Continente #034 - Vinicius de Moraes

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EDITORIAL

Entre a poesia e a música

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João Cabral de Melo Neto dizia que se Vinicius não rês artistas podem ser responsabilizados pela mais importante renovação sofrida pela música popular tivesse se dividido com a música, seria o maior de todos eles – brasileira, a Bossa-Nova. O compositor Tom Jo- aqui se referindo a si mesmo, Manuel Bandeira e Carlos bim, o intérprete e instrumentista João Gilberto e o Drummond de Andrade. Este último, por sua vez, comenletrista Vinicius de Moraes. O primeiro, com suas explorações tava, com um certo quê de inveja, que deles todos, Vinicius foi das dissonâncias herdadas da música erudita impressionista; o o único que “viveu como poeta”. Este número homenageia, aos 90 anos de seu nascimento, segundo, com sua maneira “quebrada” de marcar o ritmo na voz e no violão; o terceiro, pelo trabalho de profilaxia que exer- este homem que foi poeta na música, nos livros e na vida, deiFoto: Reprodução xando um legado de paixão pelas ceu sobre as letras do cancioneiro mulheres, pelos amigos e pela arte. E nacional. Varrendo o clima de dratraz duas letras inéditas do “poetimalhão herdado da música latinonha”, em parceria com Normando americana – com tragédias bombásSantos, um pernambucano que particas em bares e bordéis, envolvendo ticipou das reuniões cariocas de onde machões e fêmeas fatais – para insurgiu a Bossa-Nova. troduzir a vida comum do dia-a-dia, Atravessando o Atlântico, Conticom paixões, é claro, mas também nente apresenta um texto do escritor com humor. O primeiro sucesso do moçambicano Mia Couto, cujo estilo trio, Chega de Saudade, é emblemático remete à inventividade lingüística de até no título. um Guimarães Rosa, sobre os draPor conta de um profícuo e criamas do seu país – e, por extensão, do tivo trabalho como letrista de músicontinente africano – em face dos ca, Vinicius acabou ofuscando um fantasmas do colonialismo e os dileoutro lado seu, tão importante quanmas para a construção da identidade to: o de poeta. Um poeta de versos nacional do seu povo. Suas lúcidas e tão felizes que se incorporaram defiinstigantes observações sobre a busca nitivamente ao falar do brasileiro, de um Eu coletivo perdido ou descomo: “as feias que me perdoem, concertado têm profunda imbricação mas beleza é fundamental”; ou encom o que se passa do lado de cá – tão: o amor “que não seja imortal, elo que somos de antigo império ulposto que é chama, mas que seja tramarino. • infinito enquanto dure”. Vinicius de Moraes em fotografia de David Drew Zing

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Foto: Ravi Deepress

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CONTEÚDO Foto: Arquivo Agência Globo

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Vinicius de Moraes, uma obra mais citada do que lida

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Nemesis, coreografia futurista do Apocalipse

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CONVERSA

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52 Mia Couto analisa os dilemas de Moçambique

virou editor

Uma literatura nascida da oralidade ancestral

CAPA

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LITERATURA

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Sevilha e Recife no olhar de João Cabral O que a moda deve ao cinema, e vice-versa

DANÇA 34 O corpo feito cidade em festival de Veneza

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ARTES CÊNICAS 76 Recife vira picadeiro mundial

COMPORTAMENTO 38 A história do tabaco e o hábito do charuto

CINEMA 64 Casablanca, 60 anos de um mito cinematográfico

26 Vida e morte lendárias de Ambrose Bierce »

MÚSICA 60 Sivuca prepara sua “Arca de Noé”

14 Vinicius: poesia ofuscada pela música »

ESPECIAL

08 Pedro Paulo Sena Madureira, o ex-monge que

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TRADIÇÕES 78 A xilogravura não nasceu com a literatura de cordel

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ARTES 42 Brennand comenta os mistérios de José Barbosa Arte Africana em megaexposição no Brasil

Um centro vivo de arte manual pernambucana »

HISTÓRIA 88 Sebastianismo: fogueiras humanas no Agreste A abolição antecipada no Rio Grande do Norte

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Foto: Divulgação

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Foto: Geyson Magno/Lumiar

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» 54 Trezentas peças da

Artesanato regional ganha exposição permanente

Arte da África ao alcance dos olhos

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Jovens não querem mudar o mundo, mas a vida

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 32 O decepcionante Ministério de Gil

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 50 O grande dilema das bienais

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 72 Crustáceos: de rio ou mar, cada vez mais apreciados

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 74 A cordialidade brasileira ainda existe no Maranhão

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 95 Não dá para confiar em que não gosta de manga

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Se o povo está insatisfeito, o governo muda o povo

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert

Continente Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Alexandra Farah, Antonio Candido, Carol Almeida, Fernando Monteiro, Flávio José Gomes Cabral, Francisco Brennand, Heloisa Seixas, Jeovah Franklin, José Castello, José Nêumanne, Kátia Rogéria Oliveira, Luciano Trigo, Maria Alice Amorim, Mia Couto, Rodrigo Albea e Tobias Queiroz Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Douglas Rocha Borba, Cláudio Manoel, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Michelle Vanessa, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente outubro 2003

outubro Ano 03 | 2003 Ilustração: Cássio Loredano

Passarelas Excelente matéria O estigma do tempo e os dilemas da arquitetura (nº 33)! Lamentáveis são as declarações do Sr. Sílvio Zanchetti, referindo-se ao projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, em construção na Rua Madre de Deus, como “caso de polícia” e comparando-o às catastróficas intervenções da Av. Dantas Barreto e Viaduto Cinco Pontas. Isto é apelar para a histeria destrutiva e baixar o nível do debate sobre a construção da cidade contemporânea. Que dizer então de Brunelleschi que no começo do século 15 construiu a cúpula da Igreja de S. Maria del Fiore, rompendo o skyline da Florença medieval e as relações de ritmos, alturas, volumes, espaços e escalas existentes, para se tornar marco do Renascimento? Como Brunelleschi em Firenze, Paulo Mendes da Rocha “rompeu” com a mediocridade mesquinha e monótona do contextualismo fácil, à la “estilo patrimônio”, defendida por arquitetos sem talento e sem ousadia de introduzir o novo. Seu projeto, além de belo, qualifica e homenageia a cultura arquitetônica do Bairro do Recife e cria estruturas arrojadas para solucionar os desafios impostos pelas necessidades funcionais. Viva Brunelleschi !Viva Paulo Mendes da Rocha! E Viva Lina Bo Bardi, Zaha Hadid, e todos os gênios revolucionários criadores da humanidade. Betânia Uchôa Cavalcanti – Brendle – Recife – PE Sabor pernambucano Tem um ditado que diz: “As pessoas só dão valor àquilo que perdem”. Não é que perdi meu querido Pernambuco, mas estou bem longe dele atualmente. Vivo nos Estados Unidos e sempre estou procurando receitas de comidas pernambucanas (para lembrar, um pouquinho, o delicioso sabor nordestino) e, buscando na Internet, encontrei o sítio de vocês. Achei superbem-elaborado. Por isso estou enviando esse e-mail para parabenizá-los. Sei que custou muitas horas de trabalho para reunir todas as informações, mas podem ter certeza de que valeu a pena. O trabalho de vocês está maravilhoso. Acredito que tem todas as informações de que uma pessoa necessita sobre Pernambuco. Continuem divulgando nossas belezas. Marlia Faria – Maryland – USA Chico Gosto muito de sua Revista. É a melhor do mercado. Há algum tempo vocês fizeram um trabalho sobre o Chico Buarque (Nº 7). Hoje, o Chico acaba de lançar um novo romance: Budapeste. Tudo o que o Chico faz vira um acontecimento. Trata-se de uma personalidade absolutamente adorada, especialmente pelo público que compra a Revista Continente. Tomo a liberdade de sugerir um outro trabalho sobre ele, considerando o lançamento do romance e a chegada de seus 60 anos (em junho de 2004). Nina Melo – Recife – PE


CARTAS Estátua de sal Quero esclarecer que Sara (ou Sarai) não virou estátua de sal, como afirmou – talvez por confusão – a pintora Tereza Costa Rêgo, na matéria O imaginário do Bordel (n°31). Sara era a mulher de Abraão (conforme se lê em Gênesis12:5), ela morreu na terra de Canaã (Gênesis 23:2) e foi sepultada em uma caverna ali mesmo (Gênesis 23:19). A mulher de Ló, cujo nome não é revelado nas Sagradas Escrituras, esta sim, morreu na terra de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19:24), transformada em estátua de sal (Gênesis 19:26) por ter olhado para trás (Gênesis 19:17). Márcio Santana Sobrinho – Aracaju – SE

Gilberto Freyre 1 Falar de Gilberto (Nº 33) é falar de Pernambuco, e a Revista soube dar o valor correto ao nosso grande escritor. Parabéns e continuem sempre assim. Giselle Araújo – por e-mail Gilberto Freyre 2 Só recentemente li Casa-Grande & Senzala, pois padeci do preconceito contra o seu autor, por causa dos artigos reacionários (a favor do golpe de 64, louvando Salazar, etc.) que ele publicou nos jornais nas décadas de 60 e 70. A obra é revolucionária e fundamental para entender a formação do Brasil. A reportagem de vocês sobre os 70 anos do livro (Nº 33) faz jus ao grande sociólogo, colocando inclusive o boicote que ele sofreu na Universidade devido às suas posições políticas. Acho que vocês botaram os pingos nos “is”. Marcos Marino – Recife – PE Ariano 1 Sou estudante de Jornalismo aqui em Porto Alegre, mais precisamente da PUCRS. Estou concluindo o curso e minha monografia versa sobre o Movimento Armorial e o filme o Auto da Compadecida. Fiquei sabendo, por meio de uma professora da Faculdade, que vocês fizeram uma entrevista com o Ariano Suassuna estes tempos (Nº 20). Gostaria de saber se posso ter acesso a esta entrevista, pois, com certeza, acredito que ela será válida em meu trabalho. Outra coisa: parabéns pela Revista. Muito boa. Estou curiosa para ler a matéria Os 90 anos de Vinicius de Moraes. Bianca Garrido Dias – Porto Alegre – RS Ariano 2 É a primeira vez que leio uma matéria sobre Ariano (Nº 20) – que tenha tanta fidelidade ao mesmo. Lendo estas páginas, ouvia o som da sua voz. Fiquei sabendo muita coisa da vida literária dele, o que me fez admirá-lo ainda mais. A Continente merece todas as honrarias por tal feito. Suetônio Ramos – João Pessoa – PB

Provincianismo Chega de provincianismo! Somente porque é feita em Pernambuco, essa Revista fica falando de assuntos que já estamos cansados de saber, como artesanato, violeiros, cordel e os artistas daqui, que encontramos todo dia em qualquer esquina. O mundo está globalizado, gente. Gosto quando vocês falam de outras culturas, outros países, outras realidades. O mundo é maior do que nosso quintal. Maria Aparecida Guedes – por e-mail

Osman Lins Começarei felicitando-os pelo grande incentivo à cultura que vocês proporcionam, com uma eficácia extrema, através desta surpreendente revista. Li a Continente de julho e adorei a matéria sobre o Osman Lins, um incrível escritor, que até então (após a estréia do filme Lisbela e o Prisioneiro), estava esquecido no limbo literário. Nunca tive oportunidade de agradecê-los por esta incrível edição com que vocês nos presentearam. Queria também agradecer à jornalista Carol Almeida pela entrevista com o professor John Perry Barlow, que defende a distribuição gratuita de músicas pela Internet. Gostaria, ainda, de sugerir uma matéria sobre Clarice Lispector, minha escritora preferida, sinto muita falta dela nesta revista e é a única coisa que tenho a reclamar. Sem mais, um abraço e até a próxima. Ícaro Azevedo – por e-mail

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Vitalino O artigo Vitalino, vida feita de barro (nº 32) foi, sem dúvida, uma das melhores matérias que já li, sobre um artista pernambucano. Parabéns!!! Manoel Marcos – por e-mail Letras Na verdade, queria conhecer a Revista de vocês para assinatura, pois desisti de assinar a Cult. Sou da FFLCH (USP) e fiquei desconsolada após uma matéria falando mal dos estudantes de Letras. Interesso-me pelos assuntos dos exemplares anteriores de vocês e já repassei o sítio para meus alunos conhecerem (dou aula para os que vão prestar concurso público para o IRB/ Itamaraty). A matéria do Renato Janine Ribeiro (Nº 30) – e as sobre Sérgio Buarque, Gilberto Freire, e até mesmo Darcy Ribeiro – são de grande valia para eles. Pena que só tive contato com a Revista agora. Claudia Ruiz D. Simionato – São Paulo – SP Pernambucanidade A Revista Continente cumpre um papel importante na divulgação de nossa alta cultura, privilegiando espaço para nomes como Brennand, Ariano, Carrero, Nóbrega, Gilvan Lemos, Tereza Costa Rêgo, Alceu, João Cabral, João Câmara, além do Carnaval, São João, Fernando de Noronha, Olinda, nossa culinária, etc. Vale salientar que a grande imprensa da região rica do país, o sudeste, não abre espaço para esses artistas e essas manifestações, com raras exceções. Luiz Renato Figueiredo – por e-mail Erro Meu prezado Homero Fonseca: infelizmente sou obrigado a escrever para mais uma correção. Na capa interna está escrito “adimire arte”. Gentil Porto – Recife – PE Nota da Redação Pedimos desculpas pelo erro de digitação em anúncio veiculado na edição anterior e agradecemos ao leitor pela observação. Continente outubro 2003

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

Esses moços, pobres moços Conscientes da impossibilidade de mudar o mundo, os jovens sonham em apenas mudar de vida

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les acham que “um lindo futuro é só o amor que nesta vida conduz . Saibam que deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz. Ah, se soubessem o que eu sei, não amavam, não passavam aquilo que eu já passei!” Esta é a terna e tenra advertência poética que Lupicínio Rodrigues fez aos jovens sobre as desventuras do amor . Ah, se as frustrações dos jovens fossem somente relacionadas ao amor! Para a maioria, seja jovem ou não: sofrer de amor, por que não? Para alguns, pancada de amor não dói. Pior que sofrer de amor é não ter amado. No entanto, outra advertência de cunho menos poético deve ser feita, não aos jovens, mas, aos governantes e dirigentes deste país. Pesquisas recentes têm mostrado que no mundo globalizado e, mais particularmente, no Brasil, (além das vicissitudes do amor) os jovens têm sido as maiores vítimas do desemprego e da violência. Sem capital financeiro, intelectual ou social, não há alternativa. Inclusão social não combina com serviços públicos de qualidade precária. Isto representa exclusão consentida. A propósito, para uma reflexão sobre o comportamento dos jovens brasileiros, utilizei-me de uma pesquisa qualitativa para construir o seguinte decálogo: 1. Eles se interessam cada vez menos por política e têm uma visão muito crítica com relação a esta classe. 2. Independentemente do seu nível de estudo e do seu meio social, eles compartilham os mesmos valores no que diz respeito ao modo de consumir e de viver. 3. Os obstáculos ao ingresso na vida economicamente ativa os levam a depender materialmente da família e a retardar a saída da casa dos pais. 4. Ao atribuir uma importância desmedida ao dinheiro, e ser demasiadamente individualista, a sociedade não abre espaço suficiente para eles. 5. Aqueles com pouca formação tendem a incorporar uma revolta surda e uma crítica radicalizada tanto com relação às instituições como aos valores democráticos.

6. Os integrantes das classes C e D não estão enxergando nenhuma luz no fim do túnel para melhorar suas vidas. 7. A maioria acha que os sindicatos e os partidos não são os melhores caminhos para o engajamento deles na conquista da cidadania. Desconfiados dessas organizações, interessamse pelos movimentos e organizações sociais independentes. 8. Os níveis baixíssimos dos salários impedem a solidariedade das famílias das classes menos favorecidas de lhes prestar ajuda, na forma desejada. 9. Não são despolitizados, o seu engajamento caracteriza-se por agir quando seus interesses são contrariados. 10. Suas práticas culturais são mais mescladas do que se pensa. Incorporam todas as tendências (o rap, o brega, o cinema, a televisão), independentemente de classe social. Pesquisas realizadas na França, mostram situação similar à do jovem brasileiro. A conquista da independência é um caminho árduo. O prolongamento dos estudos e a difícil inserção profissional, explicam por que a entrada na idade adulta é mais tardia; não correspondendo sistematicamente ao primeiro emprego, à saída da casa dos pais ou ao casamento. A família substitui a autoridade por cumplicidade. O conflito de gerações torna-se mais ameno. O triunfo da sociedade de consumo e o individualismo têm levado os jovens franceses a perceberem o trabalho de forma utilitária e a mudar seus níveis de exigências. Descobriram que o consumo pelo consumo é terrivelmente frustrante. Muitos não sonham mais com isso. Querem viver. Ficar, numa boa. Conscientes da impossibilidade de mudar o mundo, muitos sonham apenas em mudar sua vida. E Lupicínio não tem por que temer tanto, pois hoje a melhor coisa que pode acontecer aos nossos moços, sejam franceses ou brasileiros, é sofrer e morrer de amor. • Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral. Continente outubro 2003


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CONVERSA

Foto: Fabiana Beltramin/Folha Imagem

A cabeça nas nuvens, os pés no chão Pedro Paulo de Sena Madureira, ex-monge beneditino que construiu uma sólida reputação na área editorial, parte para sua própria editora – A Girafa José Nêumanne Continente outubro 2003


CONVERSA

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os 56 anos, o carioca Pedro Paulo de Sena Madureira construiu uma sólida reputação profissional como um dos mais competentes publishers (a palavra inglesa é, sim, antipática, mas também não tem tradução para a atividade de ler originais, escolher títulos, contratar tradutores e preparadores, diagramadores, desenhistas de capas e outros profissionais da produção editorial e lançar livros no mercado). Ex-monge beneditino no mosteiro de São Salvador, Bahia, começou na profissão trabalhando sob o comando do poeta e tradutor Leonardo Fróes, que chefiou uma “incrível armada de Brancaleone” na Editorial Bruguera, filial brasileira da grande casa espanhola, na virada dos anos 60 para 70. Na Bruguera, que não está mais no mercado nacional, Pedro Paulo escrevia westerns com o pseudônimo de Corin Telhado e cuidava do apuro editorial dos lançamentos de grande sucesso popular da casa, como Lucky Luke e Asterix. Depois, participou da equipe do filólogo Antônio Houaiss que preparava a Enciclopédia Britânica. Ainda muito jovem, saiu para dirigir a Nova Fronteira, de Carlos Lacerda, onde preparou um catálogo de lançamentos editoriais que ainda é hoje o melhor do Brasil, com destaque para os títulos de autores consagrados no mundo, mas inéditos no Brasil, como Thomas Mann (os três volumes de José e Seus Irmãos, por exemplo), Ezra Pound (Cantos), Marguerite Duras (entre os quais, O Amante) e Marguerite Yourcenar (seu Memórias de Adriano fez tanto sucesso de público e crítica que virou uma espécie de marco cult no mercado livreiro nacional). Após dirigir a Editora Salamandra, a Guanabara Koogan e a Rocco, mudou-se de armas e bagagens para São Paulo, para assessorar o escritor Fernando Morais na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e ajudar Oswaldo Siciliano e Lygia Siciliano Novazzi a criarem um selo editorial para a Siciliano, empresa proprietária da maior rede de livrarias do País. Pedro Paulo também publicou um livro de poemas (Rumor de Facas, Companhia das Letras, 1989) e ainda ajudou o financista Edemar Cid Ferreira (Banco Santos) a dirigir a Bienal de São Paulo e a organizar a mega-exposição Brasil 500 anos. Ao sair da Editora Siciliano, resolveu, enfim, abrir o próprio negócio, A Girafa, uma editora que, pelo gosto de seus sócios, Antonio Veronezi, chanceler da Universidade de Guarulhos, e Roberto Vidal, paraibano de origem e gráfico de vocação (é dono da Art Printer), teria seu nome, mas terminou sendo batizada com a denominação do simpático bicho africano, da preferência de muitos escritores brasileiros, de Guimarães Rosa e Murilo Mendes, de cujos textos tirou a marca, a Sérgio de Castro Pinto. Nesta entrevista, o editor fala de seus projetos e da linha editorial de A Girafa, cujo lema, de sua autoria, é “a cabeça nas nuvens – os pés no chão”.

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10 CONVERSA Foto: Divulgação/Editora Objetiva

Por que o senhor era até este ano o único, entre os maiores publishers brasileiros, que só trabalhou como empregado e ainda não tinha seu próprio negócio? Primeiro, porque simplesmente nunca tive, em meus projetos de vida, desde que comecei na profissão há 38 anos, esse objetivo de ser dono de editora. Desde que comecei na antiga filial brasileira da tradicional casa editorial espanhola, a Editorial Bruguera, tive muitos bons empregos. E neles nunca perdi as excepcionais oportunidades de aprender com meus patrões e/ou chefes (Antônio Houaiss, Carlos Lacerda e Osvaldo Siciliano, entre eles). Vale dizer, nunca senti necessidade de possuir uma editora, nem do ponto de vista pessoal, ou seja, como traço de personalidade, nem para realizar minha vocação. O que, então, no projeto de A Girafa o fez mudar de idéia? Não houve motivação pessoal, mas um conjunto de circunstâncias que favoreceram minha entrada n’A Girafa como acionista. Em março de 2003, desvinculei-me da Siciliano e imediatamente recebi propostas atraentes de trabalho no Brasil e no exterior, mas a que mais me seduziu foi o convite de Antonio Veronezi e Roberto Vidal para construir com eles essa editora. Ser acionista não foi reivindicação minha, mas aceitei de bom grado a proposta. Qual é a prioridade na proposta editorial de sua nova casa: títulos de prestígio ou best-ssellers? Na verdade, desde o primeiro emprego, nunca trabalhei em editora que fizesse só livros de resultado imediato ou só obras de alta qualidade e vendagem mais lenta. Ao lado de William Faulkner, Italo Calvino, Konstantinos Kavafis ou Virginia Wolf, sempre tive ocasião de lançar grandes títulos de êxito instantâneo, como Irving Wallace, Agatha Christie, Ken Follett e Arthur Hailey, entre outros. Antes de ser editor de livros, o senhor foi monge beneditino. Que lições aprendeu na vida religiosa e poderá aplicar na atividade empresarial? A capacidade de deixar de ser eu mesmo quando leio um texto - isso aprendi no mosteiro. O que menos importa na vida do monge é o que ele é. O monge se despe das circunstâncias da sua biografia, renuncia ao eu, à vontade própria. O bom editor é o leitor que radicaliza, que leva isso às últimas conseqüências. Que seria de mim sem Machado de Assis, sem Drummond, sem Borges, sem Kavafis, sem Proust? Sou uma constelação. Mas uma constelação sem luz própria: sou resultado do que li, os textos existem sem mim, eu não existo sem eles. O senhor trabalhou com o lingüista Antonio Houaiss, a quem se refere como “o mestre”. O que de mais relevante lhe rendeu seu convívio com ele? O Professor me ensinou muita coisa. Não há entrevista que dê conta dessa resposta. Mas há um ensinamento fundamental que ele me transmitiu: mais importante que saber do que se trata é saber onde procurar a resposta. Mais importante que conhecer é ir às fontes do conhecimento. Não existe saber sem consulta; esse é o ato mais humilde que um trabalhador intelectual pode praticar.

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“Há um ensinamento fundamental que Houaiss me transmitiu: mais importante que saber do que se trata é saber onde procurar a resposta”


CONVERSA 11 Foto: Divulgação/Editora Nova Fronteira

Thomas Mann foi lançado no Brasil pela Editora Nova Fronteira, à época dirigida por Pedro Paulo

“O bom editor é o leitor que radicaliza, que leva isso às últimas conseqüências. Sou uma constelação. Mas uma constelação sem luz própria: sou resultado do que li “

Outro chefe seu foi o tribuno, jornalista e político Carlos Lacerda. O senhor aprendeu com ele algo que possa aplicar hoje em seu próprio negócio? Nunca deixe de tomar uma decisão na hora em que você deve e quer tomá-la. Não tomar a decisão é pior que tomar a decisão errada e depois ter que corrigi-la. Quais as vigas mestras da linha editorial de A Girafa? A linha editorial de A Girafa está dividida em várias coleções, como O Brasil Está no Ar (de ficção e poesia brasileiras), A Vida ao Pé da Letra (que se iniciará com O Sonho Brasileiro, de Thales Guaracy, lançamento inaugural de A Girafa, biografia do comandante Rolim Amaro, fundador da TAM), O Prazer e o Pensar (que trará obras como Por Que Nada Satisfaz as Mulheres – e os Homens Não as Entendem, de Rose Marie Muraro) e Nosso Reino não É Deste Mundo (em que lançaremos a primeira edição brasileira do Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, e autores da estatura de Guy

de Maupassant, Kavafis e Marguerite Yourcenar). Ao todo, as coleções planejadas são 16. Qual a presença do Brasil nessa editora que tem como marca um animal nada brasileiro, mas bastante prezado por nossos escritores? Teremos, além de O Sonho Brasileiro e dos poemas de três livros de Alberto da Cunha Melo (Meditação Sob os Lajedos, um dos dez finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, Yacala e Oração Sobre o Poema), agrupados em Dois Caminhos e Uma Oração, e a volta da grande ficcionista Anna Maria Martins, com Mudam os Tempos. Também já estamos a ponto de lançar A Vida Íntima das Frases, de Deonísio da Silva, além de Cale-se, do jornalista Caio Túlio Costa. • José Nêumanne é jornalista, radialista, poeta, escritor, editorialista do Jornal da Tarde, de São Paulo, autor de Solos do Silêncio – Poesia Reunida e organizador da antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século.

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» Foto: Arquivo/Agência O Globo

14 CAPA


CAPA 15 »

O poeta da paixão No dia 19 deste mês Vinicius de Moraes estaria completando 90 anos e sua obra, muito citada, mas pouco lida, revela um homem habitado por muitos poetas José Castello

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uando um artista pinta um par de sapatos, uma fruteira, uma paisagem, é seu próprio retrato que está pintando. A prova disso é que dizemos um Cézanne, um Picasso, um Renoir, e não um par de sapatos, uma fruteira etc. A idéia, relatada por Jean Marais em Histórias da Minha Vida, se refere ao francês Jean Cocteau (1889-1963), um homem que jamais se contentou com uma só arte, tanto que foi poeta, romancista, dramaturgo, cineasta, pintor, coreógrafo e músico. Mas, se transportada para a figura do poeta e músico Vinicius de Moraes, continua impecável. O músico genial, fundador da Bossa-Nova, parceiro de Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell, Toquinho, Chico Buarque, Edu Lobo, entre tantos, todos conhecem. O poeta, a verdade é essa, quase ninguém. Sim, nós o recitamos na escola, e às vezes seus versos são usados nas provas de vestibular; e muitos erram as respostas. Sabemos vagamente que escreveu poemas como Operário em Construção e a Balada das Meninas de Bicicleta, que todos conhecem de nome, mas nem sempre de versos. E que são seus versos célebres como “as muito feias que me perdoem/ mas beleza é fundamental”, mas quase ninguém lembra o nome do poema em que eles estão. Sabemos ainda que Vinicus fez parte de um grupo de poetas brasileiros simplesmente geniais, que enobreceram nosso século 20, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meirelles. Mas, quase sempre, é só o que sabemos. E, no entanto, tínhamos tudo para não esquecer. Primeiro porque, como Cocteau, Vinicius foi um artista inquieto, que escreveu poemas, letras de música, peças para teatro, crônicas, crítica de cinema e até um romance – Polichinelo, bastante sofrível, é verdade, e arquivado em seu “baú” na Fundação Casa de Rui Barbosa. Foi compositor e também cantor. Toda essa superexposição, contudo, em vez de ressaltar a imagem do poeta, parece tê-la esmagado. Depois, Vinicius, mais que qualquer outro, foi um Continente outubro 2003


16 CAPA poeta que jamais pretendeu se separar de sua poesia, afastar sua imagem pessoal da imagem escrita. Em vez disso, fez da poesia parte da própria vida e, para completar a estratégia, da vida parte essencial do poema. Jogou, portanto, a poesia no mundo – ela que, hoje, parece assunto de especialistas, de doutores da academia, de críticos e artistas, e quase nunca de leitores comuns. O músico engoliu o poeta. Sim, Vinicius teve sua obra poética relançada, de modo impecável, a partir dos anos 80, pela Companhia das Letras. Foi objeto, nos anos 90, de duas alentadas biografias. Tudo se fez para ressuscitar o poeta - mas quem se levantava das páginas dos livros, no lugar dele, era quase sempre o bon vivant, o show-man, o cantor, compositor, no máximo o letrista estupendo - raramente o poeta genial. Por quê? É claro, a poesia provoca muito menos interesse que a música popular; sonetos, baladas e versos longos são bem menos sedutores, para a maioria das pessoas, do que sambas, chorinhos e outras canções . É natural, se dirá. O mundo é assim mesmo: um músico, ainda mais um grande anjo gordo, com seu charme com as mulheres e seu incorrigível copinho de uísque, vale muito mais que um poeta, sujeito introspectivo, arredio, solitário – provavelmente um chato. Pode ser. Mas não é. Há uma recusa, grave, que escondeu e continua a esconder o poeta Vinicius de Moraes sob as asas inebriadas, as batas esvoaçantes, as piadas deliciosas, a sedução do músico, do grande músico, Vinicius de Moraes. Médico e monstro? Não, dois médicos; ou, pensando melhor, dois monstros, dois maravilhosos monstros. Na música popular brasileira, de fato, Vinicius teve um papel crucial, não só como letrista especialmente inspirado, e criativo, mas como mentor daquilo que já aconteceu de mais importante na história da MPB: a Bossa-Nova. Foi um grande letrista, talvez insuperável. Mas temos letristas estupendos na música brasileira moderna, tais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, só para citar três, muito especiais, entre tanto letristas especiais. Não é que Vinicius tenha sido “melhor”, ou “superior” a eles; as coisas não devem ser medidas assim. Acontece que Vinicius veio antes deles, Vinicius os gerou – e, provavelmente, sem Vinicius eles não teriam sido o que são. Vinicius foi o grande pai de tudo o que temos de bom, hoje, em nossas letras de música. Estabeleceu padrões originais, para além das velhas regras da “dor de cotovelo”, que então predominavam em nosso cancioneiro, e agregou temas simples, tirados do cotidiano, quase banais, que Foto: Moacir Gomes/Reprodução

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Da esquerda para a direita – Carlos Drummond de Andrade, Vinicius, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Paulo Mendes Campos Continente outubro 2003


CAPA 17 » Foto: Paulo C. Garcez/Reprodução

antes pareciam “antimusicais”, ou pouco dignos da arte da música. E, desse modo, aproximou os letristas da vida real. Mas, a pergunta retorna: por que essa figura ímpar, que além de letrista inspirado foi também um grande compositor – basta pensar em Ai Quem me Dera, em Pela Luz dos Olhos Teus –, por que ele não pôde, e ainda não pode, ser visto como poeta? Acontece, primeiro, que Vinicius não foi um só poeta: muitos poetas, de escolas, estilos e espíritos diferentes habitaram o cidadão Vinicius de Moraes. É inevitável recordar a piada que ele sempre repetia: “Se eu fosse um só, me chamaria Vinicio de Moral, e não Vinicius de Moraes”. Aluno de padres jesuítas, ele começou escrevendo longos e enroscados poemas metafísicos (como O Incriado), sonetos clássicos (como o Soneto da Madrugada e o Soneto do Amor Maior), poemas de longos versos e idéias sinuosas (como Solilóquio).

Sabemos ainda que Vinicus fez parte de um grupo de poetas brasileiros simplesmente geniais, que enobreceram nosso século 20, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meirelles Para um menino tímido, atingido brutalmente pelas questões metafísicas e morais impostas pelo catolicismo, e ainda depois influenciado por amigos mais velhos ligados à ortodoxia do Vaticano, como o romancista Octávio de Faria, a poesia não podia ser outra coisa: devia ser, como foi a prosa para Octávio, quase que um subgênero da religião. Não é por outro motivo que a figura da mulher – que mais tarde tanta importância terá na vida e na arte de Vinicius – está quase que completamente borrada, ou “santificada”, nessa primeira fase. A mulher que o jovem poeta tem em mente é inacessível, de uma pureza absoluta; um ser perfeito, diante do qual o homem se torna um ser indigno, se não abjeto. Talvez um reflexo, humano, da própria Virgem Maria. Depois de se casar com Tati de Moraes, a primeira de suas nove mulheres oficiais, felizmente, essa idéia a respeito da mulher mudou completamente. Tati, a genial Tati, com sua formação feminista, suas idéias de esquerda e sua enorme força interior, empurrou Vinicius em direção ao cotidiano e à vida, aproximando-o, não só em sua relação íntima, mas através das idéias e dos versos, das questões carnais. Vinicius se casou em 1939, aos 26 anos de idade, e foi nesse mesmo ano que terminou de escrever as Cinco Elegias, cinco poemas extraordinários que já anunciavam o desaparecimento de um Vinicius e o nascimento urgente de outro. Elas estão entre os melhores poemas que ele escreveu. Delas, as quatro primeiras ainda foram escritas no sítio de Octávio de Faria, em Itatiaia, Tom Jobim e Edu Lobo, parceiros do Vinicius compositor e cantor

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onde um grupo de rapazes tímidos e cheios de dúvidas se trancavam para debater filosofia e religião. Ainda assim, resultaram tensas e cheias de conflito, bastando pensar na terceira, e certamente a mais bela dentre elas, a Elegia Desesperada. O desespero, no caso, vem dos sentimentos e sonhos que nele afloravam, mas que, apesar disso, por culpa dos remorsos espirituais, ele ainda tratava de, sumariamente, censurar e afastar. “Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde/ E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...”, ele escreveu, deixando exposto não só o conflito, mas a angústia por ele gerada. O erotismo já o pressionava intensamente: “Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas/ De corpo hermético e coração patético”, escreve. Até que, no fim do poema, talvez exaurido por tantas preocupações com os outros, o Eu finalmente surge: “E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!” A partir daí, muitos poetas surgem do coração enfim aberto, destroçado mesmo, do poeta. Vinicius foi o poeta engajado que escreveu a Balada da Praia do Vidigal (Na sombra que aqui se inclina/ Do rochedo em miramar/ Eu soube te amar, menina...”), a Balada do Mangue (“Pobres flores gonocócicas/ Que à noite despetalais”), o pacifista A Rosa de Hiroxima (“Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas”). E o mais célebre dentre eles, O Operário em Construção (“Era ele que erguia casas/ Onde antes só havia chão./ Como um pássaro sem asas/ Ele subia com as casas/ Que lhe brotavam da mão”). Escreveu ainda aquele que é, talvez, o mais belo, e o menos oficialista, poema já criado para a pátria brasileira, Pátria Minha (“A minha pátria é como se não fosse, é íntima/ Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo/ É a minha pátria”). Foi o poeta das baladas doces, como a Balada das Meninas de Bicicleta (“Meninas de bicicleta/ Que fagueiras pedalais/ Quero ser vosso poeta!”) e a genial Balada das Arquivistas (“Oh jovens anjos cativos/ Que as asas vos machucais/ Nos armários dos arquivos!”). Apesar do desprezo que os poetas de vanguarda sempre lhe destinaram, escreveu versos experimentais, como Azul e Branco, poema em louvor do prédio do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro (“Massas geométricas// Em pautas de música/ Plástica e silêncio/ Do espaço criado. Concha e cavalomarinho”). E, bem antes dele, A Última Elegia (“Greenish, newish roofs of Chelsea/ Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis”). Nunca abandonou inteiramente a herança gótica, vinda da formação com os padres jesuítas, um legado difícil de sustentar que aparece dolorosamente, por exemplo, na obscura Balada do Enterrado Vivo (“Na mais medonha das trevas/ Acabei de despertar/ Soterrado sob um túmulo”). Nem deixou de fazer da poesia, sem se preocupar com o que poderiam pensar disso, um veículo de confissão, do relato direto e quase despudorado das experiências do Eu. Como em Rosário, poema em que trata de sua primeira experiência sexual (“E eu que era um menino puro/ Não fui perder minha infância/ No mangue daquela carne!”). Escreveu para os amigos vivos ou mortos – como fez em Saudade de Manuel Bandeira (Lúcido, alto e ascético amigo/ De triste e claro coração/ Que sonhas tanto a sós contigo/ Poeta, pai, áspero irmão?”) e na Balada de Pedro Nava (“Meu amigo Pedro Nava/ Em que navio embarcou:/ A bordo do Westphalia/ ou a bordo do Lidador?”) Vinicius foi um poeta para quem o cotidiano, o presente e o real guardavam um caráter superior, e mesmo mágico, muito mais pujante do que a suposta grandeza da metafísica. Tal aspecto se expressa em poemas que são verdadeiras canções, por sua leveza e elegância, como é o caso do famoso O Dia da Criação (“Neste momento Continente outubro 2003

Vinicius foi um poeta para quem o cotidiano, o presente e o real guardavam um caráter superior, e mesmo mágico, muito mais pujante do que a suposta grandeza da metafísica


Ensaio do show Pobre Menina Rica com Carlinhos Lyra, Aloysio de Oliveira (diretor do show), Nara Leão e Vinicius, no Au Bon Gourmet, 1963

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há um casamento/ Porque hoje é sábado./ Há um divórcio e um violamento/ Porque hoje é sábado./ Há um homem rico que se mata/ Porque hoje é sábado.) E nunca, mas nunca, deixou de escrever sobre o amor, em todas as suas formas, com todos os seus excessos e derramamentos, todo o seu forte e extravagante lirismo. Basta pensar em A Paixão da Carne (“Envolto em toalhas/ Frias, pego ao colo/ O corpo escaldante”). Poesia e paixão lhe pareciam inseparáveis. Tanto que, uma vez, Vinicius disse: “Os poetas estão faltando porque estão faltando homens em geral. Eles estão com medo da vida”. Nessa guinada rumo à vida real, uma presença decisiva: a de Manuel Bandeira. “Ele me fez uma espécie de limpeza mental”, Vinicius relataria mais tarde. “Me desmistificou. Tive com ele uma amizade libertadora”. Quando tirou a cabeça das nuvens e passou a fincar os pés na terra, sem receios, sem pudores com a existência, a vida de Vinicius começou, ela também, a mudar. Já não era mais o jovem que, em viagem de estudos, passou seis meses em Oxford, vigiado por um tutor a quem devia apresentar um ensaio semanal, lendo Shakespeare, Blake, Keats, Shelley, Eliot. Conheceu Bandeira em 1936, aos 23 anos. Partiu para a Inglaterra em 1938, aos 25 anos. Voltou casado, por procuração, e o impacto da influência de Bandeira só se disseminaria nessa volta. E ele se tornou, para desprezo de alguns e delícia de muitos, o grande poeta do lirismo, um insolente e extraordinário poeta lírico, como nunca a língua portuguesa chegou a produzir. Vinicius foi um homem de pouquíssimos medos. Dizia, por exemplo, que tinha medo de fantasma, e que já estivera frente a frente a alguns, mas isso, se verdadeiro, foi uma exceção. Se há uma coisa de que efetivamente não teve medo algum, foi da pecha de poeta romântico, lírico e, quem sabe, deslocado de seu tempo. Escreveu a poesia que tinha que escrever, sem se preocupar com expectativas, cânones, ou críticas. Foi o mais independente e o mais livre de nossos poetas. E foi esse lirismo, derramado, exagerado, intenso, e às vezes tido como simplório, como “fácil” e “popular”, que o estigmatizou. Vinicius foi poeta em tempo integral. “Entre todos nós, ele foi o único que viveu como poeta”, disse Carlos Drummond, pensando numa geração de poetas exemplares como Cabral, Continente outubro 2003


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20 CAPA Foto: Projeto Portinari/Reprodução

Retrato de Vinicius de Moraes, por Portinari (1938. Pintura a óleo/madeira, 56x46,5cm. Coleção particular – Rio de Janeiro)

Bandeira, Cecília Meirelles, Augusto Frederico Schmidt e ele mesmo. Alguns, como Cabral, não chegaram a compartilhar dessa posição. O autor de O Cão sem Plumas, certa vez, chegou a dizer: “Não fosse a música, e Vinicius teria sido o maior poeta da língua brasileira no século 20”. O lirismo, que era a base de tudo, podia se transformar também num estigma. Lentamente, Vinicius foi rompendo por completo a barreira de cristal entre poesia e vida, a um ponto em que a poesia chegou a parecer quase desnecessária – a poesia escrita, publicada em livro, bem entendido. E como isso incomodou os poetas de seu tempo. E sobretudo incomoda os de hoje, que em maioria nem chegaram a conhecêlo pessoalmente, grande parte deles vindos da universidade e do pensamento teórico, cheios de ressalvas, de regras, de senões – diria Vinicius, com doçura, cheios da “pose de poeta”. Esse lirismo teve duas direções: não só a poesia impregnando a vida, mas a vida impregnando a poesia. Foi nesse meio-caminho, entre a escrita e a realidade, que Vinicius de Moraes escolheu trafegar. Optou pelo caminho do meio, em que nada se desperdiçava. Com isso conferiu um novo status aos versos circunstanciais, fazendo da circunstância, sumo e essência, ponto de partida, com sua pena encharcada da experiência, e ponto de chegada, com seus versos úmidos. Vinicius, antes de tudo, poeta do momento. Casando-se pela terceira vez, com Lilá Boscoli, em 1951, mulher envolvida com a música e a noite, cresceu seu interesse pela música popular e se romperam os preconceitos que, ainda ali, e apesar de toda a paixão pela música, alimentava. Em 1956 que convidou o desconhecido Tom Jobim para trabalhar com ele na partitura do Orfeu da Conceição. A guinada mais radical se dá em 1970, quando, ao se casar com a atriz baiana Gesse Gessy, ligada aos hippies e artistas populares de Salvador, Vinicius se tornou ele também uma figura de aparência marginal. Passou a usar batas, chinelos com solas de pneu, colares exóticos; e a editar pequenos livros, em tiragens reduzidíssimas, hoje praticamente desaparecidos, imitando os métodos dos chamados poetas marginais – Cacaso, Ana C., Chacal , os poetas da geração do mimeógrafo, do improviso e, sobretudo, do cotidiano brutal. Vinicius, o homem sedutor, viril, mas sensível que, em 1971, numa entrevista, declarou: “Se houvesse reencarnação, para mim, eu gostaria mesmo era de voltar sendo mulher”. E justificou a afirmação: “As mulheres compreendem com a sensibilidade. Esse negócio de lidar com os fenômenos da inteligência não me interessa mais. Não dá em nada”. Não poderia haver declaração mais extrema, mais radical de seu intenso amor pela mulher. Algo que ultrapassava a carne e que chegava a ser, de certo modo, se não uma identificação, uma profunda compreensão. Uma cumplicidade. Em outra entrevista, ele reafirmava o elo decisivo entre poesia e vida, aliança que sempre o norteou. Vinicius diria: “A poesia é tão vital para mim que ela chega a ser o retrato de minha vida. E eu me considero um ser tão imperfeito”. E era dessa imperfeição, dessa inconstância e contínua incerteza, que surgiam os versos. Não para curá-las, como um elixir, ou para encobri-las, como um disfarce, mas para celebrar a fragilidade e beleza da vida. • José Castello é jornalista e autor do livro O Poeta da Paixão – Uma Biografia.

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Poemas belos e necessários Em Vinicius de Moraes a experiência com a palavra chega constantemente no limite em que ela parece dissolver-se noutra coisa Antonio Candido

Por isso, precisamos deles para ver e sentir melhor, e eles não dependem das modas nem O das escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinis poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles.

cius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou na circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos. Do que trouxe, lembro apenas: a peculiaríssima ligação que estabeleceu entre o amor e o mar, praia e a vida amorosa; mistura do vocabulário familiar com uma espécie de casto impudor; a invenção de um léxico de amor físico que abole qualquer diferença entre ele e o que é considerado não-físico. E mais um uso próprio do ritmo de romance popular, quem sabe inspirado inicialmente em Garcia Lorca. E uma reconstrução de soneto. E a transformação do versículo solene dos seus primeiros livros em ritmo suspenso entre verso e prosa, de modo a não haver mais verso nem prosa, mas prosa e/ou verso, em franca ida e volta. E a capacidade de dessolenizar as coisas solenes para guardar o que têm de sério no meio da pilhéria aparente. E a capacidade de se apegar às coisas pequenas e humildes para lhe dar uma gravidade que não vem do tom, mas da estrutura latente de paradoxo que enforma a sua poesia. Vinicius começou falando mais ou menos como outros. Os seus primeiros livros – Caminho Para a Distância (1933), Forma e Exegese (1935) – são afogados no longo verso retórico usado pelos poetas cristãos daquele tempo, com uma vontade quase cansativa de espichar o assunto e um certo Continente outubro 2003


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22 CAPA

Receita de mulher complexo de antena, ou seja, o esforço de captar algo misterioso, fora da órbita normal. Mas Vinicius capitalizou essa falação para transformá-la num sentimento muito pessoal das coisas inexplicáveis, que acabou por dessacralizar, tirando-as da metafísica para criar uma física extremante humana e comunicativa. Os anos de 1937 a 1945 são fundamentais neste sentido. Neles se firma a fisionomia do poeta que conhecemos e que, sem perder a experiência anterior, renovou essencialmente a sua linguagem e a sua orientação. Novos Poemas (1938) ainda é meio solene, mas já mostra a capacidade de variar os ritmos, fazer verso curto e jogar com as formas fixas, inclusive o soneto, instrumento rígido e fechado que ele haveria de abrir em estruturas livres. Nalgumas das suas páginas, como O Falso Mendigo, está pronto o Vinicius renovado. Em 1943 surge as Cinco Elegias, poemas densos, escritos entre 1937 e 1939, nos quais a pesquisa metafísica dos primeiros tempos foi canalizada para representar a naturalidade do amor, a inquietação relacionada à experiência corrente, o mistério traduzido em familiaridade e temperado com uma espécie de humor sem agressão – traços que nunca mais sairiam de suas receitas. É notável o sentido experimental da linguagem, que o levou a jogar com os aspectos visuais, tão em moda atualmente. Poemas, Sonetos e Baladas (1946) talvez seja o momento de síntese da sua capacidade e ritmos. Nele encontramos Vinicius inteiro, o de antes e o de depois; o que apela para a transcendência e o que realiza o verso correndo os dedos pelo violão. Numa tarde de domingo ele nos leu inteiro o livro ainda inédito: e aliás teria sido preciso vê-lo naquele tempo, na flor dos vinte e tantos anos ou dos primeiros trintas, corretamente vestido de escuro, mas sem sombra de convencionalismo; extremamente polido e sereno, com uma boa vontade fraterna e universal, não se espantando de nada e fazendo da sua poesia um espanto permanente com tudo. Era capaz de passar a noite devagar, com o copo de uísque perto da cadeira, o violão no colo, olhos postos nalguma coisa distante, cantando com voz curta e abafada, escorregando para bate-papo, inserindo comentários, voltando ao canContinente outubro 2003

As muito feias que me perdoem

Mas beleza é fundamental. É preciso Que haja coisa de flor em tudo isso Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso Que tudo seja belo. É preciso que súbito Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços Alguma coisa além da carne: que se os toque Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras É como um rio sem pontes. Indispensável Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida A mulher se alteie em cálice, e que seus seios Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral


Ilustração: Reprodução

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!). Preferíveis sem dúvida os pescoços longos De forma que a cabeça dê por vezes a impressão De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior A 37 graus centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos Ao abri-los ela não mais estará presente Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber O fel da dúvida. Oh, sobretudo Que ele não perca nunca, não importa em que mundo Não importa em que circunstâncias, a sua infinitiva volubilidade De pássaro, e que acariciada no fundo de si mesma Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre O impossível perfume; e destile sempre O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

CAPA 23 »

to. Vinham canções inglesas, modinhas antigas, valsas cariocas, um poema de Bilac cuja melodia só ele conhecia, porque seu pai lhe ensinava, poemas seus que já então punha em música, porque a sua poesia sempre resvalou para ela. É o caso da Balada a Pedro Nava, típica do seu processo de tomar um pensamento de amizade ou ternura, uma anedota, uma alusão ao dia-a-dia, uma complacência consigo mesmo – e de repente abrir as asas. Por isso, o Vinicius de agora parece conseqüente e necessário, como se toda a sua vida e a sua poesia tivessem confluído no bom caminho. Para os moços, ele é de certo modo incompreensível sem a bossa-nova, Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda; incompreensível sem os festivais da canção e essa vasta musicalização da poesia, que é uma das faces que ela mostra ao nosso tempo, transformando os poetas em letristas e cantores. Mas, para os mais velhos, ele é o Vinicius de sempre, apascentando a sua constelação fraternal de recursos e gêneros – crônicas de jornal, conversa, notícia, confissão, indignação política, discurso de amizade, declaração sempre pronta de amor. Um dos seus feitos foi trazer para a casa da poesia, dando-lhe um arranjo próprio, essa matéria que anda dispersa noutras formas – na prosa de Rubem Braga, nalgum lamento de Orlando Silva, no gesto simples de cada um. Com ar de quem conversa ocasionalmente (como já dedilhava o violão em nosso tempo de rapazes), Vinicius vai transformando tudo em estilo, num espaço poético vasto e arejado. E criando alguns dos poemas mais belos e necessários do nosso tempo. Infância na praia, familiaridade com as coisas do mar, geografia fantástica do corpo feminino dissolvida na sua história pessoal, procura do sentido da vida, infinita paciência e compreensão do outro, experiência com a palavra no limite constante em que ela parece dissolver-se noutra coisa, milagrosa capacidade de achados, malabarismo que na verdade é encarnação do necessário, superação de qualquer preconceito que separe verso e prosa. Vinicius diverso e sempre o mesmo. • Antonio Candido é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Continente outubro 2003


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24 CAPA Foto: Reprodução

Violonista recifense, que participou do surgimento da Bossa-Nova e tocou no célebre concerto do Carnegie Hall, tem duas músicas inéditas com letras de Vinicius de Moraes Normando, com o violão, ladeado por Chico Feitosa e Tom Jobim (à direita)

Mariana Oliveira

Um pernambucano na onda da Bossa de Janeiro, fins dos anos 50: as festas nos apartamentos de Copacabana, um cantinho, um R ioviolão. Surgia a Bossa-Nova. Um grupo de jovens começava a dar os primeiros acordes

daquele ritmo que, pouco tempo depois, seria referência mundial da música brasileira. Faziam parte da turma cariocas da gema, como Antônio Carlos Jobim, Carlinhos Lyra, Vinicius de Moraes, Nara leão, Ronaldo Bôscoli, o baiano João Gilberto e Normando, um pernambucano pouco conhecido, que participou ativamente do despertar daquela nova onda. Moleque do bairro da Madalena, no Recife, começou cantando na Rádio Jornal do Commercio, mas logo seguiu para o Rio de Janeiro, prometendo à mãe que não cantaria mais em rádios. No curso noturno do Colégio Mallet Soares, Normando Santos conheceu Roberto Menescal que o levou à casa da Nara Leão, onde Bôscoli e Chico Feitosa já se iniciavam na música. A partir daí, Normando ingressou na turma e conheceu os “papas” Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto. Os encontros nos apartamentos dos amigos eram comuns. Durante o início da década de 60, Normando costumava passar as tardes na casa de Vinicius, no bairro das Laranjeiras. O programa era sempre o mesmo: tocar, cantar e compor. “Essa foi a época mais feliz da minha vida. Nós éramos um grupo unido com uma mesma meta, fazer música por prazer, para nós. Depois, o clube privado saiu para o grande público e explodiu”, conta. Para o poeta o programa musical era regado a scotch, enquanto o pernambucano não passava do guaraná. “Eu mostrava a melodia e ele resolvia desenvolver”, recorda Normando. A parceria foi concretizada em duas músicas inéditas. Em uma dessas reuniões, Vinicius fez as letras de Aconteceu e Lamento do Adeus. “O motivo pelo qual essas duas canções ainda estão inéditas é que eu nunca quis utilizar o nome do Vinicius para me promover. Somente depois da morte dele é que resolvi pensar em gravá-las”, explica. Segundo ele, apesar de ter mais idade que a maioria dos integrantes da turma da Bossa-Nova, o poeta tinha o mesmo entusiasmo e disposição. E sua participação deu mais respaldo ao movimento, afinal ele já era um escritor consagrado. Enquanto o novo ritmo dava seus primeiros passos, Normando foi se tornando um dos professores de violão mais procurados na cidade, junto com Carlinhos Lyra e Roberto Menescal. Na época, todo mundo queria aprender a tocar violão. Até as mães incentivavam as filhas. Normando tinha cerca de 50 alunos, alguns indicados por Tom e Vinicius. Um dos seus alunos ilustres foi o Continente outubro 2003


Na ilustração, as duas músicas inéditas de Vinicius de Moraes e Normando

produtor Nelson Motta. “Recomendado por Ronaldo, Normando Santos foi um professor paciente, me ensinando semanal e penosamente os primeiros acordes e as músicas de João Gilberto e da Bossa-Nova.”, escreve Nelson Motta no livro Noites Tropicais. Para Normando, foi o show realizado na Faculdade de Arquitetura, em 1960, que chamou a atenção da mídia para a música que os bossanovistas estavam produzindo. Os dois mil lugares do anfiteatro estavam lotados. João Gilberto lançava seu segundo LP O Amor, o Sorriso e a Flor e o pernambucano subiu ao palco para cantar a composição Jura de Pombo, primeira parceria de Menescal e Bôscoli. Em novembro de 1962, aconteceu o 1º Festival de BossaNova, no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Normando estava lá e cantou. “Foi uma coisa muito boa e muito ruim”, define. A nova música brasileira apareceu para o mundo naquele momento, mas a organização não foi satisfatória. Como estava sendo feita a gravação de um disco, havia muitos microfones e aparelhos de som o que, de acordo com Normando, atrapalhou um pouco a atuação dos brasileiros. A parafernália eletrônica não se adequava muito ao modo intimista, o cantar baixinho, da Bossa. Nesse período, João Gilberto já demonstrava suas habituais exigências. Ele foi bastante assediado por empresários americanos que queriam marcar shows, gravar discos, enfim... “Quando aqueles empresários americanos chegavam bebendo e fumando charutos para falar com o João, ele os expulsava.

Mandava apagar o cigarro para poder falar com ele”, conta , lembrando que o baiano tinha aversão ao fumo e à bebida. Para ele, nem bombom com álcool. De volta ao Brasil, Normando gravou um disco pela Odeon e partiu para Paris em 1964 com o intuito de substituir Baden Powell nos shows do primeiro bar brasileiro na capital francesa A Feijoada. O cantor e compositor, denominado Sinatra da Bossa-Nova, terminou ficando por lá até hoje. “Aprendi a viver sem gravação, sempre foi de show”, revela, destacando que difundiu a música brasileira por toda Europa. Os dois discos que fez lá tiveram problemas. Era complicado, no início dos anos 70, encontrar músicos que soubessem entrar no ritmo da Bossa. “No primeiro disco que fui gravar colocaram um baterista de jazz para me acompanhar. Enquanto eu fazia “chachacha”, ele fazia jazz “chichichi”, lembra. O disco terminou ficando pronto, mas não houve divulgação. “ Minha experiência de disco é nula”, considera. Hoje em dia, quando vem ao Brasil, Normando costuma ligar para seus velhos amigos. “Quando todo mundo virou profissional, foi-se o encanto”, lamenta. O grupo foi desfeito e o que resta é uma grande saudade. Mas o pernambucano tem planos de gravar um disco no Brasil e organizar uma temporada de shows, começando pelo Recife, provavelmente em 2004. “Eu queria deixar alguma coisa, uma passagem. Afinal, sou o único representante de Pernambuco na Bossa-Nova”, comenta. • Marina Oliveira é jornalista.

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26 LITERATURA

Em outubro de 1913, o escritor e jornalista norte-americano Ambrose Bierce desapareceu no deserto do México Heloisa Seixas

O terror dos biógrafos

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le nunca possuiu um cavalo, nem uma carruagem ou carro. Nunca foi dono da casa onde morava. Vivia de aluguel. Era um homem móvel. Tão móvel que, em outubro de 1913 – há 90 anos –, montou num cavalo alugado e se embrenhou pelo deserto do México atrás do revolucionário Pancho Villa. Tinha então 71 anos. Alcoólatra, doente, amargo e odiado por muita gente, escreveu uma carta para a sobrinha Lora e, com sua ironia habitual, comentou que ser um gringo no México revolucionário era “a mesma coisa que eutanásia.” E nunca mais foi visto. Assim como muitos personagens de suas histórias de terror, desapareceu sem deixar rastro. Seu nome era Ambrose Bierce, escritor e jornalista que foi um dos mais polêmicos cidadãos americanos de todos os tempos.

Nascimento, vida, morte - tudo nele é controverso. Em vida, foi a língua mais ferina da imprensa dos Estados Unidos, pior até do que a de seu sucessor mais famoso, H. L. Mencken. E depois de morto continuou suscitando discussões, já que há nove décadas surgem teorias as mais diversas – nenhuma comprovada – sobre a causa e as circunstâncias de seu sumiço. Mais recentemente, veio a polêmica sobre o local de seu nascimento: no ano passado, quando já havia sido criada uma coContinente outubro 2003

missão para mandar erguer no Condado de Meigs, em Ohio, um monumento em sua homenagem, surgiu a teoria de que ele nascera em Akron. Os planos chegaram a ser suspensos, mas no fim a situação foi contornada e o projeto original mantido. Quer dizer, até segunda ordem – porque, quando se trata Bierce, nunca se sabe. Além da ironia e do deboche, uma das marcas de Bierce era não fazer nunca o esperado. Ao escrever o Dicionário do Diabo para a revista Wasp, de São Francisco (só muito depois sairia completo, em livro), apresentando o mundo através de verbetes demolidores e cínicos, Bierce não começou pela letra A e sim pela letra P. O inesperado surge também em muitos de seus contos de terror, quando ele parece fazer uma auto-sabotagem, inserindo comentários irônicos num momento de tensão máxima e quebrando por completo o clima de suspense, como se quisesse debochar do leitor. Também na vida pessoal era um homem instável, tão multifacetado que pode ser considerado o terror dos biógrafos. Louro, alto e bonitão, tinha uma fala mansa, envolvente, mas quando o interlocutor menos esperava, ele começava a destilar seu veneno. Dizem que quanto mais furioso ficava, mais se mostrava doce. Três pesquisadores americanos que, tendo convivido com Bierce, escreveram sobre ele –


Foto: Corbis

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28 LITERATURA Foto: Reprodução

Outra de suas características marcantes era a enorme capacidade de fazer inimigos. Desancava todo mundo, não poupando nem escritores conceituados, como Oscar Wilde, Henry James e Jack London Gregory Peck e Jane Fonda em cena do filme Gringo Viejo, baseado na vida de Bierce

Adolphe de Castro, George Sterling e Walter Neale –, traçaram perfis tão díspares que não pareciam estar falando da mesma pessoa. Outra de suas características marcantes era a enorme capacidade de fazer inimigos. Desancava todo mundo, não poupando nem escritores conceituados, como Oscar Wilde, Henry James e Jack London. Mas talvez seu maior desafeto fosse ele mesmo: alcoólatra e asmático, não se tratava e parecia empenhado em maltratar o próprio corpo até o limite. Além das inúmeras batalhas da Guerra Civil americana, em que lutou como soldado – sendo ferido gravemente na cabeça em uma delas –, Bierce vivia procurando aventuras perigosas, como cruzar o território dos índios Sioux para fazer um mapeamento do Velho Oeste americano ou tentar a sorte numa mina de ouro. Em família, teve uma vida cercada de tragédias. Foi infeliz no casamento e seus dois filhos homens (tinha também uma filha) morreram jovens. Um deles, Day Bierce, aos 17 anos se envolveu em um triângulo amoroso e, depois de assassinar o rival, se matou (ou foi morto, há controvérsias). O outro, Leigh Bierce, morreu aos 26 anos, de pneumonia, depois de se expor ao frio durante uma bebedeira. Como o pai, era alcoólatra. Embora tenha escrito muita ficção, Ambrose Bierce foi acima de tudo um jornalista, tendo passado quase a vida toda trabalhando para William Randolph Hearst (o inspirador de Cidadão Kane) – a quem detestava. E foi como jornalista que ele seguiu para o México em 1913, para nunca mais ser visto. Embora oficialmente se dissesse interessado em cobrir a revolução – na qual veria semelhanças com a Guerra Civil americana –, muitos estudiosos acham que Continente outubro 2003

o que ele queria mesmo era morrer. Por trás do misantropo, havia uma alma desiludida com a humanidade, cuja amargura (seu apelido era the bitter Bierce, o amargo Bierce) só fizera crescer com a velhice. As versões sobre seu desaparecimento são inúmeras, indo desde a morte por pneumonia até o fuzilamento por ordens pessoais de Pancho Villa, sob a alegação de que Bierce “bebia tequila demais”. Mas, talvez a mais curiosa (ao menos para nós) seja aquela segundo a qual Bierce não foi para o México, e sim, para a América do Sul, onde acabou prisioneiro de uma tribo de índios brasileiros. Foram 90 anos de versões – todas meramente especulativas. Por tudo isso, a lenda se tornou mais forte do que o homem e sua obra. Bierce foi um dos mais importantes expoentes do jornalismo americano e também um grande autor de ficção, mas nada do que escreveu supera sua própria e enigmática vida. Em inúmeras de suas histórias de terror, ele descrevia um homem caminhando por um lugar deserto, que de repente desaparecia como se tragado por outra dimensão e cujo corpo jamais era encontrado. Um escritor com tendências auto-destrutivas pode passar a vida escrevendo sobre suicídio e, por fim, se matar. Mas como é possível alguém, depois de morto, fazer desaparecer o próprio corpo? Voluntária ou involuntariamente, esta foi a última ironia de Bierce, sua cartada final contra a humanidade que desprezava. Ambrose Gwinett Bierce, esse homem que ninguém sabe ao certo onde nasceu nem onde morreu, foi seu próprio e maior personagem. • Heloisa Seixas, escritora e jornalista, organizou e traduziu o livro Visões da Noite, com contos de terror de Ambrose Bierce.

Alguns verbetes do Dicionário do Diabo, que começou pela letra P: Paciência – Forma menor de desespero, disfarçada como virtude. Panteísmo – A doutrina segundo a qual tudo é Deus, em contradição à doutrina de que Deus é tudo. Pantomima – Uma peça na qual a história é contada sem violentar a linguagem. É a menos desagradável das formas de ação dramática. Paz – No cenário internacional, o período de conversa fiada entre duas guerras. Piano – Móvel de sala feito para subjugar as visitas inocentes. É operado pela pressão das teclas da máquina e também pela pressão sobre o espírito da audiência. Pintura – A arte de proteger as superfícies lisas da ação do tempo e também de expô-las aos críticos.


Conhecimento 29 »

ANÚNCIO


» 30 NOTAS

Mixagem poética Livro e disco condensam a poesia-síntese de Wilson Araújo

Signos Involuntários – Wilson Araújo de Sousa. Edições Língua de Poeta, 2003, 360 páginas – Livro: R$ 20,00. Disco: R$ 10,00

No princípio, era voz e corpo. Era assim a poesia ancestral: performance de oralidade e expressão corporal. A letra veio depois. Veio depois com verbo, voz e visual. Pois é assim, primordial e contemporânea, a poesia de Wilson Araújo de Sousa (WAS), que acaba de lançar livro e disco. Cheia de “signos involuntários”, deliberadamente mixados no dadaísmo, concretismo, poesia práxis, poema-piada, MPB e cinema, é uma dicção poética satírica e demolidora, feita de intertexto, liberdade e charme sonoro, como assim quis o autor, que se inspirou no Tropicalismo, especificamente no poema Acrilírico, de Caetano Veloso, para começar. Era 1969. Daí em diante, era ler poesia, sobretudo das vanguardas. O amor pelo cinema, cultivado desde a adolescência, levara-o a interessar-se pela literatura norte-americana, depois a brasileira. Porém, o que realmente lhe abriu as portas da criação literária foi a música. Assim, partindo da cultura visual do cinema, e embebedando-se de sonoridades, a síntese poética de Wilson Araújo é original e extremamente contemporânea, com incursões num plano de expressão “verbi-voco-visual” (palavrasom-figura), e, mais do que isso, com poetização de temas banais, graças à atitude visceral que transforma palavras em arte. O que costura toda essa síntese é a presença, quase onipotente, da paródia, do trocadilho, do non sense, demolidores de repertórios convencionais. O eu antilírico, ácido e chistoso faz a crítica de costumes, sem abdicar do humor. (Maria Alice Amorim)

Stigma – Uma Saga

No Reino da Poesia

Com a expulsão dos holandeses da Companhia das Índias Ocidentais de Pernambuco, 23 judeus sefarditas deixaram o Recife e rumaram para a então Nova Amsterdã, onde fundaram a hoje poderosa colônia judaica de Nova York. No romance Stigma – Saga por um Mundo Novo, Valdívia Beauchamp traça um painel, através dos séculos, de uma diáspora particular, em que, numa estrutura engenhosa, onde o tempo avança e recua, ficção e história, passado e presente, pesquisa e fantasia, palavra e imagem se embaralham compondo, ao final, um delicado equilíbrio. O fio condutor é Sarah, uma jornalista filha de pai holandês e mãe brasileira, que empreende uma viagem em busca do tempo perdido de sua ancestralidade.

Leandro Gomes de Barros é considerado “o pai do cordel brasileiro”. De fins do século 19 até 1918, quando morreu no Recife, o poeta paraibano escreveu mais de 1.000 folhetos, onde o amor, o ódio, o medo, o desejo e o imaginário popular eram servidos na saborosa linguagem, em que não faltaram humor, dramaticidade e suspense. No Reino da Poesia Nordestina é um antologia com dezenas dos melhores “romances” de Leandro, organizada por Irani Medeiros, poeta e pesquisador. É um mergulho num mundo encantado, onde pulsam personagens tão díspares quanto Lampião e Branca de Neve, o Diabo, o Boi Misterioso, donzelas, cavaleiros, flagelados da seca, trapaceiros e santos. Obra de referência e para deleite.

Stigma – Saga por um Mundo Novo – Valdívia Beauchamp. Edições Bagaço, 2003, 200 páginas – R$ 25,00

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Leandro Gomes de Barros – No Reino da Poesia Sertaneja – Organizador: Irani Medeiros. Editora Universitária – UFPB, 2002, 480 páginas, R$ 30,00


NOTAS 31 Trovas Inventivas

A Melhor Cidade

Atrás do Silêncio

No livro Invenção, Augusto de Campos reúne quatro italianos do século 12 ao 14. Todos quatro excepcionais: os trovadores Raimbaut d’Aurenga e Anaut Daniel; e os poetas Guido Cavalcanti e Dante Alighieri. Anaut, discípulo de Raimbaut, foi chamado por Dante de “il miglior fabbro del parlar materno”. Dante e Cavalcanti, amigos, criaram o “doce estilo novo”. A tradução de Augusto é impecável, seus comentários precisos e a edição traz belas reproduções de iluminuras e quadros, além da porta trabalhada em bronze da Igreja de San Zeno, de Verona, o que dá à capa o clima do livro. Um único senão: o revisor deixou escapar alguns erros de digitação.

As cidades crescem continuamente, os problemas a serem resolvidos estão nos espaços para moradia, circulação, trabalho e lazer, certo? Certo. E para superá-los temos que recorrer aos especialistas nestas áreas, certo? Errado. Para o geógrafo e sociólogo Marcelo Lopes de Souza, em ABC do Desenvolvimento Urbano, a questão exige a presença dos especialistas, sim, mas desde que disponibilizem seu saber para uma audiência mais ampla, ou seja, aqueles que moram e vivem a cidade no seu dia-adia. Para ele, não basta modernizar o espaço urbano, mas, efetivamente, conquistar melhor qualidade de vida para um número cada vez maior de pessoas.

É do silêncio que surge o som, a palavra. Mas pode o silêncio ser expresso por palavras? O que é o silêncio? Esta a pergunta de onde parte o ensaísta Santiago Kovadloff em O Silêncio Primordial. Auscultando a matemática, a música, a pintura, a poesia, a psicanálise, a fé religiosa e o amor, ele verifica como cada uma dessas atividades experimenta e exprime o silêncio. E conclui que a fragmentação, a tentativa de segmentação e hierarquização epistemológica do saber perdem a razão, quando o que está em estudo é a aproximação ao silêncio. Livro para os que gostam de filosofia ou, simplesmente, da poesia das idéias.

Invenção, de Augusto de Campos. Editora ARX. R$ 35,00. 280 páginas..

ABC do Desenvolvimento Urbano, de Marcelo Lopes de Souza. Bertrand Brasil. R$ 25,00. 192 páginas

O Silêncio Primordial, de Santiago Kovadloff. José Olympio. R$ 32,00. 192 páginas.

O Atual e o Secular

Freud Eterno

Kafka Novo

O escritor português José Viale Moutinho está lançando dois livros no Brasil: Cenas da Vida de um Minotauro e Os Melhores Contos Portugueses do Século XIX. No primeiro ele reúne textos curtos e crus sobre um período marcante da recente história lusa, a ditadura salazarista, de 1926 a 1974. O livro ganhou o Grande Prêmio do Conto Camilo Castelo Branco, da Associação Portuguesa de Escritores, em 2000. O segundo traz obras de mestres como Alexandre Herculano, Camilo, Ramalho Ortigão, Júlio Dinis, Teófilo Braga e Eça de Queiroz, entre outros. Um destaque a parte é a edição dos livros, muito bem cuidada.

As feministas o acusaram de objetificar as mulheres, os ativistas o tacharam de símbolo da opressão patriarcal. Em tempos de Prosac e terapia cognitiva, quem ainda precisa de Sigmund Freud? Entretanto, lembra o psicólogo Michael Kahn, suas teorias e conceitos mudaram totalmente a maneira como nos vemos, como vemos os outros e a nossa própria mente. Kahn concorda que é fácil – e muitas vezes válido – contestar o velho sábio de Viena, até porque suas técnicas continuam em processo de aperfeiçoamento. E a partir de suas próprias experiências, conclui que Freud ainda tem boas ferramentas para ajudar o ser humano no século 21.

Este livro já foi publicado em português. Mas nesta edição é como se fosse um novo livro. Amerika, primeiro romance de Kafka, ganhou seu título original O Desaparecido. Foi retraduzido por Susana Kampff Lages direto da mais completa edição crítica alemã, integrando fragmentos que não constavam das edições anteriores, inclusive os riscados pelo próprio Kafka e os suprimidos por seu amigo e testamenteiro Max Brod. Ela também assina artigo sobre o peculiar estilo kafkiano e as dificuldades de sua tradução. Para completar, a edição é muito boa, reproduzindo, ainda, manuscritos, desenhos e fotos do escritor tcheco.

Cenas da Vida de um Minotauro e Os Melhores Contos Portugueses do Século XIX, de José Viale Moutinho. Landy Editora. Respectivamente: R$ 25,00. 128 páginas. R$ 40,00. 348 páginas.

Freud Básico, de Michael Kahn. Civilização Brasileira. R$ 30,00. 240 páginas.

O Desaparecido ou Amerika, de Franz Kafka. Editora 34. R$ 43,00. 304 páginas. Continente outubro 2003


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32 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Cultura zero O ano se foi e sequer copiar a Loteria Nacional Britânica o MinC conseguiu

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esde que André Malraux foi nomeado por De Gaulle ministro de Assuntos Culturais da França (período de 1959 a 1969), discute-se sobre o papel do Estado e da iniciativa privada na cultura de

um país. Hoje, de um lado você tem um museu alemão que demite o funcionário por conseguir patrocínio privado para colocar a logomarca de uma cadeia de supermercados, por exemplo, no material de divulgação de um evento, como se impusesse o princípio de que cultura é coisa mais complexa e séria do que promoção de sabão em pó. Do outro lado, você tem uma famosa orquestra, a Sinfônica de Chicago, que se vê impelida por seus patrocinadores privados a ampliar o seu público, sob pena de não mais ter como pagar as suas contas. Estamos diante de duas formas de política e de gestão dos recursos destinados à cultura. Qual dos dois modelos prevalece no Brasil? Aquele que usa os recursos do Estado para elevar a sensibilidade de um povo (e a palavra tem aqui o sentido que lhe deu o filósofo Pedro Botelho, de “inteligência dos sentidos”), ou aquele que usa os recursos de mercado, não para sensibilizar superiormente ninguém, mas para estimular o impulso de compra dos usuários Continente outubro 2003

ou consumidores? Com absoluta certeza, o segundo, patrono da indústria cultural e de sua cria hermafrodita, a cultura de massa, isto é, o kitsch. Mesmo as empresas estatais, que se orgulham de patrocinar as expressões artísticas de qualidade, chovem no molhado, aplicando os impostos do povo em artistas e grupos de valor reconhecido, que não precisam deles, pois já têm uma fila de empresários particulares na porta, esperando um aceno. Dizem os antimecenas das estatais que elas precisam de mais visibilidade, de mais retorno de seus investimentos. Seus? Para resumir, prevalece, no País, o modelo de Mercúrio, o deus da retórica, de mercado e dos ladrões. Adere essa conceituação simplista do Lello Universal. Em agosto, o SENAC realizou em São Paulo um seminário internacional sobre política e gestão culturais. Como sempre, nesses encontros, deles pouco pinga de substancial para a imprensa e o que vazou pela Internet foram as intenções (ótimas) que motivaram o evento. Pelo que depreendi, são isoladas e intermitentes as tentativas, no país, de se criarem quadros profissionais para a definição de estratégias e para gerenciamento das ações culturais. Aqui mesmo, neste espaço, já me queixei de que só tenha encontrado no gerenciamento cultural dos governos, improvisadores, sobras das indicações políticas,


MARCO ZERO 33

depois do esquartejamento do poder. Isso no comando dos órgãos que devem, estatutariamente, distribuir as gorjetas orçamentárias (0,2% este ano, no plano federal), destinadas às manifestações culturais. Essa praga é nacional. Se os pobres diabos nomeados (como já fui um dia) para chefiar entidades oficiais de cultura se dessem conta de que funcionam como meros tampões nos organogramas do poder, certamente recusariam assumir essa tópica e “higiênica” função. Pelo fato de ser um conceito elástico, cultura virou cargo sem função definida, uma figura de linguagem que, espichada ou encolhida, cabe em todos os discursos, talvez desde que Cícero o aplicou, pela primeira vez, na acepção intelectual. A especialização técnica em gerenciamento de recursos destinados às atividades culturais também me preocupou na década de oitenta, e cheguei à presunção de elaborar dois currículos de status médio, um deles para formação de técnico sênior e outro para técnico júnior, respectivamente para elaborar projetos realistas e executá-los com perfeição. Não sei em que estágio da matéria orgânica esse projeto hoje se encontra. O SENAC, na divulgação de seu Seminário, revelou a intenção de patrocinar cursos de extensão e de mestrado na área cultural. O poder público vem se contentando, até agora, em mandar jovens afilhados de políticos fazerem turismo cultural na Europa às custas do contribuinte. Quanto à definição de uma política cultural para o país, diferente da atual, que segue o modelo americano de incentivos fiscais e deixa a seleção dos projetos ao mercado, quando este não sabe mais que vender o seu sabão, apesar da arrogância de seus setores de marketing, discutiu-se no Seminário a necessi-

dade de que aquela definição fosse precedida de levantamentos estatísticos e pesquisas sobre a realidade cultural do país. Eu sou gato escaldado e sei que eles não serão pagos pelo mundo oficial, que ouve mais uns atravessadores, chamados cabos eleitorais, do que os especialistas, pois comandei projetos de cadastro cultural que foram aprovados em todas as instâncias burocráticas do Governo Federal (década de oitenta), mas os cofres não se abriram. Se o Ministério da Cultura quiser acabar sua ênfase na política dos eventos (a não ser para formação de público) e mergulhar fundo na promoção da infra-estrutura cultural do país, basta orientar-se pela pesquisa do IBGE sobre os 5.506 municípios brasileiros: 73% dos que têm até 20.000 hbs. sem teatros, museus e cinemas. A ausência de cinema é constatada em 4.455 cidades, abrindo espaço para as videolocadoras. De um modo geral, 82% não têm museus, 84,5% não têm teatro e 92% não têm cinemas. Quanto a bibliotecas públicas, não existem em mais de 20% das cidades. Reconheço que são dados brutos, difíceis de trabalhar, mas foram divulgados em abril de 2001, e houve tempo demais para a equipe cultural de Lula tê-los levado em consideração para iniciar, este ano, um trabalho sério de inclusão cultural no Brasil. O ano administrativo do MinC praticamente já acabou. Foi um ano de cultura zero. Perguntar não ofende: Cadê a Loteria Cultural, anunciada por Gil? • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.

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DANÇA

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movimento é sutil e leve. A música marca um ritmo desenfreado. Um ruído anuncia a fissura. Aos poucos, as imensas placas ganham vida. E do alto vêm desestabilizar a força do homem só, que dança em espirais e diagonais numa liberdade e beleza desconcertantes. Diante desse terremoto, primeiro no corpo, em seguida no espaço, a imobilidade e o silêncio são a única resposta possível. O homem cede então, face à arquitetura, como se um fosse a extensão do outro. Bailarino e cenário estabelecem assim uma relação subterrânea que aflora tanto na transpiração de um, agora estático e meditativo, como na destruição do outro, ameaçador e inevitável. Cada um num pulso vital emocionante, que toma o tempo necessário para ecoar na platéia, em uma das cenas mais emblemáticas e belas do espetáculo Silent Collisions. São essas colisões silenciosas – de um poder visual incrível – que o coreógrafo Frédéric Flamand procura, tanto nessa última criação artística quanto no festival que ele dirige. Pela primeira vez, a Bienal de Veneza abre espaço a um evento dedicado exclusivamente à dança, arte até então presente de maneira esporádica na mais célebre das mostras de artes visuais. Flamand aproveitou a ocasião não somente para apresentar uma nova peça, mas também para discorrer, em uma série de espetáculos de outras companhias, o tema que se tornou sua especialidade nos últimos anos: as relações entre corpo e cidade. Body-C City, título do evento, mostrou um panorama relativamente amplo das últimas tendências na dança contemporânea, expressão urbana por excelência e, sem dúvida, termômetro mais que adequado para nos falar do corpo, cidade, redes de informação e arquitetura. Ao todo, grupos de Amsterdã, Paris, Johanesburgo, Nova York e outras metrópoles se apresentaram em diferentes teatros e espaços da não-ccidade que é Veneza, símbolo de uma urbanização utópica, do homem que quer tudo dominar e ao mesmo tempo que cria, destrói. Uma utopia presente no espetáculo do belga Flamand, que trabalha em Charleroi: Silent Collisions, inspira-sse no clássico Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Cada cena representa um tipo de cidade que o autor trata no livro. “O mais difícil é representar tudo isso pelo corpo”, confessa Flamand, que trabalhou para essa criação em conjunto com o arquiteto californiano Thom Mayne, que concebeu a estrutura móvel, obra à parte que cria diferentes espaços no palco. “O livro de Calvino é mítico e visionário”, diz Flamand, “a beleza dessa literatura nos levou a deixar um pouco de lado o homem atomizado e o homem-m máquina, presentes em outras peças minhas. Calvino nos fala da cidade utópica, mas também da cidade infernal, a duplicidade é muito presente na obra dele”. À frente da companhia Charleroi/Danses desde 1991 e conhecido dos brasileiros quando diriga o emblemático grupo Plan K, Flamand já tratou das relações entre dança e arquitetura em diversos outros espetáculos, como Metapolis (em parceria com Zaha Hadid) e Body/ Work/ Leisure, com o arquiteto Jean Nouvel. Nessas peças precedentes o ho-


Foto: Ravi Deepress

Quando o corpo se faz cidade O coreógrafo belga Frédéric Flamand, diretor do espetáculo Silent Collisions e do Festival Body City, liga homem e arquitetura Rodrigo Albea, de Veneza

Cena do espetáculo Nemesis, de Wayne McGregor, pela Random Dance Company, de Londres


Foto: Pino Pipitone

Silent Collisions, de Frédéric Flamand

mem cibernético, quase um simples pixel no oceano de imagens, era extremamente presente (Metapolis), ou simplesmente quase incapaz de se mover e respirar face à grandiosidade arquitetônica (Body/ Work/ Leisure), deixando sempre uma certa “humanidade” de lado. Como se o homem fosse uma prótese ou extensão das máquinas e redes que criamos, como sinaliza o antropólogo David Le Breton no seu livro L’adieu au corps (Adeus ao corpo): “O corpo tornou-se para muitos uma representação provisória, um brinquedo eletrônico, espaço ideal para a ilusão dos ‘efeitos especiais”. Nesse trabalho para o festival Body-City, criação que estará circulando pela Europa nesse semestre, fica claro que diante do sonho de Calvino a linguagem coreográfica de Flamand ganhou uma espessura mais carnal. Como um grande mapa que se abre ao olhar espectador, livre para desfilar e traçar seus trajetos sensíveis, Silent Collisions nos fala desde as relações primárias como as dicotomias entre homem e mulher, indivíduo e grupo, até temas mais amplos de uma sociedade/cidade cada vez mais dominada pela comercialização, na qual o corpo é bombardeado pela oferta de mercadorias, tornando-se inclusive uma delas. À primeira cena, lírica, encontro feito de passos leves e controlados, entre uma mulher enrolada num tecido e um homem que vai desnudá-la, sucedem-se cenas que combinam essa ambivalência do corpo, da qual fala o filósofo francês Michel Bernard na obra-referência Le Corps : “o corpo não é somente a ‘marca do possível’, como escreveu Paul Valéry, mas, também, e simultaneamente, a marca do inevitável”. De maneira geral, esses aspectos são decantados nas outras obras apresentadas durante o festival. De Johanesburgo, a coreógrafa Robyn Orlin nos fala de Aids. “Na África do Sul, toda uma geração será dizimada pela Aids. A coisa pior que se pode fazer é ficar calado”, diz a artista no “guia turístico” lançado durante o festival, reunindo todas as cidades e artistas representados. Wayne McGregor, da Random Dance Company, de Londres, explica que a peça Nemesis nasceu a partir de uma visita a um clube londrino, hoje demolido, e do contraste entre a decadência externa do palácio e os túneis subterrâneos do local. O resultado é uma espécie de apocalipse futuro, com corpos novos que se formam com figurinos entre o universo dos insetos e dos computadores. Um retrato do homem cibernético. Próteses que se opõem, por exemplo, aos corpos nus da coreografia de John Jasperse (Giant Empty). “A nudez faz parte de uma única cena e o espetáculo não pretende se concentrar nesse aspecto”, o artista explica. “Pretendo dizer que um corpo nu, às vezes, pode ter o mesmo valor que garrafa, como se o corpo pudesse ter um sentido erótico, medical, mas também puramente estético”. A cada artista, portanto, um corpo,uma arquitetura, uma cidade. Frédéric Flamand nos fala dessas conexões com paixão e vigor intelectual: “A dança aqui representada se articula em torno do contemporâneo, da atualidade. Hoje a cidade já invadiu o campo, através dos meios de comunicação. A cidade invade tudo. É nesse sentido que ela ganha terreno”. A dança, pois, não evoca mais uma certa capacidade de nos conectar com o sagrado: “Nesse festival trato sobretudo do mundo


Foto: Maria Anguera De Sojo

A nudez faz parte de uma única cena e o espetáculo não pretende se concentrar nesse aspecto. Um corpo nu, às vezes, pode ter o mesmo valor que garrafa, como se o corpo pudesse ter um sentido erótico, medical, mas também puramente estético. A cada artista, portanto, um corpo, uma arquitetura, uma cidade

Giant Empty, de John Jasperse

Foto: Pino Pipitone

Cena de Sillent Collisions

de hoje, com uma grande inquietude e desconfiança quanto a um certo purismo e quanto às repostas prontas. Há uma grande insatisfação hoje quanto ao sagrado, que é também uma bela imagem enganadora. Vivemos num mundo no qual o corpo é cada vez mais representado por imagens. Comunicamos cada vez menos, vivemos no mundo do self. Há cada vez mais pessoas solitárias nas grandes cidades.” Ou seja, a “pureza” do corpo não passa hoje de uma ilusão que tentaram nos vender: “O corpo não é mais puro, essa é uma idéia romântica. Mesmo o corpo do bailarino não é puro, ele trabalha muito para chegar a uma expressão. O corpo é cada vez mais entrecortado, trespassado de tecnologia, cada vez mais miniaturizada. O sonho do nosso século é integrar o corpo e a máquina de maneira perfeita. Isso é fabuloso, também. Não há somente um lado negativo. Hoje é possível fazer operações cirúrgicas à distância, a seis mil quilômetros de distância! O corpo tornou-se uma prótese, e a grande cidade do século 21 é a Internet. Tudo passa pela Internet. Há um grande jogo de representação no mundo de hoje. Tudo é jogo, nós lançamos garrafas ao mar sem risco algum, pois não há mais comunicação real”. • Rodrigo Albea é jornalista e mestre em Estéticas da Dança Contemporânea pela Universidade de Paris 8. Continente outubro 2003


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COMPORTAMENTO

Muito mais que charutos Em Fumaça Pura, o escritor e dissidente cubano Guillermo Cabrera Infante conta a história do tabaco e analisa sua relação com o cinema e a literatura Luciano Trigo


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asscido na província de Gibara em 1929 e mudando-sse para Havana com a família aos 12 anos, já na juventude Guillermo Cabrera Infante começou a participar da vida intelectual de Cuba – e da oposição à ditadura de Fulgencio Batista, que chegou a mandar prendê-llo. Escreveu seu primeiro livro, Así en la Paz Como en la Guerra em 1960, um ano após a Revolução comandada por Fidel Castro e Che Guevara, da qual foi um dos dirigentes culturais nos primeiros meses. Em 1962, contudo, já era visto como um dissidente político, passando a servir como diplomata em Bruxelas. Três anos depois, desgostoso com o regime socialista e após contestar Fidel publicamente, exilou-sse de vez na Europa, no mesmo ano em que seu romance Três Tristes Tigres o projetava internacionalmente, no auge do chamado boom literário latino-aamericano. Mas, independente, Cabrera nunca fez parte de grupos literários e considera que o chamado boom dos anos 60 e 70 foi uma invenção mercadológica criada pela esquerda festiva em Londres e Paris.

Após uma rápida temporada em Madri, radicou-sse definitivamente em Londres, onde vive até hoje. Nunca mais voltou. Desde então tem sido um crítico ferrenho e contumaz de Fidel, a ponto de já o terem chamado de “O AntiCastro”. Seus livros mais conhecidos, já lançados no Brasil, são Vista do Amanhecer no Trópico (1974), Havana Para um Infante Defunto (1979) e Mea Cuba (1993). Também escreveu centenas de textos sobre cinema e roteiros, como o de Vanishing Point – mas, como seu amigo Manuel Puig, nunca ousou dirigir um filme. Em 1997, já consagrado por elogios de Anthony Burgess e Susan Sontag, recebeu o Prêmio Miguel de Cervantes, o mais importante da língua espanhola. Fumaça Pura foi escrito originalmente em inglês, com o título Holy Smoke – inspirado numa fala de Cary Grant, num filme dos anos 30 – e lançado em 1985, justamente quando se iniciava mais uma campanha maciça contra o cigarro. A princípio seria apenas um artigo sobre a história do tabaco, encomendado por uma revista americana. O artigo nunca saiu,


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40 COMPORTAMENTO mas, empolgado com o tema, Cabrera Fumaça Pura é um grande álbum longe: para ele não existe América Latina, como o boom outra invenção decidiu transformá-lo num livro de quade anedotas, um almanaque do européia que só serve para esmagar se 400 páginas, que de certa forma o refumador de charutos que, pela identidades regionais e promover a concilia com sua ilha natal. Quinze anos elegância do texto, interessará confusão, a ignorância e o racismo. depois, o próprio autor faria a tradução também aos não fumantes “Não sou um cidadão latino-ameespanhola, que virou praticamente um ricano porque esse continente não tem conteúdo”, declarou, com outro livro, no qual se baseia a edição brasileira. À primeira vista, trata-se da história do tabaco, que começa seu gosto pelos trocadilhos, numa entrevista recente. com o descobrimento da América, em 1492, quando um Nada sistemático, o autor se desvia a todo momento do membro da tripulação de Colombo, Rodrigo de Xeres, viu índios relato histórico para uma crônica da relação entre os charutos, (“homens-chaminé”) fumando e descobriu a folha do tabaco e dos quais é fumante inveterado, e o cinema. Aliando bomsuas propriedades. Conta Cabrera que, de volta à Espanha, o humor a uma vasta erudição, o texto prende o leitor, apesar de desafortunado Rodrigo decidiu fazer uma demonstração pública desigual em alguns momentos. Na verdade Fumaça Pura é um do ato de fumar. A audiência, vendo que ele exalava fumaça por grande álbum de anedotas, um almanaque do fumador de vários orifícios, julgou que o diabo tomara posse de seu corpo. charutos que, pela elegância do texto, interessará também aos Sua mulher o denunciou ao Santo Ofício, que o condenou a 20 não fumantes. Sempre que pode, Cabrera intercala no texto anos de cárcere. Houve outros que a Inquisição condenou à alfinetadas irônicas na utopia fracassada do regime castrista. Na fogueira, fazendo virar fumaça quem fumasse... cabeça do escritor, a verdadeira utopia será aquela em que todos Fumaça Pura é o relato de uma aventura de cinco séculos, que os homens fumem puros. Ele fundamenta essa idéia em dezenas reúne anedotas sobre fumadores célebres, como Marx, Freud de citações de escritores, canções populares e personagens de (para quem um charuto podia ser apenas um charuto, vale cinema a respeito dessa hoje tão criticada prática de fumar – o lembrar), Churchill que fumava “Churchills”, um tipo de cha- escritor lembra, sugestivamente, que Hitler era totalmente ruto), Bill Clinton e o próprio Fidel. Cabrera explica a evolução avesso ao fumo. Já na epígrafe, destaca-se uma frase de do processo de fabricação de charutos, avalia as marcas disponí- Stevenson: “Nenhuma mulher deveria se casar com um homem veis no mercado e até ensina como se deve cortar, acender e apa- que não fume”, mas a lista de referências é infindável. Kipling gar um puro. Fidel, aliás, não fuma mais, por recomendação chega a sugerir que os puros são melhores que as mulheres. O médica: “É como se um câncer temesse outro câncer”, dispara que é certo é que uns e outras – os charutos e as mulheres – têm Cabrera, que em outro momento, respondendo à onda politica- em comum o dom de fazerem felizes os homens. mente correta que condena cada vez mais o ato de fumar, afirma Para qualquer leitor interessado em Cuba, são particularque “viver também faz mal à saúde”. Para o escritor, como se mente interessantes as páginas que Cabrera dedica à Ilha, percebe, fumar não é um vício, mas um prazer que deve seguir como quando lembra que, antes da revolução, os torcedores determinadas regras. de habanos eram entretidos por um leitor profissional, que lia Logo o leitor percebe que o principal personagem do livro é clássicos da literatura enquanto trabalhavam – hoje os cláso próprio Cabrera Infante, já que Fumaça Pura é também um sicos foram substituídos por discursos de Fidel: “fascismo no balanço confessional da formação do escritor, dos livros e filmes lugar do prazer”, acusa Cabrera. Os profissionais do tabaco que marcaram sua mentalidade. O livro, aliás, é são capazes, segundo o autor, de distinguir 62 dedicado ao seu pai, militante comunista “que aos tonalidades diferentes na folha do tabaco, co84 anos ainda não fuma”... E traz páginas nostálmo os esquimós distinguem dezenas de tonagicas sobre a infância, quando o menino Guillerlidades do branco. mo decidiu que, se um dia tivesse dinheiro, fumaAliás, a famosa marca Montecristo nasceu ria um puro todos os dias, depois do almoço e do da leitura pública de romances de Dumas, cojantar. Foi ainda em Gibara que Cabrera fumou mo uma homenagem ao escritor francês, bassue primeiro puro e leu Palmeiras Selvagens, de tante apreciado em Cuba. O próprio Dumas Faulkner, traduzido por Jorge Luis Borges, expeficou sabendo disso e começou a se corresponriência que o levou a querer tornar-se um escritor. der com a fábrica de charutos Partagás, estabeCabrera é um passadista: para ele as mulheres lecendo-se assim um dos muitos laços existentes mais bonitas do cinema ainda são Louise Brooks e entre a literatura e o ato de fumar: obras-primas Heddy Lamar. Segundo Mario Vargas llosa, o do romance que inspiram a produção de outras principal ingrediente de sua obra é a nostalgia, Fumaça pura, Guillermo obras de arte, os puros. Sem falar nas homena“nostalgia por uma cidade que nunca existiu” – Cabrera Infante. Tradução de gens explícitas, como o soneto que Mallarmé Mario Pontes, Bertrand Brasil. porque a Havana do escritor seria feita mais de sodedicou aos puros, e que inspirou o título do ro420 páginas. R$ 49,00. nho que de memória. Cabrera concorda e vai mais mance Havana para um Infante Defunto. Continente outubro 2003


Cabrera fez uma pesquisa exaustiva, e entre os diversos documentos valiosos que encontrou está um artigo do The New York Sun, de 1880, bastante revelador sobre a peculiar relação dos cubanos com o trabalho e o dinheiro, muito antes que sequer se sonhasse na Ilha com uma revolução socialista. Conta o repórter que um torcedor de puros tinha como rotina gastar todo o dinheiro recebido durante a semana no sábado, comprando um terno novo e caindo na esbórnia e na dissipação, para na segunda recomeçar o processo. Fumaça Pura começa com uma citação ao filme A Noiva de Frankenstein. São longas as referências ao puro no cinema – o segundo de seus vícios – e Cabrera tem particular predileção por uma pequena galeria de diretores e atores, encabeçada por W.C. Fields, Groucho Marx, Orson Welles, Humphrey Bogart, Oliver Hardy, John Huston, Charles Chaplin, Edward G.Robinson e Gary Cooper. Cabrera viu mais de 300 filmes antes de escrever Fumaça Pura. Por que só filmes velhos? “Porque aqueles que esquecem as películas do passado estão condenados a ver remakes”, sentencia. Para Cabrera, os puros têm em comum com o cinema o fato de serem uma arte que funciona também como uma indústria. “Como os filmes, os habanos são o material de que se fazem os sonhos”, afirma, acrescentando que, sem o cigarro, o cinema seria muito mais chato. Para o escritor, o único prazer que se compara ao de fumar puros é aquele que entra pelos olhos: ver filmes... e olhar as mulheres passando – algumas delas, aliás, fumando. Para escrever a versão espanhola de Fumaça Pura, Cabrera Infante teve que deixar de lado o manuscrito de um livro sobre mulheres, La Ninfa Inconstante, a história de uma aventura amorosa real com uma jovem que ele acaricia há décadas (a história, não a jovem, que aliás envelheceu, inconstante que é), e sobre a qual já acumulou mais de 500 páginas de notas – para, parodiando Lewis Carroll, “não se esquecer dos momentos inesquecíveis”. O autor faz comparações interessantes entre os aspectos simbólicos do ato de fumar charutos ou cigarros, acessório indispensável a HumphreyBogart, Bette Davis e Lauren Bacall, sempre

pontuadas por trocadilhos, aliterações, paradoxos e jogos de linguagem bem captados na tradução de Mario Pontes. “Os cigarros pertencem ao instante, os puros são para a eternidade”, escreve o autor. Predileção que não o impede de dedicar páginas saborosas à história do cigarro, como aquela em que lembra 1958, quando o fabricante decidiu fazer uma alteração na embalagem da marca Camel, intocada desde sua criação em 1913, e chegaram toneladas de cartas protestando contra essa “interferência radical na herança cultural da nação”. O fabricante voltou atrás. Em mais de uma entrevista, Cabrera Infante já declarou que o pior aspecto do exílio foi o fato de ele ter perdido o seu “leitor natural” – ou seja, um indivíduo que vivesse em Havana e que pudesse apreciar seus livros, hoje proibidos em Cuba. Essa ruptura gerou no escritor uma ironia amarga, uma visão desesperançada e lúcida que fez da condição do exílio uma segunda natureza. “Mesmo que um dia regresse a Cuba, continuarei sendo um exilado”, afirma. “É um exílio ontológico”. Em contrapartida, a motivação política desse exílio reforçou nele o amor pela verdade. Tudo isso, somado aos ódios e amores que alimenta, faz dele um personagem tão interessante quanto os personagens de seus romances, com uma trajetória marcada por uma ruptura radical e, segundo sugere em Mea Cuba, por perseguições e tentativas de intimidação no exílio. Como tudo o que Cabrera Infante escreveu desde que deixou seu país, Fumaça Pura é também um acerto de contas do escritor com seu passado, por meio da evocação de fantasmas de sua memória afetiva, familiar e política. É também mais um manifesto contra o poder estabelecido em Cuba desde 1959, fundado num partido único e no caudilhismo. Fumaça Pura pode incomodar aqueles leitores que simpatizam com o lado heróico da revolução em Cuba, entre os quais me incluo. O excesso de citações eruditas também pode parecer exibicionismo, em alguns momentos. Mas incomodar os leitores, vale lembrar, é uma característica de todos os livros de Cabrera, infante terrível da literatura cubana no exílio. • Luciano Trigo é jornalista.


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ARTES

Cabeça em imburana,

Os arquétipos do mistério

11x23x13cm

José Barbosa mostra em pinturas, entalhes e esculturas seu universo mágico

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jovem José Barbosa entalhava florais e arabescos em baixo-relevo, sob as ordens de Mestre Miranda, enfeitando móveis populares que seu pai, Ernande, dono da Movelaria S. Jorge, na Ribeira, Cidade Alta de Olinda, fazia. Em 1959, três artistas plásticos pernambucanos, Adão Pinheiro, Anchises Azevedo e Montez Magno alugaram o sótão da oficina para usar como ateliê. Vendo que o garoto de 11 anos tinha talento, Adão passou a fazer desenhos para ele entalhar. E assim começou a trajetória artística de José Barbosa que, literalmente, ganharia o mundo, morando seis anos na Europa, expondo seus trabalhos na França, Alemanha, Suíça e Inglaterra. De volta ao Brasil, em 1978, participou da Bienal de Cuba e da XVII Bienal de São Paulo. Barbosa, que já fez individuais em vários Estados brasileiros, faz agora sua segunda mostra na Galeria Jacques Ardies, de São Paulo. Sob o título Arquétipos da Natureza, vai apresentar 45 pinturas, entalhes e esculturas. Um trabalho rico em formas e colorido, definido pelo pintor e ceramista Francisco Brennand como integrante de uma tradição visonária.


Construtor de enigmas Francisco Brennand

Fotos: Acervo do artista

Great Zeppelin, 144x94cm

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osé Barbosa está inscrito dentro do cenário brasileiro como um raríssimo caso de pintor que persevera nesta grande tradição visionária, onde muitos são eleitos e poucos os escolhidos para passarem pela porta estreita desse paraíso. Inclusive, esses construtores de enigmas não devem ter consciência desta qualidade, assim como o santo não tem de sua santidade, sob pena de perdê-la. É o caso de Georges Seurat, Por exemplo, que supunha estar criando um método preciso e científico de pintar, com pequenos pontos coloridos (pontilhismo) e, no entanto, foi um dos mais enigmáticos pintores do nosso tempo. A assim chamada mescia ótica, baseada em princípios descobertos pela física da época, se transforma em pura poesia e mistério, que o diga a tela Uma Tarde de Domingo na Grande Jatle, que tanto interessou a Giorgio de Chinco, criador da pintura metafísica, como paradigma das fronteiras do entendimento. A pergunta é: onde a fantasia termina e onde começa o mistério? Não pretendo mencionar apenas o sentido lúdico da fantasia, mas o espantoso mistério, aquele que não se dá e que não se explica. Um dos ancestrais mais remotos de José Barbosa é Jerônimo Bosch, como também poderia ser, mais de cem anos depois, o Bruegel de A Queda de ícaro, e , entre eles, o quatrocentista italiano Piero de Cosimo com suas fábulas de fim de mundo, onde criaturas semi-animalescas se movimentam num ritmo de sonho e pesadelo. Não é difícil associar o pintor recifense com este último, principalmente nas suas paisagens e florestas incendiadas, onde animais e homens correm à procura da salvação, envolvidos por uma luz interior cuja origem certamente não vem da luz solar.

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44 ARTES As telas de Barbosa têm uma luz sombria e difusa, intensamente pessoal, a ponto de, às vezes, causar um certo temor, como se algo catastrófico se pronunciasse. Isso foi observado num quadro onde um Zeppelin, em forma de peixe, sobrevoa o Pão-de-Açúcar, no Rio de Janeiro: uma cena de cartãopostal transformada numa tragédia iminente. Numa outra paisagem envolta pelas névoas da madrugada, um fazendeiro dirige solitário sua carroça, pelo matagal, onde tudo indica que, alguns passos adiante, será ferido de morte na emboscada de um antagonista. Essas associações, que podem aparecer gratuitas, não o são para os olhos de um artista acostumando a descobrir parentescos remotos que jamais falham na condução do pincel de um verdadeiro pintor. Acrescentaria ainda, neste conjunto, um outro cenário com bois que, de uma maneira atropelada, atravessam um perigoso pantanal na ânsia de galgar margens inexistentes... Nos seus mais recentes trabalhos, José Barbosa insiste em criar grandes orgias no ventre de um peixe, num sentido escatológico que associa a Jerônimo Bosch. Assim também quando um enorme gato parece despencar de uma árvore e, com sua bocarra, ameaça devorar uma Mulher Esfinge. A mesma loucura e insensatez estão presentes no seu quadro Sourouba de 1982, onde mulheres e homens torpemente enlaçados promovem uma bacanal sem começo nem fim. Neste roteiro de assombrações descubro a Dama de Vermelho como uma das cortesãs de Carpaccio, enquanto que O Anjo Caído, ainda iluminado por uma luz celestial, defronta-se com céu enegrecido e tormentoso, cuja promessa é o inferno, e que nos remete às imagens visionárias de um William Blake.

Jarro 1, em cedro policromado, 37x100cn

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Coluna Toten, 0,55x0,55x200cm

ARTES 45 »

Garça Branca, 80x40cm

Enfim, sem que José Barbosa necessariamente tenha conhecimento da sua trajetória através da História da Arte, cabe a nós outros – por puro deleite do olhar ou do espírito – assinalar esse percurso visionário. Como evitaríamos presenciar esta Grande Garça Branca, solitária, numa paisagem verde, sem lembrar do aduaneiro Henn Rousseau? Igualmente evoca a imagem poética de Tupan Sete: Lá onde cresce a solidão e sonha a garça. De minha parte, neste desabrido arsenal de referência, esclareço tratar-se de um ato muito comum entre aqueles que cultivam uma tradição oculta, ou seja, exumar arqueologicamente um mundo só aparentemente desfeito. Em abril de 1951, Salvador Dali lançou seu livro 50 Segredos Mágicos para pintar, iniciado com uma tabela de diferentes notas de 0 a 20 com os itens: oficio, inspiração, cor, desenho, gênio, composição, originalidade, mistério e autenticidade, para qualificar grandes artistas de Leonardo Da Vinci a Mondrian. No capítulo mistério – um aspecto pouco comum na arte brasileira –, Dali só dedica nota máxima a Leonardo Da Vinci, a Rafael e a Vermeer de Delft, conferindo a Picasso nota 2 e a Mondrian nota 0, sem nenhum escrúpulo. Atribuo a José Barbosa, com seu notável sentido, a mesma nota 20. • Trecho do texto À Procura de José Barbosa.

Arquétipos da Natureza, de José Barbosa. Galeria Jacques Ardies – Rua do Livramento, 221 – Vila Mariana – São Paulo. Fone (11) 3051.3625. Abertura: 7 de outubro, às 20h. Visitação: de segunda à sexta-feira, das 10 às 19h. Aos sábados: de 10 às 16h. Até o dia 31de outubro.

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46 ARTE

Arte negra Com mais de 300 peças do acervo do museu Etnológico de Berlim, chega ao Brasil a maior representação da Arte Antiga da África Carol Almeida

Fotos: Divulgação

Imagem-ícone da exposição (único exemplar do mundo). Escultura representando herói cultural Chibinda Ilunga. Angola, séc. 19

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m lentes macroscópicas, o Brasil provavelmente enxergaria a África sob duas perspectivas distintas. A primeira é uma imagem refratária, referência à formação da própria identidade brasileira, inconcebível sem o sincretismo cultural de negros, brancos e índios, que terminou por horizontalizar “castas” etnológicas. Mas, ao contrário dessa paisagem memorial, a segunda perspectiva que o Brasil tem do continente africano não é exclusiva em sua representação, pois a África simboliza hoje, para o mundo inteiro, o epicentro da miséria econômica e do completo desrespeito aos direitos humanos. Além de demonstrarem pontos de vista, esses dois panoramas sintetizam o grau de relacionamento que o Brasil tem atualmente com o chamado “continente dominado”: apesar de fazer parte da construção da impressão digital do País, os africanos estão hoje para os brasileiros como os índios estavam para os portugueses há 500 anos: exóticos, pobres e distantes. Pois este mês, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro e o Instituto Goethe da Alemanha tentarão, pelo elo mais forte entre os dois territórios – o cultural –, estreitar esse afastamento com a exposição Arte da África. Orçada em U$ 900 mil e com um seguro que chega a mais de U$ 57 mil, a exposição é certamente a maior representação da Arte Antiga da África já apresentada no Brasil. Serão mais de 300 peças do acervo do Museu Etnológico de Berlim, que tem a


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Apoio para a nuca. Sudão, séc. 19

segunda maior coleção africana do mundo, perdendo apenas para o British Museum, de Londres. Os objetos fazem parte daquilo que terminou sendo adquirido pelos europeus durante a expansão mercantilista do colonialismo, e a maior parte deles nasceu, não exatamente como peças artísticas, mas sim como simbologias religiosas, ornamentos ou somente objetos funcionais. “Visualmente essas peças serão apresentadas como objetos de arte, ou seja, isoladamente. No entanto, a exposição tenta mostrar sempre a função de cada um desses elementos”, explica o curador da mostra, o alemão Peter Junge, diretor do departamento África, do Museu Etnológico de Berlim. Segundo ele, “as obras de arte não foram criadas com vistas a elas mesmas, mas somente seriam compreensíveis a partir do seu fundo religioso ou social. A produção da arte pela arte seria um fenômeno europeu, não transferível à África”. Entre as peças mais preciosas dessa exposição está a figura real Chibinda Ilunga, herói cultural que, segundo o mito, foi o criador do reino de Lunda, origem do povo Chokwe, da Angola. A escultura é única no mundo e está datada como sendo do século 19. Lembra, pelos pés e mãos desproporcionalmente grandes, algumas esculturas em barro, produzidas no Nordeste brasileiro. Há também as máscaras Gelede, também do século 19, utilizadas na dança pelos membros masculinos do grupo de culto do mesmo nome. Esta dança era, e ainda hoje é muito comum, principalmente no sudoeste da região da tribo Yoruba, na Nigéria.

Máscara Ngil. Gabão ou República dos Camarões, séc. 19

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48 ARTE Fotos: Divulgação

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Saleiro. Serra Leoa, séc. 15 ou 16

Cabaça Ifa, com representação de um cavaleiro. Nigéria, séc. 19

Objetos usados no cotidiano de tribos ganham relevância de obras-primas, como de fato parecem ser. Um saleiro da Serra Leoa, do séc. 15 ou 16, esculpido em marfim, mostra como, já naquela data, artesãos africanos uniam seus elementos estéticos aos padrões funcionais europeus, colocando figuras humanas e zoomórficas na base (elementos africanos) e colares de miçangapor cima (preferências européias). Peter Junge lembra ainda que, muitas dessas peças, levadas para Europa no século 19, terminaram por influenciar esteticamente artistas sedados pelo “tédio da pintura acadêmica” que precedeu a Primeira Guerra Mundial. “A admiração desses artistas de vanguarda era provocada pelo suposto primitivismo, pelo ‘vigor originário’ e animação dos objetos com força mágico-religiosa”, escreve ele no catálogo da exposição. O conjunto de peças que será mostrado no Brasil, a princípio no CCBB do Rio de Janeiro e, em seguida, em São Paulo e Brasília, soma um número ainda maior de peças que estão em exposição permanente no Museu Etnológico de Berlim. Este, por falta de espaço, não tem estrutura para mostrar mais que 200 objetos de arte. Paralelamente à mostra, haverá a realização de outras atividades culturais, tais como: exibição de filmes

Máscara de búfalo. República dos Camarões, séc. 19

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ARTE 49

Os objetos fazem parte daquilo que terminou sendo adquirido pelos europeus durante a expansão mercantilista do colonialismo, e a maior parte deles nasceu, não exatamente como peças artísticas, mas sim como simbologias religiosas Cadeira real. Angola,séc 19

africanos e a apresentação de novos artistas do continente, tanto em música como em teatro contemporâneo. “Embora nós brasileiros tenhamos a África em nossa formação cultural, o contato com a cultura produzida lá é muito pequeno. Nosso objetivo é possibilitar aos brasileiros o encontro com uma cultura irmã”, esclarece Yole Mendonça, diretora do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. O discurso está em sintonia com a nova política de relações que o novo governo brasileiro tenta hoje desenvolver com a África. Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou até a sancionar a lei de nº 10.639, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Não é somente com o continente africano que essa exposição pretende abrir portas de relacionamento. Quando as negociações para a vinda de Arte da África começaram, em 2001, Alfons Hug, do Instituto Goethe e atual curador da Bienal de São Paulo, já tinha em mente fortalecer, a partir de então, a ponte entre Brasil e Alemanha. A idéia é promover outros projetos de intercâmbio entre o CCBB e os 20 museus estatais de Berlim que formam o “Patrimônio da Prússia”, considerado, na sua totalidade, o Louvre alemão. • Carol Almeida é jornalista. Continente outubro 2003


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50 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

A propósito de novidades já velhas As Bienais encontram-se em situações contraditórias em face de certas propostas artísticas

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á algumas décadas – até os anos 60 do século passado –, as Bienais de artes plásticas ocupavam espaço considerável nas revistas, jornais e na televisão. A inauguração da Bienal de São Paulo era um acontecimento de expressão nacional e internacional, seguida da apreciação feita pelos grandes nomes da crítica de arte. As premiações tinham poder consagratório com repercussão em todo o mundo artístico que, naquela época, compreendia também importantes revistas de arte editadas em Paris, Milão, Berlim, New York ou Londres. É desnecessário dizer que nada disto existe hoje, quando tais certames artísticos perderam qualquer significado cultural para se transformarem em eventos pitorescos aonde o público vai para se divertir com as extravagâncias apresentadas. Não se trata de escândalos – é bom que se diga –, uma vez que o freqüentador das Bienais de hoje já espera pelo extravagante, o que obriga o “artista” a esforçar-se por se superar na sacação de obras cada vez mais distantes de tudo o que, no passado recente, ainda era considerado arte. Lembro-me de uma Bienal de Veneza em que a obra mais chocante foi um tubarão cortado ao meio e posto dentro de uma caixa de vidro com formol. Em nossa Bienal de São Paulo, divertiu muito a garotada um japonês que, toda quinta-feira à noitinha, fantasiava-se de pescador submarino e ficava batendo água numa piscina de plástico. Na última Bienal paulista, a proposta extravagante consistiu numa porta alternativa por onde o público entraria sem pagar, o que ameaçava levar o certame à falência. A solução encontrada pela direção da Bienal foi abrir, nos fundos da mostra, uma portinhola que só permitia a entrada Continente outubro 2003

de cinco pessoas e num horário determinado. Na Bienal de Veneza deste ano, como era de se esperar, a busca de novas extravagâncias continuou, destacando-se as fotos enviadas por uma fotógrafa canadense e que foram feitas com a ajuda de um cão: ela acoplou uma máquina fotográfica no animal e o soltou na neve. As fotos fora de foco, assim obtidas, foram obviamente aprovadas pelo júri e exibidas com a indispensável informação, a fim de que o público não pensasse que aquilo era obra de algum mau profissional, o que comprometeria a autoridade dos jurados; sendo o fotógrafo um cachorro, estava tudo bem. Mas esta não foi a mais caprichosa idéia apresentada na Bienal de Veneza. A glória desta vez coube a um artista do terceiro mundo, um venezuelano, que propôs erguer-se um muro fechando a entrada do pavilhão espanhol. Como se vê, é o mesmo tema da entrada na Bienal de São Paulo, só que com sinal trocado: se a proposta anterior franqueava a entrada sem nada cobrar, a de agora impedia a entrada mesmo para quem pagasse. Mas o artista deixou uma alternativa a quem realmente quisesse adentrar o vedado pavilhão: havia uma passagem no muro que permitia a entrada dos visitantes, mediante a apresentação do passaporte espanhol. O cara, sem dúvida, é um gozador, e a impressão que dá é que o alvo da gozação é a própria Bienal de Veneza. Conforme contou Maria Tomaselli, em comentários que publicou na imprensa de Porto Alegre, sobre a referida Bienal, o presidente do museu Guggenheim, de New York, foi impedido de entrar no pavilhão da Espanha por não possuir o exigido passaporte. Parece que conseguiu penetrar por uma porta dos fundos.


TRADUZIR-SE 51 Foto: Agência Estado

Cosmic Thing (2002), de Damián Ortega

Já tive oportunidade de observar nesta coluna, que a instituição Bienal encontra-se numa situação contraditória em face de certas propostas dos artistas: por ser uma instituição, tem normas que devem ser obedecidas, mas, ao mesmo tempo, por ser de “vanguarda”, está obrigada a aceitar a quebra das normas. Assim, se o júri aprova a construção de um muro fechando a entrada de um pavilhão, a direção da Bienal tem que mandar construí-lo, embora isto contrarie as normas que regulamentam o funcionamento da exposição e, além do mais, tem de submeter-se a qualquer disparate, como essa exigência de passaporte para entrar num pavilhão... Não é preciso muita perspicácia para perceber que este tipo de provocação tem por alvo a Bienal como instituição. Propor ao júri, como obra de arte, um tubarão cortado ao meio era um modo de questionar o conceito de arte e só indiretamente a Bienal como certame artístico. Mas quando se propõe abrir uma porta alternativa para a entrada gratuita dos visitantes ou erguer um muro fechando um pavilhão, o objetivo é desautorizar o caráter institucional da Bienal e submetê-la ao ridículo. De fato, se o espírito que preside a tais iniciativas é da total desconsideração por todo e qualquer princípio ou limite, não tem cabimento a permanência de instituições artísticas como espaço de exibição

de obras ou não-obras de arte. Essas manifestações aqui referidas, coerentes com a visão duchampiana de que arte é tudo o que se chamar de arte (o que implica negar qualquer conceito de arte), no fundo denunciam a contrafação de instituições como as Bienais. Se tudo é arte, não há razão para expor coisa alguma, basta olhar em volta... Não obstante, é preciso ir mais fundo no exame desta questão. Sabe-se que interesses de tudo quanto é ordem estão envolvidos nesse mundo supostamente anti-artístico e rebelde. A Bienal de Veneza, como a Documenta de Kassel, tornaram-se parte da programação turística das prefeituras dessas respectivas cidades. Mantê-las funcionando interessa, não apenas às empresas diretamente ligadas ao turismo, como aos políticos, aos industriais, aos banqueiros, que têm seus negócios vinculados a essas cidades e usufruem da badalação que estas mostras suscitam. Tampouco estão fora desse jogo de interesses os próprios anti-artistas que, em função do escândalo, tornam-se conhecidos e vendem tudo o que inventarem fazer, desde picolé de água e miniatura de pirocas até coisas fora de moda como guaches e desenhos. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.

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52 ESPECIAL

A fronteira da cultura Escritor moçambicano expõe os dilemas atuais de seu país, premido pelos fantasmas do colonialismo e pela necessidade de construir com as próprias mãos a sua identidade cultural Mia Couto Continente outubro 2003


ESPECIAL 53 » Foto: André Arruda/Tyba

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urante anos, dei aulas em diferentes faculdades da Universidade Eduardo Mondlane. Os meus colegas professores queixavam-se da progressiva falta de preparação dos estudantes. Eu notava algo que, para mim, era ainda mais grave: uma cada vez maior distanciação desses jovens em relação ao seu próprio país. Quando eles saíam de Maputo em trabalhos de campo, esses jovens comportavam-se como se estivessem emigrando para um universo estranho e adverso. Eles não sabiam as línguas, desconheciam os códigos culturais, sentiam-se deslocados e com saudades de Maputo. Alguns sofriam dos mesmos fantasmas dos exploradores coloniais: as feras, as cobras, os monstros invisíveis. Aquelas zonas rurais eram, afinal, o espaço onde viveram os seus avós e todos os seus antepassados. Mas eles não se reconheciam como herdeiros desse patrimônio. O país deles era outro. Pior ainda: eles não gostavam desta outra nação. E ainda mais grave: sentiam vergonha de a ela estarem ligados. A verdade é simples: esses jovens estão mais à vontade dentro de um video-clip de Michael Jackson do que no quintal de um camponês moçambicano. O que se passa, e isso parece inevitável, é que estamos criando cidadanias diversas dentro de Moçambique. E existem várias categorias: há os urbanos, moradores da cidade alta, esses que foram mais vezes a Nelspruit que aos arredores da sua própria cidade. Depois, há uns que moram na periferia, os da chamada cidade baixa. E há ainda os rurais, os que são uma espécie de imagem desfocada do retrato nacional. Essa gente parece condenada a não ter rosto e falar pela voz de outros. A criação de cidadanias diferentes (ou o que é mais grave, de diferentes graus de uma mesma cidadania) pode ou não ser problemática. Tudo isso depende da capacidade de manter em diálogo esses diferentes segmentos da nossa sociedade. A pergunta é: será que esses diferentes Moçambiques falam uns com os outros? A nossa riqueza provém da nossa disponibilidade em efetuarmos trocas culturais com os outros. O presidente Chissano perguntava num texto muito recente sobre o que é que Moçambique tem de especial que atrai a paixão de tantos visitantes. Esse não-sei-quê especial existe, de fato. Essa ma-

Meninos de Moçambique: a riqueza do país está na possibilidade de trocas culturais

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54 ESPECIAL gia está ainda viva. Mas ninguém pensa, razoavelmente, que esse poder de sedução provém de sermos naturalmente melhores que os outros. Essa magia nasce da habilidade em trocarmos cultura e produzirmos mestiçagens. Essa magia nasce da capacidade de sermos nós, sendo outros.

Foto: André Arruda/Tyba

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Um retrato feito por empréstimo O colonialismo não morreu com as independências. Mudou de turno e de executores. O atual colonialismo dispensa colonos e tornouse indígena nos nossos territórios. Não só se naturalizou, como passou a ser co-gerido numa parceira entre ex-colonizadores e ex-colonizados. Uma grande parte da visão que temos do passado do nosso país e do nosso continente é ditada pelos mesmos pressupostos que ergueram a história colonial. Ou melhor, a história colonizada. O que se fez foi colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a idéia que África pré-colonial era um universo intemporal, sem conflitos nem disputas, um paraíso feito só de harmonias. Essa imagem romântica do passado alimenta a idéia redutora e simplista de uma condição presente em que tudo seria bom e decorreria às mil maravilhas se não fosse a interferência exterior. Os únicos culpados dos nossos problemas devem ser procurados fora. E nunca dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes dos de fora. O modo maniqueísta e simplificador com que se redigiu o chamado “tempo que passou” teve, porém, outra conseqüência:

Mosaico de diferenças é valioso patrimônio Ao lado, Maputo, capital de Moçambique

O que se passa, e isso parece inevitável, é que estamos criando cidadanias diversas dentro de Moçambique. A pergunta é: será que esses diferentes Moçambiques falam uns com os outros? fez persistir a idéia de que a responsabilidade única e exclusiva da criação da escravatura e do colonialismo cabe aos europeus. Quando os navegadores europeus começaram a encher de escravos os seus navios, eles não estavam estreando o comércio de criaturas humanas. A escravatura já tinha sido inventada em todos os continentes. Praticavam a escravatura os americanos, os europeus, os asiáticos e os próprios africanos. A escravatura foi uma invenção da espécie humana. O que sucedeu foi que o tráfico de escravos se converteu num sistema global e esse sistema passou a ser desenvolvido de forma a enriquecer o seu centro: a Europa e a América. Se o passado nos chega deformado, o presente deságua em nossas vidas de forma incompleta. Alguns vivem isso como

A arte de Malangatana

Fotos: Júlio Almeida/Divulgação

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que Mia Couto representa para a Literatura de Moçambique, Malangatana Valente Ngwenya representa para as Artes Plásticas. Nascido em junho de 1936, em Matalana, na província de Maputo, Malangatana tornou-se pintor profissional em 1960. Além da pintura, sua obra inclui escultura, desenho, gravura, tapeçaria, cerâmica e aquarela. Acusado de ligações com a Frelimo - Frente de Libertação de Moçambique, passou dois anos na prisão da política colonial. Depois da Independência, foi deputado e é um


ESPECIAL 55 » Foto: Kanimambo.com

um drama. E partem em corrida nervosa à procura daquilo que chamam a nossa identidade. Grande parte das vezes essa identidade é uma casa mobiliada por nós, mas a mobília e a própria casa foram construídas por outros. Uns acreditam que a afirmação da sua identidade nasce da negação da identidade dos outros. O certo é que a afirmação do que somos está baseada em inúmeros equívocos. A África não pode ser reduzida a uma entidade simples, fácil de entender. O nosso continente é feito de profunda diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos patrimônios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiçagens, falamos com algum receio como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. Os senhores dizem que não há economia atual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma. O que seremos e podemos ser – Estamos hoje a construir a nossa própria modernidade. O que mais nos falta em Moçambique não é formação técnica, não é a acumulação de saber acadêmico. O que mais falta em Moçambique é capacidade de gerar um pensamento original, um pensamento soberano que não ande a reboque daquilo que outros já pensaram.

Precisamos exercer os direitos humanos, como o direito à tolerância, mas temos que manter acesso a um direito fundamental que é o direito à indignação. Quando nós deixarmos de nos indignar, então estaremos a aceitar que os poderes políticos nos tratem como seres que não pensam. O nosso continente corre o risco de ser um território esquecido, secundarizado pelas estratégias de integração global. Quando digo “esquecido”, pensarão que me refiro à atitude das grandes potências. Mas eu refiro-me às nossas próprias elites que viraram as costas às responsabilidades para os seus povos, à forma como o seu comportamento predador ajuda a denegrir a nossa imagem e fere a dignidade de todos os africanos. O discurso de grande parte dos políticos é feito de lugares-comuns, incapazes de entender a complexidade da con-

À esquerda, o artista e seu quadro O Vôo do Anjo, 1995 Ao lado, A Família, 1993

dos membros da Frelimo na Assembléia Municipal de Maputo e coordena projetos de desenvolvimento integrado, ao lado de trabalho artístico, etno-antropológico e ecológico junto a populações locais. Participou de exposições coletivas em vários países e individuais na Alemanha, Áustria, Bulgária, Chile, Cuba, Estados Unidos, Espanha, Índia, Macau, Portugal e Turquia. No Recife, a Fundação Joaquim Nabuco promoveu exposição e palestra sobre seu trabalho, em 1998, tendo Malangatana deixado ali um vasto painel pintado. Para o crítico lisboeta Fernando Azevedo, da obra de Malangatana emana “não obstante a irradiação urbana, tanto os terrores primordiais como os êxtases do paraíso, tanto os fantasmas terríveis da morte como os anjos metamórficos e benéficos da entrega lúdica”. •


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56 ESPECIAL dição dos nossos países e dos nossos povos. A demagogia fácil continua a substituir a procura de soluções. A facilidade com que ditadores se apropriam dos destinos de nações inteiras é algo que nos deve assustar. A facilidade com que se continua a explicar erros do presente, através da culpabilização do passado, deve ser uma preocupação nossa. É verdade que a corrupção e o abuso do poder não são, como pretendem alguns, exclusivas do nosso continente. Mas a margem de manobra que concedemos a tiranos é espantosa. É urgente reduzir os territórios de vaidade, arrogância e impunidade dos que enriquecem à custa do roubo. É urgente redefinir as premissas da construção de modelos de gestão que excluem aqueles que vivem na oralidade e na periferia da lógica e da racionalidade européias. Nós todos, escritores e economistas, estamos vivendo com perplexidade um momento muito particular da nossa História. Até aqui Moçambique acreditou dispensar uma reflexão radical sobre os seus próprios fundamentos. A nação moçambicana conquistou um sentido épico na luta contra monstros exteriores. O inferno era sempre fora, o inimigo estava para além das fronteiras. Era Ian Smith, o apartheid, o imperialismo. O nosso país fazia, afinal, o que fazemos na nossa vida cotidiana: inventamos monstros para nos desassossegar. Mas os monstros também servem para nos tranqüilizar. Dá-nos sossego saber que eles moram fora de nós. De repente, o mundo mudou e somos forçados a procurar os nossos demônios dentro de casa. O inimigo, o pior dos inimigos, sempre esteve dentro de nós. Descobrimos essa verdade tão simples e ficamos a sós com os nossos próprios fantasmas. E isso nunca nos aconteceu antes. Este é um momento de abismo e desesperanças. Mas pode ser, ao mesmo tempo, um momento de crescimento. Confrontados com as nossas mais fundas fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas, ensaiar outras escritas. Vamos ficando, cada vez mais, a sós com a nossa própria responsabilidade histórica de criar uma outra História. Nós não podemos mendigar ao mundo uma outra imagem. Não podemos insistir numa atitude apelativa. A nossa única saída é continuar o difícil e longo caminho de conquistar um lugar digno para nós e para a nossa pátria. E esse lugar só pode resultar da nossa própria criação. • Excerto de palestra do escritor Mia Couto na Amecon – Associação Moçambicana de Economistas, em 30 de julho de 2003.

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Mia Couto abensonhado Em entrevista à Continente, Mia Couto aponta as dificuldades em estabelecer o que é uma literatura genuinamente nacional – seja em Moçambique, seja no Brasil Maria Alice Amorim

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m rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Este é o quinto romance do africano Mia Couto – publicado no Brasil pela Companhia das Letras – e que, segundo o próprio escritor, foi o que mais prazer lhe deu escrever. O autor, como sempre, elabora metáforas, em prosa poética comovente, com uma linguagem inventiva, cheia de neologismos criados a partir do contato do artista com os falares do povo. O que o artista também não esconde é o contato com a obra do brasileiro João Guimarães Rosa na construção do próprio legado artístico, conforme entrevista a seguir. E afinal, para que servem os limites entre prosa e poesia, perguntamo-nos todos. Para serem transgredidos, como prova a criação literária do moçambicano, dentre outros abensonhados escritores. Mia Couto, ou António Emílio Leite Couto, nasceu em Moçambique, 1955, filho de pais portugueses. O bairro Maquinino, um dos pioneiros e mais típicos da cidade da Beira, zona popular em que conviviam diferentes culturas, serviulhe de esteio para a criação artística. Nos anos 70, interrompeu os estudos de Medicina para dedicar-se ao Jornalismo. Foi redator do jornal A Tribuna, diretor da revista Tempo e dos jornais Notícias e Domingo. Em 1983, lançou o primeiro livro Raiz de Orvalho (poesia). Em 1985 decidiu voltar à universidade para cursar Biologia. Em 86 estréia o contista, com Vozes Anoitecidas, firmando, a partir de então, um estilo singular no gênero ficcional. Em 1987 passa a trabalhar na adaptação e criação de textos para o grupo teatral Mutumbela Gogo. Em 1994 publica o livro de contos Estórias Abensonhadas. É professor universitário de Ecologia em Maputo, pesquisador e consultor na área de meio-ambiente. Colabora, regularmente, com o semanário Domingo, a Televisão de Moçambique, o diário Público (Lisboa). Publicou, em 2001, o li-


ESPECIAL 57 » Foto: Divulgação

vro infantil O Gato e o Escuro, pela editora Ndjira, de Maputo, e pela Caminho, de Lisboa. Também lançou, pelas mesmas editoras, Na Berma de Nenhuma Estrada, coletânea de contos escritos nos três anos anteriores, inéditos em livro, porém divulgados em jornais de Moçambique e Portugal. O romance O Último Vôo do Flamingo foi premiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, em junho de 2001. No Brasil, Mia Couto é publicado pela editoras Nova Fronteira e Companhia das Letras. Confira a entrevista com um escritor moçambicano dos mais divulgados nos países de expressão portuguesa, e traduzido mundo afora: Que nomes indicaria como os mais representativos da literatura moçambicana? – É difícil escolher. Existem nomes que são incontornáveis. José Craveirinha e Eduardo White na poesia. Ungulani Ba Ka Khosa, Suleiman Cassamo e Paulina Chiziane na prosa. Infelizmente não estão publicados no Brasil. O que sobressai: poesia ou ficção? – O domínio absoluto continua no gênero poético. Moçambique é um país de poetas e isso tem a ver com a ruralidade (80% da população pratica a agricultura de subsistência) que se mantém igualmente dominante no imaginário nacional. Angola é uma nação onde a urbanização é historicamente mais antiga e sedimentada. Assim, Angola tem mais prosadores.

Moçambique é um país de poetas e isso tem a ver com a ruralidade (80% da população pratica a agricultura de subsistência) que se mantém igualmente dominante no imaginário nacional. Angola é uma nação onde a urbanização é historicamente mais antiga e sedimentada. Assim, Angola tem mais prosadores

O movimento independentista ainda se reflete na produção literária? – Ainda. A independência tem 28 anos. É muito cedo, há toda uma geração de 30 a 50 anos que ficou muito marcada por essa charneira histórica. A novíssima geração, nascida já na Independência, irá marcar a diferença. É realmente nos anos 40 que começa a existir uma literatura autenticamente moçambicana? – É difícil dizer o que é uma literatura genuinamente moçambicana. Mesmo o Brasil terá dificuldade de estabelecer datas precisas. Há, até o presente, autores que continuam sendo disputados entre portugueses e brasileiros. O termo “genuinamente” é de difícil aplicação quando se fala em manifestações humanas e culturais. Onde estão as fronteiras das identidades? Que escritores de expressão portuguesa, ou do universo literário, exerceram maior influência nos primórdios? Podemos identificar também determinadas influências na produção atual? -Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo exerceram grande influência. Mais até que autores portugueses. Num domínio mais particular, João Cabral de Melo Neto e Drummond de Andrade tiveram uma influência na produção poética deste lado do Índico. Havia processos de apropriação lingüística que eram mais próximos do Brasil que de Portugal. África estava ali, criando maior familiaridade entre as culturas moçambicanas, angolanas e brasileiras. No meu caso, João Guimarães Rosa e Manoel de Barros foram importantes. • Maria Alice Amorim é jornalista.

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Literatura vinda da oralidade ancestral

A literatura moçambicana incorpora um imaginário africano diversificado

Recente e marcada por uma exuberante cor local, a literatura moçambicana enfrenta, no campo da ficção, a dificuldade de exprimir-se numa língua que não coincide com nenhuma das línguas das tradições orais

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oçambique tem nomes e obras, mas não um cânone literário. Não tem narrativa urbana, policial, ficção científica. Foi exatamente o que revelou o poeta moçambicano Luís Carlos Patraquim, quando esteve no 1º Festival Recifense de Literatura em meados de agosto, com a segurança de quem vive mergulhado no assunto. “O primeiro poeta que se pode considerar moçambicano é Rui de Noronha, que desaparece, prematuramente, em 1943. Uma poesia angustiada, uma procura identitária, uma linha – no soneto – à Antero de Quental. Era mestiço de goês e de negra, o que naquele contexto bem colonial era um estigma. A literatura – a pouca que há – precede e vai escorar o posterior discurso independentista: Noémia de Sousa e José Craveirinha, sobretudo. Virgílio de Lemos, que se revela na década de 50, quer abarcar essa moçambicanidade num abraço cosmopolita mais vasto, não recusando influência da literatura brasileira. Mais tarde, Rui Knopfli – O País dos Outros, 1959 – viverá uma eterna ambigüidade. Desse tempo ‘fundador’, digamos assim, surge também o nome de Orlando Mendes, natural de Ilha de Moçambique, já falecido.” Recente e marcada por uma exuberante cor local, podemos dizer que o fio da meada na literatura moçambicana é exatamente a oralidade ancestral das línguas nacionais, as cosmogonias ou espaços da infância primeira. Num país conhecido pelo apego à poesia – fato atribuído à predominância da vida agrária, conforme declara Mia Couto em entrevista –, é nos anos 80 que alguns autores começam a dedicarse à ficção, com a dificuldade de exprimir-se literariamente numa língua que não coincidia com nenhuma das línguas das tradições orais. Mesmo assim, tal oralidade é transposta para a narrativa ficcional em língua portuguesa, conferindo-lhe fisionomia particular, fruto de um imaginário africano étnica e lingüisticamente diContinente outubro 2003

versificado, que interagiu, inevitavelmente, com traços culturais portugueses. Vê-se, com isso, não só na obra de Mia Couto, uma carga de aforismos nos textos e a necessidade de utilizar glossário, para esclarecer palavras e expressões das outras línguas nacionais, sempre recorrentes nessa produção literária em que a oralidade é exatamente um dos aspectos mais importantes. Ícones – Autor de roteiro, argumento e diálogos para cinema e TV, jornalista e radialista, Patraquim estabelece intenso diálogo com a lírica dos grandes autores da literatura universal. É um dos mais importantes poetas moçambicanos, cuja dicção aponta para uma lírica que deliberadamente não quis se vincular à poesia de combate (embora tenha sido militante da Frelimo), nem à poesia independentista e de auto-afirmação, da qual Noémia e Craveirinha são ícones. É, ainda, um dos mais importantes críticos literários da atualidade, contumaz e sensível leitor de tudo que diz respeito à criação poética. É de Maputo, mas desde 1986 mora em Lisboa. Foi fundador e coordenador, de 1984 a 86, em Moçambique, da Gazeta de Artes e Letras, suplemento literário da reFotos: Maria Alice Amorim vista Tempo, importante espaço de divulgação dos escritores daquela década e dos anos 70. Publicou Monção, A Inadiável Viagem, Vinte e Tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora, Mariscando Luas, Lidemburgo Blues, a ópera Os Barcos Elementares, a peça teatral Vim te Buscar. Rogério Manjate, um autor prolífico


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Foto: Alexander Joe/AFP

Também veio ao festival recifense Rogério Manjate, que, em Coimbra, o bilíngüe (inglês/português) Dormir com Deus em dezembro de 2002, venceu, com o conto À Imagem e e um Navio na Língua. É do ano passado o livro de novelas As Semelhança, a 11ª edição do concurso Guimarães Rosa, prêmio Falas do Escorpião e de 1990 o premiado País de Mim (poesia), União Latina, da Rádio Francesa Internacional. O terceiro dois anos após ter conquistado o prêmio nacional de poesia moçambicano a vencer o concurso: Suleiman Cassamo ga- com Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave. nhou em 1995 e Afonso dos Santos, em 2000. Em MoçamUngulani Ba Ka Khosa, da mesma geração de White, consabique, Manjate conquistou primeiro lugar no concurso de grou-se com Ualalapi (1987), escolhido no ano passado como um literatura para crianças, no final do ano passado, com o poema dos 100 melhores livros africanos. Em 1994, esse livro já havia Casa em Flor, e a publicação do livro de contos Amor Silvestre recebido o prêmio nacional de ficção e, em 1990, o grande prêmio foi resultante de premiação. É autor da ficção narrativa. Ualalapi é, na realiprolífico, que passeia, com familiadade, considerado um livro emblemáridade, pela poesia e ficção, embora a tico, de narrativa metafórica, com força última esteja ganhando força, conforde avalanche, construída sobre base hisme ele próprio declara. tórica: a saga guerreira do império de Editado em Moçambique e PorManjacase mistura-se à do colonizatugal, da geração dos anos 80 e discídor, e a feitiçaria é descrita em grau supulo da dicção poética de Patraquim, perlativo. Ba Ka Khosa escreveu, ainEduardo White foi eleito, pela imda, Histórias de Amor e Espanto, Orgia prensa moçambicana, a figura literádos Loucos e No Reino dos Abutres. • ria de 2001, ano em que publicou, Luís Carlos Patraquim com o boneco de Manuel Bandeira (Maria Alice Amorim) Continente outubro 2003


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Foto: Frederico Rozário/ Agência Globo

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MÚSICA

SIVUCA

Sanfonia dos Sertões O sanfoneiro paraibano, que estudou com Guerra Peixe e viveu na Europa e EUA, prepara sua “Arca de Noé”: uma suíte sinfônica para sanfona e orquestra sobre Os Sertões, de Euclides da Cunha Kátia Rogéria Oliveira


MÚSICA 61 »

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om mais de seis décadas dedicadas à música, desde a origem no pequeno distrito de Campo Grande, município de Itabaiana, Paraíba, até o reconhecimento internacional, Severino de Oliveira, o Sivuca, pousa de volta na terra natal. Mas promete arrebatar todo o bando - de nordestinos, brasileiros e quanto mais queiram voar na sua música – por antigas e inusitadas paragens do cenário musical que concebeu ao longo dos anos. Em entrevista exclusiva à Continente, ele fala da “maravilha” de estar de volta às origens, depois de conquistar largos horizontes, e ainda cheio de planos a realizar. Mas reclama dos males que padecem também tantos bons artistas brasileiros. Exalta a educação como um caminho na valorização da boa música, diz que não se perdeu das raízes e revela os planos de um trabalho que, baseado em Os Sertões, de Euclides da Cunha, deverá traduzir toda a “pulsação” da música nordestina – sua “Arca de Noé”, como ele próprio define. Muitos shows e a produção de um disco, que é o encontro da sanfona com a sinfônica, preenchem o dia a dia desse músico nesta nova fase, marcada também pelo retorno ao convívio familiar.

Uma trajetória musical como a sua, marcada pelo êxito e a realização profissional, para uma pessoa que tinha talento, mas nenhum contexto social e econômico favorável, pode ser considerada uma exceção? Eu acho que sim. Na época em que a música dita erudita era propriedade de elite, para chegar aonde eu cheguei realmente foi mais do que um dom. Considero-me, no plano musical, uma exceção, porque a trajetória foi difícil. Eu não tinha meios. Para estudar um pouco, tive que sair do meu meio ambiente, que era Itabaiana. Mas já havia a convicção de que o que eu tinha, em termos musicais, facilitava para abrir todas as portas. Já saí de Itabaiana cônscio disso.

Mas, houve também os mestres que faziam tudo empiricamente? Sim, do sertão veio um cidadão chamado Manoel Araújo Freire, o Seu Né, que foi quem me deu as primeiras lições de – vamos dizer assim – concepção harmônica. Depois, indo para o Recife, eu conheci o maestro Guerra Peixe, que me ensinou as noções de música superior, de orquestração, de harmonia, enfim, quem me deu as coordenadas de como me comportar como músico, valorizando nossas origens. Foi o dia a dia e o mundo que me ensinaram o resto.

A convicção do fazer música já existia desde então... Você lembra como tudo começou? Comecei a tocar num 13 de junho de 1939. Dá para lembrar até a hora: duas e meia, três da tarde. Meu pai chegou meio “tocado” da feira, trazendo uma panela nova, cheia de mangaba, um filhote de gato amarelo no bolso e um fole de dois baixos que ele comprou na feira. Trouxe para meu irmão e eu comecei a tocar. Só saí de Itabaiana em novembro de 45, com a queda de Getúlio, indo para o Recife.

É verdade que, durante a fase no Recife, você pensou em criar um grupo musical junto com Hermeto Pascoal? Houve um episódio sim, no início da década de 50, quando pertencia ao quadro de artistas da Rádio Jornal do Commercio, fazendo os programas de auditório de tanto sucesso na época. Hermeto e seu irmão, José Neto, vindos de Caruaru, também tocavam acordeon. O jornalista Haroldo Praça, que era editor de esportes na Rádio, então sugeriu que nós formássemos um conjunto e até propôs um nome – O Mundo Pegando Fogo, numa alusão à cor da pele e do cabelo dos três. Mas ficou só na idéia.

E como foi o seu “preliminar” musical? Em Itabaiana, tinha uma escola de música. Muito precária, mas tinha. Funcionava na sede da União de Artistas e Operários e foi onde eu aprendi as primeiras notas musicais. O nome do professor era Mestre Antonio Caselli. Lá era também a sede da banda de música local.

A tecnologia hoje permite que alguém de talento grave um CD apenas por satisfação pessoal, mas também que se alastre a pirataria na área. Como você avalia tudo isso? Essa facilidade tem que ser bem administrada, senão a sociedade incorre no que já está acontecendo, que é a vulgaridade, a coisa de péssima qualidade tendo acesso à mídia e a verdadeira Continente outubro 2003


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62 MÚSICA música jogada para segundo plano, sendo quase excluída, como é o caso das orquestras sinfônicas das capitais brasileiras, que mal têm um anunciozinho na rádio quando fazem um concerto. Cantores medíocres, de músicas quase obscenas, tendo acesso total à mídia. Isso é o preço que a sociedade paga por facilitar os meios. Você vê que o disco hoje é democratizado, mas muita coisa de péssima qualidade vem à tona. O Brasil, até pela dimensão continental, tem uma grande diversidade na cultura musical. Isso é bem aproveitado? Acho que o Brasil é o grande encontro, o país onde a música popular é mais bonita e mais sofisticada. Mas é preciso vencer muitas barreiras. O forró hoje é uma realidade, um gênero musical tão forte quanto o frevo, o choro, o samba. Mas devido ao seu principal instrumento, sofre ainda um pouco, pelo preconceito que a sociedade elitista tem com relação à sanfona. Minha luta é justamente para eliminar esse preconceito. Por isso, em aprendendo música, escrevo principalmente para sanfona e orquestra. E a música instrumental nesse cenário? Xuxa: força das gravadoras multinacionais

Foto: Alex Larbac/Tyba

A música instrumental também sofre. A indústria fonográfica para a verdadeira música, atualmente, é quase que inoperante. Para a música instrumental principalmente. O público gosta, mas esbarra nos veículos de divulgação. Passa (toca) quem tem poder aquisitivo, quem não tem, não passa. A questão é econômica. No regime capitalista selvagem que nós vivemos, passa quem pode.

Esse é um problema mundial? Sim, o Brasil ainda é um oásis no contexto. Agora tudo é ditado pelo poder econômico. Você vê que as estações de rádio, na maioria, só tocam o disco indicado pela gravadora e, por conseguinte, pago para ser tocado. Muito diferente de quando iniciei na música. Existia todo um código de ética. Tocavam aqueles que tinham valor. Você vê que existiam os cantores, como Orlando Silva, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves. Apesar de pertencerem a gravadoras multinacionais, eram bons. Hoje o poder da mídia é tão grande que consegue impor Xuxa como cantora. O artista tem que ir aonde o povo está para reverter um pouco esse quadro? Eu nunca participei muito dessa máxima. Acho que o público tem que ir aonde o artista está, através de tudo, principalmente da educação. Porque a boa música atinge pessoas preparadas para escutá-la. Se o público estiver bem preparado para escutar a boa música é sinal de que a educação no país vai bem. A educação seria então um caminho para a valorização da música? Exatamente. Nos países ditos civilizados, o ensino de música nas universidades é obrigatório, independentemente da área. Isso melhora muito a concepção do cidadão como ouvinte de música. Em termos econômicos, como é fazer música de boa qualidade? Para quem encontra o ponto de equilíbrio entre não ter nada e não dever a ninguém, é ótimo. Mas no Brasil, como no mundo todo, fazer música é uma maneira de ser roubado. Um desafio economicamente. É como a literatura no Brasil. Pouca gente vive de literatura, e pouca gente vive de música. Mas acho que já houve uma evolução. O Brasil é um país referencial em se tratando de direito de autor. Nós temos uma legislação boa, falta muita coisa sair do papel.

Agora, tudo é ditado pelo poder econômico. Você vê que as estações de rádio, na maioria, só tocam o disco indicado pela gravadora e, por conseguinte, pago para ser tocado. Hoje o poder da mídia é tão grande que consegue impor Xuxa como cantora

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Foto: Cláudio lima

Aprendi, mesmo, como músico na minha temporada nos Estados Unidos, porque lá também é uma região em desenvolvimento, apesar de tudo. Eu estudei muito e aprendi inclusive a me organizar, porque em música mesmo já saí daqui preparado. Ia passar seis meses nos Estados Unidos e acabei ficando 13 anos Sivuca prepara uma suíte sinfônica sobre O s Sertıes (O Reformista, Descartes Gadelha, acervo da Universidade Federal do Ceará)

Você acha que as raízes são determinantes na trajetória musical de um artista? Como foi no seu caso? Sem dúvida. Sou nordestino, nasci nordestino, e a minha música ainda hoje reflete a minha origem. As raízes nordestinas estão na base do meu trabalho, embora incorpore vários outros elementos. Vivi 18 anos fora do Brasil, cinco na Europa e 13 nos Estados Unidos. Saí por várias razões e a primeira foi procurando aprender, melhorar minha música. Se bem que da Europa eu não tive muita coisa a aprender, porque a música européia é uma música antiga, apesar do impressionismo de Ravel. Aprendi, mesmo, como músico na minha temporada nos Estados Unidos, porque lá também é uma região em desenvolvimento, apesar de tudo. Eu estudei muito e aprendi inclusive a me organizar, porque em música mesmo já saí daqui preparado. Foi na época do golpe de 64. Ia passar seis meses nos Estados Unidos e acabei ficando 13 anos.

Em algum momento você pensou em mudar isso? Houve um tempo em que eu tive que por a sanfona em segundo plano. Foi quando morava nos Estados Unidos, porque lá é um instrumento que ninguém gosta. Passei a tocar violão. Era guitarrista e tocava sanfona de vez em quando, como curiosidade. Aqui no Brasil já tem melhorado muito. As orquestras sinfônicas já aceitam organizar concertos – comigo, por exemplo – com a sanfona. Antigamente isso era inconcebível. Mas falta também o conhecimento didático. A sanfona é um instrumento novo e não tem uma literatura muito aprofundada a respeito. No Brasil, começou se disseminar mais no começo do século 20. Muito ligada à música folclórica, porque foi o instrumento criado pelo camponês, tanto na Europa, como adotado pelo camponês no Brasil. Era o instrumento básico para afugentar a solidão no campo.

Qual o limite entre a evolução e a descaracterização nessa trajetória musical? É quando você sente que os ingredientes do exterior não são influências, você começa a usá-los diretamente. Aí você está se perdendo. Em termos de tempo, 10 anos fora do País acho que seria o limite. Eu passei mais, mas apesar disso não me perdi das minhas origens. Não perdi nem mesmo o meu sotaque.

Nesse retorno à Paraíba, você se vê num momento de plenitude, total realização, ou há muitos planos a concretizar? Está sendo maravilhoso, com a sensação do dever cumprido e com a vontade de dividir a minha experiência com a juventude e, na medida do possível, colaborar com o movimento cultural paraibano, no tocante à música. Estou muito feliz por ainda ter forças para fazer tudo isso. Quero criar e fazer sair do papel meu cronograma musical. Primeiro, vou terminar a suíte sinfônica que estou fazendo, inspirado nos capítulos de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que será chamada também Os Sertões. Acho que é a minha “Arca de Noé”. •

Voltando à sanfona, por que ainda sofre preconceito? É um instrumento pouco difundido? Não, ele é bem difundido, mas sofre preconceito. Tanto que eu sou o único músico que começou com sanfona e continua com sanfona como instrumento.

Kátia Rogéria Oliveira é jornalista.

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Reprodução de fotograma do filme Casablanca

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CINEMA

Casablanca

Um clássico por acaso A produção de segunda que prometia fazer uma carreira de terceira, e que se tornou uma espécie de obra-prima do acaso, completa 60 anos como título seminal nascido da indústria, com tudo que ela tem de bom e de ruim Fernando Monteiro

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esiludido e amargurado até quase o completo cinismo, o “herói fatigado” é o herói cujo perfil cinematográfico ganhou nitidez e relevo com um filme – hoje clássico – que nasceu quase do acaso, há 60 anos, recém-comemorados festivamente, em Hollywood. Trata-se, é claro, de Casablanca (1943) e do seu personagem principal, Rick Blaine, encarnado por Humphrey Bogart, um dos mais carismáticos atores da história do cinema, merecedor desta admirável síntese do crítico francês André Bazin: “Na sua mão, o revólver chega a ser uma arma intelectual”... Nascida de muitas composições (e não só de Bogart, diga-se a verdade), a fatigada figura de Rick se foi plasmando dos muitos filmes policiais produzidos principalmente nos estúdios da Warner Bros, entre 1930 e 1940, onde Humphrey começou a aparecer, mais morto do que vivo: “Nos meus primeiros 30 filmes, fui abatido doze vezes, eletrocutado ou enforcado oito vezes e fugi da prisão nove vezes. Meu principal problema não era dar vida aos personagens, mas, sim, encontrar uma nova maneira de dizer ‘aaargh’ e de cuspir sangue.” Não chegando a ser um cínico de nascença, mas talvez tentando aparentar o máximo de indifferentism com o mínimo de esforço dos verdadeiros entediados (existenciais ou políticos), esse ser de um século sem ilusões nasceu, por contradição, da ilusão do cinema – antes dominado por vagas estrelas e astros ainda mais vagos.


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O roteirista Koch mais tarde afirmaria que a “multiplicidade de visões disparatadas” é que, paradoxalmente, havia contribuído para o êxito do filme, assim como se justamente o “caos” houvesse produzido uma obra mais livre daquela massa desconexa

Primeiro ente de “carne e osso” formado, de modo autônomo, pela mitologia criada nos limites da indústria do entretenimento, sua summa kinematica só se apresentaria completa em 1943, na pele de celulóide daquele Rick sem eira nem beira, dono de um café-bar improvável, numa Casablanca de estúdio, pintada apressadamente. No velho dinner espanado pelas costureiras, Humphrey De Forest Bogart – pau pra toda obra – seria o convocado para vestir a roupa e a falta de motivos da criatura que estivera sendo construída meio involuntariamente até se encarnar naquele ator de características físicas bem distantes do padrão dos Valentinos e das Garbos. Nascia, ali, a melhor representação do herói descrente (e machucado), que se redime, no último momento, daquele modo disfarçado dos durões sem direito à cena final do beijo – como acontece com o falso de Casablanca, que não podia nem ouvir dedilhar, ao piano, uma certa canção “proibida” no seu Café Américain... Produto da “arte do rosto” – segundo Joseph Sternberg –, é preciso lembrar que um filme (qualquer filme) pertence aos atores de um modo cuja perspectiva estamos perdendo. O poder da sua máscara é capaz de emprestar “pensamentos”, 24 quadros por segundo, a uma imagem-fantasma repetida em milhares e milhares de fotogramas... e essa é a lição que temos a reaprender (ainda uma vez, Sam) com Casablanca, como título seminal nascido da indústria, com tudo que ela tem de bom e de ruim. Só que, aqui, até o ruim colaborou com o bom – e com a lenda do filme dirigido pelo competente artesão Michael Curtiz. A “fita” tinha tudo para ser apenas mais uma, no caos dos estúdios americanos fixados nas bilheterias, e nada mais. Seu primeiro incidente foi ainda na fase de roteirização (da peça teatral inédita Everybody comes to Rick, de Murray Burnett e Joan Alison), quando os irmãos Epstein, roteiristas renomados, pediram para sair de Casablanca com apenas uma sucessão de cenas descosidas, que foram destinadas a Howard Koch, com a enigmática indicação: “Retrabalhar”. Koch tinha a seu crédito a versão de Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, escrita para Orson Welles assustar todo mundo, pelo rádio. A história de amor de Rick e Ilsa lhe chegou às mãos com o prazo mais curto, verdadeiro “abacaxi” para testar a imaginação (e a rapidez) de novos roteiristas. Quem conta é P. Vasquez: “Acreditando que sua carreira seria sepultada com o fracasso do filme, conformou-se em ir entregando as cenas no mesmo dia em que deveriam ser rodadas, esperando obter al-

gum nexo no final. O clima de imprecisão deixava os atores completamente desnorteados. Ingrid Bergman confessou (em sua autobiografia) ter terminado o filme sem saber por quem deveria estar apaixonada, se por Paul Henreid ou Bogart. Este último, acostumado a decorar seus papéis antes de chegar ao estúdio, pulava de raiva, trancando-se em seu camarim entre as tomadas. Para complicar ainda mais as coisas, o diretor Michael Curtiz estava interessado no aspecto sentimental da intriga, enquanto Howard Koch preocupava-se unicamente com os aspectos políticos, tencionando fazer um libelo contra o fascismo...” De toda essa loucura, o resultado seria surpreendente: três Oscars – de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro (Humphrey Bogart foi apenas indicado). O roteirista Koch mais tarde afirmaria que a “multiplicidade de visões disparatadas” é que, paradoxalmente, havia contribuído para o êxito do filme, assim como se justamente o “caos” houvesse produzido uma obra mais livre daquela massa desconexa, a princípio, mas que, pouco a pouco, fora se encontrando fora do engessamento das produções do gênero (e de série) de Hollywood. Pode ser. Houve, porém, o concurso de mais do que o acaso na tensão do seu próprio roteiro – de diálogos curtos e duros – a partir do argumento então muito “atual” e localizado num cenário “oriental” correspondente a um estereótipo que a realidade da guerra reforçava, etc. O mundo temia o nazismo, naquele 1943, e ali estava um herói recalcitrante e, no final (mas apenas no final), dispondo-se a sair da sua indiferença sofisticada. Dois finais foram rodados, porém prevaleceu aquele final envolto em brumas e perigo – por sobre o subtema da amizade que se afirma, no ambiente de desconfianças e traições. No mês de lançamento de Casablanca, foi justamente na cidade marroquina que se deu o célebre encontro dos líderes aliados (nenhum “marqueteiro” poderia pedir mais, para alavancar o que se tornaria o maior êxito da Warner, desde The Jazz Singer, de 1929). E uma curiosidade hoje esquecida: Passagem para Marselha, com o mesmo elenco – exceto pela ausência de Ingrid Bergman, substituída pela francesa Michèle Morgan – e até o mesmo diretor, iria ser, em 1944, a inútil tentativa de repetir o êxito do filme-ícone de Hollywood. Mas faltava algo, ou estavam as peças todas no lugar, demasiadamente, para se dar, de novo, a mágica do clássico saído quase do acaso. • Fernando Monteiro é escritor, poeta e cineasta. Continente outubro 2003


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CINEMA

Fotos: Divulgação

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Foto: Elpídio Suassuna

Ser(tão) Recife e Sevilha

Rua da Aurora, Recife. Acima, Torre da Giralda, Sevilha

Documentário apresenta o olhar poético de João Cabral de Melo Neto sobre Recife e Sevilha

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roteirista e diretor carioca Bebeto Abrantes conheceu Recife e Sevilha através da poesia de João Cabral de Melo Neto e decidiu apresentálas ao espectador ao filmar Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto, documentário que é uma poesia visual: retrata a obra, a vida e o homem-poeta de forma incisiva e concreta, como a linguagem cabralina. Rodado nas duas cidades, que seriam inconciliáveis, caso nelas João Cabral não tivesse vivido e as relacionado poética, histórica e esteticamente, o filme trata do seu universo – o Recife do rio Capibaribe, o menino de engenho, o rapaz aventureiro, os canaviais da Zona da Mata, a vida severina dos sertanejos; e a Sevilha do andarilho por força da carreira de diplomata, dos cantadores e bailadoras, das touradas, das mulheres, das calles e plazoletas espanhóis. No poema Auto-crítica está a origem da película e, segundo o diretor, a chave da vida e obra do autor (que nunca, em nenhum verso, escreveu a palavra saudade): “Só duas coisas conseguiram/ (des)feri-lo até a poesia:/ O Pernambuco, de onde veio/ e ao aonde foi a Andaluzia./ Um, o vacinou do falar rico/ e deu-lhe a outra fêmea e viva,/ desafio demente: em verso/ dar a ver Sertão e Sevilha.”


CINEMA 67 »

Bebeto Abrantes e o poeta João Cabral de Melo Neto,durante as gravações, em 1999

A tradução da poesia para o cinema foi exercitada com base nas lições cabralinas: visualidade e concretude, rigor e concisão, gosto pela forma sem descuido do social, contundência e antilirismo, memória e fazer poético. “Linguagem audiovisual construída, pictórica, não naturalista, nem sempre ilustrativa”, define, imageticamente, Bebeto. A idéia de Recife/Sevilha nasceu em 1990, num período em que a TVE (televisão espanhola) procurou Bebeto Abrantes para realizar uma co-produção. Ele lembra que imediatamente pensou em João Cabral de Melo Neto por ter sido quem sensivelmente aproximou as culturas nordestina e andaluza. “Ele é um dos maiores poetas da língua portuguesa. Seus versos, do primeiro ao último, nunca sofreram de ‘flacidez-criativa literária’. Pelo contrário, sempre primaram pelo rigor, pela construção de uma linguagem muito própria e isso exige um esforço brutal, de vida inteira”, reconhece. Produzido durante três anos (de 99 a 2002), as intervenções de João Cabral foram realizadas um pouco antes dele falecer. Bebeto diz que o procurou durante um bom tempo, mas a cegueira gradativa o levou à depressão. “Só em 1999, ele decidiu abrir as portas de sua memória e coração para nossa equipe. Foram mais de sete encontros, as últimas entrevistas audiovisuais dele”, antecipa. Nos anos seguintes, a equipe partiu para fotografar Barcelona, Sevilha e Pernambuco, seguindo a trajetória do poeta. “João não apenas registrou essas realidades. Ele extraiu lições de ética e estética dos universos

Recife e Sevilha seriam cidades inconciliáveis, caso nelas o poeta não tivesse vivido e as relacionado poética, histórica e esteticamente

pernambucanos e andaluzes. No fundo, além do prazer de ver e viver estas experiências, era isso o que lhe interessava”. Captado em mini DV e Super 8 e copiado para 35 mm, o documentário tem 52 minutos e é conduzido pelos poemas, depoimentos e casos narrados de viva voz por João Cabral, além de mostrar microdocumentários com imagens inéditas de suas passagens por várias partes do mundo, algumas na companhia do poeta Murilo Mendes, e de um sarau, realizado em Genebra, provavelmente em 1964, em que ele “troca farpas carinhosas” com Vinicius de Moraes. O filme tem colhido prêmios onde é exibido: ganhou o Prêmio Estímulo da Brasil Telecom, no Brasil Documenta II; o Prêmio Estímulo do MinC no Festival “É Tudo Verdade”; participou da Mostra Competitiva de Documentários de Longametragem do 31º Festival de Cinema de Gramado e vai participar da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. No Recife, a expectativa de Bebeto é que ele seja selecionado para o CinePE 2004, a ser realizado em abril do próximo ano. • (Isabelle Câmara) Continente outubro 2003


68 CINEMA

Existem looks criados para a indústria cinematográfica que fazem muito mais que realçar a identidade de uma personagem Alexandra Farah

Em cena,

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á poucos dias, um amigo veio me contar que agora usará o cabelo igual ao de Wolwerine, de X-Men 2, filme que ele assistiu. No mesmo dia, no jantar, um outro queria saber onde comprar um casaco preto igual ao de Keanu Reeves em Matrix Reloadead. Como se dizia na década de 30, cinema é “estilo em movimento”. Os filmes têm vida, a personagem sofre, briga, se apaixona... e, se for convincente, você se envolve e sai do cinema querendo ser igual a ela – o que inclui vestir-se como ela. Todo mundo já passou por isso. E a história está longe de ser nova. No início dos anos 30, 50 mil cópias de um vestido branco que Joan Crawford usara no filme Redimida (Letty Lynton) foram vendidas na loja de departamento Macy´s, nos Estados Unidos. Na época, ainda não existiam referências como televisão, desfiles de moda, revistas e tapete vermelho, e era na grande tela que as mulheres buscavam as últimas informações de moda. Das roupas nos filmes, há muito que falar: o encontro das duas indústrias mais glamourosas do planeta, o cinema e a alta-moda, promove crises de egos e ciúmes, é certo. Mas também de criações que fazem bem mais que realçar a identidade de uma personagem – função primeira de um figurino. Em um filme, é natural que o guarda-roupa seja subserviente à história. Mas há aqueles em que o figurino é protagonista. E é assinado por uma grife tão poderosa quanto a estrela que o usa. É destes que estamos falando. Desde os anos 20, Hollywood promove o visual de suas atrizes como parte do marketing de divulgação dos filmes, que hoje inclui também o look que é apresentado no tapete vermelho do Oscar. Mas foi só no começo da década de 30, depois de perder muito dinheiro com o sobe e desce das bainhas,

Fotos:Divulgação

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Channel veste Gloria Swanson em Esta Noite ou Nunca (1931), primeiro filme no qual a estilista trabalhou

o figurino imposto deliberadamente pelas principais maisons, que Hollywood decidiu se aliar de maneira oficial a Paris. Os estúdios perdiam tanta bilheteria com os caprichos das passarelas (a moda mudava rápido, e o filme já chegava aos cinemas ultrapassado), que Chanel, a maior, foi recrutada para ser figurinista de três produções em Los Angeles por um valor ainda hoje inigualável: 1 milhão de dólares. Na época, Paris liderava a moda, mas Hollywood havia conquistado o mundo. 1931 é o ano do primeiro filme de Chanel, Esta noite ou nunca. Chanel vestiu a estrela Gloria Swanson, que interpreta uma cantora cujo único problema é não amar, à sua imagem e perfeição: tailleurs, pérolas, vestidos pretos. Atriz e estilista não se deram nada bem. Chanel era famosa demais, não precisava de Hollywood e Swanson se considerava a atriz mais bem vestida do cinema. Já a surrealista Elsa Schiaparelli, a mais importante estilista dos anos 30, amiga de Salvador Dali, sempre respeitou o poder do cinema, usou disto para promover sua maison e deixou para a história figurinos encantadores como o de Pigmaleão, primeira versão cinematográfica do livro de Bernard Shaw (em 1964, a história foi novamente filmada como o musical My Fair Lady, vencedor de oito Oscars). Christian Dior, criador do revolucionário New Look (cintura fina e saias amplas) apesar de se irritar com o fato de o cinema valorizar mais a imagem final do que a roupa em si, era apaixonado pelos costumes de época e, a partir dos anos 40, desenhou poucos, mas inesquecíveis figurinos, como os de Marlene Dietrich, em Pavor nos Bastidores, de Alfred Hitchcock. Hubert de Givenchy foi o estilista mais bem-sucedido em Hollywood e será para sempre marcado como o criador do influente estilo Audrey Hepburn. Com Audrey Hepburn ele fez sete filmes, começando com Sabrina, de 1954. Em Bonequinha de Luxo, de 1961, Givenchy e Audrey criaram a imagem ícone da moda no cinema: o amanhecer de Audrey de


Audrey Hepburn e Hubert Givenchy (juntos em sete filmes): imortalizados com a imagem do pretinho básico com colar de pérolas.

vestido pretinho e colar de pérolas na porta da joalheria Tiffany, em Nova York. Yves Saint Laurent, segundo François Truffaut o maior cinéfilo entre os costureiros, formou com Catherine Deneuve, depois de A Bela da Tarde, a única dupla capaz de competir com Audrey-Givenchy. Com Truffaut e Deneuve, YSL fez o belo Sereia do Mississippi (1969). Ralph Lauren tirou peças de suas coleções comerciais para vestir Robert Redford (O grande Gatsby) e Diane Keaton (Noivo neurótico, noiva nervosa), na década de 70, e assim o prêt-à-porter entrou definitivamente para o cinema. Giorgio Armani, o estilista que participou de mais longas até hoje (quase 100), definiu a estética dos anos 80 com o terno que exalava sexo e poder, em Gigolô Americano. Gaultier é o espetáculo em sua melhor definição. Na década de 90, criou figurinos muitas vezes mais fortes que o roteiro dos filmes em que trabalhou. O cozinheiro, o ladrão, sua esposa e o amante (Peter Greenaway, 1989) é considerado um dos melhores figurinos de todos os tempos no cinema. Em Kika (Pedro Almodóvar, 1993), onde vestiu a personagem Andréa Caracortada, ele usa a alta-costura para ironizar o look uniformizado das apresentadoras de tevê. O poeta Yohji Yamamoto, o mais novo estilista a colaborar com o cinema, já foi personagem de um documentário de Win Wenders (Cadernos sobre cidades e roupas, 1989) e nos anos 2000 fez dois filmes com o cineasta Takeshi Kitano: Brother, e o sensível Dolls, de 2002. No Brasil, apesar de ser a televisão – e não o cinema – que propaga tendências de life style (vestuário, inclusive), também temos produções com looks memoráveis, como os de Dener (que fez Moral em Concordata, em 1959, sob direção de Fernando de Barros, que mais tarde se tornaria o pioneiro editor de moda masculina), Clodovil, Guilherme Guimarães, Markito, Lino Villaventura e Ocimar Versolato. Os estilistas nunca ganharam um Oscar de Melhor Figurino – Dior e Givenchy já concorreram, uma vez cada um. Entretanto, milhares de pessoas no mundo inteiro seguem à risca os modelos criados por eles. Que estatueta vale mais do que isso? Isso sim é troféu. • Alexandra Farah é jornalista.


Catherine Deneuve e Yves Saint Laurent, que trabalharam juntos em A Bela da Tarde e Sereia do Mississippi, formaram a única dupla capaz de competir com AudreyGivenchy

Gaultier, na década de 90, criou figurinos muitas vezes mais fortes que o roteiro dos filmes em que trabalhou. O cozinheiro, o ladrão, sua esposa e o amante (Peter Greenaway, 1989) é considerado um dos melhores figurinos de todos os tempos no cinema. Em Kika (na página anterior), de Pedro Almodóvar, onde vestiu a personagem Andréa Caracortada, ele usa a alta-costura para ironizar o look uniformizado das apresentadoras de tevê

Em filmes como Pavor nos Bastidores, Tieta, Dolls e O Grande Gatsby (da esq. para a dir.), o figurino também protagoniza o filme


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72 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Ostra e companhia "Aprenderá a caminhar na lama, como goiamum e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos" João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina)

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uas notícias para quem for apreciador de ostras. Uma ruim, outra boa. A boa é que você está na companhia de gente muito importante. Como o imperador romano Vitelio – famoso por sua crueldade e por seu apetite, comendo mil ostras em um só dia. O tribuno Mirabeau – que, entre duas sessões da Assembléia Nacional Francesa, consumiu mais de trinta dúzias. O general Junot – comandante das forças napoleônicas durante a ocupação de Portugal, que começava seus jantares lisboetas com 10 dúzias delas. Ou o sedutor e aventureiro veneziano Giacomo Casanova – que recuperava forças dispendidas com as mais de mil mulheres que teve, saboreando uma dúzia no café da manhã e outra no almoço. A noticia ruim é que, por aqui, você nunca encontrará pérolas em ostras. Nem as naturais (de melhor qualidade e mais caras), encontradas em Sri Lanka, Austrália e Golfo Pérsico. Nem as cultivadas, produzidas sobretudo no Japão – entre elas Akaya Gai, South Seas, Mabe, Blister, Barroca. Que as espécies brasileiras – encontradas no litoral de Santa Catarina, no litoral sul de São Paulo e nos mangues do Nordeste – nunca produziram uma sequer. O gosto pelas ostras vem de longe. Na Grécia, sua serventia ia além das mesas – prestando-se até para contagem de votos. Em Roma, chegou a ser usada como moeda. No

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reinado de Diocleciano – imortalizado não por isso, mas sobretudo por perseguir cristãos. Com o terceiro Apícius, aprendemos a cultivá-las. Foram quatro gerações de grandes cozinheiros com esse mesmo nome. O último e mais famoso deles nos deixou, talvez, o mais importante guia gastronômico da Idade Media – De Re Culinária. Além de alguns hábitos excêntricos – como o de ir até costas da África, em navio fretado, apenas para sentir o gosto de novas espécies de ostras (e lagostas). Devem ser comidas frescas, com bem pouco tempero. Preferencialmente, apenas algumas gotas de limão. Durante muito tempo, dizia-se que eram melhores em meses que levam a letra “R” – de setembro até abril, portanto. Tempo de frio europeu, que melhor conserva os alimentos. Em nosso hemisfério sul seria o contrário. Mas essa regra, nos dias que correm, já não tem serventia. Por conta de modernas técnicas de cultivo e conservação das ostras. Nossos índios sempre apreciaram comidas de rio e mar. Explicando-se essa preferência pelo seu sabor, claro; mas


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Foto: Léo Caldas/ Títular

também por serem, em relação aos animais, aqueles mais fáceis de ser capturados. Ainda hoje se encontram, ao longo do litoral, restos fossilizados de ostras, conchas, mariscos, camarões, lagostas, caranguejos, siris, aratus. Junto a pedaços de seixos lascados, pontas de lança ou flecha, potes de barro e outros objetos usados na preparação de crustáceos. O nome vem do latim crusta (carapaça dura). Porque são, todos, dotados de carapaças – nos jovens renovadas, para permitir seu crescimento, a cada duas semanas. Nos adultos menos, só duas vezes por ano. Caranguejo, aratu e siri vêm quase sempre do mangue. E estão cada vez mais presentes em mesas requintadas. Onde virou moda servir crepe de siri, fritada de caranguejo ou ensopado de aratu. Entre os crustáceos, destaque absoluto para o camarão. De mar ou, muito mais saboroso, de água doce. Pero Vaz de Caminha dá testemunho: “Alguns índios foram buscar mariscos e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o

vi tamanho”. Falava do mais famoso dos camarões de rio – o pitu. Como contraponto à pesca artesanal desses camarões de rio, desenvolve-se agora uma criação industrial. Especialmente pelo Nordeste. Porque temos, aqui, clima e temperatura de água ideais para essa criação. O cultivo se dá em viveiros. Com a epécie Vennamei, proveniente do Equador. Outro crustáceo de grande prestígio é a lagosta. O nome vem do latim locusta (donde langouste na França, langosta na Espanha, aragosta na Itália, langust na Rússia, lobster na Inglaterra). Está presente em todos os continentes. Há 33 espécies diferentes delas. Com gosto variando em função das águas em que forem pescadas. Nos mares gelados do Maine (EUA), por exemplo, com sabor mais acentuado – em função da maior salinidade. Em águas tropicais, como as nossas, com sabor mais suave. Pode ser preparada grelhada (por 5 minutos) ou cozida (por 10 minutos). Mas, atenção: quanto mais asse ou cozinhe, mais vai se desidratar e ressecar. Nada a estranhar, dado ser formada por 80% de água. As espécies que habitam arrecifes saem só à noite, em busca de alimento. Sua pesca manual se faz, nessa hora, sobretudo com fachos – estopas embebidas com querosene, presas por hastes. Em noites sem lua e, preferencialmente, de maré crescente. A pesca da lagosta, em alto mar, foi até motivo de uma quase guerra, com a França, em fevereiro de 1963. O argumento francês era de que “lagostas nadam”. Não. Lagostas não são peixes. Não nadam como eles. Nem nossos amigos franceses estavam discutindo verdadeiramente isso. O que não aceitavam era o novo limite do mar territorial brasileiro – que então passou de 6 milhas (distância de um tiro de canhão), para 200. Navios de guerra franceses, entre eles o destroyer Tartu, cruzaram o Atlântico. O Jornal do Commercio, do Recife, publicou em primeira página declaração do Presidente Goulart – “a presença de navio de guerra francês a 90 milhas do litoral é anormal e injustificável”. Do Recife decolavam aviões de reconhecimento da FAB e toda uma força tarefa de nossa Marinha. Felizmente, tudo acabou bem. Nada a estranhar. Que, como dizia o pai de Fernando Sabino – falando não de lagosta, mas da própria vida – “no fim, tudo acaba bem. E se não acabou bem, é que ainda não chegou no fim”. • Maria Lecticia Cavalcanti é professora.

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SABORES PERNAMBUCANOS

RECEITAS: Foto: Léo Caldas/ Títular

PÃO FRANCÊS COM OSTRAS INGREDIENTES: 15 ostras frescas, 30 ml de suco de limão, 50 ml de suco de laranja, 30 ml de vinho branco, 100 gr de manteiga sem sal, 12 fatias de pão francês (grelhado com azeite de oliva e alho), 1 colher de chá de tomilho, 1 pitada de canela, 1 pitada de nozmoscada, sal a gosto. PREPARO: Lave a ostra, cuidadosamente. Abra e retire da concha. Em uma panela coloque suco de limão, de laranja e vinho. Deixe ferver até reduzir pela metade. Junte as ostras e deixe no fogo, por 1 minuto. Retire as ostras do caldo, com escumadeira. Volte a ferver o molho e junte sal, tomilho, canela e noz-moscada. Junte a manteiga, aos poucos. Vá misturando, energicamente, até o molho engrossar. Coloque no prato a fatia de pão torrado e, por cima, as ostras. Regue com o molho. Decore com ervas e sirva. PITU COM PIRÃO PITINGA INGREDIENTES PARA O PITU: 5 kg de pitu, leite de coco grosso retirado de 3 cocos, 3 cebolas grandes, 4 tomates, 1 pimentão verde, 2 pimentões vermelhos, coentro, cebolinha, azeite de oliva, sal e pimenta. PREPARO: com uma faca bem afiada, corte logo acima dos olhos dos pitus, para retirar os intestinos (que ficam na cabeça). Escalde os pitus em uma panela grande com água e sal, até mudarem de cor (ficarão bem vermelhos). Escorra, descasque e reserve. Em outra panela refogue no azeite cebola, tomate, pimentão e cheiro verde. Junte o leite de coco e deixe ferver bem. Retire o pimentão verde e o cheiro verde (para não escurecer o molho) e passe todo o resto do molho no liquidificador e na peneira. Volte para o fogo. Junte o sal e a pimenta. Acrescente o pitu e desligue o fogo. Sirva em travessa grande - colocando Continente outubro 2003

primeiro o pirão pitinga e, depois, o pitu com bastante molho. Regue com fio de azeite. INGREDIENTES PARA O PIRÃO PITINGA: ½ kg de massa de mandioca, 2 cebolas grandes cortadas em rodelas, azeite de oliva, 500 ml de leite de coco, ½ litro de leite, sal. PREPARO: deixe a massa de molho numa tigela coberta com água. Quando toda a massa assentar no fundo da tigela, escorra a água. Refogue a cebola no azeite e leve ao liquidificador. Vá colocando a massa aos poucos, junto com o leite de coco e o leite de vaca. Depois de bem batida, passe a mistura pela peneira e leve ao fogo, mexendo sempre para não embolar. Tempere com sal. Se necessário, junte mais leite de coco. Até ficar com consistência de mingau grosso.


ANÚNCIO


76 ARTES

CÊNICAS

Fotos: Guto Muniz/Divulgação

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O circo contemporâneo mistura dança, teatro e música com novas tecnologias

Festival Mundial de Circo do Brasil acontece pela primeira vez no Recife e pretende mudar o cenário da arte circense local

Hoje tem espetáculo

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e 17 a 26 de outubro, o Recife vai virar um picadeiro. Palhaços, trapezistas, mágicos, malabaristas, contorcionistas, cuspidores de fogo, músicos, equilibristas e bailarinos de todo o mundo aportarão na cidade e a transformarão numa tenda de diversão e beleza – com direito a pipoca, algodão-doce, brincadeiras, adrenalina e aplausos. A lona para a realização da primeira edição do Festival Mundial de Circo do Brasil – Conexão Nordeste será montada no Centro Cultural Tacaruna, no entroncamento do Recife e Olinda. A alegria e a celebração? Vão tomar conta de todo o país. O Festival Mundial de Circo do Brasil – Conexão Nordeste é uma extensão de outro homônimo, realizado desde 2001 em Belo Horizonte. A versão pernambucana deve ser a convergência das ações e debates dos Estados do Nordeste. Também busca difundir o circo contemporâneo e desenvolver o gosto pela arte circense. “Queremos estimular a formação de novas platéias e iniciar um processo de valorização e fortalecimento da arte em Pernambuco”, esclarece Danielle Hoover, uma das produtoras da Conexão Nordeste.

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Os músicos foram incorporados ao circo em 1770, por Philip Astley


Segundo os chineses, foi na China, com a arte acrobática, que o circo nasceu

Para acolher o evento, o Centro Cultural será transformado na Cidade do Circo, que terá uma grande lona, com capacidade para duas mil pessoas, e uma área externa com infra-estrutura para lanchonetes, restaurantes, lojas especializadas, estandes dos patrocinadores e palco para shows. A programação é diversificada: conta com apresentações de escolas de circo e de grupos nacionais e internacionais, como o The Chipolatas Street, da Inglaterra, D’irque, da Bélgica, Cirque du Soleil, do Canadá, e o Rasta Mombasa, do Kenya; mostras competitivas, das quais participarão artistas da Argentina, França, China, Rússia, Brasil, entre outros; shows de Antônio Carlos Nóbrega e Cordel do Fogo Encantado; palestras; debates; exposição sobre a história do circo; exibição de filmes; lançamento do livro Palhaços; oficinas de malabarismo, clown, técnicas aéreas e ilusionismo; e vivências circenses. Um outro objetivo do evento é incluir socialmente crianças e jovens através da arte, experiência que tem tido êxitos em todo o país e que em Pernambuco é desenvolvida pela Arricirco e Escola Pernambucana de Circo, entidades que preparam novos artistas e hoje atendem a crianças e adolescentes em situação de risco. O Festival deve revigorar o circo pernambucano, visto que é fala recorrente entre artistas e produtores a ausência de uma política pública para a arte. Será um espaço privilegiado para contatos, trocas e fomento às novas idéias e ações. “Queremos renovar a imagem do circo pernambucano e estimular a criação do movimento local de escolas de circo”, planeja Danielle. • (Isabelle Câmara)

Debaixo da lona E

x-trapezista, ao pensar num tema para sua tese de livredocência, o graduado em Filosofia pela UNESP, com mestrado e doutorado pela Escola de Comunicação e Artes da USP, Mario Fernando Bolognesi, escolheu a figura do palhaço. Mais especificamente, o palhaço circense. E, melhor ainda, o palhaço desses circos mambembes que perambulam pelas cidades do interior levando divertimento acessível e caloroso ao respeitável público. O resultado, após uma pesquisa de três anos por todas as regiões do Brasil (com exceção do Norte), é o livro Palhaços (Editora Unesp, R$ 29,00 – 296 páginas), que será lançado no Festival Mundial de Circo do Brasil, no dia 23. O livro é um amplo estudo desta figura tão simpática quanto versátil, a partir de suas origens – e das origens do circo – até a maneira como continua sobrevivendo no mundo da televisão, da Internet, dos shoppings centers e do império fílmico norte-americano. É também um livro que se lê prazer, porque, inevitavelmente, nos remete às gargalhadas que estes artistas populares sabiam e sabem arrancar das crianças que um dia fomos. E que, talvez, ainda sejamos.

Festival Mundial de Circo do Brasil – Conexão Nordeste, de 17 a 26 de outubro, no Centro Cultural Tacaruna, Recife – PE. Informações: www.festivaldecircodobrasil.com.br Continente outubro 2003


78 TRADIÇÕES

Ilustrações:Acervo pessoal

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Folheto com xilogravura do fantástico, de J. Borges

A arte da xilogravura Ao contrário do que se diz, as primeiras gravuras populares não nasceram com literatura popular em versos, a chamada literatura de cordel Jeovah Franklin Continente outubro 2003


TRADIÇÕES 79 »

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Foto: Alcione Ferreira/ DP

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artista popular brasileiro de maior projeção in- Recife: “Parem com essa brincadeira. Ninguém vai querer ternacional é o xilogravador J. Borges. Com tra- trocar os traços finos de uma princesa por uma imagem tosca balhos expostos na Suíça, Portugal, Alemanha, da xilogravura”. E ainda havia o ditado popular: fulano é feio França e Espanha, Venezuela e Estados Uni- como uma capa de cordel. dos, nunca realizou uma exposição em sua cidade natal, A interiorização da indústria de folheto começou com as Bezerros, no agreste pernambucano. Em cenas falsamente in- dificuldades de se confeccionar clichês metálicos. José Bergênuas ele consegue sintetizar, com extraordinária força dra- nardo sentiu-se obrigado a abrir mercado para o xilogravador. mática, o sonho sertanejo de superação da realidade, como o fez Tinha em Juazeiro do Norte artistas já escolados em trabalhar no humor cruel da belíssima gravura A Chegada da Prostituta com madeira, fazendo ex-votos e imagens de santos. A introdução da xilogravura na folhetaria provocaria váno Céu. Como ele, os xilogravadores brasileiros esperam a vez de rias conseqüências, além do recuo tecnológico provocado pela mostrar a importância da xilogravura às chamadas Artes Plás- substituição dos clichês metálicos pelas matrizes confeccionadas em madeira. A primeira foi atrair os poetas indepenticas Brasileiras. Aqui em Pernambuco, temos nomes como J. Borges, José Costa Leite, Dila, Francisco Amaro, Severino Borges, J. Miguel, Givanildo, e em Juazeiro do Norte, Walderedo Gonçalves, José Lourenço, Abraão Batista, Stênio Diniz. Qualquer um deles merece destaque na Arte Brasileira. Claro, se não estivéssemos marcados pela estranha classificação entre o erudito e o popular. E popular, indigno de classificação, a não ser sob o rótulo de pitoresco. Ao contrário do que se diz, as primeiras gravuras populares não nasceram com a literatura popular em versos, a chamada literatura de cordel. Ela só veio aparecer, de fato, nos anos 50, depois da transferência da indústria de João Martins de Athayde para a folhetaria de José Bernardo da Silva no interior cearense. João Martins não dava valor à xilogravura. Manoel Caboclo dizia que a xilogravura era coisa de intelectual, porque o leitor tradicional de cordel preferia as gravuras mais próximas da realidade. Expedito Sebastião contou que Stênio Diniz danou-se a substituir os clichês metálicos por xilogravuras, por ter andado em Brasília, mas recebeu recado curto e grosso de Edson Pinto, o maior distribuidor no J. Borges, de Bezerros: cenas falsamente ingênuas


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80 TRADIÇÕES

Xilogravura de Dila, introdutor de

A Lavoura, de José Lourenço, da Escola de Caruaru

Em Juazeiro do Norte, longe da confecção de clichês metálicos, surgiram os primeiros xilógrafos, antes da explosão popular do cordel com os artistas Mestre Noza, Walderedo Gonçalves e Damásio Paulo Traço simplificado de José Costa Leite

dentes, não ligados às folhetarias, pela possibilidade de eles próprios imprimirem seus cordéis em tipografias de fundo de quintal. Em decorrência dessa popularização, fez surgir o cordel de oito páginas, especializado em contar histórias de pequenos enredos – de custo mais baixo – e de registrar boatos, histórias fantásticas, território que não tinha lugar para os registros fotográficos dos acontecimentos: a xilogravura do fantástico. Chegou a vez de A Moça que Virou Cobra ou dA Chegada de Lampião no Inferno. Milhares de xilogravadores populares se iniciaram com a popularização da gráfica de cordel. Dila, de Caruaru, foi o iniciador de todos eles. A última conseqüência seria o golpe para a folhetaria de José Bernardo. Nos anos 50 do século passado, ele chegava a imprimir mensalmente meio milhão de exemplares de cordel e dez anos depois, no alvorecer da xilogravura popular, sua produção não chegava a 20 por cento da média tradicional. Engana-se quem acha a xilogravura popular como sinônimo da literatura popular em versos. Leandro Gomes de Barros em seus primeiros folhetos não utilizava gravuras, depois as usou de matrizes européias e só no fim da primeira década do século 20 passaria a ilustrar um cordel com a figura de Antônio Silvino. Em pose de artista de cinema. Essa Continente outubro 2003

mesma xilogravura, anos antes, em 1907, tinha sido publicada por Francisco das Chagas Batista em página interna de um romance sobre a vida de Antônio Silvino. Em Juazeiro do Norte, longe da confecção de clichês metálicos, surgiram os primeiros xilógrafos, antes da explosão popular do cordel com os artistas Mestre Noza, Walderedo Gonçalves e Damásio Paulo. Geová Sobreira, historiador e perito nas primeiras gravuras de Juazeiro do Norte, lembra o mais extraordinário gravador, o negociante João Pereira da Silva. Em técnica chamada de “bico de pena”, ele elaborou com esmero a matriz de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Lembra também de Manoel Lopes da Silva, conhecido como Manoel Santeiro, artista de vida muito humilde e rústica. Trabalhava de manhã na roça e à tarde fazia santos de madeira, ex-votos, restauração de imagens, e riscava xilogravura para folheto de José Bernardo. No final dos anos 50, do século passado, Lívio Xavier convenceu a Universidade do Ceará a adquirir as matrizes em madeira da folhetaria de José Bernardo em Juazeiro do Norte. Conseguiu. O passo seguinte foi procurar A Estrela da Poesia, na Paraíba, e João José da Silva, no Recife, para formar o primeiro acervo de originais em matrizes de madeira para o pro-


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Manoel Caboclo dizia que a xilogravura era coisa de intelectual, porque o leitor tradicional de cordel preferia as gravuras mais próximas da realidade.

As figuras de Francisco Amaro são chapadas e limpas, seguindo a tendência da Escola de Caruaru

Antônio Silvino, gravura anônima editada por Francisco Chagas em 1907 e publicada num folheto de Leandro Gomes de Barros

jeto do Museu de Artes da Universidade do Ceará, que viria a ter o nome de Mauc. Ele soube que Abelardo Rodrigues andava em busca desse material. Com o centro de xilogravuras populares nascido em Juazeiro do Norte e a indústria de fundo de quintal, temos hoje dois estilos de xilogravura. Em Juazeiro do Norte eles mantêm quase toda a matriz em alto relevo, só gravando, ou retirando a massa de impressão, no que for necessário. Eles encontram dificuldade de impressão devido à impossibilidade de destacar em cada figura a massa a receber tinta. J. Borges diz que eles têm preguiça de destacar as figuras do contexto. Walderedo se orgulha de ter criado sombras na massa impressa; João Batista diz ter criado paralelas vivenciais para refletir a reverberação do sol nordestino e criar a noção de movimento; José Lourenço prefere entintar suas pranchas com tons e meios tons por área geográfica e não pelos detalhes das gravuras. Na chamada Escola de Caruaru, mais próxima do litoral, as figuras são chapadas e limpas. Lembram as figuras em destaque usadas pela publicidade comercial. Dila, J. Borges, José Costa Leite, Francisco Amaro, Severino Simões, J. Miguel e Givanildo seguem esses traços simplificados. Pode-se explicar isso também pelo grau maior de permeabilização à cultura mais industrializada. Dila foi o introdutor das cores na xilogravura popular. Ele ficou impressionado com as capas em policromia de uma impressora de São Paulo e em sua máquina de fundo de quintal utilizava várias gravuras para dar impressão de cores. Sua experiência não deu certo. Dila deixou a experiência, mas permitiu que J.Borges se animasse a colori-las e abriu caminho para os demais. • Jeovah Franklin é mestre em Comunicação pela UnB e autor de A Xilografia Nordestina, ensaio no livro Antologia-Literatura de Cordel, Senhora Minha Madrinha(contos) e Literatura de Cordel e Xilografia Nordestina. Continente outubro 2003


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82 TRADIÇÕES

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Casa do alumbramento Centro de Artesanato em Bezerros reúne todo tipo de arte manual pernambucana, revelando e renovando a poesia das cores e formas do fazer tradicional Isabelle Câmara Continente outubro 2003


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estre Lula Vassoureiro, 58 anos, é artesão desde os oito. O codinome não tem nada a ver com a fabricação de vassouras, ele o herdou do avô; este sim fazia a tal ferramenta de limpeza. Lula é um dos autores dos papangus de Bezerros, ícones do carnaval bezerrense – e pernambucano –, e das máscaras que também simbolizam a cidade. Além disso, assume a autoria da primeira boneca gigante do Estado. “Foi feita por mim e tem 3,5 metros”. Mestre Lula é um dos expositores do Centro de Artesanato de Pernambuco, que fica em Bezerros, distante a 110 km do Recife, na beira da BR Luiz Gonzaga (antiga 232). Inaugurado em fevereiro deste ano, o Centro comporta museu, hoje com 600 peças, loja, auditório, oficinas e balcão de atendimento ao artesão. A obra do Mestre faz revolver a memória: são dele os papangus de cabeça de cuia de coité, matéria-prima dos bonecos nos anos 50. Dele também (para ver e comprar) as máscaras em

papel machê – confeccionou as gigantes da fachada do Centro e o painel com 500 expostas no museu. O Centro de Artesanato exibe rica variedade da arte manual e secular do povo pernambucano. A cognição e representação dos signos e símbolos locais, assim como as técnicas de feitura e materiais, são muitos. Da arte figurativa, transcorrem cenas da vida rural e urbana, do imaginário místico e lendário, dos heróis populares, das danças e folguedos, das brincadeiras (e brinquedos) que as crianças não conhecem mais. Da utilitária, são apresentados os traços e desenhos dos costumes populares, seja nas tranças dos bancos de cangalha com cipó, no entalhe da colher e das travessas de pau, no emaranhado das galinhas de arame, no entrelace das cortinas de bonecas de pano, nas tramas das redes e mantas ou dos bordados e rendas de renascença. De cada município, uma história a contar. De cada artesão, as mãos, o imaginário e a alma a descobrir. De Bezerros, além Foto: Geyson Magno/Lumiar

A Casa de Farinha, de Mestre Saúba Continente outubro 2003


Fotos: Geyson Magno/Lumiar

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As máscaras gigantes, que simbolizam Bezerros, dão as boas-vindas aos visitantes

dos papangus, as xilogravuras de J. Borges e seus filhos, J. Miguel e Ivan (juntos gravaram Lampião e Maria Bonita sob o Sol Escaldante do Sertão), e os brinquedos populares de Biu da Cabeça Branca. De Caruaru, as peças do Mestre Manuel Eudócio - retrata o Reisado –, Mestre Elias, Marliete Rodrigues, que leva quase dez dias para produzir peças minimalistas, Mestre Galdino – com o barro moldava o realismo fantástico, como Mané Pãozeiro, peça mais famosa do artista, feita numa de suas passagens por São Paulo, seguida pela poesia Se Cria Assim –, e Vitalino – cronista do dia a dia interiorano que modelava os símbolos, valores, sentimentos e até os preconceitos da gente nordestina. Da distante Petrolina, o cenário mítico e religioso é representado por Ana das Carrancas. Ana começou a esculpir para ajudar o marido cego; daí todas as peças terem os olhos vazados. Em busca de soluções para as dificuldades financeiras, foi buscar inspiração às margens do São Francisco, quando viu uma embarcação com uma carranca aportar. A crendice popular é de que o artefato afasta os maus espíritos. Mestre Nildo também representa o município. Ele confecciona bancos e quadros zoomórficos em madeira.

De Carpina, a Casa de Farinha, “indústria sertaneja”, de Mestre Saúba, feita em cerâmica e com engrenagens que fazem rever o trabalho sincrônico dos operários. Mestre Lopes, de Glória do Goitá, mostra os mamulengos. E por falar neles, Olinda apresenta a boneca gigante A Carnavalha, de Betânia. Imbimirim oferece a arte sacra, proporcionando o primeiro São Francisco feito no município, entalhado pela santeira Josefa Paulino. Tacaratu revela as tramas das redes e mantas, e Lagoa do Carmo, a dos tapetes. Já Pesqueira, Poção e Jataúba, desvendam os enredos dos bordados e renascenças. Mas Jatúba difere dos outros pelo uso das linhas e fitilhos coloridos. Os brinquedos populares ficam por conta dos artistas de Gravatá, que utilizam cobre e madeira no resgate do ideário infantil. São carroças, caminhões, carros de polícia, dos bombeiros e ambulâncias. Já Carlos Barbosa, de Sertânia, delineia a saga dos sertanejos retirantes, talhando peças em imburana que mais lembram a obra de Portinari ou de Abelardo da Hora. Tracunhaém está representado por Mestre Nuca, Maria Amélia, que não usa torno na feitura de suas peças, Mestre Zezinho e Mestre José, que juntos modelaram em cerâmica Maria, grávida de Jesus, e José – igual a esta peça existe apenas uma na casa do governador Jarbas Vasconcelos, detentor da

Maria, grávida de Jesus, e José Continente outubro 2003


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Da distante Petrolina, o imaginário religioso de Ana das Carrancas

maior coleção de arte popular de Pernambuco. De lá também A Árvore da Vida, de Mestre Joaquim, peça mais valiosa do Centro, que levou dois anos para ficar pronta. De Nazaré da Mata, nascedouro do maracatu, as golas dos caboclos de lança confeccionadas por Mestre João. Mestre Lula Vassoureiro nunca freqüentou uma sala de aula, mas na arte de criar e recriar o mundo faz escola. “Aqui eu aprendo novas técnicas, ensino o que sei e ainda posso expor e vender o que faço”. Ele se refere às atividades desenvolvidas no espaço: oficinas ministradas pelos próprios mestres; palestras e cursos por arquitetos e designers; cadastro e apoio ao artesão na participação de feiras, exposições e congressos. De acordo com Lula, a inauguração do Centro fortaleceu a produção e o escoamento da arte popular produzida em Pernambuco. “É como se tivesse chegado a indústria do artesanato”. Numa carta ao governador do Estado, parabenizando-o pela inauguração do Centro, Gustavo Krause escreve: “Alumbramento, como dizia Manuel Bandeira, é a sensação que toma conta do espírito diante do belo. Ali está expressa a estética da criação popular com extraordinário vigor e comovente originalidade”. O Centro de Artesanato assume uma função estratégica no repertório tradicional: revelar e revigorar um fazer que constitui a história de um povo; gerar trabalho, renda e cidadania para os artesãos; e valorizar o saber milenar, retrato e depoimento da cultura pernambucana. •

A Árvore da Vida, peça mais valiosa do Centro. Acima, o primeiro São Francisco entalhado em Ibimirim

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86 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Turismo é lixo – Brasil turístico II O impacto social e cultural sofrido pelas nossas comunidades com o turismo predatório é irreparável

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stive no Maranhão, o Estado de Roseana Sarney e do seu marido Jorge Murad. Cheguei no mês de julho, quando já devia estar encerrado o ciclo de festas juninas, com apresentações de bois e tambores. Neste ano, seguindo uma orientação da antiga governadora, os bumbas continuavam pelo mês de julho, quebrando o costume de louvar a São João apenas no seu mês. Agora, não são mais os santos que determinam o calendário das festas, nem o gosto do povo pelo divertimento, mas os turistas que chegam de vários cantos do Brasil e de fora dele. A cidade de São Luís e quase todo o Estado do Maranhão vivem em torno do bumba-meu-boi. Só acredita quem esteve lá. Já existe até uma nomenclatura de sotaques, que são os ritmos e formas de apresentação: matraca, zabumba, orquestra, baixada e costa de mão. Por último, criaram o alternativo, detestado pelos folcloristas conservadores, porque é formado por brincantes sem tradição, que se apresentam somente para ganhar dinheiro. Mas poucos escapam da febre pelo turismo. É uma praga. Continente outubro 2003

Tive a sorte de ver um grupo brincando numa cidadezinha de interior. Era um boi de matraca, com a percussão feita por pandeiros enormes, tambores e hastes de madeira. Dançavam em frente da igreja, embriagados como nos cortejos dionisíacos. São João é identificado com Dioniso e Xangô. A igreja abriu as portas e os bêbados dormiam nos bancos e debaixo dos altares. Disseram-me que o festim sexual acontecia numa mata próxima, sob o sol quente do equador. Reconheci naquele culto orgiástico o mais elevado sentido de arte e celebração religiosa. No Maranhão, também reencontrei a cordialidade brasileira, totalmente esquecida. Uma cordialidade que ainda se vê nos interiores do país, onde os estragos do consumo e da informação são menos perceptíveis. As pessoas cumprimentam as outras, oferecem o que estão comendo, olham francamente nos olhos e estendem a mão. Nas margens do rio Preguiça, na cidade de Barreirinhas, porta de entrada para os Lençóis Maranhenses, estive num


Fotomontagem: Zenival

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lugar chamado Vassouras. Não era mais do que uma palhoça grande, uma antiga espera de caça, lembrando um baíto indígena. As famílias ficavam seis meses ali, caçando e pescando, depois voltavam para as suas casas na cidade. Hoje, elas cozinham para os turistas, vendem artesanato de buriti e acompanham passeios pelas dunas e lagoas. Já não existem marrecos, veados, antas nem jacarés. É mais fácil caçar o dinheiro dos visitantes. Gostei do lugar, da amplidão da paisagem, da conversa dos homens. Perguntaram se eu não queria ficar por ali. Trouxesse uma rede, armasse. De noite era muito bonito, a lua acesa. Devia ter ficado. Em Barreirinhas, as ruas não são asfaltadas, por causa do calor. Muitas casas viraram pousadas e há um fluxo enervante de toyotas viajando para os Lençóis, e lanchas navegando pelo rio. Tudo se transformou nos últimos três anos, depois que construíram a rodovia que vem de São Luís. Não pára de chegar gente, apressada em ver as dunas e as lagoas, subir e descer o rio. Tudo compulsivo, como se fosse uma obrigação. Os idiomas se desencontram, mas os gostos se igualam na roupa de banho, no protetor solar e nas latas de cerveja. Cumprem a primeira estação da via-sacra turística e partem apressados para outras devoções, o Delta do Parnaíba, Sete Cidades, Ubajara, Canoa Quebrada, Jericoacoara, bebendo cerveja e tirando retratos. Parecem exaustos pelas caminhadas no sol

quente e na areia em que afundam até o joelho. Todavia, precisam continuar. O povo da cidadezinha fica, nunca mais será o mesmo. Sentirá necessidade de possuir uma máquina fotográfica igual à do alemão, ou um relógio com barômetro. Desfazem-se os vínculos ancestrais com a terra, com o rio, com o mar. Pescadores abandonam o ofício que aprenderam com os pais e os avós, preferindo transportar turistas, rio acima, rio abaixo. Agricultores largam seus plantios de subsistência para venderem pequenos artesanatos sem utilidade. Um rapaz vem do lugarzinho em que mora, sete horas a pé, para fazer uma tatuagem. Um guia de embarcação mostra os dólares que ganhou de uma gringa, por ter dormido com ela. Os mais jovens já falam com o abominável sotaque das novelas cariocas, esquecidos que o Maranhão é famoso pela pronúncia bonita do nosso português. Começam a circular as drogas e surgem os primeiros casos de violência. Brevemente, as casas não ficarão mais de portas abertas e o riso cordial terá intenção e preço. Sempre questionei os ganhos com o turismo. O impacto social e cultural sofrido pelas nossas comunidades é irreparável. Muitas vivem afastadas do mundo, ainda praticam o escambo, e da noite para o dia são invadidas por levas de estrangeiros que usufruem o que têm de melhor, deixando em troca algum dinheiro e a ilusão do progresso. Países como França, Espanha e Holanda chegaram a um estágio de desenvolvimento em que a indústria do turismo, longe de ser danosa, é lucrativa. Nós ainda somos frágeis, lutamos por uma identidade e pela sobrevivência. Muitos que aqui desembarcam, chegam à procura de sexo fácil. Na Europa também existe prostituição, mas tanto lá como na Austrália é uma profissão reconhecida e os bordéis até possuem ações na bolsa de valores. Será que o dano moral de uma prostituta holandesa se compara ao sofrimento de uma menor que se vende nas praias do Nordeste, para ter o que comer? A cordialidade ou não sei que outro instinto motivava as nossas índias a se entregarem aos navegadores. Mas é a miséria, o desejo de consumo e a ruptura com a origem e o passado cultural que empurram nossos rapazes e moças para os abraços sufocantes de gringos e gringas. Depois de quinhentos anos, persistem as mesmas relações de exploradores e explorados. Mudaram as bugigangas do assédio, os espelhos, os colares, as continhas de vidro. Os novos fetiches para seduzir são as notas de dólares e a promessa de emprego ou casamento do outro lado do oceano. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.

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HISTÓRIA

A Guerra da Pedra do Rodeador

Uma rebelião sebastianista em Pernambuco colonial foi sufocada a ferro e fogo em outubro de 1820, em Bonito Flavio José Gomes Cabral

Autos da Devassa contra os réus de Bonito

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ais de 180 anos depois que o capitão-general Luís do Rego Barreto, derradeiro governador régio pernambucano, em nome da defesa da ordem monárquica e da religião, mandou sufocar barbaramente um ajuntamento de sem-terras fundado no Sítio da Pedra do Rodeador, em Bonito, município do Agreste pernambucano, a 135 km da capital, pouco se escreveu sobre esse episódio considerado o primeiro movimento sebastianista do País. Os camponeses do Rodeador criam que com o retorno de D. Sebastião, soberano português morto nos areais marroquinos de Alcácer Quibir, em 1578, em luta contra os filhos de Maomé, uma nova era de felicidade seria inaugurada, e eles, os eleitos, seriam agraciados com a posse da terra, vivendo em um reino repleto de felicidade. No período em que surgiu o ajuntamento, Pernambuco mal havia se livrado dos ferretes provenientes do movimento rebelde de 6 de março de 1817. Por isso, pensou-se que ali se maquinava contra a Coroa e se fomentava uma contra-revolução. O ajuntamento foi organizado nas terras da sesmaria do Rodeador, de propriedade de João Francisco da Silva, por um desertor das milícias locais, Silvestre José dos Santos, que vinha corrido de Alagoas por professar naquela província a crença sebastianista. Ao chegar em Bonito entre os anos de 1811 e 1812, em companhia do cunhado Manoel Gomes das Virgens, também um desertor, Silvestre fez alguns acertos verbais com o proprietário daquelas terras para o uso da mesma. Com a chegada da parentela e de outras pessoas que para ali foram atraídas por


HISTÓRIA 89 » Fotos: Acervo do autor

Pedra do Rodeador, onde haveria o desencanto de Dom Sebastião

histórias de riquezas, resolveram ampliar os negócios, originando um arraial que foi designado de Reino ou Cidade do Paraíso Terreal. O acampamento contava com cerca de 150 casebres, todos construídos de palha, cobertos com palhas de catolé. Os habitantes daquele reino sonharam que com o retorno de D. Sebastião a ordem seria invertida: os pobres enriqueceriam; alguns dos líderes da comunidade se transformariam em príncipes, aumentando a fortuna do lugar; o abominável sistema de recrutamento seria abolido; o sepultamento de ricos nas igrejas deixaria de acontecer; os pobres conquistariam a terra, quando, então, um dia, aquele povo sairia dali para comandar o mundo e corrigir as coisas erradas. O povo reunido no Sítio Rodeador provinha de vários lugares da província de Pernambuco. Do povoado de Bonito, da Ribeira do Rio Una, do Capibaribe, de São José dos Bezerros, Bom Jardim, Goiana e dos Cariris Velhos, sertão cearense. Em sua maioria, eram pessoas livres, cuja idade variava entre 20 e 60 anos, casadas, analfabetas, mestiças e trabalhadoras braçais desempregadas, uma vez que o sistema de escravidão lhes tirava oportunidade de trabalho. Tratando-se por irmãos, os prosélitos se agrupavam em torno de uma irmandade, a do Bom Jesus da Lapa, cujos principais líderes eram Silvestre e seu cunhado Manoel Gomes das Virgens, tidos como Procuradores de Cristo. Abaixo deles, doze indivíduos denominados “sabidos” tinham grande influência nos atos religiosos. O restante do povo era conhecido como “ensinados”. Estes, quando chegassem a mil deveriam marchar daquele sítio numa grande cruzada para libertar os lugares santos de Jerusalém e promover a conversão dos

infiéis. Até o rei D. João VI seria ouvido, e caso não se convertesse, haveria guerra entre os dois reis. O local mais representativo para aquele povo era a grande serra, dita Pedra do Rodeador. Em uma de suas encostas, existem algumas cavidades, espécies de abrigos naturais, onde, segundo eles, ouviam-se vozes humanas, manejos de armas, instrumentos tocando. Eis o motivo por que o local era conhecido por “Lugar do Encanto”. Dali sairia D. Sebastião comandando um fabuloso exército para libertá-los da opressão e defendê-los do mal. A imagem de um poderoso exército alimentou os ânimos. Foi um dos fermentos que uniu o grupo e o fez enfrentar as forças comandadas por Luís do Rego na noite de 25 para 26 de outubro de 1820, quando foram rechaçadas. Rituais sagrados, controles profanos - Entre a irmandade do Bom Jesus da Lapa, foram distribuídas diversas condecorações de fitas coloridas, cada uma possuindo simbologia própria. A encarnada representava a guerra a quem se opunha às leis de D. Sebastião; a azul simbolizava a paz aos que sob aquela lei viviam; a preta representava o dó, o luto e o sentimento; a verde, a esperança dos bens que D. Sebastião iria distribuir aos eleitos no momento de seu retorno. Nos ritos de condecoração dos eleitos, muitas mulheres tinham papel de destaque, fato inédito, pois isso não foi verificado nem na vida profana, muito menos na hierarquia eclesiástica de então. Para ser admitido na comunidade, exigia-se um ritual adequado que marcava a vida dos iniciantes. Para ter acesso à irmandade, o postulante tinha que se confessar com qualquer Continente outubro 2003


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90 HISTÓRIA

Na manhã daquele dia, grande quantidade de feridos e de mortos foi amontoada e incendiada, formando uma imensa fogueira. Tais imagens inspirariam o príncipe D. Pedro, futuro Imperador do Brasil, ao enfatizá-las em um manifesto de 1º de agosto de 1822 dirigido à nação, quando se expressou: “Recordai-vos, pernambucanos, das fogueiras do Bonito”

padre. Mas como havia dificuldade para encontrá-los, recomendou-se que os conversos deveriam se confessar com os santos da capela, dita Oratório da Lapa, erguida em 1819 em substituição a uma outra de pequenas proporções. De manhã, a comunidade trabalhava no roçado. À noite, reunia-se no oratório para a devoção do terço, que fazia parte dos ritos chamados “Santos Louvores”, os quais tinham duração de três horas e atraíam não apenas os sebastianistas, mas também uma boa parte dos bonitenses. Segundo se persuadiu, uma das imagens veneradas na referida capela, a da Virgem Maria, dita Santa da Pedra, era milagrosa e conversava com Silvestre. Tanto que, na noite do ataque ao arraial, os líderes locais haviam anunciado que a santa iria se revelar ao povo. O Reino do Paraíso Terreal era um local como tantos outros. E, como todos os locais, havia de ter os caminhos do sagrado e do profano. Para coibir os desregramentos, as seduções e os prazeres, comportava a estrutura da comunidade um grupo de procuradores da honestidade masculina e feminina, cujos dignitários se distinguiam do povo por ostentar divisas e rosetas multicores. Suas funções eram velar pelos vestuários e proibir uniões que maculassem a religião. Para a segurança daquele reino, havia um pequeno exército composto de 150 homens, em sua maioria desertores dos exércitos reais, comandados pelo sapateiro Gonçalo Correia. Todo esse efetivo dispunha de armas das mais variadas qualidades: facas-de-ponta, pistolas, espadas, catanas, parnaíbas, bacamartes e espingardas, sendo essas duas últimas as mais expressivas. As revistas das tropas e exercícios militares, ou “Marchas de Deus”, davam-se à noite após o término dos “Santos Louvores”. O governo provincial, com a anuência da Coroa, mobilizou várias tropas para aniquilar o arraial sebástico. A comunidade começou a ser atacada na madrugada do dia 26 de outubro de 1820. A falta de prudência no manejo das opeContinente outubro 2003

rações de guerra concorreu para que houvesse grandes perdas de vidas entre os camponeses e soldados. Na manhã daquele dia, grande quantidade de feridos e de mortos foi amontoada e incendiada formando uma imensa fogueira. Tais imagens inspirariam o príncipe D. Pedro, futuro Imperador do Brasil, ao enfatizá-las em um manifesto de 1º de agosto de 1822 dirigido à nação, quando se expressou: “Recordai-vos, pernambucanos, das fogueiras do Bonito”. • Flavio José Gomes Cabral é professor da UFRPE e autor, dentre outros livros, de Bonito: das Caçadas às Indústrias editado pelo CEHM-Fiam (1988).


Vale do Rodeador, onde foi fincado o Reino do Paraíso Terreal, comandado pelo desertor Silvestre José dos Santos e seu cunhado Manoel das Virgens

O local era conhecido por “Lugar do Encanto”. Dali sairia D. Sebastião comandando um fabuloso exército para libertá-los da opressão e defendê-los do mal. A imagem de um poderoso exército alimentou os ânimos

Detalhe de mapa topográfico em que se observa a configuração da área de conflito (1823) Continente outubro 2003


92 HISTÓRIA

Antes da Lei Áurea Fotos: Divulgação

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O Auto da Liberdade foi encenado este ano com 61 atores e 25

Mossoró, no Rio Grande do Norte, comemora com megaespetáculo o movimento que culminou com a abolição antecipada dos escravos, em 1883 Tobias Queiroz

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no de 1883. Um clima de justiça paira no ar de Mossoró, cidade emancipada há 13 anos. O dia é 30 de setembro, quando, depois de muita luta, participação efetiva da maçonaria, manifestações públicas e também de muita polêmica, finalmente, os escravos mossoroenses são alforriados. O ato causa um pouco de indignação, é lógico – que o digam os escravocratas. Mas esta ação pioneira no Rio Grande do Norte, e a sexta no País, por ordem cronológica, tem um motivo adicional para se realizar uma menção à parte: Mossoró é a única cidade a comemorar festivamente a antecipação da Lei Áurea. E para melhor destrinchar esse acontecimento ímpar na história nacional, nada melhor que regressar lá para os idos de 1870. Nesse ano, precisamente no dia 9 de novembro, iniciou-se o primeiro dos vários acontecimentos que culminaram com a libertação dos escravos. Nesse mesmo dia, o vigário local, Antônio Joaquim Rodrigues, homem de forte vocação política, brada: “Fiz disto uma Cidade!”. O motivo? A então vila é emancipada a cidade. E agora esta cidadela de fisionomia barroca, mas de feição colonialista, dá o pontapé inicial rumo à urbanização. Transforma-se num importante centro de atividades comerciais. O panorama, ou a mudança dele, é decorrente, entre outros, da sua ótima localização geográfica – entre as cidades de Fortaleza e Natal – e do seu homônimo rio de águas navegáveis. Junto desta realidade política e econômica vêm os turbilhões de conceitos, inspirados pela Revolução Francesa, corporificados à trilogia maçônica da “igualdade, fraternidade e liberdade”, mexer com a ideologia de vários homens. Pois bem, imersos nesse mar efervescente de idéias liberais, surgem na cidade pelo menos três grandes instituições

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HISTÓRIA 93 que sedimentam o pensamento revolucionário abolicionista, são eles: o jornal O Mossoroense, em 1872; a Loja Maçônica 24 de Junho, em 1873, e por último a Sociedade Libertadora Mossoroense, em 1883. Como pode se observar, a abolição em terras potiguares aconteceu de forma paulatina. E conforme o historiador Raimundo Soares de Brito, o 30 de Setembro – feriado oficial no município – é somente o ponto máximo de uma luta que perdurava há alguns anos. A iniciativa de Jeremias da Rocha Nogueira, por exemplo, em fundar o terceiro jornal mais antigo em circulação no País, O Mossoroense, foi de extrema importância ao fato abolicionista, devido à verve de seu proprietário. Um “homem de boas letras, militando na Justiça, rábula temível pelas suas incursões no campo jurídico (...) defensor dos réus pobres, de quem não recebia nada”, tudo conforme o livro de Raimundo Nonato, História Social da Abolição em Mossoró. Ou seja, um divulgador do pensamento livre. Outro importante movimento foi gerado pelos maçons. Entre outros, destacaram-se Almino Afonso, autor da memorável ata de 30 de setembro e quem organizou, desde o Estado vizinho Ceará, o movimento abolicionista; o casal Romualdo e Amélia Galvão. Ele, presidente da Câmara Municipal. Ela, transportadora de mensagens, originadas no Ceará, às mãos dos maçons mossoroenses e quem “idealizou e bordou o estandarte da Sociedade Libertadora Mossoroense”– como afirma Cascudo. E por último, o cearense Joaquim Bezerra da Costa Mendes, o único a não ter vínculo com a Grande Loja – não era maçom –, mas fundamental ao movimento. Ele foi o responsável por disseminar na cidade os conceitos abolicionistas, germinando debates e discussões. Joaquim era um homem respeitado e foi escolhido pela maçonaria para fomentar estas discussões, exatamente por não pertencer à Loja e evitar possíveis transtornos com a Igreja Católica. Antes, porém, da data magnânima – 30 de Setembro –, no dia 25 de dezembro de 1882, uma festa é realizada na maçonaria, em homenagem a Romualdo Galvão e sua jovem esposa Amélia, que regressavam a Mossoró. Nesse dia entram para a história dois fatos: 1o) alguns escravos são libertos; 2o) escolhida a data 6 de janeiro para a fundação da Sociedade Libertadora Mossoroense. Alguns meses depois, precisamente no dia 10 de junho de 1883, mais 40 escravos são libertados em uma sessão extraordinária na Loja Maçônica. Isso tudo era o que os abolicionistas queriam. Pois naquele dia, 6 de janeiro, num ato solene em que se definiu a estrutura e se delineou programa do movimento, estava chegando o fim da escravidão em Mossoró. Houve um momento em

O maçom Almino Afonso, organizador do movimento abolicionista Abaixo, Amélia Galvão, mensageira da libertação

que era irreversível a abolição. E esse momento foi coordenado pelo presidente da Câmara Municipal Joaquim Bezerra, quando declarou numa frase que lhe deu um posto na história: – Mossoró está livre. Aqui não há mais escravos! O Auto da Liberdade – Cascudo pediu, ou melhor, apelou “para que o 30 de Setembro, a festa de Mossoró, não ficasse apenas nas comemorações ruidosas e anuais”. E seu pedido foi atendido, cresceu e tomou proporções de megaespetáculo, com direito à participação no livro dos recordes – Guiness Book. O espetáculo – O Auto da Liberdade –, este ano, foi dirigido pelo diretor mineiro Gabriel Villela. As encenações anteriores tiveram a direção de Amir Haddad, nos anos de 1999 e 2000, e Fernando Bicudo, em 2001 e 2002. O evento foi criado há cinco anos para reverenciar atos heróicos do mossoroense. Além da abolição da escravatura, há o primeiro voto feminino do País (1927), a resistência à invasão do bando de Lampião (1927) e o motim das mulheres contra o recrutamento militar dos seus filhos e maridos na Guerra do Paraguai (1870). Engana-se, também, quem imagina o Auto da Liberdade como um evento imposto pela dita classe dominante. Há mais de 50 anos o povo vai às ruas para festejar em um gigantesco cortejo esses quatro heróicos atos. Sob a tutela de Villela movimentaram-se 61 atores e 25 bailarinos numa arena, de 23 metros, ao ar livre, com piso revestido por areia, ao estilo do teatro grego. O Auto foi encenado entre os dias 26 e 29 de setembro, num cenário à entrada da Estação das Artes Elizeu Ventania (antiga estação de trem). “Quem tiver a oportunidade de enxergar de cima verá um coliseu”, compara Gabriel. • Tobias Queiroz é jornalista. Continente outubro 2003


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DIÁRIO DE UMA VÍBORA 95 Joel Silveira

ABAIXO A VIGILÂNCIA ! Pesadão, tendo de perder uns vinte quilos, foi aconselhado a procurar os Vigilantes do Peso. Negou-se, aos berros: – Nunca! Nunca! Com ou sem meu consentimento, ninguém me vigia! DESCOBERTA Do Barão de Itararé, o saudoso Aparício Torelly: – “Quem inventou o trabalho não tinha o que fazer”. DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS “O povo não confia na polícia”, vem no jornal. Sou mais drástico: não confio nem na polícia nem no povo. O X DA QUESTÃO Certa vez, perguntaram a Rômulo Bittencourt, quando ele era Presidente da Venezuela: – Por que nunca houve um golpe militar nos Estados Unidos ? Ele respondeu: – Porque lá não existe embaixador americano! OS BEM-AFORTUNADOS O mal de Deus é que ele exagera muito quando quer agradar a alguém. DÚVIDA Como confiar numa pessoa que não gosta de manga? O PODER Posso estar errado, mas alguma coisa me diz que quem tem 20 milhões de dólares no Brasil pode mais e manda mais do que quem tem 200 milhões de dólares nos Estados Unidos. RETRATO Não vamos nos enganar: no Brasil de hoje existe mais folclore do que cultura; mais ativismo “intelectual” do que verdadeira ilustração.

OS AMIGOS Para que se saiba como ando em matéria de amizades, basta dizer que já perdi de vista o meu amigo mais próximo. MEU PLANO Um dia, numa entrevista de julho de 1989, eu prometi a Geneton Moraes Neto “escrever uma notícia sem adjetivos, sem advérbio e, se possível, sem verbo”. Ainda não consegui, mas não morro sem conseguir. • Joel Silveira é jornalista e escritor.

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Patriotas... Correi! Rousseau preconizou que, quando o povo não conseguisse mudar o governo, os políticos mudariam o povo

É

chegada a hora de rever nosso País, nossos costumes, nossos filhos e netos, que porventura ainda não vieram, encarando seriamente estes derradeiros dias de pútrida política, descarados comportamentos dos que fazem nossa vida pública – há muito dissecando nossas consciências, dissolvendo nossa identidade, envergonhando o patriotismo e esculhambando nossa cidadania. O Brasil está sendo corroído pelo cinismo da maioria dos poderes constituídos, intermitentemente terminais em câmara de gás torturante ao penhor da sua nacionalidade - orgulho que deveria ser de toda a nossa gente letrada e a esquecidamente ignorante e marginalizada da sociedade. Não mais adianta cobrarmos punibilidade às autoridades responsáveis – é fatigante. Para que rogarmos, como já fizemos em demasia? De nada nos satisfaz insistirmos para que a justiça nos proteja. Apelarmos para todos os santos, nem pensar – a Bahia é de todos eles. O que nos vale divagar pelas chamas ainda acesas de exemplos da história tirânica de príncipes que usurparam a dignidade e os bens de seus súditos, transcendendo séculos, beneficiando seus descendentes? Por isso, meus caros leitores, jovens pais e mães de um futuro bem próximo: tratem de repensar os valores da educação doméstica que terão de legar aos seus filhos. Ensine-os o que é liberdade sem libertinagem; a aprenderem o que é amar a terra onde nascerem e exigirem respeito pela sua soberania. Faça-os voltarem a amar o prazer de ler. Encaminhem-nos no sentido da verdade, para que não descubram na mentira o prólogo manifestante do cinismo, da hipocrisia, da improbidade. Não os deixem entender que ser inteligente é levar vantagem em tudo. Registrem, mas bem claro mesmo, que furtar e roubar são crimes iguais e tão graves quanto a omissão e a injúria.

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E, antes que seja muito tarde, indique aos queridos pimpolhos onde fica o lixeiro e o lavatório, o guardanapo e o papel higiênico; a escola mais próxima, a igreja mais condizente com a crença no Ser supremo; e que só se educa pelo exemplo, de forma carinhosa e firme pelo norteamento da instituição familiar. Sintam-se, pois, governantes, e mostrem como devem ser os governados, afastando-lhes a idéia de que estão sob a égide de um poder principesco ou popularesco, moldando-lhes as condutas. E não esqueçam de citar Rousseau, que os nomeava políticos tão tirânicos no manuseio de seus interesses, preconizando que quando o povo não estivesse satisfeito com o governo, eles seriam capazes de mudar o povo. Vamos todos lembrar o sentimento de educação que hoje cerca esses nossos senhores políticos com mandatos populares que brilham pelo choro e pela cara lisa. Segundo Cícero, Dâmocles estava se imaginando o mais afortunado dos homens, quando, em meio ao festim, percebeu, por sobre a cabeça, uma espada nua que Dionísio fizera pendurar ao teto, sustentada por uma simples crina de cavalo. O patriotismo se enleva quando não abandonamos a nossa Nação nas mãos artísticas da nefasta elite que manuseia nossas vocações de cidadania e respeito pelo valor da dignidade, há muito defenestrada pela nossa origem de caldeamento étnico. Que todos os moços deste querido Brasil não permitam, tal Hemingway, que o nosso torrão seja arrastado para o mar como se fosse um promontório – um solar tão íngreme que não mais possamos alcançar com nossos próprios passos. E, “se alguém perguntar por quem os sinos dobram” – que eles não dobrem por nós. • Rivaldo Paiva é escritor.




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