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Os dogmas do terror A atração dos intelectuais por sistemas explicativos completos, livres das armadilhas da ironia histórica e da volubilidade humana, torna-se uma obsessão na mente de terroristas Daniel Piza
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terror e a teoria sempre andaram juntos. Talvez, porque até o mais frio dos terroristas sabe que está fazendo o mal – ainda que para supostamente atingir o bem –, sente a necessidade de se armar não só de bombas, mas também de dogmas. Não é preciso fazer esforço para lembrar o caso de Unabomber, ou Theodore Kaczynski, um matemático, formado em Harvard e Michigan, que construiu todo um aparato ideológico para justificar seus atentados – basicamente, o de que a sociedade tecnológica oprime a expressão dos instintos individuais, deixando como única opção de resistência o ato revolucionário. O principal credo político de Unabomber era o de que reformas são sempre insuficientes: apenas as revoluções valeriam a pena. A atração dos intelectuais por sistemas explicativos completos, livres das armadilhas da ironia histórica e da volubilidade humana, se torna uma obsessão na mente de terroristas, uma obsessão tão mais ilimitada quanto mais ele se considerar vítima da sociedade, como uma criança que não aceita as decepções e decide salvar o mundo. Examine a mente de qualquer terrorista e você verá alguém com profundas dificuldades de se relacionar socialmente e amorosamente e que, por isso, culpa o universo e não a si mesmo. Não que em cada intelectual durma um Unabomber, embora gente como Gore Vidal elogie um Timothy McVeigh, mas certamente em cada Unabomber dorme um intelectual. Alguns dos melhores ficcionistas enxergaram o fato. Joseph Conrad – de quem Kaczynski, de origem polonesa, parecia perfeitamente um personagem – mostrou em O Agente Secreto, por exemplo, que o grau de rejeição que o terrorista sente pelo mundo moderno, o qual constantemente provoca nossos instintos e testa nossas capacidades, é diretamente proporcional à sua dificuldade de se relacionar com esse mundo. Ou seja, o terrorista pode até mesmo enxergar com clareza muitos dos problemas da realidade atual que a maioria das pessoas não enxerga; e não é o sujeito frio, “inumano”, que
Foto: Corbis
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Foto: Mohammed Saber/Ag. Lusa/O Globo
O terrorismo se vale do inesperado e do incontrolável e usa o argumento de que não há saídas
Não que em cada intelectual durma um Unabomber, embora gente como Gore Vidal elogie um Timothy McVeigh, mas certamente em cada Unabomber dorme um intelectual
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mata pessoas como se matasse mosquitos, como nos vilões de trejeitos sofisticados que Hollywood vem desfilando desde sempre (pense em Silêncio dos Inocentes, em que Anthony Hopkins é um refinado estudioso de Dante em Veneza), e sim um homem atormentado, incapaz de mascarar seu deslocamento social. “O terrorismo é a fúria dos literatos em último estágio”, escreveu o grande intelectual Burckhardt. Mas a esquizofrenia paranóide dos terroristas toma uma forma conhecida: a sensação de um outro tomando conta de si, o crescente, mas não linear, aprisionamento da consciência por uma idealização – por uma voz que seduz por sua promessa de auto-suficiência, como se o indivíduo pudesse se tornar bastante independente dos outros. Antes de Conrad, Dostoievski já descrevera isso em Os Possessos; ou melhor, em quase todos os seus livros um personagem tenta ir ao extremo da indiferença, a um ponto em que a sociedade não o afeta e, se a interação social se fizer necessária, será como instrumento. O narrador de Notas do Subterrâneo, por exemplo, persegue esse desligamento moral-afetivo como um Graal. No entanto, jamais o obtém. Camus também sempre se interessou por personagens que se apaixonam de tal forma pela solidão absoluta que, como em O Estrangeiro, já nem se importam com a morte da mãe. O ideal do exílio, da marginalidade e da invulnerabilidade é o tema central de Camus; novamente, porém, seus personagens jamais conseguem a vitória final da quietude, como em sua peça Os Justos, inspirada na história de um terrorista russo que não via barreiras morais para sua revolução. (Não é à toa, por sinal, que não existem terroristas mulheres. O vínculo afetivo da mulher com a vida não a deixa se iludir com esquemas salvacionistas, que reduzem seres humanos a peças abstratas.) Não é estranho, por tudo isso, que atentados terroristas como o de 11 de setembro, que derrubou as torres gêmeas do World Trade Center de Nova York, sejam tão tentadores para as
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justificações teóricas, para os exercícios intelectualóides. O “inimigo” é um poço sem fim de combustível para a paranóia: os EUA e sua política externa arrogante, unilateral, bradada com voz de pato por George Bush II. A “finalidade” seria alertar para a necessidade de ampliar a ajuda dos países ricos para os pobres. E as diversas reações – como Bush prometendo, em linguagem de John Wayne, pegar Osama vivo ou morto – pareceram comprovar o “ponto” dos terroristas. Afinal... e aí seguem as “razões”: o apoio americano a Israel faz desigual o conflito entre judeus e palestinos; os EUA só estão interessados em dinheiro (petróleo), como qualquer império a explorar suas colônias; a globalização, representada pelo centro comercial gigante no coração de Manhattan, empobrece os subdesenvolvidos etc., etc. Ou, na frase de Saddam Hussein à época (ainda sem saber que seria o alvo seguinte), “os EUA colheram o que semearam” – o que seria repetido por inúmeros intelectuais, de Susan Sontag a Stockhausen, de Robert Kurz a Oscar Niemeyer. Mas o que se esquece é que os terroristas não fizeram apenas uma espécie de “ato simbólico” para denunciar o neocolonialismo americano (até mesmo porque, como sabiam, só o fizeram ressurgir com mais força) ou o que intelectuais do ocidente chamam de “terror de Estado” (como se o governo americano fosse igualmente uma organização terrorista, e não apenas belicista ou unilateralista). Como é característico dos terroristas, islâmicos ou não, seus sonhos vão um pouco além: o que desagrada a eles é a própria civilização ocidental moderna, liberal, tecnológica e consumista – ela sim o Satã a combater, o Mal a expurgar do mundo, o lixo a exilar da história. Como Unabomber ou McVeigh, o que esses terroristas querem é uma revolução profunda e imediata, não essas intoleráveis discussões e licenciosidades da vida contemporânea, com suas TVs e suas mulheres diabólicas.
O Agente Secreto, de Conrad: rejeição pelo mundo moderno
Foto: Eric Miller/Reuters
Os Possessos, de Dostoievsky: consciência aprisionada
O matemático Theodore Kaczynski, o unabomber: aparato ideológico Continente novembro 2003
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Claro, pode-se acusar Bush de ser tão intolerante e maniqueísta quanto esses terroristas, ou Berlusconi por dizer que “a civilização cristã é superior à islâmica” (um pensamento em bloco, quase tão reducionista quanto o ódio fundamentalista ao Ocidente), mas Bush e Berlusconi não representam totalmente a cultura ocidental moderna, e sim uma vertente reacionária dela. Alguém talvez replique: mas a civilização islâmica também não é representada pela Al-Qaeda ou pelo partido de Saddam, o Baath. Sim, e essa é a questão central: não cair em generalizações grosseiras, em rotulações discriminatórias. Só que não se pode esquecer que boa parte das nações islâmicas, por misturarem Estado e religião e ainda não terem consolidado uma democracia pluralista de verdade, alimentam um caldo de cultura onde o fanatismo não é ingrediente exótico. Nem mesmo os Unabombers nascem fora de um contexto. A discussão mais complicada, e que incomodava particularmente Camus, é sobre os eventuais limites morais que uma guerra pode ou deve ter. Há um consenso de que vidas civis inocentes, em especial crianças e mulheres, devem ser poupadas. Ao mesmo tempo, há a Continente novembro 2003
Nova York, 11 de setembro: justificativa teórica está no “inimigo”
Foto: Hubert Michael Boesl/Ag. Lusa/O Globo
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observação de George Orwell: as guerras ceifam a fina flor da juventude masculina, o que já é o próprio horror. No entanto, enquanto a utopia de um mundo pacífico não deixar de ser isso, uma utopia, e enquanto existirem, sobretudo, crimes contra a humanidade praticados em determinados países, as guerras continuarão – e continuarão matando homens jovens, crianças inocentes etc. Assim, pode-se abrir um campo de justificativa moral para certa dose de violência, especialmente quando se trata de evitar uma violência ainda maior. Mesmo as guerras têm leis, têm limites. Já o terrorismo, que se vale do inesperado e do incontrolável, usa sempre o argumento de que “não há outra saída”. Quer, na verdade, jogar o mundo todo em seu beco moral. Mas há uma diferença entre adotar a violência como última alternativa e como única alternativa. Diferença pequena, mas fundamental. • Daniel Piza é jornalista e escritor. Continente novembro 2003
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Terrorismo, um legado da história Não se justifica qualquer atentado terrorista, venha de onde vier. Mas deve-se situar o debate no seu lugar concreto: a história José Arbex Jr. Foto: Larry Downing/Reuters
Bush visita o antigo campo de concentração de Auschwitz, cuja existência, para Adorno, tornou impossível fazer poesia
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surpreendente que um fato tão simples pareça escapar à imensa maioria daqueles que escrevem sobre o terrorismo: trata-se de uma ação praticada por seres humanos, não por ETs enfurecidos. Por ser ato humano, só pode ser compreendido como um resultado da história. O século 20, em particular, banalizou o terror (isto é, o uso da violência sistemática, com objetivos políticos, contra civis ou alvos militares que não estejam em operação de guerra). Também multiplicou as suas formas. Existem terroristas que agem em nome de Deus (como os grupos extremistas islâmicos); os mercenários (milicianos franceses e norte-americanos que lutam na África); os nacionalistas (como o IRA e do ETA); e, ainda, os ideológicos (como o grupo de Tim McVeigh, responsável pela destruição do prédio de Oaklahoma, em 1995). Existe também o terrorismo de Estado – a prática de eliminar populações e alvos civis (como os Estados Unidos, em Hiroshima e no Vietnã, ou Pol Pot no Camboja), ou a segregação e chacina de minorias (caso do antigo regime de apartheid na África do Sul, e o de Israel contra os palestinos), ou ainda a prática de torturar e assassinar os que pensam diferente (ditaduras latino-americanas, nos anos 60 e 70). Claro, o terror não começou no século passado. Ao contrário, tem uma longa história. Basta lembrar, na era moderna, o regime implantado na França por Robespierre, em 1793. Ou então o assassinato do czar da Rússia Alexandre Segundo, em 1881, pela organização Vontade do Povo. A primeira notícia de um atentado terrorista publicada por um jornal no Brasil data de maio de 1878. O alvo era o imperador Guilherme da Prússia. O estopim da Primeira Guerra foi o assassinato, em 1914, do arquiduque Francisco Ferdinando pelo estudante Gavrilo Prinzip, membro do grupo terrorista sérvio Mão Negra. Até os anos 20, o terrorismo era um fenômeno esporádico. Ele começou a ganhar abrangência e importância com o surgimento dos regimes de Josef Stalin e Adolf Hitler. Já no final dos anos 20, Stalin enviava aos campos de concentração centenas de milhares de opositores, sem contar os milhões de camponeses executados durante a coletivização das terras, entre 1929 e 1932. Na Alemanha dos anos 30, Hitler perseguiu comunistas, judeus, ciganos e eslavos. Até o final da Segunda Guerra, em 1945, seriam assassinados seis milhões. Os dois regimes eram semelhantes, no que se refere ao culto à personalidade do dirigente e aos po-
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Foto: RV/AFP
deres da polícia política (KGB e Gestapo). O totalitarismo deu uma nova dimensão ao terror. Pela primeira vez na história, a máquina do Estado era colocada a serviço de ideologias que propunham a eliminação dos adversários. O terror estendia os seus tentáculos sobre o conjunto da sociedade. Método semelhante seria adotado por Mao Tsétung, após a tomada do poder, na China, em outubro de 1949. O legado do terror foi sintetizado pelo filósofo alemão Theodor Adorno, com a sua terrível sentença: depois de Auschwitz, tornouse impossível fazer poesia. Adorno indagava o sentido da cultura. Auschwitz aconteceu no país de Schiller, Goethe, Marx, Bach, Kant... A tecnologia da morte zombou dos mais elevados ideais da beleza, da verdade e do bem. Não há limites para a capacidade destrutiva do homem. O terrorismo ainda daria um gigantesco salto, com Hiroshima e Nagasáqui, em agosto de 1945. A bomba fez da morte do mundo uma opção política: bastaria um dos dois lados “apertar o botão” para iniciar a guerra nuclear – a última da espécie. A política e o diálogo haviam perdido sua razão de ser. O “equilíbrio do terror” marcou as cinco décadas da Guerra Fria. A “banalização do Mal” denunciada por Hannah Arendt atingia o seu ápice. O ser humano que emergiu desse processo tornou-se mais cínico e “duro”, menos solidário. Nos anos 80, a ideologia neoliberal – “não há sociedade, só indivíduos”, disse Margaret Thatcher – forneceu o quadro mental perfeito para um mundo afetivamente devastado, integrado por seres solitários, atomizados, imersos em suas próprias angústias. Os Estados Unidos (que, aliás, treinaram Osama Bin Laden e armaram Sadam Hussein), particularmente, têm uma grande responsabilidade sobre o clima de terror que emoldura as relações internacionais. A totalidade de sua política externa é baseada sobre a força bruta e o total desprezo pela comunidade das nações. Basta lembrar a recente ruptura de Washington com o Protocolo de Kyoto, em nome dos seus específicos interesses comerciais, ou o abandono da conferência contra o racismo, em Durban. Não por acaso, em abril os Estados Unidos foram excluídos da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Os motivos alegados pela Associação Americana dos Juristas falam por si: “Os Estados Unidos não aderiram à boa parte dos instrumentos internacionais de direitos humanos vigentes. Entre outros, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; os dois protocolos do Pacto de Direitos Civis e Políticos; a Convenção contra o apartheid; a Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa-humanidade; (...) a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados; a Convenção de Ottawa, de 1997, que proíbe as minas anti-pessoais (...). Tampouco votou pela criação de uma Corte Penal Internacional (...). Ao ratificar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, formulou reservas a numerosos artigos, entre eles o artigo 6.5, que proíbe a aplicação da pena capital por delitos cometidos antes dos 18 anos (...). É um dos dois países do mundo (o outro é a Somália), que não ratificou a Convenção dos Direitos da Criança.” A destruição do World Trade Center apenas projetou a sombra do Gulag, de Auschwitz, de Hiroshima e do Vietnam sobre Manhattan. Não se pretende, com essa afirmação – é óbvio! –, justificar aquele ou qualquer outro atentado terrorista, venha de onde vier. Muito ao contrário. Pretende-se, apenas, situar o debate no seu lugar concreto: a história. •
Robespierre, principal ideólogo e executante do Terror, na França de 1793
José Arbex Jr. é jornalista, doutor em história social contemporânea pela USP, professor e autor de Terror e Esperança na Palestina; Guerra Fria: Terror de Estado, Cultura, Política, entre outros títulos. Continente novembro 2003
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O abandono das idéias A civilização ocidental, que desenvolveu uma capacidade de julgar segundo critérios universais, não pode relativizar o terrorismo. Quem afirma é Denis L. Rosenfield, professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, editor da revista Filosofia Política e autor do livro Retratos do Mal
Fábio Lucas Foto: Agliberto Lima/AE
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“Se causas sociais fossem a causa do terrorismo, o Brasil seria um país terrorista!”
entro das “causas” apontadas para o fenômeno do terror, a explicação ideológica, antiliberal, aparece numa perspectiva histórica: o neoliberalismo teria feito surgir uma tal diferença cultural e econômica, que o terrorismo não passaria de uma conseqüência desses desequilíbrios. O que há de errado com a pergunta: “Por que o terrorismo existe em nossa época, e não antes?” Não me parece correto afirmar que o terror seja um fenômeno novo, nem que o terror islâmico, em particular, o seja. Ele remonta há vários séculos, correspondendo a uma vertente dessa religião, que procura, pela violência, impor as suas formas de culto e de comportamento a outros povos e religiões. Não se pode esquecer a vocação expansionista da religião muçulmana, que é uma das que mais crescem no planeta. Basta observarmos a sua expansão na África. No que diz respeito ao grupo Al Quaeda, ele deita raízes no culto Waabita, particularmente ativo na Arábia Saudita. Seus líderes fazem parte da elite dirigente do país, não tendo nada de desvalidos, nem de socialmente desfavorecidos. Trata-se, na verdade, de um grupo milionário. Os terroristas que atacaram as Torres Gêmeas faziam estudos de pós-graduação na Alemanha. O Ocidente desenvolveu uma espécie de culpa, como se toda irrupção de violência devesse ter causas sociais ou fosse de alguma maneira o resultado de ações realizadas em nome da civilização ocidental. Do ponto de vista filosófico, essa postura vigorou no auge do estruturalismo, que equivaleu todas as culturas de um ponto de vista cultural, como se fossem de igual valor. O efeito mais visível desta postura foi a renúncia de julgar e, logo, de pensar. Uma renúncia muitas vezes encoberta pelo “respeito às diferenças”. Como devemos encarar a alegação do terror como expressão da diferença cultural? Algumas civilizações, como a ocidental, apesar de seus problemas, conseguiram revisar suas próprias posições, desenvolvendo uma capacidade de julgar segundo critérios universais. A mesma regra vale, então, para situações distintas, amparada que está na capacidade de ser universa-
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Foto: Mohammed Saber/Ag. Lusa/O Globo
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O século 20 banalizou o terror numa escala sem precedentes
lizada, numa perspectiva que se ancora numa idéia moral de humanidade. Ora, esses critérios, embora pertençam a uma época determinada, têm uma validade que os ultrapassa. Não há por que minorar os atentados terroristas, que são atos propriamente injustificáveis. Qualquer tentativa de buscar causas é aqui inútil, pois não podemos remontar a fenômenos anteriores que o explicariam. E atos injustificáveis são assim considerados numa perspectiva universal, que não se acomoda diante de pretensas “causas sociais”. Se causas sociais fossem a causa do terrorismo, o Brasil seria um país terrorista! O terror deve ser, então, enfrentado com a repressão, com atos policiais e militares, do mesmo modo que não há diálogo possível, senão estrategicamente, com um criminoso que tenta matar alguém. O diálogo pressupõe a interlocução racional, agentes afeitos ao uso do discurso e que vêem, neste, um meio de progredir no entendimento mútuo. Há uma condição básica aqui: os interlocutores devem preservar um a vida do outro, sem o que não há diálogo possível. Após o choque do 11 de setembro, tudo que aconteceu, e acontecerá, parece diminuído, simplificado. A mídia desde antes já havia colocado a violência na pauta diária de notícias, e as pessoas vão se acostumando com isso. Para a filosofia, o que representa a banalização que acompanha a racionalização do terror? Para a filosofia, e eu sigo aqui Hannah Arendt, a banalização da violência corresponde a uma banalização do mal. No momento em que não mais nos indignamos, no momento em que nos acomodamos a uma violência generalizada, adormecemos a nossa capacidade de julgar e podemos, assim, nos tornar vítimas indiretas dessa situação. Se não mais julgamos, se tudo tem um mesmo valor, abrimos na verdade caminho a novas formas de irrupção da violência. Uma sociedade democrática é uma sociedade que se caracteriza pela adesão ao discurso, pela discussão dos seus valores e por um comprometimento com princípios de validade universal. Se ela se torna
incapaz de julgar, se tudo tem uma explicação, se tudo tem uma causa, inclusive o maior horror, aquilo que foge de nossos padrões de normalidade, ela termina por se voltar contra os seus próprios fundamentos. Ou seja, uma sociedade que não faz valer as suas idéias, abandona-as, e ao abandoná-las, abre espaço para a violência, para o mal. No seu livro, vemos como um ato terrorista é um ato vazio, porque não comunica nada enquanto ato, e, como o Sr. diz, toda ação é linguagem. Mesmo assim, cada ataque violento é assumido como uma mensagem, geralmente de aparência revolucionária. Tal modo de ver as coisas aproxima as Farc e o MST de Bin Laden, na medida em que enxerga uma “justificação” por trás não de um discurso, mas da negação dele. Seria possível separar a bandeira do fanatismo religioso da bandeira de grupos políticos que primam pelo uso da violência? Excelente pergunta! Atos terroristas são atos, cuja violência os coloca como formas da irrazão, como formas daquilo que se volta contra a condição mesma do discurso. São atos que se voltam contra a possibilidade de toda e qualquer regra. Diferentes regimes políticos, por exemplo, como a monarquia de direito divino, a monarquia constitucional e a república, são todos assentados em formas de vida. Essas formas de vida podem ser diferentemente concebidas, seus valores podem ser distintos, mas nenhum desses regimes se baseia na busca da morte violenta. Trata-se de uma regra básica do Estado, enunciada por Hobbes, de que se os indivíduos entram numa relação estatal, eles o fazem para assegurar a sua própria vida, a sobrevivência de seu próprio corpo, de sua família e a conservação de seus bens. Ainda segundo Hobbes, os homens são seres desejantes, cujo movimento busca a preservação da vida, realizando o prazer e evitando a dor. Ora, a ação terrorista se volta contra esse princípio mesmo do movimento vital, seu alvo sendo a morte violenta de todos aqueles que se interpõem no seu caminho. O seu jogo, por assim dizer, é o jogo da morte violenta, o não-jogo Continente novembro 2003
24 CAPA que inviabiliza todo e qualquer jogo. Neste sentido, tanto o fanatismo religioso quanto os grupos revolucionários se caracterizam por um uso da violência que os coloca num processo contrário ao da conservação da vida e, logo, das condições mesmas do agir racional, da ação portadora de linguagem. Sendo a sua feição totalitária a mesma, penso que não devemos distinguí-los conceitualmente. Dito isto, a sua forma de manifestação é empiricamente distinta, pois um age em torno de uma bandeira religiosa e o outro de uma suposta concepção atéia. O seu núcleo, digamos teológico-político, é, porém, o mesmo.
Foto: Reprodução/AE
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A pensadora Hannah Arendt constatou que a banalização da violência corresponde a uma banalização do mal
A natureza humana da tradição filosófica, dos gregos a Freud, passando por Maquiavel e Hobbes, denuncia um homem frágil, feio e ignorante, cuja soma de qualidades negativas é maior do que a de positivas. Com todo avanço científico ou mesmo a universalização dos direitos, a natureza humana não parece mudar no essencial: a raiz podre, a sua malignidade. Deste modo, para atirar jatos em torres ou para invadir o Oriente Médio, a natureza humana não constitui uma ótima desculpa para o poder? A natureza humana é plástica, moldável segundo as épocas e períodos históricos. Se reduzirmos o homem ao seu mínimo denominador comum, pouco avançaremos, pois chegaremos apenas às capacidades de alimentação, de reprodução, de caminhar, de uso da linguagem e de outras que pouco nos distinguirão dos animais. Ora, o que observamos no transcurso da história é que o homem é o conjunto de suas ações, o seu vir-a-ser tanto para o bem quanto para o mal. Logo, se a natureza humana é plástica, coloca-se o problema de sua moldagem, do molde e daqueles que o fabricam. Temos tantas “fábricas” quanto épocas e sociedades. Podemos, no entanto, aprender desse conjunto de “fábricas”, que algumas procuraram sair desse processo de moldagem e tentaram colocar no frontispício de uma nova época a capacidade humana de afirmar direitos, direitos universalizáveis, válidos para qualquer homem, independentemente de sexo, cor, religião ou condição social. Conseqüentemente, a plasticidade da natureza humana pode também ser formada de modo a evitar a morte violenta e propiciar a consolidação da vida civilizada. Ao relacionar o mal com a existência, o Sr. também indica a ligação entre o real, a razão e a moral, uma vez que a razão se faz por juízos sobre aquilo que se concebe como sendo o mundo. Apesar do vazio na origem, o Sr. concordaria com a afirmação de que o terrorismo termina por afrontar a moral de uma sociedade extremamente materialista como a nossa? Ou ainda: que mesmo sem uma mensagem intencional, o terror conseguiria nos alertar para a confusão entre vida material e vida moral? Penso que as sociedades ocidentais desenvolvidas acomodaram-se sobremaneira com as facilidades materiais, vindo, inclusive, a identificar, a confundir, a noção de bem com a noção de bem material. Fortaleceu-se, então, um egoísmo de tipo materialista, como se o bem de cada um valesse imediatamente como o bem de todos. Isto explica a indiferença que muitas vezes constatamos com o próximo, inclusive o próximo muito necessitado. As pessoas terminam por se acostumar com a miséria como se isto fizesse naturalmente parte das coisas do mundo. Se há algo que podemos aprender com o terror, sua “mensagem”, que não é sua, mas nossa, por dizer respeito ao modo mediante o qual recebemos as coisas que nos acontecem, é que os valores de uma sociedade como a ocidental devem ser afirmados de uma forma incondicional, seja via desenvolvimento da consciência que temos de nós mesmos, seja via ações militares e/ou policiais que ponham freio ou término ao terrorismo. Em todo caso, a sociedade ocidental deve ter claro que o uso de meios militares e policiais é moralmente justificável, sendo a forma política de evitarmos algo pior, o controle de Estados pelo terror. • Fábio Lucas é jornalista.
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O dia do medo Repórter, que estava na cidade, no 11 de setembro, conta suas impressões e diz que naquele dia Nova York voltou a fazer parte dos EUA Fábio Araújo
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Foto:Teté Ribeiro / Divulgação Geração Editorial
erça-feira, 11 de setembro de 2001. São 8h45. O brasileiro Sérgio Dávila dorme em seu apartamento de East Village, Manhattan, Nova York. A noite havia sido agitada, com show da banda britânica Jamiroquai no Hammerstein Ballroom, seguido por uma passada no PJ Clarke’s para saborear o “melhor hambúrguer da cidade” e algumas cervejas. Porém, Sérgio – correspondente do jornal Folha de S. Paulo em NY – está prestes a descobrir que diversão será uma palavra banida de seu vocabulário nas próximas semanas. Antes das 9h, o telefone de sua casa toca. Dávila liga a TV e vê o World Trade Center em chamas. Parece um acidente comum. A CNN diz que um monomotor se chocara com o edifício. Nas ruas, Sérgio se apressa para chegar ao local e descobre que o metrô já não funciona. O trânsito está impraticável. Andando pela Terceira Avenida em direção ao WTC, o repórter presencia a queda da primeira torre. O caos começa a tomar conta. Na Quinta Avenida, já bem mais perto do destino, ouve-se um ruído seco. A segunda torre desaba. Desespero. Pânico. Aquilo não pode ser mero acidente. Enfrentando a poeira e a dificuldade de respirar, Sérgio chega bem perto dos escombros e presencia cenas dantescas, um cenário de guerra. “Pedaços de corpos, gente machucada, as equipes de resgate em completo caos”. É retirado do local, a essa altura escuro como a noite. Um ano após a tragédia, Sérgio Dávila lançou Nova York – Antes e Depois do Atentado, uma coletânea de textos escritos no calor dos acontecimentos, dando sua visão bem pessoal do que mudou na metrópole. Das crônicas, reportagens e personagens que compõem o livro, salta a conclusão do autor: o 11 de setembro fez Nova York voltar a fazer parte dos Estados Unidos, de quem havia se separado nos anos 50. O lado bom foi ter conquistado a afeição das outras cidades, “que normalmente odeiam (e invejam) a prima rica e bem-sucedida”. O lado ruim foi ter encampado o pior do nacionalismo americano pós-ataques. Por tudo o que presenciou, o repórter tem uma certeza: a ferida aberta na alma americana pelos ataques de 11 de setembro demorará pelo menos um século para cicatrizar. “Hoje os EUA estão tomados por uma psicose coletiva. A cada botijão de gás que estoura, em Manhattan, todos se entreolham com medo, pensando: será o próximo?”, descreve em entrevista à Continente. O medo torna a sociedade americana mais fechada, mais preconceituosa, mais chauvinista. Um mês após o atentado, ao tentar retornar aos escombros (onde ainda ardiam chamas), o próprio Sérgio foi arrastado pelo braço por um guarda. “Marquem bem a cara dele. Se aparecer de novo, podem prender”, recomendou o policial aos colegas. •
Sérgio Dávila, no Dia do Medo, em Manhattan
Fábio Araújo é jornalista. Continente novembro 2003