EDITORIAL
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Teatro como opção de vida
A
dramaturgia televisiva não é só feita por rostos e corpos bonitos. Habita regulamente a telinha uma geração de excelentes atrizes – Fernanda Torres, Deborah Bloch, Andréa Beltrão, Julia Lemmertz e Claudia Abreu –, todas profissionais sérias, que se interessam a fundo pelo ofício do ator. Entre elas, vem se destacando Giulia Gam, mais conhecida do público pela histriônica Heloísa, da novela Mulheres Apaixonadas, de Manuel Carlos. Poucos sabem, no entanto, que, para Giulia, o palco é o local onde se mais se realiza, é sua casa, seu país. Começou no teatro ainda aos 15 anos, pela mão de um dos mais exigentes diretores do País, Antunes Filho, e já trabalhou com outros tão importantes quanto, como José Celso Martinez e Gerald Thomas, tendo entrado relutantemente para a televisão, como conta em entrevista exclusiva. Exclusivo também é o depoimento de Augusto Boal, um dos mais polêmicos homens de teatro do Brasil, paradoxalmente, mais conhecido internacionalmente do que aqui. Boal explica como funciona seu Teatro do Oprimido, método de utilização do palco para conscientizar todos aqueles que sofrem algum tipo de opressão e como superá-la. E por falar em teatro, trazemos para o leitor a batata quente de julgar a atuação do grande Machado de Assis, como censor do Conservatório Dramático Brasileiro, nos seus verdes anos. Passando do teatro para o cinema, o alemão Wim Wenders, que já encantou o mundo revelando os músicos cubanos do Buena Vista Social Club, agora ataca o universo do blues, no momento em que se comemora o centenário da música negra norte-americana e dá um longo depoimento à Continente em que fala ser o blues a melhor fonte de conhecimento dos EUA. Esta edição traz, ainda, a lembrança do mestre Vitalino, morto há 40 anos, vítima de uma doença chamada brasil.
Foto: Folha Imagem
Giulia Gam com José Celso Martinez Correa
Continente agosto 2003
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CONTEÚDO Foto: Divulgação
Foto: Yêda Bezerra de Melo/ Divulgação
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Cena da peça Meia Sola, dirigida por Antônio Cadengue
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Wim Wenders faz filme sobre blues
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CONVERSA
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08 Os impasses contemporâneos dissecados por Jurandir
ARQUITETURA 54 Geometria e beleza no cotidiano do povo
Freire Costa »
LITERATURA
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64 Um Portinari mais intimista
14 A tesoura de censor nas mãos de Machado de Assis Branca de Neve manipulada pela burguesia Câmara Cascudo de volta ao cardápio nacional »
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CAPA 34 Giulia Gam se revela como gente de teatro O incansável Augusto Boal Novos grupos trocam experimento por realidade Nossa elite não vai ao teatro
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CINEMA 46 Wim Wenders resgata o blues desconhecido Continente agosto 2003
MEMÓRIA 70 Vida, paixão e morte de Vitalino
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RÁDIO 75 No ar, um oásis de literatura e idéias
POESIA 28 Mão compassiva
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O olhar de fora de Rick Boike
CONTO 24 Uma coisa de cada vez
ARTES
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TELEVISÃO 76 Por que os reality shows fazem sucesso
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ESPECIAL 86 Razões e contra-razões na discussão do império americano
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PRETO NO BRANCO 94 O choque entre os direitos de imagem e de informação
3 Foto: Reprodução
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Foto: Hans V. Manteuffel
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Peça em barro de mestre Vitalino
As cores da arquitetura popular
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CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 A encruzilhada do PT entre Deus e o diabo
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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 32 Adeus ao pós-modernismo
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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 68 Le Corbusier, a traição à coerência e os dilemas da criação
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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 80 Os ingredientes que dão o sabor próprio a cada cultura
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 83 A patifaria como fonte de perplexidade
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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 92 Guita Charifker nega a maldição na arte
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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Não pode haver liberdade contra o bem comum
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CRÉDITOS
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert
Continente Multicultural
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores André Resende, Betânia Uchoa Cavalcante- Brendle, Daniel Piza, Fábio Lucas, João Esteves Pinto, Kleber Mendonça Filho, Luciano Trigo, Luís Augusto Reis, Pedro Vicente Costa Sobrinho, Ricardo Oiticica, Rodrigo Carrero, Rudolf Knauer Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Douglas Rocha Borba, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217-2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
Continente agosto 2003
Agosto Ano 03 | 2003 Foto: Lenis Pinheiro/ Folha Imagem
Mix Escrevo para parabenizá-los pela ótima publicação, que traz, na medida certa, um mix de matérias relacionadas à literatura, fotografia, música e às artes em geral. Sou paulistano e confesso que adquiri a edição de junho/2003 única e exclusivamente pela presença de Woody Allen na capa, artista de quem sou grande fã (tanto de seu cinema quanto de sua literatura) há bastante tempo. No entanto, qual não foi a minha surpresa ao me deparar com uma publicação tão bem editada, contendo uma interessante gama de matérias de caráter multicultural (justificando plenamente o nome da revista), social e político. Li com grande prazer, principalmente, as matérias relacionadas ao cineasta e escritor Woody Allen, ao centenário de George Orwell, à fotografia de Camilo Soares, à ascensão de Lula como presidente e ao Festival de Parintins. Sem dúvida, trata-se de uma publicação para ler e arquivar na biblioteca, dada inclusive a qualidade da publicação (papel de ótima qualidade e lombada quadrada). Vejo com muito bons olhos as publicações deste tipo que começam a surgir pelo país, servindo-nos de refúgio da mesmice contida nas publicações de grande tiragem (que, logicamente, também tem seu devido e justo espaço nas bancas nacionais), mostrando-se portanto diferenciada das demais revistas em seu conteúdo, abordagem e temática. Infelizmente (nem tudo é perfeito), percebo que não é fácil encontrar a Continente Multicultural aqui no Sudeste, mas compreendo perfeitamente o fato da publicação ser distribuída de modo seletivo. Eu já elegi o meu ponto de venda como sendo a FNAC de Pinheiros. Parabéns pela publicação! Asseguro-lhes que conquistaram mais um leitor aqui no Sudeste! Rodrigo B. Rolo – São Paulo – SP Osman Acho que uma boa revista editada no Nordeste, como é o caso da Continente, está cumprindo sua missão maior quando dá espaço aos valores da região, que normalmente não encontram o merecido espaço em revistas congêneres editadas no Sudeste. É por isso que fiquei imensamente gratificado quando me deparei com uma grande matéria sobre o escritor pernambucano Osman Lins (A Maldição do Experimentalismo, edição de julho, 2003), que andava injustamente esquecido. Escritor de grande envergadura, ombreando-se com os maiores do país, já está em tempo que sua obra, desaparecida das livrarias, seja toda relançada por uma boa editora nacional. Espero que a matéria da Continente tenha servido de alerta para isso. Se serviu, já justificou a Revista. José de Arimatéia Pereira – Natal – RN
CARTAS Descoberta Gente, sou paulistana, tenho 23 anos, conheci o Nordeste há dois anos, quando fui com uma turma para Salvador, Maceió, Recife, feira de Caruaru, Porto de Galinhas, Natal, Fortaleza e Jericoaquara. Adorei! Mas não sabia, como vocês, nordestinos, são intelectuais, até ler a Revista Continente, incrivelmente feita no Recife. Vi na FNAC o número que tinha Wood Allen na capa (adoro seus filmes), comprei... e gostei. Bravo, cabras da peste! Tatiana Andrade Costa – por e-mail Glauber Gostei do artigo sobre o cineasta surrealista Jean Rouch, que eu não conhecia (Palavras de um Mestre Louco, edição de abril/2003), em especial a parte da discussão dele com Glauber Rocha, ou melhor, de Glauber Rocha com ele. Engraçado e interessante o episódio. Tragam outras histórias como aquela, que além de nos instruir, diverte-nos também. Heleno Eloy Silva Monteiro – Recife – PE Virtual
Não conhecia a Revista Continente até que vi sua última edição (julho, 2003) nas bancas, com uma matéria intitulada O Eu Virtual. Sou fascinada pelo assunto e tratei de comprá-la, ficando gratamente surpresa com a qualidade, não só da dita matéria, como também das outras, tão diversificadas. Nível nacional, ou melhor, internacional! Kátia Regina Valois – Fortaleza – CE Orwell Parabéns pela interessante matéria sobre Orwell, um autor de suma importância e destaque, porém, acho que deveria sofrer uma análise mais profunda no que se refere às suas obras e vida, do que simplesmente citar seus livros com títulos não traduzidos. Carolina Freitas – Olinda – PE Gonzaga Fiquei mui contente com o número 30, reportando e lembrando o grande Rei do Baião, Luiz Lua Gonzaga (matéria Velho Lua dá o tom do São João). Francisco Luiz Pereira – Vitória – ES
Patrimônio Fico com a convicção de que a Continente é hoje patrimônio da cultura – e não apenas literária – de Pernambuco e que exige vida longa. Além disso, cresce a minha admiração pela qualidade e competência intelectuais – e jornalísticas, claro – de vocês. Raimundo Carrero – Recife – PE Arrogância Vocês são muito arrogantes e muito metidos a intelectuais e pensam que passam por cima das pessoas com essas palavras complicadas. Li no site de vocês O Eu Virtual (edição de julho/2003) e não entendi nada. Serei mais burro do que os outros ou é vocês que estão querendo esnobar? Tiago P. – por e-mail Bumba-meu-boi Gostaria de sugerir uma reportagem sobre o bumba-meu-boi, essa tão alta expressão artística popular do Nordeste que se não me engano está desaparecendo. Devemos dar uma atenção à preservação dos nossos valores pois, se não o fizermos, ninguém o fará por nós, não acham? Parabéns pelo conteúdo da Revista assim como pelo desenho das páginas, fotografias, etc. Keyla Regina – por e-mail Internet Concordo totalmente com o professor americano John Perry Barlow, que, na matéria Música na Internet deve ser gratuita (edição de julho, 2003), justifica plenamente sua afirmativa. É como ele diz, a música e o texto são bens imateriais, o disco e o livro, sim, é que devem ter copyrigth. E mais, a divulgação gratuita da música na rede serve para promover o artista e despertar no ouvinte o desejo de comprar o disco, oras. Glauco Meireles – por e-mail
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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax
Bordel Coisa linda, aquela matéria sobre os quadros da pintora pernambucana Tereza Costa Rego (O Pecado de Tereza, edição de julho, 2003). Devo ir ao Recife brevemente e com toda certeza vou ao Espaço Cultural Bandepe conferi-los pessoalmente. Com esses quadros fica claro que Tereza (por coincidência minha xará) é uma das maiores, se não a maior pintora pernambucana de todos os tempos. Tereza Lima Bezerra – Caruaru – PE Delmiro
Pós-modernismo Achei superoriginal a colocação do filósofo Eduardo Subirats, quando assinala Oswald de Andrade como o primeiro intelectual latino-americano a assumir uma postura pósmoderna. É tema polêmico e que mereceria um maior aprofundamento por parte de nossas universidades, especialmente seus Departamentos de Letras. Juliana Pedrosa – Santo Amaro – BA
Adorei a Revista Continente Documento, dedicada a Delmiro Gouveia, e que me chegou às mãos por um primo que foi passar férias no Recife. Não conhecia o personagem. E que personagem! Sua vida daria um filme. (Será que já foi feito?). A história de um homem que começa como menino pobre e analfabeto, no meio do sertão, e se torna um grande empresário, exportador, raptando a filha de um governador para casar com ela, dando uns sopapos num presidente da República, criando a primeira usina geradora de energia elétrica no Nordeste, dando a seus empregados cinema (uma total novidade na época, 1915!) e tentando educá-los (a ponto de punir quem fosse pego cuspindo no chão), é uma história fantástica! Parabéns pelo trabalho! George Belarmino da Costa – Santo André – SP
Boas referências Após ouvir boas referências da Liliana Magalhães, pernambucana, diretora do Santander Cultural, e do Felipe D’Avila, diretor da revista Bravo!, tive oportunidade de conhecer o site Continente Multicultural, que me impressionou favoravelmente. Jorge Polydoro – Diretor da Aplauso – Porto Alegre – RS
China Achei valiosa a reportagem sobre a China (O enigma Chinês, edição de maio, 2003), mostrando aspectos desconhecidos daquela enigmática nação asiática. Só faltou falar sobre o poderio nuclear dos chineses. Afinal, estamos ou não estamos às vésperas da 3ª Guerra Mundial? Astrogildo Ferreira da Silva – Recife – PE Continente agosto 2003
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CONTRAPONTO
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Carlos Alberto Fernandes
O consenso de Brasília
A estratégia política peca por querer agradar a Deus e ao diabo
C
hegamos ao fim do primeiro semestre de 2003 sem nenhuma perspectiva de encaminhamento de solução para o agravamento dos dois mais sérios problemas deste início de século: o desemprego e o crescimento das desigualdades sociais. Seja entre nações ou dentro delas. Ultrapassamos os sete meses do Governo Lula sem perspectiva objetiva de melhoria nas condições de vida das pessoas, apesar das esperanças identificadas com os níveis decrescentes do risco Brasil, do virtual controle da inflação e do desempenho da balança comercial. Mesmo com esses alentos econômicos, os índices de desemprego superam os 20 pontos percentuais e a violência cresce desdenhando dos discursos oficiais e desenhando em cores chocantes a mais nova tragédia brasileira. Adotando o consenso de Washington como alternativa de sobrevivência política e monitorado pelo FMI e pelo Banco Mundial, o Governo do PT não tem como manter o seu tradicional paradigma do dirigismo do Estado e acolhe pragmaticamente as políticas voltadas para o mercado, recheadas de uma promessa de reformas que o Governo anterior com sua faceta liberal não conseguiu executar. Não é surpresa que o paradoxo do não gastar, de melhorar a relação dívida/PIB e o aumento do superávit primário, caracterizado aqui como “consenso de Brasília”, vá de encontro a todas as políticas de promoção do desenvolvimento humano sustentado, pois essas medidas apesar de parecerem racionais na medida em que geram credibilidade nos meios financeiros internacionais, têm na prática, promovido continuadamente o desemprego e a desesperança pelo mundo afora. É claro que a culpa por essa situação não é dos governos nacionais, mas do modelo adotado pelos formuladores da política financeira internacional. Esse modelo incorpora um sistema de valores que não tem permitido avanço nas questões relativas à elevação do nível de vida das pessoas e ao desenvolvimento eqüitativo, sustentado e democrático.
A globalização tende a pecar por sua estreiteza, na medida em que se concentra na unificação econômica dos mercados com operações financeiras em escala mundial. Mas, também é verdade que as conseqüências danosas relacionadas à exclusão social não eram esperadas. Todavia, os dados são fatos. A exclusão é real. A inclusão é virtual. No vácuo dessa problemática, pode-se dizer que a materialização do “consenso de Brasília” – apoiado nos superávits, no controle da dívida, nas promessas das reformas, e ao mesmo tempo na promoção do crescimento, na geração de milhões de empregos e na extirpação da fome –, peca duplamente pela contradição de querer agradar a Deus e ao diabo simultaneamente. Este consenso contém as mesmas contradições do primeiro, apesar dos discursos de inclusão social. Promover o crescimento com essas amarras na política econômica parece ser uma missão espinhosa e difícil, já que não há compatibilidade entre teoria e prática. E, à medida que o tempo avança, não se vêem benefícios na ponta, ou seja, o cidadão e a cidadania continuam fragilizados. E aguardem, pois as mesmas elites que defendem o “consenso de Brasília” como alternativa para a governabilidade, podem brevemente culpar o governo, o Congresso e o sistema político, e menos elas próprias, pela impossibilidade de se resgatar a dívida social com a urgência que a sociedade deseja. E aqueles que até ontem foram governo não terão o menor constrangimento em cobrar mais emprego e menos desigualdade. Eles certamente agirão como se estivessem fora do processo. Em resumo, todos são favoráveis a que se faça algo radical contra a pobreza e a desigualdade, desde que isso não lhes custe nada. Eis aí o grande imbróglio do “consenso de Brasília” e das reformas: todos, em tese, são a favor, desde que tenham ganhos, inclusive o próprio Governo. • Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral. Continente agosto 2003
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CONVERSA
“O
perfil do conflito psíquico, do sofrimento psíquico, mudou”. A afirmação é do pernambucano Jurandir Freire Costa, considerado um dos grandes pensadores brasileiros em atividade. Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Freire Costa deixou o Recife há três décadas para fazer pósgraduação em Etnopsiquiatria, em Paris e, desde a volta, mora no Rio de Janeiro. É autor de diversos livros, entre eles: Ética e o Espelho da Cultura (1994), Sem Fraude nem Favor: Estudos Sobre o Amor Romântico (1998), e Razões Públicas, Emoções Privadas (1999). Nesta entrevista exclusiva, o psicanalista discute os impasses da vida contemporânea, em que o que é necessário à subsistência física, social e publicitária, que integra o sistema de reconhecimento social, dissociou-se do sistema de valor moral. Essa divisão entre o que se faz e o que se idealiza resulta numa moral franksteiniana, foco de tensões a afligir o homem moderno num quadro de uma complexa sociedade de consumo, onde a ética foi descartada.
JURANDIR FREIRE COSTA
O mal-estar da nossa civilização Está-se vivendo uma espécie de moral frankensteiniana: o que leva a agir, a fazer, a fabricar, não é o que se admira. Está mais ligado ao que se inveja Fábio Lucas
Continente agosto 2003
Foto: Ana Branco/AgĂŞncia O Globo
10 CONVERSA
Diante da globalização e suas conseqüências, o Estadonação está em crise? Como o indivíduo se coloca diante dessa realidade? Do ponto de vista da filosofia política, eu não saberia responder. Do ponto de vista da motivação subjetiva, o declínio do Estado-nação é mais um indício do que chamaria de crise da idéia clássica da autoridade. Como a família, o Estado cumpria a função de oferecer segurança em troca da renúncia, mais ou menos consentida, à boa parte de nossa autonomia individual. Hoje, o Estado nem nos protege da violência urbana interna nem dos interesses político-econômicos das grandes corporações internacionais, sobretudo as financeiras. O sentimento, creio, é de desproteção, fragilidade, desconfiança em relação à força efetiva de um poder que promete mais do que dá. Temos, talvez, que reinventar novas crenças, novos modos de convívio ou sociabilidade que nos devolvam a confiança na principal função da política, qual seja, a de criar formas de poder capazes de nos proteger contra a violência de indivíduos ou de grupos que agem em nome de interesses particulares e não do bem comum. Em suma, no Brasil, o Estado fiscal ou o Estado-empresa, se tornou, senão na realidade no imaginário, um simples instrumento de imposição dos interesses de grupos economicamente mais fortes ou, então, o braço armado “legal” na luta fratricida e fracassada contra o banditismo urbano, em especial o ligado ao tráfico de armas e drogas ilegais. Isso pouquíssimo, para sustentar a função simbólica de proteção contra a violência física dos marginais e o arbítrio dos mais ricos. Espero firmemente que, no atual governo, isso venha a mudar. Foto: Acervo Fundação Joaquim Nabuco
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O consumo mudou. As famílias não permanecem, os pais se separam, os filhos também – não querem saber de nada que a tradição legou: nem móveis, nem moral
Continente agosto 2003
Como tal dificuldade psicológica se traduz no plano político? No plano político, esse Estado subjetivo se traduz pelo descrédito nas instituições democráticas e republicanas – parlamento, justiça, liberdade de imprensa, opinião pública, etc. – e pela tendência a assumir o ponto de vista da violência como modo de resolver conflitos. Em outras palavras, quanto mais miséria, mais delinqüência, e quanto mais delinqüência, mais brutalidade policial. O circulo vicioso da violência se perpetua, produzindo mais insegurança e mais inclinação para saídas individuais armadas. Esse é o grande desafio do atual e dos futuros governos no Brasil: como resolver a delicada questão da dependência econômica em relação aos grandes grupos internacionais sem perder a adesão dos cidadãos a projetos de vida coletivos, dirigidos ao bem comum. O modelo do Estadoempresa, repressor e fiscalizador, é incapaz de restaurar a confiança dos indivíduos na autoridade política, no sentido pleno da palavra. Na ética do consumidor, tudo que se compra está submetido a ele, ou seja, desde as indústrias estrangeiras até os recursos naturais. Nessa ótica, qualquer movimento ambientalista teria que ser antiamericano? De modo algum. Os problemas ambientais existem no mundo todo. Se os americanos, por serem grandes consumidores de petróleo e outros recursos naturais, são os maiores responsáveis pela poluição do meio ambiente, os habitantes de outros países ricos ou pobres não ficam atrás. Basta ver nosso exemplo. Antes de ver o cisco no olho do outro, vamos ver a trave
Foto: AFP
CONVERSA 11 »
Tudo começou a mudar nos anos 60. De início, veio o ataque contestador à família, à repressão sexual, à opressão das mulheres, aos valores burgueses como um todo. Em seguida, veio a corrosão paulatina e arrasadora da publicidade e, por fim, a globalização, com a depreciação do valor do trabalho
no nosso. Fazer das questões ambientais bandeira de antiamericanismo é uma estupidez sem tamanho. A busca de controle da poluição provocada por paises ricos não nos deve fazer esquecer que, em nível doméstico, o estado de nossas redes de esgotos é lastimável, que continuamos o desmatamento abusivo de florestas, que continuamos a contrabandear animais e plantas medicinais, que as queimadas prosseguem, que utilizamos de modo perdulário nosso manancial de água potável, para não falar da situação miserável de nossas favelas, que além do custo humano tem um custo ambiental altíssimo. Quanto ao modo de vida consumista, não vejo grande diferença entre a compulsão comprista dos americanos e a de nossos patrícios. Basta ir a um centro de compras no Recife, Rio, São Paulo ou qualquer outra cidade brasileira, para ver que não destruímos mais o ambiente natural porque não temos dinheiro. Se tivéssemos, estaríamos fazendo o que os americanos, europeus, japoneses ou outros povos ricos fazem. Como devemos criticar o consumismo sem resvalar na simplificação? Se quisermos criticar, de modo conseqüente, o hábito moral e ecologicamente predatório do consumismo é preciso levar em conta fatos que, normalmente, são deixados à margem das análises. Por exemplo, eu não acredito que o consumismo tenha sido, desde sempre, um atividade humana desprovida de sentido moral. Apenas nas últimas décadas, em especial, nas três últimas, o consumismo passou a apresentar a faceta amoral de hoje. Antes, o consumo de objetos supérfluos esteve
associado, de modo muito estreito, à construção moral dos indivíduos. Uma família do final do século 19 ou começo do século 20 comprava muita coisa que chamamos de supérflua. Mas, é bom relembrar, a aquisição de tais objetos tinha uma finalidade moral clara. A maior parte deles vinha enriquecer o conforto doméstico e o modo de convívio a ele associado. Roupas, objetos de decoração doméstica, adornos, tudo isso era adquirido para que a vida em família fosse algo aconchegante, pacífico, amoroso, seguro. O consumismo foi a atividade pela qual o décor caseiro se tornou, para a milhões e milhões de indivíduos, uma espécie de “prova” material da nobreza espiritual do amor entre pais e filhos, maridos e esposas, avós e netos, parentes e agregados, etc. A casa consumista foi, durante anos e anos, o abrigo caloroso para gerações inteiras de burgueses bem comportados, que passavam de pais para filhos objetos com alto valor emocional e moral. Sem o consumismo, digamos, “tradicional”, a cultura do intimismo, da estética artística, do sentimentalismo amoroso, provavelmente não teria existido ou teria assumido uma feição bastante diversa da que teve. Não vejo, portanto, o consumismo como algo “maligno” em si, como uma das grandes artes sulfurosas do demônio capitalista. Em todas as culturas conhecidas, com exceção de raras e excepcionais subculturas ascéticas, as pessoas sempre se cercaram de objetos supérfluos, vistos como signos de propósitos morais elevados ou de satisfação emocional. O capitalismo ocidental apenas estendeu para as massas o que, antes, era privilégio de algumas castas religiosas, políticas, aristocráticas, etc. Isso não me torna “defensor” do consumismo; faz-me pensar que nossa Continente agosto 2003
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12 CONVERSA
reflexão sobre o amor ao consumo ainda está engatinhando. Temos muito que estudar sobre isso, para atuar contra isso. E qual a diferença para o nosso tempo, além do aumento na escala? A grande diferença está na dissociação entre o consumo e a pretensão moral. A estabilidade da casa, da família, da tradição familiar está sendo seriamente abalada. Obrigações profissionais, anseio por maior liberdade individual, conflitos com a moralidade familiar, etc., tornaram o indivíduo cada vez mais desenraizado de seu lugar de origem e de seu passado cultural. Os filhos não se interessam mais pela herança dos pais, seja ela feita de objetos de consumo ou preceitos éticos. Os objetos já não são mais signos confiáveis de um estilo de vida que proporcionava felicidade. Hoje em dia, todos sabemos, mais ou menos, que nada do que compramos pode trazer a felicidade à qual aspiramos. Ao contrário, começa a existir um fosso cada dia maior entre os motivos que nos levam a agir e os valores que julgam o que fazemos. Embora nos tenhamos tornado consumidores compulsivos, achamos que o “materialismo consumista” é uma coisa “menor” do ponto de vista moral. Em suma, no consumismo tradicional a posse e a ostentação de bens supérfluos era a tradução visível do mérito moral, da operosidade, do talento intelectual ou, no mínimo, do “berço”, da boa sorte familiar do indivíduo. Atualmente, quem mais possui e ostenta, em geral, não tem nenhuma qualidade social, moral ou intelectual digna de apreço. A notoriedade não corresponde ao dom; os objetos não inspiram respeito, e quem os possui pode, no máximo, despertar inveja ou desejo de destruição, jamais de “admiração”. O consumo se tornou fútil, banal e amoral. Essa virada de valores é recentíssima, então? Penso que, de fato, tudo começa a mudar nos anos 60. De início, veio o ataque liberal, contestador e esquerdista à família, à repressão sexual, a opressão das mulheres, à educação das crianças e aos valores burgueses como um todo. Em seguida, veio a corrosão paulatina e arrasadora da publicidade nos meios de comunicação, regidos pelos interesses comerciais capitalistas. Por fim, veio a globalização, com a mudança na natureza da acumulação de capital e a depreciação do valor do trabalho: os que mais ganham, nem são os que mais produzem riquezas, nem os que mais trabalham. Nesse início de século, muitos dos valores morais que orientavam os indivíduos foram desabando como um castelo de cartas. O corpo, o sexo e a intimidade sentimental se tornaram mercadorias expostas à venda em revistas, Continente agosto 2003
televisões e jornais. O trabalho deixou de ser um direit o real de todos, para se tornar uma figura de retórica. Em conseqüência, os objetos supérfluos deixaram de ser sinais de vida bemsucedida na esfera do trabalho, da família ou da realização sentimental, para se tornarem uma atividade robotizada, sem finalidade ética e com muito pouco apelo emocional. Com a potencialização econômica, de caráter direitista, como o Sr. diz, do movimento reformista da esquerda, o que aconteceu? Aconteceu o que estamos presenciando. Nada deve durar: nem bens, nem corpos, nem moral. O modelo do cidadão ponte-aérea, que não pára em lugar nenhum e que encontra mulher e filhos meia hora por semana, até que descasa e volta a ver a segunda família, novamente, por meia hora semanal, pois bem, esse modelo teve um enorme sucesso no imaginário sóciocultural. Todos querem se tornar isso, salvo alguns espíritos mais lúcidos ou rebeldes. Mas, ao se tornarem o que desejam ser, descobrem, pouco a pouco, que, com seus hábitos, estão destruindo o que gostariam que permanecesse, ou seja, a família estável, a disposição para o romantismo amoroso, o vínculo emocional e moralmente expressivo entre pais e filhos, etc. É o que chamei de ruptura entre o sistema motivacional e o sistema valorativo. Isto é, sem rodeios e em bom português, a sobrevivência social está sendo paga com a morte da vida moral. É
Foto: Alcione Ferreira/ DP
CONVERSA 13
Eu não acredito que o hábito de consumir objetos chamados supérfluos sempre tenha sido uma coisa amoral. Isso começou a não ter nenhum valor de construção moral muito recentemente
e 56% consideram que aquilo que fazem nada tem a ver com o que prezam. No Brasil, não estamos longe disso. É isso que precisamos entender melhor para mudar para melhor.
nesse cenário que o consumo dos objetos não tem mais nada a ver com pretensão ética. Ele visa exclusivamente à mobilidade econômica e a visibilidade publicitária dos indivíduos, que são, ambas, atividades humanas absolutamente descomprometidas com ambições morais. E qual o valor moral disso? É um momento de desorientação. Esse modo de vida está sendo incapaz de produzir valores que lhes confiram respeitabilidade moral. Os mais bem-sucedidos, no mundo dos negócios ou na visibilidade publicitária, não são modelos de autoridade, pois encarnam tudo, menos a figura de “vidas exemplares”. Em outras palavras, quem pode mais, do ponto de vista econômico e social, não tem força moral. São todos “Zés ninguéns” descartáveis, pingando ouro, mas incompetentes para criar um mundo consistente, durável, que resista à suas vidas passageiras entregues à exibição tola do que possuem, em um espaço cultural volátil, sem passado nem futuro. Além da enorme miséria humana que vem produzindo, além da predação ambiental galopante, o consumismo atual está esvaziando o mundo dos valores que, bem ou mal, davam suporte às identidades pessoais. Talvez uma das tarefas mais penosas que nos sejam exigidas é a de sermos obrigados a viver uma vida que, em última instância, desprezamos como estúpida. Em uma estatística relativamente recente, vemos que 84% dos americanos acham que sua civilização é excessivamente materialista,
O respeito ético sumiu? Não. A aspiração ética continua existindo, mas dirigida para ideais antigos como, por exemplo, o romantismo amoroso, a fidelidade familiar, a espiritualidade. Nada disso, entretanto, é cultivado na vida que se leva. Criamos, desse modo, uma espécie de moralidade frankensteiniana: o que nos leva a agir, a fazer ou a fabricar, não é o que respeitamos e reconhecemos como admirável. Essa, penso, é uma das fontes da moderna insatisfação psicológica dos indivíduos. A psicanálise tem se servido bem da globalização, que teoricamente aproxima o comportamento dos indivíduos? A globalização econômica em nada contribuiu para a expansão do conhecimento humano pela psicanálise. Bem entendido, refiro-me ao imaginário cultural sobre a felicidade e o prazer, surgido com as recentes mudanças econômicas, e não ao formidável progresso científico que estamos vivendo. Nesse sentido, o que a chamada globalização tem a dizer à psicanálise está dito na forma contemporânea de assédio, agressão e ataque ao corpo próprio. Ao acentuar a divisão entre a identidade real e a identidade ideal do sujeito, a cultura globalizada facilitou a eclosão, entre os mais frágeis, de uma verdadeira epidemia de distúrbios da imagem corporal, de depressões crônicas ou drogadição de todos os tipos. O corpo se tornou o último abrigo em um “mundo sem compaixão”, para usar a célebre metáfora de Hegel. É sobre ele que procuramos exercitar nossa criatividade; é nele que confiamos, por não mais confiar em nada ou ninguém; é dele que procuramos extrair o prazer que não temos mais em outros setores da vida; é ele, enfim, que se tornou o centro da pobre vida que levamos em meio à opulência do consumo. • Fábio Lucas é jornalista.
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PARECERES DE
Ao leitor, a batata Antes de completar 25 anos, Machado de Assis, gênio e mulato, atuou como censor do Conservatório Dramático Brasileiro, para o qual assinou 16 pareceres, entre os quais o que vetava peça em cujo final um escravo casava com uma baronesa Ricardo Oiticica Três machadianos estão relacionados à publicação dos pareceres de Machado de Assis feitos para o Conservatório Dramático Brasileiro (Revista do Livro, números 1 e 2, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, junho de 1956): o ex-diretor do INL, Augusto Meyer, poeta e ensaísta, que desde a fundação do órgão planejava dotá-lo de um periódico; o pesquisador da bibliografia de Machado de Assis, José Galante de Sousa, que faria o elogio dos pareceres para o número seguinte da Revista do Livro e o decisivo personagem do caso, o crítico literário de O Enigma de Capitu, Eugênio Gomes, que em 1952, na direção da Biblioteca Nacional, legatária do acervo do extinto Conservatório, encontrou os originais de um outro enigma: o do Machado censor. Tão surpreendente quanto os manuscritos é o contexto de uma homenagem da Revista do Livro ao aniversário do Bruxo, quando o homenageado mesmo afirma, num de seus pareceres, ser “deplorável” a hipótese de censura “por intolerância de escola”, o que só agrava a intolerância moral que aqui e ali ele adota. Não há surpresas, finalmente: o INL foi fundado na primeira hora do Estado Novo e Galante de Sousa seria censor das co-edições do INL durante o regime militar de 1964 – as duas ditaduras republicanas do século 20, mais discricionárias do que qualquer fase da monarquia. Quanto a Machado... Redigidos nos próprios formulários com que o Conservatório enviava as peças para julgamento, os 16 pareceres assinados por Machado de Assis cobrem um período de exatos dois anos, de 16 de março de 1862 a 12 de março de 1864, às Continente agosto 2003
vésperas de seus 25 anos. Até a divulgação do conjunto, somente haviam sido publicados dois pareceres, o primeiro em jornal da época, o outro após a morte do autor, quando então aparece o nome de Machado de Assis ligado ao aparato censório do Império (Lafaiete Silva, João Caetano e sua Época, Rio de Janeiro: 1936; Modesto de Abreu, Machado de Assis, Rio de Janeiro: 1936). Leia-se o embasamento legal: Aviso de 10 de novembro de 1843: “Não devem aparecer na cena assuntos nem expressões menos conformes com o decoro, os costumes e as atenções que em todas as ocasiões devem guardar maiormente naquelas em que a Imperial Família honrar com a Sua Presença o espetáculo.” Resolução Imperial de 28 de agosto de 1845: “O julgamento do Conservatório é obrigatório quando as obras censuradas pecarem contra a veneração à Nossa Santa Religião, contra o respeito devido aos Poderes Políticos da Nação e às Autoridades constituídas, e contra a guarda da moral e decência pública. Nos casos, porém, em que as obras pecarem contra a castidade da língua, e aquela parte que é relativa à Ortoepia, deve-se notar os defeitos, mas não negar a licença.” “Cavador”que faria carreira na administração do Império, o então Machadinho não deixaria de se prestar à tarefa. Ao contrário: julgando estar contribuindo para “que se faça sentir às pessoas que remetem peças ao Conservatório (...) quanto a nossa instituição é digna e séria”, lamentava apenas – mais realista que o rei – não poder estender sua censura ao campo estético. Em outras (suas) palavras: se a peça “não peca contra os preceitos da nossa lei”, então “assino licença, ou antes aconselho como me compete”; caso contrário, sua pluma vira te-
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soura: “O dever manda arredar da cena dramática todas aquelas concepções que possam perverter os bons sentimentos e falsear as leis da moral” porque “sempre que na reprodução dos seus estudos [o poeta dramático] tiver presente a idéia que o teatro é uma escola de costumes e que há na sala ouvidos castos e modestos que o ouvem, sempre que o poeta tiver feito essa observação, as suas obras sairão irrepreensíveis no ponto de vista da moral”. Para dar historicidade a este vago Machado – como se o célebre escritor não viesse do anônimo censor, fruto dentro da casca –, ali já se flagra o operante leitor, o exímio tradutor, o fluente narrador, com dois livros publicados (A Queda que as Mulheres Têm para os Tolos e Desencantos) e mais dois em preparo (Quase ministro e Crisálidas). Não há dúvida: trata-se realmente dele, o Machado da “glória que fica, eleva, honra e consola”, como nos versos do pedestal de sua estátua na ABL, tirados do livro Crisálidas, de 1864, ironicamente o ano ao longo do qual encerraria a atividade sistemática de censor. A feia lagarta transformava-se em borboleta. “Tudo, menos o busto-ídolo”, disse André Gide: a hagiografia de São Machado de Assis, além de desumanizá-lo, leva ao ostracismo de seus pares. É no caldo cultural formado por aqueles a quem vetou ou aprovou que se destaca, por contraste positivo, a ficção de Machado; por contraste negativo, a censura do jovem Machadinho. São autores que tinham ou viriam a ter relevância senão literária, social, compartilhando com Machado, inclusive, alguns dados biográficos (Guimarães Júnior figurará entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras, e Augusto Emílio Zaluar, autor do primeiro Continente agosto 2003
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16 LITERATURA romance científico da nossa literatura, será condecorado pelo Império com a Ordem da Rosa, também outorgada a Verediano Henrique dos Santos Carvalho, importante jornalista com breve passagem pela Gazeta de Notícias, o periódico onde pontificará Machado) ou bibliográficos (Constantino do Amaral Tavares, oficial de Marinha, objeto de “ressalvas estéticas” do parecerista, também é “marujo poeta” como o ironizado capitão de Memórias póstumas de Brás Cubas, enquanto José Ricardo Pires de Almeida terá uma peça vetada por conta da orgíaca Helena, homônima da que viria a ser personagemtítulo do Machado romântico). Para humanizar os dois pólos desta relação entre o primus e seus pares, passemos às ressalvas da lista de Machado: Antônio Moutinho de Sousa (Porto, 1834 – Porto, 1898), autor de Amor e Honra e Pelaio ou A Vingança de uma Afronta (ambos de 1856), Fumo sem Fogo (1861), todos dramas, e Finalmente (1862), comédia aprovada por Machado de Assis, que a julga equivocadamente uma tradução, erro justificável por ser comum, à época, não se declinar a natureza ou, inversamente, a autoria da tradução, o que, aliás, ocorreu na estréia de Machado em livro, uma tradução que chegou a ser considerada disfarce autoral (Pereira, Lúcia Miguel. Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936). Sobre Finalmente, escreve Machado: “Todavia o meu escrúpulo leva-me a aconselhar a supressão de uma expressão de Azevedo na segunda cena. É a seguinte a resposta ao criado: – Ela disse que o alecrim havia de me fazer bem à cabeça... amarga zombaria!/A frase isolada nada tem de repreensível; mas se nos lembrarmos de que Azevedo está persuadido de que os ramalhetes de Augusto são dirigidos a sua mulher, acharemos equívoco na expressão.”
Constantino do Amaral Tavares (Salvador, 1828 – Salvador, 1889), oficial da Marinha e escritor, Oficial da Ordem da Rosa e Cavaleiro da Ordem de Cristo, membro do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e sócio do Conservatório Dramático. Estreou em 1856, com Minhas Poesias, livro seguido de oito dramas, entre os quais Um Casamento da Época (1862), aprovado com as seguintes ressalvas de Machado de Assis: “O caráter da baronesa falseia-se a meu ver no 2º ato (...). Elvira cai-lhe nos braços (...) confia à madrinha os segredos da sua infelicidade [o casamento não desejado]. A baronesa responde à Elvira lembrando-lhe o divórcio (...) nenhuma palavra de resignação, nada disso que aquela matrona que ali representava a sociedade devia fazer ou dizer antes de aconselhar esse triste e último recurso! (...) A simples enunciação da palavra basta para tirar à baronesa esse caráter de retidão e nobreza que lhe dá a idade e a pureza de costumes.” Joaquim da Silva Lessa Paranhos (?), funcionário do Tesouro e genro do grande ator João Caetano, que estrelou, no teatro que viria a ter seu nome, a peça Os Nossos Íntimos, de Victorien Sardou, mesmo condenada por Machado devido à indigência do aspecto material da tradução feita por Paranhos, critério que poderia eliminar da literatura, por exemplo, Lima Barreto, autor comumente contraposto a Machado: “O caderno em que está escrita a comédia Os Nossos Íntimos parece haver saído de uma taverna, tal é o seu aspecto imundo e pouco compatível com a decência do Conservatório Dramático.” Augusto César de Lacerda (Lisboa, 1829 – Lisboa, 1903), ator, empresário teatral e teatrólogo, estreou possivelmente em 1855, de quando datam Dois Mundos e Cinismo, Ceticismo, Crença, seguidas de quase duas dezenas de peças, como a comédia Mistérios Sociais (1858), remendada – recalcada? – por
A comédia Mistérios Sociais (1858), remendada – recalcada? – por Machado, condicionou a aprovação do casamento na peça à mudança da condição do protagonista, um escravo como os avós de Machado de Assis, cujo próprio casamento só se deu graças à determinação de Carolina de romper com sua família portuguesa
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LITERATURA 17 » “Cavador” que faria carreira na administração do Império, o então Machadinho não deixaria de se prestar à tarefa. Ao contrário: julgando estar contribuindo para “que se faça sentir às pessoas que remetem peças ao Conservatório (...) quanto a nossa instituição é digna e séria”, lamentava apenas - mais realista que o rei – não poder estender sua censura ao campo estético
Machado, que condicionou a aprovação do casamento na peça à mudança da condição do protagonista, um escravo como os avós de Machado de Assis, cujo próprio casamento só se deu graças à determinação de Carolina de romper com sua família portuguesa: “(...) pode subir à cena, acho eu, feitas certas alterações. Uma delas afeta a parte principal do drama; é a alteração da condição social do protagonista. O protagonista é um escravo (...). No desenlace da peça, Lucena (o protagonista), casa com uma baronesa. A teoria filosófica não reconhece diferença entre dois indivíduos que como aqueles tinham a virtude no mesmo nível; mas nas condições de uma sociedade como a nossa, esse modo de terminar a peça deve ser alterado. Dois expedientes se apresentam para remover a dificuldade: o primeiro, é não efetuar o casamento (...). Julgo que o segundo expediente é melhor e mais fácil [o protagonista seria um falso escravo] (...). Feitas essas correções julgo que a peça pode subir à cena”. Machado ainda acrescenta duas emendas: quando se fala em “a falta de certo pundonor”, quer que se especifique: “a dos escravos”; sobre um certo “pagamento da parte do roubo”, também apõe uma emenda: “Entre esses objetos haviam (sic) alguns escravos.” Verediano Henrique dos Santos Carvalho (Vila Nova de Gaia, 1845 – Rio de Janeiro, 1909), guarda-livros, perito judiciário, jornalista e escritor, Comendador da Ordem de Cristo e Cavaleiro da Ordem da Rosa, escreveu A Vida de Camões, peça representada no Rio em 1868, Malditas(poesias, 1873) e O Artista (drama, 1877). O autor é vetado lacônica e machadianamente com A Mulher que o Mundo Respeita (1862): “É um episódio imoral, sem princípio nem fim. Pelo que
respeita às condições literárias, ser-me-ia dispensada qualquer apreciação: é uma baboseira, passe o termo.” Quintino Francisco da Costa (?) – sobre o drama As Conveniências (1863), escreve Machado: “Tais doutrinas se proclamam nele, tal exaltação se faz da paixão diante do dever, tal é o assunto, e tais as conclusões, que é um serviço à moral proibir a representação desta peça.” José Ricardo Pires de Almeida (RJ, 1843 – 1913), médico, jornalista e escritor, arquivista da Câmara Municipal, RJ, adjunto da Inspetoria-Geral da Higiene, membro honorário do IHGB. Estréia possivelmente com Tiradentes ou Amor e Ódio e Amor... e Lágrimas (dramas, de 1862), seguidos de diversas obras em gêneros diversos, entre os quais a comédia-drama O Filho do Erro (1864). Organiza Brasil-Teatro (1901-1909), três volumes com peças suas e de outros. Tem vetado por Machado de Assis o drama Os Espinhos de uma Flor (1864): “O drama, apesar do desenlace, é destinado a fazer de Helena uma heroína. Mesmo no lodo, vê-se que o autor lhe põe na cabeça uma auréola (...) Helena, criminosa no princípio, é criminosa no meio e no fim (...) todas as descrições minuciosas são dispostas de modo a tornar demasiado patentes o aspecto insalubre e as cenas aflitivas da devassidão (...). É com pesar que nego o meu voto para a representação deste drama (...) cujo autor procura adquirir um nome na literatura dramática. Louvo-lhe os esforços, aplaudo-lhe os conseguimentos, mas não me é dado sacrificar os princípios e o dever.” Ao leitor, a batata quente de julgar. • Ricardo Oiticica é doutor em Literatura de Língua Portuguesa (PUC-Rio)e professor de Direito Autoral na UniverCidade do Rio de Janeiro. Continente agosto 2003
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Muitos contos de fadas, como Branca de Neve, têm sua origem na Grécia antiga, mas sofreram alterações, ao longo do tempo, por exigências dos editores e pressão do clero, para atender aos ditames da moral da burguesia ascendente Rudolf Knauer
Branca de Neve e a crítica da moral burguesa
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uem não conhece a história de Branca de Neve e os sete anões? Aquela história em que uma bela rainha, em pleno inverno, bordando junto à janela, cuja moldura era feita do mais legítimo ébano, mirava a neve caindo silenciosamente, quando se descuidou, furou um dedo, e três gotinhas de sangue pingaram sobre a neve? Nesta hora, expressou um desejo: – Quem me dera uma filhinha tão branca quanto a neve, corada como o sangue e de cabelos negros como o ébano! O seu desejo foi atendido. Pouco depois ganhou uma menina tal como havia desejado. Mas a rainha era muito vaidosa e quase todos os dias perguntava a um espelho que possuía, e que somente lhe dizia a “verdade”, quem seria a mais bela mulher do reino. Sempre o espelho respondia que era ela mesma. Até que um dia – Branca de Neve já estava com sete anos – o espelho respondeu: – És bela rainha, bela demais, mas Branca de Neve é muito mais. A rainha, cheia de ciúmes e de ódio, parte na tentativa de destruir a própria filha.
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A narrativa segue o caminho que todos conhecem, como também se conhece o desfecho com seu final feliz, no que diz respeito à menina, que se casa com um príncipe. No entanto, vamos dar uma parada aqui e repensar o início do conto. O que acabamos de ler é a versão original, coletada pelos irmãos Grimm em torno de 1808 e publicado pela primeira vez em 1812. Estranhamente, temos aqui uma “mãe” enfrentando a própria filha, com tamanho ódio, que várias tentativas ela empreendeu para exterminá-la. Notamos que Branca de Neve tinha apenas sete anos e já era considerada uma concorrente que ameaçava a sua posição; já era considerada uma mulher. Surge um ódio que exige a morte. A prova da empreitada, a ser realizada por um caçador, seria a apresentação do fígado e dos pulmões da menina. Mas a malvada rainha foi enganada pelo seu servo que, com pena da menina, matou um bacorinho, apresentando seu fígado e os pulmões como se fossem frutos da encomenda. (Por sinal, estes órgãos internos do porco são muito parecidos com os do ser humano.) Mas esse conto destinava-se para entreter crianças?! Como defender e explicar essas atitudes odiosas de uma mãe para com a própria filha? Que traumas haveriam de surgir? Aos poucos,
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esse e outros contos sofreram alterações, no sentido de eliminar imagens de violência e erotismo que pudessem impressionar jovens e crianças. Temos aqui as primeiras tentativas de uma ação psico-pedagógica em “defesa” de menores. Essas alterações tiveram início na edição de 1825 em diante. No caso de Branca de Neve, fizeram-se os seguintes arranjos: “matou-se” a mãe e “inventou-se” a madrasta! O incompreensível para uma criança, uma mãe ser má, ficou soterrado com o surgimento da madrasta. Agora, existem imagens aceitáveis para a dicotomia: bem versus mal, representada pela menina versus madrasta. Isto antes não era possível. Branca de Neve tornou-se uma menina, “tão bela quanto o límpido dia”, um símbolo da pureza. Não era mais a “mulher de sete anos”, concorrente da própria mãe, como nos aparece no protoconto. Passou a ser uma personagem passiva. Jacob Grimm, um dos irmãos, não concordava com essas alterações, pois na sua opinião, “devemos falar às crianças de Deus e do diabo muito antes de elas terem noção verdadeira do que se trata”. Nada ele queria esconder das crianças. Contudo, ele curvou-se às exigências dos editores, do clero e da poderosa burguesia ascendente, procedendo às alterações solicitadas. No entanto, para os lingüistas, os antropólogos e, principalmente, para os filólogos, o problema não ficou encerrado com essas manipulações do texto original. Outras perguntas surgiram; caminhos outros foram enveredados à procura de uma explicação de como uma ação, enraizada na tragédia grega, chegou aos nossos dias via transmissão oral. Ódio tamanho, complicações psicológicas intrincadas e castigos desumanos, como o que surge no fim deste conto, encontram seus primeiros indícios na dramaturgia helênica. (A rainha encontra morte terrível ao ser forçada a dançar até desfalecer, calçando sapatos em brasa.) Ao retroceder, assim, para a antiguidade, surge, imediatamente, a figura de Eletra, personagem que faz parte das lendas gregas, eternizada pelo ódio mortal que nutria pela própria mãe, por ter sido esta, cúmplice no assassinato de Agamenon, seu pai. Ela se vingará destruindo quem lhe gerou. Cumpre-se, desse modo, mais uma desgraça que havia sido profetizada para ocorrer sobre a família de Tântalo, da
Capa do livro Irmãos Grimm – Contos caseiros e para crianças – Editora Fischer Bücherei KG, Frankfurt e Hamburgo, julho de 1962. O texto desta edição tem como base as edições originais de 1812 e 1815
qual Agamenon e Eletra faziam parte. Também no nosso conto, não aparece algo que se assemelhe à maldição que pairava sobre os descendentes de Lábdaco e que nos foi tão magistralmente descrita por Sófocles, na tragédia de Édipo Rei. Não há, aparentemente, motivo para atitudes tão dramáticas. Tudo é mais simples, possivelmente filtrado durante a transmissão oral ocorrida por tantos séculos. O drama foi despojado de suas complicações psicológicas e da intervenção dos deuses da mitologia grega. Outros fatores começam a ter influência. Uma profunda revolução invade o Ocidente e inverte tudo que existia, criando novos valores: o Cristianismo. Bem ao longe, surge, por detrás de um véu, a figura do homem primitivo e esquecido, que nos deixou marcas em todos os setores de nossa cultura. É como um filete de sangue que vem meandrando pela história: sua origem é a inveja, passa pela cobiça e termina no ódio, que só se satisfaz com a morte. Todos aqueles conflitos que existiam na tragédia grega eram por demais complexos para serem transmitidos. Só permaneceu o essencial, o de mais fácil compreensão e recordação, aquilo que não pôde ser queimado nas tantas e tantas “fogueiras de livros”, alimentadas por insano fanatismo. Acabamos de presenciar uma intervenção na história da literatura, especificamente na dos contos. Alegando “proteger” as crianças, alteraram-se simplesmente as personagens dentro de um texto, fizeram a mãe morrer e inventaram uma madrasta. Pouco importa se houve uma profunda mudança da filosofia inserida nesse conto, que, por incontáveis gerações, sempre foi transmitido tal qual havia sido recebido. Escolheu-se o caminho mais simples, o aparentemente mais confortável. Tentou-se um “embelezamento poético”, embaçando a vista para a antiguidade. Não se aperceberam que traíram um legado que foi recebido dos nossos ancestrais. Mutilaram um patrimônio. • W. Rudolf Knauer é engenheiro, tradutor e graduando em Letras.
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À mesa com Cascudo Relançamento anunciado de História da Alimentação no Brasil põe em relevo que Câmara Cascudo e Gilberto Freyre são os pensadores brasileiros que, de modo primeiro e inovador, trataram a questão da comida e da cozinha com ciência e arte
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Pedro Vicente Costa Sobrinho
uís da Câmara Cascudo confessava-se um provinciano incurável. De sua aldeia Natal, de modo solitário, varava noites em sua biblioteca, no velho casarão da Junqueira Aires, de onde construiu uma das mais significativas obras do pensamento brasileiro. O volume, a densidade e diversidade de assuntos e interesses de sua produção intelectual causam espanto e admiração de qualquer um que se aventure a navegar o mar imenso de sua bibliografia. O poeta Carlos Drummond de Andrade desse modo se referiu à obra e a Cascudo: “Já consultou o Cascudo? O Cascudo é quem sabe. Me traga aqui o Cascudo. O Cascudo aparece, e decide a parada. Todos o respeitam e vão por ele. Não é propriamente uma pessoa, ou outra, é uma pessoa em dois grossos volumes, em forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida sobre costumes, festas, artes do nosso povo. Em vez de falar Dicionário Brasileiro, poupa-se tempo falando O Cascudo” . O universo de preocupações de Cascudo desde cedo ultrapassou de longe o ambiente restrito do folclore. Em entrevista ao poeta Lêdo Ivo para a revista Manchete, assim se explicou: “A cultura popular é o complexo. Representa a totalidade das atividades normais do povo, do artesanato ao mito, da alimentação ao gesto. Ora, a mim interessa tudo o que é do povo, até o que ele faz no banheiro ou no mato.” Com seu perfil de intelectual
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de corte renascentista, em mais de uma centena de livros publicados, soube transitar com mestria e genialidade nas artes e ciências: o historiador, o antropólogo, o etnógrafo, o sociólogo, o biógrafo, o memorialista, o crítico, o musicólogo, o tradutor, o romancista, o ensaísta, entre outros, e mais que tudo o escritor. Esboço de um perfil – Cascudo (1898-1986) fez seus estudos secundários no Atheneu Norte-Rio-Grandense. Confessa ter tido uma infância isolada e doente, cercado de brinquedos mas sem companheiros de folias. Iniciou-se no jornalismo aos 19 anos. Aos 21 anos publicou o seu primeiro livro. Cursou Medicina na Bahia, sem concluir. No Recife diplomou-se em Direito. Foi professor de História do Brasil em escolas secundárias. E de Etnografia Geral na Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Norte. Aposentou-se como professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da UFRN, pela qual recebeu os títulos de Professor Emérito e Doutor Honoris Causa. Recebeu os prêmios nacionais João Ribeiro e Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e o troféu Juca Pato pelo conjunto de obras; e o internacional Henning Albert Boilesen. A sua contribuição ao jornalismo diário no jornal A República, coluna Acta Diurna, reunida até agora, já perfaz oito volumes. Realizou viagens de estudos a Portugal e à África. O grosso de sua obra de mais de uma centena de títulos
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Fotos: Carlos Lyra
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Em mais de uma centena de livros, soube transitar com mestria e genialidade nas artes e ciências: o historiador, o antropólogo, o etnógrafo, o sociólogo, o biógrafo, o memorialista, o crítico, o musicólogo, o tradutor, o romancista, o ensaísta, entre outros, e mais que tudo o escritor foi publicado principalmente pela José Olympio, Companhia Editora Nacional e Itatiaia. A Global Editora vem reeditando seus livros, já lançou 15 títulos e anuncia para este semestre: História dos Nossos Gestos e a monumental História da Alimentação no Brasil. Cascudo, historiador da comida – Cascudo e Gilberto Freyre são os pensadores brasileiros que de modo primeiro e inovador trataram a questão da comida e da cozinha com ciência e arte. Em Gilberto pode-se, com segurança, até afirmar que a comida e a cozinha perpassam toda sua obra; desde sua preocupação inicial no Manifesto Regionalista (1926), e mais contundentemente em Casa-Grande & Senza1a (1933), Nordeste (1937) e Açúcar (1939). De Cascudo diga-se o mesmo e ainda mais, pois desde sua veemente defesa da cozinha sertaneja, em Viajando o Sertão (1934), e daí em todo percurso de sua obra tratou sempre a comida e a cozinha como indissociáveis valores da cultura de um povo. É de bom grado citar o que diz na abertura de sua História da Alimentação: “Toda existência humana decorre do binômio estômago e sexo. A fome e o amor governam o mundo, afirmava Schiller”. Em Cascudo o estudo da cozinha cobre décadas. Saudara Gilberto Freyre pelo seu Açúcar. Publicou diversos artigos sobre comida e bebida: Folk-lores da cachaça (1943); O coquetel do Visconde de Mauá (1943); Doces de tabuleiro (1944); Um rito da cachaça (1949); Comendo formigas (1954); O bom paladar é dos ricos ou dos pobres? (1964). E livros: Dante Alighieri e a tradição Popular (onde se examina a evolução teológica sobre a gula) (1963); A Cozinha Africana no Brasil (1964); Made in África (1965); História da Alimentação no Brasil (1.ª edição: 1967/68); Prelúdio da Cachaça (1968); Sociologia do Açúcar (1971); Civilização e Cultura (1973) e Antologia da Alimentação no Brasil (1977). Neste último livro, Cascudo afirmou que completara e fechava tudo que havia estudado sobre alimentação. O livro História da Alimentação – Cascudo contou que por mais de 20 anos coletou informações sobre o assunto. O projeto era desenvolver trabalho que tratasse da alimentação de modo diferenciado do problema da nutrição, isto é, fora do ângulo restrito da dietética. Daí o comentário que fez quanto à parceria frustrada com Josué de Castro: “O Anjo da Guarda de Josué afastou-o da tentação diabólica. Não daria certo. Josué pesquisava a fome e eu a comida”. Em 1962, o jornaContinente agosto 2003
lista Assis Chateaubriand chama Cascudo a São Paulo para discutir o assunto. Aprovado o tema, o plano e assegurados os recursos, Cascudo pôs as mãos à obra: “Sacudi as primeiras cartas perguntadeiras para Norte, Centro e Sul. Para Europa e África. Espanei os cadernos. Reavivei as marcas nos livros abandonados. Mobilizei o sabido, deduzível e provável. A viagem começou”. Em pouco menos de dois anos, o primeiro volume da obra foi entregue ao editor e publicado na Coleção Brasiliana. A Companhia Editora Nacional lançou o livro em 1967, e no ano de 1968 saiu o segundo volume. O projeto estava concluído em seis anos: pesquisa, texto e publicação. Cabe realçar que uma versão certamente inconclusa da obra foi publicada em Portugal (1963). Estrutura da obra – Os dois volumes da obra, de conformidade com sua segunda edição (Itatiaia/Edusp, 1983, 926 páginas), estão deste modo dispostos: prefácio, dois estudos introdutórios (Todo trabalho do homem é para sua boca e Sociologia da alimentação), e 13 secções ou capítulos: Cardápio indígena, Dieta africana, Ementa portuguesa, Adendo, Elementos básicos, Técnicas culinárias, O ritmo da refeição, Farnel de trabalho e viagem, Superstições alimentares, As bebidas no Brasil, Comida de esteira e mesa, Mitos e realidades da cozinha Africana no Brasil, Folclore da alimentação. E mais a extensa bibliografia e notas. No primeiro volume da História da Alimentação, Cascudo discorre sobre os fundamentos e as contribuições mais importantes dos cardápios indígena, africano e português, inclusive suas técnicas de manuseio e preparo dos alimentos. Do cardápio indígena são realçadas as técnicas de cultivo, aproveitamento e transformação culinária da mandioca sob as formas de farinha, pirão, mingau, beijus, tapiocas e bebidas. E mais a manipueira que sangrava do tipiti, usada pela cunhã para o manipói, que até hoje se constitui em ingrediente básico para o tucupi e o tacacá. Além disso, o milho, a batata, abóbora, feijão, palmito, o mate chimarrão, a pimenta – essencialmente como tempero, o pescado, a frutaria e caça (de pena e pata) silvestres; e técnicas como o moquém e o forno subterrâneo. Para Cascudo, herdamos do indígena as bases da nutrição popular, os complexos alimentares decisivos na predileção cotidiana brasileira.
LITERATURA 23 Cascudo em casa, no seu gabinete de trabalho Na página ao lado, envelope de carta, com caricatura no lugar do nome do destinatário, recebida pelo escritor
No que diz respeito à dieta africana, Cascudo estuda e informa sobre o padrão alimentar na África negra, principalmente nas áreas fornecedoras de braços para a empreitada colonial. No Brasil, a comida do escravo era a mesma das classes mais humildes e pobres. Segundo o autor, era até mais regular, diária, segura em sua limitação e com possibilidade de melhorias festivas. As trocas alimentares têm tratamento particular, com destaque para o que veio da África: o azeite-de-dendê, inhame, melancia, galinha-de-angola, a banana – que considera a maior contribuição africana para a alimentação dos brasileiros. Ao tratar da instalação da cozinha portuguesa no Brasil, Cascudo pesquisou e resgatou de modo abrangente o que se comia em Portugal no século da colonização. Os fundamentos básicos para o estudo foram a farta documentação colhida de sua viagem a Portugal, os textos de Gil Vicente e outros escritores, e mais Domingos Rodrigues. Este último, autor de Arte de cozinha, considerado o mais antigo tratado de cozinha em português. A partir daí, recuperou e delineou de modo exaustivo todo o processo de transferência da cultura culinária do português (alimentos e técnicas) e também a incorporação e a adaptação desta aos recursos alimentares locais, inclusive técnicas. No segundo volume, ao esboçar uma sociologia da alimentação, Cascudo viaja continentes descrevendo costumes e preferências culinárias. Comenta e critica o embuste dos cardápios e pratos servidos pelos grandes restaurantes: “O paladar, não tem quem o defenda naqueles que o perderam, no embotamento mecânico das refeições distraídas, no automatismo displicente e diário”. Nos fundamentos da cozinha brasileira descreve os elementos básicos que a constituíram e lhe deram personalidade. As técnicas culinárias: assado, cozido, guisado e frito; os molhos e a doçaria. Os recursos locais, mais as trocas africanas e preponderantemente portuguesas deram-lhe corpo e alma. As influências culinárias de outras nacionalidades são consideradas inexpressivas, com relevância apenas para os alemães e, principalmente, italianos que, no entanto, são postos no seu devido lugar. O monumental livro encerra-se com um conjunto de artigos que, num arranjo original, complementam a mais vasta pesquisa até hoje realizada sobre a alimentação no Brasil. Pode-se então concluir que as obras de Câmara Cascudo em especial, Gilberto Freyre, Josué de Castro, A. da Silva Melo, Nunes Pereira e secundariamente Eduardo Frieiro, A. J. de Sampaio, Osvaldo Orico, Darwin Brandão e Manoel Quirino fecham o ciclo clássico de estudos sobre os hábitos alimentares e a Arte da Cozinha dos brasileiros. • Pedro Vicente é escritor e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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24 CONTO
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Uma coisa de cada vez André Resende
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as duas, uma, pensou Ernesto diante do espelho no dia em que perdeu mais uma vez o emprego: ou ela voltou para o interior, ou trabalha como enfermeira em algum hospital da cidade. Que estranho pensar nela agora. No dia anterior, ouvira alguém dizer que as lembranças vêm e se vão dentro de nós, sem nunca deixarem de existir como algo piscando, em algum lugar do cérebro, à espera do momento de voltar à cena. Éter! pensou alto, sorrindo para o sujeito envelhecido no espelho. O cheiro do éter levou-o de volta a um tempo qualquer, a um apartamento qualquer, que tinha um cheiro atraente e repulsivo, difícil de esquecer. Parecia umidade, poeira entranhada na vidraça. Um lugarzinho modesto, pouca mobília e limpo. Tinha esquecido de tudo, apagado de sua história de graça, aos poucos. Aquela lembrança, tanto tempo depois, não fazia sentido. Apesar de não saber o que faria dali para frente, e de ter de dizer à mulher e aos filhos adolescentes que fora demitido, que mais uma vez fora demitido, a única lembrança que vinha era uma história sem a menor conseqüência, despretensiosa, vivida vinte anos atrás. O éter veio por acaso, no meio dos pensamentos, quando tentava administrar a ansiedade, o medo, a vergonha e esse troço todo de começar do zero, outra vez do zero, puta que pariu, do zero a zero. Enrolava-se para não entrar em pânico. Pensava na frase uma coisa de cada vez, até que parou para saber quem teria dito isso a ele, quando, qual a razão. O éter que exalava e o fez lembrar de algo, era acetona, não éter. Confundira-se. Mas, como é o nome dela? exigiase, sem sucesso. Irene? Não. Conceição? Não. Marluce? Não. Solange? Não. Um nome mais simples, talvez. Neide? Não. Nice? Não. Diana? Não. Irene, talvez. Talvez Irene. Não lembrava como a conheceu. Havia enfermeiras (todas, na verdade, estudantes de enfermagem, e aí, sim, vem Irene, morando num apartamento tico no centro da cidade, garota de interior, tímida, sem charme – não era para ser com ela, o que estaria fazendo ali?). Havia uma enfermeira que tinha um namorado e gostava de outro cara. E havia uma enfermeira amiga da outra enfermeira e que queria ter algo com o cara. Mas o cara não conseguia encontrá-la. Sempre que ia ao apartamento, encontrava Irene, sozinha, sem televisão, fogãozinho a álcool, cordas de roupas espalhadas pelo quarto, sempre dizendo que as amigas estariam chegando. E nunca chegavam. Ernesto não queria nenhuma delas. Estava atrás da
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mulher ideal. Movimentava-se numa área pequena da cidade, envelhecida, comércio decadente, gente simples, gente sem tempo para nada. Não aparecia ninguém interessante. Cansado, lembrava-se do apartamento das enfermeiras. Chegava suado, ansioso. Se fosse capaz de ler a alma, Irene veria um derrotado, perdido, implorando algo que não sabia dizer. Irene era silenciosa, educada, nada perguntava, nada queria saber. Ernesto falava apressado, palavras sem sentido. Metia a mão por baixo da blusa de Irene. Ela fugia, sorria, mas deixava. Beijava-a. Levantavam-se abraçados, encostavam-se na parede. Irene queria, queria muito e resistia. Ele tirava a blusa dela. Peitos miúdos, não bonitos. Corpo muito magro, ossudo, sem aquela força de um corpo bonito quando nu. Não passava daquilo. Dali a minutos, desistia, ia embora, sem tchau e sem adeus, afeto nenhum. Saía andando, ruminando uma frase qualquer que Irene dizia, talvez fosse uma coisa de cada vez. Sempre dizia que voltaria rápido (para não ter despedidas). Ia dali para casa, se não tivesse mais pernas nem ânimos para continuar rodando, suado, pela cidade.
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casou, deve morar com os pais numa casa modesta e limpa. Deve se preocupar com a novela da televisão, torcer pela sorte das amigas e agir como conselheira nos conflitos familiares. Irene, uma boa pessoa, com sua filosofia básica – uma coisa de cada vez. Se não teve namorados, nas noites calmas de temperatura agradável, debaixo do lençol, deve lembrar de Ernesto, uma recordação intrigante, esquisita, quente. Talvez, não. Quem sabe lembre apenas o cara que era conhecido de suas amigas, que chegava suado, amarrotado, ansioso, apressado, e que metia a mão por baixo de sua blusa, não a deixava esquentar, nem umedecer, não entendia que era preciso fazer aquilo – resistir, resistir, resistir – e depois, excitada, exaltada, nervosa, ceder, deixar-se despir, às pressas, fazer amor de pé, encostados na parede com cheiro de condimento envelhecido e mofado, na sala. Deve rir daquela impaciência, de alguém que não entendia o significado das palavras, não entendia o movimento, e o tempo dos acontecimentos. Se Irene ainda vai à cidade, talvez passe pelo edifício onde morou, só para rememorar os velhos tempos, quem sabe lembre que Ernesto sempre aparecia aos sábados, quando começava a escurecer e ela se sentia sozinha no mundo, sem amigos, sem amor, sem rádio e sem televisão. Luci! lembrou. O nome da amiga, Luci. Era o começo. Pretendia lembrar o nome de Irene. Com sorte, e se soubesse, o nome da cidadezinha de onde viera.
Em algum momento, deixou de procurar Irene. Era uma vidinha besta e assim foi indo, dia após dia. Não lembrava de mais nada, o que não deveria ser estranho, só impressionava. Tem sido um desatento por toda vida, sem que nada fosse resolvido. Irene, se é que se chama Irene, talvez seja Cristina, deve ter voltado para o interior. Se casou, tem filhos, trata com um interesse afastado a vida do marido. Se não Continente agosto 2003
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26 CONTO
Não teria coragem de procurá-la. Ela ficaria decepcionada ao ver quantos quilos uma vida sem prumo pode dar a um homem. Seria vexatório não ter como convidála para um lanche e, envergonhado, dizer-lhe que estava desempregado. Também não teria coragem de ir ao edifício. Nem lembrava o andar. Tinha medo de encontrá-la ainda lá, sozinha, ou morando com amigas, trabalhando por miséria em algum hospital, e ela reconhecêlo, saudá-lo em nome dos velhos tempos ou, ao contrário, passar sem o reconhecer, enquanto ele se espantaria com a invisibilidade que o tempo dá, ou constatar que ela era uma pessoa sem graça, ou descobrir que ela estava deliciosa. Luci, era esse o nome da amiga. Nervosa, namorava um cara sem emprego, mas gostaria de ter algo com Ernesto. Ela não morava com Irene, era amiga. Morava no subúrbio e era meio metida a besta porque estagiava num hospital federal, com promessa de emprego. Ligava para Ernesto fazendo insinuações e promessas, e sumia. Ernesto só a viu três ou quatro vezes e nunca mais, sabendo dela através de Irene e, ainda assim, nada importante e sem a menor curiosidade. Irene não encontrava com ela há muito tempo, sabendo de Luci por outra amiga, que Ernesto só vira duas vezes. Uma, apresentado por Luci e, outra, quando a encontrou junto com Irene. E nunca mais. Dessa amiga de Irene e Luci, Ernesto não tem a menor idéia do nome, talvez Cristina, talvez ela é que venha a ser Irene. A mulher e os filhos vieram anos depois. Os empregos foram muitos. De tudo um pouco. Primeiro, ajudava por tostões as mulheres da vila carregando as compras num carro de mão. Depois, office-boy, garçom, auxiliar de uma dezena de coisas, vendedor de duas dezenas de coisas, balconista de lojas diferentes, até o ponto Continente agosto 2003
em que se tornou encarregado disso e daquilo – o máximo que chegou na vida, sempre deixando o emprego por contenção de despesas, a versão oficiosa. Na verdade, foi dispensado e demitido de todos os seus empregos. Não era de fumar, jogar ou beber. Chegava em ponto e saía depois de todo mundo. Mas era um fracasso com as pessoas. Tinha dificuldade de aprender. Não conseguia se sentir evoluindo. A família acostumou-se a altos e baixos, a viver de favores e a atrasar contas, não ter feira completa todo mês, morar longe, mudar-se muito, e sempre com a impressão de estar andando para trás na vida. À noite, antes de dormir, Ernesto se imaginava um industrial, rico e famoso, envolvente e inteligente, comunicativo. A única coisa que o incomodava nesse pensamento, nessa fantasia, era a casa. Não morava em nenhuma mansão com piscina. Mas ali mesmo onde estava, na sua casa pequena, paredes úmidas, sem jardim, e com um quintal amontoado de tábuas velhas e quinquilharias que há um bom tempo se prometia jogar fora e, depois, fazer uma área para churrasqueira. Que Deus tenha pena de mim, ensaiou em voz baixa, ainda no banheiro, não saí do lugar, puta que pariu, é, não saí. Das duas, uma, afirmou: ou acordo para a vida agora, ou entrego os pontos. A mulher não reclama, não se queixa, não lamenta. Envelheceu, ficou gorda, feia, encheu-se de varizes e celulites, jamais teve roupa fina, sempre sofreu quieta. Só diante da televisão, durante as novelas, é que Ernesto podia medir a extensão dos seus sonhos e das suas frustrações, a partir dos ai meu Deus, quem me dera, dos eu não tenho essa sorte, dos agora só no Céu, dos ah se minha vida fosse um pouquinho melhor. Era para chorar, lembra Ernesto. Se não chorava, não sabia a razão. Tinha vontade e não sabia como. Via as pessoas chorando e se espantava com sua falta de sensibilidade para chorar. Nos pri-
CONTO 27 meiros anos de casado, sua mulher ainda bonita, ele ia trabalhar com o coração na mão, temendo que ela o deixasse por outro. Deve ter havido assédio, pois fora morar num bairro desconhecido, onde só eles eram de fora e todos pareciam viver ali desde criancinhas. Vivia apavorado. Foi naquela época que começou a pedir a Deus que o protegesse. O pedido foi atendido, a não ser, se é que houve, por coisas descomunais, como riquezas, genialidade. Ernesto se dá conta de que não sabe em que mundo está, o que está acontecendo no mundo. Tenta lembrar o dia, nenhum número aparece. Sexta-feira à noite. Sabe o mês. Não é final do mês. Não lembra o dia. O que está acontecendo no mundo? perguntava-se, puta que pariu, deve estar acontecendo algo no mundo agora. Ansioso, fica arrasado por não se lembrar do que está acontecendo no mundo. Menos ainda sabiam os seus poucos amigos. Nada. Em toda a sua vida, nunca se preocupou com o que estaria acontecendo no mundo. Não sabia do desejo da mulher. Não sabia o que estava acontecendo com seus filhos (crescendo. E ele ausente, sem força). Nem sabia se os filhos estavam estudando, qual a série, qual a idade de cada um, quando é que se apresentariam ao Exército, se eles sabiam o que estava acontecendo no mundo. Anos que ia de casa para o trabalho e do trabalho para casa e não se lembrava do que havia no meio do caminho, se houve alguma mudança. Também não via a casa, abandonada, como todas as outras onde vivera com a família, mais ou menos umas doze, faltando o toque masculino da manutenção. Apesar dos cálculos, e de resistir a olhar os documentos, não lembrava a sua idade, quarenta e alguma coisa, perto dos cinqüenta, mais ou menos, a não ser recorrendo à data de nascimento e contando nos dedos. Diante de tudo isso, lembrar de Irene chegava até a ser engraçado. Se tivesse por alguma fatalidade casado com ela, como seria sua vida? Tudo caindo aos pedaços, o cheiro de acetona, e a casa limpinha. Seria igual, algo próximo à vida que leva, o que quer dizer que dependia dele fazer a diferença. Com Luci seria o contrário. Se não tivesse conseguido balançá-lo, empurrando-o para frente, ela teria desistido na primeira curva. Mas a mulher consentiu seguir a vida como ia acontecendo, sem mexer muito com o que vinha. Com tantos pensamentos na sua cabeça clamando por explicação, Ernesto não teve outro remédio a não ser dizer para si - uma coisa de cada vez. E aí lembrou que não era Irene quem dizia isso. Irene era de dizer um já vai? meloso, interrogativo, indiferente à resposta. Era Luci, sim, era Luci quem dizia uma coisa de cada vez, em situações que Ernesto não lembrava ou não queria lembrar, assim como não sabia o nome de Irene, nem o nome de Luci, nem se uma delas é Cristina. Talvez Irene seja Diana e Luci seja Solange, e a amiga de Irene, Luci, ou Denise. Não, puta que pariu, Denise é a sua mulher, ou será Cristina? • André Resende é escritor. Continente agosto 2003
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28 POESIA João Esteves Pinto
Mão compassiva O momento está para lá do momento Digo-o com este punho categórico Nele, todos os afluentes Deixaram areia fina Cascalho grosso Detritos putrefactos E o ruído vário Das vozes do rio Para que assim fosse Para que pudesse ser entendido Houve que cerzir o curso Da memória E situar antes dele Idéias e princípios Afirmar uma vontade E também Dar voz às crenças Só assim as palavras Passaram a fluir determinadas Como as águas Olho a partir do sofrimento Os factos irreprimíveis Do momento Para buscar neles Uma história Uma irrisão A exposta E flagrante Decomposição de uma harmonia Eu venho aqui Buscar indícios Com um faro neurótico De um cão perdido Venho buscar determinado O sentido e a estrutura Continente agosto 2003
Da própria dor E para isso Admito ser tanta coisa vária!... Admito ser contraditório, analítico Metódico e impreciso ... Eu quero é descobrir A fórmula A alma da ânsia De um grito Que consubstancie o sofrimento Para surpreender afinal este momento E trazer para o campo disponível desta mesa A leitura serena e repousada Das hipóteses plausíveis E múltiplas do historiador Do cientista social Ou de outro Que remetam para um sistema De idéias fundas E bem pensadas A razão deste sangue irracional Rompido e declarado Que é meu E sou eu que vos peço: Tragam estudados os métodos E as gramáticas E as ciências de suporte Peço implorativo Que sejam explícitos, demonstrativos Com assaz de fórmulas e tudo Com nomes de sábios reconhecidos E o seu gesto convincente e incisivo Peço mesmo Que haja um simpósio - se possível vasto Discutido
POESIA 29
Com aquilinas teses Com amarfanhados rascunhos E conclusões exaradas em actas Com vencedores E votos de vencido Para que não fique diminuído e imperfeito O rigor das fronteiras Das certezas e das dúvidas Próprias de uma escrita plana E limpa Exarada em papel de arquivo Mas sobretudo Discutam com ardor Com certificado das vossas convicções Com discursos longos e arrebatados Sublinhados de gestos fortes, persuasivos Este tema central e único: Onde estão as causas do momento De que sou eu O animal acossado e só Rasgado de dor Este solitário objecto de análise Ferido e frio E que ninguém saiba Que desse organizado e bem pensado esforço A mim apenas me importa Uma leitura (perversa, se quiserem, Mas pessoal e única) Nascida do lado de fora Do método de fazer ciência De elaborar conceitos Ou de os explicar Minucioso e florentino; A mim apenas me importa A toada cerimonial Dos sábios mestres aí reunidos Que vêm trazer a legitimidade Própria de quem oficia Um solene Te Deum Com o cálido ouro E a chama de uma fé; Dela quero apenas retirar harmonia A partir da forma Rigor a partir do rito Como numa ópera neurótica
Sem libreto nem história Na qual ressaltem só A cor e o gesto E o cenário barroco e excessivo E depois deixem-m me Deixem-m me que eu estou a falar A falar com uma necessidade compulsiva Deixem-m me falar só Para comigo E dêm-m me uma mão tolerante e compassiva Deixem-m me ouvir necessária Uma polifonia de vozes A rodear-m me Como um exame sonolento De dimensão infinita Dêm-m me a visão nocturna Mágica e surda Das estrelas de agosto Como se este meu universo Fosse afinal Uma categoria mental E não sentida Uma sagrada dimensão Onde eu pudesse Suportar não sei se alheio Asséptico e de perfil O dilacerado gume deste momento Deste momento em que eu Estou transido Encurralado, periférico e só Neste espaço residual Onde a ninguém interessará saber Que estou lavado em lágrimas E sofrido ( ... e depois, se alguém, quem quer que seja, passar por este lugar mental, que leve consigo e perca descuidado, como por acaso, todos os papéis, os amarfanhados rascunhos e as actas incluídas ...) • João Esteves Pinto nasceu em Sabugal, Beira Alta, Portugal. Licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, exerce, atualmente, a administração da INCM – Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Continente agosto 2003
30 NOTAS
Dilema universitário
Ciúme e ironia
Cultura versus natureza
Uma universidade eficiente e barata será, é quase certo, pouco inovadora. Uma universidade inovadora pode ser irresponsável em relação à sociedade que a custeie. Assim Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, expõe o dilema da academia em A Universidade e a Vida Atual – Fellini Não Via Filmes. Para concluir: “Eu simpatizo com ambas”. Trata-se de ensaio estimulante abordando não só a clássica questão das relações Universidade-Sociedade mas, sobretudo, esmiuçando o fazer acadêmico. Levanta provocações sobre a “aparência científica” e simulação de seriedade em muitos trabalhos universitários, engessados por jogos de interesse ou pela rotina.
O problema da “liberdade moral” é o núcleo da única peça teatral escrita por James Joyce, Exilados. Os personagens são Richard Rowan, escritor em luta contra as convenções burguesas; sua mulher, Bertha, de caráter insubmisso; Robert Hand, amigo de Richard; Beatrice Justice, jovem intelectual, inspiradora de Richard. O escritor sabe que seu amigo está tentando Bertha, até porque ela vai relatando a ele todo o processo de sedução. E Richard irrita-se com quem? Consigo mesmo, por sentir ciúmes. O estilo oscila entre farsa e melodrama, parábola moral, paródia romântica e comédia de costumes. Como sempre, em Joyce, a chave está na ironia.
Basicamente uma parábola sobre o confronto entre o bem e o mal, a novela Billy Budd, de Herman Melville, passa-se a bordo de um navio britânico, durante as guerras napoleônicas, envolvendo o belo e nobre marinheiro Billy e seu oponente, o mestre-d’armas Claggart, astucioso e cruel. O primeiro, simbolizando a natureza pura, o segundo, a cultura corrompida, disposta a destruir o que não pode dominar. O embate entre a inocência e a maledicência progride para um final inevitavelmente trágico. Um aspecto curioso a ser rastreado na obra é o viés de um velado homoerotismo.
A Universidade e a Vida Atual – Fellini Não Via Filmes, Renato Janine Ribeiro, Editora Campus, 211 páginas, R$ 44,90.
Exilados, James Joyce, tradução de Alípio Correia de Franca Neto, Iluminuras, 224 páginas, R$ 42,00.
Billy Budd, Herman Melville, tradução de Alexandre Hubner, Cosac & Naify, 155 páginas, R$ 33,00.
Sonho e imaginação
Herói byroniano
Mistérios da arte
O escritor italiano Antonio Tabucchi é conhecido por duas características: primeiro, seu amor a Portugal e, particularmente, ao poeta Fernando Pessoa; depois, por sua prosa precisa e poética em romances de grande sucesso, não apenas junto à crítica, como também junto ao público. Agora é publicado em tradução brasileira Os Voláteis do Beato Angélico, uma pequena coleção de narrativas que se transvestem em cartas, contos e digressões. Num clima predominantemente onírico e profundamente imaginativo, Tabucchi mostra como é possível produzir poesia em prosa, sem cair no meloso ou sentimental, pelo contrário, com intensidade e uma bela dose de mistério.
O poeta inglês George Gordon Byron é um desses casos de intensa fama, enquanto vivo, mais fama ainda enquanto influência no movimento romântico e, depois, silêncio. Terminou sendo mais conhecido pela vida – a expressão “herói byroniano” representa o personagem revoltado por excelência. Mas, começa a ter suas obras revistas e resgatadas. Beppo: Uma História Veneziana é uma delas. Poema satírico, serve ao poeta como álibi para criticar o puritanismo e esnobismo ingleses, bem como os subliteratos do seu tempo. Hedonista, amante de homens e mulheres (inclusive sua meia-irmã), Byron foi expulso da Inglaterra por praticar sexo anal com sua esposa, na época, um crime.
Dois livros básicos para leitores, a partir de 11 anos, que queiram entender o universo fascinante da arte são: Os Segredos da Arte e Como e Por Que se Faz Arte, de Elizabeth Newbery. No primeiro, explicações simplificadas sobre o papel da cor, das texturas, dos volumes, das linhas e da luz na veiculação da mensagem artística. No segundo, a partir das motivações do fazer artístico – divertir, chocar, fazer política, contar histórias, proteger, etc.s – o leitor aprende sobre métodos, ferramentas e estilos como colagens, impressão, arte 3D, landart, e também temas como o auto-retrato, o cotidiano, as narrativas e os sentimentos. Os livros trazem ainda glossário e testes.
Os Voláteis do Beato Angélico, Antonio Tabucchi, tradução de Ana Lucia Belarldinelli, Rocco, 96 páginas, R$ 19,00.
Beppo: Uma História Veneziana, Byron, tradução de Paulo Henriques Britto, Editora Nova Fronteira, 176 páginas, R$ 25,00.
Os Segredos da Arte e Como e Por Que se Faz Arte, Elizabeth Newbery, tradução de Maria da Anunciação Rodrigues, Editora Ática, 63 páginas, R$ 16,50 (cada).
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32 MARCO
ZERO
Alberto da Cunha Melo
Que diabo é pós-moderno? “Entrar no acaso e amar o transitório” Carlos Pena Filho
E
m artigo ou entrevista - não me lembro - eu já disse uma vez que não devemos confessar gratuitamente uma ignorância, mas quando nos for perguntado algo que desconhecemos, devemos responder clara e incisivamente: não sei. Quebro hoje esse princípio, não por falta de assunto, que nunca faltou num país desgraçado como o Brasil, mas porque me chegou às mãos um livro intitulado As Ilusões do Pós-Modernismo, escrito por um tal de Terry Eagleton, cuja única nota biográfica informa ser ele professor de inglês em Oxford. Continente agosto 2003
Comecei a ler aquele livro, editado pela Zahar, e não sei se foi a má tradução brasileira ou a má redação do autor, as dificuldades de compreendê-lo obrigaram a arrastar-me penosamente até o fim. Como tinha aprendido, com a leitura de um artigo sobre filosofia moderna, que precisamos, num texto difícil, afastar toda palha retórica, até deixar descoberto o núcleo do pensamento, algo como se apartar do significante ou referente e só ficar com o significado ou referência, tentei isso, mas foi impossível, porque, ora todo texto era palha, ora era núcleo, e eu não tenho tempo de desfazer-me de um palheiro para deixar a
MARCO ZERO 33
agulha exposta. Resultado: pesquei, aqui e ali, umas frases compreensíveis, foi tudo que pude fazer. Como não foi por falta de leitura que não sei o que é pósmoderno, embora ao longo da vida eu me tenha desfeito de duas pequenas bibliotecas, lembrei-me de um livrinho que lera na década de 80, da coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, intitulado O que é pós-moderno, de autoria do poeta, ficcionista e ensaísta Jair Ferreira dos Santos. É um livrinho de bolso e foi um inferno encontrá-lo no meu caos. Não satisfeito, pedi a Cláudia que retirasse da Internet umas três laudas, no máximo, do sintagma, ou melhor, do verbete pós-modernismo. São dessas duas últimas fontes secundárias de que se socorre a meninada do ensino médio em suas “pesquisas”. E lá fui eu tentar reduzir minha ignorância, porque de tudo que tinha lido só me ficara a idéia de que aquele conceito procurava compreender o que vinha acontecendo nos bolsões pós-industriais do Ocidente, e que seus traços marcantes eram um relativismo radical e uma vontade, como disse Carlos Pena Filho, em um dos seus belos poemas, de “entrar no acaso e amar o transitório”. Ledo engano. O Sr. Eagleton chama de pós-modernismo um estilo de cultura (os sociólogos diriam de subcultura) que no plano estético tem como indicadores a superficialidade e descontração na arte, além de pespegar-lhe os atributos de infundada, auto-reflexiva, divertida, “caudatória”, eclética e pluralista, tendo como objetivo maior derrubar as cercas entre a “cultura popular e cultura elitista”, e, também, entre “arte e experiência cotidiana”. Essa arte pós-moderna, que quer derrubar o muro estético entre o popular e o erudito, pretende ainda manter “seu espírito brincalhão, parodista e populista”. Entenderam? Deixando o gringo complicado, e me aproximando do patrício Jair Ferreira dos Santos, ele situa o surgimento do pósmodernismo entre 1955 e 1960, quando começaram a chamar a atenção mudanças ostensivas na arte, na ciência e na sociedade, que levaram os sociólogos norte-americanos – sempre eles – a retomar um velho rótulo utilizado pelo historiador Toynbee,
em 1947. Jair fala, pela primeira vez, em mistura, isto é, numa salada de estilos e tendências sob o mesmo nome: pós-modernismo, e, ao dizer que ele quer “rir levianamente de tudo”, chega a aproximar-se do gringo. Pela Internet, caso procedam as informações, ficamos sabendo que o conceito é “seriamente encarado por grupos e autores americanos e canonizado por inúmeros trabalhos científicos e teses em universidades dos EUA e Europa do Norte”. Será que elas não têm ocupações mais fecundas para patrocinar? Interessante, mesmo, são os indicadores do pós-moderno que as três pobres fontes consultadas, que me restaram, apresentam: a pop art, considerada seu primeiro marco estético, o microcomputador, o sex-shop, o circuito integrado, o microprocessador, a minimal art, a arte-conceitual, o happening, a performance, a transvanguarda, o vídeo-arte, o poema-processo, a arte-correio, o nouveau roman, a poesia do mimeógrafo, a lixeratura, o poema pornô. Tem mais: a Internet, através de Eliete Maria Pasqualin, joga no grande panelão do vatapá pós-moderno os alimentos processados, a biotecnologia, a engenharia genética e as clonagens. Mas, deixei para o fim o que um site sem assinatura também joga no panelão: nada menos que João Cabral de Melo Neto, Concretismo, Ferreira Gullar, poesia social, poesia práxis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, meu Deus! Fora Gullar, os outros morreram sem saber que eram pós-modernos. Por último, como tempero verde, caem dentro da panela o neoconcretismo, a revista Tendência e a série poética do Violão de Rua. Entenderam? O excepcional Otto Maria Carpeaux confessou uma vez que “só compreendeu uma ínfima parte” de Ulysses, de Joyce. Ele, um poliglota europeu, que se cercou de dicionários ingleses e irlandeses, abandonou a tarefa de compreender aquele livro, depois de alguns meses, “firmemente decidido a aproveitar para outras coisas o resto da vida”. Essa lição me basta. Adeus pós-modernismo. Compreenderam? • Alberto da Cunha Melo é poeta, sociólogo e jornalista.
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34 CAPA
CAPA 35 » Foto: Camilla Maia/ Agência O Globo
O palco levado a sério Giulia Gam é exemplo de uma geração de atrizes que conciliam o sucesso televisivo com uma sólida carreira teatral Luciano Trigo
“O
teatro é meu chão”. A frase resume a importância que a atriz Giulia Gam, 37 anos, dá à atividade teatral. Numa época em que a televisão se transforma cada vez mais numa passarela para rostos bonitos e gente famosa e descartável, Giulia sempre investiu na técnica e conseguiu desenvolver uma carreira sólida, pontuada por belos papéis no cinema e nas telenovelas, mas sobretudo no palco. Hoje, ao mesmo tempo em que ganha projeção em todo o país como a ciumenta Heloísa da novela Mulheres apaixonadas, de Manoel Carlos, ela leva adiante sua paixão pelo teatro participando do elenco de Os sete afluentes do rio Ota, de Robert Lepage, em cartaz em São Paulo. Paixão tão intensa que, até pouco tempo atrás, Giulia sofria muito ao final de cada trabalho: É sempre muito triste terminar uma temporada, a sensação é a de uma família que se desfaz. Meu sonho era ter uma companhia que não deixasse de existir quando uma peça sai de cartaz, mas no Brasil é muito difícil estabelecer uma continuidade. Por isso digo que ser atriz é uma profissão solitária. No começo eu sofria mais com isso, pois quando era mais jovem me atirava de cabeça em cada projeto. Depois fui amadurecendo, me casei, tive um filho e percebi que tenho uma vida que é minha, para a qual posso voltar depois de cada trabalho. Então, hoje o sentimento de solidão é menor, mas ainda existe. Nascida por acaso em Peruggia, na Itália, onde seu pai, um arquiteto, fora estudar artes plásticas, Giulia cresceu em São Paulo, e passando férias na fazenda da mãe. Na adolescência, chegou a pensar em ser médica. Tudo mudou quando ela foi aprovada num teste para ser protagonista de uma montagem de Romeu e Julieta, dirigida por Antunes Filho. Com Antunes trabalharia também em espetáculos como Álbum de família e Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues.
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36 CAPA Fotos: Marco Antônio Teixeira/ Agência O Globo
Giulia Gam entrou no teatro pelas mãos do diretor Antunes Filho (no alto) No cinema, atuou sobretudo em filmes do experimental Julio Bressane (à direita) Na página ao lado, o polêmico Gerald Thomas com quem teve “uma experiência quase masoquista”
– Sempre tive fascínio pelo teatro. Se tinha talento não sei, era um desejo da juventude. Com 15 anos fui trabalhar no Grupo Macunaíma, de Antunes Filho, na peça Romeu e Julieta. Ele queria uma atriz jovem, mas com potencial. Eu só tinha feito alguns cursos de interpretação para adolescentes. Ensaiamos de 1982 até 1984, quando estreamos. Neste período prestei vestibular. Eu gostava de medicina, se não tivesse seguido a carreira de atriz, seria médica. Giulia lembra quais eram seus ídolos na adolescência: – Eu me mirava, é claro, em atrizes como Fernanda Montenegro e Marília Pêra. Também admirava muito Marco Nanini, estes eram os três atores de quem eu tinha autógrafos no meu quarto. Tive a sorte de não precisar de dinheiro quando comecei, então pude escolher meus papéis e orientar minha carreira para o lado que eu queria. Como não tive uma formação acadêmica, sempre procurei trabalhar com diretores com quem pudesse aprender; tive muita sorte nesse sentido. Pensava em fazer a Escola de Arte Dramática, em São Paulo, ou então estudar mímica em Paris, mas com o sucesso de Romeu e Julieta minha carreira tomou outro rumo. Mais tarde fiz peças com Bia Lessa, Gerald Thomas, José Celso Martinez Correa e outros diretores que me acrescentaram muito. Com o polêmico Gerald Thomas, Giulia trabalhou na peça Fim de jogo, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett: – Foi uma experiência quase masoquista. Gerald me usava como exemplo da atriz bonitinha da TV que não entendia a Continente agosto 2003
linguagem do teatro dele – e eu não entendia mesmo. Mas realmente tentei de tudo para entender o processo criativo dele. No cinema, Giulia teve papéis de sucesso em filmes como Besame mucho, Anjos da noite, O país dos tenentes, A grande arte, Sábado, Policarpo Quaresma e Outras histórias – este dirigido por seu exmarido, o jornalista Pedro Bial. Mas atuou sobretudo em filmes do experimental Julio Bressane, como Miramar e Galáxias: – Conheci Julio Bressane através do Haroldo de Campos. Trabalhar com ele foi uma experiência extraordinária. O Bressane não parou de trabalhar nunca, mesmo na pior fase do Plano Collor ele dava um jeito de filmar em casa, nas condições mais precárias. É um diretor de uma cultura literária e cinematográfica incrível. Mas acho que trabalhei pouco em cinema, gostaria de fazer mais filmes. Giulia Gam estreou na televisão sob os protestos veementes de Antunes Filho, para quem “fazer TV era trair a arte”. Giulia tinha passado por uma verdadeira catequese sobre o papel de resistência e a função social do teatro, e isso gerou muitos conflitos quando ela começou a fazer televisão. A atriz chegou a chorar uma tarde inteira quando decidiu atuar no folhetim Que rei sou eu?, por achar que estava traindo Antunes: – Embora atuasse em novelas, eu era contra a televisão, contra o aburguesamento do ator num esquema industrial. Só recentemente comecei a me livrar dessas idéias. Em 1987, Giulia aceitou o convite para atuar em Mandala, de Dias Gomes, fazendo o papel da jovem Jocasta. Ela imagi-
Foto: Leonardo Aversa/ Agência O Globo
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“Gerald Thomas me usava como exemplo da atriz bonitinha da TV que não entendia a linguagem do teatro dele – e eu não entendia mesmo”
nava que ia gravar “uns 15 capítulos” e voltar para o teatro, mas depois vieram propostas para participar da minissérie O primo Basílio e das novelas Que rei sou eu? e Fera ferida. – Foi importante trabalhar com diretores como Daniel Filho e Guel Arraes. Meu papel no Primo Basílio foi marcante, embora eu nem me julgasse madura para fazer. Interpretar Dona Flor também representou um grande desafio, porque eu tinha que explorar uma sensualidade que não correspondia muito à minha imagem. Foi bom para desfazer esse clichê de que só se pode interpretar papéis adequados a um physique de role imaginário. Além disso, eu me apaixonei pela obra do Jorge Amado. Giulia fez ainda participações especiais na série Comédias da vida privada. Mas, depois da crise conjugal que resultou na separação de Pedro Bial e na disputa pela guarda do filho, decidiu passar uma temporada em Nova York para repor as energias, em 2000. Fez um curso no mítico Actor's Studio e voltou no ano seguinte, para morar no Rio de Janeiro. Na baga-
gem, muita insegurança (“Tive medo de ser esquecida, a televisão é um veículo tão efêmero, lança tanta gente nova...”). Mas logo vieram novos convites para trabalhos na TV, no teatro e no cinema, onde participou das filmagens de Carandiru, de Hector Babenco. O papel de Heloísa em Mulheres apaixonadas é o primeiro depois de oito anos afastada das novelas. O sucesso de público é tão gratificante quanto o seu trabalho no palco do Teatro Anchieta, onde começou a carreira. A peça Os sete afluentes do rio Ota, de Robert Lepage, resume a história da humanidade desde o fim da Segunda Guerra até o final do século 20. Dirigida por Monique Gardenberg, Giulia trabalha ao lado de Beth Goulart, Maria Luiza Mendonça e Caio Junqueira, en tre outros. – Eu não conhecia o trabalho do Lepage e fiquei encantada com o seu texto. A peça está servindo para me reintegrar ao teatro, é um resgate importante. E voltar ao Teatro Anchieta, onde comecei, é muito bom. Integrante de uma geração cheia de exce-
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“A TV serve pela projeção na mídia. Mas o que a minha geração tem em comum é uma ligação intensa e verdadeira com o palco. São todas atrizes sérias, que se interessam pelo ofício do ator” Fotos: L. C. David/ Agência Tyba
A atriz Marília Pêra serviu de espelho para Giulia Gam
lentes atrizes – a geração de Fernanda Torres, Deborah Bloch, Andréa Beltrão, Julia Lemmertz e Claudia Abreu, entre outras – Giulia explica a razão desse sucesso: – Acho que em todas as gerações há atrizes muito boas. Mas o que a minha geração, tem em comum é uma ligação intensa e verdadeira com o palco. Nós realmente acreditamos no teatro, fazer uma peça não representa apenas uma atividade circunstancial de uma “celebridade”. São todas atrizes sérias, que se interessam pelo ofício do ator. Não que eu estabeleça uma relação de hierarquia entre o teatro e a televisão, mas o fato é que a televisão não forma ninguém, só o palco. A TV serve para dar mobilidade, e também pela projeção na mídia, é claro. Em outros países, o ator consegue dirigir mais sua carreira para o que ele quer realmente fazer, mas no Brasil o poder da TV, ou a ilusão do poder da TV, é muito forte. E muitas vezes, quando se trabalha na televisão, o lado técnico da interpretação, o amadurecimento do ator, ficam um pouco em segundo plano, pois são coisas que só o tempo e a experiência no palco trazem, e a TV é um veículo muito rápido. Pena que o teatro no Brasil esteja passando por uma fase difícil, com crise de patrocínios. Desde que se mudou para o Rio, em 2001, Giulia Gam resolveu transformar seu apartamento no Leblon em ponto de encontro para leituras dramáticas. Foi a forma que encontrou para se entrosar e fazer novos amigos, o que acabou resultando no projeto Tudo é Teatro, que ela coordena todas as segundasfeiras, no shopping Rio Design Center, a poucos metros de sua casa, desde novembro do ano passado. – O projeto de fazer leituras é muito antigo, começou quando fui assistir às leituras que o Zé Celso fazia das Bacantes em São Paulo, por volta de 1985. Eu era ainda muito jovem, tinha acabado de fazer Romeu e Julieta, e pude ter contato com atores como Raul Cortez, de uma geração anterior, e que me mostraram a diferença entre ler e interpretar uma peça. Fazer leituras era uma dificuldade da minha geração. Era um momento em que o Zé Celso andava meio desacreditado, e fazia essas leituras na casa dele. Depois ele montou as Bacantes no teatro e foi um sucesso. Mais tarde, já em 1994, quando trabalhei com o Gerald Thomas, entrei em contato com a Beth Coelho, que também tem uma relação muito forte com as leituras teatrais. Na época eu namorava o Otávio Frias Filho (diretor de redação da Folha de S.Paulo) e a gente criou um hábito de reunir um grupo toda semana para ler um texto teatral. Quando voltei para o Rio de Janeiro, tinha o desejo de levar esse projeto adiante. Então fiz leituras na minha casa, e foi quando o Marcos Portunari me ofereceu o espaço Leblon Lounge, no Rio Design Center. Foi um sucesso absoluto, e o mais legal é passar para esse evento o clima de informalidade das leituras que eu fazia em casa. • Luciano Trigo é jornalista.
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Fotos: Divulgação
Boal e o espelho mágico Augusto Boal lança dois livros e continua incansável na divulgação do Teatro do Oprimido Isabelle Câmara
E
le é um curinga – personagem múltiplo ou de si mesmo. Augusto Pinto Boal, 72 anos, carioca, dramaturgo, escritor, professor e defensor dos direitos humanos, já dirigiu mais de 48 peças, sendo autor de boa parte delas. Escreveu 17 livros, como A Deliciosa e Sangrenta Aventura Latina de Jane Spitfire, relançado em maio, e o recém-llançado O Teatro como Arte Marcial. Como professor, lecionou na Sorbonne e na New York University. Como ativista dos direitos humanos, vai aonde o povo está. Desinteressado da Engenharia Química que estudava, Boal buscou sua iniciação teatral com Sábato Magaldi e Nelson Rodrigues. Formado, realiza o sonho do pai e ganha um ano de especialização nos EUA. Mas burla os interesses paternos: passa a estudar dramaturgia na Universidade de Columbia com o mestre John Gassner e freqüenta o Actor´s Studio, que, à época, introduzia o método de Stanislavski na América. De volta ao Brasil, assume a direção do Teatro de Arena de São Paulo, aclimata Stanislavski às condições brasileiras e cria os Seminários de Dramaturgia. Deles nasce uma nova dramaturgia nacional: Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Oduvaldo
Vianna Filho, Roberto Freire, Benedito Ruy Barbosa, Flávio Migliaccio, entre outros. Também criou o Sistema Curinga, adotado e amplamente utilizado nos palcos nacionais. Assim, foram montados espetáculos como Arena Conta Zumbi, Arena Canta Bahia e Arena Conta Tiradentes, que revolucionaram o mundo artístico e que pretendiam acelerar a revolução social, mas que foram esmagados pela repressão militar. Preso e torturado, Boal foi exilado. Caminhou por meio mundo, internacionalizou-sse e ganhou respeitabilidade. Exceto no Brasil. Seu Teatro do Oprimido apresenta-sse sob “as máscaras” do Teatro-jjornal, o Teatro-iinvisível, o Teatro-ffórum e o Teatro-llegislativo. Segundo ele, é um conjunto de atividades e exercícios que ajudam o indivíduo a desenvolver aptidões latentes e impulsionar o encontro consigo mesmo, promovendo uma libertação cidadã e estética. Hoje, sua grande obra, o TO é aplicado nas ruas, hospitais, presídios e escolas do Brasil e de mais 70 países. Em entrevista exclusiva à Continente, Boal fala do exílio, de política, do TO e da esperança eterna em construir um país mais justo. Continente agosto 2003
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Por que você é reconhecido em todo o mundo, exceto no Brasil? Não tenho a menor idéia. Agora mesmo o prefeito de Nova York designou o dia 27 de maio deste ano como o Theatre of the Opressed Day, naquela cidade, em reconhecimento à difusão do Teatro do Oprimido nos Estados Unidos. Enquanto isso, o prefeito do Rio proclama desejar que no Rio se instale uma nova Broadway. Isto é: eu carioquizo Nova York e ele quer navaiorquizar o Rio. Acho que se os poderes públicos ajudassem o nosso Centro do Teatro do Oprimido, seria bom para todo mundo, porque o Centro atua em setores importantes da vida social: educação estética do oprimido, direitos da criança e do adolescente, da mulher, anti-racismo e anti-sexismo, reforma agrária, combate à AIDS e vários etcéteras. O financiamento que o CTO-Rio recebe, muito pouco, tem vindo do estrangeiro em 90%. Na sua autobiografia, Hamlet e o Filho do Padeiro, você duvida da existência de uma pátria. Essa dúvida se deve ao exílio? Acho que se deve mais à desintegração moral do Brasil do que ao meu exílio. Muitas pessoas que não se exilaram têm a mesma impressão que eu, e o mesmo lamento. Para que exista uma pátria é necessário que exista um projeto nacional, além de ser pentacampeão de futebol. Um projeto nacional Continente agosto 2003
tem que ser social. E uma sociedade só é digna desse nome se todos os cidadãos forem sócios dessa sociedade. No Brasil, mais de metade da população está excluída dessa falsa sociedade, seja pela fome, pela falta de trabalho, de saúde, de moradia ou de terra, pela falta de padrões morais e de objetivos éticos. Pátria não é apenas uma questão de sentimento, mas uma realidade concreta: existe ou não existe. O Brasil não é uma pátria, é um salve-se quem puder! Você disse: “Ninguém volta do exílio, nunca, jamais.” É isso mesmo? Cada um traz consigo as suas vivências e, se vive ou viveu no exterior parte da sua vida, essas vivências fazem parte da sua personalidade. Isso é um ganho. A perda é não poder viver e trabalhar no país, como é o meu caso. Trabalho muito mais na Europa e nos Estados Unidos. Ainda dói? E vai continuar doendo enquanto, ao ler o jornal da manhã, tivermos apenas notícias de que foram chacinadas tantas pessoas, houve assalto a tantos ônibus, remédios foram adulterados e mataram os pacientes que deveriam curar, empresas continuaram demitindo funcionários e operários, o Brasil continua pagando
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Boal está relançando Jane Spitfire, em que, satirizando a linguagem do gênero de aventuras, critica a tendência imperial dos EUA. E acaba de lançar O Teatro como Arte Marcial, no qual detém-se mais nos modos de dominação e exclusão social do que nas formas de combatê-los
Augusto Boal com o MST: opção radical pelos desfavorecidos
religiosamente os juros de uma dívida que não sofreu nenhuma auditoria etc., etc., etc. A dor é o presente e é a falta de esperança no futuro, muito mais do que o passado. Como foi a gestão do Teatro do Oprimido? Veio junto com a minha percepção de que o teatro não pode ser apenas um espelho que nos mostre nossas virtudes e nossos vícios, como dizia Shakespeare, mas um espelho mágico no qual possamos entrar, invadir, e transformar a nossa imagem que nele vemos. Fazer teatro deve ser um ensaio para transformar a realidade sem nunca, jamais, com ela se conformar! É possível um TO feito por e para oprimidos, livre e libertário, se todo método está impregnado da ideologia de quem o criou ? Meu filho Julián me fez pergunta semelhante referindo-se ao meu dizer de que somos socráticos, filosofamos fazendo perguntas e não dando respostas. Disse ele: “Toda pergunta induz a um campo das respostas possíveis e, portanto, representa uma certa manipulação”. Respondi que as perguntas de Sócrates exigiam respostas a essas mesmas perguntas, enquanto que a primeira pergunta que faz o Teatro do Oprimido exige uma pergunta como resposta: o que é que vocês,
oprimidos, querem perguntar? A única indução, neste caso, consiste em exigir que os próprios oprimidos decidam o campo de ação do teatro. Além disso, o fato de que tal ou qual método ou instrumento tenha sido criado ou inventado por uma classe não significa automaticamente que não possa ser apropriado por outra: acharei lindo o dia em que for convidado para assistir a um recital de piano alemão em uma favela carioca, com músicos locais, de preferência, negros. E será que alguém consegue voltar dos presídios tendo acesso aos seus direitos? Prisão é estigma, sim. Mesmo os presos políticos são, de uma forma ou de outra, estigmatizados. Mas... dizia o poeta Gonçalves Dias, na sua imaculada candura, “que a vida é combate que aos fracos abate, e aos fortes, aos bravos, só pode exaltar...”. Sejamos um pouquinho mais fortes. Ensina o Teatro do Oprimido que todo mundo é melhor do que pensa. Acreditemos nisso. E qual o papel do artista-intelectual na relação com o povoartista? O povo tem que ser também intelectual e o intelectual tem que ser povo. Continente agosto 2003
“No Brasil, mais da metade da população está excluída dessa falsa sociedade pela fome, falta de trabalho, de saúde, de moradia, de terra, de padrões morais e objetivos éticos. O Brasil não é uma pátria, é um salve-se quem puder!”
Segundo você, estar no poder significa ter permissão para fazer o bem. Como foi a sua trajetória como vereador? Tumultuada. Fui muito combatido pelos adversários políticos que não se conformavam com as inovações que eu trazia para a política. Mas promulgamos 13 leis em quatro anos, muitas episódicas, limitadas, regionais, mas também temos o orgulho de haver preparado a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas, usando os métodos do Teatro Legislativo, que agora começa a pegar fogo no resto do mundo.
imensa tarefa de se libertar da escravidão econômica que nos torna a todos escravos do capital. Quando ele começar a tocar nesse ninho de marimbondos vou recomeçar a acreditar.
Mais otimista com o Brasil depois da eleição de Lula? Sempre fui um homem cauteloso. Tenho convicções simples: os escravos não podem melhorar enquanto não se libertarem do jugo da escravidão. A dívida externa é um vínculo escravatício, pois que se eterniza e não será paga jamais no principal, embora paguemos dez vezes o seu valor a título de juros. Leis do ventre livre, dos sexagenários etc., são paliativas. O que o Lula tem que fazer é preparar o Brasil para a
Qual a sua análise do teatro brasileiro? Ninguém conhece o teatro brasileiro além da rota Rio-São Paulo. O teatro brasileiro inclui não só grandes capitais como Porto Alegre, BH, Brasília, Curitiba, Londrina, etc., mas todo o território nacional. Quem pode falar desse mundo imenso se a gente não sabe sequer o que está acontecendo nos bairros distantes do Rio? E muita coisa está. •
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Como você analisa hoje o legado da sua obra? Está em plena expansão pelo mundo inteiro. Só vou ficar sossegado quando o TO for usado por todos os oprimidos da terra, isto é, nunca. Mas a esperança não é um bem que se alcança, é um objetivo que se persegue.
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Para a crítica Mariângela Alves de Lima, novos grupos estão mais interessados na atual realidade brasileira do que em pesquisa de linguagem
Foto: Jorge Clésio/Divulgação
O teatro do aqui e agora Cena da peça Retratos de Mªe, da Companhia Teatro do Seraphim, do Recife, citada pela crítica paulista como um dos bons grupos do País
são as linhas de força do teatro brasileiro contemQ uais porâneo? Em outras palavras, quais os grupos que estão
fazendo um trabalho consistente? Para a crítica teatral Mariângela Alves de Lima, do jornal O Estado de São Paulo “a rede de comunicação entre os diferentes centros de produção teatral, laboriosamente articulada pela Fundacen, foi desmantelada a partir do governo Collor. Até estão podíamos consultar o arquivo da instituição e saber o que se fazia no Acre ou no Rio Grande do Sul. Alguns grupos viajavam com o auxílio do Mambembe e quem morava em São Paulo podia ter uma idéia da produção do teatro brasileiro. Neste momento não posso falar do teatro brasileiro. Só tenho acesso ao que se publica e a experiência do espetáculo é insubstituível. Conheço os grupos que conseguem chegar a São Paulo. São raros e sempre ótimos. Há o Galpão, de Belo Horizonte, a Cia dos Atores, do Rio de Janeiro, o grupo Armazém de Teatro, o Ateliê de Criação Teatral e o grupo Sutil Companhia da Arte, de Curitiba, a Companhia do Teatro de Seraphim, do Recife, que pude ver aqui. São grupos esplêndidos e se fosse possível concluir alguma coisa dessa pequena amostragem, diria que a tendência predominante do teatro brasileiro é fundar a criação em uma visão de mundo do próprio grupo, desconsiderando filiações estéticas e modelos. O que esses grupos têm em comum é o fato de não se assemelharem entre si. Tenho a impressão de que a linha de força hegemônica é a atuação grupal que constitui ao mesmo tempo o ideário, a dramaturgia, o estilo de interpretação e a visualidade dos espetáculos”. Mariângela assinala que entre os grupos paulistas dos anos 90 há uma retomada do tema da função social da arte. O TAPA, a Companhia de Artes e Malazartes, o Folias D’Arte,
o Teatro da Vertigem, a Companhia do Latão, a Companhia do Feijão e outros agrupamentos recentes “estão visivelmente empenhados em uma redefinição do entrelaçamento entre o fato estético e o fato político. Essa foi uma questão recalcada da derrota histórica da esquerda na última década do século vinte. Reaparece com muita força porque esses grupos têm um público numeroso e fiel. Mas não sei se isso está acontecendo em outros lugares do país”. E continua: “Parece claro que o teatro brasileiro deixou de se preocupar com a atualização, ou seja, não tem mais a preocupação de ser moderno, de estar em sintonia com o que acontece em outros grandes centros de produção. Essa etapa histórica foi concluída porque o acesso ao conhecimento hoje em dia é rápido e eficaz. As universidades assumiram a arte cênica e a instrumentalizaram com aportes teóricos e técnicos, a documentação visual sobre a arte internacional é excelente e está ao alcance de qualquer grupo recém-formado. O que imagino que irá acontecer agora – e os festivais são um sintoma – é a curiosidade pela produção brasileira, o desejo de restaurar laços que se romperam com o enfraquecimento das instituições públicas. Ao lado disso está surgindo um interesse pela dramaturgia autóctone, ainda que seja uma escrita produzida de outro modo, simultânea à criação do espetáculo. Não se trata de um novo surto nacionalista, como foi o dos anos 60, que reagia ao imperialismo cultural, mas de uma espécie de nativismo. Os artistas estão interessados no que está acontecendo aqui e agora. Os grupos mais interessantes não estão, neste momento, levantando a bandeira da ‘pesquisa de linguagem’. Estão mastigando e reprocessando a vida coletiva dos brasileiros”. •
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44 CAPA Foto: Fred Jordão/Imago
Elite se afasta do teatro recifense Setores privilegiados do público local mostram-se incapazes de fomentar, em sua própria região, uma atividade cultural que reconhecem, em outras comunidades, como sinal de desenvolvimento
João Falcão (ao centro) procurou um espaço maior de trabalho no Rio de Janeiro
N
Luís Augusto Reis
os anos 40, iniciativas, como o Teatro de Amadores de Pernambuco, de Valdemar de Oliveira, e o Teatro de Estudantes de Pernambuco, de Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, evidenciavam o interesse que setores mais favorecidos da sociedade recifense nutriam pela arte teatral. Tradicionais sobrenomes, insatisfeitos com a posição de espectadores de peças produzidas em centros considerados mais evoluídos, levantam-se das platéias e passam a disputar espaço nos palcos da cidade. Esse movimento parece ter rendido ao teatro local o prestígio que lhe possibilitaria um inegável aprimoramento, pelo menos até a segunda metade dos anos 60, fazendo com que o público recifense reconhecesse a produção teatral da cidade como uma das mais expressivas do país. De fato, nesse período, o Recife conviveu com encenadores que marcariam a história do teatro nacional, assistiu a diversos clássicos da literatura dramática ocidental, e viu surgir o talento de alguns dos seus mais brilhantes dramaturgos. TAP, TEP, TUP, TEIP, TPN, TCP, entre outros grupos, mobilizavam a juventude intelectualizada da cidade, dando expressão a vozes de variadas tonalidades ideológicas. Teste-
munhando essa efervescência, os jornais locais chegariam a ter mais de 20 críticos teatrais atuando simultaneamente. Porém, a partir da década de 70, talvez por conta do desmantelo cultural causado pela ditadura militar, ou quem sabe, como conseqüência da consolidação hegemônica dos mass media, sobretudo da televisão, com seus conglomerados se estabelecendo nas principais capitais do Sudeste, tem-se a impressão de que o teatro local vai cada vez menos interessar aos recifenses mais privilegiados cultural e economicamente – estrato similar ao que Molière, à sua época, chamava ironicamente de des honnête gens. Sem contrariar a História, que atesta uma quase infalível coincidência entre os momentos de apogeu dessa arte e a sua maior aproximação com as forças sociais dominantes – com as quais sempre mantém uma tensa relação de interdependência –, o fazer teatral recifense, salvo exceções, passa a ser visto como algo aquém, cada vez mais distanciado, dos níveis de discussão estética praticados no eixo Rio-São Paulo. Uma percepção incômoda, às vezes superdimensionada, mas de irrefutável pertinência. Não por acaso, desde o sur-
Cena de As Malditas, da Trupe do Barulho, grupo que domina o imaginário teatral do Recife Continente agosto 2003 Fotos: Marcelo Lyra/Olho Nu
CAPA 45 Geninha da Rosa Borges, em
gimento do Grupo Vivencial, de Guilherme Coelho, no auge da repressão militar, algumas das experiências mais instigantes da cena local seriam aquelas capazes de pressentir e interpretar cenicamente a situação de marginalidade para a qual essa forma de expressão artística estava sendo conduzida. Hoje, o teatro recifense que ainda tem chance de se manter com o que arrecada nas bilheterias é aquele que consegue transformar em pastiche as provocações parodísticas que levavam os intelectuais de classe média à favela de Peixinhos para rir e chorar com os travestis do Vivencial Diversiones. Nesse filão, em meio a muita indigência criativa, destacam-se os desconcertantes comediantes da Trupe do Barulho, grupo que domina o imaginário teatral da cidade há mais de dez anos. Embora seja possível encontrar gente de todos os níveis sócio-culturais em suas platéias, esse tipo de teatro geralmente se acomoda sob o rótulo de manifestação artística inferior: desejada como entretenimento, mas rejeitada como forma de identificação cultural. Curiosamente, em outros campos da atividade artística local, em especial nas artes plásticas, esse afastamento das elites não parece ter se verificado. Os amplos apartamentos de Casa Forte, ou de Boa Viagem, estão repletos de obras de artistas da terra. Seus moradores, contudo, dificilmente saem de casa para assistir a uma produção teatral recifense. Embora não dispensem as idas ao teatro quando vão ao Rio ou a São Paulo,
ou quando viajam ao exterior. Provavelmente ressabiados por tentativas frustrantes, terminam deixando de ver as montagens que decerto poderiam lhes oferecer uma experiência estética recompensadora. Os filhos dessas famílias, diferentemente do que acontecia há algumas décadas, jamais pensaram em fazer parte de grupos teatrais. Os que demonstram alguma inclinação artística, querem ser videomakers ou DJs – para angústia dos pais, que gostariam de vê-los estudando Direito, de olho em algum concurso público. Quando crianças, como diria o professor Marco Camarotti, devem ter freqüentado um teatro infantil de insuspeito caráter comercial, que em nada contribuiu para que desenvolvessem algum interesse por essa arte. Nas caras escolas em que estudam, é possível que o máximo de “teatral” que venham a experienciar sejam vexatórias coreografias ensaiadas para as festas de abertura de eventos esportivos. Se nunca ouviram falar de Nelson Rodrigues, ou de Luiz Marinho, não tem problema: eles não caem no vestibular. Assim, nesse cenário nada favorável, quando nem um criador como João Falcão, tão apto a perseguir achados poéticos dentro da hegemonia da linguagem midiática, consegue se manter em atividade na cidade, que espaço terão encenadores dispostos a mergulhos mais profundos na complexidade dessa arte? Quando o Recife poderá assistir a um novo trabalho de João Denys, por exemplo? Por quanto tempo a Cia. Teatro de Seraphim, de Antônio Cadengue, resistirá à falta de apoio? Se um grupo, com um histórico tão significativo não consegue um patrocínio que lhe assegure um mínimo de tranqüilidade para trabalhar, pode-se imaginar o desamparo enfrentado por tentativas sérias, de grupos iniciantes, como as investigações brechtianas do Tróia de Taipa, liderado por Quiércles Santana. Que cidade pode desperdiçar o saber de um mestre como Rubem Rocha Filho? Será que o virtuosismo de Antônio Carlos Nóbrega somente será visto por aqui em curtíssimas temporadas? Como preservar o entusiasmo de Roberto Lúcio, um diretor cujo talento tem inspirado toda uma vibrante geração de jovens artistas? Lamentavelmente, as elites recifenses não parecem entender que essas e tantas outras perguntas sobre o futuro desse precioso patrimônio cultural estão prioritariamente a elas endereçadas. Pois, ao se afastarem do teatro local, supostamente por não encontrarem aqui produtos que atendam às suas demandas estéticas – argumento que precisa ser ouvido e interpretado com toda a atenção, em vez de ser menosprezado pela arrogância de alguns membros da classe teatral da cidade –, esses setores mais privilegiados se recolocam paradoxalmente em uma posição de colônia: mostram-se incapazes de fomentar em sua própria região uma atividade cultural que reconhecem em outras comunidades como sinal de desenvolvimento. • Luís Augusto Reis é jornalista e professor de teatro. Continente agosto 2003
Âť
46 CINEMA Foto: Andreas Neubauer
Continente agosto 2003
CINEMA 47 » Foto: Divulgação
Na página anterior, o cineasta alemão Wim Wenders Cena do filme The Soul of a Man
Blues
A melhor tradução da América
Depois de Buena Vista Social Club, Wim Wenders resgata três músicos desconhecidos do blues Kleber Mendonça Filho, de Cannes Enviado especial Continente agosto 2003
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48 CINEMA
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Foto: Reprodução
á sete anos, Martin Scorsese convidou Wim Wenders para participar de um projeto seu intitulado The Blues. Wenders, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1984 pelo blues em forma de filme, Paris, Texas, aceitou o convite do diretor de Taxi Driver, um filme que também traduz a alma do blues, talvez mais duro e urbano, e que levou da mesma forma a Palma de Ouro em Cannes (em 1976). O projeto de Scorsese chega em 2003, precisamente no ano do centenário do blues, e prevê mais seis filmes de diretores diferentes. O próprio Scorsese dirige From Mali to Mississipi(De Mali ao Mississipi), Mike Figgis fez Red, White and Blues (Vermelho, Branco e Azul), Clint Eastwood Piano Blues, Charles Burnett Warming By The Devil´s Fire (Aquecendo-sse Junto ao Fogo do Diabo), Marc Levin Godfathers and Sons (Padrinhos e Filhos) e Richard Pearce The Road to Memphis (A Estrada Para Memphis). A série, impressionista e iconoclasta, apresenta visões pessoais do blues, música tida como raiz e cuja influência é reconhecida hoje no rock, rap e hip-hhop. O projeto The Blues representa espécie de “festival virtual de blues”, com caixas especiais de CDs (o som da série completa) e DVDs (os seis documentários, mais farto material suplementar) que serão lançados ainda este ano. Um livro publicado pela Harper Collins também integra o pacote. O lançamento oficial no último Festival de Cannes apresentou o primeiro filme, o adequadamente triste e sempre fascinante The Soul of a Man (A Alma de um Homem), dirigido por Wenders. O convite de Scorsese parece perfeitamente sintonizado com o interesse pessoal de Wenders, não apenas pela música, mas também pela cultura americana que ele observa, cita e reprocessa no seu cinema (um dos seus curtas de faculdade chama-sse 3 LPs Americanos). Em Cannes, Wenders afirmou que “há mais verdade num blues do que em qualquer livro ou filme que eu já li ou vi sobre os Estados Unidos”. Apresentando uma força de expressão que tem estado ausente nos seus últimos filmes de ficção, Wenders aos poucos nos apresenta três artistas que ele considera heróis, os três mortos há mais de 30 anos: Skip James, nascido no Mississipi em 1902. Faleceu de câncer em 1969 depois de ser tirado do hospital em 1964, já doente, para participar do Festival de Newport, onde foi redescoberto. Até então, era uma lenda perdida, conhecido por uma série de gravações realizadas para a Paramount em 1931. JB Lenoir, também do Mississipi (nasceu em 1929), faleceu em 1967 – na época, como lavador de pratos. Gravou muita coisa nos anos 50 e 60, quando cantou a luta pelos direitos civis e a Guerra do Vietnã. Morreu pobre, em casa, via hemorragia interna mal-aadministrada em hospital público, depois de um acidente de automóvel. Blind Willie Johnson, natural do Texas, era cego (daí seu apelido blind) e usou o blues como meio para divulgar sua fé religiosa. Como muitos músicos na época da Depressão, tocou na rua e ganhou a vida assim. Em 1927, gravou muita coisa para a gravadora Atlantic, muitos dos quais tornaram-sse clássicos como The Soul of a Man e Dark Was The Night. Wenders confunde corajosamente a bagagem que o espectador tem de “documentário”, gênero supostamente montado a partir de verdades. Ele fabricou parcialmente evidências e criou “material de arquivo” utilizando uma câmera de manivela original dos anos 20, e o efeito é desconcertante. Foi durante o Festival de Cannes, no Hotel Gray Albion, que Wim Wenders, 58 anos, concedeu esta entrevista sobre cinema, música e a trinca de artistas que ele quis resgatar.
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Há algo de espiritual no blues? Isso é bem interessante, porque desde o início que o blues tem uma dualidade. Por um lado, é imediato, fala do dia a dia, dos problemas e da dureza pela qual passa o homem, do sofrimento físico e emocional. Por outro lado, é uma música que traz a mais pura expressão da esperança humana, da fé e da crença em Jesus. O blues sempre esteve dividido ao meio dessa forma. Blind Willie Johnson dedicou-se inteiramente à mensagem religiosa. Skip James cantou essa dureza que o cercava até que um dia parou e tocou apenas música de igreja durante os 30 anos seguintes. JB Lenoir, principalmente nos últimos anos de vida, observou o seu lado espiritual. Há mesmo uma transcendência espiritual no blues que está no filme, e que é um dos motivos principais que me estimularam a realizar esse trabalho. O blues é também universal e sua linguagem é facilmente captada em qualquer lugar. De qualquer forma, não é necessário ter the blues (melancolia, tristeza) para ouvir blues. Por ser tão do coração e ser tão básico e direto, acho que funciona também para que você se livre da tristeza. Como o projeto lhe atraiu? Eu conheço a música de JB desde 1968, e Skip desde 1964. Eles sempre estiveram presentes na minha vida, próximos demais do meu coração, fizeram o tipo de música que eu amo. Mesmo assim, nunca realmente tinha pensado em fazer um filme sobre essa música. A sugestão de fazer um filme sobre blues veio de Martin Scorsese. Buena Vista Social Club nem tinha sido lançado ainda quando Martin me ligou e disse: “Eu estou com uma idéia, se vier a Nova York, vamos
nos encontrar para podermos discutir algo”. A idéia era juntar um grupo de diretores para montar um caleidoscópio da história do blues, cada um filmaria um personagem ou tema. Martin, claro, achava que esses diretores deveriam ser fãs do blues. Ele não teve que torcer meu braço para que eu aceitasse, ele inclusive sabia que eu amava o blues. Nesse momento inicial, quando ele sugeriu a idéia, eu imediatamente disse “pode contar comigo”, pois vi a oportunidade de mostrar ao mundo esses meus heróis, que permaneciam totalmente obscuros. Martin, na verdade, os conhecia, mas muita gente boa com quem conversei mais tarde, e os informei que faria um filme sobre Skip James e JB Lenoir, respondiam com um sonoro “JB, quem?!” São artistas que nunca tiveram reconhecimento. Por que eles nunca foram reconhecidos? O melhor material de JB Lenoir nunca foi lançado nos Estados Unidos. Suas músicas sobre o Movimento dos Direitos Civis e a Guerra do Vietnã ficaram inéditas. A mesma coisa com Skip James, o impacto da obra dele na história do blues é enorme. O estilo de tocar (guitarra) exerceu grande influência em muita gente. O filme parece ter um crescendo de tristeza ao nos narrar a história desses artistas e da música que produziam. Essas pessoas viveram vidas tristes, com finais especialmente tristes. Eu nem abordei a forma como Blind Willie Johnson morreu, pois foi ainda mais triste. Como está registrado no filme, Blind Willie nunca se importou muito com a carreira e continuou tocando na rua, nas
Fotos: Divulgação
Na página anterior, o cineasta norteamericano Martin Scorsese, autor do projeto The Blues Ao lado, cenas do filme Buena Vista Social Club
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A atriz Nastassia Kinsky, em cena de Paris Texas, dirigido por Wim Wenders, Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1984. Um filme de estrada que tem muito do espírito do blues
esquinas. Ele morava numa casa muito pobre e, no início dos anos 40, um furacão destruiu a casa. Ele ficou sem teto, pegou pneumonia, não foi aceito nos hospitais, por ser negro e não ter nenhum dinheiro, morreu dias depois, no meio da rua. Essa é a história mais triste de todas as histórias tristes que eu tinha em mãos. JB Lenoir morreu como lavador de pratos. O destino deles foi miserável e é fascinante ouvir a música que foram capazes de fazer e perceber que isso realmente sobrevive. Skip James era consciente da sua condição, entendia perfeitamente o fato de ser pobre e de que morreria sem reconhecimento. De qualquer forma, ele sabia que precisava fazer algo de importante e que a sua música sobreviveria. Continente agosto 2003
Esses três artistas o impressionaram mais do que tantos outros? Talvez a qualidade emocional da música que fizeram, talvez a o estilo vocal deles, no caso de JB Lenoir, a primeira vez que o ouvi foi uma experiência emocionante, já que nunca tinha ouvido ninguém cantar daquele jeito. Skip James também se destaca em qualquer grupo de artistas talentosos. Talvez a complexidade das músicas e acho que, principalmente o fato de serem músicos que realmente só cantavam suas próprias músicas, eram verdadeiros cantores-compositores e totalmente avant-garde nas épocas em que viveram. Se você ouvir Blind Willie numa gravação de 1927, poderá observar que o som tem muito do que se faz atualmente no rap, por exemplo.
Foto: Reprodução/AE
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Parece ter sido gravado um ano atrás. É uma música corajosa. JB, por exemplo, tem uma música, um réquiem dos anos 50, onde ele reclama atenção do então presidente Eisenhower para o sistema fiscal injusto, ou sobre a Guerra da Coréia. Sobre a estrutura do filme, como surgiu a idéia de mesclar ficção, documentário, ficção travestida de registro e música? Esses meus heróis estão mortos e a escassez de material documental sobre eles me fez pensar em saídas como essas para o filme. Veja o caso de Blind Willie: não há uma única fotografia disponível dele. Eu não tenho a mínima idéia de como ele era. Skip James foi registrado na sua redescoberta em 1964, mas quando ele realizou as sessões de estúdio em 1931, não há nada, fotografias, imagens em movimento, nada. Portanto, quando parti para fazer um filme sobre esses homens, sabia desde o início que teria essa carência. Por eu não querer “pregar” o blues para os que já conheciam e amavam o blues, mas sim querer trazer esses artistas para toda uma nova geração que não os conhecia, achei que seria importante mostrar essa música reinterpretada por gente que esse público jovem conhece bem. É muito importante que Beck esteja no filme com Nick Cave, Lou Reed ou Cassandra Wilson. Sabia, também, desde o início, que teria que ir para frente e para trás no tempo, com músicos de hoje, assim como voltar e mostrar o período que gerou essas músicas, os anos 20 e 30, ou os anos 60, no caso de JB Lenoir. Acho que descobri o enfoque durante as filmagens, bem no início, quando tivemos um registro particularmente longo no Mississipi e encontrei pessoas que conheceram esses homens nos anos 50, até mesmo nos anos 30. Depois que filmei tantas entrevistas, percebi que não era aquele tipo de filme que queria fazer. Era um formato convencional demais e queria deixar a música brilhar ao máximo. Num golpe de sorte, que ainda me impressiona muito, encontramos aquele material feito pelo casal de suecos. Como eles foram descobertos? Tínhamos pesquisado junto a cada fã, crítico e espaço dedicado ao blues nos Estados Unidos, por imaginar que alguém pudesse ter uma fotografia que fosse, talvez até filmado alguma coisa. Nada apareceu até que, um dia, nós descobrimos esse casal. Os dois filmes caseiros que eles tinham feito, em 16mm, estavam na prateleira, eles nunca haviam exibido essas imagens. Foi necessário recuperar as imagens? Não tanto as imagens, mas muito trabalho foi feito para restaurar o som. O primeiro filme, 10 minutos a cores, foi infelizmente gravado num sistema de som totalmente obsoleto que dependia unicamente de uma trilha ótica. Daí que não sobrou praticamente nada dessa trilha, não dava nem para adivinhar a música ou o que eles estavam falando, era inaudível. Daí, partimos para achar interpretações ao vivo das mesmas músicas que pudéssemos sincronizar com as imagens de JB cantando e tocando no filme. Isso só foi possível com um tratamento digital da imagem, roubando fotogramas aqui, inserindo fotogramas ali. Quando descobri esse material, comecei a, de fato, sonhar com a possibilidade de fazer um outro filme e brincar com a idéia de que, “se não tem material, eu vou fazer esse material eu mesmo”. Especialmente pelo fato de ninguém realmente saber como eram fisicamente Skip e Blind Willie. Encontrei dois guitarristas que pudessem fazer playback diante da câmera e filmamos interpretações “dubladas,” de gravações feitas nos anos 20 e Continente agosto 2003
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30. Esse material foi feito com uma câmera de manivela que achamos em Berlim, também dos anos 20. Foi necessário aprender a usar essa câmera, mas o visual realmente se casa perfeitamente com aquele som arranhado das gravações originais. É engraçado porque as pessoas vêem o filme e realmente pensam que nós desenterramos essas imagens raras! Não percebem que foi tudo refeito. O grupo de diretores envolvidos no projeto chegou a discutir enfoques e temáticas? Nunca nos encontramos nem nos cruzamos. Clint Eastwood ainda está filmando, Scorsese já está na pós-produção. Charles Burnette chegou perto e filmou na mesma região do Mississipi onde estive. Martin, que é produtor executivo, certificou-se de que não haveria choques. O acordo geral é que todos utilizariam tecnologia digital (DVCam sistema Pal). Já vi quatro filmes prontos, os de Mike Figgis, Richard Pearce e Marc Levin, são todos diferentes um do outro. O Buena Vista é o documentário de maior público já lançado no Brasil. Tiros em Columbine também deverá seguir carreira vitoriosa. Esse boom na popularidade de documentários pode ser creditado à tecnologia digital? Sem sombra de dúvida. Esses dois filmes não poderiam ter sido feitos com câmeras de cinema. Essa tecnologia traz de volta o documentário e o põe no mapa do público novamente. The Soul of a Man já será lançado nos cinemas da Itália, algo impensável alguns anos atrás. Quando fizemos Buena Vista, não achamos que teríamos grandes chances de lançá-lo nas salas. Era tão claro isso, até porque o último documentário sobre música que se saiu bem comercialmente foi Woodstock, em 1970. Qual o seu objetivo com The Soul of a Man? Abrir os ouvidos de todos os que gostam de música hoje, seja rock, pop, rap ou hip hop, para que entendam exatamente a origem de tudo isso. É importante que as pessoas percebam que a música ouvida agora tem suas raízes no delta do Mississipi, no sul dos Estados Unidos. O Sr. participou das sessões com os artistas que reinterpretaram Blind Willie, Lenoir e Skip James? Sim, eu os escolhi e filmei-os pessoalmente. Envolvi-me também na mixagem das faixas. Cassandra Wilson, cantando a música do Vietnã, para mim foi o ponto alto. Bateu em mim o quanto a música era atual. Lou Reed foi extraordinário porque ele escolheu a única música “pra cima” que Skip James compôs, e a gravação foi cheia de energia com Lou feliz e rindo o tempo todo. O outro que eu destacaria é Beck, que interpretou a mesma música inúmeras vezes e, a cada vez, era uma versão totalmente diferente da outra, com guitarras e violões bem distintos. É possível separar a música do seu cinema? Não. Eu fiz os filmes que faço por causa do meu amor pela música. A segunda fala do meu primeiro longa era dedicada ao The Kinks. O Continente agosto 2003
Foto: Reprodução
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Howlin’ Wolf and Band, que está presente no projeto The Blues, composto de sete filmes dirigidos por Scorsese, Mike Figgis, Clint Eastwood, Charles Burnett, Marc Levin, Richard Pearce e Wenders
filme foi realizado no fim da faculdade de cinema, chama-se Summer in the City e o título foi tirado de uma música da banda Loving Spoonful.
deverei filmar já em julho ou agosto. O título é Don´t Come Knocking (Não Venha Bater à Minha Porta), não quero discutir sobre do que se trata, mas posso dizer que se passa numa família.
Como separa seu trabalho recente em cinema, com filmes ditos musicais, de filmes de ficção? Qual seu próximo projeto não-musical? Chamo esses projetos de meus “filmes B” e realmente estou me preparando para voltar para um “filme A”. Estou novamente trabalhando com Sam Shepard. Embora sejamos grandes amigos, levou muito tempo para tentarmos algo novamente, porque a experiência de Paris, Texas foi tão especial que preferimos não forçar nossa sorte. Mas estamos, há dois anos e meio, trabalhando juntos, o roteiro está nos finalmentes e se tudo der certo
O Sr. vê mais verdade na música do que no cinema? Há muita verdade na música e prova disso é o grupo de artistas cubanos vistos em Buena Vista Social Club. A música nos traz as pessoas, suas vidas, identidades e tradições. O blues é provavelmente uma correção da imagem que muitos têm dos Estados Unidos como nação. Não são apenas arranhacéus, carrões, Hollywood, playmates e histórias em quadrinhos, há também ali o blues. • Kleber Mendonça Filho é jornalista.
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54 ARQUITETURA Fotos: Betânia Uchoa Cavalcanti-Brendle
A arquitetura do povo A Um intrigante universo pictórico de cores e geometrismo a revelar a necessidade da beleza no cotidiano
Betânia Uchoa Cavalcanti-Brendle
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rquitetura pitoresca, ingênua, humilde, kitsch, simples – rótulos que o preconceito de grande parte das elites brasileiras e suas de formações eruditas atribuem à arquitetura popular produzida pelas classes mais modestas da sociedade, ou seja, o povo. No interior da Zona da Mata, Agreste ou Sertão do Nordeste brasileiro descortina-se uma paisagem cultural única, independentemente das fronteiras geográficas, onde as pessoas ainda precisam e querem a beleza no seu cotidiano e onde o deleite estético é saboreado no geometrismo, jogo de cores e na poética das formas que compõem as fachadas de suas casas. Na cidade grande, a massificação inibe a criação, padroniza e bloqueia a produção artística induzindo
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56 ARQUITETURA a reprodução de modelos repetitivos que o consumismo da mídia impõe à população. Viajamos muito pelo interior de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, evitando até certo ponto as cidades grandes e, sempre que possível, as estradas de asfalto. Os exemplos mais notáveis e sublimes os encontramos em localidades difíceis até de se identificar no mapa. Nas pequenas vilas e povoados, sobressai uma característica notável desta arquitetura popular, que ao contrário da erudita, não pre-
tende se destacar do conjunto nem pela escala nem por uma intervenção drástica no meio físico – ela se harmoniza com a paisagem sendo até uma continuação dela. A extrema pobreza do homem nordestino produz uma arquitetura popular onde se exclui tudo que não é estritamente necessário. Entretanto, a casa não é somente um abrigo. A beleza é uma necessidade, e, portanto, funcional. Pobreza não significa mau gosto. Ao contrário, o homem
Na página anterior: cores intensas em fachada de casa em distrito de Pesqueira, Pernambuco Abaixo, releitura modernista em fachada de Vila dos Coqueiros, Bahia Ao lado, pintura inspirada em motivos de festas populares, São Bento do Una, Pernambuco
ARQUITETURA
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A arquitetura popular raramente consta dos inventários oficiais de patrimônio histórico, legado ignorado de um povo que teimosamente reclama seu direito à arte
pobre do interior, orgulhoso, forte, rude, que não freqüentou escolas nem universidades e aprendeu seu ofício na prática e exercício de sua profissão, que longe de ser simples, é muito mais complexo e sábio que o homem de classe média e “alta” dos centros urbanos, desafia a estética formal e desnorteia os acadêmicos e a sociedade oficial ao revelar cruamente seu universo e lógica interior nas fachadas que cria. José Mariano desmistificou o rótulo de simplicidade (sic) atribuído ao homem pobre nordestino ao se autodenominar arquiteto popular, e usou o termo engenharia mental para explicar o processo de criação das fachadas das casas que construiu em Camela, no município de Ipojuca-PE. Muito aprendemos com mestres como Manoel Soares, de Gravatá, quando ele nos afirmou
categoricamente: “Eu desenho é no juízo”, e como José da Silva, pedreiro de Sítio das Palhas-Xucuru, no Agreste pernambucano: “Aqui não carecia a gente desenhar que ninguém entendia, né? Eu ficava desenhando de cabeça”! Como Manoel de Félix, de Uruçu-Mirim-PE: – Quando o senhor vai fazer uma fachada, tira de onde a idéia? – “De mim mesmo”!!! E Arlindo, de Nossa Senhora do Ó-PE: “... não copio nada de ninguém. Minha teoria vem de dentro”. Esses mestres-construtores habitantes de um outro mundo impregnado de criatividade, sabedoria, resistência e repleto de valores, códigos e lógicas não perceptíveis ao homem “erudito”, são raramente considerados artistas. O saber fazer popular é muitas vezes menosprezado e seu resultado visto como Continente agosto 2003
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KwaNdebele Arte de mulher
Entre os Ndebele, grupo étnico que habita no Zimbabwe e África do Sul, as exuberantes fachadas são obras exclusivas de mulheres (território dos povos Ndebele, grupo E métnicoKwaNdebele que habita o Simbabwe e a região do Transvaal, a
nordeste de Pretória, na África do Sul), as famílias moram em complexos habitacionais formados por várias edificações e pátios denominados Umuzi. A fachada da casa principal, o indlu, é a mais importante pois significa o centro e entrada do Umuzi, e nela são concentrados os desenhos e pinturas mais elaboradas. A pintura das fachadas e muros das casas é um privilégio exclusivo das mulheres Ndebele, e uma tradição que ainda sobrevive unicamente porque passa de mãe para filha. As meninas aprendem a arte de pintar ainda crianças e ao atingir a puberdade fazem um estágio de três meses onde aprimoram a
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técnica de pintura e aprendem o trabalho de contas. A pintura é a forte expressão individual da identidade das mulheres e o que diferencia uma mulher das outras é o estilo da pintura, o motivo, a composição e a escolha das cores. Elas dominam a técnica de construir e pintam as casas como confeccionam seus vestidos de contas ou como embelezam seus corpos. A arte para os Ndebele, como para a maioria dos povos africanos, tem um significado mágico-religioso e um caráter cerimonial. Existem dois tipos de pintura: o tradicional (ikghuphu), que usa padrões geométricos, e muitas vezes uma camada superficial de barro misturado com fezes de gado, onde com os dedos elas desenham linhas verticais, horizontais e diagonais; e o moderno, que
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Em Japoatão, Sergipe, singelo elemento decorativo - um coração solitário – sob a antena parabólica
Exemplos da efusão de cores nas fachadas, trabalho para o qual as mulheres se preparam fazendo estágio de três meses, ao atingir a puberdade
utiliza tintas industriais e um design mais complexo, além de elementos abstratos e figurativos. Em contraste com a efusão de cores e formas que criam e de seus exuberantes ornamentos de contas, as mulheres Ndebele, que não possuem quase nenhum contacto com a cultura ocidental, são reservadas. Quando perguntadas sobre a motivação e inspiração de suas pinturas respondem: “Isso eu aprendi com minha mãe” ou, “É a lei das Ndebele”. A arte da pintura das mulheres Ndebele está documentada no ensaio fotográfico de Margareth CourtneyClarke, Südafrika. Die Kunst der Ndebele Frauen, Thames & Hudson, Ltd., London.
um feliz acaso compositivo. Uma vez um colega professor me perguntou: – Você está pesquisando aquelas casinhas kitsch ? (sic) Esses nordestinos, desconhecidos ou anônimos para as pessoas estranhas à comunidade, desvendam seus desejos e aspirações artísticas mais íntimas sem inibições formais nem pictóricas. A entrada de suas pequenas casas é a entrada do vasto pequeno mundo que lhes pertence. Não tente entendê-lo nem decifrá-lo. Permita-se o prazer de gozar esteticamente a cultura popular manifesta na beleza lírica desta arquitetura efêmera de pertubadora volúpia de cores, e na alegria de um inalcançável mundo lúdico que desafia a dura e injusta realidade de sua existência. A casa minúscula de porta-e-janela tem sempre uma platibanda, conhecida no interior como frentão ou frontão. A composição da fachada responde a questões subjetivas do universo cultural do autor. Nela são combinados elementos geométricos, por exemplo, como os encontrados nas decorações de circos e roda-gigantes, carrosséis e botes das festas populares e, os elementos pictóricos figurativos do imaginário, cotidiano, simbolismo e gosto popular – lua, estrelas, conchas, flores, peixes, bichos, frutas, etc. É muito importante diferenciar uma casa das outras e conferir-lhe uma identidade própria. A cor é um elemento fundamental. Há uma tendência de utilização de cores Continente agosto 2003
ARQUITETURA 61 Foto: Fred Cardoso Ayres
O desejo de beleza e a preocupação estética são fenômenos de tradição milenar, comuns a todas as culturas. São inerentes ao ser humano e podem manifestar-se de diferentes formas, padrões geométricos, cores, etc.
fortes e vibrantes e, em muitos casos, a cor é o único elemento decorativo da edificação, sendo sua escolha determinada por razões estéticas, gosto pessoal, associação afetiva e símbolos importantes para o autor ou proprietário, ou ainda, pela situação financeira e disponibilidade de tinta no mercado. O desejo de beleza e a preocupação estética são fenômenos de tradição milenar, comuns a todas as culturas. São inerentes ao ser humano e podem manifestar-se de diferentes formas, pa drões geométricos, cores, etc., impregnando-se nos objetos da vida cotidiana, nos ornatos, nas vivendas, no próprio corpo de povos, como os africanos, os indígenas, etc. O artista-pedreiro-designer e “arquiteto popular” do Nordeste brasileiro é rebelde, despretensioso e puro. Não se limita a copiar a estética formalista dos estilos acadêmicos, não se corrompe esteticamente, como os arquitetos que aderem ao anacronismo reacionário do neo-ecletismo de historicismo fácil, de consumo e de espetáculo de algumas correntes atuais da arquitetura dita pósmoderna, que brincam de projetar utilizando colunas, capitéis,
Na página anterior, Vila Xucuru, Pernambuco: composição com elementos geométricos Acima, surpreendente composição no Sítio Olho D'Água, Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco
frisos e pórticos do passado. Não absorve simplesmente os elementos externos do seu universo, mas os filtra e os reinterpreta contínua, crítica e livremente. A fachada de platibanda, bela em sua essência, está longe portanto de ser uma mimese ou uma repetitiva imitação de símbolos e cores desconhecidos do cotidiano do designer popular nordestino, que com orgulho e sem falsa modéstia, se considera, e é, um artista. Não faço aqui a apologia da casa pobre nem romantizo a pobreza em que vive a maioria dos nordestinos do interior. Pobreza, que gera esta arquitetura, testemunho das diferenças sociais imensas que o Brasil ainda submete ao seu povo. Arquitetura que raramente consta dos inventários oficiais de patrimônio histórico, legado ignorado de um povo que teimosamente reclama seu direito à arte. • Betânia Uchoa Cavalcanti-Brendle é arquiteta e foi coordenadora temática do capítulo Arquitetura Popular no Projeto Brasil – 500 Anos de Arquitetura .
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64 ARTES
Cabe a de Mulata, 1938, têmpera com areia sobre tela, 41 x 32cm
As mulheres e crianças de Portinari O pintor Cândido Portinari
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Exposição no Museu de Arte Moderna antecipa as comemorações do centenário do pintor paulista a serem realizadas em dezembro
ARTES 65 »
À esquerda, Duas Mulheres, 1938, têmpera com areia sobre tela, 181 x 80cm Ao lado, Os Retirantes , 1936, óleo sobre tela, 59 x 72cm Abaixo, Mulher Sentada, 1937, desenho, 50 x 60cm
A
té o dia 14 de setembro, o Museu de Arte Moderna de São Paulo estará exibindo 32 obras de Cândido Portinari, que, segundo o curador Tadeu Chiareli, pertencem a colecionadores, museus e instituições de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Buenos Aires, realizadas entre os anos 30 e 40, um dos melhores períodos da obra do artista. Tadeu Chiarelli selecionou desenhos, óleos sobre tela, têmperas e gravuras em que Portinari retrata a figura feminina em várias situações. Para ele, essas figuras de mulheres e crianças são como alegorias do povo brasileiro, tão importantes quanto os trabalhadores e retirantes que marcaram a consagração do pintor paulista. A exposição é, já, uma das manifestações das comemorações do centenário de Portinari, que será oficialmente celebrado em dezembro próximo. O artista, que durante a vida foi extremamente famoso, passou por um processo de desgaste após sua morte, sendo acusado de ser o artista oficial do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Dentro dessa argumentação, apesar de retratar uma realidade social injusta, não atingia com isso o governo, pelo contrário, favorecia a postura populista do ditador, tendo se beneficiado de encomendas tanto institucionais quanto da burguesia que ele, como comunista, deveria combater.
Este tipo de visão ideológica, embora não possa ser desconsiderado, tem prejudicado a avaliação isenta das obras de autores geniais como Villa-Lobos e, até certo tempo atrás, Gilberto Freyre. João Cândido, filho do artista, que criou o Projeto Portinari, em 1979, espera que agora se faça uma apreciação mais equilibrada da importância do pintor paulista, procurando situar corretamente Portinari na história das artes plásticas brasileiras, destacando sua real importância como continuador e consolidador do movimento modernista brasileiro, e, também, como defensor do compromisso social da arte. Cândido Portinari nasceu em Brodosqui e aos sete anos já fazia seus primeiros desenhos, auxiliando na decoração da Igreja Matriz da cidade paulista. Mudou-se em 1918 para o Rio de Janeiro, onde foi aluno de Lucílio de Albuquerque, Rodolfo Amoedo, Baptista da Costa e Rodolfo Chambelland. Ganhou um prêmio-viagem em 1928, percorrendo a Europa. Em 1935 recebeu o prêmio Carnegie Institute de Pittsburgh. Nos anos seguintes, já no Brasil, produziu várias obras públicas, filiou-se ao Partido Comunista e, em 1956, ganhou notoriedade internacional com o painel Guerra e Paz, na sede da ONU, em Nova York. Portinari morreu em 1962, no Rio de Janeiro, vítima de intoxicação com as tintas que tinham sido a sua razão de viver. • Continente agosto 2003
66 ARTE Foto: Reprodução
Tudo Acaba em Samba, acrílico sobre tela, 2003
O olhar forasteiro de Richard Boike
O
Pintor norte-americano faz sua primeira exposição no MAC
pintor norte-americano Richard Boike está fazendo sua primeira exposição de pinturas. Em seus quadros, ele mistura distorções expressionistas, algo da arte muralista de denúncia social, um pouco de realismo mágico, outro tanto de desolação e metafísica. Suas figuras são seres perdidos, entre cores sombrias, numa paisagem que os exclui. Boike não é o estrangeiro deslumbrado com o exótico, mas sim, incomodado pelo que vê. Os contrastes sociais, dentro do contexto urbano nordestino, são a base de seus temas. “Não é o meu mundo interior que estou querendo expressar”, diz ele. “O mundo ao me redor é que me afeta muito. Morando no subúrbio de Casa Amarela, estou sempre vendo estes seres e estas cenas. Talvez por ter sido criado noutra realidade, acho isso chocante”. Um mural de Diego Rivera, o grande pintor mexicano, existente em Detroit, sua cidade natal, foi, sintomaticamente, a primeira imagem de arte que marcou Boike, quando ainda criança. Continente agosto 2003
Ele começou a desenhar em 1993, quando transformou uma casa funerária numa galeria de arte. No ano seguinte, já casado com a cineasta pernambucana Luci Alcântara, que conheceu em Chicago, veio para o Recife. Aqui, passou do desenho à pintura em 1997, aos 35 anos de idade. Autodidata, Richard Boike é também músico (toca guitarra, baixo, violão, clarinete, harmônica, teclado e percussão), e escreve peças, sendo um dos fundadores do Teatro Oobleck, de Chicago. Também já escreveu diversos roteiros para cinema. Sob o título Alma Nordestina – Olhar Forasteiro, o pintor vai expor 40 telas pintadas com acrílica no MAC, a partir do dia 14. • Exposição Alma Nordestina – Olhar Forasteiro, de Richard Boike Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco - MAC - Rua 13 de Maio, 157, Varadouro – Olinda. Fone: (81) 3429.2587 Vernissage: 14 de Agosto, às 19h30 Até 14 de Setembro.
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68 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
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alvez a mais significativa manifestação da vanguarda racionalista do começo do século 20 seja a arquitetura funcionalista de Le Corbusier e Walter Gropius. Diversamente do que ocorreu no campo da pintura e da escultura – onde o racionalismo é apenas estilístico e metafórico – na arquitetura ele se converte na funcionalidade da obra: a casa é uma “máquina de morar”. Em seus textos teóricos, a partir dos anos 20, Le Corbusier demole as velhas concepções arquitetônicas e urbanísticas ao mesmo tempo em que defende uma nova atitude em face das relações entre a arquitetura e o mundo moderno, tecnológico e dinâmico. O arquiteto deveria libertar-se da visão acadêmica que buscava no passado clássico e neoclássico o exemplo a ser seguido. Isto tudo era velharia, que nada tinha a ver com a nova idade da máquina. Em lugar dos muros espessos, dos cômodos escuros onde o sol não penetrava, da decoração artificiosa, defendia as estruturas ortogonais, leves, claras, abertas à luz solar. Uma arte do presente, da claridade e da saúde. Essas idéias influíram decisivamente sobre a arquitetura daquela época, repercutindo inclusive no Brasil, aonde vem Le Corbusier a convite do governo em 1936. Aqui, esboça um projeto para futura Cidade Universitária (que não foi aceito) e outro para a nova sede do Ministério da Educação e Saúde (hoje, Palácio Gustavo Capanema, no Rio). Oscar Niemeyer, que era, naquela época, um jovem arquiteto recém formado, aceita a lição do grande arquiteto mas modifica o projeto do MES e, poucos anos depois, concebe o conjunto arquitetônico da Pampulha (1942), que mudaria a linguagem da arquitetura do mestre, introduzindo nela a linha curva. Um outro discípulo de Le Corbusier foi um poeta pernambucano – João Cabral de Melo Neto – que adotou aqueles princípios de racionalidade, objetividade e clareza, como a base de sua poética. Mas eis que, em 1950, Le Corbusier – que se extasiara diante das curvas niemyerianas da Pampulha – projeta a Capela de Ronchamp, contrariando tudo o que pregara até ali.
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Ronchamp: o pecado de Le Corbusier Até João Cabral de Melo Neto o condenou no poema Fábula de um Arquiteto
Foto: Reprodução
TRADUZIR-SE 69
Com seu teto negro, curvo e pesado, suspenso por paredes inclinadas, compactas, apenas vazadas por janelas maiores e menores, que mais parecem cavadas num muro medieval, a Capela de Ronchamp chocou os leigos e enfureceu os fiéis seguidores do mestre racionalista. Alguns, por razões estéticas, consideraram-se traídos em sua fé funcionalista, outros, por razões ideológicas, se sentiram traídos em seu agnosticismo. Corbusier praticara uma dupla heresia, como arquiteto e como ateu. Não foi ele que, ao ser convidado, pela primeira vez, a projetar a capela de Ronchamp, respondera: “Não posso construir para uma célula morta da sociedade”? Michel Ragon, em Le Livre de l’Architecture Moderne, parte desta resposta de Le Corbusier para afirmar que “sem fé na obra realizada, não pode haver grande obra”, acrescentando que, como a maioria dos arquitetos que constróem igrejas modernas não são católicos, essas igrejas parecem mais maquetes, cópias, ou mesmo, hangares. “A catedral é uma expressão da Idade Média, como o castelo é uma expressão da Renascença. A expressão de nossa época é antes a usina, a represa, o arranha-céu. Também a Unidade de Habitação Le Corbusier, em Marselha, está mais perto do espírito das catedrais que sua capela de Ronchamp”. Mas a crítica severa desta obra de Le Corbusier foi feita por Giulio Carlo Argan, o grande crítico italiano de arte e arquitetura. Pergunta que significa, na coerência interna da obra do arquiteto, esta construção tão diferente de todas as obras, que tem teto barroco e paredes lisas semeadas de janelas, no estilo que lembra o Neoplasticismo de Mondrian do tempo do Broadway Boogie Woogie. E eis que essas janelas se transformam em seteiras e parede cândida adquire a aparência de uma fortaleza. Para suprir a religiosidade que a capela não possui, o arquiteto lança mão de um recurso cenográfico: uma luz vermelha incandescente envolve o altarmor. E conclui: “O erro de Le Corbusier é ter simulado uma fé que não tem. A igreja hoje será lugar de reunião e recolhimento, não um meio para exortar ao êxtase, com a ajuda de um bem calculado
efeito de luz e de perspectiva cenográfica de planos e volumes”, afirma Argan. Trata-se de uma questão de princípio, que o crítico defende em face da “incoerência” do arquiteto. Já de minha parte, não vejo por que um artista deve submeter-se à coerência de sua própria obra, uma vez que isto o impediria de tentar novos caminhos e manter ativa sua criatividade. Esta opção é do artista, que pode adotá-la, como Morandi, ou desconsiderá-la, como Picasso. O que importa é a qualidade do que ele faz. Outra condenação a Le Corbusier, pelo mau passo, partiu do poeta João Cabral, que se sentiu traído em sua fé corbusiana. Foi ela que lhe possibilitara escrever os versos do célebre poema O engenheiro: “O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água.” De fato, as idéias do arquiteto haviam mudado o rumo da poesia de Cabral que, ao conhecê-las, trocou o surrealismo irracionalista pela objetividade racionalista que lhe marcaria a obra, a partir de então. Sua crítica se manifesta no poema Fábula de um arquiteto, do livro Educação pela Pedra, onde diz que Le Corbusier “renegou dar a viver no claro e aberto” / “até refechar o homem: na capela útero”. Se o leitor for ler (ou reler) o poema de João Cabral, verificará que, como a capela que ele condena, também está longe da límpida racionalidade que o arquiteto pregava e que o poeta praticou no poema O Engenheiro, a que me referi acima. A Fábula de um arquiteto é um poema de sintaxe difícil, caprichosa, que lembra o estilo gongórico ou barroco. Verifica-se, assim, que como o arquiteto, o poeta também mudara de estilo, mas sem o perceber. De qualquer modo, o impasse a que o racionalismo conduziu a arquitetura teve solução mais simples que aqueles com se defrontou a pintura: é que na arquitetura – arte essencialmente abstrata – prepondera a funcionalidade, enquanto na pintura – arte essencialmente figurativa – prepondera a representação do imaginário, que o racionalismo repele. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.
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70 MEMÓRIA Fotos: Hans Manteuffel / Acervo Fundação Joaquim Nabuco
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MEMÓRIA 71 »
Vitalino Vida feita de barro
Há 40 anos, morria o mestre da escultura do barro, que somente tomou conhecimento do valor de sua obra pelo olhar do Outro Homero Fonseca
Vitalino em trabalho: brincadeira Na página ao lado, Boi – marca registrada
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a edição de 1º de fevereiro de 1963, a revista Time publicou uma página com a notícia da morte de um artista plástico brasileiro. Raramente um conterrâneo obteve tamanha deferência da prestigiosa publicação americana. Era o necrológio de Vitalino Pereira dos Santos, nascido num distrito de Caruaru em 10 de julho de 1909 e morto a 20 de janeiro daquele ano. Quando criança, brinquei em vaquejadas imaginárias com os bois de barro esculpidos por ele. A cada semana, eu e minha turma repúnhamos o estoque de peças destroçadas no rude esporte, adquirindo, baratinho, nova boiada nos tabuleiros da feira. Não tínhamos, naturalmente, a menor consciência da dimensão da arte do Mestre Vitalino. Como ele próprio não tinha. Já era famoso mas levava a vida como uma brincadeira. No fundo, não compreendia muito bem o valor (financeiro e simbólico) daquilo que fazia com as mãos a partir do barro apanhado às margens do rio Ipojuca. Ele se considerava um artista, sim: um músico. Era no pífano – que tocava em festas, novenas, bares, quintais – que se realizava como artista. Ele tomou conhecimento da importância de sua obra através do Outro: intelectuais, jornalistas, críticos, personalidades do mundo exterior ao seu. Vitalino foi um típico “artista popular”. Nascido de uma família humilde, ligada à roça, aprendeu com a mãe, artesã de cerâmica utilitária, a manejar a argila, dando forma a pequenos bichos, chamados “loiça de brincadeira”. Todo o sábado, ia com a mãe e os irmãos do Alto do Moura para a feira, então nas ruas do centro de Caruaru, e ganhava uns trocados venContinente agosto 2003
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72 MEMÓRIA
Nos Museus Castro Maya, os bonecos de Vitalino estão alinhados ao lado de obras de Picasso, Matisse, Portinari, da escultura indiana de Tandjava e das pinturas chinesas da época K’ien Lung dendo seus bonecos. Logo evoluiu e passou a criar figuras e cenas do cotidiano rural nordestino, ganhando notoriedade a partir de sua “descoberta” pelo artista plástico e divulgador de arte Augusto Rodrigues. Durante mais de quatro décadas, produziu milhares de peças abrangendo mais de 130 temas: animais (bois, cavalos, cachorros, onças, bodes, porcos), cangaceiros, bêbados, vaqueiros, lavradores, lobisomens, violeiros, o Diabo. E cenas que representam um formidável painel antropológico das comunidades interioranas: do chamado “ciclo da vida” (nascimento, casamento, morte) a procissões, vaquejadas, lavradores na roça, brigas de foice, prisão de ladrões de galinha, retirantes da seca. Já maduro, refletindo sua interação inevitável com o mundo urbano, retratou dentistas, advogados, fotógrafos em ação, cirurgiões operando, locutores de rádio. Foi um extraordinário cronista do cotidiano popular, modelando no barro os símbolos, valores, preconceitos e sentimentos da gente pobre do Nordeste.
Como explicou o antropólogo René Ribeiro, em Vitalino – um Ceramista Popular do Nordeste (Fundação Joaquim Nabuco, 1972): “Ele não capta somente o seu mundo e o transporta ao barro. Ele veicula, pela intencionalidade das suas composições, pelo efeito de certos artifícios de atitude e de exagero de peculiaridades, ou ainda através do conteúdo de suas histórias, os valores desse mundo – estéticos, econômicos, sociais, morais, religiosos”. Inicialmente, pintava suas peças com cores sóbrias e dramáticas, abandonando as tintas em sua fase final, quando as peças passaram a ostentar a cor natural do barro – alguns estudiosos consideram haver sido uma imposição do mercado, dos meios cultos empenhados em “preservar a pureza da arte popular”. Por falar em arte popular, a antropóloga Lélia Coelho Frota (Bonecos de Vitalino – uma Abordagem Antropológica, Fundação PróMemória/Museus Castro Maya, 1986), superando a discussão meio bizantina sobre os limites entre o erudito e o popular, lembra que, significativamente, naquele museu do Rio os bonecos de Vitalino estão alinhados ao lado de obras de Picasso, Matisse,
MEMÓRIA 73 » Lampião e Maria Bonita: cores sóbrias e dramáticas Na página ao lado (alto): Casamento – crônica do cotidiano Embaixo: Casa de Farinha – retratando seu mundo
Portinari e da escultura indiana de Tandjava e das pinturas chinesas da época K'ien Lung. Assim como em muitas outras instituições brasileiras e no estrangeiro. O escritor João Condé contou que, em 1952, compareceu a uma recepção na casa da segunda ex-mulher de Picasso, em Paris, e lá encontrou, nos salões apinhados de valiosas obras de arte, uma escultura isolada, sobre uma coluna de granito e iluminada por um foco de luz vindo do teto: um boi de Vitalino. (Em 1987, em Nova Orleans, vi uma peça do mestre do Alto do Moura no Museu do Vodu! Mas isso é outra história.) Para Lélia Coelho Frota, Vitalino era um artista com linguagem própria, se auto-expressando com maestria na criação das cenas rústicas do seu mundo social. Antes e depois da fama, Vitalino era um homem do Agreste nordestino: analfabeto, devoto do padre Cícero, pai de seis filhos vivos, conversador cheio de verve, adepto da cachaça e de jogar sueca com amigos. Ingênuo e esperto, sempre bem-humorado (bom humor presente em muitas de suas esculturas), invariavelmente trajando paletó de brim, alpercatas de couro e chapéu, o bonequeiro emergiu do anonimato para a glória em 1947, quando a exposição Cerâmica Popular Pernambucana foi levada ao Rio de Janeiro por Augusto Rodrigues. O artista caiu no gosto das elites e, desde então, virou notícia na imprensa nacional e passou a ser atração turística na feira de Caruaru. Em outubro de 1960, uma caravana de artistas populares pernambucanos, cujo maior expoente era o mestre da cerâmica, é levada ao Rio. O pesquisador Paulino Cabral de Melo, autor de Vitalino sem barro: o homem (Fundação Assis Chateaubriand/Ministério da Cultura, 1995), a mais exaustiva das poucas obras escritas sobre ele, narra com melancolia a maratona em que, quase como um obscuro objeto do desejo da burguesia, Vitalino é levado aos salões chiques da antiga capital, participa de jantares e recepção em que foram leiloadas 16 de suas peças, confraterniza com Manuel Bandeira, Jorge Amado, Ivo Pitangui, Ari Barroso (o leiloeiro) e outras Continente agosto 2003
Acima: Retirantes – um dos 130 temas Abaixo: Sanfoneiro
figuras, é apresentado a governador, prefeito, empresários e artistas, recebe condecoração, conhece o Maracanã, grava programa de televisão, visita a Embaixada dos Estados Unidos e a Academia Brasileira de Letras. Voltou para Caruaru trazendo na bagagem nenhum tostão, os rapapés fortuitos concedidos às celebridades, uma cobertura de imprensa com forte viés folclórico e – importante – a gravação do seu único disco tocando pífano com banda na Rádio MEC, lançado em 1975 (Vitalino e sua Zabumba/ MEC). Depois disso, esteve em Brasília (abril de 1961), onde tocou pífano em festas populares, participou de oficinas de cerâmica, visitou o Palácio do Planalto e concedeu entrevistas, e foi levado a São Paulo (outubro de 1962) para um evento patrocinado por uma companhia de aviação. Três meses depois, morreu em sua modesta casa no Alto do Moura. Estava decadente, Continente agosto 2003
praticamente não produzia, limitando-se a assinar peças feitas pelos filhos, entregue ao alcoolismo. O homem, cuja casa virou museu, que foi protagonista de documentário e de peça de teatro (Auto das 7 Luas de Barro, de Vital Santos), personagem de folheto (Biografia de Mestre Vitalino, de José Severino Cristóvão), tema de desfile de escola de samba do Rio (Império da Tijuca, 1977), cujas peças circularam pelos museus mais importantes da Europa e dos Estados Unidos e podem valer hoje até R$ 10.000,00, morreu de malária, doença típica do subdesenvolvimento. Pobre (mas não miserável como insinuam as abordagens sentimentalistas), foi vítima da ignorância: recusou-se a receber cuidados médicos e foi entregue a um curandeiro. Quando a notícia de sua agonia chegou à cidade, o médico João Miranda acorreu à sua casa, mas era tarde demais. Paulino Cabral de Melo dá a explicação definitiva: “Vitalino morreu de Brasil”. •
RÁDIO 75 » Foto:Passarinho/UFPE
No ar, Café Colombo Há um ano, a Universitária FM transmite programa sobre livros e idéias, na contramão da vulgaridade e do mau gosto imperantes no rádio
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odo domingo, a partir das 14 horas, vai ao ar, pelas ondas hertzianas, um duelo desigual: de um lado, Egüinha Pocotó, MC Pelé, Banda Calipso e quejandos e, do outro, João Cabral, Shakespeare, Nelson Rodrigues. No deserto da nossa radiofonia, onde o mau gosto é feito de infinitos areais, um programa produzido por quatro estudantes é um oásis de qualidade. É o Café Colombo – O seu programa de livros e idéias, transmitido pela Rádio Universitária FM 99,9Mhz e que este mês completa um ano, numa iniciativa infelizmente rara no país. Renato Lima, Marcelo Sandes, Ketinaldo José e Marcelo Correia (os três primeiros, estudantes de Comunicação Social, o último, de Administração), com idades entre 20 e 22 anos, identificam-se como “quatro amigos que gostam muito de livros”. Inspirados no Certas Palavras, de Claudiney Ferreira, na CBN, confessam que sempre tiveram a preocupação de fazer “um programa sobre livros que não fosse chato”. Prepararam um piloto, em julho do ano passado, definindo as sessões, a trilha sonora (toda em jazz), as vinhetas e caíram em campo. Conseguiram dois patrocinadores – um deles, a Faculdade Guararapes (permanece) – e, no mês seguinte, estrearam na emissora da Universidade Federal de Pernambuco. O programa, apresentado por Renato Lima e Marcelo Sandes, é dividido em quatro partes. A primeira é
O programa só deixou de ir ao ar uma vez: no domingo de carnaval
a sessão Livros da Semana, abordando os lançamentos. Depois vem Minha Leitura (uma personalidade recomenda uma obra) alternada com a Nossa Leitura (quando um dos produtores resenha um livro). Depois há uma reportagem, que pode ser sobre o mercado editorial ou um flash de uma entrevista menor, seguida da agenda cultural da semana no Recife e, por fim, o ponto alto, uma entrevista com um autor, um crítico ou uma personalidade que tenha idéias a discutir. Além de livros, o programa abordou temas, como os 100 dias do governo Lula, integração comercial Mercosul-União Européia, segurança pública, política cultural, jornalismo, o mercado editorial de Pernambuco, a Coréia do Norte, futebol, economia, história e charge. No primeiro ano de existência, deixou de ir ao ar apenas uma vez: no domingo de Carnaval. Os garotos se orgulham da cobertura, ao vivo (quatro boletins diários), da XI Bienal do Livro, no Rio, e contabilizam um incidente político: “para entrevistar o ex-embaixador dos EUA Lincoln Gordon fomos a um almoço organizado por empresários locais e, por conta disso, quase somos ‘trucidados’ pela esquerda universitária por termos almoçado com o homem do golpe de 64”. “O nome do programa – contam – é inspirado na Confeitaria Colombo, do RJ, que reunia intelectuais e políticos debatendo vários assuntos. Era esse clima de conversa, de alto nível mas sem formalismo, que queríamos resgatar. Ou transpor para a rádio”. Isso sem dúvida eles conseguiram. Quanto à questão crucial da audiência, eles argumentam que embora a rádio não compre pesquisa do Ibope, o feedback direto de ouvintes é expressivo, assim como o fato de o programa ser dos mais comentados na mídia impressa local. Fica a indagação: quem vai vencer o duelo? Cabe a você, leitor-ouvinte, decidir, com o dedo no dial: vencerá a egüinha pocotó ou o cão sem plumas? (H.F.) • Continente agosto 2003
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Foto: Corbis
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Reality shows: muito alテゥm do voyeurismo Apesar de apresentar um conjunto de formatos jテ。 consolidados pela TV, o mundo televisivo garante aos reality shows uma longevidade quase certa Rodrigo Carrero
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esde meados do ano de 2001, quando o sucesso inesperado da Casa dos Artistas (SBT) alavancou o reality show à condição de grande estrela renovadora da mídia televisiva, a morte desse novo gênero vem sendo cantada em prosa e verso. As previsões dos arautos da mídia, contudo, permanecem distante da realidade. O mais recente produto daquilo que o filósofo francês Jean Baudrillard chamaria de télévision-vérité foi nomeado O Jogo e exibido pela Rede Globo, nas noites de terça-feira. A audiência, estacionada na faixa dos 15 pontos, esteve decepcionante – o Big Brother Brasil atingia quase quatro vezes esse total, em dias de eliminação de candidatos. Pouco importa. Enquanto uma das dezenas de programas do gênero fracassa, outro produz celebridades instantâneas. De uma forma ou de outra, o mundo efêmero da televisão continua garantindo aos reality shows uma longevidade quase certa.
A capacidade aparentemente infinita de adaptação que o gênero apresenta – uma fórmula global facilmente adaptável às peculiaridades de cada cultura – é apontada, pelo doutor em Filosofia, uruguaio, Fernando Andacht Torres, professor-visitante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de um livro que esmiúça o fenômeno dos reality shows, como uma das maiores causas do sucesso maciço dos programas. “Esse é um produto que se encaixa na definição de glocal. Esse termo (união das palavras ‘global’ e ‘local’), cunhado pelo sociólogo Ronald Robertson, fala de um processo de hibridização curioso e produtivo entre uma prática mundializada e globalizante, como o Big Brother, e sua assimilação local”, reflete Andacht Torres. Qual a razão do sucesso e da durabilidade de um tipo de programa tão criticado dentro dos círculos mais letrados? Andacht Torres arrisca iniciar uma resposta complexa para o problema: “O reality show está escrevendo uma nova página na TV Continente Continente agosto julho 2003 2003
78 TELEVISÃO
O programa reúne formatos fundados no folhetim, no jogo, na performance, na transmissão direta e no voyeurismo comercial do Brasil. Os altos índices de audiência alcançados deixam claro que, apesar dos protestos, reclamações, queixas, manifestos e outras formas de repúdio intelectual, o público brasileiro (jovens, adultos, homens e mulheres, sem distinção) percebeu que havia, na proposta desse tipo de programa, algo que não era a ficção clássica, a novela das 20h ou o talk show. Há uma mescla de gêneros já conhecidos dos telespectadores, que gera um efeito explosivo e novo”, analisa. Embora não negue o impacto exercido pelo sucesso do reality show na televisão brasileira, o professor e jornalista, especializado na crítica de TV, Gabriel Priolli prefere atribuir o sucesso desse tipo de atração a uma operação muito cara – e certamente atraente – exercida pela maioria dos programas. “O que dá interesse ao reality show, a meu ver, é a transformação de anônimos em personagens. É a eleição de ‘gente como a gente’ à categoria de astros da TV. É a familiaridade, a banalidade, o fato de tudo ser absolutamente comum e normal, como é a vida real. Acompanhar o romance de Dhomini e Sabrina é tão estimulante como acompanhar o romance de qualquer casal de novela – com o elemento de atração adicional de eles serem pessoas reais, parecidas conosco, muito mais próximas do que qualquer personagem de telenovela consegue ser”, avalia Priolli, atualmente diretor geral da TV PUC-SP. Se a transformação instantânea e efêmera de anônimos em celebridades nacionais é a pedra de toque do sucesso do novo gênero, então se pode supor que essa seria a maior inovação trazida pelo reality show à linguagem da televisão. A jornalista e professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Yvana Fechine endossa essa tese. “O que é um reality show, afinal? Na perspectiva dos gêneros, o reality show pode ser identificado a um conjunto de formatos já consolidados pela própria TV. Reúne formatos fundados no folhetim (narrativas seriadas, como as novelas), no jogo (articulados em torno de disputas por prêmios), na performance (aqueles articulados em tor no da realização de uma performance cênica para um público apenas pressuposto ou presente no local de produção/gravação, como os chamados programas de auditório), na transmissão direta ou no voyeurismo (a TV tratada como dispositivo de ‘visão permaContinente agosto 2003
Foto: Filipe Falcão/ Divulgação
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Yvana Fechini: “o reality show pode ser considerado um formato muito novo, mas muito velho ao mesmo tempo”
nente’). Nessa repetição de formatos numa nova combinação surge o que se considera a renovação na TV. Inserido nessa dinâmica, o reality show pode ser considerado um formato muito novo, mas muito velho, ao mesmo tempo”, explica. Aproximação perigosa – O conceito do Big Brother contemporâneo aproxima-se perigosamente do nome originalmente talhado por George Orwell, no romance 1984: um dispositivo mecânico que tudo vê, como um Deus tecnológico e humano, ao mesmo tempo. Para Gabriel Priolli, essa profusão de câmeras existentes nos lares e nas ruas das grandes cidades, resultado do barateamento proporcionado pela produção tecnológica em larga escala, efetua uma ligação direta entre o novo gênero televisivo e a rede mundial de computadores. “Creio que o reality show é um gênero, também, diretamente derivado da Internet e de sua linguagem, porque sem a existência das webcams, que estão por toda parte e vigiam tudo, não teria surgido a idéia de um Big Brother, por exemplo”, acredita Priolli. O voyeurismo – a curiosidade de saber o que acontece na casa do vizinho, mesmo que esse vizinho não o seja, no sentido estritamente geográfico, e só se transforme num ‘conhecido’ através da janela eletrônica como a televisão – é componente essencial para explicar o fascínio que os programas de entretenimento no estilo do Big Brother exercem no público. O jornalista e professor catarinense Leandro Ramires Comassetto, que realizou no ano passado uma pesquisa sobre a adaptação dos reality shows para o rádio, em Santa Catarina, acredita que esse elemento é fundamental para “fisgar” o espectador. “Num primeiro momento, o aspecto voyeur conta muito. Depois, quando o número de participantes se reduz, a expectativa é muito mais por quem vai ficar e quem vai permanecer na casa. O cotidiano que se vive dentro do grupo de participantes perde muito da importância, para o espectador. Ninguém se interessa muito pelo que os oponentes estão fazendo; o foco de tensão muda para a escolha de quem fica e quem sai. E se observa nitidamente que os telespectadores elegem seus preferidos, torcendo para um ou para outro”, diz.
Foto: Ho. Reuters Foto: Arquivo pessoal
O programa ganhou sua primeira versão continental, o Big Brother África, com transmissão direta para mais de 40 países
“Creio que o reality show é um gênero, também, diretamente derivado da Internet e de sua linguagem, porque sem a existência das webcams, que estão por toda parte e vigiam tudo, não teria surgido a idéia de um Big Brother” Gabriel Priolli
Os participantes dos reality shows apenas interpretam personagens. São como clones: habitam corpos iguais aos deles, na vida real, mas não são eles; agem com motivações específicas, atuando praticamente o tempo inteiro como atores interpretando eles mesmos. Por tudo isso, o jornalista e crítico de televisão Eugênio Bucci aponta um problema complexo, que passa despercebido para muita gente: a ditadura dos números do Ibope. “Os reality shows aprofundam a idéia de que o público atua como comandante do entretenimento, definindo evoluções e desfechos. Isso já existe nas telenovelas, cujos enredos são baseados muitas vezes nos humores da platéia captados em pesquisas. Isso aparece também na estrutura de alguns programas de auditório ao vivo, que esticam ou encolhem suas atrações, conforme o Ibope responda positiva ou negativamente a elas”, compara. No meio de tantas reflexões, contudo, sobra uma dúvida – a dúvida inicial, que permanece sem uma resposta definitiva. Por que tamanho sucesso? O que há de tão interessante nos reality shows? Eugênio Bucci também não respondeu, em entrevista concedida em maio de 2002, ao site Trópico, mas expôs um raro flagrante da situação em que se encontra a televisão, após a chegada do reality show: “O dado desconcertante é que, dentro da intimidade dos protagonistas ou das predileções do público, não há nada de interessante. Como um lado e outro, público e protagonistas, que se alternam, são espelhos um do outro, a superficialidade de ambos, a previsibilidade, é aterradora. O que eu diria, então, é que a novidade dos reality shows não é mais que uma hipertrofia de alguns aspectos empobrecidos da cultura de massa em sua aderência com as redes comunicacionais. A intimidade que aparece aí é inteiramente adestrada, mesmo para o grotesco, inteiramente codificada pelo espetáculo. Ela já não é lugar de segredos, mas um repertório industrializado do exibicionismo. É enfadonho”. Um sucesso inquestionável e enfadonho. Essa, afinal, é a esfinge do reality show. • Rodrigo Carrero é jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE. Continente agosto 2003
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80 SABORES
PERNAMBUCANOS
Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Pimenta, cravo e canela “Pimenta nos olhos dos outros não arde” Provérbio popular
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cozinha dos povos vai se fazendo aos poucos. Com muita paciência. Primeiro aproveitando os alimentos da própria terra. Depois com ingredientes e conhecimentos de além fronteiras. Até que um dia, nessa mistura democrática, se conforma (ou não) uma cultura, um traço de caráter, um jeito próprio de ser. E nem sempre as novidades culinárias vêm de perto. Pimenta, canela, cravo, noz-moscada e gengibre, por exemplo, ganharam o mundo a partir do Oriente – sobretudo Índia, mas também Ilhas Molucas, então conhecidas como “do Tesouro” ou “das Especiarias”. Para chegar à Europa seguiam uma rota complicada – passando antes pelo Egito, e só então ganhando o Mediterrâneo. Eram vendidas clandestinamente, a preço de ouro, por judeus e mouros. Em Florilégio da Língua Portuguesa (séc. 15, autor desconhecido) não por acaso se contam as desventuras de condenados por “roubar um judeu que pelos montes andava vendendo especiarias e outras coisas”. Continuaram, por muito tempo, a ser privilégio só de poucos. A Infanta Dona Beatriz, mãe de D. Manuel, deixou testamento em que legava, à abadessa do Mosteiro da Conceição de Beja, “um saco de pimenta que pesava cerca de 15 kg, 300 gr de gengibre, 800 gr de noz moscada, quase 1 kg de cravo, 3 kg de canela e 1 arroba de tâmaras”. A partir do séc 15, os europeus compreenderam que já não mais podiam viver sem “pós de cozinha” – como eram genericamente conhecidas essas especiarias, nas mesas portuguesas. Porque, além do sabor, eram (como o sal) também muito úteis na conservação das carnes. Só depois, com Vasco da Gama, esses “pós” chegaram à Europa em quantidade e preço acessíveis à maioria da população. Partiu do Tejo, em 1497, à procura de um caminho marítimo para as Índias. Enfrentou nessa epopéia quase tudo – de tempestades a rebelião de marinheiros. E conseguiu sucesso graças a um piloto árabe, que lhe foi apresentado pelo Rei de Melindre. Acabou chegando a Calicute, quase um ano depois Continente agosto 2003
de sua partida. Valeu a pena – sobretudo para ele. Que D. Manuel lhe concedeu o título de Almirante-Mor das Índias e pensão de 300 mil réis. Conseguindo Portugal manter o monopólio do comércio com as Índias durante todo o séc 16, só depois passando a ter a concorrência de holandeses, ingleses e franceses. Foi o apogeu das especiarias. A busca por esses ingredientes era um convite à aventura. Muitos se lançaram nela. Inclusive Garcia da Orta, famoso médico de Lisboa, que embarcou numa expedição com destino à Índia – acompanhando a armada de Martin Afonso de Souza. Nunca mais voltou. Escolheu ficar para sempre em Goa. Lá escreveu Colóquios dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia (1537) – o mais importante registro do comércio com o Oriente, naquele tempo. Destaque, no livro, para o seu curioso prefácio, todo feito em versos – por um poeta miserável, ex-provedor de defuntos, cego de um olho (perdido em luta com mouros de Mazagão). E que chegou a Goa depois de ter naufragado na foz do rio Mecon (Cambodja). Conseguiu se salvar nadando com um braço só; tendo, no outro, rascunhos de um poema épico dedicado ao Rei Dom Sebastião. Sobrevivia fazendo versos, em troca de comida. Com alguns contratempos. Assim ocorreu com o Duque de Aveiro – que prometeu uma galinha mas lhe mandou, em troca, uma peça de vaca. Devolvendo o poeta, pelo criado por quem veio a dita vaca, versos em que expressava seu desagrado: “Já eu vi o taverneiro / Vender vaca por carneiro / Mas não vi, por vida minha / Vender vaca por galinha / Senão ao Duque de Aveiro”. Entre essas especiarias, destaque para a pimenta-do-reino. Hipócrates, pai da medicina, foi o primeiro a dar notícias de sua existência. Como remédio – apropriado para falta de apetite, dores de estômago e males do amor (posto ser afrodisíaco). Chegou à Europa na bagagem de Alexandre, o Grande (séc. 6 a.C.). Era, na Índia, conhecida como pippeli – daí vindo a raiz do nome, em quase todas as línguas. A pimenta vinda de
SABORES PERNAMBUCANOS 81 »
Foto: Leo Caldas/ Títular
Muitos condimentos ganharam o mundo a partir do Oriente
Portugal acabou conhecida, no Brasil, como “do reino”. Para diferenciar da nossa pimenta vermelha nativa – a “iquiataia”. Os índios punham essa “iquiataia” para secar ao sol, depois sendo pilada, reduzida a pó e misturada a sal ou farinha de mandioca. São variantes dessa pimenta nativa: a pimenta-de-cheiro (típica da culinária nordestina), a pimenta caiena (muito forte, originária da Guiana Francesa, também chamada de chilis) e a pimenta-malagueta (que aqui chegou com os negros africanos, devendo esse nome à região de onde veio, na atual Libéria – é a mesma quiyáapuá dos índios da América Central). Além dessas temos a pimenta verde (muito usada para aromatizar mostarda ou outros condimentos) e a branca (picante e aromática). Pimentas são usadas em quase todos os pratos brasileiros. É preferência nacional. Já o cravo-da-índia é originário da Ilha de Zanzibar (oceano Índico) e das ilhas Molucas. O naturalista romano Plínio (o velho) já falava nela – “são semelhantes a grão de pimenta, só que mais compridos”. Dos seus caminhos nos conta Catherine Clément (A Viagem de Théo) – “Na Idade Média, apreciadíssimo pelo Ocidente, o cravo navegou das Molucas a Java, de Java à Índia, e da Índia a Veneza....” Acabou consagrada pelos portugueses como se fosse mesmo da Índia. Era usada para quase tudo – temperos, remédios (por ser analgésico e digestivo) e preparação de perfumes. Entre nós está presente em doces de compota, pudins, bolos, pães, assim como pratos salgados de presunto, porco, cozidos e certas sopas. A canela é originária da China (canela-da-china) e do SriLanka (canela-do-ceilão). Vem da casca de uma árvore que, depois de seca, é tratada e consumida em pau ou pó. Foi tanto o seu prestígio, nos tempos antigos, que chegou a merecer citação da Bíblia. No Cântico dos Cânticos (Os encantos da esposa): “Teus rebentos são como um bosque de romãs com frutos deliciosos, com ligústica, nardo, açafrão, canela... os bálsamos mais preciosos” (5, 13 e 14). Em 1505 os portugueses tomaram o Ceilão e ganharam, de presente, o monopólio da canela – então revendida a preço de ouro. Hoje, tanto a canela-da-china quanto a canela-do-ceilão, são largamente cultiContinente agosto 2003
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SABORES PERNAMBUCANOS
Foto: Ivana Borges/cortesia do restaurante Parraxaxá
RECEITA: BOLO CAVALCANTI (Receita dada por Gilberto Freyre, no livro Açúcar)
INGREDIENTES: 12 ovos (sendo 6 com as claras e 6 sem elas), 3 xícaras de açúcar refinado, 3 xícaras de massa de mandioca (bem lavada e seca ao sol) passada em peneira bem fina, 1 xícara de manteiga, cravo, canela, erva-d doce. PREPARO: •Bata as claras e junte as gemas. Continue batendo até sair o cheiro de ovo. •Junte a massa de mandioca e misture bem. •Acrescente manteiga, cravo, canela e erva-d doce. •Coloque a massa em folhas, bem verdes, de bananeira. Asse em forno médio.
vadas no Brasil, usadas em doces, cartola, mingau, papa, canjica, pão, bolo, picles e alguns pratos salgados, como o peixe com canela – típico da culinária veneziana que, entre nós, acabou famoso no Beijupirá ( Porto de Galinhas). O gengibre é originário da Índia e da Malásia. Foi descrita por Marco Pólo como “raiz de um junco semelhante à cana-de-açúcar”. No século 14, o chá de gengibre foi a primeira tentativa terapêutica de combate à peste negra, que matou milhões na Europa. E é, ainda hoje, usado como remédio. Por ser digestivo, anti-séptico e, segundo a crença popular, também poderoso afrodisíaco – quando misturado com cachaça e açúcar. Mas é, por aqui, sobretudo usado como tempero – em biscoitos, tortas, bolos, doces, pães, saladas, peixes, cozidos, picles e molhos. Finalmente temos a noz-moscada – fruto da moscadeira, árvore originária das Ilhas Molucas. Lá era símbolo de poder econômico – quanto mais noz-moscada se colocasse na comida, mais importante era o comensal. Os portugueses mandaram arContinente agosto 2003
rancar, em terras vizinhas, todos os pés existentes dessa árvore. Para garantir seu monopólio. Holandeses, que depois conquistaram as Ilhas, foram ainda mais longe – mergulhando as nozes em água e cal, para que não germinassem. No fundo, apenas uma antecipação do princípio capitalista que recomenda reduzir oferta para aumentar lucros. A noz-moscada para não perder seu sabor deve ser sempre ralada na hora mesmo de consumir. Boa para doces, bolos, biscoitos, pudins, peixes, pratos à base de queijo, molhos brancos, omeletes, purês, conservas. Faltando só dizer que aquele provedor de defuntos, que em versos escreveu o prefácio do livro de Garcia da Orta, viria depois a ser o mais importante poeta da língua portuguesa – Luís Vaz de Camões. Sendo, os manuscritos salvos do naufrágio, os primeiros cantos dos Lusíadas. Como ensina uma conhecida canção de Caetano, “existirmos, a que será que se destina ?” A arte imita a vida. • Maria Lecticia Cavalcanti é professora.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA 83 Joel Silveira
Como eles encontram milhões para roubar?
OS ALPINISTAS Pergunto e eu mesmo respondo : pode haver algo mais idiota do que um alpinista ? Não, não pode. ANÚNCIO CLASSIFICADO Vende-se uma vida em razoável estado de conservação, com todos os papéis em dia, pagamento em doze prestações mensais, juros decentes. Preço a combinar. CONSELHO MÉDICO Sempre que eu telefonava para Noel Nutels, me queixando de uma dorzinha ou de um achaque qualquer, a resposta era invariável : – Você está consultando a pessoa errada ! Já lhe disse que não sou veterinário. BALANÇO Faço e refaço as contas e no final verifico, consternado, que já gastei todos os futuros. MÃOS AO ALTO ! Como a hora é de apertar o cinto, a polícia do Rio já está conseguindo matar com bala de festim.
DINHEIRAMA O que me deixa perplexo, de queixo caído, é ver como os patifes conseguem encontrar, num país pobre como o nosso, milhões e milhões para roubar. Ou somos pobres exatamente por isso ? OBRA COMPLETA Se um dia alguém tentar escrever a biografia daquele figurão, pode resumi-la nestas poucas palavras : nasceu por injusta e morreu por justa causa. ALEGRAI-VOS ! Jamais consegui me alegrar com o lúgubre hino de Sergipe, embora ele comece assim : “Alegrai-vos, sergipanos....” . CONSELHO DOS ASTROS Recomenda o meu horóscopo : “Vá à rua, agora mesmo, e lute. A vitória é certa”. Chego à janela, olho lá fora, a chuva cai pesada. Decido: a vitória ficará adiada. EXPERIÊNCIA PRÓPRIA Todo cuidado é pouco na velhice: o ridículo está nos vigiando vinte e quatro horas por dia. • Joel Silveira é jornalista e escritor. Continente agosto 2003
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86 ESPECIAL
Foto: Keystock/ Wiley/ Wales
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A águia, símbolo do poder americano
ESPECIAL 87 »
O incontrastável poderio político-econômicomilitar põe os Estados Unidos no centro de uma discussão em que, de um lado, cresce o sentimento antiamericano em toda a parte e, de outro, desponta o dilema sobre as opções que os povos do mundo devem escolher Fábio Lucas
De nação do bem a império do mal
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ilk-shake com cheeseburguer, cinema com cocacola, jeans com tênis em qualquer estação. Os EUA não saem de moda. Seu poder hegemônico confunde-se com a cultura dominante, o que não seria problema para qualquer império. Mas a liderança política dos Estados Unidos começou a ser associada, nas últimas décadas, ao desequilíbrio social no mundo, e ficou difícil não ver suas “guerras preventivas” como intervenções econômicas de interesse corporativo. A crescente implicância com a superpotência alcançou seu auge, curiosamente, após a América ser vítima do maior ataque terrorista da história. Depois do 11 de setembro de 2001, quando vieram abaixo as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, uma onda de simpatia e compaixão percorreu os cinco continentes. Aos poucos, a situação se inverteu. A antipatia venceu. A força da resposta ao terror foi tomada como descabida e desproporcional, quando se percebeu que a sacralização do atentado poderia ser usada sempre que desejado para invocar atos de “defesa preventiva”. As invasões ao Afeganistão e ao Iraque fizeram emergir a truculência da política externa americana sem os filtros de informação que impediam o esclarecimento no passado. Porque no fundo, a política externa dos EUA não mudou muito da Segunda Guerra para cá – o que mudou foi o mundo.
Duas pesquisas recentes comprovam a tendência antiamericana. Uma foi realizada pelo Centro Pew de Pesquisa para Povos e Imprensa, que entrevistou 38 mil pessoas em 44 países antes da guerra com o Iraque, e outras 16 mil pessoas em 20 países depois. De acordo com a pesquisa, a ação militar aumentou a desconfiança entre europeus e americanos, atiçou os muçulmanos, enfraqueceu a colaboração internacional contra o terrorismo e corroeu as bases institucionais do cenário pós-Segunda Guerra: a ONU e a OTAN. A BBC de Londres também fez a sua pesquisa, divulgada no mês de junho em um programa de TV chamado O que o mundo pensa da América. Das 11 mil pessoas ouvidas em 11 países, a maioria (57%) não gosta do presidente George W. Bush e acha que foi um erro ter invadido o Iraque. Na Rússia e na França, o descontentamento chega a 81% e 63%, respectivamente. Em países islâmicos como a Jordânia e a Indonésia, os EUA são considerados mais perigosos para a estabilidade mundial do que a Al Qaeda, o grupo terrorista de Osama bin Laden. O que estes números revelam? Que a Guerra Fria está sendo substituída por uma “guerra quente” de animosidade, com os americanos entrincheirados e o mundo em volta num misto de ira e medo contra o império? Não chega a tanto. Mas mostram que a bandeira da liberdade levada pelos EUA ao Continente agosto 2003
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88 ESPECIAL Afeganistão e ao Iraque ficou rota mais cedo desta vez. E que o avanço do unilateralismo é o avanço do antiamericanismo – muito embora não devamos confundir os diferentes motivos que originam comportamentos antiamericanistas.
Foto: Reuters/ Pool
O império burro e democrático – Uma das grandes discrepâncias anotadas pelos analistas é entre o ímpeto imperialista americano e a sua relativa falta de interesse sobre a realidade exterior. O que pode ser apenas uma imagem estereotipada, mas que é compartilhada pela maioria dos críticos, dentro e fora dos EUA. A dúvida é se o episódio do 11 de setembro teria sido suficiente para alterar esse quadro – e a resposta mais comum é que não. Para o professor de Harvard, Joseph Nye Jr., autor de O paradoxo do poder americano (Unesp), o ataque terrorista de 2001 foi um choque que balançou os EUA sobre sua ignorância em relação ao mundo, mas não foi suficiente para acabar com ela. Um outro complicador é a credulidade da pátria de Disney, como lembra a professora Lúcia Lippi, da Fundação Getúlio Vargas, autora de Americanos – Representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA (Editora UFMG). “O povo americano é absurdamente crédulo. Acredita nas suas instituições e nos seus governantes. Quando acordarem, se é que vão acordar, verão que a realidade é um verdadeiro pesadelo”, prevê Lippi, que diz ainda ter ficado patente o despreparo dos americanos para lidar com outros povos e culturas, a partir do que se viu em Bagdá. Se eles estão querendo construir um império à maneira britânica, como sugeriu um editorial do The New York Times, o despreparo apontado pela professora seria o primeiro obstáculo a superar. As pesquisas da BBC e do Centro Pew também deixam
ver que a opinião pública consegue separar o joio de Bush do trigo da democracia americana, cuja história e simbologia antecede. O que não espanta o professor Joseph Nye, que foi vice-secretário de Defesa no governo Clinton. “A quantidade de Estados democráticos aumentou durante o período de hegemonia americana, e muitos especialistas crêem que a elevação da democracia no mundo se deve, em grande parte, ao fato de que o maior de todos os Estados possuía uma orientação democrática”, argumenta Nye. Para ele, se a União Soviética tivesse ganho a Guerra Fria, haveria bem menos nações democráticas no mundo hoje. O coordenador do Núcleo de Estudos Americanos da Universidade Federal de Pernambuco (NEA/UFPE), Mar-
Soldados dos EUA submetem iraquianos: bandeira da liberdade ficou rota cedo demais
ESPECIAL 89 » cos Guedes, compartilha da visão da boa influência americana, sobretudo no que diz respeito ao multiculturalismo. “Muitos cientistas e artistas que produzem nos EUA não nasceram lá”, recorda Guedes, que dá ainda como exemplo a Bossa Nova, cuja recepção naquele país teria sido decisiva para sua disseminação internacional posteriormente. O coordenador do NEA alerta para os riscos de uma concepção maniqueísta que transforme os EUA no bode expiatório da humanidade. “Trata-se de uma cultura aberta que sabe incorporar valores de outras culturas”, diz ele. O caminho inverso talvez seja mais difícil, de acordo com a mineira Lúcia Lippi. A presença da cultura norte-americana no planeta ocorre de forma diferenciada, para ela. “É mais fácil copiar o jeito de vestir, o fast-food, aprender inglês. Difícil é aprender a respeitar a lei, considerar todos iguais e prezar o
bem comum”, avalia. No Brasil, por exemplo, a americanização conviveria com a hierarquia: “Nós lidamos com a desigualdade como se fosse natural. Se estamos absorvendo os valores americanos, precisamos escolher melhor quais valores devemos incorporar”, critica a pesquisadora da FGV. O futuro do império – A despeito da diferença entre Bush e a América, é em nome dos mais altos valores fundadores da nação americana que o atual presidente carrega a bandeira do unilateralismo, impondo sérios riscos de disseminação ainda maior do antiamericanismo, caso persista no que já se chama de “projeto neocolonialista”. Sem mencionar o apoio até pouco tempo atrás dado ao apartheid, na África do Sul, ou a regimes de exceção na América do Sul, na América Central, na Ásia e no Oriente Médio, em países como o Bra-
MARK HERTSGAARD
“Os EUA não precisam ser um Estado terrorista” Foto: Divulgação
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ara o jornalista Mark Hertsgaard, autor do livro A sombra da águia, recém-llançado no Brasil pela editora Record, a explicação para a ignorância americana sobre o mundo é causada pela omissão de uma imprensa colonizada pelo governo federal. Nos EUA, a fonte primária das notícias é o governo, como noutros países. A diferença é que lá a versão oficial é sempre a versão final, sobretudo na TV. E o mito da liberdade de imprensa na América? Segundo Hertsgaard, trata-sse de um mito reforçado no exterior pelo caso Watergate, em que a investigação de repórteres do Washington Post levou à saída de Richard Nixon da presidência. Mas lá se vão 30 anos, e a concentração da mídia no poder das corporações ligadas ao governo foi consolidada. Para além da liberdade de imprensa, o mito americano como um todo é um sucesso inegável. Os relatos colhidos por Mark Hersgaard no livro, traduzido para 10 países, confirmam a boa imagem dos americanos, quase sempre associada à possibilidade de se “ficar rico” e se “poder fazer tudo”. “Descobri que o ideal americano é uma inspiração enorme para as pessoas, sobretudo em lugares como a China, a Rússia, e outros que não experimentaram a democracia”, contou ele à Continente. Mas, como uma nação que se gaba de ser o celeiro democrático da civilização pode aprovar, em massa, a incursão autoritária de seu governo em países menores? Como interagem na mesma sociedade, em aparente equilíbrio, a pluralidade e a ganância, a inclusão e os excluídos? Mark Hertsgaard explica
que as contra dições americanas são grandes porque exprimem sua posição de destaque à frente da realidade global, e, “como disseram Marx, Kant e outros filósofos, as contradições são a essência da realidade”. Certo. Mas isto não significa aceitar que os EUA devam ficar mais contraditórios, à medida em que se tornam mais poderosos. Tampouco que devamos permanecer quietos enquanto rola e cresce em nossa direção a bola de neve azul, vermelha e branca de contradições. A bola de neve desce a ladeira da violência e da tru culência – eis um ponto de que poucos discordam. “Ao contrário do que pensa Bush, os EUA não precisam se tornar um Estado terrorista, nem eliminar as liberdades dentro de casa, para bater o terrorismo”, enfatiza o jorna lista. A saída, segundo Hertsgaard, é a participação em campanhas coordenadas, não apenas contra o terrorismo, mas principalmente contra a opressão e a pobreza, “que produzem um terreno fértil e servem de fonte de recruta mento para os terroristas no mundo inteiro”.
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90 ESPECIAL
sil, Chile, Guatemala, El Salvador, Coréia do Sul, Filipinas, Indonésia, Irã, Iraque e Arábia Saudita. O redirecionamento da política externa somente será possível com uma mudança política interna, que vá além da troca de comando entre republicanos e democratas. Para o professor da Universidade da Geórgia, David McCreery, esta é uma questão complicada. “Como na maioria dos países, a política externa é definida pela política interna, que muda muito gradualmente”, observa. McCreery, que estará como professor visitante na UFPE em 2004, diz que dificilmente a política externa americana será diferente do que tem sido nos últimos 50 anos. “Se isso irá trazer mais antiamericanismo, não sei dizer”. O professor Emir Sader, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, e também professor da USP, não
vê opção além de outra opção: “É necessário, antes de tudo, ter outro projeto de sociedade, radicalmente diverso daquela que faz de tudo mercadoria”, condena, acrescentando a multipolaridade como preventivo contra a repetição do mal: “Um mundo multipolar será melhor do que tentar construir outra superpotência que se oponha aos EUA, pois assim se poderá contrabalançar sua força material com força política, cultural e moral”. De volta ao 11 de setembro, o ground zero do século 21: para Joseph Nye, o enfraquecimento dos Estados nacionais conduziu ao fortalecimento de atores não-estatais, entre os quais os grupos terroristas. “Este é o resultado da democratização tecnológica, que irá aumentar neste século”, avalia. Já o professor McCreery é um pouco mais pessimista. “Numa sociedade genuinamente livre e aberta, não há solução para o terrorismo. A segurança pode ser aumentada, mas pesFoto: Arquivo Pessoal
EDUARDO VIOLA
Uma relação de amor e ódio visitante das Universidades de Stanford, CoP rofessor lorado e Notre Dame, Eduardo Viola morou cinco
anos nos EUA, que constituem, na sua visão, não um império de exploração, e sim um império liberal que se dispõe a enfrentar os inimigos da democracia. Mesmo num mundo economicamente multipolar, segundo o professor, a superioridade americana ocorre graças ao maior dinamismo de sua cultura de negócios e capacidade de inovação tecnológica. Eduardo Viola está há 11 anos na Universidade de Brasília (UnB), como titular do departamento de Relações Internacionais. Na sua visão, como convivem, nos EUA, a bandeira da liberdade e o desejo imperialista da conquista? A liberdade é o fundamento da civilização americana: uma combinação da busca da felicidade individual (que por vezes gera um individualismo excessivo) com uma profunda disposição de cumprir as regras do Estado de Direito, da economia de livre mercado e da democracia política consagradas na sua Constituição. Historicamente, a intervenção dos EUA no mundo tem um duplo caráter: o libertador e o imperialista. O libertador é o principal e
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esteve presente na luta ao lado das democracias inglesa e francesa contra as ditaduras na Primeira Guerra Mundial, na luta contra os totalitarismos nazi-fascista e japonês na Segunda Guerra mundial e na luta contra o comunismo durante a Guerra Fria. E quanto ao “império americano”, expressão que voltou à moda nos últimos anos? O caráter imperialista dos EUA é secundário e esteve presente nas guerras com México e Espanha no século 19 e nas intervenções na América Central e no Caribe durante o século 20. Muito se tem falado de modo incorreto sobre o império americano depois do 11 de setembro. Os EUA são um império no sentido de colocar-se como o guardião da segurança no mundo (por exemplo, a luta contra o terrorismo e os regimes produtores ou proliferadores de armas de destruição em massa) e no sentido da projeção dos seus valores (economia de mercado e democracia), mas não no sentido de colonizar territórios e populações para explorá-los. Os EUA são um império liberal, não é um império de exploração.
Foto: Reprodução
ESPECIAL 91 soas irão morrer”, avisa. A alternativa? “O totalitarismo”, responde ele, sem deixar de ressalvar que os americanos repetidamente escolheram a liberdade, mesmo ao custo da insegurança. “Sequer temos um cartão de identidade nacional nos EUA, e continua firme a resistência a qualquer tentativa de implementar um”. O capitalismo e o sistema pluripartidário democrático deveriam ser uma questão de escolha, de acordo com o professor da Universidade da Geórgia, David McCreery. “Se estes são modelos aplicáveis no resto do mundo, é algo que as pessoas deviam ter a oportunidade de responder por si próprias”, diz ele, numa nítida menção à aplicação do argumento da força (ao invés da força do argumento) pelo seu país. • A Casa Branca: ícone de uma cultura aberta
Após a guerra do Iraque, o antiamericanismo passou a ser praticado sem vergonha nos quatro cantos do planeta. Que avaliação o Sr. faz disso? O antiamericanismo implica quase sempre uma relação de amor e ódio com os EUA. De um lado ele é admirado e procura-se imitar seu sucesso. De outro lado ele é odiado por seu próprio sucesso econômico e o poder derivado dele. Existem hoje duas grandes ondas de antiamericanismo: o light e o profundo. O primeiro tende a ser transitório e predomina nos países em que a economia de mercado e a democracia estão consolidadas ou em vias de consolidação. E o outro tipo, mais arraigado, é o que se pode ver na América Latina? O antiamericanismo profundo é de longa duração e predomina nos países que fracassaram em construir uma economia de mercado, e que têm regimes autoritários (entre os quais a maioria dos países islâmicos). Na América Latina hoje temos as duas formas de antiamericanismo: o profundo é herdeiro da esquerda comunista e da direita católica da fase da Guerra Fria. E o light desenvolveu-se como reação às políticas unilaterais de Bush. Um seria mais legítimo do que o outro, na medida em que reflete posturas consensuais tanto de países ricos quanto de países pobres?
Fábio Lucas é jornalista.
O problema do antiamericanismo light não está na sua oposição às políticas de Bush, que está dentro do arco de dissenso histórico do Ocidente, mas no fato de que ele tende a servir de legitimação para o antiamericanismo profundo. A liberdade modelo século 21 é hasteada pela bandeira ambientalista, que não tem nacionalidade. A negação americana do ideal ecológico e das normas em prol de um mundo sustentável não têm contribuído para a disseminação do antiamericanismo? O ambientalismo é portador de um ideal fortemente transnacional, mas não penso que ele seja o principal pilar da liberdade no século 21, desde que o ambientalismo é um dos movimentos políticos e culturais que condiciona e constrange o valor da liberdade econômica. O ambientalismo está associado com a visão comunitária da democracia que questiona a visão liberal (predomínio do individuo sobre o coletivo). Em primeiro lugar devemos assinalar que desde 1970 os EUA têm estado na vanguarda mundial da proteção ambiental em termos de legislação, de construção institucional e de desenvolvimento de tecnologias limpas. Hoje, o principal problema ambiental global é a mudança climática e nessa área o predomínio dos Republicanos nos EUA, com uma visão egoísta e irresponsável do Protocolo de Kyoto, alimenta o antiamericanismo light, mas tem pouco a ver com o antiamericanismo profundo. Continente agosto 2003
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92 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Fotos: Divulgação
Viva a vida! Sempre. A artista plástica Guita Charifker nos deixa ver um Rio de Janeiro, um Recife e uma Olinda sensitiva, cromática, com detalhes e amplidões
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uita Charifker acaba de expor nos dois espaços mais prestigiados do país: o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, graças ao empenho da organizadora da mostra, Carla Valença. No Rio, o diretor Paulo Herkenhoff, que já ocupou por três anos o lugar de curador do Museu de Arte Moderna de Nova York, MoMA, promoveu um debate com artistas e críticos. Batizou como Arquitetura das Cores o trabalho de Guita com as aquarelas, ressaltando a construção de texturas, volumes, planos e profundidades. Foi mais longe ainda na valoração da sua obra quando traçou um paralelo de qualidade e grandeza de três pintoras brasileiras que, segundo ele, se continuam e equivalem: Djanira, Tarsila do Amaral e Guita Charifker. Segundo Plínio, O Velho, encarar a luz é para os mortais a coisa mais aprazível, pois o que está sob a terra é nada. Expor Continente agosto 2003
nada mais é que dar à luz, mesmo para o que já está feito há muitos anos. Foi Roberto Pontual, um crítico carioca, quem encontrou Guita Charifker em Pernambuco, no final dos anos 60, e lançou-a no Rio em 1970. Guita já era bem conhecida no Recife pelos seus desenhos em bico-de-pena sobre papel, tendo participado de vários ateliês ao lado de colegas ilustres como João Câmara, Gilvan Samico, José Cláudio, Adão Pinheiro, e mestres como Abelardo da Hora e Aloísio Magalhães. No Rio, intensificou o seu trabalho de desenhista, com manchas em nanquim e aguadas, que já revelavam um gosto pela aquarela. O convívio com novos artistas, a boa crítica e as repetidas exposições afirmaram a escolha de Guita pelo desenho, até o dia em que ela ganhou uma viagem para o México, como prêmio pelo seu trabalho. Foi no México, em 1980, que começaram as suas experimentações com a aquarela, técnica a que se dedica até hoje.
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Voltou ao Rio e logo em seguida se fixou em Olinda, numa casa antiga, de quintal tão grande que mais parece um pedaço de Mata Atlântica. Olinda se tornou um ponto de convergência e partida para diversas partes do Brasil e do mundo. Mas o Rio continuou sendo um dos seus lugares prediletos, onde pintou a maior parte das suas aquarelas, em ateliês improvisados nas casas dos amigos: Santa Tereza, Urca, Ipanema, Gávea, Botafogo e no Sítio Santa Clara, em Paulo de Frontin. As duas exposições mostraram obras realizadas pela artista nos últimos trinta anos. Sem ser propriamente uma retrospectiva, pois é numerosa a produção de Guita, estavam ali os desenhos do início da carreira e boa parte das gravuras em metal, realizadas no ateliê de Anna Letycia, em Niterói. A gravura e a aquarela, como ressaltou Giuseppe Baccaro, exigem do artista um gesto definitivo e irrepetível, não permitindo erros nem arrependimentos. E o milagre do gesto único encantou Guita a vida inteira, assim como Dürer e Rembrandt. Acompanhavase, também, o delicado momento em que ela trocou o desenho pela aquarela, parecendo indecisa quanto ao seu futuro, preferindo dividir alguns trabalhos, parte desenho, parte aquarela, como os seres híbridos, metade humana e metade animal, em que se especializou. Sem ser cronológica, sentia-se o tempo e as nuances técnicas de cada momento da artista, claramente focados em conjuntos de obras, agrupados pela geografia, ou melhor, pelos ateliês. Um Rio de Janeiro exterior, visível numa aquarela dupla, ampla, um olhar amoroso sobre as belezas da cidade. Também visível
nos seus interiores através de janelas, muitas janelas, como se a artista tivesse enquadrado o mundo por esses espaços que se abrem e resguardam. Recife e Olinda se deixaram ver, por fora e por dentro, novamente em salas, corredores e janelas. O Ceará da praia de Taíba, e praias e mangues de Pernambuco. Árvores e folhagens, mangueiras, mamoeiros e cajueiros, múltiplas aquarelas mostradas juntas num painel amplo e tropical, embora tenha interessado à artista ressaltar as minúcias, os pequenos detalhes. Uma exposição com leituras temporais, cromáticas, sensitivas, com detalhes e amplidões. Fechando a mostra, as aquarelas pintadas no Sítio Santa Clara, a fase mais exuberante de um trabalho marcado pelos espaços vazios, pela economia de imagens, parecendo ingênuo para os menos atentos. Como bem disse Hugo Estenssoro sobre Marc Chagall, a beleza diáfana, airosa e benfazeja não é obrigatoriamente arte “menor”. Como todo preconceito, essa é mais uma limitação que nos empobrece. Uma Guita Charifker quase barroca homenageia artistas de sua admiração como Matisse, Giotto e Michelangelo. No meio de um luxuriante jardim tropical, em que não falta um pau-brasil, numa referência à Expulsão do Paraíso, de Michelangelo, Adão e Eva aparecem minúsculos e indefesos. Que enigma a artista propõe com esse exílio? Todo criador anseia por ser desvelado nos seus mistérios. Mesmo Guita Charifker, que afirma que criar não é um sofrimento e sim uma alegria. E que a arte não precisa ser maldita para ser uma grande arte. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Continente agosto 2003
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Hoje em dia não só a exigência de permissão para fotografar alguém está em alta, mas sobretudo a cobrança por isso Daniel Piza
O PREÇO DE UMA IMAGEM Não me esqueço de uma vez em que estava em Lisboa, em 1994, e fui visitar uma casa de licor conhecida por ter sido muito freqüentada pelo grande Fernando Pessoa. Um lugar muito agradável, todo de azulejos, decorado com uma pintura do poeta apoiado na bancada. Não estava cheio, mas eu diria que uma dúzia de homens bebericavam ali no momento. O colega que estava comigo pegou a máquina fotográfica e foi disparando. De repente, um português baixinho, daqueles bem casmurros, saiu de dedo em riste gritando: “Quem vos deu permissão para sacar fotos de todos nós?” Confesso que achei aquela atitude um tanto arcaica, como se o português pensasse, feito os índios, que a foto fosse lhe roubar a alma. E fomos obrigados a nos retirar dali. No entanto, nada mais moderno. Hoje em dia não só a permissão para fotografar alguém está em alta, mas sobretudo a cobrança por isso. Se você pretender fazer um livro de fotos de algum grande escritor, cuidado: não serão apenas os direitos de reprodução para os fotógrafos e/ou agências que você terá de pagar. É bem possível que a família do grande escritor venha reivindicar seu quinhão – isso se concordar com a iniciativa. Outra situação: você registrou durante anos o cotidiano profissional de um famoso pintor e agora quer organizar uma exposição com essas imagens para homenageá-lo. Cuidado: a família do pintor pode alegar direito sobre a imagem dele, entrar na Justiça e bloquear o evento. Pode-se, claro, argumentar que o nosso amigo português
não é ninguém famoso para sair pedindo autorização ou cobrando cachê para ser fotografado. Mas a réplica também é plausível: por que o famoso pode cobrar por sua imagem e o anônimo não? E se o anônimo se tornar famoso mais tarde? Ou se ele alegar danos à sua imagem caso a veja em contexto que não lhe agrade, digamos, na página de um jornal brasileiro cheia de piadas sobre português? Em outros termos: se todo mundo que for fotografado ou filmado nos dias Big Brother atuais resolver cobrar, não haverá dinheiro que pague e tribunal que dê jeito. Pelo menos os Bancos que nos filmam o tempo inteiro devolveriam parte do que nos levam... Tudo isso, porém, talvez soe como nadar contra a corrente. O que já ocorre no futebol, por exemplo, tomou proporções (sem trocadilho) inimagináveis. Em todo contrato profissional há uma cláusula de direito de imagem. O clube e/ou o patrocinador paga uma quantia ou porcentagem pelo direito de usar a imagem do atleta em campanhas, produtos, eventos, etc. Mas também estipula limites para ele. Se, digamos, ele decide expor sua imagem de uma forma que pode ser considerada pejorativa – como posar nu para uma revista, precisa negociar uma autorização ou até é barrado. Numa época em que contratos publicitários e vendas de camisas rendem aos jogadores (Beckham, Ronaldo) mais que os próprios salários, calcule-se o dinheiro envolvido nesses direitos de imagem. O mesmo vale para os outros esportes (Tiger Woods, Michael Jordan) e para artes e espetáculos em geral (atores, apresentadores, cantores, etc.).
Se todo mundo que for fotografado ou filmado nos dias Big
Brother atuais resolver cobrar, não haverá dinheiro que pague e tribunal que dê jeito. Pelo menos os Bancos que nos filmam o tempo inteiro devolveriam parte do que nos levam...
Continente agosto 2003
PRETO NO BRANCO 95
A questão, não raro, chega a extremos. Uma certa ocasião, alguns jogadores de futebol quiseram cobrar das TVs uma quantia pela exibição de cada gol marcado por eles, como se gols fossem obra de um só e, muito mais grave ainda, como se o direito de informação – sagrado na democracia moderna estivesse em segundo plano diante das relações comerciais. E este é o ponto. Há o direito de imagem que pode e é cobrado no que diz respeito a seu uso publicitário. Mas ele não pode nem deve ser maior que o direito do cidadão de ser informado. Infelizmente, muitos veículos da imprensa só fazem alimentar essa distorção, como quando pagam fortunas para uma entrevista exclusiva com um criminoso – o que já seria condenável do ponto de vista ético, afinal o dinheiro servirá para que ele pague bons advogados ou até mesmo corrompa a Justiça. Naturalmente os limites são nebulosos. A própria imagem não é exatamente um bem material, embora tenha um suporte material. Atribuir valor a ela será sempre uma tarefa complicada. Até certo ponto, faz sentido que um artista ou esportista famoso queira resguardar sua imagem – assim como suas criações ou seu patrimônio – para que os espertinhos não venham a usá-las para fins lucrativos. Digamos, uma fabricante de pasta dental usa na embalagem uma foto de Tom Cruise sorrindo, sem pedir autorização a ele e pagar por essa permissão. Tratase obviamente de um ato ilegal, pois a empresa está se beneficiando de uma imagem que não ajudou a construir, etc. Ou então alguém lança chuteiras com o nome de Zidane e sai faturando
alto com a reputação alheia. No entanto, o Direito moderno terá de criar uma forma de regulação sobre isso, flexível e abrangente, mas clara. Se publico um livro com fotos de jogadores de futebol, devo pagar aos autores dessas fotos, que afinal as fizeram com autorização tácita ou expressa dos atletas; ou eles estavam participando de eventos públicos (jogos, coletivas, festas abertas à imprensa, etc.) ou então foram consultados sobre sua realização (para uma entrevista ou qualquer outra coisa). Esse é o preço da fama: você está à mercê do público, e só lhe caberá protestar contra usos indevidos de uma imagem feita em lugares públicos quando elas contiverem uma contravenção, como invasão de privacidade, difamação, apropriação indébita, etc. Uma vez autorizada a foto ou a filmagem, o “dono” da imagem está ciente de que ela será reproduzida, vendida e assim por diante. Se faço uma série de fotos de um pintor ao longo dos tempos, certamente foi com seu consentimento, ainda que implícito. Logo, se eu quiser vender ou expor essas fotos, os direitos autorais cabem a mim, a ninguém mais. A família dele não deveria receber nada por isso, assim como a família de Garrincha nada teve a receber da venda da biografia escrita por Ruy Castro, embora tenha tentado. Quanto ao meu colega que quase levou uma sova do lisboeta, ele podia muito bem ter perguntado aos presentes ou ao dono da licoreira: “Os srs. me permitem tirar uma foto do local?” Mas nenhuma Justiça no mundo deveria fazer com que ele pagasse pela atitude. Isso, sim, seria furtar a alma.
Muitos veículos da imprensa só fazem alimentar essa distorção, como quando pagam fortunas para uma entrevista exclusiva com um criminoso, afinal, o dinheiro servirá para que ele pague bons advogados ou até mesmo corrompa a Justiça
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ÚLTIMAS PALAVRAS
Rivaldo Paiva
Roubai, Roubai! O bem comum continua sendo roubado do povo e, pior, com tirania
I
maginem, brasileiros e brasileiras, minha gente descamisada, como deve se encontrar agora nas alamedas do infinito, Santo Tomás de Aquino, coitado, atormentado por ter sido durante toda sua existência um pregador contra as revoluções sem sentido, condicionando-as à pratica legítima em três pontos. Para tal, exigia que, primeiro houvesse o excessus tyrannidis, ou seja, um excesso de tirania por parte dos governantes; segundo, que a iniciativa revolucionária pertencesse à autoridade pública, séria, obviamente, excluindo quaisquer particulares non privata praesumptione aliquorum, sed auctoritate publica procedendum (De Regimine Principum, VI), isto é, conforme entendimento de Alceu de Amoroso Lima, “aqueles que escolhem os governantes ou os fiscalizam”; ou, se esgotados esses meios justos, só se recorra à misericórdia divina. A sabedoria de cada uma dessas exigências deve ser meditada, pois a doutrina tomista é tão atual, tão moderna, como o que de mais moderno possa existir em ciência política. Inusitado é o bem comum do povo, pobre povo brasileiro, primeiro limite para se conceituar a liberdade. Liberdade, nascida do racionalismo do Século 18, baseada no livre pensamento e na autonomia da vontade. Assim tornava-se um direito absoluto, sem os três corretivos que a natureza lhe impõe – o bem comum, a natureza das coisas e a lei eterna. A liberdade social. O bem comum: devastado pelo Estado-anárquico, seja da família, da comuna ou da escola, a tal soberania que o norteia nunca é absoluta. Não pode haver liberdade, todavia, contra o bem comum. Esse bem continua sendo roubado do povo, e pior, com tirania. Roubar bens do Estado, por conseguinte públicos, é tirânico, por isso repugnante. E gritam por liberdade, não pensando em Rousseau – pois nunca o leram – que substituiu o inestimável bem comum pelo liberalismo, a sua idéia da “vontade geral” em que se basearia mais tarde a organização
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das democracias liberais burguesas. Roubai! Roubai! Essa mudança de idéia suprimiu exatamente o princípio de finalidade da ordem social. Comoventes depoimentos. E a vida social, econômica e política do País passou a fundamentar-se apenas no arbítrio das maiorias ocasionais, na ignorância do povo e na lamentável omissão patriótica dos mais esclarecidos. E o povo? O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, hoje, mais do que nunca, se refega na pele dos patronatos, patriciados e marginais. De espírito esperneante, lá de cima está gratificado por todos os santos em não presenciar este Roubai, Roubai do dinheiro dos brasileiros. É a natureza das coisas, não é mesmo, professor? – “Trate de aprender tudo o que puder. Saber demais não ocupa lugar. Ignorância, sim. A sabedoria anda solta por aí, para a gente aprender o que quiser”, alertava. Ah! Política “democrática” e escusa. Nem liga para o Ministério Público, nosso defensor-mor, que também não liga para eles nem para nós e tampouco para a lei eterna. Esperemos que venha da sociedade a cobrança. Que os justos não recorram aos injustos. A todo ladrão, a tirania; a determinadas autoridades públicas, o cínico descumprimento da Constituição; e ao povo, alienado e parcimonioso, só resta a misericórdia divina. Deus não é brasileiro?... Salvai, Salvai! Santo Tomás e o cidadão estão indignados. Ainda é tempo de se acabar com a hipocrisia política e a impunidade escandalosa em vigor no País, julgando e condenando à prisão toda essa corja de meliantes, ou começarão enfurecidos clamores de todas as classes sociais por uma revolução no sistema político do Brasil. Cuidado, senhores congressistas. Nos longes de 19 aC, Virgílio já advertia: “O furor fornece armas”. • Rivaldo Paiva é diretor geral do Suplemento Cultural.