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Casa-Grande & Senzala 70 anos depois Foto: Acervo Fundação Gilberto Freyre
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Engenho Goicana, em Rio Formoso, Pernambuco
Da transgressão à N
ascido no Uruguai em 1954, Guillermo Giucci cursou o doutorado na Universidade de Stanford, lecionou em Princeton e foi professor visitante nas universidades Albert-Ludwigs (Alemanha) e Stanford (USA). Atualmente é professor adjunto do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor de Viajantes do Maravilhoso: O Novo Mundo e Sem Fé, Lei ou Rei: Brasil 1500-1532, desde 1999, quando recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim, Giucci vem se dedicando, ao lado de seu conterrâneo Enrique Rodríguez Larreta, a escrever Gilberto Freyre: Uma Biografia Cultural, fruto de uma pesquisa que usou métodos da antropologia histórica e da história cultural, numa completa investigação sobre as diversas fases da vida do sociólogo, em seu contexto cultural. Nesta entrevista exclusiva, Giucci fala sobre sua relação com a obra do sociólogo e o desenvolvimento de sua pesquisa.
Em que circunstâncias o senhor descobriu a obra de Gilberto Freyre e o que o levou a se interessar tanto por ele? Conheci a obra de Gilberto Freyre como estudante de doutorado na Universidade de Stanford, na década de 80. Continente setembro 2003
Mas o meu interesse intelectual surgiu, no Brasil, a partir da proposta de uma biografia cultural de Gilberto Freyre, feita pelo meu colega, o antropólogo Enrique Rodríguez Larreta, quem rapidamente me convenceu da importância do projeto. Desde então comecei a me dedicar plenamente ao estudo da sua obra. A edição crítica de Casa-Grande & Senzala é, em grande parte, resultado de uma longa pesquisa que teve início com a elaboração da biografia cultural. O que me chamou a atenção, particularmente, na obra de Freyre, foi o tema do nascimento de uma civilização híbrida nos trópicos, que traz à luz o reprimido e culturaliza os termos raciais e biológicos, derivando uma imagem positiva, mesmo que violenta, da miscigenação. O senhor já disse que Gilberto Freyre pode ser considerado o inventor da região Nordeste nos anos 20, bem como o inventor cultural do Brasil mestiço, nos anos 30. De que forma ele fez isso? A noção de “Nordeste” se tornou familiar no Brasil em meados de 1920, revelando a transformação da autoconsciência local, em contato crescente com a modernidade. Nessa mesma época, a revista mais importante dedicada às tradições
Foto : Sebastião Lucena
pós-modernidade Professor uruguaio Guillermo Giucci, que prepara biografia intelectual de Gilberto Freyre, contextualiza a importância da sua obra, lançada em 1933, cuja abordagem do complexo tema das inter-relações entre raça e cultura continua contemporânea Luciano Trigo
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56 CAPA locais chamava-se Revista do Norte. No centenário do Diário de Pernambuco, em 1925, Gilberto Freyre organizou o Livro do Nordeste, levando a cabo uma verdadeira recriação – sociológica, histórica, artística e econômica – da região. Nessa década, a dimensão regional da reflexão de Gilberto Freyre foi dominante. A partir da revolução de 1930, especialmente com Casa-Grande & Senzala, o tema nacional passa a dominar a sua reflexão, mantendo porém a temática da região (especialmente o Nordeste) num lugar de destaque em seu pensamento. Todos sabemos da importância de Casa-Grande & Senzala na interpretação cultural do Brasil moderno nos anos 30, a partir da idéia positiva da miscigenação, hoje transformada em um lugar-comum.
Desenho de Cícero Dias para a primeira edição de Casa-Grande & Senzala Continente setembro 2003
O senhor está escrevendo a “biografia cultural” de Freyre. Como o senhor define esse gênero, em que ele se distingue de uma biografia comum? Quais serão as novidades do livro em relação ao que já se sabe sobre o sociólogo? O Brasil, segundo grande parte dos intelectuais da época, sofria de duas deficiências incuráveis. A primeira era geográfica e tinha a ver com o trópico, que se acreditava ser o fator responsável pela produção de seres indolentes, preguiçosos e incompatíveis com a civilização. A segunda era racial. Tratavase da mestiçagem, uma praga que tinha que ser erradicada através do “embranquecimento” progressivo da população. Sendo assim, o mulato era considerado um degenerado, e a mestiçagem um problema. Em Casa-Grande & Senzala, Gil-
Foto: Sebastião Lucena
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berto Freyre argumentou que na América tropical havia se formado uma sociedade agrária na estrutura e escravista na técnica de exploração econômica. Freyre afirmava que o Brasil era a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência. Com Casa-Grande a cultura brasileira surgia, então, positivamente avaliada em um estudo monumental, a partir da mistura singular no trópico entre portugueses, índios e escravos africanos. Uma visão de conjunto sobre a fortuna crítica de Casa-Grande & Senzala revela uma surpreendente variedade de interpretações. Indubitavelmente, CG&S é percebido na década de 30 como um livro transgressor. A linguagem utilizada por Freyre causou controvérsias, já que a chamada linguagem “vulgar” podia ser usada em obras de ficção, mas não em obras científicas. Outros pontos, particularmente, polêmicos de Casa-Grande foram os seguintes temas: o elogio ao negro, o materialismo, a sexualidade e o regionalismo. Mas, de um modo geral, as resenhas sobre CG&S, na década de 30, são sumamente positivas. Fale sobre a importância dos anos de formação de Freyre em universidades americanas. Em que medida o contato com as teorias sociais americanas da época, como a obra de Franz Boas, influenciou o pensamento de Freyre? Gilberto Freyre chegou como estudante aos Estados Unidos quando tinha 18 anos, e a experiência americana o marcou profundamente. Obteve um Master of Arts na Universidade de Colúmbia com sua tese Social Life in Brazil in the middle of the Nineteenth Century, na qual já antecipava seu interesse pela história cultural, a vida familiar e a petit histoire da vida cotidiana. Seus estudos nos Estados Unidos são um traço original, numa época em que a maioria dos intelectuais latino-americanos estava voltada para Paris. Nos Estados Unidos, além de
estabelecer contato com os círculos literários e universitários no clima excitante do primeiro pós-guerra, Freyre estudou Ciências Sociais – outro traço original: foi um dos primeiros estudantes brasileiros pós-graduados em Ciências Sociais nos Estados Unidos. A principal influência universitária veio da Antropologia Cultural de Franz Boas, ainda que em geral tenha tido acesso a todas as grandes obras desse período pioneiro das Ciências Sociais americanas. O descobrimento do conflito racial e a crítica do biologismo predominante na época, a partir da apropriação original do conceito de cultura, foram decisivos em sua formação e na concepção de suas duas obras centrais, Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Casa Grande & Senzala combinou as Ciências Sociais com a narrativa histórico-lliterária, antecipou importantes tendências historiográficas contemporâneas e inaugurou novos territórios de pesquisa no Brasil, como a cultura material, as mentalidades e a etnografia da vida cotidiana. Sete décadas depois de seu lançamento, a obra conserva sua atualidade? O historiador norte-americano Stuart Schwartz, no seu artigo Gilberto Freyre e a história colonial: uma visão otimista do Brasil, mostrou que a pesquisa historiográfica, nos últimos 50 anos mudou, consideravelmente, nosso entendimento do período colonial brasileiro. Sabe-se hoje, por exemplo, que a “nobreza da terra” do Nordeste era bem menos “nobre” do que ela própria alegava ser e que a vida dos senhores de engenho era bem menos estável do que o imaginado por Freyre. Sabe-se também que os índios tiveram um papel importante na economia açucareira, até meados do século 17 e que havia grupos sociais intermediários entre a casa-grande e a senzala. Mas, independentemente da validade que se atribua a elas, as interpretações de Freyre conservam seu interesse. O que surpreende em Gilberto é o frescor que conservam muitas de suas páginas. Poucos textos dos chamados clássicos do pensamento social brasileiro transmitem tanta sensação de contemporaneidade, como a narrativa histórica de Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala contorna o legado morto dos clássicos, com sua abordagem original do complexo tema das inter-relações entre raça e cultura, uma questão que está em debate na pós-modernidade. Sua leitura revive espectros do passado que não conseguimos purgar definitivamente. • Luciano Trigo é jornalista. Continente setembro 2003
Foto: Sebastião Lucena
Entre o transitório Ao completar 70 anos, obra máxima de Freyre ratifica sua condição de marco fundamental da cultura brasileira, original e permanente, a despeito de equívocos políticos do autor e da miopia da crítica Fernando da Mota Lima
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da cultura é um vasto cemitério de obras cadentes. A cada geração, senão a cada década, reA história pontam no horizonte das humanidades uma sucessão de obras saudadas pela crítica e pela comunidade
dos leitores como obras-primas ou definitivas. Logo, porém, o tempo, juiz último e implacável, procede a uma operação rotineira de filtragem e decantação. De umas retém valores de referência e fontes de pesquisa para o especialista; de outras, virtudes medianas que seduzem o leitor sedento de prazer gratuito e entretenimento ou saber livremente desinteressado. Uma outra categoria, a majoritária, simplesmente mergulha no esquecimento, dando assim provas cabais do seu interesse transitório. Uma última, reserva das raridades autênticas, sobrevive a todas as provas do tempo e ao capricho das circunstâncias elevando-se à categoria de obra definitiva. Casa-Grande & Senzala inscreve-se, sem dúvida, nesta categoria. Há obras-primas que são acolhidas com hostilidade mesmo pela crítica mais qualificada. Seu teor de inovação ou ruptura é tão radical que tem o poder momentâneo de desnortear o receptor munido de códigos e instrumentos inadequados para apreender-lhes a real dimensão intelectual e estética. Talvez por isso todo grande crítico incorreu em graves erros de apreciação. Basta que se pense nos erros de gente como Virginia Woolf, Edmund Wilson, Lionel Trilling, Harold Bloom e dos brasileiros Mário de Andrade e Antonio Candido. Casa-Grande & Senzala passou ao largo desse destino. Afora um ou outro crítico menor – ou caturra, como prezava dizer Gilberto Freyre – a melhor crítica brasileira teve a lucidez de saudar com entusiasmo o surgimento da obra. Algumas das suas qualidades mais notáveis, já tantas vezes reiteradas, traduziam-se na originalidade do estilo e da exposição da matéria, na linguagem desatada, mas de forte senso artístico, na reinvenção interpretativa do nosso passado. Desde então, Gilberto Freyre e sua obra-prima, somada a outros títulos igualmente fundamentais como Sobrados e Mucambos e Nordeste, ocuparam posição privilegiada nos quadros gerais da cultura brasileira. O consenso que assinalava a excelência de Casa-Grande & Senzala foi, porém, abalado nos anos 60 e 70. A imposição da ditadura militar e seu endurecimento, a partir de 1968, atingiram de modo traumático as artes e a cultura brasileira num momento de intensa fermentação e atividade criadora. A perseguição movida pelo
e o permanente
regime militar contra intelectuais, artistas e estudantes, institucionalmente concentrados na esfera acadêmica, produziu reações gerais de resistência ora ativa, ora passiva. A última forma de resistência, a passiva, ou o autoexílio como forma de negação da intolerância e violência institucionalizadas, acentuou-se por motivos óbvios durante os chamados anos de chumbo. Dentre os intelectuais de renome e irrecusável influência crítica e institucional, Gilberto Freyre foi dos raros a apoiar a ditadura. Falta ainda um pesquisador paciente e isento, interessado em revisar seus artigos publicados – na imprensa local, sobretudo – durante esse período sombrio. Em resposta, a esquerda oprimida e perseguida deu-lhe um troco de intolerância, silenciando sua obra nas universidades durante cerca de duas décadas. Quando sobre ela se pronunciou, mesmo através das melhores
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Foto: Teixeira da Mota/Acervo Fundação Gilberto Freyre
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Freyre entre membros da etnia Manjacos, na Guiné, em 1951
vozes críticas, foi em tom de combate ideológico ou ajuste de contas. Esse espírito ou intenção é sensível, por exemplo, em obras de valor crítico inegável como O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Outro dado significativo para que melhor se compreenda a resistência ideológica desfechada contra a obra de Gilberto Freyre evidencia-se na relativa sobreestima concedida a seus grandes concorrentes nos estudos de interpretação do Brasil: Mário de Andrade, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Antonio Candido. Passado o vendaval, e refeito o cenário da nossa precária democracia política e cultural, a obra foi gradualmente reconquistando sua autonomia abalada pelos erros ideológicos em que incorrera seu autor. O grande marco da revisão crítica de Casa-Grande & Senzala foi certamente o ensaio-prefácio corajosamente assinado em 1979 por Darcy Ribeiro para a edição venezuelana da obra. Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo de Gilberto Freyre, cita o antropólogo alguns elogios feitos a Freyre dentro e notadamente fora do Brasil. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvadores, rende-se ele à grandeza da obra saudando-a como a mais importante da cultura brasi-
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leira. Mas o ensaio de Darcy Ribeiro não se distinguiria como a melhor síntese crítica de Casa-Grande & Senzala se se detivesse no elogio sem fundamentação interpretativa. Sendo assim, cuida em seguida de articular com clareza o problema cuja tentativa de resposta é o próprio ensaio-prefácio. Noutras palavras, pergunta-se ele como um autor tão “tacanhamente reacionário no plano político”, cito literalmente Darcy Ribeiro, foi capaz de “escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo.” A resposta é complexa e, no meu entender, Darcy Ribeiro não a fornece integralmente. O que porém mais importa destacar no problema que nos propõe é a distinção necessária entre o autor e a obra. Como o leitor em geral e mesmo a crítica mais qualificada tendem com freqüência a confundi-los, há sempre quem queira julgar a obra pelas posições políticas do autor. Foi isso, em suma, o que pôs momentaneamente em questão o caráter permanente de Casa-Grande & Senzala. Assentada a poeira das batalhas ideológicas, nota-se a crescente retomada de interesse pela obra. Estudiosos de variadas formações e objetivos voltam a ressaltar sua originalidade e permanência. O pioneirismo de muitos dos seus temas, valores, fontes e processos de apreciação, tão grosseiramente incompreendidos durante décadas, o que forçava o
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À esquerda, escritório de Gilberto Freyre Acima, edições estrangeiras de CasaGrande & Senzala
narcisismo de Freyre a vir a público chamar a atenção para si próprio com reiteração insistente e por vezes mesmo ridícula, é enfim reconhecido e louvado. O irônico é observar que tal reconhecimento deriva muitas vezes do prestígio atribuído à nova história nos nossos círculos intelectuais e acadêmicos. Como a historiografia européia, sobretudo a francesa, estimulou no Brasil os estudos e pesquisas orientados para a história do cotidiano, a história oral, a história das mentalidades, etc., muitos dos nossos estudiosos descobrem agora com espanto que Gilberto Freyre já fazia tudo isso nos anos 30. Isso prova, antes de tudo, a persistência da formação colonizada do intelectual brasileiro. A fortuna crítica de Casa-Grande & Senzala e, mais amplamente, do conjunto da obra de Gilberto Freyre, é já considerável e crescente. É entretanto oportuno salientar que grande parte dela se reveste de tom fortemente celebratório e apologético. Diria, nesse sentido, que vários dos nossos autores canônicos têm sido melhor afortunados que Freyre. Tenho em mente Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade e Guimarães Rosa. Dada a singularidade que os caracteriza, seria descabido considerar o problema acomodando-os numa medida comparativa comum. O que intento acentuar nesta observação ligeira é o limitado alcance quali-
tativo da fortuna crítica freyreana em face da quantidade que se avoluma. As obras permanentes são permanentes, entre outras coisas, por prescindirem da crítica apologética assinada pela corte dos epígonos e diluidores. Importa, portanto, considerar Casa-Grande & Senzala à margem de qualquer intuito oficialista ou apologético. Confesso estar enjoado de certa crítica gilbertiana diluída em variações do tema “eu e Gilberto Freyre”. O crítico, e notem que me refiro ao crítico autêntico, existe e escreve para servir à difusão das obras de excelência, para servir às obras verdadeiramente originais. Na nossa era saturada de narcisismo, entretanto, o crítico mais e mais se comporta como se ele e sua produção transitória e parasitária se sobrepusessem ao restrito universo das obras permanentes. É por constatar essa inversão de valores no mundo da cultura que me arrisco a concluir em tom desmedido ou até paradoxal. Quero dizer: esqueçamos a crítica, deslocando assim nossa atenção dos valores transitórios para os permanentes. Diria mais: esqueçamos Gilberto Freyre, esqueçamos o autor, pois o que fica e por fim importa é a obra. • Fernando da Mota Lima é professor de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
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Prosa de quem se espreguiça Gilberto Freyre foi não tanto escritor a ponto de se preocupar com as minúcias da palavra, mas da sua reconstrução retórica, uma retórica a serviço da interpretação antropológica e sociológica da realidade. É sempre o escritor-cientista, com hífen Mário Hélio
dias depois de saída às livrarias Casa-Grande & P oucos Senzala, o poeta Manuel Bandeira comentou em carta ao
seu autor a repercussão do livro no Rio. O escritor Gastão Cruls esperava que fosse “mais literário”. Murilo Mendes definia-o como um novo Ulisses (referência ao romance de Joyce sobre quem o pernambucano foi o primeiro a escrever no país). Roquette Pinto elogiou a linguagem. A interpretação da literatura em Casa-Grande & Senzala e, por extensão, na obra de Gilberto Freyre, vem atentando mais para os dois últimos aspectos citados – linguagem e comparações com outras obras – que para a sutil recorrência do primeiro: o que haveria nela de literário? Entre as freqüentes analogias com clássicos duas são recorrentes: Guerra e Paz e, principalmente, Em Busca do Tempo Perdido. Wilson Martins, que não via sentido épico na obra freyriana (ao contrário de Carpeaux, que considerava os seus dois primeiros livros as melhores epopéias do Nordeste), distinguiu no francês a primazia do
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tom, e no brasileiro a “fórmula”. O que Proust e Freyre tinham em comum era menos a qualidade literária e mais a valorização do tempo. Ninguém mais do que Gilberto Freyre estimou e estimulou essas comparações com grandes autores. Deve ter gostado de o seu primeiro livro ser definido como um Ulisses. Mas, Casa-Grande & Senzala não é um novo Ulisses. As comparações e as generalizações excessivas costumam primar pela imprecisão. Com o romance do irlandês guarda apenas o paralelo da franca valorização da vida sexual e do cotidiano. O âmbito da renovação realizada por Joyce ia até à medula da palavra, no brasileiro estancava na frase, na frase de efeito, na sentença, no espírito, por mais que fosse um anti-retórico. O que faz Casa-Grande & Senzala obra literária, além da sua ênfase na escrita – no gosto pelas imagens, pelas metáforas – é a despreocupação com o discurso fechado. Darcy Ribeiro destacou que ele tanto atende ao cientista bem documentado
Foto: Sebastião Lucena
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quanto ao escritor mais libérrimo. E essa liberdade contribui para que as interpretações – suas e de outrem sobre ele – sejam forçadas ou distorcidas, e isto se verifica também na leitura que ele compõe da realidade. Se é o poético que conduz o sociólogo, pode-se lembrar daquela distinção famosa que Aristóteles faz entre o historiador e o poeta. Este contaria a história das coisas como deveriam ter acontecido. É assim com Freyre. Conta não tanto “a história do Brasil como realmente foi e é”, mas a história do Brasil como deveria ter sido e talvez ainda seja. Casa-Grande & Senzala não pode ser vista apenas como exemplo da construção inteligente de um mito fundador para o Brasil. Ou mera narrativa literária, tirando-lhe os méritos científicos. Como se não fosse resultado de um cuidadoso exame de documentos. É o contrário o que ocorre. A abundância de fontes e a capacidade de manipulá-las é o que faz Gilberto um autor original, acima dos modismos e das academias, acima da doença crônica da maioria dos historiadores, sociólogos e antropólogos pernambucanos: a mediocridade. O que há de mais intensamente pessoal na sua forma de reconstruir a sociedade brasileira em palavras é que o torna grande. Toda a larga discussão em torno do quanto há de literário em Casa-Grande & Senzala (sempre para mais, para os de hoje, e não menos, como constatou Gastão Cruls) seria bem reduzida se todos atentassem para a informação simples de que, no tempo de Gilberto Freyre, historiadores e cientistas sociais tinham gosto, formação e estilo literário. Casa-Grande & Senzala é um dos melhores exemplos disso. De que a ciência também tem uma retórica, e não raro se irmana com a literatura. No seu caso, há uma retórica sensual para textos científicos domada pela influência da língua inglesa. O opúsculo Vida Social no Brasil em Meados do Século 19 – a dissertação defendida nos Estados Unidos – é o rascunho de Casa-Grande & Senzala, e que foi redigido, originalmente, em inglês. Gilberto Freyre, como os seus principais companheiros de geração modernista, queria descobrir o Brasil e construir uma língua nacional. No seu caso, essa língua nem era aquela exuberante e às vezes caricata de Mário de Andrade (que ele repudiou pelos exageros e artificialismo) nem a de Rui Barbosa (ainda mais rechaçado e ridicularizado). Era o resultado do seu estilo e da sua atitude perante a linguagem. Não tanto escritor a ponto de se preocupar com as minúcias da palavra, mas da sua reconstrução retórica, uma retórica a serviço da interpretação antropológica e sociológica da realidade. É sempre o escritor e o cientista com hífen o que se tem nele. Escritor-sociólogo, escritor-antropólogo, antropólogo-sociólogo e outras combinações. Grande parte do seu vigor vem desses casamentos indissolúveis, pois o escritor-só-literatura em Gilberto é muito medíocre: os seus melhores poemas são quando muito pastiches do estilo de Whitman com tinturas do imagismo, as suas semi-novelas são exercícios menores. Tudo o que ele publicou depois dos 40 anos de idade parece simples desdobramento ou alongamento (para usar termo mais ao seu gosto) do que produzira com vigor antes. Ordem e Progresso seria uma exceção (publicada quase aos 60 anos do autor), não tivesse uma elaboração muito anterior. Há maneirismo e perda de vigor em quase tudo o que publica na velhice. CasaGrande & Senzala – só superada por Sobrados e Mucambos – é obra de um escritor-pensador no auge. O que há de mais amplamente literário no livro? Para responder-se deveria ser usado um chavão: lê-se com prazer. É o prazer do texto que define a literatura e não o malabarismo verbal. O prazer do texto seu não pode se separar da ideologia do nacionalismo. De uma escrita nacional. Daí a exatidão do que escreveu João Cabral de Melo Neto, definindo essa obra, quando completou 40 anos de publicada: “Ninguém escreveu em português/ no brasileiro de sua língua:/ esse à-vontade que é o da rede,/ dos alpendres, da alma mestiça,/ medindo sua prosa de sesta,/ ou prosa de quem se espreguiça.” • Mário Hélio é jornalista e escritor. Continente setembro 2003
Um grande
Foto: SebastiĂŁo Lucena
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Pierre Louys acabou de ler as obras de André Gide, manifestou por carta o desejo de conhecer Q uando pessoalmente o grande romancista. Mas Gide respondeu que lendo seus livros Pierre Louys conhecera o que
ele tinha de melhor; e acrescentou: “conhecer-me pessoalmente? Por que esta imprudência?”. O receio do autor de Os Alimentos Terrestres era justificável porque são muitos, de fato, os autores que pessoalmente decepcionam seus mais fanáticos leitores. Não era este o caso de Gilberto Freyre, a quem gosto de definir menos como sociólogo, antropólogo, historiador social, ensaísta, pensador ou mesmo escritor tout court – seu título preferido – do que como um grande sedutor. Recordarei, para explicar-me, uma noite em que fui ouvi-lo no Gabinete Português de Leitura do Recife. Depois da conferência, o professor Newton Sucupira, que estava a meu lado, comentou: “não concordo com tudo o que ele diz, mas acabo seduzido pela originalidade de suas idéias e pelo modo saboroso com que as expõe”. Isto ocorreu desde o primeiro grande livro de Gilberto Freyre, por ele definido como “ensaio de sociologia genética”. Mas desde o prefácio até o último capítulo o leitor é seduzido pelos recursos literários do autor: suas imagens e enumerações, as frases longas alternadas com as breves, os ricos gerúndios e os riquíssimos advérbios terminados em mente, a utilização personalíssima dos sinais de pontuação, o emprego de termos científicos, populares e até chulos (quando absolutamente necessários, como naquela página do último capítulo de Casa-Grande & Senzala em que se refere às sestas dos patriarcas em suas redes). Pessoalmente, Gilberto Freyre foi o grande exemplo brasileiro da célebre definição do naturalista francês Georges Louis Leclerc, conde de Buffon: “o estilo é o próprio homem”. Julián Marías escreveu que ele tinha a vocação da felicidade. Passou, em sua longa existência, por momentos desagradáveis – como, por exemplo, o saque e incêndio da casa de seus pais na chamada Revolução de 30, o exílio no mesmo ano, o ostracismo político, a ficha policial de 1935, com número de registro e retrato de Gilberto Freyre era o tipo do “homem cordial” frente e de perfil, a prisão em 1943, “na da caracterização do brasileiro segundo Sérgio imunda Casa de Detenção do Recife”, os insultos pichados, no mesmo ano, nos Buarque de Holanda e Ribeiro Couto. Tudo muros das casas de Apipucos – mas nunprocurava compreender. Sua cosmovisão – ou ca se deixou dominar pela amargura, mansempre a esperança que – como Weltanshauung, como se diz em alemão – era tendo disse-me uma vez – é a fé dos pobres. a mais abrangente possível Estava sempre alegre e animando os que dele se aproximavam. Existe um cartaz comemorativo dos Edson Nery da Fonseca quarenta anos do Banorte com estas palavras de Gilberto Freyre sobre um retrato no qual transparece a felicidade notada por Julián Marías: “Eu sempre fui um homem de muitos amigos”. Numa conferência intitulada O culto da amizade em Gilberto Freyre (1992), tentei recensear esses amigos com base nas dedicatórias impressas em dois de seus primeiros livros: Ulysses Freyre, Olívio Montenegro e José Lins do Rego em Artigos de Jornal (1935) e Antiógenes Chaves, Pedro Paranhos, Luis Cedro e Cícero Dias em Nordeste (1937). Mas o critério não é totalmente válido porque exclui outros amigos íntimos da primeira mocidade, como, por exemplo, Aníbal Fernandes, José Tasso, Odilon Nestor, Júlio Belo, Sylvio Rabelo, José Américo de Almeida. Os 75 livros e 96 opúsculos deixados por Gilberto Freyre não eram suficientes para
sedutor
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66 CAPA contemplar todos os amigos que fez ao longo dos 87 anos de sua existência: amigos tanto de sua geração como das gerações anteriores e posteriores. Entretanto, o homem de “muitos amigos” teve também seus inimigos. No discurso de agradecimento a um banquete que lhe ofereceram no Rio de Janeiro, em julho de 1941, incluiu-se entre os “que seguem, quanto possível, o velho inglês orgulhoso de nunca ter procurado uma amizade ilustre nem se esquivado a ódio de poderoso”. Em artigo publicado pelo Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco (maio de 2000), indiquei três inimigos de Gilberto Freyre, representativos dos poderes intelectual (Oliveira Viana), político (Agamenon Magalhães) e espiritual (Padre Antonio Ciríaco Fernandes). Vejamos os três casos. Em Casa-Grande & Senzala são citados os três livros de Oliveira Viana até então publicados: Evolução do Povo Brasileiro, Populações Meridionais do Brasil e Raça e Assimilação. Gilberto Freyre qualifica-os como “sugestivos ensaios”, mas diverge do sociólogo fluminense quando este nega a existência de luta de classes e superestima a presença de dólicos-louros na formação social do Brasil. Foi o bastante para fazer com que Oliveira Viana devolvesse Casa-Grande & Senzala ao editor e
deixasse de citar Gilberto Freyre em seus livros seguintes. Com Agamenon Magalhães a divergência começou quando Gilberto Freyre fez reparos à campanha desfechada pelo então interventor federal em Pernambuco contra os mucambos, cujos males decorriam, para o sociólogo, da lama em que eram construídos. Em solo seco e devidamente higienizados, seriam a solução econômica e ecológica para o problema da habitação popular em Pernambuco. Agamenon achava que Gilberto defendia os mucambos para estimular a luta de classes. Ele morreu sinceramente convencido de que Gilberto estava a serviço do Comunismo Soviético. Quanto ao missionário jesuíta Antonio Ciríaco Fernandes, Gilberto Freyre contava que ao cruzar com ele numa rua do Recife sentira-se atingido por um olhar de ódio, que interpretava como “ódio teológico” porque somente se conheciam de vista. O padre Fernandes, que era um erudito natural de Goa, fundou e dirigiu no Recife a Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica, à qual pertenciam quase todos os secretários de Agamenon Magalhães, como interventor federal em Pernambuco de 1937 a 1945. Quando ministro da Justiça nos últimos meses da Ditadura Vargas, Agamenon foi substituído pelo secretário de Segurança Etelvino Lins, responsável pela
Foto: Acervo Fundação Gilberto Freyre
Freyre, a esposa Magdalena e os filhos Sônia e Fernando, em 1954 Abaixo, aos 18 anos de idade, quando viajou para os Estados Unidos
Foto: Acervo Fundação Joaquim Nabuco
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Fotos: Acervo Fundação Joaquim Nabuco
CAPA 67
À esquerda, o jovem Gilberto Freyre faz pose, escalando um coqueiro Acima, num passeio ciclístico com o irmão Ulysses (E) e um amigo
prisão de Gilberto Freyre na Casa de Detenção do Recife, por haver denunciado o racismo do diretor espiritual dos escoteiros, então subordinados à Secretaria do Interior e Justiça do Estado. Minha interpretação pessoal é a de que Gilberto Freyre foi odiado pelos que não o conheceram pessoalmente. Ele tinha um poder de sedução que operava a conversão em amigos dos mais ferrenhos inimigos. Teve a grandeza humana de receber cordialmente no solar de Apipucos os que o combateram e até o insultaram, como os autores da vergonhosa nota oficial do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife imposta aos jornais pela polícia ditatorial dos anos 40: Jordão Emerenciano e Sérgio Higino. Recebeu prazerosamente em Petrópolis as homenagens de Guilherme Áuler, que antes o combatera no Recife, e prefaciou seu livro sobre a emigração germânica no Brasil, publicado em 1959 pelo Arquivo Público Estadual de Pernambuco, fundado e até então dirigido por Jordão Emerenciano. Damos a seguir outro exemplo. Conhecido e conceituado poeta e ensaísta cearense radicado no Recife disse a um jornal que Gilberto Freyre atuava como ditador na presidência do Conselho Estadual de Cultura. Quando se encontraram, alguns dias depois, nos jardins da Fundação Joaquim Nabuco, Gilberto a ele se dirigiu e o abraçou dizendo: “ditador, mas simpático, não é?”. Era assim Gilberto Freyre: o tipo do “homem cordial” da caracterização do brasileiro segundo Sérgio Buarque de Holanda e Ribeiro Couto. Tudo procurava compreender. Sua
cosmovisão – ou Weltanshauung, como se diz em alemão – era a mais abrangente possível. Mais do que a de Terêncio, o poeta latino – por ele citado em discurso de 1918 – que disse: “sou humano e nada que é humano reputo alheio a mim”. Gilberto ia além, podendo dizer, como já sugeri em outra ocasião: “sou vivo e nada que é vivo reputo alheio a mim”. Pois sua empatia abrangia tanto o homem como as espécies animais e vegetais. Quando organizei seu livro significativamente intitulado Pessoas, Coisas & Animais (São Paulo, MPM Propaganda, 1979; Porto Alegre: Globo, 1981), incluí uma crônica em que ele evoca o gato Joujou como pessoa da família. Josué Montello anotou em seu diário que durante visita à vivenda de Apipucos, viu um pássaro alojando-se no ninho que construíra na luminária do pátio interno e ouviu Gilberto explicar: “ele mora aqui”. E Carlos Humberto Carneiro da Cunha conta que ao tentar raspar o musgo formado numa parede externa da mesma vivenda, foi amavelmente censurado com estas palavras: “deixa o musguinho viver!”. No já citado discurso de 1941, publicado pelo Diário de Pernambuco de 29 de julho daquele ano, Gilberto Freyre assim sintetizou sua generosa cosmovisão: “Sou ainda um combatente quase sem armas para controvérsias no velho gesto brasileiro: um combatente para quem nem negro, nem judeu, nem china, nem mouro, nem mulato, nem filho natural, são expressões pejorativas”. • Edson Nery da Fonseca é professor emérito da Universidade de Brasília e pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco.
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