem manter a qualidade e até aumentá-la, a cada número. O trabalho que estão fazendo pela cultura brasileira é digno de toda a atenção. Sigam em frente! Amadeu Bueno – Fortaleza – CE Sucesso O Brasil está precisando dessa qualidade. Muito sucesso, muita garra e disposição. Claudemir – por e-mail

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Deslumbre Estou deslumbrada com a Revista Continente. A edição de fevereiro está particularmente brilhante. Marta Ferraz – João Pessoa – PB Desafio O desafio de um texto crítico, com o pesar do jugo de um esperado julgamento. E ainda maior, o desafio da liberdade metódica aliada à necessidade de síntese. Falar de uma revista que funciona como um farol, ora omite, brilha, ora ofusca, mas que cumpre uma função de centralizar diálogos em torno de lugares, não comuns, mas de comunhão, abrindo espaço para discussão de uma cultura presente, tentando somar a contemporaneidade, uma (em tempos de barroquismos pós-modernos, por que não?) memória cibernética. Ter que andar na tênue linha que separa textos muitos curtos com abordagens simplórias, dos eruditismos herméticos. Propor-se dinâmica e nacional em terras cuja cultura, de tão forte, tende a uma certa rigidez de horizontes que induz, por vezes a uma estaticidade de temas e conceitos. A arte de agradar a todos sem se render a gostos particulares. Claro que, como referencial, qualquer revista teria seus revezes. Talvez a grande lacuna seja de caráter político, algo que se relaciona com o fato de ser uma revista angariada pela União. Longe das questões partidárias, esta observação alerta para a distância existente entre a produção e propagação de determinados eventos que tenham uma relação mais direta com as questões sociais. Não se trata de baixar a qualidade intelectual da revista para tornála mais acessível, o que seria inadmissível. Mas, sim, de sua responsabilidade política, a qualquer meio de comunicação, já que estamos em um país em eterna crise com sua cultura, e com quem tem (ou não) acesso a ela. Gustavo Fontes – por e-mail Errata Na matéria Mutações brasileiras da edição passada, o cientista social e brasilianista Kenneth Maxwell foi dado como de nacionalidade norte-americana quando, na realidade, ele é britâbritânico e trabalha nos EUA. Continente julho 2003

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

Valham-me todos os santos Educação pela educação não é o melhor caminho para a salvação

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char que a educação é o único e o melhor caminho para a mobilidade social é uma coisa tão óbvia que dá para desconfiar. Trata-se de unanimidade. Valei-me, Nelson Rodrigues (toda unanimidade é burra). Acreditar que a educação é a única alternativa para o conhecimento é desperdício. Todos admitem saber disso. Valei-me, Sócrates (só sei que nada sei). Se a premissa é verdadeira, por que no Brasil essa questão nunca foi resolvida? Valei-me, Arc (o marciano). Os resultados apontam que a educação pela educação não tem sido o melhor caminho para a salvação. Principalmente, quando se trata da população de baixa renda. É claro que estamos tratando de educação como política de inclusão social e não de exclusão, tal como a vigente no país, mesmo no Governo do PT. A realidade tem mostrado que qualquer solução que coloque a educação como um programa-mãe de um sistema de políticas sociais transformadoras, deve empacar nas deploráveis condições de vida em que se encontram as grandes massas, vítimas do desemprego, da miséria e da violência. As estatísticas oficiais do Governo e de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas e o Banco Mundial, mostram que o nível de pobreza no mundo e, particularmente, no Brasil tem piorado; e, o que se vê a olho nu, comprova que a mobilidade social inexiste. As favelas continuam a crescer para cima e para os lados. Habitações insalubres são construídas, agora de primeiro e segundo andares, em meio a esgotos, a céu aberto. A família cresce e se multiplica, mas ninguém deixa a favela. Ela colhe e acolhe todos. Ninguém mais escapa desse abrigo... sem futuro. É o determinismo préhistórico atropelando a história. Independentemente dos discursos oficiais, para que haja, efetivamente, inclusão social, qualquer programa estruturador tem que levar em conta, acima de tudo, as atuais condições sócio-econômicas da população. Com um nível de desemprego

atingindo 20 pontos percentuais, temos que continuar a nos valer de todos os Santos, pois é impraticável a existência de um programa de educação isolado que incorpore condições transformadoras. Qualquer política pública de restauração da dignidade humana, que tenha a educação como vetor de mobilidade social, esbarrará na iníqua e perversa distribuição de renda; na ausência de um programa de habitação e saneamento básico que crie moradias seguras, higiênicas e com espaço para se viver com o mínimo de dignidade; e, nas precárias condições físico-biológicas para a aprendizagem, considerando os graus de insuficiência alimentar da população. E que não se venha com exemplos dos Estados Unidos, da Coréia, do Japão e de alhures, pois a realidade de contexto de cada caso é deveras diferente. Diante das restrições impostas pela comunidade internacional, parece evidente que o grande nó da política econômica do Governo é a falta de articulação entre a política de estabilização (de curto prazo) e a política de investimentos para a retomada do crescimento. Nesse campo de contradições políticas, não pode haver sintonia entre curto e longo prazo. Entre não (gastar) investir e crescer. Valei-me, São Nunca. Assim, para que os programas sociais determinantes da mobilidade social germinem, além das pré- condições de estrutura e funcionamento com qualidade, faz-se imprescindível que o povo tenha as condições sociais básicas para assimilar seu conteúdo. Caso contrário, temos que explicar para os agnósticos que só nos resta continuar a nos valer de Nossa Senhora, pois continuamos a ter programas educacionais que legitimam a exclusão, cujos resultados para a sociedade continuarão sendo mobilidade social zero. • Carlos Alberto Fernandes, Diretor Geral.

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ESPECIAL

Fotos: Álbum de família

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Foto: Reprodução

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Obra do escritor pernambucano alcança, aos 25 anos da sua morte, reconhecimento acadêmico inédito no Brasil Rodrigo Carrero

OSMAN LINS

A maldição do experimentalismo A primeira metade do século 20 foi uma época farta em lendas rurais, especialmente nos municípios da Zona da Mata nordestina. Repleta de municípios habitados por gente simples e crédula, em geral trabalhadores dos engenhos da cana-de-açúcar, a região virou palco de histórias rústicas e fantásticas, que envolviam entidades sobrenaturais (Comadre Florzinha), tesouros enterrados (as famosas “botijas”) e histórias do cangaço. Uma dessas lendas martelou a memória do escritor pernambucano Osman Lins desde criança. Nascido e criado em Vitória de Santo Antão, a 51 Km do Recife, Osman tinha ouvido várias vezes, impressionado, a história de uma cabeça de cangaceiro que teria sido exposta e negociada na estação de trem de Palmares. Na época (década de 1930), o cangaço era perseguido violentamente nos grotões nordestinos, e os policiais encarregados de persegui-los – a chamada Volante – freqüentemente voltava das “caçadas” com esses troféus macabros. Osman Lins decidiu, em 1976, transformar a história, que tanto o havia fascinado na infância, em romance. A decisão, aliás, nasceu de um pacto com o dramaturgo Hermilo Borba Filho, amigo de 22 anos e intelectual tão respeitado quanto Osman. Hermilo crescera em Palmares e também era fascinado pela lenda. Os dois decidiram, então, trabalhar paralelamente em romances que tivessem a tal fábula macabra no centro do enredo. Aí entra em cena, contudo, outra tradição nordestina de peso: as maldições. Corria, nos engenhos canavieiros de Palmares e Vitória, que a história da cabeça decepada jamais deveria ser narrada por escrito. Quis o destino que a profecia se cumprisse: Hermilo morreu em junho de 1976, sem ter iniciado o livro. Já Osman, que chegou

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10 ESPECIAL a planejar A Cabeça Levada em Triunfo e escrever 140 páginas datilografadas de uma versão inicial, sofreu de câncer generalizado e deixou o livro inacabado. Osman Lins, um dos escritores pernambucanos mais experimentais – e, talvez por isso, mais conhecido fora do Brasil do que na própria terra –, morreu em julho de 1978, há exatos 25 anos. Vítima de uma maldição (seja de uma cabeça ou da sina de todo escritor que se recusa a fazer concessões), Osman Lins deixou uma obra mais estudada e raramente lida, mas extremamente respeitada. O nome de um dos mais ilustres filhos de Vitória de Santo Antão ganha, a partir de agosto próximo, uma rara chance de obter reconhecimento popular, com o lançamento do filme Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes. Já apresentada no teatro e na TV, a peça, escrita por Osman em 1961, é um dos textos mais acessíveis do autor, chegado a experiências literárias tão sofisticadas que a própria crítica brasileira custou a compreender inteiramente. “Lisbela foi um recreio, uma maneira que papai encontrou de aproveitar várias ‘histórias de matuto’ que ele ouviu quando menino, mas não tem laços com a obra literária que ele deixou”, atesta Ângela Lins, filha do romancista, que cuida do espólio deixado por Osman, junto com as irmãs Litânia e Letícia. Ângela não sonha com o reconhecimento popular: “Quem está acostumado a ler Paulo Coelho jamais vai entender um livro de Osman Lins”, garante. A opinião de Ângela Lins é respaldada por grandes nomes da crítica e da literatura. Basta dizer que Avalovara (1973), um romance experimental que narra o envolvimento de um homem com três mulheres, deixou o argentino Júlio Cortázar impressionado. “Se eu tivesse escrito esse livro, poderia passar mais 20 anos sem fazer mais nada”, elogiou. A admiração, por

As características universais e experimentais dos livros de Osman, escritos após o ano de 1961, representam exatamente o motivo pelo qual o autor não é celebrado, no Brasil, com o devido respeito que merece

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sinal, era recíproca: um dos amigos mais íntimos de Osman, o também escritor Gilvan Lemos, lembra que Osman praticamente o obrigou a ler O Jogo da Amarelinha, livro famoso do argentino. “Eu nunca tinha lido Cortázar, mas Osman estava entusiasmado com o livro. Li, achei bom, mas sinceramente Avalovara é melhor”, garante Gilvan. A comparação é justa, já que as duas obras são livros abertos, que podem ser iniciados de qualquer ponto que o leitor deseje. A diferença básica é que Avalovara foi erguido sobre o conceito do palíndromo, uma enigmática inscrição grega que pode ser lida em qualquer ordem e remonta ao século 1 d.C. Por isso, nas oito narrativas que compõem o livro, Osman Lins utiliza duas estruturas sobrepostas, um quadrado (representando os espaços físicos, um para cada uma das oito letras da inscrição – a ação vai da Roma antiga ao Recife, passando por Amsterdã) e um círculo em espiral (que representa o tempo, alinhavando as narrativas e entrecruzando-as). Sim, é um livro complicado, mas também delicioso. Pode ser lido com ou sem o rigor estético que impeliu o autor a definir o número de linhas de cada parágrafo antecipadamente (as aberturas de cada capítulos têm sempre 10 linhas). O próprio Osman, aliás, defendia enfaticamente a necessidade de uma relação aberta, lúdica, do leitor com a obra de arte. Todo esse rigor estético, portanto, não passou despercebido à crítica internacional. Quando terminou Avalovara, uma progressão lógica das experiências iniciadas no livro de contos Nove, Novena (1966), Osman Lins já tinha acertado a venda do livro para Itália e França. Seus livros possuem traduções nesses idiomas e também em espanhol, alemão e inglês. Nos Estados Unidos, aliás, Osman é tido como autor da mesma importância histórica de Cortázar. Paradoxalmente, e


Fotos: Álbum de família

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Osman Lins autografa na antiga Livro 7, no Recife, em 1976, ao lado das filhas Ângela e Letícia e do livreiro Tarcísio Pereira Acima, bilhete amoroso para as filhas Litânia, Letícia e Ângela Na página anterior, ao alto, desenho infantil do autor Ao lado, com Lygia Fagundes Telles e Herberto Salles, em São Paulo, 1962

apesar do reconhecimento de parte da crítica literária brasileira, o autor de Avalovara nunca atingiu um status sequer parecido com o qual o admirador portenho ou o italiano Ítalo Calvino – outro escritor a quem é freqüentemente comparado – são reconhecidos por aqui. O professor Lourival Holanda, do programa de pósgraduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), observa que as características universais e experimentais dos livros de Osman, escritos após o ano de 1961, representam exatamente o motivo pelo qual o autor não é celebrado, no Brasil, com o devido respeito que merece. “Após O Fiel e a Pedra, a literatura de Osman Lins distancia-se radicalmente dos estereótipos regionalistas. A temática de Osman não investia num sotaque tipicamente nordestino. E acho, pessoalmente, que isso é um grande mérito. Não gosto dessa visão hegemônica, que proclama o regional como exótico”, sentencia, com a experiência de quem coordena, há dois anos, um grupo de estudos acadêmicos dedicado exclusivamente à obra do pernambucano, o Sodalício Osman Lins, ou simplesmente SOL. Sodalício? “Significa reunião de camaradas, um espaço de debates despido de formalidades”, explica Lourival. O SOL representa, em Pernambuco, o interesse crescente da academia pela obra de Osman Lins. A doutoranda em Literatura Comparada, Maria Tereza Dias, da Universidade de São Paulo, garante que os estudos dos aspectos mais inovadores da obra do autor pernambucano vêm crescendo, a partir da segunda metade da década de 1980, em ritmo veloz. Ela conta seis livros publicados com estudos críticos de fôlego, a respeito de aspectos distintos da literatura de Osman Lins.

Em geral, são dissertações de mestrados ou teses de doutorados que foram transformadas em livros, e debruçam-se minuciosamente sobre aspectos específicos dos textos do autor. Um bom exemplo é Osman Lins: Uma Biografia Literária, de Regina Igel, publicado pela editora T.A. Queiroz. O estudo relaciona episódios e personagens da vida real de Osman com a obra que ele deixou (esse era um truque que Osman Lins adorava: na página 188 de A Rainha dos Cárceres da Grécia, seu quarto romance, ele narra brevemente o encontro da protagonista com o escritor e grande amigo Gilvan Lemos). Outro livro de destaque, que compõe a fortuna crítica ainda incipiente do autor no Brasil, é As Falas do Silêncio em O Fiel e a Pedra, de Marisa Simons. Nele, a autora realiza uma análise, baseada em teorias psicanalíticas e na própria Crítica Literária, do significado do silêncio no livro. De fato, Marisa relaciona o uso do silêncio, tanto dos personagens do livro quanto nas próprias vozes silenciosas que encontra, correndo paralelas à narrativa-mestra do romance, com uma forma de resistência. Osman Lins é, atualmente, um escritor bastante estudado nas universidades brasileiras. Somente no programa de pósgraduação em Teoria da Literatura da UFPE, duas dissertações foram defendidas em 2003 sobre a obra de Osman Lins: Paginário: A Imaginação Crítica em Osman Lins e Italo Calvino, de Cristina Almeida, e A ordem sinuosa, de Fábio Cavalcanti, ambos do SOL. Iniciativas como essas demonstram como Osman Lins vem sendo mais estudado nas universidades nacionais. Segundo Lourival Holanda, existem grupos de estudo da obra dele

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12 ESPECIAL

Avalovara, um romance experimental de 1973, deixou o argentino Júlio Cortázar impressionado. “Se eu tivesse escrito esse livro, poderia passar mais 20 anos sem fazer mais nada”, elogiou

em atuação em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ângela Lins, por sua vez, guarda em casa quinze dissertações, defendidas em várias universidades brasileiras, sobre a obra do pai. Ângela, que também mantém boa parte dos manuscritos deixados por Osman, está organizando todo o material de que dispõe – e isso inclui uma série de contos infantis inéditos, que o escritor pernambucano fazia especialmente para as filhas, quando crianças – em um cômodo, na sua casa, para facilitar as pesquisas sobre vida e obra do pai. Osman viveu em Vitória até os 16 anos, quando se mudou para o Recife (das lembranças dessa fase saíram Lisbela e o romance inacabado, por exemplo). Casou com uma prima de 2º grau, em 1947, e teve três filhas, na época em que começou a trabalhar no Banco do Brasil e, simultaneamente, a escrever. O Visitante saiu em 1955, e o livro de contos Os Gestos, dois anos depois; cada um recebeu três prêmios literários. Mudou-se para São Paulo em 1962, logo após a publicação de O Fiel e a Pedra – o livro que considerava um marco divisório. “Esse livro é o ponto para o qual converge tudo o que eu fiz antes e o ponto de onde parte o que vim a fazer depois. É uma plataforma de chegada e de saída”, costumava dizer. Todos os grandes especialistas na obra que escreveu, incluindo os críticos Antônio Cândido (que prefaciou Avalovara e tinha Osman como autor da mesma estatura de Guimarães Rosa e Machado de Assis), João Alexandre Barbosa e José Paulo Paes, concordam com ele. Paes, inclusive, vai mais longe: “Não sei de ninguém, salvo Guimarães Rosa, que tivesse, como ele, um projeto criativo tão rico, tão vigoroso e tão coerentemente realizado”, escreveu. Em São Paulo, Osman Lins divorciou-se e casou com Julieta de Godoy Ladeira, também escritora, que o acompanhou pelo resto da vida. Ao todo, o vitoriense deixou 20 livros publicados, entre contos, romances, peças teatrais e até episódios de casos especiais para a televisão, como A Ilha do Espaço, um dos três únicos livros que levam sua assinatura e continuam em catálogo (nesse caso, pela Editora Moderna). Os outros dois são suas maiores obras, Nove, Novena e Avalovara, ambos publicados pela Companhia das Letras. A editora Planeta do Brasil já fechou acordo com os herdeiros para lançar Lisbela, simultaneamente com o filme, e está interessada em reeditar todo o catálogo da lavra de Osman. “Estamos negociando também com outras editoras”, informa Ângela Lins. • odrigo Carrero é jorna Rodrigo Carrero é jornalista. Continente julho 2003

Inédito: um conto Historinha manuscrita por Osman Lins para suas filhas meninas

Ilustrações: Leugim

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vez um homem que não servia para “E ranada.umaNem mesmo para mentir: suas histórias eram sem graça, inventadas com tanta falta de jeito, que aborreciam todo mundo. Então, como era preciso conseguir-lhe alguma serventia, começaram a lhe pregar na roupa as fitas e medalhas que eram encontradas nas gavetas. E que, como o tal homem, também não serviam para nada. Depois de algum tempo, o homem parecia uma loja de miudezas, um armarinho. Até nas pernas tinha penduricalhos, santinhos, medalhinhas, medalhões. Foi aí que as próprias pessoas que, como esse homem, para nada serviam, tinham pendurado nele essas coisas, começaram a respeitá-lo. Os que chegavam de fora e visitavam a cidade, vendo aquela figura cheia de medalhas, pensavam que era um grande herói. Tiravam o chapéu diante dele e se curvavam, afastando-se para dar-lhe passagem. Quanto ao Vale-nada, vendo-se tão glorificado, passou a considerar-se um Rei. Passou a dar ordens, cada vez mais cruéis. As pessoas, com pavor do tirano que, por brincadeira ou fastio, haviam criado, fugiram. O homem ficou sozinho na cidade. Sem coragem de trabalhar, não plantava nem criava. Um dia, não tendo mais o que comer, comeu as próprias medalhas e morreu engasgado”. •


ESPECIAL 13 »

Plano de romance de A Cabeça Levada em Triunfo Osman Lins deixou seu sexto romance inacabado. Continente reproduz trechos inéditos do detalhado planejamento do livro gira em torno da luta pela cabeça de um homem. “O livro No caso, um cangaceiro: João Isidoro ou Antônio

Isidoro. O fato está relatado no romance de Hermilo, À Margem das Lembranças. Resolvido, porém, insatisfatoriamente. O próprio Hermilo tencionava voltar ao assunto, escrever um romance, tendo-o como tema central. (...) Para mim, o incidente, para começo de conversa, deve ser enunciado mediante uma dicção completamente diversa. Em Hermilo, os soldados chegam e no espaço de três ou quatro horas estão vencidos. Não. A cidade deverá anoitecer com aquela cabeça e aquele homem ali. É durante a noite que o problema se intensifica. As sombras. As fogueiras. Os fachos. As velas. Os sons. O velório ao ausente, numa das casas. A cabeça de Isidoro numa barrica e um caixão vazio em certa casa, com as pessoas em redor, como se ali houvesse um morto, o morto. Depois, insinua-se todo o significado simbólico de cabeça e corpo. (...) Depois problemas sérios: o tempo e o espaço. Em que época se passa? Não sei bem. 1932, 33, 34, talvez até antes. A cidade? Palmares. Igual a tantas outras cidades do Nordeste. Inventar uma topografia. (...) O tempo será duplo e infletirá sobre si mesmo. Este é o problema mais delicado e, talvez, mais difícil do livro. Estará ligado estreitamente à fábula. Só poderei assentá-lo definitivamente quando estiver clara a evolução dos eventos. Que eventos? Tudo se passará em um dia. Sim. Mas haverá, simultaneamente, dois tempos, dois espaços. Digamos: 1933 e 1951. O narrador, do seu ponto fixo – e paralítico –, vê a pasmaceira da cidade. Fulano que passa, em paletó de pijama, o vendedor tal, o lojista qual palitando os dentes, etc. E projeta sobre isso os acontecimentos heróicos. Mas não apenas porque a cidade hoje é parada, morta, porque o que ele vê é uma cena burguesa. Ele é perseguido por esses fatos. Atenção!!! Nada de: “nos últimos dias, tenho recordado, as lembranças voltam constantemente, etc.”. Não. Ele viu um soldado postado lá “naquele mesmo lugar” e, ou-

tro dia, ouviu “as mesmas cantigas”, outra vez chegou mesmo a ver “ali, ao sol, a barrica...”. Ele não recorda, propriamente. As coisas voltam. Já vem daí, em parte, o mistério da narrativa. Bem. De repente, aparece aquela figura que ele detesta: essa figura é ele próprio. Mas ninguém sabe disso, durante quase toda a história. Há um enigma em torno dessa figura. Algo que atormenta o narrador. Uma traição? De qualquer modo, esse cara levou um tiro e é por isso que está ali, paralítico. (...) O narrador tem conhecimento de que A.F. morreu na véspera e que será enterrado nesse dia. Ou de que morreu nesse dia (o paralelismo então é mais perfeito) e será sepultado no dia seguinte. Posso ocultar a identidade do narrador apenas eliminando o parentesco entre ele e A.F. Ele fala em X (o nome dele) e A.F. sempre na terceira pessoa. Depois que a cabeça é levada é que A.F. irrompe. É aí que o narrador revela, mediante uma simples troca de pronome, que ele e X são o mesmo. Essa manobra, aliás, talvez até seja dispensável. A identificação (o reconhecimento) opera-se através do tiro na coluna e da paralisia do personagem. (...) Os soldados da força volante. Descrevê-los assim: fulano, tal e qual. Dando, de todos, os mesmos traços. Mudando apenas o número de dentes. Uma descrição que se repete. A alusão aos dentes mudando de número e de lugar dentro do clichê. Então, a fábula já fica mais ou menos definida. (...) Vêm os soldados com a cabeça. Conciliábulos. Embaixada. Anoitece. Atacam a tropa. Tomam a cabeça. O comandante e mais uns dois soldados fogem. X é ferido na coluna e carregado para a casa do pai. A cabeça é recusada em vários lugares. Aparece o comandante, de madrugada, e negocia a cabeça com o pai do narrador. O velho, atraiçoando todos, entrega-a. Para X, que mais de uma vez pensara em atraiçoar os tomadores da cabeça, informando ao comandante, essa concessão do pai é sua. Tudo continua enigmático”. • Continente julho 2003


Da pintura à literatura feminina Os textos osmanianos apresentam-se ao leitor como objetos artesanais que trazem em si características sinestésicas. São como corpos artísticos, dotados de características femininas Ermelinda Ferreira

O

sman Lins nasceu em Vitória de Santo Antão, a 5 de julho de 1924, filho do alfaiate Teófanes da Costa Lins e da jovem Maria da Paz de Mello Lins, que morreu de complicações após o parto. Foi criado pela avó paterna, Joana Carolina, e pela tia Laura. Casou-se duas vezes, teve três filhas. Foi um homem apaixonado. As mulheres de sua vida o marcariam para sempre, e ele transformaria a sua paixão por elas numa incrível paixão pela palavra. Precocemente falecido, a 8 de julho de 1978, deixou uma obra rica, original e variada. Escritor profundamente autobiográfico, Osman Lins homenageou parentes e amigos através de seus livros, em histórias cujos cenários invariavelmente refletem os lugares onde viveu, sobretudo o interior de Pernambuco e as cidades do Recife e de Olinda, que aparecem humanizadas como mulheres, no estilo utilizado por Ítalo Calvino em seu livro Cidades Invisíveis. Pode-se dizer que a mulher é a grande personagem osmaniana. Talvez porque, como ele mesmo confessou, escrever foi um modo de preencher aquela ausência original da mãe: “O traço fundamental da minha vida é que, 16 dias depois que nasci, perdi minha mãe. Como ela não deixou fotografia, fiquei com esta espécie de claro atrás de mim. Isso configura a minha vida como escritor, pois parece que o trabalho do escritor, metaforicamente, seria construir com a imaginação um rosto que não existe”. Para muitos estudiosos, a literatura é tradicionalmente ligada ao verbo, ao tempo, à ação: ao masculino; enquanto a pintura é ligada ao silêncio, ao espaço, à passividade: ao feminino. Um texto é dito feminino quando é produzido por uma mulher ou quando tematiza a mulher, seja no corpo da história, seja na forma da escrita. Osman Lins é um dos melhores exemplos em língua portuguesa de um escritor do sexo masculino capaz de criar com sutileza textos femininos. Hábeis na captura da alma da mulher, em complexos enredos repletos de personagens femininas, seus textos transferem essa alma para a superfície da própria palavra. Por isso, não é só no campo da representação que esse autor reflete o feminino. É, sobretudo, na elaboração da linguagem: para ele, o aspecto mais importante de um texto ficcional. A linguagem osmaniana é, portanto, profundamente feminina: plástica, decorativa, ornamental, silenciosa. O silêncio na sua obra, principalmente na segunda fase de sua produção – que inclui as narrativas de Nove, Novena, e os romances Avalovara e A Rainha dos Cárceres da Grécia – é importante porque parece buscar, ao longo de textos paradoxalmente prolixos, a eloqüência muda da imagem. Mas o autor vai mais longe na pesquisa de motivos femininos. As próprias obras de arte que escolhe como modelos prendem-se a períodos anteriores ao Renascimento, como o estilo medieval ou gótico; ou imediatamente posteriores, como o estilo barroco. Percebe-se, nessa escolha, um deliberado questionamento da estética renascentista e de seus principais elementos: a perspectiva, o cálculo, a precisão, a razão


Ilustrações: Reprodução

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Adão e Eva, Ticiano, 1550, Museu do Prado, Madrid Na página anterior, O Paraíso Cristão, Hieronymus Bosch, 1500, Museu do Prado, Madrid

cartesiana, enfim, produto de uma mentalidade que se poderia dizer masculina, e que influencia fortemente a concepção da estrutura de seus textos, em geral muito elaborados. Essa busca febril por motivos e técnicas de criação muito antigos torna-se um contraponto da extrema modernidade e da novidade que insere em seus livros. O preciosismo de suas narrativas reflete de maneira crítica e criativa sobre as peculiaridades da cultura nordestina – que ainda hoje revela traços do medievalismo –, enquanto reciclam, à maneira contemporânea, elementos dos períodos medieval e barroco, o que acaba conferindo originalidade e beleza à sua escritura. Podese dizer que Osman Lins realiza um exercício de copista, uma oficina moderna de recriação de temas e de técnicas artísticas medievais ou afins, fazendo convergir para a página elementos tão díspares quanto vitrais, tapeçarias, retábulos e iluminuras. Assim, o espaço em suas histórias nos remete aos ambientes exuberantes de famosas reproduções do Paraíso cristão, dos séculos 15 e 16 – como O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch, ou Adão e Eva, de Ticiano -, um tema recorrente no romance Avalovara. Já as personagens de suas histórias, concebidas como seres heterogêneos e compósitos, nos remetem muitas vezes às figuras ambíguas de Giuseppe Arcimboldo, artista italiano do século 16, autor das famosas Cabeças Compostas. Também há indícios de que os motivos da tapeçaria, em torno da qual essa história se organiza, viriam de certos painéis do século 15 que ficaram conhecidos como La Dame à la Licorne, expostos no Museu de Cluny, em Paris. Diz-se que, no seu conjunto, representam uma alegoria dos cinco sentidos, sendo sugestiva a existência de um sexto painel, correspondente ao misterioso “sexto sentido”, popularmente conhecido como um atributo feminino, místico ou sobre-humano. Também é curioso observar como a própria página escrita de seus livros muitas vezes se elabora como uma surpreendente recriação do estilo dos manuscritos medievais, onde o conteúdo sacro do texto era ornamentado de maneira exuberante pelas iluminuras e pelas ilustrações das margens, freqüentemente profanas, cômicas e carnavalizadoras da palavra emoldurada. É o que acontece com as narrativas de Nove, Novena,

cujo texto mais importante, dedicado à avó do autor, Joana Carolina, também se constrói como um retábulo, modalidade cara ao período medieval, por ser uma obra de arte específica dos altares das igrejas cristãs. Em A Rainha dos Cárceres da Grécia, se o modelo composicional não é diretamente plástico, é, no entanto, francamente medieval e feminino, uma vez que a protagonista do romance fictício escrito por Julia Marquezim Enone e analisado por um professor de literatura, homenageia, em seu nome, uma das primeiras vozes femininas da literatura francesa do século 12: Maria de França. Autora dos Lais (gênero de poemas narrativos curtos, para serem cantados ao som de harpa) e das Fábulas, Maria de França era uma mulher culta, falava línguas, conhecia o latim e lera os clássicos. Participava de um universo povoado de mulheres brilhantes, cujo poder e inteligência imprimiram novos rumos à cultura da Europa. No romance osmaniano, esse nome exerce um papel irônico, já que a pobre personagem nordestina, analfabeta e destituída de bens e de dons de toda a sorte, esgota a sua vida buscando obter uma pensão por invalidez do INSS. Em resumo: os textos osmanianos apresentam-se ao leitor como objetos artesanais que trazem em si características sinestésicas: embora configurando-se como narrativas, impressionam os olhos com a sua serenidade de pintura medieval, os ouvidos com os seus acordes de antiga caixinha de música, e sobretudo as mãos, como se as asperezas e suavidades das palavras neles impressas fossem coisas palpáveis, como se os dedos pudessem correr lentamente pelas bordas da página e sentir as ranhuras de uma velha moldura, ou tocar as saliências e reentrâncias das camadas de delicadas tintas sobre a superfície de uma tela de grosseiro e rústico tecido. São como corpos artísticos, dotados de características femininas. Porque escrever, para Osman Lins, sempre foi um ato de amor. • Ermelinda Ferreira é doutora em Letras pela PUC-Rio e Universidade de Lisboa e professora da UFPE e da Fafire. É autora de Cabeças Compostas - A Personagem Feminina na Narrativa de Osman Lins- 2000. Continente julho 2003

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Fotos: Divulgação

Diretor Guel Arraes finaliza produção de Lisbela e o Prisioneiro, baseado num texto despretensioso do escritor mas com todos os ingredientes de uma boa comédia, a estrear em agosto nos cinemas Ernesto Barros

Um Osman lúdico nas telas Débora-Lisbela: personagem fascinada pelo cinema Abaixo, Marco Nanini é o único a participar de duas versões

Q

uando a versão cinematográfica de Lisbela e o Prisioneiro chegar às telas dos cinemas em agosto, um ciclo vai estar se fechando na vida do diretor pernambucano Guel Arraes. Nos últimos 10 anos, ele esteve envolvido com o texto de Osman Lins por três vezes: em 1993, a peça foi adaptada para a TV na estréia da série Clássicos Brasileiros; em 2000, Lisbela e o Prisioneiro voltou às origens teatrais, para, finalmente, ser traduzida para a linguagem do cinema. “Na verdade foram temporadas dentro desses dez anos: três meses para o especial de tevê, três ou quatro para a peça, sete ou oito para o filme”, contabiliza o cineasta. “As duas primeiras montagens (especial e peça), embora com uma produção pequena, tiveram uma ótima resposta do público, o que fez com que Virginia Cavendish e Paula Lavigne, mentoras do projeto, me animassem a levar a história para o cinema”. Com formação de cineasta, Guel Arraes trouxe para a TV, a partir do programa Armação Ilimitada, na metade dos anos 80, referências da cultura pop e um estilo visual que o diferenciavam do anonimato a que são relegados os profissionais da telinha. Somente depois da experiência bemsucedida de O Auto da Compadecida e Caramuru – A Invenção do Brasil, duas minisséries televisivas que foram lançadas nos cinemas como filmes, é que ele partiu para um projeto eminentemente cinematográfico. “Considero que meus primeiros filmes foram seriados e especiais de tevê e Lisbela e o Prisioneiro é um desenvolvimento destes trabalhos. Mas posso diContinente julho 2003


ESPECIAL 17 »

Heloisa Perissé e Selton Mello numa cena de Lisbela e o Prisioneiro

zer que Lisbela é a minha primeira produção de cinema. Tivemos mais tempo para elaborar o roteiro e finalizar o filme, mais folga para produzi-lo”. Com um orçamento de R$ 6 milhões, a produção de Lisbela e o Prisioneiro teve as cenas externas rodadas em Pernambuco. O Pátio de Santa Cruz, no bairro da Boa Vista, no Recife, as cidades de Igarassu e Paudalho, na zona da mata, e a Praia de Porto de Galinhas, no litoral sul do Estado, são os palcos principais para as estripulias dos personagens do filme. Encenada pela primeira vez em 1961, no Rio de Janeiro, pela Companhia Tônia-Ceci-Autran, Lisbela e o Prisioneiro era para Osman Lins um simples entretenimento, com pouca semelhança com a obra literária que seria desenvolvida posteriormente, como os romances Avalovara e A Rainha dos Cárceres da Grécia. Guel Arraes conta que descobriu o texto de Osman Lins quando estava procurando histórias para a realização da série Clássicos Brasileiros. Foi o especial da tevê que lhe deu coragem e estímulo para filmar O Auto da Compadecida, adaptado da obra de Ariano Susssuna. “Trabalhar com a prosódia, o humor e temas nordestinos teve para mim um gosto particular”, confessa. “Costumo dizer que com esses dois trabalhos virei pernambucano de novo”.

Para o diretor, Lisbela e o Prisioneiro e O Auto da Compadecida apresentam a versão nordestina de alguns personagens da história universal, como os valentões, a assanhada e os sabidos, entre outros, apesar das diferenças entre os protagonistas das duas peças. “João Grilo é um personagem mais ligado à tradição clássica do criado, do picaresco e se tornou um dos personagens mais ricos da dramaturgia brasileira. Leléu me parece um tipo híbrido: entre a tradição e a modernidade, meio cômico, meio galã”, esclarece. No filme Lisbela e o Prisioneiro, quem interpreta o malandro Leléu é Selton Mello, o ator fetiche de Guel Arraes, que já esteve presente em O Auto da Compadecida e Caramuru – A Invenção do Brasil. A trama conta as aventuras desse caixeiroviajante que, de dentro da boléia de um caminhão ultrakitsch, vive uma persona em cada lugar que chega. Uma das paradas é Vitória de Santo Antão, terra natal de Osman Lins, uma cidade que simboliza todos os vilarejos nordestinos. É lá que ele se apaixona por Lisbela (Débora Falabella, que trabalha pela primeira vez com o diretor), uma jovem que sonha de olhos abertos com os galãs das telas dos cinemas. Noiva de Douglas (Bruno Garcia) e filha do tenente Guedes (André Matos), o delegado da cidade, Lisbela se envolve Continente julho 2003


»18 ESPECIAL

A partida

Paulo Autran, no filme de Sandra Ribeiro: difícil adeus

Curta com roteiro baseado em conto de Osman tem Autran e Geninha no elenco

A

delicada despedida entre um neto e sua avó, nos confins do sertão pernambucano, é o ponto inicial do vídeo A Partida. O curta metragem (15 min.) da cineasta pernambucana Sandra Ribeiro foi inspirado no conto homônimo de Osman Lins. O elenco é formado por nomes de peso – como Paulo Autran e Geninha da Rosa Borges, além do estreante Marcelo Lacerda – que tentam interpretar o difícil adeus. O roteiro do filme percorreu um longo trajeto até ser executado. Tudo começou quando a cineasta era estudante de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e, dentro das aulas de televisão, teve que transformar um conto em um roteiro. Era a primeira vez que o conto A Partida de Osman Lins chegava às mãos de Sandra Ribeiro. Depois de tirar dez no exercício, ela deixou o roteiro na gaveta. Porém, filmes e vídeos começaram a fazer, cada vez mais, parte do seu cotidiano. No projeto de conclusão de curso, a cineasta produziu um vídeo sobre Valdemar de Oliveira e começou a se envolver com a sétima arte. Outros vídeos começaram a sair do papel, como Ai d'eu Sodade, que foi premiado no Festival de Tóquio. O roteiro de A Partida continuava no fundo da gaveta, um tanto empoeirado. Foi um calendário da cidade de Buíque que relembrou à diretora seu antigo trabalho de universidade. “Quando eu vi as fotos daquela cidade, resolvi fazer um vídeo que tivesse aquele ambiente como cenário”, explica. Nesse momento, ela lembrou do seu velho roteiro, o qual sempre quis colocar em prática. Ela recuperou o roteiro e começou a adaptá-lo. Desde o início a cineasta já sabia que Buíque e a Serra do Catimbau seriam suas locações. “Como eu estava esperando uma oportunidade de mostrar essa terra, o roteiro foi adaptado para realizar-se no sertão”, comenta. No conto, Osman Lins narra o momento em que ele saiu Continente julho 2003

da casa de sua avó. Como a mãe do escritor morreu no parto, ele foi criado por ela. Forçado a partir pela pobreza e pela desilusão com o futuro no interior, o personagem sofre por querer ir embora e ter que abandonar sua avó. A ansiedade para partir e a saudade antecipada deixam um clima tenso e angustiante no ar. No texto, Lins recorda, anos mais tarde, os últimos momentos, os últimos olhares e os últimos gestos que antecederam sua partida. No filme, Paulo Autran faz essa narração, enquanto Geninha da Rosa Borges e Marcelo Lacerda ilustram A Partida, sem trocar uma só palavra. Segundo Sandra Ribeiro, Geninha da Rosa Borges foi a primeira a ser escolhida, o papel da avó foi reservado para ela. “Depois, eu pensei em Paulo Autran, mas não sabia se ele ia aceitar. Como ele é primo de Geninha e eles sempre quiseram trabalhar juntos, consegui convencê-lo”, revela. Como o personagem de Autran é o narrador da história, anos depois dela ter acontecido, era preciso encontrar “um jovem Paulo Au-tran”. Assim que Sandra se deparou com Marcelo Lacerda, ela percebeu que ele era o seu jovem Autran. Para Geninha da Rosa Borges essa experiência foi muito gratificante porque ela pôde trabalhar, mesmo que à distância, com seu primo Paulo Autran. Ela e Marcelo gravaram em Buíque, enquanto Autran filmou em São Paulo. Além disso, a atriz também homenageou seu antigo amigo Osman Lins. A amizade nasceu em Paris, quando ambos estavam estudando na França. “Foi Osman quem alugou um lugar para eu ficar enquanto fazia o estágio, em Paris’, lembra Geninha. Autran também teve uma boa aproximação com Lins. A primeira montagem de Lisbela e o Prisioneiro foi feita nos anos 60, no Teatro Mesbla, pela companhia de teatro de Tônia Carreiro, Adolpho Celi e Paulo Autran. (Mariana Oliveira) •


ESPECIAL 19

Guel Arraes no set, dirigindo Lisbela: repernambucanização

com Leléu, que está sendo procurado pelo matador profissional Frederico Evandro (Marco Nanini) por ter-se metido com a mulher dele, Inaura (Vírginia Cavendish). A maior parte do elenco do filme saiu da encenação teatral, mas alguns atores trocaram de personagens. Os atores pernambucanos Bruno Garcia e Virgínia Cavendish, por exemplo, interpretaram o casal Leléu e Lisbela na peça. Entre todos, Marco Nanini é o único ator a ter trabalhado na adaptação para a TV. Para Guel Arraes, o fato de ter adaptado o texto de Osman Lins para a TV e o teatro foi uma experiência que acrescentou muitas vantagens na elaboração do roteiro de Lisbela e o Prisioneiro, desenvolvido por ele, Jorge Furtado e Pedro Cardoso. “Pude elaborar e testar o resultado de um roteiro em duas etapas e dois veículos (tevê e teatro) diferentes. Pude formar uma pequena trupe de atores que passou meses representando o texto no palco e, portanto, ensaiando para o filme, pude observar a platéia de centenas de apresentações da peça”. Assim como no especial da tevê, o fascínio pelo cinema é uma das marcas da personagem Lisbela. Na época, Guel utilizou pequenos trechos de filmes em preto e branco que se misturavam às cenas vividas pelos personagens da peça, além dos que passavam no cinema freqüentado por Lisbela, local onde ela é cortejada por Leléu. Desta vez, o recurso foi usado com mais requinte. “Os trechinhos de filmes a que ela assiste, diferentemente do especial e da peça, foram produzidos por nós, parodiando diversos gêneros de cinema americano”. Agora, é só esperar agosto chegar e conferir Lisbela e o Prisioneiro na tela do cinema. • Ernesto Barros é jornalista e crítico de cinema.

O diretor descobriu o texto de Osman Lins quando procurava histórias para a série Clássicos Brasileiros da TV Globo

Selton integra o elenco dos três filmes do diretor Continente julho 2003


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20 CINEMA

Uma vida de combates

Fotos: Arquivo pessoal de Apolonio de Carvalho

Apolonio de Carvalho, que se envolveu na Intentona Comunista e lutou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa, tem sua vida filmada Felipe Porciúncula

Membro não identificado da Resistência Francesa colocando dinamite nos trilhos de uma ferrovia

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CINEMA 21 »

A

polonio de Carvalho é um brasileiro nascido no país da liberdade e em nome dela dedicou seus 91 anos. Oficial militar, foi preso e afastado da corporação pouco depois de ter se formado, pelo seu envolvimento na Intentona Comunista. Só pôde exercitar seu talento de estrategista nas frentes de batalhas européias, onde combateu na Guerra Civil Espanhola e durante a Resistência Francesa. No Brasil, passou a maior parte do tempo na clandestinidade, como dirigente comunista. Em 1980, de volta do exílio, fundou e foi o primeiro filiado do Partido dos Trabalhadores. Para contar essa história cheia de corajosos embates, os cineastas Rudi Böhm e Stela Grisotti, da Cinematográfica Superfilmes, resolveram fazer o filme Vale a Pena Sonhar, inspirado no livro autobiográfico e que refaz os caminhos de Apolonio, mostrando que mais do que a política, a sua grande paixão é a francesa Renée Carvalho, com quem vive há 60 anos. Grande parte das filmagens foram com o próprio Apolonio e sua família. Além das suas histórias de vida, o documentário apresenta o olhar humanista sobre um líder e sua relação com os mais próximos, principalmente o desafio de manter a vida familiar na clandestinidade. “Sempre se apresentam os grandes dirigentes como se tivessem uma vida exclusivamente pública. Queremos focar um lado mais intimista e vincular esses dois mundos, revelando que são indivisíveis”, afirmam os cineastas. No caso de Apolonio isso é muito forte, pois desde garoto esteve cercado de um envolvimento político bem marcante. O próprio irmão Deusdédit chegou a participar da Coluna Prestes e o pai, Candido Pinto, presenciou o ato de Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Seu destino foi selado em definitivo quando ele encontrou Renée nas trincheiras da Resistência Francesa, em 1942. A partir daí, os filhos cresceram nesse ambiente de ideais revolucionários. Inclusive dois deles, Raul e Renée-Louis, participaram da guerrilha urbana e foram presos pela Ditadura Militar de 64.

“Eu já tinha muita vontade de fazer um filme sobre a luta armada e quando li o livro do Apolonio, em 1997, a ficha caiu. Quatro anos depois tivemos a sua aprovação para o projeto e estamos trabalhando até agora”, lembra Grisotti. Em fase de finalização, o documentário deve ter cerca de 80 minutos. Além das imagens realizadas no Rio de Janeiro com o próprio Apolonio, os diretores Böhm e Grisotti viajaram à Europa para filmar algumas das trincheiras percorridas pelo oficial brasileiro. “Fizemos muitas tomadas em Tolouse e Nimis, na França, e conseguimos relíquias, em que Apolonio aparece em combate. Também entrevistamos contemporâneos seus da época, como o seu comandante Serge Ravanel (comandante da libertação francesa) e Paulette Emanuelle (irmã de Renée – que ficou presa durante três anos em um campo de concentração), ambos franceses, que deram depoimentos bem fortes sobre o período”, coloca Grisotti. Também os gaúchos Delcy Silveira e Homero Jobim (combatentes da Guerra Civil Espanhola), e os franceses Lucie Aubrac e Jaques Breyton (militantes da Resistência) dão importantes depoimentos. Porém, uma das dificuldades encontradas pela equipe foi quanto ao pagamentos dos direitos autorais das imagens da época. Para não estourar o orçamento, que está em 400 mil reais, Rudi Böhm e Stela Grisotti vêm negociando com o Instituto Nacional do Áudiovisual (INAC/França) e a Confederação Nacional do Trabalho, da Espanha, a cessão dos direitos em troca do apoio ao filme. A previsão é de que o média-metragem esteja pronto em setembro. Em novembro será exibido na TV Cultura, que coproduz a película, e a partir daí, entra na rota dos festivais. “Queremos também colocá-lo nas salas de cinema mas isso ainda está sendo articulado”, enfatiza Grisotti, que completa: “Esse nosso esforço é para que o maior número de pessoas possa conhecer a história desse cidadão do mundo. Ele acreditou que a luta pela liberdade não tem fronteiras. O valor do seu testemunho é lembrar que a vitória sobre o nazismo precisa ser relembrada sempre.” Continente julho 2003


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22 CINEMA

Ficha de Apolonio no Dops, quando foi preso em Bagé, em 1936, por sua participação na Intentona Comunista

“Sou um otimista incorrigível” Nesta entrevista que Apolonio de Carvalho concedeu, com exclusividade, para a Continente, no Rio de Janeiro, o velho comunista se mostrou bem sereno. Com um jeito carinhoso de se expressar e fazendo questão de ser bem enfático quando defende seus pontos de vista, Apolônio aparenta ter ainda muita estrada pela frente. É possível conciliar sua formação militar com a sensibilidade política? Eu acho que não se excluem. Eu tive a sorte de chegar na Escola Militar, em 1930, numa situação muito particular. Na época existia uma tensão interna entre duas alas da oficialidade, pois grandes quadros das esquerdas tinham surgido dentro dos quartéis desde a década de 20. Eles se rebelaram contra o poder central em vários momentos, culminando com o Tenentismo. A divisão era em torno dos males da Velha República, agravada pelo movimento liderado por Continente julho 2003

Getúlio Vargas, que colocou para fora do poder uma parte da velha oligarquia. A Coluna Prestes teve um valor simbólico muito grande para aqueles que queriam construir um outro país. Se eles não tinham um programa com bandeiras mais consistentes, representavam o desejo de um Brasil melhor. Não é à toa que Luis Carlos Prestes foi considerado o “Cavaleiro da Esperança”, principalmente por setores mais pobres da população. Também parte da burguesia desejava crescer e se sentia tolhida. Havia um movimento nacional muito forte. Isso repercutiu dentro do Exército? Claro, mas só para uma parte da corporação. Havia um desejo no País de conquistar faixas novas de democracia, de participação popular. Isso se refletiu nas escolas militares. Começaram a aparecer horizontes que não se conheciam de maneira clara até então. Todas as semanas fazíamos reuniões


CINEMA 23 » amplas na Escola Militar para discutir problemas sociais e políticos, e isso se deve à influência militar francesa. Também desfrutávamos de liberdade de opinião. Essa situação só mudou depois da Intentona Comunista, quando a oficialidade passou a apoiar integralmente Vargas. Como era o clima político da época? Entre 30 e 35 houve uma mudança considerável na vida do país. Nessa época, consolidou-se a classe operária brasileira com os aportes indiretos provocados pela Primeira Guerra Mundial. Os mercados europeus estavam fechados, então o Brasil teve de desenvolver amplamente um campo industrial que respondesse à necessidade do consumo nacional. Em 1920 já tínhamos 20 mil indústrias e 200 mil operários. Passam a existir as federações regionais e as idéias socialistas e anarquistas começam a povoar as cabeças desses dirigentes. Houve o fortalecimento dos sindicatos autônomos, que não aceitavam política de submissão ao Governo Vargas. Não só isso. Os sindicatos buscavam se aliar a outras forças para fazer frente às ameaças que pesavam sobre o País e sobre o mundo. E como o PCB nessa época ainda era muito fraco e ligado a setores muito isolacionistas, os sindicatos resolveram criar a Aliança Nacional Libertadora (ANL).

Entretanto, foi cometido um erro clássico em abril de 1935. No seu lançamento oficial, o jovem comunista Carlos Lacerda propõe que Prestes seja o presidente de honra da ALN. A partir de então, o PCB aumenta razoavelmente a sua influência política sobre a Aliança, antes liderada pelos sindicatos. Foi com essa mudança de rota que chegamos ao erro perverso de declarar guerra a Vargas sem meios para isso. Nesse momento, o Governo se volta contra a ALN e instala uma situação de terror policial no País. Como aconteceu sua ida para a Espanha? Foi um desdobramento natural. Já tinha entrada na vida política através da ALN. Conheci na prisão a força de liderança dos presos políticos do PCB. Em Bagé, no Rio Grande do Sul, onde servi, conhecia os anarquistas mas até aquele momento ainda não sabia das idéias comunistas. Quando eu reencontrei os antigos companheiros de quartel, que eram dirigentes médios do partido, comecei a participar de cursos sobre o marxismo. Foi quando eu me enfeiticei pelas características, planos e horizontes do PCB. Em julho de 37, quando saí da prisão, meu primeiro ato em liberdade foi me filiar ao Partido. Justamente nessa época, o comitê central tinha decidido conquistar os militantes políticos que

“A Coluna Prestes teve um valor simbólico muito grande para aqueles que queriam construir um outro país. Se não tinha um programa consistente, representava o desejo de um Brasil melhor. Não é à toa que Luís Carlos Prestes foi considerado o Cavaleiro da Esperança”

Comemoração da libertação da cidade de Toulouse, na França, em 1944. Apolonio é o terceiro da esquerda para a direita


24 CINEMA

Apolonio e Renée, no início dos anos 90, no Rio de Janeiro

Apolonio de Carvalho em sua casa no Rio de

Grupo de presos políticos em Argel, trocados em 1970 pelo embaixador alemão

Janeiro, em 2002

no Brasil. Apolonio está na primeira fila, de cabelos brancos

“Na minha trajetória só há uma faixa extremamente luminosa, onde a palavra resistência cabe muito bem: é a luta pela libertação da França, até 44, sob a ocupação alemã. A idéia de resistência não existiu em outra ocasião. Eu era um revoltado contra as injustiças”

tinham sido excluídos das forças armadas para que fossem ajudar as Brigadas Internacionais na Espanha. Àquela altura, a guerra já estava perdida? Desde menino eu sou um otimista incorrigível. Ainda durante a minha prisão, em 36', eu já acompanhava de longe a Guerra Civil Espanhola. Quando viajei para lá, tinha a expectativa de encontrar um povo que acabou com um golpe militar e assegurou o controle de metade do território espanhol. Quando chego, me sinto profundamente estimulado e vejo uma forte presença da solidariedade internacional. Mas logo vou para as frentes de batalha e começo a entender as razões que levaram às divisões dos partidos que comandavam a República, composta por comunistas, anarquistas, socialistas e liberais. A conseqüência foi a perda de confiança da população na vitória dos republicanos. Os conflitos resultaram em efeitos muito nocivos para a manutenção da Aliança. Cada partido se considerava o dono da verdade. Continente julho 2003

Você se define como um resistente? Na minha trajetória só há uma faixa extremamente luminosa, onde a palavra resistência cabe muito bem: é a luta pela libertação da França, até 44, sob a ocupação alemã. A idéia de resistência não existiu em outra ocasião. Eu era um patriota, um democrata aos 22 anos, revoltado contra as injustiças sociais e contra a ausência de faixas mais amplas de democracia e de liberdade. Quando eu vou para a ANL, vou porque quero que o Brasil tenha um regime de democracia apoiado profundamente no povo e na sua capacidade de criar e mudar a sociedade. A ida para a Espanha vai no mesmo caminho. Nosso projeto político era também o programa das forças populares espanholas. Fui para lá pois era a continuidade da luta que fazíamos no Brasil. Como você está vendo o Governo Lula? Acho que é o início de um período de profundas transformações. • Felipe Porciúncula é jornalista.


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26 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Academias, universidades e quejandos Velhas instituições não devem continuar tão velhas

V

ocês, leitores, não têm nada a ver com isto, mas resolvi dizer nesta crônica, e na minha velhice, o que, há décadas, deveria ter confessado: minha antipatia atávica por duas instituições: a universidade e a academia de letras. Aviso logo que não as abomino nem as detesto, considero-as, apenas, anacrônicas e corporativas. Um retrato do corporativismo nas universidades é a aprovação indiscriminada de dissertações e teses: pode ser que algumas tenham sido reprovadas em bancas examinadoras das universidades brasileiras, mas, se isso aconteceu, foi num percentual estatístico tão ínfimo que não chegou ao meu conhecimento. Quanto às academias de letras, por exemplo, a mais importante de todas, a Brasileira, fundada em 1897 por um poeta hoje desconhecido, Lúcio Mendonça, preferiu eleger para seus quadros um almirante, um general e um cirurgião plástico, e preteriu dois luminares da literatura brasileira: Lima Barreto e Mário Quintana. Minha covardia para escrever sobre essas duas instituições teve duas motivações, ao longo do tempo. A primeira delas era Continente julho 2003

evitar que minhas críticas fossem consideradas desabafos ressentidos de quem, como escritor veterano, não tinha entrado numa Academia, mesmo a do seu Estado. A segunda, porque tenho amigas e amigos queridos em ambas as instituições. O grande poeta brasileiro, Mauro Mota, meu inesquecível amigo, quando presidente da Academia Pernambucana de Letras, tentou convencer-me a candidatar-me à próxima vaga, dizendo que patrocinaria a minha candidatura, e eu lhe respondi que ela era uma entidade de velhos imutáveis, mas ele alegou que me convidava (eu tinha trinta e poucos anos), para que ela mudasse, e que deveriam ser membros, também, da APL, os poetas Marcus Accioly e Jaci Bezerra. No entanto, embora forte, o argumento não me convenceu. Quanto à outra motivação para não dizer o que sempre sentia por aquelas instituições, os amigos que lá estão, pensei, por mais brilhantes que sejam, não poderão mudá-las. Ambas são muito antigas, têm vícios milenares, difíceis de extirpar. Qualquer enciclopédia escolar nos ensina que a origem mais remota de nossas universidades e academias de letras (e


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outras) está na Academia de Platão, no século 4 a.C., que funcionava num jardim ou num bosque nos subúrbios de Atenas, ora considerado propriedade de tal Academo - daí o nome - ora denominado academia em sua homenagem. Parece que foi Isaac Asimov que a considerou a “primeira universidade do mundo”. O atributivo “acadêmico”, atualmente, assumiu várias conotações. Monografias, dissertações e teses, de especialização, de mestrado e de doutorado, respectivamente, em nossas universidades, são chamados trabalhos acadêmicos. Toda arte conservadora de inspiração clássica ou neo-clássica é chamada de acadêmica. Existem as academias de ginástica. Aliás, antes de ser uma academia para o estudo e o debate de intelectuais, a de Platão era, precisamente, uma espécie de ginásio para práticas esportivas. Também existem, as de medicina, de ciência e quejandas (como esta esdrúxula palavrinha cabe bem neste tema), mas acadêmico, no Brasil, é um imortal, o membro de uma academia de letras. Voltando a dizer que não tenho ojeriza nem às universidades, nem às academias, mesmo as de letras, como parece ter tido

Voltaire (1694-1778), que afirmou uma vez: “a Academia Francesa é como a Universidade: uma e outra eram necessárias num tempo de ignorância e de mau-gosto; hoje são ridículas”, acredito que elas podem abandonar certos vícios e anacronismos. Entre muitos, eu poderia citar, nas academias, o ritual do fardão, com aquele carnavalesco chapéu napoleônico, reminiscência do colonialismo cultural da França, pois procura copiar a sua velha Academia, fundada por Richelieu, em 1635. A permanência desse ritual fantasioso é devida a Joaquim Nabuco que, ganhando uma disputa com Machado de Assis, impôs a estupidez de abrir as portas da ABL a gato e cachorro, para adaptá-la, mais uma vez, ao modelo francês, num oportunismo que não se poderia esperar de um grande homem como ele. Quanto às universidades, é preciso que sejam mais rigorosas no julgamento dos trabalhos acadêmicos e reduzam o corporativismo, para que continuem a ser, como disse Otto Maria Carpeaux, “a história espiritual das nações”. • Alberto da Cunha Melo é poeta, sociólogo e jornalista.

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Expressões da alma popular

O Museu Casa do Pontal reúne cinco mil esculturas de 200 artistas populares de todo o Brasil Marco Polo

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Cristo, de Louco (Cachoeira, Bahia, década de 60)

A

s profissões, o mundo rural, o ciclo da vida, as festas populares, os jogos e diversões, o mundo imaginário, os bichos, o erotismo, o cangaço, os eventos históricos, a religião e o Carnaval, são alguns dos temas abordados pelos artistas populares em seus calungas, como são chamadas no Nordeste as pequenas esculturas de barro, pano, madeira ou metal vendidas geralmente em feiras. Aproveitando essa classificação temática, o francês Jacques Van de Beuque organizou o Museu de Arte Popular Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, com aquela que é considerada a maior e mais significativa coleção de arte popular do Brasil. Natural de Bavey, norte da França, Jacques chegou ao Brasil logo após o término da 2ª Guerra Mundial, e, desde 1950, passou a adquirir as obras que o fascinaram pela cores fortes e formas expressivas. Por 40 anos viajou pelo País, visitando cidades do interior, vilas, povoados, entrevistando e fazendo amizade com artistas do povo, recolhendo, com sensibilidade e

bom gosto, um acervo magnífico. Ao visitar o Museu Casa do Pontal, o escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, comentou: “Como é que um homem de outra cultura, um dia desembarca aqui, percorre o País quase ponto por ponto, descobrindo, encontrando, recolhendo, organizando e, depois, instala ali aquelas figuras que são da criatividade popular, tudo com uma expressão tão sólida, tão forte? É tudo realmente um assombro!” São cerca de cinco mil esculturas de 200 artistas, de 24 Estados diferentes, ocupando 1.500m2 de galerias. O museu foi tombado em 1989 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico do Rio de Janeiro, e, em 1996, recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN –, como “a melhor iniciativa no País em prol da preservação histórica e artística de bens móveis e imóveis”. Obras que traçam pontes criativas entre realidades distinContinente julho 2003


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Acima, Forr , de Celestino (Juazeiro do Norte, Ceará, década de 80). Abaixo, MÆscara, de autor desconhecido (Pirenópolis, Goiás, década de 80) e Dois em Um, de Antônio de Oliveira (Belmiro Braga, Minas Gerais, década de 80). Na página ao lado, Bom-dia, de Zé Caboclo (Caruaru, Pernambuco, década de 60)

São bonecos, carrancas, máscaras, mamulengos e engenhocas nos quais o povo deixa seu testemunho, sua experiência, sua visão de vida, sua capacidade de crítica e de alegria

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tas, como o São Francisco Cangaceiro, do pernambucano Manuel Galdino, estão ao lado de cenas do cotidiano urbano, como o Jogo do Bicho, do carioca Adalton. Flagrantes da realidade contemporânea, como os Bombeiros de 11 de Setembro de 2001, de Luis Antônio, convivem com a tradicional Procissão de Nossa Senhora Aparecida, de Antônio de Oliveira. A elegância plástica dos bonecos de barro de Mestre Vitalino, os Orixás de madeira colorida de Otávio, o expressivo Cristo do Louco e a feérica Mascarada a Cavalo, de Lunildes, são outros exemplos da inesgotável criatividade popular reunidos na Casa do Pontal. Um importante e belo registro deste universo está no livro O Mundo da Arte Popular Brasileira, escrito por Ângela Mascelani. Nele, a pesquisadora aborda a importância histórica, antropológica e artística dessa arte espontânea, analisando os bonecos, carrancas, máscaras, mamulengos, garrafas de areia e engenhocas em que o povo deixa seu testemunho, sua experiência, sua visão de vida, sua capacidade de crítica e de alegria. O Museu Casa do Pontal está instalado num sítio de 12.000m2, na Estrada do Pontal, número 3295, no Recreio dos Bandeirantes, próximo à Barra da Tijuca, entre o Maciço da Pedra Branca e a Prainha, no Rio de Janeiro. Mais informações pelos fones (21) 2490.3278/4013. Endereços eletrônicos: pontal@openlink.com.br e www.popular.art.br •



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Romancista pernambucano lança obra perturbadora sobre o poeta francês a partir de um “nada biográfico”

O enigmático Lautréamont num romance de sombras André de Sena

O

poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo recifense, radicado há 20 anos no Ceará, Ruy Câmara, acaba de lançar na ABL um livro que vem suscitando grandes elogios dos leitores – nada mais nada menos do que um romance sobre a estranha vida do poeta francês Isidore Ducasse, que ficou conhecido como Lautréamont, após lançar sua opus magna Cantos de Maldoror e se matar com um coquetel mortífero aos 24 anos. Cantos de Outono: o romance da vida de Lautréamont (Ed. Record, 400 pp., R$ 48) é fruto de uma guinada pessoal que o autor deu em 1990, quando abdicou da carreira de bem-sucedido empresário para dedicar-se à literatura e à semiótica. Cantos de Outono é, na realidade, sua obra de estréia. Após ser contratado pela maior editora da América Latina, Ruy já planeja outro romance, No Leito dos Gênios Malditos, que retoma a vida e a obra dos poetas malditos do século 19 e 20. Será publicado em 2004, pela Editora Record. Nesses esplêndidos e perturbadores Cantos de Outono, Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont (1846-1870), um dos mais estranhos e misteriosos vultos da literatura universal, ressurge vivo e bem mais enigmático do que nunca. É um romance aterrador e comovente, repleto de sombras. O relato de Ruy Câmara, que se diria visual, táctil e trágico, nos conduz por rumos surpreendentes. Se já é espantoso o que conseguiu reunir o romancista no que toca a um autor que influenciou tantas gerações de escritores e que jazia quase esquecido, mais espantoso ainda é como operou o milagre de conferir tamanha veracidade ficcional a todo esse frio, sombrio e distante resíduo biográfico. Nesse romance, Ruy Câmara faz uso de seu profundo conhecimento da obra e do universo do jovem poeta, nascido no Uruguai, para reconstituir - ou reinventar, de forma tocante, sua vida e seus tempos. “De fato eu procurava um ente acuado no seu próprio dilema, um ser fatal, um vulgo sem espaço para se expressar,

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Isadore Ducasse, o conde de Lautréamont: vulto misterioso e impreciso

sem o recurso que se busca nas alturas celestes, um idealista genial, insubmisso às regras e à lógica vigente, um avantesma que se dispusesse a me fazer compreender algo que jaz no íntimo mais profundo de cada grande poeta e escritor”, explica à Continente Multicultural o próprio Ruy. O romance deve ser compreendido e catalogado como uma ficção com fundamento histórico e biobibliográfico, fruto de


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uma pesquisa minuciosa que demandou anos e muitas viagens à Europa. “Em certa tarde, andarilhando com minha esposa no Montmartre, em Paris, após uma série de visitas aos túmulos dos grandes vultos da literatura francesa, cheguei casualmente ao prédio onde vivia Isidore Ducasse. Entramos, subimos a escadaria e conversamos com alguns moradores do prédio, que quase nada sabiam acerca de Isidore Ducasse. No térreo, transcrevi os dizeres de uma placa preta, localizada logo após o átrio e, ao fundo, havia um bistrô simpático. Lá, enquanto entornávamos umas taças de vinho, imaginei que poderia seguir o rastro de Isidore Ducasse”, explica Ruy, a gênese da obra. Dessa forma, a aventura que começou no número 7 da Faubourg-Montmartre, estendeu-se para o sul da França, onde Ruy palmilhou as ruas de Biarritz, Bayonne, Pau, Tarbes, Bruxelas e, por fim, Montevidéu, onde passou sua infância Lautréamont, precursor do surrealismo. Ruy enfrentou a leitura de mais de quinhentos ensaios sobre a obra de Lautréamont, catalogados em diversas fontes, inclusive na Biblioteca Nacional de Paris. Contudo, quando se sentou para escrever o romance, experimentou na própria carne um sofrimento quase expiatório que – reza a lenda – já fez enlouquecer literalmente outros biógrafos. A causa era o “nada biográfico” de Lautréamont. “Só depois, quando a narrativa estava bem adiantada, percebi que, quando a arte precisava triunfar sobre a racionalidade seca e objetiva exigida numa dada circunstância, minha consciência escapava para a ‘ante-sala’ da razão e eu me via novamente perambulando em Paris, ora diante de uma tumba, ora encafuado naqueles cenários taciturnos, cercado de pensamentos e aflições, como se fizesse mesmo parte de todo aquele imaginário que recriava”, afirma Ruy, que teve originais de Lautréamont em mãos, hoje em poder de uma multinacional japonesa. Em suas pesquisas, também se deparou com uma raríssima foto de Lautréamont em sua formatura, no antigo liceu de Pau, e um atestado de óbito expedido pela prefeitura do Sena. “Apesar da escassez de material, o que me inibiu no início da composição literária foi a dificuldade de encontrar o momento certo para penetrar no universo do personagem, um anti-universo obscuro e aterrador, que se encolhia a cada tentativa minha de sondar as suas profundezas para entender melhor a obra e a sina de um gênio, que pode ser a sina de muitos neste mundo louco”, endossa. Decorridos mais de 150 anos do aparecimento dos Cantos de Maldoror, finalmente estamos começando a entender a importância desse personagem terrível por uma ótica muito diferente da que ele fora visto e confusamente desmerecido pela chamada crítica erudita francesa e belga. O “nada biográfico” de Isidore Ducasse, o real impedimento que levou grandes nomes da literatura mundial à total frustração, em suas buscas

Ruy Câmara: relato visual, táctil e trágico

biográficas, acabou dando lume a um romance especial, tão enigmático quanto os próprios Chants. Numa das passagens mais interessantes de Cantos de Outono, Lautréamont chega a conversar com os espíritos de Baudelaire e Voltaire. Enquanto escrevia e reescrevia, supostamente afetado pela liberdade do espírito de Lautréamont e ainda abalado pela morte recente da filha, Ruy Câmara reparou que, ao mesmo tempo em que o Olhar oculto revelava o “euessencial” de Isidore Ducasse, a Voz que narra a ação também se metamorfoseava com o que supôs estar submetido a uma duração temporal e espacial de sua própria circunstância. Após inúmeros exercícios de estilo, quando finalmente conseguiu burlar os próprios freios de linguagem e certos paradigmas narrativos, verificou que estava a um passo para reinventar, não um personagem submetido aos conflitos de sua época, mas um personagem múltiplo, engendrado a partir de unidades coesas e indissociáveis de uma consciência inteiramente desdotada do recurso que se busca nas alturas e também uma metáfora de usura de sua própria crise existencial. “Crise que procurei levar ao limite extremo da racionalidade preponderante para compreender as causas do desencanto de mundo que percebo não só na mentalidade de Lautréamont, mas também na contemporânea”, completa Ruy. Em suma, Cantos de Outono já pode ser considerado como um dos principais romances que vieram à tona neste início de milênio. “Vale a leitura e, principalmente, a releitura”, como nos indica o poeta e imortal Ivan Junqueira, que assina as orelhas da obra. • André de Sena é jornalista, escritor (www.bosquesdamoira.cjb.net) e mestre em Literatura. Continente julho 2003


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Antonio Candido, o primado da elegância São conhecidas as contribuições do intelectual nas áreas da Sociologia, História e Crítica Literária Daniel Piza

A

ntonio Candido, que neste mês comemora 85 anos, andou sempre equilibrado sobre um tripé que, antes e depois dele, fez balançarem e caírem muitos outros intelectuais: a sociologia, a história e a crítica literária. Essa sensação de equilíbrio, que já poderia começar por sua figura de cavalheiro, é dada em primeiro plano por seu texto, cuja qualidade central se resume no adjetivo “elegante”: uma combinação de fluência e precisão, uma exposição prudente e cristalina dos argumentos, uma habilidade de abordagem que jamais abandona o objeto à frente. Mas é, principalmente, resultante de sua tentativa – nem sempre bem-sucedida – de unir as virtudes das três disciplinas, colocando-as em diálogo, porém mantendo-as em zonas sutilmente delimitadas. O historiador não quer se deixar prenContinente julho 2003

der pelos esquemas do sociólogo e tampouco ditar as regras para o crítico literário, que por sua vez olha constantemente para o contexto social e a perspectiva histórica. As contribuições de Candido em cada uma dessas áreas são conhecidas. O historiador deixou o incontornável Formação da Literatura Brasileira, um clássico pelo qual todos os interessados devem passar. O sociólogo fez o inovador Os Parceiros do Rio Bonito, um estudo sobre o interior paulista. O crítico literário deixou avaliações consistentes sobre as letras nacionais e mundiais em coletâneas como Brigada Ligeira, O Observador Literário e Vários Escritos. Os três aspectos, ainda, estão unidos em ensaios como os de Tese e Antítese e em Literatura e Sociedade. A coerência de todos vem de um olhar que é franco por natureza, que não tem vergonha inclusive de sugerir ou tatear


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LITERATURA 35 »

quando não há a sensação de certeza, e que nunca se entrega aos jargões e classificações excessivos da academia, livre tanto do diletantismo quanto do pedantismo. Esta talvez seja, para ter adquirido o caráter modelar que adquiriu, a principal contribuição de seu método crítico. Numa cultura que sempre se cindiu entre os aventureiros, não raro palpiteiros, que lidam com a cultura como se fosse questão de impulso, de reação quase caótica ao fluxo de novidades, e os sistemáticos, não raro escolásticos, que buscam encaixar passado e presente numa série de escaninhos, Candido sempre manteve a saudável fidelidade ao espírito do ensaísmo, da inteligência crítica que escolhe e organiza mas não impõe nem seu ego nem sua doutrina à sua leitura. Em outras palavras, não é nem impressionista nem professoral. O leitor sente como a atividade in-

telectual lhe dá prazer e, ao mesmo tempo, aprende com ela novas hipóteses. A contribuição do historiador é diretamente decorrente dessa mentalidade. Ao olhar a história da literatura brasileira como um processo de formação, iniciado nas primeiras dissociações de tema e estilo praticadas pelo Arcadismo em face da influência estrangeira, Candido rompeu com as classificações estabelecidas de fora para dentro. Por outro lado, também não caiu no nacionalismo exacerbado, que ignora o legado de assimilações daquelas influências estrangeiras, e escapou do historicismo mais primário, que não vê a dinâmica dessas assimilações em sua relação com cada circunstância social. Seguindo a trilha de Sérgio Buarque de Holanda, Candido entendeu a configuração da literatura brasileira como um Continente julho 2003


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36 LITERATURA

esferas que, na realidade, se inter-relacionam processo análogo ao de sua formação social, de modo muito mais complexo. Também marcada por uma dissonância com o andaexagera ao ler na literatura brasileira o mento da modernidade. Em Sérgio Buarque, as elemento comum da busca do “projeto raízes da sociedade brasileira estão numa colonacional”, obsessão que Machado de Assis já nização que se estabeleceu segundo princípios reprovara em Instinto de Nacionalidade ao dipré-liberais, alheios à separação entre privado e zer que o que confere nacionalidade a uma público, entre religião e Estado, que acompaobra é um “certo sentimento íntimo”que, por nhava a industrialização dos países mais avandefinição, é indefinível. çados. Sua literatura, em conseqüência, refletiu essa marca do atraso, ao mesmo tempo que teve, Essa defesa de Candido de uma espécie de nos melhores casos, o valor de denunciá-lo. “missão social”na arte prejudica inclusive alCom as sucessivas etapas de desligaguns de seus julgamentos estéticos. O A coerência de seus melhores mento em relação à Colônia, na Inexcessivo papel fundador que vê no livros vem de um olhar que é dependência e na República, a liteModernismo de 22, por exemplo, ratura que se esboçava consolidou franco por natureza, que não tem impediu que o crítico enxergasse com mais clareza os defeitos da ficção de uma trajetória de autonomia também, vergonha inclusive de sugerir ou eventualmente estando à frente dos tatear quando não há a sensação Mario e Oswald, até mesmo em Macunaíma e Miramar, em que os valores de seu tempo. de certeza, e que nunca se efeitos de colagem colocam em segunPara Candido e toda uma série de entrega aos jargões e do plano a sutileza psicológica e rendem discípulos seus na historiografia culclassificações excessivos da a narrativa a seus esquemas estéticos. tural, a declaração de emancipação Candido também não viu os problemas plenamente consciente dessa literaacademia, livre tanto do tura teria vindo no período sinteti- diletantismo quanto do pedantismo da prosa simbolista de Clarice Lispector, na qual julgou ver uma densidade zado em 1922, pela Semana de Arte Moderna em São Paulo. Com o modernismo principalmente de pensamento que ampliaria o poder da língua “brasileira”, mas dos dois Andrades, Mario e Oswald, a Literatura Brasileira a qual parte de um limitado conjunto de slogans metafísicos. E não teria achado enfim uma voz, ainda que às vezes rouca ou fraca, é verdade que não se possa encontrar em Machado uma galeria para dar também sua contribuição de dentro para fora. E aqui de personagens memoráveis, mas apenas ‘situações ficcionais”; se entra a habilidade do crítico, capaz de reconhecer e nomear as há algo que distingue Machado de todos os outros romancistas características desses dois símbolos modernistas, aceitando brasileiros, até mesmo Guimarães Rosa, é a coleção de tipos inclusive o valor de suas diferenças; o inventivo e inquieto inconfundivelmente nacionais como Bento, Rubião, Capitu, Oswald e o estudioso e ético Mario, para Candido, Cubas e Aires. enriqueceram o futuro da Literatura Brasileira ao criar esses Isso não significa que Candido faça reduções sociológicas dois pólos internos. em suas análises literárias, porque sabe entrar na estrutura Tal crítico mostrou mais intensamente seu vigor interpre- autoral com refinamento e objetividade. O problema está mais tativo ao saudar, com relativo pioneirismo, uma fase posterior no ponto de partida do que na travessia ensaística – o que talda literatura nacional, que ele tratou logo de identificar em vez seja causado pelo fato de que nunca foi um crítico de jornal Guimarães Rosa e Clarice Lispector, os quais, respectivamen- na linha de combate, como Álvaro Lins, Otto Maria Carte, deram maior elaboração estética às linhagens regional e peaux ou o próprio Sergio Buarque, e portanto nunca se sentiu urbana. Candido também escreveu como poucos sobre a obra obrigado a apontar defeitos que não fossem os decorrentes de de Carlos Drummond de Andrade, linha condutora entre o algum prisma historiográfico. Sua escrita não pega fogo; diModernismo de 22 e a sofisticação dos anos 50, e descreveu ficilmente faz o leitor mudar de idéia sobre algum autor. É no historiador da literatura, portanto, que está o melhor suas fases, as “inquietudes” de sua poesia, oscilante entre a espontaneidade e a construção. E também seus ensaios sobre ponto de equilíbrio de Candido, ao aproximar sociólogo e críautores estrangeiros, como Nietzsche, Ezra Pound e Unga- tico para um objetivo intermediário. Aqui, como quase ninguém mais, criou um padrão de associações entre as obras e os retti, lançam luzes sobre os temas. Já o sociólogo, se fez o “sui generis” Parceiros do Rio Bonito, tempos que ganhou respeito até dos que discordam de suas foi dos três aspectos de sua atividade intelectual o que mais conclusões. É, em pessoa, a melhor definição de elegância incomodou os outros dois. Quando ele escreve, em Literatura intelectual que pode haver. • e Sociedade, que “as manifestações artísticas são co-extensivas à própria vida social”, aposta numa relação linear entre duas Daniel Piza é jornalista Continente julho 2003


LITERATURA

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O doce incendiário modernista O pretendente era pouco recomendável: mulherengo (estava no quinto casamento), 30 anos mais velho, comunista e... escritor. Somente depois ela saberia que era também antropófago. Mas a mocinha fincou pé e, apesar da oposição da família, casou com Oswald de Andrade, em 1943. Haviam se conhecido pouco mais de um ano antes, quando Maria Antonieta, ainda estudante, fora contratada por ele para secretária. Apaixonaram-se (num longo poema de amor, ele fizera a invocação: Maria Antonieta d'Alkmin toma conta de mim) e viveram felizes por 12 anos, até a morte dele. O livro Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de Andrade: Marco Zero, de autoria de Marília de Andrade (filha do escritor) e Ésio Macedo Ribeiro – reunindo textos de Antonieta e Marília, correspondências, dedicatórias, notas, referências bibliográficas, iconografia – traça um retrato íntimo do mais rebelde e iconoclasta dos mentores do Movimento Modernista brasileiro. Um retrato em que realçam os traços de um marido e pai amoroso, numa personalidade autoritária e trepidante. Ao lado de vislumbres do processo criativo do romancista, poeta e en-

saísta – especialmente a construção do romance A Revolução Melancólica do projeto Marco Zero – a obra traz, sem pieguice, comovedoras revelações da vida do polemista incendiário, como a narrativa, por Marília, da falta de reconhecimento público e a própria dúvida sobre o talento do pai: “Fora do restrito círculo familiar e dos poucos amigos (...), ninguém das minhas relações conhecia o escritor Oswald de Andrade. Os pais de minhas amigas, mesmo os mais intelectualizados, nunca haviam lido nenhum de seus livros, não havia nenhum exemplar deles na biblioteca da escola (...), seu nome sequer constava das antologias de literatura brasileira, no capítulo sobre o Modernismo”. E finaliza com a perplexidade da redescoberta (e mitificação) do pai, em 1967, com a encenação da peça O Rei da Vela, por José Celso Martinez Corrêa.

Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de Andrade: Marco Zero Imprensa Oficial SP – Edusp, 2003 203 páginas, R$ 49,00

A cena política imperial

Uma arte coletiva

Era de festa e crise

O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, ao debruçar-se sobre a política brasileira na época do Império para a elaboração de sua tese de doutorado pela Universidade de Stanford, produziu dois clássicos da historiografia brasileira: A Construção da Ordem e Teatro de Sombras. São análises do espaço da política formal e das representações simbólicas no Brasil do século 19, como a construção da ordem escravista e da unidade nacional. Em síntese, oferecem uma chave de leitura para a dialética de ambigüidades nas relações entre Estado e sociedade. Os dois textos, num só volume, acabam de ser relançados.

O poeta Arnaldo Antunes e a fotógrafa Marcia Xavier uniram seus talentos para produzir um livro em que os poemas não fossem meras legendas das imagens, nem estas fossem simples ilustrações das palavras, e sim, que as duas formas interagissem entre si, criando uma expressão nova e independente. No livro ET Eu Tu, entretanto, há um terceiro elemento constitutivo e indissociável nesta produção final: o design gráfico, assinado conjuntamente pelos dois, mais Carlito Carvalhosa, utilizando transparências e páginas que se desdobram. E, mais, uma capa espelhada que leva o leitor, ao se ver refletido, perceber que é também o quarto co-autor desta requintada edição.

Para escrever a história dos festivais de música que literalmente abalaram a MPB entre 1965 e 1972, Zuza Homem de Mello muniu-se de forte documentação informativa na qual embasou um conhecimento privilegiado: foi testemunha ocular da história, operando nos bastidores daqueles programas televisivos. Em linguagem clara e agradável, Zuza revela segredos, como a decisão de Chico Buarque de não receber o prêmio por A Banda se não fosse dividido com Disparada, de Geraldo Vandré; ou a atuação de Gutemberg Guarabira como agente esquerdista, infiltrado no esquema dominado pelos militares da ditadura, nos festivais da Globo.

A Construção da Ordem – Teatro de Sombras – José Murilo de Carvalho – Civilização Brasileira, 2003 – 459 páginas – R$ 50,00

ET Eu Tu – Arnaldo Antunes, Marcia Xavier – Cosac & Naify, 2003 – 200 páginas – R$ 79,00

A Era dos Festivais – Uma Parábola – Zuza Homem de Mello – Editora 34, 2003 – 527 páginas – R$ 54,00 Continente julho 2003


Foto Alberto Ramirez

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Carlos Pellicer: um poeta mexicano no Brasil Na década de 20, o poeta, então com 25 anos, vinha percorrendo a América Latina, divulgando os ideais do movimento revolucionário mexicano. Apaixonou-se pelo Brasil e compôs a Suíte Brasileira, com poema sobre Olinda Everardo Norões

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um quarto de estudante, em Puebla, no México, sou “apresentado” a um dos maiores poetas daquele país, Carlos Pellicer (1897 – 1977). Abro o volume 1, de sua Poesia Completa (Ediciones Equilibrista, México, 1996) e me deparo com a Suíte Brasileira, dedicada ao seu amigo, o escritor brasileiro Ronald de Carvalho. Da janela, avisto o vulcão Popocatépetl, com seus 5.465 metros de altitude. O encontro com uma maravilha da natureza e a descoberta de uma grande poesia tornam inesquecível aquela tarde de setembro mexicano. Procuro informações sobre o poeta e o descubro no Brasil, em 1922, em plena efervescência do movimento modernista, acompanhando José Vasconcelos, de quem foi secretário. Vasconcelos (“o homem da genial impaciência”, segundo Pellicer) foi filósofo, educador, reitor da Universidade Nacional, secretário da Educação Pública e autor, entre outros, do ensaio La Raza Cósmica, uma espécie de elogio à mestiçagem, escrito em


POESIA 39 » Fotos: Clóvis Andrade

Na página anterior, o vulcão Popocatépetl, em Puebla Ao lado, pirâmide El Castillo, na Península de Yucatán Na página seguinte, ao fundo, escultura do Parque Museu de La Venta, em Villahermosa

1925 – oito anos antes de Casa-Grande & Senzala. Sua passagem pela secretaria da Educação Pública provocou uma revolução cultural em seu país. Foi José Vasconcelos quem organizou a primeira campanha de alfabetização, difundiu entre a população os grandes clássicos da literatura e promoveu a pintura muralista mexicana. Quando esteve no Brasil, Carlos Pellicer era um jovem poeta de 25 anos. Há quatro vinha percorrendo a América Latina, divulgando os ideais do movimento revolucionário mexicano. Fundador do Grupo Solidario del Movimiento Obrero, juntamente com os pintores José Clemente Orozco, Diego Rivera e outros intelectuais de seu país, fazia parte de uma campanha que buscava a integração continental de um México, em ruptura com seu incômodo vizinho, os Estados Unidos. Pellicer estabeleceu contatos com o mundo intelectual latinoamericano e, no Brasil, tornou-se amigo de Ronald de Carvalho (1893-1935). A convergência de idéias entre os dois foi imediata. Um dos expoentes e “melhor doutrinador” do Modernismo, na opinião do crítico Wilson Martins (A Aldeia Modernista, Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2002), Ronald de Carvalho também evadia-se “das fronteiras geográficas e espirituais de sua pátria para a criação de uma poesia continental”. Seu poema Toda a América, de 1926, antecede, em quase um quarto de século, o Canto General, de Pablo Neruda (1950). Carlos Pellicer, na opinião de Octavio Paz, foi “o mais rico e vasto dos poetas de sua geração” e nenhum outro teve sua “ampla respiração, sua deslumbrada e deslumbrante sensua-

lidade”. Além de poeta, Carlos Pellicer foi um antropólogo preocupado com a cultura profunda de seu país. A ele se deve o museu de Frida Kahlo e o Parque Museu de La Venta, em Villahermosa, na Costa do Golfo. La Venta, centro da civilização olmeca, teve seu apogeu entre 1000 a 400 a.C. Na década de 50, suas ruínas foram ameaçadas de destruição, em decorrência dos trabalhos de prospecção de petróleo. O poeta, num movimento de caráter nacional, mobilizou a opinião pública em defesa daquele patrimônio histórico, organizou o deslocamento de 33 monumentos olmecas e criou um museu ao ar livre, em plena floresta mexicana. Membro da Academia Mexicana de la Lengua e Prêmio Nacional de Literatura, em 1964, Carlos Pellicer foi autor de vasta obra poética. Entre seus livros: Colores en el mar (1921); Piedra de sacrificios e Hora de junio (1924); Recinto y otras imagénes (1941); Práctica y vuelo (1956); Cuerdas, percusión y aliento (1976); Cosillas para el nacimiento (1977). Carlos Pellicer tornou-se senador do México em 1976 e faleceu em 1977. Quando minha filha/enteada Mariná me fez descobrir, naquela tarde mexicana, a poesia de Carlos Pellicer, emocionoume a leitura do 5º poema da Suíte Brasileira, dedicado a Olinda. Embora os “poemas brasileiros” não sejam os mais representativos de sua obra, eles certamente aguçam nossa curiosidade sobre um dos maiores poetas latino-americanos do século 20. • Everardo Norões é poeta. Continente julho 2003


40 POESIA

Carlos Pellicer

Suíte Brasileira A Ronald de Carvalho

I

IV

O mar se banha entre meus braços, o Sol vê sóis com minha fé. As ondas bebem em minha mão mórbidas pérolas de prazer. E a cidade maravilhosa que num grande gesto de xadrez o Pão de Açúcar faz avançar sobre o Atlântico, há de ser a curva eterna de meu gozo que sobre o mundo hei de estender.

Do terraço do Hotel Glória, a noite do Rio de Janeiro ensurdece suas rodas sinfônicas. Debaixo das rodas das montanhas o mar moderno e ressoante roda lentamente suas antigas máquinas. O Pão de Açúcar comemora em seu obelisco os tórridos motins do Atlântico rotos ao pé de sua estatura de ritmo. A baía, dirigida como uma orquestra, toca as luzes de suas naves deslumbrando a folhagem das festas. Chegou, sem dizer uma só palavra, tornando leves montes e poemas, a Lua, com suas coisas de prata. E o porto suntuoso, liberal tropical, entre gruas e palmeiras em repouso, funde em ouros azuis todo o seu litoral.

II A tarde de Copacabana muda a espessa astúcia das ondas em trajes de bailarina e em estudo de escalas. Uma banhista branca é tão branca e tão ágil que tem braços quase azuis e calcanhares de diamante. O Atlântico nem acabou de chegar ao Rio de Janeiro; mas, pôs no Brasil um colar encantado. Ali está o crepúsculo navegável em cujo fundo ficou uma onda de incerteza e de saudades. Confio na noite que me apaga, como um estorvo na paisagem, a ansiedade que em minha vida suscita uma onda e acende um céu carregado de nuvens. III Rua do Ouvidor. Mulheres e diamantes. As joalherias estão servidas por astrônomos. As mulheres são liras de coros tropicais. Rua do Ouvidor. A senhorita Scherezade deixou a Arábia feliz pela Ouvidor e Copacabana. Diante das vertiginosas mercadorias a Lua é uma viúva pobre, a Aurora uma órfã menininha. Continente julho 2003

V Canção de Olinda, canção! Canção das palmeiras sobre a colina e da colina junto ao coração. Canção de Olinda cantada ao som da cintilação da água verde, jardim de sol. Olinda, a brasileira blasonada e linda que atou ao penacho de suas palmeiras jogos de fitas e é a mais linda. Canção de Olinda, canção da palmeira sobre a colina e da colina junto ao coração. Tradução de Everardo Norões.


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42 ARTES


Fotos: Breno Laprovitera/Divulgação

O pecado de Tereza Tereza Costa Rêgo expõe 28 quadros, sete estudos e quatro objetos, tendo como tema o bordel

A

artista plástica pernambucana Tereza Costa Rêgo está inaugurando mais uma exposição de quadros em grandes formatos. Depois de abordar episódios sangrentos na história brasileira – Canudos, o Cangaço, a extinção dos quilombos e dos índios, etc. – ela agora se volta para um tema amoroso: o bordel. Não é, entretanto, o bordel real, com sua sordidez. O bordel de Tereza é glamuroso, romântico e lírico, com candelabros e tapetes, freqüentado por artistas. Um local onde havia amor, liberdade e cheiro do mar, como nas Mil e Uma Noites. Sobretudo, o bordel de Tereza é um hino à arte de pintar. O tema, que a persegue praticamente desde a infância, como um pecado oculto, é transfigurado em telas de grande expressividade e beleza. Mas é melhor que a própria artista explique como tudo aconteceu.

Bar do Bordel, 1,60 x 2,20 m


Bairro do Recife 1 Homenagem a Tomร s Seixas, 2,20 x 1,60m

O imaginรกrio do bordel Tereza Costa Rego


ARTES 45

E

sta exposição, de certa forma, é uma retrospectiva. Existem trabalhos de várias épocas, vários estágios de minha pintura. Este tema me fascina e me persegue (ou eu o persigo), desde a infância. Filha de uma família tradicional da aristocracia rural decadente de Pernambuco, fui a única menina, entre cinco irmãos mais velhos. Educada para ser a boneca que enfeita o piano na sala de visitas. Acontece que, um dia, eu saltei do piano e fui embora. Mas esta é uma outra história. Lembro que a primeira vez que entrei num bordel foi na minha própria casa. Eu gostava de deitar no colo de meus irmãos, aparentemente para cochilar, mas ficava escutando as histórias que eram contadas entre eles e os amigos que freqüentavam a casa de meu pai. Fingia que dormia e entrava num sonho levado pelos detalhes de situações descritas por rapazes e, certamente, proibidas para uma menina de oito a dez anos. Então comecei a achar que todas as coisas importantes só podiam acontecer no puteiro. Eram de lá que me vinham as informações do mundo, sobre decisões políticas, movimentos culturais. Lembro, por exemplo, que, no fim da Segunda Guerra, quando Paris foi libertada, a descrição do momento histórico que recebi estava ligada a uma comemoração no bordel, entre marinheiros, prostitutas e intelectuais boêmios. Assim, eu sabia o nome das mulheres, das donas das pensões: Alzira, Djanira, Edite, Maria Maga... O Chantecler, o Bar do Grego, a Festa da Mocidade... Faz muito tempo, mas lembro com a mesma sensualidade as cenas no bar, no quarto, na cama. Existia sempre uma penteadeira cheia de frascos de perfumes, espelhos e uma bacia, onde as mulheres lavavam seus homens e a elas mesmas, acocoradas nos tapetes, como enormes sapos coloridos. Durante toda a minha infância e juventude, essas conversas foram criando uma realidade de cores e formas. O tempo passou na janela e era tempo de muita repressão. Repressão política, religiosa, familiar e social. Tudo aquilo que, escondida, gravei, era pecado, era proibido. A verdade é que, muitas vezes, entrei nos prostíbulos do Bairro do Recife, sem nunca ter atravessado sequer suas portas. Quando fiquei adulta, muitas vezes me convidaram para conhecê-los. Meu irmão Aluísio sempre prometia me mostrar o Bar do Grego, mas eu nunca entrei em um bordel. Não por preconceito ou censura, mas, ao contrário, para não matar o encanto que tanto fascinou as noites de minha infância. O meu bordel é muito especial. Tem santos, tapetes persas, retratos de família e um décor que nada tem a ver com os valores estéticos da Europa e das imagens de Toulouse-Lautrec em meus estudos de pintura. Não. Eu não queria isso. Eu queria o meu bordel imaginário, sem cortes, sem censura. O bordel do Recife, dos anos 40 ou 50. O bordel de Tomás Seixas, Carlos Pena Filho, de Caio Souza Leão, de Ascenso Ferreira. Eu não queria ver o lado escuro sórdido, das noites prostituídas. Eu queria gravar o amor, a liberdade, o cheiro do mar, em uma cidade cheia de água por todos os lados, onde atracavam marinheiros de todas as cores. Tudo isso começou a crescer muito na minha cabeça e, então, eu resolvi vomitar todas essas informações, acrescidas do meu bom-gosto, da minha imaginação, meus estudos de desenho e, depois, de pintura em grandes proporções. Havia um sentimento religioso de culpa e é engraçado... culpa do que apenas ouvi e fantasiei. Mas era como se eu estivesse lá dentro do prostíbulo pelo pecado original. Na cabeça de uma menina, isso fermentou dolorosamente. Virei uma criança à margem de meu tempo. Às vezes me sentia um personagem de livros que li cedo demais. Hoje, apagadas as culpas, conservado o encanto, aumentada a fantasia, acho um privilégio pintar esta série que foi gerada através do tempo. Todo o cenário é imaginário, pois acrescido do mobiliário com o qual convivi nas casas de minha família, e do conhecimento arquitetônico que estudei no Museu do Estado. Lembro uma série parecida de Zé Cláudio, onde ele jogava uma liberdade às vezes cruel. Era uma maravilha. Meu trabalho é diferente. Mais analisado, mais reprimido, talvez mais fantasioso, mais velado, no qual uso do exagero de detalhes, de objetos na cena pintada, tanto no décor, como nas personagens. As mulheres cobrem os homens e os marinheiros são sombras que sempre iluminam os sonhos. Nos navios, no mar, no cais do porto. A última etapa dessa exposição que defini como “série vermelha” tem muitos momentos vindos de fases passadas, mas escritas numa pintura bastante solta. Os últimos quadros entram num universo novo da minha pintura, apontando para enfoques mais livres onde a tinta fala mais do que o desenho, mais do que a história. Diria mesmo o tema antigo trabalhado em cor e forma, cor quase unificada no vermelho e forma quase solta da linguagem inicial. Nova fase sem, com isso, anular a ligação poética dos meus primeiros trabalhos.

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46 ARTES

No alto, Paisagem em Vermelho 1, 1 x 1,20 m. Acima, Marinheiro FrancŒs, 1 x 1 m. Ao lado, A Banheira de Eva, 1 x 1,50 m. Na outra página, O Lavat rio de Alzira, 2,20 x 0,70 m

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ARTES 47

Para que essa façanha fosse possível, eu precisei armazenar coragem que nunca tinha tido antes. Aí falava alto a minha família... E eu era jovem demais para um mergulho desse porte, e havia o Recife, essa cidade cruel que me rejeitou quando pulei do piano da casa do meu pai. Então, como na Bíblia, corri sem olhar para trás para não virar uma estátua de sal, como Sara. Mas, na prática, eu estava construindo um texto, um relato e já não era um sonho. Eu queria pintar um poema. Um poema para meus irmãos e todos os irmãos da minha geração que iniciaram a vida no bordel. É um poema também para as mulheres, que muitas vezes cumpriram não só o papel de amantes, mas amigas-confidentes, às vezes mães para esses rapazes-meninos. É também um poema para meus amigos homossexuais e, principalmente, para meus amigos poetas, com direito à entrada e saída nas salas e nos quartos desse abismo. Eu queria um lado da verdade, o lado estético, um poema de cor e da liberdade. Durante muitos anos pesquisei este tema, através de literatura nacional e internacional, entrevistas com os personagens pintados, recortes de jornais e revistas, objetos, fotos antigas e atuais, caricaturas e desenhos ao vivo. Enfim, um longo e sério campo de pesquisa, um longo e ambicioso exercício de pintura, que resultou na mostra atual que corajosamente exponho. Como dizia Carlos Drummond de Andrade: “A casa foi vendida com todos os móveis, todos os pecados cometidos ou em vias de cometer, com seu vento encanado, sua vista para o mundo, seus imponderáveis”. A porta da casa está aberta. • Exposição: O Imaginário do Bordel, de Tereza Costa Rêgo Onde: Espaço Cultural Bandepe (museu e auditório), Recife Quando: De 10 de julho a 10 de agosto Atividades: Conferências e filmes ligados ao tema. O mezanino também será disponibilizado para a Exposição.

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48 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Arte dos movimentos improváveis Há casos em que a preocupação com o efeito técnico deixa em plano secundário a expressão estética propriamente dita

N

esta série de artigos que tenho escrito aqui acerca de alguns problemas da arte contemporânea, observei que nem todos os movimentos de vanguarda apontavam para o futuro. Esta observação baseia-se no fato de que alguns desses movimentos foram decorrência da crise do artesanato e que, em vez de optar pela nova tecnologia, detiveramse no questionamento das linguagens artesanais e assim mergulharam num impasse. Afirmei também que as tentativas de usar a nova tecnologia nem sempre deram bons resultados, de modo que, a meu ver, a fotografia e o cinema foram os únicos usos tecnológicos que produziram uma nova arte. Essas idéias estavam presentes na minha mente quando visitei, esta semana, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, a exposição Movimentos Improváveis – o efeito do cinema na arte contemporânea. Esta exposição reúne trabalhos de quatorze artistas nacionais e estrangeiros, que ali exibem instalações cinematográficas e fotográficas, vídeo-instalações e foto-instalações, enfim, uma série de experiências que combinam os recursos expressivos e técnicos dessas diferentes linguagens. O curador da mostra, Philippe Dubois, em seu texto introdutório afirma que, “sem dúvida, o movimento é o único meio de relacionamento entre o homem e a realidade”, o que me parece um exagero, mesmo levando-se em conta que, com esta afirmação, ele pretendeu ressaltar a importância das experiências realizadas pelos expositores. Aliás, um traço característico dessa mostra é o excesso de pretensão, não apenas do curador, como de alguns dos expositores na formulação das idéias que suas obras supostamente expressariam, envolvendo as noções de movimento, tempo, duração, etc. Não resta dúvida de que tanto o cinema, como a fotografia e o vídeo, pelo fato mesmo de poderem captar a imagem dos

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Temps Morts, Emanoel Carlier, 1995

objetos, tanto na sua imobilidade, como em seu movimento, possibilitam uma reflexão nova sobre aquelas noções, e a exploração dessas possibilidades está presente em muitos dos trabalhos expostos, sendo um dos mais interessantes deles Corpos impossíveis. Trata-se de uma instalação fotográfica e vídeo, de autoria de Thierry Kuntzel, que consiste numa série de retratos fotográficos de um mesmo garoto, em close e em grande formato, cada um deles numa pose determinada; o último dos retratos é na verdade um vídeo que muda incessantemente e, ao mudar, repete a pose de cada um dos demais retratos ali expostos. Esta instalação, no meu entender, consegue superar um problema comum às obras que incorporam o movimento real: a repetição do mesmo movimento que conduz a saturar o espectador. Neste caso, a repetição é


Fotos: reprodução

atenuada – e mesmo sublimada – por envolver imobilidade e mobilidade num mesmo desenrolar em que um absorve e “decifra” o outro. Já não é o que acontece, por exemplo, com a obra Et pourtant il tourne, em que o movimento se faz de maneira frenética e repetitiva, com o propósito de causar impacto – e o consegue – mas que logo se anula pela repetição incessante. A realização deste trabalho teria envolvido um grande número de câmaras fotográficas, visando obter resultados jamais conseguidos nesse terreno. O vídeo mostra um casal desnudo dançando em meio a uma mancha de água imobilizada. Sabe-se que o autor fez jogar a água de um balde sobre os dançarinos no momento em que cinqüenta câmaras disparavam, obtendo por um meio que desconheço, este resultado realmente surpreendente:

TRADUZIR-SE 49 o casal está em movimento, mas a água está parada. Apesar disto e da forte expressividade das figuras nuas, o impacto obtido logo é anulado pelo movimento repetitivo. Este é certamente mais um caso, neste tipo de linguagem, em que a preocupação com o efeito técnico deixa em plano secundário a expressão estética propriamente dita. Mas não é uma exceção, nesta mostra, caracterizada sobretudo pela busca de efeitos inusitados, quase como truques. Este é o caso do vídeo-instalação do brasileiro Ronaldo Kiel, intitulada Quem semeia vento colhe tempestade e que consiste nas imagens de roupas na corda, batidas pelo vento: a zoada de um ventilador ligado atrás do painel contribui para criar a ilusão de que há um vento real agitando aquelas peças de roupa. Impacto visual maior nos causou o trabalho de Ange Leccia, chamado Mar, constituído de uma ampla tela onde se projeta a imagem de grandes ondas subindo e descendo; a ausência do marulho, que na vida real acompanha a agitação das ondas, acentua a expressividade da imagem em movimento. Menos impacto provoca a obra Humanidade impensável, de Karl-Harmut Lerch e Klaus Holtz, que consiste no close de um rosto feminino e que tem como subtítulo 36976 retratos, dando a entender que o incessante formigar da imagem, em rapidíssima mutação, é o resultado da sucessão de imagens do mesmo rosto fotografado milhares de vezes com mínimas mudanças de ângulo. Se é muito interessante saber-se disto, o resultado efetivo na relação obra-espectador não alcança a pretensão dos autores. Mais interesse desperta a instalação cinematográfica O quarto para dormir em pé, de Wyn Geleynse: compõe-se de uma reprodução, em grande formato, da fotografia de um quarto, com uma cômoda à esquerda, uma mesa de toilette com espelho na parede fronteira e, no ângulo inferior esquerdo, uma cama, de que só se percebe uma parte. No espelho, que teoricamente refletiria a cama, vê-se a figura de uma pessoa que às vezes se move e que estaria na parte da cama fora de visão. Talvez seja este um dos trabalhos mais interessantes da mostra, pelo uso sutil que faz dos meios técnicos, combinado com certo senso de humor. A exposição compreende ainda alguns outros trabalhos mas, a meu ver, de menor interesse, ainda que caprichosamente concebidos. Outro problema deste tipo de mostra é a presença incômoda dos equipamentos indispensáveis para a projeção das imagens nas telas, os quais nem sempre são tão silenciosos quanto deveriam ser. Para concluir, digo-lhes que saí dali para um cinema onde assisti a um filme brasileiro, que conta uma história passada no Brasil do século XVI. Foi inevitável a comparação, quando me vi envolvido por uma atmosfera de intensa dramaticidade, de que participava a paisagem misteriosa da floresta. Ali, no filme, a imagem fotográfica, tornada ação dramática e evocação poética, cria uma realidade imaginária, em face da qual, as instalações que eu acabara de ver são um mero balbucio. É como se voltássemos a um estágio anterior à invenção do cinema. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.

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Imagem: Michael Agliolo/StockPhotos

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50 CONVERSA

Música na Internet deve ser gratuita

Professor de Harvard, especialista em lei para Internet, o norte-americano John Perry Barlow defende a fruição de música gratuita na rede Carol Almeida


Foto: Alexandre Gondim/ DP

CONVERSA 51 »

O

comportamento social das novas gerações tem dois ambientes de atuação: o primeiro, imerso na Internet, um lugar onde a realidade é virtual e as regras existem não para limitar, mas para ampliar espaços. O outro, é aquele que se convencionou chamar de “real”, o mundo aqui fora, onde as regras funcionam para restringir, em função de uma sociedade que vive da mais-valia. Entre um e outro, o norte-americano John Perry Barlow tenta solucionar problemas de comunicação. E um desses problemas é a distribuição de música pela Internet. Rodando o mundo em seminários e palestras sobre o assunto, Barlow conheceu o ministro da Cultura Gilberto Gil. Deste contato surgiu o convite para que viesse ao Brasil prestar consultoria em relação à regulamentação legislativa da música digitalizada. Barlow, que é co-fundador da Electronic Frontier Foundation, ex-letrista da extinta banda Greatful Dead e atual professor da Universidade de Harvard em lei para Internet, em entrevista exclusiva, fala de direitos autorais, da nova economia cultural e de sua grande meta para o Brasil, que é, em menos de duas décadas, disponibilizar todas as músicas brasileiras para download gratuito.

No universo digital, quais são os aspectos econômicos da cultura? A expressão humana é economicamente muito diferente de um bem material. Mas, porque temos uma economia baseada em bens materiais, somente entendemos a relação entre escassez e valor, enquanto as instituições deveriam perceber que pode haver uma relação entre abundância e valor. No caso da informação, tal relação existe, já que uma música que ninguém ouviu vale menos, e quanto mais aquela música for conhecida, mais ela vale, porque aí haverá uma ligação entre familiaridade e valor. Mas todo modelo de propriedade e direitos em relação à informação está econômica e moralmente afundado. Há algo eticamente inapropriado em reivindicar a propriedade de coisas produzidas de uma maneira espiritual. É como tentar ser dono do ar e da água. Mas, ao mesmo tempo, sei que tentar restringir esse fluxo significa que um grande montante de criatividade humana poderá ser perdida, e essa criatividade não se transformará em novas criações, que é como esse tipo de coisa funciona. Ou seja, tudo que já foi feito foi comprado por seres humanos que fazem parte do ecossistema de criação. As pessoas estão próximas de chegar a um consenso em relação ao material disponível na Internet? Há uma grande diferença entre o que as pessoas e as

corporações acreditam estar certo. Há centenas de milhões de pessoas fazendo downloads ilegais na Internet o tempo inteiro. E não acredito que nenhuma dessas pessoas tenha a consciência pesada por isso. A indústria fonográfica está embalando legislações severas para restringir essas pessoas e, até onde eu sei, baixar MP3 causa muito pouco mal aos autores dessas músicas, possivelmente traz até benefícios. Mas aí você tem duas grandes forças sociais que estão no campo de colisão. Há todo um corpo de leis que é feito para regular outro tipo de economia que está sendo severamente imposta em um novo ambiente. E essas corporações que seguem essas leis vão quebrar. Mas, antes delas quebrarem, minha maior preocupação é de que algumas dessas músicas se percam para sempre. No Brasil há muita música que não é mais comercialmente viável e que deveria estar por aí para todo mundo. No entanto, esses trabalhos ainda são de propriedade de gravadoras que não vão lançá-los na Internet, apesar disso não custar nada pra elas. Qual seria então a melhor maneira de não deixar isso acontecer? Estou tentando propor a criação, no Brasil, de um outro corpo de lei em relação aos direitos autorais que possa gerar um meio-de-campo entre a perda desse material e a inflexibilidade Continente julho 2003


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52 CONVERSA

da indústria. Tenho trabalhado muito com Larry Lessig (professor de Direito da Universidade de Harvard) e nós criamos um projeto chamado Creative Commons, que propõe uma série de entendimentos legais destinados a expandir a escala do trabalho criativo disponível para que outros possam construir e compartilhar seus trabalhos de uma maneira não-comercial. Nosso maior objetivo aqui é criar um ambiente onde toda música brasileira e qualquer outro bem cultural, que importe, estejam disponíveis on line. Mas teria que se pagar para isso? Não acho isso necessário. Por que é necessário pagar às gravadoras pelas músicas que foram criadas por pessoas que já morreram, já que não há ninguém fazendo uso comercial delas? E mesmo em se tratando de uma música nova, a melhor coisa que pode acontecer a ela é que mais pessoas a escutarão. E quanto mais música for tocada gratuitamente, mais será vendida. A indústria fonográfica e os consumidores de música conversam? Não, eles não conversam, eles se esmagam. A indústria não parece estar no humor para um acordo. Aliás, há empresas que estão determinadas a cometer suicídio diante disso. Há rumores de que gravadoras estejam trocando nomes de arquivos de algumas músicas... Não é boato, é verdade. Madonna substituiu músicas por frases obscenas contra downloads de músicas. O pior é que essas gravadoras estão tentando legalizar algo completamente ilegal que é colocar vírus nesses arquivos de música. Você costuma dizer que a Internet não precisa de um governo, mas de uma governação. Explique isso. Geralmente, o que se entende por governo é definido por um grupo de indivíduos e por um processo de reparação da sociedade que todo mundo percebe. A Internet inclui uma massa indefinida de pessoas, que vêm de diferentes lugares e culturas, além de que nela tudo muda muito rápido. Você teria que ter algo mais fluido e flexível do que um governo para a web. O modelo que realmente funciona na Internet é o governo por todas as pessoas conectadas. Esses usuários são bastante eficientes em criar respostas a problemas legislativos on line. Toda vez que você tem um governo físico tentando controlar a Internet, se faz algo que eu geralmente considero mal conduzido, como, por exemplo, a Digital Millennium Copyright Act (legislação específica para direitos autorais assinada em 1998 pelo então presidente Bill Clinton), que os Estados Unidos estão agora implementando na Europa e que eu considero ser algo muito perigoso para a espécime da comunicação. Continente julho 2003

Quais os esforços que têm sido feitos a respeito dessa questão legislativa da Internet? Quando comecei a lidar com esse tipo de assunto, não havia tal coisa, como lei para a Internet. Hoje há todo um corpo de leis e precedentes legais que tratam disso. É basicamente como trabalhar com a diferença de relação entre o mundo físico e o virtual. Mas ainda há muito se fazendo nesse aspecto, porque existe muita coisa ainda que está sendo manipulada de maneira errada. O que você acha da idéia do copyleft? Qualquer coisa que possa nos tirar do copyright é algo bom. Mas uma das minhas preocupações quanto ao copyleft é que sua política legal é baseada na idéia do copyright e, em vez de funcionar como deveria, termina reforçando a idéia do copyright. Não sou contra o copyright da maneira como ele funciona para CDs, livros e qualquer coisa manufaturada que possa ser vendida. Sou contra o copyright para uma música ou um texto. O mundo virtual é outro. Não se podem aplicar as mesmas regras. Mas isso não fica confuso na cabeça das pessoas? Com certeza. Mas é preciso entender que o que está sendo protegido hoje é a indústria da garrafa, e não a do vinho. Isso é justo levando-se em conta o processo industrial que requer uma infraestrutura física e investimentos. Mas, uma vez que as coisas se tornam digitais, tudo pode ser reproduzido e distribuído infinitamente a custo zero.


Foto: André Sarnento/ Folha Imagem

CONVERSA 53

“Há uma grande diferença entre o que as pessoas e as corporações acreditam estar certo. Há centenas de milhões de pessoas fazendo downloads ilegais na Internet o tempo inteiro. E não acredito que nenhuma dessas pessoas tenha a consciência pesada por isso”

Qual a opinião do ministro da Cultura em relação a isso? Alguém chegou a perguntá-lo como ele se sentia a respeito de download de música. Ele disse que, sendo ministro da Cultura, sua função era defender a lei. Mas que, se ele estivesse em um governo do século 19, seria sua função apoiar a escravidão, o que necessariamente não significaria ser a coisa certa a fazer. Você já dialogou com governos de outros países? Já. Mas eu sinto que o Brasil se mostra mais promissor que qualquer outro, por vários motivos. Primeiro porque vocês não são facilmente seduzidos pela maneira como os Estados Unidos controlam esse tipo de legislação. E, mais importante, é natural no Brasil você perceber a música como algo culturalmente fundamental, que pertence a todo mundo. Algumas das músicas de Gil, por exemplo, qualquer menino pode cantar. Então, para ele dizer que aquela é uma música exclusivamente sua, seria até arrogante. Se as pessoas, que têm a capacidade de criar essa música, têm todo direito de ganhar dinheiro com isso, há várias maneiras de proceder sem que a cada vez que alguém escute sua música precise lhe pagar. O que as gravadoras argumentam? Eles são seres humanos, ou quase isso em alguns casos. Genericamente falando, essas pessoas estão em um tal estado de negação e desespero que, de fato, acreditam

que podem levar toda a humanidade a fazer algo que não lhe é natural. Mas uma das coisas mais naturais do ser humano é compartilhar informação, isso é o que nos diferencia de outras espécies. E se os seres humanos têm meios de dividir tudo aquilo de que eles gostam ou que eles acham enriquecedor, eles certamente o farão. E toda a tecnologia de obstáculos para que isso não aconteça vai, em algum momento, deixar de funcionar. O que faz o ciberativismo em relação a isso? Sim, há o ciberativismo, mas há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Há sistemas de operação que estão sendo criados para colocar um dispositivo de identificação de tudo que entra ou sai do seu computador, com sua identificação pessoal. De modo que qualquer coisa que aconteça, o governo saberá quem foi que fez. O que isso pode provocar na liberdade de expressão? Esse é um problema sério e as pessoas parecem estar falando de coisas triviais, como proteger essa indústria que é provavelmente a mais corrupta e bárbara que já houve. Não sei por que a sociedade deveria se importar com as gravadoras. Elas falam de pirataria, mas têm feito pirataria há muito tempo, roubando dos músicos freqüentemente. Eu não dou a mínima para as gravadoras. • Carol Almeida é jornalista. Continente julho 2003


Âť

A realidade

Foto: AGE. Shayam/Publiphoto

54 CAPA


Foto: Alexandre Gondim/ DP

CAPA 55 »

A

Pensadores de cinco países , como Jean Baudrillard, Edgar Morin, Michal Helm, Barry Katz, Paula Sibilia e André Lemos, se reuniram no Rio de Janeiro para debater os cenários assustadores criados pela digitalização do mundo

Luciano Trigo

existe?

vida não passa de um programa que roda na mente das pessoas, que estão adormecidas em casulos. Elas na verdade sonham que existem, trabalham e amam, enquanto as máquinas que dominam o mundo se alimentam de sua energia. Qualquer leitor que esteja em dia com os lançamentos do cinema terá identificado a referência à trilogia Matrix, dos irmãos Wachowsky. Mas o que pouca gente sabe é que a fronteira entre a realidade e a ficção científica é muito mais tênue do que parece. Teorias recentes afirmam que a própria natureza do universo é digital, e que tudo pode se reduzir ao código binário. As possibilidades abertas pelos avanços da biotecnologia e da teleinformática tornam perfeitamente plausível um horizonte de total compatibilidade entre a mente humana e a memória de um computador, bem como a criação de uma realidade inteiramente virtual, purificada das mazelas do mundo. Pesadelo ou utopia? Escravidão ou chance inédita de emancipação? Já se fala de um “homem pós-orgânico”, conectado numa rede planetária a uma gigantesca engrenagem de troca permanente de informações, o que estabelece novas maneiras de se relacionar e de ver o mundo. Para discutir as implicações assustadoras deste cenário, pensadores de cinco países, como Jean Baudrillard, Edgar Morin, Michal Helm, Barry Katz, Paula Sibilia e André Lemos, se reuniram durante três dias no Rio de Janeiro, onde participaram do seminário O Eu em Rede: A Subjetividade na Cultura Digital, promovido pela Universidade Cândido Mendes, com apoio da Unesco. Coincidentemente, visitou a cidade na mesma semana o matemático e filósofo australiano David Chalmers, para fazer uma conferência na UFRJ. Estudioso dos mecanismos da consciência, Chalmers é um dos gurus da inteligência artificial e tem no currículo palestras para a CIA. Ele acha perfeitamente natural que, num futuro não muito distante, as pessoas escolham viver numa realidade paralela, se não estiverem satisfeitas com o mundo real. E vai além: ele acredita que os animais e até as máquinas podem ter uma consciência, e que esta pode ser traduzida numa linguagem matemática. – O cérebro gera sua própria representação do mundo, o que é uma forma de realidade virtual. O nosso mundo é um grande computador. No futuro, cada indivíduo poderá viver em seu universo simulado, e se a versão Matrix for melhor, eu mesmo vou preferir viver dentro dela. O sociólogo argentino Christian Ferrer enxerga essa perspectiva com um olhar crítico, mostrando-se mais interessado nas implicações éticas das conquistas tecnológicas. Continente julho 2003


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Edgar Morin: “Hoje, o processo de planetarização é objetivo e subjetivo. Objetivamente, percebemos que tudo à nossa volta foi globalizado. Subjetivamente, cada indivíduo recebe ‘influxos do eu’, via rede, de todo o planeta. A inserção na rede produz um duplo espectral, um ‘ego virtual’, que no passado era representado pela alma”

Ferrer reconhece que estamos vivendo um momento de mudança de paradigma: da mesma forma que no passado se negava a existência da alma nos negros, nos indígenas, nas mulheres ou nas crianças, é possível que passemos a admitir que também os computadores são dotados de uma alma, o que daria à máquina o mesmo status (ou “estatuto ontológico”, no jargão filosófico) de um ser humano. Isso já fora antecipado nos primórdios da Revolução Industrial, quando o Parlamento inglês aprovou uma lei que condenava à morte quem destruísse uma máquina. Uma vida por uma máquina: esta equivalência torna urgente uma reflexão sobre o descompasso entre o desenvolvimento da moral e da técnica em nossos tempos pós-modernos. E isso estaria relacionado a uma incapacidade crescente do homem suportar a dor: – As promessas da rede informática e da biotecnologia transformaram o corpo humano num campo de experiências e estão modelando uma nova subjetividade, que sonha passar pela vida sem nenhum sofrimento, sem nenhuma dor. Ao mesmo tempo, aumentam as exigências por prazer e felicidade. Ferrer afirma que hoje a evolução da tecnologia é muito mais rápida que a da arte, da moral e da política. Inverteu-se assim a equação do século 19, quando os progressos científicos, embora significativos, não acompanharam mudanças como das artes plásticas, que revolucionaram nossa forma de ver e representar o mundo. Ou as da política: no século 19 foram inventados o liberalismo, o sindicalismo, o socialismo, o republicanismo, o nacionalismo, o marxismo, e é no horizonte destes inventos que ainda vivemos hoje, em pleno século 21. Isto implica um drama nas relações entre técnica e moral, ainda mais num contexto em que a preocupação com o conforto e a compulsão ao consumo são os valores que prevalecem na sociedade. Continente julho 2003

– As invenções e descobertas do projeto científico moderno se ligavam à idéia de uma melhoria progressiva da condição humana, refletindo as expectativas de toda a comunidade. Mas, nos últimos 20 anos, se rompeu o vínculo entre a coletividade e a ciência. Passamos da imaginação tecnológica promovida pela energia atômica e pela conquista da Lua a outra configuração, fomentada pela informática e pela biotecnologia, criando-se novos vínculos entre o corpo, a ética e a tecnologia. Parece claro que o mundo está passando por uma reconfiguração. Os efeitos das profundas transformações provocadas pela cultura digital sobre a formação de identidades, as questões éticas e a variação de papéis sociais do indivíduo contemporâneo foram abordados pelas duas principais estrelas do seminário no Rio, os filósofos franceses Jean Baudrillard e Edgar Morin. Baudrillard, autor de ensaios sempre provocativos como A transparência do mal, A ilusão do fim e O crime perfeito, aproveitou para lançar seu novíssimo livro, Tower inferno, que analisa os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Uma curiosidade é que o pensador foi citado/ homenageado no primeiro filme da série Matrix, na cena em que o personagem Neo (Keanu Reeves) esconde seus programas piratas dentro de um exemplar do livro Simulacros e simulações. Para Baudrillard, a aceleração das mudanças tecnológicas resultou num mundo sem referências, movido por fórmulas vazias, repetições incessantes das formas produzidas quando ainda existiam valores e referências da realidade. É o que ele chama de “simulacros”: a arte se tornou um simulacro da arte, a política um simulacro da política, e assim por diante. – Depois do “assassinato do real”, vivemos uma época de extermínio do diferente, do estranho, do “outro” – diz Baudril-


Fotos: Raul Moreira/Divulgação

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Jean Baudrillard: “Depois do ‘assassinato do real’, vivemos uma época de extermínio do diferente, do estranho, do 'outro'. Tentamos exorcizar a alteridade radical da morte por meio da terapia, da cirurgia estética, da clonagem, num sistema de identificação total entre todo mundo. A diferenciação entre indivíduo e massa desapareceu”

lard. – Tentamos exorcizar a alteridade radical da morte por meio da terapia, da cirurgia estética, da clonagem, num sistema de identificação total entre todo mundo, de “metástase do mesmo”. E todos se transformam em atores do espetáculo total da realidade, como nos atos televisivos imediatos dos reality shows. Cada indivíduo é uma reprodução de um “eu genérico”, conectado em rede e em perpétuo feedback comunicacional. É o novo fundamentalismo do circuito integrado: o indivíduo sozinho já se torna massa. A diferenciação entre indivíduo e massa desapareceu. Para Baudrillard, crítico contumaz da pós-modernidade, o novo indivíduo virtual nada tem em comum com o herói singular tradicional, que lutava consigo mesmo e com a sociedade. Ao contrário, ele é uma partícula disposta a se conectar ao cyber-universo. A conjunção da lógica do mercado com a interação on line das redes cria uma dinâmica de “desmaterialização” de todas as relações humanas, o que pode conduzir a uma catástrofe antropológica, um estado de “megaentropia” radical. É uma nova forma de terror. A integração total em redes traz também a desregulamentação total, já que o homem não está mais ligado a um tempo linear e histórico, o tempo da duração e da memória fundamental para o estabelecimento de qualquer laço, e sim a um presente perpétuo. O tempo virou uma seqüência de instantaneidades, diz Baudrillard: – O tempo histórico desaparece no “tempo real”, que é uma sucessão de instantes sem memória que se perdem na própria dispersão. A própria verdade se torna incerta, sendo substituída pela credibilidade, e o indivíduo se desprende de qualquer responsabilidade moral. Torna-se aleatório o espaço que separa o verdadeiro do falso, o bom do mau, e até mesmo o masculino do feminino. Todas as distâncias foram abolidas:

entre os sexos, entre o real e seu duplo, entre ator e espectador. Onde tudo é “indecidível”, a ética desaparece: não é mais possível fazer qualquer julgamento na arte, na moral ou na política. Onde tudo coincide com a própria imagem, não há mais espaço para a interpretação: é o homem que se torna realidade virtual da máquina. Baudrillard vai mais além em sua visão apocalíptica: a lógica do tempo real põe em risco a própria linguagem, já que ela não pode dizer tudo ao mesmo tempo. O texto digital, visto numa tela como uma imagem, não tem mais nada a ver com a transcendência do olhar e da escrita. Os conceitos que usamos para analisar o virtual, neste sentido, já estão ultrapassados, pois partem de uma concepção “realista”. Seria preciso, portanto, rever esses postulados dentro de uma perspectiva virtual: – Antigamente a produção ditava o consumo. Essa lógica se inverteu, e hoje tudo é movido pelo consumo em si. É um processo catastrófico, porque o mundo perdeu o limite, o equilíbrio, a referência de verdade. Outro aspecto delicado é que os critérios pragmáticos e até mesmo o vocabulário operativo da tecnologia se sobrepõem cada vez mais à reflexão sobre o sentido da vida. A eficácia prevalece sobre os conceitos de justo, certo e bom. O veterano e incansável Edgar Morin, que publica ensaios desde 1951, quando lançou O homem e a morte, e desde então vem participando de todos os debates que afetaram a sociedade européia, da contracultura dos anos 60 à globalização dos anos 90, tocou nesta questão, embora de forma menos pessimista que Baudrillard. Ele vê a digitalização como um produto do espírito humano: – Hoje, o processo de planetarização não é somente objetivo, mas também subjetivo. Objetivamente, percebemos que Continente julho 2003


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58 CAPA

“É preciso inventar novas armas” Foto: Raul Moreira

A antropóloga argentina Paula Sibilia: “é irreversível a mutua impregnação pela lógica digital através do convívio com os aparelhos e com as metáforas que os atravessam”. Na outra página, capa do livro O Homem Pós-Orgânico

Antropóloga, professora de História das Idéias e Filosofia da Técnica, a argentina Paula Sibilia condensou suas reflexões sobre realidade virtual e vida digital no livro O homem pós-orgânico, recentemente lançado pela editora Relume-Dumará. Para Paula, as metáforas do robô e do homem-máquina, que marcaram a sociedade industrial, não dão mais conta de um mundo dominado pela teleinformática e pela biotecnologia. Elas foram substituídas pela imagem do “homem-informação”, condenado a um upgrade permanente, tanto físico quanto mental. Refletindo criticamente sobre hipóteses desconcertantes, como a digitalização total da mente humana, Paula considera que o novo cenário pós-orgânico tem um potencial de emancipação, como declara nesta entrevista. O modelo da memória como lugar de acúmulo de conhecimento foi substituído por outro, no qual o que importa é o acesso às informações. Num mundo desigual e injusto, isto não pode gerar novos mecanismos de exclusão social? Desde seus primórdios, o capitalismo manteve na miséria dois terços da população mundial. Mas, com a automatização das fábricas e o advento das tendências virtualizantes, e com o atual deslocamento do foco para as finanças, os serviços, o marketing e o consumo, essa porcentagem de “excluídos” está aumentando perigosamente. São poucos aqueles que podem se submeter à vertigem da flexibilidade e da reciclagem constante, a fim de satisfazer as demandas da competitividade, colocando no mercado de trabalho os atributos igualmente “virtuais”, etéreos e imateriais que hoje são solicitados: criatividade, inteligência, conhecimento, habilidades comunicativas e informação. Continente julho 2003

A hibridização homem-máquina é um processo irreversível, ao qual à humanidade está condenada? Isso deve suscitar alguma forma de resistência? É irreversível a compatibilidade entre homens e computadores, isto é, a mutua impregnação pela lógica digital através do convívio com os aparelhos e com as metáforas que os atravessam. Isso já está ocorrendo no presente. Mas se trata de uma construção histórica e, como tal, pode mudar. Ou seja, não se trata de um fato “natural”, de uma “conseqüência inevitável do progresso”, mas de uma construção que responde a um projeto sócio-político e econômico determinado. Eu, particularmente, sinto um desconforto profundo com relação ao papel que o mercado assumiu em nossas vidas, e concordo com Gilles Deleuze quando ele diz que a nossa sociedade sofreu uma mutação nas últimas décadas, e que não cabe temer ou esperar: é preciso inventar novas armas. Fale sobre a aparente contradição entre o processo de “desmaterialização” do corpo e a ênfase crescente nas tecnologias de construção do corpo humano, do silicone à cirurgia plástica e às dietas. Parecem duas tendências paradoxais, porém ambas obedecem à mesma lógica. Por um lado, a virtualização, a digitalização e a desmaterialização promovem uma certa repugnância pelo corpo biológico, pela viscosidade da sua materialidade orgânica. Isso pode parecer contraditório com a entronização do corpo, que hoje se torna o alvo de todos os cuidados em termos de saúde, beleza e juventude. Mas, paradoxalmente, este corpo endeusado é um corpo “virtualizado”, depurado de suas limi-


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tações e imperfeições orgânicas, pois toda a parafernália das indústrias do corpo aponta para um ideal asséptico, virtual, digital, pós-orgânico. A Internet está gerando novas dinâmicas na afetividade e na sexualidade, já que cada vez mais pessoas se relacionam virtualmente. Qual o efeito disso sobre o indivíduo? É possível estabelecer verdadeiros laços afetivos, ou de desejo, pela Internet? Sinto a tentação de dizer que sim, pois a sexualidade humana é múltipla, e suas manifestações variam historicamente, mas o fenômeno é inquietante. Eu não considero que o cyberespaço seja um universo separado do mundo real. Pelo contrário, trata-se de um fenômeno perfeitamente “real”, que faz parte de nosso mundo e está afetando fortemente nossas subjetividades, nossas cosmovisões e nossos modos de ser. As práticas desenvolvidas nos ambientes digitais estão influenciando as condutas sexuais e o imaginário erótico, mas este é um fenômeno muito recente, cuja popularização começou há menos de uma década. O desenvolvimento das técnicas de clonagem tornará o sexo inútil, ou ao menos desnecessário do ponto de vista reprodutivo. Que futuro você vê para a sexualidade? A tendência é uma hibridização homem-mulher, com comportamentos sexuais cada vez menos diferenciados? O fato de a reprodução não ser o único objetivo do sexo ficou evidente pelo menos desde a invenção da pílula anticoncepcional. É verdade que as técnicas de clonagem vão mais fundo nesse sentido, pois tornam desnecessária a participação masculina na concepção de um novo ser. Isso é inquietante. As condutas sexuais e o imaginário erótico estão atravessando fortes transformações, com certeza afetados pelas descobertas e invenções tecnocientíficas, tanto no campo teleinformático como no das ciências da vida, mas também em virtude das mudanças sociais e políticas que estamos vivenciando. Parece sobrar cada vez menos espaço para a reflexão moral num cenário dominado pela ciência e pela tecnologia. Você julga ser necessária a construção de uma nova moral, com valores que acompanhem essas transformações? Os avanços tecnocientíficos são tantos e tão velozes que as nossas ferramentas para compreendê-los e avaliá-los costumam ser insuficientes, pois também elas estão submetidas ao turbilhão da obsolescência e ao imperativo da reciclagem constante. Acredito que aí resida a origem do despertar da bioética e do biodireito nos últimos anos em todo o planeta, com os debates e questionamentos que decorrem da proliferação de fenômenos inquie-

tantes surgidos dos laboratórios. As propostas de estabelecer proibições e estipular o cumprimento de códigos internacionais, porém, não parecem adequadas à dinâmica da nova tecnociência aliada ao mercado global, e, acredito, a eficácia dessas iniciativas será escassa. Você fala da compatibilidade entre o cérebro humano e o computador, mas seria possível fazer um download da criatividade? No fim das contas, este resíduo não redutível a “zeros” e “uns” não seria o que existe de mais essencialmente humano? E como pensar a arte num cenário pós-orgânico? A arte, assim como a ciência e a filosofia, tem um papel fundamental: ela deve ousar. Rasgar o véu do senso comum e das verdades estabelecidas para ir além do que já se sabe, atrever-se a pintar e a pensar o que ainda não foi pensado, ou pintado. A capacidade de criar é um patrimônio valiosíssimo do gênero humano, inclusive daqueles integrantes da espécie que começam a se pensar como pós-orgânicos e como compatíveis com os aparelhos e com a lógica digital. Eu confio plenamente nessa capacidade, admiro essa potência da vida e procuro estar sempre atenta às suas reverberações. Décadas atrás, Bioy Casares escreveu um conto fantástico no qual o protagonista armazena a mente da esposa morta numa espécie de máquina, possibilidade que começa a ser levada a sério. Até que ponto as promessas da cybercultura serão realmente cumpridas? Não há um pouco de fantasia nisso tudo? Eu não posso dizer nada sobre o futuro, apenas posso lançar olhares pessoais sobre o presente. Particularmente, não estou tão interessada em saber se os projetos de digitalização do corpo humano serão realizados ou não, o que me preocupa realmente é o fato de eles serem formulados hoje, que estejam sendo pensados e divulgados e, com isso, impregnando o mundo. Procuro entender os sentidos e as possíveis implicações dessas cosmologias que estão emergindo, rastreando sempre sua raiz política. Você enxerga um potencial emancipador no mundo pósorgânico? Apesar da minha visão crítica com relação a todos esses processos, vejo forças positivas no desabamento de velhas formas de dominação e outras cristalizações de poder, que estão se desfazendo. Além disso, confio muito na potência criadora dos homens, inclusive dos “pós-orgânicos”, e acredito que os momentos de transição como este são férteis, pois permitem enxergar as inovações sobre o pano de fundo daquilo que vai ficando para trás. Discutir essas questões já é valioso, pois só entendendo aquilo em que estamos nos tornando poderemos definir aquilo em que queremos nos tornar. • Continente julho 2003


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60 CAPA Fotos: Divulgação

Segundo Morin, a civilização contemporânea separou a realidade do sonho, que antigamente era visto como algo premonitório. Foi por isso que Rimbaud escreveu que “a verdadeira vida está ausente”, como se existisse uma realidade sonambúlica e uma outra realidade, como ocorre em Matrix

tudo à nossa volta foi globalizado: comemos frutas brasileiras, usamos roupas chinesas, ouvimos rádios fabricados no Japão. Subjetivamente, cada indivíduo recebe “influxos do eu”, via rede, de todo o planeta. A inserção na rede produz um duplo espectral, um “ego virtual”, que no passado era representado pela alma. O problema é que nos acostumamos a falar de uma só realidade, aquela que apreendemos pelos sentidos, quando dentro da realidade existem vários níveis. Fazendo uma análise mais conceitual do fenômeno da digitalização e virtualização do mundo, Morin considera que a diferença entre “vida” e “não-vida” é uma questão de organização, e que o fundamental é preservar a capacidade do homem de alcançar um “estado poético”: – Viver poeticamente é o cerne da realidade e da verdade humana – declarou. – E o estado poético, num certo sentido, já é virtual, ou surreal, porque é mais do que real. Quando somos capazes de atos não-gratuitos, de atos que modificam a percepção das coisas, afirmamos nossa humanidade contra a trivialidade das máquinas. O estado de paixão nos liberta do determinismo. A civilização contemporânea separou a realidade do sonho, que antigamente era visto como algo premonitório. Foi por isso que Rimbaud escreveu que “a verdadeira vida está ausente”, como se existisse uma realidade sonambúlica e uma outra realidade, como ocorre em Matrix. E a melhor forma de resistência é fazer os dois mundos interagirem. Continente julho 2003

Na contracorrente dos apocalípticos que temem a perda da identidade promovida pela digitalização e pela simbiose crescente entre homens e máquinas, o americano Michael Helm, considerado um dos papas da realidade virtual, defende o uso sociopolítico da rede e acha que a Internet pode ser uma “arma contra o ódio”. Helm é autor de três livros sci-tech, Electric language, The metaphysicis of virtual reality e Virtual realism. – É preciso fazer com que os jovens de diferentes partes do mundo se comuniquem e se tornem amigos, pois depois de 11 de setembro é de mais amizade que o mundo precisa, e não de mais segurança. Os mundos virtuais em três dimensões, povoados por “avatares”, os ícones que representam as pessoas em cenários virtuais, são um poderoso instrumento para essa integração. O seminário internacional O Eu em Rede contou ainda com a participação dos franceses Jerôme Bindé, diretor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Unesco, François L'Yvonnet, filósofo parisiense, e Vincent Amiel, professor da Universidade de Caén; dos professores da Universidade de Porto Rico Heidi Figueroa Sarriera e Emilio González-Días; do americano Barry Katz, da Universidade de Stanford; da argentina Paula Sibilia (ver entrevista ao lado); e dos teóricos brasileiros André Lemos, Maria Cristina Franco Ferraz, Erick Felinto e Maria Isabel Mendes de Almeida. Todos levantaram questões inquietantes relacionadas à digitalização do mundo e à crescente integração entre homens e máquinas – houve quem afirmasse que a antiga fórmula dialética “tese, antítese e síntese” foi substituída por “tese, antítese e prótese”. Paula, autora do livro O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais, acha que estamos vivendo o sonho de transcender a condição humana, ultrapassando as “falhas” inerentes ao corpo orgânico. Assim, desafiam-se os limites espaciais e temporais ligados à materialidade corporal, recor-


No filme S1M0NE, o personagem vivido por Al Pacino cria uma mulher virtual

rendo-se ao arsenal de tecnologias da virtualidade – que prometem acabar com as distâncias e fronteiras geográficas – e da imortalidade – que declaram guerra ao envelhecimento, à doença e à morte. Cada vez mais, o corpo dispensará os suportes orgânicos e materiais para atravessar, sem restrições, tempos e espaços: – Além da manipulação da informação genética, a tecnociência hibridiza cada vez mais os corpos vivos com materiais inertes. Os agentes artificiais se misturam com os orgânicos, dissolvendo as fronteiras e tornando obsoleta a antiga diferenciação entre a matéria viva e a inanimada, já que ambos os elementos compartilham a mesma lógica da informação digital. É o caso dos microchips com componentes orgânicos e dos implantes biônicos. Assim, potencializado pelo uso de um léxico e de uma retórica comuns ao reino biológico e ao informático, o homem contemporâneo se torna compatível com os computadores. Cabe perguntar se não há um pouco de fantasia e exagero em alguns cenários desenhados pelos participantes do seminário. Afinal de contas, mais do que questões muito distanciadas da realidade não-digital em que a maioria da

população ainda vive no mundo – basta pensar no exército imenso de excluídos que não têm acesso a comida, muito menos a computadores – chegou-se a colocar em dúvida a própria existência da realidade. Mas, como lembra Baudrillard, a questão não é nova, pois “saber se o real existe é uma dúvida tão velha quanto Platão”. Mais interessante, segundo ele, é pensar na assimilação pela cultura pop (à qual pertencem Matrix e outros filmes recentes) de um debate filosófico profundo. Baudrillard explica, com um ceticismo perturbador: – A cultura pop hoje pode absorver até mesmo a análise crítica mais profunda. A reflexão pode ser integrada à mercadoria, e portanto pode ter o mesmo cartáter de obsolescência da mercadoria. Como não existe mais a distância que permite a objetividade, o lugar da crítica desapareceu, e ela passou a funcionar como os signos acelerados das imagens. Decorre daí que o verdadeiro pensamento, hoje, não busca mais um discurso da verdade, tornando-se um pouco delirante. • Luciano Trigo é jornalista. Continente julho 2003


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62 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

A mesa, como convém Fotos: Léo Caldas/Titular

“Mas logo à mesa voltavam, que a fome bem pouco espera, e os seus olhos descansavam em porcelanas da China e cristais da Baviera”. Carlos Pena Filho, Memórias do Boi Serapião

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E

ram quase os mesmos utensílios. E quase o mesmo cardápio. A diferença estava na qualidade desses objetos e, sobretudo, na quantidade da comida posta à mesa. Nos tempos antigos, a alimentação de nobres e plebeus era muito parecida. Comia-se onde fosse mais conveniente, indiferentemente dentro ou fora da casa. Mas sempre perto do fogo – com o convidado, quando havia, sentado de costas para ele. Mesas improvisadas, armadas, só na hora das refeições, tinham pés em xis e tampos de tábuas. Pouco a pouco vieram as salas de jantar, como as conhecemos hoje. Primeiro, para os que tinham posses. A partir do século 17, em todas as casas. Toalhas de mesa eram de cânhamo ou linho, com bordados evocando motivos de caça. Nas casas simples, usadas apenas em ocasiões especiais. Rodelas individuais de pão antecipavam os pratos de hoje. Sobre elas se servia a refeição. Sendo o pão comido, no fim, já enriquecido por molhos e restos de comida. Pratos também remontam ao século 17. No início de madeira. Depois de estanho, cobre ou prata – vindo, só depois, os de porcelana e vidro. Todos comiam então com os dedos. Menos os chineses, com seus hábitos ancestrais – “não tocam com a mão o que comem, usam umas tenazes de prata ou de pau, para meter, mui amiúde, a comida na boca”, assim Duarte Barbosa descreveu um almoço, em 1516. Vem bem a propósito velho ditado português, “quem não trabuca (trabalha) não manduca (come)” – sendo manducare, em latim, comer com as mãos. E ainda hoje se diz, de uma boa comida, que ela é “de lamber os dedos”. As mãos usadas na comida eram lavadas muitas vezes, durante as refeições. Na aristocracia, em bacias e jarros de prata, servidos por escravos; nas casas de menor posse, em tinas simples de madeira. Depois esse


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hábito foi se sofisticando. E surgiram as lavandas. O talher foi nascendo aos poucos. Primeiro a faca. A origem do nome parece ter vindo do árabe farkha. Ela e um machado rústico são os mais antigos objetos feitos pelas mãos do homem. No início, essas facas eram apenas lascas de pedra, com bordas afiadas. Depois evoluíram para lâminas de bronze e ferro. Ganhando cabos, em uma das extremidades da lâmina – para ser, nos campos de batalha, mais fáceis de manusear. Essas primeiras facas funcionavam apenas como ferramentas ou armas. “A mais bonita arma já inventada pelo homem”, segundo Domenech. Só bem depois essas facas começaram a ter serventia na preparação dos alimentos. Pedaços de carne ou outros alimentos eram espetados nas pontas das facas e levados à boca. Convidados usavam quase sempre as suas próprias facas. A ponta dessas facas só se arredondou muito depois, quando a função de prender os alimentos passou a ser exercida pelos garfos. Deixando os dentes de ser palitados com essas pontas – prática abominada pelo cardeal Richelieu. Surgindo finalmente, em 1921, as de aço inoxidável. Depois da faca veio a colher – do grego kokhlus. O homem primitivo usava conchas de moluscos para mexer os alimentos, durante sua preparação. Ou para servi-los à mesa. Depois passaram a ser fabricadas com osso e pedra. Mais tarde foram se sofisticando, no material e na forma. Maiores para a sopa, menores para a sobremesa. Os ingleses ainda inventaram a mote spoon – uma colher bem pequena, de prata, usada apenas para pescar folhas de chá no fundo da xícara. Câmara Cascudo descreve esses utensílios quase como um jogo de sedução: “na hierarquia do talher, a faca é presença agressiva; enquanto a colher, para o povo, é a mão com os dedos unidos, assegurando a concavidade receptora e natural”. Garfo é invenção mais recente. Seu antepassado remoto é um estilete (graphium), usado pelos romanos para escrever em tábuas. Apesar disso, entre nós, seu nome vem do árabe – onde garf significa punhado. Os primeiros garfos surgiram em Veneza, no séc 11. Com Theodora, que veio de Bizâncio para casar com o Doge Domenico Salvo. Não fizeram muito sucesso, por essa época. Chegando a ser considerados “castigo de Deus” ou “objetos do pecado” – por João Boaventura, filósofo, cardeal, doutor seráfico e depois Santo. Sua popularidade começou verdadeiramente na França, ao tempo de Catherina de Médicis. Nasceu com apenas 2 dentes; depois ganhando, aqui e ali, mais um. Até que finalmente, no reinado de Fernando de Bourbon, ganhou seu formato definitivo de 4

dentes – por ordem e graça de Germano Spadaccinni, seu “despenseiro real”. Por tudo isso, apenas no século 17 se formou o talher – juntando faca, colher e garfo. Faltando apenas dizer que facas e garfos especiais para peixe vieram ainda mais tarde, só ao tempo da Revolução Industrial. chegando ao Brasil bem depois, não sendo ainda encontrados, por aqui, nos requintados faqueiros da época do Império. Copos, durante muito tempo, só de barro. Depois de estanho. E, em ocasiões especiais, de ouro. Veio do antigo Egito a idéia de usar vasos ocos de vidro, para acondicionar líquidos. Obtidos pelo sopro do vidro através de tubos metálicos. Depois essa técnica síria difundiu-se por todo o Império Romano. Ainda hoje podendo ser vistos, em museus locais, vidros de perfume e sobreviventes dessas antigas canecas. Afinal generalizando-se o uso de copos de vidro, a partir do século 18. Guardanapo parece ter sido mesmo invenção de Leonardo da Vinci. Quando passou a distribuir na mesa, entre convidados, panos quadrados individuais a que chamou de mantile – dada sua semelhança com mantilhas. Por não lhe agradar ver pessoas limpando as mãos nas toalhas da mesa, na cabeça dos escravos e sobretudo em coelhos amarrados nas cadeiras. Assim escreveu: “o meu senhor Ludovico tem o costume de atar coelhos adornados com fitas às cadeiras dos seus comensais, a fim de que estes possam limpar as mãos engorduradas às costas do animal. E quando, depois da refeição, os animais são recolhidos e trazidos para a lavanderia, o fedor infiltra-se nos outros panos que são lavados conjuntamente com eles”. Nada a estranhar que se preocupasse com isso. Que da Vinci passou 30 anos de sua vida trabalhando para Ludovico Sforza, governante de Milão, como “Mestre de Banquetes” (e “Conselheiro de Fortificações”). Acabou demitido quando um monumental bolo de casamento, por ele concebido, foi destruído por pássaros e ratos. Mas essa é outra história. Manuel Bandeira, em sua Consoada, fala na “casa limpa, a mesa posta,/ com cada coisa em seu lugar”. Que pensava ter quando “a indesejada das gentes” chegasse. Mas essa mesa, para valer verdadeiramente a pena, deve ser posta com ingredientes complementares. Como flores. Hábito presente desde a mais remota antiguidade. No início formando coroas destinadas às cabeças dos convidados. Depois passando a ser postas diretamente sobre as mesas. Como agradecimento aos deuses pela dádiva do alimento. Ou talvez, mais provavelmente, para disfarçar cheiros – do álcool ingerido pelos convidados e das Continente julho 2003


CONSELHOS ÚTEIS Pratos devem ser colocados a um dedo da borda da mesa, com distância entre eles nunca inferior de 60 cm. O prato individual do pão, e também o da manteiga, ficam do lado direito. carnes em decomposição. Faltando só falar da crença em suas qualidades terapêuticas. Violetas e rosas, por exemplo, teriam o poder de atenuar dores de cabeça – ao menos segundo Plutarco. Registrando as crônicas oficiais alguns exageros. Como o do imperador romano Heliogábado – que, em uma de suas orgias, literalmente afogou seus convidados em um mar de pétalas de rosas, que caíam do teto como chuva. Também música acompanhava as refeições, desde a antiguidade. Banquetes gregos, etruscos e romanos eram sempre acompanhados por tocadores de flauta ou de lira. Na Idade Media, por grupos de músicos – incluindo trombetas, rabecas e pífanos. Assim descreveu José Quitério um jantar dessa época: “cada serviço foi acompanhado ao som de clarins, trombetas e oboés; entre os serviços, a música soou mui melodiosamente. Acabada a ceia, as graças foram ditas por músicas”. Grandes compositores começaram suas vidas embalando esses banquetes. Beethoven fez isso. Haydn chegou a ser contratado, pelo príncipe Esterhazy, para tocar no palácio durante as refeições. E o gordo Rossini acabou sendo a mais perfeita mistura de música e arte gastronômica. Não por acaso merecendo a homenagem de pratos como tornedos, canelones ou saladas à la Rossini. Bons tempos aqueles. Em que não havia fast foods, big macs, selfservices, fornos microondas. Em que comida não se comprava por peso. Em que comer era mesmo uma epifania. Um ritual esplendoroso. Um verdadeiro prazer. • Maria Lecticia Cavalcanti é professora.

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Lavanda, à esquerda. De preferência, com água aromatizada por rodelas de limão ou pétalas de rosa. Devendo essa lavanda ser retirada da mesa junto ao alimento que deva ser comido com as mãos. Colher de sopa e facas, com a serra virada para o prato, estarão à direita. Garfos à esquerda. Em dúvida sobre o talher adequado, basta usá-los de fora para dentro, à medida em que os pratos forem sendo servidos. Faca, colher e garfo de sobremesa ficam, horizontalmente, logo à frente do prato. Os copos estarão dispostos da esquerda (os maiores) para a direita, pela ordem de tamanho – maiores para água, médios para vinho tinto, menores para o branco – que, para permanecer gelado, deve ser servido aos poucos. Algumas vezes haverá um copo menor ainda, à direita, para o madeira ou o porto. Como também poderá haver, na extrema esquerda da fileira, tulipa (flûte, alta e estreita) para o champagne – melhor que as taças abertas e rasas, por manter o aroma da bebida. Guardanapos são colocados sobre os pratos ou à direita deles. Durante as refeições, deixe-o no colo e use só quando necessário. Por fim recomenda-se, de todo coração, resistir à tentação de usar palitos.


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66 DANÇA

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Os bailarinos da Távola Redonda Grupo Grial de Dança festeja seis anos de atividades e inaugura a Casa do Grial, para atrair e formar novos bailarinos e pensadores armoriais

Isabelle Câmara

Grupo Grial de Dança é hoje um dos mais atuantes e respeitados no cenário da dança local, quiçá nacional. Fundado há exatos seis anos, o Grupo comemora a consagração com uma nova conquista: a inauguração da Casa do Grial, espaço dedicado à formação de novos bailarinos e pensadores na estética armorial, surgida sob a inspiração e direção do escritor paraibano Ariano Suassuna. As montagens do Grial são abalizadas na fonte do Movimento Armorial. Maria Paula Costa Rego, amiga de uma das filhas de Ariano Suassuna, coreógrafa e diretora do Grupo, recebeu do próprio Ariano a sugestão para criar uma companhia baseada na dança erudita a partir das raízes populares da cultura brasileira. De lá para cá foram cinco produções. A primeira, A Demanda do Graal Dançado, narra um pouco da origem e permanência do Grial (como os espanhóis do sul da Espanha chamam o Graal); a aparição do Graal, cálice onde está contido o sangue de Cristo, para os 150 cavaleiros da Távola Redonda. Durante anos de suas vidas, os cavaleiros procuram essa nova visão, que reaparece apenas para Pedragon, filho do Rei Arthur. “A nossa busca, também quase mítica, é pela dança brasileira, que espero nunca encontrar, pois é isso que nos motiva”, revela Maria Paula. A história da Demanda marcou a trajetória do Grupo: musicalmente, começa com Mestre Salu tocando ao vivo sua rabeca. Passa por Villa-Lobos, Antônio Nóbrega e entra pelo Quarteto de Cordas nº 01, de Beethoven, que com suas notas sincopadas lembram as batidas do frevo. O espetáculo termina com uma espécie de recriação erudita do frevo, obra de Antônio Madureira. A coreografia fica por conta de outra ousadia de Paula, a reunião de três bailarinos clássicos com três de formação popular, para juntos dançarem um roteiro musical imaginado sem qualquer preconceito – assim como a arte com a qual estão ligados, que tem como traço comum a ligação com o espírito mágico dos folhetos da Literatura de Cordel, com a música de viola, rabeca ou pífano e com a Xilogravura. Depois da Demanda, vieram o Auto do Estudante que se Vendeu ao Diabo; As Visagens de Quaderna ao Sol do Reino Encoberto; Uma Mulher Vestida de Sol – Romeu e Julieta; e, por último, Folheto V – Hemisfério Sol, todos inspirados nas obras de Ariano Suassuna. Folheto V – Hemisfério Sol representa uma nova fase na vida do Grupo, na qual as novas tecnologias e absolutismos mundiais são questionados, como o capitalismo e a globalização. “Queremos preservar o frevo, por exemplo, dentro da possibilidade de evoluir perante essas novas ditaduras”, adianta a coreógrafa.


Foto: Marcelo Lyra/ Divulgação


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68 DANÇA Foto: Hans V. Manteufell/ Divulgação

Hemisfério Sol é o estudo da dramaturgia em dança. O espetáculo é montado numa estrutura de andaimes para rapel e, segundo Maria Paula, estar nas cordas é a grande inspiração. “Como vou colocar o armorial a serviço das cordas e vice-versa?”, foi a pergunta dela, também autora dos textos das montagens do Grial. “Questionamos coisas que se estivéssemos no chão não questionaríamos”. Hemisfério é uma mistura do Auto da Compadecida, da Pedra do Reino e de Um Casamento Suspeitoso, obras do escritor paraibano – que também deu o mote para o nome do espetáculo: “Certa vez, ele falou que a alma humana era dividida em dois hemisférios, o hemisfério rei e o hemisfério palhaço”. Hemisfério Sol vai abrir o Festival do Teatro Brasileiro, em Brasília, no mês de setembro. Casa do Grial – De acordo com Maria Paula, a Casa do Grial, é um projeto a longo prazo. “Não é uma escola nos moldes comuns. É uma escola de pensamento armorial. Este ano, aprofundaremos ainda mais a técnica popular, para ver até onde ela pode se tornar elemento de contemporaneidade”. Em busca de novos integrantes para o Grupo, o Grial está abrindo espaço para seleção e formação de bailarinos. Também está em busca de apoio para reformar a Casa, visto que o patrocínio da Chesf viabiliza a qualidade na dança. “Queremos um espaço onde o bailarino possa entrar em contato com a literatura fantástica de Ariano, Gabriel García Márquez, Hermilo Borba Filho, com os grandes teóricos da dança e bailarinos, como Isadora Duncan, Martha Graham, Merce Cunningam; onde eles possam se equilibrar na tênue linha que separa o popular do erudito e construir uma nova linguagem, que seja o encontro entre nós mesmos e o nosso país”. •

Na Demanda do Graal Dançado é travado um duelo entre as cordas do Quarteto n° 1, de Beethoven, com as cordas da rabeca de Mestre Salu (no fundo do palco) Foto: Jorge Cléziol/ Divulgação

Maria Paula no Auto do Estudante que se Vendeu ao Diabo

Hemisfério Sol (também nas páginas anteriores) é inspirado nas cordas

Foto: Marcelo Lyral/ Divulgação Continente julho 2003


Foto: Divulgação

Dança em mostra no Recife Substituindo o Festival de Dança da cidade, cancelado, a Mostra Brasileira traz bailarinos do Rio Grande do Sul e Roraima, entre outros lugares Acima, Priscilla Yokoi. Abaixo, Fernanda Manoel. Ambas da Especial Cia. de Danças Clássicas, de São Paulo

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om o cancelamento da oitava edição do Festival de Dança do Recife no mês de julho, evento nãocompetitivo já consolidado como um dos mais importantes do cenário nacional da área, produtores locais uniram-se e criaram a Iª Mostra Brasileira de Dança que, também sem caráter competitivo, visa fazer uma amostragem do que é feito pelo País. A iniciativa do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão do Estado de Pernambuco (SATED-PE), da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (APACEPE), da Shiro Produções e da Paulo de Castro Produções, organizou, em tempo recorde, uma comissão de dança especialmente composta para viabilizar a idéia. Além de fortalecer o mercado de trabalho para artistas e técnicos da área, o objetivo é conferir o que de melhor vem fazendo a produção local e, nesta primeira edição, com uma pequena parcela de convidados de outros Estados. A programação, com mais de 50 companhias, chega a contar com grupos de lugares extremos como Rio Grande do Sul e Roraima. E o que é melhor, todos os espetáculos são a preços populares. Sob a coordenação da maître Aracy de Almeida e do professor Guivalde de Almeida, a Especial Cia. de Danças Foto: Hans V. Manteufell

Clássicas, de São Paulo, traz três dos seus melhores casais de bailarinos: Jurandir Rodrigues, Flávia Garcia, Guilherme de Oliveira, Welton Nascimbene e Fernanda Manoel, esta última 1° lugar no Festival de Dança de Joinville ano passado, na categoria grand pas-de-deux. Mas a maior estrela é mesmo a bailarina Priscilla Yokoi, de 19 anos. Considerada uma das grandes revelações do ballet brasileiro, com freqüência ela é convidada a participar de festivais pelo mundo, onde já arrebatou prêmios importantes. Outro que também sempre causa sensação no público, especialmente o feminino, é o dançarino do ventre Netto, de Minas Gerais, presença constante nos eventos de dança do Recife. Pela primeira vez, o rapaz vem acompanhado de toda a sua trupe, a Gothan Cia. de Dança. Já no universo da dança contemporânea, de São Caetano do Sul, interior paulista, vem a Stacatto Cia. de Dança, trazendo seu mais recente trabalho: Inter-valo. Além de um trabalho físico altamente vigoroso, a coreografia aposta na sensibilidade de suas cinco intérpretes. Mais atrações convidadas de outros Estados são o Ballet Municipal de Natal (RN), a Sem Censura Cia. de Dança (PB), a Cia. Municipal de Dança de Caxias do Sul (RS) e a Cia. de Continente julho 2003


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Balé Vitória Mota Cruz (RO). Um dos destaques brasileiros da dança de salão, o coreógrafo e dançarino carioca Rogério Mendonza também estará presente com Sarah Palhares. O casal vai apresentar, segundo ele, sua melhor obra, intitulada Bailador. Numa mesma coreografia eles prometem mostrar os estilos da salsa em Cuba, Los Angeles, New York, os giros à la Porto Rico e o swing próprio do Brasil. Quanto às atrações de Recife e Olinda, uma das grandes sensações promete ser a Cia. de Dança Artefolia que, comemorando dez anos de carreira e levando ao pé da letra o seu nome, concebeu especialmente para essa primeira edição da mostra a coreografia Patuscada, sinônimo de festa, folgança e farra generosa. O trabalho tem criação e direção de Marília Rameh e reúne ritmos e passos de três ciclos festivos, o Carnaval, representado pelo maracatu e o frevo, o São João, com trechos do coco de roda e o Natal, com o folguedo do cavalomarinho. Ao final, o frevo vem dar a idéia de recomeço das festas a cada ano. No começo deste ano a Cia. Artefolia conquistou todos os prêmios da categoria dança popular no projeto Janeiro de Grandes Espetáculos: Melhor Coreografia, Melhor Bailarina e Bailarina Revelação. O pluralismo cultural do Nordeste, e em especial de Pernambuco, também está presente na nova investida da Criart Cia. de Dança, equipe que desde 1999 vem dedicando-se

à dança popular. A direção é de Paula Azevedo. No espetáculo Paranambucae, os movimentos coreográficos remetem-se à origem e miscigenação das três raças que formaram nosso povo: a branca, a negra e a indígena, com passos de capoeira, danças afro, cavalo-marinho e ciranda. Já a Cia. Forrobodó de Dança Tradicional, uma das ramificações do Balé Popular do Recife, formada por jovens de 14 a 18 anos, vai apresentar Maracoxé, uma inusitada mistura de maracatu com afoxé, Caboclinhos, Solo Afro, com o dançarino Márcio Nascimento e, encerrando, um autêntico Frevo. O casal de dançarinos Sandro Rogério e Adriana Bandeira, da Cia. Jaime Arôxa Recife, prepararam duas coreografias para o evento: a inédita Menina Sarará, uma espécie de samba pop onde um rapaz paquerador tenta escapar de uma armadilha preparada por sua namorada, e Malena, a história de uma cantora de tango do baixo meretrício. Com este último trabalho, a dupla abocanhou os prêmios de Melhor Coreografia e Casal de Dançarinos de Salão no Janeiro de Grandes Espetáculos 2003. • Mostra Brasileira de Dança. De 23 a 27 de julho, às 19h, no Teatro de Santa Isabel. Praça da República, Recife. Fones: (81)3224.1020 – 3224. 0005. Ingressos: R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (artistas, estudantes e maiores de 65 anos). Mais informações: (81) 3423 3186 ou 3421 8456.

Foto: Marcelo Lyra

O melhor do Bacnaré

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O grupo treina crianças e adolescentes de baixa renda

econhecidamente o grupo pernambucano de dança que mais projetou a cultura afro-brasileira-nordestina pelos quatro cantos do mundo, com 148 prêmios internacionais,o Bacnaré (Balé de Cultura Negra do Recife) apresenta o espetáculo Memórias, nos dias 19 e 20 de julho, no Teatro de Santa Isabel, no Recife, com o melhor do seu repertório. A trilha sonora, ao vivo, inclui cantos em zulu, e a coreografia consta de danças lúdicas, ritualísticas, representação dos jogos de guerra e do cotidiano no trabalho. Com um diferencial: o Bacnaré é o único no País a reproduzir danças verdadeiramente senegalesas, sul-africanas, angolanas, togolesas e moçambicanas. Mesmo sem nunca ter pisado em terras africanas, o grupo soube aproveitar o intercâmbio de informações com grupos da África nos mais importantes festivais de que participou. Toda a renda do espetáculo será revertida para a construção de uma sede própria. Por incrível que pareça, até hoje seus ensaios são realizados na rua. A sede também vai servir para dar uma melhor continuidade no treino de novos componentes de sua equipe, em especial crianças e adolescentes de baixa renda. Memórias dá início aos preparativos para a comemoração dos 50 anos do grupo, em 2004. Seu criador e líder, Ubiracy Ferreira, foi o primeiro dançarino a executar uma coreografia afro no Teatro de Santa Isabel, na década de 50. Como um elegum de Xangô, numa dança dedicada ao orixá, Ubiracy causou rebuliço na época. •

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MÚSICA 71 » Foto:Jan Skarzynski/AFP

Leonard Bernstein desenvolveu toda uma fonologia, uma sintaxe e uma semântica musical

A gramática

da

música “Ainda resta muita música boa a ser escrita em Dó maior” (Arnold Schoenberg) Jarbas Maciel

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o início da década de 50 – meu Deus, século passado, como estou velho! – o maestro Guerra Peixe, de saudosa memória, tinha aqui no Recife quatro alunos de composição: Sivuca, Capiba, Clóvis Pereira e eu, nessa ordem cronológica. Datam daí as minhas conversas (intermináveis) com o hoje maestro e compositor Clóvis Pereira sobre o que ele gostava de chamar de lógica da linguagem musical. Guerra, advindo do atonalismo, com o qual rompera no ensejo da memorável Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, que o maestro Camargo Guarnieri acabava de publicar, de maneira sutil “regia” essas nossas indagações, pois todos estávamos, juntos, em busca de uma música que fôsse ao mesmo tempo nordestina e universal.

Sete anos depois (1957) o professor Noam Chomsky, do Massachussets Institute of Technology, publicava um desses livros seminais com uma tese que iria revolucionar tanto a psicologia quanto a linguística teórica. Diante da rapidez e da facilidade com que as crianças dominam a língua materna, Chomsky denunciava a impotência das velhas teorias do aprendizado em explicar esse fenômeno e seguia em frente com uma proposta radical: a criança já nasce equipada com um suporte lógico natural – diríamos, hoje, um software – que lhe permite apreender desde muito tenra idade a estrutura sintática da sua língua materna. Essa lógica natural subjacente ele chamou de “gramática inata e universal”, pois que é compartilhada naturalmente por todos os seres humanos. Continente julho 2003


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Em sua busca por uma técnica que nos permitisse criar uma música de feição ao mesmo tempo brasileira e universal, Guerra Peixe defendia uma "música natural", que não resultasse de mera construção cerebralista - enfim, uma música erudita não de todo divorciada dos cantos e das danças do povo

Guerra Peixe: liberdade para criar

De volta à música e ao Recife: o maestro Guerra, dotado de um espírito aberto, era perfeitamente democrático em sua maneira de conduzir as aulas. Nós éramos livres para inventar, criar, mas dentro de uma orientação que, hoje, vejo que coincidia fundamentalmente com as intuições de Chomsky. Usávamos, por exemplo, algumas técnicas atonais, retiradas do chamado dodecafonismo, mas tínhamos que nos exercitar na disciplina das lições de harmonia tradicional de Hindemith. Guerra insistia na justificação da harmonia pela seqüência dos sons da série harmônica que, afinal de contas, é um fenômeno natural (observado, aliás, pela primeira vez, por Pitágoras ao estudar os sons produzidos por uma corda vibrante). Em sua busca por uma técnica que nos permitisse criar uma música de feição ao mesmo tempo brasileira e universal, Guerra defendia uma “música natural”, que não resultasse de mera construção cerebralista – enfim, uma música erudita não de todo divorciada dos cantos e das danças do povo. Nisto ele estava diretamente em oposição à tendência histórica que levou sucessivamente do cromatismo de Wagner, através do impressionismo de Debussy e Ravel, do expressionismo de Strawinsky, até o atonalismo da chamada terceira escola de Viena (Schoenberg, Webern, etc.). Guerra foi forçado a deixar o Recife, infelizmente, em 1952. Tivemos de sobreviver sem o nosso professor. A vida tem seus caminhos caprichosos. Tive de deixar o Recife, para encontrar meu lugar ao sol. Já Clóvis, graças ao seu enorme talento e competência, nunca precisou disso. Realizou-se aqui mesmo, embora não lhe tivessem faltado generosos convites para Continente julho 2003

mudar-se para o Sul maravilha, onde brilharia, sem dúvida, ao lado de expoentes como o maestro Radamés Gnatali. De volta de Filadélfia, retomamos nossas (intermináveis) conversas – Clóvis cada vez mais convencido da realidade de uma “lógica natural” da música. Quer dizer, uma “lógica” fundada na seqüência de sons fundamentais da série harmônica, subjacente a toda “linguagem” musical possível, fôsse ela a da música erudita, ou do jazz, da música popular – ou mesmo das mais rústicas manifestações do cancioneiro folclórico. Tendo orientado meus estudos para a matemática e para a filosofia, iniciei um projeto pessoal de aplicação de algumas técnicas da álgebra abstrata e da ontologia a toda essa questão. Inspirado no livro de composição musical de Vincent d´Indy, que analisa toda a música ocidental a partir do chamado “ciclo de quintas”, logo descobri que a “gramática natural” da música poderia ser explicada por uma estrutura de grupo de permutações que é o dual do ciclo de quintas, ou seja, mais propriamente um ciclo de quartas. Restava esclarecer qual seria a “essência” mais profunda da música. Muito bem, nos anos 70, o grande músico e compositor norte-americano Leonard Bernstein apaixonou-se literalmente pela tese de Chomsky, publicando em 1976 um livro simplesmente notável, que ele intitulou de The Unanswered Question! - A Questão Sem Resposta –, em homenagem ao não menos genial Charles Ives, que já nos idos de 1908 fazia indagações profundas de ontologia musical conducentes diretamente ao pensamento lingüístico de Chomsky. Em seis palestras absolutamente geniais, Bernstein se pergunta: existiria,


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A música tem uma “lógica” fundada na seqüência de sons fundamentais da série harmônica, subjacente a toda “linguagem” musical possível, seja ela a da música erudita, ou do jazz, da música popular - ou mesmo das mais rústicas manifestações do cancioneiro folclórico

Brahms: domínio sobre a construção de formas sonoras

também, uma gramática musical, inata e universal, “paralela” àquela gramática da língua natural que Chomsky postulava como subjacente à estrutura lógica do discurso? A resposta de Bernstein é afirmativa, pelo que ele põe mãos à obra e desenvolve – pasmem! – toda uma fonologia musical, uma sintaxe musical e uma semântica musical, com uma profusão de exemplos que fazem de seu livro um raro tesouro musical. Qual o significado ontológico disto? Se um dia alguém me perguntar qual é a “essência” da música, responderei de bate pronto – o movimento. A linguagem da música, ao contrário da linguagem do nosso discurso, não é conceptual, eis por que ela consiste numa sucessão de imagens sonoras adequadamente estruturadas de modo a suscitar no ouvinte uma correspondente sucessão de reações psicológicas. Essa estrutura, que poderíamos chamar de sua “gramática”, é tridimensional, já que se realiza em seus três elementos fundamentais – ritmo, melodia e harmonia, todos os três funções do tempo. Portanto, as formas musicais – células rítmicas, melódicas, motivos e temas, bem como progressões de acordes – são essencialmente formas dinâmicas, isto é, formas em movimento. Não é à toa que uma sonata ou uma sinfonia se apresentam como uma sucessão de “movimentos”: 1º– movimento – Adágio; 2º movimento – Allegro; 3º movimento – Andante, etc. Essa sucessão de formas sonoras constitui a essência mesma do fraseado musical. Quando Brahms foi apresentado e tocou para Schumann, então a maior autoridade musical em Viena, este, tremendamente impressionado pela força da improvisação do jovem pianista desconhecido, pôs-se a berrar: “– Vamos, mo-

dule! Module novamente!”. O que ele estava dizendo, superficialmente, era: mude de tom, passe de Mi bemol menor para Lá bemol maior, ou de Si menor para Mi maior, etc. Mas, para um observador mais avisado, o que entusiasmava Schumann era o fantástico domínio que Brahms tinha sobre a construção de formas sonoras (melódicas, harmônicas e rítmicas), de grande complexidade e beleza, fluindo num movimento incessante e aparentemente sem fim, ainda que, enquanto “forma”, obedecendo ao princípio poético de uma sucessão que tem começo, meio e fim . Os detalhes deste debate tornam-se proibitivos em um simples artigo. Com o desenvolvimento da lógica matemática, da topologia e outros progressos mais recentes – como a morfomática, a teoria dos sistemas complexos adaptativos e a própria ontologia num contexto de ciência da computação –, vemos, hoje, que as soluções propostas ao enigma da linguagem musical apontam na direção correta, mas ainda há uma enormidade de pesquisas a serem desenvolvidas até que se possa matar de vez essa charada. Felizmente, não há por que se preocupar: a música, como “coisa” real, vai muito bem, obrigado. Talvez o melhor, mesmo, seja continuar a escrever toda a música que ainda cabe em Dó maior, como queria Schoenberg ... • Jarbas Maciel é matemático, músico, físico e graduado em Filosofia. É um dos fundadores do Departamento de Informática da UFPE. Autor de Elementos de Teoria Geral dos Sistemas, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1974.

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76 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Cangaceiros versus cowboys

Ser regionalista é hoje uma referência muito mais geográfica do que artística, significando tudo o que se produz fora do Sudeste

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u tive uma namorada de adolescência que lia bastante e seu projeto de vida era escrever um romance. Nada demais se considerarmos que na França do século XVIII quase todas as mulheres da nobreza eram escritoras. Minha namorada nunca transpôs a Chapada do Araripe, mas resolveu ambientar o seu livro em Veneza. Começava o folhoso com dois personagens passeando pelas ruas da cidade, o que me pareceu absurdo. Eu imaginava que em Veneza, além de casas, igrejas e teatros, só existia água e que as pessoas se locomoviam em gôndolas. Essa era a imagem dos cartões postais e dos filmes de Hollywood. Quando vi Morte em Veneza, de Visconti, fiquei sabendo que na cidade também existem calçadas. Mesmo assim, nunca desfiz o péssimo juízo literário da amada cratense. Sei que muitos escritores ambientaram suas peças, contos ou romances em geografias diferentes daquelas onde viveram. Mas nesse caso, a escolha da cidade italiana se fazia por vergonha de assumir a nossa cultura local, herdada de portugueses e índios. Minha namorada continuava presa ao velho colonialismo cultural que levou a literatura brasileira a repetir modelos europeus até bem reContinente julho 2003

centemente. Hoje, nem sei que ambiência ela buscaria para o seu romance. Sofremos um novo colonialismo, o do eixo Rio/ São Paulo. Desde a década de 30, quando Gilberto Freyre publicou o seu Manifesto Regionalista, estava nos condenando, sem saber, a um apartheid. Regionalista tornou-se uma referência mais geográfica que artística, significando tudo o que se produz fora do Sudeste. Um amigo perguntou-me outro dia por que nenhum crítico de arte qualifica como regionalista o cinema de gangster americano, ambientado em Chicago, com bandidos e detetives de chapéus e capas pretas. Ninguém considera regionalista a literatura e o cinema sobre o oeste americano, cheio de diligências, carroças de colonizadores, cowboys de calças apertadas e revólver na cintura. John Ford, John Huston e Sam Peckinpah jamais foram chamados regionalistas, por mais que caprichassem nos estereótipos de índios apaches e bandidos tomando whisky no balcão de um saloom. Alguém ouviu falar que Steinbeck é regionalista? Mas Graciliano Ramos e todo o cinema nacional sobre cangaço são regionalistas. Não se chamam de regionalistas os filmes de gangster ou


Ilustração: Zenival

ENTREMEZ 77

de faroeste porque são produzidos num país que domina a economia do mundo e determina os valores de consumo, impondo modelos aos outros países. Igualmente, não se chama de regionalista a produção cultural do Sudeste, porque essa região detém o poder econômico e o controle da mídia no Brasil. Pagode é samba e acabou-se. Mas baião é música regionalista nordestina, oxente! E se atreva a dizer que não! Bens de cultura são produtos, vendidos como coca-cola e calças jeans. Poucos artistas escapam à sedução desse modelo, que acena com uma fatia do mercado consumidor ou a promessa de um Oscar. O cinema iraniano é um exemplo raro de independência. Mesmo o nosso celebrado Walter Salles Júnior criou os filmes Central do Brasil e Abril Despedaçado dentro de uma saia justa determinada pelos seus produtores, de olho no mercado internacional. Até um xamã do alto Amazonas deu um triste depoimento num recente programa de televisão. Ele queixou-se que a sua medicina era inferior à dos homens brancos, porque os médicos ganhavam muito dinheiro e ele, mesmo curando, não tinha dinheiro para comprar iates nem helicópteros. O olhar de um povo sobre a cultura de outro povo que lhe é estranho, tende a ser preconcebido. Gregos e romanos consideravam bárbaros os que estivessem além das suas fronteiras. Americanos e europeus nos acham exóticos. Capistrano de Abreu queixava-se de que ainda não haviam escrito a

história da colonização dos sertões do Brasil, porque nossos historiadores sempre ficaram nas cidades litorâneas. Um cineasta da nova geração também declarou que o cinema não esgotou a épica sertaneja. E, apesar do poeta americano Ezra Pound ter afirmado que o poema das Américas foi escrito por um cearense, Gerardo Melo Mourão, ninguém nos leva a sério. O que se deve considerar na análise de uma obra de arte é o seu valor, independente da origem. Se usássemos o juízo da maioria dos críticos literários, acharíamos o Quixote de Cervantes regionalista, anacrônico e excessivamente prolixo. Mas nenhuma obra permanece tão contemporânea. Cervantes não sentiu vergonha da sua Espanha provinciana. Não foi atrás do cenário de um país rico, Florença, por exemplo. Escreveu no seu idioma, sem ligar para as modas literárias do resto da Europa. Não peçam para abjurarmos a nossa cultura, em troca de um reconhecimento que pouco significa. Um contista cearense da “nova geração” adulterou sua carpintaria literária para merecer o direito de constar numa antologia de contistas “pósmodernos”, editada em São Paulo. Preço muito alto. Mais alto que o pago por minha namorada de adolescência com a sua ficção romântica sobre campanários góticos e arlequinadas, de um país que ela continua sem conhecer. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.

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78 URBANISMO

Germânia, a projetada capital do III Reich

A cidade dos

ditadores

O padrão dos regimes totalitários é uma grotesca cosmética urbana. Sua arquitetura, de proporções gigantescas, é anacrônica, carregada de historicismos e convertida em símbolos políticos de poder, força, autoridade, vitória e, na maioria dos casos, em instrumentos de auto-glorificação Betânia Uchoa Cavalcanti-Brendle

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Foto: Landesbildstelle Berlin

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A

cidade dos ditadores não é só monumental, mas obsessivamente gigantesca. Nas autocracias, um tipo de sistema político de governo absoluto, freqüentemente de um único indivíduo que possui poderes ilimitados pelas instituições sociais e legais, a cidade é um cenário cuidadosamente projetado para impressionar as massas, simbolizar o estabelecimento de uma nova ordem política e representar o poder político total de seus líderes, poder esse ora usurpado e sem legitimidade, ora revolucionário. As autocracias são distintas e de tradição milenar e vão desde os diversos tipos de despotismos (associados com o endeusamento do líder como no Império Romano tardio), as tiranias (as cidades-estado gregas e a Itália renascentista), e as monarquias absolutistas da Europa (incluindo a Rússia czarista), até as ditaduras militares como Portugal de Salazar, a Espanha de Franco e o Brasil que sucedeu o golpe militar de 1964. Uma outra variação de autocracia são os regimes totalitários, termo usado pela primeira vez por Giovanni Gentile, teórico político do fascismo, em expressões como la nostra feroce voluntà tota-

litaria e uno stato totalitario para se referir ao Estado totalitário de Benito Mussolini. São características dos Estados totalitários: uma ideologia oficial, a existência de um único partido liderado por um único indivíduo – o ditador, o controle e monopólio das forças armadas, bem como do sistema de comunicação de massa, um sistema de controle terrorista e o controle central da economia. A imposição e celebração de uma nova ordem política, a busca de grandiosidade, o culto de personalidade e o desejo pessoal do líder autocrata – o ditador, exige da cidade outro palco para os novos rituais políticos, uma vez que o passado arquitetônico recente é considerado conflitante com as ideologias vigentes de poder do Estado que os sustentam. Assim a área central da cidade-capital é submetida a um processo radical de destruição planejada e, em muitos casos, seletiva, seguido pela reconstrução de sua arquitetura e espaços urbanos cuja característica marcante é sem dúvida a escala monumental (uma qualidade não exclusiva das autocracias) para simbolizar o poder, glória, pompa, prestígio, grandeza e autoridade desses Continente julho 2003


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80 URBANISMO

As cidades são submetidas a um processo radical de destruição planejada e, em muitos casos, seletiva, seguido pela reconstrução de sua arquitetura e espaços urbanos cuja característica marcante é sem dúvida a escala monumental

líderes ou de seus regimes. Isso aconteceu nos planos de Hitler para Berlim, na Roma de Mussolini, em Moscou sob o controle de Stalin – os clássicos Estados totalitários dos anos 30 – e mais recentemente em Bucareste, Pyong Yang e Bagdá, sob os regimes de Nicolae Ceausescu, Kim Il Sung e Saddam Hussein. Todos eles foram promovidos pela propaganda oficial como criaturas “super-humanas” e seus desejos megalomaníacos se concretizaram na forma da cidade e em sua arquitetura. Necessità e grandezza são a base do programa fascista de reconstrução de Roma, como a capital imperial da Itália, concebida por Benito Mussolini que pretendeu reviver a grandeza da era de Augustus, o primeiro imperador de Roma, e despertar a nação italiana para o seu passado heróico e glorioso. Intensiva propaganda política e o culto de personalidade a Mussolini vêm forjar a desejada associação política entre os dois impérios, o de Augustus e o do Duce, na chamada Terceira Roma, a Roma Monumentale, que se apropria dos símbolos de glórias passadas para tentar dar legitimidade ao Estado Fascista baseado em disciplina, ordem, grandeza, ambições imperiais e poder absoluto em oposição à anarquia e decadência que Mussolini proclamava querer erradicar. Assim, são considerados “restos indesejáveis do passado” e “símbolos de decadência”, por exemplo, o trabalho de Borromini taxado de architettura minore, e a negação do Barroco, o desprezo pela arquitetura dos períodos medieval e posteriores. Torna-se não uma questão cultural, e sim, política, em linha com o princípio de Mussolini em demolir 25 séculos de história, para “liberar” tudo que foi construído em torno dos milenares monumentos Continente julho 2003


Fotos: Reprodução

URBANISMO 81 »

Na página anterior, cartaz com Hitler e a maquete da Casa do Povo: Acima de tudo e Torre da Juche Idea, com 170m, em Pyong Yang, Coréia do Norte: a filosofia de Kim IlSung Ao lado, Via della Conciliazione, em Roma: devastação de obras dos mestres do passado por ordem de Mussolini

da Antiguidade. O Duce intervém sem remorsos na cidade de Roma, destruindo, para desespero de arqueólogos de todo mundo, toneladas do Fórum de Trajano para a abertura da Via dell'Impero, e, demolindo uma área de mais de cem mil metros quadrados entre a Via del Corso e o Rio Tiber para a liberação do Mausoléu de Augustus. Mais ainda, o preço da oportunista reconciliação entre o Estado Fascista e a Igreja (sic), simbolizada pela Via della Conciliazione foi alto: a devastação do Borgo, uma extensa área nas proximidades do Vaticano, suas praças, fontes, igrejas e palácios renascentistas, que reunia trabalhos dos extraordinários mestres Michelangelo, Bramante, Alberti, Bernini, entre outros. Na Alemanha, Hitler chega ao poder, depois da tumultuada, moderna e democrática Weimer Republik, marcada por uma grande inflação, depressão econômica e altas taxas de desemprego, encontrando a nação alemã ainda humilhada pelas imposições do Tratado de Versailles de 1919, que sucedeu a primeira guerra mundial. Para Hitler, arquitetura era uma “arma política” e seu uso um decisivo instrumento de propaganda do Estado. Seus planos de transformar Berlim em Germânia, a capital do III Reich e o centro da Europa, são imbuídos de uma monumentalidade gigantesca, onde os edifícios construídos pelo Volk e seu governo deveriam durar “até a eternidade”. A nova ordem política do nazismo expressando a grandeza, o domínio, a vitória e poder da nova nação alemã, sua supremacia e ambições imperialistas na Europa é representada por uma avenida cerimonial ou o eixo norte-sul de Berlim. Neste eixo monumental, que deveria suplantar o Champs Elysées, os edi-

fícios projetados pelo arquiteto do Führer, Albert Speer, seguem a preferência pessoal de Hitler por um gigantesco neoclassicismo e excessiva ornamentação, e devem celebrar o renascimento da glória e poder da raça ariana. Mais tarde, o próprio Speer, ainda na prisão em 1969 respondendo por seus crimes como Ministro de Armamentos do Reich, viria a reconhecer a tendência de Hitler para a glorificação pessoal e a obsessão com proporções gigantescas, principalmente no Volkshalle (na época, o maior edifício do mundo) e o Arco de Triunfo, duas vezes e meia maior que o de Paris, segundo ele, “a expressão exata da tirania”. A segunda guerra mundial impediu a realização dos delírios arquitetônicos de Hitler, a quem ironicamente foi negado o ingresso na Escola de Arquitetura de Viena. Mesmo assim as obras só foram interrompidas em 1942, e para impedir protestos da população, a reconstrução de Berlim recebeu o codinome de War Programme for Waterways and Reich Railway, Berlin Section. Se construída, Germânia teria devastado bairros inteiros em Berlin e demolido um total de 52.144 edifícios. Stalin desenvolve uma poderosa estrutura centralizada de poder, onde ele como o chefe do Partido Comunista governaria pessoalmente a URSS, interferindo sem oposição em todas as esferas do aparato governamental, tendo controle absoluto e inquestionável sobre política nacional, economia, ideologia, imprensa, literatura, arte e, naturalmente, sobre arquitetura e urbanismo. Muitos arquitetos foram expulsos da União de Arquitetos Soviéticos, denunciados por suas tendências estéticas de avant-garde e declarados culpados pelo próprio Continente julho 2003


82 URBANISMO Stalin por seus “erros arquitetônicos”. A construção de uma “nova sociedade” e do “novo homem” na URSS vem, portanto, rejeitar o legado capitalista representado pelo patrimônio construído das cidades que é sistematicamente destruído por representar o antigo e odiado sistema. O centro antigo de Moscou é dilapidado, incluindo entre outros, igrejas e conventos, e na capital do Império Soviético são construídos imensos boulevards e estruturas arquitetônicas baseadas na tradição neoclássica, porém numa escala gigantesca, como a Universidade de Moscou e o Palácio dos Sovietes, que devido à segunda grande guerra nunca foi construído. A arquitetura moderna é banida, o funcionalismo rejeitado e a expressão plástica do Realismo Soviético, nome atribuído ao novo estilo oficial imposto por Stalin, interrompe violentamente as experiências do modernismo na Rússia, entre 1917–1930, e surge a busca de uma nova arte e arquitetura que representasse os avanços sociais e tecnológicos da Revolução. A marca pessoal de Stalin seria imortalizada na arquitetura anacrônica e grotesca, mais tarde denominada “arquitetura stalinista”, um bizarro retorno à tradição e símbolo da ostentação, da propaganda, do culto de personalidade e do terror stalinista. O “classicismo socialista” ou o red classicism, baseado num vocabulário arquitetônico do passado, no ornamento e no gigantismo, torna-se o ideal soviético na arquitetura e desenho urbano da cidade, desvirtuando o conceito da cidade socialista, uma conquista da Revolução de 1917, concebida para uma sociedade igualitária, coletivizada e influenciada pelas idéias de Howards para as cidades-jardins e

pela arquitetura de Le Corbusier. Nos países alinhados com Stalin e com a URSS, o Realismo Soviético é imposto e representado espetacularmente em Berlim Oriental pela “Stalinallee” (hoje Karl-Marx-Allee) e em Varsóvia, onde Stalin manda construir, com recursos financeiros da Polônia, o Palac Kultury i Nauki, ou o Palácio de Cultura e Ciências e manda gravar no hall de entrada a irônica inscrição – “um presente da nação soviética a Varsóvia” – até hoje um odiado símbolo da opressão e arrogância stalinista no solo polonês. Em Bagdá, cidade-capital do Iraque com aproximadamente 5 milhões de habitantes, o culto a Saddam Hussein era parte do programa oficial de governo e a construção de monumentos, seguidos de transformações urbanas de grande porte, tornou-se na década de 80 uma prioridade para o ditador. No verão de 1982, estava programada para Bagdá, que já tinha abrigado o anti-Camp David Arab Summit, a conferência dos países nãoalinhados e Saddam Hussein estava para assumir a liderança do Bloco do Terceiro Mundo em sua própria cidade. Assim, o ditador, cujo nome Saddam em árabe quer dizer “aquele que confronta” ou “aquele que vence todos os obstáculos”, determina a construção de inúmeros monumentos em sua própria honra e, através deste culto de personalidade, torna onipresente sua autoridade política, fazendo de Bagdá um canteiro de obras gigantesco. Entretanto, o mais controverso monumento será, sem dúvida, o Arco da Vitória na Zyona Avenue, concebido pelo próprio Saddam Hussein e construído sob sua a supervisão direta pouco depois que ele declara a forjada vitória do Iraque na

A Casa Republicii, sede do governo romeno: 300.000m2 da megalomania de Ceaucescu

Foto: Betânia Cavalcanti-Brendle

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URBANISMO 83 » Foto: URB/Recife

Martírios do

Recife

No alto, abertura da av. Dantas Barreto, no centro do Recife, ainda com a Igreja dos Martírios (ao lado) no meio da construção

Nos anos 70, o bairro de São José foi mutilado em nome do progresso, com a construção da avenida Dantas Barreto

Recife, Brasil, 1973. Presidente, General Garrastazu Médici. Prefeito, Augusto Lucena. O bairro de São José é devastado, seu patrimônio edificado para sempre comprometido e sua vida social e urbana fragmentada. Mais de 400 casas, 11 ruas (Rua Augusta, Rua Santa Teresa, Rua do Alecrim, Rua de Hortas, Rua Dias Cardoso, entre outras), o Pátio do Carmo e a Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios, são destruídos para a construção da Avenida Dantas Barreto, um corredor viário inútil que logo é apropriado pelo comércio ambulante, pelos terminais de ônibus e estacionamentos. A sociedade se divide, a UFPE, o escritor Ariano Suassuna e vários arquitetos são contra a demolição da Igreja dos Martírios, monumento histórico e artístico nacional. Gilberto Freyre , que inicialmente se posiciona contra “o furor da destruição maciça do Bairro de São José”, em seguida (contrariando, mesmo sem ser

expert no assunto, o parecer dos próprios técnicos do Iphan que lutavam pela preservação do monumento), declara que a igreja “não é monumento de alto valor”. Muitos intelectuais do Recife comungam de sua opinião. Mas numa ditadura militar quem decide mesmo é o General Médici, que acolhendo parecer do ministro da Educação, Jarbas Passarinho, assina o Decreto Nº 70 389 de 11 de abril, 1972, e autoriza o cancelamento da inscrição de tombamento da Igreja dos Martírios no Livro de Tombo do Iphan. A demolição do monumento “destombado” tem início em 23 de janeiro de 1973 e em setembro do mesmo ano a Avenida Dantas Barreto é inaugurada. O bairro de São José é mutilado para sempre e o vazio da avenida se torna uma cicatriz urbana encravada na morfologia da cidade, símbolo da incoerência e despotismo dos governantes, que no autoritarismo dos anos 70, comandaram o destino da cidade do Recife. • Continente julho 2003


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84 URBANISMO Fotos: Reprodução

em Bagdá: moldado dos braços do próprio Saddam Hussein. Ao lado, Palácio dos Sovietes, idéia de Stálin nãoconcretizada devido à guerra

guerra contra o Irã usando para isso a propaganda oficial do A torre está localizada na margem oeste do Rio Taedong, tem regime. O Arco da Vitória teve a colaboração do escultor ira- forma de obelisco, 70 blocos de granitos (uma para cada ano de quiano Khalid al-Rahal e celebra o supremo e divino poder de vida do “Grande Líder”) e no topo uma figura em forma de Saddam Hussein na forma de um arco de triunfo figurativo, em tocha ardente. Na frente encontra-se um grupo de esculturas bronze, moldado dos braços do próprio ditador e pesando cada com três figuras simbolizando o Partido Comunista da Coréia um 20 toneladas. Eles sustentam duas gigantescas espadas de do Norte – um trabalhador, um camponês e um intelectual, de Qadisiyya (ícones da derrota do Império da Pérsia pelos árabes 18 metros de altura, formando um colossal conjunto que domuçulmanos, em 647dC) confeccionadas em aço, provenientes mina inteiramente o skyline da cidade. das armas derretidas dos “mártires” iraquianos Pyong Yang inspira a construção do CenEm Roma, Mussolini mortos em combate contra o Irã. Na base do tro Cívico Victoria Socialismului, entre 1985–89, pretendeu reviver a monumento, vêem-se 2.500 capacetes dos solna Bucareste de Nicolae Ceausescu. Entrevisdados iranianos mortos na guerra e, no cruzatada pela autora deste artigo em 1992, a arquigrandeza do mento das espadas, uma desproporcional banimperador Augustus. teta romena Anca Petrescu (que projetou a deira de sete metros. Casa Republicii, o segundo maior edifício admiEm Bucareste, nistrativo do mundo e sede do governo e parEm Pyong Yang, cidade monumento a Kim Ceaucescu quis lamento romenos com mais de 300.000m², Il Sung, reconstruída depois da guerra da Coréia, o culto de personalidade ao onipotente lí- simbolizar uma nova 86m de altura e 276m de largura, ocupando der (declarado pela propaganda oficial de “eter- ordem sobre as ruínas uma área de 6,3 hectares) revelou que o ditador ficou tão impressionado com a excessiva mono presidente”) é celebrado em muitos dos edida História numentalidade da capital norte-coreana que fícios oficiais e espaços urbanos mais significativos da cidade-capital: no Arco de Triunfo a Kim Il Sung (3m enviou um grupo de arquitetos romenos para lá “aprender o que mais alto do que o de Paris), onde na parte superior está escrito é arquitetura e desenho urbano”. A reconstrução de Bucareste é a “Canção do General Kim Il-Sung” (sic), na Praça Kim Il vista por Ceausescu como uma operação urbana prioritária para Sung, espaço cerimonial para rituais do partido comunista e propiciar à cidade-capital um cenário representativo dos avanços desfiles militares pomposos, impressionantemente disciplina- e conquistas do socialismo na Romênia. Esta nova ordem política dos, e na gigantesca Tower of the Juche Idea (a torre de 170m de é imposta sobre as ruínas do centro histórico da cidade e de sua altura que expressa a filosofia da auto-determinação creditada arquitetura considerada “modesta” e sem a grandeza que o regia Kim Il-Sung: “o homem é o senhor de tudo e tudo decide”). me queria imprimir na “era gloriosa do socialismo”. A extraordiContinente julho 2003


URBANISMO 85

nária manifestação de seu poder e autoritarismo, produtos de um extremo culto de personalidade que conseguiu superar até o de Stalin, torna o Centro Cívico Victoria Socialismului no símbolo da glorificação da Era Nicolae Ceausescu. A destruição do centro antigo de Bucareste foi um hediondo crime contra o patrimônio cultural romeno e europeu e representou a demolição de ¼ do seu centro histórico (aproximadamente 100hectares), incluindo a demolição de 18 edifícios cadastrados como monumentos históricos romenos. Muitos outros foram parcialmente demolidos e transladados para fora da área do Bulevardul Victoria Socialismului, um eixo cerimonial de 3,5 km de extensão e 92m de largura. A preferência pessoal de Ceausescu pelo grandioso, opulento e pela excessiva decoração e ornamento (característica comum a Mussolini, Hitler, Stalin, Saddam e Kim Il-Sung) resulta na adoção de elementos do vocabulário clássico (colunas coríntias, frisos,etc.), grotescamente combinados nos edifícios do novo centro cívico, que mutilou profundamente a cidade de Bucareste, dilacerando sua morfologia, interrompendo a rede viária, o sistema

de transportes urbanos e de infra-estrutura. A Lei 58/1974 deu a Ceausescu o poder de pessoalmente aprovar todo e qualquer projeto para Bucareste e as demolições eram oficializadas através de decretos presidenciais. As práticas coercivas da poderosa polícia secreta romena, a Securitate, garantiram total controle da sociedade, da imprensa e das instituições profissionais, como a União dos Arquitetos da Romênia que se viu impossibilitada de organizar qualquer tipo de protesto contra a destruição de Bucareste. Mariana Celac, arquiteta romena dissidente que enviou carta de protesto ao Partido Comunista Romeno, foi despedida em 1987, teve sua correspondência e telefone controlados pela Securitate e ficou praticamente sob prisão domiciliar. A cidade dos ditadores é, portanto, uma grotesca cosmética urbana, marco de ostentação totalitária usada para expressar a grandeza de seus regimes. Sua arquitetura, de proporções gigantescas, é anacrônica, carregada de historicismos e convertida em símbolos políticos de poder, força, autoridade, vitória e, na maioria dos casos, em instrumentos de auto-glorificação. A preferência pessoal do ditador, que pretensamente encarna as virtudes e conquistas da sociedade, e suas aspirações megalomaníacas, são materializadas em diretrizes urbanísticas e mesmo sem nenhuma formação e experiência profissional, ele impõe estilos arquitetônicos, escalas, materiais, decidindo o destino do patrimônio histórico e cultural das cidades, o que deve ou não ser destruído independentemente de seu valor e importância. Os ditadores ignoram as instituições, as leis e a ordem constituída e impõem sua vontade pela coerção e terror. A sociedade é excluída de participar no processo de planejamento, as instituições civis e profissionais são dissolvidas ou manipuladas sob severa censura. Eles se auto-proclamam arquitetos e urbanistas, poderosos master-builders que deixam sua marca devastadora no patrimônio construído das cidades que destroem e mutilam. • Maria Betânia Uchoa Cavalcanti-Brendle é arquiteta, PhD em História e Desenho Urbano pela Oxford Brookes University e reside em Lübeck, Alemanha.

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86 REGISTRO

Doce testemunha de épocas Fotos: Acervo da Fundação Joaquim Nabuco

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Coleção de açucareiros revela, de algum modo, o amor pelas formas belas e pelos nobres materiais, além de novos significados e funcionalidades, como o de documentar o que fomos numa determinada época Maria Filonila dos Santos Dias Regueira

A

mais antiga informação que possuímos sobre a cana-de-açúcar data do ano 327 antes de Cristo. Encontra-se nos escritos dos companheiros de Alexandre Magno, e relatava essa coisa certamente surpreendente para a época: “Há na Índia um caniço que dá mel sem auxílio das abelhas...” A primeira referência à cultura da cana-de-açúcar em nosso território data de 1519. Entretanto, a indústria da cana-de-açúcar propriamente dita só começou a ser explorada no país em 1535, justamente em Pernambuco. Foi a época de um “verdadeiro surto açucareiro”, quando o simples estabelecimento de um novo engenho Continente julho 2003

dava lugar à formação de novos núcleos de povoamento. Desse modo, o avanço da cana-de-açúcar proporcionava o desbravamento de novas terras, impulsionando a expansão da colonização brasileira. O cultivo da cana-de-açúcar começou no nosso País no século 16 e antes do fim desse século, o Brasil já se tornara o maior produtor e fornecedor de açúcar do mundo. No final do século 16, Pernambuco era o maior produtor de açúcar do Brasil e contava com 66 engenhos. Nos primeiros vinte e cinco anos do século seguinte, a cana-de-açúcar se constituía a principal atividade econômica da Colônia. Com o


REGISTRO 87 »

Se comparado a outros utensílios de mesa, o açucareiro não é um dos objetos mais antigos, mas sem dúvida é uma das peças mais populares entre os comensais

passar do tempo os processos primitivos de produção de açúcar evoluíram, culminando com o aparecimento das primeiras usinas do século 19. A produção de açúcar foi, seguramente, o primeiro empreendimento econômico a funcionar, de modo organizado, nas terras brasileiras. Outras atividades surgiram, mas a atividade açucareira se manteve na liderança, por mais de um século. Por essa razão, tudo que se relaciona com o empreendimento açucareiro possui inestimável valor histórico para o Brasil e especialmente para o Nordeste. É importante ressaltar que esse tipo de atividade proporcionou a existência de uma elite social, que prevaleceu no Nordeste, como força hegemônica, até bem pouco tempo atrás. Tal elite calcou marcas profundas no modus vivendi, e na cultura da sociedade local, marcas que ainda permanecem nos dias de hoje, mesmo tendo deixado de ser o segmento social mais importante da Região. O Museu do Homem do Nordeste possui, em seu acervo, uma coleção de açucareiros oriunda, em sua maioria, do extinto Museu do Açúcar – vinculado, ao também extinto Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA). É claro que sempre houve um grande interesse, por parte das instituições locais, em colecionar esse tipo de peça, já que o mesmo faz parte do universo criado pela atividade açucareira. A maioria dos açucareiros do Museu do Açúcar provém de doações de particulares ou de aquisições feitas, muitas vezes, junto aos leiloeiros. O olhar atento sobre as peças dessa coleção, consideradas em seu conjunto, detectará a diversidade de sua origem. Elas representam todas as camadas sociais, desde aquelas mais requintadas, em fina porcelana, de que se serviam os mais abastados, até as mais rústicas, de material mais humilde, presentes nas mesas pobres. Se comparado a outros utensílios de mesa, o açucareiro não é um dos objetos mais antigos, mas sem dúvida é uma das peças mais populares entre os comensais. Foi com a chegada do chá no Ocidente, trazido pelos mercadores da Companhia das Índias Orientais Holandesas no princípio do século 17, que os açucareiros passaram a ser produzidos, juntamente com outras peças, para que o chá pudesse ser corretamente servido. Portanto, inicialmente, o açucareiro fazia parte de um conjunto de louças. No início do século 18, o crescente hábito de tomar chá levou os prateiros a introduzir serviços para chá, em Londres. Com o advento da industrialização do açúcar, algumas partes dos açucareiros foram modificadas, adaptando-se às novas formas assumidas por este produto. Basicamente, existem quatro tipos de açucareiros: o sem tampa usado para chá, o polvilhador ou individual usado para frutas, aquele que se apre-

Na página anterior, açucareiro de ouro, incrustado de rubis, brilhante e safira, século 19 Ao alto, açucareiro de metal prateado, em forma de concha, século 20

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88 REGISTRO

Açucareiro de porcelana portuguesa, século 19

Peça comemorativa da Independência do Brasil, 1823

Polvilhadores de açúcar, em prata, séculos 19, 17 e 19, respectivamente Continente julho 2003

senta em forma de caixa acompanhado de pegador, usado para açúcar em pedra, e o tradicional com tampa e colher usado para açúcar industrializado. Os três primeiros tipos são mais sofisticados, pois na época em que eram utilizados, tanto o chá como o açúcar, ainda se constituíam produtos caros. O último tipo era bem mais popular, pois a industrialização permitiu que as louças fossem produzidas em massa. Paralelamente, houve, também, a industrialização do açúcar, fazendo com que o produto se tornasse mais barato. Cada um desses tipos de açucareiros tinha vários modelos e divergiam, igualmente, quanto ao material utilizado em sua fabricação. Vale salientar que, ainda hoje, o açucareiro para açúcar em pó (tipo polvilhador) e o açucareiro para açúcar em pedra (tipo caixa) continuam sendo usados na Europa. No século 15 um veneziano pensou em usar as formas usadas na fabricação do pão para moldar o açúcar. Já o açúcar em pó, produzido sobretudo nos séculos 16 e 17 e em parte do século 18, (antes que fosse produzido o açúcar quebrado em pedaços), fez com que os modelos de açucareiros se aproximassem, freqüentemente, da forma cilíndrica. Alguns desses modelos conhecidos como “açucareiras” tinham, em cima, uma tampa elevada em cúpula cheia de orifícios. Já os açucareiros da época em que predominava o açúcar quebrado possuíam, geralmente, além da forma de caixa, a forma de taça redonda, além de outras formas. Essas peças vinham acompanhadas de uma pinça ou pegador, e resultavam de uma produção numerosa em faiança. No final do século 18, houve uma grande procura e aceitação dos açucareiros em porcelana. Deu-se a esses açucareiros o nome de “pote de açúcar”, pois também serviam para se guardar açúcar em pedaços. Esses potes eram usados, em algumas ocasiões, para guardar um tipo de açúcar (açúcar candid) vendido nas farmárcias. Além dos “potes de açúcar”, existiam vasilhas de barro vermelho e preto, ou de faiança e vidro destinadas a guardar o açúcar nas casas modestas. No século 19 o açucareiro tomou a forma atualmente conhecida por todos. A coleção de açucareiros do Museu Homem do Nordeste é parte de um acervo de 56 coleções. Ela testemunha a história dos hábitos e costumes de uma época. Na verdade, trata-se de uma coleção eclética em que se misturam requinte e simplicidade, na diversidade de suas cores, formas e materiais (ouro, prata, cristal, porcelana, opalina, vidro, estanho, alumínio, barro e argila). A coleção é composta por 101 peças. Dessas 101 peças, 68 são apresentadas em exposição de longa duração e 33 se encontram acondicionadas na reserva técnica. É uma coleção que extrapola o seu uso costumeiro de simples utensílios de mesa. Reveladora, de algum modo, do amor pelas formas belas e pelos nobres materiais, ela adquire novos significados e funcionalidades, como o de documentar o que fomos, divulgar e estimular o gosto das novas gerações pelo que formou nossa identidade e cultura. E, também, o de preservar o passado, mantendo-o presente na memória do Nordeste, do Brasil e do Mundo. • Maria Filonila dos Santos Dias Regueira é geógrafa, pesquisadora do Museu do Homem do Nordeste/Fundação Joaquim Nabuco.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 89 Joel Silveira

Drummond, o vizinho que não entrevistei

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urante mais de trinta anos, fui vizinho do poeta Carlos Drummond de Andrade, ele lá na rua Conselheiro Lafayette e eu cá, na Francisco Sá – em termos de metragem, menos de um quilômetro nos separando. Mas pouco nos encontrávamos, embora quase diariamente, no final da tarde, eu visse da minha janela, no sexto andar, o poeta passar na calçada defronte, nesse traje informal que a zona sul do Rio permite e até exige. Vertical, rígido, sem alarme, cheio de graça e ironia, um tanto cético e um pouco moleque, discreto e disciplinado – assim foi Carlos Drummond de Andrade. Otto Lara Resende me dizia : – Se há a imagem de um ser inescalável, distante, fechado, essa imagem é mentirosa quando se refere ao Carlos Drummond de Andrade que se conheceu de perto. Uma confissão de Drummond a Fernando Sabino : – Não sou capaz de fazer poema a frio, como se resolve um problema de matemática. Não sou poeta no sentido clássico ou erudito na palavra, aquele que obedece a um programa, observa as regras e procura renovar. Nunca tive essa pretensão. Posso dizer que, no fundo, escrevi para mim e para os meus amigos. Foi tudo o que fiz na vida. • Joel Silveira é jornalista e escritor.

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90 CULTURA

Sedução pela cultura Bancos, empresas e agências publicitárias investem em obras culturais como estratégia para criar vínculos duradouros entre o público e seus produtos Tatiana Resende

O

que traz mais vantagens para uma empresa? A publicidade que atinge instantaneamente um grande número de pessoas, mas logo é esquecida, ou a que vai se condensando lentamente mas, quando atinge sua finalidade, cria um vínculo duradouro com um número sempre crescente de consumidores? A opção cada vez mais preferencial é a segunda, obedecendo às novas palavras de ordem no universo empresarial, que são: “comunicação por atitude”. E uma das saídas mais eficazes para atingir esta meta tem sido investir em cultura. Que o diga o Banco do Brasil (BB), que inaugura em Pernambuco, em outubro do próximo ano, seu quarto Centro Cultural. Historicamente conhecido pela diversidade cultural e importância nos movimentos revolucionários e libertários, além da localização estratégica, Pernambuco tem se destacado no cenário nacional e usufruído desse novo direcionamento dos aportes das empresas. O local escolhido foi a antiga estação ferroviária, no bairro de São José, onde hoje funciona o Metrô do Recife. Serão investidos R$ 8 milhões na reforma do local, que vai abrigar museu, teatro, jardim de esculturas e salas de exposições. Em 2005, um cinema e um auditório serão inaugurados no prédio da Procuradoria Federal, que fica ao lado. “A grande missão do CCBB é, além de servir de instrumento de marketing do banco, formar platéias por meio da educação cultural”, afirma Paulo de Tarso, gerente executivo de marketing. A unidade de Pernambuco estará localizada em uma área de grande circulação de pessoas, pois, além do metrô, abriga a Casa da Cultura, antigo presídio transformado num centro de artesanato. A quantidade de visitantes dos três centros culturais – cerca de 21 milhões de pessoas – não deixa dúvidas de que o objetivo de criar uma ligação com o público está sendo cumprido. Para não deixar de fora as cidades que ainda não possuem um CCBB, o Banco do Brasil oferece o Circuito Cultural, que roda por 18 Continente julho 2003

A agência publicitária Italo Bianchi distribui, como brindes, reprodução de grandes pintores, como Lula Cardoso Ayres

capitais brasileiras. Para este ano, estão previstos investimentos de R$ 7 milhões, contra R$ 5,8 milhões em 2002. Outro banco que vem privilegiando os moradores de Pernambuco é o Bandepe. O Espaço Cultural da instituição financeira foi criado em 1993, em comemoração aos 55 anos da empresa, quando ainda era estatal. Fechado em 1997, foi restaurado e reaberto em 2000, já na gestão do grupo holandês ABN Amro Bank, passando a se chamar Instituto Cultural Bandepe. “Inquestionavelmente, as empresas precisam se identificar com as comunidades em que vivem e, para isso, devem utilizar o que há de forte nessa comunidade”, explica Celso Antunes, presidente do Bandepe. Não é de se estranhar então a escolha da cultura para criar essa ligação. “Pernambuco é extremamente rico. Pelo que conheço de Brasil, é o Estado em que a cultura é mais evidente. São manifestações artísticas bastante fortes. Quando uma empresa se preocupa com isso, acho que ela atinge um ponto de sensibilidade da população, abrindo as portas para um diálogo mais produtivo”, acredita. Antunes salienta que a estratégia demora um pouco, mas é


Fotos: Divulgação

O Instituto Cultural Bandepe patrocinou a exposição e o livro de arte Açúcar: A Civilização que a Cana Criou

eficaz. “Não é como uma propaganda de TV, que atinge milhões de pessoas de uma só vez. Claro que é um processo mais lento, mas ele toca mais fundo”, diz. E comemora: “Uma pesquisa constatou que, até dois anos atrás, a imagem do banco estava ligada ao nome de um político , mas agora está associada à cultura”. Além do Instituto, que já ofereceu aos visitantes exposições do porte de Nova Iorque Nasceu em Pernambuco, O Olhar Viajante de Pierre Verger, Açúcar: a civilização que a cana criou e Desenhos da Terra – Atlas Vingboons, inaugurada pela Rainha Beatrix da Holanda –, o Bandepe usa a cultura em peças publicitárias e nos produtos da empresa, como os talões de cheque. Antunes cita ainda o trabalho do Banco Real (que também pertence ao grupo ABN Amro), em São Paulo, que já virou ponto turístico por conta da exposição de Natal. Também em São Paulo, o Banco Itaú dá sua contribuição para a disseminação da cultura com o Instituto Itaú Cultural, promovendo ações que mapeiam a produção artística brasileira por meio dos diferentes programas Rumos, além de disponibilizar na Internet, desde 2000, um banco de dados on line que já vi-

rou referência: a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais. O Instituto Moreira Salles, criado em 1990 e mantido pelo Unibanco, é outra prova do interesse dos bancos em criar esse elo com os atuais clientes e aqueles em potencial. Com a inauguração do Espaço Cultural Chanteclair (sem data prevista), no Recife Antigo, os pernambucanos poderão usufruir de oito salas de cinema, com 900 lugares, do Espaço Cultural Unibanco/ Unibanco Arteplex, com a programação voltada para o cinema nacional e produções independentes internacionais. Para o coordenador especial de Relações Institucionais da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), Jair Pereira, a tendência de todas as empresas é substituir ações de marketing que visem a simples venda de produtos. “Hoje, o cidadão não associa o produto a uma imagem apenas por comprá-lo, é necessário criar uma identidade. A cultura – ao lado dos esportes e dos projetos sociais – é um meio de se conseguir isso”. O orçamento da empresa, destinado a projetos desse tipo, era de R$ 300 mil em 1998, evoluindo para R$ 1,8 milhão em 2000 e R$ 3 milhões neste ano. A previsão para 2004 é chegar aos R$ 4,5 milhões. Entre as aplicações dos recursos estão o PercPan, o Abril pro Rock, o Grupo Grial, o filme Lisbela e o Prisioneiro, o DVD de Antônio Carlos Nóbrega e a Festa da Lavadeira, da qual foi a única patrocinadora. “Além disso, a Chesf prima pelo bom-gosto nos presentes aos clientes, com telas de Romero de Andrade Lima ou de Guita Charifker, estas últimas ornando o Balanço Anual da empresa que será publicado neste segundo semestre”, diz. Há a preocupação, também, de corrigir algumas distorções, segundo Pereira. “Por exemplo, 28,8% dos R$ 3 milhões investidos no ano passado foram para seminários e congressos, e apenas 3,8% para literatura. Além disso, cerca de 60% dos recursos ficaram em Pernambuco, quando a Chesf atua em todos os Estados do Nordeste, com exceção do Maranhão”, contabiliza. Outra proposta para 2004 é a definição de uma política cultural, com a criação de um produto com a “cara” da Chesf. Continente julho 2003


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92 CULTURA

Em outubro do próximo ano será inaugurado o quarto Centro Cultural Banco do Brasil. Historicamente conhecido pela diversidade cultural e importância nos movimentos revolucionários e libertários, além da localização estratégica, Pernambuco foi o Estado escolhido para sediar a instituição

“Pode ser um festival, uma oficina, mas algo que seja estendido a todos os Estados que cobrimos”, adianta. A idéia é que o evento se repita todos os anos, virando tradição como o Circuito do Frio, do Governo do Estado. Desde que deixou de ser estatal, a Celpe ficou identificada com o grupo espanhol Iberdrola, que se tornou o controlador do sistema. Daí a necessidade de criar uma identidade com o público local, investindo em projetos que fortaleçam as raízes culturais do Estado. “Diferente de outras empresas, que apontam para um determinado nicho de mercado, todo mundo é cliente da Celpe”, ressalta Alba Moreira Lessa, gestora da Unidade de Imagem Corporativa da empresa. Entre as obras contempladas com os investimentos da Celpe em 2002, estão a edição de Pindorama, de Laílson de Holanda, que retrata a História do Brasil em 12 fascículos, e o livro Pernambuco Preservado, de Leonardo Dantas Silva, um dos investimentos mais substanciais no ano passado, custando R$ 367 mil. “O aporte foi alto, mas o retorno foi ótimo, tanto pelo reconhecimento da obra como pelo espaço conseguido na mídia”, enfatiza Alba. O festival Janeiro de Grandes Espetáculos e o filme O Cinema, a Aspirina e os Urubus – ainda não lançado – do diretor Marcelo Gomes, são outros exemplos de como se pode chegar ao público por meio de uma obra de arte. A preocupação em contemplar também o interior do Estado pode ser notada em investimentos como o do Museu Arqueológico de Pai Chico, inaugurado em fevereiro deste ano no município de Afrânio, Pernambuco. “Trata-se de um projeto de grande importância para a preservação da riqueza histórica da microrregião do sertão do São Francisco, com um acervo Continente julho 2003

inicial de 1.200 peças que revelam os costumes sertanejos”, conta Alba. Entre os R$ 61,9 mil já aplicados neste ano está a Cavalgada à Pedra do Reino, que tem à frente Ariano Suassuna, em São José do Belmonte, que recebe apoio da empresa pelo terceiro ano. A agência de publicidade Italo Bianchi também investe em projetos culturais, já tendo patrocinado o primeiro CD do Mestre Ambrósio e a trilha sonora da peça A Máquina, de João Falcão, mas se destaca mesmo pelos presentes de final de ano. São reproduções de telas de Eckhout ou cerâmicas de

Vista da Cidade do Recife, de Friederich Hagedorn, em reprodução distribuída no fim de ano pela Italo Bianchi


CULTURA 93 Se Pernambuco tinha a disposição cultural de cidades européias, mas faltava a nobreza de edificações do porte daquelas encontradas no Velho Continente, a lacuna foi preenchida pelo Instituto Ricardo Brennand, inaugurado no ano passado num castelo medieval francês

José Cláudio, presentes responsáveis pela associação do nome Italo Bianchi à cultura. “É o valor intrínseco. Posso assegurar que há um registro bem diferente do que se déssemos canetas ou vinhos. Litografias de Portinari e telas de Picasso foram alguns dos primeiros brindes. Com o passar do tempo, começamos a focar na arte feita em Pernambuco ou que retratasse o Estado”, explica Joca Souza Leão, um dos diretores da agência. José Cláudio fez quadros especialmente encomendados com o tema Comunicação. Depois foi a vez das cerâmicas. Lula Cardoso Ayres tam-

bém passou a integrar a galeria, em 2000, quando completaria 100 anos. Tanto sucesso quanto as telas de Eckhout, fez a Vista da Cidade do Recife (1855), de Friederich Hagedorn. O tríptico, pintado da Igreja do Espírito Santo, onde ficava a torre mais alta da cidade naquela época, faz parte do acervo da Fundação Joaquim Nabuco e ganhou uma restauração minuciosa. As telas retratam um Recife com o qual as pessoas ainda têm referência de identidade, é um Recife idealizado, como elas gostariam que tivesse ficado”, comenta. E se Pernambuco tinha a disposição cultural de cidades européias, mas faltava a nobreza de edificações do porte daquelas encontradas no Velho Continente, a lacuna foi preenchida pelo empresário Ricardo Brennand. O Instituto Ricardo Brennand (IRB) foi inaugurado no ano passado com a exposição de 24 telas do pintor holandês Albert Eckhout. O castelo medieval de estilo francês, localizado na Várzea, no Recife, levou nove anos para ser construído e, no momento, abriga os quadros de outro pintor holandês, Frans Post, contemporâneo de Eckhout, e o primeiro a retratar em cores as paisagens do Novo Mundo. De acordo com a curadora da exposição, Beatriz Corrêa do Lago, além de ter a maior coleção, o IRB é o único lugar do mundo que possui obras dos quatro períodos de Post. “Todas adquiridas nos últimos anos, num esforço do empresário Ricardo Brennand, que se voltou para o tema da dominação holandesa no Estado e comprou tudo o que podia para melhorar o acervo”, conta Beatriz. O investimento não é revelado, mas a cultura agradece. • Tatiana Resende é jornalista. Continente julho 2003


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PRETO NO BRANCO

É necessário revisar a memória, recuperar o tempo perdido, reencontrar as tradições culturais que ontem formularam um real projeto e reinventar o futuro a partir do passado Eduardo Subirats

O PÓS-MODERNISMO BRASILEIRO: O FIM DO PÓS-MODERNISMO Uma observação à margem. Apenas uma nota confinada entre ditados e censuras intelectuais e acadêmicas globais, e de seus replicantes locais: a discussão já obsoleta entre modernos e pós-modernos esqueceu a América Latina. Os intelectuais da América do Norte e da Europa sempre acabam esquecendo a América Latina. Destino. Só aceitam réplicas narcisistas deles mesmos: ontem A Santa Trindade e hoje o realismo mágico. Uma necessidade histórica colonial. Mas os latino-americanistas pós-modernos e os pós-modernistas latino-americanos têm se destacado também por sua pouca memória. Pensavam que pensavam desde qualquer lugar. Começavam seus romances em Manhattan e suas arquiteturas em Las Vegas. Não estavam no seu lugar. Por isso tampouco escreveram ensaios. Escreviam réplicas. Pensamento subalterno. E esqueceram bastantes coisas. Mas, principalmente de um detalhe. Sempre os detalhes são significativos. É que o primeiro a fundar o conceito crítico de pós-modernidade foi precisamente um escritor latino-americano. Pior ainda: foi um brasileiro. Uma espécie de índio. E como se isso fosse pouco, fê-lo num contexto selvagem e temível: a Antropofagia, o Movimento Antropofágico. Não destaco que fosse o primeiro dos pós-modernistas, o destacável é que foi um conceito crítico de pós-modernidade. Superação antropofágica do pós-modernismo como ícone comercial da indústria cultural. Oswald de Andrade, um dos líderes desta vanguarda, ou melhor, da vanguarda latino-americana, foi também o intelectual que mais cedo percebeu a crise dos valores civilizatórios que a sociedade industrial atravessava no momento de cristalizar os grandes sistemas totalitários modernos. Em 1945, este poeta e ensaísta introduziu o que provavelmente constitui a primeira definição de pós-modernidade. Mas é necessário dizer muito mais a respeito. Andrade criticou significativamente este “pósmodernismo” de uma perspectiva latino-americana, ou seja, do ponto de vista de sociedades que não tinham experimentado internamente as transformações totalitárias, inerentes ao desenvolvimento industrial pós-moderno, mas que, ao mesmo tempo, conheciam na pele suas conseqüências, sob as múltiplas variações da violência colonial e neo-colonial. Esta condição pós-modernista era o horizonte histórico do qual partia a interpretação de época de Andrade. A pintura de Portinari, a música de Mignoni, e a arquitetura de Warchavchik e Niemeyer eram seus referentes principais. Todos eles haContinente julho 2003

viam compreendido que o sonho artístico criado na Europa, nos anos vinte havia sofrido um colapso, e que em seu lugar se gerava uma nova civilização tecnocêntrica, radicalmente niilista no que se refere aos seus valores morais e civilizatórios, e por isso mesmo imperialista no que diz respeito às suas dimensões políticas e econômicas. E que, portanto, devia se aproveitar tudo aquilo que tivesse de benéfico, mas todo o resto devia ser deixado de lado. O entorno mundial que Oswald de Andrade analisava em seus ensaios estava configurado pelo stalinismo e o fascismo europeus, a civilização tecnocêntrica e puritana dos Estados Unidos, o pessimismo existencialista alimentado pelas guerras mundiais e o que de uma perspectiva contemporânea deve ser considerado como o começo de uma era de genocídios industriais: o coroamento da destruição militar européia com o holocausto de Hiroshima e Nagasaki . É verdade que este pós-modernismo latino-americano não tem nada a ver com o dispositivo global e a banalidade comercial que tem distinguido o postmodern norte-americano dos anos oitenta e noventa do século passado. Para Oswald de Andrade, pós-modernismo significava, antes, aquele limite histórico do projeto moderno, a partir do qual era necessária uma reforma civilizatória que integrasse as memórias da América antiga com um projeto humanizado de desenvolvimento social, sob a perspectiva filosófica de rejeição ao colonialismo patriarcal, cristão e tecno-cêntrico que definiam e distinguiam à civilização ocidental.

O entorno mundial que Oswald de Andrade analisava estava configurado pelo stalinismo e o fascismo europeus, a civilização tecnocêntrica e puritana dos Estados Unidos, o pessimismo existencialista alimentado pelas guerras mundiais e o que deve ser considerado como o começo de uma era de genocídios industriais: o holocausto de Hiroshima e Nagasaki


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Correntes artísticas e intelectuais ligadas às tradições européias do barroco, do classicismo e das vanguardas, e também à espiritualidade maia, inca ou amazônica, descobriam a modernidade das suas linguagens mais antigas. Mas tudo isso passou. Veio o culto pós-moderno de uma medíocre produção microanalítica e intertextual da todo-poderosa burocracia acadêmica global Naqueles anos, e pouco depois de realizar o conjunto arquitetônico de Pampulha, em Belo Horizonte, Niemeyer formulava basicamente o mesmo projeto de transformação civilizatória, através de uma arquitetura que se apresentava deliberadamente como superação, ao mesmo tempo, do funcionalismo e o racionalismo europeus, do seu dogmatismo cartesiano e seu monótono ascetismo, resumindo, o que em última instância denominou a mediocridade terminal do movimento moderno. E criou uma linguagem arquitetônica revolucionária em nome de uma revalorização do corpo humano, seu erotismo e sua imaginação: “uma arquitetura feita toda de sonho e fantasia, de curvas e grandes espaços livres de elementos supérfluos...” Era o começo de uma nova idade. Aos nomes que balizam esta nova época podemos incrementar outros do Brasil e da América Latina. A visão integradora de urbanismo, pintura, arquitetura e a natureza tropical nos projetos urbanísticos de Roberto Burle Marx, a assimilação das culturas africanas na música e na poesia, no cinema, a música e a arquitetura do Tropicalismo brasileiro; o diálogo filosófico e cosmológico com a espiritualidade das antigas culturas andinas na obra de José Carlos Mariátegui e José María Arguedas, a visão de uma realidade multicultural no México pela arquitetura de Diego Rivera e Edmundo O’Gorman; o projeto antropológico e político de recuperação das memórias e formas de vida das civilizações pré-coloniais de Guillermo Bonfil Batalla no México e Darcy Ribeiro no Brasil... Todas estas correntes artísticas e intelectuais estavam intimamente ligadas às tradições européias do barroco, do classicismo e das vanguardas. A teoria da cultura de Oswald de Andrade partia de Nietzche e Bachofen. Lina Bo se inspirava na arquitetura do Expressionismo alemão. O projeto cultural de Arguedas pode ser definido como uma original síntese de Marx e de Herder. Mas todos esses projetos intelectuais afundavam, ao mesmo tempo, suas raízes na espiritualidade maia, inca ou amazônica, descobria a modernidade das suas linguagens mais antigas, e abriam, a partir de suas concepções sobre a vida humana e a natureza, uma alternativa a uma civilização mundial mortalmente ameaçada pela própria imensidade do seu poder tecnológico e financeiro.

Tudo isso a chuva e o vento levaram. Primeiro, as ditaduras fascistas decapitaram aqueles intelectuais e artistas. A seguir enterraram seus projetos. Finalmente veio o resto. Veio o culto pós-intelectual e pós-artístico de uma medíocre produção microanalítica e intertextual da todo-poderosa burocracia acadêmica global. E as múltiplas expressões do novo culto do espetáculo cultural pós-moderno. Houve expressões de resistência e uma amplíssima produção inovadora que suscitava a necessidade de novas estratégias intelectuais. Mas suas vozes foram confortavelmente apagadas sob os estridentes slogans da aldeia global: condição pós-histórica, realidade pós-política, culturas híbridas, sujeitos pós-intelectuais e o colofão terminal de uma idade pós-humana. Parece que apenas uma categoria se salvou do naufrágio. Porém, seu resgate não deixa de ser, por si, inquietante. Em meio à débâcle econômica, política e intelectual que acompanhou as transições latino-americanas, sob a etiqueta de realismo mágico, o mercado global anunciava a venda daqueles mesmos prazeres proibidos do real-maravilhoso, nas selvas virgens dos alegres trópicos americanos, que na Europa tinham se malogrado sob os ambíguos slogans do surrealismo dos anos vinte e trinta. A chuva e o vento levaram quase tudo. Primeiro foram os exílios. Depois, a banalização pós-moderna do final dos discursos e da história. O pós-marxismo, chamando com essa palavra inócua o pastiche de discursos reciclados pelo latinoamericanismo norte-americano, fez o resto. Decretou sumariamente a morte desta tradição de artistas e intelectuais que haviam redefinido as linguagens artísticas e literárias do século vinte. Deram-nos por superados sob a bandeira dos novos agentes transterritoriais de administração financeira e cultural, da subseqüente hibridação das linguagens industrialmente manufaturadas, e da desconstrução terminal das soberanias culturais e políticas da América Latina. Hoje, é necessário reverter este processo. Revisar a memória, recuperar o tempo perdido, reencontrar as tradições culturais que ontem formularam um real projeto, uma esperança concreta, reinventar o futuro a partir do nosso passado. • Eduardo Subirats, espanhol, é filósofo e escritor. Continente julho 2003


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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Severinos companheiros Ah! Terra grande sem dono e de tantos danos de donos bisonhos

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uantos Severinos – muitos ainda meninos - secam em solo tórrido e pátrio do velho Nordeste – da peste!... Severinos amarelos, pretos, brancos e cinzentos – pequeninos –, sem estímulos. Roncando barrigas com outros Pedros, Joões e Josés, engordando barrigas de Marias, Joanas e Engrácias – da seiva de Severininhos e inhas, mínimas, de olhinhos esbugalhados de esperança – ancha e sofrida – indormida, refugiando-se entre paus secos, ocos de rama espinhosa. A rosa não é vermelha. Foi sugada pelas abelhas ferrudas e abelhudas, levando o mel e deixando o fel de sua corola sedosa para semear a terra fustigada a enxadas – na espera das minguadas espigas do milho de São João, já em pé desde São José. Ladainhas de fervor ao Cristo – benquisto –, com pedidos esquisitos em meio ao continuado verão – sem pão nem bordão. Ah! Terra grande sem dono e de tantos danos de donos bisonhos – ricos hereditários e latifundiários – soprando, risonhos e abastados, ventos de bondade sem qualidade. Entra ano, sai ano, com medo – sem governo – sem chuva, nem renda de procissão, acendendo vela pra Lampião – santo de grotão –, libertador morto da violência de outrora, pecador da inocência. É o apelo mais angustiante para quem não tem mais herói – nem cowboy de caatinga. Sem moringa – da água de léguas tiranas – insana agonia de todo dia. Da reza em suas calçadas sem serem calçadas, aspiradas de rapés – a pontapés – nas guaridas da noite, ouvindo os gritos de agruras do açoite do curupira – saci daqui –, também faquir do acauã, com seu canto moribundo do amanhã da carimbamba: sempre pra depois de amanhã – infinito e aflito. Que sonhos bonitos de uma vida melhor para os Severinos companheiros – brejeiros e faceiros! Da daltônica verde montanha, arrebitada e condenada à solidão do sertão, esquecido pelas jóias da Coroa Imperial – expostas no carnaval! Triste carreira de uma monarquia de papel desfilando em avenidas iluminadas – de tudo e de nada. Os governantes, no cio da insensibilidade, arrogantes, prometem mundos de

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banha – que vergonha! – para acalentar, alucinantes, a fé dos Severinos nordestinos. Cantorias e alforrias não há mais. Mas a escravidão do sol remói suas picanhas desidratadas e muito caras, na sempre certeza de que tudo vai estar bem no ano que vem – que nunca chega – sem jeito nem conceito. Uma certeza, sim, de maleita – atormentadora e fria – vazia. Questionemos, pelo menos, quando tudo isso acabará. De agora pra lá – quiçá? Tanto modernismo! É a aids sendo curada, dá, dá – já... já; foguetes pra Marte, Vênus e Plutão - que bão; carro avoador – que horror; gente feita de parafusos fazendo o que a gente faz – e mais; fotografias intergalácticas – fantásticas; transplante de mão e de orelha nascida da cocuruta do rato mulato... O cão!... E quanto à vontade de acabar com os sofrimentos de tantos Severinos, ah... Isso não – violão!... A lua foi invadida derna 69 e, nesse finalmente de 99, necas de ação e melecas de solução, sem um pingo do quinhão – de milhão. A seca foi cronificada pelas intempéries da natureza – tá e quá – pelos homens lá de cima do poder absoluto – e nós de luto. Batam bombos, ó, Severinos de Deus, das quimbandas de Iemanjá, das Iaras sereias do mar! Desmilinguem-se terços de incelenças com parentes – dementes; desavençam jejuns do leite das cabras – magras –, do raquítico feijão guandu – do angu; façam novenas – pequenas – de dar pena a São Tomé – de fé –, mode Nosso Senhor penitenciar os homens deste País – no risco do giz. Alimentem-se do luar – belezura com usura – desse mundão caboclo; ponham-se em sereno fosco – ameno – e despertem o galo-de-campina, enroscado no mandacaru sem flor, que quando canta muda de cor. Não aceitem mais esmolas – carolas e humilhantes – brilhantes de cegar seus direitos. Sigam, Severinos decentes, a mostrar para essa gente política – omissa –, que vocês também são cidadãos deste Brasil – varonil. • Rivaldo Paiva é diretor geral do Suplemento Cultural.




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