Continente #035 - Sob o signo do terror

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EDITORIAL

O terrorismo como fato histórico

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m pleno limiar do século 21, o recrudescimento do terrorismo político suscita indagações sobre velhas questões, como a banalização do mal, já apontada, há décadas, pela pensadora Hannah Arendt. Por outro lado, como assinala Daniel Piza na reportagem de capa desta edição, a atração dos intelectuais por sistemas explicativos completos, livres das armadilhas da ironia histórica e da volubilidade humana, torna-se uma obsessão na mente de terroristas, uma obsessão tão mais ilimitada quanto mais eles se considerarem vítimas da sociedade. Já o jornalista e historiador, José Arbex Jr., assinala ser surpreendente que um fato tão simples pareça escapar à imensa maioria daqueles que escrevem sobre o terrorismo: trata-se de uma ação praticada por seres humanos, não por ETs enfurecidos. Por ser ato humano, só pode ser compreendido como um resultado da história. Para o filósofo Denis Rosenfield, o Ocidente não deve abrir mão das conquistas do pensamento iluminista em nome de explicações relativistas – postura que, no fundo, representaria o abandono da idéia. Outro ponto de destaque, desta edição, é a polêmica entre arquitetos e urbanistas alemães, a propósito do legado urbano da antiga RDA. Protagonista de duas guerras mundiais, a Alemanha sempre demonstrou uma vigorosa capacidade de recuperação, erguendo-se dos escombros economicamente mais forte e visualmente mais ostensiva. Agora, depois de passar por duas tiranias tão diferentes em suas finalidades ideológicas quanto semelhantes em sua ferocidade repressiva – o nazismo e o comunismo –, Berlim, a capital gemânica, é um imenso canteiro de obras, dividindo arquitetos que polemizam entre a conservação de seu perfil histórico e a construção de uma cidade do futuro. •

Foto: Stringer/USA/Reuters

Nova York, 11 de setembro: o terror entra pela porta do século 21

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CONTEÚDO

Foto: Reprodução

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Foto: Hubert Michael Bossi/Ag Lusa/O Globo

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O terror aqui e agora

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Svendsen e a arte do obscuro

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CONVERSA

HISTÓRIA

08 A Universidade precisa ser revista

58 A face oculta de Sérgio Buarque

CAPA

Conspiração na morte de Kennedy Um grito pela república no Brasil de 1710

14 O terror no século 21 »

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ARQUITETURA 74 Berlim: herança arquitetural

LITERATURA

O espaço que abriga sonhos

28 Existe o romance policial brasileiro?

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A violência intrínseca da América Cântico de amor a uma cidade

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ARTES

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38 A visão cruel de Fred Svendsen O surrealismo encaixotado de Cornell A arte que se espalha em Olinda »

MÚSICA 50 100 anos de Ari Barroso Música de Câmara tem festival Teca e Heraldo em voz e viola

Continente novembro 2003

TEATRO 86 Ariano, Fernando e Isaura no Teatro Armazém

TRADIÇÕES 90 Cecília Meireles, desenhista de etnias Maracatu Leão Coroado faz 140 anos


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Foto: Hans Von Manteuffel

Foto: Divulgação

» 74 A restauração de Berlim

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Teatro e dança no Armazém

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Economista tem que saber mais que economia

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 A matança dos suplementos literários

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 48 Como disse Picasso, a arte é sempre atual

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 70 A misteriosa fabricação dos licores

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 73 Os discos voadores de Di Cavalcanti

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Temos vocação para a caricatura e o simulacro

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Os subterfúgios do poder militar brasileiro

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert

Continente Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Executivos Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Adriana Dória Matos, Bêtania Uchôa Cavalcanti-Brendle, Carlos Sandroni, Cristiano Ramos, Daniel Piza, Daniela Bastos, Eduardo Cruz, Fábio Araújo, Fábio Lucas, Fernando Monteiro, José Arbex Jr., Lúcia Leitão, Marcelo Abreu, Ricardo Oiticica, Rodrigo Carrero, Silvio Pessoa Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia, Daniel Sigal, Douglas Rocha, Claúdio Manuel, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Elizeu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Michelle Vanesa, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente novembro 2003

Novembro Ano 03 | 2003 Capa: Mulheres iraquianas orando em mesquita, após atentado terrorista em Bagdá (agosto, 2003) Foto: Linsey Addario/Corbis

Turismo é lixo! – Brasil Turístico II Nesse artigo, o Sr. diz que sempre questiona os ganhos com o turismo, e fala de impactos sócio-culturais irreparáveis (Coluna Entremez, edição nº 34). Sou turismólogo, e concordo com o Sr. Entretanto, gostaria de lhe perguntar: esse turismo, que o Sr. chamou de lixo, é realmente turismo? Particularmente, não acho que seja, prefiro chamar de “paraturismo”. Fácil e cômodo adjetivarmos as coisas – especialmente quando nosso conhecimento sobre elas é parcial ou nenhum (não sei se esse é o seu caso). Difícil é tentarmos imaginar se haveria um outro lado... Por mais difícil que possa parecer – pasmem – há, sim, um turismo diferente desse que foi mostrado. O turismo não nasceu a partir de um Big Bang, não é uma divindade, muito menos uma “indústria” autônoma: é uma atividade planejada, promovida e controlada por pessoas. Entretanto, ao que parece, a maioria delas é míope, pois só enxerga os benefícios e vantagens econômicas que pode conseguir com o turismo, ignorando o lado humano (social e cultural) existente. Tomar o todo pela parte, também é, a meu ver, compartilhar a miopia. Existem pessoas conscientizadas e preocupadas com o planejamento de um turismo mais justo e o menos impactante para as comunidades envolvidas. Não é uma tarefa simples, pois há interesses muito grandes em manter o foco da “indústria do turismo” na direção econômica, em detrimento de um enfoque mais social. O turismo que quero não é lixo, e nem eu, tampouco, por lutar por ele. Se, por causa de maus gestores e profissionais, o turismo é taxado por lixo, nada impede que a medicina também o seja. Bruno Melo, via e-mail Antes da Lei Áurea Bela matéria! Parabéns para o jornalista Tobias Queiroz e para a Revista Continente (matéria Antes da Lei Áurea, edição nº 34). Sou mossoroense e lamento que, nestes cinco anos de Auto da Liberdade, não tive tempo disponível para, em Mossoró, acompanhar o que tende a se consolidar num dos eventos mais importantes do calendário cultural nordestino e brasileiro. Tenho ouvido muitos relatos elogiosos a respeito do Auto. A matéria de vocês diminuiu, um pouco, a frustração pela momentânea impossibilidade de ver o espetáculo de perto. Ricardo Silveira, Fortaleza/ CE Encanto É impossível não se encantar com a qualidade gráfica e de conteúdo da Continente Multicultural. Fabíola Mendonça, via e-mail Nível Cumprimento Pernambuco pelo nível da publicação. Aécio Neves, Governador do Estado de Minas Gerais.


CARTAS Linguagem Leio a Revista Continente, há mais ou menos dois meses, e gostei muito da linguagem utilizada por vocês, principalmente quando descobri que a Revista era daqui de Pernambuco. Victor Diniz – via e-mail Casa do alumbramento Porreta! Conheço a Revista há pouco tempo. Sou de Garanhuns, mas resido em Londrina-PR. Faço parte de um projeto que discute literatura de cordel, aqui na UEL, e, através da orientadora do mesmo, conheci-vos. Isso mesmo! Falar da cultura popular pernambucana, no sentido de lembrar nossa identidade e proporcionar um sentimento de cidadania, através dessa cultura, é algo que deveria se espalhar por esse país, para, quem sabe, torná-lo melhor (matéria Casa do Alumbramento, edição nº 34). Esse universo de muitas culturas, que é o Estado de Pernambuco, é um exemplo para o Brasil, muitas vezes tão subserviente à “cultura” estrangeira. Continue assim, Continente!!! Um cheiro, de um pernambucano que está azoado de saudades de sua terra! Fernando Florentino, Londrina-PR Pau é o Trunfo 1 Parabenizo-os pelo conjunto que compõe a Revista Continente nº 33 (Gilberto Freyre). Ressalto, no entanto, a infelicidade de Rivaldo Paiva que, na sua coluna, fala contra a própria Revista. Ele se mostra preconceituoso. Não conhece as lutas de classes, tem posições fascistas, que não contribuem com a democracia, a livre manifestação de pensamento. As organizações civis têm prestado relevantes serviços ao povo brasileiro. O Sr. Rivaldo Paiva deve estar com muitas saudades da ditadura. Prof. Silas Fernandes, via e-mail Pau é o Trunfo 2 De parabéns o escritor Rivaldo Paiva pelo artigo publicado na Revista Continente, mês de setembro, com o título Pau é o trunfo. O seu comentário a respeito das badernas promovidas por bandos de “maloqueiros”, tidos como nacionalistas, nos quatro cantos do País, merece uma reflexão das autoridades constituídas, antes que seja tarde. Esses trogloditas, fantasiados de esquerdas, querem o quê? O que esperar dessa turba de anarquistas? Que o País pegue fogo? Que democracia é essa? Como fica a polícia? Inerte e refém desses movimentos inconfessáveis? Temos que fechar os olhos porque o PT está no Governo e deixa a bagunça degenerar... Pilhar caminhões de cargas é assalto. Deter pessoas é seqüestro. Ou mudaram os valores da sociedade? Por favor, não me venham com patrulhamento ideológico. Leonam Fernandes Larry, Recife – PE

Redescoberta Interessante, quando só nos damos conta de algumas coisas ao nos distanciarmos delas ... Sou recifense, médico em treinamento aqui nos Estados Unidos, onde devo permanecer até março de 2005. No Recife, a vida era muito louca e sobrava pouco tempo para coisas “da alma”. Aqui, com um pouco mais de tempo livre, estou redescobrindo minha cidade, meu Estado e meu país. Com a Internet posso ter acesso a inúmeras informações que me fazem pensar o Recife e o Brasil, com outros olhos. Neste novo pensar, encontro a ajuda correta e entusiasmada da Revista Continente Multicultural, fazendo descobertas, por exemplo, da poesia de Alberto da Cunha Melo, como também das suas opiniões sensatas. Venho apenas agradecer a oportunidade de poder ler a revista e descobrir que a gente não é só miséria, pobreza, retardo cultural. Folgo em ver a Revista iluminando nossas ruas. Fabio Marinho R. Barros, Hepatology Research Fellow, Washington University in Saint Louis

Harmonia Meus parabéns pelo conteúdo e harmonia do site. Todos, aqui, da Fundação Roberto Marinho (Canal Futura), ficaram encantados com o conteúdo e a qualidade técnica da Revista Continente. Ana Lúcia Gomes, Rio de Janeiro – RJ Revista Continental (...) Ao mesmo tempo, espelho e parabólica da multicultura local, a Revista lança um olhar sobre as mais variadas áreas da produção (...) Sem limites para uma pauta que procura abranger o mosaico em 3D, que é a cultura recifense, Continente Multicultural extrapola a pauta de revista de cidade, de grupos, de guetos (...), para se transformar em leitura obrigatória. Élcio Fonseca, comentário originalmente publicado no portal de turismo Travel, Hotel e Business Cultura pura A Revista Continente continua cultura pura, parabéns! Aguardo a publicação de texto sobre Augusto Rodrigues, criador da Escolinha de Arte, pintor do frevo, descobridor da arte do mestre Vitalino. Celso Arcoverde, via e-mail

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Você já foi a Juazeiro? Não? Então vá! O autor desta matéria merece, realmente, muita exaltação, ele foi muito feliz com seu texto incrível, que conseguiu retratar uma realidade tão nossa (Coluna Entremez, edição nº 33). Se todo escritor tivesse essa sensibilidade, não teríamos que suportar certos livros tão “europeus”, escritos por brasileiros tão cegos aos fatos tão peculiares e menos elitizados... Mas, assim, eles não venderiam milhões de cópias nem ocupariam uma cadeira na ABL! Ayana Darla Freitas, via e-mail Pólo da Cultura Correção importante ao e-mail da descoberta paulistana, publicada na Continente, de número 32: o Nordeste, repleto de intelectuais produzindo cultura e informação de boa qualidade, definitivamente não é um fato “incrível”, e sim, corriqueiro, tradição secular, posto que já fomos o pólo da cultura nacional que, simplesmente, transferiu-se para São Paulo, por questões econômicas. Só para confirmar, vou citar alguns nomes de “cabras da peste” que fizeram, e fazem parte do orgulho da cultura brasileira: Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Clarice Lispector (estudou aqui), João Cabral de Melo Neto, Luis Gonzaga, Gilberto Freyre, Francisco Brennand... ufa!... Ariano Suassuna, Chico Science e Nação Zumbi, Tom Zé... e muitos outros, injustamente, não citados. O pior, não é saber que o reconhecimento só vem agora, é até bom, mesmo que tardio (e bota tardio nisso!), mas, é notar o presente preconceito que ainda existe em relação ao Nordeste, isso é grotesco, ímpio, ultrapassado e extremamente equivocado! Mas tudo bem, nosso ego é bem maior, porque não negamos o que não for espelho (desde de que seja de boa qualidade), nosso otimismo não é apenas regionalista é também nacionalista... Seja bemvinda!!! Franklin Montanha, via e-mail Adorei Vi a Revista Continente Multicultural na casa de uma amiga e adorei. Fabiana Carvalho, via e-mail Continente novembro 2003

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

As limitações do economista Para alterar o processo econômico é preciso atuar no plano político e interferir no processo histórico

ostrando a importância do conhecimento da psicologia para os economistas, Vernon Smith e Daniel Kahneman, ganhadores do prêmio Nobel de Economia de 2002, demonstraram, através de suas pesquisas, como as decisões humanas são diferentes das previstas pelas teorias econômicas. Identificaram as limitações das análises econômicas, baseadas na presumível racionalidade dos mercados, e provaram que o comportamento das pessoas tem racionalidade limitada. A economia industrial, que foi orgulho do século XX, entrou em declínio. A integração planetária está reduzindo o alcance da ação reguladora dos estados nacionais. Por conseguinte, a organização da produção, agora planejada em escala planetária, o faz em prejuízo do poder de negociação das classes trabalhadoras. As desigualdades aumentam. A tecnologia é usada sem restrições éticas para acumular riquezas. As empresas, que antes criavam empregos, passaram a destruí-los. Daí a intensificação desse processo duplo e perverso, que é o desemprego e a exclusão social por um lado, e a concentração de renda por outro. No Brasil, neste século, estudos do IBGE demonstram que, diferentemente do que ocorreu na Europa, o modelo de crescimento econômico aumentou mais ainda o fosso entre ricos e pobres. Os benefícios sociais não têm sido nem de longe eficazes para amenizar os malefícios causados pela má distribuição de renda. Para as formulações de equações de soluções para este problema, o conhecimento científico e o trabalho do economista, aliados a outras áreas do conhecimento, são de extrema valia. Todavia, não podem ser encarados como panacéia. A realidade do conhecimento e a natureza dos formuladores (economistas) sempre limitam (em função de sua formação) o conjunto de alternativas de soluções para os problemas econômicos. Diante dessa inibição metodológica, os resultados nem sempre são os esperados, na medida em que podem surpreender para melhor ou para pior. Como exemplo, valem as previsões catastróficas dos economistas quando da mudança cambial em 1999. Todos falharam. O valor do trabalho do economista deve resultar da combinação de dois ingredientes: imaginação para criar alternativas e coragem para arriscar na busca do incerto. O importante

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hoje é ultrapassar limites. Os instrumentos conceituais de que os economistas fazem uso não têm sido suficientes para alcançar esse objetivo. Usando recursos da psicologia, Smith e Khaneman encontraram novas explicações científicas para a chamada irracionalidade dos mercados, demonstrando como o tempo é inexorável e transforma, pela metade, verdades até então admitidas e escritas como absolutas. “Precisei de vários anos para perceber que os livros estavam errados”, disse Smith. Para qualquer um que tente fazer intervenções no processo econômico, faz-se imprescindível atuar de forma consistente no plano político e assumir a responsabilidade de interferir num processo histórico – que é percebido em função da formação e da acuidade dos analistas. A realidade tem tornado evidente que o socialismo foi incapaz de construir suas utopias, assegurando benefícios para todos; e o capitalismo tem mantido e aprofundado as contradições sociais de sempre. Todavia, o tempo tem mostrado que nenhuma verdade é para sempre e nenhuma unanimidade dura o tempo todo. A ciência é uma maravilhosa criação do homem, mas é inevitavelmente condicionada pela sociedade de onde surge. Independentemente dos instrumentos científicos que se usem no trabalho, a imaginação continua sendo um instrumento poderoso de trabalho. E para ser bom economista, além de base teórico-científica, é importante ter sensibilidade para usar a imaginação. Se todo economista competente identificasse as soluções corretas de questões para as quais se julga apto, não haveria tantos problemas na sociedade e na economia. Portanto, incorporar a psicologia e a sociologia, como recursos científicos, não deixa de ser ousado e criativo. • Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral. Continente novembro 2003


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CONVERSA

Foto: Divulgação

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niversidade” é um conceito que precisa ser revisto: neste país, são pouquíssimas as escolas reunidas que podem assim ser chamadas. O ácido diagnóstico é do historiador Carlos Guilherme Mota, que analisa, nesta entrevista, os descaminhos da educação superior, para a qual prega uma profunda revolução cultural. Carlos Guilherme é professor titular de História da FFLCH-USP e da pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro do Instituto de Estudos Avançados da USP e pesquisador da Escola de Direito de São Paulo (FGV). Autor, entre outros livros, de Ideologia da Cultura Brasileira (Ática) e coordenador de A Viagem Incompleta,15002000” (Ed. Senac, 2 vol.).

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CONVERSA

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CARLOS GUILHERME MOTA

“Precisamos de uma revolução cultural” Fábio Lucas

O declínio das universidades públicas é um problema que vem afetando não apenas o Brasil, mas países ricos. Na sua visão, por que isto acontece? Nossa elite republicana, apesar de oligárquica nas primeiras décadas de sua história, logo compreendeu que, para se emparelhar com as sociedades civilizadas, deveria formar quadros profissionais e políticos de alto nível. Dar um sentido para esta sociedade de passado colonial e mentalidade escravista. Tínhamos um regime republicano mas não havia povo educado, qualificado, longe disso. O esforço daqueles escritores críticos, de Euclides e Lobato a Gilberto e Caio Prado Júnior, era o de descobrir e estudar esse povo, dar-lhe uma fisionomia. O que descobriram não era muito animador: era preciso educar, qualificar, dar emprego para essa multidão ignara. O Estado logo se incumbiu de cuidar disso, com grandes lutadores à frente, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, dentre muitos. Era a melhor vertente, meio jacobina, da Revolução Francesa que chegava aqui: o Estado deveria ter um papel decisivo na formação nacional. Darcy e Florestan representam bem, cada um a seu modo, essa visão da educação. Jacobinos radicais, foram até cassados, com muitas outras das melhores cabeças da nação (como Furtado), após o golpe de 1964, quando se instalou um regime que foi nocivo para a educação pública, abrindo as portas para uma sociedade de massas que precisava apenas ter “alguma instrução”. Não para funcionar como cidadãos, mas como súditos-contribuintes e consumidores. Então foi a mão pesada de um “Estado forte” que enfraqueceu o ensino público, ao invés de apoiá-llo?

Direi que foi a vertente burra dos girondinos brasileiros, a do capitalismo selvagem, que ganhou cada vez mais espaço sob as vistas de um Estado ditatorial que facilitou as iniciativas privadas no ensino. Tais cursinhos apressados funcionaram como by-pass para a promoção social de frações da pequena burguesia emergente, gerando fortunas tremendas de empresários pseudoeducadores, sobretudo no período mais bravo da ditadura, com leis “educacionais” que o ex-ministro Passarinho, signatário do AI-5, não desconhece. A pesquisa universitária foi liquidada naquele período negro; e as escolas particulares nem podem ouvir falar desse tema, pois pesquisa representa custos... No Brasil, o empobrecimento universitário veio acompanhado de uma fragmentação que multiplicou a oferta do ensino superior privado. Na lógica liberal, quanto maior a oferta teoricamente melhor devia ser a qualidade do “produto”. Por que isto parece não dar certo com o ensino superior brasileiro? Porque a lógica liberal, de norte a sul, entrou no facilitário do imediatismo dinheirista. Diversamente da atitude e mentalidade de elites de outros países, como os EUA e o Japão, onde se pensa a longo prazo, no Brasil essas elites pseudoliberais adotaram a filosofia do “faça tudo por dinheiro”, como num programa domingueiro de TV. Há que se reconceituar um pouco essa estória: no Brasil, sempre houve muito poucos liberais para valer, como um Júlio de Mesquita Filho, que ajudou a construir a Universidade de São Paulo. Liberais, mas com visão histórica, com projeto de longo prazo, de cunho político-cultural. Hoje, de fato, o que domina é o pragmatismo irresponsável, a lógica da cultura do espetáculo e da violência da sociedade de massas. Vale tudo, com cabeça Continente novembro 2003

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10 CONVERSA Foto: Arquivo/AE

de Primeiro Mundo mas salários de Quarto Mundo. Portanto, não se trata de universidades, mas de caça-níqueis, com alguma sofisticação para os incautos terem um “diploma”. Os alunos, no entanto, se crêem e se dizem universitários. “Universidade” é outro conceito que precisa ser revisto: neste país, são pouquíssimas as escolas reunidas que podem assim ser chamadas. O grande Anísio Teixeira já dizia nos anos 60 que elas eram demasiado raras aqui. Em verdade, eram “escolas” e institutos que se encontravam de tempos em tempos nas benditas reuniões do Conselho Universitário, apenas para discutir o orçamento daquele ano. Pouco se falava de pesquisa e seu papel na nação. Agora, quanto ao descalabro atual, vamos nos entender: Universidade com U maiúsculo, para valer, pressupõe tempo integral para todo o corpo docente, muita verba para pesquisa de ponta e formação de novos quadros. O resto é conversa.

O grande educador Anísio Teixeira

Universidade com U maiúsculo, para valer, pressupõe tempo integral para todo o corpo docente, muita verba para pesquisa de ponta e formação de novos quadros. O resto é conversa

Foto: Alcione Ferreira/DP

A República descobriu o povo brasileiro: desânimo Continente novembro 2003

O Sr. afirma que a dicotomia público/privado precisa mudar na educação superior brasileira. Até que ponto esta mudança pode ser promovida ou incentivada pelo Estado, uma vez que também parece faltar aqui uma cultura de mecenato, que se observa em outros países? Aqui você toca em dois pontos doloridos. Nosso mecenato ainda está mais para senhor de engenho do que para os empresários descritos por Scott Fitzgerald ou Gore Vidal. Acham que é mais fácil mandar seus filhos estudarem no exterior do que dar dinheiro para uma fundação ou universidade tupinambá. Isso corresponde a um tiro no próprio pé; com tal mentalidade, não iremos longe enquanto nação. Cultura é negócio de longo prazo. Tenho muitos amigos que, embevecidos, enviam seus filhos para universidades nos EUA, em muitas das quais eu já lecionei. Cheguei mesmo a fazer parte do board do Programa de Estudos LatinoAmericanos da Princeton University e posso afirmar que não creio que nossa experiência, nas grandes universidades e escolas, seja tão desastrosa assim. Prefiro formar gente aqui com competência, e depois enviar para lá (e de preferência para outros países, como Espanha ou França) para complementar sua formação, do que criar pequenas emulações de gringos mal-adaptados que, como Bush Filho, mal sabem onde fica Bagdá... Em qualquer hipótese, lá existe mecenato e isso melhora muito a vida da pesquisa em Humanidades, Artes, Ciência e Tecnologia. Aqui, a vida é bem diferente num centro de Artes e num centro de Tecnologia. É outro ponto doloroso: venho notando como há maior cuidado com as instalações em áreas de ciências “duras”, em contraste com as de Humanidades. Veja o prédio onde está instalada a área de Humanidades na UFPE. Basta freqüentar as toaletes da PUC-SP ou da USP para ver que há algo errado, em termos de mentalidade: há enorme desapreço pela higiene, a universidade não é vista como um lugar para se viver bem, é apenas um ponto de passagem. Isso é um traço de nossa herança colonial. Isso não se verifica numa instituição como a Universidade Presbiteriana Mackenzie, ou na EDESP-FGV, ou em nosso Instituto de Estudos Avançados. Acho que precisamos de uma profunda revolução cultural, a começar pelos hábitos de higiene. Isso para não falarmos das bibliotecas muito desatualizadas: discutimos pós-modernidade em sala de aula, mas não tomamos de assalto as bibliotecas.


CONVERSA 11 Foto: Arnaldo Carvalho/JC Imagem

Campus da Universidade Federal de Pernambuco: instituições verdadeiramente universitárias são raras no país

Diversamente da atitude e mentalidade de elites de outros países, como os EUA e o Japão, onde se pensa a longo prazo, no Brasil essas elites pseudoliberais adotaram a filosofia do “faça tudo por dinheiro”, como num programa domingueiro de TV

Numa terra de enormes fossos sociais como a nossa, qual o papel que cabe à filantropia na reconstrução do ensino universitário? A filantropia ainda é um recurso necessário para a vida de algumas instituições universitárias sérias, como a PUC de São Paulo, Recife, Campinas, Rio de Janeiro e outras, o Mackenzie ou as Metodistas de São Caetano e Piracicaba, que prestam serviço público há muito tempo, por meio de bolsas a carentes, para que possam prosseguir seus estudos e pesquisas. Há muitas outras que assim se comportam, espalhadas pelo país. Claro que há necessidade de se verificar e controlar a qualidade desse serviço, mas o Ministério de Educação já possui mecanismos razoáveis para tal avaliação. Pagar menos impostos porque auxiliam na formação da cidadania: por que não? Claro que não há de falar-se em filantropia nos casos de escolas de meia-confecção. Os estacionamentos cheios das universidades federais funcionariam como argumento, para muitos, de que o financiamento público do ensino superior serve aos ricos, ou aqueles que poderiam pagar, enquanto as universidades privadas cada vez recebem um contingente maior de alunos com menor renda. Como equilibrar esta equação? Acho o argumento muito reacionário. Era usado pela pior

direita brasileira nos tempos da ditadura. Ainda bem que os estacionamentos estão cheios de autos, assim como as praias estão cheias de gente (embora o saneamento básico, como em Salvador, não seja dos melhores), e assim por diante. Acho que o problema poderia ser melhor equacionado por meio de bolsas e por controle de imposto de renda. Em suma: bolsas para carentes de boa qualidade e controle do imposto de renda dos pais: pagam os que podem. Claro que isso dá um trabalhão imenso, e cada sistema de universidade deveria ter um setor bem preparado para fazer essa triagem com rigor, selecionando os talentos. Isso seria revolucionário, mas aqui tropeçamos no corporativismo, com a mentalidade arcaica de certas esquerdas, com o medo senzaleiro do “trabalho a mais” etc. E com a direita burra da casa grande, que fala muito mas não quer mexer em nada. Seria fundamental mobilizar também capitais particulares, doadores para fundos de bolsas: quem não poderia pagar uma pequena “mesada” para a USP ou para a UFPE? Tanta gente se formou de graça, em tempos difíceis, e agora está bem de vida. Por que não devolver um pouco do muito que recebeu? Somos tão individualistas que nem associação de ex-alunos ou ex-professores cultivamos. Cada um na sua, e não mexam na minha aposentadoria. • Fábio Lucas é jornalista. Continente novembro 2003


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14 CAPA

Os dogmas do terror A atração dos intelectuais por sistemas explicativos completos, livres das armadilhas da ironia histórica e da volubilidade humana, torna-se uma obsessão na mente de terroristas Daniel Piza


O

terror e a teoria sempre andaram juntos. Talvez, porque até o mais frio dos terroristas sabe que está fazendo o mal – ainda que para supostamente atingir o bem –, sente a necessidade de se armar não só de bombas, mas também de dogmas. Não é preciso fazer esforço para lembrar o caso de Unabomber, ou Theodore Kaczynski, um matemático, formado em Harvard e Michigan, que construiu todo um aparato ideológico para justificar seus atentados – basicamente, o de que a sociedade tecnológica oprime a expressão dos instintos individuais, deixando como única opção de resistência o ato revolucionário. O principal credo político de Unabomber era o de que reformas são sempre insuficientes: apenas as revoluções valeriam a pena. A atração dos intelectuais por sistemas explicativos completos, livres das armadilhas da ironia histórica e da volubilidade humana, se torna uma obsessão na mente de terroristas, uma obsessão tão mais ilimitada quanto mais ele se considerar vítima da sociedade, como uma criança que não aceita as decepções e decide salvar o mundo. Examine a mente de qualquer terrorista e você verá alguém com profundas dificuldades de se relacionar socialmente e amorosamente e que, por isso, culpa o universo e não a si mesmo. Não que em cada intelectual durma um Unabomber, embora gente como Gore Vidal elogie um Timothy McVeigh, mas certamente em cada Unabomber dorme um intelectual. Alguns dos melhores ficcionistas enxergaram o fato. Joseph Conrad – de quem Kaczynski, de origem polonesa, parecia perfeitamente um personagem – mostrou em O Agente Secreto, por exemplo, que o grau de rejeição que o terrorista sente pelo mundo moderno, o qual constantemente provoca nossos instintos e testa nossas capacidades, é diretamente proporcional à sua dificuldade de se relacionar com esse mundo. Ou seja, o terrorista pode até mesmo enxergar com clareza muitos dos problemas da realidade atual que a maioria das pessoas não enxerga; e não é o sujeito frio, “inumano”, que

Foto: Corbis

CAPA 15 »


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16 CAPA

Foto: Mohammed Saber/Ag. Lusa/O Globo

O terrorismo se vale do inesperado e do incontrolável e usa o argumento de que não há saídas

Não que em cada intelectual durma um Unabomber, embora gente como Gore Vidal elogie um Timothy McVeigh, mas certamente em cada Unabomber dorme um intelectual

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mata pessoas como se matasse mosquitos, como nos vilões de trejeitos sofisticados que Hollywood vem desfilando desde sempre (pense em Silêncio dos Inocentes, em que Anthony Hopkins é um refinado estudioso de Dante em Veneza), e sim um homem atormentado, incapaz de mascarar seu deslocamento social. “O terrorismo é a fúria dos literatos em último estágio”, escreveu o grande intelectual Burckhardt. Mas a esquizofrenia paranóide dos terroristas toma uma forma conhecida: a sensação de um outro tomando conta de si, o crescente, mas não linear, aprisionamento da consciência por uma idealização – por uma voz que seduz por sua promessa de auto-suficiência, como se o indivíduo pudesse se tornar bastante independente dos outros. Antes de Conrad, Dostoievski já descrevera isso em Os Possessos; ou melhor, em quase todos os seus livros um personagem tenta ir ao extremo da indiferença, a um ponto em que a sociedade não o afeta e, se a interação social se fizer necessária, será como instrumento. O narrador de Notas do Subterrâneo, por exemplo, persegue esse desligamento moral-afetivo como um Graal. No entanto, jamais o obtém. Camus também sempre se interessou por personagens que se apaixonam de tal forma pela solidão absoluta que, como em O Estrangeiro, já nem se importam com a morte da mãe. O ideal do exílio, da marginalidade e da invulnerabilidade é o tema central de Camus; novamente, porém, seus personagens jamais conseguem a vitória final da quietude, como em sua peça Os Justos, inspirada na história de um terrorista russo que não via barreiras morais para sua revolução. (Não é à toa, por sinal, que não existem terroristas mulheres. O vínculo afetivo da mulher com a vida não a deixa se iludir com esquemas salvacionistas, que reduzem seres humanos a peças abstratas.) Não é estranho, por tudo isso, que atentados terroristas como o de 11 de setembro, que derrubou as torres gêmeas do World Trade Center de Nova York, sejam tão tentadores para as


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justificações teóricas, para os exercícios intelectualóides. O “inimigo” é um poço sem fim de combustível para a paranóia: os EUA e sua política externa arrogante, unilateral, bradada com voz de pato por George Bush II. A “finalidade” seria alertar para a necessidade de ampliar a ajuda dos países ricos para os pobres. E as diversas reações – como Bush prometendo, em linguagem de John Wayne, pegar Osama vivo ou morto – pareceram comprovar o “ponto” dos terroristas. Afinal... e aí seguem as “razões”: o apoio americano a Israel faz desigual o conflito entre judeus e palestinos; os EUA só estão interessados em dinheiro (petróleo), como qualquer império a explorar suas colônias; a globalização, representada pelo centro comercial gigante no coração de Manhattan, empobrece os subdesenvolvidos etc., etc. Ou, na frase de Saddam Hussein à época (ainda sem saber que seria o alvo seguinte), “os EUA colheram o que semearam” – o que seria repetido por inúmeros intelectuais, de Susan Sontag a Stockhausen, de Robert Kurz a Oscar Niemeyer. Mas o que se esquece é que os terroristas não fizeram apenas uma espécie de “ato simbólico” para denunciar o neocolonialismo americano (até mesmo porque, como sabiam, só o fizeram ressurgir com mais força) ou o que intelectuais do ocidente chamam de “terror de Estado” (como se o governo americano fosse igualmente uma organização terrorista, e não apenas belicista ou unilateralista). Como é característico dos terroristas, islâmicos ou não, seus sonhos vão um pouco além: o que desagrada a eles é a própria civilização ocidental moderna, liberal, tecnológica e consumista – ela sim o Satã a combater, o Mal a expurgar do mundo, o lixo a exilar da história. Como Unabomber ou McVeigh, o que esses terroristas querem é uma revolução profunda e imediata, não essas intoleráveis discussões e licenciosidades da vida contemporânea, com suas TVs e suas mulheres diabólicas.

O Agente Secreto, de Conrad: rejeição pelo mundo moderno

Foto: Eric Miller/Reuters

Os Possessos, de Dostoievsky: consciência aprisionada

O matemático Theodore Kaczynski, o unabomber: aparato ideológico Continente novembro 2003


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Claro, pode-se acusar Bush de ser tão intolerante e maniqueísta quanto esses terroristas, ou Berlusconi por dizer que “a civilização cristã é superior à islâmica” (um pensamento em bloco, quase tão reducionista quanto o ódio fundamentalista ao Ocidente), mas Bush e Berlusconi não representam totalmente a cultura ocidental moderna, e sim uma vertente reacionária dela. Alguém talvez replique: mas a civilização islâmica também não é representada pela Al-Qaeda ou pelo partido de Saddam, o Baath. Sim, e essa é a questão central: não cair em generalizações grosseiras, em rotulações discriminatórias. Só que não se pode esquecer que boa parte das nações islâmicas, por misturarem Estado e religião e ainda não terem consolidado uma democracia pluralista de verdade, alimentam um caldo de cultura onde o fanatismo não é ingrediente exótico. Nem mesmo os Unabombers nascem fora de um contexto. A discussão mais complicada, e que incomodava particularmente Camus, é sobre os eventuais limites morais que uma guerra pode ou deve ter. Há um consenso de que vidas civis inocentes, em especial crianças e mulheres, devem ser poupadas. Ao mesmo tempo, há a Continente novembro 2003


Nova York, 11 de setembro: justificativa teórica está no “inimigo”

Foto: Hubert Michael Boesl/Ag. Lusa/O Globo

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observação de George Orwell: as guerras ceifam a fina flor da juventude masculina, o que já é o próprio horror. No entanto, enquanto a utopia de um mundo pacífico não deixar de ser isso, uma utopia, e enquanto existirem, sobretudo, crimes contra a humanidade praticados em determinados países, as guerras continuarão – e continuarão matando homens jovens, crianças inocentes etc. Assim, pode-se abrir um campo de justificativa moral para certa dose de violência, especialmente quando se trata de evitar uma violência ainda maior. Mesmo as guerras têm leis, têm limites. Já o terrorismo, que se vale do inesperado e do incontrolável, usa sempre o argumento de que “não há outra saída”. Quer, na verdade, jogar o mundo todo em seu beco moral. Mas há uma diferença entre adotar a violência como última alternativa e como única alternativa. Diferença pequena, mas fundamental. • Daniel Piza é jornalista e escritor. Continente novembro 2003

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20 CAPA

Terrorismo, um legado da história Não se justifica qualquer atentado terrorista, venha de onde vier. Mas deve-se situar o debate no seu lugar concreto: a história José Arbex Jr. Foto: Larry Downing/Reuters

Bush visita o antigo campo de concentração de Auschwitz, cuja existência, para Adorno, tornou impossível fazer poesia

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É

surpreendente que um fato tão simples pareça escapar à imensa maioria daqueles que escrevem sobre o terrorismo: trata-se de uma ação praticada por seres humanos, não por ETs enfurecidos. Por ser ato humano, só pode ser compreendido como um resultado da história. O século 20, em particular, banalizou o terror (isto é, o uso da violência sistemática, com objetivos políticos, contra civis ou alvos militares que não estejam em operação de guerra). Também multiplicou as suas formas. Existem terroristas que agem em nome de Deus (como os grupos extremistas islâmicos); os mercenários (milicianos franceses e norte-americanos que lutam na África); os nacionalistas (como o IRA e do ETA); e, ainda, os ideológicos (como o grupo de Tim McVeigh, responsável pela destruição do prédio de Oaklahoma, em 1995). Existe também o terrorismo de Estado – a prática de eliminar populações e alvos civis (como os Estados Unidos, em Hiroshima e no Vietnã, ou Pol Pot no Camboja), ou a segregação e chacina de minorias (caso do antigo regime de apartheid na África do Sul, e o de Israel contra os palestinos), ou ainda a prática de torturar e assassinar os que pensam diferente (ditaduras latino-americanas, nos anos 60 e 70). Claro, o terror não começou no século passado. Ao contrário, tem uma longa história. Basta lembrar, na era moderna, o regime implantado na França por Robespierre, em 1793. Ou então o assassinato do czar da Rússia Alexandre Segundo, em 1881, pela organização Vontade do Povo. A primeira notícia de um atentado terrorista publicada por um jornal no Brasil data de maio de 1878. O alvo era o imperador Guilherme da Prússia. O estopim da Primeira Guerra foi o assassinato, em 1914, do arquiduque Francisco Ferdinando pelo estudante Gavrilo Prinzip, membro do grupo terrorista sérvio Mão Negra. Até os anos 20, o terrorismo era um fenômeno esporádico. Ele começou a ganhar abrangência e importância com o surgimento dos regimes de Josef Stalin e Adolf Hitler. Já no final dos anos 20, Stalin enviava aos campos de concentração centenas de milhares de opositores, sem contar os milhões de camponeses executados durante a coletivização das terras, entre 1929 e 1932. Na Alemanha dos anos 30, Hitler perseguiu comunistas, judeus, ciganos e eslavos. Até o final da Segunda Guerra, em 1945, seriam assassinados seis milhões. Os dois regimes eram semelhantes, no que se refere ao culto à personalidade do dirigente e aos po-


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Foto: RV/AFP

deres da polícia política (KGB e Gestapo). O totalitarismo deu uma nova dimensão ao terror. Pela primeira vez na história, a máquina do Estado era colocada a serviço de ideologias que propunham a eliminação dos adversários. O terror estendia os seus tentáculos sobre o conjunto da sociedade. Método semelhante seria adotado por Mao Tsétung, após a tomada do poder, na China, em outubro de 1949. O legado do terror foi sintetizado pelo filósofo alemão Theodor Adorno, com a sua terrível sentença: depois de Auschwitz, tornouse impossível fazer poesia. Adorno indagava o sentido da cultura. Auschwitz aconteceu no país de Schiller, Goethe, Marx, Bach, Kant... A tecnologia da morte zombou dos mais elevados ideais da beleza, da verdade e do bem. Não há limites para a capacidade destrutiva do homem. O terrorismo ainda daria um gigantesco salto, com Hiroshima e Nagasáqui, em agosto de 1945. A bomba fez da morte do mundo uma opção política: bastaria um dos dois lados “apertar o botão” para iniciar a guerra nuclear – a última da espécie. A política e o diálogo haviam perdido sua razão de ser. O “equilíbrio do terror” marcou as cinco décadas da Guerra Fria. A “banalização do Mal” denunciada por Hannah Arendt atingia o seu ápice. O ser humano que emergiu desse processo tornou-se mais cínico e “duro”, menos solidário. Nos anos 80, a ideologia neoliberal – “não há sociedade, só indivíduos”, disse Margaret Thatcher – forneceu o quadro mental perfeito para um mundo afetivamente devastado, integrado por seres solitários, atomizados, imersos em suas próprias angústias. Os Estados Unidos (que, aliás, treinaram Osama Bin Laden e armaram Sadam Hussein), particularmente, têm uma grande responsabilidade sobre o clima de terror que emoldura as relações internacionais. A totalidade de sua política externa é baseada sobre a força bruta e o total desprezo pela comunidade das nações. Basta lembrar a recente ruptura de Washington com o Protocolo de Kyoto, em nome dos seus específicos interesses comerciais, ou o abandono da conferência contra o racismo, em Durban. Não por acaso, em abril os Estados Unidos foram excluídos da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Os motivos alegados pela Associação Americana dos Juristas falam por si: “Os Estados Unidos não aderiram à boa parte dos instrumentos internacionais de direitos humanos vigentes. Entre outros, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; os dois protocolos do Pacto de Direitos Civis e Políticos; a Convenção contra o apartheid; a Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa-humanidade; (...) a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados; a Convenção de Ottawa, de 1997, que proíbe as minas anti-pessoais (...). Tampouco votou pela criação de uma Corte Penal Internacional (...). Ao ratificar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, formulou reservas a numerosos artigos, entre eles o artigo 6.5, que proíbe a aplicação da pena capital por delitos cometidos antes dos 18 anos (...). É um dos dois países do mundo (o outro é a Somália), que não ratificou a Convenção dos Direitos da Criança.” A destruição do World Trade Center apenas projetou a sombra do Gulag, de Auschwitz, de Hiroshima e do Vietnam sobre Manhattan. Não se pretende, com essa afirmação – é óbvio! –, justificar aquele ou qualquer outro atentado terrorista, venha de onde vier. Muito ao contrário. Pretende-se, apenas, situar o debate no seu lugar concreto: a história. •

Robespierre, principal ideólogo e executante do Terror, na França de 1793

José Arbex Jr. é jornalista, doutor em história social contemporânea pela USP, professor e autor de Terror e Esperança na Palestina; Guerra Fria: Terror de Estado, Cultura, Política, entre outros títulos. Continente novembro 2003


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22 CAPA

O abandono das idéias A civilização ocidental, que desenvolveu uma capacidade de julgar segundo critérios universais, não pode relativizar o terrorismo. Quem afirma é Denis L. Rosenfield, professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, editor da revista Filosofia Política e autor do livro Retratos do Mal

Fábio Lucas Foto: Agliberto Lima/AE

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“Se causas sociais fossem a causa do terrorismo, o Brasil seria um país terrorista!”

entro das “causas” apontadas para o fenômeno do terror, a explicação ideológica, antiliberal, aparece numa perspectiva histórica: o neoliberalismo teria feito surgir uma tal diferença cultural e econômica, que o terrorismo não passaria de uma conseqüência desses desequilíbrios. O que há de errado com a pergunta: “Por que o terrorismo existe em nossa época, e não antes?” Não me parece correto afirmar que o terror seja um fenômeno novo, nem que o terror islâmico, em particular, o seja. Ele remonta há vários séculos, correspondendo a uma vertente dessa religião, que procura, pela violência, impor as suas formas de culto e de comportamento a outros povos e religiões. Não se pode esquecer a vocação expansionista da religião muçulmana, que é uma das que mais crescem no planeta. Basta observarmos a sua expansão na África. No que diz respeito ao grupo Al Quaeda, ele deita raízes no culto Waabita, particularmente ativo na Arábia Saudita. Seus líderes fazem parte da elite dirigente do país, não tendo nada de desvalidos, nem de socialmente desfavorecidos. Trata-se, na verdade, de um grupo milionário. Os terroristas que atacaram as Torres Gêmeas faziam estudos de pós-graduação na Alemanha. O Ocidente desenvolveu uma espécie de culpa, como se toda irrupção de violência devesse ter causas sociais ou fosse de alguma maneira o resultado de ações realizadas em nome da civilização ocidental. Do ponto de vista filosófico, essa postura vigorou no auge do estruturalismo, que equivaleu todas as culturas de um ponto de vista cultural, como se fossem de igual valor. O efeito mais visível desta postura foi a renúncia de julgar e, logo, de pensar. Uma renúncia muitas vezes encoberta pelo “respeito às diferenças”. Como devemos encarar a alegação do terror como expressão da diferença cultural? Algumas civilizações, como a ocidental, apesar de seus problemas, conseguiram revisar suas próprias posições, desenvolvendo uma capacidade de julgar segundo critérios universais. A mesma regra vale, então, para situações distintas, amparada que está na capacidade de ser universa-

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Foto: Mohammed Saber/Ag. Lusa/O Globo

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O século 20 banalizou o terror numa escala sem precedentes

lizada, numa perspectiva que se ancora numa idéia moral de humanidade. Ora, esses critérios, embora pertençam a uma época determinada, têm uma validade que os ultrapassa. Não há por que minorar os atentados terroristas, que são atos propriamente injustificáveis. Qualquer tentativa de buscar causas é aqui inútil, pois não podemos remontar a fenômenos anteriores que o explicariam. E atos injustificáveis são assim considerados numa perspectiva universal, que não se acomoda diante de pretensas “causas sociais”. Se causas sociais fossem a causa do terrorismo, o Brasil seria um país terrorista! O terror deve ser, então, enfrentado com a repressão, com atos policiais e militares, do mesmo modo que não há diálogo possível, senão estrategicamente, com um criminoso que tenta matar alguém. O diálogo pressupõe a interlocução racional, agentes afeitos ao uso do discurso e que vêem, neste, um meio de progredir no entendimento mútuo. Há uma condição básica aqui: os interlocutores devem preservar um a vida do outro, sem o que não há diálogo possível. Após o choque do 11 de setembro, tudo que aconteceu, e acontecerá, parece diminuído, simplificado. A mídia desde antes já havia colocado a violência na pauta diária de notícias, e as pessoas vão se acostumando com isso. Para a filosofia, o que representa a banalização que acompanha a racionalização do terror? Para a filosofia, e eu sigo aqui Hannah Arendt, a banalização da violência corresponde a uma banalização do mal. No momento em que não mais nos indignamos, no momento em que nos acomodamos a uma violência generalizada, adormecemos a nossa capacidade de julgar e podemos, assim, nos tornar vítimas indiretas dessa situação. Se não mais julgamos, se tudo tem um mesmo valor, abrimos na verdade caminho a novas formas de irrupção da violência. Uma sociedade democrática é uma sociedade que se caracteriza pela adesão ao discurso, pela discussão dos seus valores e por um comprometimento com princípios de validade universal. Se ela se torna

incapaz de julgar, se tudo tem uma explicação, se tudo tem uma causa, inclusive o maior horror, aquilo que foge de nossos padrões de normalidade, ela termina por se voltar contra os seus próprios fundamentos. Ou seja, uma sociedade que não faz valer as suas idéias, abandona-as, e ao abandoná-las, abre espaço para a violência, para o mal. No seu livro, vemos como um ato terrorista é um ato vazio, porque não comunica nada enquanto ato, e, como o Sr. diz, toda ação é linguagem. Mesmo assim, cada ataque violento é assumido como uma mensagem, geralmente de aparência revolucionária. Tal modo de ver as coisas aproxima as Farc e o MST de Bin Laden, na medida em que enxerga uma “justificação” por trás não de um discurso, mas da negação dele. Seria possível separar a bandeira do fanatismo religioso da bandeira de grupos políticos que primam pelo uso da violência? Excelente pergunta! Atos terroristas são atos, cuja violência os coloca como formas da irrazão, como formas daquilo que se volta contra a condição mesma do discurso. São atos que se voltam contra a possibilidade de toda e qualquer regra. Diferentes regimes políticos, por exemplo, como a monarquia de direito divino, a monarquia constitucional e a república, são todos assentados em formas de vida. Essas formas de vida podem ser diferentemente concebidas, seus valores podem ser distintos, mas nenhum desses regimes se baseia na busca da morte violenta. Trata-se de uma regra básica do Estado, enunciada por Hobbes, de que se os indivíduos entram numa relação estatal, eles o fazem para assegurar a sua própria vida, a sobrevivência de seu próprio corpo, de sua família e a conservação de seus bens. Ainda segundo Hobbes, os homens são seres desejantes, cujo movimento busca a preservação da vida, realizando o prazer e evitando a dor. Ora, a ação terrorista se volta contra esse princípio mesmo do movimento vital, seu alvo sendo a morte violenta de todos aqueles que se interpõem no seu caminho. O seu jogo, por assim dizer, é o jogo da morte violenta, o não-jogo Continente novembro 2003


24 CAPA que inviabiliza todo e qualquer jogo. Neste sentido, tanto o fanatismo religioso quanto os grupos revolucionários se caracterizam por um uso da violência que os coloca num processo contrário ao da conservação da vida e, logo, das condições mesmas do agir racional, da ação portadora de linguagem. Sendo a sua feição totalitária a mesma, penso que não devemos distinguí-los conceitualmente. Dito isto, a sua forma de manifestação é empiricamente distinta, pois um age em torno de uma bandeira religiosa e o outro de uma suposta concepção atéia. O seu núcleo, digamos teológico-político, é, porém, o mesmo.

Foto: Reprodução/AE

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A pensadora Hannah Arendt constatou que a banalização da violência corresponde a uma banalização do mal

A natureza humana da tradição filosófica, dos gregos a Freud, passando por Maquiavel e Hobbes, denuncia um homem frágil, feio e ignorante, cuja soma de qualidades negativas é maior do que a de positivas. Com todo avanço científico ou mesmo a universalização dos direitos, a natureza humana não parece mudar no essencial: a raiz podre, a sua malignidade. Deste modo, para atirar jatos em torres ou para invadir o Oriente Médio, a natureza humana não constitui uma ótima desculpa para o poder? A natureza humana é plástica, moldável segundo as épocas e períodos históricos. Se reduzirmos o homem ao seu mínimo denominador comum, pouco avançaremos, pois chegaremos apenas às capacidades de alimentação, de reprodução, de caminhar, de uso da linguagem e de outras que pouco nos distinguirão dos animais. Ora, o que observamos no transcurso da história é que o homem é o conjunto de suas ações, o seu vir-a-ser tanto para o bem quanto para o mal. Logo, se a natureza humana é plástica, coloca-se o problema de sua moldagem, do molde e daqueles que o fabricam. Temos tantas “fábricas” quanto épocas e sociedades. Podemos, no entanto, aprender desse conjunto de “fábricas”, que algumas procuraram sair desse processo de moldagem e tentaram colocar no frontispício de uma nova época a capacidade humana de afirmar direitos, direitos universalizáveis, válidos para qualquer homem, independentemente de sexo, cor, religião ou condição social. Conseqüentemente, a plasticidade da natureza humana pode também ser formada de modo a evitar a morte violenta e propiciar a consolidação da vida civilizada. Ao relacionar o mal com a existência, o Sr. também indica a ligação entre o real, a razão e a moral, uma vez que a razão se faz por juízos sobre aquilo que se concebe como sendo o mundo. Apesar do vazio na origem, o Sr. concordaria com a afirmação de que o terrorismo termina por afrontar a moral de uma sociedade extremamente materialista como a nossa? Ou ainda: que mesmo sem uma mensagem intencional, o terror conseguiria nos alertar para a confusão entre vida material e vida moral? Penso que as sociedades ocidentais desenvolvidas acomodaram-se sobremaneira com as facilidades materiais, vindo, inclusive, a identificar, a confundir, a noção de bem com a noção de bem material. Fortaleceu-se, então, um egoísmo de tipo materialista, como se o bem de cada um valesse imediatamente como o bem de todos. Isto explica a indiferença que muitas vezes constatamos com o próximo, inclusive o próximo muito necessitado. As pessoas terminam por se acostumar com a miséria como se isto fizesse naturalmente parte das coisas do mundo. Se há algo que podemos aprender com o terror, sua “mensagem”, que não é sua, mas nossa, por dizer respeito ao modo mediante o qual recebemos as coisas que nos acontecem, é que os valores de uma sociedade como a ocidental devem ser afirmados de uma forma incondicional, seja via desenvolvimento da consciência que temos de nós mesmos, seja via ações militares e/ou policiais que ponham freio ou término ao terrorismo. Em todo caso, a sociedade ocidental deve ter claro que o uso de meios militares e policiais é moralmente justificável, sendo a forma política de evitarmos algo pior, o controle de Estados pelo terror. • Fábio Lucas é jornalista.

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CAPA 25

O dia do medo Repórter, que estava na cidade, no 11 de setembro, conta suas impressões e diz que naquele dia Nova York voltou a fazer parte dos EUA Fábio Araújo

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Foto:Teté Ribeiro / Divulgação Geração Editorial

erça-feira, 11 de setembro de 2001. São 8h45. O brasileiro Sérgio Dávila dorme em seu apartamento de East Village, Manhattan, Nova York. A noite havia sido agitada, com show da banda britânica Jamiroquai no Hammerstein Ballroom, seguido por uma passada no PJ Clarke’s para saborear o “melhor hambúrguer da cidade” e algumas cervejas. Porém, Sérgio – correspondente do jornal Folha de S. Paulo em NY – está prestes a descobrir que diversão será uma palavra banida de seu vocabulário nas próximas semanas. Antes das 9h, o telefone de sua casa toca. Dávila liga a TV e vê o World Trade Center em chamas. Parece um acidente comum. A CNN diz que um monomotor se chocara com o edifício. Nas ruas, Sérgio se apressa para chegar ao local e descobre que o metrô já não funciona. O trânsito está impraticável. Andando pela Terceira Avenida em direção ao WTC, o repórter presencia a queda da primeira torre. O caos começa a tomar conta. Na Quinta Avenida, já bem mais perto do destino, ouve-se um ruído seco. A segunda torre desaba. Desespero. Pânico. Aquilo não pode ser mero acidente. Enfrentando a poeira e a dificuldade de respirar, Sérgio chega bem perto dos escombros e presencia cenas dantescas, um cenário de guerra. “Pedaços de corpos, gente machucada, as equipes de resgate em completo caos”. É retirado do local, a essa altura escuro como a noite. Um ano após a tragédia, Sérgio Dávila lançou Nova York – Antes e Depois do Atentado, uma coletânea de textos escritos no calor dos acontecimentos, dando sua visão bem pessoal do que mudou na metrópole. Das crônicas, reportagens e personagens que compõem o livro, salta a conclusão do autor: o 11 de setembro fez Nova York voltar a fazer parte dos Estados Unidos, de quem havia se separado nos anos 50. O lado bom foi ter conquistado a afeição das outras cidades, “que normalmente odeiam (e invejam) a prima rica e bem-sucedida”. O lado ruim foi ter encampado o pior do nacionalismo americano pós-ataques. Por tudo o que presenciou, o repórter tem uma certeza: a ferida aberta na alma americana pelos ataques de 11 de setembro demorará pelo menos um século para cicatrizar. “Hoje os EUA estão tomados por uma psicose coletiva. A cada botijão de gás que estoura, em Manhattan, todos se entreolham com medo, pensando: será o próximo?”, descreve em entrevista à Continente. O medo torna a sociedade americana mais fechada, mais preconceituosa, mais chauvinista. Um mês após o atentado, ao tentar retornar aos escombros (onde ainda ardiam chamas), o próprio Sérgio foi arrastado pelo braço por um guarda. “Marquem bem a cara dele. Se aparecer de novo, podem prender”, recomendou o policial aos colegas. •

Sérgio Dávila, no Dia do Medo, em Manhattan

Fábio Araújo é jornalista. Continente novembro 2003


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26 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Colunismo social vira assistência literária O chão foge dos pés dos novos valores

“E

mpresa jornalística, que fornece seus serviços a cerca de 300 jornais, (...) precisa, com urgência, de um poeta desocupado que possa assumir o compromisso de vir a ser um cronista social. Prefere-se lírico e satírico. Carta detalhada, com alguma crônica de amostra, à rua Líbero Badaró, 48, S. Paulo, dirigida a Flávio Campos”. Esse curioso anúncio, eu o li na extinta revista Moderna ( Recife – dez. 1932), dirigida pelo jornalista Altamiro Cunha, considerado o pai da atual crônica social em Pernambuco, que cheguei a conhecer já velhinho e era um estimado gentleman. Pelo anúncio, o poeta “desocupado”, que fosse épico, continuaria desempregado. Mas o que eu gostaria de destacar é que, numa consulta à vol d’oiseau, como diziam os chics da época, aos periódicos mundanos de Pernambuco, da segunda metade da década de vinte à primeira metade da década de trinta, as relações do colunismo social com o universo poético-literário local pareceram-me muito estreitas, como visitas rotineiras de Lamartine e Leconte de Lisle à corte de Luis XVI. A curta vida da revista mensal Moderna, e os últimos anos do longevo (onze anos) semanário A Pilhéria abriram-se à estética modernista de 22, ainda chamada Futurismo, num tresloucado e ingênuo ver-

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solibrismo. O verso livre sempre foi uma armadilha para os maus poetas. Na década de 40, surge a gloriosa fase dos suplementos literários. O do velho Diário de Pernambuco foi dirigido pelo maior poeta elegíaco da língua, Mauro Mota. Grandes críticos do Sudeste, como o austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux, entrevistas com os grandes nomes da literatura nacional e espaço para os poetas e críticos novos marcaram os anos do autor das Elegias, à frente das históricas páginas. Sua marcante trajetória prosseguiu sob a direção do poeta e crítico César Leal, que revelou e difundiu toda uma geração adormecida de poetas, que ficou conhecida como “Geração 65”. Em Pernambuco, os suplementos literários há muito desapareceram dos periódicos diários, restando apenas o Suplemento Cultural mensal, encartado no Diário Oficial, e toda uma geração de poetas pernambucanos, sucedânea da de 65, só teve pouco mais de dois anos de divulgação no Jornal do Commercio, quando passei uma chuvada dirigindo o Suplemento Commercio Cultural. Os Independentes de Pernambuco surgiram na década de 80 e, pelo menos comportamentalmente, sucedem a geração mimeógrafomarginal, surgida na década de 70, no Sudeste, e esta, a Geração Beat, surgida nos fins da década de 50 e começos da de 60, como


MARCO ZERO 27

um rastilho de pólvora que ia de Nova York à Califórnia, passando por São Francisco. Sinto que a matança dos suplementos na imprensa diária é um fenômeno que se vai espalhando por todo o país, apesar de eles ainda resistirem heroicamente em Estados, como Minas Gerais e Bahia. Deixo à parte os grandes jornais brasileiros, que se espelham na melhor imprensa internacional, como The New York Times, The Times, de Londres, especialmente o Le Monde e o Libération, de Paris. Assim, continuam mantendo suplementos literários de bom nível, mas, sem nenhum acesso para os novos, A Folha de São Paulo, com o Mais, o Jornal do Brasil, com o Idéias, o Estado de São Paulo, com o Cultura e O Globo, com o Prosa e Verso. Diferentemente dos jornais do Recife e de outras capitais, tanto ou menos dotadas, eles consideram tais suplementos serviço, e não condicionam, que eu saiba, a sua manutenção a patrocinadores. Enquanto isso, em toda parte, as gerações de bons poetas, críticos e contistas surgem, sem espaço, para dizer a que vieram. Quanto à crítica, sem lugar, fora a Universidade, para exercitarse, tende a murchar. Não só a crítica literária, mas de cinema, de teatro, de artes plásticas, e outras. Colocar jornalistas, um para cada setor, por melhor que sejam, não satisfaz a necessidade

de diversificar os pontos-de-vista sobre as expressões estéticas do momento. Resta a Internet, este babélico almanaque, para quem quiser colocar a cabeça fora da toca, mas cada meio de comunicação traz a sua específica sensibilidade, é complementar e não substituto um do outro. Para a minha gang, a dos poetas, nada substitui um poema bem diagramado e ilustrado numa página, feita de átomos da celulose, para ser lido logo de manhã, ainda quente do forno, como o pão de cada dia. Mas, comecei falando nas relações iniciais, em Pernambuco, entre a Poesia e o colunismo social, que sempre considerei uma espécie de salão onde se massageia, com esponjas aristocráticas, o ego da pequena burguesia. Agora, tenho de me retratar, pois as páginas sociais fazem a presença maior na vida intelectual de não poucos Estados, como o de Pernambuco, diariamente noticiando os lançamentos de livros, os recitais, os prêmios, para que a população não fique dependendo de algumas mixurucas colunas semanais nos cadernos de serviços. Perguntar não ofende: que fim levou Gilberto Gil? • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.

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Âť

28 LITERATURA

Elementar, meu caro leitor

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LITERATURA 29 »

Há um romance policial brasileiro? As editoras dizem que sim. Alguns autores acham que não. Mas o fato é que existem características que definem uma ficção policial produzida no Brasil e que, por sinal, vive um bom momento Rodrigo Carrero

W

allace Jones é o pseudônimo de um dos mais vendidos autores da ficção policial brasileira. Um dos raros escritores que vivem exclusivamente de literatura, Jones é um ilustre desconhecido. Embora more num edifício de onze andares em Copacabana, ele jamais teve um livro resenhado por críticos. Sequer os freqüentadores das livrarias o conhecem, pois os romances que escreve – um por mês, pontualmente – são vendidos em bancas de jornal. Na vida pessoal, Wallace Jones nem faz questão de se apresentar como escritor. Nem adiantaria, pois o nome escrito na carteira de identidade do carioca é outro, bem diferente – ele não o revela nem jurado de morte. O pseudônimo parece gringo porque ele pode, dessa maneira, se fazer passar por autor estrangeiro, e assim atrair mais atenção. Orgulhoso de viver da subliteratura que produz, Wallace Jones não tem papas na língua: “Isso é ser escritor num país sem leitores. Ou quase. Como tocar flauta transversa ou oboé na Tanzânia; ou abrir uma churrascaria na Índia das vacas sagradas”. A bem da verdade, o oficio de Wallace Jones – escrever romances policiais – jamais foi considerado dos mais nobres dentro do meio literário brasileiro. Livros com tramas misteriosas nunca constituíram um gênero literário de primeiro escalão; quando muito, formam uma espécie de subgênero, desprezado por críticos e intelectuais de alta corte. Por outro lado, a literatura de detetive exibe, há tempos, o rótulo de popular. Autores que se dedicam ao gênero (ou subgênero) costumam vender bem. Pelo menos esses são mitos que cercam a ficção policial. Mas será que esse tipo de lenda corresponde à realidade? Parece que não. A começar pelo próprio Wallace Jones; ele não existe. Ou melhor, só existe na imaginação dos leitores do gaúcho Flávio Moreira da Costa, um dos mais prolíficos autores policiais nacionais. Wallace Jones, protagonista do romance metalingüístico Modelo Para Morrer, anda meio desatualizado. Porque, ao contrário do que ele diz – ou escreve –, a produção de ficção policial no Brasil vem crescendo, tem destaque edito-

rial e angaria uma atenção da crítica que não tem paralelo em outro momento. Para esse fenômeno, contribui bastante uma concepção mais moderna da literatura policial, capaz de revelar autores e romances refinados. O crítico literário Rogério Pereira, editor do suplemento Rascunho (PR), resume esse sentimento. “Pensar no romance policial como subgênero é puro preconceito. Há boa literatura policial e má literatura policial, assim como há péssimos romances experimentalistas. Depende do talento do autor. O bom romance policial deve ter engenhosidade. A construção dos personagens não deve ser superficial, como muitos pensam. Há por trás do bom romance policial uma respeitável arte”, avalia. Muitos escritores concordam com Rogério Pereira. O goiano Flávio Carneiro, doutor em Letras pela PUC-Rio e autor do policial O Campeonato, publicado pela editora Objetiva, no ano passado, decreta: “Não há gênero de segundo escalão. Há livros de segundo escalão. Um romance policial pode exigir do autor e do leitor um alto grau de sofisticação”. Esse resgate da literatura policial, aliás, não aconteceu de supetão e nem se resume à avaliação da crítica. Autores, editores e leitores vêm promovendo essa reavaliação do gênero. Até mesmo nas universidades, reduto tradicional da literatura “séria”, o preconceito tem caído. “Nos últimos anos, o número de trabalhos acadêmicos sobre o gênero policial tem crescido, e há sempre muitas resenhas nos suplementos. Eu tenho resenhado muitas obras do gênero, e estou orientando uma tese de doutorado, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, sobre o tema”, informa Flávio Carneiro. Os motivos desse resgate tardio não são fáceis de enumerar, mas os especialistas refletem sobre o assunto com franqueza. “É preciso questionar a noção de clássico. O que é um clássico, a não ser a ficção comum que foi canonizada a posteriori pela crítica? A ficção policial reflete um aspecto fundamental da sociedade moderna e tornou-se uma temática preponderante do século 20. Autores como Raymond Chandler e James Ellroy Continente novembro 2003


Flávio Moreira da Costa: metalinguagem

Marçal Aquino: acima de tudo, literatura

serão percebidos como ‘clássicos’ no futuro”, arrisca Rafael Cardoso, doutor em História da Arte pela Universidade de Londres e autor de A Maneira Negra (2000). Essa observação expõe o fenômeno que retirou a ficção policial do gueto literário e a alavancou à posição de categoria capaz de gerar romances de boa qualidade. Em meados dos anos 1930, quando a chamada pulp fiction se popularizou, autores como Chandler e Dashiell Hammett não pertenciam à elite literária. Eles publicavam romances em volumes vagabundos, impressos em papel jornal que amarelava após alguns meses e era vendido em bancas. Na França, George Simenon punha o inspetor Maigret em tramas escritas em 15 dias. Tudo isso reforçava o mito de que a ficção policial não teria valor literário. Isso mudou. Esses mesmos autores, hoje, são tidos como fundamentais, e os romances policiais saíram das bancas de revistas para as livrarias. Duas das maiores editoras do Brasil, a Companhia das Letras e a Record, dão destaque ao gênero. Parte dos autores nacionais, lançados pela primeira, está inserida na coleção de mistério – caso de Patrícia Melo e Luiz Alfredo Garcia-Roza. Isso sem falar de Rubem Fonseca, considerado o mentor da literatura policial brasileira contemporânea e principal nome do catálogo da editora. O caso da Record é ainda mais exemplar. A maior editora do Brasil percebeu o nicho de mercado e lançou uma coleção, em 1997, que completa seis anos de sucesso, tanto de crítica quanto de público. A Coleção Negra já completou 45 lançamentos. São livros bem acabados, com ilustrações, diagramação e impressão de primeira qualidade – tudo bem diferente dos livrinhos de bolso de Chandler e Hammett. E a Record também valoriza o autor nacional. Rubens Figueiredo, Rubem Mauro Machado, Tabajara Ruas, Rafael Cardoso e Flávio

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Garcia-Roza: instrumento para refletir

Moreira da Costa já publicaram pela Coleção Negra. O problema do mercado para o autor brasileiro, por outro lado, ainda é um empecilho, especialmente dentro do gênero policial. Os autores estrangeiros sempre vendem mais. O preconceito é detectado pela editora da Record, Luciana VillasBoas, como um desafio a ser vencido. “O preconceito contra o autor local existe, especialmente no gênero policial. Nesse aspecto, ainda estamos engatinhando. Outros países que tinham problema semelhante já o estão superando, como a França, cuja ficção policial enfrenta resistência fora dos limites da nação, mas faz grande sucesso junto ao público francês. Os brasileiros, ao contrário, não apóiam os autores da casa”, reflete Luciana. Ainda que nossos fenômenos de vendagem no gênero não tenham aparecido, é fato inegável que a ficção policial tem rendido bons dividendos para os autores da chamada “geração 90”, que vêm se dedicando a fazer uma ficção urbana, cuja temática resvala para a narrativa policial clássica. Esse é caso de gente como Marçal Aquino, Patrícia Melo e Paulo Lins. Essa turma mais nova é responsável por um fenômeno interessante: o apagamento das fronteiras da ficção policial com o da crônica urbana, um gênero em franco crescimento. Há uma questão fundamental nesse ponto: esses escritores fazem ficção policial? Marçal Aquino arrisca uma resposta. “Quando fazem literatura policial, esses escritores sempre vão além. Ou seja, fazem, acima de tudo, literatura. Eu tenho predileção pelo texto policial, mas não me restrinjo a ele. Minha literatura vem da rua. Daí a evidência dos conflitos nas histórias que escrevo”, explica Aquino. Ele tem razão: os livros da “geração 90” flagram a violência da sociedade contemporânea, mas seguem estruturas narrativas clássicas. Há diferenças básicas. O detetive, figura imprescindível para Chandler, Ham-


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Conhecimento 31 » O tempero brasileiro na literatura policial contemporânea acrescenta ao modelo estrangeiro a temática da impunidade e um humor auto-irônico

Rafael Cardoso: romance policial se insere no universo maior da ficção urbana

mett e Simenon, não existe – ou não tem importância – nas histórias narradas por esses autores. A exceção nesse caso é o delegado Espinoza, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Doutor em Teoria Psicanalítica, GarciaRoza só estreou depois da aposentadoria como professor, em 1996. Já venceu os dois prêmios mais importantes da literatura nacional, o Jabuti e o Nestlé. “A literatura policial é um instrumento para que o autor possa refletir sobre qualquer assunto. Vejo o gênero como o mais perfeito instrumento para aprimorar a técnica narrativa. A estrutura do romance policial é firme, e por isso serve para aprender a dominar a técnica de escrever, para desenvolver um estilo”, argumenta. Se a narrativa é clássica, a temática é bem particular. O foco primordial parece ser uma crônica urbana, um flagrante da vida nas grandes cidades. “Acho equivocado, no entanto, tachar os escritores recentes de ‘autor policial’. Na verdade, as histórias de crime e de polícia se inserem em um universo maior de ficção urbana, que é uma parte importante da realidade brasileira”, explica Rafael Cardoso. De fato, são poucos os autores que admitem o rótulo de “escritores policiais”. O jornalista, escritor e tradutor Rubem Mauro Machado, vencedor do prêmio Jabuti em 1986, acha o rótulo redutor. “Publiquei oito livros e somente um tem trama policial; e mesmo nesse (O Executante, da Coleção Negra) o foco central é uma crônica do Rio de Janeiro. A narrativa policial é um instrumento excelente para esse tipo de exercício, mas é preciso deixar claro o objetivo maior, que é fazer uma crônica de costumes”, reflete. Domingos Pellegrini, vencedor do Jabuti em 1977 e 2001, pensa da mesma forma. “O romance policial que escrevi, O Caso da Chácara Chão, não é para entretenimento. Ele apenas conduz o leitor a ambientes e problemas sociais, e, na verdade, é um ro-

mance sobre ética, conduta, valores morais”, avisa. Os autores que bebem dessa ficção urbana prestam tributo, silenciosamente ou não, a dois mestres: Rubem Fonseca e José Louzeiro. A dupla é considerada o ponto de partida da literatura policial contemporânea. O que leva, aliás, a outra grande interrogação: será possível enxergar características nacionais nas narrativas da ficção de mistério? A identidade nacional encontra espaço nesses livros? A maioria dos autores parece acreditar que sim. “O olhar para um horizonte próximo e imediato, como o da vida cotidiana nas grandes cidades, certamente define a identidade brasileira”, resume Marçal Aquino. Flávio Carneiro vislumbra um tempero brasileiro, nos livros contemporâneos, em duas características. “A primeira é a da tematização da impunidade. O assassino normalmente escapa impune; a polícia é corrupta, há políticos envolvidos, todas essas coisas que conhecemos do dia-a-dia. Outro aspecto é o humor, bem brasileiro, auto-irônico”, avisa. Rogério Pereira concorda, mas destaca também a influência no estilo narrativo da ficção dos Estados Unidos. “O espaço onde se passam os romances policiais brasileiros é uma característica local, principalmente as delegacias. É muito comum nos depararmos com instalações precárias. Os autores destacam a corrupção entranhada na nossa polícia, o que me parece natural. Já na linguagem se encontra uma influência muito grande da literatura policial norte-americana, o que também é natural”. Mesmo assim, o fato de não precisar mais situar a ação dos livros que escreve no glamour de Nova York, como faz o fictício Wallace Jones, já garante uma pequena vitória ao autor brasileiro de ficção policial. E a literatura, como toda boa arte, é construída a partir de pequenas vitórias. • Rodrigo Carrero é jornalista e mestre em comunicação pela UFPE.

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32 LITERATURA

A América em toda a sua loucura Em Armada América, Fernando Monteiro mistura ficção e realidade numa tentativa de retratar a alma dos Estados Unidos Cristiano Ramos

Fernando: amor e ódio pela América

A

continuação do romance O Grau Graumann deveria ser o principal assunto da pauta com Fernando Monteiro. Mas o inédito As Confissões de Lúcio deve esperar mais um pouco para chegar às prateleiras. Produzido, quase todo ele, após o atentado terrorista às torres do WTC, está sendo lançado o livro de contos Armada América. São 14 relatos, construídos na fronteira entre a ficção e a realidade, por meio de figuras emblemáticas e/ou controversas da história norte-americana. O personagem Siegel reclama logo no início do livro: “Nem mais matar uma pessoa em paz a gente pode!” Neste depoimento, pela primeira vez Monteiro rejeita com contundência a influência de Borges, a quem considera um autor superestimado; fala sobre a sempre complicada relação com a mídia e a crítica, além de professar sua frustração com a atual poesia, “bonitinha e sem eficácia”. Com a palavra, Fernando Monteiro.

ARMADA AMÉRICA Eu sei que é um argumento repetitivo, mas podemos realmente ser indiferentes a uma nação que nos deu o jazz e o cinema, provavelmente as duas maiores contribuições culturais do século passado? Nosso cotidiano está impregnado da influência norte-americana, e nem sempre de modo negativo. Embora procurando do modo errado, belicista, eles mantêm uma utopia, um sonho de justiça e liberdade que não pode ser ignorado. Agora, no Armada América, eu quis enfocar essa cultura da violência, a maioria das narrativas falam disso. Tanto que a frase de um personagem foi, inclusive, o que disparou o processo de criação do livro, “nem mais matar alguém tranquilamente a gente pode!” E não é algo novo. A própria literatura deles, há algum tempo, busca repensar essa cultura da violência. Você pega um fantástico romance como O Apanhador no Campo de Centeio (que Faulkner dizia ser tudo que ele queria ter escrito) e está tudo Continente novembro 2003

ali, aquilo que a América é, em toda sua loucura. Aliás, quase todas as grandes obras da literatura americana espelham essa relação de amor e ódio. Algo que, de modo bem mais modesto, acho que o Armada América também faz. BORGES E CALVINO Gostaria mesmo de falar sobre isso com a franqueza que talvez tenha me faltado noutros momentos. Eu sei que poderei ser apedrejado pelo que vou confessar... Sempre fui muito complacente com essas comparações, era receio de não parecer esnobe ou arrogante, até porque o fato de ser uma pessoa reclusa me vestiu de certa imagem pernóstica. Mas vamos lá: alimento uma séria desconfiança por Borges, creio sinceramente que ele é superestimado. Concordo inteiramente com Nabokov, que o tinha como um autor de portais, praticamente nada além disso. O próprio argentino afirmava não ser um escritor,


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embora, aí sim, eu acredite que era charme, máscara. Claro que tive meu tempo de admirador da literatura borgiana, e minhas críticas não anulam o respeito pelo intelectual que ele era. Porém, ser fascinado pelos seus portais é algo para espíritos mais disponíveis. Por Calvino tenho mais apreço, gosto muito de sua modernidade. E pelo Vladimir Nabokov tenho uma admiração irrestrita, este, sim, foi e continua sendo uma referência para minha obra, principalmente no que diz respeito à criação de personagens. Há outras influências mais remotas, como Melville e Conrad – nutro especial fascínio pela incerteza conradiana, algo que se coaduna muito com nossa época pós-m moderna, fragmentada. PATRULHAMENTO IDEOLÓGICO Ah, todo mundo sofre isso! Em sua maioria, essa crítica literária que nós encontramos, em jornais e revistas, só vive riscos calculados. Existem fórmulas pré-pproduzidas, nomes que são sempre elogiados ou massacrados, é um negócio pasteurizado. E se você mexe com esses axiomas, passam a ser mais severos (e até injustos) com o que você escreve. Isso gera um ciclo vicioso. Apesar de ser tratado com extrema generosidade pelos críticos, exponho-m me a idéias mais barulhentas. Creio sim, por exemplo, que Jorge de Lima é incomparavelmente mais representativo que Fernando Pessoa, do mesmo modo que acho que incensam demasiadamente o Drummond. Lembro que o García Márquez possui uma teoria interessante sobre isso, que nós, escritores, desenvolvemos uma persona, um personagem que responde às perguntas sempre iguais dos entrevistadores e alimenta os argumentos dos críticos.

modismo. Estamos falando de uma suposta literatura sócio-ppolicial, um subproduto dos telejornais, com narrativas de uma pobreza impressionante. Elas parecem ter herdado o pior da influência americana, despejando em seus livros diálogos inócuos e sempre com uma queda para o anedótico. Isso tem um pé no cinema, na linguagem dos clipes, e nesse Rubem Fonseca recente, menos inspirado e sem a originalidade de outrora. Toda essa psicologia de estômago e sexo barato... POESIA Foi algo essencial para minha maturidade narrativa, eu ter passado pela poesia, embora tenha a impressão de que demorei tempo demais no gênero. Meus amigos poetas podem ficar chocados com essa afirmação, mas a verdade é que “estive” poeta. Embora eu continue produzindo poemas que são inseridos dentro dos romances, em O Grau Graumann existe um livro inteiro de poesia, O Livro das Montanhas da Lua. Agora o que acontece é uma frustração, vejo a arte poética perdendo sua eficácia – menos por culpa dela, mais por responsabilidade dos autores e leitores. Ela virou sinônimo de coisa bonitinha, texto para o Cid Moreira dizer no Fantástico. Estamos perdendo o sentido da poesis enquanto cerne de tudo, enquanto motor humano e raiz de toda boa literatura. O que vale agora é recitar Vinicius ou Drummond para pedir desculpas, para conseguir comer alguém. A grandeza de um Paraíso Perdido, de uma Divina Comédia, d’Os Lusíadas, isso ficou na roda da história. Provavelmente só um futuro caótico nos levará de volta às origens, à inquietação.

CONTINUAÇÃO DE O GRAU GRAUMANN APROXIMAÇÃO DA REALIDADE O Lúcio Graumann, brasileiro vencedor do Nobel de liteO Grau Graumann foi exatamente isso, a exacerbação do ratura, figura principal do livro, tornou-sse dependente demais contato com o mundo real – algo ratificado no Armada Amé- do narrador, o Portela. É como uma espécie de binóculo inverrica. Entretanto, sempre fui um autor interessado por meu tido, onde várias coisas ficaram em aberto. Pretendo nesse notempo. Também neste ponto o A Múmia do Rosto Dourado do vo romance, As Confissões de Lúcio, juntar esses pedaços ainda Rio de Janeiro é peça fora do esquadro, sua narrativa se passa soltos, dar voz ao próprio Graumann. E há nesse projeto, tamnum contexto distante. Prefiro trabalhar com o meu presente, bém, um interressante material iconográfico, como originais do minha época, isso torna tudo mais vivo. Franceses, ingleses e personagem, fotos, manuscritos... Contudo, estudo ainda a americanos, por exemplo, estão impregnados disso. Com Stein- possibilidade de uma trilogia, onde o terceiro romance seria beck você sente o drama das personagens, sofre com o sol e a exatamente um livro do próprio Graumann, inclusive com a poeira, percebe os cheiros. A nossa literatura ainda é muito po- capa creditada a ele. É algo para ser pensado. O As confissões de bre nesse sentido, é como se precisássemos fugir de nossa reali- Lúcio deve sair no primeiro semestre de 2004. • dade para garantir bons enredos. O que esses novos autores fazem me parece mais coisa de Cristiano Ramos é jornalista. Continente novembro 2003


» 34 NOTAS

A arte do texto Correspondência entre Guimarães Rosa e seu tradutor italiano é documento revelador Entre outubro de 1959 e outubro de 1967, o escritor Guimarães Rosa e o tradutor Edoardo Bizzarri trocaram 34 cartas, quase todas discutindo aspectos da tradução de Corpo de Baile para o italiano. A correspondência foi publicada em 1972 e 1980, em tiragens limitadas. Agora, recebe uma edição em grande estilo, revelando-se documento importante, não apenas sobre a arte da tradução (ou transcriação, como queria Haroldo de Campos), mas por deixar entrever aspectos do processo criativo do mais inventivo dos nossos romancistas. Entremeadas por consultas pontuais sobre o significado dessa ou daquela expressão, há revelações sobre o método do escritor, confissões comoventes, discussões metafísicas e insights brilhantes, como “o papel quase sacerdotal dos contadores de estórias”. Em meio a digressões sobre mitologia, lingüística, botânica e outros temas, o grande Rosa chega a admitir, candidamente, ter usado no texto determinada palavra ouvida em suas andanças pelos sertões, por achála bonita, embora desconhecesse seu sentido. É leitura vasta, para muito além do interesse específico das questões de tradução. João Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, Editora UFMG – Nova Fronteira, 2003, 208 páginas, R$ 35,00.

Cidade seqüestrada

Segredos e mistérios

Astúcias da memória

O novo romance do baiano Antônio Torres – O Nobre Seqüestrador – narra a aventura do corsário francês René DuguayTrouin, que, durante dois meses, no século 18, manteve como refém a própria cidade do Rio de Janeiro, “com direito aos afagos e favores de uma bela mulher, dádiva de um padre português”, temeroso de que ele tivesse chegado para ficar. O enredo histórico é imbricado com a visão contemporânea do protagonistanarrador, remetendo para a cidade atual, seqüestrada diariamente pelo crime organizado, pela impunidade e pela conivência oficial e privada.

Em Segredos da Velha Arca, a antropóloga e cronista, Fátima Quintas, se aventura no mundo da ficção, em 70 histórias curtas, onde, como assinala o prefaciador Mário Márcio, “as coisas e os aspectos imediatos do real adquirem certa fluidez e se dilatam até a fronteira do mistério”. A autora transita por entre os desvãos da alma, em uma persistente procura de si e do outro. Nos contos, há um universo de indagações existenciais que se misturam a personagens, porventura, fictícios. Uma pergunta parece perpassar todos os textos: qual a fronteira entre o mundo do sonho e o mundo real?

Na epígrafe de um conto do livro O Dono do Girassol, o autor, Admaldo Matos de Assis, fornece a chave da sua escrita: “(...) uma coleção de contos curtos, baseados em fatos jornalísticos, mas redimidos de sua condição mortal pelas astúcias da poesia” (Gabriel García Márquez). No caso, as 15 histórias não emanam de notícias de jornal, mas dos escaninhos da memória, transfiguradas pela imaginação. Com direito ao emprego de metalinguagem, à Borges, no conto final – Veredicto – em que, num ambiente onírico, o autor é submetido ao julgamento dos personagens.

O Nobre Seqüestrador,Antônio Torres, Editora Record, 2003, 256 páginas, R$ 30,00.

Segredos da Velha Arca, Fátima Quintas, Edições Bagaço, 2003, 246 páginas, R$ 20,00.

O Dono do Girassol, Admaldo Matos de Assis, Edições Bagaço, 2003, R$ 20,00.

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NOTAS 35 Presente duplo

Alma nordestina

Ivan Junqueira em dose dupla. Como antologista e como antologiado. O primeiro é Testamento de Pasárgada, em que agrupa os poemas de Manuel Bandeira por temática, revelando a recorrência de temas nucleares e como a qualidade do poeta está presente desde o início. O método também ilumina os poemas, aumentando nossa capacidade de compreendê-los. Ressalte-se, ainda, os comentários críticos com que Ivan prefacia cada bloco. O lirismo triste, o amor e as mulheres, a vida que poderia ter sido, a aceitação da morte, está tudo lá, para o deleite do leitor. No segundo livro, Ivan é o antologiado em seleção de Ricardo Thomé. Como bem define Elizabeth Veiga, a poesia de Ivan Junqueira “é uma poesia que se furta ao impacto fácil da produção poética vigente e também aos enquadramentos das escolas poéticas passadas, o que – paradoxalmente – camufla e realça sua originalidade”. É uma poesia reflexiva, séria, complexa, oscilando entre a serenidade e a angústia. Principalmente, uma poesia de grande beleza. Em dois livros, um duplo presente que um poeta verdadeiro nos dá.

O escritor e poeta Maximiano Campos, integrante da Geração 65, renasce pelas mãos do seu filho Antônio, através do lançamento dos livros Os Cassacos e Do Amor e Outras Loucuras. O primeiro, estranhamente guardado em segredo pelo autor, chega ao público 35 anos depois de escrito, para fascínio e inquietação dos leitores. Do amor..., apresenta o poeta Maximiano, com seus versos elegantes em busca de um mundo utópico, no qual ele se fazia legislador. Antônio Campos também relançou, na forma de coleção, Obras Seletas, pela Edições Bagaço, os livros Lavrador do Tempo, Cartas aos Amigos, A Loucura Imaginosa, A Memória Revoltada, O Major Façanha, O Viajante e o Horizonte e Sem Lei Nem Rei, obra definitiva e elogiada por Ariano Suassuna, para quem ela é “cíclica e é uma só, escrita e publicada em partes que, por sua vez, cada uma por si tem vida própria e independente”. Para quem deseja conhecer e entender a vida nordestina, a obra de Maximiano Campos oferece este mosaico – vai além, desvela a alma humana, sendo o Nordeste apenas cenário.

Manuel Bandeira – Testamento de Pasárgada. Antologia com organização e estudos críticos de Ivan Junqueira. Nova Fronteira/Academia Brasileira de Letras, 352 páginas, R$ 42,00. Ivan Junqueira – Melhores Poemas. Seleção de Ricardo Thomé. Global Editora. 256 páginas, R$ 35,00.

Obras Seletas. 2002, Edições Bagaço, R$ 85,00. Do Amor e Outras Loucuras. 2003, Edições Bagaço, 117 páginas, R$ 30,00. Os Cassacos. 2003, Edições Bagaço, 273 páginas, R$ 42,00.

Livros e ilustrações

Nobres e comerciantes

Rococó e religião

Uma bela publicação é O Design do Livro, de Richard Hendel. Além de informações sobre o assunto: como uma capa deve identificar o conteúdo, como deve se destacar das demais, questões de mancha gráfica e tipologia, traz ainda um relato sobre o método de trabalho de grandes designers internacionais que se dedicam ao livro e ampla bibliografia. Outra é o Catálogo, que reproduz em fac símile o produzido pela gráfica carioca D. Salles Monteiro, no início do século 20. Traz centenas de vinhetas, guarnições, tipos de letras e símbolos, usados para decorar textos impressos, de cartas e publicidades a cartões e cardápios. Uma coleção de imagens divertidas, instrutivas e, muitas vezes, belas.

A importância da Guerra dos Mascates já tinha sido destacada em estudos sociológicos de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, também servindo de fundo para a ficção de José de Alencar, mas faltava um levantamento e análise históricos deste importante momento de nossa história. Coube a Evaldo Cabral de Mello, em A Fronda dos Mazombos, preencher esta lacuna. Mas o historiador vai mais longe ainda: além de pesquisar, a fundo, o conflito, que vai de 170 a 1711, procura já na expulsão dos holandeses, em 1654 e nos distúrbios civis da mesma época, conhecidos como “alterações de Pernambuco”, elementos explicativos que enriquecem a visão final da guerra entre nobres de Olinda e comerciantes do Recife.

O rococó é um estilo original e autônomo ou, apenas, uma derivação decadente do bar-roco? Existe um rococó religioso que pode ser tomado co-mo o primeiro estilo arquitetônico genuinamente nacional? Estas são algumas das questões respondidas por Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira em O Rococó Religioso Brasileiro e seus Antecedentes Europeus. Ela analisa o surgimento do rococó na Europa e as condições históricas em que surgiu; o desenvolvimento do estilo em Portugal e no Brasil litorâneo e, finalmente, debruça-se sobre como este estilo se desenvolveu em Minas Gerais. A autora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira termina desafiando a historiografia a rever parte de seus pressupostos.

O Design do Livro. Richard Hendel. 224 págs. R$ 60,00. Catálogo de Clichês D. Salles Monteiro Filho. Ateliê Editorial, 328 págs., R$ 60,00.

A Fronda dos Mazombos: Nobres Contra Mascates, Pernambuco, 1666-1715. Evaldo Cabral de Mello. Topbooks, 496 págs., R$ 54,00.

O Rococó Religioso no Brasil e seus Antecedentes Europeus. Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Cosac & Naify, 344 págs., R$ 67,00. Continente novembro 2003


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36 POESIA

É

s espaço E tempo E paisagem E gente

I

E história.

Nem só barroca Nem só de aluvião Nem só cosmopolita Nem só anfíbia Nem só revolucionária.

Ode ao Recife Silvio Pessoa

Das cidades – a mais humana de todas, Feita de carne e de osso, Sem tijolo nem cimento, Com película trigueira Dando fino acabamento. Nela não participam o ferro Nem o aço Nem o vidro Nem mesmo madeira de serraria, Que todos inanimados, Passivos E sem valia.

II Tal qual o Capibaribe, Que está nascendo inda agora, Ela se faz e refaz Quase todo santo dia E anuncia-se nos gritos, No pranto, Nos queixumes E no riso, Muito mais no sofrimento Que na expansão de alegria. Suas ruas e arrabaldes Foram moldura de minha infância distante, De quadra em que também fiz versos, De época em que me angustiei com rimas E enamorei-me de primas Na antecipação do homem. Nos comícios e atos cívicos De meus tempos de menino – não sei explicar a causa – Os homens importantes Lá em cima dos palanques Pareciam muito grandes, Tão importantes como as torres góticas Das catedrais que conheci depois.

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POESIA 37

Naquela época, Recife, Embora próximo Não te percebia. Não cuidaram em nos apresentar, Certamente porque naquele tempo Menino era coisa sem importância, Sem direito de chegar à sala Nem falar em reunião de gente grande. Já rapaz E absolutamente capaz, No dizer da lei civil, Descobri a tua beleza plástica Ao te olhar como poeta, Sem a pressa de transeunte.

III IV A descoberta total Deu-se depois, Como um alumbramento. Pude, então, ver, por inteiro, O teu perfil integral, Tua fronte altiva, Teus olhos serenos, Tuas veias líquidas, Tua face clara E teus braços fraternos. Ensinaste-me nesse instante Que cidade pode ter alma, Lição que, confesso, eu não sabia, Pois não tinha livros escolares.

Mais ainda assim Há pessoas que te imaginam museu Ou conjunto arquitetônico E insistem em colocar etiquetas No teu pescoço mestiço. E te chamam de barroca Ou te acusam de cruel. Outros, após trabalho de campo, Te vêem como fato geológico Ou fenômeno geológico Ou fenômeno geográfico E inventam classificações.

Muitos – coitados, pensando lisonjear -te Reduzem tuas reações à escala eleitoral E vendo tua emoção Na cabine indevassável, Te dizem de oposição Sem saber que o teu sim É mais forte que o teu não.

Silvio Pessoa é advogado e poeta.

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ARTES

Fotos: Reprodução

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Carnaval grotesco e rude Os quadros de Fred Svendsen nos colocam frente a frente com a beleza de um mundo assustador Marco Polo


ARTES 39 »

P

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ara o poeta e crítico de artes plásticas Walmir Ayala, Fred Svendsen nos coloca frente a frente com a beleza do terror. E sai rastreando a origem dos seres sinistros do pintor paraibano nas carrancas do Rio São Francisco, nas máscaras dos pajés, nas cerâmicas tatuadas. É que os quadros de Svendsen são habitados por estranhos rostos de olhos miúdos, com sorrisos enigmáticos, em postura hierática, juntando-se a monstros que passeiam por paisagens cósmicas ou cidades futuristas. Parecem ter saído de filmes de ficção científica que trouxeram do espaço (ou de mundos subterrâneos) uma raça de demônios que não dorme nunca. É ele mesmo quem diz: “Deixo sempre acordado um quadro enquanto durmo”. Um mundo inquietante nos espreita da pele das suas telas. Já segundo outro crítico, Alberto Beuttenmüler, para além de qualquer referência regional a pintura de Svendsen assume um caráter metafísico, ontológico. Seus personagens viriam, talvez, do inconsciente. Para Beuttenmüler, há, no pintor, “um sonho imanente de fazer sua linguagem caminhar pelos desígnios da humanidade, com seus fantasmas, pesadelos, monstros, bestas-feras, mostrandonos quanto tempo estamos perdendo com discussões estéreis”. Referindo-se, aqui, às discussões sobre a arte conceitual que se distancia da imanência do Ser. Como vários artistas nordestinos, periféricos ao eixo Rio-São Paulo, Fred Svendsen ainda acredita na figura e na pintura; no uso do pincel e das tintas sobre a tela, no gesto preciso da mão e na sabedoria do olho. E parece pintar, obsessivamente, o mesmo quadro de muitas maneiras, pois, embora sua expressão mude um pouco nos desenhos e nas esculturas em papel machê, permanece sempre, em todas as suas obras, a figuração da beleza daquele carnaval grotesco e rude, a que se refere Ayala. O pintor paraibano Fred Svendsen Na página ao lado, El Mascarado de Plata Capa – 1, acrílica sobre tela, 135 x 110cm, 1990 (detalhe)

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Âť

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Na página ao lado, Sem Título, acrílica sobre painel de madeira, 138 x 123cm, 2000 Acima, Me Lembrei de Guernica, acrílica sobre painel de madeira, 138 x 123cm, 2000 Ao lado (direita), Desenho, lápis de cor sobre papel, 97 x 67cm, 1983

Um desfile de personagens perante os quais o espectador sofre uma esquizofrênica sensação de identificação e estranhamento, como quem percebe no espelho um duplo, a projeção de um lado nosso que não estamos preparados para encarar. Descendente de dinamarqueses, Fred Svendsen nasceu em João Pessoa, em 1960, e é um dos mais importantes artistas da Paraíba. Pintor, desenhista, gravador, escultor e designer, premiado em salões nacionais do Rio de Janeiro, Bahia e Recife, já expôs na Alemanha, Holanda, Estados Unidos, Grécia e Portugal. Tem quadros em importantes instituições culturais, como o Museu de Arte Assis Chateaubriand, Museu de Arte Moderna da Bahia, Museu de Arte de São Paulo e Núcleo de Arte Contemporânea da Paraíba, entre outros. •

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J

oseph Cornell foi o mestre dos guardados. Pouco conhecido, mas reconhecido na história da arte moderna como o artista que criou a Box Art Form, reuniu em pequenos relicários objetos do seu cotidiano e dos seus sonhos. Cornell, considerado um dos mais expressivos dos movimentos Dadá e Surrealista e um dos pioneiros e mais celebrados expoentes da assemblage, parecia querer criar cofres onde poderia proteger seus segredos, espacializar a memória, guardar o tempo. Nascido nos arredores de New York, em dezembro de 1903, nunca ultrapassou os limites novaiorquinos, ao menos fisicamente. As viagens mentais pela Europa, através de filmes e documentários, lhe conferiram a identificação como artista que constrói caixas com sonhos, justapondo objetos sem nexo, mas que evocam a nostalgia. Introspectivo, contido e pouco afeito às provocações artísticas , Joseph Cornell nunca freqüentou escolas de arte. Tal interesse surgiu através da atividade corriqueira de construir objetos para distração do seu irmão, Robert, portador de paralisia cerebral (juntos, brincavam com caleidoscópios fascinantes). Seu conhecimento vinha das leituras

que fazia das obras de Max Ernst, sobre história da arte e das conversas com o amigo pessoal e profissional Marcel Duchamp. Foi um autodidata fiel à sua imaginação, delineando uma trajetória livre das influências norte-americanas, o que lhe permitiu desenvolver uma linguagem própria, um trabalho único. Na busca de material para as suas caixas, coletado em quinquilharias, lojas de revistas velhas, souvenirs e bric-àbrac de Manhattan ou nos seus passeios à margem do Rio Hudson, Cornell organizou verdadeiros arquivos de pequenos objetos, que, de acordo com Sebastião Pedrosa, coordenador de Licenciatura em Educação Artística – Artes Plásticas, do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco, tinham uma forte poética visual a partir do banal. “Diferentemente do dadaísta Kurt Schiwitters, ele era fascinado, não por descartáveis, mas por fragmentos de coisas que numa época foram bonitas e preciosas”. Gabinetes de curiosidades – A obra de Cornell é vasta. Em seus 69 anos de vida (morreu de parada cardíaca

Tempo e espaço em uma mistura de memória e desejo Joseph Cornell, criador da Box Art Form, permanece atual no centenário do seu nascimento por ter se apoderado de um veículo surrealista da temporalidade (as caixas) para explorar o sonho, reter o passado e construir o presente-contínuo

Fotos: Reprodução

Isabelle Câmara


Foto: Alexandre Gondim/ DP

em 29 de dezembro de 1972, cinco dias depois de fazer aniversário), produziu inúmeras caixas e dossiês recheados de memórias e abordando diversos temas. Os dossiês contribuíram para o estudo crítico da sua obra depois da sua morte. Segundo Lindsay Blair, autora de Joseph Cornell's Vision of Spiritual Order (1998), são 162 “mostruários”, que falam sobre a América do Norte, Holanda, astronomia, mapas etc. Alguns são dedicados a compositores, outros a bailarinas, estrelas do cinema, artistas e escritores, como Mozart, Emily Dickinson, Fanny Cerrito, Joan Collins e Lauren Bacall. Já as caixas podem ser apreciadas no MoMA (Museu of Art Modern), em New York, na National Gallery of Canada, em Ottawa, e na Collection Mrs. Marcel Duchamp, em Paris e na Tate Gallery, em Londres, entre outros museus. A primeira tendência de quem as vê é tentar ler a acumulação de peças aparentemente aleatória, que remetem ao Dadaísmo. Numa segunda leitura, o simbolismo surreal das mensagens contidas nos gabinetes faz-nos rever conceitos. Mas Sebastião Pedrosa contesta. “Cornell foi erroneamente classificado como surrealista, ele não compartilhava das teorias de base psicanalíticas de André Breton, apenas foi atraído pelas idéias visuais dos surrealistas, principalmente o uso livre de objetos assemblados. Suas caixas não contêm a justaposição acidental de objetos, ao contrário, são construções harmoniosas e poéticas. Sua suposta ligação com os surrealistas se dá pelo fascínio com os sonhos”. A alusão a lugares distantes tanto geográfica quanto temporalmente é uma constante em sua obra, denotando o ar de quem tinha saudades de não se sabe quem nem de onde. Um exemplo é a Soap Bubbles, referência histórica à famosa pintura de Millet, Bolhas, do século 19. Um outro sentimento presente nos relicários de Cornell é o fetiche, que se manifestava nas caixinhas com que presenteava suas amigas. Para Blair, quando olhamos as caixas – especialmente as que se referem ao balé, aos temas femininos ou as que contêm bonecas – é impossível ignorar a presença do forte desejo ali impregnado. “Quando observamos, por exemplo, a caixa intitulada de Penny Arcade Portrait of Lauren Bacall, o apelo voyeurístico é forte: os fragmentos fotográficos alternados com espaços vazios, os pequenos retângulos vazios ou preenchidos de imagem velada sugerindo janelas incitam o expectador a entrar no espaço”, diz Pedrosa. Fica o convite. Adentrar o universo de Cornell significa uma passagem para o universo fantasioso existente em cada um de nós. Revivamos esse passado criado pelo artista de uma maneira nova; que ao mesmo tempo nos faz evocar lembranças. Como diz Gastón Bachelard, em A Poética do Espaço, “Não receberemos a recompensa (...) se não participarmos com nossos sonhos”. • Penny Arcade Portrait of Lauren Bacall, homenagem à atriz, uma de suas paixões contidas

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Cornell (acima) também manifestava seu fetiche através das bonecas


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ARTES

Fotos: Flávio Lamenha

Casario de

I

Olinda, por Iza

za do Amparo mora na casa de número 159 da rua do Amparo. Ela nem usa mais o sobrenome de batismo. Ela é dali, daquela parte da cidade de Olinda, e a importância que dá a isto está estampada em sua assinatura artística. Quem passear pelas ladeiras do Sítio Histórico, em qualquer dia do ano, vai poder visitar o ateliê de Iza, que fica, de janelas e portas abertas, exibindo obras acabadas ou em processo de confecção. Iza divide o espaço com os filhos Catarina Aragão e Paulo do Amparo, também artistas. Dezenas de outros artistas vivem e trabalham em Olinda, alguns deles espalhados por outros bairros – Umuarama, Bonsucesso, Amaro Branco, Bairro Novo, Casa Caiada. Muitos estão radicados na Cidade Alta. Eles produzem pinturas, esculturas, desenhos, talhas, objetos, fotografias, realizam ações, intervenções urbanas, estampam tecidos, fazem moda, máscaras, bonecos, fantasias, reciclam sucata. Usando a mesma estratégia de Iza, alguns desses artistas mantêm suas casas e ateliês abertos, numa relação direta com o público. Outros usam as janelas como vitrine, expõem seus trabalhos nos restaurantes e pousadas da cidade. Mas há também aqueles que produzem

do Amparo

Olinda é toda arte Projeto abre ao público ateliês da cidade pernambucana eleita pela maioria dos artistas Adriana Dória Matos


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Ateliê de Guita Charifker

Ateliê de Iza do Amparo, com a artista ao fundo

silenciosamente: por trás da fachada de suas casas há uma diversidade de obras desconhecidas e o aparato de matérias-primas que utilizam no processo criativo. Mas durante quatro dias, nos dois últimos finais de semana de novembro, o público poderá conhecer praticamente todos os ateliês dos artistas olindenses, através do projeto Olinda: Arte em Toda Parte. Em sua terceira edição, o projeto vem crescendo de forma significativa, pois no primeiro ano (2001) reuniu 45 ateliês, no segundo (2002) somou 71 e, para este 2003, espera a abertura de uma centena de ateliês à visitação. Existe uma arrumação nesse conjunto de ateliês que é preciso explicar. Não é que existam uma centena ou mais de ateliês funcionando no Sítio Histórico de Olinda. Muitos dos artistas participantes moram em outras localidades da cidade ou até mesmo no Recife. Mas, durante o período de realização do projeto, eles migram para lá – assim como acontece no Carnaval – e expõem nas casas e ateliês de amigos ou em restaurantes, pousadas e museus situados no Sítio Histórico. A premissa à participação no projeto é de que os artistas envolvidos tenham alguma relação com a cidade. Esse, por exemplo, é o caso de Gil Vicente, que sempre morou em Boa Viagem, mas tem, na sua formação artística e no seu acervo afetivo, as relações com gente, como José Cláudio, Guita Charifker, Giuseppe Baccaro, Luciano Pinheiro,

Gilvan Samico e tantos outros moradores de Olinda. Assim é que Gil Vicente expõe no projeto, junto com convidados de diferentes territórios não-olindenses. O projeto Olinda: Arte em Toda Parte surgiu no bojo dessa idéia de agregar os artistas cujas história e produção estão ligadas à cidade e que de alguma maneira expressam esta referência: a presença material e imaterial da cidade em suas obras. Como forma de evidenciar essa proposta, os idealizadores pensaram na abertura dos ateliês e também na realização de uma mostra coletiva com a participação de um grande número de artistas. Este seria o ponto de convergência do projeto. A mostra chama-se Exposição Panorâmica e ocorre desde o primeiro ano no Mercado Eufrásio Barbosa, no Varadouro, um ponto geograficamente estratégico à estruturação do projeto. A Exposição Panorâmica fica aberta durante dez dias – de 20 a 30 de novembro – e também foi se alargando nestes três anos. Em 2001, eram pouco mais de 70 participantes, em 2002, foram 198. Para 2003, a comissão organizadora estipulou a participação de 150 artistas, sendo 50 convidados e 100 inscritos. Estes 100 concorrem a três prêmios aquisitivos no valor de R$ 4 mil, em concurso que terá comissão julgadora instituída. É a primeira vez no projeto que ocorre premiação. O Arte em Toda Parte também envolve a rede hoteleira e restaurantes da cidade, que não apenas expõem obras dos artistas, mas inventam promoções para o período, como pacotes especiais e criação de cardápios para a temporada. Outras instituições também se agregam ao circuito, como as igrejas e os museus da cidade. Durante os dez dias de realização do projeto, são colocadas, em circulação, vans para que os visitantes possam chegar com comodidade aos ateliês. A locomoção é gratuita e a saída ocorre no Mercado Eufrásio Barbosa. Para melhor localização dos pontos de visitação, banners são fixados nas fachadas de todos os lugares envolvidos no projeto. Também há equipes de monitores – estudantes voluntários de Turismo e Hotelaria – disponíveis para prestar ajuda e orientação sobre o Olinda: Arte em Toda Parte. • Olinda: Arte em Toda Parte – 3ª edição De 20 a 30 de novembro de 2003 Exposição Panorâmica aberta à visitação diariamente, das 9h às 21h, no Mercado Eufrásio Barbosa (Varadouro) Visita aos ateliês nos finais de semana, dias 22/23 e 29/30, das 15 às 21h Haverá serviço gratuito de transporte para visitantes, em vans que sairão, a cada dez minutos, do Mercado Eufrásio Barbosa, com destino ao Sítio Histórico. Adriana Dória Matos é jornalista. Continente novembro 2003


Um novo museu O anexo do Museu do Estado de Pernambuco tem a maior área para exposições de arte em todo Norte e Nordeste

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om uma área total de 2.121 metros quadrados, o novo anexo do Museu do Estado de Pernambuco, a ser inaugurado no dia 20 deste mês, vai contar com espaço para exposições, totalmente climatizado (ar condicionado com temperatura constante, mais controle da umidade do ar) e iluminado com tecnologia de última geração, podendo abrigar mostras de qualquer parte do mundo. Contará ainda com auditório, biblioteca, reserva técnica de 350 metros quadrados e estacionamento. É a maior área para exposições de artes plásticas de todo Norte/Nordeste. Na construção, o governo estadual investiu R$ 1.676.000.00 iniciais, mas, com a continuidade das obras, o montante final deverá ultrapassar os dois milhões de reais. O Museu tinha sido escolhido pela equipe técnica da Dinamarca como o local perfeito para abrigar a exposição de Albert Eckhout, desde que devidamente reformado, mas, como a reforma não foi concluída a tempo, a mostra foi para o Instituto Ricardo Brennand, o único outro local em Pernambuco com condições técnicas de receber exposições deste porte. Na inauguração do anexo, será exibida parte do acervo do Museu, e, pela primeira vez no Recife, a série Duas Cidades, de João Câmara, que trata do Recife e Olinda, em quadros de grande formato.


ARTES 47 Fotos: Flávio Lamenha

Na foto principal, o prédio do Museu do Estado, que vai passar por reforma modernizadora No alto, quadro de Teles Júnior, um dos tesouros do acervo Abaixo, o novo anexo, todo climatizado

A coordenação do novo espaço ficou a cargo de Emanuel Araújo, que comandou a reforma da Pinacoteca de São Paulo. O projeto é do arquiteto Vital Pessoa de Melo, com consultoria de João Câmara. Paralelamente, o prédio original do Museu sofrerá uma reforma de modernização e passará a ter uma área para tratamento e restauro das 12 mil peças do seu acervo. Serão também exibidas as novas doações ao Museu: duas esculturas, de Emanuel Araújo e Francisco Brennand, que inaugurarão o parque de esculturas da entidade, mais dois quadros, de Brennand e João Câmara. Segundo José Carlos Viana, Diretor de Política Cultural da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, Fundarpe, que está supervisionando todo o trabalho, será instituído um conselho curador, formado por intelectuais, críticos, historiadores, arquitetos e artistas plásticos, a fim de selecionar as doações para o Museu, bem como instituir uma política de aquisições para ampliação do acervo.

O Banco Safra financiará o catálogo do Museu do Estado de Pernambuco, que será o 23º da Coleção Banco Safra de Catálogos dos Museus Brasileiros, e que deverá ser lançado em dezembro. Com 320 páginas e 280 imagens, o livro, coordenado pela arquiteta Bethânia Luna, fará um levantamento do acervo da entidade, com textos do arquiteto José Luiz da Mota Menezes, que faz a introdução geral e levantamento iconográfico; do historiador Ulisses Pernambucano de Melo Neto, sobre o acervo histórico, com destaque para o período holandês; do pesquisador Reinaldo Carneiro, sobre arte sacra e mobiliário; do colecionador Roque de Brito Alves, sobre porcelana; do pesquisador Paulo Bruscky, sobre ex-votos; do jornalista Marco Polo Guimarães, sobre pintura; do antropólogo Raul Lodi, sobre arte afro-brasileira; da arqueóloga Gabriela Martins, sobre peças arqueológicas; e da professora Renata Dias, sobre artefatos indígenas. As fotografias foram feitas por Rômulo Fieldini, especializado neste tipo de trabalho. •

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48 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Entre vivos e mortos Certas experiências reafirmam a certeza de que a verdadeira criação artística mantém-se para além do instante em que surgiu

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epois de quase vinte anos, voltei a Paris para rever a cidade e particularmente seus museus e coleções de arte. Não alimentava nenhuma expectativa especial a respeito do que iria ver, à exceção das pirâmides que, de uns anos para cá, ocupam a área fronteira ao Louvre. Não obstante, quando me vi percorrendo as salas daqueles museus e revendo obras de artistas que pertencem à história da arte do século XX e que a constituíram, deime conta de que aquele reencontro era mais que um reencontro: era uma espécie de reavaliação. E não porque eu me dispusesse a fazê-la e, sim, porque, agora, diante de meus olhos, aquelas obras nem sempre tinham o mesmo peso nem o mesmo significado de antes. A primeira de minhas visitas foi ao Museu Picasso, no Marais. Ali, anos atrás, eu me havia defrontado, pela primeira vez, com um número considerável de obras do grande pintor. Alguns quadros e esculturas tinham deixado impressão duradoura na minha lembrança, como a Crucifixion (1930) e a célebre escultura da cabra, feita da junção dos mais diversos materiais e objetos, como folhas de palmeira, cabaça, cano e cipós. Ao entrar, assaltou-me o temor de uma possível decepção ou a ausência de qualquer descoberta ou surpresa. Não foi o que aconteceu e não porque a coleção tivesse sido aumentada ou enriquecida. As pinturas, as collages e ensemblages, como as esculturas eram exatamente as mesmas que eu vira antes. A surpresa – se posso falar assim – veio simplesmente da poderosa força expressiva que continua viva naquelas obras, do que há de inesgotável na expressão verdadeiramente criadora, fundadora de uma realidade outra – a da arte. A “releitura” de uma obra, nestas circunstâncias, quando o impacto da visão

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primeira já foi absorvido, permite a percepção do que é verdadeiramente essencial na obra e que está menos na contundência das formas e da composição do que na tessitura da matéria pictórica, na expressividade da linha, nos ecos das cores, do diálogo de luz e sombra, etc. Em Picasso, a percepção de tais qualidades torna-se mais difícil, devido à dramática deformação a que as figuras são submetidas. Mas a reavaliação foi maior no meu reencontro com o acervo do Centro Pompidour, onde se encontram obras altamente representativas dos artistas mais marcantes do século 20. Logo no grande hall de entrada deparo-me com uma das “máquinas-esculturas” de Jean Tinguely, artista que surgiu na década de 60, construindo pequenos quadros com formas em movimento, a que nunca dei maior importância. A obra do Centro Pompidour, no entanto, é de grandes proporções, ocupando toda a parede de fundo da sala. Trata-se de um conjunto de formas negras circulares de diversos tamanhos e que, apertando-se o botão ao lado, passam a mover-se lenta e harmoniosamente, com uma variação de ritmos – já que as formas têm tamanhos variados – que provocam a sensação de ouvirmos, com os olhos, uma sinfonia do silêncio. No extremo direito da grande “máquina”, percebe-se a figura de uma pequena folha feita de metal, que mal se move. O nome da obra é Réquiem pour une feuille morte. Feliz junção do movimento mecânico e da poesia. No segundo piso, deparei-me com as obras de um velho conhecido: Antoine Pevsner. Nos anos 50, descobri-o em algumas publicações da época e falei dele com alguns de meus amigos, que comigo formavam o grupo Neoconcreto, especialmente Lygia Clark, que se entusiasmou por ele. Pevsner,


TRADUZIR-SE 49 Foto: Reprodução

Nature Morte à la Pomme (1937), Pablo Picasso

fundador, juntamente com seu irmão Naum Gabo, do Construtivismo russo, construía suas estruturas abstratas em metal, soldando fio por fio, até formar superfícies curvas que se embricavam e desdobravam, criando por assim dizer uma nova linguagem escultórica. Os Bichos, de Lygia, absorvem certa influência dessa linguagem inovadora. Ao rever suas obras, emocionei-me: elas estão vivas, jovens, como se tivessem sido criadas hoje. São experiências como esta que reafirmam, em mim, a certeza de que a verdadeira criação artística, efetivamente inovadora, mantém-se para além do instante em que surgiu. A arte é sempre atual, já dissera mestre Picasso. Já o mesmo não aconteceu com a obra de Jean Fautrier que revi no Museu de Arte Moderna de Paris: aquele pequeno quadro, que nos mostra uma pasta quase sem cor, esgarçada na tela pela espátula, pareceu-nos vazio de significado. Na época em que foi feito, aquele gesto tinha sentido, era como a tentativa de fazer ainda falar a pintura, quando se tornara apenas matéria informe: a crise extrema da pintura figurativa. Com essa crise defrontara-se, na época, o brasileiro Iberê Camargo, mas, com extraordinária energia conseguira retornar do caos, recuperar a voz da pintura. Frautrier era menor. Neste mesmo museu, vi confirmar-se o vazio que foi a chamada arte povera italiana, ali representada por uma obra que ocupa uma pequena sala redonda, alusão a uma capela e que, hoje, mais que ontem, mostra-se vazia de qualquer significação

ou emoção. Perguntei-me até quando o museu manteria ali aquela suposta obra que só vale como vestígio de um momento (pobre) da arte italiana dos anos 60. Mas esta é, pelo menos, uma obra silenciosa, que não incomoda. Bem pior estava por vir. Ao entrar numa sala do andar de cima, comecei a ouvir um berreiro que, como verifiquei em seguida, vinha de um monitor de televisão: a imagem da cara de um sujeito, com expressão exasperada, ia e vinha, do fundo para o primeiro plano da tela, berrando, como um louco. Nada mais que isto. Ao lado, no outro monitor, o mesmo artista performático dava cambalhotas no ar, repetidamente. Uma garota que estava ao meu lado riu, balançou a cabeça e disse: “Por que não o internam?” Pensei comigo: pode ser que, com sua exasperação, ele pretenda expressar a impotência do indivíduo na sociedade massificada. Mas nem toda expressão é arte, e essa seguramente não é. Menos barulhento, numa outra sala, um artista conceitual expunha suas obras. Uma delas era uma série de cem pequenas fotos, coladas umas nas outras, e que começava com o retrato de um bebê, seguido da foto de um menino de um ano, e assim progressivamente até concluir com o retrato de um homem aos cem anos de idade... Tudo bem, disse a mim mesmo, encolhendo os ombros. E daí? • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.

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Ilustração: Nássara/Reprodução

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Ari Barroso e os dilemas do Brasil brasileiro O compositor Ari Barroso, cujo centenário é comemorado este mês, construiu uma obra que transformou a própria concepção do que é samba Carlos Sandroni

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Foto: Waldemar Falcão

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MÚSICA 51 »

A

ri Evangelista Barroso, cujos 100 anos de nascimento estaremos comemorando no dia 7 de novembro de 2003, não foi apenas um dos maiores compositores de samba e de música popular que o Brasil já teve: foi também um dos grandes definidores do samba carioca em sua feição clássica. Mineiro de Ubá, Ari chegou ao Rio em 1921, com 18 anos, para cursar a faculdade de Direito. Já tocava piano, que aprendera ainda criança, com uma tia; mas foi só quando acabou o dinheiro, que a família lhe dera, no terceiro ano do curso, que começou a tocar profissionalmente em cinemas e jazz-bands. O Rio, na década de 1920, já tinha um “Rei do Samba”: José Barbosa da Silva, o Sinhô, autor de pérolas como Jura e Gosto que me enrosco. Mas os sambas de Sinhô eram moldados num estilo diferente dos que conhecemos hoje, pois as escolas de samba só seriam criadas na geração seguinte, e é a elas que devemos, em grande parte, o acompanhamento rítmico que hoje nos parece essencial ao samba, definido por instrumentos de batucada, como o surdo e o tamborim. Ari nunca compôs samba de enredo, nem se ligou às escolas, circunstância que o levou a declarar que “não era sambista” (como conta Sérgio Cabral, em No Tempo de Ari Barroso, p.94). Mas soube como poucos inspirar-se dos ritmos e temas das escolas de samba para a construção de uma obra que acabou transformando a própria concepção do que era samba. Em 1931, estreava no Teatro Recreio o espetáculo de revista Deixa essa mulher chorar. A grande novidade da revista foi a presença de ritmistas do Salgueiro no acompanhamento: surdo, chocalho, pandeiro, cuíca, tamborim, violão e cavaquinho. Conta Roberto Ruiz: “Foi idéia de Araci Cortes trazer para a revista a colaboração dos malandros do morro (...) Trouxe a turma para o palco do Recreio e foi esse o maior sucesso da Revista (...) Pela primeira vez pisavam num palco autênticos crioulos de morro, fazendo soar seus instrumentos junto com a orquestra, a orquestra onde Ari vibrava ao piano”(Araci Cortes, Linda Flor, p.156-7). Esse Ari, é claro, era o nosso, que começaria a fazer sucesso como compositor pouco depois da experiência. É possível que tenha sido ali que ele começou a se familiarizar com o novo ritmo, pois seus primeiros sambas ainda devem bastante ao estilo de Sinhô (como

Vamos deixar de intimidade, de 1929). O teatro de revista, assim como o carnaval, era, pois espaço de convivência entre personagens que a estrutura social separava: pianista ao lado de tocadores de cuíca e surdo; bacharel em Direito, morador do “asfalto”, ao lado de habitantes de favelas. Era no samba que eles se encontravam, e nesse encontro nascia, ou se revigorava, certa concepção do que é ser brasileiro. Concepção com a qual, no entanto, nem todos concordavam, como mostra a anedota relatada por David Nasser, e reproduzida por Sérgio Cabral na página 181 da biografia já citada: em 1939, Araci de Almeida tentou interessar a gravadora Victor por um novo samba de Ari. Mas o diretor da Victor no Brasil, um certo mister Evans (descrito por Cabral como “um sujeito tão antipático que falava com os cantores populares com o lenço na boca, certamente com medo de algum contágio”), achava que samba era “música de negros, feita de negros para negros”, e portanto devia ser gravado invariavelmente com acompanhamento de “regional” (isto é, violões, cavaquinho e pandeiro). O compositor, no entanto, fazia questão de uma gravação com orquestra, e o impasse levou a que o samba, em questão, não tivesse sua primeira gravação pela Victor, mas pela Odeon. O samba era Aquarela do Brasil, e foi inaugurado por Francisco Alves com um arranjo de Radamés Gnattali que ficou quase tão famoso quanto a própria canção. O que Cabral não conta, porém, é por que Ari “não admitia que o samba fosse gravado por conjunto regional”. A explicação se deduz do contexto: à sua maneira, ele concordava com mister Evans, ao atribuir ao “regional” a faculdade de caracterizar o samba como música “de negros para negros”. A orquestra tinha naquele momento (e com certeza não só nele) uma conotação de universalidade (por oposição justamente ao “regional” em sua acepção literal) e de riqueza, que lhe davam a preferência, mesmo e paradoxalmente numa composição que afirma ser o “Brasil brasileiro” uma “terra de samba e pandeiro”. Aliás, Cabral também conta que este último verso teria sido vetado, a princípio, pela censura do Estado Novo, “sob a alegação de que era depreciativo para o Brasil” (Cabral, op. cit., p.180). Ari Barroso conseguiu convencer os censores do ridículo desta idéia, mas num outro nível parecia concordar com eles, considerando Continente novembro 2003


Foto: Arquivo Agência O Globo

“As fábricas, preferindo vender a música estrangeira, em vez da nacional, limitam-se a gravar a música brasileira com pequenos conjuntos nacionais, o velho cavaquinho, a flauta e os violões, colaborando para a depreciação artística da nossa música popular” Ari Barroso

uma gravação com acompanhamento de “regional” depreciativa para sua composição. Foi nestes termos que falou, num discurso proferido quando era vereador (mais uma faceta do múltiplo Ari, que foi também locutor de futebol e jornalista): “As fábricas, preferindo vender a música estrangeira, em vez da nacional, limitam-se a gravar a música brasileira com pequenos conjuntos nacionais, o velho cavaquinho, a flauta e os violões, colaborando para a depreciação artística da nossa música popular” (citado por Cabral, op.cit., p.249). Contradições do sambista que não se dizia sambista: atacando as fábricas por darem preferência à música estrangeira, afirma na mesma frase ser depreciativo para a arte musical brasileira o uso, nas gravações, do conjunto tido por tipicamente nacional... Ari Barroso morreu consagrado, em 1964. Morou a maior parte de sua vida numa ladeira do Leme, zona sul do Rio, que Continente novembro 2003

depois receberia seu nome. É a ladeira que leva ao Morro da Babilônia, palco da favela do mesmo nome, tão bem retratada por Eduardo Coutinho em seu documentário Babilônia 2000. Para quem se interessa por Ari Barroso, a obra de referência é No Tempo de Ari Barroso, de Sérgio Cabral (Rio de Janeiro, Editora Lumiar, 1993). Os livros Noel Rosa, Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier (Brasília, UnB, 1990) e Araci Cortes, Linda Flor, de Roberto Ruiz (Rio de Janeiro, Funarte, 1984). também trazem informações úteis sobre o autor de Camisa amarela. • Carlos Sandroni é doutor em Musicologia pela Université de Tours, coordenador do curso de Etnomusicologia da UFPE e antropólogo. Publicou, entre outros, o livro Feitiço Decente (Zahar/UFRJ).


ANÚNCIO


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54 MÚSICA Foto: Divulgação

O compositor Marlos Nobre, recorrentemente comparado a Villa-Lobos

Virtuosi

A nata da música O Recife sedia a 6ª edição de festival consagrado, que terá versão compacta em São Paulo, este ano

N

em só de frevo e mangue vive o Recife. De 25 a 29 deste mês, o Teatro de Santa Isabel abrigará o VI Virtuosi – Festival Internacional de Música de Câmara de Pernambuco, reunindo autores e intérpretes de todo o mundo, consagrado com a marca de alta qualidade. A fórmula bem sucedida foi inaugurada em 1998, em sua primeira versão: reunir músicos nordestinos radicados no exterior, artistas estrangeiros e nordestinos radicados na região, e intérpretes de fama internacional. A programação mistura composições conhecidas e obras inéditas, ou pouco executadas no Brasil. Continente novembro 2003

Este ano, pela primeira vez, o Virtuosi amplia seu raio de ação, realizando um concerto na Sala São Paulo – considerada a mais importante da América Latina, em que serão apresentados os melhores momentos da programação. O homenageado será o maestro e compositor Marlos Nobre, com quatro composições, inclusive algumas em primeira audição no Nordeste: Concerto II para orquestra de cordas Opus 53 (1981); Desafio I para viola e orquestra de cordas Opus 31/1(1968), tendo como solista Rafael Altino; Partita Latina para violoncelo e piano Opus 92 (2001), solistas Leonardo Altino e Ana Lúcia


MÚSICA 55 » Altino; Concertante do Imaginário para piano e orquestra Opus 74 (1989), com solo do próprio autor. Nobre nasceu no Recife, em 1939, e estudou, inicialmente, no Conservatório Pernambucano de Música, com o musicólogo padre Jaime Diniz. Comparado, pela crítica nacional e internacional, ao gigante Villa-Lobos, despontou nacionalmente em 1960, ao vencer o 1º Prêmio Música e Músicos Brasileiros, no Rio, com seu Trio para piano, violino e violoncelo. Em seguida, partiu para a Europa, onde estudou com os maiores luminares da música, sempre compondo e se apresentando nas principais salas de concerto. Em 1966, conquistou o Prêmio da Unesco, em Paris, com sua peça Ukrinmakrinkin. Detentor de 25 primeiros prêmios nacionais e internacionais, recebeu avaliações consagradoras de gente do porte de Arthur Rubstein e Yehudi Menuhin. Tem mais de 40 discos gravados nos Estados Unidos e Europa.

Saëns (1835-1921), G. Botesini (1821-1889) e Astor Piazzola (1921-1992). Entre os executantes, figuram a Orquestra de Câmera do festival, Nobilis Trio, The Ceruti String Quartet, Quinteto de Copenhague e solistas como Rafael Altino (viola), Radegundis Feitosa Nunes (trombone), Stephen Prutsman (piano), Ayrton Brenck (trompete), Suren Bagratuni (celo), Mikkel Futtrup e Sara Wallevik (violinos) e Catalin Rotaru (contrabaixo), entre outros. O Festival Internacional de Música de Câmara de Pernambuco tem a direção artística do maestro Rafael Garcia, que também rege sua Orquestra de Câmara, e coordenação da pianista Ana Lúcia Altino. Recebe apoio de empresas privadas, por meio das leis de incentivo cultural, e realiza-se, há seis anos consecutivos, no Recife. • (Homero Fonseca)

Um vasto programa – Nos cinco dias do festival, além de Marlos Nobre, serão executadas peças de compositores de várias épocas e partes do mundo, como Dvorak (1841-1904), Zoltán Kodály (1882-1967), Sergei Prokofiev (1891-1953), Dimitri Shostakovich (1906-1975), Mendelssohn (1809-1847), LarsErik Larson (1908-1986), Pablo de Sarasate (1844-1908), Tchaikowsky (1840-1893), Paganini (1782-1842), C. Saint-

VI VIRTUOSI – Festival Internacional de Música de Câmara de Pernambuco 25 a 29 de novembro, às 21 horas, no Teatro de Santa Isabel, Recife. Ingressos: R$ 10,00 e R$ 5,00 (estudantes e idosos). 2 de dezembro, às 21 horas, na Sala São Paulo, São Paulo. Ingressos: de R$ 16,00 a R$ 52,00.

Foto: Hans Manteufell/Divulgação


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MÚSICA Fotos: Divulgação

A cantora, que mora em Paris, gravou pela

Viola, voz e talento no novo disco de Teca Calazans Teca Calazans lança novo Cd, investindo mais na qualidade que no sucesso fácil

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la já tinha a vontade de fazer um disco de voz e violão, primeiro porque a produção é mais fácil, segundo porque gosta destas coisas minimalistas. Também porque é um desafio, uma vez que não é nenhuma novidade. Fazer uma coisa de qualidade, numa arregimentação muito usada, é mais difícil. Para completar, já tinha um bom repertório de músicas nordestinas. Então, ouvindo um disco de Heraldo do Monte, bateu a idéia de fazer um CD, não de voz e violão, mas sim, de voz e viola. Afinal, Heraldo não é um violeiro comum, vem do célebre Quarteto Novo (ele, Téo de Barros, Airto Moreira e Hermeto Paschoal). Mário de Aratanha, da Quarup, aceitou fazer a produção. Então, ela voltou para Paris e começou a selecionar, no repertório que já tinha, o que achava que daria certo no formato voz e viola, selecionando, também, coisas novas, é claro. E foi desta seqüência de fatos propícios que surgiu o CD, lançado por Teca Calazans, este ano, que leva o nome dela e o de Heraldo, como título. O disco traz canções como “A Secretária do Diabo”, de Oswaldo Oliveira e Reinaldo Costa, que fez sucesso na voz de Jackson do Pandeiro, “Violeiro Triste”, de Alvarenga e Ranchinho, e “Chequerê”, de Sinhô. “São músicas puras e simples, mas, ao mesmo tempo, melodicamente ricas e belas”, explica a cantora, que também comparece como compositora com “Casamento”, em parceria com Ricardo Villas, com quem foi casada e com quem fez dupla no início da carreira internacional, em Paris. A discografia de Teca é extensa: Cinco discos com Ricardo, na França, mais dois com ele, no Brasil. Os discos solo são: Teca Calazans, que ela chama de Disco Vermelho, Mina


MÚSICA 57 do Mar, Mário de Andrade, Intuição, Villa Lobos, Pizindim, Samba dos Bambas, Firuliu, Almas Tupis, Forró de Cara Nova e esse de agora, Teca Calazans & Heraldo do Monte. Intuição era um LP independente que o Geraldo Casado fez e que a Quarup relançou em CD. E Villa Lobos também, era um disco brinde, feito pelo Aluísio Falcão, pela Idéia Livre, com arranjos de Antônio Madureira, e foi relançado na França. Teca diz que, hoje, por morar em Paris, consegue ver com mais nitidez a qualidade única de nossa música. “É aquela história simples: longe dos olhos, perto do coração. A distância dá uma visão mais nítida das coisas. Se eu continuasse vivendo aqui, talvez não fizesse o que fiz. Ficando no lugar, as coisas se banalizam e vem aquela vontade de fazer sucesso, fazer música puramente comercial. E eu venho de uma época em que aprendi que fazer cultura era também educar. Eu venho do Movimento de Cultura Popular, o MCP, quando você fazia as coisas com idealismo. E eu não tenho temperamento para o comercial. Quando lancei o Disco Vermelho, a Odeon queria que eu fizesse como a Elba Ramalho, seguisse aquele filão. E eu não quis. Fui me descobrindo na França, a partir da década

com o Grupo Opinião. Conheci Ricardo, fui ficando por lá. Quando ele foi exilado, em 68, fomos para Paris. Lá formamos a dupla e eu comecei a fazer adaptações das pesquisas que tinha feito e a compor”. Teca Calazans não foi para Paris pensando em ficar, mas a ditadura estava muito rígida naquela época e a Embaixada Brasileira recusou-se a renovar seu passaporte. Ela ficou quatro anos sem passaporte, sem poder sair de Paris. Quando sua filha nasceu, teve que registrá-la como francesa, pois a Embaixada se recusou a registrá-la como brasileira. Em 79, com a anistia, voltou. Aqui, ainda gravou dois discos com o já ex-marido. Depois de desfeita a dupla, gravou o disco Teca Calazans, o Disco Vermelho, pela Odeon. “Como não fez sucesso”, conta ela, “a gravadora me impôs um repertório comercial. Recusei. Foi quando conheci o pessoal da Camerata Carioca e fui convidada para gravar Mário de Andrade e Villa Lobos. Existe público para isso, mas como não passa na televisão, não toca nas rádios, fica mais difícil. Só um público de entendedores, que freqüentam lojas especializadas, tem acesso. Mas meu caminho é esse mesmo”.

"Existe público para música de qualidade, mas como não passa na televisão, não toca nas rádios, fica mais difícil. Só um público de entendedores, que freqüentam lojas especializadas, tem acesso. Mas meu caminho é esse mesmo"

de 70, quando eu estava casada com o Ricardo, que foi exilado. E a gente tinha a liberdade de compor o que queria, não precisava ficar pensando se tal música ia ou não fazer sucesso. Pelo contrário, tudo que a gente fazia, quanto mais cultural fosse, mais interesse tinha. Comecei a suar toda pesquisa que tinha feito com ciranda, comecei a compor”. Teca começou cedo na música. Seu avô era professor e todos seus 11 filhos tocavam um instrumento. Sua mãe lhe deu um violão, quando ela tinha 11 anos, e lhe ensinou uns acordes. Foi quando começou a cantar. Mas a grande experiência se deu no MCP. Ela conta que “o MCP funcionava como uma espécie de universidade popular. Eu trabalhei nas divisões de educação e teatro. Viajávamos muito pelo interior e qualquer manifestação de folclore eu gravava. Achava lindo! Gravei bumba-meu-boi, xangô, nau catarineta, cocos, cirandas. O Grupo Construção surgiu daí. Fomos para o Rio de Janeiro, levando uma encenação de O Rio, de João Cabral de Melo Neto. Fui chamada para trabalhar

Na França faz shows e produz discos. “Aproveito para mostrar este lado do meu país que ninguém mostra. A nossa diversidade cultural. Se você mostra João Pernambuco, Jararaca, Levino, Luiz Gonzaga, mistura, frevo, maracatu... As pessoas ficam encantadas”, diz. Teca fez três antologias sobre a música nordestina, em Paris. Também lançou dez discos de autores independentes, pela gravadora Buda. Mas isso não funcionou. A gravadora é pequena, o mercado da música brasileira é pequeno, então os artistas teriam que ir lá, excursionar, e não têm como. Por isso prefere produzir antologias. Funcionava melhor se trabalhasse com patrimônio remasterizado, explica. As três foram sobre o Nordeste, através de material conseguido com colecionadores de discos antigos, de 78 rotações, como José Nirez, do Ceará, e Samuel Valente, de Pernambuco. Como compositora, Teca Calazans tem músicas gravadas com Milton Nascimento, Gal Costa e Nara Leão. • (Marco Polo) Continente novembro 2003


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HISTÓRIA

Raízes amargas de Sérgio Buarque

Ao morrer na condição de fundador de um partido – o PT – que dissente do trabalhismo de Vargas, o historiador teve sua biografia expurgada da colaboração com o Estado Novo Ricardo Oiticica

Foto: Acervo Ùltima Hora/Folha Imagem

Sérgio Buarque: contra a ditadura Vargas in extremis e o golpe de 1964

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érgio Buarque de Holanda, como chefe de fila do Estado Novo: está morno. Sérgio Buarque, como chefe da política de publicações do Estado Novo: está ficando quente. Sérgio, como chefe da Seção de Publicações do Instituto Nacional do Livro – criado pelo Estado Novo: é esse o ponto. As circunstâncias vêm agora e não são atenuantes. Na chefia da seção encarregada de “editar toda sorte de obras raras ou preciosas, que sejam de grande interesse para a cultura nacional” (decreto-lei nº 93, de 21 de dezembro de 1937, um dos primeiros da ditadura), Sérgio foi tão realista quanto o rei, iniciando a linha editorial do Instituto Nacional do Livro, em 1939, com a coleção Floriano: Memórias e Documentos, sobre o ditador que deu à República a feição autoritária que o Estado Novo então recuperava, no centenário de nascimento do homenageado. É difícil não ler o INL como aparelho ideológico do Estado. Cinco volumes sobre o Marechal de Ferro, quase duas mil páginas, serão publicados em um ano, com apresentação do ministro Gustavo Capanema na biografia de abertura. Carrochefe do Instituto, a obra de Floriano deflagrava, nas palavras do ministro, o “programa de revelar às novas gerações (...) os nossos heróis (...) que ficaram como luzes para clarear os caminhos e como vozes de comando para levantar os corações”, naquela sedução totalitária atualizada por Vargas sobre grandes nomes da cultura brasileira. Elogiável, defensável, desculpável ou inescusável é a colaboração de Sérgio – mas nunca elidível, ainda menos em se tratando de um historiador. Muito mais cômodo é dar um salto no período, como


Foto: FGV/CPDOC/AM FOTO 002/1

HISTÓRIA 59 »

Getúlio Vargas, aclamado por populares em Ponta Porã, Paraná, na Revolução de 30

naqueles romances em que a ação se desloca para décadas depois. Quando morre na condição de fundador de um partido – o PT – que dissente do trabalhismo de Vargas, a biografia de Sérgio se vê expurgada da colaboração com o Estado Novo. É cômodo e didático, mas não dialético: fica de Sérgio a imagem avant la lettre do intelectual politicamente correto, sendo absorvidas as tensões daquela complexa quadra histórica por um esquema de duplicação da imagem – a presença em duas revistas do modernismo (Klaxon e Estética), em dois núcleos de pensamento paulistas (a USP e o PT), contra duas ditaduras (a de Vargas, in extremis, e a do golpe de 64)... O pulo do gato para cortar as raízes amargas de Sérgio está em passar do início do Modernismo ao 1º Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo, de 22 a 26 de janeiro de 1945, quando assina o manifesto que é considerado, por alguns, mais importante para a queda de Vargas do que as modificações estruturais impostas por uma nova ordem mundial, nos estertores da 2ª Guerra Mundial, com as ditaduras praticamente caídas. O Brasil trocava a influência européia pela norteamericana, de que nem os intelectuais se veriam livres, ao contrário: muitos deles, como os responsáveis pelo INL, serão convidados a conhecer a democracia dos EUA em programas de sua famosa política de divulgação cultural. Nesse interregno, Sérgio é simplesmente um intelectual orgânico do Estado Novo. Retornemos aos fatos. Não se pode objetivamente avaliar até onde o germanismo, dado importante na geopolítica de então, influenciou no preenchimento dos cargos do INL (o diretor do órgão era Augusto Meyer, neto de imigrantes alemães, e o ministro era Capanema, ex-

aluno de padres alemães), mas o fato é que Sérgio, engajado no empenho editorial do Estado Novo de dar nexo entre as ditaduras de Floriano e Getúlio Vargas, também representava uma ponte com a experiência autoritária na Europa, cuja maré montante acompanhou, quando de sua estada na Polônia e na Alemanha, como correspondente dos jornais Diário de São Paulo e O Jornal, de onde retornou devido à eclosão da Revolução de 30, marco inicial da era Vargas. Se filosoficamente a influência daquela viagem sobre Sérgio foi germânica, politicamente foi eslava, entusiasmandose com a experiência de outro marechal de ferro, o ditador Pilsudski, que renegara os movimentos de esquerda na fundação da Polônia moderna, ao fim do primeiro conflito mundial, para liderar o golpe nacionalista de 1926. Sérgio, dissentindo também do comunismo (“quando eu saí daqui [do Brasil] tinha uma tendência para o comunismo”, disse a Manuel Bandeira), passa a olhar a experiência autoritária pelo viés político, não de Joseph Stálin, mas de Joseph Pilsudski; pelo viés filosófico, não de Karl Marx, mas de Karl Smith, referência do pensamento de direita alemão. Em 1935, ano em que começa a contagem regressiva para a decretação do Estado Novo, em resposta à conspiração comunista, Sérgio escreve com simpatia o artigo “O Estado Totalitário” (quando já estava escrito muito de Raízes do Brasil): “Poucos duvidarão de que a política em si representa uma atividade irracional, que tem sua raiz nas regiões obscuras, inconscientes, do homem. A associação que se pretende fazer entre ela e os princípios morais e jurídicos é, no fundo, ilegítima e precária”. Continente novembro 2003


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HISTÓRIA

Klaxon, revista do movimento modernista brasileiro

A mão é a do mesmo jornalista que fora recepcionado na Polônia por um entusiasta do Brasil e brasileiro naturalizado, o presidente do Senado e também marechal Júlio Szymanski, por ocasião da grande Exposição Geral em homenagem ao décimo aniversário da liberação polonesa. É a mão que afaga o regime fundado pelo golpe de 1926, porta aberta para os acontecimentos que ligariam a Polônia ao Brasil pouco tempo depois, através da “Polaca”, como chamada a carta espúria de 1937, em referência à constituição outorgada dois anos antes pelo marechal Pilsudski, após um pacto de não-agressão com a Alemanha de Hitler (e cuja violação seria o estopim da 2ª Guerra). As justificativas de seu anfitrião para o regime de força, não por acaso, também serão utilizadas por Vargas para justificar o Estado Novo: “E se [Pilsudski] foi forçado a ir ao extremo de um golpe de Estado, é que queria assegurar mais uma vez a vitória desse liberalismo, ameaçado de submergir entre os interesses partidários”. Empolgado com a Exposição Geral de Poznan, na fronteira com a Alemanha, Sérgio tem uma espécie de visão do paraíso ao observar a nota brasileira do importante evento: uma ala com crocodilos, bananeiras, paus-brasis, plantas insetívoras, plantas aquáticas – belezas que só reforçavam a recomendação do presidente do Senado polonês a nosso país, como canal preferencial de imigração eslava para a América do Sul. Mas não era propriamente ao paraíso que o sentimento anti-semita, tão presente naquele país católico, iria levar, nutrido por declarações como a do marechal Szymanski no artigo de Sérgio: “A Argentina também atrai numerosos emigrantes, posto que em quantidade inferior ao Brasil. Demais, entre os contingentes que se destinam ao porto de Buenos Aires, há uma porcentagem considerável de israelitas”. Aquela exposição era a prova, para Sérgio, de que a indústria polonesa fazia bem mais do que “esbordoar os judeus”, Continente novembro 2003

Folha de rosto do primeiro volume da coleção do INL, editada por Sérgio Buarque

como nas palavras que ele vai buscar em John Maynard Keynes, para quem a Polônia era uma “impossibilidade econômica”. E se era, o que havia então diante dos olhos de todos, 10 anos depois da crítica do economista britânico, era o milagre econômico operado pela ditadura de Pilsudski. Escreve Sérgio sobre o polonês que teve seu busto erguido na orla carioca durante o regime militar de 64: “Sobre as ruínas de um mundo que declina, o ditador da Polônia deseja estabelecer as bases de uma nova democracia”. “A vontade enérgica e a segurança com que afirmou sua posição entre os estadistas que dirigem a república têm sido, mais de uma vez, mal interpretadas no estrangeiro”. “Se é certo que o ditador até agora não se pôde afeiçoar aos métodos da brandura, que não são necessariamente inerentes e indispensáveis ao regime democrático, é porque sabe ser o homem do momento e o momento exige muito mais energia e decisão do que contemporizações e compromissos”. “Como os outros ditadores modernos, ele pode parecer um adversário decidido e intransigente dos processos por que se fazem no regime político atual as representações populares. Acredito que teria sido mais preciso se salientasse o empenho do Primeiro Marechal em conduzir a nação a uma nova democracia, embora para isso não evite os processos mais desabusados e mais extremos”. Os títulos de Sérgio sobre a Polônia de Pilsudski – “Um país que ressurge”, “Um apóstolo da democracia”, “Razões de Estado e Razões de Partido”, “Crises políticas”, “Strong men” – antecipam o eufemismo oficial da propaganda getulista. Se para Sérgio o ditador polonês é o homem do momento, para Francisco Campos, redator da nossa “Polaca”, o ditador brasileiro será o homem do destino, assim como o marechal Floriano, para Capanema, o homem de vontade; se Pilsudski é considerado “o Avô dos Poloneses”, Vargas será “o Pai dos Pobres”, a


HISTÓRIA 61 »

ponto de Cassiano Ricardo identificá-lo ao homem cordial, criação de Ribeiro Couto consagrada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. O balanço da linha editorial do INL, tendo Sérgio como chefe de publicações, demonstra a execução da ideologia dominante, quando mais não seja na escolha de títulos que sublinham as bases do poder em que se fundou o Estado Novo: ênfase na publicação de obras monumentais sobre o Estado e a Igreja contra uma residual participação de narrativas com que a cultura popular conta sua história. Efetivamente, depois da canonização de Floriano, o INL só decidirá pela publicação de outra obra de dimensões monumentais, quando o objeto for a igreja católica: a vultosa História da Companhia de Jesus, do jesuíta Serafim Leite, encampada após terem sido publicados pela iniciativa privada os dois primeiros volumes de um total de 10, com três novos volumes lançados durante o Estado Novo. Corria o ano de 1943, quando também sairiam do prelo do INL os dois volumes da Vida do Venerável Padre José de Anchieta, do igualmente jesuíta Simão de Vasconcelos, precursor da literatura ufanista que via no Brasil o paraíso celeste, seguidos no ano seguinte por A Demanda do Santo Graal, edição do Padre Augusto Magne, SJ, em três volumes – jesuíta que também terá financiamento, no retorno de Vargas ao poder, para um caro dicionário etimológico que não passou do primeiro volume. O impasse aí está. Se a biografia de Vargas não foi lavada pelo seu retorno democrático e pelo derramamento do próprio sangue – a de um historiador, sê-lo-á pelo esquecimento? •

Foto: AFP

Sérgio, engajado no empenho editorial do Estado Novo de dar nexo entre as ditaduras de Floriano e Getúlio Vargas, também representava uma ponte com a experiência autoritária na Europa

O marechal Pilsudski, ditador da Polônia

Ricardo Oiticica é doutor em Literatura de Língua Portuguesa (PUC-Rio) e professor de Direito Autoral na UniverCidade do Rio de Janeiro.

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Arte sobre pintura: Zenival

Kennedy, um “pepino gordo”, na gíria dos chefões da Máfia

A Conexão Corsa Há 40 anos, o presidente dos EUA, John Kennedy, era assassinado à luz do dia, num crime atribuído à quebra de compromissos com a Máfia Fernando Monteiro

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uem matou o presidente Kennedy? Completa 40 anos, quem diria, a (original) “pergunta que não quer calar”, originada em Dallas, Texas, no dia 22 de novembro de 1963. Não foi o amador Lee H. Oswald, por supuesto. Com seu rifle de 13 dólares, ele estava lá, na janela do depósito de livros da Escola Pública (que dava visão sobre a passagem da comitiva presidencial, em carro aberto, ótimo para a pontaria de matadores profissionais)... mas o “trabalho”, hoje é quase certeza, de verdade, foi executado por gente de fora, contratada para atirar contra o presidente, como quem mira numa melancia, num pepino grande, no “legume gordo” da frase do mafioso corso Antoine Guérini. O assassinato de John Fitzgerald Kennedy presidente virou mistério de estimação, mitificado (e mistificado, idem) a partir da tragédia americana de uma família, talvez símbolo do país perdido de si mesmo e hoje armado até os dentes, por dentro e por fora, bem ao estilo do Texas de George Bush. Você estava fazendo o quê, naquele dia de novembro? Verso de canção, obsessão, o 22 do mês 11 daquele ano “para não se esquecer” é o 11 de setembro dos americanos mais velhos – porque não se mata, a toda hora e na frente de todos, o chefe da nação mais poderosa da Terra. A vítima – de crânio esmigalhado – não foi um velho capo no seu escritório de presidente


HISTÓRIA 63 » Foto: AFP

Joseph Kennedy, entre os filhos Robert e John, teria sido sócio secreto do “Mão Negra”, durante a Lei Seca

de alguma association de pugilismo da Flórida, em confronto com “chefões”, mas sim um político ainda jovem, cuja retórica encantava um mundo menos cínico do que o de hoje (antes do Vietnam mudar a América e, por extensão, o resto do planeta). Quando tombou na cidade texana, Kennedy estava em plena campanha para o segundo mandato, com a sua cara de bom moço, debaixo do sol de Dallas, a acenar para a multidão, ao lado da mulher de nome afrancesado, a sofisticada Jacqueline Bouvier, futura senhora (brega-grega) Aristóteles Onassis. Enquanto o casal Kennedy viveu na Casa Branca, a sede do governo americano foi chamada de “Camelot”, para identificar a Era de JFK com o cenário artístico – e arturiano – da saga de cavaleiros andantes em aliança pelo progresso e pela justiça, etc. Seria? Lá está Marilyn Monroe cantando no aniversário de John, sem nada debaixo do vestido colante. Peter Lawford acaba de aspirar o pó, no banheiro imaculado, e Frank Sinatra (que levou para o túmulo muito do que sabia sobre as sujeiras de “Camelot”) está bastante nervoso porque ainda não apareceu nenhum enviado da Máfia de Chicago, representando o todo-poderoso Sam Giancana. “O que está acontecendo?”, se pergunta “The Voice”, enquanto limpa a garganta (porque a alma ninguém pode limpar apenas com uma tosse e um uísque duplo)... O que havia de podre bem debaixo da cama do presidente

priáprico que, todo mundo agora sabe, precisava transar com qualquer uma, todo santo dia? De santo, John Fitzgerald só tinha o bigode – que ele nunca usou. E seu pai, o honorável embaixador Joseph P. Kennedy (o “chacal de Wall Street”) era ainda pior. Sócio secreto de “Diamond” Joe Esposito – o “Mão Negra” – durante os dias da Lei Seca, o patriarca posava de santarrão e, ao mesmo tempo, aumentava a fortuna com os gordos borderôs do crime organizado. Quebrando acordos – John Kennedy – o filho que ele preparou para ser presidente dos Estados Unidos da América, nada menos – chegou lá, com carisma e os dourados de uma legenda oca, feita de belas palavras pronunciadas com aquela voz, meio estridente, de ventríloquo... até morrer porque o seu “velho” não conseguiu honrar inconfessáveis compromissos com a Máfia de Giancana, Meyer Lansky, Carlos Marcello, Santo Trafficante e outros. Havia também anticastristas interessados na eliminação do jovem democrata (ainda irritado contra a CIA, no episódio da “Baía dos Porcos”), e o que emerge de depoimentos e pistas, hoje, é o fundo de uma vendetta conduzida pela Máfia americana em conexão com a corsa – como simples executora – do outro lado do oceano. Refresquemos um pouco a memória: pelo braço longo da lei Continente novembro 2003


Foto: Bettmann/Corbis

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64 HISTÓRIA

Foto: Reprodução

Lucien Sarti, apontado como autor do tiro fatal

O pistoleiro Lucien Sarti, dado como o verdadeiro matador de JFK, chegou a ser preso no Rio de Janeiro, em 1972, por tráfico de entorpecentes

Foto: Arquivo Municipal de Dallas

Lee Oswald, tido como bode expiatório

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– leia-se o irmão Bob Kennedy, secretário de justiça –, JFK estava quebrando acordos, velhos e novos, celebrados pelo “chacal”, antes e depois do nascimento de Joseph Jr (morto em ação, em 1944), John e Bob (assassinados em campanha) e Edward (ou Ted, ex-senador, único dos herdeiros de “Joseph K” ainda vivo). O rolo da conspiração contra John se formou, assim, a partir do descontentamento da Máfia de Chicago – que tinha a palavra, do pai de presidente, de que a cruzada anti-Máfia iria sair do foguetório da campanha do filho (entre outras coisas) – e, desta, pulou para o território do capo Frank Costello, em New York, até chegar aos domínios de Carlos Marcello, em New Orleans, onde se fez a articulação, através de Santo Trafficante, com os elementos de fora. É essa a ligação que se conhece, atualmente, como a Conexão Corsa, no assassinato do presidente. “Corsa” pela tradição sangrenta, ítalo-francesa, de um homem como Antoine Guérini, chefão da Máfia de Marselha. Foi ele o escolhido para contratar a operação, digamos, “remoção do legume”, conforme o depoimento do mafioso Christian David (um Tommaso Buschetta francês, que cumpriu pena nos EUA e foi, depois, extraditado) ao escritor Steve Rivele, que começou a pesquisar a “Conexão” em 1984.


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Segundos antes do atentado, Kennedy e Jacqueline desfilam em carro aberto nas ruas de Dallas, Texas

Rivele obteve detalhadas descrições de David (o “Beau Serge”), a partir dos primeiros passos europeus – que visavam a despistar o FBI, usando-se “mão de obra” estrangeira, menos conhecida da polícia americana. Guérini era dono de um clube de fachada em Marselha e foi lá que, num dia de junho de 1963, Christian David afirma ter acontecido a conversa a respeito de um “serviço grande, para atender a amigos americanos”. Nas palavras de Antoine, eles estariam “precisando da cabeça de um político muito importante”. “Um parlamentar, um senador?” – Christian perguntou. “Não. O legume mais gordo”, teria sido a resposta do chefão corso. Assustado com o tamanho do alvo, Christian David recusou a “encomenda” e disse que Guérini teria procurado, então, um perigoso pistoleiro chamado Lucien Sarti, profissional (de um olho só) que era “um dos melhores do mundo” (ver/ler: The Men Who Killed Kennedy, documentário do inglês Nigel Turner para o canal ITV/BBC, e The Assassins of J. F. Kennedy, o livro de Rivele, cuja publicação sofreu, em 1988, uma forte campanha de descrédito perfeitamente orquestrada etc.).

Operação internacional – Através do depoimento de David – mais tarde corroborado pelo mafioso Michel Nicoli, sobre quem falaremos mais adiante –, formou-se o mais nítido quadro que se obteve do assassinato em si, até agora: além de Sarti, dois outros “profissionais” foram também contratados, e os três teriam seguido para o México, onde cruzaram a fronteira em Brownsville. Um enviado da Máfia de Chicago os esperava na cidade texana, e todos seguiram para uma casa em Dallas, alugada desde o início de novembro (para não deixar vestígios da passagem por hotéis). Os “executores” tiveram tempo de proceder a um novo levantamento – agora in loco – do provável trajeto da comitiva presidencial, no centro da cidade e, disfarçados de turistas, palmilharam a praça Dealey e outros lugares, fazendo o cálculo preciso de um esquema de “fogo cruzado”, que viria dos três homens postados num triângulo entre o tal “depósito de livros” (onde também ficaria o bode expiatório Lee), o edifício Dal-Tex-Tex e uma colina próxima, na qual havia um tapume de madeira, bem a propósito. O livro de Rivele (hoje roteirista bem sucedido em Hollywood) dá conta das informações específicas fornecidas Continente novembro 2003


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66 HISTÓRIA

Foto: Reprodução

O escritor Steve Rivele, cujo livro deslinda a Conexão Corsa

A Máfia de Chicago tinha a palavra do pai do presidente de que a cruzada contra os mafiosos iria sair do foguetório da campanha presidencial

Foto: Reprodução

Capa do documentário da ITV/BBC Continente novembro 2003

por Christian, quando colocado diante da famosa foto de Mary Moorman, obtida bem no momento dos tiros: “Olhe”, disse Christian. “Aqui está o presidente, você vê a sua cabeça indo para trás, porque recebe o tiro de Sarti - o terceiro -, lá de onde estava, na colina, atrás do tapume...” Ele coloca os óculos e se debruça mais sobre a imagem: “Foram várias as testemunhas que disseram ter ouvido um tiro vindo dessa direção.” David me pede o lápis e traça uma trajetória desde o lugar do tapume, onde desenha um círculo: “Aqui”. David indica uma mancha meio oculta pela madeira: “Eis o Sarti. Com uma lente deve ficar mais fácil vê-lo, ou talvez se distinga até bem, se este material puder ser ampliado...” Foi o que o canal britânico ITV fez. Não apenas ampliando a imagem do crime – como em Blow-up –, mas utilizando a tecnologia do computador para mostrar, claramente, no círculo rabiscado por Christian David, de fato, o contorno de um homem (metido no que parece ser um uniforme da polícia) segurando um fuzil ainda fumegante. Quem conhece Dallas sabe que a colina se chama Grassy Knoll – e pode imaginar que o tiro de um profissional de alto gabarito, mirando dali, teria muito menos probabilidade de errar do que os outros disparos vindos de trás, em ângulo. Para David, John Kennedy poderia até ter escapado com vida – isto é, ferido nas costas, e talvez não mortalmente –, se não fosse a posição do preciso Sarti munido de bala explosiva (era o único com esse tipo de munição, segundo Christian). Justo quando ele dispara, com o seu implacável olho “bom”, é que se dá aquele movimento estranho da cabeça de John Kennedy “para trás”, na fração de segundo captada pela câmera 8mm do cinegrafista amador Abraham Zapruder. O mafioso francês é muito seguro no que afirma: “Fizeram o fogo cruzado que estava planejado: o presidente foi atingido primeiro no meio das costas, o segundo tiro atingiu o governador Connoly (ocupante do banco da frente da limousine), o terceiro foi o disparo de frente – que explodiu a cabeça de Kennedy – e um quarto tiro errou o alvo... tudo em tal velocidade que profissional nenhum poderia alcançar (foram feitos inúmeros testes, com atiradores experimentados). Pensar que um amador como Lee Oswald pudesse ter feito os quatro disparos (um dos quais de frente!) é algo como uma grosseira piada”. Os assassinos teriam permanecido ainda em Dallas por cerca de 10 dias – pois os profissionais sabem que “a coisa mais idiota a fazer, num momento desses, é fugir assustadamente” (ainda Christian falando). Sepultado Kennedy, preso o “óbvio” Lee Oswald e mais serenada a atmosfera, entre Dallas e Washington, os três puderam seguir em vôo fretado – sempre segundo Christian – do Texas para Montreal e, daí, de volta para Marselha, em aviões de carreira, separadamente. Outros testemunhos – A decisão de assassinar o “filho do filho da puta do Joe Kennedy” foi citada por Judith Exner, mulher de Sam Giancana (em Remenbrances of Judith Campbell Exner), quando esta se


Foto: AFP

HISTÓRIA 67 »

Washington, D.C.: multidão acompanha o enterro do presidente assassinado

refere às relações do seu marido com Carlos Marcello e Santo Trafficante. Curiosamente, a senhora Giancana era uma admiradora do “belo presidente” – e ditou as suas memórias sem medo depois de viúva, quando ela própria já estava com os dias contados, como doente terminal de câncer. Outro mafioso importante, Meyer Lansky – o “burocrata do crime” –, também admitiu a “Conexão Corsa”, anos depois de retirado, quando foi viver os seus últimos dias em Tel-Aviv (embora sem entrar nos ricos detalhes obtidos da loquacidade de Christian David). Este foi mesmo a fonte das informações mais específicas que se conhece e, quando solicitado, por Rivele, para indicar alguém mais que pudesse confirmar a história, citou o nome do mafioso Michel Nicoli, traficante de heroína e membro da “rede corsa”. Caindo em campo para localizá-lo, Rivele veio a descobrir que Nicoli era, então, uma “testemunha federal protegida”, cujas informações já haviam levado à detenção de vários capi, nos EUA. Um agente do FBI deu a Rivele as pistas do paradeiro de Nicoli, e mais: destacou que Nicoli fora a testemunha “mais confiável que já encontrara”, em 30 anos de profissão. “O que ele disser, você pode escrever”, garantiu o policial. Rivele gravou as conversas com Michel Nicoli, e este corroborou toda a história do assassinato de Kennedy, via Marselha, pelas mãos de Lucien Sarti, um certo “Le Blanc” e um outro pistoleiro então ainda vivo (que Nicoli não quis revelar quem era). A bem guardada “testemunha” também informou que os pistoleiros haviam recebido o pagamento em heroína, em “quantidade assombrosa” – mesmo para ele, que atuava como especialista em converter droga grossa em dinheiro.

Ainda assim, Nicoli disse que, inicialmente, ficara surpreso – porque era a primeira vez que quaisquer daqueles três negociavam com heroína (“nunca vista em tal quantidade, pelo menos na mão de ‘novatos’ no ramo da droga”). É nesse último capítulo da história que entra o Brasil: Nicoli e Sarti chegaram a ser presos na Zona Sul do Rio de Janeiro, no começo de 1972, por tráfico de entorpecentes (pois Sarti havia adotado o tráfico, desde 1963, de posse do capital do seu “pagamento”). O “pistoleiro de um olho só” fugiu de uma cadeia carioca, em circunstâncias misteriosas, e viria a morrer, no dia 30 de abril do mesmo ano, em tiroteio com a polícia especializada do aeroporto da Cidade do México. Na época, os jornais informaram que Sarti “fora denunciado por alguém do seu próprio bando”, e também divulgaram as fotos da sua amante, presa no aeroporto: a brasileira Helena Ferreira – que ninguém sabe onde anda (se ainda estiver viva, quem sabe alguém poderá encontrá-la e perguntar sobre Sarti, o que ele dizia – se é que dizia – a respeito do 22 de novembro)... E um adendo de peso: Steve Rivele recentemente ficou sabendo que as investigações do assassinato, levadas a cabo pelos russos, via KGB (às quais Rivele teve acesso por amizade com ex-agente e diplomata amigo de Vladimir Putin), apontam igualmente para a “conexão corsa”, os três atiradores “estrangeiros” e todo o resto do lodaçal onde afundou a “Camelot” desfeita do sonho americano dos Kennedy. • Fernando Monteiro é escritor e cineasta. Continente novembro 2003


68 HISTÓRIA

Fotos: Passarinho/PMO

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Contra a modorra, a República! Bernardo Vieira de Melo foi o primeiro homem a mencionar a palavra República, proclamando a independência de Pernambuco, há 293 anos, no dia 10 de novembro de 1710 Eduardo Cruz

O

Brasil que não conhece o Brasil comemora neste 15 de novembro, a proclamação orquestrada e febril (de gripe ou de outra influenza que acometeu Deodoro da Fonseca) de uma república típica da morte anunciada do império. Não fossem documentos extensos e competentes ensaios, e até certa vontade política, passaríamos, Borges Hermida à parte, muito tempo acreditando que esse movimento de voto para o cidadão que escolhe seu presidente é fruto de uma soldadesca desencantada e tungada em seus proventos. O exército estava acima disso, assim como os próceres republicanos também deveriam estar. Não estamos, desta feita, a procurar a desqualificação de heróis ou doidivanas, e sim, a relembrar o resgate histórico em que os pernambucanos exigiram, contra os desmandos portugueses, não a independência, mas uma real república. Não a de Platão, romântica e estulta com seus meandros populistas, e sim, a de fato e de direito, a de que o povo brasileiro, nascido em Pernambuco e por lá instalado, exigia e necessitava. Pois bem, vai daí que o Sargento-Mor, Bernardo Vieira de Melo, acaba por cometer (fruto de outros históricos desdobramentos como o da frondas dos mazombas) o que se convencionou de “grito”– o primeiro grito de República no Brasil, no Senado da Câmara de Olinda. Continente novembro 2003

Ruínas do Senado da Câmara de Olinda, na rua Bernardo Vieira de Melo

E que brado retumbante era esse? Quizilas à parte, era o de propor a separação de Pernambuco, tendo a República como sistema de governo. Como bem lembrou um atento jornalista pernambucano, apesar de emprestar seu nome a “uma rua em Olinda e a uma avenida em Jaboatão dos Guararapes, Bernardo Vieira de Melo é um ilustre desconhecido de grande parte da população pernambucana. Pouca gente sabe que esse “vereador” do Senado da Câmara de Olinda, no século 18, foi o primeiro homem a mencionar a palavra “república” no Brasil. O dia ficara para a posteridade – 10 de novembro de 1710. Alguém se arrisca a outra data mais significativa na América Latina para fim do jugo dos reinos sobre as colônias? Claro que não! Bernardo Vieira de Melo tem seu nome indissociável da Guerra dos Mascates, que ocorreu entre 1709 e 1714, considerada pelo historiador Manuel Correia de Andrade como “um dos acontecimentos históricos mais polêmicos da evolução de Pernambuco”. A Guerra dos Mascates foi (a grosso modo de uns) uma luta de classes entre os nobres de Olinda e os burgueses do Recife, desencadeada por causa da elevação do Recife à categoria de vila. A proposta de república de Bernardo Vieira de Melo era, na verdade, diferente das nossas instituições atuais. Ele sugeria algo como uma república veneziana, a dos Dodges, espelhandose nas cidades italianas que não tinham reis, mas eram governa-


HISTÓRIA 69 das por famílias que disputavam o poder. Uma solução menos pior do que um reinado por procuração. Uma solução contra a modorra reinante em outras plagas do Brasil que, ou se achavam auto-suficientes ou buscavam, à margem da legalidade, existir sem vínculos com Portugal. Controvérsias à parte, o feito de Bernardo Vieira de Melo acabou por ser exaltado na letra do Hino de Pernambuco. Lembram-se de “...a república é filha de Olinda”? Por certo, Bernardo Vieira de Mello teve maior sorte na memória do povo do Rio Grande do Norte. É preciso salientar que ele foi um grande soldado e exerceu muitas funções, antes de governar a Capitania do Rio Grande. Foi Capitão de Infantaria das Ordenanças, Capitão de Cavalos e Tenente-Coronel, além de distinguir-se na luta contra o Quilombo de Palmares. Para muitos, esse último feito turva sua boa imagem. Outro fato que causa mal-estar e celeuma é o registro de um crime de origens passionais. Controversos registros resumem o escândalo em que Bernardo Vieira de Melo, homem de princípios rígidos, ao saber que seu filho poderia estar sendo traído pela esposa, precipitou-se (como se isso fosse justificável) e ordenou a morte do possível amante de Dona Ana Tereza, vitimando assim, o capitão-mor e morgado de cabo, João Paes Barreto. Tempos depois, D. Ana Tereza foi também assassinada. No Rio Grande do Norte, pacificou a região que vivia em clima de permanente guerra entre os índios e colonos portugue-

ses. Tentou acabar com as rusgas dos lusos e adotou o lema de não combater o nativo de forma desumana (seja lá o que isso possa significar à época). Era uma missão verdadeiramente difícil, e assim, esgotado fisicamente, pediu para ser substituído (05 de junho de 1700). Líder da corrente emancipacionista, esse homem, que no Senado da Câmara de Olinda propôs a instituição de uma república à moda de Veneza, livre da tutela portuguesa, foi acusado juntamente com seu filho André, do crime de inconfidente e de lesa-majestade. Não resistindo às perseguições, pai e filho se entregam às autoridades, e levados a Lisboa, são trancafiados na prisão de Limoeiro, onde vieram a falecer. Segundo o historiador Tarcísio Medeiros: “Bernardo, numa noite muito fria, acendera no quarto um fogareiro de carvão e, pela manhã, foi encontrado morto, sufocado pelas emanações de gás carbônico. Quanto ao filho André, morria logo depois, de um ataque cardíaco, quando jogava com outros presos”. A data histórica dessa sede de república que transforma Pernambuco em um berço desse ideal, que rege nossa modernidade política brasileira, deve ser comemorada nas ruínas do Senado, na Ribeira, hoje rua Bernardo Vieira de Melo, berço desse grande projeto de brasilidade. Que Pernambuco o cante com respeito! • Eduardo Cruz é jornalista.

Detalhe das ruínas: placa em homenagem ao sargento-mor

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70 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

"PARA A MÃE DO REI: Uma peça de seda da Holanda. Uma frasqueira de licor. Uma frasqueira de aguardente do reino"

Licores

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Relação de gastos do Diretor da Fortaleza de Ajudá

velho solar de Santo Antonio de Apipucos evocava Manuel Bandeira – “a mesa posta, com cada coisa em seu lugar” (“Consoada”). A mesa ali era pesadona, de jacarandá da Bahia, no meio da sala de jantar. As coisas em seus lugares eram toalha e guardanapos de linho, louça branca e talheres antigos. Mais parecia um ritual. No fim das refeições, algumas vezes mesmo fora delas, Gilberto Freyre servia seu famoso licor de pitanga. Em bandeja de prata e copos de cristal. E apenas a amigos muito especiais. O segredo da receita revelou só ao filho Fernando. Mas dela conhecemos alguns ingredientes. Pitangas sempre maduras – “cereja brasileira”, assim chamava. Colhidas em seu próprio pomar. Dali eram levadas a um terraço mourisco, quase um claustro, todo em azulejos, nos fundos da casa. Sendo essas pitangas cuidadosamente colocadas, uma a uma, em garrafas com cachaça de cabeça (fabricadas por amigos de confiança). Eram então etiquetadas e guardadas na adega. O processo recomeçava 10 anos depois. Quando recebiam os ingredientes finais: licor de violeta (ou rosa), preparado por freiras - que, recomendava, teriam que jurar serem virgens; e canela em pó, que aspergia sobre o copo, “num gesto clássico e pagão”, como descreve Edson Nery, parafraseando Vinicius. Por ter sabor mais forte e cor mais escura que outros licores, chamava-o pomposamente de “conhaque de pitanga”. A fabricação de licores foi, desde os tempos mais remotos, cercada de mistérios e lendas. Nas províncias romanas, por exemplo, era corrente a crença de que bruxas, disfarçadas em belas donzelas, preparavam porções de frutas e ervas que teriam o misterioso dom de atrair os homens. Na Idade Média, alquimistas e monges faziam xaropes que diziam serem capazes de curar todos os males. Inclusive peste negra. Em 1250 o químico catalão Arnold de Vila Nova chegou a publicar tratado sobre os efeitos restauradores e medicinais das infusões de álcool com ervas, frutas, sementes e especiarias. Depois, a degustação desses licores foi se sofisticando. Graças à Catarina de Médicis, mulher de Henrique II, acabou chegando à França. Mas, só com Luiz XVI passou a ter destaque nas mesas da aristocracia. Os mosteiros foram responsáveis por licores memoráveis. “Cusenier Magarine”, produzido na Abbaye Montbenoit. “Aiguebelle”, em Notre Dame d’Aiguebelle. “Trappastine”, em Cistertian. Muitos deles usavam fórmulas, ainda hoje guardadas em segredo. Como o “Bénédictine”, talvez o mais famoso deles, em que se misturam 27 ervas dos quatro cantos do mundo. Criado pelo monge veneziano Dom Bernardo Vincelli, da Abadia de Fécamp (Normandia), assinala seus compromissos eclesiásticos em inscrição no seu rótulo – D.O.M. “Deo Optimo Maximo” (para Deus, só o melhor e o maior). A fórmula, dada como perdida na Revolução Francesa, teria sido encontrada 100 anos depois. Já o “Chartreuse” foi concebido para ser um “Elixir da Longa Vida”, a partir de 130 ervas e especiarias. Era vendido em mulas, montadas (em pêlo) por monges do mosteiro que dá Continente novembro 2003


SABORES PERNAMBUCANOS 71 »

Foto: Ana Branco/Agência O Globo

O segredo de um bom licor está no equilíbrio dos ingredientes e no tempo de infusão

nome ao licor, nos mercados de Grenoble e Chambéry. Acabou bebida preferida de Nicolau II (último czar da Rússia), Charles de Gaulle, rainha Mãe da Inglaterra e, quem diria, também do grupo de rock Bon Jovi. Aos poucos, acabaram surgindo destilarias especializadas na fabricação de licores - Dutch Distillery of Bols (1575, Holanda), Der Lachs (1598, Alemanha) e Claeyssens (1789, França). E foram ganhando fama outros licores. “Mandarinetto”, feito à base de tangerinas. “Amaretto”, com sementes de damasco e amêndoas. “Frangelico”, com avelãs e bagas silvestres. “Cointreau”, feito da casca de pequenas laranjas verdes da Ilha de Curaçau - em verdade, essa casca não chega a encostar no álcool, com seu cheiro impregnando o líquido de longe, pouco a pouco, delicadamente. “Grand Marnier”, feito dessa mesma laranja de Curaçau, só que maceradas em conhaque. “Drambui”, mistura de malte envelhecido (por no mínimo 15 anos) e laranjas amargas. “Licor de Cassis” (fruta da família da groselha), que além de poder ser consumido ao natural, também se usa no creme de papaia e no kir – bebida da moda, junto com vinho branco gelado (ou champanhe). Servir licor caseiro às visitas é tradição antiga de hospitalidade. Costume presente, até hoje, nas cidades do interior. Nasceu em engenhos e fazendas de um Brasil ainda colônia, por mãos de “pretas velhas”. Sua origem remonta ao tempo de xaropes preparados em casa. Primeiro para curar tosse, gripe e dores de estômago. Passou depois a ser degustado por puro prazer. Era considerado “bebida de mulher”. Mas foi aos poucos quebrando esse preconceito e ganhando popularidade. Apesar de tantos caminhos, o segredo de um bom licor, durante todo esse trajeto, continua sendo um só – o perfeito equilíbrio na mistura de ingredientes e tempo de infusão. É usualmente servido em pequenos cálices, para fechar o jantar. Acabou sendo acompanhamento perfeito para charutos e longas conversas de fim de noite. • Continente novembro 2003


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SABORES PERNAMBUCANOS

RECEITAS: Foto: Jonas Cunha/Agência O Globo

LICOR DE TANGERINA Ingredientes: Cascas de 6 tangerinas, 1 kg de açúcar, 2 copos de álcool de 40º, 1 litro de água. Preparo: Coloque as cascas da tangerina em infusão, no álcool, por 10 dias. Faça uma calda rala, com açúcar e água. Junte à infusão. Peneire, filtre e engarrafe. LICOR DE MORANGO Ingredientes: 1 kg de morango, ½ kg de açúcar, ½ litro de rum claro, 1 fava de baunilha. Preparo: Coloque todos os ingredientes em vidro de boca larga. Cubra o vidro com papel e amarre o papel com cordão. Deixe neste vidro por 3 meses. Depois, peneire, filtre e engarrafe.

LICOR DE MARACUJÁ Ingredientes: 30 maracujás, 1 kg de açúcar, 1 garrafa de álcool de 40º , 2 garrafas de água. Preparo: Bata tudo no liquidificador. Deixe em infusão por 1 mês. Peneire, filtre (em papel-filtro) várias vezes e engarrafe. LICOR DE GRAVIOLA Ingredientes: 1 graviola grande, 1 kg de açúcar, 1 garrafa de álcool de 40º, 1 litro de água, suco de 1 limão. Preparo: Descasque e tire os caroços da graviola. Amasse bem com o açúcar. Junte os outros ingredientes. Peneire, filtre e engarrafe (servir só depois de 15 dias).

LICOR DE LEITE Ingredientes: 1 litro de leite, 1 litro de cachaça, 2 favas de baunilha, 1 limão em rodelas, 1 kg de açúcar. Preparo: Coloque todos os ingredientes em vidro de boca larga. Cubra e deixe nesta infusão por 8 dias. Mexa todos os dias. Filtre e engarrafe. LICOR DE CAFÉ Ingredientes:1 ½ litro de água, 1 litro de cachaça, 1 kg de açúcar, 1 copo de café bem forte, 1 colher de chá de baunilha. Preparo: Ferva a água e o açúcar por 10 minutos. Tire do fogo, espere esfriar e junte os outros ingredientes. Filtre e engarrafe. Maria Lecticia Cavalcanti é professora.

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA 73

Quadro na ilustração: Nu Deitado, Di Cavalcanti, 1930

Joel Silveira

O grande pintor nem se assusta com os discos voadores....

D

urante anos, até o dia de sua morte, a 26 de outubro de 1976, Di Cavalcanti morou na rua do Catete, 222, apartamento 803 – e no apartamento 802, adquirido pelo pintor poucos anos antes de morrer. Di tinha o ateliê, onde guardava parte de sua refinada biblioteca e ainda dispunha de um pequeno quarto para a sesta e eventuais cochilos. Eu ia caminhando do Largo do Machado até o apartamento de Di. Era um entardecer muito bonito, de céu sem mancha. Parei numa esquina para comprar um jornal – não sei por quê, ergui os olhos e subitamente a coisa aconteceu : cruzando velocíssima o firmamento numa só direção – de bombordo a estibordo, como diria um marinheiro –, uma luz reta e intensa me encheu os olhos e quase me cegou. Que diabo era aquilo?

Cheguei ao apartamento de Di Cavalcanti de coração ainda batendo, contei-lhe em tumulto o que havia acontecido, insistindo nos detalhes, que pretendia fazer os mais convincentes possíveis: – Uma coisa incrível! Mais parecia um cometa ou uma estrela que estivesse caindo, sei lá. Riscou o céu, fulminante, e lá se foi. Juro que não estou mentindo! Di me ouviu em silêncio, sem largar o pincel: dava uma rápida pincelada na tela, depois mais outra, parava, olhava a tela por alguns segundos, dava outra pincelada. Só depois é que falou: – O que você viu foi um disco voador. Dá muito aqui pelo Catete. Já me acostumei... • Joel Silveira é jornalista e escritor.

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74 ARQUITETURA

Berlim, a reciclagem da herança comunista Em meio a polêmicas e a ondas de saudosismo, a capital alemã procura preservar monumentos do passado Marcelo Abreu

U

m prédio de linhas modernas e vidraças es- techno se candidatou a ocupar o antigo plenário. Se o projeto pelhadas passou mais de uma década lacrado, for adiante, clubbers poderão dançar a noite inteira, no mesmo como uma ruína tóxica, na antiga praça Marx- lugar onde aconteciam as antigas reuniões dos sisudos líderes Engels, no coração de Berlim Oriental. No Palast da Alemanha Oriental. Mas a festa deve durar somente uns três anos. O der Republik, o Palácio da República, onde funcionava o Parlamento da República Democrática Alemã (RDA), foram Parlamento Alemão decidiu, em 2002, que o palácio será demoencontradas, em 1990 – logo após a queda do Muro – gran- lido em 2006 e no seu lugar será reconstruído o Stadtschloss – des quantidades de amianto na estrutura do edifício. O palácio o Castelo Municipal – um edifício barroco do século 19 que foi prontamente interditado enquanto se decidia o que fazer existia no local até ser bombardeado durante a Segunda Guerra Mundial e demolido pelo governo comunista em 1950. Mucom ele. Durante 13 anos, o lugar permaneceu como uma ferida no danças desconcertantes que são inevitáveis na tumultuada e suave rosto da capital alemã. Em julho último, agora livre de dramática história de Berlim. O debate em torno do amianto, depois da conclusão Fotos: Marcelo Abreu palácio tem sido acalorado e de uma obra que custou 70 sintetiza a polêmica geral somilhões de euros (cerca de R$ bre a recuperação urbana do 210 milhões), o palácio foi lado leste e o que fazer com o finalmente reaberto à visitapassado comunista, com a ção. A praça em frente não se herança de 40 anos da chachama mais Marx-Engels – mada “ditadura do proletaagora é a Schlossplatz, ou prariado”. O debate vai mais ça do Castelo – e não ocorrem além e atinge o legado da mais desfiles com bandeiras traumática história alemã: vermelhas na sua frente. As militarismo prussiano, nazisautoridades discutem a utilimo, comunismo, unificação zação do antigo Parlamento para projetos culturais e instaapressada (o poderoso deutsche lação de bares. Até uma casa mark praticamente “comnoturna especializada em Cinema restaurado, em Berlim Oriental prou” a RDA). O que fazer

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Cruzamento da Avenida Karl Marx com Rua da Comuna de Paris: socialismo permanece nos nomes

com a história, com a memória e com os seus desdobramentos materiais na arquitetura? Os setores à direita defendem a demolição do Palácio da República, enquanto os saudosos da RDA e grupos mais sensíveis à preservação do passado comunista na arquitetura querem sua manutenção. Na esquerda alemã, teme-se que a reconstrução do Castelo Municipal represente uma glorificação do passado militar da Prússia. Além disso, conta o fato de que entre 1976, quando foi construído, e 1989, o Palácio da República era também lugar de espetáculos, festas e até casamentos, o que explica o valor sentimental que lhe confere toda uma geração criada sob o regime de Erich Honecker. Pode-se dizer que, por enquanto, os conservacionistas, apesar de perderem a batalha do Palácio da República, estão vencendo a disputa. Ao contrário do resto do Leste Europeu, onde o comunismo foi sucedido por regimes de direita que queriam eliminar ao máximo traços do antigo regime, na Alemanha não aconteceu o mesmo. O atual governo social-democrata/verde não tem uma postura anticomunista intrínseca e na própria cultura alemã está arraigada a preservação crítica do passado. A avenida Karl Marx – Prova disso é a manutenção quase intacta da avenida Karl Marx, a mais majestosa artéria da antiga capital da RDA e um dos mais imponentes monumentos comunistas de todo o Leste Europeu. Aqui está um belo exemplo do que as teorias do realismo socialista chamavam de “arquitetura monumental” – uma mistura do estilo funcional

para as massas com elementos e ornamentos do classicismo grego. Como diz o historiador norte-americano Brian Campbell, que pesquisa o tema na Alemanha para uma tese de doutorado, “se o socialismo era isso (morar na Karl Marx), o regime não devia ser tão ruim assim”. O problema, como lembra o próprio Campbell, é que, em geral, as massas moravam nos chamados plattenbau, as construções quadradas de concreto, construídas em ritmo industrial a partir do final da Guerra. A Karl-Marx-Allee, como é conhecida em alemão, liga o sudeste da cidade à famosa Alexanderplatz, o principal centro comercial de Berlim Oriental. Foi construída a partir do final dos anos 40 e inicialmente era conhecida como Stalin-Alee (avenida Stalin), em homenagem ao onipresente líder soviético. Em 3 de agosto de 1951, uma estátua de Josef Stalin medindo quase cinco metros de altura passou a ornamentar o cruzamento com a avenida Sport. Dez anos depois, em outubro de 1961, sem nenhum anúncio prévio, a estátua foi removida do dia para a noite. Apesar de atrasado em relação à URSS, começava a desestalinização do Partido Socialista da Unidade Alemã (SED). A avenida tem 90 metros de largura. Os requintes de decoração, que ainda hoje impressionam, foram colocados nos anos 50, quando foi formada uma comissão para embelezar os prédios: colunatas, revestimento de granito e mármore, cornijas no alto dos edifícios, pracinhas nas esquinas com bustos de heróis socialistas. Entre 1959 e 1965, cinco mil apartamentos

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76 ARQUITETURA

Símbolo da McDonald´s, no centro da ex-capital comunista

foram construídos, com projetos dos arquitetos Josef Kaiser, Werner Dutschke e Edward Collein. Os três planejaram edifícios de até nove andares, afastados da avenida por meio de calçadas e canteiros generosos. No térreo, acomodavam as lojas de produtos variados. No cruzamento com a praça Strausberger, os arquitetos Fritz Kühn, Heinz Granffundle e Rolf Rühle criaram, em 1967, um monumento que perdura até hoje: uma fonte no cruzamento com placas de cobre formando um anel. Observadas de longe, as placas parecem cristais flutuando no ar. A experiência arquitetônica não foi repetida em outros lugares do país devido ao seu alto custo. Foi exatamente durante a construção da avenida, em julho de 1953 que começaram, entre trabalhadores, os protestos do histórico levante de Berlim, sufocado dias depois pelas forças do governo comunista. O mais preciso estudo sobre a obra foi feito pelo professor Brian Ladd, do Rensselaer Polytechnic Institute. No livro The Ghosts of Berlin, Ladd afirma que a avenida representa uma visão de controle totalitário, com ordem rigorosa e demonstração de poder por parte do Estado. Um dos marcos mais característicos da época está em ruínas. Era o restaurante Moskau, cuja fachada, de vidro e concreto, era decorada com painéis no estilo do realismo socialista. Belos exemplos desse estilo de arquitetura são o Kino Kosmos e o Kino International, dois cinemas erguidos em caixas de concreto e vidro de inspiração futurista. Se percorrida no sentido subúrbio-centro, a avenida Karl Marx desemboca na moderna Alexanderplatz, exatamente ao lado da Haus der Lehrers (Casa do Professor), um prédio quadrado que tem um expressivo painel em mosaico mostrando as habilidades dos mestres e sua importância na sociedade. O prédio está em reforma mas, se seu estilo original for preservado, vai servir para ilustrar a grandiosidade e as características peculiares da avenida Karl Marx. Continente novembro 2003

Pintura no que restou do Muro de Berlim

Arquitetura monumental, na Avenida Karl Marx

Para quem esteve em Berlim, na época da cidade dividida, caminhar por suas ruas, agora, é uma experiência forte, como se fosse possível saltar à vontade entre as páginas de um livro de história, entrando e saindo de túneis, como um fantasma incrédulo, observando a passagem do tempo


ARQUITETURA 77 »

O Palácio da República, antiga sede do Parlamento da RDA, pode vir a ser demolido

Em toda sua extensão, há poucos sinais do capitalismo – um Citibank e uma MacDonald’s discretos não interferem no conjunto arquitetônico. Como se fosse para contrabalançar a concessão aos novos tempos, em frente à lanchonete ainda há um escritório decadente da empresa aérea Cubana. Alexanderplatz e os velhos monumentos – Para quem esteve em Berlim, na época da cidade dividida, caminhar por suas ruas, agora, é uma experiência forte, como se fosse possível saltar à vontade entre as páginas de um livro de história, entrando e saindo de túneis, como um fantasma incrédulo, observando a passagem do tempo. A sensação é de que tudo mudou, em um momento, e de que nada mudou, no instante seguinte, quando desviamos o olhar para a fachada ao lado. A Alexanderplatz, centro moderno da Berlim Oriental, é onde essa sensação bate mais forte. Não que fosse a área mais ideologizada da cidade. Era apenas emblemática por ser o centro. À primeira vista, não mudou quase nada nos 14 anos desde o fim do Muro. O velho Relógio Internacional, uma construção redonda de concreto sob um globo de aço, ainda gira mostrando a hora em várias capitais do mundo. É uma bela lembrança dos tempos vermelhos. Apenas a loja de departamentos Centrum-Warenhaus, que era a vitrine do comércio da RDA, deu lugar a uma filial da Kaufhof, uma gigante do oeste. A moderna Torre de Televisão, com seus 368 metros, ainda domina o panorama central da cidade. O Forum Hotel é ainda o mais alto da região. Não foram cons-

truídos novos prédios e a presença de anúncios e letreiros comerciais é discreta. Na praça Rosa Luxemburgo – o nome permanece – o antigo Volksbühne (Teatro do Povo) dos tempos de Bertold Brecht agora tem uma programação cultural um pouco mais variada. Em direção ao oeste, a rua Karl Liebknecht ainda serpenteia entre os principais museus, catedrais e monumentos da Berlim Oriental. Na Unter den Linden (Sob as Tílias), uma das mais belas avenidas da Europa, que começa no portão de Brandenburg (antiga fronteira), o hotel do mesmo nome é o melhor exemplo da arquitetura moderna comunista: um bloquinho de cinco andares com leves pitadas de art-déco, absolutamente suave para a vista. As estátuas e os nomes de personalidades ligadas ao comunismo foram trocados das ruas e praças em muitas capitais do Leste Europeu mas, no caso da Alemanha, isso nem sempre aconteceu, pelos menos com os figurões. Ao lado da Neptun Brunnen (Fonte de Netuno), sobrevive uma estátua de Marx e Engels. Aconteça o que acontecer, a Alemanha unificada não vai abdicar da reverência a dois dos mais influentes pensadores da história mundial, ambos nascidos no país. Fantasmas de Dzerzhinski – Berlim demonstra seu respeito pelo passado também numa infinidade de exposições dedicadas aos tempos do comunismo. O comando central da Stasi, a polícia secreta do regime, foi aberto à visitação. Em um prédio sombrio no bairro de Friedrichshaim, podem-se perContinente novembro 2003


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78 ARQUITETURA

Estátuas de Marx e Engels

correr os corredores revestidos em lambri e visitar a sala de comando do temido Erich Mielke, o homem que comandou a Stasi durante 28 anos. Em três andares, está exposta a história da repressão na RDA. Há um salão dedicado a objetos de culto do regime, como um vasto painel com as figuras de Marx-Engels-Lenin e uma estatueta de Feliks Dzerzinski, o criador da NKVD (depois KGB) soviética, figura emblemática que inspirou a atuação da Stasi. Na estatueta, usando um sobretudo até os pés, mão no bolso, ele olha altivo para a frente enquanto um garoto choroso se aconchega a suas pernas. Dzerzhinski está em todas as exposições, como um ícone da repressão política. Em outro ponto da cidade, o Centro de Documentação e Informação da Comissão Federal promove uma exposição sobre os métodos da Stasi. Lá estão expostas as formas de grampear telefone, abrir correspondências, e experiências com novas técnicas de espionagem. Dzerzhinski está novamente aqui em uma estátua confeccionada em mármore branco. A escultura mostra Lenin gesticulando e Dzerzhinski ouvindo sisudo, olhando fixo no chão, maquinando novas formas de proteger o Estado do inimigo. O Checkpoint Charlie – barreira de controle policial que ligava as duas partes de Berlim – foi removida, mas, na rua Koch, onde ficava a fronteira, foi erguido um caótico Museu do Muro, que também mostra a história da cidade dividida, com ênfase especial nas fugas dos dissidentes e na luta pelos direitos humanos. O entusiasmo por exposições sobre o passado não se resume ao comunismo. Há na cidade várias mostras dos horrores do nazismo e de outros períodos movimentados da História. Apesar do tom crítico das exposições, existe em todas uma sobriedade que ajuda a uma reflexão inteligente sobre cada um dos fenômenos históricos que afetaram a sociedade alemã. • Continente novembro 2003

O velho carro Trabant ainda nas ruas de Berlim

Acima, Relógio Internacional na Alexanderplatz

O Centro de Documentação e Informação da Comissão Federal promove uma exposição sobre os métodos da Stasi. Lá estão expostas as formas de grampear telefone, abrir correspondências, e experiências com novas técnicas de espionagem


Livraria Karl Marx

O muro-galeria N livrarias da cidade fecharam: a Volksbuchhandlung (Livraria do Povo) na Alexanderplatz, onde peso acerto de contas com o passado, as duas maiores

soas faziam filas para entrar e a enorme Universität Berliner Buchhandlung, onde havia uma grande oferta de livros em alemão e em russo. Ficou apenas a Karl Marx Buchhandlung, na avenida Karl Marx, antigo ponto de intelectuais e ainda hoje um dos centros de reflexão sobre as mudanças na capital. E uma pequena livraria perto da praça Rosa Luxemburgo, onde se encontram livros e discos da época da RDA. E o Muro? Foi também preservado em alguns pequenos trechos e virou atração turística. Ao longo da rua Mühlen, que margeia o rio Spree, a infame parede de concreto foi mantida por pouco mais de um quilômetro. Nos anos do comunismo, o Muro já era uma galeria no lado ocidental mas, no lado leste, era pintado de branco para facilitar a vigilância. Agora virou uma gale-

ria de arte popular, onde artistas das mais variadas tendências pintam o que bem entendem. No Bundestag, o Parlamento Alemão, novo em folha depois da restauração do velho prédio do Reichstag, grandes cartazes divulgam a imagem de Berlim como a capital da tolerância e da diversidade. Falta saber o que as trapaças da sorte reservam para a cidade ao longo do século 21 e como isso pode, novamente, alterar a sua aparência. •

Trecho do antigo muro foi preservado como galeria de arte

Marcelo Abreu é jornalista e autor do livro Em Busca da Utopia Kitsch – Aventuras nos Países Vermelhos (Editora Record).

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80 ARQUITETURA Ilustração: Reprodução

A Fênix renasce

Alexanderplatz: projeto de reconstrução, do arquiteto Hans KollHoff

É inequívoco o poder e a capacidade suprema de Berlim se refazer e se reconstruir Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle

B

erlim 1933. A democracia da efêmera e instável Weimer Republik é aniquilada por Hitler e pelo truculento Nacional Socialismo, que implanta uma ditadura feroz e terrorista e aborta os avanços da modernidade cultural e artística – que contava nada menos com Bertolt Brecht, Kurt Weil e Marlene Dietrich –, da liberação sexual que permitiu a apresentação inédita de Josephine Baker, negra e nua, na Alemanha, e das experiências e conquistas da arquitetura moderna de Erich Mendelsohn, Peter Behrens e da Bauhaus de Walter Gropius. Berlim 2003. A democracia se solidifica na capital de uma Alemanha reunificada e a cidade-capital, marcada por sucessivas destruições e reconstruções, é novamente foco de grandes projetos urbanos que acrescentam à sua turbulenta história política e paisagem urbana, de significados complexos e dolorosos, a arquitetura simbólica da reunificação e da reconstrução de uma nação poderosa, unida e democrática. Se a paisagem urbana de Berlim nos revela, a cada esquina, seus dramas urbanos, ideológicos e políticos, por outro lado, é inequívoco seu poder e capacidade suprema de se refa-

zer e se reconstruir. Palco dos projetos megalomaníacos de Hitler, dilacerada pelos severos bombardeios da segunda guerra mundial, decepada pela infame divisão do Muro, uma das mais celebradas alegorias da guerra fria, as “duas Berlins” são ainda mais fragmentadas na reconstrução do pós-guerra. No final da década de 1980, a abertura política coordenada por Gorbachev, que culmina com o colapso do comunismo na URSS e Europa oriental, e a derrubada do Muro de Berlim, abre as fronteiras entre os dois países, fechada desde 1961. Em 1990, a Deutsche Demokratische Republik – DDR, a República Democrática Alemã, deixa oficialmente de existir, juntando-se à Bundesrepublik Deutschland – BRD, a República Federal da Alemanha, marcando a reunificação do país. Após os primeiros momentos de euforia e celebração e a retirada de tropas militares dos dois lados, inicia-se no país um processo de reconstrução e transição para uma Alemanha democrática e capitalista. A transferência da capital de Bonn para Berlim, aprovada pelo Bundestag em junho de 1991, a transforma no maior canteiro de obras da Europa e objeto de uma grandiosa

Fotos: Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle

A nova Chanceleria no Spreebogen, projeto de Axel Schultes

A intervenção de Ian Pei no Museu Histórico Alemão

Potsdamerplatz


ARQUITETURA 81 » operação de renovação e reconstrução urbana que muda mais Segurança do Reich e a Chanceleria de Hitler estavam localizados uma vez, e radicalmente, sua paisagem e tecido urbanos. em sua vizinhança imediata, foi por esta razão devastada pelos Alexanderplatz ou Alex, como ainda é carinhosamente bombardeios, desaparecendo totalmente com a construção do chamada pelos moradores de Berlim Oriental, é um dos mais Muro. A área, aparentemente sem valor, é adquirida em 1989 pela complexos espaços urbanos, impregnado de conteúdos e men- Daimler-Benz AG que, em concurso fechado, escolhe a proposta sagens políticas, ideológicas e afetivas, contraditórias e confli- do arquiteto italiano Renzo Piano. Outras empresas, a Sony, a tantes. No clássico de Alfred Döblin, Berlin Hertie-Wertheim e a Asea Brown BoveriAlexanderplatz, é mostrada como o ponto de ABB adquirem o restante da área e, em encontro da marginalidade e da classe concursos separados, escolhem os projetos dos operária berlinense, para ser imortalizada no arquitetos Helmut Jahn e Giorgio Grassi. filme homônimo de Piel Jutzi em 1931, e Potsdamerplatz tem o poder magnético de por Fassbinder em 1979. Alexanderplatz atrair 120 mil pessoas por dia (das quais 60% significa ainda a consolidação do Modernão são habitantes de Berlim) para usufruir nismo na DDR ilustrado com a Haus des seus megastores, centros gastronômicos e de Lehrers e o Kongresshalle, projetos de entretenimento, teatros e cinemas. Hermann Henselmann, e com o último O projeto, que teria a romântica tarefa de trecho da Karl-Marx-Allee, protegida pela cicatrizar as feridas urbanas de um ponto vital de Berlim, transformou-se numa embaúltima ação espetacular do governo lagem de ilusões que oferece aos visitantes comunista que garantiu sua preservação em uma ilha de fantasias com obras individuais, 1990, baseada ainda na Denkmalplegegesetz der DDR, a lei de Projeto de Aldo Rossi para requalificação sem dúvida marcantes, de famosos arquitetos, como Richard Rogers, Hans Kollhoff, preservação dos monumentos históricos da urbana em Berlim Oriental DDR, poucos dias antes da reunificação da Alemanha. A in- Rafael Moneo, Helmut Jahn e o próprio Renzo Piano. corporação de monumentos históricos da DDR na DenkA paisagem urbana de Berlim é uma paisagem politizada malliste des Landes Berlin ou Lista dos Monumentos Histó- e sua arquitetura expressa uma estética política, histórias posiricos de Berlim, aprovada em 1995, causou polêmicas discus- tivas e negativas, derrotas e conquistas. O respeito ao passado sões no Parlamento e na sociedade berlinense. Razões polí- se concretiza na releitura e aprendizado contínuo e, às vezes, ticas, estéticas e econômicas foram alguns dos argumentos le- incômodo de seus erros históricos, e a conscientização da nação alemã não permite a negação deste passado. Ao contrário, vantados contra a preservação do legado da DDR. No outono de 1989, foi em Alexanderplatz que milhares ela avalia constantemente o significado de suas empreitadas de berlinenses (do bloco oriental) levantaram a bandeira pela catastróficas e destrutivas, tirando lições de seu passado de democracia, pouco antes da derrubada do Muro. Toda área autoritarismo, intolerâncias, violência e brutalismo, aceitando será em breve radicalmente transformada. O Parlamento de as mudanças necessárias para evitar desastres já vividos e maBerlim aprovou, no ano passado, o projeto vencedor para a re- terializar as contradições aparentemente irreconciliáveis na qualificação de Alexanderplatz, do arquiteto Hanns Kollhoff. forma de sua cidade-capital, a Berlim democrática pós-nazista Torres de 150 metros, construídas sobre os escombros da Alex, e pós-Muro, unida, livre e tolerante. • deverão despontar no skyline de Berlim em 2013. Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle é arquiteta, PhD em História Outra nevrálgica área de Berlim, Potsdamerplatz, que na Urbana e professora visitante de pós-graduação da UFPE. geografia do nazismo teve um papel relevante, pois o Centro de

A Embaixada da Áustria, projeto de Hans Holleinz

A intervenção de Calatrava, na ponte do século 19 sobre o Rio Spree


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82 ARQUITETURA

Colóquio com Bernard Salignon refletirá, à luz de Freud, espaço da Arquitetura em sua dimensão subjetiva Lúcia Leitão Universal, de Emygdio de Barros, 1948 (óleo sobre tela, 141x137cm): espaço simbólico

O desejo de espacejar

“O

caráter essencial da Arquitetura – o que a faz distinguirse das outras artes – está no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem. A Arquitetura não provém de um conjunto de larguras e alturas dos elementos constitutivos que contêm o espaço, mas precisamente do espaço interior em que os homens andam e vivem [...]. As quatro fachadas de uma casa, de uma igreja ou de um palácio, por mais belas que sejam, constituem apenas a caixa [...] pode ser artisticamente trabalhada, ousadamente esculpida, esburacada com gosto, pode constituir uma obra-prima, mas continua a ser uma caixa.” Com esta assertiva feliz, registrada no clássico Saber Ver a Arquitetura, Bruno Zevi, o prestigiado mestre italiano da segunda metade do século passado, revolucionou a teoria arquitetônica ao oferecer uma outra compreensão do que é a Arquitetura. A partir de então, a arte de edificar passa a ser definida pelo espaço que o ser humano vivencia e não mais apenas pela forma, função ou volume que, objetivamente, a caracteriza. A idéia revolucionária reside precisamente no fato de que, ao definir Arquitetura como o “espaço

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interior em que os homens andam e vivem”, Zevi apontou para a dimensão subjetiva da Arquitetura, isto é, para aquilo que, no fazer arquitetônico, transcende, em muito, a materialidade da pedra e da cal ou a simples função de abrigo às múltiplas atividades humanas. Sob esse ponto de vista, a Arquitetura está intimamente relacionada à idéia de espaço que se experiencia – donde sua subjetividade –, não apenas no que se refere à sua importância simbólica coletivamente partilhada, mas, sobretudo, na variedade de sensações que a apropriação pessoal desse espaço proporciona. É caminhando nessa direção que, à luz da Filosofia, Evaldo Coutinho fala da “pessoa arquitetural”, denominação com a qual designa a figura humana que, pela “freqüentação”– mais uma expressão do autor citado –, permite que uma proposição arquitetônica se realize Arquitetura. Nesse sentido, diz ele: “Certamente redunda impossível estabelecer [...] onde termina o trabalho do arquiteto e onde se inicia o do habitante; este a impor todos os dias as marcas da sua presença, o recinto modificando-se com a versatilidade das atitudes e gestos, já em conjuntura que é privativa do


ARQUITETURA 83 morador em sua existência arquitetural” (O Espaço da Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1977). Mas a “revolução” produzida por Zevi, como toda idéia revolucionária, aliás, está longe de ser algo tranqüilo e resolvido, como poderia parecer à primeira vista. Assim, se por um lado lança luz sobre uma atividade que desafia e encanta a cultura humana há pelo menos cinco mil anos – a definição de Zevi permitiu entender melhor o que distingue a Arquitetura de outras artes que também se valem das três dimensões, do volume ou da perspectiva, a exemplo da escultura e da pintura – por outro, trouxe um complicador significativo ao pensamento arquitetônico, na medida em que aponta para o

espaço que acolhe o humano em sua experiência de existir. É o que indicam estudos e pesquisas desenvolvidos por teóricos contemporâneos que se dedicam ao tema, tendo como referência o magistral corpo teórico que Sigmund Freud legou à Cultura do Ocidente no século que acaba de findar; em especial, o trabalho que vem sendo realizado pelo professor Salignon, acima mencionado, da Escola de Arquitetura de Languedoc-Roussillon e da Universidade Paul Valéry, Montpellier, França, ora em visita ao Recife, onde apresentará e discutirá suas idéias. Assim, ao saber “ver a Arquitetura”, desafio proposto por Zevi em meados do século passado, asso-

Fotos: Reprodução/Museu de Imagens do Inconsciente

Fernando Diniz, Sem Título, 1968 (óleo sobre tela, 59x43cm): caixa

Emygdio de Barros, Sem Título, 1968 (óleo sobre cartolina, 33x48cm): existência arquitetural

ser humano como elemento próprio do espaço que a Arquitetura produz, e não mais como simples usuário desse espaço. É nesse ponto que o referencial teórico da Psicanálise oferece uma contribuição importante para entender como e por que o espaço que se concretiza em pedra e cal transcende a materialidade que lhe é própria e “se torna o lugar onde o sujeito vai procurar nostalgicamente seus objetos perdidos, não racionais, menos ainda geométricos” (Bernard Salignon, La Cité n’Appartient à Personne. Saint Maximin: Théétète Éditions, 1997). À luz da escrita freudiana, é possível melhor compreender como e por que o espaço da Arquitetura, substitutivo e, portanto, simbólico, em sua dimensão subjetiva, se oferece como um espaço que, muito mais do que abrigar o físico é também um

cia-se, às portas do século 21, o desafio maior de “saber compreender a Arquitetura” e desse modo, aproximá-la, quer em sua expressão cultural quer em seu fazer cotidiano, das necessidades humanas, agora em sua expressão marcadamente subjetiva. • Lúcia Leitão é mestra em Desenvolvimento Urbano pela UFPE, doutoranda em Ciências do Ambiente pela Universidade do Porto e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE. Serviço: Colóquio com Bernard Salignon - Interfaces Conceituais entre a Arquitetura e a Psicanálise, de 17 a 19 de novembro de 2003, na Aliança Francesa e Fundação Joaquim Nabuco. Informações: www.ufpe.br/coloquio ou (81) 3453.1406 Continente novembro 2003


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86 ARTES

CÊNICAS

Foto: Marcelo Lyra/Olho Nu

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Ana Cláudia Wanguestel (a segunda Isaura) e Pedro Henrique (no papel de Fernando)

Fernando e Isaura vão ao palco Teatro Armazém encena romance de Suassuna adaptado para o palco Mariana Oliveira

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Foto: Célio Pontes

É

a voz inconfundível, de sotaque carregado, de Ariano Suassuna que abre o mais novo espetáculo do Teatro Armazém. A peça Fernando e Isaura”, que estreou no dia 25 de outubro, é uma adaptação do primeiro romance de Ariano Suassuna, datado de 1956. A obra é baseada em um dos grandes mitos do amor, a lenda de Tristão e Isolda. Instigado pelo amigo Francisco Brennand, o escritor deu uma nova roupagem, mais nordestina e mais atual, à lenda irlandesa, base do romance de Joseph Bédie. No lugar da Irlanda, está Alagoas, suas praias e o rio São Francisco. No conto original, difundido pela Europa a partir de 1130, o rei Marco resolve casar-se e envia seu sobrinho, Tristão, para buscar a noiva, Isolda. Ela segue viagem junto a Tristão para encontrar o futuro marido, porém, bebe, por engano, com seu acompanhante, a porção mágica destinada a despertar o amor entre um casal. Os dois se apaixonam loucamente e têm que lutar contra esse amor proibido. Com Fernando e Isaura, acontece algo parecido. Ela é prometida ao tio de Fernando, Marcos, mas se apaixona pelo sobrinho, sem saber quem ele é. A partir daí se desenvolve uma história de paixão e sofrimento. A idéia de adaptar o texto de Ariano Suassuna surgiu, em 1999, quando o diretor da peça Carlos Carvalho e a produtora e atriz Paula de Renor – que faz o papel de Isaura – decidiram montar uma trilogia sobre três grandes romances universais. A idéia começou a sair do papel, em 2000, com a montagem de Abelardo e Heloísa. Fernando e Isaura é a segunda peça da trilogia. A próxima ainda não foi definida. Segundo o diretor, o fato de a história de Tristão e Isolda ser mundialmente famosa, e inédita no teatro, chamou a atenção.

Alexandre Sampaio em cena de A Caravana da Ilusão


adaptado para o palco

ARTES CÊNICAS 87

Foto: Hans Von Manteuffel

Teatro Armazém – A encenação de Fernando e Isaura faz parte do projeto Viver Teatro, do Teatro Armazém, que teve início

em setembro, com a montagem Zambo, do Grupo Experimental de Dança. Essa é a segunda edição do projeto que, no ano passado, se chamou Armazém Cultural e foi realizado com o apoio da TIM. As seis montagens de teatro e dança, que passarão pela arena do teatro este ano, marcam as comemorações dos três anos de fundação do espaço, criado como um local alternativo de formação e apresentação de profissionais. Uma das criadoras do espaço, Paula de Renor, conta que, em 2000, sua produtora estava com o espetáculo Abelardo e Heloísa, no Paço da Alfândega. Com o início da reforma do local, a peça teria que ser transferida para algum lugar e eles terminaram conseguindo arrendar o Armazém 14, criando um espaço alternativo para o teatro pernambucano. Hoje, o antigo depósito do porto do Recife já está inserido na agenda cultural da cidade. No ano passado, o Armazém Cultural iniciou em maio e realizou 185 apresentações. Este ano, estão previstas 55. Segundo a produtora, as mudanças no sistema de financiamento e incentivo à cultura terminaram atrasando o calendário e diminuindo a verba. Foi preciso abandonar algumas idéias para conseguir manter a qualidade e a estrutura montada em 2002. A falta de climatização, o tratamento acústico e o incômodo das arquibancadas também dificultam o trabalho. “Nós conseguimos superar estes inconvenientes, justamente dando qualidade à nossa programação e não prostituindo o local, cedendo para qualquer tipo de evento, só para ajudar na manutenção. O espaço tem uma filosofia estritamente cultural, de difusão das artes cênicas na cidade”, afirma Paula de Renor. • Mariana Oliveira é Jornalista.

A montagem

Lúmen do Grupo Experimental de Dança

Fernando e Isaura Texto: Ariano Suassuna Direção e adaptação: Carlos Carvalho Sábados, às 21h, e domingos, às 20h, até 21 de dezembro A Caravana da Ilusão Texto: Alcione Araújo Direção: Marcondes Lima Todas as quartas-feiras, às 20h, até 03 de dezembro Lúmen Direção e coreografia: Mônica Lira Quintas e sextas-feiras, às 21h, até 14 de novembro

Programação

Quando a adaptação ficou pronta, seguiu imediatamente para as mãos de Suassuna. Ele leu e aprovou. Só deu algumas sugestões, que foram acatadas. Os diálogos e a narrativa originais foram mantidos, inclusive o prólogo do romance, gravado por ele, que abre o espetáculo. A montagem homenageia o autor, inserindo personagens de outras peças suas, além de alguns dos seus poemas. De acordo com Carlos Carvalho, Ariano costuma dizer que a mente humana é dividida entre o hemisfério rei, lado nobre, que pode ser tirano, e o hemisfério palhaço, o do equilíbrio. Tomando como base essa declaração, toda a concepção dos personagens da peça transita entre o trágico e o cômico. “Dividimos as cenas entre comédia e tragédia. Com isso, alcançamos uma maneira própria de teatralizar a história de amor de Fernando e Isaura. As cenas de comédia ficaram nas passagens criadas na adaptação e a tragédia permaneceu original, como no romance”, explica o diretor. O palco é vazio e os lugares onde os fatos se desenrolam estão em grandes chapéus nas cabeças dos atores, referência a um folguedo dramático popular em Alagoas, conhecido como Guerreiro. “Desta forma, contamos a história num não-lugar, que surge e desaparece, na medida em que avança a história de amor”, descreve o diretor. A música será executada ao vivo pelo grupo instrumental Sa Grama, responsável também pela trilha sonora do filme O Auto da Compadecida. As composições dão um suporte sonoro às cenas, marcando ritmos, passos e gestos. “Uma música orgânica”, define.

A Bicicleta dos Condenados Texto: Fernando Arrabal Direção e adaptação: Carlos Carvalho Quintas e sextas-feiras, às 21h, de 20 de novembro a 19 de dezembro Continente novembro 2003


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88 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Viver (no Brasil) é perigoso – Brasil turístico III

Q

Fotomontagem: Zenival

uando chegamos da viagem ao Maranhão, fomos assaltados à porta de casa. Três bandidos armados renderam a família aos gritos de: Polícia! Polícia! Durante alguns minutos vivemos a perspectiva de ser mortos ou violentados, no meio de uma rua. Pessoas assistiam ao teatro que se repete nas avenidas do Recife, com desfechos trágicos, na maioria das vezes: sete pessoas imobilizadas por três rapazes que não tinham o pudor de sequer ocultar os rostos. Como se não bastasse o que nos roubavam – carro, bolsas, dinheiro, documentos, cartões –, ainda queriam levar dois reféns, para fins que preferimos nem pensar, por angústia e terror. Os vizinhos olhavam das janelas ou dos carros, dando voltas em torno da cena perversa. Insensíveis ao horror banalizado nos noticiários da televisão, nos cinemas, nos jornais, no cotidiano da cidade.

A crescente violência no país, além de refletir o que acontece no resto do mundo, tem suas causas enraizadas no colonialismo e nos equívocos do nosso desenvolvimento


ENTREMEZ 89

A crescente violência no país, além de refletir o que acontece no resto do mundo, tem suas causas enraizadas no colonialismo e nos equívocos do nosso desenvolvimento. Lendo as crônicas dos viajantes estrangeiros, que percorreram litoral e sertão, descobrimos as inquietações com o nosso futuro. Depois de sua visita ao Brasil, Eça de Queiroz escreveu uma longa carta a um amigo de São Paulo, Eduardo Prado, comunicando “uma impressão de homem que passou e olhou”. Poucos conhecem essa carta, escrita em 1888, quase quatro séculos depois de uma outra mais famosa, a de Pero Vaz de Caminha, que também narra as impressões da terra e das gentes de cá. Boa parte das idéias contidas no Manifesto Regionalista está esboçada na correspondência de Eça, embora eu não saiba afirmar se Gilberto Freyre conhecia o seu conteúdo. Relendo esse documento, constatamos que o Brasil não encontrou um caminho próprio de ser nação, substituindo apenas o modelo em que se espelha: antes Europa, agora Estados Unidos. “O que eu quereria, (e que constituiria uma força útil no Universo) era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil nacional, brasileiro, e não esse Brasil que eu vi, feito com velhos pedaços da Europa...” – diz Eça de Queiroz, sugerindo mais adiante: “Só quereria que ele vivesse de uma vida simples, forte, original, como viveu a outra metade da América, a América do Norte, antes do Industrialismo, do Mercantilismo, do Capitalismo, do Dolarismo e todos esses ismos sociais que hoje a minam, a tornam tão tumultuosa e rude...” Mas a América a que se refere Eça, a dos poetas moralistas, dos médicos ambulantes, dos Governadores e Presidentes da República de origem humilde, das mulheres domésticas, dos lavradores inteligentes, virtuosos e sábios, a América que espantava o mundo pela sua originalidade forte e fecunda deixou de existir, e tocou-nos copiar um modelo que nos empobrece, humilha e corrompe. Nossa vocação para um país rural não foi realizada e desde a década de quarenta acentuou-se a migração para as cidades grandes, constituindo-se monstros impossíveis de administrar, como São Paulo, com seus catorze milhões de habitantes. As pequenas propriedades não sobrevivem, a agricultura familiar esfacelou-se e a mecanizada, que nos coloca entre os maiores produtores de grãos do mundo, pres-

cinde do homem, tirando-o da terra e mandando-o para as periferias urbanas. Mudaram as pessoas e as paisagens desse Brasil, olhado pelos viajantes. Poucos foram tão otimistas sobre o nosso futuro como o inglês Henry Koster, que a partir de 1810 escolheu viver em Pernambuco. Koster não apenas “passou e olhou” o Brasil, como Eça de Queiroz. Talvez por ter amado a terra e a gente, escreveu com tanta fé: “Esse rebento do nosso continente europeu crescerá e a árvore que produzir será mais poderosa que o ramo de onde nasceu. Mesmo que a razão para sua maturidade esteja muito distante, a rapidez ou lentidão do seu crescimento dependerá dos cuidados ou da indiferente negligência de seus governos. De qualquer forma que esses governos procederem, sua extensão, fertilidade e outras numerosas vantagens possuídas, darão, no curso do tempo, o lugar a que ele tem direito de reclamar entre as grandes nações do Mundo”. Tanto Eça de Queiroz como Henry Koster insistem na originalidade do nosso destino. Mas carecemos do olhar estrangeiro sobre nós, da aprovação do que fazemos, se estamos, como os índios guaranis das reduções, macaqueando direitinho o catecismo jesuíta. Admiramos as alegorias pintadas por Rugendas, Eckhout e Poust, muitas delas artificialmente posadas. Temos vocação para as caricaturas, os simulacros. Com que provinciano orgulho celebramos a colonização holandesa em Pernambuco, e o curtíssimo tempo que os franceses passaram no Maranhão! Em que isto nos honra e engrandece? Será que não temos mais de que nos ocupar? Não estou propondo um novo manifesto regionalista nem um nacionalismo equivocado. Reflito sobre o tempo que perdemos copiando modelos exauridos. Até o do consumo e o da violência, não interessando se o preço de ser dono de bens descartáveis é a própria vida. Levamos ao extremo o nosso aprendizado do que não presta. Quando meninos, imitávamos os bandidos dos faroestes americanos. Agora, copiamos o cinema de enlatados, com uma marca bem brasileira. Ao invés de gritarem “Assalto! Levantem as mãos!”, nossos confusos bandidos gritam “Polícia! Polícia!” • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.

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90 TRADIÇÕES

Livro revela novas facetas do talento da poetisa em estudos folclóricos e seus registros iconográficos Marco Polo

desenhista


TRADIÇÕES 91 »

C

A trunfa, aquarela, nanquim e grafite sobre papel, 1927

ecília Meireles é considerada, com justiça, a melhor poetisa brasileira. O que poucos sabem é que também foi educadora, jornalista, pesquisadora de folclore e desenhista talentosa. Estes dois últimos tópicos são tema do livro Batuque, Samba e Macumba – Estudos de Gesto e de Ritmo 1926-1934, que traz o resultado de um trabalho que culminou em exposições no Rio de Janeiro e em Lisboa, na época. A edição vale a pena, em primeiro lugar, pela beleza dos desenhos: expressivos, econômicos, elegantes. Em seguida, pela postura de Cecília em relação à cultura popular, considerando-se não uma especialista na matéria, mas pessoa que busca no folclore um caminho de entendimento dos nossos problemas a partir da compreensão de nossas origens, e, portanto, de nossa identidade. Finalmente, pela angulação original que dá ao assunto, estudando, além de ritmos e indumentárias, o gestual do povo. Segundo a diretora do Instituto Nacional do Folclore, Lélia Gontijo Soares, Cecília atinou para a importância cultural dos gestos, retomada hoje com particular ênfase pelas ciências sociais.

O meu amor me abandonou sem ter razão..., aquarela, nanquim e grafite sobre papel, 1933


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92 TRADIÇÕES

Estudo de gesto, aquarela sobre papel Fabriano

Dentro do Carnaval carioca, licencioso e grosseiro, o dos negros guarda um aspecto único de respeito, elegância e distinção artística espantosa. O que eles chamam “orgia” é, na verdade, uma longa passeata com cantorias e luzes, estandartes e feras de papelão

Estudo de gesto, aquarela, nanquim e grafite sobre papel, sem data

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Nigra sum sed formosa..., aquarela, nanquim e grafite sobre papel, 1933

Broco Frô do Má, nanquim e grafite sobre papel, 1934

No texto que Cecília escreve, como “legenda” dos desenhos, vale ressaltar a visão imparcial com relação ao negro. Embora assinale seus aspectos negativos, ela o vê “sob a luz real de suas qualidades”. Bom exemplo disso é o trecho, em que, com fina visão, assinala a distinção entre o comportamento de negros e brancos durante o Carnaval: “Dentro do Carnaval carioca, inegavelmente licencioso e grosseiro, como em toda a parte, na expansão das pessoas habitualmente civilizadas – o Carnaval dos negros guarda um aspecto único de respeito, elegância e, digamos mesmo, distinção artística espantosa. O que eles chamam ‘orgia’, palavra tão freqüente nas canções de Carnaval dos últimos tempos, é a longa passeata com cantorias e luzes, estandartes e feras de papelão (...)”. Na detalhada descrição dos trajes das doceiras, vestidas de “baianas”, Cecília lamenta: “Falta a essa baiana o que foi o grande luxo de antigamente: o ‘berreguendengue’, uma argola como as de chaves – para trazer à cintura, na qual estão enfiados inúmeros talismãs: figa, romã, cruz, signode-salomão, âncora, peixe, carneiro, coração, pinha, galo, pombo – tudo isso em prata lavrada, e com virtudes especiais, que encerram toda uma sabedoria mágica, infelizmente quase perdida”.

Descrevendo danças, Cecília assinala, com graça, que “do batuque derivou-se, no Brasil, a escola de ‘capoeiragem’, que vem a ser uma espécie de ‘jiu-jitsu’, de efeitos muito mais extraordinários, na opinião dos entendidos. Por ser uma dança de conseqüências perigosas – podendo originar conflitos em virtudes das quedas violentíssimas e até mortais – está o batuque, desde muito, proibido pela polícia. Mas, no Carnaval, no reduto da Praça Onze, dançam-no interminavelmente, e como a índole do negro do Brasil é boa e conciliadora, os golpes que usam são apenas esboçados, dando-se mesmo o caso de o bailarino equilibrar, com seus braços, o parceiro, no mesmo instante em que o desequilibra com o pé. Fica assim frustrada a queda, e o brinquedo continua. Porque a isso se chama, na linguagem deles, ‘o brinquedo’”. Essa delicadeza de visão e precisão de linguagem de Cecília Meireles está também nos seus desenhos, que revelam não apenas os aspectos mais evidentes e exteriores da cultura negra no início do século passado, mas também, sutilmente, uma parcela de sua alma ancestral. • Batuque, Samba e Macumba - Estudos de Gesto e de Ritmo 1926 - 1934, Cecília Meireles, Editora Martins Fontes, 110 páginas, R$ 44,50.

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94 TRADIÇÕES

140 anos de Maracatu Foto: Acervo do

Maracatu

O

Maracatu, como conhecemos nos nossos dias, é oriundo das instituições dos reis negros. Ainda em Portugal, os africanos tiveram sua festa profana de comemoração do rosário. Há indicações de que, aí, já se coroavam reis negros. Há controvérsia sobre a origem da palavra Maracatu. Mário de Andrade atribui origem ameríndia à palavra, pois diz que o vocábulo se assemelha com os fonemas guaranis: “Maracá é o instrumento ameríndio, de percussão, conhecidíssimo. Catu, em tupi, quer dizer bom, bonito.” Já o Maestro Guerra-Peixe, no livro “Maracatus do Recife”, afirma que “maracatu, disseram-nos, é palavra africana entendida na acepção de batuque. E maracatucá (r) exprime a ação de praticar o maracatu, tal como batucar enuncia o ato de fazer batuque. A antropóloga Katarina Real, em seu livro Eudes, o Rei do Maracatu, nos apresenta a versão de ‘Seu” Veludinho, famoso batuqueiro do Maracatu Leão Coroado: “Finalizou informando-me que ‘maracatu’ foi o nome dado ao povo das ‘nações’ pelos ‘homens grandes’ e que o nome verdadeiro de tais grupos era ‘Afoxé de África’”. O Maracatu Leão Coroado é um dos grupos conhecidos como maracatu de baque virado, típicos do carnaval do Recife e sua região metropolitana, que são considerados como a mani-

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Estandarte do Leão Coroado, fundado em 8 de dezembro de 1863

O Maracatu Nação Leão Coroado, uma das instituições mais antigas de Pernambuco, comemora aniversário, como um patrimônio cultural vivo que se reinventa Daniela Bastos

festação lúdica mais aproximada das raízes africanas no folclore brasileiro. São também conhecidos como maracatus de nação africana. Foi fundado em 08 de dezembro de 1863, por Manoel Benedito da Silva, Lauriano Manoel dos Santos e Manoel Machado de Souza. Seu mais famoso dirigente foi o lendário Mestre Luís de França. Nascido na Rua da Guia, no dia 1o. de agosto de 1901, Luís de França foi estivador nas Docas, trabalhou carregando açúcar em um armazém no Brum, foi gazeteiro. Ele era mais que Babalorixá, ele era um Oluô, que na seita nagô significa sacerdote máximo. Aos 95 anos, com a saúde debilitada por causa da idade avançada e um temperamento arisco, difícil, o Mestre Luiz de França cai no isolamento. Vive sozinho numa modesta casa alugada, no bairro da Bomba do Hemetério, da qual a metade do espaço útil era ocupado pelo material do Maracatu. O Leão Coroado parecia estar com os dias contados, junto com aquele homem que vivera os últimos 60 anos de sua vida com devoção total ao Maracatu. No carnaval de 1996, o Leão desfilou com apenas 10 pessoas, uma decadência para quem fora majestoso, imponente, ser reduzido a apenas um apêndice do cortejo do Maracatu Elefante. Em entrevista publicada pelo Jornal do Commercio, em 14 de janeiro de 1996, se queixava: “Foi todo mundo embora para outros maracatus e eu acabei só na minha tristeza”. Ainda sem um sucessor interessado em dar continuidade ao


Desfile na avenida Dantas Barreto, no Recife, em 1988

brinquedo, Seu Luís, humilhado e desgostoso, tem vontade de atear fogo em tudo, ou doá-llo ao Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco, como aconteceu com o Maracatu Elefante, quando sua rainha, a famosa Dona Santa, faleceu. Preocupada com o destino de um dos maiores símbolos culturais de Pernambuco, a Comissão Nacional do Folclore, representada pelo antropólogo e folclorista Roberto Benjamim e José Fernando, seu assessor, decidem buscar um sucessor com as qualidades necessárias para que pudesse assumir a responsabilidade de guiar o Leão Coroado em sua missão. Vários candidatos à sucessão foram apresentados a Luís de França. Ele reprovava todos, apesar de estar ciente da necessidade de dar continuidade a uma tradição da qual ele foi um dos principais agentes. No ano de 1996, Seu Luís é apresentado a Afonso Aguiar Filho, um babalorixá do bairro de Águas Compridas, município de Olinda – PE. “Seu” Afonso é também um nagô, da mesma seita que “Seu” Luís de França. A simpatia entre os dois é imediata e, no curto período de tempo em que os dois conviveram, formou-sse uma grande amizade. Eles varavam madrugadas conversando sobre a seita e sobre maracatu. Um pacto entre os dois fez de Afonso Aguiar Filho o herdeiro da tradição secular do maracatu. Luís de França, somente aos 94 anos, recebeu da Prefeitura da Cidade do Recife, na época do prefeito Jarbas Vasconcelos, uma pensão vitalícia simbólica de R$ 200,00. Ele morreu sem realizar o sonho de construir uma sede própria para o grupo. Completando 140 anos ininterruptos de contribuições para a cultura, para a história e para o carnaval do Estado de Pernambuco, continua sem uma sede. Os ensaios são realizados no meio da rua, em frente à casa do Mestre Afonso, em Águas Compridas, na periferia de Olinda. Aos poucos, o Leão Coroado foi se reerguendo e voltou a ser uma grande nação. No ano de 2001, realizou sua primeira turnê nacional, passando pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, e em 2002, realizou sua primeira turnê européia, apresentando-sse na Holanda, França, Espanha, Itália, Bélgica e Suíça. Para comemorar os 140 anos do Leão Coroado, neste mês de novembro, uma série de eventos, como exposição de fotos e do acervo do maracatu, mostra de vídeos, palestras, oficinas e apresentação especial no Pátio de São Pedro, serão realizados com apoio de entidades como a Prefeitura do Recife, Museu do Homem do Nordeste, Universidade Federal de Pernambuco e Comissão Nacional do Folclore. Tradição e modernidade: estas são as características fundamentais do Maracatu Leão Coroado, que possui a incrível capacidade de se reinventar e se adaptar, sobrevivendo soberano através dos tempos. Um bom exemplo disso é o fato do Leão Coroado ser o primeiro maracatu a disponibilizar um site na internet: www.leaocoroado.org.br. • .

Rainha do Maracatu: notícias em Portugal Dama do Paço, com a Calunga

Daniela Bastos é aluna da especialização em Etnomusicologia e do mestrado em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. O lendário Mestre Luís de França

Fotos: Humberto Araújo


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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

O processo de Médici Quem imaginaria um presidente empossado que já fora denunciado em infração grave, prevista no código da própria Constituição?

O

s subterfúgios do ciclo do poder militar brasileiro armazenaram firulas e segredos intrigantes, mas não tanto. Pois, quando da abertura e anistia ampla geral e irrestrita, detonada pela canseira dos adeptos da caserna, muita coisa veio à tona, mister algumas requererem condenações, senão deplorarmos a exploração atual de fatos e feridas reabertas em função do extremismo descabido e infantil dos ditos ideólogos de ponta de calçada, tanto das semimortas esquerda e direita. Não se deve rever a história com partidarismo ou passionalmente relembrando queixas e buchas através dos tempos. A curiosidade por episódios nunca revelados tende, algumas vezes, às pessoas realçarem os que interessam beneficentemente e a minimizarem outros que tocam a vontade ou os sentimentos. É preciso que sejam relatados sem a sumária absolvição do sabe-tudo nem com a fobia política acusatória, tipo consumatum est, tão em moda em países carentes de educação para seus povos, como no nosso. A imparcialidade credita o historiador. No poder civil de hoje, diagnosticado de democracia, por exemplo, fantasmas da conduta de diversos homens tidos como sérios na nossa República afloram, quando remexidos por denúncias anônimas ou pelo desvendamento da historicidade política, através de pesquisadores enfurnados nas teias enviesadas dos arquivos públicos, das Fundações, das organizações jornalísticas e Diários Oficiais. Letras miúdas e envelhecidas por lancinantes fungos predadores são lupadas com paciência. Notícias e atos pinçados com olhos de ourives nos levam a passados escondidos. Quem imaginaria, durante o longo regime militar instalado no Brasil em 1964, um presidente empossado, general de quatro estrelas, que já fora denunciado, no início de sua oficialidade, em grave infração prevista no código da própria instituição? Pois bem, o general Emílio Garrastazu Médici, quando em remoto 1935 – ano da Intentona Comunista –, jovem capitão, transgrediu as normas, muito bem acompanhado pelo então major Ney dos Santos Braga, depois ministro de Estado: “Vistos e relatados estes autos, deles se verifica que o Dr. Continente novembro 2003

Promotor da 2ª Auditoria da 3ª Região Militar ofereceu denúncia contra o 1º Tenente João Francisco Duarte; o Major Ney dos Santos Braga; Capitães Newton O'Relly de Souza, Emílio Garrastazu Médici, Hugo Garrastazu; e Tenente Nilton Barbosa, atribuindo ao primeiro o crime de peculato, definido no artigo 166 do Código Penal para a Armada, extensivo ao Exército, e aos outros o de falta de exação no cumprimento do dever, previsto no art. 1º do Decreto nº 4.988, de 8 de janeiro de 1936, combinado com o art. 170 do dito código, sendo a denúncia recebida, aguardada a apresentação dos denunciados para o início da formação da culpa”. O processo foi instaurado e guardado nas gavetas coniventes por duradouros 10 anos, reinaugurando, sem tormento, o baú do esquecimento proposital até a prescrição. Em 16 de maio de 1945, reunido o Supremo Tribunal Militar: General Silva Júnior, Presidente; Dr. Cardoso de Castro, Relator; ministros, J. Bulcão Vianna, Manoel Rabello, Azevedo Milanez, Heitor Varady, Pacheco de Oliveira e Edgar Facó, acordam conceder a ordem de habeas-corpus para o fim de não serem os pacientes requerentes, Majores Emílio Garrastazu Médici (promovido de posto ainda subjudice) e Ney dos Santos Braga, constrangidos na sua liberdade em conseqüência do dito processo, atendendo a extinção da punibilidade pela prescrição – os fatos narrados na denúncia datam de 1935. A prescrição da ação penal já se havia verificado ao tempo do oferecimento da denúncia, pois o seu prazo é de dois anos nos crimes da falta de exação no cumprimento do dever – Código Penal Militar de 1891 (Ac. 15/1/36 – H.C. 7.599 – Jurisprudência Diário da Justiça XVI-246 – Ac. 4/5/36. Idem XVI-255 – Ac. 15/5/36. Idem XVI-279 e outros). O citado habeas-corpus requerido ganhou o nº 21.484, e a decisão foi publicada no Diário da Justiça (apenso ao nº 203), no sábado 8 de setembro de 1945. O que levou o então capitão Médici a ferir a lei, os leitores vão saber futuramente através do livro Malvada Política, devagar e cuidadosamente escrito por mim, relatando, minuciosamente, através de pesquisas difíceis e exaustivas, as muitas verdades manipuladas na mais apaixonante das artes. • Rivaldo Paiva é escritor.




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