Continente #033 - Gilberto Freyre

Page 1



EDITORIAL

Um clássico contemporâneo

O

Brasil dos anos 30, como constava nos compêndios escolares, era “um país essencialmente agrícola”, de população majoritariamente rural. A mentalidade vigente entre os círculos intelectuais estava eivada do cientificismo biologizante importado da Europa, com suas doutrinas racistas às quais não escapou o gênio de Euclides da Cunha. Então, um jovem sociólogo pernambucano, recém-retornado dos Estados Unidos, onde estudara com o antropólogo Franz Boas - que sustentava a supremacia dos valores culturais sobre o determinismo racial – publicou o livro que abalaria o País. Num célebre prefácio a uma edição de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, o crítico Antonio Candido assinalou: “O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro”. Referia-se ele a Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, lançado em 1933. Freyre, analisando a formação da sociedade brasileira, repudiava o estigma de raça inferior imputado ao negro e celebrava a miscigenação, até então considerada, ao lado do clima tropical, fator impeditivo ao desenvolvimento de uma verdadeira civilização nos trópicos. O crítico paulista tocava também num ponto crucial: devido a posições políticas de direita tomadas posteriormente pelo autor, sua obra foi “esquecida” nas universidades brasileiras. Pior para a universidade pois, como observa o uruguaio Guillermo Giucci, em entrevista exclusiva, “poucos textos dos chamados clássicos do pensamento social brasileiro transmitem tanta sensação de contemporaneidade, como a narrativa histórica de Gilberto Freyre”. Assinalando os 70 anos de CasaGrande & Senzala”, trazemos, além da citada entrevista, artigos que analisam a permanência das bases do pensamento sócioantropológico ali expostas, as características literárias daquele texto inovador e a personalidade sedutora do autor, cuja obra está sendo reeditada por nova editora – a Global, a começar por Casa-Grande, com prefácio de Fernando Henrique Cardoso e

Auto-retrato do Fotógrafo com o Mestre

Freyre com Lucena: mil fotografias em duas semanas

lançamento no final deste mês de setembro. As matérias são perpassadas por um ensaio do fotógrafo Sebastião Lucena que, em 1984, durante duas semanas, enfurnou-se na casa de Gilberto Freyre, em Apipucos, flagrando o escritor em seu mundo de idéias e objetos. Fez cerca de 1.000 clics, tendo um modelo solícito, quase histriônico. Pretendia fazer uma exposição sobre o mestre que, por motivos financeiros e burocráticos, ainda não aconteceu. Esta edição também traz a trajetória de Palmares para os museus do mundo do pintor Darel Valença, um apaixonado pela expressividade do corpo feminino. •

Continente setembro 2003


»

2

CONTEÚDO Foto: Divulgação

» 14

Foto: Acervo do artista

Filme francês analisa ocupação da Amazônia

»

22

Darel, suas mulheres e suas cidades

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 »

CONVERSA

»

08 Moacyr Scliar: um gaúcho na ABL »

CINEMA

54 70 anos de Casa-Grande & Senzala »

14 A Amazônia na visão dos franceses

ARTES

»

Entre a glória e o ostracismo O impopular Júlio Medaglia

50 anos de arte pernambucana

LITERATURA

»

34 Bruno Tolentino chega à consagração Bienal homenageia Geração 65 O relançamento de um clássico »

»

Revistas inundam o mercado »

47 Congresso destaca designer popular Aloísio Magalhães: criador múltiplo Continente setembro 2003

JORNALISMO 88 Como fazer jornalismo cultural

CONTO

DESIGN

CIÊNCIA 86 A atualidade de Josué de Castro

43 Problemas na porta do Inferno »

MÚSICA 76 O centenário do blues

22 Darel e a força da figura feminina

»

PATRIMÔNIO 68 Debate apaixonado

As ousadias do cinema mudo »

CAPA

MEMÓRIA 92 Os 100 anos de Theodor Adorno A morte de Otacílio Batista


Foto: Sebastião Lucena

3

»

Foto: Reprodução

68 »

» 54

Centro George Pompidou, em Paris: patrimônio e polêmica

Freyre visita a casa (hoje demolida) onde escreveu Casa-Grande & Senzala

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 A corrida pelo sucesso e o familismo amoral

»

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 20 O decepcionante Ministério de Gil

»

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 32 O rico dilema de Cézanne

»

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 50 Azeite: de portugueses e árabes à atualidade

»

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 74 Para os ricos, Santiago. Para os pobres, Juazeiro

»

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 85 Um teólogo tão douto quanto ateu

»

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Reivindicação de direitos e bagunça

Continente setembro 2003


»

4

CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert

Continente Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores André de Sena, Camilo Soares, Cláudia Cordeiro Reis, Daniel Piza, Dorany Sampaio, Edson Nery da Fonseca, Ésio Rafael, Fábio Araújo, Fernando da Mota Lima, Luciano Trigo, Marina Brandão, Mário Hélio, Renato Duarte, Roberto Muggiati, Schneider Carpeggiani, Weydson Barros Leal Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Douglas Rocha Borba, Cláudio Manoel, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Michelle Vanessa, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente setembro 2003

Setembro Ano 03 | 2003 Foto: Sebastião Lucena

Alegria e orgulho Chego à alegria e ao orgulho de ser alguém cuja própria condição nordestina faz saber que a capacidade da nossa população de produzir conteúdos de brilhante qualidade, como os apresentados nas nossas Continente Multicultural e Continente Documento , vai além do trabalho de pesquisa sério dos profissionais envolvidos na elaboração da revista. Porque brilhantes e cheias de qualidade são também as fontes onde se bebe para a formulação desse conteúdo: Fernando de Noronha; o Carnaval do Nordeste; o trabalho dos poetas populares; dos grupos teatrais; das produções cinematográficas; a contribuição de Ariano Suassuna, de Francisco Brennand, do Cordel do Fogo Encantado, de Caetano e Gil, de Alceu Valença e de tantos outros. E melhor! Ainda que brilhe tudo acima mencionado, nada pretende ofuscar a grandiosidade de pautas advindas das demais regiões do país, ou mesmo d’além mar. Matérias que tanto concorrem para a ampliação dos nossos horizontes culturais. Diante disso só me resta parabenizar Homero Fonseca e todos os que alimentam, a cada mês, a nossa expectativa pelo próximo número de Continente Multicultural. Principalmente pela “nordestinidade”. Luciana Pinto – Recife PE. Prazer Tive o prazer de ler sobre esse grande brasileiro que foi Delmiro Gouveia, na Revista Continente Documento. Ivo Pitanguy – Rio de Janeiro – RJ Tesouro Sou pernambucano, porém estou morando em Lisboa, há dois anos e meio. Estive de férias no Recife, e catando nas bancas algumas revistas que me despertassem, encontrei a Continente, que me deixou muito feliz pela qualidade da revista e pelo fato de ser pernambucana. Comprei um exemplar, que li e guardo como um tesouro! Um amigo esteve no Recife e me trouxe a revista do mês de junho. Agradeço o prazer proporcionado pela leitura. José Manoel Santana – Lisboa – Portugal Curiosa Gostei muito da matéria sobre Antonio Candido; do texto sobre o Museu Casa do Pontal; de Cangaceiros versus cowboys, entre outras. Já estou curiosa esperando o próximo texto de Ronaldo Correia de Brito. Giovana Nogueira – Rio de Janeiro – RJ Interessante Estimados amigos, hace unos días, através de un amigo en Salamanca, me encontré con su revista. Me parece estupenda. Muy interesante sin duda el número dedicado a España, los artículos muy interesantes. Sigan así. Luisa López – Por e–mail


CARTAS Fantástica Fazer comentário é até hipérbole, já que Continente é simplesmente fantástica... Diogo Marques – Recife – PE Aplausos Parabéns pela iniciativa cultural e pela revista desbravadora. Vocês merecem os melhores aplausos. Bravo! Realmente, bravo! Conseguiram ser mais que um país. São, de fato, um continente multicultural. Geórgia Alves – Por e–mail Intelectualês Assinante dessa revista desde os seus primórdios, preocupa–me mais e mais o “intelectualês” hermético e esnobe de alguns artigos publicados nessa revista, absolutamente ininteligíveis, a não ser, claro, para alguns ”iluminados”. Bastos Tigre dizia que é fácil escrever difícil. Rostand Paraíso diz que difícil é escrever fácil. Fico com Rostand. Aproveitando o ensejo, informo que o ceramista Vitalino faleceu vítima de varíola e não de malária, como foi dito no último número da Continente. Gentil Porto – Recife, PE Teatro Lendo a matéria sobre o teatro do Recife e as elites que insistem em ignorá–lo, quero declarar, sem medo de erro, que João Denys é o maior diretor de teatro do Brasil. Basta lembrar duas montagens de Beckett, dirigidas por ele: Fim de Jogo (1989) e Esperando Godot (l996). Desconheço que exista neste país um diretor desta magnitude. Carlos Daconti – Recife – PE Emoção e nostalgia Quando meu filho me trouxe a revista Continente Multicultural, edição de agosto, fiquei surpreso com a qualidade da publicação no aspecto gráfico, mas, principalmente em relação ao conteúdo dos textos, todos excelentes. Li com emoção e nostalgia a matéria sobre o grande Mestre Vitalino, de autoria de Homero Fonseca. Enfim, Continente Multicultural aumentou meu orgulho de ser nordestino. Rubens Coelho Figueiredo – Mossoró – RN Teatro local Muito importante a reportagem na edição 32, do mês de agosto, sobre o distanciamento do público para com o teatro local. Serve para nós, artistas da jovem geração, pensarmos melhor no que vamos levar aos palcos da cidade, respeitando–os como lugares formadores de opinião e, portanto, dignos de um maior cuidado. Principalmente levando–se em conta que, diferente da geração de Giulia Gam, a nossa tem infelizmente buscado a “fama pela fama” em excesso, usando o teatro como uma opção cult para esse fim, ficando a opção pop para os reality shows e capas de revistas de fofoca. Mariz – Recife – PE

Noronha Sinto–me honradíssimo em ver os trabalhos da série Noronha em Grandes Formatos, realizados por mim, nessa revista de tão alta qualidade gráfica, e que traz a melhor reprodução e fidelidade da imagem do mundo do artista; e que tem na sua trajetória, como fundamental, a abordagem do melhor da arte pernambucana, brasileira e internacional. Com esta reportagem, senti realmente ter chegado “documentado” à nossa terra, e recompensado por transitar nesses paraísos que só Pernambuco pode oferecer – Ilha de Fernando de Noronha e Ilha de Itamaracá – terra que escolhi para morar numa hora iluminada há mais de 23 anos. Luiz Jasmin – Itamaracá – PE Giulia Gam

Embora não seja uma “acompanhadora” de novelas, fui ver alguns capítulos de Mulheres Apaixonadas só para conferir o desempenho da atriz Giulia Gam no papel da ciumenta e enlouquecida Helena; fiquei impressionada com a qualidade da moça. Lendo Continente e vendo o quanto ela se dedica ao teatro, compreendi melhor por que ela é tão boa atriz, ao contrário de dezenas de outras que, apenas por terem um rostinho bonito e um corpo malhado, acham que são atrizes. Viva Giulia! E viva a Continente! Maria Cristina Veras – Fortaleza – CE Blues Sou um aficionado no blues e fiquei curiosíssimo para assistir aos filmes sobre o assunto, seguindo o projeto de Scorcese, conforme fiquei sabendo ao ler a Continente Multicultural de agosto. Fiquei particularmente a fim de ver os filmes do próprio Scorcese, de Clint Eastwood e de Wim Wenders, três grandes diretores e todos três apaixonados por esta expressão musical tão rica quanto original e expressiva. Carlos Crista – Salvador – BA

5

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Excepcional Realmente excepcional a entrevista que Jurandir Freire Costa deu à Continente Multicultural de agosto. A sua percepção sobre a diferença do consumismo de antigamente com relação ao atual é agudíssima. Realmente, quando antes se compravam biscuits e outros enfeites para uma casa, pensava–se em enfeitar a casa para o bem–estar da família, e, também, que aqueles suvenires iriam passar de geração para geração, com eles levando todo um universo emocional, além de valores estéticos e morais. Atualmente, não. O próprio fato de hoje as coisas serem descartáveis, torna–as absolutamente desvinculadas de qualquer apego afetivo. É tudo lixo. E a alma, que não se apega mais a nada, se transforma em lixo também. Trágicos tempos estes em que vivemos. Jorge Minor – Rio de Janeiro – RJ Surpreso e satisfeito Sou poeta mas também gosto muito de teatro, e fiquei entre surpreso e satisfeito ao ler o depoimento da crítica paulista Mariângela Alves de Lima (edição de agosto), a respeito das novas tendências dos jovens grupos que estão em ação no teatro brasileiro. Segundo ela, eles estão mais interessados em estudar e explorar a realidade brasileira atual do que em fazer pesquisas de linguagem. Acho que este é o caminho, também, para as outras artes. Não só a poesia, como o cinema e as artes plásticas. Francisco Alves de Lima – Ribeirão Preto – SP Apaixonado Tenho 19 anos e sou assinante da Revista Continente. Cheguei até vocês casualmente, através de uma pessoa cujas opiniões respeito e que me falou muito bem da revista. Sou “superlativamente” apaixonado pela cultura pernambucana e hoje vocês são grande parte disto. Sinto muito orgulho por isso.! Franklin Montanha – Por e–mail

Peça ilustrativa A revista Continente é uma peça ilustrativa e comemorativa da pujança cultural e artística brasileira (e pernambucana). Parabéns. Lucas Tenório – Por e–mail

Nota da Redação As fotos da matéria Boal e o espelho mágico, edição de agosto, nº 32, são de autoria de Adriana Medeiros, e não divulgação, como foi publicado.

Finalmente Encantei–me pela revista. Finalmente uma revista da nossa terra. Parabéns. Cristianne Almeida – Por e–mail

Correção Vitalino Pereira dos Santos, o mestre Vitalino, morreu de varíola e não de malária, como consta na edição nº 32 da Continente. Continente setembro 2003

»


Anúncio


CONTRAPONTO

7

Carlos Alberto Fernandes

O familismo amoral Para o sucesso das reformas que aí estão é preciso extirpar os privilégios seculares

o cadinho cultural do Brasil, a expressão familismo amoral se relaciona à obrigação que se tem de ajudar alguém com quem se tem deveres pessoais, a família acima de tudo, mas também amigos e membros de um grupo. A ação decorrente chama-se apropriadamente de nepotismo. Nesse sentido, o atropelamento da ética está vinculado à força de valores familiares tradicionais que envolvem intensos sentimentos de obrigação. Essas relações, em situações de instabilidade com escassez de oportunidades, geram mais obrigações do que direitos e não têm sido a melhor forma de avanço na luta pela cidadania. Nesse aspecto, os Poderes da República têm que compreender que a família ampliada é uma instituição eficaz para a sobrevivência, mas um obstáculo para o desenvolvimento. O país precisa valorizar seus valores éticos e morais para dar seqüência às reformas que acreditamos necessárias ao desenvolvimento. Pesquisas recentes mostram o efeito deletério do familismo amoral em muitos aspectos do desenvolvimento econômico visto que favorecem a corrupção e reduzem significativamente a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto. Não é fora de propósito que os países ricos, e mais desenvolvidos economicamente, são os menos corruptos politicamente, a exemplo da Dinamarca, Suécia e Noruega. Os países menos ricos, com alta motivação de realização, são os mais corruptos, estando entre estes a Rússia, a Coréia do Sul e a Turquia. Não é de estranhar que o peso dos fatores internacionais na mudança social tem sido bastante alto nos últimos tempos, e tende a aumentar no futuro sob a pressão crescente da globalização da sociedade. Diante disso, só os países com um sistema de valores favorável à resistência da tentação pelos lucros, privilégios ou benefícios fáceis são capazes de manter uma opção correta pelo desenvolvimento. É bem verdade que, no Brasil, esse processo tende a entrar em crise quando os privilégios das elites são ameaçados. No entanto, para a eliminação desses obstáculos é essencial a prevalência de certos valores sociais. Dentre esses, devem estar os valores intrínsecos – aqueles que se mantêm, independentemente de seus custos ou benefícios. O patriotismo como valor exige sacrifícios e às vezes é desvantajoso para o bem-estar individual. Entretanto, ao longo da história, centenas de milhões de

N

pessoas morreram defendendo seu país. Em comparação, um valor é somente útil quando o apoiamos porque ele nos beneficia diretamente.E aí está o grande desafio para o país: separar os interesses pessoais dos interesses sociais. Isolar os interesses corporativos de classes dos interesses nacionais. Imunizar o Estado do vírus do familismo amoral. Do nepotismo. Da família ampliada. Para o ingresso no desenvolvimento sustentado nós precisamos de valores intrínsecos. Precisamos de força e persistência para extirpar os privilégios seculares. As reformas que aí estão, independentemente do governo que as implemente, são inadiáveis e precisam daqueles valores, uma vez que os valores de utilidade são temporários. A forte pressão social na busca dos objetivos de renda e reconhecimento social é plausível. Todavia, valorizar o sucesso econômico como um objetivo importante mas restringir o acesso às oportunidades gera graus mais altos de corrupção. Logicamente, aqueles que têm pouco acesso às oportunidades rejeitam as regras do jogo e tentam vencer por meios não convencionais. Nesse sentido, é óbvio que países com altos desejos de renda e reconhecimento tendem mais a transgredir princípios éticos. E, queiramos ou não, este é o caso do Brasil. Alimentadas pela mídia, todas as classes sociais estão numa corrida louca em busca do sucesso rápido e do reconhecimento social imediato. Todavia, antes desse estágio, o que algumas classes precisam mesmo, é garantir a sua integridade e a sobrevivência das outras. E isso só é possível sem a cultura do familismo amoral, e com valores éticos e morais transparentes. •

Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral. Continente setembro 2003


»

8

CONVERSA

D

esde que decidiu lançar seu nome na disputa para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), o escritor gaúcho Moacyr Scliar viveu uma campanha de vitória anunciada. No Rio Grande do Sul, sua candidatura foi tratada quase como um “negócio de Estado”. Para se ter uma idéia, uma lista de apoio ao autor, disponível no parque Farroupilha, em Porto Alegre, atraiu 6.000 assinaturas. Tanta mobilização teve um saldo para lá de positivo: o autor recebeu uma tremenda votação na ABL, 35 votos. De certa forma, o sucesso da campanha acabou liquidando com uma antiga pendenga entre o Rio Grande do Sul e a instituição. Afinal, o poeta Mário Quintana, um dos maiores orgulhos dos gaúchos, nunca conseguiu envergar o cobiçado fardão de fios de ouro. O nome de Scliar chega à ABL em um período no qual a “casa de Machado de Assis” vive um verdadeiro desfile de novos imortais cheios de popularidade – Ana Maria Machado, Paulo Coelho e Zélia Gattai. Todos eles autores que têm sucesso com o público com mais regularidade do que têm com a crítica. A empatia de Scliar com os gaúchos também resulta do perfil público do autor. Bonachão, ele passa longe do clichê de escritor tímido, recluso no seu próprio mundo. Em Porto Alegre, onde faz questão de continuar vivendo, ele caminha pela cidade, conversa com as pessoas. Traço que se justifica pela profissão paralela que ele mantém até hoje: a de médico especializado em saúde pública. “Poderia muito bem viver apenas do que escrevo, mas não quero pensar na literatura como uma fonte de renda”, atesta. Além da campanha vitoriosa para a ABL, Scliar comemora o lançamento do livro de ensaios Saturno nos Trópicos, um antigo sonho seu. Nele, o autor explica as razões pelas quais o brasileiro conseguiu se livrar do DNA melancólico que recebeu dos seus conquistadores europeus.

“O brasileiro tem anticorpos para a melancolia” O escritor gaúcho Moacyr Scliar “vinga” Mário Quintana ao entrar para a Academia Brasileira de Letras numa campanha tratada como negócio de Estado Schneider Carpeggiani

Continente setembro 2003


Foto: Divulgação


»

10 CONVERSA Foto: Dulce Helfer/Divulgação

A sua eleição para a Academia Brasileira de Letras foi tratada quase como um “negócio de Estado” no Rio Grande do Sul, e a imprensa de todo o país deu uma grande cobertura a todos os lances da campanha, que foi encerrada com chave de ouro: sua votação quase unânime na ABL. Você esperava tanta repercussão? Para ser sincero, não. Foi uma grande surpresa as coisas terem tomado as proporções que tomaram. Mas isso provou a força de mobilização do Rio Grande do Sul, um Estado que tem um carisma muito forte, que sabe fazer uma campanha e que tem poder de mobilização. Teve quem comentasse que uma vitória minha seria uma espécie de vingança dos gaúchos pelo fato do Mario Quintana não ter entrado para a Academia. Não gosto de colocar as coisas como vingança. Podemos dizer que a Academia pagou um débito que tinha com o Rio Grande do Sul. Era um capricho antigo fazer parte da Academia? Não. Eu me interessei há pouco tempo, quando vi vários autores da minha geração tomando posse. Da minha geração tem membros importantes, como o João Ubaldo Ribeiro e Nelida Pinõn, muitos com os quais eu convivo, como Lygia Fagundes Telles, Zélia Gattai e Carlos Heitor Cony. Por isso, tenho laços afetivos com a Academia. E nas últimas eleições, entraram acadêmicos que têm um apelo popular muito forte, como a Zélia, a Ana Maria Machado e o Paulo Coelho. É bom que isso aconteça, porque aproxima a Academia dos leitores. Que outros gaúchos gostaria de ver na ABL? O Luís Fernando Veríssimo é um grande nome, mas ele disse que só entra na Academia Brasileira de Letras para ver minha posse (risos). Ele diz que essas instituições não fazem bem ao seu perfil. Além dele há a Lya Luft, o Sérgio Faraco, o Armindo Trevisan, o Assis Brasil. O senhor continua morando no Rio Grande do Sul, apesar do reconhecimento nacional. É mais difícil administrar uma carreira fora do eixo Rio/São Paulo? Olha, eu gosto de morar aqui, gosto das pessoas e elas gostam de mim. Saio para caminhar, converso. Antes era mais difícil administrar uma carreira à distância, sobretudo quando eu comecei. Agora não. Com o telefone, a Internet, tudo acaba se aproximando. Não tenho a mínima vontade de morar em outro lugar. Quem quer ter uma carreira precisa se movimentar, não adianta ficar sentado reclamando que está fora do eixo e que por isso não consegue nada. Na sua vida, os trabalhos de médico e o de escritor começaram ao mesmo tempo. Como é que foi manter essas duas profissões paralelas? Desde o início, eu sabia que seria médico e escritor. Para você ter uma boa idéia, publiquei meu primeiro livro quando estava na Faculdade de Medicina. No meu caso, uma coisa ajudou a outra. O fato de ser médico me ajudou a ser escritor e o fato de ser Continente setembro 2003

escritor me ajudou a ser médico. Não as separo. Como médico, eu tinha um contato maior com as pessoas, ouvia histórias, não ficava preso ao meu mundo apenas. Seus contos estão na maioria das coletâneas lançadas no Brasil, o senhor escreve para jornal (é colunista da Folha de S. Paulo), para o público infantil e recentemente até fez um ensaio sobre a melancolia. Como é seu método de trabalho, como faz para escrever para tantos leitores diferentes em tão pouco espaço de tempo? Quando eu sento para escrever, só levanto na hora em que encerro o trabalho. Essa disciplina para mim é bastante importante, trabalho em casa. Agora, em relação a escrever para públi-


Foto: Divulgação

CONVERSA 11

cos diversos, bem, eu procuro adequar a linguagem para cada um deles, catando elementos que façam parte dos seus universos. Tem alguns escritores que desprezam o trabalho do jornalismo, da crônica; acho uma atividade bastante enriquecedora. Agora, para mim, é importante uma coisa: a clareza. A clareza é quase uma gentileza do escritor com os seus leitores.

Foto: Divulgação

Com tanta atividade literária, o senhor já poderia abandonar a medicina e viver do que escreve? Sim, mas eu não quero encarar a literatura como uma fonte de renda. De forma alguma faria isso. Seu novo livro de ensaios, Saturno nos Trópicos, levanta a tese de que a melancolia européia não vingou no Brasil. Como chegou a essa conclusão? Nós tínhamos tudo para sermos um país de pessoas deprimidas, mas não o somos. O brasileiro tem anticorpos poderosos para se defender, isso vem dos movimentos populares, do carnaval, do futebol. Aqui não dá para falar em tristes trópicos. Sua família é de imigrantes judeus. Como é que essa cultura entra na sua literatura? O imigrante é uma pessoa que vê o país com uma sensibilidade especial. Quando você é de uma família de imigrantes, ela é diferente do resto da rua onde você mora: ela fala de um jeito diferente, usa outros tipos de roupa, tem outros gostos alimentares. Para uma criança normal, isso pode ser um problema, mas para um escritor, é um prato cheio ter essa referência.

Paulo Coelho: aproximação com os leitores. À esquerda, Mário Quintana: débito. Acima, Luís Fernando Veríssimo: grande nome.

“Teve quem comentasse que uma vitória minha seria uma espécie de vingança dos gaúchos pelo fato de Mário Quintana não ter entrado para a Academia. (...) Podemos dizer que a Academia pagou um débito que tinha com Rio Grande do Sul”

O senhor teve algum problema por ser de uma família de judeus? Ah, nada muito grave. No geral, apenas piadas de judeu, que não têm lá muita graça. Mas, atualmente, eu até conto piadas de judeu (risos). Como é que foi essa história do escritor canadense Yann Martel ter plagiado um conto seu no romance Life of Pi e ter ganho o Booker Prize? Olha, o que me chateou nessa história toda foi ele ter dito que leu uma resenha falando mal desse meu conto O Jaguar no Escaler, e que achou uma pena um enredo com uma idéia tão boa ter sido tão mal aproveitado. Isso nunca houve, essa resenha nunca existiu. Se ele tivesse me ligado dizendo que teve a idéia de escrever um romance a partir de um conto meu, eu teria concordado com a maior boa vontade. Mas a maneira como fez foi muito desagradável para mim. Aí surgiu a possibilidade de um processo judicial, o que o deixou aterrorizado, mas não o processei. Não sou um homem desse tipo de briga. • Schneider Carpeggiani é jornalista. Continente setembro 2003


Anúncio


Anúncio


»

14 CINEMA

Amazônia

Náufragos Cineasta argentino desbrava as ondas da conturbada ocupação humana na floresta amazônica em documentário exibido na televisão francesa Camilo Soares

Drama humano acrescentado à história oficial

Continente setembro 2003


Fotos: Divulgação

CINEMA 15 » Foto: Camilo Soares

Valenti: tentativa de explicar a Amazônia para os franceses Ao lado, miséria numa terra rica

na floresta

C

omo chegamos a esse estado? Questão de ordem da ECO 92, ponto de partida da aventura que executou o documentarista argentino Alexandre Valenti ao longo do tempo e do território da floresta amazônica. Assim nasceu Eldorado Selvagem (livre tradução de La Ruée Sauvage), vídeo produzido pelo canal France 5 em coprodução com a Mano a Mano (Paris) e MPC (Rio de Janeiro), exibido em agosto na França e sem data prevista no Brasil. A obra repensa os paradigmas ecológicos da grande floresta como fator intrinsecamente relacionado à atividade humana na região. “Escolhemos fatos que pudessem explicar como uma terra tão rica possui uma população miserável”, conta o diretor. O filme trata da ocupação da inóspita terra pelo Brasil “ci-

vilizado”, selecionando alguns eventos-chaves para a compreensão ampla do processo. Começa pelo ciclo da borracha, que atraiu uma enxurrada de nordestinos para o sangramento da seringueira, canalizando toda a força de trabalho da região numa atividade única. Diante da competição da nova e sistemática produção inglesa na Ásia (com sementes contrabandeadas da Amazônia), o látex brasileiro descobriu sua decadência, deixando uma massa de trabalhadores em desamparo. Tal processo de euforia e desgraça se repete ciclicamente, como no ouro e na madeira. O documentário busca personagens para aproximar a história oficial do drama humano vivido na região. Daniel Ludwig é um deles. O milionário americano fez construir uma fábrica de tratamento de celulose para papel no Continente setembro 2003


»

Major Curió, interventor militar em Serra Pelada: restou a melancolia das fotos

Japão e a trouxe de navio ao coração da floresta amazônica. Tinha já seus 70 anos e disse que, como não era afeito a jogos de azar, Jari era sua grande aposta. Perdeu, devido à má escolha de uma árvore asiática que sucumbiu ao primeiro fungo local. Partiu, deixando para trás o Beiradão, uma das maiores favelas fluviais do mundo. Outro caso é quase marqueziano. Entrevista com Curió, prefeito de Curionópolis, ex-interventor militar de Serra Pelada que fundou uma cidade ao lado da mina. Hoje, a mina é encoberta por um lago artificial, cobrindo a vergonha de um local onde cerca de 80 mil homens trabalhavam como formigas para que 85% da produção ficasse com os poucos proprietários que administravam a mina. Resta hoje apenas a melancolia de fotografias

Continente setembro 2003

da época áurea no prostíbulo caindo aos pedaços, onde se escutam ainda os hits da época, sobretudo Roberto Carlos. Mas a velha meretriz ainda acredita que os bons tempos voltarão. Esperança comparável à de antigo colono da Transamazônica, atraído pela propaganda governamental da ditadura militar. Apesar de ter sido abandonado pelo governo no meio da selva, ele afirma que ainda há de ver a estrada asfaltada, todos os 5.600 km do Recife ao Peru. Assim vivem os fantasmas vivos de outros grandes projetos, como a estrada de ferro Madeira-Mamoré, que, apesar de ter custado a morte de cerca de 30 mil homens, devido a acidentes de trabalho e à malária, hoje se encontra abandonada. Ou Fordlância, enclave norte-americano no meio da selva, deixado ao relento.


17

»

Estrada de ferro abandonada e fábrica flutuante, projetos fracassados

Emigrante na França, com filmes realizados em vários continentes, Valenti tem o audiovisual como um instrumento de autoconhecimento. “Um país sem documentários é como uma família sem fotografias, sem memória visual”

Felizmente há melhores exemplos. Poucos é verdade. Cândido Maria Rondon, general apontado pelo presidente norte-americano Theodore Roosevelt como um dos grandes exploradores da história, ao lado de Peary, Amundsen, Charcot e Byrd, construiu 2.600 km de linhas telegráficas entre 1907 e 1914 em plena floresta (em vida percorreu cerca de 40.000 km de floresta amazônica), seguindo à risca sua filosofia em relação ao contato com os nativos: “Morrer se necessário; matar jamais!” Valeu-lhe a indicação de Albert Einstein para o prêmio Nobel da Paz. Um exemplo atual é o projeto Waimiri-Atroari, aldeia que esteve às bordas da extinção e que, graças a ações nas áreas médica e escolar e de apoio à exploração de produtos naturais, apresenta hoje um dos maiores crescimentos populacionais da região. São, inclusive, as únicas imagens atuais (há muita documentação de arquivo, inclusive filmes das expedições de Rondon) não-filmadas pela BetaCam Digital de Valenti, mas pelas câmeras domésticas dos índios. “Se quiser imagem da tribo, só na nossa fita”, explicita o cacique Mário Paruê. “Assim a gente pode contar nossa própria história”, conclui. Conceito entendido por Valenti, que dirige, faz a reportagem, entrevistas e ainda se ocupa da câmera: “No enquadramento, colocamse o medo, as convicções e as paixões. Em todos meus filmes, as imagens são minhas. É como quero contar a história”. Com a história brasileira está familiarizado. Veio ao Brasil em 76, fugindo da sangrenta ditadura argentina, e correu do Brasil fugindo da crise econômica dos anos 80. “Na América Latina, o documentário foi quase inexistente devido às ditaduras, pois poderia mostrar o que estava acontecendo. Hoje há muito o que fazer nesses países.” Emigrado na França, com filmes realizados em vários continentes, Valenti tem o audiovisual como um instrumento de autoconhecimento. “Um país sem documentários é como uma família sem fotografias, sem memória visual”. • Camilo Soares é jornalista, fotógrafo e faz curso de cinema em Paris.

Continente setembro 2003


»

18 CINEMA

Livro demonstra como a linguagem cinematográfica alcançou um desenvolvimento precoce e excepcional

Imagens que falam

Q

uem já assistiu ao filme Nosferatu, do alemão Freidrick Wilhelm Murnau, realizado ainda na época do cinema mudo, em 1922, há de concordar que – mesmo com todo o progresso técnico por que a arte cinematográfica passou – o clima de terror contínuo e sufocante e, em particular, a impressionante performance do ator Max Schreck interpretando o vampiro, continuam insuperáveis. (Recentemente foi feito um filme a respeito, com a boa idéia de que o ator era um vampiro de verdade). Mesmo a versão de Werner Herzog, que praticamente mi-

Continente setembro 2003

metiza o original, sai perdendo. E o cinéfilo mineiro Guido Brilharinho, em seu livro Clássicos do Cinema Mudo, explica por quê. O segredo está em que, no filme de Murnau “a ação, os atos e fatos, que a compõem, são apresentados em cenas e seqüências breves e cortes rápidos, essencializando-se a exposição temática”, diz Brilharinho. O de Herzog, com o auxílio da fala, é mais linear e lento. Mas não é só isso: “Murnau é plástico, escultural e arquitetônico (...) A cena, esculpida ao vivo, com Drácula no tom-


CINEMA 19 badilho do funesto navio que o conduz a Bremen, tendo como ornamento o mastro e o cordalhame marítimo, é de expressiva beleza, tornando-se emblemática”. Herzog poetiza e humaniza o monstro. Enquanto Murnau utiliza a contenção exigida pelas condições técnicas (e de produção) de forma “também conceitual e consciente. Seu Drácula não se expõe nem é exposto. Apenas existe, surge e age. Rápida e fulminantemente. Dele mais não se sabe nem se diz. É o perigo e a morte. Impessoais, objetivos, determinantes”. É, enfim, o que mais contemporaneamente passou-se a designar como uma “máquina de matar”. Murnau baseou-se no livro Drácula, de Bram Stoker, mas trocando o nome do personagem para Nosferatu, tentando esquivar-se de pagar direitos autorais, o que resultou em processo judicial contra ele e o produtor do filme. Ao longo de sua carreira, realizou também outros trabalhos de qualidade, como A Última Gargalhada (1924), Tartufo (1925), Aurora (1927) e, mais uma obraprima, Fausto (1926). Todos devidamente analisados no livro de Guido Brilharinho. Destacando uma época em que o cinema estava sendo descoberto e explorado como linguagem artística autônoma – e, por independer do som, necessariamente mais expressiva – ele faz um levantamento bastante amplo do que melhor se produziu na época, destacando expoentes como a ficção científica Metrópolis (1926), do também alemão Fritz Lang; o painel Intolerância (1916), do norte-americano David Griffllith; o revolucionário O Encouraçado Potemkin, do russo Sergei Eisenstein; e o surpreendente Limite (1930), do brasileiro Mário Peixoto, entre outros, num total de 56 filmes. Tomando como critério primordial a boa utilização da linguagem cinematográfica, ou seja, a imagem em movimento, com ênfase nas angulações e montagem, sem descurar as interpretações, a iluminação, o décor e o enredo, Brilharinho procura, ainda, extrair das obras sua contribuição para um maior conhecimento do ser humano. Seu trabalho, portanto, é analisar e interpretar mas também apontar erros e acertos, afinal, crítica é julgamento, como ele mesmo diz. Por tudo isso, seu livro extrapola a condição de obra de referência – com as produções divididas por países, algumas com fotos, todas com fichas técnicas – para se tornar também um guia esclarecedor, com o qual se pode (de preferência após assistir aos filmes) dialogar e até discordar, mas sempre de forma enriquecedora. (Marco Polo) •

Cartazes de filmes mudos Ao lado: Asas, de William Wellman (USA, 1927) Abaixo, à esquerda, Nascimento de uma Nação, de Griffith (EUA, 1915) À direita, A Caixa de Pandora, de Wilhelm Pabst (Alemanha, 1928) Mais abaixo O Encouraçado Potemkin, de Eisenstein (URSS, 1925) Na página ao lado, cartaz de Metrópolis, de Fritz Lang (Alemanha, 1926)

Clássicos do Cinema Mudo, Guido Brilharinho. Instituto Triangulino de Cultura (Fone/fax: (34) 3312.1122). 296 páginas. R$ 25,00.

Continente setembro 2003


»

20 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Os Seminários de Gil “Vamos reunir, vamos arredondar” Jô Soares, nos tempos da ditadura.

P

osso manifestar de camarote minha decepção com o desempenho de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, nos sete meses iniciais, porque aqui neste espaço defendi sua indicação, recebida com tomates podres pelos membros da Ku Klux Klan nacional e pelos tecnocratas que, por outro tipo de preconceito, não acreditam que um artista possa revelar-se um bom administrador tanto na iniciativa privada quanto no poder público. Continuarei inabalavelmente contrário aos dois preconceitos, mas a fé que me despertou a indicação de Gil deixou de ser uma vela acesa e transformou-se numa poça de cera. Não conheço os cabeças do Ministério da Cultura, mas o fato de serem desconhecidos, para mim e para o mundo da Arte, do Artesanato e do Folclore nacionais, não os desabona. No entanto, tenho medo de que Gil esteja cercado daquilo que Mário de Andrade chamava de “diletantismo petulante”. O relatório dos seis meses do atual Ministério da Cultura distribuído através da Internet, pela secretaria de Comunicação Social do Minc, justifica esse receio. Depois tentarei dizer por quê. O Brasil não é só uma “terra de contrastes”, como disse Roger Bastide, é também a dos paradoxos. Foi justamente Gustavo Capanema, titular do Ministério da Educação e Saúde do Estado Novo, um ex-camisa-parda, jamais liberto de seus amigos integralistas, que reuniu a mais ilustre equipe ministerial que este país já teve notícia, o que o ajudou a tornar-se o melhor ministro da cultura que já tivemos em nossa história. Sua equipe de privilegiados talentos era composta, no entanto, de uma democrática heterogeneidade ideológica. Para justificar-me, vou citar alguns nomes de seu Ministério, em ordem alfabética, para não trair minhas simpatias: Afonso Arinos, Augusto Meyer, Cândido Portinari, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Costa, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oscar Niemayer, Rodrigo de Melo Franco e Villa Lobos, entre outros. Apoiou os remanescentes da Semana de Arte Moderna, publicou as obras completas de Alfphonsus de Guimarães, Continente setembro 2003

estimulou a arquitetura moderna, mexeu com tudo. Durante seu tempo de ministro da Educação e Saúde, foi com a produção cultural do país que ele mais se preocupou. Afinal, fez, sem haver prometido, uma admirável administração cultural. Quando Gilberto Gil foi indicado, a esperança de que o fenômeno Capanema se repetisse, e até que a minha área, a Literatura, “a prima pobre das artes”, segundo Flávio Pinheiro, recebesse alguma mesadinha, cresceu, e depois feneceu. Ele é o ministro que menos audiência pediu a Lula. Se for por orgulho, quem vai perder somos nós. Como, durante a campanha, houve uma porrada de encontros temáticos em cada região do país, que se resumiu no documento petista para a cultura, intitulado A Imaginação a Serviço do Brasil, eu pensei: agora, que os problemas culturais foram discutidos democraticamente com a sociedade, afastando a hipótese de qualquer dirigismo, basta Lula assumir, e seu Ministério da Cultura cair em campo, para trabalhar. Certamente a equipe de transição – relativa à administração cultural – já sabia que dos R$ 3 bilhões investidos pela Lei Rouanet e do Audiovisual, no período ente 1996 e 2002, R$ 2 bilhões cobriram os gastos em eventos (vale o grifo) que se realizaram no Rio de Janeiro e São Paulo. E... o que é mais significativo: 90% desse dinheiro foram para os bolsos de artistas consagrados, que não precisam de dinheiro público, porque os empresários brigam para dirigir seus negócios. Sabiam disso, com certeza, porque entre os quatro itens principais dos documentos que saiu dos seminários de campanha, um deles propõe a criação de um Sistema Nacional de Política Cultural, que ficou sendo visto como uma espécie de “SUS da Cultura”. Passaram-se sete meses e, analisando o relatório das realizações do Ministério da Cultura, dou-me conta de que, de novo, iniciou-se um projeto chamado Refavela, mas não se diz onde e o que foi feito, no mais apenas deu-se continuação, de modo vegetativo, às atividades rotineiras das Secretarias de Música e Artes Cênicas, do Patrimônio, Museus e Artes Plásticas, do


MARCO ZERO 21

Livro e da Leitura, da Fundação Nacional de Arte (Funarte) e da Fundação Casa de Rui Barbosa. Claro, houve muitos espetáculos, fóruns e seminários promovidos. Por falar em seminário, o que eu ia discorrer, mesmo, era sobre o Seminário Cultura para Todos, que se vem realizando em todas as regiões, ocupando o pessoal ligado à cultura, até o dia 19 deste mês, tendo-se iniciado, em Brasília, em 16 de junho. Por falta de seminário, na administração Gil, certamente nenhum padre ficará na rua. Claro que, para analisar todas as propostas e juntá-las num documento operacional, o Ministério levará o resto deste semestre perdido,

deste ano perdido. Nestas horas, lembro-me como nós, os nordestinos, temos do que nos queixar. Em 2002, o Rio teve R$1 bilhão em investimentos das leis de incentivo; São Paulo, R$950 milhões. E o Nordeste inteiro? Apenas R$ 197 milhões. Enquanto isso, um filme norte-americano, como O Exterminador do Futuro II teve um orçamento de 170 milhões. De dólares! Perguntar não ofende: Cadê a Loteria Cultural? • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.

Continente setembro 2003


»

22

ARTES


Fotos: Acervo do artista

DAREL

de corpo inteiro O pintor, desenhista e gravador pernambucano diz que tem quatro fases definidas: cidades, anjos, máquinas e mulheres Weydson Barros Leal

D

iz-se que uma das maneiras de se definir Darel Valença é “um gênio de gênio difícil”. Conversando com ele sobre arte, porém, não é o que parece, pois se trata de um artista dotado de um humor e ironia deliciosos. A dificuldade de seu “gênio” talvez se deva a uma personalidade inquieta e um espírito assaz refinado, que parece se divertir ao avisar-me antes de qualquer pergunta: “Eu sempre me contradigo. O que eu digo hoje, não será a mesma coisa amanhã. É mais ou menos como a pintura. O quadro nunca é o mesmo. O quadro que vejo hoje não será o mesmo que verei amanhã”. Peço-lhe para esclarecer sobre esta advertência, e ele explica:”O quadro é muito parecido com o casco do navio. Lembro de minha infância e adolescência quando ia ao porto do Recife e via os navios. Sempre ouvia que aqueles cascos manchados nunca seriam os mesmos, as manchas não seriam as mesmas quando os navios chegassem no próximo porto ou quando voltassem ali. Assim como aqueles navios, a cada dia eu não sou o mesmo e o quadro não é o mesmo”. Darel Valença nasceu em Palmares, interior de Pernambuco, em 9 de dezembro de 1924. Sua história, de quase 80 anos, não é simples resumir, pois inclui viagens, pessoas e lugares por que passou desde os 13 anos, quando deixou a terra natal. Nessa idade, foi trabalhar como auxiliar de escritório numa usina de açúcar em Catende, na Zona da Mata pernambucana, on-

Da Série Karla. Técnica mista sobre tela. Década de 80


»

24 ARTES

de aprendeu desenho técnico. Aos 17 foi para o Recife, de onde, anos depois, de novo partiria. Até hoje, de cada lugar onde esteve ele traz uma recordação ligada ao desenho, assim como lembra a primeira vez que despertou para esta arte: “Lembro uma coisa boa de minha infância: lá em Catende tinha uma tipografia, uma gráfica, onde trabalhava Bajado, um grande desenhista, que depois foi viver em Olinda e ficou famoso como pintor. Foi ele quem me fez despertar para a arte, aos 6 ou 7 anos de idade, vendo-o desenhar em talões de jogo do bicho. Com ele descobri a sensibilidade do lápis sobre o papel. Seus desenhos eram sempre instigantes e me fizeram querer desenhar também. Outros pintores e desenhistas podem ter sido despertados por Piero della Francesca ou Michelangelo. Quanto a mim, eu vi a arte através de Bajado.” Chegando ao Recife em 1941, Darel iniciou estudos de desenho na Escola de Belas Artes. Foi expulso, segundo ele, porque não aceitava os modelos de gesso, preferindo retratar artistas como Greta Garbo, que via nas revistas de cinema – arte que até hoje é uma de suas paixões: “Gosto muito de música e cinema. Desde menino vejo e gosto de cinema. Creio até que a cinética e a imagem do cinema me influenciam.” Diferente da maioria dos pintores sobre quem outros pintores predominam como influências, para Darel são a fotografia e o cinema que lhe despertam a observação do comportamento e da alma humana, isto sim, elementos marcantes em sua obra: “Todo o meu trabalho tem algo nas dobras de sua alma que também está nas dobras da alma humana”, traduz. Inquieto em sua própria alma, aos 20 anos Darel já estava no Rio de Janeiro. Começou a estudar gravura com Henrique Oswald no Liceu de Artes e Ofícios. A arte da litografia, conta Darel, aprendeu

Série Mulher de Máscara. Litografia colorida. Década de 80


ARTES 25 »

Darel Valença. Acima, Série Topografia. Gravura águaforte sobre papel. Década de 60

nessa época, com um homem simples que apenas conhecia como “Bacalhau”. Bacalhau fazia litografias industrialmente, para criar estampas de tecido, cartas de baralho, caixas de biscoito Aymoré. “Anos depois, lembra Darel, quando cheguei ao Museu Nacional de Viena para fazer um curso de litografia, o professor me disse: – Mas você já sabe tudo!...” Entre 1951 e 53, Darel ensinou gravura em metal no Museu de Arte de São Paulo. Também foi professor na Fundação Armando Álvares Penteado e Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, tornando-se amigo de outros jovens desenhistas como Marcelo Grassman n, Cláudio Corrêa e Castro, Iberê Camargo, Pancetti, Burle Marx e Mário Gruber. Recebeu o “Prêmio Viagem ao País”, no Salão Nacional de Arte Moderna de 1953 e, em 1957, no mesmo Salão, o “Prêmio Viagem ao Exterior”, com litografias em preto e branco. O tema desses trabalhos – Cidades – é um dos principais em sua obra. Viajou no ano seguinte, permanecendo por dois anos na Europa. Em 1961, de volta ao Rio de Janeiro, conheceu Goeldi, que exerceu sobre ele enorme influência e o convenceu a expor na Bienal de São Paulo daquele ano. Na Bienal seguinte conquista o “Prêmio Melhor Desenhista Nacional”. Durante os dois anos em que viveu na Europa, Darel desenhou inúmeras “paisagens” e executou doze murais para a cidade italiana de Reggio Emilia. Neste período, conheceu Giorgio Morandi. “Era uma época de muita ebulição. Havia muitos debates sobre a validade dos ismos – quase sempre sobre o ‘figurativo’ e o ‘não figurativo’. Era a tônica das brigas entre os artistas. Sempre que eu tocava no assunto, ele, Morandi, me respondia com uma metáfora. Lembro certa vez, quando estávamos na sala de seu pequeno apartamento, e lhe perguntei algo como ‘o que você acha do figurativo e do abstrato’? Ele


»

26 ARTES

Série Cidades. Óleo sobre tela. Década de 90

respondeu: – Precisamos reencontrar a confiança na natureza. Então, apontando a paisagem pela janela, eu quis saber: – Essa natureza? E ele: – Não esta que nós vemos, mas aquela em que nós acreditamos e que está dentro de nós...” De repente, Darel adverte: “Mas olha, se eu continuar vai ser um blá, blá, blá que vai me exaurir”, e ri, como se risse de si mesmo. Mas finaliza: “Daí, eu diria aos futuros artistas: – Não pratiquem arte: é um péssimo negócio! Porém, se em vocês o ato de pintar, gravar ou desenhar for uma necessidade vital, então sobrevivam! Sobreviver é importante!”, e ri largamente outra vez. Uma biografia ainda que abreviada de Darel não pode deixar de mencionar, livre do rigor cronológico, o “Prêmio de Gravura no Salão de Arte Moderna do Recife”, em 1951, ou a homenagem de uma Sala Especial na 9ª Bienal de São Paulo, em 1965. Além dos grandes museus brasileiros, entre os museus internacionais que têm obras suas estão o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, o Palácio de Belas Artes de Bruxelas, o Museu de Arte Moderna de Roma, o Kunsthistorisches Museum de Viena, o Museu de Arte Moderna de Madri e o Yaw Huang Art Museum de Pequim. Em sua atividade como desenhista no Rio de Janeiro, onde dirigiu por 16 anos a parte técnica das edições Cem Bibliófilos do Brasil, Darel ilustrou obras de Tolstoi, Gogol, Dostoievski e de brasileiros como Graciliano Ramos. Com seu gênio autônomo, no entanto, não aceitava ilustrar obras de todos os escritores: “Me recusei a ilustrar José Lins do Rego e Jorge Amado porque nunca achei nada naquilo. Ilustrei São Bernardo”. Pergunto-lhe sobre a leitura de escritores e poetas franceses que marcaram quase a totalidade de outros artistas de sua geração. Ele afirma: “Nunca li Baudelaire! Aos 17 anos comecei a ler os grandes da literatura russa. Depois emigrei para Kafka e depois Graciliano Ramos. Sempre achei a literatura francesa melodramática. Iniciei Os Miseráveis, de Victor Hugo, mas nunca me detive na literatura francesa. Só do cinema francês eu gosto muito, e prefiro a todos os outros, principalmente a década de 40”. Aos poucos, suas preferências literárias são reveladas: “Adoro Clarice Lispector, assim como sempre fui um leitor voraz de Garcia Marquez. Na poesia, gosto muito do Ferreira Gullar, meu amigo.” Alguns dos principais críticos, poetas e escritores brasileiros escreveram sobre a obra de Darel Valença. Entre aqueles que ele guarda com maior carinho, estão depoimentos ou ensaios de Vinícius de Moraes (cujo último Série Os Amarrados (Acervo do MAM de São Paulo). Óleo sobre painel. Década de 70

Continente setembro 2003


ARTES 27 »

texto de arte foi sobre Darel ), Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, Mário Pedrosa e Radha Abramo. Num estudo escrito de forma espontânea, “sem lhe ter sido encomendado”, a indagação de Mário Pedrosa parece definir os motivos por que o Darel gravador assumiu definitivamente o terreno do desenho: “A que grau de essencialidade última pode descer um gravador, sem que mude de gênero ou mesmo de maneira? Ao desenho, e só ao desenho.” Como um Degas e tantos outros pintores que amaram a forma e o movimento, Darel até hoje se utiliza da fotografia como fonte para seu desenho, seja para recortes e colagens ou como modelos para a recriação de suas figuras. Em toda sua obra, temas centrais podem ser identificados: “Tenho quatro fases bem definidas: cidades, anjos, máquinas e mulheres”, ele analisa. No entanto, o tema que definitivamente marca sua obra é a figura feminina: a mulher como centro do desenho. Assim como outros dois pintores pernambucanos, Francisco Brennand e João Câmara, cujos desenhos e pinturas são permanentemente habitados pela forma feminina, Darel eleva o seu tema à potência máxima de uma figuração picante, provocadora – mas não menos poética – com figuras que estão quase sempre na fronteira de um ambiente onde o sexo foi ou será a ação. Comento sobre esse “erotismo” ou sensualidade latente em seus desenhos cujo tema é a mulher, e pergunto-lhe sobre afinidades com pintores como Egon Schiele. Darel explica suas filiações: “Sou mais ligado a Gustav Klint, Bonnard, Francis Bacon, Iberê, Pancetti. Vejo beleza e sensualidade em toda obra de arte em que o artista esteja completo, por inteiro. Você já notou quanta sensualidade– e até mesmo sexualidade – em quadros de Bonnard, Morandi? Os artistas, em sua maioria, não penduram sua parte sexual atrás da porta quando estão trabalhando, estão completos, estão de corpo inteiro.” Quero insistir sobre o tema da mulher, da vontade e do impulso que o fazem perseguilo em cada desenho. Mas dessa vez, ele nega: “Não ‘persigo’, não procuro. Eu encontro episódios. Meus episódios estão na paisagem, nas máquinas, nos gatos, nas mulheres, até num canto de muro mijado por um cachorro. Não sei por que aparece o desejo de pintar, desenhar, gravar...” E curiosamente, completa: “Não sou ligado à sexualidade, sou ligado a tudo que me fala ao lápis”. Mas estaríamos, eu ou ele, negando ou afirmando o que a arte diz por si mesma – a despeito da crítica ou das respostas de seus autores – e que está vivo em toda obra

Episódio íntimo. Técnica mista (lápis de cor, pastel e tinta a óleo) sobre papel. Década de 80

Continente setembro 2003


»

28 ARTES

viva? Haveria, na incompreensão do erotismo ou da crítica social de qualquer obra, o risco dessa obra se tornar uma estranha “heresia”? Darel defende: “Uma manifestação artística nunca é herética. O artista é um homem que vive e se manifesta de acordo com a ‘forma social’ que está vivendo, assim como o sapateiro ou outra profissão qualquer. Não saberia lhe dizer quando um homem comete uma ‘heresia’. A limitação está em mim. No meu caso, meu ‘erotismo’' é como a minha fome, está no espaço do despertar o ver e o admirar”. Não há erro, julgamento, ou limitação. Ao poeta e ao artista, tudo é permitido, principalmente quando transitam nos domínios ilimitados da arte. Na obra irretocável de Darel Valença, o que a pressupõe e ilumina em cada quadro ou desenho é a certeza de um profundo amor por cada coisa, por cada traço, em cada espaço, em cada cor. Seria então esse amor a força responsável por uma obra tão bem sucedida e tão rica em variações técnicas e temáticas? Seria o amor a definição de tudo? Darel responde: “Não vejo o amor como um trilho, algo permanente, imutável. Eu olho o amor como um leque de várias cores. É aberto e colorido como um rainbow. O amor é muito parecido com a pintura: o quadro nunca é o mesmo, a pintura nunca é a mesma a cada dia, assim como o amor.”

Sem título. Litografia colorida. Década de 80

Continente setembro 2003


ARTES 29

Depois de viajar o mundo, e vivendo no Rio de Janeiro há mais de 50 anos, Darel afirma com orgulho nunca ter esquecido duas cidades: “Eu nunca saí do Recife. E acho que o Recife e Roma nunca saíram de mim.” Em sua voz, estão os registros de temas e fatos de uma infância que permanece viva em narrativas infinitas: “Os dramas sociais da Zona da Mata jamais me abandonaram... Mas como era bom desenhar lá em Catende!... Tinha a rua da Guabiraba, que era a rua das prostitutas, e lá na rua tinha Clarice, uma prostituta de 16 anos, que foi a minha primeira grande paixão. Eu tinha 13 anos. Clarice também era conhecida como ‘Tristeza da pancada do sino’, porque tinha um ar triste, sempre melancólico. Um dia Clarice não quis mais aquela vida, ateou fogo no corpo e correu pela rua, em chamas. Mas ela sobreviveu... Acho que todas as mulheres que pintei até hoje foram a solidão de Clarice... Mas tudo isso é outra história.” •

Weydson Barros Leal é poeta e crítico de arte.

Sem título. Técnica mista sobre papel. Década de 80

Continente setembro 2003


»

30 ARTES

Livro de circulação restrita traça vasto e movimentado painel da produção pernambucana das últimas cinco décadas em Artes Plásticas, Arquitetura, Música e Arte Popular

Crianças Abandonadas, Abelardo da Hora, 1964, escultura em bronze, 90 x 30 x 20cm, acervo do artista

50 anos de arte

Fotos: Imago

A

Torre da TV Tribuna, Fernando Guerra, 1988 Continente setembro 2003

efervescência cultural em terras pernambucanas, nos últimos 50 anos, ganha um registro importante, embora de acesso restrito: uma iniciativa da Quadro Design, do Recife, com patrocínio da Construtora Queiroz Galvão, o livro Pernambuco 5 Décadas de Arte teve tiragem de três mil exemplares, fora de comércio. Em formato quadrado (26,5 x 26,5cm), capa dura, sobrecapa, 224 páginas, papel couchê, fotos coloridas e P&B, contém um vasto panorama da produção local nas áreas de Artes Plásticas, Arquitetura, Música Popular e Arte Popular. Para os privilegiados destinatários de um exemplar, é coisa pra se guardar. O texto sobre as Artes Plásticas, dos jornalistas André Rosenberg (coordenador) e Cristiana Tejo, percorre desde a criação do Ateliê Coletivo, em 1952, sob a liderança do escultor e gravurista Abelardo da Hora, até o último Salão Oficial de Artes, realizado em 2002, passando pela experiência do Gráfico Amador, ainda nos anos 50, capitaneado por Aloísio Magalhães, numa profusão de nomes, estilos, escolas e obras que fazem do Recife – Olinda um centro criador de marcante presença. Assinado pelo arquiteto Luiz Amorim, o ensaio sobre Arquitetura inventaria o acervo arquitetônico e urbanístico pernambucano, no quadro das transformações urbanas e culturais configuradas na arte da construção humana, da época colonial às soluções contemporâneas. Registra marcos, como instalação da Faculdade de Arquitetura, em 1958, em desdobramento à instituição do curso livre de Arquitetura na antiga Escola de Belas Artes, em 1932; a Lei de 1953, definindo normas para construção de edifícios (altura, recuos progressivos de acordo com o número de pavimentos e afastamento


ARTES 31

»

Foto: Acervo família Rozenblit

entre os prédios, no que ficou conhecido como o “antimodelo Copacabana”); e a publicação de Roteiro para Construir no Nordeste (1976), de Armando de Holanda Cavalcanti, contribuição teórica sobre os princípios básicos para se construir em climas quentes e úmidos. Apresenta fotograficamente belíssimos exemplares históricos e atuais da Arquitetura aqui produzida por profissionais da terra e de fora. No capítulo musical, redigido pelo jornalista e crítico José Teles, o passeio pelos sons pernambucanos começa pela onipresença do baião estilizado por Luiz Gonzaga, a partir de 1947, e deságua no mangue recifense, com a música de Chico Science & Cia emergindo da lama para o mundo a partir de 1990. São focalizados aspectos multifacetados da produção musical – da fundação da fábrica de discos Rozenblit ao sucesso do frevo-de-bloco Evocação, da participação do Clube Vassourinhas no Carnaval de Salvador em 1950, dando origem ao nascimento do trio elétrico baiano aos movimentos alternativos, festivais, manifestos e performances da década de 70. A jornalista Maria Alice Amorim traça um amplo painel da Arte Popular, estabelecendo “uma trajetória histórica, antropológica e sentimental pela descrição do cotidiano encontrado no artesanato de Pernambuco, figurativo e utilitário, dos últimos 50 anos, espalhado em museus e coleções particulares”. Brinquedos, cerâmica, escultura em madeira, tapeçaria e tecelagem, rendas, roupas de couro, máscaras, trançados em palha – um mundo recriado por artistas de Caruaru, Tracunhaém, Olinda, Goiana, Ibimirim e tantas cidades, revelando mestres do porte de um Vitalino. De feição predominantemente jornalística, com abordagem histórico-descritiva, Pernambuco 5 Décadas de Arte é documento que merece circulação mais ampla. (Homero Fonseca) •

Fábrica de discos Rozenblit deu um grande impulso à divulgação do frevo nos anos 50 e 60

O passeio pelos sons pernambucanos começa pela onipresença do baião estilizado por Luiz Gonzaga, a partir de 1947, e deságua no mangue recifense, com a música de Chico Science & Cia emergindo da lama para o mundo a partir de 1990

Figura do Bumba-meuboi, Manoel Eudócio (Caruaru), cerâmica policromada, 23cm, acervo particular

Continente setembro 2003


»

32 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Cézanne e o futuro Ao libertar a pintura tanto da visão literária como da sujeição à realidade, Cézanne lhe deu uma autonomia que ela nunca havia conhecido

A Casa do Enforcado (1873), de Cézanne

N

uma época em que, salvo engano, as artes plásticas parecem viver um de seus momentos mais críticos, tenho tentado aqui, de maneira assistemática – tateando, por assim dizer – refletir sobre alguns aspectos da crise e, particularmente, sobre as origens dela. O que conduziu a arte à situação em que se encontra hoje? Um dos fatores que me parecem constantes no processo que conduziu à desintegração das linguagens artísticas, é a eliminação do elemento imaginário na realização da obra. Explico-me: a partir do Realismo, em meados do século 19, o artista tratou de eliminar da obra tudo o que fosse literatura, fantasia, para fixar-se no mundo real. Hoje, gostaria de examinar de que modo essa busca da arte realista, sem ilusões, manifestou-se na pintura de Paul Cézanne, o artista que se tornou o marco divisório entre a arte do passado e a arte contemporânea. Continente setembro 2003

Como se sabe, o Impressionismo encarou a natureza como mero fato perceptivo, uma soma de sensações cromáticas. Isto significa que, para eles, a natureza era apenas um fenômeno sensorial, presente, sem história, sem cultura, sem passado e sem mistério ontológico: a aparência é a essência. E porque a cor é na verdade vibração luminosa, que muda com o passar dos minutos, a realidade é percebida pelos impressionistas como um devir, um fluir do tempo. No quadro, tudo resulta objetivamente numa linguagem fluida, amorfa, sem estrutura. Cézanne é o pintor expressionista que reage a isto, pois, conforme suas próprias palavras, queria fazer do Impressionismo algo sólido e durável como a arte dos museus. Para consegui-lo teria que evitar o pontilhismo, a pequena pincelada repetida e fugaz. Para captar, como desejava, a estrutura interior da paisagem, ou, melhor dizendo, inventá-la


TRADUZIR-SE 33

no quadro, teve que enveredar por um caminho inesperado e contraditório que revolucionaria a linguagem da pintura. Mas façamos uma pausa para refletir sobre a aventura cezanneana. Ele afirmou: Não sou romântico e, depois, quero a verdade. Noutras palavras, seguidor da visão realista, queria criar sem se valer de quaisquer dos recursos que o Romantismo havia posto em voga e o Realismo rechaçara. Não obstante, tampouco desejava imprimir a seus quadros a fidelidade quase fotográfica do realismo de Corot. Eliminar da pintura toda a fantasia, toda a literatura, toda a ilusão sem ao mesmo tempo conformar-se com o realismo tout court nem com a notação sensorial impressionista, é o desafio de Cézanne. Mas, consciente da necessária transcendência da arte, se não podia conformar-se com a cópia do real nem tampouco lhe bastava o mero registro de sensações. Ele afirmou: quero captar o sentido oculto da natureza. Tentou, assim, fazer a síntese de coisas antagônicas: a fluidez e a permanência, o frescor da experiência primeira (la petite sensation) e a estrutura sólida. Então as questões se colocam: como alcançar aquele sentido oculto mantendo-se na superfície da sensação, na aparência do real? Como superar a aparência sem sobrepor-lhe nenhuma fantasia? É o impasse. E este impasse, ao que me parece, determinará o rumo tomado pela pintura de Cézanne e que resultou numa ruptura com a linguagem pictórica tradicional. A questão assim se coloca: se não era possível nem sobrepor a fantasia ao real nem simplesmente copiá-lo, a solução foi, para Cézanne, transfigurar a própria linguagem pictórica sintaticamente. Noutras palavras: se a pintura não mais narra, não mais simboliza, não mais expressa o imaginário, o único modo de imprimir-lhe transcendência é negá-la não apenas como cópia da realidade mas também como herdeira da pintura que a copiou. Cézanne o consegue acentuando a materialidade da linguagem pictórica e invertendo a relação semântica entre pintura e realidade: o lago que aparece na paisagem pintada não quer imitar a água – mas ser apenas uma mancha de azul; a casa não quer ser uma casa – mas apenas manchas de laranjas e amarelos. Ele o diz: o milagre aí está, a água mudada em vinho, o mundo mudado em pintura. Como homem dos tempos modernos, que não podia ignorar a ciência e a concepção material do mundo, Cézanne não

concebe a pintura desvinculada da natureza. Nem o poderia, pois, a alternativa seria entendê-la como veículo de concepções intelectuais, fossem elas literárias, teatrais ou históricas, como fizeram os pintores no passado. A ruptura drástica com todas essas concepções é que o obriga a descobrir um novo caminho, pois, ao libertar a pintura tanto da visão literária como da sujeição à realidade, ele lhe dá uma autonomia que ela nunca havia conhecido. Como escreveu Maurice Denis, as maçãs pintadas por outro pintor despertavam no espectador a vontade de comê-las, mas as maçãs pintadas por Cézanne os faziam exclamar que belas!. Isto significa que as maçãs de Cézanne, antes de serem frutas, são pintura, objetos do mundo pictórico não do mundo natural. No entanto, ao mudar o mundo em pintura, ou seja, ao dar à maçã uma outra realidade, uma outra substância, ele, contraditoriamente, desvincula a pintura da natureza, essa natureza, sem a qual, na sua própria opinião, ela não existiria. Precisando melhor: Cézanne, ao transformar a natureza em pintura, torna a pintura uma questão linguística mas, por partir da natureza, ainda está sujeita a ela. As suas maças não são reais, mas nascem delas; os ramos vigorosos do Grande Pinheiro não pertencem mais à flora, não obstante ainda são metáfora de ramos; ou seja, na pintura de Cézanne, a natureza está se mudando em pintura mas ainda não completou essa mudança. E não a completou porque, para fazê-lo, seria necessário esquecer a natureza, não mais tomála como fonte da obra. Era somente um passo mais a ser dado mas um passo que viraria a pintura de cabeça para baixo. Este passo foi dado por Picasso e Braque quando abandonaram as paisagens do Estaque e as coisas do mundo exterior para pintar a partir dos elementos linguísticos da pintura: partiram da tela em branco e criaram novos objetos: as guitarras, frutas ou garrafas, que então aparecem em seus quadros só existem ali: foram inventados. Sem dúvida há fantasia nesta pintura, mas uma fantasia que nada tem de literário ou simbólico: a fantasia da linha, da cor, da forma, da matéria. •

Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.

Continente setembro 2003


34 LITERATURA

Arte sobre foto: Zenival

»

Sagração do poeta maldito Lançamento de O Mundo como Idéia, concebido em 1959 por Bruno Tolentino, coroa de prêmios o poeta Cláudia Cordeiro Reis


LITERATURA 35 »

O

reconhecimento da obra de Bruno Tolentino vem se fazendo, desde 1995, com o seu primeiro Jabuti, dois anos depois de sua volta ao Brasil. A seguir, os prêmios Cruz e Souza 1996 e Abgar Renault 1997. Mas, neste ano de 2003, com O Mundo como Idéia, obtém o Prêmio José Ermírio de Moraes (75 mil), pela primeira vez concedido a um poeta, e, pela segunda vez, o Jabuti. A obra é composta de dez ensaios e 366 poemas, alguns escritos em inglês, francês e italiano. O poeta é convidado especial do Instituto Maximiano Campos, para participar da IV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco (4 a 12 de outubro) como palestrante do seminário sobre a Geração 65, a grande homenageada do evento. Na oportunidade, ele também estará autografando seu novo livro.


Foto: RV/AFP

36 LITERATURA Quem é Bruno Tolentino? Não é fácil avaliar-se a si mesmo, especialmente a quem lhe importa sobretudo o prodigioso trabalho da graça divina sobre o sempre iminente desastre humano. Por exemplo: à meia-noite o citado Fulano de Tal invariavelmente me parece um pobre diabo que a Providência insiste em cobrir de favores inexplicáveis e acaba por constranger com uma pletora de dons cada vez mais difíceis de justificar pelo bom uso. Em favor do pilantra pode-se, talvez, alegar uma integridade intelectual que reconhecidamente nunca esteve no balcão das conveniências e cambalachos; com maior ou menor justiça, já fui acusado de vários tráficos, de divisas, de drogas, de armas, mas nunca de tráfico de influência! Nesse sentido, Antônio Houaiss refere-se a este marginal nato como “o intérprete destes tempos que não busca o compadrio dos espertos e artimanhosos...” Com efeito: fiz inúmeros amigos no submundo, troquei a universidade pela cadeia e de ambas saí com um nome limpo, pois nunca tive nada a ver com o crime organizado, muito menos com a versão dele que assola a República das Letras. É possível que meu traço mais inamovível seja mesmo certa ingenuidade quase infantil frente à relação artevida, o que certa vez levou Ungaretti a me apresentar a Carlo Levy como sendo “o único gênio retardado que eu conheço”. Quanto a um outro traço meu bem mais deplorável, a língua ferina entortada pelo vício da ironia, quando não do sarcasmo, Martin du Gard dizia que se tratava de uma espécie de “anjo do mal a serviço do bem”. Já Samuel Beckett disse que o mesmo personagem seria uma espécie de sujeito que “não sabendo que era impossível o que se propunha fazer, foi lá e o fez...” Que significa esse novo livro para você? Devo me confessar absolutamente desconcertado não só com o ruidoso eco na imprensa, mas com o contínuo sucesso de vendas do meu trabalho mais difícil, um livro enorme, caro e complexo, o qual imaginei viesse a necessitar de duas ou três décadas para ser lido e digerido. Note-se que não digo aceito e admirado, isso jamais esteve em meus cálculos. Afinal, tratase de um libelo contra o subdesenvolvimento intelectual, o vício nacional da ideologia, e sobretudo, espero eu, de um xequemate às utopias formalistas e aos populismos terceiro-mundanos que devastaram nossa cultura nos últimos 50 anos. Por que sua admiração por Ovídio? Em arte admira-se sobretudo o inalcançável, o que não se é por natureza e portanto não se faz por inclinação natural. Minha forma mentis será, sim, antes bem mais horaciana, ou mesmo virgiliana, do que sáfica ou pindárica, mas é em Ovídio que fui aprender a naturalidade da frase musical, inseparável da sensibilidade profunda subjacente à fala da tribo. Sempre me horrorizou o poema que se afasta orgulhosamente da fala comum, da comunicação natural, detesto todo maneiris-

Continente setembro 2003

mo em arte e não vejo senão afetação no hermetismo tão ao gosto dos doutos sem assunto: afinal, o que se concebe com clareza se exprime com facilidade... Por outro lado, penso de um modo e escrevo de outro, a contrapelo do que me seria fácil, porque tampouco creio no espontâneo, desconfio tanto do rebuscado quanto do aparentemente conclusivo, daí que faça e refaça incansavelmente meus textos, e meus livros levem anos, décadas para encontrar a forma final. O que você acha das vanguardas em poesia e do versolibrismo? O que inspira a produção de poesia é o fato de se ver fazer boa poesia, e as ditas vanguardas nunca fizeram absolutamente nada além de receituários, um atrás do outro e todos instantaneamente caducos. Só presta o que tem eco e raiz na tradição, o Aprés-midi d’un faune de Mallarmé, o Mauberley de Pound, a Chanson du mal-aimé de Apollinaire, etc., quase todo o resto, inclusive desses mesmos autores, são receitas para um bolo que não fizeram e que, quando alguém tentou fazê-lo, mofou sem que ninguém lhe digerissse uma única fatia... Quanto ao versolibrismo, seja lá o que for hoje em dia, é preciso ser um Fernando Pessoa, um Saint-John Perse, um Drummond ou um Seferis para fazê-lo bem. Como dizia Eliot: nenhum verso é livre o bastante para quem quer fazer bem seu trabalho. Mas, atenção: não há nada demais em “se meter a fazer poesia”, o grave é a proibição de tentar fazê-la desse ou daquele modo, chega de nihilismos bocós, de desconstruções, de ismos e mesmismos, basta de DOI-Codis artístico- Lygia FdaeguAnsdseiss:Ttealllenetso epauMlaicshtaadeo literários neste país! Vive la carioca, respectivamente. Carlos difference! Tal ou tal poeta se- Drummond de Andradev:ermseoslitbrreisnmoo meteu-a-fazer e ainda não Foto: Divulgação

»


LITERATURA 37 » sabe como? Pois que faça mais e mais até acertar a mão e o ouvido, eu quero é mais! As cordilheiras não são feitas de picos, mas de sucessivas camadas invisíveis, de acumulações, inclusive as mais minúsculas, ou alguém acha que haveria algum Everest sem o primeiro metro-e-meio do Himalaia? A crítica do sul do país, principalmente, vem alardeando, depois da morte de Cabral, que a poesia pernambucana não existe. Você concorda com esse argumento? Ora, ora, a “crítica” do sul maravilha ainda preocupa alguém! Será que estamos falando dos eternos marqueteiros da Paulicéia Desvalida? À parte Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles e mais um ou outro talento, como Chamie, Piva e Raduan, por exemplo, o que é essa gente em comparação com o resto do país? A poesia, a arte, o gênio nacional sempre vingaram no Nordeste ou nas Minas Gerais, enquanto tudo convergia para a Corte, que obviamente nunca se saiu muito mal, com Machado, Cecília, Vinícius... Hoje em dia, cem anos depois de S.Paulo ter começado a aparecer no mapa artísticocultural do país, há uma chance de que, com o enraizamento de novas levas de imigrantes, sobretudo do Norte, miscigenados aos netos e bisnetos de imigrantes europeus e levantinos

"O desconhecimento nacional da estupenda safra de vates da Geração 65 é simplesmente um escândalo, e temo que tenha sido um escândalo deliberado, inclusive com a cumplicidade de alguns conterrâneos de maior projeção pessoal no Sul Maravilha"

(que construíram uma metrópole vibrante mas artisticamente tão débil quanto presunçosa), pode ser que essa nova fermentação venha a produzir grande arte. Há sinais disso. Mas até lá, são os do Norte que têm e fim de papo! Ou será por acaso que hoje, neste exato instante, nossos três maiores vates sejam o maranhense Gullar, a mineira Adélia e o pernambucano Cunha Melo? Qual a sua opinião sobre a Geração 65? O desconhecimento nacional da estupenda safra de vates da Geração 65 é simplesmente um escândalo, e temo que tenha sido um escândalo deliberado, inclusive com a cumplicidade de alguns conterrâneos de maior projeção pessoal no Sul Maravilha. Aliás, é esse um traço lastimável: vocês vivem cortando os pulsos uns dos outros, deve ser coisa de nordestinado, nisso só os cearenses não são tolos. Se os pernambucanos fossem unidos como eles e adoráveis como os baianos, punham Pindorama no bolso, o MASP, por exemplo, estaria no Recife, afinal foi um nordestino quem o concebeu e fez... Porque não é só na poesia que a turma aí é de primeira, a pintura também é impressionante. Mas Deus sabe o que faz: assim, enquanto vocês fingem que não se lêem, não se vêem e não se conhecem, sobra um pouquinho para nós aqui por baixo... Mas já são horas de acordar, minha gente, afinal, até nosso presidente já é pernambucano! • Cláudia Cordeiro Reis é professora especialista em Literatura Brasileira e editora dos sítios virtuais Plataforma para a Poesia (www.plataformaparaapoesia.kit.net) e Trilhas Literárias (www.trilhasliterarias.kit.net).

Foto: Editora Martins Fontes/ Divulgação

Foto: Editora Record/ Divulgação

Continente setembro 2003


»

38 LITERATURA

B

runo Tolentino elaborou, durante quatro décadas, uma poesia permeada de erudição e referências a uma série de artistas e escritores ocidentais consagrados. Em O Mundo como Idéia, publicado pela Globo em 2002 e prêmio Jabuti de 2003, ele não hesita em pagar bem pagos seus tributos artísticos e culturais. Filósofos como Kant e Pascal, poetas como Rilke, Auden, Ungaretti e Baudelaire, pintores não tão conhecidos no Brasil, ou conhecidos apenas de oitiva como Ucello e Masaccio, desfilam recorrentemente por seus versos. Este cânone impecável e múltiplo envolve também brasileiros (Drummond, Cecília Meireles e Murilo Mendes), além de outros ingleses, alemães, franceses e italianos. Tolentino dedicou cerca de noventa páginas do livro a explicar e elucidar seu próprio percurso intelectual e a gênese de O Mundo como Idéia, talvez prevendo o torcer de narizes da crítica brasileira. Nessa prosa introdutória, ele fala sobre a complexidade da cultura ocidental, colocando como ponto de inflexão artístico o pré-renascimento no século 15. Discute, entre outras coisas mais, a escolha do título inusitado para um livro de poesia, nomeia os contatos determinantes com poetas locais e do exterior, que o apoiaram ou exerceram algum tipo de influência na sua performance poética a partir da década de 1950. Sua obra é vigorosa, instigante e desconcertante. E o que é mais significativo ainda, apresenta-se desprovida de provincianismos reinantes e/ou renitentes. Como crédito do lastro cultural cosmopolita do autor, O Mundo como Idéia contém poemas escritos em cinco idiomas (podendo um mesmo poema estar escrito simultaneamente em mais de um). É composto por três livros: Lição de Modelagem, Lição de Trevas e Imitação da Música. As formas que pratica são aquelas derivadas da poética tradicional como o soneto decassilábico e a terza rima, de quebra com alguns poucos poemas sem metro definido. Não renega as soluções difíceis, às vezes enviesadas, ao fechamento de poemas. Uma contribuição importante de sua poesia está na utilização corajosa que faz das palavras usuais da tribo, apesar de ter vivido tanto tempo fora do país. De outro modo, traz palavras de pouca ressonância e infreqüentes em português, mais adequadas ao versejar de ingleses ou norteamericanos, a exemplo de “tordo”, pássaro comum naqueles países. Imitação da Música guarda a unidade formal mais visível, nos seus 101 sonetos. O soneto 34, por exemplo, alardeia a opção radical pela liberdade artística, pregando o desvencilhamento de álgebra e geometria. Estabelece o contraponto entre a dura concretude das coisas e vivências corriqueiras e a magia insuflada pela mão que pinta um quadro para a eternidade: “Se é uma loucura confinar a vida/ na armadura mental de uma equação,/ mais grave ainda é sufocar com a mão/ a boca soluçante da ferida.” No poema “O espectro”, de Lição de Modelagem, a revelação de poesia e filosofia se dá através de Kant e Baudelaire: “Pois foi assim que o espectro da poesia// surgiu-me um belo dia, e veio a mim/ assim que eu consegui levar a sério/ os canteiros de Kant num jardim// à beira Tâmisa, ante um cemitério...” Baudelaire faz-se presente em diversos outros poemas - indiretamente, como nas “visões” de Virginia Woolf e Dylan Thomas, ou diretamente numa espécie de luta maniqueísta com Pascal, onde este representa o Bem (o temor a Deus) e aquele o Mal (pelo satanismo de sua concepção de vida e poesia). A visão que tem do quadro A Caçada, de Ucello, em Uma Certa Caçada, serve para também repensar as estruturais formais e racionais da arte como algo a que o pintor não se resigna ou capitula. Reflete a desrazão que acomete o artista no ato mesmo da criação, naquele momento único em que, na sua mente esvaziada do que não seja a fruição artística, tudo se transforma em “delírio” ou “fabulação”: “A festa deste mundo é celebrada/ como a fuga da mente rumo a um nada/ que a seduz e circunda/ com a escuridão profunda/ que o mais fino pincel, distante e alheio/ – ou alheado e cheio/ de inútil despedida –/ obstina-se a arrancar a um

Obra vigorosa e desconcertante Luiz Carlos Monteiro

Continente setembro 2003


LITERATURA 39 » coração/ para entregar, como um troféu moral,/ àquela operação em que faz da vida/ um delírio formal,/ uma fabulação subtraída/ aos dramas da razão.” A sua leitura obsessiva dos pintores e quadros italianos descarna a relação criadorcriatura, como nestes versos para Leonardo da Vinci: “Ouço dialogar/ criador e criatura,/ ou antes, leio os lábios/ do arcanjo tentador/ e, se vejo de costas/ o vulto do pintor,/ sei o quanto é preciso/ de destemor aos sábios/ que se negam a cruzar/ aquele limiar/ entre a luz natural/ e aquela luz forjada/ às custas do real, / a luz conceitual”. Tolentino mantém uma profunda ligação ao catolicismo e demonstra-o em numerosos poemas. É o caso do primeiro poema de Lição de Trevas (epigrafado com um poema de Alberto da Cunha Melo), onde lê-se: “Deus, que me deu vontade de cantar,/ antes de dar também Sua licença,/ deu-me a grande lição da indiferença/ e o gosto do silêncio, Seu solar.”

Em “Dobrada à moda do morto” não se esquiva a um ajuste de contas com um inimigo inominado: “Não tem escusa a blasfêmia,/ mas tem justificativa:/ o que faz que um sapo viva/ gordo como uma gardênia/ no buquê da neurastênia,/ enquanto uma dor furtiva/ cala a voz que clama, priva-a/ da chama altiva e espreme-a/ pelas tripas, gomo a gomo? (...) Viva, pois, a dor que toma/ de assalto os reis deste mundo!/ Que os surre e lhes deixe em coma/ as almas nuas! No fundo,/ a dor que te rói os dias/ é a nudez que tu pedias/ a Deus, bundão moribundo...” Os versos de “In passim” valem como lição de simplicidade e despojamento das coisas deste mundo, de crença maculada por descrença, revelando-se uma despedida mais comovente que “Finale”, último poema do livro: “Não valeu chorar nada. Nem te atrevas/ a lamentar-te à porta da saída,/ pois pouca importa a vida como a levas,/ que ela te leva a ti, de despedida/ em despedida, a uma lição de trevas.” No soneto IV de “Ars Poetica” a poesia aparece como evento sensual que movimenta o ser e seu corpo, suas raízes profundas e seu pensamento melopéico. Numa análise parafrásica, tudo impele o poeta a fazer aflorar o poema, em materialização definitiva, “da luz meticulosa e musical”: “O acorde a que chamamos pensamento/ tem raízes no ser, mas vem no vento/ particularizado do real./ E é ali, entre as partículas e o centro,/ que desponta o poema, esse cristal:/ materialização, refolhamento/ da luz meticulosa e musical.” Não há, em O Mundo como Idéia, grandes concessões ao senso comum, exceto pela tentativa de uma certa vulgarização da filosofia. Na sua busca enfática de uma “filosofia da forma”, introduz em poemas constantes questionamentos, diálogos e monólogos que reúnem antiteticamente uma metafísica impura e subliminar às digressões mais prosaicas do cotidiano. E isto talvez para que os poetas tenham um maior acesso a ela, leitores desorganizados que são. Contudo, evidencia-se em muitos instantes, como a temática geral o exige, justamente o contrário. O embate entre a Idéia e a coisa em si promove um obscurecimento da fala ou contradições filosóficas insolúveis. A poesia pode estar sempre a correr o risco de perder-se nos meandros, labirintos e emaranhados inextricáveis e inconclusos da filosofia. • Luiz Carlos Monteiro é poeta e crítico literário.

Bruno Tolentino: desprovido de provincianismos

Continente setembro 2003


»

40

LITERATURA Fotos: Divulgação

Bienal do Livro homenageia Geração 65 A IV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco acontecerá no Centro de Convenções de 4 a 12 de outubro

A

Deverão participar 150 expositores, com 400 editoras naciGeração 65, composta por romancistas, ensaístas, contistas e, principalmente, poetas de Pernambu- onais e internacionais, mais a presença de uma centena de co, mais o teatrólogo, romancista, poeta e ideólogo escritores, vindos de outros Estados e dez outros países, além, do Movimento Armorial, Ariano Suassuna, são naturalmente, dos de Pernambuco. Entre os ilustres convios homenageados da IV Bienal Internacional do Livro de Per- dados estão nomes como Ana Maria Machado, Moacir Scliar, nambuco, que promete ser um dos maiores eventos literários Lêdo Ivo, Carlos Heitor Cony, Lair Ribeiro, Jaguar, Millôr do norte-nordeste, congregando escritores, editores, críticos, Fernandes, Mauro Sales, João Duma Filho, Bruno Tolentino, livreiros, estudantes e leitores em geral, consolidando o Estado Paulo Coelho, Eduardo Galeano, José Sarney, Antônio Carlos Secchin, Caco Barcelos, George Moura, Geneton Moraes como um dos maiores pólos regionais de literatura. O evento será realizado de 4 a 12 de outubro no Pavilhão Neto, Olga Savary, Elio Gaspari, Ruth Rocha, Selma do Centro de Convenções de Pernambuco, na divisa Reci- Figueiroa, Lula Arraes, Marilucia Ferreira, Pedro Bial, Mafe/Olinda, numa área de aproximadamente 11 mil metros qua- noel Correia de Andrade, Isabel Allende, Bernard Cornwell, drados (quase o dobro da última bienal), e a perspectiva é atrair Margarida Rabelo Pinto, Meg Caton, Michael White, Bárbamais de 25 mil visitantes por dia. A organização ficará a cargo ra Ehrenreich, Eoin Coffer e Humberto Eco. E, pela primeira da Companhia de Eventos e a curadoria por conta do Instituto vez, existe a possibilidade de um presidente da República Brasileira inaugurar uma Bienal. Maximiano Campos. A IV Bienal Internacional do Dividida em estandes de ediLivro de Pernambuco terá como toras, livrarias, instituições, salas principal objetivo desarmar as dide oficinas e palestras, adminisvergências sociais, através da trotração e praça de alimentação, esca de idéias, e estimular a leitura paço cultural e pedagógico, a feientre os jovens. A programação ra tem a expectativa de mostrar será inaugurada com uma aulasua grandiosidade, também, atraespetáculo de Ariano Suassuna e, vés da venda de livros, que deverá no decorrer dos nove dias, aconalcançar o patamar de 4 milhões tecerão oficinas de literatura inde exemplares. Centro de Convenções volta a abrigar a Bienal Continente setembro 2003


LITERATURA 41 »

Dentro da variada programação, haverá oficinas para crianças

fantil, a cargo de Lenice Gomes, André Neves e Luciano; oficina literária para adultos, com o romancista Raimundo Carrero; de musicoterapia, sob orientação de Jorge Arruda; e de autodescobrimento através da dinâmica de grupo, coordenada por William Freitas. Haverá também mesas-redondas sobre os temas Literatura e Jornalismo, Literatura e Direito, Literatura e Cidadania; Selma Fi-

gueiroa fará palestra sobre o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto e os grupos Ver e Verso, de Pedro Bial, e Poema Dual, de Alberto da Cunha Melo, farão recitais. No Dia da Criança, quando a feira será encerrada, haverá uma programação especial dedicada aos infantes. Durante toda a Bienal ocorrerão diversos lançamentos e relançamentos de livros, bem como homenagens aos componentes da Geração 65. •

Um movimento eclético A Geração 65 começou de forma difusa nos primeiros anos da década de 60, e nunca chegou a estabelecer um programa estético, pelo contrário, caracterizando-se pelo ecletismo de tendências. Havia um grupo, inicialmente chamado de Grupo de Jaboatão (porque seus componentes eram oriundos ou moravam naquela cidade), formado por Jaci Bezerra, Alberto da Cunha Melo, Domingos Alexandre e José Luiz de Almeida Melo. Em Olinda, Esman Dias, Orley Mesquita e Everardo Norões lançavam a revista de poesia Clave. No Recife, reuniam-se no bar Savoy, para discutir literatura, Laércio de Vasconcelos, Tarcísio Meira César, Ângelo Monteiro, Sérgio Moacir de Albuquerque, Gladstone Vieira Belo, Marcus Acioly, José Mário Rodrigues e Marco Polo Guimarães (que na época usava o pseudônimo de Marcos Santander). Aos poucos, estes grupos de poetas foram se juntando, sob orientação de César Leal, que os publicava no suplemento cultural do Diário de Pernambuco. Com a criação das Edições Pirata, e encontros promovidos na livraria Livro 7, a eles foram-se agregando outros literatos como Tereza Tenório, Severino Filgueira, José Rodrigues de Paiva, José Carlos Targino, Cláudio Aguiar, Raimundo Carrero, Arnaldo Tobias, Sebastião Vilanova, Janice Japiassu, Lucila Nogueira, Paulo Bruscky, Almir Castro Barros, Marcos Cordeiro, Maximiano Campos, Fernando Monteiro, Roberto Aguiar, Maria do Carmo de Oliveira, Nilza Lisboa, Amarindo Martins de Oliveira, Andréia Mota, Vernaide Wanderley, Ednaldo Gomes de Melo, Myriam Brindeiro, Eugênia de Menezes e Celina de Holanda. A denominação de Geração 65 foi dada pelo historiador Tadeu Rocha. A IV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco será marcada por dois dias de seminário dedicado ao movimento, no Auditório Aquário. Serão realizadas palestras sobre os temas “Caminhos estéticos da Geração 65”, por Luciana Nogueira, “Geração 65 – Uma visão filosófica”, por Ângelo Monteiro, e “A poesia da Geração 65 no contexto nacional”, por Bruno Tolentino. O crítico literário do jornal O Estado de São Paulo, José Nêumane Pinto, promoverá debates sobre o tema; e Jomard Muniz de Britto comandará uma performance sobre textos do grupo. Será lançada, também, uma revista em quadrinhos contando a história da Geração 65. • Continente setembro 2003


» 42 LITERATURA

Retrato preciso de um fenômeno histórico Reedição atualizada do clássico texto Coronel, Coronéis, sobre o coronelismo no Nordeste, revela-se leitura indispensável

O

o trabalho de Roberto Cavalcanti e Marcos Vilaça, na corrente dos estudos interdisciplinares sobre as complexas transformações das sociedades tradicionais atingidas por forças externas impulsionadoras de certas formas de modernização. Também traça um retrato vívido de quatro dos últimos remanescentes dos velhos coronéis de Pernambuco: Chico Romão, Zé Abílio, Coronel, Coronéis - Marcos Vinicios Chico Heráclio e VereVilaça e Roberto Cavalcanti de mundo Soares. E aponta Albuquerque, Editora Bertrand os fatores econômicos e Brasil, 214 páginas. sociais que, a partir da lenta modernização da sociedade brasileira e nordestina, em especial, criaram as condições para o fim do coronelismo nos moldes tradicionais. Curiosamente, como detectaram os autores, ao tentarem se apropriar das mudanças – em curso e inevitáveis – foram os próprios mandachuOs coronéis nordestinos, vas que cavaram suas sepulturas. como Chico Heráclio, de Limoeiro, PE, ao se A nova edição sofreu consideráveis apropriarem do processo de modernização, cavaram modificações em sua estrutura e atualiza sua própria sepultura a análise, apontando o que chama de revivescências do coronelismo, tanto na zona rural sertaneja onde, apesar da chegada do progresso material e mudanças políticas, as mentalidades de segmentos da população continuam incorporando valores tradicionais em face da incompleta e excludente modernização, quanto nas periferias dos grandes centros urbanos onde o migrante pobre nordestino cai nas malhas de um tipo diferente mas assemelhado de poder local: o do crime organizado. É, pois, leitura indispensável. (Homero Fonseca) •

Foto: Reprodução

s “coronéis” nordestinos são figuras mitológicas. E, como mitos, cuja construção foge à instância da racionalidade, pouco compreendidos fora dos meios acadêmicos. Conhece-se deles apenas a caricatura. Alguns textos clássicos lançam luz sobre esse fenômeno sócio-cultural-político. Um deles é Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, lançado em 1949. Outro é Coronel, Coronéis, de Roberto Cavalcanti de Albuquerque e Marcos Vinicios Vilaça, publicado pela primeira vez em 1965, a partir de pesquisa interdisciplinar (utilizando ferramentas da Sociologia, da História, da Antropologia, do Jornalismo). Este último, que teve reedições em 1978 e 1988, além de edições em inglês, espanhol, italiano e francês, volta às livrarias este mês, após lançamento nacional na Academia Brasileira de Letras, dia 4. Coronel, Coronéis é obra relevante para a compreensão de uma parte da nossa História e da nossa mentalidade. Analisa o processo de ruptura da sociedade agropastoril sertaneja a partir de fins dos anos 50 e, conseqüentemente, as transformações por que passou o fenômeno do coronelismo (espécie de mandonismo político, econômico, social e familiar, fundado sobre a propriedade da terra). Flagra um momento riquíssimo e paradoxal, de apogeu e declínio ao mesmo tempo. Insere-se,


CONTO 43 »

–E

Um bom homem à beira do inferno Dorany Sampaio

ntão, o que há de novo, “seu” Rafael? – Nada. A greve terminou e não tem nenhuma outra em preparo. – Ah! Sempre esta história de greves... Cada um quer ganhar mais e deixar o menos possível para os outros. Mas com greves não se resolve nada. Todos perdem. – Pode ser, minha senhora. Mas é que muita gente fica mesmo doida. E dizem que a fome dá mesmo uma espécie de loucura. – Fome? O sr. acredita que há alguém passando fome? – Acredito, porque eu mesmo não estou muito longe disto. A gente vai se acostumando devagarinho, mas, afinal, acaba sentindo uma tremura nas pernas e um embaciamento nos olhos que pensa que vem da raiva... – Mas se falta uma coisa, por que não arranjam outras? Os médicos aconselham as frutas e verduras, e as maçãs estão até baixando de preço... “Seu” Rafael murmurou qualquer coisa de Maria Antonieta, pão e bolos, mas dona Arlinda não ouviu, porque Conceição, que estivera sentada, quieta até então, dera um pedacinho de qualquer coisa ao papagaio que disse como agradecendo: Uma história! – Uma história, sim, uma história , repetiu seu Rafael. É o melhor aqui. Conceição balançou a cabeça como quem não tem jeito a dar. Dona Arlinda ficou parada, dura, tesa, sem saber o que fizesse. Foram diversos conhecidos meus, depois de reprovados no céu, bater diretos na porta do inferno. Era um portão largo donde saíam chamas: Em cima está escrito: “entrada”. Iam entrando assim, sem mais nem menos, quando um diabo os fez parar: Então, que negócio é este? Para a fila, não estão vendo? Depois, mais calmo, explicou: É gente da Europa na maior parte. – Mas sempre ouvi dizer que a entrada era fácil, arriscou um dos nossos. – Era, respondeu o diabo. Agora tem gente de mais. É preciso selecionar. Muita gente vem, mas não é propriamente daqui, não é para negócios permanentes e não nos serve. Depois o diabo alteou a voz e reclamou: Então não há ninguém aí para lugar mais profundo? Lembrem-se de que eu não posso fazer tempo extraordinário de serviço, senão terei barulho com meu sindicato. Não há nenhum assassino por aí? – Sim, apresentou-se um rapaz, matei minha noiva que não esperou por mim quando estava no front ... – É, mas o sr. caiu na tolice de chorar terrivelmente depois. Não pensou bem quando agia e acabou desmanchado o que fez. Sua noiva é que está aqui . Dê o fora! Outros, vamos! Talvez alguma mulher... – Eu, apresentou-se uma muito magra e amarela, eu roubei... – Qual roubou, qual nada, gritou-lhe o diabo. A sra. tomou o que era seu, o que tinha ganho cosendo camisas a 2 cruzeiros cada. Pode ir, pela escada à direita. Seu patrão é que devia se apresentar. – Estou aqui, disse uma vozinha fraca; eu pagava o salário mínimo, mas vendia.... bem, quanto quer para deixar entrar logo de uma vez? Continente setembro 2003


44 CONTO

– Câmbio negro, não é? Mas para quê? Na evacuação dos territórios, o sr. acabou dando tudo para alimentar e vestir uns idiotas que iam morrer de qualquer forma. Não pode entrar . Veja lá se acha outro canto. – Não há ninguém com um vício à moda antiga? Chamou o diabo. – Pois não, eu, adiantou-se um belo tipo de homem de bastos cabelos negros e bigodinho aparado: Fui Don Juan incontentável: desde a idade de 14 anos... – Psiu! Exortou-lhe o diabo, há senhora aqui. Mas veja, das 50 pessoas com que se tornou culpado, 49 rezaram pelo sr. , pois diziam que tinha sido o único amor na vida. E a qüinquagésima, sua legítima mulher, não mais o queria ver, é verdade, mas sacrificou a vida pelo sr., e arranjou aquela confissão na última hora. Não pode entrar. Por favor, suba. – Mas vamos, não há ninguém com coisa pesada mesmo? O sr. aí, que é que fez? – E o diabo realmente possesso, aponta um tipo simpático , um pouco pálido, mas realmente mediano em tudo. – Eu não fiz nada. – Não me diga, disse o diabo zombeteiro. Todo mundo faz ou fez alguma coisa. – Não, eu realmente não fiz nada. Estou aqui com certeza Continente setembro 2003

por engano. Pensei que a fila fosse para comprar cigarro. Porque apesar de toda as atenções, eu não fiz mesmo nada. Eu vi explorarem os homens até caírem inanes pelas ruas; vi pisarem suas faces até reduzi-las à papa; vi mulheres perseguidas correndo cheias de filhos agarrados nas saias; vi meninos arrebanhados marcharem para campos de concentração e meninas violentadas diante das portas. Mas eu nunca fiz nada não. – Nunca fez nada? – Não. – E o sr. tem certeza que viu isso tudo mesmo? – Como o estou vendo agora. – Pois então entre. O lugar é seu. – O homem fez uma cara admirada, mas foi entrando. E, no portão, o diabo afastou-se para o lado para evitar qualquer “contacto”. – Mas, por que tio Rafael conta estas histórias tão esquisitas, meu Deus?! Fez Conceição. – Não ligue isto, disse Dona Arlinda. Seu tio gosta de inventar essas coisas e fala muito no demônio, mas ele é bom.... – Ora, Conceição, disse “seu” Rafael rindo, você bem sabe que não posso negar nada ao papagaio... • Dorany Sampaio é advogado e contista bissexto.


NOTAS 45 »

Girafa estréia lançando pernambucano Alberto da Cunha Melo tem três de seus livros reunidos em Dois Caminhos e Uma Oração Com o título Dois Caminhos e Uma Oração, a Editora Girafa, sob direção de Pedro Paulo de Sena Madureira, lança em circuito nacional o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo. A edição – que inaugura a editora e traz apoio do Instituto Maximiano Campos – reúne três livros: Meditação Sob os Lajedos, publicado em 2002, o poema narrativo Yacala, de 1999, e Oração pelo Poema, de 1969. O livro traz ainda estudos sobre o poeta, escritos por Alfredo Bosi, José Nêumane Pinto e Bruno Tolentino. Bosi considera Cunha Melo o principal nome que vem despontando no cenário poético nacional; Nêumane afirma que o pernambucano “figura entre os maiores poetas da língua portuguesa, seja qual for a época, o lado do Atlântico e o continente de que se a observe”; enquanto Tolentino assegura que Alberto “não só confirma sua reconhecida estatura de poeta maior em nosso idioma, mas inscreve-se definitivamente entre os grandes, os maiores vates de nosso tempo em qualquer língua que eu conheça”. A propósito do poeta, será lançado, na IV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, o Lançamento: 25 de setembro, às ensaio Faces da Resistência na Poesia de Alberto da Cunha Melo, de Cláudia Cordeiro Reis, com 19h, no Instituto Maximiano Campos – Rua do Chacon, 335 – prefácio de Ermelinda Ferreira. O evento acontecerá no estande do Instituto Maximiano Casa Forte – Recife Campos, no dia 4 de outubro, às 18h30.

Tempo Reinventado

Médicos Além-médicos

Um retrato na parede – “efêmero instante de tempo entre duas eternidades” – foi o ponto de partida para Luzilá Gonçalves construir No Tempo Frágil das Horas, seu 5º romance. Tecendo a trama delicada de duas mulheres da aristocracia açucareira pernambucana em começo de decadência, a narrativa faz um mergulho comovente no complexo universo feminino em que cristais de Bacarat e cortinas de seda compensam desejos reprimidos, sonhos e frustrações. Maria Antônia, personagem principal, existiu e foi baronesa. Mas Luzilá avisa, numa epígrafe: “Os personagens desse romance existiram mas as paixões são imaginadas como sempre”. Apesar da pesquisa rigorosa, não se trata de um “romance histórico”. É apenas um romance, um muito bem escrito romance, reinventando uma personagem que viveu no passado. Da lavra de uma autora na plenitude do seu ofício.

O holandês Willem Pies, ou Guilherme Piso (1611-1678), e o pernambucano Aluízio Bezerra Coutinho (1909-1997), viveram em tempos diferentes mas tinham algo em comum: médicos, extrapolaram a Medicina para produzir um trabalho de cunho humanístico e plural. Piso, médico particular de Maurício de Nassau, escreveu, com seus conterrâneos G. Marcgrave e J. de Laet, um tratado médico-naturalista de grande importância para a compreensão da nossa realidade à época (Historia Naturalis Brasiliae, 1648, traduzido para o português em 1942). Coutinho, professor, sanitarista, especulativo, altamente ligado nos aspectos sociais de sua profissão, deixou inúmeros trabalhos, entre os quais Genética e Evolução (1972) e Da Natureza da Vida (1985). Suas trajetórias estão saborosamente narradas em monografia do também médico Miguel Doherty, recentemente lançada.

No Tempo Frágil das Horas – Luzilá Gonçalves Ferreira, Editora Rocco, 170 páginas, R$ 22,50.

Precursores do Futuro – Miguel Doherty, Editora Comunigraf, 60 páginas, R$ 15,00.

Continente setembro 2003


46 NOTAS

Ácido e Viril

Machado no Palco

Mestre Russo

Alemão naturalizado norte-americano, Charles Bukowski encarnou na vida e na literatura tudo o que o american way of life abomina: cachaceiro, mulherengo e machista, teve um único emprego regular na vida, nos correios, durante apenas dez anos. Na maior parte do tempo viveu de apostas nas corridas de cavalos, da literatura (publicação de livros, declamação de poemas) e biscates. Deixou tanto uma prosa quanto uma poesia autobiográfica, áspera, viril e antiliterária, apesar de sensível e culta (por baixo dos escombros). O poeta, ensaísta e tradutor pernambucano Jorge Wanderley verte magnificamente, para o português, 25 dos melhores, mais característicos e ácidos poemas de Bukowski.

A coleção Dramaturgos do Brasil, coordenada por José Roberto Faria, enfocando a criação cômica brasileira no século 19, acaba de lançar o Teatro de Machado de Assis, coletânea organizada pelo mesmo Faria. São 11 peças que revelam um comediógrafo hábil na sátira social e política. Sendo o teatro uma das primeiras manifestações literárias do Bruxo, ainda com 20 anos, acompanhou-o até a maturidade. Dentro da mesma coleção está sendo lançada, pelo mesmo preço, a Antologia de Comédia de Costumes, organizada por Flávio Aguiar, com peças de Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo, França Júnior e Artur Azevedo.

Conhecido em teoria da literatura, lingüística, antropologia, pedagogia e filosofia, Bakhtin (1895-1975) é também imediatamente associado a conceitos, como carnavalização, dialogismo, polifonia e exterioridade. Obra complexa, iniciada nos primeiros anos da Revolução Comunista, mas que se altera ao longo dos anos, o trabalho do russo é mapeado no livro Os 100 Primeiros Anos de Mikhail Bakhtin a partir de suas origens e posterior influência nos estudos literários e culturais de diversas ideologias: o humanismo tradicional, pós-modernismo e estruturalismo. Para Caryl Emerson, Bakhtin é mais que uma ferramenta crítica: “Ele nos mostra como ensinar, escrever, viver, falar, pensar”.

Os 25 Melhores Poemas de Charles Bukowski, tradução de Jorge Wanderley. Bertrand Brasil. 176 páginas. R$ 32,00.

Teatro de Machado de Assis, organização de João Roberto Faria. Martins Fontes. 654 páginas. R$ 59,80.

Os 100 Primeiros Anos de Mikahil Bakhtin, Caryl Emerson. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. Difel. 350 páginas. R$ 49,00.

Crítica Genética

Alencar Cronista

Romance Danado

A crítica genética nasceu em Paris, em 1968, “disciplina que propunha refletir sobre o processo de criação através do estudo dos manuscritos”. A finalidade: quebrar a aura de mistério que o texto final parecia conter. Duas décadas depois o método chega ao Brasil e é acrescido de outras questões: a necessidade de pesquisar outras artes além da literatura bem como a de convocar outras disciplinas mais teóricas, como a semiótica e a psicanálise. Criação em Processo é, pois, um livro que enfeixa um diálogo entre os núcleos francês e brasileiro, ampliando a discussão para outras questões como o conceito de texto, a noção de autor, qual o papel da “leitura” no ato da criação, e, não menos importante: que alterações acarretam as novas tecnologias nos processos de escritura?

O Rio de Janeiro do século 19, vivendo o progresso nos moldes capitalistas, se desenha nas páginas das Melhores Crônicas de José de Alencar. Para quem está acostumado com o perfil conservador e escravocrata do romancista, a leitura das crônicas é no mínimo inquietante. Nos textos do folhetim Ao Correr da Pena, escrito nas páginas do Correio Mercantil e do Diário do Rio de Janeiro, entre 1854 e 1857, ele elogiou a extinção do tráfico de escravos, as idéias liberais e a concorrência como meio de aperfeiçoar as indústrias. Sob a ótica de José de Alencar, o leitor observa a vida urbana numa prosa ágil, inteligente e bem-humorada. O livro faz parte da Coleção Melhores Crônicas, que também lançou as de Machado de Assis.

Rosário Fusco é um desses casos estranhos, como Murilo Rubião (autor de O Pirotécnico Zacarias), José Cândido de Carvalho (de O Coronel e o Lobisomem) e Campos de Carvalho (de Púcaro Búlgaro), autores de obras-primas das quais ninguém mais fala. Fusco Estreou com O Agressor, em 1939. Agora, postumamente, é lançado A.S.A., romance, para ele “gênero danado”, em que radicaliza o clima alucinatório do anterior. Fulano e Beltrano convivem com o Perneta, o Louro, o Arquiteto, etc. Ironia, sátira e deboche permeiam um delírio verbal onde não faltam momentos de poesia. Seus personagens revolvem-se numa ladainha esquizofrênica, num mundo esvaziado de sentido.

Criação em Processo – Ensaios de Crítica Genética, Organização Roberto Zular. Iluminuras. 256 páginas. R$ 29,00.

Melhores Crônicas de José de Alencar, Organização de José Roberto Faria, Global. 320 páginas. R$ 36,00.

A.S.A. – Associação dos Solitários Anônimos, Rosário Fusco. Ateliê Editorial. 290 páginas. R$ 32.00.

Continente setembro 2003


DESIGN 47 »

Seu Juca e a arte do design vernacular

Seu Juca e sua obra, num bar do Recife

Congresso Internacional acontece no Recife, pela primeira vez fora da Europa, e expõe obra de letrista do Morro da Conceição

E

ntre os dias 8 e 12 de setembro, quando estará ocorrendo o Congresso Internacional de Design da Informação, no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, a presença mais festejada não será nenhum grande teórico, PhD ou desenhista gráfico de renome internacional. A celebridade do encontro, que reunirá os “papas” do Design da Informação de todo o mundo, será o letrista popular do Morro da Conceição, seu Juca. Seu trabalho comporá a exposição de Arte Tipográfica e fará parte do Acervo de Design Vernacular de Pernambuco. Seu João Juvêncio Filho, 59 anos, desde os 17 já trabalhava na fabricação artesanal de letreiros comerciais. Seu Juca fazia mostruários das suas placas, em cartolina, e seguia pelas ruas apresentando aos comerciantes. Quando viajou para São Paulo, pintava a boléia dos caminhões, em troca das caronas. Nos 10 anos em que viveu na capital paulista, vendia suas obras no Viaduto do Chá, além de fazer cartazes para casas de fotografia.

De volta ao Recife, durante anos a galeria das suas obras foi uma sapataria, na Avenida Manoel Borba, Boa Vista. Era impossível ficar imune àquele turbilhão de cores e informações. Atualmente, seu trabalho compõe o visual de um dos bares mais movimentados da cidade. As antigas placas do centro estão agora no Parnamirim. “Eu acho que é um dom. Eu tenho inteligência para a pintura”, é assim que ele define seu talento, que não foi apurado nem moldado por nenhum curso ou universidade. É a percepção de seu Juca que faz do seu trabalho algo digno da academia. Sem nenhum estudo na área de programação visual, ele consegue organizar a verdadeira essência do Design da Informação: “Ele conseguiu representar graficamente elementos que fazem parte do seu cotidiano, produzindo, assim, informação para seu público alvo. E, acredite, seu processo criativo não é feito de forma aleatória. Um exemplo disso são os créditos do filme curta-metragem Conceição, nos quais fez uso do azul e do branco, cores da santa”, explica Juliana Vilaça, designer e autora Continente setembro 2003


»

48 DESIGN da monografia de graduação Análise Tipográfica dos Manuscritos de seu Juca e Proposta Para Criação de Novas Fontes, apresentada em 2002. Segundo a designer, a riqueza de detalhes das peças de seu Juca impressiona. “ Numa única placa você é capaz de detectar diversos estilos tipográficos, fundidos num único tipo. Através de uma caixa morfológica, desenvolvida para agrupar características presentes em um universo de 40 placas de seu Juca, mais de mil novos tipos podem ser desenvolvidos. Além disso, ele cria elementos pictográficos divertidíssimos, nos quais faz uso de um jogo de luz, sombra e perspectiva, cuja técnica ele mesmo desenvolveu”, descreve. O interesse do design gráfico “erudito” pelo vernacular – o design puro, livre de influências externas – representa uma busca por trabalhos mais autênticos e espontâneos. A criação do Acervo de Design Vernacular de Pernambuco converge para essa maior valorização da área. “Será possível, para aqueles que fazem uso de nossos elementos culturais, retratar e transformar o acervo graficamente para o mundo, já que Pernambuco é um dos estados brasileiros mais ricos culturalmente”, destaca Juliana Vilaça. A maior comprovação desse reconhecimento é o destaque que o letrista recifense vai receber no Congresso Internacional de Design da Informação. O Papel do Design da Informação na Educação será um dos pontos discutidos no evento. “Neste tema, os debates versarão sobre currículo de graduação e pós-graduação, material educativo e didático, métodos e abordagens de ensino e aprendizagem numa perspectiva do Design da Informação”, salienta Carla Spinillo, presidente da Sociedade Brasileira do Design da Informação. O enfoque histórico, com pesquisas sobre os primórdios da área, assim como propostas de taxonomias, também terão espaço. Os aspectos tecnológicos dos sistemas de informação e comunicação não serão esquecidos. “Estudos em áreas, como interação homem-computador, hipermídia e broadcasting design adequam-se a este tema”, cita Spinillo. (Mariana Oliveira) • Congresso Internacional de Design da Informação De 8 a 11 de setembro, no Centro de Artes e Comunicação/UFPE

Continente setembro 2003

O homem que traçou um mundo novo Após 21 anos da morte de Aloísio Magalhães, o designer pernambucano tem vida e obra revisitadas em um livro que apresenta a sua trajetória visual e política

A

loísio Magalhães foi um criador múltiplo. Pintor, pioneiro do design gráfico e da política cultural no Brasil, foi um administrador incansável na defesa do patrimônio histórico e artístico nacional – traço a traço, em esboços mágicos, desenhou um novo cenário brasileiro. Sua visualidade, imbricada nos objetos, símbolos e sinais que povoam o nosso cotidiano, agora estão registradas no livro A Herança do Olhar – O Design de Aloísio Magalhães, lançado pela ARTVIVA Produção Cultural e Senac Rio, com patrocínio da Petrobrás. A obra, concebida por Felipe Taborda e João de Souza Leite, designers, trata desde a formação do artista, nutrida pelas


DESIGN 49 Fotos: Divulgação

Aloísio Magalhães desenvolveu símbolos até hoje marcados na memória popular, como os cartemas, a marca da Embratur (à esq.) e a nota de um Cruzeiro (esboço acima)

contradições, até a sua atuação como programador e projetista visual e cultural do Brasil. Nascido no Recife, em 1927, logo cedo se atraiu pela criação popular, encenando Garcia Lorca com mamulengos. Após ingressar na Faculdade de Direito, em 1946, participou do Teatro do Estudante de Pernambuco. Em 1951, recebe bolsa do governo francês e vai estudar museologia no Louvre. De volta ao Recife, funda, em 1954, o Gráfico Amador, mistura de atelier gráfico e editora, junto com Gastão de Hollanda, Orlando da Costa Ferreira e José Laurênio de Mello. Publicou Aniki Bobó (1958), “ilustrado” por textos de João Cabral de Melo Neto, Improvisação Gráfica (1958), A Informação Esquartejada (1971) e Topographicanalysis of a Printed Surface (1974), da série Quadrat Print, editada por Steendruckkerij de Jong & Co, Holanda. Aloísio criou marcas estruturadas de forma simples, geometricamente puras, com informações concentradas e decodificadas rápida e sinteticamente. O seu legado gráfico inclui o padrão monetário brasileiro, desenvolvido em 1976, a id ent id a d e v is u a l d e emp r es a s e p r o d u t o s c o mo a Petrobrás, Light, Souza Cruz, Embratur, Secretaria de Turismo do Estado do Rio de Janeiro, Banco do Estado da Guanabara, Unibanco, Vale do Rio Doce, Xerox, Banespa, Universidade de Brasília, Museu do Açúcar, Oficina Cerâmica Francisco Brennand e os símbolos da Fundação Bienal de São Paulo e do IV Centenário do Rio de Janeiro. Fez mais de 35 exposições, entre individuais e coletivas, no mundo quase todo. Antônio Houaiss criou a palavra

cartema para designar uma criação de Aloísio que ele nunca vira antes. Fundou a Escola Superior de Desenho Industrial, o Centro Nacional de Referência Cultural (1975) e a Fundação Nacional Pró-M Memória (1979). Viajou o país discutindo a recuperação da memória e a busca das raízes culturais como referência para o desenvolvimento brasileiro. Foi diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e presidente da Fundação Nacional de Arte. Posteriormente, tornou-sse Secretário de Cultura do MEC – gênese do Ministério da Cultura. Em 1982, realiza sua última série de desenhos – um conjunto de litografias em preto e branco retratando Olinda –, enquanto se preparava para defender o nome da cidade para Patrimônio Mundial da Humanidade. Após ser eleito presidente de um encontro de Ministros da Cultura, em Veneza, Aloísio faz seu último pronunciamento: sofreu um derrame cerebral e faleceu em Pádua, na madrugada de 13 de junho. (Isabelle Câmara) •

A Herança do Olhar – O Design de Aloísio Magalhães, João de Souza Leite e Felipe Taborda, Ed. Artviva, Produção Cultural e Senac Rio. 280 páginas. R$ 96,00.

Continente setembro 2003


»

50 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti Fotos: Alexandre Belém/ Títular

Azeite, senhora avó! “E eis que a pomba voltou trazendo no bico uma folha verde de oliveira” Gênese 8,11

O azeite pode apresentar variações de cores, sabores e aromas

P

oseidon e Atena disputavam um pedaço de terra – segundo velha lenda grega. Decidindo os 12 juízes do Tribunal do Olimpo que essa terra seria de quem nela criasse a mais fantástica obra. Poseidon, deus dos mares (equivalente ao Netuno romano), criou com seu tridente um oceano. Enquanto Atena, deusa da razão (a Minerva dos romanos), criou uma árvore. Uma árvore especial, de cujo fruto se fazia um óleo que alimentava, curava e seduzia os homens – a oliveira. Atena ganhou a terra. Dando vida a uma árvore que, em verdade, andou sempre perto dos deuses. Na Bíblia, por exemplo, há várias referências a ela. Inclusive com o próprio Cristo, pressentindo seu calvário – “Conforme o costume, Jesus dirigiu-se ao monte das oliveiras e disse: Pai afastai de mim este cálice” (Lucas 22, 39-43). Sem esquecer que o azeite, feito dessa oliveira, está desde então presente em numerosos sacramentos - batismo, crisma, unção dos enfermos. E também na ordenação de novos sacerdotes. Para “fortificar o espírito”, como ensina padre João Pubben, da Igrejinha das Fronteiras – onde nosso Dom Hélder viveu seus últimos dias. Também está presente nas lamparinas dos ofícios litúrgicos. Não por acaso a mais antiga referência escrita à oliveira, em papiro egípcio do séc.12 a.C., refere essa propriedade – “destas árvores pode ser extraído o óleo mais puro, para manter acesas Continente setembro 2003

as lâmpadas do teu santuário” – com o faraó Ramsés III ofertando a Ra, deus sol, os olivais existentes em torno da cidade de Heliópolis. Os túmulos de faraós, aliás, eram sempre ornamentados com ramos de oliveira – para que o morto fosse capaz de encontrar seus deuses, na outra vida. Sem esquecer que os hebreus amarravam esses ramos, em suas portas, para que nada lhes faltasse. O povo foi dando a esse azeite destinos que vêm se mantendo com o passar do tempo. Usava-se untá-lo no corpo, para proteger do frio – como fazem os maratonistas, hoje, para aquecer os músculos. Usava-se passá-lo na pele e no cabelo, para dar brilho – como ainda hoje se faz, com cremes, por ter antioxidantes que neutralizam os radicais livres (responsáveis pelo envelhecimento). Usava-se para curar – no tratamento de feridas e queimaduras, ou para alívio das dores. Na sua História Natural, mais importante documento da ciência antiga (37 volumes), o famoso historiador grego Plínio (o velho) confessa que o segredo da sua longevidade estava no azeite que ingeria diariamente. Morreu com quase cem anos. E não de doença, mas soterrado pelas lavas do Vesúvio – contra as quais foi o azeite de bem pouca serventia. Vindo a ciência, mais a mais, a comprovar que o consumo de azeite, entre outras qualidades, aumenta mesmo as chances de se viver mais. Por diminuir o LDL (colesterol ruim) e aumentar o


SABORES PERNAMBUCANOS 51 »

HDL (colesterol bom – que protege e estimula a eliminação de colesterol pela bílis). De quebra, ainda prevenindo arteriosclerose e formação de tumores. Plínio sabia que ele era tudo isso. Só não sabia, então, por quê. Mas nenhuma serventia do azeite se compara ao da preparação de alimentos. Com o tempo, foi substituindo a banha animal e o óleo de ajonjoli. Em Portugal era, nos primeiros tempos, conhecido como “sumo de oliva”. Até a chegada dos árabes – que replantaram, na Península Ibérica, os olivais perdidos na grande seca de 846. Para esses árabes, oliveira era azzait – donde azeite. Com eles, aprenderam os portugueses também a utilizar o azeite em muitos pratos – saladas, peixes, frutos do mar. Além do bacalhau, claro. De todos os jeitos – para temperar, grelhar, assar, cozinhar. Não por acaso se diz, em Portugal, que “melhor cozinheira é a azeiteira”. Depois esse azeite ganhou o mundo, com a epopéia dos descobrimentos. Sendo imprescindível para as grandes travessias – onde o cardápio incluía peixe seco, carne de vaca salgada, favas, grãos e sobretudo azeite. Embora não se destinasse, nas embarcações, à preparação de nenhum alimento. Sendo consumido sempre puro. A literatura de bordo desse tempo é generosa. Com destaque para A Arte de Guerra no Mar, do padre Fernando de Oliveira (1555); e, sobretudo, para Uma História da Navegação

para a Índia, de Jean Hugues van Linschot, Amsterdã, 1596. Neste último se pode ler – “a bordo a alimentação era igual para todos: libra e meia de biscoito, meia caneca de vinho, 1 caneca de água, carne de vaca salgada, peixe salgado, queijo, favas, grãos e azeite para dar a sensação de estar com a barriga cheia”. No Brasil esse azeite chegava em potes, feitos de terracota. Muitos desses potes, e outros mais antigos ainda (do século I a.C.), gravados com o nome dos exportadores, podem ainda hoje ser vistos em alguns museus da Europa. Para cá só não vieram as crendices. Como uma, ainda hoje vigente, nos interiores de Portugal, para proteção dos trovões, nas tempestades; em que se invocava Santa Bárbara colocando brasas em uma telha, onde se queimavam folhas de oliveiras guardadas desde o último domingo de ramos. Mas vieram quase todos os pratos. E aqui ainda criamos outros. “Junte um fio de azeite português” é conselho de velhas receitas, passadas de mãe para filha. Está presente em saladas, grelhados, frituras e ensopados – de siri, aratu, caranguejo, camarão, pitu, lagosta, polvo, peixe. Com ou sem leite de coco. Não há país que não tenha algum prato de prestígio feito com esse azeite. Principalmente os mediterrâneos. No Egito, eggah be korrat (espécie de omelete). Na Espanha, ternera com olivas verdes. Na França, “tapenade” (creme de azeitona provençal) ou morue à la provenContinente setembro 2003


52

SABORES PERNAMBUCANOS

Foto: Léo Caldas/Titular

RECEITA: BACALHAU NO AZEITE

çale (bacalhau à provençal). Na Grécia, psari plaki (guisado de pescado). Na Itália, spaghetti alle olive. No Marrocos, meslalla (salada de azeitonas). Conselho útil na hora de comprar o azeite: quanto mais baixo o nível de acidez, melhor o óleo. A classificação tradicional refere quatro tipos. O óleo extravirgem, escuro e de sabor acentuado, obtido por prensagem das azeitonas a frio, com no máximo 1% de acidez – é o mais valorizado. O óleo virgem, obtido da primeira prensagem, com até 2% de acidez. O óleo de oliva comum, obtido da segunda prensagem, mistura de óleo virgem com óleo refinado. E o óleo de sansa – obtido da sansa (bagaço da oliva) – muito pouco prestigiado. O azeite pode ainda apresentar variações de cores, sabores e aromas – conforme as regiões, a variedade e o grau de maturação da azeitona, as condições do cultivo e o processo de extração. Pode ainda ser aromatizado, com alho ou diferentes ervas. E, qualquer que seja o azeite, deve ser sempre consumido entre 6 meses e um ano depois de produzidos. Faltando só dizer que aquelas coroas de louros, ornando a cabeça de reis, deuses e heróis, são sempre feitas com folhas de oliveira. • Maria Lecticia Cavalcanti é professora.

Continente setembro 2003

INGREDIENTES: 5 postas grandes de bacalhau (demolhado por 3 dias, em água gelada, na geladeira), 1 lata de azeite extravirgem, 5 folhas de louro, ¼ de copo de vinagre, 4 cebolas cortada em rodelas, 1 vidro de azeitonas sem caroço, 6 batatas grandes cozidas inteiras. PREPARO: Enxugue bem o bacalhau. Frite em ¾ do azeite e reserve. Ao azeite, usado na fritura, junte cebola e deixe dourar. Acrescente folhas de louro, azeitonas e vinagre. Arrume em pirex as postas do bacalhau e as batatas. Regue com o molho e leve ao forno, por 30 minutos, para dourar. Sirva imediatamente.


ANÚNCIO


54 CAPA

Casa-Grande & Senzala 70 anos depois Foto: Acervo Fundação Gilberto Freyre

»

Engenho Goicana, em Rio Formoso, Pernambuco

Da transgressão à N

ascido no Uruguai em 1954, Guillermo Giucci cursou o doutorado na Universidade de Stanford, lecionou em Princeton e foi professor visitante nas universidades Albert-Ludwigs (Alemanha) e Stanford (USA). Atualmente é professor adjunto do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor de Viajantes do Maravilhoso: O Novo Mundo e Sem Fé, Lei ou Rei: Brasil 1500-1532, desde 1999, quando recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim, Giucci vem se dedicando, ao lado de seu conterrâneo Enrique Rodríguez Larreta, a escrever Gilberto Freyre: Uma Biografia Cultural, fruto de uma pesquisa que usou métodos da antropologia histórica e da história cultural, numa completa investigação sobre as diversas fases da vida do sociólogo, em seu contexto cultural. Nesta entrevista exclusiva, Giucci fala sobre sua relação com a obra do sociólogo e o desenvolvimento de sua pesquisa.

Em que circunstâncias o senhor descobriu a obra de Gilberto Freyre e o que o levou a se interessar tanto por ele? Conheci a obra de Gilberto Freyre como estudante de doutorado na Universidade de Stanford, na década de 80. Continente setembro 2003

Mas o meu interesse intelectual surgiu, no Brasil, a partir da proposta de uma biografia cultural de Gilberto Freyre, feita pelo meu colega, o antropólogo Enrique Rodríguez Larreta, quem rapidamente me convenceu da importância do projeto. Desde então comecei a me dedicar plenamente ao estudo da sua obra. A edição crítica de Casa-Grande & Senzala é, em grande parte, resultado de uma longa pesquisa que teve início com a elaboração da biografia cultural. O que me chamou a atenção, particularmente, na obra de Freyre, foi o tema do nascimento de uma civilização híbrida nos trópicos, que traz à luz o reprimido e culturaliza os termos raciais e biológicos, derivando uma imagem positiva, mesmo que violenta, da miscigenação. O senhor já disse que Gilberto Freyre pode ser considerado o inventor da região Nordeste nos anos 20, bem como o inventor cultural do Brasil mestiço, nos anos 30. De que forma ele fez isso? A noção de “Nordeste” se tornou familiar no Brasil em meados de 1920, revelando a transformação da autoconsciência local, em contato crescente com a modernidade. Nessa mesma época, a revista mais importante dedicada às tradições


Foto : Sebastião Lucena

pós-modernidade Professor uruguaio Guillermo Giucci, que prepara biografia intelectual de Gilberto Freyre, contextualiza a importância da sua obra, lançada em 1933, cuja abordagem do complexo tema das inter-relações entre raça e cultura continua contemporânea Luciano Trigo


»

56 CAPA locais chamava-se Revista do Norte. No centenário do Diário de Pernambuco, em 1925, Gilberto Freyre organizou o Livro do Nordeste, levando a cabo uma verdadeira recriação – sociológica, histórica, artística e econômica – da região. Nessa década, a dimensão regional da reflexão de Gilberto Freyre foi dominante. A partir da revolução de 1930, especialmente com Casa-Grande & Senzala, o tema nacional passa a dominar a sua reflexão, mantendo porém a temática da região (especialmente o Nordeste) num lugar de destaque em seu pensamento. Todos sabemos da importância de Casa-Grande & Senzala na interpretação cultural do Brasil moderno nos anos 30, a partir da idéia positiva da miscigenação, hoje transformada em um lugar-comum.

Desenho de Cícero Dias para a primeira edição de Casa-Grande & Senzala Continente setembro 2003

O senhor está escrevendo a “biografia cultural” de Freyre. Como o senhor define esse gênero, em que ele se distingue de uma biografia comum? Quais serão as novidades do livro em relação ao que já se sabe sobre o sociólogo? O Brasil, segundo grande parte dos intelectuais da época, sofria de duas deficiências incuráveis. A primeira era geográfica e tinha a ver com o trópico, que se acreditava ser o fator responsável pela produção de seres indolentes, preguiçosos e incompatíveis com a civilização. A segunda era racial. Tratavase da mestiçagem, uma praga que tinha que ser erradicada através do “embranquecimento” progressivo da população. Sendo assim, o mulato era considerado um degenerado, e a mestiçagem um problema. Em Casa-Grande & Senzala, Gil-


Foto: Sebastião Lucena

CAPA 57 »

berto Freyre argumentou que na América tropical havia se formado uma sociedade agrária na estrutura e escravista na técnica de exploração econômica. Freyre afirmava que o Brasil era a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência. Com Casa-Grande a cultura brasileira surgia, então, positivamente avaliada em um estudo monumental, a partir da mistura singular no trópico entre portugueses, índios e escravos africanos. Uma visão de conjunto sobre a fortuna crítica de Casa-Grande & Senzala revela uma surpreendente variedade de interpretações. Indubitavelmente, CG&S é percebido na década de 30 como um livro transgressor. A linguagem utilizada por Freyre causou controvérsias, já que a chamada linguagem “vulgar” podia ser usada em obras de ficção, mas não em obras científicas. Outros pontos, particularmente, polêmicos de Casa-Grande foram os seguintes temas: o elogio ao negro, o materialismo, a sexualidade e o regionalismo. Mas, de um modo geral, as resenhas sobre CG&S, na década de 30, são sumamente positivas. Fale sobre a importância dos anos de formação de Freyre em universidades americanas. Em que medida o contato com as teorias sociais americanas da época, como a obra de Franz Boas, influenciou o pensamento de Freyre? Gilberto Freyre chegou como estudante aos Estados Unidos quando tinha 18 anos, e a experiência americana o marcou profundamente. Obteve um Master of Arts na Universidade de Colúmbia com sua tese Social Life in Brazil in the middle of the Nineteenth Century, na qual já antecipava seu interesse pela história cultural, a vida familiar e a petit histoire da vida cotidiana. Seus estudos nos Estados Unidos são um traço original, numa época em que a maioria dos intelectuais latino-americanos estava voltada para Paris. Nos Estados Unidos, além de

estabelecer contato com os círculos literários e universitários no clima excitante do primeiro pós-guerra, Freyre estudou Ciências Sociais – outro traço original: foi um dos primeiros estudantes brasileiros pós-graduados em Ciências Sociais nos Estados Unidos. A principal influência universitária veio da Antropologia Cultural de Franz Boas, ainda que em geral tenha tido acesso a todas as grandes obras desse período pioneiro das Ciências Sociais americanas. O descobrimento do conflito racial e a crítica do biologismo predominante na época, a partir da apropriação original do conceito de cultura, foram decisivos em sua formação e na concepção de suas duas obras centrais, Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Casa Grande & Senzala combinou as Ciências Sociais com a narrativa histórico-lliterária, antecipou importantes tendências historiográficas contemporâneas e inaugurou novos territórios de pesquisa no Brasil, como a cultura material, as mentalidades e a etnografia da vida cotidiana. Sete décadas depois de seu lançamento, a obra conserva sua atualidade? O historiador norte-americano Stuart Schwartz, no seu artigo Gilberto Freyre e a história colonial: uma visão otimista do Brasil, mostrou que a pesquisa historiográfica, nos últimos 50 anos mudou, consideravelmente, nosso entendimento do período colonial brasileiro. Sabe-se hoje, por exemplo, que a “nobreza da terra” do Nordeste era bem menos “nobre” do que ela própria alegava ser e que a vida dos senhores de engenho era bem menos estável do que o imaginado por Freyre. Sabe-se também que os índios tiveram um papel importante na economia açucareira, até meados do século 17 e que havia grupos sociais intermediários entre a casa-grande e a senzala. Mas, independentemente da validade que se atribua a elas, as interpretações de Freyre conservam seu interesse. O que surpreende em Gilberto é o frescor que conservam muitas de suas páginas. Poucos textos dos chamados clássicos do pensamento social brasileiro transmitem tanta sensação de contemporaneidade, como a narrativa histórica de Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala contorna o legado morto dos clássicos, com sua abordagem original do complexo tema das inter-relações entre raça e cultura, uma questão que está em debate na pós-modernidade. Sua leitura revive espectros do passado que não conseguimos purgar definitivamente. • Luciano Trigo é jornalista. Continente setembro 2003


Foto: Sebastião Lucena

Entre o transitório Ao completar 70 anos, obra máxima de Freyre ratifica sua condição de marco fundamental da cultura brasileira, original e permanente, a despeito de equívocos políticos do autor e da miopia da crítica Fernando da Mota Lima


CAPA 59 »

da cultura é um vasto cemitério de obras cadentes. A cada geração, senão a cada década, reA história pontam no horizonte das humanidades uma sucessão de obras saudadas pela crítica e pela comunidade

dos leitores como obras-primas ou definitivas. Logo, porém, o tempo, juiz último e implacável, procede a uma operação rotineira de filtragem e decantação. De umas retém valores de referência e fontes de pesquisa para o especialista; de outras, virtudes medianas que seduzem o leitor sedento de prazer gratuito e entretenimento ou saber livremente desinteressado. Uma outra categoria, a majoritária, simplesmente mergulha no esquecimento, dando assim provas cabais do seu interesse transitório. Uma última, reserva das raridades autênticas, sobrevive a todas as provas do tempo e ao capricho das circunstâncias elevando-se à categoria de obra definitiva. Casa-Grande & Senzala inscreve-se, sem dúvida, nesta categoria. Há obras-primas que são acolhidas com hostilidade mesmo pela crítica mais qualificada. Seu teor de inovação ou ruptura é tão radical que tem o poder momentâneo de desnortear o receptor munido de códigos e instrumentos inadequados para apreender-lhes a real dimensão intelectual e estética. Talvez por isso todo grande crítico incorreu em graves erros de apreciação. Basta que se pense nos erros de gente como Virginia Woolf, Edmund Wilson, Lionel Trilling, Harold Bloom e dos brasileiros Mário de Andrade e Antonio Candido. Casa-Grande & Senzala passou ao largo desse destino. Afora um ou outro crítico menor – ou caturra, como prezava dizer Gilberto Freyre – a melhor crítica brasileira teve a lucidez de saudar com entusiasmo o surgimento da obra. Algumas das suas qualidades mais notáveis, já tantas vezes reiteradas, traduziam-se na originalidade do estilo e da exposição da matéria, na linguagem desatada, mas de forte senso artístico, na reinvenção interpretativa do nosso passado. Desde então, Gilberto Freyre e sua obra-prima, somada a outros títulos igualmente fundamentais como Sobrados e Mucambos e Nordeste, ocuparam posição privilegiada nos quadros gerais da cultura brasileira. O consenso que assinalava a excelência de Casa-Grande & Senzala foi, porém, abalado nos anos 60 e 70. A imposição da ditadura militar e seu endurecimento, a partir de 1968, atingiram de modo traumático as artes e a cultura brasileira num momento de intensa fermentação e atividade criadora. A perseguição movida pelo

e o permanente

regime militar contra intelectuais, artistas e estudantes, institucionalmente concentrados na esfera acadêmica, produziu reações gerais de resistência ora ativa, ora passiva. A última forma de resistência, a passiva, ou o autoexílio como forma de negação da intolerância e violência institucionalizadas, acentuou-se por motivos óbvios durante os chamados anos de chumbo. Dentre os intelectuais de renome e irrecusável influência crítica e institucional, Gilberto Freyre foi dos raros a apoiar a ditadura. Falta ainda um pesquisador paciente e isento, interessado em revisar seus artigos publicados – na imprensa local, sobretudo – durante esse período sombrio. Em resposta, a esquerda oprimida e perseguida deu-lhe um troco de intolerância, silenciando sua obra nas universidades durante cerca de duas décadas. Quando sobre ela se pronunciou, mesmo através das melhores

Continente setembro 2003


60 CAPA

Foto: Teixeira da Mota/Acervo Fundação Gilberto Freyre

»

Freyre entre membros da etnia Manjacos, na Guiné, em 1951

vozes críticas, foi em tom de combate ideológico ou ajuste de contas. Esse espírito ou intenção é sensível, por exemplo, em obras de valor crítico inegável como O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Outro dado significativo para que melhor se compreenda a resistência ideológica desfechada contra a obra de Gilberto Freyre evidencia-se na relativa sobreestima concedida a seus grandes concorrentes nos estudos de interpretação do Brasil: Mário de Andrade, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Antonio Candido. Passado o vendaval, e refeito o cenário da nossa precária democracia política e cultural, a obra foi gradualmente reconquistando sua autonomia abalada pelos erros ideológicos em que incorrera seu autor. O grande marco da revisão crítica de Casa-Grande & Senzala foi certamente o ensaio-prefácio corajosamente assinado em 1979 por Darcy Ribeiro para a edição venezuelana da obra. Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo de Gilberto Freyre, cita o antropólogo alguns elogios feitos a Freyre dentro e notadamente fora do Brasil. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvadores, rende-se ele à grandeza da obra saudando-a como a mais importante da cultura brasi-

Continente setembro 2003

leira. Mas o ensaio de Darcy Ribeiro não se distinguiria como a melhor síntese crítica de Casa-Grande & Senzala se se detivesse no elogio sem fundamentação interpretativa. Sendo assim, cuida em seguida de articular com clareza o problema cuja tentativa de resposta é o próprio ensaio-prefácio. Noutras palavras, pergunta-se ele como um autor tão “tacanhamente reacionário no plano político”, cito literalmente Darcy Ribeiro, foi capaz de “escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo.” A resposta é complexa e, no meu entender, Darcy Ribeiro não a fornece integralmente. O que porém mais importa destacar no problema que nos propõe é a distinção necessária entre o autor e a obra. Como o leitor em geral e mesmo a crítica mais qualificada tendem com freqüência a confundi-los, há sempre quem queira julgar a obra pelas posições políticas do autor. Foi isso, em suma, o que pôs momentaneamente em questão o caráter permanente de Casa-Grande & Senzala. Assentada a poeira das batalhas ideológicas, nota-se a crescente retomada de interesse pela obra. Estudiosos de variadas formações e objetivos voltam a ressaltar sua originalidade e permanência. O pioneirismo de muitos dos seus temas, valores, fontes e processos de apreciação, tão grosseiramente incompreendidos durante décadas, o que forçava o


CAPA 61 » Fotos: Sebastião Lucena

À esquerda, escritório de Gilberto Freyre Acima, edições estrangeiras de CasaGrande & Senzala

narcisismo de Freyre a vir a público chamar a atenção para si próprio com reiteração insistente e por vezes mesmo ridícula, é enfim reconhecido e louvado. O irônico é observar que tal reconhecimento deriva muitas vezes do prestígio atribuído à nova história nos nossos círculos intelectuais e acadêmicos. Como a historiografia européia, sobretudo a francesa, estimulou no Brasil os estudos e pesquisas orientados para a história do cotidiano, a história oral, a história das mentalidades, etc., muitos dos nossos estudiosos descobrem agora com espanto que Gilberto Freyre já fazia tudo isso nos anos 30. Isso prova, antes de tudo, a persistência da formação colonizada do intelectual brasileiro. A fortuna crítica de Casa-Grande & Senzala e, mais amplamente, do conjunto da obra de Gilberto Freyre, é já considerável e crescente. É entretanto oportuno salientar que grande parte dela se reveste de tom fortemente celebratório e apologético. Diria, nesse sentido, que vários dos nossos autores canônicos têm sido melhor afortunados que Freyre. Tenho em mente Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade e Guimarães Rosa. Dada a singularidade que os caracteriza, seria descabido considerar o problema acomodando-os numa medida comparativa comum. O que intento acentuar nesta observação ligeira é o limitado alcance quali-

tativo da fortuna crítica freyreana em face da quantidade que se avoluma. As obras permanentes são permanentes, entre outras coisas, por prescindirem da crítica apologética assinada pela corte dos epígonos e diluidores. Importa, portanto, considerar Casa-Grande & Senzala à margem de qualquer intuito oficialista ou apologético. Confesso estar enjoado de certa crítica gilbertiana diluída em variações do tema “eu e Gilberto Freyre”. O crítico, e notem que me refiro ao crítico autêntico, existe e escreve para servir à difusão das obras de excelência, para servir às obras verdadeiramente originais. Na nossa era saturada de narcisismo, entretanto, o crítico mais e mais se comporta como se ele e sua produção transitória e parasitária se sobrepusessem ao restrito universo das obras permanentes. É por constatar essa inversão de valores no mundo da cultura que me arrisco a concluir em tom desmedido ou até paradoxal. Quero dizer: esqueçamos a crítica, deslocando assim nossa atenção dos valores transitórios para os permanentes. Diria mais: esqueçamos Gilberto Freyre, esqueçamos o autor, pois o que fica e por fim importa é a obra. • Fernando da Mota Lima é professor de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.

Continente setembro 2003


Prosa de quem se espreguiça Gilberto Freyre foi não tanto escritor a ponto de se preocupar com as minúcias da palavra, mas da sua reconstrução retórica, uma retórica a serviço da interpretação antropológica e sociológica da realidade. É sempre o escritor-cientista, com hífen Mário Hélio

dias depois de saída às livrarias Casa-Grande & P oucos Senzala, o poeta Manuel Bandeira comentou em carta ao

seu autor a repercussão do livro no Rio. O escritor Gastão Cruls esperava que fosse “mais literário”. Murilo Mendes definia-o como um novo Ulisses (referência ao romance de Joyce sobre quem o pernambucano foi o primeiro a escrever no país). Roquette Pinto elogiou a linguagem. A interpretação da literatura em Casa-Grande & Senzala e, por extensão, na obra de Gilberto Freyre, vem atentando mais para os dois últimos aspectos citados – linguagem e comparações com outras obras – que para a sutil recorrência do primeiro: o que haveria nela de literário? Entre as freqüentes analogias com clássicos duas são recorrentes: Guerra e Paz e, principalmente, Em Busca do Tempo Perdido. Wilson Martins, que não via sentido épico na obra freyriana (ao contrário de Carpeaux, que considerava os seus dois primeiros livros as melhores epopéias do Nordeste), distinguiu no francês a primazia do

Continente setembro 2003

tom, e no brasileiro a “fórmula”. O que Proust e Freyre tinham em comum era menos a qualidade literária e mais a valorização do tempo. Ninguém mais do que Gilberto Freyre estimou e estimulou essas comparações com grandes autores. Deve ter gostado de o seu primeiro livro ser definido como um Ulisses. Mas, Casa-Grande & Senzala não é um novo Ulisses. As comparações e as generalizações excessivas costumam primar pela imprecisão. Com o romance do irlandês guarda apenas o paralelo da franca valorização da vida sexual e do cotidiano. O âmbito da renovação realizada por Joyce ia até à medula da palavra, no brasileiro estancava na frase, na frase de efeito, na sentença, no espírito, por mais que fosse um anti-retórico. O que faz Casa-Grande & Senzala obra literária, além da sua ênfase na escrita – no gosto pelas imagens, pelas metáforas – é a despreocupação com o discurso fechado. Darcy Ribeiro destacou que ele tanto atende ao cientista bem documentado


Foto: Sebastião Lucena

CAPA 63 »

quanto ao escritor mais libérrimo. E essa liberdade contribui para que as interpretações – suas e de outrem sobre ele – sejam forçadas ou distorcidas, e isto se verifica também na leitura que ele compõe da realidade. Se é o poético que conduz o sociólogo, pode-se lembrar daquela distinção famosa que Aristóteles faz entre o historiador e o poeta. Este contaria a história das coisas como deveriam ter acontecido. É assim com Freyre. Conta não tanto “a história do Brasil como realmente foi e é”, mas a história do Brasil como deveria ter sido e talvez ainda seja. Casa-Grande & Senzala não pode ser vista apenas como exemplo da construção inteligente de um mito fundador para o Brasil. Ou mera narrativa literária, tirando-lhe os méritos científicos. Como se não fosse resultado de um cuidadoso exame de documentos. É o contrário o que ocorre. A abundância de fontes e a capacidade de manipulá-las é o que faz Gilberto um autor original, acima dos modismos e das academias, acima da doença crônica da maioria dos historiadores, sociólogos e antropólogos pernambucanos: a mediocridade. O que há de mais intensamente pessoal na sua forma de reconstruir a sociedade brasileira em palavras é que o torna grande. Toda a larga discussão em torno do quanto há de literário em Casa-Grande & Senzala (sempre para mais, para os de hoje, e não menos, como constatou Gastão Cruls) seria bem reduzida se todos atentassem para a informação simples de que, no tempo de Gilberto Freyre, historiadores e cientistas sociais tinham gosto, formação e estilo literário. Casa-Grande & Senzala é um dos melhores exemplos disso. De que a ciência também tem uma retórica, e não raro se irmana com a literatura. No seu caso, há uma retórica sensual para textos científicos domada pela influência da língua inglesa. O opúsculo Vida Social no Brasil em Meados do Século 19 – a dissertação defendida nos Estados Unidos – é o rascunho de Casa-Grande & Senzala, e que foi redigido, originalmente, em inglês. Gilberto Freyre, como os seus principais companheiros de geração modernista, queria descobrir o Brasil e construir uma língua nacional. No seu caso, essa língua nem era aquela exuberante e às vezes caricata de Mário de Andrade (que ele repudiou pelos exageros e artificialismo) nem a de Rui Barbosa (ainda mais rechaçado e ridicularizado). Era o resultado do seu estilo e da sua atitude perante a linguagem. Não tanto escritor a ponto de se preocupar com as minúcias da palavra, mas da sua reconstrução retórica, uma retórica a serviço da interpretação antropológica e sociológica da realidade. É sempre o escritor e o cientista com hífen o que se tem nele. Escritor-sociólogo, escritor-antropólogo, antropólogo-sociólogo e outras combinações. Grande parte do seu vigor vem desses casamentos indissolúveis, pois o escritor-só-literatura em Gilberto é muito medíocre: os seus melhores poemas são quando muito pastiches do estilo de Whitman com tinturas do imagismo, as suas semi-novelas são exercícios menores. Tudo o que ele publicou depois dos 40 anos de idade parece simples desdobramento ou alongamento (para usar termo mais ao seu gosto) do que produzira com vigor antes. Ordem e Progresso seria uma exceção (publicada quase aos 60 anos do autor), não tivesse uma elaboração muito anterior. Há maneirismo e perda de vigor em quase tudo o que publica na velhice. CasaGrande & Senzala – só superada por Sobrados e Mucambos – é obra de um escritor-pensador no auge. O que há de mais amplamente literário no livro? Para responder-se deveria ser usado um chavão: lê-se com prazer. É o prazer do texto que define a literatura e não o malabarismo verbal. O prazer do texto seu não pode se separar da ideologia do nacionalismo. De uma escrita nacional. Daí a exatidão do que escreveu João Cabral de Melo Neto, definindo essa obra, quando completou 40 anos de publicada: “Ninguém escreveu em português/ no brasileiro de sua língua:/ esse à-vontade que é o da rede,/ dos alpendres, da alma mestiça,/ medindo sua prosa de sesta,/ ou prosa de quem se espreguiça.” • Mário Hélio é jornalista e escritor. Continente setembro 2003


Um grande

Foto: Sebasti達o Lucena


CAPA 65 »

Pierre Louys acabou de ler as obras de André Gide, manifestou por carta o desejo de conhecer Q uando pessoalmente o grande romancista. Mas Gide respondeu que lendo seus livros Pierre Louys conhecera o que

ele tinha de melhor; e acrescentou: “conhecer-me pessoalmente? Por que esta imprudência?”. O receio do autor de Os Alimentos Terrestres era justificável porque são muitos, de fato, os autores que pessoalmente decepcionam seus mais fanáticos leitores. Não era este o caso de Gilberto Freyre, a quem gosto de definir menos como sociólogo, antropólogo, historiador social, ensaísta, pensador ou mesmo escritor tout court – seu título preferido – do que como um grande sedutor. Recordarei, para explicar-me, uma noite em que fui ouvi-lo no Gabinete Português de Leitura do Recife. Depois da conferência, o professor Newton Sucupira, que estava a meu lado, comentou: “não concordo com tudo o que ele diz, mas acabo seduzido pela originalidade de suas idéias e pelo modo saboroso com que as expõe”. Isto ocorreu desde o primeiro grande livro de Gilberto Freyre, por ele definido como “ensaio de sociologia genética”. Mas desde o prefácio até o último capítulo o leitor é seduzido pelos recursos literários do autor: suas imagens e enumerações, as frases longas alternadas com as breves, os ricos gerúndios e os riquíssimos advérbios terminados em mente, a utilização personalíssima dos sinais de pontuação, o emprego de termos científicos, populares e até chulos (quando absolutamente necessários, como naquela página do último capítulo de Casa-Grande & Senzala em que se refere às sestas dos patriarcas em suas redes). Pessoalmente, Gilberto Freyre foi o grande exemplo brasileiro da célebre definição do naturalista francês Georges Louis Leclerc, conde de Buffon: “o estilo é o próprio homem”. Julián Marías escreveu que ele tinha a vocação da felicidade. Passou, em sua longa existência, por momentos desagradáveis – como, por exemplo, o saque e incêndio da casa de seus pais na chamada Revolução de 30, o exílio no mesmo ano, o ostracismo político, a ficha policial de 1935, com número de registro e retrato de Gilberto Freyre era o tipo do “homem cordial” frente e de perfil, a prisão em 1943, “na da caracterização do brasileiro segundo Sérgio imunda Casa de Detenção do Recife”, os insultos pichados, no mesmo ano, nos Buarque de Holanda e Ribeiro Couto. Tudo muros das casas de Apipucos – mas nunprocurava compreender. Sua cosmovisão – ou ca se deixou dominar pela amargura, mansempre a esperança que – como Weltanshauung, como se diz em alemão – era tendo disse-me uma vez – é a fé dos pobres. a mais abrangente possível Estava sempre alegre e animando os que dele se aproximavam. Existe um cartaz comemorativo dos Edson Nery da Fonseca quarenta anos do Banorte com estas palavras de Gilberto Freyre sobre um retrato no qual transparece a felicidade notada por Julián Marías: “Eu sempre fui um homem de muitos amigos”. Numa conferência intitulada O culto da amizade em Gilberto Freyre (1992), tentei recensear esses amigos com base nas dedicatórias impressas em dois de seus primeiros livros: Ulysses Freyre, Olívio Montenegro e José Lins do Rego em Artigos de Jornal (1935) e Antiógenes Chaves, Pedro Paranhos, Luis Cedro e Cícero Dias em Nordeste (1937). Mas o critério não é totalmente válido porque exclui outros amigos íntimos da primeira mocidade, como, por exemplo, Aníbal Fernandes, José Tasso, Odilon Nestor, Júlio Belo, Sylvio Rabelo, José Américo de Almeida. Os 75 livros e 96 opúsculos deixados por Gilberto Freyre não eram suficientes para

sedutor

Continente setembro 2003


66 CAPA contemplar todos os amigos que fez ao longo dos 87 anos de sua existência: amigos tanto de sua geração como das gerações anteriores e posteriores. Entretanto, o homem de “muitos amigos” teve também seus inimigos. No discurso de agradecimento a um banquete que lhe ofereceram no Rio de Janeiro, em julho de 1941, incluiu-se entre os “que seguem, quanto possível, o velho inglês orgulhoso de nunca ter procurado uma amizade ilustre nem se esquivado a ódio de poderoso”. Em artigo publicado pelo Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco (maio de 2000), indiquei três inimigos de Gilberto Freyre, representativos dos poderes intelectual (Oliveira Viana), político (Agamenon Magalhães) e espiritual (Padre Antonio Ciríaco Fernandes). Vejamos os três casos. Em Casa-Grande & Senzala são citados os três livros de Oliveira Viana até então publicados: Evolução do Povo Brasileiro, Populações Meridionais do Brasil e Raça e Assimilação. Gilberto Freyre qualifica-os como “sugestivos ensaios”, mas diverge do sociólogo fluminense quando este nega a existência de luta de classes e superestima a presença de dólicos-louros na formação social do Brasil. Foi o bastante para fazer com que Oliveira Viana devolvesse Casa-Grande & Senzala ao editor e

deixasse de citar Gilberto Freyre em seus livros seguintes. Com Agamenon Magalhães a divergência começou quando Gilberto Freyre fez reparos à campanha desfechada pelo então interventor federal em Pernambuco contra os mucambos, cujos males decorriam, para o sociólogo, da lama em que eram construídos. Em solo seco e devidamente higienizados, seriam a solução econômica e ecológica para o problema da habitação popular em Pernambuco. Agamenon achava que Gilberto defendia os mucambos para estimular a luta de classes. Ele morreu sinceramente convencido de que Gilberto estava a serviço do Comunismo Soviético. Quanto ao missionário jesuíta Antonio Ciríaco Fernandes, Gilberto Freyre contava que ao cruzar com ele numa rua do Recife sentira-se atingido por um olhar de ódio, que interpretava como “ódio teológico” porque somente se conheciam de vista. O padre Fernandes, que era um erudito natural de Goa, fundou e dirigiu no Recife a Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica, à qual pertenciam quase todos os secretários de Agamenon Magalhães, como interventor federal em Pernambuco de 1937 a 1945. Quando ministro da Justiça nos últimos meses da Ditadura Vargas, Agamenon foi substituído pelo secretário de Segurança Etelvino Lins, responsável pela

Foto: Acervo Fundação Gilberto Freyre

Freyre, a esposa Magdalena e os filhos Sônia e Fernando, em 1954 Abaixo, aos 18 anos de idade, quando viajou para os Estados Unidos

Foto: Acervo Fundação Joaquim Nabuco

»

Continente setembro 2003


Fotos: Acervo Fundação Joaquim Nabuco

CAPA 67

À esquerda, o jovem Gilberto Freyre faz pose, escalando um coqueiro Acima, num passeio ciclístico com o irmão Ulysses (E) e um amigo

prisão de Gilberto Freyre na Casa de Detenção do Recife, por haver denunciado o racismo do diretor espiritual dos escoteiros, então subordinados à Secretaria do Interior e Justiça do Estado. Minha interpretação pessoal é a de que Gilberto Freyre foi odiado pelos que não o conheceram pessoalmente. Ele tinha um poder de sedução que operava a conversão em amigos dos mais ferrenhos inimigos. Teve a grandeza humana de receber cordialmente no solar de Apipucos os que o combateram e até o insultaram, como os autores da vergonhosa nota oficial do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife imposta aos jornais pela polícia ditatorial dos anos 40: Jordão Emerenciano e Sérgio Higino. Recebeu prazerosamente em Petrópolis as homenagens de Guilherme Áuler, que antes o combatera no Recife, e prefaciou seu livro sobre a emigração germânica no Brasil, publicado em 1959 pelo Arquivo Público Estadual de Pernambuco, fundado e até então dirigido por Jordão Emerenciano. Damos a seguir outro exemplo. Conhecido e conceituado poeta e ensaísta cearense radicado no Recife disse a um jornal que Gilberto Freyre atuava como ditador na presidência do Conselho Estadual de Cultura. Quando se encontraram, alguns dias depois, nos jardins da Fundação Joaquim Nabuco, Gilberto a ele se dirigiu e o abraçou dizendo: “ditador, mas simpático, não é?”. Era assim Gilberto Freyre: o tipo do “homem cordial” da caracterização do brasileiro segundo Sérgio Buarque de Holanda e Ribeiro Couto. Tudo procurava compreender. Sua

cosmovisão – ou Weltanshauung, como se diz em alemão – era a mais abrangente possível. Mais do que a de Terêncio, o poeta latino – por ele citado em discurso de 1918 – que disse: “sou humano e nada que é humano reputo alheio a mim”. Gilberto ia além, podendo dizer, como já sugeri em outra ocasião: “sou vivo e nada que é vivo reputo alheio a mim”. Pois sua empatia abrangia tanto o homem como as espécies animais e vegetais. Quando organizei seu livro significativamente intitulado Pessoas, Coisas & Animais (São Paulo, MPM Propaganda, 1979; Porto Alegre: Globo, 1981), incluí uma crônica em que ele evoca o gato Joujou como pessoa da família. Josué Montello anotou em seu diário que durante visita à vivenda de Apipucos, viu um pássaro alojando-se no ninho que construíra na luminária do pátio interno e ouviu Gilberto explicar: “ele mora aqui”. E Carlos Humberto Carneiro da Cunha conta que ao tentar raspar o musgo formado numa parede externa da mesma vivenda, foi amavelmente censurado com estas palavras: “deixa o musguinho viver!”. No já citado discurso de 1941, publicado pelo Diário de Pernambuco de 29 de julho daquele ano, Gilberto Freyre assim sintetizou sua generosa cosmovisão: “Sou ainda um combatente quase sem armas para controvérsias no velho gesto brasileiro: um combatente para quem nem negro, nem judeu, nem china, nem mouro, nem mulato, nem filho natural, são expressões pejorativas”. • Edson Nery da Fonseca é professor emérito da Universidade de Brasília e pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco.

Continente setembro 2003


»

68 PATRIMÔNIO Ao visitar Veneza, poucos percebem que a torre do campanário não é a obra original do século16


Foto: Reprodução

PATRIMÔNIO

69

O estigma do tempo e os dilemas da arquitetura A manutenção do passado histórico e a construção em áreas preservadas envolvem visões diferentes sobre o tipo de intervenção desejável, numa polêmica permanente Fábio Araújo

E

m 14 de abril de 2003, um incêndio destruiu o casarão do século 19 onde funcionara o hotel Pilão, na praça principal de Ouro Preto (MG), provocando uma perda incalculável. A cratera aberta pelas chamas dói, como ferida não cicatrizada, no coração da cidade Patrimônio Cultural da Humanidade. Passado o luto e recolhidos os escombros, é hora de seguir em frente e decidir o que fazer para preencher esta lacuna urbana encravada numa área histórica. Assunto polêmico, que motiva debates apaixonados entre especialistas e muitas vezes coloca em lados opostos a Academia e os órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio. No livro Revitalizing Historic Urban Quarters, os urbanistas Steven Tiesdell, Taner Oc e Tim Heath identificam e conceituam os três modelos de intervenções comumente praticadas em áreas históricas: a uniformidade contextual (contextual uniformity) é nostálgica e voltada para o passado; envolve a recriação do imóvel perdido igual ao que ele era antes de desaparecer ou o projeto de um novo imóvel imitando o estilo do lugar. A continuidade contextual (contextual continuity) é conciliadora, moderada; evita tanto a cópia fiel quanto a ruptura. Por sua vez, a justaposição contextual (contextual juxtaposition) é revolta e libertária: busca romper com a tradição, criando um mosaico de prédios que competem entre si e evocam diferentes épocas. Três princípios apenas, mas o suficiente para intermináveis polêmicas. Exemplo clássico de intervenção do tipo uniformidade contextual aconteceu em Veneza, na primeira década do século passado. Em 1908, na praça de São Marcos, a torre do campanário desabou e acabou reduzida a um monte de escombros. A solução, decidida em plebiscito, foi fazer uma réplica do edifício original, o que até hoje passa despercebido, exceto aos olhos mais perspicazes. Pelo menos na superfície, a praça de São Marcos permanece intacta, apesar de quase 400 anos separarem matriz de cópia. Odete Dourado, professora do Programa de Pós-Graduação em Conservação e Restauro da Continente setembro 2003

»


»

70 PATRIMÔNIO Universidade Federal da Bahia (UFBA), não perdoa os responsáveis pela ousadia. “Trata-se de um dos maiores falsos artísticos e históricos do século 20. Essa proposta leva ao engano, não corresponde à linguagem de seu tempo e faz parecer antigo o que não é”, analisa, refletindo com fidelidade as idéias do teórico italiano Cesare Brandi. Para Odete, intervenções criativas e restaurativas precisam conter o estigma de seu tempo, da cultura que as produziu, sob pena de tornarem-se falsas. Já o coordenador do Curso de Especialização em Conservação Integrada da UFPE (Ceci), Sílvio Zancheti, aprova o que foi feito em Veneza. “Apesar de ser uma reconstrução, trata-se de um bom projeto. É um pouco mais alto que o original, mas a praça e Veneza não ‘existiriam’ sem o campanário”, argumenta. Se discordam sobre Veneza, Sílvio os arquitetos concordam sobre o que NÃO fazer em Ouro Preto. Odete Dourado considera que a perda do casarão é irremediável. “Reconstruí-lo como um edifício do século 19 configuraria um pastiche, desqualificando a arquitetura contemporânea e fazendo empalidecer a antiga”. Zancheti afirma que, apesar da

antigüidade do imóvel, não havia nenhum fato absolutamente significativo associado ao mesmo. “Ouro Preto pode até precisar de um projeto moderno. Não se esqueçam de que a reconstrução do campanário é um projeto de 100 anos atrás e de difícil comparação com o que está ocorrendo no Brasil de 2003”, argumenta Zancheti. A intervenção restaurativa incorpora-se ao monumento, passando a fazer parte da sua história e, portanto, da sua transmissão no tempo. Deve-se construir um edifício no lugar do antigo casarão, não o casarão perdido, mas um em linguagem contemporânea, que respeite as características espaciais da cidade”, defende Odete. Na França, parte da opinião pública se escandalizou quando, em 1983, o arquiteto sino-americano Ieoh Ming Pei apresentou um ousado projeto de modernização do Museu do Louvre, propondo a construção de uma pirâmide de vidro bem em frente ao antigo palácio medieval. A obra seguiu adiante e hoje é considerada um dos melhores exemplos de integração entre novo e antigo. Outro prédio histórico “beneficiado” com uma

Foto: Natália Vieira

Os três modelos de intervenções comumente praticadas em áreas históricas – o da uniformidade, o da continuidade e o da justaposição contextual – têm gerado, por vezes, apaixonados posicionamentos

Rua do Bom Jesus no Recife: harmonia mantida

Continente setembro 2003


PATRIMÔNIO intervenção contemporânea de inequívoca qualidade foi o Reichstag, em Berlim. O arquiteto Norman Foster, contratado para transformar o velho edifício na casa do parlamento alemão unificado, implantou um domo de metal e vidro que irradia luz à noite. Poucos ousaram criticar este premiado projeto. A arte da discordância – O arquiteto José Luiz Mota Menezes defende que se possam desprezar os modelos que visam à manutenção dos cheios e vazios dos vãos anteriores e trabalhar com a linguagem de hoje, apenas garantindo a volumetria para que não ocorra um desequilíbrio no conjunto urbano existente. Aqui surge uma nova discordância entre especialistas: a opção preferida por José Luiz é justamente aquela rejeitada pelo superintendente regional substituto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Frederico Almeida: “Se houver registros suficientes que permitam a reconstituição integral da edificação, poderemos reconstruir esteticamente o imóvel perdido. Se não, a lacuna surgida com a perda dessa edificação poderá ser reintegrada de forma contem-

71

porânea. Nesse caso, essa nova edificação deverá ser vista como uma reintegração da paisagem urbana e jamais poderá ofuscar a leitura do conjunto arquitetônico, sob pena de tornar-se mais ‘forte’ do que a lacuna deixada pela perda do imóvel”. O Instituto não tem uma “receita” única para análise de projetos. A “Casa do Bispo”, de Mariana, em Minas Gerais, foi construída em estilo pós-moderno. Tem seus cunhais em aço e cercaduras de portas e janelas frisadas, porém integra-se perfeitamente à paisagem urbana da cidade. A Igreja da Madre de Deus, no Recife, na década de 70, teve seu altar quase destruído por um incêndio; “através de campanha em jornal, conseguiuse reunir documentação necessária à reconstituição integral do altar”, exemplifica. No Brasil, podem-se citar várias outras intervenções. Uma das mais significativas é o Brasília Shopping, concluído em 1997 com projeto do arquiteto Ruy Ohtake. O edifício pós-moderno veio romper com os padrões estabelecidos por Oscar Niemeyer, meros 37 anos antes, que renderam à capital federal o título de Patrimônio da Humanidade, e, obviamente, não Foto: Betânia Uchoa Cavalcanti Brendle

Em Berlim, passado e futuro se encontram no domo do Reichstag

»


Foto: Natália Vieira

Foto: Natália Vieira

A pirâmide do Louvre, em Paris, venceu as críticas e deu mais vida ao antigo palácio medieval

escapou de críticas. Mas Ruy Ohtake argumenta que “Brasília tem uma arquitetura suficientemente forte para que se possam alterar alguns detalhes sem mudar a cidade”. Em forma de semi-círculo, com fachadas em vidro e alumínio, o Shopping é pura justaposição contextual. A Brasília modernista ganhou toques contemporâneos. Na Praça da Sé, Centro Histórico de Salvador, por cima de um edifício modernista que já ocupava o espaço de um casarão colonial foi implantada uma fachada em vidro fumê que, como toda justaposição que se preze, monopoliza as atenções dos passantes e deixa os demais casarões em terceiro plano. Odete Dourado não poupa críticas à obra – já apelidada

O “forno microondas”, edifício contemporâneo na praça da Sé, em Salvador

forno microondas – que considera “tão danosa quanto a falha em si” (falha, neste caso, seria a própria presença do edifício modernista). Os questionamentos subiram de tom quando, no início deste ano, a fachada contemporânea foi coberta por um estranho banner que imita os traços coloniais. No Recife, o prédio onde funcionou o bar Calypso passou por uma intervenção na linha continuidade contextual. Ao contrário do forno microondas, o edifício não se destaca tanto em relação ao casario adjacente, nem finge ser antigo. Belíssimo exemplo de criação contemporânea. • Fábio Araújo é jornalista.

Polêmica no Recife Antigo Passarelas que ligarão edifícios-garagem ao Paço Alfândega põem em xeque as correntes divergentes

A

s posições envolvendo as correntes teóricas se materializaram num caso concreto no Recife: a construção de dois edifícios-garagem interligados por passarelas ao lado do Paço Alfândega, no Bairro do Recife Antigo. O projeto do famoso arquiteto Paulo Mendes da Rocha recebeu parecer desfavorável da 5ª Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), mas foi aprovado pelas instâncias superiores do Instituto em Brasília. No início de julho deste ano, após questionamentos que reverberaram na imprensa local, a Comissão de Controle Urbanístico do Recife sugeriu que se reduzisse o número de passarelas de quatro para dois. Porém, em primeiro de agosto o Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) aprovou o projeto em definitivo, por 12 votos a 4, mantendo as quatro passarelas. O arquiteto Sílvio Zancheti é crítico ferrenho do projeto. “Acho o caso dos estacionamentos e das passarelas um caso de polícia. O Iphan e a Prefeitura não têm o direito de voltar atrás no tombamento do Bairro do Recife. O que está ocorrendo é Continente setembro 2003

um retrocesso aos anos 1950/60 no Brasil. É incrível que numa cidade mutilada como o Recife – com aberrações, como a avenida Dantas Barreto, Viaduto das Cinco Pontas, edifício Bandepe e outros edifícios altos no centro – ainda existam administradores e políticos urbanos capazes de promover mais uma violência contra nossa cidade histórica”, ataca. O autor do projeto, Paulo Mendes da Rocha, responde que o Plano Diretor da Cidade do Recife já havia destinado os dois terrenos contíguos para estacionamentos. E que a própria Prefeitura aprovou o projeto destinando a antiga alfândega para se tornar um centro de compras, que necessita de 800 vagas de garagem para seus usuários. “De fato, o patrimônio só se defende se se tornar atual. Vivo. No mundo inteiro defendemos a tese de que o maior patrimônio da humanidade é o homem e que se a vida não fluir não há patrimônio. O grande mérito deste projeto de estacionamentos foi tirar a garagem do chão, que é o passeio público histórico, onde anda o pedestre”, argumenta. Segundo ele, foi mantida a quota (tamanho) estabelecida pelo parâmetro


Foto: Betânia Uchoa Cavalcanti Brendle

PATRIMÔNIO 73

A Brasília modernista de Niemeyer ganhou um toque contemporâneo com a construção do Brasília Shopping

de um friso da Igreja Madre Deus, o que harmoniza a intervenção com o entorno. “Ainda inventamos no teto, em vez de telhado ordinário, comum, um grande jardim com amplos mirantes para áreas turísticas da cidade. Unimos os dois recintos. Assim como o Recife conta com o privilégio das suas pontes, emolduramos as paisagens com nossas ligações entre os dois estacionamentos. Não obstruímos, como dizem, mas oferecemos aos usuários a oportunidade de entrar na garagem, sem

provocar perturbação no tráfego do sítio histórico”, defende Paulo Mendes da Rocha. Consultor da obra, o arquiteto José Luiz Mota Menezes reforça a defesa do projeto. “Parece que o novo e o diferente assustam. Uma cidade começa e nunca está terminada. Ela recebe, ao longo de sua vida, intervenções que a modificam e assim alteram seu cenário urbano. Acredito na necessidade de um controle dessas intervenções, mas, às vezes, há exageros não admissíveis e até estranhos”, aponta. O consultor cita outras intervenções como forma de justificar a obra. “Em Diamantina, cidade mineira, para facilitar o acesso entre duas edificações situadas em lados opostos da mesma rua, foi construída uma passarela. Em Salvador, ao se aproveitar a antiga escola de formação da Companhia de Jesus para sede do arcebispado, uma passarela foi construída ligando-a à Igreja da Sé no outro lado da rua. No Rio de Janeiro, a antiga moradia real, o Paço, foi ligada ao Convento do Carmo através de uma passarela”, exemplifica. Para o superintendente regional substituto do Iphan, Frederico Almeida, “como o projeto acarretará grande impacto no Bairro do Recife, por sua natureza, é polêmico”. Sobre a tramitação do processo, explica que após o parecer contrário da 5ª Regional, houve recurso ao Departamento de Proteção (Deprot), em Brasília, sendo o projeto aprovado após atendidas as exigências formuladas por esse departamento. (FA) • Continente setembro 2003


»

74 ENTREMEZ Ilustração: Zenival

Você já foi a Juazeiro? Não? Então vá! Na falta de um Padre Cícero em cada Estado do país, vá a Juazeiro do Norte na romaria de Finados

F

alta um mês para a maior romaria brasileira, a festa de finados do meu santo padrinho Padre Cícero, de Juazeiro do Norte. Se você ainda não fez essa viagem, está no tempo de fazê-la. Muita gente de classe média percorreu o caminho de Santiago de Compostela, da França à Galícia, na Espanha. Paulo Coelho fez o trajeto, chorou, escreveu um livro sobre a aventura e ganhou muito dinheiro. O caminho até Juazeiro, quase ninguém, além dos pobres, faz. Os romeiros afirmam que ele é dificultoso e áspero como o do céu. É verdade. Só os miseráveis vão a pé para Juazeiro, no sol quente de outubro. Os pobres remediados vão de ônibus ou caminhão pau-de-arara. Todos os caminhos levam a Roma, diz o provérbio. Todos os caminhos levam a Juazeiro do Norte, a Jerusalém brasileira. Mas as estradas atravessam áreas de plantio de maconha, são esburacadas e cheias de assaltantes. Os fiéis correm o risco de chegarem mortos, ou sem as roupas do corpo, na “terra santa”. O caminho de Santiago é seguro, por isso as pessoas ricas preferem viajar para a Europa e fazê-lo, não se importando em andar centenas de quilômetros a pé ou de bicicleta. Quando voltam, dizem que já não são as mesmas, que algum milagre se operou nelas. Os pobres que vão para Juazeiro, além de fazerem o único turismo de suas vidas, também esperam um milagre do padrinho Cícero. É bem possível que nada mude. Eles voltam para as mesmas casas Continente setembro 2003

humildes, onde falta o que comer. Os peregrinos de São Tiago retornam de avião para casa, e com certeza encontram a geladeira abastecida. Eu não sei o que São Tiago prometeu aos que fizessem tanto sacrifício para ver a sua igreja. O padre Cícero acolhia os romeiros com o seu jeito paternalista e sertanejo, pedia que aceitassem os sofrimentos da vida, aconselhava e sugeria algum trabalho. Encaminhou levas de retirantes para os seringais da Amazônia. O Acre foi colonizado por cearenses famintos e sem terra. Quando o padre Cícero vivia, a bandidagem também era grande. Lampião e seus cangaceiros aterrorizavam os caminhos do Nordeste, matando e esfolando. Existiam coiteiros poderosos, fazendeiros ricos e políticos safados como os de hoje. Mas Lampião não atacava no Ceará. Ele temia a maldição do Santo do Juazeiro, preferindo merecer sua bênção. Os romeiros sabiam que, entrando nos limites do Ceará, estavam seguros. Debaixo das asas do Padrinho, ninguém sofria nada. No Brasil de hoje, não existe um único lugar em que a gente possa ter certeza de que não vai ser atacado por um bandido. Nem ao lado do ministro da Justiça ou do filho do Presidente da República. O ministro foi assaltado cinco vezes e o filho do presidente teve o segurança morto. Por isso eu acredito que o


ENTREMEZ 75

padre Cícero era santo e obrava milagres. Vocês querem milagre maior do que este, a garantia de que não vamos morrer pela bala de um bandoleiro? A Espanha também foi empestada de bandoleiros. Ninguém se aventurava pelas estradas sem correr risco de vida. Os espanhóis esqueceram rápido o seu passado. Falam mal dos nossos bandidos e se orgulham da literatura deles, cheia de histórias parecidas com as dos nossos cangaceiros. Mas agora eles são ricos e nós permanecemos pobres. E só fazemos filmes e livros sobre assaltantes de favelas, famintos e drogados. É a nossa realidade. O Padre Cícero pertencia à Liga dos Coronéis do Ceará. Eu não acho nada parecido no tempo de hoje a que possa comparar essa Liga. Seria uma FIESPE. Os ricos donos de terra se uniram para se proteger, garantindo as vidas e os bens. Houve um encontro em Juazeiro do Norte e Lampião foi chamado. Deram a ele a patente de Coronel e fizeram-no prometer que nunca atacaria as fazendas daqueles senhores ilustres. O Padre Cícero, presidente honorário da Liga, abençoou Lampião, perfilado com o seu bando. Imagino a cena. Depois o cangaceiro foi despachado ao encontro da Coluna Prestes. Mas Lampião achou mais proveitoso continuar com as suas erranças pela caatinga do que caçar comunistas sonhadores. Foi a única vez que o cangaceiro desobedeceu ao Padrinho.

Precisamos de um padre Cícero em cada Estado do Brasil. Quem sabe, por temor do inferno, os assaltantes e traficantes garantem não aprontar das suas. E o Padre Cícero manda os sem terra para algum lugar, como fez com os cearenses, resolvendo de uma vez por todas o problema desse povo. O que eu descubro, nesse rápido trailer da nossa história, é que o Brasil mudou muito pouco. No máximo, alterou-se o figurino e o estilo. Os bonés de grife falsificada que os bandidos das favelas do Rio usam são bem inferiores aos chapéus estrelados de Lampião. Mas os deputados cearenses continuam do mesmo quilate, traficando influência e enchendo os bolsos. Era assim mesmo nos tempos do meu Padrinho. Não se amedrontem com o meu pessimismo. Vão a Juazeiro do Norte, na romaria de Finados. Eu já fui três vezes, trepado num pau-de-arara, no meio da romeirada. Chorei muito vendo o sofrimento daquela gente. Para eles nada muda. A não ser que se considere mudança a saída do campo para uma periferia de cidade grande. Eu também continuo o mesmo, apesar da viagem e do pranto. Ainda não escrevi um grande romance, contando essa história que se repete todos os anos. E não ganhei os milhões de Paulo Coelho. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.

Continente setembro 2003


»

76

MÚSICA

Fotos: Reprodução

O blueseiro Robert Johnson

Continente setembro 2003


MÚSICA 77 »

U

ma data redonda para o blues? Mas que coisa mais quadrada... Enfim, o governo dos EUA – atrasado como sempre, a não ser para a guerra – achou que já era tempo de homenagear o gênero que coloriu com suas notas azuis a música do mundo inteiro. Vamos então falar de datas? A primeira é esta que foi escolhida, um tanto aleatoriamente, como o ponto de partida do blues: a noite de 1903 em que o compo sitor W.C. Handy (autor, entre outros, de St. Louis Blues) esperava um trem numa estação do Delta morrendo de sono e teve uma inesperada experiência musical que beirou a iluminação religiosa. Conta Handy: “...a vida subitamente me agarrou pelo ombro e me acordou com uma sacudidela. Um negro esguio e desajeitado tinha começado a dedilhar um violão ao meu lado enquanto eu dormia. Suas roupas eram trapos, os dedos dos pés saíam pelos buracos dos sapatos. Seu rosto continha algo da tristeza milenar. Ao tocar, ele apertava as cordas do violão com uma faca, da maneira popularizada pelos guitarristas havaianos, que usavam barras de aço. O efeito foi inesquecível.” O que Handy viu nada mais foi do que o note-bending, a técnica de “entortar as notas”, da qual os blueseiros do Delta foram os precursores com o estilo slide, embora corresse a lenda de que o efeito surgiu por acaso, quando um pente de bolso de um músico havaiano caiu justamente em cima do seu violão, criando um novo som ao deslizar sobre as cordas de aço. No blues, mais do que em outra área, persiste a índole de, entre o fato e a lenda, sempre se publicar a lenda. Outra data importante: em janeiro de 1924, o compositor George Gershwin, jovem judeu americano de origem russa, jogava bilhar num salão da Broadway, quando seu irmão Ira chegou com um jornal que anunciava a apresentação de uma nova peça de George no dia 12 de fevereiro; a peça, obviamente, ainda não havia sido escrita. Gershwin largou o taco e trancou-se num quarto de hotel, onde começou a esboçar a composição para dois pianos. Diariamente, os rascunhos das partituras eram levados a Ferde Grofé, o arranjador assalariado do band-leader Paul Whiteman, que os transcrevia para piano e orquestra. E assim, no dia previsto, estreava no Aeolian Hall de Nova York Rhapsody in Blue, uma das primeiras composições eruditas a fazer uso extensivo do blues. Pulando trinta anos à frente, com uma guerra mundial no meio, um músico branco com um cacho de cabelos louros na testa começa a imitar cantores negros de rhythm & blues. Em 1954, Bill Haley & The Comets gravam (We’re Gonna) Rock Around the Clock, cover de um disco fracassado de Sonny Dae. Lançada como tema sonoro do filme Sementes da violência, Rock Around the Clock torna-se a primeira canção de rock and roll a chegar ao primeiro lugar nas paradas de sucesso e o autêntico hino de guerra da “juventude transviada”, abrindo o caminho para os Elvis Presleys da vida.

A música é azul

No ano em que se comemora o centenário do blues, a permanência de um gênero musical de origem negra que influenciou a música ocidental moderna, popular e erudita Roberto Muggiati

Continente setembro 2003


»

78 MÚSICA

Menos de dez anos à frente, saltando para o outro lado do Atlântico: em 11 de setembro de 1962, nos estúdios de Abbey Road, em Londres, um grupo de Liverpool grava seu primeiro disco: Love Me Do de um lado, PS I Love You, do outro. Love Me Do tem um riff copiado de um sucesso de Bruce Channel (Hey Baby) e tocado numa gaita-de-boca roubada de uma loja holandesa. Nascem os Beatles e começa a segunda onda do rock – a onda britânica – embalada por bandas e músicos que bebem diretamente na fonte do blues, como os Rolling Stones, os Animals, Eric Clapton e John Mayall. Além destas influências mais explícitas, as blue notes vão azular praticamente toda a música do século 20. Estas “notas azuis” que são a célula básica do blues – um autêntico DNA do seu código genético – resultaram de uma incapacidade ou resistência étnica, ou até da recusa do negro a aderir estritamente à tonalidade musical européia. Simplificando, na tonalidade de Dó maior, a terceira e a sétima notas (querem alguns também a quinta) são diminuídas em meio tom, transformando-se em blue notes e fornecendo assim o tempero característico do blues. Mas o blues é bem mais do que isto e, além da sua música revolucionariamente funcional, é também poesia pura. Sua estrutura formal rigorosa, quase clássica, fixou-se em 12 compassos, divididos em três partes iguais, no esquema A-A-B, com Continente setembro 2003

um acorde diferente sublinhando cada parte. Outra característica notável é a sua métrica, o pentâmetro jâmbico, uma das mais clássicas de toda a literatura. O maestro Leonard Bernstein, que chegou a compor alguns blues, disse certa vez que era possível fazer blues calcados na poesia de Camões ou de Shakespeare e ele mesmo cantou e se acompanhou ao piano (no álbum didático O Que É Jazz) num Macbeth Blues: I will not be afraid of death and bane, A I will not be afraid of death and bane, A Till Birnam forest come to Dunsinane. B A origem da estrofe do blues pode estar nas antigas baladas anglo-saxônicas, as ballits que os negros aprenderam na América. Misturando o seu grito primal com canções de trabalho e canções de ninar, com a harmonia dos hinos religiosos e a estrutura das baladas, o negro americano chegou ao blues, sua principal forma de expressão. Marshall Stearns, professor de literatura e historiador do jazz, define a estrofe do blues como: “...um bom veículo para uma narrativa de qualquer tamanho. Ao mesmo tempo, é mais dramática: os dois primeiros versos criam a atmosfera de modo claro pela repetição e o terceiro desfere o golpe. A estrofe do blues é comunicação concentrada, feita sob medida para a apresentação ao vivo em meio a um público participante.” A poeta americana Elizabeth Bishop confessava que seu


MÚSICA 79 pentâmetro jâmbico favorito era “I hate to see that evenin’ sun go down”, do início de St. Louis Blues. O poeta francês Jean Cocteau considerava o blues a única contribuição autêntica e importante de inspiração popular à literatura do século 20. Ainda Marshall Stearns: “A linguagem do blues é enganosamente simples. Por trás de tudo há um ceticismo agudo que penetra na fachada florida de nossa cultura como uma faca.” E o escritor e pesquisador de blues Paul Oliver: “O blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada do fatalista. É a agonia da indecisão, o desespero dos desempregados, a angústia dos destituídos e o humor seco do cínico.” E John Lennon, com sua sensibilidade plástica: “O blues é bonito porque é simples e real. Nem pervertido, nem refletido. Não é um conceito, é como uma cadeira. Não o desenho de uma cadeira, mas a primeira cadeira. A cadeira é feita para sentar, não para olhar ou apreciar. E a gente senta naquela música dos blues.” Mas ninguém o define melhor do que seus criadores, como W.C. Handy: “O blues veio do nada, da carência, do desejo.” E há letras que dizem tudo, na sua síntese admirável: “I love the

blues, it hurts so nice”/ “Adoro o blues, ele machuca tão gostoso.” Nestes primeiros cem anos de vida, o blues fez uma longa viagem, das margens lamacentas do Mississipi até o néon das marquises nas grandes cidades. A blue note coloriu virtualmente todo tipo de música deste século, do bop à bossa, do rock ao rap e ao reggae, do soul à salsa, do clássico à discoteca. Deixou sua marca na canção popular da Broadway, nos standards de Gershwin e Cole Porter, de Berlin e Hammerstein, de Hoagy Carmichael e Harold Arlen, que compôs o clássico Blues in the Night, que tecnicamente não chega a ser um blues. O musicólogo Russell Ames chega até a afirmar: “Se existe uma forma nacional de canção americana, é o blues.” A queima dos estilos na fogueira das vaidades só faz com que o blues ganhe ainda mais força, conquistando até o público jovem, cansado de tantos modismos estéreis e em busca da coisa real, oferecida pela linguagem sólida, honesta, filosófica e prazerosa do blues. Vamos continuar comemorando, porque ainda no século 21 o homem continuará proclamando: a Terra é blue! • Robeto Muggiati é jornalista, escritor, saxofonista e autor de Blues – Da Lama à Fama, Editora 34, Coleção Ouvido Musical.

Continente setembro 2003


»

80 MÚSICA

Morto em 1750, Bach levou quase um século para ser reconhecido

Apesar da vasta obra, Bizet só é famoso por causa da ópera Carmen

O público desconhece a veia compositora do filósofo Rousseau

Fama e esquecimento Gênios da música erudita têm suas obras esquecidas e até desconhecidas do grande público Marina Brandão

D

epois de 1750, quando Johann Sebastian Bach foi enterrado, esquecido e sua música relegada à obscuridade pelo novo sentimento de vida daquela época, o caminho de volta a Bach, quase um século depois, foi extremamente longo. Johann Sebastian Bach (1685-1750), considerado um dos maiores gênios da música e que deixou obras cuja análise se revela perpetuamente fecunda, apenas teve durante a sua vida a honesta notoriedade de um virtuose do órgão. As suas obras, que na sua época foram escutadas sem atenção e tocadas por instrumentistas inábeis, são das mais elevadas e perfeitas que um cérebro humano possa ter concebido. Bach não conheceu o culto burguês ao gênio, que iria se desenvolver no século seguinte, em torno de individualidades controvertidas como Liszt ou Wagner. Era um trabalhador da música, um artesão cujo orgulho maior estava em pertencer a uma tradicional família de músicos. Ao menos aparentemente, sua força criativa não sofreu com as adversidades e elas não foram poucas: a orfandade de pai e mãe aos 10 anos de idade, a morte prematura de sua primeira mulher e de dez de seus vinte filhos de dois casamentos. Nos últimos anos de sua vida, era criticado por ser complicado demais, numa época em que os compositores faziam questão de anunciar suas

Continente setembro 2003

obras como “peças alternativas ao gosto mais simples de hoje, que também podem ser executadas por uma mulher sem grande esforço”. Em suas duas últimas décadas de vida, Bach tinha plena consciência de que não era atual. A época não tinha a menor idéia da grandeza de Bach. Foram muito raras as obras de Bach publicadas durante a sua vida. Forkel foi o primeiro a chamar a atenção pública sobre elas, mas a glória de haver revelado ao mundo a grandeza de Bach cabe a Mendelssohn, com a memorável execução da Paixão segundo São Mateus pela primeira vez em Berlim, em 1829. Em 1850, no centenário de sua morte, a Sociedade Bach, fundada em Leipzig no mesmo ano, considerou que o melhor tributo para essa comemoração seria iniciar uma publicação completa das suas criações musicais. Esta edição, iniciada em 1851, terminou em 1900, sendo composta de 60 volumes. Perguntado sobre quais seriam os acontecimentos e experiências mais importantes do século 19, o alemão J. Brahms respondeu: “A fundação do Reich alemão de 1871 e a edição das obras de J. S. Bach”. Bach estava decididamente resgatado do esquecimento. Paul Hindemith, em 48 Variações sobre Bach (2001), de Rueb Franz, diz que “Os heróis de visão ampla e duradoura


MÚSICA 81 » Fotos:Reprodução

A única música conhecida de Paul Dukas é O Aprendiz de Feiticeiro, imortalizada no filme Fantasia, de Walt Disney

Compositoras, como Clara Schumann, enfrentaram preconceitos e só foram reconhecidas na segunda metade do século 20

Cabe a Mendelssohn o reconhecimento a Bach, com a memorável execução da Paixão segundo São Mateus, em Berlim, 1829

Perguntado sobre quais seriam os acontecimentos e experiências mais importantes do século 19, o alemão J. Brahms respondeu: “A fundação do Reich alemão de 1871 e a edição das obras de J. S. Bach”.

nem sempre são por nós reconhecidos. Ou então, o que ocorre com freqüência é que o são muito tempo depois de terem vivido e atuado: são aqueles que, para o bem-estar da humanidade, se lançam em sã consciência a empreendimentos científicos letais; descobridores que têm a certeza de que não obterão sucesso pessoal; inventores que sabem que suas próprias invenções acabarão por eliminá-los, sem lhes dar a chance de ouvir uma palavra de agradecimento ou de reconhecimento. Se Bach não tivesse sido um homem desse naipe, nosso mundo de hoje não estaria enriquecido por uma das realizações mais admiráveis do intelecto humano”. Em todas as épocas esse esquecimento aconteceu. Alguns compositores, felizmente, foram resgatados e suas obras estão até hoje sendo executadas e apreciadas. Outros, infelizmente, que chegaram a conhecer a fama em determinada época, acabaram caindo no esquecimento do público e dos intérpretes. Poucos sabem que quem deu o nome ao Noturno Romântico foi o irlandês John Field, forma musical que Chopin tornaria tão famosa. Qual pianista e estudante de piano não conhecem os estudos de Czerny? No entanto, ele escreveu mais de 800 obras que pouquíssimas pessoas conhecem. O grande público não sabe que filósofos como Rousseau, no século 18, e T. Adorno, no século 20, também foram compositores. Alguns compositores ficaram famosos por uma única obra, relegando o resto de sua produção ao esquecimento.

Quem não conhece O Aprendiz de Feiticeiro, a música que Walt Disney imortalizou no cinema, no filme Fantasia? Mas quem conhece o compositor Paul Dukas, autor dessa obra escrita no final do século 19 e que inspirou Walt Disney? No cenário da ópera isto também é freqüente. Houve uma série de compositores que obtiveram fama com uma ópera só, como Mascagni, com Cavalleria Rusticana; Leoncavallo, com Il Pagliaci; Bizet, com Carmen, só para dar alguns exemplos, e que, no entanto, não conseguiram tornar famosas outras óperas que escreveram. O que dizer, então, das compositoras que tiveram que enfrentar preconceitos e que, somente na última metade do século 20 passaram a ser reconhecidas? Compositoras como Clara Schumann, esposa do grande compositor Robert Schumann, que foi uma excelente pianista, divulgadora das obras de seu marido e que teve as suas próprias composições relegadas ao esquecimento. A francesa Cécile Chaminade, que na sua época não pôde estudar no Conservatório de Paris, pois este não recebia mulheres, e que se tornou uma grande pianista e compositora, cuja obra está sendo bastante divulgada e gravada atualmente. A quantidade e a qualidade das obras de compositoras é bastante representativa, apesar da sua pouca divulgação. • Marina Brandão é pianista, pesquisadora e professora da Universidade Livre de Música. Continente setembro 2003


82

MÚSICA

JÚLIO MEDAGLIA

A coragem de ser impopular Maestro, que acaba de lançar livro sobre a música contemporânea, fala sobre suas experiências, critica o “lixo” musical despejado pelos meios de comunicação e mostra-se otimista: “a imbecilidade vai cansar e uma cultura de alto repertório será solicitada” André de Sena

O

maestro e arranjador Júlio Medaglia nasceu em São Paulo em 1938. Estudou regência coral com Hans Joachin Koellreutter e regência sinfônica na Alemanha, no início dos 60. Durante esse período na Europa, fez cursos de música moderna com ninguém menos do que os compositores Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen e regeu algumas das principais orquestras do Velho Mundo, muitas vezes, divulgando a música universal de VillaLobos. Desde então, e até hoje, é um dos principais nomes de destaque no meio musical do país. De organizador de festivais a regente atuante, de autor de trilhas a concertista no Brasil e no exterior, ele vem desempenhando vários papéis, entre os quais se inclui o de articulista polêmico de música, escrevendo por décadas em jornais e revistas. E é justamente uma coletânea desses escritos que o maestro está lançando agora, pela Global Editora, Música Impopular (279 págs., R$ 35), uma obra muito bem escrita, que cai como uma luva para os amantes da música clássica de vanguarda, especialmente a atonal e dodecafônica (método de composição em que todas as doze notas da oitava – as sete teclas brancas e as cinco teclas pretas do piano são tratadas como iguais, sem a hierarquia de acordes ou de grupos de notas da harmonia convencional). Em Música Impopular – que teve Medaglia: olhar uma primeira edição há 14 anos e aparece agora abrangente sobre completamente revista e ampliada – Medaglia a música contemporânea reúne ricos artigos sobre nomes de peso como Stravinsky, Schönberg, Webern, Berg, Ives, Satie, John Cage e Stockhausen, entre outros, cujas obras conhece a fundo. Há espaço também para um capítulo Continente setembro 2003

Foto: Patrícia Santos / Agência Folha

»


MÚSICA 83 »

"Chegamos a um momento – a virada do século 20 para o 21 – onde não existem tendências, escolas, vanguardas ou movimentos organizados em busca do novo. É um período onde todo o encantamento está situado nas conquistas tecnológicas"

sobre o barroco “mulato” de Minas Gerais, verdadeiro milagre musical da época de Tomás Antônio Gonzaga; um capítulo sobre Villa-Lobos e outros sobre os precursores da bossa-nova e tropicalismo. Segundo o poeta concretista Décio Pignatari, que assina as orelhas do livro, Música Impopular ajuda a “tornar a pobre bibliografia musical brasileira menos carente”. E é verdade. Desde o primeiro capítulo, dedicado a Debussy e seu “toque de fauno”, somos levados pela batuta da prosa de Medaglia, tratando de homens que ousaram ir adiante de seu tempo; às vezes, de maneira inconsciente, como o Wagner de Tristão e Isolda, que levou o cromatismo a novas fronteiras, mas retrocedeu em obras posteriores a uma natural polifonia. A imagem de Debussy, na última hora, abandonando sua grande estréia no Conservatório de Paris com suas partituras sob o braço, para horror da inteligentsia da época, serve de metáfora para a obra de Medaglia, que dá vulto aos gauches da história da música. Gauches no sentido de que o modernismo na música significou uma ruptura radical com as convenções existentes e implicou em um distanciamento entre o artista e o público que, em geral, ainda hoje considera as obras modernistas “muito difíceis”. A Continente aproveitou o lançamento para conversar com o maestro sobre temas relativos à música e ao seu ensino.

Foto: Ana do Val/AE

Stockhausen, liderança sedutora

agressão sonora medíocre de que é vítima no seu dia-a-dia. Como o sr. enxerga a não obrigatoriedade do ensino da música na atual conjuntura do ensino fundamental e médio brasileiro? Considerando-se o lixo cultural e musical que os meios de comunicação vêm despejando nas casas das pessoas nos dias que correm, acredito que a única chance do brasileiro se prevenir desse massacre via satélite é o banco escolar. Lá as novas gerações teriam chances de saber que ainda há música inteligente no mundo. Nunca foi tão importante o ensino musical na escola como agora. A matéria Educação artística deveria ser dividida em duas e uma parte - a de ensino musical - mais evoluída para municiar o jovem brasileiro de dados para que ele possa se posicionar diante dessa

Como avalia as orquestras nacionais neste início de milênio? O Brasil vem se desenvolvendo muito em termos de criação de orquestras. Existe uma grande quantidade delas, a maior parte nova. O que precisamos urgentemente é de bons professores para que uma instrumentalidade de alto nível seja criada. Os dois maiores exemplos que temos hoje de música sinfônica de qualidade são a Orquestra Sinfônica do Estado de S. Paulo e a Amazonas Filarmônica (esta criada por mim). Em ambas conta-se com a colaboração de músicos vindos da Europa Oriental, onde sobram artistas de elevado nível e que hoje prestam grande serviço à cultura brasileira. Continente setembro 2003


Foto: RV/AFP

“Villa-Lobos foi um grande artista em todos os sentidos. Havia entendido o século 20 como poucos. Foi o criador do happening. Sabia que estávamos na era multi-show, onde as artes iriam intercambiar”

dalos em Brasília, questionando políticos e homens do poder cultural e defendendo como nunca a necessidade do ensino musical nas escolas, como o fez nos tempos de Getúlio.

Villa-Lobos estaria fazendo escândalos

Quais foram as principais trilhas sonoras que o sr. já compôs? Como andam seus projetos musicais? Eu já compus mais de uma centena de trilhas sonoras para teatro, cinema e TV. Ganhei prêmios nos festivais de Gramado, Fortaleza e Brasília. Mas, as mais criativas trilhas que fiz foram para a TV Globo quando trabalhei com Walter Avancini: Avenida Paulista, Anarquistas graças a Deus, Moinhos de Vento, Rabo de Saia e, sobretudo, Grande Sertão Veredas. Para uma antiga série, Caso Especial, fiz mais de 20 trilhas, também muito criativas, pois conseguia aliar a alta tecnologia da Globo com textos de qualidade. Já dei também muitos cursos sobre trilhas sonoras, trabalho que me dá muito prazer. No meu livro Música Impopular tem um longo artigo a esse respeito. Meus principais projetos, no momento, são os de criar mais duas novas sinfônicas para dois estados brasileiros, nos moldes da Amazonas Filarmônica. Por enquanto, ainda não posso revelar quais são eles. Villa-L Lobos, um dos enfocados em sua Música Impopular, foi um dos primeiros a chamar atenção para a chamada indústria cultural. Como será que esse mestre, que, de certa forma, era meio performer em sua época, atuaria nos tempos da mídia atual? Villa-Lobos foi um grande artista em todos os sentidos. Havia entendido o século 20 como poucos. Foi o criador do happening. Sabia que estávamos na era multishow, onde as artes iriam intercambiar. Como antevisor de uma medíocre indústria cultural, hoje, se vivo estivesse, estaria provocando escân-

Continente setembro 2003

É possível detectar atualmente algum movimento musical tão poderoso quanto foi o dodecafonismo em sua época? Como diz o meu último artigo no livro Música Impopular, chegamos a um momento – a virada do século 20 para o 21 – onde não existem tendências, escolas, vanguardas ou movimentos organizados em busca do novo. É um período onde todo o encantamento está situado nas conquistas tecnológicas, diferente do início do século 20, onde o delírio era de natureza cultural. Acredito que com o passar do tempo – e não muito longo – a imbecilidade vá cansar, e uma cultura de alto repertório venha a ser solicitada para encher essas magníficas máquinas que hoje imbecilizam os cidadãos de todo o mundo. Poderia nos falar como foi sua experiência com Stockhausen, outro enfocado em sua obra? Estudei com Stockhausen em Darmstadt, na Alemanha e lá convivi com toda a vanguarda musical dos anos 60. Foi um período áureo da cultura musical do mundo e essas lideranças nos seduziam. Convivi também com John Cage, que era o oposto estético ao racionalismo alemão e dessa polêmica entre dois mundos antagônicos tirávamos nossas conclusões e lições, para implantarmos uma música para o futuro. Para terminar, poderia dizer algo para aquelas pessoas que neste momento pensam em iniciar uma carreira na música? Bem, a melhor coisa que se pode recomendar a alguém que queira fazer ou interessar-se por música é que essa pessoa estude muito, informe-se de tudo, viaje, conheça mil repertórios sonoros de muitos países do mundo; que não se deixe enganar pelo sucesso, já que o que faz sucesso no momento é a mediocridade. Que tenha talento e vontade de ser impopular e, assim, seja útil e feliz. • André de Sena é jornalista, escritor (www.bosquesdamoira.cjb.net) e mestre em Literatura.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 85 Joel Silveira

O dia em que o “teólogo ateu” visitou Jânio Quadros Agosto de 1977. Vou visitar Jânio Quadros em sua casa no Guarujá e levo comigo Carlos Heitor Cony, que queria conhecer pessoalmente o ex-presidente. Estabeleceu-se entre os dois imediata empatia. Ambos, como se sabe, são esplêndidos causeurs. Naquela tarde, estavam excepcionalmente inspirados. Num determinado momento, Cony passou a expor uma erudita exegese sobre a evolução do que ele chamava de sua “crise espritual” – que teve início quando ele era aluno aplicado do Seminário São José, no Rio, e só findou quando o jovem crente e temente de ontem se transformou no irremediável agnóstico de hoje. Foi um longo desfilar de sabedoria sacra e profana e um extenso perfil dos mais notáveis doutores da Igreja – de São Pedro a Leon Bloy e Maritain, passando por São Gregório, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho – e mais Leão XIII, Pio IX e João XXIII. Atento, como que sorvendo as palavras de Cony com o mesmo enlevo com que bebia o seu uísque, Jânio escutava sem apartear as eruditas considerações de Cony. Ao final, disse : – É a primeira vez que converso com um teólogo tão douto e tão ateu ! • Joel Silveira é jornalista e escritor.

Continente setembro 2003


»

86

CIÊNCIA

Persistência da geografia da fome Obra de Josué de Castro, mais conhecida entre pesquisadores e acadêmicos, infelizmente mantém-se atual em sua denúncia, 57 anos depois de publicada Renato Duarte

N

este ano em que, finalmente, a fome que maltrata e humilha dezenas de milhões de brasileiros saiu do vazio da pura retórica para se tornar prioridade na ação governamental brasileira, comemora-se o 95º aniversário de nascimento e é lembrado o 30º ano da morte do médico e pesquisador pernambucano Josué de Castro. Em 1946, Josué de Castro publicara o livro que se tornaria seminal na sua extensa obra científica, Geografia da Fome. Atualmente na 14ª edição brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), e traduzido para os mais importantes idiomas, a obra (juntamente com o também celebrado Geopolítica da Fome, publicado em 1951) mantém intocadas as qualidades que o transformaram em um dos mais importantes trabalhos científicos do seu gênero escritos no Brasil. Elaborado a partir de uma meticulosa pesquisa multidisciplinar, o livro resultou em um tratado que se caracteriza pela originalidade, objetividade e consistência científica. Mais do que desenhar um mapa regionalizado da fome no Brasil, Josué de Castro apontou os caminhos para o combate dessa mazela; demonstrando erudição em disciplinas tão diferentes, como medicina, geografia, biologia, agronomia e nutrição, o cientista pernambucano estudou a flora e a fauna das regiões brasileiras, apontando as qualidades nutritivas das principais espécies nativas ou exógenas. Indo mais além, ele sugeriu as combinações ideais de alimentos e advertiu para a inadequação ou os malefícios de determinados hábitos alimentares identificados nas regiões brasileiras. Por seu aspecto prático e pela utilidade pública de que se reveste, Geografia da Fome desfruta de um lugar especial entre as obras dos demiurgos brasileiros do século 20. Porém, se – à semelhança do que parece acontecer com as contribuições intelectuais dos grandes intérpretes do Brasil – o livro de Josué de Castro é mais conhecido entre acadêmicos e pesquisadores, o seu desconhecimento – demonstrado pelos Continente setembro 2003

formuladores de políticas públicas nos 57 anos decorridos desde a sua primeira edição – é algo grave. Os nomes da fome no Nordeste – No livro Geografia da Fome, Josué de Castro estudou detidamente os padrões alimentares e as potencialidades nutricionais da flora e da fauna das cinco áreas em que ele dividiu o Brasil: Amazônia, Nordeste Açucareiro, Sertão do Nordeste, Centro-Oeste e Extremo Sul. As duas primeiras foram por ele denominadas áreas de fome endêmica; a terceira foi batizada de área de fome epidêmica; as duas últimas ele identificou como áreas de subnutrição. As duas áreas alimentares da região Nordeste, que eram (e ainda são) as mais problemáticas, têm a curiosa peculiaridade de apresentar situações nutricionais, em termos gerais, destoantes das respectivas condições físico-climáticas. Ou seja: na área de solos férteis e de precipitações pluviais abundantes e regulares – o Nordeste açucareiro ou, como é comumente denominada, a Zona da Mata – a fome era (e ainda é) endêmica; na zona de solos pobres, clima quente e chuvas irregulares ou escassas – o Sertão – predominava (e ainda persiste) a fome epidêmica. A descrição feita por Josué de Castro da impiedosa destruição da Mata Atlântica – transformando-a em uma região de campos abertos –, para substituí-la pela cultura da cana-deaçúcar, tem tamanha força estilística e rigor científico que não deixa margem à dúvida acerca do que ele chamou de uma dramática experiência sociológica. Disso decorre o agudo contraste entre as potencialidades agropecuárias dessa sub-região e a pequena quantidade de alimentos produzida. A explicação para esse contraste está no sistema de exploração da terra, dominado pela monocultura latifundiária da cana-de-açúcar, uma planta, segundo ele, individualista e hostil a outras espécies vegetais. Castro chama a atenção para outras idiossincrasias da cana-deaçúcar: a demanda de muita mão-de-obra (atendida pelo tra-


CIÊNCIA 87

balho escravo durante mais de três séculos) e a exigência de terras férteis em grandes extensões. Ele denuncia a natureza autofágica da lavoura canavieira, que, ao monopolizar os fatores produtivos (terra, mão-de-obra e capital), degrada-os e os exaure, criando, desse modo, as condições para a sua própria decadência como atividade econômica. Outras duas características da atividade canavieira se juntam àquelas já mencionadas para agravar a situação de fome endêmica na Zona da Mata nordestina: os períodos da entressafra – quando os trabalhadores ficam desempregados e ainda mais empobrecidos – e a poluição dos cursos d’água com o despejo das caldas das usinas, quando é dizimado o que há de vivo naqueles mananciais. A fome epidêmica – Para Josué de Castro, mesmo estando sujeito ao efeito devastador de secas periódicas e de ter flora, fauna e rios pouco piscosos – exceção feita ao rio São Francisco – o sertão do Nordeste não apresenta graves deficiências alimentares, tal qual ocorre em outras partes do mundo que têm no milho a base alimentar das suas populações. Para enfrentar a pobreza natural do sertão, a sua ocupação econômica foi feita no final do século 16 através da pecuária bovina extensiva, impulsionada pelos mercados que se formavam na zona açucareira nordestina e na área de mineração das Minas Gerais. Os rebanhos caprinos, rústicos e resistentes aos rigores climáticos, também se adaptaram às condições ambientais do sertão. Aos poucos foi-se definindo uma organização econômica que associava a policultura alimentar à pecuária extensiva e à lavoura do algodão. A despeito da pobreza dos recursos ambientais, estabeleceu-se no sertão um padrão alimentar equilibrado, constituído de carne, farinha de mandioca, feijão, batata-doce, inhame, rapadura e café. Castro lamenta a ausência de frutas silvestres e o pequeno consumo de verduras,

que, segundo ele, eram misturadas em combinações de admirável primitivismo. A dieta equilibrada e a salubridade climática do sertão proporcionada pelos raios ultravioletas, que esterilizam o meio ambiente, e a luz solar, que facilita a absorção pelo organismo humano das vitaminas C e D, contribuíam para a resistência do sertanejo às doenças infecciosas e explicavam a ocorrência relativamente pequena de avitaminoses e de carências minerais. Com precisão estilística e riqueza de detalhes, Josué de Castro mostra como as secas episódicas destroem a agricultura, dizimam os rebanhos e levam milhões de sertanejos à situação de indigência, convertendo, desse modo, a fome em um problema epidêmico. Ao analisar o drama vivido pelos flagelados da seca, o cientista pernambucano aponta os riscos de ingestão de alimentos tóxicos a que os sertanejos famintos se vêem obrigados a recorrer e analisa diversas patologias que podem acometer as hordas de fugitivos das secas. O estudo de Castro sobre a dimensão humana do flagelo estende-se até à interpretação psicológica da fome. Castro se antecipou ao compreender que a pobreza de milhões de sertanejos decorria da sua baixa produtividade no trabalho e que a fome devia ser enfrentada não como “uma luta contra os efeitos da seca. Mas de luta contra o subdesenvolvimento em todo o seu complexo regional”. Castro aponta como causa principal do subdesenvolvimento do Nordeste as distorções na estrutura fundiária. Ele avança ainda mais no seu notável trabalho científico ao caracterizar o Nordeste como uma grande área de desemprego, para concluir que a reforma das estruturas agrárias e a eliminação da desocupação eram fatores condicionantes da elevação das condições de vida da população. Quando Josué de Castro escreveu o seu celebrado livro, a população dos oito Estados (excluído o Maranhão) nordestinos somava 15 milhões de pessoas. Em 2003, ela alcança a casa dos 45 milhões. Os problemas sociais, como eram previsíveis, se agravaram. Se vivo fosse, Josué de Castro constataria que os desafios para erradicá-los, hoje, são bem maiores do que eram na época em que ele escreveu o seu grande livro. • Renato Duarte é economista, integrante dos quadros da Fundação Joaquim Nabuco. Este texto é um extrato de capítulo do livro Josué de Castro e o Brasil.

Josué de Castro e o Brasil – Editora Fundação Perseu Abramo, (Fone: 011-5571.4299), 2003. 184 páginas, R$ 28,00.

Continente setembro 2003


»

88

JORNALISMO

Mais que aula, um curso

M

ais do que uma aula, o novo livro de Daniel Piza é um verdadeiro curso compactado de jornalismo cultural. Mesmo para quem já o exerce, vale a pena repassar os pontos. E para quem pretende se iniciar ou está começando no ramo, é básico. Piza percorre todos os aspectos do métier. Ele vai desde o clima, misto de inveja e condescendência, que cerca o profissional da área nas redações dos grandes jornais, até à necessidade essencial de cultura. E cultura não apenas na especialização à qual se dedica o jornalista, mas cultura geral, abrangente, extrapolante até. Passo a passo, na linguagem simples mas precisa, que caracteriza seu estilo enxuto, direto ao assunto, e, mais ainda, ao que interessa no assunto, Piza traça um A a Z essencial. Faz um resumo do jornalismo cultural no mundo e no Brasil, destacando seus criadores e maiores exemplos; demonstra os difíceis pontos de equilíbrio entre privilegiar o local (uma forma de provincianismo) e privilegiar o internacional (outro tipo de provincianismo); ou entre o elitismo (que desqualifica o entretenimento) e o populismo (que raciocina: “se faz sucesso é bom”). Aponta questões como a síndrome da novidade, típica do editor de cultura que só admite comentário sobre o livro recém-lançado, o CD que acabou de sair, esquecendo que merece comentário mais aprofundado o que tem qualidade, mesmo que já esteja “no mercado” há meses e até já tenha sido “noticiado” pelo concorrente. Mostra, sobretudo, que não se deve subestimar o leitor, que pode ser fiel e exigente. Nem tampouco minimizar a importância dos chamados “segundos cadernos” – sempre os primeiros a serem penalizados nos cortes de custos das empresas –, pois atraem leitores e, quase sempre, leitores diferenciados. Por fim, talvez o mais importante de tudo, alerta o profissional sobre a necessidade de realizar um trabalho completo e comprometido, não apenas criticando, mas procurando contextualizar cada peça, livro ou filme comentado, mostrando como ele reflete ou ilumina a realidade circundante, enriquecendo a visão de mundo do leitor. O que exige – além de cultura, é claro – inteligência, sensibilidade e experiência. Jornalismo Cultural traz também um relato do tempo em Continente setembro 2003

O jornalista Daniel Piza faz uma ampla análise do jornalismo cultural, num livro-ferramenta para os profissionais da área

que Piza esteve à frente do caderno “Fim de Semana”, da Gazeta Mercantil, com exemplos do que é uma boa reportagem e um bom comentário. O livro faz parte da Coleção Comunicação, que já lançou A Arte de Fazer um Jornal Diário, de Ricardo Noblat, Jornalismo Científico, de Fabíola de Oliveira, Jornalismo Digital, de Pollyana Ferrari e Jornalismo Esportivo, de Paulo Vinicius Coelho. Daniel Piza atualmente é editor executivo e colunista cultural do Estadão, e colaborador das revistas Bravo! e Continente. É autor do romance juvenil As Senhoritas de Nova York – Descoberta de Pablo Picasso, do livro infantil Mundois, da coletânea de crônicas sobre futebol Ora, bolas e da coletânea de críticas Questão de Gosto. (Marco Polo) • Jornalismo Cultural, Daniel Piza. Editora Contexto. 144 páginas. R$ 23,90.


JORNALISMO 89

Safra de letras

Teresa – Revista de Literatura Brasileira Tele/fax: (11) 3091.4840 teresalb@eduusp.br

Cinco revistas afirmam a força do jornalismo cultural num país com altos níveis de analfabetismo

N

um país em que pouco se lê (alto índice de analfabetismo, livros caros, poucas livrarias), um grande número de boas revistas de cultura tem surgido e se mantido. Entre as institucionais, está Teresa – Revista de Literatura Brasileira, criada pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP. No seu número 3, destaca-se um extenso dossiê sobre Jorge de Lima, com materiais inéditos, raros ou de difícil acesso, como um poema inédito e uma crônica sobre o frevo, assinados pelo poeta alagoano, além de suas relações com as artes plásticas. A Revista Brasileira é editada pela Academia Brasileira de Letras. Sóbria e elegante, em seu número 35 (Fase VII, Ano IX), traz dois artigos sobre a bem-vinda nova edição de Coronel, Coronéis, de Marcos Vinicios Vilaça e Roberto Cavalcanti de Albuquerque, assinados por Alberto da Costa e Silva e Gilberto Velho, depoimentos sobre Otto Lara Resende, no aniversário póstumo de seus 80 anos, por Murilo Melo Filho, Lêdo Ivo, Arnaldo Niskier e Benício Medeiros, e textos de Carlos Heitor Cony, Sérgio Martagão Gesteira e Alexei Bueno, comemorando o sesquicentenário de falecimento de Álvares Azevedo. Completando sete anos de existência, a Inimigo Rumor chega ao número 14 em grande estilo. Editada conjuntamente pelas editoras 7 Letras, Cosac & Naify e a portuguesa Cotovia. Com capa dura e alentado número de páginas (248) traz como principal atrativo uma seleção de poemas em prosa de autores brasileiros e portugueses tão díspares quanto Arnaldo Antunes e Eugênio de Andrade. Acompanha em separata bilíngüe, o livro O Gueto da poetisa Argentina Tamara Kamenszain. De Londrina (PR) vem a Coyote, que completa um ano. Com um visual caprichado, apresenta diversas atrações que fogem ao comum, pelo ineditismo e ousadia, como um ensaio fotográfico de Bernardo Magalhães sobre arte erótica cemiterial, traduções de textos do poeta chinês Po Chü-i (772-846) e poemas inéditos do cubano enfant-terrible Pedro Juan Gutiérrez. Já de Curitiba chega o número 1 da Et Cetera – Literatura & Arte, com design também transadíssimo e uma rica variedade de atrativos, desde um capítulo de Pantagruel, de Rabelais, até um encarte bilíngüe com poemas do poeta contemporâneo japonês Shuntaro Tanikawa, passando pela tradução de duas letras de John Lennon: I am the walrus e Across the Universe, o que já dá para ver a amplitude desta bela revista. •

Revista Brasileira Fone (21) 2524.8230 – Fax: (21) 2220.6695 publicações@academia. com.br

Inimigo Rumor Fones: (11) 3218.1444/ 3257.8164. info@cosacnaify.com.br

Coyote revistacoyote@uol.com.br

Et Cetera – Literatura & Arte Travessa dos Editores, R. Reinaldino S. de Quadros, 1460 – Alto da XV – Curitiba – PR – 80050-030.

Continente setembro 2003


Anúncio


Anúncio


92

MEMÓRIA

Adorno, estudioso também da música, via "limitações" de ordem histórica em gênios como Mozart e Beethoven

Foto: Reprodução/AE

»


MEMÓRIA 93 »

A nostalgia de Adorno O filósofo alemão Theodor Adorno, cujo centenário é comemorado em 11 de setembro, colocou no centro da questão civilizatória a chamada “indústria cultural”, que estaria a serviço da barbárie Daniel Piza

A

dorno, ou por extenso Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno, de quem se comemora o centenário neste 11 de setembro, é exemplo completo de uma geração que amadureceu no Entre-Guerras (1918-1939) e tinha, diante de si, o desafio de entender um mundo em convulsão e, atrás, o instrumental deixado por três pensadores que moldaram o século 20, Marx, Nietzsche e Freud. E para Adorno o desafio era tão grande que o instrumental tinha de ser ao mesmo tempo refinado e reforçado. Afinal, o “inimigo” – a sociedade burguesa, com suas opressões, repressões e ilusões – não era fácil de combater. Baseado numa inteligência de múltiplas qualidades, Adorno passou a escrever uma obra que, no conjunto, tenta somar sociologia, estética e filosofia numa crítica fundamental à ideologia dominante. Como Marx, ele acreditava na contradição autocondenatória do capitalismo. Como Nietzsche, recusava a estética da exaltação alienante. Como Freud, via a civilização como repressora dos instintos individuais. E, ao lado de seus

companheiros da Escola de Frankfurt, principalmente Benjamin e Horkheimer, considerava aquela contradição o motor direto desta repressão, cujo combustível era um sistema de signos dedicado a suprimir as diferenças e manipular os homens. Adorno, em outros termos, colocou no centro da questão civilizatória a chamada “indústria cultural”, que estaria a serviço da barbárie ao perpetuar o jogo de ilusões que esconde dos homens a opressão a que estariam submetidos. Esse jogo de ilusão se sustentaria em duas estratégias de linguagem: a submissão do objeto ao sujeito, ou do fato à idéia (como no positivismo, que seria uma tentativa de reduzir a história a uma cadeia de causae-efeito), e a confusão entre pensamento e mito, entre discurso e identidade (como na pretensão de construir uma “totalidade” ideal, que extinguiria as liberdades interpretativas). Desse modo, sua filosofia buscou sempre o lugar intermediário e dinâmico entre forma e conteúdo, ou entre idealismo e pragmatismo, pregando a “proximidade à distância” e defendendo uma arte que dá voz ao “ser natural” ao mesmo

Continente setembro 2003


94 MEMÓRIA

A história é uma musa traiçoeira e o inevitável decorrer do tempo tratou de revelar no posicionamento crítico de Adorno uma forte nostalgia da totalização tempo que reflete criticamente sobre seu tempo. Adorno deu enorme contribuição ao dizer que, para isso, não deveriam ser erguidos sistemas, conceitos fechados, e sim escrituras ensaísticas e aforismáticas, mais próximas do caráter sensorial da arte. E foi o que atingiu em sua obra mais fascinante, Minima Moralia, com insights às pencas. A história, no entanto, é uma musa traiçoeira, e o inevitável decorrer do tempo tratou de revelar no posicionamento crítico de Adorno uma forte nostalgia da totalização, como notou o musicólogo Charles Rosen em resenha na New York Review of Books (24/10/2002). Ao eleger como inimigo central do humanismo a tal indústria cultural, na qual enxergava impulsos fascistas indomáveis, caiu na mesma mentalidade rotulatória que atacava. Para ele, os meios de comunicação de massa ignoram a história e fazem propaganda do status quo; logo, a função da crítica cultural seria denunciar suas máscaras burguesas. Mas nem toda arte que emana da indústria cultural trabalha em nome do conformismo. Em suas análises sobre o jazz, por exemplo, Adorno viu no gênero uma espontaneidade anti-humanista, porque estaria a serviço de uma massificação auditiva, na qual a história estaria descartada e o “inumano”, o “puro”, não poderia ser resgatado. Hoje o jazz, que inovou a articulação entre ritmo e harmonia, é para muitos de nós justamente o exemplo de uma arte que, embora de larga escala (num passado recente), representa uma recuperação da vitalidade natural em consonância com um grau considerável de elaboração formal – instinto e conceito em constante provocação mútua. Já a arte ansiada por Adorno é aquela em que a “ideologia burguesa” é olhada em seu potencial catastrófico, pós-Ausch-

Continente setembro 2003

witz, por meio de uma linguagem formal que recusa o make believe, a pretensão de simular um acontecimento real, e, como na poesia de Paul Celan, vê “a esperança no exílio”. Há em Adorno, como em seus colegas da Escola de Frankfurt, uma noção quase rousseauniana de que o progresso tecnológico violou nossa ligação com a natureza, tornou impura a condição humana, deixou uma cicatriz que a linguagem corrente e os juízos de valor jamais poderão eliminar. Até mesmo na música de gênios como Mozart e Beethoven ele via essa “limitação”, de ordem histórica, porque o sistema tonal por eles adotado projetaria uma escala de valores inerente ao sistema antiigualitário. Com Adorno, toda uma escola de análise sociológica da estética ganhou força, até mesmo no Brasil, e espalhou o chavão de que o espírito moderno, sendo por definição marcado por crises (“crítico”), é inescapavelmente apocalíptico. Era nele que Stockhausen, o compositor, deveria estar pensando quando definiu o 11 de setembro como a “maior obra de arte jamais feita”. Mas a revisão, pelo menos nos centros desenvolvidos, já começou: o mesmo “ser natural” apontado por Adorno, sabemos hoje, se tornou o que é pela especificidade da linguagem verbal (com sujeito e predicado) e seu poder de relacionar causa e efeito (ainda que sem certezas positivistas), inscritos no córtex cerebral humano. O resgate do humanismo, a resistência à alienação, não passa por um sonho de pureza estética ou síntese dialética, como mostrou Thomas Mann em seu Dr. Fausto. A ilusão e a razão são igualmente nossas: o atrito somos nós. • Daniel Piza é jornalista.


MEMÓRIA 95 Foto: Reprodução

O último dos irmãos Batista A morte de Otacílio encerra um ciclo de grandes violeiros nascidos todos numa pequena vila do Sertão do Pajeú Ésio Rafael

D

uas cidades interioranas – Itapetim (antiga Umburanas) e São José do Egito – situadas no sertão do Pajeú pernambucano – disputam ainda hoje a paternidade dos famosos irmãos Batista, uma por ter sido o local de fato onde eles nasceram, a outra, onde funcionava a comarca. Daí os motivos polêmicos e reivindicatórios quanto à origem dos poetas. Essa “dupla” localidade insinua uma discussão não só duradoura, como interminável, visto que ninguém quer abrir mão de seus trunfos. Itapetim tem a rua, a casa onde nasceram e a lembrança da parteira. São José guarda a prova documental, o longo período da vida e fama. A Vila de Umburanas ainda é terra de Rogaciano Leite, Jô Patriota, os irmãos Batista – Louro, Dimas e Otacílio. Uma árvore de folhas e frutos pequenos, aromáticos, onde os seus folíolos balançam com a brisa e se destacam de maneira integral. A começar por Lourival, o mais velho filho de Seu Raimundo, o mais profícuo, autodidata que sabia tudo de viola, praticava o exercício da leitura e tanto falava sobre repente e repentistas, como evocava os chamados poetas eruditos, caso fosse necessário. Dimas era graduado, culto, professor universitário. Morreu sem sequer ter dado um deslize em um verso. Otacílio, o mais novo, não chegou a concluir o primário, mesmo assim deixou mais de uma dezena de livros, discos e cordéis publicados, em destaque: Poemas que o Povo Pede,

Otacílio Batista com Câmara Cascudo, em Natal, 1978

Ria até Cair de Costas, Antologia Ilustrada dos Cantadores, em parceria com Francisco Linhares, esta, uma obra realmente antológica e referencial, com dados e perfis biográficos de mais de 300 cantadores. Poeta de alta estatura, vaidoso, forte, rosado, belo timbre de voz, grande poder imaginativo dentro dos princípios básicos que definem um bom cantador. Como Louro e Dimas eram considerados cantadores mais completos, Otacílio acrescentava à fortaleza dos irmãos uma função mais necessária à sobrevivência, pois enquanto se promovia, arrastava os irmãos, e conseqüentemente a categoria, pela facilidade em lidar com a mídia. Cantou para diversas personalidades do mundo político, artístico e religioso. De Juscelino e João Goulart a Figueiredo, de Olegário Mariano ao cientista César Lates. Encantou Manoel Bandeira e Roberto Carlos. Dentre as escolas poéticas do repente, Otacílio não se enquadrava em nenhuma. Adaptava-se às oportunidades, tendo como temas predominantes o bucólico, o social, o amor e principalmente o satírico, dentro do seu cardápio de versos. Faleceu no dia 5 de agosto de 2003, por deficiência respiratória e cardíaca, sem atingir os 80 anos que aconteceriam em setembro. • Ésio Rafael é professor, pesquisador da cultura popular e pós-graduando em Literatura Brasileira pela UFPE.

Poema para Otacílio Mote: Astier Basílio Glosa: Bráulio Tavares

Numa nuvem do Céu que tem escrito “Botequim da Poesia Brasileira”, Otacílio chegou, puxou cadeira, e encostou na parede do Infinito. Na platéia se ouvia palma e grito, vi até Jesus Cristo assobiando; Otacílio, a viola ponteando, se juntou ao baião de Louro e Dimas, num dilúvio de glosas e de rimas... A trindade no Céu está cantando. Continente setembro 2003


»

96

ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Pau é o trunfo Pois é! Na democracia vale tudo!...

N

ão é assim que pregam os Sem Terra, Sem Teto, sem princípios, sem punibilidade? Hoje, briga de rua se faz com pau, pedra, foice, facão e até bala. Acabou-se a era das guerras de botões, de bodoques, espião, de bolas-de-gude, de garrafão. Agora, os preliantes estão se enfrentando pau a pau. Sem essa de horas e esperas – fazem acontecer, e priu!... De um lado, maloqueiros “nacionalistas” usando siglas e tarjas de movimentos os mais diversos (MST é o principal, coadjuvado por festeiras e tremuladas bandeiras do PT, Fetape, CUT, etc). Trancam ruas, avenidas e BRs, infernizam o trânsito, desafiam pedestres, fazem misérias. Afiam pedaços de pau com pontas de lanças, lapidam pedras troglodíticas, e se danam a afugentar todo mundo, inclusive a polícia. Nem bispo de chapéu com três bicos escapa. E ainda requebram ao som de molejos de pagodes encomendados a trios elétricos (quem paga?), zombando de moradores da artéria, garantindo-se às escoras de ONGs, em nome da rosa, de Deus, da socialização, da liberdade, enfim, da democracia. Do outro, nossa polícia. Redentora milícia; enfraquecida polícia. Quem protege essa anarquia? Quase toda santa semana, desvairando em dias, passeatas, concentrações e invasões são vistas por esse Brasil (de praças, parlamentos e repartições públicas). Aqui já virou agenda turística para visitas de palestinos e judeus (acostumados que estão com esse tipo de tour ambiental). E a polícia? Vive a recuar, correr, incentivando um falso delírio de força por parte dessa tropa de faz-de-conta de despejados. E agora? Depois do confronto de Carajás, nenhum policial quer mais se envolver com essa gente. A quem apelar, finalmente? Quem manda na polícia é o governo. Se tem poucos homens para a segurança da sociedade, que nomeei concursados, peça reforços, o escambau. Mas, recuar, nunca. A que ponto chegamos (para não se falar de ensaio de guerrilha urbana)?

Continente setembro 2003

Reivindicação de direitos é uma coisa, bagunça armada é outra. Se o Governo Federal está à míngua de autoridade, e o Estadual é quem arca com as despesas de ser o tático nessas operações, que aja com a lei na mão. Não precisa mandar atirar em ninguém, mas que prendam os responsáveis, processe-os e mande-os para a cadeia. Existe um bocado de infrações à Constituição para serem autuadas – perturbação da ordem pública, desordem, formação de quadrilha, porte ilegal de armas e desacato à autoridade; quando não, poluição visual e odorífica, agravados por esculhambação e desrespeito ao nosso intelecto. Batem em panelas de lata exaltando fome – mentira; são gordinhos ou parrudos; não se vestem tão mal e têm força nos gritos funks de arruaceiros. Na verdade, o que eles querem mesmo é envolver todo mundo num barulho bem grande e divulgado com sensacionalismo – principalmente os órgãos de imprensa, que, misturando-se na confusão, ficam à mercê de umas laboradas pelos policiais militares –, ganhando assim notoriedade. Lembrem-se que essa súcia já desmoralizou demais os poderes constituídos do País. Invadiram gabinetes e corredores de ministros de Estado; arrebentaram portas e vidraças de ministérios e do Congresso Nacional, soltaram galinhas e porcos nas salas de autoridades, mijaram no chão das mesmas e não respeitaram sequer a Polícia Federal e as Forças Armadas; pregam os saques no comércio; interditam rodovias e tomam as mercadorias transportadas pelos caminhões de carga; tocam fogo em pneus nas rodovias, exibem faixas de ameaças ao presidente da República, alardeando terem mil homens para um; peitam o ministro da Reforma Agrária... A bubônica! Isso é democracia? Onde? Um bando de analfabetos inteligentes, guiados e financiados com dinheiro de entidades internacionais (quem sabe, uma lavagem de dólares de muitas multinacionais aqui instaladas) para desestabilizar o quê? Só se for “para mudar o mundo”, como respondeu em depoimento, Oscar Niemeyer, quando preso em 64, ao ser indagado por um coronel inquisidor do por que de querer ser ele um comunista: – “Mudar o mundo!” – “Tá meio difícil, seu doutor...” – respondeu o tímido escrivão daquele regime. Bem, se o trunfo é pau, é mais sensato trancarmo-nos em copas. • Rivaldo Paiva é diretor geral do Suplemento Cultural.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.