EDITORIAL
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Continente Ano 3 mentes para torná-la sempre melhor. Pode-se fazer uma revista como um poema? A resposta é certamente não. Trata-se de obra coletiva, envolvendo de diretores a jornalistas, de gráficos a distribuidores e vendedores. E dessa equipe, o leitor é convidado a participar cada vez mais ativamente, com suas sugestões, suas críticas e – por que não? – seu reconhecimento, quando cabível. Acompanha este número, uma edição especial, contendo excertos de entrevistas marcantes, publicadas nesses três anos. É nosso presente aos leitores, nossa forma de dizer muito obrigado. E seguir em frente. • Marcelo Maciel Presidente da Cepe Foto: Hans Manteufell
C
ontinente completa, neste mês de dezembro, três anos de circulação, desmentindo o bordão de que “revista cultural aqui não passa do nº 3”. Vários fatores estão, cremos, na raiz dessa longevidade. Em primeiro lugar, a decisão do Governo Estadual de, por meio da Companhia Editora de Pernambuco, realizar o projeto. Esse mecenato, em cumprimento à responsabilidade social do Estado para com a cultura, foi determinante para a existência e permanência da publicação. Em segundo lugar, a receptividade do público, que tem dispensado à Revista uma acolhida entusiástica. Nesses três anos, Continente tem buscado atuar como um portal, permitindo um duplo trânsito: de dentro para fora, passam as mais significativas manifestações culturais de Pernambuco e do Nordeste; de fora para dentro, entram o pensamento e a arte produzidos no país e no mundo. Em suma, equilibrando em sua pauta o local e o universal. Por outro lado, interessa-nos a maior abrangência de leitores, evitando-se hermetismos ou jargões de áreas específicas do conhecimento. Por isso, seu manual de redação pode ser resumido na fórmula simples: aos acadêmicos, recomenda-se que escrevam como jornalistas; aos jornalistas, exorta-se que escrevam como acadêmicos. Ao longo desses 37 números (mais 16 de Continente Documento), o projeto original foi mantido, procedendo-se a aperfeiçoamentos, dentro do conceito work in progress, ou seja, a Revista está sempre em construção. E empenhamos nossos corações e
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CONTEÚDO
Foto: Divulgação
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A atualidade do humanismo chapliniano
Foto: Reprodução
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Gauguin, um pintor vital para a modernidade
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CONVERSA
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08 Fausto Wolff fala de corrupção, literatura e Deus
CONTEMPORANEIDADE 68 Ex-marxista Toni Negri propõe alternativas à globalização
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CAPA 16 Charles Chaplin, um criador muito além do cinema
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ANTROPOLOGIA 72 Descendentes de brasileiros formam grupo
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LITERATURA
étnico na África
30 Reconhecimento e maturidade de Luzilá Gonçalves Rachel de Queiroz, a última grande regionalista Mostra comemorativa no centenário de Pedro Nava
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MÚSICA 76 Jovens instrumentistas dão vida nova ao chorinho Piazzolla e a sofisticação erudita do tango
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ARTES 38 Paul Gauguin e a busca da pureza ancestral
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82 Classe média mantém viva a tradição do pastoril
Mestre Abelardo da Hora, professor de mestres »
CINEMA 54 Filme alemão mostra nostalgia do comunismo
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REGISTRO 64 As críticas cifradas de Nelson Rodrigues à ditadura
Continente dezembro 2003
TRADIÇÕES
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AGENDA 90 Exposições, estréia de peças e lançamento de livros e discos Agenda atualizada semanalmente no www.continentemulticultural.com.br
3 Foto: Gilvan Barreto/Lumiar
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Foto: Hans Manteuffel
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O chorinho conquista a juventude
Tradição do pastoril natalino permanece
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Colunas »
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Nas decisões absurdas o silêncio é um perigo
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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 28 Empresariado dos EUA investiu no cinema de lá
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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 52 Iberê Camargo e a falta de sentido da existência
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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 60 Para celebrar com parentes e amigos a epifania da vida
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 63 A reportagem que terminou em demissão justíssima
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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 Costume indígena acaba com futuro musical
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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Previsões de uma teoria de absurdos
Continente dezembro 2003
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CRÉDITOS
Foto: Alain Le Garsmeur/Corbis
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert
Continente Multicultural
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly
Número 0, dezembro/2000
Número 36, dezembro/2003
Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Adriana Dória Matos, Bráulio Tavares, Claudia Silva Jacobs, Cristiano Ramos, Débora Nascimento, Diogo Monteiro, Ernesto Barros, Fernando Monteiro, José Cláudio, Kleber Mendonça Filho, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Plínio Palhano, Ricardo Oiticica, Rodrigo Carrero, Sebastião Vila Nova, Weydson Barros Leal Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia, Daniel Sigal, Claúdio Manuel, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Elizeu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Michelle Vanesa, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
Continente dezembro 2003
Adriana Falcão, Escritora (RJ) “Eu adoro a Revista, sempre compro. Acho que é uma das grandes coisas editoriais que Pernambuco já fez. É para se orgulhar. Eu me orgulho”. Affonso Romano de Sant´anna, Escritor (RJ) “Esses três anos até parecem milagre. Uma revista deste nível mantendo sua regularidade e sobretudo reafirmando a descentralização cultural do país. Através dela, o Brasil tornou-se mais pernambucano e Pernambuco mais continental”. Alberto da Costa e Silva, Historiador, presidente da ABL “De Pernambuco acostumei-me a receber excelentes revistas culturais. Como, na minha juventude, Região e Nordeste, das quais guardo tantas saudades. A Continente Multicultural honra esta tradição e é atualmente uma das mais belas e importantes publicações brasileiras de cultura”. Alberto Oliva, Filósofo (RJ) “Há no Brasil várias revistas prestigiosas que se dedicam a inventariar fatos e a identificar uma “lógica” na seqüência dos acontecimentos cotidianos de nossa História. Continente se destaca pela maestria com que promove a encenação dos Diálogos no Teatro da Inteligência. Em suas páginas, as idéias não despontam como abstrações secas, mas como expressões vivas da Realidade e como reflexões plurais sobre um mundo que desafia a compreensão sendo Um e muitos ao mesmo tempo”. Antonio Candido, Crítico (SP) “A Revista Continente é um grande feito cultural. Séria, agradável, imaginosa, tem tudo para prender quem se interessa pela vida cultural e artística”. Daniel Piza, Jornalista (SP) “A Revista Continente Multicultural vem desempenhando um papel importante para a cultura brasileira. O que mais me agrada é a feliz combinação entre temas regionais, nacionais e internacionais e o fato de não ser uma publicação de agenda, nos dois sentidos da expressão, porque não se limita a cobrir o mercado cultural e porque preza o pluralismo na estética e na política. Parabéns. Que continue melhorando e acontecendo”. Darel Valença, Artista Plástico (RJ) “Acho primorosa. Eu tinha dúvida se a Continente era melhor que a Bravo. Eu achava que havia descuido na paginação e na impressão. Hoje, eu considero a Continente tão boa quanto a Bravo, só que o texto da Continente me interessa mais”. Eleuda Carvalho, Jornalista (CE) “É de fundamental importância uma revista dessa qualidade, editada no Recife, que serve de motivação para todos nós, jornalistas e leitores, que primamos por um texto de qualidade. Ela serve de farol”.
Continente Ano 3
DEPOIMENTOS
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Multicultural
Emir Sader, Sociólogo (RJ) “Nestes três anos, o continente mudou muito, para melhor. Aumentou seu espírito de rebeldia, sua intolerância com maus governantes, sua capacidade de formular e construir alternativas. Continente Multicultural soube expressar isso e por isso merece os parabéns e os votos de que a rebeldia e a capacidade da Revista, para instigá-la, aumentem ainda mais nos próximos três anos”.
Continente Turismo, dezembro/2001
Evanildo Bechara, Filólogo (RJ) “Continente é um oásis cultural nas revistas brasileiras. Tem cumprido, nesses três anos, a honrosa missão de transformar a informação em formação reflexiva acerca dos variados temas, tratados por uma equipe que enaltece o jornalismo do país, à sombra de um apoio público cônscio de suas responsabilidades”. Fred Svendsen, Artista Plástico (PB) “No momento em que mais se precisava de uma publicação de arte surge a Continente, uma revista que transita por todas as áreas e se firma no Nordeste”. Heloísa Buarque de Holanda, Crítica (RJ) “Eu acho maravilhosa. Padrão gráfico de primeiro mundo e um conteúdo muito bom. O conceito editorial é de excelência”. Ismael Caldas, Artista Plástico (PE) “O aniversário da revista Continente deve ser comemorado. Em nossa terra as revistas de cultura têm geralmente “uma vida breve e cheia de atribulações”. Espero que, neste caso, possamos conviver com a idéia de contar com uma publicação que permaneça, apesar deste “museu do pardo indiferente”. Parabéns”. Ivanildo Villa Nova, Cantador (PE) “Eu acho que era a revista que faltava em Pernambuco porque ela vai do que interessa ao clássico, ao erudito, ao que interessa ao povo.
João Alexandre Barbosa, Crítico (SP) “Logo de início, pareceu-me uma excelente idéia que o Recife tivesse uma revista dessas”. Luciana Villas-Boas, Editora (RJ) “Mais recente título da safra de belas revistas culturais surgidas ao longo da década passada, Continente Multicultural destaca-se não só pela modernidade de seu projeto gráfico como por uma pauta de assuntos que, em sua variedade e abertura, não perde sintonia com a problemática específica da cultura brasileira. Isso lhe dá notável relevância política”.
Samuel Leon, Editor (SP) “A Revista Continente é uma publicação surpreendente porque combina o elemento regional com a internacionalização da informação. Uma revista feita fora do eixo Rio – São Paulo com uma ótima qualidade editorial, de texto e gráfica”. Sérgio de Castro Pinto, Poeta (PB) “Eu acho que a Revista Continente é aberta a todas as tendências literárias e não se arvora de ser porta-voz de nada. A não ser do que melhor se produz na Literatura e nas Artes. Sem falar no projeto gráfico, um dos melhores. Muitos anos de vida à Continente”.
Moacyr Scliar, Escritor (RS) “Nos três anos de sua existência, a Revista Continente Multicultural conquistou seu lugar entre as mais destacadas publicações no gênero. Num país e num continente em que a cultura ainda sofre tantas restrições, Continente Multicultural é um admirável exemplo – e uma história de sucesso”.
Silvério Pessoa, Cantor e Compositor (PE) “Eu acho imprescindível um veículo que seja uma síntese em termos artísticos, em Pernambuco, que fale de literatura, música, dança... A Continente Multicultural veio preencher essa lacuna. É a única revista que temos no Estado. E não deixa de ser uma vitrine nacional do que acontece em Pernambuco. “
Nelson de Oliveira, Escritor (SP) “A Revista Continente tem contribuído muito para a derrubada dos muros que separam as diversas regiões do Brasil. Quanto tive um conto meu publicado nas suas páginas, eu sabia que esse conto passearia pela terra brasilis. O grande desafio de toda publicação cultural é vencer as barreiras que, intactas, a limitariam à sua própria província, é tentar falar com o país todo. E isso a Continente tem conseguido. Ela não é só uma revista pernambucana, é também paulista, gaúcha, cearense, amazonense...”
Tarcísio Pereira, Livreiro e Editor (PE) “A Continente nos dá duas boas impressões. A primeira é a apresentação gráfica, que é excelente, e a segunda é o conteúdo que também é excelente. É um orgulho para Pernambuco ter uma revista dessa, produzida e impressa no Recife”.
Pedro Vicente Costa Sobrinho, Escritor (RN) “No número zero, dezembro de 2000, o editor apresentou o projeto da Continente, iniciando o texto com as palavras: Júbilo e cautela. Adiante comentava: mais difícil que editá-la é mantê-la viável. E assim se passaram três anos... Continente Multicultural tornou-se um periódico reconhecido, estimado e necessário ao público sintonizado com o mundo da cultura e das artes”. Raimundo Carrero, Escritor (PE) “A Continente assumiu a vanguarda da literatura pernambucana, ao divulgar os autores da terra, mesmo considerando os grandes vultos nacionais. Com edições equilibradas acendeu o debate cultural em todos os níveis, recorrendo sempre a intelectuais de grande importância e debatendo as principais questões nacionais. Vida Longa à Continente!”.
Continente Documento, número 04, novembro/2002
Vicente Serejo, Jornalista e Professor (RN) “A Revista Continente Multicultural, praticamente seis décadas depois, opera a modernidade do conceito que um dia Gilberto Freyre estudou quando, na sua conferência, nos anos quarenta, na Casa do Estudante, olhou o Brasil como um complexo cultural formado de continente e ilhas.”
Continente dezembro 2003
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CONVERSA
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istado por uma legião de críticos como autor de um clássico contemporâneo da literatura brasileira, À Mão Esquerda, Fausto Wolff continua desconhecido do grande público. Mesmo tendo militado em jornais e revistas de destaque, como Manchete, O Cruzeiro, Pasquim e Jornal do Brasil – além de passagens pela TV e duas tentativas frustradas de se eleger deputado federal. Gaúcho de quase dois metros de altura, mas figura carimbada da boêmia carioca; fala seis línguas, roteirista e ator principal de um longa-metragem dinamarquês, tradutor de Saroyan e Cortázar; apenas a fama etílica ele faz questão de afirmar que não mais se justifica. O que deve ser verdade, já que o primeiro contato para marcar a conversa foi transferido de uma tardinha para às 7 da matina do dia seguinte, a pedido do entrevistado. De vícios, apenas o jóquei, na esperança de “levantar algum dinheiro nas patas dos cavalos!”. Atualmente, é um dos editores do Pasquim21 e está trabalhando no roteiro de um dos seus contos, A Puta, a ser dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Espera publicar em 2004 sua obra literária de maior peso – As 1001 Noites de Fausto Wolff e um livro de poemas – Gaiteiro Velho Cristiano Ramos e Diogo Monteiro
FAUSTO WOLFF
“Eu sou meus personagens” Continente dezembro 2003
Foto: Tasso Marcelo/AE
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Que Deus é esse tão presente nos seus escritos? Qual o espaço que Ele ocupa na vida do autor? Deus, como se sabe, desde que o roubaram dos pobres e o trancaram nos mais diversos palácios das mais diversas religiões, tornou-se um sócio do mercado. Deus está presente em nossas vidas todos os dias – uma tradição pesada demais para ser descartada. Como a vida, para a maioria, se resume em vaidade e autopiedade, qualquer dor de dente nossa – ocasião em que apelamos para Ele – é muito mais importante do que a morte de centenas de milhares de crianças no Iraque. Jamais me preocupei muito com a existência de Deus, pois a sua existência, ou sua não-existência, não muda nada. E se Deus existe, certamente não está preocupado com meus pecadinhos. Eu talvez venha a pedir explicação dos seus pecados.
No seu livro O Nome de Deus, o narrador afirma que houve um tempo em que acreditou na viabilidade do ser humano. O autor também perdeu essa crença? Existe uma minoria no mundo – ricos, poderosos e anônimos – e mais seus palhaços, os políticos, que lutam contra a evolução humana. Daí a vulgarização da arte, a cultura não experimentada, a alienação. Deus – sempre que ele exista – deu ao homem um jogo maravilhoso, um enigma que, se decifrado, o colocaria na categoria dos deuses que Ele mesmo inventou. Os homens, porém, em vez de aprenderem o jogo, resolveram lutar com as peças e usá-las como armas; resolveram fazer do lucro, e não da felicidade, o fim que dá significado às nossas vidas. O narrador citado foi construído psicologicamente para pensar daquela forma. Creio na viabilidade do homem desde que o poder lhe dê uma chance, mas isso terá de Continente dezembro 2003
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10 CONVERSA
acontecer já, agora, antes do fim do mundo. No século 19, com H.G.Wells, Maupassant, Proust, Dostoievski, Lima Barreto (para não deixar um brasileiro de fora), Tolstoi, o homem era bem mais viável. Num país de iletrados, a literatura é capaz de promover mudanças reais? Ou você está pregando no deserto? Não acredito, pois as forças que lutam contra essas mudanças são muito poderosas. Por outro lado, o que sabemos de verdadeiro na História do Mundo foi contado por artistas, e não por militares. Vivemos num tempo em que tanto a religião como a imprensa tornaram-se sócias do poder, e o importante é fazer dinheiro. E para isso é preciso manter o público na ignorância. Desesperado, ele volta-se para os duendes, os diabos, o Paulo Coelho (que não tem culpa dessa idiotia), o tarot, a astrologia , o i ching. Não posso dizer que prego no deserto, pois está surgindo uma nova geração de leitores que se apercebeu da patifaria, da fraude e da mentira com que a alimentam desde o berço. Esta garotada vai ler Marx e perguntará, como uma vez Engels perguntou para a mãe, depois de passar um tempo na fábrica do pai vendo os operários, crianças inclusive, trabalharem 16 horas diárias: “Não poderia ser diferente?” Não fica mais difícil a tarefa, quando se escreve para uma minoria crítica, negando-sse a dar entrevistas para grandes meios? Os intelectuais do país falam para as massas ou para as elites? Jamais pretendi conscientizar ninguém, politicamente, através da literatura. Isso eu tento fazer através do meu jornalismo que, como todos sabem, é panfletário. Realmente, como todo sujeito que bebe muito, sou tímido e não gosto de dar entrevistas mas, como escritor, não fujo da imprensa. Preciso dela para vender meus livros. A diferença entre Rubem Fonseca e eu, à parte o fato de ele escrever melhor, é que ele foge da imprensa e a imprensa foge de mim. Quanto aos intelectuais escreverem para a elite, acho muito engraçado, quando vejo atores assassinando Brecht no palco para meia dúzia de pessoas, num espetáculo patrocinado, e aparecerem ao mesmo tempo na TV, fazendo propaganda do produto de alguma transnacional. Os atores emburreceram muito da minha época para cá, mas os que mostram a carinha nas novelas e dizem “Oi, Bicho!” – estão ricos. A geração Pasquim costuma se orgulhar de ter revolucionado a linguagem jornalística nacional. A imprensa, hoje, não sofre dos mesmos vícios de antigamente? Há um vestígio de megalomania nessas afirmações ou a maioria dos seus leitores ficou nos porões da ditadura? Com o Pasquim ocorreu um fenômeno interessante. Em 1969, os melhores jornalistas do Brasil eram de esquerda (havia esquerda naquela época) e belos seres humanos. Nenhum deles escrevia segundo os manuais de redação que tratam leitores como zumbis. Escrevíamos como falávamos e como tínhamos o que dizer – mais coragem – o sucesso foi imediato. Os leitores do Pasquim envelheceram com a gente. Os militares ficaram 30 anos no poder, o que, com auxílio da televisão, foi suficiente para imbecilizar a maioria da nação. Natural, portanto, que os filhos dos leitores fossem alienados, mas os netos gostam da gente. Continente dezembro 2003
“A Academia representa todos os falsos valores burgueses. Se ela não combina com o Veríssimo, imagine comigo. Não me convidarão, e se me convidassem, eu não aceitaria”
CONVERSA 11 » Foto: Joveci C. de Freitas/AE
O poeta Mário Quintana, que perdeu para Eduardo Portella e Arnaldo Niskier, na ABL
Você foi candidato duas vezes a deputado federal. Pretende voltar a disputar um cargo político? Eu era bem mais jovem e queria palpitar na Constituinte. Deveria ter desconfiado. O Globo informou que eu seria um dos candidatos mais votados no Brasil, segundo sua pesquisa. Fiz a campanha com um automóvel emprestado, minha única faixa, paga por amigos, foi confiscada pelo TER e, como não paguei os contadores de votos, fui vergonhosamente roubado. Não tenho dúvidas de que se fosse eleito, abriria o meu caminho a tapa, na Câmara, e o Brasil não seria esta colônia descarada que é hoje. Se vocês conseguirem 50 mil dólares para santinhos, faixas, transporte – dinheiro limpo e não-lavado – eu me elejo. Vai ser bom ter um salário decente para variar. Quem sabe, consigo juntar algum e comprar um apartamentinho e um carro para minha mulher dirigir porque eu não sei. Quando começou À Mão Esquerda, você estava decidido a escrever o melhor romance da literatura brasileira. Hoje, o que você acha do livro concluído? Estou emocionalmente envolvido com o livro, pois, como tudo que escrevo, ele é parcialmente biográfico. Eu sou meus per-
sonagens e acredito que – em termos de literatura – ou o livro é o autor ou não vale nada. O escritor, como não pode fazer outra coisa, quer transformar o mundo. Sabe que não conseguirá; sabe que, por mais que tente, não conseguirá denunciar, em toda a sua sordidez, a realidade que insiste em encobrir a verdade. Não gosto de concursos e nem de unanimidades. Para mim, o livro é excelente. Gostei do que escrevi. Gosto do que faço e poucas pessoas podem dizer o mesmo. À Mão Esquerda foi apontado por diversos críticos como um dos livros mais importantes de sua geração. No entanto, você continua sendo um autor pouco lido. Como é ser um clássico desconhecido? Há toda uma política editorial de distribuição para saber quem vende e quem não vende. O meu negócio não é vender (em termos, é claro), mas ser lido. Admiro muito o Chico Buarque – acho Apesar de Você a Marselleise da resistência à ditadura militar – mas não entendo como pode vender 50 mil livros numa semana. Será que meus leitores são todos cultos e pobres? Serão verdadeiros os números das editoras? Perdoem, mas querer ser livre é poder dizer não. Não acredito, estão me “engrupindo”. E Continente dezembro 2003
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o escritor merece um respeito que a mídia não lhe dá. Quanto à pergunta “É muito triste ser um clássico desconhecido”? É, principalmente, quando falta dinheiro para pagar o aluguel. Você iniciou no jornalismo muito cedo, aprendendo no dia-aadia da redação. Acredita que a imprensa no Brasil melhorou, após a obrigatoriedade do diploma? O diploma só deveria ser exigido para quem tem responsabilidades sobre a vida humana: médicos, químicos, físicos, engenheiros. O resto é ridículo. Daqui a pouco exigirão diplomas para músicos, pintores, poetas, escritores. Além do futebol e da música, o jornalismo era uma das poucas profissões acessíveis a um filho do proletariado. Se houvesse exigência de diploma, eu não poderia ser jornalista, pois só pude estudar até a segunda série ginasial. Aliás, nem eu, nem o Jaguar, o Millôr, o Paulo Francis... Hoje, qualquer idiota, que não serve para nada, se forma em jornalismo, e a imprensa é esta que vocês têm aí. Vou responder da seguinte maneira: o diploma ajuda o candidato a jornalista, mas a obrigatoriedade é ridícula e cruel, pois parte do princípio de que só é capaz quem se formou nessas máquinas de ganhar dinheiro e excluir o povo. Einstein não se formou em nada, e o inventor do alfabeto era analfabeto. Há uma corrente de programas jornalísticos que investem na exibição hiper-rrealista das mazelas sociais. Trata-sse de denúncia social ou exploração da miséria? Jamais gostei do Chacrinha e nem de ninguém que vendesse ilusões. No caso do Chacrinha, o melhor dos animadores, os calouros passavam semanas inteiras ensaiando para viver o momento mais importante de suas vidas e eram gongados, ridiculariza-
dos, humilhados, como se alguém, que tivesse acesso à televisão, fosse um Deus. Esses programas nojentos, que dão possibilidade a pessoas imbecilizadas, tristes, pobres, descrentes, de anunciarem seus dramas – “Meu pai quis me comer”, “Meu irmão é veado e feliz”, “A amante da minha mãe é minha amiga” –, demonstram apenas que o sistema depois de bestializar o povo ainda fatura em cima dele. Qual a solução para a qualidade da programação televisiva: controle governamental, auto-ccensura ou a censura do controleremoto? É difícil responder a esta pergunta porque quase todos os caciques políticos e econômicos são donos de um canal, quando não, de uma rede de televisão. Isso faz com que os grandes criminosos (os que fizeram a ditadura e mais Collor, FHC e Lula) não estejam interessados em qualquer mudança de qualidade. Se falarmos em termos de Constituição (esta colcha de remendos podres que ninguém respeita), ela impõe: a televisão é uma concessão governamental e, conseqüentemente, digo eu, uma concessão do povo. Depois de 30 anos de ditadura oficial e quase 20 anos de ditadura branca, o povo sabe o que quer ver? Temas como violência, miséria e crueldade têm sido encampados por diversos autores. Você acha que, também na literatura, o momento atual exige esse apego à realidade? O escritor só precisa de um lápis, ou uma caneta, ou uma máquina de escrever, ou um computador. A partir daí o mundo é dele. Se o que ele fizer humanizará as pessoas ou as tornará ainda mais imbecis, o problema nem é dele, mas do mercado que o utiliza. Joyce e Proust, na minha opinião, são os maiores escritores do
No século 19, com H. G. Wells, Maupassant, Proust, Dostoievski, Tolstoi e Lima Barreto (foto ao lado), o homem era bem mais viável Continente dezembro 2003
Foto: Reprodução/AE
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CONVERSA 13
Foto: Adir Meira/ Agência Globo
século passado – Kafka entra nesta – mas se você não tiver leitores para entendê-los, alguma coisa deu errada no mundo, e não foi com eles. Você já disse que não tinha publicado seus poemas por considerar que tinham vida própria, eram dados a um amigo ou a uma mulher. O que o fez mudar de idéia e pô-llos em livro? A insistência de amigos, a resposta positiva dos leitores – meu primeiro livro de poemas ganhou o prêmio popular da Feira de Livros de Porto Alegre – e, finalmente, o fato de haver romances de 12 mil páginas que só se podem escrever num poema de quatro linhas. Nejar e Scliar já estão na Academia Brasileira de Letras. Como você responderia a um improvável convite para ingressar na ABL? O Rio Grande do Sul poderia contar com mais um acadêmico? Veríssimo já disse que não combina com ele... Se ela não combina com o Veríssimo, imaginem comigo. A ABL representa todos os falsos valores burgueses, é a arte da condescendência, do paternalismo, a arte do sim. Basta ver alguns nomes que compõem aquela casa para verificar que caráter não é exatamente o que comanda suas escolhas. Mário Quintana perdeu para Eduardo Portella e depois para Niskier. Não me convidarão, e se me convidassem, eu não aceitaria. Numa entrevista você cita, como autores contemporâneos, o Rubem Fonseca, Luiz Fernando Veríssimo, Carlos Heitor Cony, Millôr Fernandes... Não há ninguém com menos de 60 anos fazendo boa literatura no Brasil? Vou te contar um segredo. Como comecei na imprensa aos 14 anos, menti minha idade, pois temia que me despedissem. Quando fui cobrir a guerra no Canal de Suez, tive de mentir a idade novamente. A mesma coisa ocorreu na Manchete, e posteriormente nO Cruzeiro. Aos 28 anos, no Rio, dei uma grande festa para comemorar meus 40 anos, imaginem. Por isso meus amigos são muito mais velhos do que eu e conheço pouco a literatura dos mais jovens, com algumas exceções. Meus heróis continuam sendo Millôr, Joel Silveira, Fernando Sabino, Veríssimo, Fonseca, Manoel de Barros, Moacir Werneck de Castro, Jânio de Freitas, Ferreira Gullar, Ariano Suassuna, Carlos Heitor Cony, Aldir Blanc e alguns poucos outros. Admiro, porém , alguns jovens como Luiz Horácio, Marcelo Backes, André Seffrin, Cassas, Espinheira, Sonia Rodrigues, Ana Fortuna, Oldemar Olsen, os Irmãos Caruso, Marcelo Benvenuti, o Nani, cartunista que se revelou um excelente romancista policial e muitos outros. •
“Jamais gostei do Chacrinha e nem de quem vendesse ilusões. (...) O sistema, depois de bestializar o povo, ainda fatura em cima dele”
Cristiano Ramos e Diogo Monteiro são jornalistas.
Continente dezembro 2003
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16 CAPA
CHAPLIN
A precariedade como matéria-prima da criação A mensagem humanitária dos filmes de Chaplin permanece atual, 90 anos após a sua estréia no cinema Luciano Trigo
Continente dezembro 2003
CAPA 17 »
Num texto de 1944 sobre O Garoto, o cineasta russo Sergei Eisenstein sugeriu, com muita propriedade, que o título do filme não se referia ao menino abandonado da história, mas ao vagabundo encarnado por Charles Chaplin. De fato, o personagem de calças largas e casaca apertada, botinas enormes e chapéu-coco, uma vara como bengala e bigodinho era na verdade uma criança que se negava a crescer e se integrar num mundo onde imperavam injustiças e desigualdades. Esse gesto de revolta, que tem raízes na infância do cineasta, ajuda a entender a permanente atualidade de sua obra, que revolucionou o cinema. O grande tema de Chaplin, ao qual não falta um significado político, é o da sobrevivência do indivíduo num sistema social e econômico que o esmaga e oprime o tempo inteiro. Sobrevivência física e material, mas também sobrevivência do que há de mais humano em cada um, sua capacidade de criar e ser feliz. E o aprendizado da sobrevivência começou cedo para o diretor. Filho de artistas do vaudeville londrino, Chaplin teve uma infância miserável e chegou a roubar comida para sobreviver, depois que seu pai abandonou a família e sua mãe foi internada com surtos psicóticos. “Sempre entendi os artistas pobres”, ele declarou um dia. “Artistas ricos parecem uma contradição, em termos, para mim”. Chaplin não foi o único gênio que fez da precariedade matéria-prima da criação, mas foi o que produziu uma obra de maior alcance. Enquanto houver excluídos de qualquer sorte no mundo, os seus filmes continuarão a agir como poderosos instrumentos de denúncia social e política. É claro que essa mensagem humanitária só sobrevive porque cada filme de Chaplin é engraçado e sentimental, fruto de uma sensibilidade excepcional. Ele não era apenas um ator de enorme talento, mas também um roteirista criativo, um produtor incansável e um compositor que sabia sublinhar como ninguém o caráter de cada cena. Tudo começou há 90 anos, quando ele assinou um contrato com a Keystone para atuar em 35 curtasmetragens. Nascido num subúrbio londrino em 1889, três anos depois da primeira projeção cinematográfica pública dos irmãos Lumière, em Paris, a sua carreira como diretor e ator se desenvolveu paralelamente à evolução da linguagem e das inovações técnicas da chamada sétima arte. E seu personagem mais famoso, o Vagabundo, também cresceu em profundidade e complexidade com o passar das décadas, ganhando vida própria, como o maior ícone da história do cinema. Aos olhos das platéias de várias gerações, desde suas primeiras audiências nas décadas de 1910 e 20, tornou-se cada vez mais difícil dissociar diretor e personagem, Continente dezembro 2003
18 CAPA Foto: Divulgação
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que se amalgamaram numa só figura. Isso porque Carlitos, cada vez mais, encarnou o que Chaplin tinha sido na infância, e não queria nem conseguia deixar de ser: um outsider. O Chaplin dos primeiros anos era um produto da era vitoriana tardia, inclusive nas citações à miséria dickensiana de sua infância. Os pontos de referência de seus primeiros filmes – orfanatos, asilos, heroínas inocentes e puras e vilões que enrolam o bigode – devem ter parecido, mesmo para as platéias da década de 1910, relíquias antiquadas de melodrama. Mas de alguma forma aquelas comédias aparentemente despretensiosas captavam uma carência profunda dos espectadores. Chaplin não era apenas um ator representando, era um símbolo. E ele parecia destinado a entrelaçar de forma decisiva sua vida e seu trabalho com os principais acontecimentos políticos do século 20. Tempos Modernos (1936), um dos seus filmes mais abertamente engajados, é um dos poucos realizados nos anos da Depressão a mostrar a desgraça econômica dos Estados Unidos, como resultado das divisões de classe; um dos poucos a levantar o espectro do comunismo, embora de modo cômico, numa seqüência onde o vagabundo lidera uma passeata de grevistas ao apanhar acidentalmente uma bandeira; e talvez o único a mostrar policiais como defensores brutais do grande capital. Só a posição especial de Chaplin em Hollywood – nessa época ele tinha seu próprio estúdio, que financiava e distribuía seus filmes – lhe permitiu lidar com assuntos tão delicados, que teriam sido vetados pela maioria dos censores de outros estúdios. Em Tempos Modernos, a gente humilde é esmagada por meio da tecnologia, cujo potencial desumanizador Chaplin foi capaz de enxergar em grande profundidade, mostrando a alienação dos operários, produzida pelo sistema de produção em série. A mensagem de luta contra a opressão social também está presente em Luzes da Cidade, no qual o abismo entre as classes é sublinhado pelo fato de que o vagabundo passa boa parte do filme fingindo ser um milionário. Por trás de seu medo de que a moça cega recupere a visão e enxergue a sua
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CAPA 19 » O Grande Ditador – sátira a Hitler em plena eclosão da 2ª Guerra
O grande tema de Chaplin, ao qual não falta um significado político, é o da sobrevivência do indivíduo num sistema social e econômico que o esmaga e oprime o tempo inteiro
real aparência de mendigo, esconde-se uma reflexão sobre o determinismo que amarra inexoravelmente um homem à classe social em que nasceu. A carreira de Chaplin começou em 1907, quando ele conseguiu um emprego na companhia teatral do mímico e acrobata Fred Karno – destacando-se no papel de um bêbado. Em 1909, atuou nos palcos de Paris, onde, graças aos filmes de Georges Méliès e Max Linder, o cinema engatinhava na luta para estabelecer uma linguagem própria e obter reconhecimento social. No ano seguinte, apresentou-se em Toronto e Nova York. Ao fazer uma nova excursão pelos Estados Unidos, em 1913, recebeu um telegrama da Keystone Comedy Film Company, o maior estúdio de comédias do cinema mudo. Chaplin foi contratado por Mack Sennett por 150 dólares, para fazer três filmes por semana, marcadamente influenciados pelo gosto do chefe, cheio de perseguições policiais e situações rocambolescas. Mesmo tendo que se submeter aos caprichos de Sennett, ele encontrou espaço para criar o seu maior personagem, já em seu segundo filme, Corrida de Automóveis para Meninos. E em O Vagabundo, com maior liberdade na direção, criou a situação clássica do vagabundo apaixonado por uma garota simples que o troca por outro homem. Só naquele ano, ele apareceria em 35 filmes, e em pouco tempo estava ganhando 10 mil dólares semanais. O mais importante, contudo, era que Chaplin ganhava cada vez mais autonomia para desenvolver uma técnica e um estilo próprios, explorando as potencialidades da linguagem do cinema. Já nesses primeiros anos, ele percebeu que o posicionamento da câmera, além de ter implicações psicológicas e narrativas evidentes, constituía “a base do estilo cinematográfico”. Essas inovações fizeram com que seus filmes tivessem um impacto sem precedentes sobre as platéias americanas e européias durante as duas grandes guerras. Ele fazia as pessoas rirem apesar de seus problemas – e, paradoxalmente, fazia rir expondo as desigualdades e injustiças do mundo. O anti-herói desprotegido e irresponsável, de inocência quase infantil, que lutava sozinho contra
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20 CAPA
os obstáculos de um mundo hostil, conquistava as platéias, apelando aos seus sentimentos mais humanos, adormecidos pela dureza de tempos sombrios. Em 1919, já casado com Mildred Harris, Chaplin fundou a United Artists, em sociedade com Mary Pickford, Douglas Fairbanks e David W. Griffith, e passou a produzir e distribuir filmes de longa-metragem de forma independente. Nos anos 20, já famoso, começaram a vir à tona seus problemas conjugais. Mildred perdeu o que seria seu primeiro filho e Lita Grey, com quem se casou a seguir, o processou. Os escândalos se seguiram por toda a vida, o de maior repercussão sendo seu casamento, aos 56 anos, com a filha do escritor Eugene O'Neill, Oona, de 18. Chaplin se tornou poderoso o suficiente para resistir à revolução falada de 1927, lançando Luzes da Cidade em 1931, um filme essencialmente mudo, acompanhado por música, efeitos sonoros e alguns poucos trechos de diálogo. Num período em que Hollywood já dominava as técnicas de edição invisível e estrutura narrativa sem costuras aparentes, Chaplin confiava tanto em seu velho estilo, que insistia em movimentos de câmera evidentes e numa estrutura narrativa episódica, baseada numa sucessão de segmentos mais ou menos autônomos. Tempos Modernos, por exemplo, pode ser dividido numa série de temas curtos quase independentes. Até seu filme mais bombástico, O Grande Ditador (1940) encontra espaço para tudo, do pastelão simplório (soldados nazistas golpeados na cabeça com frigideiras) a uma seqüência de dança. Na intimidade, Chaplin era um homem difícil: obsessivo e egoísta , era extremamente rigoroso com seus subordinados e familiares, demonstrando pouca tolerância a falhas. A seu modo, ele criou um mundo cujas engrenagens tinham que ser perfeitas. Há quem diga que Hitler e Chaplin tinham em comum mais que o bigodinho: o gosto pelo mando, com a diferença evidente de que Chaplin colocou seu temperamento autoritário a serviço da criação artística, enquanto Hitler optou pelo mal. O certo é que O Grande Ditador foi um ataque frontal contra o fascismo e o anti-semitismo europeus que nenhum estúdio americano, temendo perder seus mercados estrangeiros, ousara fazer antes da declaração oficial de guerra. Chaplin dirigiu e atuou em quase 90 produções. No início dos anos 50, pouco depois de lançar Luzes da Ribalta, foi perseguido pela paranóia anticomunista do macarthismo. Em seu depoimento ao FBI, declarou que não queria fazer revolução alguma, apenas divertir as pessoas. Não era verdade: a seu modo, Chaplin comandou uma enorme revolução, já que toda a sua obra pode ser considerada um protesto contra a ordem vigente. Após uma excursão à Europa foi impedido de retornar aos Estados Unidos. Chaplin se radicou então na Suíça. Seus últimos filmes foram Um Rei em Nova York (1956), uma crítica violenta à sociedade americana, espécie de vingança pelas humilhações que sofrera nos Estados Unidos, e A Condessa de Hong Kong (1965), mal-recebido pela crítica, Seu personagem mais apesar de ser estrelado por Sofia Loren e Marlon Brando. Em 1971 famoso, o Vagabundo, os americanos tentaram se redimir, concedendo-lhe um Oscar cresceu em profundidade especial, por sua “incalculável contribuição à arte do século, o cinema”. e complexidade com o Chaplin morreu na madrugada do Natal de 1977, aos 88 anos, mas continua a fazer rir e chorar os espectadores, geração após geração. • passar das décadas,
ganhando vida própria como o maior ícone da história do cinema Continente dezembro 2003
Luciano Trigo é jornalista.
CAPA 21 »
Quando falamos de Charles Chaplin, estamos falando de um gênio intuitivo como poucos, feito de olhar e penetração, psicologia e máscara, linguagem corporal Fernando Monteiro
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Um gênio além do cinema
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22 CAPA Foi Charles Chaplin um gênio do cinema? A pergunta eu já a encontrei colocada assim, diretamente (em enquete da revista Cinéfilo, de Portugal), e também feita daquela forma hesitante, como se fosse um tanto herética a questão em torno do criador de Carlitos. Como Picasso e Einstein, o comediante inglês foi daqueles que o mundo se acostumou a chamar de “Gênio”– sendo, para ele, ainda em vida, algo como uma significação a mais daquele “Kaplan” que teria sido “arianizado” para “Chaplin”, pelos antepassados de sangue judeu que ele nunca aceitou inteiramente. Kaplan, Chaplin, Carlitos, seja qual for o nome pelo qual se chame esse artista que “sofreu o diabo” (como ele próprio disse), ninguém ousa pôr em dúvida sua grandeza de clown, de palhaço oriundo do music-hall, assim como Stan Laurel e outros que, sem o cinema, hoje não teriam mais do que os rostos pintados, em antigos cartazes mal-impressos, espalhados pelo East End. A questão colocada – ontem, como ainda hoje – encara uma outra nuance entre cinza e cinzento, isto é, entre ter sido Charles Chaplin um gênio indiscutível no palco, porém não necessariamente um criador genial no cinema, ele que não teve participação em nenhuma das chamadas revoluções da linguagem cinematográfica. De fato, fizeram-se sem o seu concurso a “revolução” de 1940, quando Citizen Kane, de Orson Welles, virou a sétima arte de ponta-cabeça, assim como, naquele movimento quase antagônico – o neo-realismo italiano – a herança de Chaplin fez se sentir apenas tenuamente sobre o “naturalismo” do pós-guerra, cinema aturdido e solto nas ruas, a partir de 1945, até chegar o visualismo inquietante de Antonioni e Resnais (que nada lhe deve) a preparar o terreno para as novas vagas dos anos 60, com destaque para Jean-Luc Godard e outros renovadores de narizes torcidos para o “gênio” velho como a pirâmide. O argumento contra Chaplin tem sido, numa palavra, que ele foi medíocre como cineasta. Afastando-se a aura do mito, a verdade é que o cinema chapliniano se fez como arte “submissa”, tímida, com o predomínio de tomadas acadêmicas que nunca se aventuravam para além do plano geral e do plano médio americano, com a declarada finalidade de fazer a lente abarcar a ação (como num palco), e mais nada. O diretor nunca quis arriscar com a arte nova, em detrimento da linguagem imemorial – e, para ele, suficiente – da mímica. Portanto, nada devia se perder dos seus movimentos de comediante, de supremo ator do teatro burlesco, com pleno domínio de cena e perfeito uso da expressão, dos ombros, das mãos, das pernas e até dos pés calçados sempre dois números acima. Tratava-se só de botinas e de pantomima, então? Não. Estamos falando de um gênio intuitivo como poucos, feito de olhar e penetraO Vagabundo, ícone do cinema (Em Busca ção, psicologia e máscara, linguagem corporal e do Ouro, 1925) isto: quando chegou a um estúdio, para filmar pela primeira vez (em 1914), o jovem Charles notou umas calças enormes, largadas numa cadeira. Ele pesava menos de 60 kg, mas as vestiu, sem hesitar, e pegou de um barbante para amarrá-las na cintura. Depois, viu um casaco num cabide, uma roupa que lhe ficaria certamente muito apertada... e um chapéu-coco meio ridículo e um grande bigode postiço – que cuidou de aparar porque algo o avisava de que “devia deixar a movimentação da boca livre”. Eis Chaplin em ação. O gênio rejeita o que não lhe serve e só se utiliza daquilo que ainda não sabe que precisa (como o cinema-instrumento que ele subordinou à sua velha arte de mímico):
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CAPA 23 »
Chaplin e Claire Bloom, em Luzes da Ribalta (1952)
“Eu não tinha idéia alguma para o personagem, mas, no momento em que me vesti, as roupas e a maquilagem me fizeram sentir a pessoa que ele era. Comecei a explicar a Mack Sennett: ‘Você sabe, esse sujeito tem muitas facetas – vagabundo, cavalheiro, poeta, sonhador, um sujeito solitário, sempre com esperanças de romances e aventuras. Ele pode dar a impressão de ser um cientista, um músico, um duque ou um jogador de pólo; no entanto, não se vexa de apanhar tocos de cigarro ou de roubar as balas de um bebê. E, naturalmente, quando as circunstâncias o justificarem, poderá dar um chute no traseiro de uma senhora’... Enquanto eu falava, Sennett se pôs a rir, ao mesmo tempo em que me empurrava para o cenário. Quando entrei em cena, tropecei no pé de uma atriz. Virei-me e tirei meu chapéu para pedir desculpas; depois volteime e tropecei numa escarradeira; virei-me e tirei o chapéu para a escarradeira. Por trás das câmeras, elas desataram a rir. Percebi que havia me saído bem”. O resto é história. Esse personagem – a primeira criatura real do cinema – se tornaria a figura mais popular do planeta, e Chaplin seria apelidado de gênio em todas as línguas vivas. Contudo, ainda resta a tal pergunta: ele foi mesmo isso, na tela, com toda a mediania do seu cinema? Para respondê-la, seria preciso uma fita métrica para se avaliar gênios por pés e centímetros quadrados, na alfaiataria da criação às escuras. Ora, Chaplin foi um daqueles iluminados, que achavam – antes de procurar. É a marca primordial de todo ser de exceção, criando – naquela oficina de sombras – como uma segunda natureza, inventando enquanto parece descansar e descobrinA imaginação de Chaplin era do até quando dorme, supostamente, pois as suas mentes trabalham no poço sem fundo do misterioso e, de lá, voltam com do quilate daquela dos a equação da Relatividade ou com o “Quixote” completo. A Cervantes, dos Shakespeare e imaginação de Chaplin era do quilate daquela dos Cervantes, dos Dickens (de quem dos Shakespeare e dos Dickens (de quem descendia diretadescendia diretamente). O seu mente). O seu “tamanho” não se pode medir por réguas & “tamanho” não se pode medir revoluções inscritas num círculo estreito onde outros foram grandes – mas não geniais, na acepção rigorosa do termo. O por réguas & revoluções que importa ter sido inovador (ou não), na linguagem do inscritas num círculo estreito cinema, quando se trata de um poeta cuja contribuição extraonde outros foram grandes – pola a do invento dos irmãos Lumière? mas não geniais, na acepção Caso houvesse nascido 100 anos antes do cinema, Charles rigorosa do termo Chaplin teria encontrado algum meio de expressão daquele Continente dezembro 2003
24 CAPA espírito raro que coloca acima do solo os artistas atormentados como ele, o “homem mais triste que eu jamais conheci”, no dizer do duque de Windsor, que foi seu hóspede em Hollywood (enquanto Michael Chaplin – um dos oito filhos nascidos do seu rumoroso casamento com Oona O’Neill – resumiu, sobre o pai, no livro Nunca Fumei Maconha no Jardim de Carlitos: “trata-se de um homem indigesto e, não raro, insuportável”)... De onde vinha tal mistura de genialidade, complexidade e tristeza? Do sofrimento, tudo o indica. O garoto que entrou num palco para substituir a mãe retirada de cena, rouca e com acessos de tosse, e logo em seguida a imitou – com um fino senso de caricatura, debaixo das primeiras luzes da ribalta – nunca esqueceu a miséria de Lambeth e outros bairros de servidão humana, demasiado humana. E o saltimbanco maduro viria a construir a sua obra em torno do tema dos desamparados que arrostam contra policiais de verdade e altos moinhos nada imaginários, na paisagem inóspita de cidades que rejeitam cães e vagabundos, crianças mendigas e cegas floristas a se aproximarem de um carro de luxo (pelo som da porta se abrindo), sem saber que dali está saindo apenas um fugitivo de bolsos rotos, que lhe comprará uma flor com o último trocado... Foi de percepções assim que Chaplin ergueu o universo dos Carlitos que se tornam românticos afoitos e nunca perdem o orgulho do perseguido, do abandonado à espera de uma mudança qualquer da sorte ou do acaso feito de esquinas e intuições. Com isso, com essa flor de esperança ainda fresca na mão, ele penetrou na imortalidade que a vida breve só concede a uns poucos – e verdadeiros – gênios, sem dúvida. • Fernando Monteiro é escritor e cineasta.
Chaplin, com a esposa Oona, à beira do Tâmisa, em Londres (1952)
Foto: Bettmann/Corbis
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CAPA 25 » Foto: Divulgação
O palhaço do mundo preto-e-branco
Buster Keaton e Chaplin, em Luzes da Ribalta
A estética visual dos filmes de Carlitos tem doses iguais do pontilhismo impressionista e dos contrastes toscos das gravuras dos romances populares Bráulio Tavares Chaplin é o palhaço do cinema em preto-e-branco. Seu visual surgiu com o cinema, e é difícil conceber que pudesse ter nascido no teatro apenas, e menos ainda no circo. A balança visual do teatro e do circo pende para um mundo necessariamente colorido, brilhante, reluzente. Palhaços de circo, mesmo dos circos mais mambembes, circo tomara-que-não-chova, circo que só tem um pano-de-roda, orgulham-se de suas roupas em cores berrantes, costuradas em cetim barato, em “faíte”, em qualquer pano lustroso que realce seu cromatismo de pintura primitiva. Carlitos surge no “mundo fantasmo” do cinema preto-e-branco, do cinema puro. Um cinema que era como se a própria fotografia recém-inventada já começasse a se mexer por si mesma. Um mundo sem cores, mas com todos os tons de cinza; e onde o branco não é somente branco, mas um branco luminoso, coruscante, prateado. E onde o preto costuma se esfarelar como se fosse pó de carvão ou borrifozinhos de nanquim. O mundo fantasmagórico, de onde brota Carlitos, é esse mundo granulado como na retícula dos velhos clichês de zinco, com aquele seu gradeamento infinitesimal de pontos negros maiores ou menores. É como se essa pulverização nos mostrasse um universo feito com os átomos do preto e do branco, misturando-se, separando-se, em torvelinhos que se unem e se apartam, e vão sugerindo aos nossos olhos imagens toscas, mas Continente dezembro 2003
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26 CAPA
Foto: Divulgação
reconhecíveis. Uma estética visual que tem doses iguais do pontilhismo impressionista e dos contrastes toscos das gravuras dos romances populares. É nesse mundo de lanterna mágica que Carlitos brota. Um mundo silencioso como o mundo dos sonhos, onde sempre parecemos estar embaixo dágua. Um mundo, como registra Sartre em suas recordações de infância, feito de “...um giz fluorescente, paisagens pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre, mesmo em pleno sol, mesmo nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas cruzava o salão de uma baronesa sem que ela parecesse espantada.” O cinema preto e branco era de fato um chuvisco permanente, uma poeira de trevas e de estrelas, e nele não haveria lugar para os arlequins e os saltimbancos da comedia dell’arte, com seu colorido básico de histórias em quadrinhos e de estampas populares. Chaplin com Georgia Hale, no filme Em Busca do Ouro A frustração que sentimos, quando vemos algumas tentativas contemporâneas de reconstituir esse período, é que lhes falta essa qualidade – não sei de melhor descrição que o verso de Cruz e Sousa – “pulverulentamente nebulosa”. A nitidez dos filmes de hoje nos parece insatisfatória, mesmo em reconstituições de época impecáveis, como a de Scorsese em Gangues de Nova York. Por um lado, é aquele, sem dúvida, o ambiente social e econômico onde viveu o vagabundo de Chaplin; sabemos que são aqueles os pardieiros em equilíbrio precário, as ruas enlameadas, os botequins, as cabeças-de-porco. Mas tudo ali está fotografado com uma nitidez supérflua e mesmo incômoda. Na nossa memória, aquele mundo não era assim. Era um mundo sem substância, um mundo que, aos nossos olhos infantis, parecia feito de açúcar e pó de café. Nesse mundo, Carlitos parecia mais real que o resto, mais real que as ruas, mais real que o rio de fubicas resfolegantes que se entrecruzavam nas avenidas. A cadência frenética dos 16 quadros por segundo realçava os deslocamentos meio espasmódicos daqueles habitantes de um universo que, pela primeira vez, via-se obrigado a mover-se mais depressa, mais depressa. Era tudo uma coreografia de esbarrões, ultrapassagens, gente colidindo, carros tirando fino, jatos d’água, nuvens de poeira. Já eram as esteiras rolantes de Tempos Modernos que punham aquelas cidades em movimento, e no meio delas deslocava-se o pequeno lorde esfarrapado, o bom malandro janota, o “barão da ralé”, com roupas que pareciam não ser suas, a jaqueta muito acochada, as calças Carlitos surge no “mundo fantasmo” do cinema preto- frouxas demais, os sapatos marca O Defunto Era Maior, o chapeuzinho equilibrado no coco. Ele todo preto e o rosto todo brane-branco, do cinema puro. co, xilográfico, caligaresco, o bigodinho rimando com a gravata Um cinema que era como se borboleta. O habitante arquetípico daquele mundo de luz e soma própria fotografia recémbra, um mundo que nunca existiu, mas que sobreviverá, com ele, inventada já começasse a a este mundo colorido onde existimos agora. •
se mexer por si mesma
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Bráulio Tavares é escritor e músico.
CAPA 27
O francês Marin Karmitz produz, em DVD, obras-primas restauradas, com acréscimos valiosos Ernesto Barros
Chaplin à européia Dos 10 principais longas-metragens da obra cinematográfica de Charles Chaplin, quatro já se encontram à venda, em DVD, no Brasil. A primeira caixa da Coleção Chaplin traz as obras-primas Em Busca do Ouro (The Gold Rush, 1925), Tempos Modernos (Modern Times, 1936), O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940) e Luzes da Ribalta (Limelight, 1952). Cada um deles acompanhado de um disco extra com imagens e informações inéditas, com material produzido exclusivamente para o lançamento em DVD e retirados do baú da família do cineasta. Pelo que deu para perceber nestes primeiros discos, tudo foi feito para que uma nova geração de espectadores fique encantada com os filmes do homemorquestra Charlie Chaplin. A idéia da restauração da obra Chaplin surgiu do desejo da família e dos esforços do produtor francês Marin Karmitz, que conquistou os direitos de distribuição mundial dos filmes numa parceria com a Warner. Para o projeto de restauração da imagem e do som da obra de Chaplin, Karmitz foi procurar apoio nos laboratórios da Cineteca Bologna, na Itália, e nos estúdios da sociedade Lobster Films, especializada em remasterização de som, em Paris. Os riscos, arranhões e furos da velha película foram expurgados, enquanto o som perdeu os estalos e ruídos das gravações originais. O resultado do trabalho de restauração não poderá ser visto apenas nas cópias digitais dos DVDs, mas também nos cinemas. No próximo ano, Karmitz começa a exibição de outros filmes de Chaplin nas salas parisienses, depois do sucesso de O Grande Ditador e Tempos Modernos. A partir de 7 de abril, já estão agendadas temporadas para O Circo, O Garoto e Luzes da Cidade. Como não há certeza de que algum dia veremos essas obras-primas mais uma vez na tela grande, as caprichadas edições em DVD garantem uma verdadeira experiência cinematográfica, independente das dimensões do écran. Além da restauração, Karmitz produziu uma série de documentários, com a participação de diretores franceses, que procuram atualizar cada filme, além de uma introdução feita por David Robinson, o biógrafo de Chaplin. Os outros materiais foram pescados nos acervos da família e incluem filmes caseiros, cenas cortadas e curtas-metragens que serviram de ensaio para obras futuras. Entre as pérolas, estão documentários que dialogam com os filmes. Um deles é Por Primera Vez, um curta cubano que mostra a reação dos camponeses que assistiam a um filme pela primeira vez, graças ao projetista itinerante que mostrava Tempos Modernos. Em outro, temos um musical promocional feito pela Ford cujas linhas de montagem inspiram Chaplin. Em 2004, serão lançados outros títulos, entre os quais O Circo, Luzes da Cidade, O Garoto e Um Rei em Nova York. • Ernesto Barros é jornalista. Continente dezembro 2003
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28 MARCO
ZERO
Alberto da Cunha Melo
Cinema nacional sai do coma collorido. E agora? O cinema nacional vem a reboque do bem tratado e reciclado cinema ocidental
O
s Estados Unidos são uma Esparta coberta de Prêmio Nobel, de ouro olímpico e... cadáveres. Principalmente cadáveres de pele vermelha e amarela. Mas os EUA souberam ganhar dinheiro e prestígio faturando, tirando o melhor partido de suas virtudes e mazelas. E o cinema norte-americano, principalmente depois da vitória dos Aliados, foi um dos seus mais importantes formadores de divisa e colonização cultural. O mito do herói solitário do faroeste, se não foi tão devastador quanto o do Super-Homem de Nietzsche, que levou à chacina apocalíptica quase cinqüenta milhões de habitantes, superou-o em universalidade, onipresença e faturamento. Todos nós, homens e mulheres, principalmente os que têm mais de cinqüenta anos, fomos mais ou menos colonizados pelo cinema daquele país. Os EUA, através da fase épica do faroeste, criaram um mito universal – dizem os que entendem do assunto –, nós, brasileiros, só temos mitos folclóricos locais. Nem para as crianças de hoje criamos heróis nacionais. Culturalmente, somos mais consumidores que produtores. A capacidade de assumir riscos do empresariado norteamericano, sem essas ralas leis de incentivo à cultura, foi a responsável, desde o início, pelo extraordinário sucesso da indústria cinematográfica do ameaçador Grande Irmão. Aqui as empresas, até as empresas estatais, sentem-se orgulhosas de reservar um pouco do imposto que têm a obrigação de pagar,
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porque é dinheiro do povo, para os projetos culturais. Na verdade, não estão investindo um só tostão em qualquer manifestação da arte brasileira. Os mais saudosistas vão falar nos empreendedores que criaram duas importantes companhias cinematográficas na década de 40, do século passado, a Atlântida e a Vera Cruz. Mas não venham para cima de mim com esse argumento, porque são apenas exceções que confirmam a regra brasileira de os empresários, em sua maioria, só fazerem investimentos de risco com dinheiro do governo, isto é, de nós todos. O Collor pensou que existiam empresários neo-liberais neste país e reduziu a zero a participação do governo na área cultural. Quebrou a cara. Mas, à revelia do mais que inoperante, inexistente, ministro da cultura, o do governo anterior (dois mandatos), Francisco Welfort, sobrou no país a Lei de Audiovisual (8.685/93). E o cinema nacional, desde então, em coma profundo, começou a dar sinais de vida. Ultimamente, aluguei a fita Carandiru. Não gostei nem desgostei. Documentário insosso, com medo de melindrar os humores dos órgãos oficiais. Estamos com falta de grandes empresários, com coragem, inteligência e vontade de ganhar muito dinheiro aplicando no cinema nacional – e o policial, a violência urbana são troféus malditos do Brasil atual, que precisam ser revertidos em dólares e prestígio internacionais. Nessa coisa de cinema, infelizmente, a arte sempre vem a reboque do faturamento do bem
MARCO ZERO 29
tratado e reciclado lixo cultural em que se transformou, e não de hoje, a cinematografia ocidental. É o triunfo universal do kitsch, diria o magnífico José Guilherme Merquior. O que fazer? Tirar partido dele, forrá-lo no chão, como um pobre tapete para a passagem da verdadeira arte. Eis a indústria cinematográfica brasileira: Artesanal, sem bases comerciais concretas e sem outro fôlego que o do dinheiro dos incentivos fiscais, ou seja, sem o dinheiro do público que, ainda por cima, tem que pagar o ingresso. É muita mendicância para uma atividade cultural que se transformou num impasse, na mudança do GATT na OMC, quando a França e a Grécia resistiram em vão à voragem dos EUA. De qualquer forma, eu saúdo o setor da cultura nacional que vem se destacando neste deserto de projeto, em que os melhores grupos e valores individuais têm de sair do Brasil para fazer sucesso na Europa, porque aqui não têm chances de serem reconhecidos e recompensados.
Quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura, as coisas estavam no ponto em que se encontram, ou seja, no impasse entre fazer o governo fazer algo para abrir oportunidades não só para o cinema nacional, mas para vários outros que também não interessam à maioria do grande empresariado estúpido deste país, ou fechar a área para balanço. Não fez nem uma coisa nem outra. No último dia 30 de outubro, embalados pelo otimismo que se irradiou do cinema nacional, um grupo de parlamentares, com a presença de Gil, fez o lançamento de uma Frente Parlamentar de Defesa da Cultura. Faço votos que tenha, ao menos, vinte por cento da visibilidade tradicional das bancadas Ruralista e Da Bala. Perguntar não ofende: Que fez o MinC este ano? • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.
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LITERATURA
LITERATURA 31 » Fotos: Divulgação
Escritora pernambucana, que despertou para a literatura por causa de um sarampo, alcança a maturidade e o reconhecimento no ensaio e no romance Rodrigo Carrero
LUZILÁ GONÇALVES
Literatura como paixão
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os 10 anos, a menina pegou sarampo. Como precisava de repouso e tinha que ficar isolada dos outros moradores da casa, mudou-se temporariamente para a biblioteca do irmão, Lupércio. Deitada na rede, em silêncio, ela se sentia triste. Para matar o tempo, começou a folhear as páginas de um livro que encontrou por ali. No romance, o jovem Werther sofria com uma paixão não correspondida, enfiando uma bala na cabeça após a última das cartas que compõem a obra, publicada pela primeira vez em 1774. Famoso pela onda de suicídios que provocara entre jovens, na Alemanha do século 18, o livro de Johann Wolfgang Goethe teve efeito contrário no espírito da menina de Garanhuns. Ali, na biblioteca, ela foi tomada por uma paixão intensa pela literatura. Uma paixão pela vida. Hoje, quase 50 anos depois do episódio, a lembrança da leitura do primeiro romance permanece viva na memória de Luzilá Gonçalves Ferreira. “De repente, eu senti que aqueles personagens estavam vivos, à minha volta, e que o quarto não estava mais vazio. Eu estava descobrindo um mundo de palavras. Naqueles dias, devorei vários livros – Anatole France, Jean Baptiste Racine. A força das palavras e o fascínio pela possibilidade de poder, eu mesma, criar universos como aqueles que eu estava lendo, fisgaram-me. Ali, eu já tinha certeza de que queria mundos como aqueles”, afirma Luzilá. Conseguiu.
Hoje, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Luzilá confessa que preferia ser conhecida, primeiro, como romancista. Mas uma só palavra seria insuficiente para classificar alguém que possui uma atividade acadêmica quase febril e é reconhecida como uma pesquisadora que produz um admirável resgate da atuação da mulher em Pernambuco, no século 19. Luzilá possui um pequeno, mas fiel séquito de admiradores, uma galeria de notáveis que já incluiu gente como Carlos Drummond de Andrade. Está com 30 livros publicados e pelo menos mais dois na gaveta. É uma das autoras pernambucanas mais produtivas – e mais destacadas – da atualidade. Risonha e bem-humorada, Luzilá garante que a literatura sempre foi fonte de prazer. Sentada no terraço amplo do sobrado em que vive, desde 1967, no bucólico bairro do Poço da Panela, no Recife, ela não esconde a satisfação ao relembrar a adolescência, o período em que se formou como leitora. Naquela época, freqüentava semanalmente um ônibus-biblioteca que circulava pelos bairros. “Eu ficava escutando no rádio e quando o ônibus chegava, passava o dia inteiro lá. Lia Dostoievski, Machado de Assis”, recorda. Depois, Luzilá adquiriu o hábito de freqüentar bibliotecas diariamente, na saída do colégio Agnes, onde estudava. A Escola Industrial e o Instituto de Educação de Pernambuco viraContinente dezembro 2003
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32 LITERATURA
“De repente, eu senti que aqueles personagens estavam vivos, à minha volta, e que o quarto não estava mais vazio. Eu estava descobrindo um mundo de palavras”
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ram ponto de refúgio da adolescente, na década de 1950. “Da literatura passei à filosofia, à história, às óperas”, revela. Luzilá demonstra desgosto pelo estado atual das bibliotecas brasileiras. Para ela, a falta de conservação e de atualização dos estoques ajudam a explicar o declínio da leitura nas últimas décadas do século 20. De qualquer modo, as bibliotecas iniciaram a futura presidenta da Associação dos Moradores do bairro de Casa Forte (entre 1986 e 1992, ela liderou um grupo de moradores do bairro centenário do Recife, impedindo, com sucesso, que construções altas fossem erguidas no local) em outra paixão, igualmente importante no futuro da escritora: o estudo de francês. Quando cursou Letras na UFPE, Luzilá já falava a língua fluentemente. No fim do curso, ganhou uma bolsa para estudar na Escola Superior de Francês, no Rio de Janeiro. Era 1961. No ano seguinte, já estava em Paris. Tanta paixão pela França acabou traduzida em uma relação física, casou com um francês. Nos anos seguintes, seguiu o marido pelo mundo. Primeiro voltaram ao Brasil, onde ficaram até 1968. Os quatro anos seguintes passou em Paris, onde teve o primeiro filho, Jean Christophe – uma homenagem a um daqueles livros (no caso, de Romain Rolland) que a menina com sarampo havia devorado. Depois morou em Buenos Aires, onde ensinava Literatura Brasileira para estudantes argentinos. Novamente no Brasil, após outros dois filhos e um divórcio, a Luzilá romancista estava pronta para nascer. Dois contos publicados nas revistas Nova e Civilização Brasileira, em 1978 e 1979, lhe deram a confiança. Em 1981, o livro de contos O Espaço do Teu Rosto era publicado pela lendária Edições Pirata, pequena editora recifense. Os elogios pela estréia vieram de onde menos esperava: Carlos Drummond de Andrade, para quem mandou um exemplar, agradecendo a inspiração, enviou-lhe uma carta que ela guarda com carinho. “Ele me disse que meu trabalho tinha qualidade para ser publicado em maior escala”, exalta Luzilá. Uma pequena biografia de Lou-Andreas Salomé, publicada em 1982 pela coleção Encanto Radical, da editora Brasiliense, deu a Luzilá o empurrão nacional que faltava. O livro, aliás, faz uma ponte entre a romancista e a acadêmica e feminista (ou feminina, como prefere, já que Luzilá não se enquadra nem de longe no estereótipo da feminista clássica). Na UFPE, onde ensina
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“A literatura brasileira do século 19 não tem mulheres. Eu não podia acreditar que elas não escreviam naquela época. Por isso, fui pesquisar”
Literatura Brasileira na pós-graduação e Literatura Francesa na graduação, fundou, em 1986, o grupo de estudo “Mulher e Literatura”, que produziu a pesquisa Suaves Amazonas, sobre mulheres que formaram, em pleno século 19, uma rede abolicionista. Publicavam jornal, livros de poesia e arrecadavam dinheiro para libertar escravos – foram mais de 300. E eram republicanas. Um mundo novo – “A literatura brasileira do século 19 não tem mulheres. Eu não podia acreditar que elas não escreviam naquela época. Por isso, fui pesquisar. E descobri um mundo novo, fascinante, que não está nos livros”, revela Luzilá, cujas pesquisas mostraram que os romances femininos eram publicados, faziam sucesso e ainda tematizavam a vida submissa que levavam. “Elas produziam tanto quanto eles. Só não encontraram espaço nos livros de História por preconceito. Os homens não aceitavam que a mulher pudesse produzir arte da mesma qualidade que eles”, afirma. Luzilá sabe do que está falando. Entre 1992 e 1996, dedicou-se a produzir uma pesquisa de quase 700 páginas, num doutorado feito em Paris. Descobriu uma rede feminista que ganhava dinheiro com a publicação de romances e denunciava a condição de subalternidade das mulheres. Como foi a primeira vez que algum pesquisador dedicou-se ao tema na França, editoras francesas já demonstraram interesse em publicar o trabalho, mas Luzilá nunca levou a idéia em frente. O motivo? Excesso de projetos. Ou, talvez, preguiça mesmo. “Esse trabalho é passado, não tenho tempo nem paciência para me dedicar a ele agora. Talvez no futuro”, desconversa, folheando livros que já estão prontos – um deles, a Antologia de Poetas do Século 19, sobre a literatura pernambucana da época, está apenas à espera de patrocínio. Se a atividade acadêmica é incessante, contudo, o trabalho de romancista tem crescido nos últimos anos. Depois de um período vitorioso entre 1982 e 1992, no qual ganhou quatorze
prêmios literários, inclusive o Joaquim Nabuco de biografias da Academia Brasileira de Letras (1992) e a IV Bienal Nestlé de Literatura, Luzilá diminuiu o ritmo, enquanto pesquisava para o doutorado. Retomou a veia romancista, buscando as raízes e retomando o texto que iniciou a carreira de biógrafa não-convencional (ela também já escreveu sobre Fernando Pessoa e George Sand). Humana, Demasiadamente Humana saiu em 2001, ampliando o estudo sobre Salomé. Em 2002, foi a vez de Voltar a Palermo, romance levemente autobiográfico, que se passa na Argentina dos anos 70. No livro, a pernambucana Maria retorna para o país portenho, 20 anos depois de ter morado lá, para recordar e tentar compreender melhor um romance que havia mantido com o motorista de táxi Nino. É seu livro favorito. A época e a geografia batem com a experiência pessoal, mas, embora admita que tirou inspiração da protagonista na vida dela mesma, Luzilá garante que a ficção também encontrou lugar no relato – e deixa envolta em cortina de mistério a linha divisória entre sonho e realidade. Em setembro passado, foi a vez de No Tempo Frágil das Horas, em que une o tempo e o espaço que lhe são mais familiares – os engenhos pernambucanos do século 19 – à temática que lhe consagrou: a luta incessante da mulher pela liberdade da alma. No relato, tecido à base de lembranças carinhosas da aristocracia açucareira nordestina (“eu vivo essa nostalgia, acredito que os pernambucanos da minha geração a vivem da mesma maneira”), Luzilá conta a história de uma personagem real, Antônia Carneiro da Cunha, a Baronesa de Vera Cruz, que ficou viúva aos 38 anos e teve que lutar, sozinha, para criar a família. Como se vê, a Luzilá romancista encontra a Luzilá acadêmica. Nada mal para uma menina que só queria espantar a solidão provocada por uma doença contagiosa. • Rodrigo Carrero é jornalista e mestre em comunicação pela UFPE.
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A última regionalista A romancista Rachel de Queiroz (1910-2003), falecida em novembro, era a última sobrevivente de um ciclo que reuniu nomes como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e José Américo de Almeida Luiz Carlos Monteiro
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achel de Queiroz publicou O Quinze em 1930, livro que se revelou uma pequena obra-prima do regionalismo brasileiro. Essa estréia se deu após a de José Américo de Almeida com, A Bagaceira, e antes de José Lins do Rego, com Menino de Engenho. Posteriormente, apareceram livros de outros autores regionalistas, como Graciliano Ramos, com uma ficção caracterizada pela denúncia social, chamando a atenção para uma região esquecida e para os seres que ali transitavam, mais morto-vivos que propriamente vivos. O ciclo regionalista envolveu o desenvolvimento de temáticas da cana-de-açúcar, com a decadência dos engenhos nordestinos, e da seca, que gerou tipos humanos como o cangaceiro e o beato.
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O romance passou em brancas nuvens em Fortaleza (CE), cidade onde ela nasceu e vivia à época. No entanto, foi bem aceito no sudeste, tendo merecido um artigo entusiástico do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, mesmo considerando-se as restrições feitas ao tamanho do livro, com seu enredo de pouco fôlego. O fato é que a jovem autora alcança repentinamente a consagração literária, reforçada em 1931 com um prêmio da Fundação Graça Aranha. O Quinze apresenta um relato dos tempos parcos e desolados da seca de 1915. Romance totalmente centrado nas falas e digressões dos personagens, caracteriza-se também pela ausência de descrições ambientais e paisagísticas. Mostra como a seca atinge os que ficam com seus laivos de crença e insistência, e os que se vão com sua frágil e incerta esperança. Os viventes da seca cumprem um itinerário de cidades sem nome, alguns morrendo pelo caminho, e os que conseguem resistir, sonham e lutam desesperadamente para chegar a um Amazonas de seringais longínquos ou a um São Paulo com promessas de emprego e moradia. Mesmo com o seu grau de autenticidade – com a libertação regionalista do naturalismo –, o realismo de O Quinze se estrutura mais num plano psicológico rudimentar que na realidade exterior. O seu próximo romance, João Miguel (1932), dá continuidade à escrita das coisas e da gente nordestina, mas agora psicologicamente denso e fatalista, ao retratar a história de um crime inesperado, de uma traição amorosa e, principalmente, da vida na cadeia. Tudo que é externo à cadeia chega apenas pelas lembranças dos presos, pelas conversas dos presos entre si e com o carcereiro e os soldados, e pelas novidades trazidas pelos visitantes. Os diálogos são seguidos de breves intervenções, em forma de reflexão, associadas às situações que os engendram. É o caso da reflexão que o personagem João Miguel empreende na tentativa de compreender e justificar as motivações para o assassinato cometido e suas implicações para ele próprio e sua vida. Um dos maiores ensinamentos do livro é o apego dos personagens à vida, mesmo em meio às maiores desgraças e misérias. Em João Miguel, são raros os objetos do mundo externo – a palavra, como em O Quinze, não alcança a coisa – a exemplo da rápida referência aos “ladrilhos” onde cai o homem morto por João Miguel e à “mesa preta” do juiz que o sentencia em júri. A peça A Beata Maria do Egito (1957), que se origina da lenda religiosa de Santa Maria Egipcíaca (objeto de uma “balada” de Manuel Bandeira), obteve várias premiações. Na lenda religiosa, a santa entrega-se a um barqueiro como paga para que este a leve de uma margem a outra de um rio. A beata de Rachel de Queiroz é presa sob a acusação de rebeldia e
desordem pública, por arrebanhar romeiros e fanáticos para uma causa mais política que religiosa. Para que saia da cadeia, a beata entrega-se ao tenente-delegado, que se apaixona por ela e não pretende cumprir o trato. Essa literatura sertaneja típica vai encontrar sua realização final no romance Memorial de Maria Moura (1992). Cada personagem relevante na trama – Maria Moura, o Beato Romano – aparece como narrador subliminar e, ao mesmo tempo, de um modo mais direto, travando diálogos com outros personagens. As subdivisões do livro são abertas, à maneira de capítulos, com os respectivos nomes daqueles personagens. As intervenções de Maria Moura no romance são predominantes, seguindo uma trilha de violência e vingança, deflagradas pela defesa das terras que herdou, ameaçadas de expropriação pelos parentes mais próximos. À frente de um bando de jagunços, comanda uma sucessão de mortes inicialmente inexplicáveis para os de fora, a maioria de emboscada e outras no confronto direto. Quando se avança nas páginas do Memorial, constata-se uma certa monotonia, com a repetição de quadros e a previsibilidade de situações e acontecimentos. A narração parece girar indefinidamente em torno de si mesma, tendo a seu favor apenas a força da personagem Maria Moura. Em Dôra, Doralina (1975), Rachel de Queiroz promove uma mudança de orientação na sua atividade romanesca, onde adota uma vertente mais urbana, com poucas entradas no mundo rural cearense. O romance é composto de três livros interdependentes. O Livro da Companhia, por exemplo, voltase para as peripécias de uma companhia de teatro com todos os seus problemas humanos, financeiros e artísticos. Também aqui a escrita parece amarrar-se idiossincraticamente em torno de personagens batidos, numa sucessão interminável dos mesmos fatos e vivências. A fortuna crítica de Rachel de Queiroz é reduzida, ocorrendo na medida inversa de sua popularidade. Contudo, críticos importantes escreveram ensaios sobre seus livros – Mário de Andrade, Alceu Amoroso Lima e Adolfo Casais Monteiro, entre outros. Na crônica, na peça teatral, na literatura infantojuvenil ou no romance, cultivava um estilo simplificado e sem sinuosidades de linguagem. Isto teve como resultado um discurso literário sem rodeios, inteligível e que expressava um gosto sincero pelo cotidiano e pela vida, sem afastar-se do enfrentamento de todas as suas manifestações e complexidades. Por outro lado, há momentos em que esse discurso fica sufocado pelos ambientes extremamente fechados onde seus personagens se removem. • Luiz Carlos Monteiro é crítico. Continente dezembro 2003
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36 LITERATURA
Exposição comemora os 100 anos de nascimento do escritor que usava a simbologia alquímica para estruturar suas obras
Centenário do alquimista Pedro Nava
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“caso” Pedro Nava é um dos mais fascinantes na história literária brasileira. Companheiro de juventude de Carlos Drummond de Andrade, Emilio Moura, João Alphonsus, Milton Campos e Gustavo Capanema, na Belo Horizonte dos anos 20, começou desenhando, escrevendo poesia e metendo-se em política para, subitamente, enveredar pela medicina, à qual passou a dedicar-se exclusivamente até perto dos 70 anos. Em 1972, entretanto, surpreendeu o mundo literário ao publicar Baú de Ossos, o primeiro de seis volumes de memórias, em que se revela, não apenas um escritor consumado, como um exímio analista e restaurador da memória de toda uma época. Na verdade, ao publicar, sem interrupção, os volumes seguintes – Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo-das-Trevas e O Círio Perfeito –, Nava conseguiu traçar todo um rico painel cultural e sociológico do século passado no Brasil. Quando escrevia o sétimo volume, que levaria o título de Cera das Almas, surpreendeu pela última vez a todos, suicidando-se com um tiro na cabeça, a três meses de completar 81 anos. Por ocasião do centenário do escritor mineiro, nascido em Juiz de Fora, em 5 de junho de 1903, a Fundação Casa de Rui Barbosa realiza a exposição Pedro Nava, o Alquimista da Memória, com curadoria de Marília Rothier Cardoso, mais edição e concepção visual de Stela Kaz. O título vem, segundo Marlía Rothier, do fato de que a complexidade da tentativa de Pedro Nava em tentar a cristalização do fluxo vivido “é caracterizada, nas indicações classificatórias do memorialista, através da simbologia alquímica. Sabedor de que a razão científica, em que foi educado, é constantemente perturbada pelos fantasmas do imaginário, recolocou em uso a velha máquina da alquimia, desejando transformar, no ouro da síntese literária, os resíduos de minério perecível, que lhe sobraram, nas mãos e nas gavetas, depois de uma busca sôfrega de conhecimento do mundo e interferência na vida”.
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LITERATURA 37
Capa do catálogo da mostra Pedro Nava, o Alquimista da Memória, que reúne documentos e objetos pessoais do escritor mineiro
Pedro Nava sempre colecionou, em silêncio, anotações, cartas, desenhos, fotografias e lembranças escolares, num arquivo de que depois se valeu, ao arquitetar sua obra. Antes de morrer, doou, ao Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), da Fundação Casa de Rui Barbosa, 6.110 documentos, cobrindo um período que vai de 30 de junho de 1836 até 2 de novembro de 1993. A exposição Pedro Nava, o Alquimista da Memória, além de exibir em painéis vários destes documentos, reproduz o ambiente do apartamento da Glória, onde ele viveu os cerca de quarenta anos em que se dedicou à medicina. Estão também exemplificadas as três etapas na técnica de escrita da obra, utilizadas por Nava: as fichas de registro das recordações, o esquema ou “boneco” dos capítulos e a primeira versão dos originais, sempre cheios de revisões, colagens e desenhos. Também um caricaturista e ilustrador, Pedro Nava usava tanto imagens quanto palavras nas etapas de criação da sua obra. Imagens do sobrado da Rua Direita, casa da avó materna, típica da sociedade de Juiz de Fora, onde Pedro nasceu no início do século passado, e imagens da Rua Formosa de Fortaleza, casa da avó paterna, onde o menino foi levado para ser batizado, também estão presentes na exposição. Também está representada a casa onde ele guardou as imagens mais vívidas, na Rua Aristides Lobo, Rio Comprido, no Rio de Janeiro. O colégio interno e a carreira médica acham-se igualmente presentes. A carreira literária é relembrada através das fotos dos jovens companheiros de roda boêmia, o design das revistas da época e as capas das primeiras edições dos seis volumes da sua obra, além de vários poemas, entre os quais o célebre “O Defunto”, publicado na Antologia de Poetas Bissextos Contemporâneos, organizada por Manuel Bandeira. O livro Pedro Nava (422 páginas – R$ 15,00) integra a coleção Inventário do Arquivo publicada pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), da Fundação Casa de Rui Barbosa, enquanto que o catálogo Pedro Nava, o Alquimista da Memória, de tiragem limitada, pode ser encontrado na sala de exposições da Casa de Rui Barbosa. • Exposição Pedro Nava, o Alquimista da Memória Inaugurada no Dia Nacional da Cultura (5 de novembro), a mostra permanecerá aberta ao público até o dia 7 de março de 2004. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rua São Clemente 123, Botafogo, Rio de Janeiro. Fone: (21) 2537.0036, Ramal 167.
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ARTES
De Onde Viemos? Quem Somos? Para Onde Vamos? (óleo sobre tela, 139cm x 375cm, 1897. Museum of Fine Arts, Boston) – Gauguin queria o Éden
Gauguin no mundo e nas nossas vidas Nascido em 1848 e falecido em 1903 – há 100 anos, portanto –, o pintor francês, ao abandonar Paris pela Polinésia, afastou-se dos padrões greco-romanos da arte, mudando o ideal de beleza José Cláudio
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primeiro Taiti foi aqui. Os pintores de Nassau o precederam em séculos nessa busca do Paraíso terreal; quer dizer, vocês podem dizer, antes o “Paraíso comercial” da Companhia das Índias Ocidentais; mas, mais antes ainda, já a busca desse paraíso primeiro, o Éden, a Schlaraffenland, precedera seja os holandeses, seja os portugueses e espanhóis ou outros que descobriram o Brasil; a Idade de Ouro, a aurea aetas de Virgílio e Ovídio; ou Platão, na República, e outras utopias, de Tomás Morus ou Tomás Campanella; e a única teoria que responde tanto às preocupações com esse paraíso inicial como ao paraíso final, a da Bíblia, deixando a idéia de paraíso boiando na imaginação de nós ocidentais. Só para lembrar: um Marco Polo, por exemplo, “o Paraíso Terrestre não se inclui no itinerário de Marco Polo” (Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso) e de fato o seu livro de viagens é calcado mais na notícia das maravilhas, do estapafúrdio, do que na busca do lugar ideal em que os homens “ainda” viviam na felicidade perfeita. Há ainda a teoria psicanalítica da busca do útero materno na procura da era da inocência original, procura essa pela qual tantos brasileiros foram assassinados em passado recente. Gauguin, retomando a primeira frase deste escrito, foi o último, depois também de JeanJacques Rousseau e Voltaire, descrente este da existência do “bom selvagem”: Voltaire já sabia que no momento mesmo da descoberta desse bom selvagem, na primeira troca de olhares, esse bom selvagem e seu bom mundo ruiriam; assim como a cor não existe no escuro, resultado do
Dança dos Tapuias, de Eckhout: predecessor na procura do Paraíso
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Na página anterior, Contos Bárbaros – busca da pureza ancestral Ao lado, Música Bárbara – prenúncio do Modernismo
estímulo dado pela luz quando bate na superfície dos diversos materiais, se é que é verdade isso, assim também quando o olhar do branco incide sobre o selvagem, nesse mesmo instante quebra-se o encanto, sendo que as superfícies referidas voltam ao estado anterior e o selvagem nunca. Mais difícil ainda é quando um que não é selvagem pretende retornar ao selvagem ou ao inocente que viva em estado latente dentro dele; no caso, Gauguin. Digo que Gauguin foi o último porque na época dele já não se faziam índios como antigamente. Já não havia o selvagem em sua inteireza. As índias do Taiti já não andavam nuas. Os europeus já lhes haviam imposto o uso da roupa da cabeça aos pés. As mulheres que aparecem nuas nos quadros de Gauguin precisavam ser convencidas a posar nuas, ou talvez surpreendidas no banho em lugares escondidos, como está exposto no livro Gauguin sem Lendas, cujo autor me escapa (não sei onde botei o livro, como é freqüente). No livro de Vargas Llosa, O Paraíso na Outra Esquina, nessa tarefa de convencimento às mulheres tirarem as roupas para posar nuas, o pintor era auxiliado pela sua mulhermenina, Teha'amana, que aparece no quadro Manao Tupapau ou O espírito dos mortos ronda, sua primeira obra-prima taitiana. Engels, Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, fala na época anterior à propriedade privada em que nem mesmo existia a noção de propriedade da mulher pelo homem, e vice-versa, não existindo casais mas grupos que acasalavam entre si, havendo, tanto para o homem como para a mulher, vários parceiros ao mesmo tempo. Mesmo na época da Gauguin, depois do puritanismo imposto na Polinésia pelos católicos e protestantes franceses, os nativos adotavam na vida íntima uma mobilidade extraordinária, os casais se fazendo e desfazendo o tempo todo sem o menor constrangimento. Parece que foi Ribeiro Couto que lembrou isso de os pintores de Maurício de Nassau terem sido os primeiros a saírem da Europa para pintar noutro lugar. Só que os pintores de Nassau não estavam querendo aprender nada com os índios e muito menos se
converterem neles, enquanto Gauguin dizia que a civilização européia era a doença dele e a barbárie dos polinésios sua cura. Quem cantou a pedra foi Van Gogh, ao dizer, numa de suas cartas (o pintor Eduardo Corrêa de Araújo foi quem me chamou atenção para isso e até copiou o trecho da carta, que como sempre não sei onde botei) que a pintura renasceria nos trópicos, citando expressamente o Brasil: teria, holandês, se lembrando de Pernambuco, dos pintores de Maurício de Nassau, já que isso faz parte da história do seu país? Mas foi Paul Gauguin que foi em busca desses trópicos, talvez lembrandose de quando era marinheiro, engajado aos 17 anos num navio mercante que fazia a linha Le Havre – Rio de Janeiro, ou se lembrando de seu avô peruano, e não somente um deslocamento em latitude e longitude mas se afastando dos padrões greco-romanos da arte, mudando o ideal de beleza, quebrando a proporção da figura, indo em direção da arte primitiva dos maori que procurou reinventar, quebra essa levada a fundo por Picasso a partir de 1907 ( Les Demoiselles d’Avignon), 16 anos depois de Gauguin ter desembarcado em Papeete, ao amanhecer de 9 de junho de 1891, um novo dia para o mundo todo. Essa busca da pureza ancestral, do paraíso primordial, permanece e se torna cada vez maior com o perigo crescente da destruição do planeta, tornando-se um dever do homem civilizado e até medindo-se o seu grau de civilização pela sua capacidade de preservar a natureza, envolvendo aí as culturas primitivas, o modo de viver e conviver, de subsistir e deixar aos que vierem depois um mundo possível, hoje ameaçado de logo não ter ar para respirar nem água para beber. Até fui à África, me valer dos orixás como Gauguin dos atoari, necessidade essa que fez, não duvido, minha neta de 14 anos nascida e morando sempre nos Estados Unidos pedir de iniciativa própria no meio de um telefonema em que eu a aconselhava a estudar latim: “Vovô, você pode me mandar um livro de tupi?”. • José Cláudio é pintor.
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42 ARTES
Gauguin: um artista seminal
Continente julho 2003
ARTES 43 » O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo e toda a geração posterior devem muito a Gauguin que, com Paul Cézanne e Van Gogh, foram os motores a influenciar o Modernismo na arte do século 20 Plínio Palhano
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uando o jovem Picasso chegou a Paris (1900), no propósito de ampliar os seus horizontes e manter contato com a vanguarda artística parisiense, com o seu olhar e cérebro fulminantes, absorvia tudo o que estava ao redor, incorporando ao seu trabalho a graça inconfundível do desenho de um Toulouse-Lautrec; a pincelada e cor expressionista de Van Gogh; o pós-impressionismo em voga; a geometria do espaço pictórico de Paul Cézanne; e mais: conheceu um escultor, Paco Durrio, num círculo de artistas espanhóis exilados, que mostrou quadros do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) e forneceu uma cópia da primeira edição de Noa Noa, em que o artista relata suas experiências no Taiti; o escultor foi um guardião fiel dessas obras, a pedido do autor, enquanto o artista empreendia a sua longa viagem à Polinésia. Em seguida, acompanhou com atenção a grande retrospectiva do selvagem Gauguin, com cerca de 200 pinturas, em 1906, no Salon d’Automne, que foi uma revelação não somente para o espanhol Pablo Picasso, mas também para Henri Matisse, Raoul Dufy, André Derain e outros artistas que ficaram impressionados com a luz do Taiti, refletida através de sua obra. O artista polêmico Gauguin, de natureza indomável e vontade imperativa, abalou o seu tempo e as gerações futuras, principalmente realizando obras de forma livre e concentradas nas teorias que lhe vinham ao espírito, sem medir as conseqüências que os olhares e as mentes alheias julgariam e muitas vezes não tão favoráveis, por falta de percepção. Como, por exemplo, a pintura extraordinária realizada no Taiti, Manao Tupapau (O Espírito dos Mortos Vela, 1892), baseada na lenda do
espírito mau que vivia nas selvas e se utilizava das noites para incomodar os nativos taitianos incautos. Gauguin encontrava um paralelo nessa obra com a Olympia de Édouard Manet que tanto admirava por ser um marco na pintura européia, rompendo com as tradicionais representações de deusas imaginadas; levando com ele a reprodução dessa pintura, nos estúdios onde permanecia –, pela franqueza do olhar para o espectador – encontrado também na Olympia –, da menina nua, a figura do lado esquerdo representando o “tupapau”, e mais os efeitos pictóricos que continha; alguns críticos, em Paris, não aceitaram a comparação. Mas em outras pinturas também ele fez o paralelo com a Olympia, como a realizada em Paris, no seu retorno da primeira viagem ao Taiti, Annah, a Javanesa (1893): mesma confrontação do modelo com o espectador. A chave dessas obras era que ele transformava a sua visão de civilizado numa nova, de selvagem. Como ele dizia de si próprio: “Sou um selvagem do Peru”, orgulhoso de seus supostos antepassados incas. Ia Orana Maria (Nós te Saudamos, Maria), terminada em 1892, representava Maria como uma Eva no paraíso, transformada numa típica mulher nativa (vahine), com o Cristo já nascido – pois se trata da anunciação do anjo sobre o nascimento do Cristo –, de pele escura, o anjo entre as folhagens, e toda a cena numa mata com vegetação tropical. O catolicismo não aprovou a pintura, por achar que as representações não eram compatíveis com as tradições da Igreja. Após realizar a primeira viagem ao Taiti (1891-1893), com uma produção de 63 quadros, e a mente absorvida no universo, que comparava a um Éden distante dos movimentos de Paris, que ainda o interessava, retorna com a ansiedade Continente dezembro 2003
Na página anterior, Nós Te Saudamos, Maria (1892) Ao lado, O Espírito dos Mortos Vela (1892)
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44 ARTES natural para que todos vissem a riqueza das observações plásticas que construiu, confiante num sucesso sempre sonhado e anunciado à esposa Mette Gad Gauguin, pensando em reconstituir a vida familiar destruída. Propõe uma exposição ao marchand Durand-Ruel, e este transfere para os filhos Joseph e George a realização, porque estava com investimentos nos Estados Unidos para a conquista daquele mercado. A inauguração foi no dia nove de novembro de 1893, com a participação de Charles Morice, dando o suporte para a divulgação na imprensa. Quarenta e duas obras são expostas, com as
Homem com Machado (1891)
molduras da preferência de Gauguin, modernas - brancas, azuis –, para diferenciar das do Salão Oficial. Um objetivo ele conseguiu, se não o sucesso almejado: uma polêmica que mexeu com o mundo artístico e intelectual parisiense. Realmente, Gauguin já era uma presença impossível de ignorar, com uma fama conquistada a duras penas, mas com amargura não se sentia compreendido pelos pintores dos quais gostaria de ouvir comentários favoráveis. A maioria das críticas foi em cima do exotismo e sexo que diziam ter explorado da cultura maori. As obras Mulher com Flor (1892), primeiro quadro realizado
ARTES 45 »
Paul Gauguin: desencanto com a civilização produziu obras-primas
no Taiti com modelo nativo; Homem com Machado (1891); A Deusa da Lua e o Gênio da Terra (1893); O Mercado (1892); Como, Você Está com Inveja? (1892); Mulher com Manga (1892); Pastoral Taitiana (1893); Teha’amana Tem Muitos Antepassados (1893); O Espírito dos Mortos Vela (1892) não foram suficientes para convencer o público, os críticos e os artistas – divididos quanto ao julgamento. Mas ele pretendia continuar a gigantesca obra com o pouco tempo que lhe restava – a saúde já dando sinais de abalo, com sintomas de sífilis. Era necessário utilizá-lo como uma preciosidade. Na indignação com a Paris ainda refratária aos seus pensamentos, realiza, em dezembro, uma amostra de gravuras no seu ateliê na Rua Vercingétorix, onde pintou a sala de amarelo para dar destaque às peças. A publicidade também foi positiva e lá estiveram Vollard, Degas, Mallarmé e outros do círculo da vida cultural da cidade. Mas lhe vem a confirmação de que a civilização não mais o encanta. Retorna ao Taiti (outubro de 1895) e posteriormente segue para as Marquesas, onde conclui o trabalho que precisava realizar. Só em novembro de 1898, mesmo distante, ao se realizar uma exposição na galeria de Ambroise Vollard, com nove quadros enviados do Taiti pelo pintor, nela incluída a grande obra que é considerada um verdadeiro testamento artístico, religioso e filosófico, do artista – De Onde Viemos? Quem Somos? Para Onde Vamos? (1898), com 1,70m de altura e 4m de comprimento – é aclamado pela crítica no Le Journal, La Revue Blanche, Mercure de France. Nessa ocasião, até um dos críticos – André Fontainas – se desculpa por antes não ter apreciado a obra de Gauguin, dizendo-se arrebatado pela força daquela pintura que chegou a Paris. Naquela obra, o artista representou a vida e a morte, numa homenagem à filha Aline, por
quem tinha uma extrema afeição, na triste lembrança de sua morte (1897). Mas não toma conhecimento de imediato do sucesso crítico dessa exposição, pelas precárias condições de correspondência na época, e também por causa da depressão e das condições sérias de saúde e dificuldades financeiras, que não o deixavam otimista quanto às perspectivas das notícias da repercussão da sua obra-prima no meio parisiense. Vollard – a quem o pintor comparava a “um crocodilo da pior espécie” –, sempre interessado nas vendas das obras do selvagem, mantém até o final da vida de Gauguin (1903) relações comerciais vantajosas como seu marchand. Gauguin, um artista seminal, encontrou, nas ilhas longínquas da Polinésia Francesa, a visão do Criador que foi despertada com lutas intermináveis e as incompreensões que vinham de um mundo civilizado; dizia em Paris, antes de partir, que, entre “os selvagens daqui e os de lá”, preferia os que estavam no Taiti ou nas Marquesas. Libertou a história da sua própria pintura e, conseqüentemente, a arte universal, ampliando a cada passo, num processo crescente de beleza, de luz, de cor, de forma, de conceitos – um encontro feliz com o que ele chamava de “mitologia maori”, que recriou com seu olhar agudo. Foi lá onde realizou suas obras-primas, amou suas “noivas” meninas – Teha’amana e Pau’ura – e viveu dolorosamente em luminosidade tropical. O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo, toda a geração posterior devem à nascente Gauguin, como numa trindade com Paul Cézanne e Van Gogh, que foram os motores a influenciar o modernismo na arte do século 20. • Plínio Palhano é artista plástico. Continente dezembro 2003
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ARTES
O escultor pernambucano Abelardo da Hora prepara-se para as comemorações de seus 80 anos com o vigor e a inquietação de sempre
Fotos: Flávio Lamenha
Weydson Barros Leal
Cantata Para uma Bela Dama, escultura em bronze, 2003
A arte, depois de
Abelardo
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ARTES 47 »
N
um texto escrito em 2001, como apresentação da série de desenhos Meninos do Recife, o pintor José Cláudio afirmou que “não se poderia imaginar a arte de Pernambuco sem a presença de Abelardo da Hora”. E continuava: “A Arte de Pernambuco se divide em antes e depois de Abelardo da Hora”. Na verdade, talvez por fazer parte, ele mesmo, de toda uma geração de artistas que de alguma forma surgiram ou aprenderam com Abelardo, José Cláudio não quis provocar, mas a verdade é que “depois de Abelardo” – e com ele – surge a grande e definitiva arte pernambucana. Abelardo da Hora foi mestre e professor de artistas, como Gilvan Samico, Francisco Brennand, Guita Charifker, Maria Carmem, Wellington Virgolino, além do próprio José Cláudio e tantos outros que, por sua vez, tornaram-se – por coincidência ou não – referências de mais de uma geração de novos pintores e escultores pernambucanos. Sua obra pode, sem nenhum favor, ser comparada em força e expressão à de um Portinari, e historicamente tem, como crítica e denúncia social, tanta importância quanto a do pintor de Brodósqui. Ocorre que, na obra de Abelardo, o traço lírico também é seu forte, e a representação do corpo feminino nas enormes esculturas de suas inconfundíveis mulheres revela, na mesma intensidade, o lirismo de um Dante ou de um Camões em suas obras épicas ou expressionistas.
"A minha obra é feita de Amor e Solidariedade: o Amor pelas mulheres e a Solidariedade pela gente e pela cultura do povo". Abelardo da Hora
Nesta direção, o próprio Abelardo confessa: “A minha obra é feita de Amor e Solidariedade: o Amor pelas mulheres e a Solidariedade pela gente e pela cultura do povo”. Sua ligação ou sensibilidade pelas causas populares é o traço central de sua biografia. Abelardo Germano da Hora, nascido em 31 de julho de 1924 na Usina Tiúma, em São Lourenço da Mata, nos arredores do Recife, desde muito cedo despertou para a condição dos trabalhadores rurais e dos pobres da cidade, que sofriam na base da pirâmide social. Desenhista, pintor, entalhador e principalmente escultor, toda sua obra não-lírica, de forte apelo dramático e expressionista, sempre buscou a denúncia do infortúnio dos pobres – homens, mulheres e meninos que afloram entre rios e ruas do Recife. Neste ponto, revela-se também sua mão de poeta, e seus poemas – a maioria inéditos – refletem exatamente sua obra plástica em lirismo e drama. Não fosse já pela sua obra de importância basilar na arte brasileira, Abelardo da Hora ainda representa para os artistas do Recife, desde 1961, uma espécie de pai ou eminência tutelar, quando se fala em exContinente dezembro 2003
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48 ARTES
Vendedor de Pirulitos, estudo para escultura
Série Meninos do Recife (1963), bico de pena sobre papel
posição pública de obras de arte. Foi neste ano que ele redigiu, como linhas gerais para um projeto de lei municipal, um texto que acabou sendo votado e aprovado na íntegra, e por unanimidade, na Câmara dos Vereadores do Recife. Fazendo parte, até hoje, do Código de Obras da cidade, seu texto/lei obriga toda edificação com mais de 1.000 metros quadrados, construída no município, a conter uma obra de arte como parte integrante. Como diz Abelardo, isto transformou o Recife, nos últimos 40 anos, “numa galeria de arte a céu aberto”. E sua idéia até hoje é copiada por governos municipais do Brasil e de outros países. Reconhecido internacionalmente como um dos maiores escultores brasileiros de todos os tempos, Abelardo da Hora prepara-se para completar 80 anos em 2004. Nessas oito décadas, sua presença na história política e cultural brasileira está acima de uma simples participação como professor, artista engajado ou militante do extinto Partido Comunista, pois, em cada evento ou obra em que pôs o seu nome, percebe-se a dimensão de seu gênio humanista. Às vésperas de uma data Continente dezembro 2003
ARTES 49 »
“A Arte de Pernambuco se divide em antes e depois de Abelardo da Hora” José Cláudio
em que muitos dão como encerrada a participação na arte ou na vida, pondo-se à espera das homenagens devidas, Abelardo surpreende por uma vitalidade e inquietude incomuns, o que justifica um ritmo de trabalho diário e intenso no ateliê onde trabalha, em sua casa, no Recife. Mesmo tendo vivido em Paris por mais de um ano e em São Paulo por três anos, entre 1964 e 66 – (“se dependesse do amigo Pietro Maria Bardi, não teria jamais voltado a Pernambuco”, ele lembra) – Abelardo fez de sua casa, na rua do Sossego, um pequeno museu onde dezenas de esculturas de bronze e concreto – sendo em sua maioria imensas mulheres – estendem-se pelas salas, quartos e corredores. Também sobre colunas ou em nichos e parapeitos que ocupam até a cozinha, Abelardo expõe bustos e esculturas de corpo inteiro de mulheres ou de grandes nomes da cultura pernambucana – como Gilberto Freyre e Luis Gonzaga – de que se orgulha por ter realizado: percebe-se que, para ele, é o ato de louvar, muito mais do que ser louvado, o que lhe enriquece o espírito. Assim, após nos dizer um de seus
O gênio humanista de Abelardo da Hora é percebido em cada evento ou obra em que põe o seu nome
Escultura em cimento, da série Hiroshima
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ARTES 51
poemas e se ver elogiado como poeta, ele imediatamente corrige: “A verdadeira poeta da casa é Margaridinha”, referindo-se à sua mulher, Margarida Lucena da Hora, com quem está casado há 55 anos. Entre suas últimas criações, ainda não instaladas nos espaços a que se destinam, estão a escultura de Luis Gonzaga – em fase de acabamento –, que ficará na BR-232, no caminho entre o Recife e Caruaru, e o Monumento ao Frevo, um grande conjunto escultórico em que passistas de frevo empunham o estandarte do Clube Vassourinhas, de onde Abelardo é sócio-benemérito. Essa peça, assim como a primeira, realizada em bronze, dará as boas-vindas, nos jardins do novo Aeroporto Internacional dos Guararapes, aos passageiros que chegarem ao Recife a partir de 2004. Nos armários e gavetas onde Abelardo guarda antigos jornais, catálogos de exposições no Brasil e no exterior, publicações sobre mostras individuais e coletivas (que exibe com igual ou maior orgulho), e volumes de livros e enciclopédias, onde seu nome é citado com reverência crítica, escondem-se os registros impressos de uma obra reconhecidamente “maestra”, aberta aos olhos do povo e da cidade, inconfundível em seu traço grave e trágico, alegre e sensual. Para uma narrativa de sua vida, em que cada um desses registros se organizasse cronologicamente de forma a recontar os seus 80 anos, um livro seria apenas parte do que sempre ficaria por contar. Uma humanidade inteira, em cada escultura de Abelardo da Hora, nos ensina o sentido de toda existência. •
Os Cantadores, escultura em cimento, exposta no Parque 13 de maio
Weydson Barros Leal é poeta e crítico de arte.
Casa-ateliê do artista
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52 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Iberê in extremis Em Iberê, um fator subjetivo e emocional reintroduz a questão pessoal e biográfica Foto: Fundação Iberê Camargo/Divulgação
Tudo é falso e inútil I, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 250 cm, Fundação Iberê Camargo, Coleção Maria Coussirat Camargo
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TRADUZIR-SE 53
O
catálogo da exposição Iberê Camargo: Diante da Pintura – apresentada na Pinacoteca de São Paulo – é um trabalho louvável da Fundação Iberê Camargo, não só por sua qualidade gráfica como pela síntese que nos oferece da vasta obra do artista. O texto do catálogo é de autoria do professor e crítico de arte Paulo Venâncio Filho, curador da referida mostra, que mais tarde poderá ser vista no Paço Imperial do Rio de Janeiro, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, e no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador. O texto crítico de Paulo Venâncio Filho preocupa-se menos em situar artística e historicamente a obra de Iberê do que em nos pôr diante de sua complexidade estética e existencial. Não obstante, ele nos conduz dos quadros iniciais do pintor (anos 40) até os momentos finais desta experiência pictórica que marcou definitivamente a arte brasileira. Faz-nos refletir sobre as etapas intermediárias, sem o que seria praticamente impossível situar a obra do artista no conjunto de nossa arte moderna. Fica evidente como, já nas paisagens do começo de sua pintura, manifesta-se a tendência expressionista, que é um dos traços característicos desse pintor, e que atingirá o máximo de exacerbação nos derradeiros quadros pintados por ele. Um outro aspecto, apontado pelo crítico, é a ausência da figura humana em quase toda a obra do artista e de modo especial nas paisagens urbanas do Rio de Janeiro, onde essa ausência chama particularmente a atenção. Com mais razão, não há figura humana nas fases posteriores – das naturezas-mortas morandianas dos anos 50 – e na dos “carretéis”, dos “núcleos” e dos “vórtices”, quando a sua linguagem figurativa atinge alto grau de abstração e quase se dissolve para sempre na pasta furiosa em que o pintor precipita a pintura. A figura humana só vai aparecer nas telas dos anos 80, após a tragédia inesperada
que mudou o rumo de sua vida. A ausência (e, posteriormente, a presença da figura humana na obra de Iberê Camargo), embora adquira um significado muito particular, deve ser vista como um traço típico de determinada linha artística moderna – exatamente a que passa pelo Cubismo e se compraz em construir quadros com objetos inanimados, quase sempre naturezas-mortas. Esta linha que, em alguns casos, conduziu à abstração geométrica e à arte concreta, orientou-se também na direção da temática metafísica ou ontológica. Em Iberê, um fator subjetivo e emocional – o carretel da infância – reintroduz a questão pessoal e biográfica num discurso que se queria impessoal, abstratizante. Talvez por isso, tenha sido levado a travar com a pintura uma luta tão dramática, em que o objeto se perde na pasta fervilhante da memória para, depois, dela ressurgir mudada em gemas coruscantes, como fragmentos de emoção cristalizados. Neste sentido, enquanto aventura pictórico-linguística, a obra de Iberê parecia concluir-se no final dos anos 70, quando sobrevém o fato trágico que, juntamente com o câncer, devolve-o à dura realidade do indivíduo sujeito ao erro e à morte. A última etapa da obra de Iberê Camargo – com suas figuras fantasmáticas – desborda a questão estética. Se é certo que, como pintura, ela é elétrica tessitura de uma linguagem levada a seus limites – a tal ponto que já não se importa em ser arte- e por isso mesmo, como puro improviso sábio, o é e só é – ao mesmo tempo, como na fase negra de Goya, o que o artista deseja é, mais que tudo, gritar sua revolta, seu inconformismo diante da falta de sentido da existência humana. Mesmo porque, este sentido, só somos capazes de inventá-lo quando movidos pela felicidade ou pela esperança. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.
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54 CINEMA
Fotos: Divulgação
Adeus, Lênin
Wolfgang Becker
Tocando num nervo vivo Diretor do filme, que estréia no Brasil, em 25 de dezembro, diz que, ao abordar a realidade emocional da reunificação da Alemanha, tocou num nervo vivo Kleber Mendonça Filho
A
o que parece, o cineasta alemão Wolfgang Becker atingiu um nervo sensível da sociedade alemã com seu filme Adeus, Lênin, abordando a reunificação das duas Alemanhas, via fim do regime comunista, em 1989, e queda do Muro de Berlim. Seu filme foi visto por mais de seis milhões de alemães, batendo recordes de bilheteria e já se firmando, fora do país de origem, como um dos filmes de maior destaque do cenário internacional na safra 2003-2004. Aos 49 anos de idade, Becker, com quatro outros filmes inéditos no Brasil (Schmetterlinge, Tatort – Blutwurstwalzer, Kinderspiele e Das Leben Ist Eine Baustelle), fisicamente um “alemão” no sentido cultural da palavra, continua trabalhando para que Adeus, Lênin seja divulgado e visto. Esteve no Brasil na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, de onde iria para a Espanha e Japão, com viagens que já estavam agendadas para a Polônia, República Tcheca e Hungria, países da extinta Cortina de Ferro que, segundo Becker, “têm muitas feridas ainda abertas para sarar”. Foi durante a Mostra de SP que o diretor nos concedeu esta entrevista, onde fala sobre uma Alemanha que está mudando, sobre família e possibilidades de Adeus, Lênin chegar ao Oscar. Continente dezembro 2003
CINEMA 55 »
Como analisa o enorme sucesso de público e crítica que o filme vem tendo na Alemanha? O filme teve uma recepção que me impressionou. Havíamos projetado atingir cerca de 800 mil espectadores, mas ultrapassamos seis milhões de ingressos vendidos. Isso prova que talvez nós tenhamos tocado num nervo ainda bem vivo do povo e da cultura alemães. Fizemos sessões para a imprensa, na época do Festival de Berlim, e jornalistas aplaudiam o filme, algo incomum em se tratando de uma platéia de jornalistas. Sobre o conteúdo crítico, acho que o consenso é que o tema é especial, fazendo do filme algo até mesmo doloroso de assistir. É certo que nem todos os temas podem ser abordados da maneira que Adeus, Lênin foi abordado, com humor e uma certa leveza. Em termos gerais, vejo honestidade na história e nos personagens, e talvez esse equilíbrio entre a dureza e a tristeza da história e a ternura dos personagens funcione a favor do filme. Vendo o filme, lembrei muito de Asas do Desejo, de Wim Wenders, filme que registrou de forma especial uma Berlim ainda dividida entre leste e oeste, enquanto seu filme mostra exatamente a união das duas Berlins. O filme de Wenders esteve na sua cabeça durante todo o processo de realizar Adeus, Lênin? Eu vi Asas do Desejo não só uma vez, mas creio que duas vezes, na época em que foi lançado. É bem provável que ele estivesse comigo durante a realização de Adeus, Lênin. Embora seja um conto de fadas, já que anjos andando por aí a fora não existem, o filme é muito autêntico e mesmo realista sobre uma época especial Continente dezembro 2003
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56 CINEMA
“Vejo honestidade na história e nos personagens, e talvez esse equilíbrio entre a dureza e a tristeza da história e a ternura dos personagens funcione a favor do filme”
da Alemanha, mais especificamente, Berlim. Tenho certeza de que, no futuro, Asas do Desejo será mostrado para as pessoas, como algum tipo de registro, como “imagens de arquivo”, num outro formato, pois nos apresenta como as pessoas se sentiam, como existia uma situação política estranha e especial na cidade. Tudo relacionado ao Muro, visto hoje, vira “imagem de arquivo”. Todos os que viviam e viveram em Berlim Ocidental são capazes de atestar, depois de ver o filme de Wenders: “sim, era esse o clima de Berlim na época”. Nenhum outro filme conseguiu esse registro, e digo isso já subtraindo o aspecto “anjos” e “contos de fadas” do filme, o que, para mim, é formidável. De fato, tentei imprimir qualidade semelhante a Adeus, Lênin, que pode ser visto como um conto de fadas, mas talvez de estofo um pouco mais realista. Em relação ao filme de Wenders, quis também que meu filme fosse um documento sobre um tempo, uma época. Nesse sentido, o filme já funciona dessa forma na Alemanha, pois sei que muitos professores têm utilizado o filme para fins educacionais, discussões em aulas de história. A crítica, em geral, também respeita o filme como o registro de uma época? Adeus, Lênin não toma você como refém, como muitos filmes americanos o fazem, ou seja, não é o tipo de cinema que oferece apenas uma maneira de ver, onde tudo é muito rápido, fechado, as conclusões e catarse, ao final, absolutas. No meu filme, você pode dar uma volta ao redor da história, procurar suas idéias, seus personagens mais facilmente identificáveis. A crítica alemã pôde investigar o filme de várias formas diferentes, como um espectador que, numa determinada cena, pode prestar atenção a uma marca de cereal, ou ao formato de uma xícara, objetos que o fazem lembrar nostalgicamente de tempos passados. A quantidade de leituras que surgiram com o filme é realmente assomContinente dezembro 2003
brosa. Do ponto de vista de “registro”, acho que o fator mais comentado tem sido a capacidade que a arte tem de utilizar a verdade de maneira simbólica, exemplo mais forte talvez seja a própria família que está no centro do filme, uma família dividida ao meio, como a própria Alemanha. Em muitos aspectos, esse é um tema recorrente na Alemanha, desde a 2ª Guerra e todas as suas conseqüências. Um tema que seria o da perda. Sim, concordo, talvez nós, alemães, conheçamos bem perdas. Sobre isso, “a perda”, perdi meu pai muito cedo, aos 16 anos. De uma certa forma, perdi a minha família, não ao longo de processos de doença, quando alguém vai embora aos poucos (como no filme), mas os perdi de uma outra forma, perdi-os para a vida. Tomamos rumos diferentes e o fato de termos parentesco tão próximo não foi suficiente para que ficássemos juntos, o que termina sendo algo de bem diferente do que existe no filme, em termos de relacionamentos humanos. Na minha juventude, procurei algo próximo a uma família em comunidades estudantis, onde vários estudantes dividiam um espaço, um apartamento, e um pouco de suas vidas. Na verdade, foi recentemente que descobri que todos os meus filmes lidam com famílias ou a falta de família, a destruição de um núcleo familiar ou o seu fortalecimento. Talvez seja este um dos elementos que me estimulam a continuar fazendo filmes. Uma coisa que me preocupava, quando tinha 16 anos, era a vontade louca que todos os meus amigos tinham de sair de casa o mais rápido possível, ou seja, a família era sinônimo de todo tipo de coisa questionável. Na minha família, por exemplo, a Igreja Católica era uma entidade interna forte que não batia com meus posicionamentos políticos e visão de mundo. Ou seja, na minha opinião, havia bem mais autoridade do que amor.
CINEMA 57 » Como o Sr., como alemão, aceitaria o comentário de que Adeus, Lênin é um filme que talvez surpreenda pelo calor humano entre as pessoas, negando o estereótipo cultural do “povo frio” que observamos no “ser alemão”? Sei que essa visão de frieza do alemão existe, e fico triste que, realmente, um filme como Adeus, Lênin seja minoria. Na Inglaterra, onde o filme foi muito bem recebido, ingleses diziam: “eu não sabia que os alemães tinham senso de humor!” De qualquer forma, há muito preconceito em relação à cultura alemã que não enxerga o fato de estarmos passando por mudanças importantes na nossa sociedade. Tenho quase 50 anos e sei que há uma grande quantidade de cineastas jovens cheios de novas idéias, e isso inclui a apresentação de uma nova Alemanha multicultural. Na Mostra Internacional de São Paulo, participei de um debate com diretores alemães, sobre o cinema feito hoje na Alemanha, e meus colegas eram, na maioria, alemães de origem estrangeira, um curdo, outro do Marrrocos, um da Rússia. Não somos um país de imigrantes, como o Brasil ou os Estados Unidos, mas somos uma nação rica e temos muita gente chegando de países mais pobres, tentando recomeçar suas vidas. Isso está mudando a Alemanha. O filme foi mais popular na área geográfica que foi a Alemanha Oriental? Se levarmos em conta que a Alemanha Ocidental era maior que o lado oriental, a bilheteria foi mais alta no lado oeste. Mas, em termos porcentuais, o filme foi mais procurado na área que foi a Alemanha Oriental. Dos 20 cinemas que tiveram seus recordes quebrados, 13 eram situados na ex-Alemanha Oriental.
Adeus, Lênin tem mais a dizer para o público da ex-A Alemanha Oriental? Talvez sim, pois há uma codificação que talvez o público alemão do oeste não entenda plenamente. De qualquer forma, são detalhes que funcionam a favor do filme, e não pontos cruciais que sacrificariam a compreensão do todo. Esse aspecto foi exaustivamente comentado, principalmente por pessoas que viviam no leste. Uma lata de comida, uma palavra em especial, um termo, a língua é a identidade de um povo, especialmente a maneira como a língua é falada. Fui muito auxiliado pelo fato de grande parte dos atores serem originalmente do leste, pois eu mesmo não tenho esse conhecimento. Foram eles que me corrigiram no roteiro, dizendo: “a gente não fala isso, falamos isso assim”. É necessário viver numa determinada realidade para ter isso em você. Para um estrangeiro, é muito interessante tentar imaginar o valor político e sentimental que deve existir naquela lata de comida “estatal” achada por Alexander num apartamento fechado, e que já havia sumido das prateleiras com o fim do regime. Sim, era feijão e ervilha enlatada, da marca Tempo, você acrescentava água e esquentava durante cinco minutos, comida prática. Era muito popular no leste e, na verdade, era horrível. De qualquer forma, às vezes aspectos simples da nossa existência desaparecem e sentimos falta, ou eles tornam-se símbolos para um lugar, uma época ou mesmo para alguém. Não é bom nem gostoso pelo fato de você tê-lo à mão, mas fica bom e delicioso quando ele não existe mais. Como o filme tem sido recebido nos países do antigo bloco comunista? No último Festival de Cinema de Moscou, ganhamos o prêmio do público. O filme foi lançado na Rússia em outubro e luta contra o domínio do cinema de Hollywood, mas está indo muito bem. Polônia, Hungria e República Tcheca verão o filme simultaneamente. Na República Tcheca, eles deverão promover discussões em torno do filme, uma vez que passaram pelo processo oposto. Hoje, a Eslováquia está separada da República Tcheca, são dois países distintos, enquanto as Alemanhas voltaram a ser uma só. Em toda a ex-Cortina de Ferro há um pensamento político extremamente ativo, até para poder tentar entender as mudanças e sarar as feridas, muitas delas ainda abertas. Na Rússia, foram mais de 70 anos e eu Continente dezembro 2003
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CINEMA
Crônica de uma Alemanha melancólica É (Aculermiosaonhqau, e20g0r3an),dfielmpeardtee WdooslfqguanegjáBvecirkaemr, dAedsetuasq,uLemênion quanto o filme é “engraçado”, ou “simpático”. Se os adjetivos, indiscutivelmente, aplicam-sse ao filme, eu acrescentaria, antes de mais nada, a palavra “triste”, que talvez honre mais ainda esse melodrama incomum vindo da Alemanha. Incomum porque a produção germânica não é, historicamente, conhecida pela sua habilidade de fazer um cinema de lágrimas e de alcance popular como este. Filmado de forma convencional e calculadamente fatiado para emocionar tanto no seu conteúdo como na sua narrativa, Adeus, Lênin divide semelhanças de tom com um outro melodrama recente, o argentino O Filho da Noiva, de Juan José Campanella. Consegue satisfazer em todos os quesitos, se o observarmos como o grande melodrama que é. Há um fator humano e uma tensão de amor no filme, o amor de um filho pela sua mãe (tema similar ao abordado no filme de Campanella). Este seria o coração dessa obra, tratado para fisgar o espectador, e isso inclui autilização de uma trilha sonora melódica do francês Yann Tiersen. Há também um fundo histórico dos mais interessantes, marca de passagem do tempo, de mudanças, fim de uma utopia: o colapso do comunismo e a queda do Muro de Berlim. Continente dezembro 2003
Alexander (Daniel Bruhl) é um adolescente maduro em Berlim Oriental, 1989. Sua mãe, Christiane (Katrin Saß) acreditava na utopia do regime, uma comunista afiliada ao partido, cidadã alemã oriental exemplar. Becker recorre à fácil ferramenta que é mostrar nostálgicas imagens bem produzidas, em Super8, de Christiane vivendo sua vida aparentemente feliz, num passado comunista não muito distante. Toque de amargura na composição dessa personagem, e que já apresenta o tema da separação-ddivisão abordado pelo filme, é o fato de seu marido Robert (Burghart Klaußner) ter passado para o lado ocidental anos antes, sem que ninguém tenha tido notícias dele. É uma mulher só e triste, que precisa acreditar naquilo que, de muitas maneiras diferentes, dividiu a sua família ao meio. No clima de “acabou-sse” que tomou os países da Cortina de Ferro no final dos anos 80, Alexander, faminto por mudanças, vai às ruas lutar pela queda do Muro, quando é preso pela polícia. Sua mãe sofre um ataque cardíaco (ferramenta típica do melodrama é uma doença) e entra num coma que irá durar oito meses. Ao acordar, o Muro caiu, a Alemanha Oriental acabou e Alexander entende que o coração da sua mãe não está preparado para assimilar tanta coisa, em tão pouco tempo. O médico também avisa que “qualquer emoção pode ser fatal”.
CINEMA 59 Com a sua irmã já trabalhando numa rede americana de lanchonetes, e o apartamento da família rapidamente perdendo seu aspecto “estatal”, Alexander promove um verdadeiro golpe político, mas de âmbito doméstico: cria, praticamente sozinho, uma realidade paralela que irá manter a impressão de que o comunismo ainda está vivo e saudável aos olhos da sua mãe. É a mentira combatendo a possibilidade de perda de um ser amado. O décor comunista do apartamento é recuperado, as roupas vestidas são sempre velhas na frente de Christiane e, na TV, ela assiste distraída a edições especiais de telejornais que foram ao ar um ano antes, feitas por um amigo de Alexander, um aspirante a cineasta e fã de Stanley Kubrick. Ou seja, Alexander assume a postura de ditador num regime totalitário onde a informação é controlada e o grande líder (sua mãe) está moribundo, alheio a tudo, perfeito cenário, simbologia e reflexo de história e realidade num filme. A esta altura, fica claro que Adeus, Lênin é um filme que nos lembra o quanto a história e a política são de fato um povo, incidem diretamente na vida de cada um de nós. Quando sua irmã lhe diz que viu o pai deles na lanchonete onde trabalha, Alexander pergunta, “mas você não disse nada a ele?”, e ela responde “Disse sim, ‘Volte sempre e obrigado por escolher o Burger King’ ”. Talvez, por isso, a bela seqüência que dá título ao filme seja poderosa, não apenas como imagem, mas também como significado, versão romântica de como um ideal de vida e sociedade desapareceu. Funciona maravilhosamente bem, assim como a idéia de que a família de Alexander seria, de fato, a Alemanha dividida, sendo a mãe o lado oriental, o pai o ocidental. É relevante, no entanto, abrir os olhos para o fato de que Adeus, Lênin narra um drama da falecida Alemanha comunista, com olhar ocidental. O próprio Becker nos falou, em entrevista, que utilizou a bagagem de vida dos seus atores, criados no lado leste, para imprimir ao filme seus detalhes autênticos. A perda de todo um sistema político, todo um estilo de vida é apresentada e por nós sentida de forma superficial e genérica. Não há comentários sobre o que de bom foi embora com o fim do regime forte, exceto o estereótipo (carros antiquados, roupas questionáveis, mentiras e autoritarismo). Resta pensar no filme que seria, caso tivesse sido realizado por alemães orientais que viveram de fato esse drama. De qualquer forma, a história é escrita sempre pelo lado vencedor, não é mesmo? Sobre esse lado histórico, o filme de Becker, de qualquer forma, tem valor significativo, e a sua aceitação em massa na Alemanha pode validar isso. Adeus, Lênin nos apresenta uma segunda visão de Berlim, junto à vista em Asas do Desejo, de Wim Wenders, que filmou nos últimos anos do Muro (1987), numa Berlim ainda dividida. Os dois filmes juntos apresentam documentos históricos através da ficção, em versões românticas de uma realidade política e humana que marcou a Alemanha e os alemães. Curiosamente, ambos são recheados por uma forte melancolia, e enorme coração e amor. (KMF)
mesmo estou curioso para saber como Adeus, Lênin irá dialogar com essas muitas realidades. A cena simbólica, onde a mãe, de fato, despede-sse de Lênin, é talvez a mais forte do filme, histórica, política e emocionalmente. É um efeito digital, simplesmemente, trabalhado para que desse ao filme momento de reflexão; na verdade, é a tradução do filme, o seu título. Tentamos construir uma estátua para que o helicóptero a transportasse mas, por questões de segurança, não pudemos utilizá-la. Filmamos um helicóptero para que a atriz tivesse orientação de direção, mas Lênin foi acrescentado na pós-produção como imagem gerada digitalmente. Conseguimos fechar a avenida num sábado, das 14 às 18 horas, a mais movimentada de Berlim Oriental, tiramos todos os carros mais novos, que não existiam em 1990, mas o tempo não ajudou. Três semanas depois, conseguimos uma outra permissão para fechar a avenida, tudo certo; uma hora antes de rodar, ligam do aeroporto informando que o helicóptero russo havia quebrado. Usamos um helicóptero comum apenas como orientação para a atriz e a câmera e, mais tarde, foram acrescentados não apenas a estátua de Lenin, mas também o helicóptero russo que a carrega. Foi uma seqüência que levou um bom tempo para ficar boa, uma vez que na Alemanha, efeitos digitais ainda não são tão bons assim. Geralmente, um efeito digital parece exatamente isso, um efeito digital. No caso do meu filme, esse efeito precisava ser verdadeiro. Fizeram mais de 50 versões ao longo de quatro meses, mas valeu o trabalho, por ser uma cena essencial. O filme é a aposta alemã no Oscar 2004. Como vê suas chances? Acho que o filme será lançado nos Estados Unidos em fevereiro, mas deverá ter algumas sessões em Los Angeles em dezembro, para que seja qualificado a concorrer. Minha preocupação primordial é que o filme seja visto pelo público americano. Não recebemos nenhum dinheiro da Sony Pictures Classics para produzir o filme, mas temos um contrato com eles, onde está estipulado que terão de investir muito dinheiro em imprensa e propaganda. Com essa plataforma, começando nas grandes cidades, é provável que tenhamos uma boa carreira. O Oscar, prefiro não pensar muito, é coisa de enorme prestígio e creio que isso é uma preocupação da Sony, que está sempre competindo com a Miramax, e a Miramax contra todos, “Harvey Weinstein (nota: chefão da Miramax, nome poderoso em Hollywood), o Oscar é nosso!”, esse tipo de coisa. • Kleber Mendonça Filho é jornalista.
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60 SABORES
PERNAMBUCANOS
Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Foto: Reprodução/Federico Barocci
Ceia de Natal
E
Em 350, o Papa Julio I sagrou a data em que se deveria comemorar o nascimento de Jesus
le veio ao mundo para redimir os homens. Uma noite, já antevendo o seu destino, reuniu os apóstolos em uma ceia. A Santa Ceia. Mas ali, em volta d'Ele, não haveria apenas santos. Também um pecador, conhecido por Judas. Não Tadeu, irmão de Tiago, que ali estava. Nem o Macabeu, que venceu Antíoco em Emaús. Mas Judas Escariotes, nascido em Kerioth, que vendeu seu mestre por 30 dinheiros. Depois se enforcou. Para “provar-te agora/ oh pobre Cristo nu/ que sou maior do que Deus/ mais justo do que tu/ pois um justo que é justo não perdoa” – segundo Guerra Junqueiro. Em verdade, os romanos celebravam em grandes ceias, desde muito antes, algumas fases do calendário lunar. A maior delas ao final do ano, agradecendo pelas colheitas generosas. Reverenciando Saturno, Deus da Fartura, que um dia foi expulso do céu por Júpiter. Sendo essa festa feita com pão e vinho – que depois viria a simbolizar, na eucaristia, o corpo e o sangue do Nazareno. Ceia vem do latim caena, a última refeição do dia. Em 350 o Papa Julio I aproveitou a tradição, sagrando o 25 de dezembro como data em que se deveria comemorar o nascimento de Jesus. Já a Missa do Galo, celebrada à meia noite do dia 24, é bem mais recente. Remontando a uma tradição da Alsácia (séc. 16). Deve o nome à circunstância de ter o nascimento e a ressurreição de Cristo se dado em plena madrugada. Antes de nascer o sol. Com o galo, na missa, anunciando o fim das trevas e o surgimento de um novo dia. Na volta da missa, as famílias preparam grandes ceias – para parentes e amigos. Ceia é momento de estar junto. Celebrando a própria epifania da vida. Pensando nisso, decidimos convidar, para a ceia de natal deste ano, pessoas muito especiais. Os Grandes Chefes pernambucanos, aos quais passo a palavra. Não sem antes desejar de coração, a todos e a cada um, um saboroso e feliz Natal! •
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SABORES PERNAMBUCANOS 61 » RECEITAS: SALPICÃO DE PATO À INDIANA Chef Leandro Ricardo (Rest. Chef Leandro Ricardo) INGREDIENTES: PARA O PATO: 1 pato inteiro, 1 xícara de cebola picada, 2 folhas de louro, ½ colher de café de cravo em pó, ½ colher de café de coentro em pó, ½ colher de café de mostarda em pó, 1 colher de chá de açafrão da terra, ½ colher de sopa de gengibre fresco ralado, noz moscada a gosto, 2 colheres de sopa de azeite de oliva, 200ml de leite de coco, 500ml de creme de leite fresco, 2 tabletes de caldo de galinha diluídos em 3 litros de água. PARA O SALPICÃO: 3 maçãs ácidas picadas, 50gr de uva-passa branca, 4 bananas cortadas em rodelas, 1 manga Tommy cortada em fatias, 200gr de peito de peru desfiado, 1 pacote de coco ralado. PREPARO: Corte o pato pelas juntas. Retire a pele. Tempere com sal e especiarias em pó. Em panela de fundo grosso, refogue cebola com azeite. Junte o pato e mexa. Acrescente caldo fervente de galinha. Deixe cozinhar, até que o pato esteja bem macio. Coe o caldo. Junte novamente o pato ao caldo. Deixe esfriar e coloque na geladeira. No dia seguinte, retire gordura que se formou e volte tudo ao fogo. Separe o caldo do pato. Nesse caldo junte leite de coco, creme de leite. Deixe reduzir. Junte ainda ½ colher de sopa de amido de milho diluído em um pouco de água. Desligue e reserve. Junte, a esse molho, pato e peru desfiados, maçã e uva passa. Arrume no centro de uma travessa. Decore com as frutas e coco ralado. BACALHAU GRATINADO Chef Antenor Silveira (Buongustaio) INGREDIENTES: 500gr de bacalhau demolhado; 2 cebolas cortadas em rodelas finas; 300ml de azeite extra virgem; 100gr de azeitonas pretas sem caroço; 200gr de patê de bacalhau (comprado pronto); 200gr de molho bechamel; 8 fatias de pão de leite (de caixa); leite o quanto baste para embeber as fatias de pão; noz moscada ralada, folha de louro e queijo ralado a gosto. PREPARO: Leve o bacalhau ao forno com azeite, cebola, noz-moscada e louro, por 30 minutos. Arrume camadas, em refratário: quatro fatias de pão, embebidas no leite; bacalhau (sem o azeite); metade do patê de bacalhau; azeitonas; novamente fatias de pão; bacalhau; patê de bacalhau; queijo ralado e molho bechamel. Leve ao forno quente, para gratinar. Servir acompanhado de arroz (refogado em cebola e azeite). CAMARÃO NORDESTINO Chef Soraia Falcão (Guaiamum Gigante) INGREDIENTES: PARA O CAMARÃO: 2kg de camarão descascado e limpo; 2 kg de charque dessalgada e desfiada; 50ml de azeite de oliva; 50ml de azeite de dendê; 1 xícara de café de salsinha picada; sal, pimenta do reino moída e ajinomoto a gosto. PARA O ARROZ: 500gr de arroz pré-cozido; 1 pimentão vermelho, 1 amarelo, 1 verde, 1 roxo; ½ cebola picada; 2 colheres de sopa de azeite de oliva; sal, pimenta do reino branca moída, ajinomoto e salsa picada a gosto. PREPARO: Tempere os camarões e reserve.
Em frigideira grande, use metade do azeite de oliva e metade do azeite de dendê e frite a charque, até que fique crocante. Escorra e reserve. Na mesma frigideira, junte o restante do azeite de oliva e do azeite de dendê, e salteie os camarões. Acrescente a salsa. Em outra panela refogue no azeite – cebola, pimentões e salsa. Tempere com sal, pimenta e ajinomoto. Junte o arroz, arrumando-o em travessa grande. Sobre ele, a charque crocante. E, em volta, os camarões. LAGOSTA DO TURISTA Chef Cézar Santos (Oficina do Sabor) INGREDIENTES: PARA A LAGOSTA: 12 caldas de lagosta, 50ml de azeite de oliva, sal e pimenta a gosto. PARA O MOLHO DE MANTEIGA AROMATIZADA: 100gr de manteiga com sal, 3 ramos de salsa, 3 ramos de salsão, 1 pé de rúcula, 1 colher de sopa de conhaque, 1 colher de sobremesa de raspas de limão, sal e pimenta a gosto. PARA O MOLHO DE UVA ROXA: 1 kg de uva roxa, 1 xícara de chá de açúcar refinado, 1 xícara de chá de água. PREPARO: Parta ao meio as caldas de lagosta. Tempere com sal e pimenta. Grelhe essas caldas, regando com azeite. Molho de manteiga aromatizada – coloque no liquidificador manteiga derretida, folhas (sem talos) e os outros ingredientes. Bata bem. Leve este molho ao freezer, por meia hora. Molho de uva roxa – leve ao fogo as uvas junto com o açúcar. Deixe cozinhar, por 20 minutos. Passe por peneira fina, amassando bem. Leve novamente ao fogo, por mais 15 minutos. Forre o fundo do prato com o molho de uva roxa. Sobre esse molho arrume a lagosta (com a parte cortada para cima). Cubra com uma colher do molho de manteiga aromatizada. Sirva quente. PERU À NASSAU Chef Renato Justo (Nassau) INCREDIENTES: PARA O PERU: 3 kg de peito de peru; 1 garrafa de vinho branco seco; 100ml de conhaque; 200gr de cebola; 2 ramos de alecrim; 1 maço de manjericão; sal e pimenta do reino a gosto; 750gr de bacon em fatias. PARA O RECHEIO: 1 kg de fígado de frango; canela, anis, cravo, gengibre, noz-moscada, pimenta rosa; 200gr de manteiga sem sal. PARA O 1º MOLHO: ½ garrafa de vinho tinto seco, 100ml de conhaque, 100ml de mel de abelha, 4 ramos de alecrim, noz moscada e pimenta rosa a gosto. PARA O 2º MOLHO: 250ml de azeite extra-virgem, 1 maço de manjericão, 1 maço de salsa, ramos de alecrim. CREPES: 250gr de farinha de trigo, 4 ovos, 500ml de leite, sal a gosto ARROZ: 500gr de arroz Camil; 50gr de manteiga sem sal; 50gr de cebola; 50ml de creme de leite; 50gr de queijo parmesão ralado; 50gr de pimenta verde; alho e sal a gosto. PREPARO: Fatie os peitos de peru e tempere com sal, pimenta, cebola, alecrim, manjericão, vinho e conhaque. Reserve. Limpe o fígado de galinha. Salteie em gordura de porco e passe no processador. Junte, então, canela, anis, cravo, gengibre, noz-moscada, pimenta rosa e a manteiga. Leve ao congelador, por 40 minutos. Recheie o peru com essa pasta de fígado. Enrole com bacon e
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SABORES PERNAMBUCANOS Foto: Monalisa Lins/AE
leve ao forno, de 250º, por 40 minutos. 1º molho - leve ao fogo, todos os ingredientes. Deixe reduzir. Junte manteiga e conserve quente. 2º molho - quando o azeite estiver quente (80º), junte as ervas. Bata tudo no liquidificador. Refogue o arroz (lavado) com alho, cebola e manteiga. Cubra com água e cozinhe. Junte a pimenta salteada no azeite. Em seguida, creme de leite e queijo parmesão. Prepare os crepes, recheie com o arroz. Dê, a esses crepes, a forma de trouxinhas. Grelhe, na manteiga, abacaxi em rodelas, e reserve. Cozinhe 500gr de quiabo em água, vinagre e sal. Depois salteie no azeite e reserve. Arrume, no prato, os peitos de peru (cortados ao meio). Junte os molhos. Acompanhe com os crepes, sobre os abacaxis, e os quiabos. TENDER AO MOLHO DE AMEIXA E PURÊ DE CASTANHA Chef Luizão (Amadeus) INGREDIENTES: TENDER: 1 tender (de mais ou menos 1 ½ kg) ; 1 kg de ameixas frescas; 200gr de açúcar; 10 cravos da Índia; 2 copos de suco de laranja; 2 xícaras de caldo de carne; sal e pimenta a gosto. PURÊ DE CASTANHA: 1 kg de castanha portuguesa, leite, manteiga e sal a gosto. PREPARO: Espete os cravos no tender. Polvilhe com açúcar. Leve ao forno brando, por 30 minutos. Retire o tender do forno e da assadeira e reserve. Na mesma assadeira, coloque o restante do açúcar e as ameixas cortadas. Leve ao forno, por 20 minutos. Junte, então, suco de laranja e caldo de carne. Deixe reduzir, mexendo sempre, por mais 20 minutos. Purê de castanha: cozinhe as castanhas em panela de pressão, por 40 minutos. Retire a casca. Passe no liquidificador – castanha, leite e manteiga. Leve tudo ao fogo. Coloque sal a gosto. Sirva o tender coberto com o molho. E acompanhado do purê de castanha e ameixas. FILÉ NOUVELLE POIVRE Chef Sophia Maranhão (La Cuisine Bistrô) INGREDIENTES: Continente dezembro 2003
FILÉ: 2,5 kg de filé; 100ml de azeite; sal e pimenta a gosto. MOLHO: 200gr de champignon de Paris (fresco); 50gr de pimenta do reino verde; 500gr de vinho tinto seco; 1 cubo de caldo de carne; ½ cebola picada; 1 folha de louro; 1 colher de sopa rasa de amido de milho; aparas do filé. BATATA: 1 kg de batata (cortada em rodelas finas); 500ml de creme de leite fresco; 1 litro de leite; 2 dentes de alho (fatiados); 200gr de queijo ralado; noz-moscada, sal e pimenta a gosto. PREPARO: Divida o filé em três pedaços. Tempere com sal e pimenta. Asse, em frigideira, até o ponto desejado. Reserve. Na mesma frigideira refogue as aparas do filé, até dourar. Junte cebola, vinho, folha de louro, caldo de carne. Reduza, esse molho, a 1/3. Engrosse com amido de milho diluído em água. Coe o molho. Junte os champignons e a pimenta do reino. Reserve. Unte refratário e arrume fatias de batata (temperada com alho, sal, pimenta e noz-moscada). Intercale com leite, creme de leite e queijo ralado. Asse, em forno, a 180º . Sirva o filé fatiado com molho bem quente. E as batatas gratinadas. RABANADA DE MILHO Chef Adriana Didier (Beijupirá) INGREDIENTES: ½ xícara de farinha de trigo com fermento; 1 xícara de fubá; ½ colher de chá de fermento em pó; 1 xícara de leite; 2 colheres de sopa de creme de leite fresco; 1 colher de sopa de açúcar; 1 pitada de sal; manteiga (para fritar); mel Karo. PREPARO: Misture farinha de trigo, fubá e fermento. Junte leite, creme de leite, sal e açúcar. Deixe descansar, por 30 minutos. Aqueça manteiga, na frigideira, e frite os bolinhos. Com a ajuda de uma colher, achate esses bolinhos, dando a forma de fatias de pão. Doure dos dois lados. Depois de fritos, passe na canela com açúcar e sirva com mel Karo. MOUSSE DE AMÊNDOAS Chef Edenilson Araújo ( Leite) INGREDIENTES: ½ kg de amêndoas; ½ kg de açúcar; 6 ovos; 400ml de leite condensado; 400ml de creme de leite; 200ml de leite; 3 gotas de essência de baunilha. PREPARO: Leve ao fogo amêndoas e açúcar. Deixe até ficarem douradas e crocantes. Coloque em bandeja untada com manteiga. Quando esfriar, triture e reserve. Leve ao fogo leite condensado, leite, gemas e baunilha, até engrossar. Reserve. Bata as claras em neve. Junte creme de leite, o creme de leite condensado e as amêndoas (reserve algumas para enfeitar, na hora de servir). Leve à geladeira, por 2 horas. Maria Lecticia Cavalcanti é professora.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA 63 Joel Silveira
Demitido por justíssima causa
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u deixara os Diários Associados e ainda não arranjara emprego novo. Fazia um biscate aqui, outro acolá, ia vivendo – até que me apareceu pela frente um senhor bem-falante que se dizia empresário de vários negócios, mas cujo sonho, há muito acalentado, era ser dono de um jornal. Eu podia me encarregar da coisa? Insolvente como me encontrava, não pensei mais que um segundo: – “Topo!” O cavalheiro alugou um conjunto de quatro salas na rua México, mobiliou-as, comprou meia dúzia de máquinas de escrever, disse-me que eu tinha carta branca: que escolhesse para me ajudar na empreitada quem eu achasse melhor. De jornal não entendo nada. Mas preciso de um para defender certas idéias. E acrescentou: Só imponho uma condição: você não pode falar mal de Fulano, Sicrano e Beltrano, gente boa e meus amigos! (Na verdade, eram três notórios sicofantas, manjadíssimos na praça.) E tem mais: o pessoal a ser recrutado não pode ser muito grande, somente o essencial, que por enquanto o dinheiro não dá para mais. O jornal saiu uns vinte dias depois, chamava-se Folha do Rio, não mais que oito páginas. Então aconteceu o que eu não esperava: antes de completar um mês, o jornal teve de fazer a cobertura de um enorme incêndio que estava acontecendo na Cinelândia, na área dos cinemas. Fizemos o possível. Mas houve um instante em que faltou repórter, faltou fotó-
grafo, faltou tudo. E o fogaréu ali bem perto, cada vez mais aceso. Hora de fechar o jornal, antes do meio-dia (era vespertino, tinha de estar na banca às duas), eu só tinha nas mãos duas fotos tiradas ainda no início do desastre e mais umas duas laudas escritas apressadamente por um repórter freelancer. Que fazer ? Frustrado até a medula, não vacilei. Dei uma copidescada na matéria, escolhi a foto menos ruim, arrumei tudo na primeira página. E, no pé da matéria, na segunda página, escrevi: “Esta reportagem continua em O Globo”. Se fui demitido? Perguntinha boba... Demitidíssimo. E por justa causa. Justíssima. • Joel Silveira é jornalista e autor do recém-lançado livro, A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista, Editora Companhia das Letras.
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REGISTRO
Foto: J. Santos/O Globo
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Nelson Rodrigues protestando contra a censura à peça Boca de Ouro, 1960
Memórias póstumas de Nelson Rodrigues
Manobrando com diferentes estratos de texto, o visível e o invisível, o redundante e o inusitado, o repetitivo e o ocasional, escritor que encarnou o papel do reacionário teceu comentários contundentes contra o regime de 64, que o maniqueísmo vigente não conseguiu perceber Ricardo Oiticica
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REGISTRO 65 »
Foto: Breno Laprovitera
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u vou falar de “um cabra velho muito ordinário, talvez do bairro do Alagado, das bandas do Recife, que acode pelo nome de Nelson Rodrigues”, como o jornal O Liberal, de Teresina, definiu o escritor pernambucano durante o regime militar. Antes mesmo do envolvimento do filho com a guerrilha, em 1970, Nelson já tomara o partido do golpe. E se as posições do pai não se condicionavam necessariamente à preservação do filho, ou bem Nelson é um canalha ou uma cotovia, o X-9 que alguns pretendem ou o manso passarinho que comia na mão de quem o privava de valores fundamentais. Mas isto seria julgar Nelson no par-ou-ímpar. Numa época em que o enquadramento em um dos lados já decorria da não-opção pelo outro, Nelson Rodrigues, anticomunista de carteirinha, preferiu antecipar-se à patrulha ideológica para assumir, por si só, o papel de Reacionário, a “abominável encarnação da Direita”. Em vez de objeto, tornou-se senhor daquele processo maniqueísta, transformando rotulação em construção de personagem. E escondeu sob a marca de fantasia um eu profundo, a preservar, antes de qualquer coisa ou pessoa, sua “monstruosa solidão criadora”. A prisão do filho acentuará apenas a carga dramática desse solipsismo. “Coincide que vivemos uma época crudelíssima. Para preservar sua humanidade, o sujeito tem de lutar, ferozmente, contra tudo e contra todos. E das duas uma: ou cada um constrói a sua solidão ou os outros o matam (...). Há toda uma gigantesca estrutura que exige a nossa falsificação (...). Os temperamentos mais doces são hoje radicais, ululantes e obscenos. E, então, acontece o seguinte: estamos todos acuados”. Mais só do que porteiro em dia de domingo, o Reacionário falava sozinho para um vira-lata, a Cabra Vadia, enquan-
to o público leitor pastava à esquerda (“Se os intelectuais fossem analfabetos, diríamos: não sabem ler; se fossem surdos, diríamos, não sabem ouvir; se fossem cegos, diríamos: não sabem ver”) e à direita (“Todos sabem que o poder é cego, e além de cego é surdo”), dividido em duas unanimidades burras. O caso era um pouco como o do “moedeiro falso”, André Gide, e “sua testa obsessiva, lustrosa, quase dizia fluorescente”: “Não me compreendam tão depressa, pedia Gide, pelo amor de Deus. Morreu, o velho Demônio, com mais de setenta anos, quase oitenta (...) Eis o que importa lembrar: durante anos e anos, Gide foi incompreendido em todos os idiomas. E essa resistência mundial era o seu orgulho perverso”. E Nelson, também cabeçudo, completava: “Estou pensando em Gide e em seu gemido adolescente: ‘Eu não sou como os outros’ ”. Pondo em risco sua reputação (àquela altura, a esquerda o considerava reacionário não só do ponto de vista político, como estético) e sua segurança (a direita já comentava que “esse Nelson Rodrigues pode iludir todo mundo, mas a mim não me engana”, que “não é lá muito confiável”), Nelson escreveu de uma solitária a crônica não-autorizada do regime militar. No fio da navalha, entre o perigo de ser flagrado ou de restar para sempre incompreendido, entende-se a úlcera de Nelson como flor de todo um processo autoral. O processo se articula em metalinguagem: conjugando privilégio de autoria (“a vantagem do cronista diário é que, de vez em quando, ele diz as coisas que devem ser ditas, as coisas que precisam ser ditas”) a desvios de recepção (‘Todo mundo é cego para o óbvio ululante”), o autor manobrava com diferentes estratos de texto, o visível e o invisível, o redundante e o inusitado, o repetitivo e o ocasional – universo em que mesmo Continente dezembro 2003
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66 REGISTRO a exceção constitui regra, porqueFoto: fundada Reproduçãoem copiosa produção. A primeira série, ostensiva, era condição da invisibilidade da outra. Através da estilística da repetição, Nelson causava no leitor entorpecimento (“Graças a Deus, o leitor não percebe que já leu aquilo umas 50 vezes”) e alienação (“Às vezes o maior analfabetismo é saber ler”), maquiando sob as evidências do frasista e do fascista o perfil do Nelson farsista. Entre os personagens usuais: o padre de passeata, a freira de minissaia, o marxista de galinheiro – sempre desabonadores da esquerda. Entre os eventuais: Médici como Gengis Khan, Andreazza como paquiderme homicida, Walter Clark como gangster da Depressão, Roberto Marinho como um cretino, os senadores do AI-5 como cavalos de Calígula – a surpreendente denúncia da direita. Duas séries de crônicas vão ganhar de Nelson rubrica à parte: J’accuse e Conversas Brasileiras com o Presidente Médici. Alguns meses depois da decretação do AI-5, mais precisamente em 19/03/1969, Nelson inicia uma série de dez crônicas a que dá o título de J’accuse, esse “momento da consciência humana”, como Anatole France define a participação de Zola no affaire Dreyfuss. O fato é que “Zola baixou em minha mesa” e Nelson escreveu o seu documento de coragem e procela em favor do Dreyfuss brasileiro, o piauiense – cidadão magro, o peito cavo, com quem cruzou na patriótica rua Sete de Setembro, no centro do Rio: “Sim, eu acusei o Brasil, de alto a baixo, da cabeça aos sapatos (...) Eu dizia o óbvio ululante: uma pátria não podia fazer com seus filhos o que o Brasil faz com o Piauí. Havia, pois, um ‘crime permanente’ contra o Estado tão es-
quecido”; “Temos de entristecer o Piauí. É preciso que, de repente, baixe em todo o Estado a consciência do próprio inferno”; “Quero um Piauí triste como o Amazonas. Sim, o Piauí tem que assassinar a pauladas o seu ufanismo. E quando assumir sua plena miserabilidade estará salvo”; “Os piauienses que me atacam, ou pelo jornal, ou por telegramas e cartas, têm essa sólida, inarredável e apavorante certeza: o Piauí atravessa uma fase de prosperidade, desenvolvimento, crescimento industrial. Não há fome, não há mortalidade infantil ou descontentamento popular. Pelo contrário. O que há, inversamente, é exultante ufanismo”. E continua: “era um Estado fechado em si mesmo”, onde “o delírio de grandeza assume suas formas mais radicais”, “ninguém fala nada”, “a imprensa silencia”, e “o grã-fino vive de suas dívidas. As dívidas têm-no feito”. Nós as pagamos hoje. E lemos hoje o que “a obtusidade córnea ou a má-fé cínica” impedia de ler: o próprio óbvio ululante. Conhecem a personagem de Dostoievski que em Os Possessos arranca com os dentes um pedaço de orelha ao governador, em audiência oficial, sem causar espanto? Nelson narra: “Tal foi a surpresa geral, que ninguém fez nada. A autoridade nem percebeu que estava com uma orelha pela metade. E o culpado pôde sair sem ser incomodado (...). Todo mundo é cego para o óbvio ululante”. É a inspiração para o seguinte diálogo: Funcionário (percebendo que o supremo mandatário não ouve uma só palavra): – Vossa Excelência é uma besta, ouviu? Se cair de quatro, não se levanta nunca mais. Presidente (balançando a cabeça): – Aprovado.
Foto: Reprodução do livro O Anjo Pornográfico
Pondo em risco sua reputação (àquela altura, a esquerda o considerava reacionário não só do ponto de vista político, como estético) e sua segurança (a direita já comentava que “esse Nelson Rodrigues pode iludir todo mundo, mas a mim não me engana”, que “não é lá muito confiável”), Nelson escreveu de uma solitária a crônica não-autorizada do regime militar
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REGISTRO 67 Foto: Arquivo/Ag. O Globo
Foto: Divulgação/ABL
Roberto Marinho e Garrastazu Médici, na definição de Nelson Rodrigues: “cretino” e “Gengis Khan”, respectivamente
Funcionário: – E Vossa Excelência vírgula. Você é peculatário. Presidente: – Vou providenciar, vou providenciar. Em outra crônica de Nelson, a conversa entre um “agente yankee” e um presidente da República termina com a fixação de preço para um golpe de estado: “Vou ter que rachar com alguns generais”, justifica-se o ocupante do posto, em resposta à alegação do emissário de que “o Presidente brasileiro é o mais barato da América Latina”. Essas conversas presidenciais são o antecedente para o encontro com Médici, em cuja boca Nelson porá a confissão justamente de um peculato: “Quer saber, Nelson? (...) Eu tinha algum dinheiro e dei a cada um 25 milhões” (Paulo Maluf, então governador de São Paulo, foi condenado pelo mesmo crime, ao dar um fusca a cada jogador da seleção brasileira). Moedeiro falso, Nelson cunha no campo semântico da barbárie uma efígie – “Um Gengis Khan precisa de fotogenia”– e um nome para Médici: “Dizem que ele não gosta de ser chamado de Garrastazu” (motivo de chiste com carrasco e garrote) “mas ai de mim, ai de mim. O nome Garrastazu me fascina”. Já no primeiro encontro, para assistir à “décima
inauguração” do Morumbi, em janeiro de 1970, Nelson anota: “E quando o presidente Garrastazu falou em ‘minha pátria’, experimentei um sentimento intolerável de vergonha”. Iriam começar as Conversas Brasileiras com o Presidente Médici, série de crônicas cuja primeira fala é a seguinte: “Presidente, pena que o senhor seja presidente”. As memórias do sergipano Gilberto Amado padeciam, segundo Nelson, de um grave problema: “não há um Presidente pulha, um Ministro pulha, um Estadista crápula (...) Divago, divago e não sei se me faço entender”. Não, não se fazia entender: no momento de escrever as suas, durante o regime militar, Nelson preencheria a lacuna com o frêmito de canalhas imortais. Dizer mais do que disse, só mesmo ao médium, depois de morto. Não sei se o leitor, que só olha para o céu para saber se leva guarda-chuva, vai acreditar, mas Nelson baixou em minha mesa para ditar as suas memórias póstumas: “Em 1970, a entrega de um artigo num prazo mínimo assumia as proporções dramáticas de um Fausto, de Goethe, etc., etc.” • Ricardo Oiticica é doutor em Literatura de Língua Portuguesa e professor na UniverCidade do Rio de Janeiro. Continente dezembro 2003
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CONTEMPORANEIDADE
Contra-ataque ao Império Marxista, acusado de chefiar as Brigadas Vermelhas, preso, exilado e retornado voluntariamente ao cárcere, o intelectual italiano Toni Negri reflete sobre a globalização como uma nova realidade a exigir respostas novas Luciano Trigo
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um momento da História em que o marxismo parece definitivamente enterrado e o triunfo do neoliberalismo e da globalização parecem deixar tão pouco espaço para uma contestação profunda e conseqüente, um intelectual se apresenta como exceção: é o italiano Toni Negri, que aos 70 anos conserva a mesma disposição para o combate dos conturbados anos 60 e 70. Em sua primeira viagem longa, depois de 25 anos de prisão, exílio e clandestinidade, Negri esteve no Brasil a convite da Universidade Nômade, para fazer conferências no Rio e em São Paulo. Na pauta, a reflexão sobre a possibilidade de resistência ao “Império” – não o império americano, mas as diversas formas de poder dominante que reproduzem a exploração e a desigualdade, no novo contexto da sociedade globalizada. Negri, aliás, reage com veemência ao antiamericanismo que costuma contaminar o pensamento de esquerda. – É preciso construir a oposição ao liberalismo, em nível mundial, e desenvolver a alternativa possível a ele, dentro do quadro da globalização – afirma. – Este é um momento fundamental na construção de um contra-Império, mas se quisermos erguer uma organização mundial de trabalhadores, devemos ter a consciência muito precisa de que não existe mais divisão entre Norte e Sul, porque não existe mais diferença geográfica entre os Estados-nações. Ser antiamericano é uma idiotice total. O governo americano é o mais importante poder a ser contestado, mas fazer dele o único inimigo é uma visão falsa. Ele não existiria se as outras classes dirigentes do capitalismo mundial não lhe dessem apoio incondicional. Outra ilusão perniciosa que permanece é a do terceiro-mundismo, que não combate o capitalismo porque não leva em conta a sua nova unidade em nível mundial. O problema hoje é identificar o mesmo adversário no mundo inteiro: aqueles que exploram trabalhadores por meio de hierarquias e trocas desiguais. Filho de um comunista morto pelos fascistas em 1936, Negri é autor de livros como Império (com Michael Hardt), A Anomalia Selvagem, O Poder Constituinte e Exílio. No final dos anos 50, integrou a redação de duas revistas que renovaram o Continente dezembro 2003
Foto: Ernesto Rodrigues/AE
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“Ser antiamericano é uma idiotice total. O governo americano é o mais importante poder a ser contestado, mas fazer dele o único inimigo é uma visão falsa”
Foto: Jefferson Bernardes/Preview.com
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Fórum Social Mundial, em Porto Alegre: inspiração no manifesto político que é o livro Império
marxismo na Itália, Quaderni Rossi e Classe Operaia. Participou como militante das lutas operárias dos anos 1960 e, no início dos anos 1970, fundou com intelectuais e militantes operários o movimento Autonomia Operária. Em 1979, ano do seqüestro e assassinato do líder democrata-cristão Aldo Moro, Negri foi preso, junto com todos os intelectuais da Autonomia, e acusado de ser um dos chefes das Brigadas Vermelhas. Mesmo sem provas conclusivas contra ele, Negri passou quatro anos na prisão. Em 1983, libertado provisoriamente quando ganhou imunidade ao ser eleito deputado, refugiou-se em Paris, onde permaneceu 14 anos, lecionando Ciência Política em diversas universidades, mas sem documentação legal. Condenado por responsabilidade moral em ações terroristas atribuídas à Autonomia Operária, voltou à Itália em 1997 para cumprir o restante de sua pena, em regime semi-aberto, na prisão de Rebibbia, em Roma, até ser posto em liberdade. Na época de seu retorno voluntário ao cárcere, Negri deu uma declaração que ficou famosa: “Tenho a convicção de que não existe uma diferença substancial entre a prisão e o resto da vida. Acho que a vida pode ser uma prisão, quando não se faz nada com ela, ou quando não se pode usar o seu tempo livremente. Um homem pode ser livre dentro ou fora da prisão, mas a vida dos operários, por exemplo, não é livre”. – A reação aos movimentos sociais pós-1968 foi peculiar na Itália – declara. – A estratégia política na França e na Alemanha consistiu em absorver politicamente as massas daqueles movimentos em projetos alternativos, como o Partido Verde. Isso isolou os grupos radicais e terroristas. Na Itália foi diferente: todos os movimentos de contestação foram caracterizados como terroristas, e uma geração inteira foi criminalizada e forçada ao Continente dezembro 2003
exílio, interno ou externo. Essa política foi responsável por milhares de mortes nos anos 70, em atentados a bomba em bancos e explosões de trens. Certamente nós cometemos erros, mas nenhum de nós queria aquela guerra civil. Escrito no exílio, Império se tornou um fenômeno editorial e um manifesto político para os movimentos de ação global, como os de Seattle e Gênova, passando pelo Fórum de Porto Alegre, abrindo um novo horizonte de luta e de constituição da democracia dentro da globalização. Traduzido em dezenas de línguas, o livro se tornou uma referência mundial e plantou a necessidade de se conceber um novo tipo de luta anticapitalista, dentro desse novo espaço globalizado, um “espaço sem fora”, sobretudo depois da guerra unilateral da administração Bush contra o Iraque. – O Império é um processo. O 11 de setembro, a reaparição violentíssima da questão do Oriente Médio e o crescimento dos movimentos antiglobalização indicam que vivemos uma situação de grande agitação. Por um lado, os modos de controle imperiais se integraram com a guerra, e passamos de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle, como dizia Foucault. A guerra aperfeiçoa esses sistemas de controle. Por outro lado, as massas reaparecem como um horizonte de ruptura, e a luta anticapitalista se volta contra a globalização. Outro efeito do 11 de setembro foi que desapareceu a ilusão da insularidade americana, de eles estarem à margem do que acontece no mundo. Os Estados Unidos perceberam que não são uma ilha, que estão expostos, como todos, aos efeitos da globalização. Negri entende por Império o conjunto de meios de coerção de uma sociedade, aí incluídos os instrumentos de regu-
CONTEMPORANEIDADE lação monetária, financeira e comercial, bem como os meios de comunicação e de circulação da linguagem. Toda sociedade capitalista precisa ter um comando: o Império é o comando exercido sobre a sociedade capitalista globalizada, marcada pelo declínio do Estado-nação e pelo fim do imperialismo e do colonialismo à moda antiga. No horizonte do Império, o espaço e o tempo da vida se vêem radicalmente transformados pelo fato de que as mercadorias e as linguagens, a produção e a reprodução não encontram mais limites à sua circulação. Sintomaticamente, os ideólogos do Império afirmam que a História acabou, quando o que acabou foi a autonomia das políticas sociais e econômicas dos Estados-nação, já que agora tudo deve ser regulado em função da contabilidade e do equilíbrio do sistema financeiro mundial. Conciliando Maquiavel, Espinosa e Marx em sua pesquisa teórica e histórica, Negri reflete sobre os novos sentidos do trabalho nessa inédita configuração imaterial das redes mundiais, recorrendo a conceitos como os de “biopolítica” e “sociedade de controle”, derivados do pensamento de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Negri se exalta quando expõe algumas de suas opiniões: – Hoje vivemos uma nova paisagem, as velhas relações no terreno da produção não são as mesmas. Somos pós-fordistas, pós-industriais, o que significa dizer que não existe mais uma oposição simples entre o capital e o trabalho das massas e, sim, redes em que se organiza um trabalho intelectual altamente produtivo. Passamos de uma sociedade industrial a uma sociedade imaterial, de redes, e o capital quer, justamente, se apoderar destas redes, controlando seus acessos e manipulando sua circulação. Um dos instrumentos desse controle são as guerras preven-
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tivas que, depois de 11 de setembro de 2001, passaram a ser um elemento de legitimação do Império, num contexto de crise dos Estados-nação. Estes já não conseguem mais controlar os movimentos do capital e as lutas em seu próprio espaço. Durante três ou quatro séculos, o Estado-nação foi ótimo para o desenvolvimento do capital e a regulamentação geral da sociedade. Mas essa situação histórica está ultrapassada, e hoje nem mesmo os americanos conseguem conservar a forma do Estado-nação. O Império, então, é a forma política do mercado mundial. Daí a necessidade de fortalecer o FMI e o Banco Mundial. Toda uma série de poderes foi transferida do Estado para essas instâncias supranacionais, que são profundamente irresponsáveis, porque não existe uma democracia internacional. Negri conclui de forma categórica: – Nossa responsabilidade como cidadãos é criticar o mundo em que vivemos, desertar da guerra, da política, desertar desta sociedade para criar uma nova. Trata-se de afirmar que não queremos viver num mundo como este e que pretendemos evitar a aplicação de um poder que quer gerir até mesmo as nossas vidas, os nossos afetos, os nossos desejos. Hoje em dia os explorados já não são apenas os trabalhadores manuais e os operários, mas as multidões sociais: os estudantes, os trabalhadores informais, os desempregados, os imigrantes, as mulheres, os trabalhadores em regime temporário. É importante poder organizar as necessidades e os desejos dessas multidões, tendo a consciência clara de que estamos diante de um novo sujeito político. Uma nova esquerda só pode emergir do movimento antiliberal. • Luciano Trigo é jornalista.
Foto: AP
Atentado a Aldo Moro, em 1979, ano que Negri foi preso, acusado de chefiar as Brigadas Vermelhas Continente dezembro 2003
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72 ANTROPOLOGIA
Descendentes ou mercadores de escravos, retornados à África, nos séculos 17 e 18, formam etnia que tenta manter laços com o Brasil Claudia Silva Jacobs
Agudás, colonização brasileira no Benin
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Benin, um minúsculo país de fala francesa e seis milhões de habitantes, na África Ocidental, abriga, entre as suas etnias, os agudás, descendentes de escravos ou de mercadores de escravos brasileiros, unidos pelas tradições de seus ancestrais que fazem questão de cultivar, no primeiro e único caso de colonização brasileira. Representam entre 5% e 10% da população beninense. Os descendentes de brasileiros não falam português e conhecem muito pouco do que acontece no Brasil atualmente, salvo as novelas. Mas, quando estão juntos, deixam de lado o bonjour e se cumprimentam com “bom dia”. Aliás, as saudações e algumas cantigas de crianças e de carnaval são as únicas ligações dos agudás com a língua de seus ancestrais. Na cozinha, no entanto, estão as raízes mais fortes. Entre os pratos tipicamente agudás estão a “feijoadá”, o “kousido” e a “cocadá”. A ligação Brasil-Benin começou no final do século 17, quando Francisco Félix de Souza, um mestiço de Salvador, se instalou na cidade de Uidá. Com o final da escravidão, muitos ex-escravos encontraram em Uidá a porta de entrada de volta às raízes. Por isso, pode-se encontrar até hoje os descendentes de brasileiros em Benin e países vizinhos, como Togo, Ghana e Nigéria. Os agudás se consideram especiais, como se pertencessem a uma casta superior. E o que os faz se sentirem tão diferentes dos beninoise ordinnaire (beninenses comuns), como se referem aos seus compatriotas não-descendentes de brasileiros? É que, desde a chegada ao Benin, os brasileiros eram tidos como uma casta superior. Habituados aos costumes europeus de seus proprietários, sabiam como construir casas de alvenaria, como usar talheres, tinham habilidades de carpinteiros, marceneiros, o que os diferenciava da população local, considerada “selvaContinente dezembro 2003
Mascarado com a Bandeira brasileira
ANTROPOLOGIA 73 » Fotos: Claudia Silva Jacobs
Única sociedade moldada a partir da influência brasileira, os agudás são um fenômeno de reinserção de escravos na antiga comunidade africana
Desfile de carnaval em Porto Novo. Abaixo, influência da arquitetura brasileira
gem” pelos colonizadores brancos. Com isso, os brasileiros conquistaram a confiança e cargos mais próximos aos europeus, ganhando até mesmo o direito de freqüentar as escolas francesas, instaladas no então Reino de Daomé. E, por mais simples que essas qualidades dos brasileiros pareçam, hoje em dia, elas ainda servem como um espécie de divisor de águas, pelo menos na “filosofia” agudá. “Um agudá tem que ser o melhor dos melhores. E isso é uma das melhores coisas da cultura e da educação afro-brasileira. Você tem que ser o primeiro no trabalho ou na escola. Isso, nós aprendemos dos nossos ancestrais”, diz César Achille Paterson. “Nós temos um estilo mais europeu de vestir. Por exemplo, dificilmente uma agudá usa as roupas estampadas e amarradas como as beninenses. Nós gostamos de vestidos sóbrios e camisões. Os homens, por sua vez, usam camisa social e calça comprida. Também não usamos turbantes nem os penteados com tranças no cabelo”, diz a professora Annick Domingo. Francisca Paterson é uma típica representante do modo de ser agudá. Ao lado de um dos seus filhos, Achille Paterson, de 51 anos, vive em um casarão estilo colonial brasileiro, marca da influência na arquitetura, que ainda pode ser encontrada em cidades como Uidá e Porto Novo, a capital do Benin. Francisca, de 71 anos, preserva em sua casa alguns móveis de madeira
maciça, de mais de 100 anos, como podia ser visto nos casarões coloniais do século 18. “Você reconhece um agudá quando se senta à mesa. Comemos de garfo e faca e temos os padrões brasileiros (leia-se europeus). Somos diferentes do resto da população”, diz Francisca. A ligação com o Brasil serve como uma forma dos agudás se diferenciarem do resto da população, mesmo que hoje em dia os beninenses em geral não se importem mais com estas diferenças. Ao ter contato com os agudás e com o resto da população beninense, fica claro que um lado está tentando se manter unido às tradições, garantindo que as diferenças fiquem claras. Mas, de fato, a postura agudá é a cada dia menos importante. É como uma família tradicional que foi à bancarrota, mas que se recusa a reconhecer que seus tempos de glória já se foram. Para manter as ligações com o Brasil, os agudás realizam todos os anos a festa da Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim, sempre na segunda quinzena de janeiro. As celebrações têm início com um bloco de Carnaval, aos moldes dos blocos que podem ser vistos nos bairros de subúrbio em algumas cidades brasileiras. À frente do pequeno grupo, duas meninas carregam as bandeiras do Benin e do Brasil. Os participantes usam fantasias, máscaras e cantam canções que misturam palavras em português. O desfile percorre as principais ruas de Porto Novo, com paradas estratégicas à porta da casa de agudás ilustres, como Francisca Continente dezembro 2003
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74 ANTROPOLOGIA Paterson, integrante da família Souza. Os desfiles já contaram com bonecos gigantes, comuns nas ruas de Olinda, que hoje em dia estão sendo deixados de lado. Um dia após o Carnaval é a vez da missa da Irmandade de Nosso Senhor do Bonfim, na catedral de Notre Dame, em Porto Novo, nos moldes da tradicional festa realizada em Salvador. O figurino usado pelos participantes foi adaptado a partir da novela Escrava Isaura, que serviu como modelo do estilo de vida na época de seus ancestrais. Após a missa, eles saem em procissão e, em seguida, se reúnem em torno de mesas de comida típica e assistem a apresentações da burrinha, uma forma arcaica de bumba-meu-boi. Os músicos cantam canções em português e usam pandeiros quadrados, que já não são mais usados no Brasil. São muitos os grupos folclóricos e a maioria se reúne aos finais de semana, como uma espécie de burrinha de “fundo-dequintal”. A burrinha é a maior influência brasileira na música. A mais famosa cantora do Benin, Angelique Kidjo, disse em seu disco Bahia (parte gravado em Salvador) que a burrinha que ouvia quando criança, nas ruas de Uidá, foi fundamental em sua carreira e, também, a porta para a música brasileira. Essa influência é ainda maior na carreira de Rex de Souza. Apesar de não ser conhecida internacionalmente, como Angelique, Rex é o orgulho dos agudás. Aos 37 anos, tem agenda lotada de apresentações pelo país e guarda o sonho de poder mostrar seu trabalho no Brasil. “Se você é filho de um país e vive em outro lugar, vai ter alguma coisa que fica em você. Para nós, o ritmo, por exemplo, do samba, através da burrinha, faz a diferença”, diz a cantora que confessa conhecer muito pouco do que acontece no Brasil, no momento. Marcas do passado – Mas nem tudo é tão simples como os agudás tentam demonstrar. Essa necessidade de se manter ligado às raízes funciona também como um escudo contra marcas do passado que nem o decorrer dos séculos conseguiu apagar, como conta Francisco de Almeida, que assume ter sido discriminado por descender de escravos. “A população em geral não entende que muitos agudás são descendentes de brasileiros e também de escravos libertos. Acho que, hoje em dia, esse tipo de preconceito é cada vez menor, mas já passei por momentos em que fui discriminado devido às minhas origens”. O antropólogo e fotógrafo Milton Guran, pesquisador do Centro de Estudos Afro-Asiáticos e professor do Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, é hoje, no Brasil, ponto de referência sobre cultura agudá. Autor do livro Agudás, os Brasileiros do Benin, conhece a fundo a história e o mecanismo que conduz a sociedade agudá. Para Guran, o fato de a cultura agudá existir, por si só, já é um fenômeno. “O que impressiona é ver que antigos escravos usaram a memória da escravidão, do tempo de vida no Brasil, para construir uma nova identidade.” Continente dezembro 2003
A música dos agudás é o mais forte traço cultural remanescente do Brasil
Mitô Honore Feliciano de Souza, o Chachá VIII
ANTROPOLOGIA 75 na sua residência, no mesmo local onde seu ancestral se instalou no século 18. Para guardar as tradições da família, um pequeno museu conserva fotos e quadros de todos os chachás e o quarto que era de Francisco Féliz de Souza, onde estão seus restos mortais. No momento, Chachá VIII está concluindo a construção de seu palácio, que sonha em transformar em um hotel para receber os brasileiros interessados em conhecer a cultura agudá. Maior proximidade com o Brasil é um desejo comum entre os agudás. Poucos tiveram a chance de visitar o país e há muito pouca informação sobre o Brasil na mídia. Por isso, era comum ter que responder a perguntas como: Como é a sua família? Vocês dançam a burrinha? O nosso Carnaval parece com o de vocês? Para tentar reforçar os laços, Chachá VIII e outros membros da família de Souza, a mais famosa entre os agudás, estão tentando conseguir que a Embaixada do Brasil na Nigéria, responsável pelo Benin, ajude no intercâmbio entre os dois países. O primeiro passo é conseguir criar um curso de português. Depois, incentivar o turismo cultural que Chachá está tentando criar. E, enfim, fazer com que o Brasil conheça e reconheça os esforços que os agudás vêm fazendo, há 200 anos, de manter os vínculos com a terra de seus ancestrais. • Claudia Silva Jacobs é jornalista da BBC Brasil (www.bbcbrasil.com) e esteve no Benin para uma série de reportagens sobre os agudás.
Além de ser a única sociedade que se moldou a partir da influência brasileira, um outro fator é considerado importante para Milton Guran: a reinserção desses escravos na sociedade que os havia excluído. “Esse fenômeno de inserção é raro, porque o estigma da escravidão, como nós sabemos, é indelével, persegue o indivíduo até o final da vida”. E, por mais que digam até frases, como “somos mais civilizados”, “estamos mais próximos ao universo europeu”, “temos valores familiares mais rígidos do que o resto da população”, sempre que podem, os agudás tentam afastar seu nome de qualquer ligação com a escravidão. O maior sinal disso é dado freqüentemente pelo mais ilustre representante da comunidade agudá: Mitô Honore Feliciano de Souza, o Chachá VIII, vice-rei de Uidá e descendente direto de Francisco Félix de Souza, o mercador de escravos que se tornou o primeiro Chachá. “Os Souza não são afro-brasileiros. Somos descendentes de brasileiros”, faz questão de frisar Chachá VIII, em conversa
“Os Souza não são afro-brasileiros. Somos descendentes de brasileiros” – Chachá VIII, vice-rei de Uidá
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MÚSICA
Moema Macedo, do conjunto Chora Brasil: no quintal de casa há a placa Praça do Choro
MÚSICA 77 »
A revivescência do chorinho Gênero tradicional experimenta revival no Recife, impulsionado pela adesão de jovens instrumentistas Débora Nascimento
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m 1953, o iluminado Jacob do Bandolim deu uma entrevista bastante pessimista ao jornal O Tempo, de São Paulo, defendendo que, em 10 anos, o choro estaria morto. “E não está?”, questionou em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS, RJ) no ano de 1963, seis antes de sua própria morte, por causa de enfarte, após encontro com o amigo Alfredo da Rocha Viana Filho, o popular Pixiguinha (1897-1973), o papa do estilo musical, seu ídolo máximo. Como os 50 anos passados puderam confirmar, o genial bandolinista – daquela vez – estava completamente errado. Jacob Pick Bittencourt ficaria surpreso ao assistir hoje à formação de tantos grupos de choro nos três lugarespilastras na história do gênero, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Na capital pernambucana, especialmente, a retomada do estilo musical vem sendo comandada por uma geração mais nova – movimento que podemos apontar como “a maior onda de renovação do choro no Recife desde os bem chorados anos 1970”, quando Paulinho da Viola era um dos incentivadores da produção chorística pernambucana. No Recife, existem atuantes mais de 10 conjuntos de choro, três deles integrados por instrumentistas na casa dos 20 anos, como o Arabiando, o Arapinha e o Choro Brasil. Essas bandas encontram espaço para interagir com chorões em rodas promovidas em bares da cidade, como o Colarinho, Mercearia Amélia, Bar do Neno, Califórnia, Seu Cafofa, Sesc Santa Rita e Quintal do Cosme (Porta Larga), a mais antiga roda do Estado, onde a tocata acontece há exatos 30 anos, reunindo pandeiros, violões, cavaquinhos, bandolins, flautas. É só chegar, juntar-se e tocar, ocorrendo o diálogo musical entre chorões da primeira, segunda e terceira idades. Representante da nova safra chorística, a bandolinista Moema, 26 anos, vem despertando aplausos por onde toca com o Choro Brasil. Ela começou a
Fotos: Gilvan Barreto/Lumiar
O choro, mais difundido nos meios populares, conquista terreno em espaços da classe média Continente dezembro 2003
Arabiando: bandolim, pandeiro e violão nas mãos dos jovens
“De forma parecida, mas não igual ao jazz, o choro é um estado de espírito, na maneira de tocar, de frasear” – Henrique Cazes
tocar aos oito anos de idade, nas rodas de choro promovidas por seu pai, o compositor de frevos Inaldo Moreira, em cujo quintal há uma placa identificando: Praça do Choro. Desde então, o talento de Moema foi burilado pelo professor Marco César, 43 anos, o grande catalisador do gênero no Recife. Fundador do Conjunto Pernambucano de Choro e do Sexteto Capibaribe, Marco ensinou à maior parte da nova nata de chorões da cidade. Não contente, está estendendo sua ação missionária ao interior do Estado. Às segundas e terças, viaja ao agreste e sertão pernambucano para dar aulas em Pesqueira e Arcoverde. Graças a esse trabalho foi fundado o Conjunto Pesqueirense de Choro e ele sonha em criar um grupo em cada cidade de Pernambuco. O bandolinista também dá aulas no Centro de Estudos Musicais de Olinda e no Conservatório Pernambucano de Música, onde foi um dos primeiros professores de cavaquinho e bandolim – antes o currículo se voltava apenas para instrumentos ditos eruditos, como violino e piano. “Muitos dos meus alunos que hoje tocam choro, começaram no cavaco para poder tocar pagode, e ganhar dinheiro, mas acabaram tocando choro, que é uma música formadora. Quem tocar choro, está apto a tocar qualquer música” – revela ele. César festeja a reabertura dessas portas para a divulgação do gênero no Estado, no entanto, prefere não fazer shows em bares e restaurantes, por uma questão de repertório. “Geralmente, limita o músico. É bom no sentido de dar experiência e esperteza. Mas boa parte do público freqüentador não é entendida, quer escutar as mesmas músicas, como “Odeon, Noites Cariocas, Brasileirinho”, e nós, que gostamos de choro, vivemos pesquisando e queremos tocar outras músicas, não evoluímos. Prefiro o palco dos teatros”, avalia o instrumentista, que lançará, junto com o Sexteto Capibaribe, no dia 11 de dezembro, no Teatro de Santa Isabel, o CD Compositores Pernambucanos Volume 1, com choros inéditos de Luiz Guimarães, Capiba, José Menezes, entre outros autores. Esse empolgante “agora” do choro no Recife, como não poderia deixar de ser, foi precedido por um passado firmador, tendo como apogeu os idos anos de 1950. Por aqui surgiram alguns dos maiores expoentes, como Meira (1909-1982), professor de violão de Baden Powell; Canhoto da Paraíba, que vive em Pernambuco; Zé do Carmo, Rossini Ferreira, Luperce Miranda (1904-1977), João Pernambuco (1883-1947) e Henrique Annes. O choro teve início no Brasil como um modo de executar gêneros importados (polca, schottish, valsa, tango), no final do século 19. Depois passou, a partir destes mesmos elementos e da mistura da música popular portuguesa e africana, no início do século 20, a adquirir contornos abrasileirados, tendo como escultores Anacleto de Medeiros (líder de bandas marciais), Chiquinha Gonzaga e seu amigo Joaquim Antonio da Silva Callado. Mas, foi nas mãos de Pixinguinha que ganhou um formato definitivo, atingindo o status de gênero musical. Com o passar dos anos, estruturou-se em duas ou três partes melódicas, que seguem
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A roda de choro do Quintal do Cosme: diálogo de 30 anos entre gerações
Funcionando há décadas, basicamente, com a clássica formação “regional”, dois violões (seis e/ou sete cordas), bandolim, cavaquinho, flauta ou clarinete, e pandeiro (e/ou surdo), o choro nem sempre teve essa configuração. O citado Cazes ensinou no livro Choro – Do Quintal ao Municipal (Editora 34), que, nos primeiros anos de formação do estilo, não havia percussão, e muito menos o tão propagado improviso. Desde esses primitivos dias para cá, passou a gerar uma das maiores constelações de músicos deste país. Entre os quais se destaca o perfeccionista Jacob do Bandolim, que, equivocado, chegou a considerar que o choro morreria com ele. O que felizmente não ocorreu, como mostra a nova geração de chorões recifenses. • Débora Nascimento é jornalista.
Arabiando - Bar Colarinho, na rua Amélia, Aflitos. Sábados, às 16h. Cadência - Bar Califónia, na avenida Boa Viagem (segundo jardim), aos domingos, às 16h. Na Mercearia Amélia (na rua Amélia), às terças-feiras, às 19h. Fone: 3426.7470. Choro Brasil - Seu Cafofa, Estrada do Encanamento, Casa Forte. Quartas-feiras, às 20h, e nos sábados, às 17h30. Fone: 3268.6821. Cosme e diversos - Quintal do Cosme, na Estrada da Batalha, 4218, Vila da Compesa, em Porta Larga. Quinzenalmente, aos domingos. Dalva Torres - Marinho’s, no bairro do Pina. Sextas-feiras, às 22h. Fone: 3465.4742. Diversos - No Sesc Santa Rita (no Cais de Santa Rita). Última quarta-feira do mês, às 16h. Fone: 3224.7577. Expresso do Choro - Bar Cafifórnia, na avenida Boa Viagem (segundo jardim). Sábados, às 16h. Fone: 3327.1413. Grupo AM - Bar do Neno, na rua Padre Lemos, 722, Parnamirim. Terças, às 20h. Sábados, às 14h. Fone: 3441.4141.
Para ouvir
a forma de rondó (volta à primeira, depois de passar por todas). A origem do nome choro é controversa. Segundo Câmara Cascudo, surgiu a partir de xolo, baile que reunia escravos, enquanto o pesquisador Ary Vasconcelos (falecido em outubro), em seu livro Inventário do Choro, defende que o termo vem da música dos choromeleiros, no período colonial. Desta forma, definir o choro também se torna algo extremamente difícil. “Assim de uma forma parecida com o jazz, é um espírito, uma maneira de tocar, de frasear, de sentir a coisa da improvisação, por exemplo, que existe nas duas músicas, mas que é muito diferente numa e na outra. A improvisação no choro é uma coisa mais rítmica, que acontece o tempo todo”, explica o escritor e cavaquinista Henrique Cazes, 44 anos, na coleção a Música Brasileira Deste Século (Sesc).
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MÚSICA
Foto: Divulgação
Quem tem medo de Piazzolla? Compositor argentino, acusado de contrafação do tango, construiu uma música erudita pessoal e originalíssima Sebastião Vila Nova
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oi nos fins do século 19 que um piedoso pastor luterano, preocupado com a difusão ampla dos preceitos de sua religião, achou por bem inventar um instrumento musical leve e fácil de transportar de uma igreja para outra. E estava inventando o bandoneon, assim denominado em honra do seu criador: Gustav Band. Mal sabia o bem intencionado Band que o seu invento terminaria por fazer de seu lar os cabarés de Buenos Aires, alimentando com tango a maciez das carnes de mulheres, na sua maioria, importadas da Europa. Dos tradicionais tangos cantados por Carlos Gardel, um francês que chegou a tornar-se astro em Hollywood, o que dá uma medida do sucesso do ritmo portenho, até os ousados experimentos de Astor Piazzolla, que soube tirar o tango dos cabarés de Buenos Aires para elevá-lo a salas de concerto. Para alguns, Piazzolla fez com o tango o mesmo que Antônio Carlos Jobim fez com o samba. Tom Jobim sofisticou o samba, na trilha aberta pelo verdadeiro pai da Bossa Nova, João Gilberto, valendo-se de acordes retirados de Claude Debussy e do jazz, mas não botou o samba nos salões de concerto, como o fez Piazzolla, a não ser, no início de sua legendária parceria com Vinicius de Moraes, com a quase-ópera Orfeu da Conceição, posteriormente transformada em filme de segunda com o título de Orfeu do Carnaval (se o leitor teve a felicidade de não vê-lo, é melhor ficar como está, ignorante desse trash, não por conta do Tom, nem do Poetinha, mas por causa do diretor, um francês de no-
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me Marcel Camus, que nada tem a ver com o autor de A Peste). Entre os tangos do melífluo Gardel e a obra de Piazzolla, muitas águas correram por debaixo da ponte. Os principais antagonistas do trabalho de Piazzolla vociferavam que sua obra era uma contrafação metida a besta do autêntico tango portenho. Mas nada disso intimidou Piazzolla, que ainda menino transferiu-se para os Estados Unidos com a família, para acompanhar nada mais nada menos do que Gardel. Depois, na primeira mocidade, vieram os estudos em Paris, com Nádia Boulanger, então um monstro sagrado para todo mundo musical cosmopolita. Finalmente, Piazzolla, cansado de tocar o tango tradicional, partiu para a construção da sua obra monumental, original e personalíssima. E se nada mais tivesse composto, além de Adios nonino, composta em homenagem ao seu pai, no dia da sua morte, já estaria com o lugar garantido no panteão dos maiores compositores eruditos do século 20. Com a predominância do tom nostálgico, habitualmente obtido com as soluções melódicas sempre descendentes, Piazzolla nos legou uma obra erudita sólida, na qual se destaca o Concierto para bandoneón, com a colaboração de Lalo Schifrin como regente, do qual o leitor pode encontrar gravação à venda. Isto é, se não estiver entre aqueles que ainda têm medo de Piazzolla. E quem ainda tem medo de Piazzolla? • Sebastião Vila Nova é músico, escritor e sociólogo.
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TRADIÇÕES
Viva o pastoril Manifestação lúdico-religiosa, que remonta ao século 16, resiste principalmente entre a classe média, dentro do Ciclo Natalino Adriana Dória Matos Continente dezembro 2003
TRADIçÕES 83 »
Fotos: Hans Manteufell
O folguedo sobrevive em colégios, casas paroquiais, pequenos tablados e residências
O
Pastoril chegou ao Brasil através dos portugueses, ainda no século 16, e fixou-se no Nordeste, onde é encontrado em todos os Estados. Presta homenagem ao nascimento de Cristo, sendo o seu repertório centrado no aviso dado pelos anjos aos pastores sobre a chegada do Redentor e na caminhada deles à manjedoura. Assiste-se ao folguedo durante o ciclo natalino, que atravessa o mês de dezembro, indo até 6 de janeiro, dia dos Reis Magos. Nesta data, as festividades natalinas encerram-se com a Queima da Lapinha. Como dança dramática religiosa, o pastoril é geralmente encenado diante do Presépio, que pode ser representado em painéis pintados, montagem de cenário com figuras de barro, de madeira e outros materiais, até figurantes de verdade. Há grupos que o enriquecem com adição de falas e personagens, tornando-o um verdadeiro auto, como ocorre no tradicional Presépio dos Irmãos Valença, levado ao palco em três atos, com a participação de figuras como Satanás, Libertina, Monge e Anjo Gabriel, além de infalíveis pastoras, Diana, Pastor e Sagrada Família. Existem hoje no Recife e em todo o Estado dezenas de pastoris religiosos, levados à cena por elenco de jovens. Os profanos estão em baixa, sendo os mais notórios das últimas décadas aqueles liderados pelos “velhos” Barroso, Faceta, Xaveco e Dengoso. O ator Walmir Chagas realiza uma projeção folclórica da figura central do pastoril profano com o Véio Mangaba. Atualmente é curiosa também a proliferação de pastoris de terceira idade e infantis. Pesquisa iniciada em outubro deste ano, intitulada Jornadas do Pastoril – Cantos e Recantos do Nordeste, pretende diagnosticar, até meados de 2004, os pastoris que atuam em Continente dezembro 2003
As apresentações familiares e de bairros são uma contrapartida aos megaeventos, onde não se distinguem rostos nas platéias
Aspecto peculiar do pastoril, observado por Mário de Andrade: a predominância feminina, ao contrário da maioria das brincadeiras populares, privilégio dos homens
Disco do presépio dos Valença: um Auto de Natal Continente dezembro 2003
Pernambuco, quem os encena, suas motivações, como e onde se apresentam. Encampada pelo Museu do Homem do Nordeste, sob a coordenação da etnomusicóloga Dinara Pessoa, a pesquisa terá um segundo momento e se estenderá até 2006, abarcando a presença do pastoril em todos os Estados nordestinos. Essa pesquisa atualizará os registros que vêm sendo feitos desde a colônia. As várias camadas de registros que se somam sobre o folguedo dão conta de que o presépio aparece em Pernambuco no século 16, em cerimônia no Convento dos Franciscanos, em Olinda, promovida pelo frei Gaspar de Santo Antônio. Na década de 40 do século 20, o poeta Ascenso Ferreira, citando vários comentadores, afirma que a representação da natividade, aqui encenada e herdada dos portugueses, tinha inspiração em um remoto presépio montado por São Francisco de Assis, em 1223. O pastoril brasileiro traz, ainda, influências das canções natalinas espanholas, chamadas de vilhancicos, que são “cantigas a solo e refrão coral, cantadas provavelmente por populares encarnando pastores”. Diz Ascenso: “Já no século 16, conforme observa Teófilo Braga, foi o assunto dramatizado, passando a constituir um dos “autos hieráticos” como “Auto da Sibila Cassandra”, escrito por Gil Vicente”. No mesmo ensaio, o poeta trata de diferenciar presépio e pastoril, definindo este como representação que obedece a leigas iniciativas, “muito embora a sua conexão com as festividades da igreja”, e, aquele, como “auto hierático em torno do nascimento de Jesus, constitui iniciativa das comunidades religiosas ou de devoções familiares”. No Recife do início do século 21, este brinquedo sobrevive pelo esforço e vontade da classe média e do povo, que o fomenta e o prepara nos colégios, nas salas paroquiais, nos pequenos tablados e, sobretudo, dentro de casa. A força que ele exerce é conservadora, agindo como agregador familiar e catalisador comunitário. Por isso muitos grupos
têm nomes que remetem à fé – Estrela Brilhante, Estrela Guia, Aurora da Redenção, Sol Nascente, Esperança – ou à origem familiar e escolar: Família Costa Lima, da Escola Tia Jussara e Verônica, Menino Jesus da Vovó Bibia, dos Irmãos Valença. Outro aspecto peculiar do pastoril foi observado pelo escritor paulista Mário de Andrade, que aponta a predominância feminina no folguedo, onde as mulheres tomam a frente da encenação, ao contrário da maioria das brincadeiras populares, privilégio dos homens. Entre as datas de apogeu do pastoril em Pernambuco, destaca-se o século 19, segundo Mário de Andrade, “período de floração máxima dos bailes de pastoris”. Ascenso Ferreira estende este prazo de “floração máxima” até 1910, quando surge o cinema. Nessa época, as disputas entre os cordões azul e encarnado eram tão acirradas que registravam brigas e crimes entre os participantes e entre o público. O pesquisador Waldemar Valente, em seu Pastoris do Recife Antigo e Outros Ensaios, faz comentário vibrante sobre o período de apogeu do brinquedo: “O pastoril, numa época em que quase não havia clubes sociais, muito menos rádio e televisão, nem boites, nem “palhoças”, nem “inferninhos”, com poucos cinemas e raros teatros – estes, só esporadicamente funcionando com alguma companhia lírica, de operetas ou revistas – sem as inúmeras atrações que existem hoje, era acontecimento que o povo aguardava com ansiedade, e até num clima emocional e de suspense. Cada arrabalde tinha o seu perfil e o seu público”. Diante das enormes platéias de outrora, os pastoris de agora parecem eventos mirrados, em vias de extinção. Mas, ao que tudo indica, o brinquedo está em “nova onda” e cumpre o papel de oferecer uma contrapartida aos megaeventos, que não distinguem rostos em suas platéias. Os grupos pastoris reagem ao dilaceramento familiar e à indiferença social. Nas festas onde se apresentam, cada brincante é alguém que tem um nome e está sendo assistido por um público composto por gente conhecida. • Adriana Dória Matos é jornalista.
Para ver Praça do Entrocamento – Apresentação de grupos de pastoril de Olinda e de bairros do Recife, como Pina, Água Fria, Cordeiro, UR3 e Arruda, durante o mês de dezembro. Sítio da Trindade – De 04/12 a 06/01/2004, a partir das 19h, apresentações de pastoril, reisado e marujada. Dia 06/01, Queima da Lapinha, às 20h. Encontro de Pastoris do Museu do Estado, dias 20 e 21/12, a partir das 17h. Bairro do Recife – Serenata Natalina, reunindo blocos líricos de carnaval e pastoris juvenis, dia 20/12, a partir das 20h. Pátio de São Pedro – Queima da Lapinha, dia 06/01/2004, a partir das 18h.
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86 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Natal, pão-de-ló e coca-cola As contradições do Bom Velhinho
E
u tinha cinco anos quando escutei pela primeira vez a palavra Natal. Meus pais haviam se mudado para o Crato, no Cariri cearense, para que os filhos pudessem estudar. Antes, morávamos no sertão dos Inhamuns, uma das três regiões por onde começou a colonização do Ceará, numa fazenda de plantio de algodão e criatório de gado. Lá, ninguém falava noite de Natal. Dizíamos noite de Festas, o que me parece bem diferente. Toda comemoração consistia numa mesa de bolos de mandioca, pães-deló de goma, sequilhos e roupa nova. Morávamos distante da cidade de Saboeiro e não íamos a Missa do Galo. Imaginava um galo de plumagem exuberante, empoleirado no altar, celebrando a missa festiva. Os afilhados vinham tomar a bênção e receber os presentes dos padrinhos, quase sempre dinheiro, ou uma caixa de sabonete enrolada em papel de seda. Em novembro, passavam os mascates com as malas de quinquilharias, caixas mágicas cheias de belezas coloridas, interditadas aos machos. Eu olhava de longe os fetiches femininos, deslumbrado com espelhos, fitas, bicos, rendas, batons, ruges, travessas de cabelo, diademas, pulseiras, anéis, perfumes em vidrinhos minúsculos, cortes de tecidos finos, agulhas, linhas e bordados. As mulheres gastavam o dinheiro ajuntado em um ano, nos adornos que realçavam suas belezas agrestes. Dois meses de trabalheira fabricando queijo, transformavam-
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se num anelzinho de ouro catorze, com pedrinha de rubi falso, fabricado por um ourives de Juazeiro. Na Festa, mesmo que não saíssem de casa, ostentavam um mimo dourado, pendente das orelhas ou brilhando no dedo anular. E os maridos, austeros como os lajedos, deleitavam-se com o aroma adocicado de um “extrato francês”, no corpo das amadas que normalmente cheiravam a vacas e cabras. O Crato era bem diferente. Tinha o cinema, as modas cariocas trazidas pela revista O Cruzeiro e pelos jornais da Atlântida, com um pequeno atraso de meses. Falava-se de Papai Noel, árvores de Natal, e as pessoas mais sofisticadas recobriam galhos secos com capuchos de algodão, simulando neve, no mês mais quente do ano, quando só faltávamos morrer de calor ou devorados pelas muriçocas. Numa casa e noutra, em réplicas de pinheiro, penduravam bolas de aljofre, anjinhos, estrelas, bengalas e bonecos de neve. No galho mais alto colocavam um enfeite pontiagudo, recoberto de areia prateada. Caríssimo, custava o equivalente a duas cargas de rapadura. Os donos da preciosidade estufavam o peito, orgulhosos. Uma única casa possuía instalação elétrica com vinte e quatro lampadinhas, que acendiam e apagavam. Todos íamos ver. Pedíamos licença para entrar na sala e admirar de boca aberta a maravilha. Tentávamos desvendar o comando misterioso, infalível, piscando, acendendo, apagando, acendendo,
Fotomontagem: Zenival
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apagando... Até cansarmos os olhos, vencidos pela tecnologia importada da capital. Tamanho luxo somente para as famílias ricas, de hábitos citadinos, gente que até possuía carro importado dos Estados Unidos, e radiola com som estéreo de alta fidelidade, onde escutavam os discos de Glenn Miller e Nat King Cole. A cultura americana entrava de cheio nas nossas vidas, através do cinema. Surgiam os primeiros arremedos de uma juventude transviada, filha dos novos ricos de um mundo em transformação. E com os novos ricos e os aviões da Real: os chicletes, os óculos escuros, motos, cadilaques rabo-de-peixe, e a cocacola, tomada quente porque quase não existia geladeira, causando arrotos complicados, impossíveis de disfarçar. Elvis Presley, James Dean e Marilyn Monroe proliferavam nas praças, aposentando o estilo dos rapazes e moças de boa família do campo, excelentes partidos para casamentos, e dos bancários de gravata do Banco do Brasil. Vindo de um mundo medieval ibérico-sertanejo, que se mantivera fechado e imutável por trezentos anos, seduzi-me pela cultura teatral dos pobres, representada nos arrabaldes da cidade. A lavadeira da nossa casa, filha de um cabo da polícia, levou-me para ver as cenas que mais impressionaram a minha vida: um enforcado no porão da cadeia e a representação da Lapinha, com Jesus, José, Maria, Pastores, Pastoras, Anjo, Beija-
flor e Borboleta. Desejei iniciar-me naquele espetáculo humilde, mas novamente me foi interditado por não ser brinquedo para homens. Para amenizar as frustrações, ganhei de presente dois pares de asas de Borboleta e de Anjo, que nunca usei. Sem utilidade, acabaram cobertos de poeira num quarto de despejos. Trocamos o desterro sertanejo pelas luzes de uma cidade provinciana. Chegamos no rebuliço do Natal, ingressando nos ritos da Igreja Católica e nas lojas de comércio, bem maiores do que as malas dos caixeiros-viajantes. Instruíram-nos sobre Papai Noel, um velhinho bondoso que presenteava as crianças na Noite de Festas. Meu pai e minha mãe, ansiosos em se igualarem aos vizinhos, compraram os nossos presentes e esconderam. Onde botá-los , na noite de Natal? Não existia lareira na casa, nem pinheiro, nem chaminé. Dormíamos em redes, costume herdado dos antepassados índios, que os avós portugueses massacraram. Como podíamos arremedar as tradições européias, se nem possuíamos cama? Meu pai, homem prático e decidido, achou que os presentes deveriam ir mesmo para debaixo das redes. E foram colocados ali, depois que adormecemos. Fiel aos costumes dos ancestrais Inhamuns, que tinham por hábito mijar na rede até os dezoito anos, estraguei a sanfona de papelão que custara tão caro, e um futuro musical promissor. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.
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AGENDA
» 90 ARTES PLÁSTICAS
Lugar do desenho Francisco Brennand inaugura Museu e expõe obra inédita Fotos: Divulgação
Brennand desenhos
Da idéia à materialização, toda obra de arte percorre vários caminhos nas mãos dos artistas. Nas mãos do visionário Francisco Brennand, elas passam, todas elas, pelo desenho. Foi pensando em abrigar carinhosa e devidamente o princípio de tudo, que o artista decidiu realizar mais uma etapa do seu sonho, acalentado há 32 anos, de transformar ruínas no fantástico, acrescido de sonho e imaterialidade, construindo o Museu Accademia de Francisco Brennand (foto), continuação da Oficina Cerâmica, que comporta teatro, pinacoteca e uma igreja. A pinacoteca acolherá os desenhos e quadros do artista, evocação de todo o seu percurso. O teatro, com 128 lugares, os grupos de visitantes, pequenos concertos, palestras, seminários, projeção de vídeos, etc. A igreja parecia querer existir. “O teto do galpão é a solenidade de uma basílica”, diz Brennand. Engenhada a partir de um galpão pré-existente, com 105m2, ficará pronta em 2004. Com curadoria de Emanoel Araújo, o Museu Accademia será inaugurado no dia 11 de dezembro, com exposição de desenhos e quadros inéditos do artista e lançamento do livro Brennand Desenhos, de Weydson Barros Leal. Inauguração do Museu Accademia de Francisco Brennand e lançamento do livro Brennand Desenhos, de Weydosn Barros Leal, 11 de dezembro de 2003, às 20 h (na Propriedade Santos Cosme e Damião, S/N, Várzea). Exposição até 11/12/2004.
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Poucos pintores contemporâneos possuem uma relação tão clara com o desenho quanto Brennand. É esta faceta pouco conhecida do artista que se pronuncia no livro Brennand Desenhos, do jornalista, poeta e crítico de arte Weydson Barros Leal, primeira publicação a reunir um conjunto representativo da obra em desenho de Francisco Brennand. O que se apresenta pela primeira vez neste livro, editado pela Lei de Incentivo à Cultura, é o desenho propriamente dito (são mais de 230), ou seja, aqueles grafismos, retratos e paisagens que, embora dimensionados com os mais diferentes tipos de suporte e materiais desde 1949, foram pensados e traçados como desenho. Ao conhecermos esta outra obra de Brennand, percebemos que a grandeza e altura de seu gênio estão presentes em todas as suas expressões. Brennand Desenhos, Weydson Barros Leal, Independente, 216 páginas, R$ 130,00.
Fotos: Divulgação
Individuais simultâneas no MAMAM
Uma parte das obras do galerista Marcantonio Vilaça, que levou uma década e meia analisando e escolhendo quase 300 obras para compor sua coleção, estão expostas na galeria de mesmo nome, recém-inaugurada no Instituto Cultural Bandepe. Vestígio, que expõe 15 obras de artistas, procedências e técnicas diversas, se organiza em torno das aproximações temáticas: a ambigüidade do lugar do corpo em um mundo que dissolve identidades ou as desordena e confunde; obras que são menos memória definida do corpo do que rastros ou indicativos de sua ausência. Assim, estão à mostra os “corpos-manifestos” de Adriana Varejão, Cildo Meireles, Doris Salcedo, Edgar de Souza, Hadrian Pigot, Hiroshi Sugito, Julião Sarmento, Leonilson, Matthew Antezzo, Miguel Rio Branco, Rosângela Rennó, Velska Soares, Jorge Molder, Charles Long, Pedro Cabrita Reis.
O Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães inaugura, no próximo dia 10, três exposições individuais e simultâneas. Com curadoria do diretor do Museu, Moacir dos Anjos, a mostra apresentará os trabalhos de José Rufino, Jorge Molder e Oswaldo Goeldi, que, embora independentes, se encontram nos temas: a luta contra o esquecimento (de lugares, idéias, pessoas e coisas) e a tentativa de suspender a passagem do tempo, espacializar a memória, seja individual ou coletiva. José Rufino expõe uma súmula generosa do seu percurso de uma década e meia. Sua mostra incluirá três instalações – Respiratio (1995), Lacrymatio (1997) e Plasmatio (2002). Jorge Molder projeta uma vídeoinstalação, Linha do tempo (1999-2000), associada à exposição da série de polaroides Curta-Metragem I e II. Em todos os trabalhos Molder aparece retratado – como protagonista e modelo deste universo. Do acervo da coleção Gilberto Chateaubriand/ Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 20 xilogravuras de Goeldi, obra que permite adentrar o mundo sombrio, denso e atemporal de um dos maiores gravadores brasileiros.
Vestígio, Galeria Marcantonio Vilaça, no Instituto Cultural Bandepe (Av. Rio Branco, 23, Bairro do Recife), de terça a domingo, das 14h às 20h, até 30 de maio de 2004.
MAMAM, Rua da Aurora, 265, Boa Vista. Telefone: (81) 34233007. Visitação de terça a domingo, das 12h às 18h.
Vestígios de Marcantonio Vilaça
Gil Vicente alheio
Uns e os Outros
Gabinetes de desejos
Alheio é a exposição de Gil Vicente que assinala um período experimental do artista. Em trânsito pelo mundo, ele buscou fragmentos de objetos e sensações e apropriou-se das coisas dos outros, e das de ninguém, como arames de champagne e bilhetes, para organizar esta mostra, que vem se metamorfoseando por onde passa. As frações alheias são reinterpretadas pelo artista e transformadas numa obra pictórica, na qual vida e arte se misturam.
A artista plástica Jeanine Toledo sintetiza 20 anos de percurso artístico na exposição Uns e os Outros, na Galeria de Arte Dumaresq. Em sua sétima individual, a artista lança mão de suportes variados como telas, fotografias, vídeos e backlights para contar a sua trajetória poético-visual, inclusive homenageando artistas que influenciaram o seu trabalho. As obras apresentadas por Jeanine falam de busca às origens, do permanente processo de releitura e reconstrução da bagagem artística.
Com Matriz da Luz, Joelson revive a uma experiência dos anos 80, quando foi atraído pela diversidade de cores e tons das argilas encontradas em Matriz da Luz, cidade da Zona da Mata de Pernambuco. Imprimindo ao barro fotografias eróticas do século XIX (inspiração colhida nos túmulos dos cemitérios) e simulando outras superfícies, como mármore e pele, o artista expõe uma obra singular e fantasiosa, que parece querer guardar o desejo que despertou a beleza de quem já se foi.
Alheio, no Centro Cultural Benfica (R. Benfica,157, Madalena. Tel: (81).3227.0657), de segunda a sexta, das 8h às 12h e das14h às 18h, até 30 de dezembro.
Uns e outros, de Jeanine Toledo, na Galeria Dumaresq ( Rua Prof. Augusto Lins e Silva, 1033, Setúbal), até 29 de janeiro de 2004. Informações: (81) 3341 01 29.
Matriz da Luz, de Joelson, no Ária (Av. Setúbal, 766, Piedade, telefone (81) 33411014) de segunda a sexta, das 9h as 19h, e sábados das 10h às 13h. Até 15 de janeiro de 2004. Continente dezembro 2003
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ARTES PLÁSTICAS 91 »
10 anos de grandes espetáculos Festival abre cada vez mais espaço para as produções de fora Janeiro é o mês das artes cênicas no Recife. Cidade palco para várias produções ao longo de 2003, durante o primeiro mês de 2004 o Recife vai rever os melhores espetáculos de dança e teatro e ver a estréia de espetáculos nacionais, inclusive de circo, através do projeto Janeiro de Grandes Espetáculos, que comemorará dez anos de realização. Por quase um mês, atores, críticos, produtores e encenadores das artes cênicas de todo o país vão discutir o pensar e o fazer cênico – este, em especial, fazendo. Além das apresentações, a programação inclui oficinas, ciclo de palestras, debates, leituras dramáticas, exposição fotográfica e mostra de novos diretores. Do teatro, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna com direção de Marco Camarotti; Agnes de Deus; A Terra dos Meninos Pelados, baseado no único conto escrito por Graciliano Ramos; Histórias do Pajé, de Antônio Madureira; o musical Versos do Nós; A Caravana da Ilusão e Muito Barulho Por Nada, de Shakespeare, com Grupo Teatro Mosaico (MG). Na área de dança o palco é do Balé Popular do Recife, Balé Folclórico de Teresina, Mimulus Cia. de Dança (MG), Ballet de Londrina (PR) e da Domínio Cia. de Dança (RN). O palco vira picadeiro com a Cia. Argumento (CE) que apresenta o Aula de Clownssico, e com a Cia Buffa de Teatro, com Joguete (foto), baseado no texto Fim de Partida, de Beckett.
As mulheres de Garcia Lorca, no Teatro Arraial (na Rua da Aurora, 463/469, Boa Vista, tel.: 3424.6101), toda sexta-feira, às 21h, até 12 de dezembro. Ingressos: R$ 5,00 (meia) e R$ 10,00 Continente dezembro 2003
Janeiro de Grandes Espetáculos, de 07 de janeiro a 03 de fevereiro de 2004, nos Teatros do Parque, Santa Isabel, Armazém, Arraial e Capiba (no SESC de Casa Amarela). Os ingressos custarão entre R$ 10,00 e R$ 5,00 (artistas, estudantes e idosos). Informações: (81) 34233186 ou 34218456.
Um Piano à Luz da Lua, de Paulo César Coutinho (A Lira dos Vinte Anos e Lucrécia, o Veneno dos Bórgia), aborda o núcleo familiar, desvendando, com poesia, a desestruturação familiar; o conflito entre aquilo que se quer e o que o senso comum diz que deve ser feito. Com direção de Roberto Lúcio, a montagem é resultado do Módulo de Teatro, da Escola de Formação de Atores Hipérion, e “cartão de apresentação” da Teodora Lins e Silva Companhia de Teatro, um novo grupo surgido no Recife. Um piano à luz da lua, Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife. Tel: (81) 3224 .1114), sábados e domingos, às 20h, até 28 de dezembro. Ingressos: R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (estudantes, maiores de 65 anos e artistas filiados ao SATED).
Foto: Marcelo Lyra/Olho Nu
Duas das maiores obras do poeta andaluz Federico García Lorca (1898 1936) estão conjugadas na montagem As mulheres de Garcia Lorca, em cartaz no Teatro Arraial. Yerma e A Casa de Bernarda Alba foram adaptadas e o resultado discute a questão da liberdade – ou a sua confiscação. O universo comum de Bernarda Alba e Yerma possibilita ao espectador penetrar na sensibilidade de Lorca. As Mulheres tem direção de Rodrigo Dourado e é uma montagem do Curso de Teatro oferecido pelo Instituto de Cultura Técnica.
Foto: Léo Azevedo/Divulgação
Um Piano à Luz da Lua Fernando e Isaura Foto: Jorge Clésio
Garcia Lorca no palco Foto: Divulgação
AGENDA
» 92 TEATRO
O Espetáculo Fernando e Isaura leva para os palcos uma adaptação do primeiro romance de Ariano Suassuna, escrito em 1956, uma recriação da lenda irlandesa de Tristão e Isolda. Na releitura, a tragédia de amor acontece em Alagoas, à beira do Rio São Francisco, e envolve Fernando – um homem de meia-idade, vaqueiro e órfão –, Marcos – viúvo rico, tio de Fernando, quem o educou – e Isaura, uma mulher culta, bonita, de família classe média, mas já passando da idade de casar. Fernando e Isaura, Teatro Armazém (Armazém 14, Bairro do Recife. Tel: (81) 3424.5613), sábados, às 21h, e domingos, às 20h, até 21 de dezembro. Ingressos: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (estudantes e maiores de 65 anos).
Fotos: Divulgação
Alma Pernambucana O instrumentista Cláudio Almeida faz uma declaração de amor à música e à cultura pernambucanas em Alma Pernambucana, CD que reúne uma seleção antológica da música local. Neste segundo disco, Cláudio revisita clássicos da nossa música, conferindo-lhes novas inflexões. Os arranjos são belos, harmoniosos e elegantes, com sotaque e manerismos bem pernambucanos, onde se sente a presença do Movimento Armorial, que parece modular o trabalho. Aqui, Cláudio também se lança como arranjador de cordas e sopro, contando com a parceria de Maestro Duda, que sai do frevo e faz solo na bossa-nova “Ipaneminha”. Também toca uma “Ave-Maria” sertaneja, inspirada no Movimento. Alma Pernambucana, de Cláudio Almeida, Independente, R$ 15,00.
A praia pessoal de Zé Renato Compositor canta sua própria história no CD Minha Praia Estado de graça. Esta é a expressão que define a condição de quem ouve o CD Minha Praia, de Zé Renato, seu primeiro projeto solo na gravadora Biscoito Fino. Dono de uma linda voz – límpida, clara, suave, moldada pelos anos no Boca Livre –, Zé Renato nunca deixou de lado a veia compositora (poética?). E é esse lado que ele mostra agora, no seu mais recente trabalho: uma seleção de jóias garimpadas no caminho melódico de sua vida – e das nossas –; canções marcadas no repertório nacional, aqui com suas próprias versões, como “Andorinha”, “Anima” (imortalizada na voz de Milton Nascimento), “Toada” (conhecida nas vozes de Sá e Guarabira), “A Hora e a Vez”, e novidades, como “Insônia” – uma poesia musicada em parceria com Arnaldo Antunes –, “Fica Melhor Assim”, “Algum Lugar” e “Na São Sebastião”, um duo com o pernambucano Lenine. Minha Praia une a quietude interiorana, o espírito viageiro de Minas, com a dolência e o charme solar cariocas, sem esquecer as referências a Salvador, Recife e Fortaleza, Paris, Dakar e Barcelona, gerando uma música cosmopolita, que murmura aos ouvidos das cidades que quer ser ouvida, e por isto é preciso se ouvir. Minha Praia, de Zé Renato, Biscoito Fino, R$ 20,00.
O som do sagrado Paixão e Fé na Canção Brasileira, da gravadora Kuarup, é resultado de uma pesquisa antropológica realizada nos recantos do país pelo Pe Virgílio Resi. O CD reúne um conjunto de canções populares e tradicionais que falam do sagrado, soma das influências cristãs e das culturas africanas e indígenas. São músicas de tradição oral, como as cantadas nas folias de reis e nas procissões e as cantigas de acalentar e brincar. A interpretação do grupo mineiro Vozes das Gerais faz um retrato precioso da beleza e religiosidade presentes na musicalidade brasileira. Paixão e Fé na Canção Brasileira, gravadora Kuarup, R$ 18,00.
No baque solto O universo mágico e guerreiro da tradição do maracatu de baque solto é o tema do mais recente trabalho de Siba. Siba e Barachinha, no Baque Solto Somente, título do seu novo CD em parceria com Mestre Barachinha e o terno da Fuloresta, é resultado de uma volta às origens realizada pelo artista, que decidiu morar em Nazaré da Mata, município da Zona da Mata Norte (PE), que hoje inspira as suas pesquisas poético-musicais. No baque solto Somente é um disco de maracatu para quem gosta do batuque ou para os maracatuzeiros, como são conhecidos na Zona da Mata Norte os aficionados pela brincadeira. Siba e Barachinha, no Baque Solto Somente, Independente, R$ 15,00. Continente dezembro 2003
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MÚSICA 93 »
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» 94 LIVROS
Portinari por Callado Perfil publicado originalmente em 1956 é relançado no centenário do pintor Foto: Reprodução - Os Retirantes,1944
Ourivesaria da palavra
Ilustração: Jéssica
Candido Portinari (1903 - 1962) é considerado por muitos o pintor do Brasil. Nenhum outro artista construiu um painel tão vasto da vida nacional, desdobrado em mais de quatro mil obras que têm como protagonista o povo brasileiro: retirantes, favelados, vaqueiros, lavradores, santos, meninos, garimpeiros, brincantes. Deixou também quadros históricos (Primeira Missa, Bandeirantes) e de temas universais (Paz e Guerra, na sede da ONU). Muitas das cenas que ele pintou – colhedores de café ou flagelados da seca – estão definitivamente incorporadas ao patrimônio imaterial brasileiro. Filho de imigrantes italianos, nascido em Brodósqui, interior de São Paulo, enfrentou tempos duros no início da carreira, no Rio, circulou pela Europa, e, ao final da carreira, era um artista consagrado, cidadão do mundo. Morreu de arte: intoxicado pelas tintas. Admirava quem tinha convicções – ele próprio foi militante do Partido Comunista, do qual se afastou por não trocar a liberdade artística pela ortodoxia. Esse perfil do artista está no livro Retrato de Portinari, do escritor e jornalista Antonio Callado, lançado originalmente em 1956 e relançado, agora, acrescido de informações e ilustrações. Do texto fluente de Callado (falecido em 97), emerge um homem e artista de seu tempo que, sem jamais abrir mão dos postulados da Arte, produziu uma vigorosa obra de de- Retrato de Portinari – Antonio Callado, Jorge Zahar Editor, 200 núncia e esperança. (Portinari é o tema da páginas, R$ 31,00. Revista Continente Documento deste mês.) Continente dezembro 2003
Sétimo livro (5º de poesia) de Marco Polo Guimarães, editor de Continente, Caligrafias tem um lugar especial em sua obra. São 40 poemas curtos, em que o autor percorre com olhos renovados paisagens viajadas, pinturas vistas, o fazer poético, o cotidiano, a vida, a morte, um erotismo explícito. Poeta da Geração 65, aqui Polo emerge menos formal e mais exposto, sem abandonar, contudo, a precisão da linguagem, a capacidade de construir imagens surpreendentes, o dom de transformar a realidade prosaica nessa matéria inefável de que é feita a poesia. Exercendo plenamente, como já observara a propósito de sua escritura o crítico e poeta César Leal, “o funcionamento das forças mágicas da língua”. O próprio autor dá-nos uma pista, ao revelar: “O poema é um passaporte / para a parte / mais áspera da palavra”. Não sei se todos concordam em que um único (não é o caso aqui) verso perfeito paga o preço de um livro de poemas. Mas o que dizer deste verso definitivo, baudelaireano: “O corpo é o resto / do bicho / que a morte rejeita” ? (HF) Caligrafias – Marco Polo Guimarães, Editora Bagaço, 106 páginas, R$ 15,00.
Em estado de vivência
O Recife na memória
Poesia sonoplástica
No firmamento da poesia moderna portuguesa, o intenso brilho de Fernando Pessoa ofusca, malgrado ele próprio, a luz de outros poetas, como seu amigo Mário de Sá-Carneiro, que se suicidou em Paris, aos 26 anos, em 1916, deixando uma curta mas original obra. O autor de Dispersão praticou a “poesia em estado de vivência”, como aponta Fernando Paixão, também poeta, em Narciso em Sacrifício, estudo crítico, em que assinala: “(...) o autor aspira promover um inusitado jogo de imagens, em que a vertigem interior desenvolve-se em paralelo com os dilemas da sensibilidade moderna”. Para o crítico, o poeta foi “uma voz narcísica, sem dúvida, mas vencida pelo desencanto, cruel consigo mesma”.
Acaba de ser lançada, pela Cepe – Companhia Editora de Pernambuco, a 2ª edição de Saudades de 60, de Rivaldo Paiva, colunista da Continente. O autor, que faz um passeio memorialístico pela década conturbada e criadora, define sua obra: “Não pretendo transformar fatos vividos em ficção nem me deleitar num relato autobiográfico ou vice-versa. Para se relembrar histórias contemporâneas é preciso ter disciplina e correção. Romancear histórias verdadeiras é denodo de estilo literário – é preciso ser livre e ao mesmo tempo saber controlar a liberdade”.
O paulista Amador Ribeiro Neto que, ao contrário dos retirantes nordestinos, migrou para a Paraíba, onde é professor universitário, faz uma poesia fragmentada, “sonoplástica e onomatopaica”, como bem define Glauco Matoso. Uma poesia plugada na contemporaneidade, misturando alta cultura e cultura pop, diferentes línguas, literatura e música popular, raças e religiões, cidade grande e cidade pequena, pomba-gira e espírito santo, sem discriminações. Sobretudo uma poesia original, irônica e anti-sentimental. Um outro destaque do livro está no seu projeto gráfico.
Narciso em Sacrifício – A Poética de MárioSá Carneiro – Fernando Paixão, Ateliê Editorial, 136 páginas, R$ 20,00.
Saudades de 60 – O Recife ao Sabor de um Tempo – Rivaldo Paiva, Cepe, 240 páginas, R$ 20,00.
Barrocidade – Amador Ribeiro Neto, Landy Editora, 128 páginas, R$ 25,00.
Roteiro do desencanto
Fluxo de histórias
Documento íntimo
Um dos pais da sociologia e um dos pensadores fundamentais para a compreensão do mundo moderno em áreas tão díspares como História, Economia e Filosofia, autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, um dos livros mais lidos do século passado, o alemão Max Weber tem seu conceito de “desencantamento” estudado minuciosamente neste livro. Aliando rigor acadêmico, erudição e refinamento de linguagem, o autor disseca esta peça central do sistema teórico de Weber, analisando sua evolução ao longo dos anos e desfazendo equívocos. Como diz Gabriel Cohn, na apresentação, um livro encantador sobre o desencantamento.
Primeiro romance da jornalista carioca Cecília Costa, este livro é escrito sob o signo da poesia. Marta, a narradora, desfia “um fluxo desvairado de histórias, imagens, lirismos” como bem define Luciana Hidalgo, na orelha. Esse fluir vai desvendando a história de quatro mulheres por volta dos 30 anos, na Ipanema dos anos 80. Suas experiências, frustrações, alegrias, delírios, gozos e lágrimas, conflitos e paradoxos são expostos em sucessão caleidoscópica. O livro trata também da ressaca pós-ditadura militar. Não por acaso, duas das protagonistas são ex-militantes, uma delas padecendo de defeito físico ocasionado por ferimento na luta armada.
Curioso livro feito a partir de 29 fotografias realizadas por Jean Cocteau, que têm Picasso como personagem principal, descobertas por acaso pelo autor, quando pesquisava documentos sobre a comunidade artística de Montparnasse. Ao identificar o fotógrafo, os fotografados em torno do pintor espanhol, o local e a data, Billy Klüver criou um documento preciso, que não apenas encanta pelos personagens (há entre eles Modigliani, num de seus raros, senão único registro sorrindo), como também pelo processo descrito e documentado de classificação do projeto que resulta no livro. No final, um dia de intimidade com Picasso e seus amigos.
O Desencantamento do Mundo – Antônio Flávio Pierucci, Editora 34, 240 páginas, R$ 29,00.
Damas de Copas – Cecília Costa, Record, 272 páginas, R$ 28,00.
Um Dia com Picasso – Billy Klüver, Editora José Olympio, 128 páginas, R$ 29,00. Continente dezembro 2003
AGENDA
LIVROS 95
96
ÚLTIMAS PALAVRAS
Rivaldo Paiva
Amanhã vai ser outro ano Esse amanhã é logo o ano do amanhã
J
á que uma porção de “Pais” e “Mães” de terreiros e carpetes, enfeitados com turbantes salpicados de corais e ametistas, ensarilhando cartas, búzios e bolas de cristal, danam-se a esbravejar muitas tragédias e poucas bonanças, enfeitiçando a população com resenhas proféticas, reservo-me no direito de também fazer minhas previsões para 2004, 4º ano do 3º Milênio numa teoria de absurdos. Será, realmente, um ano sem número cabalístico, mas com dois zeros, facilitando a ironia humorística que dissipará o medo iminente do que poderá acontecer. A odisséia no espaço não será mais um descobrimento interestelar, mas uma tenebrosa escuridão de surpresas catastróficas: Da imensidão celeste choverá o veneno dizimador dos libertinos, atrevidamente apavorante, atingindo os sonhadores e reduzindo a cinzas suas moradias de alvo fácil. Esta minha Centúria, que batizo de R1 – deverá ser decifrada por especialistas em Nostradamus: isso ocorrerá no alinhamento entre Saturno (o tempo) e Marte (a guerra), quando o Sol estiver iluminando os signos de Câncer e Leão (entre junho, julho e agosto) – quem sabe no dia 7 de agosto? Aí, volto a lembrar da voz tonitruante de Lowell, do alto púlpito de Harvard, detonando sua estrofe apocalíptica em canhões roucos e risonhamente amedrontadores. Aqui, na terra aquinhoada de felicidades, teremos manchetes preocupantes: Lula travará sério embate com o Aurélio, cede o Fome Zero para a Namíbia e enfrentará um golpe de Estado não-ideológico por conta da violência dominadora no nosso País; o esotérico Paulo Coelho fundará uma igreja profética e o Bispo Macedo continuará a ensinar safadices aos seus pastores de caras lisas; Beira Mar virará roteiro de um filme de Coppola e Carandiru arrebatará o Oscar de filme estrangeiro da Academy. Pelo mundo: o presidente Bush continuará a ser o matrix da América “republicana”, põe de novo o mundo em guerra e Hillary se candidatará à prefeita de Nova York. A monarquia inglesa estará em queda e o príncipe Charles, desolado, tentando levantar o astral, deixará o trono para o filho Wil-
Continente dezembro 2003
liam e caiará na gandaia; a cura da Aids redime a medicina comercial e o primeiro clone humano não vingará Frankenstein; o bom Papa João de Deus se despede da vida na terra, ora em guerra, e o cardeal Arinze será eleito como o primeiro negro e africano a chefiar a religião católica e o último Papa de Nostradamus. Xuxa se apaixonará por Ronaldinho e Scolari será demitido da seleção lusa. Juízes, desembargadores e políticos conhecidos serão presos, graças a Deus, todavia os escândalos financeiros não darão mais notícia, pois já fazem parte do index da politicagem nacional. Desprezando a quentura de uma Europa em chamas bélicas, o Nordeste brasileiro, chuvoso de paz, fará até a macambira sorrir; a Coréia do Norte testará sua primeira bomba atômica, Bin Laden destruirá Mickeys e Patetas, derrubará Westminster, fuzilará o reino árabe e rezará a Alá nas exéquias de Houssein, morto pelos ianques em seu abrigo; o Santos de Diego e Robinho será campeão mundial de clubes, com Pelé ainda vestindo a camisa-peixeira na glória de um adeus definitivo e o Brasil Olímpico ganhará 6 medalhas de ouro, 7 de prata e 9 de bronze em Atenas. O Oriente, enfim, despertará aos apelos dos povos civilizados, Sharon não se reelegerá como Primeiro Ministro e se aposentará de vez das maldades cometidas; o Hammas será extinto, Arafat se mandará para Paris com seus terroristas e o povo palestino deixará que a ONU, então dirigida por FHC que substituirá Kofi Anan, estabeleça outras regras de paz com os israelenses – e o novo muro da vergonha, levantado nos limites da Cisjordânia será derrubado pelos hooligans embriagados e possessos porque o Manchester United não dá mais no Real Madrid. Aí, quando chegarmos aos “finalmentes” de 2004, com tudo isso confirmado (?), terei de montar uma tenda de retalhos, onde Tony Blair, numa peregrina consulta diária sobre sua reeleição para a prefeitura, vira meu cativo cliente. E que sejamos felizes com as cantigas de dezembro. • Rivaldo Paiva é escritor.