Continente #037 - Clarice Lispector

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EDITORIAL

Fotomontagem: Zenival

Clarice, enigma e devoção

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larice Lispector é um caso singular na literatura brasileira. Não apenas por sua escritura – densa e pessoal, mais sugestiva que narrativa – mas por sua própria biografia, em torno da qual se construiu certa aura de mistério, ora alimentada por ela própria (como quando foi participar de um Congresso de Bruxas, na Colômbia), ora desmentida enfaticamente: “Recebo de vez em quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos” – escreveu numa crônica, resumindo sua história de vida. E acrescentou: “Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata”. Com efeito, Clarice nasceu em 1920 numa aldeia da Ucrânia e, ainda bebê, veio para o Brasil, com os pais e duas irmãs, fixando-se, inicialmente, em Maceió e, depois, no Recife, onde viveu de 1924 a 1934. Morreu em 1977, no Rio, aos 57 anos.

Sua personalidade introvertida e, principalmente, sua literatura sensorial, construída de enigmas e elipses, onde a vida é feita da mesma matéria de que são feitos os sonhos, acarretaram-lhe uma legião de leitores, cuja relação com a autora tem um quê de devoção religiosa. Não à toa, o psiquiatra Helio Pellegrino definiu-a como “uma personalidade lisérgica”, conforme Nádia Gotlib (Clarice – Uma Vida que se Conta). Já Teresa Cristina Montero Ferreira (Eu Sou uma Pergunta – Uma Biografia de Clarice Lispector) registrou: “Ninguém passa impune por Clarice Lispector”. Nesta edição, o enigma Clarice é abordado por Cláudia Nina, Daniel Piza, Luzilá Gonçalves, Maria da Paz Ribeiro Dantas e Mariana Camarotti, em textos que aportam visões e perspectivas diferentes sobre a romancista, contista e cronista, chegada ao Recife há 80 anos, para viver sua infância de menina pobre e judia que se tornaria uma estrela da literatura brasileira. •

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CONTEÚDO Foto: Divulgação

Foto: Ministério da Defesa/UK

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A guerra da Imprensa no Iraque

Clarice, foco de paixões

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CONVERSA

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71 A invenção de Porto de Galinhas

08 Maestro Marlos Nobre fala da loucura musical »

CAPA

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JORNALISMO

TRADIÇÕES 74 Índios escrevem suas próprias histórias

16 Clarice Lispector, uma escritora singular »

REGISTRO

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MÚSICA

30 A manipulação da mídia na guerra do Iraque

78 Siba no meio do redemunho

Um jornal com 14 milhões de exemplares diários

Tavares da Gaita, gênio intuitivo

ARTES

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CINEMA 82 Para cineasta, TV é o câncer da alma

40 Aldemir Martins, um mestre do desenho e da cor Jeanine e Joelson: a mulher como tema » »

CIÊNCIA

86 Os 350 anos da expulsão dos holandeses

52 Teoria de Einstein posta em questão »

LITERATURA 56 Ninguém escreve sobre romance de Mino Carta Confraria de degustadores de livros A poesia generosa de Marco Lucchesi Nasce uma poetisa em Pernambuco Adeus a Sebastião Uchoa Leite A face moralizadora de Eça de Queiroz Continente janeiro 2004

HISTÓRIA

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AGENDA 90 Exposições, peças, livros e discos Agenda atualizada semanalmente no www.continentemulticultural.com.br


Foto: Divulgação

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Foto: KK Santos

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A festa de cores de Aldemir Martins

82 » Cenas de um diretor premiado

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Cultura também pode gerar riqueza

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 38 Concertos pop assemelham-se a rituais arcaicos

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 50 A arte negra e a arte moderna

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 68 O Rei Salomão já conhecia o sorvete

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 85 Pátria só dá hino e bandeira

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 O cristianismo tornou-se descartável?

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Contradições entre fatos e versões

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert

Continente

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Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Edição de Arte Luiz Arrais e Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Alexandre Figueirôa, Astier Basilio, Cláudia Nina, Daniel Piza, Everardo Norões, Geneton Moraes Neto, José Cláudio, José Teles, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Luzilá Gonçalves Ferreira, Marcelo Abreu, Marcos Toledo, Maria da Paz Ribeiro Dantas, Mariana Camarotti, Paula Fontenelle, Ruy dos Santos Pereira, Sueli Cavendish Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente janeiro 2004

Janeiro Ano 03 | 2004 Capa: Retrato de Clarice Lispector Giorgio De Chirico, 1945

Cuspindo no prato Gostaria de externar meu profundo sentimento de pesar àqueles que estão “cansados de saber” a nossa cultura; aos que têm a coragem de vir a público assinar um atestado de que, na realidade, desconhecem que nunca se esgota a novidade da criação artística fundada nas manifestações culturais de um povo. Esquecem, ou fingem esquecer, cuspindo nos pratos que comem, que desse saber, do qual essas pessoas estão cansadas, fazem parte: a forma inigualável de preparar uma tapioca com coco e queijo de coalho, um escondidinho de macaxeira com charque, uma dulcíssima cocada... Desse saber fazem parte: uma cervejinha na praia, no domingo de manhã, acompanhada de uma ostra ao natural com limão e azeite, um camarão cozido no bafo ou um simples guaimum... Desse saber faz parte ouvir e mostrar orgulhosamente aos amigos, de fora, o hino de Pernambuco, na forma tradicional ou na versão frevo, forró, mangue ou o que mais chegar... Desconhecem os que tudo sabem da nossa cultura que, exatamente por conta da globalização, é imprescindível cada vez mais, que “outras culturas, outros países, outras realidades” tenham acesso não só ao nosso “quintal”, mas a toda nossa casa e que, principalmente, eles entrem pelo portão da frente do nosso rico, belo e criativo jardim cultural. Parabéns, então, a esta pernambucaníssima Continente, que nos abre esse importante espaço e cumpre o delicioso papel de abrir ao mundo as portas do nosso saber! Lilia Gondim – Olinda /PE Sinfonia Mais uma vez, parabéns para a Revista Continente Multicultural ao publicar a matéria Sivuca, Sanfonia dos Sertões. Nela, a autora Kátia Rogéria Oliveira apresenta esse grande artista e intérprete da música nordestina-brasileira em inúmeras paragens. Como em toda boa entrevista, existe uma perfeita interação entrevistador/entrevistado, chegando-se a uma trajetória da vida de Sivuca desde as origens nordestinas até os dias de hoje, com o projeto da suíte Arca de Noé, sobre Os Sertões, de Euclides da Cunha. Severino de Oliveira, Sivuca, faz-nos lembrar outro grande músico e “interpretador” do Brasil, Luiz Gonzaga, que cantou o Nordeste para todo Brasil. Já Sivuca, cantando o Nordeste para o mundo, juntou a sanfona com o sinfônico. João Hélio Mendonça, professor universitário e antropólogo, Recife/PE Equipe Parabenizo toda a equipe de trabalho que vem editando a Revista Continente Multicultural, que tem se revelado uma das mais bem elaboradas do país. Roberto Freire, Brasília-DF


CARTAS Educação e globalização Sou professora do Estado de Pernambuco e estou usando muitas reportagens desta Revista para trabalhar com meus alunos, principalmente os do Ensino Médio, que adoram os textos. No mês de outubro trabalhamos o de Carlos Alberto Fernandes: Esses moços, pobres moços, edição 34, que estava ótima. Quero agradecer por esta prova de que Pernambuco é um Estado muito valorizado e que as reportagens sobre nossa cultura são especiais. Sei que alguns leitores não gostam e acham que vivemos em um mundo “globalizado”, mas eu ainda acredito que educação é a base de toda a vida do ser humano e o registro de sua cultura e a valorização do seu EU maior. Acredito que para a formação de um caráter é muito importante a valorização da cultura. Giselly Felix – Gravatá, PE

Leão Coroado A estilização vem degradando a tradição... Nenhuma cultura é inerte, todavia, vislumbrar um Maracatu Nação (Baque Virado) ou Afoxé sem o caráter religioso, não é modernidade, mas uma aberração do capitalismo contemporâneo: aquele que invade a mais rica das heranças, a nossa cultura popular. Ter o prazer de ver o Leão Coroado, remete ao âmbito da ancestralidade, do respeito à seita nagô. Glória aos que resistem e se perpetuam na tradição, sem esquecerem de seus próprios tempos. Parabéns pelos 140 anos bravos e insistentes, Maracatu Nação Nagô Leão Coroado! Vivas ao Mestre Luiz de França, a Afonso, Dani Bastos e a todos que fazem parte do povo do Leão. Muita força! É o que deseja a amiga: Associação Níran.

Frida Ao ler a Revista de fevereiro, cuja reportagem de capa era sobre o filme Frida, descobri o quanto as demais revistas, com raras exceções, não valorizam a diversidade cultural de nosso país. Além disso, quero agradecê-los pela parte gráfica tão bela, e também pelos colunistas (Ronaldo Correa de Brito, Cunha Melo, Rivaldo Paiva, etc.), que nos elucidam sobre questões relevantes a qualquer cidadão-leitor. É por iniciativas como a de vocês da Continente que me sinto orgulhoso em ser nordestino e principalmente pernambucano! Bruno Otoni – por e-mail Banquete Sou pernambucano, residente em Brasília Teimosa (futura Formosa). Acompanho a trajetória desta Revista desde o seu nascimento. Alimento-me todos os meses com um grande buffet cultural; saio arrotando (no bom sentido) elogios e divulgando a qualidade de nossa gente: Samico, Brennand, Ariano, Delmiro (ótima Documento), Gilberto Freyre (eterno), além da coluna Marco Zero, do escritor José Saramago, Pedro Juan, Michael Moore, Frida (bela matéria, belo filme) e tantos outros. Afinei-me com os holandeses, junto com o Instituto Ricardo Brennand. A Continente é fartura mesmo, temos até sobremesa com as receitas de Maria Lecticia (água na boca). E para terminar, um conhaque, um cafezinho e três doses de Pitu. Parabéns a vocês todos. Edson Bernardo, Brasília Teimosa, Recife-PE Votos Meus parabéns a uma Revista tão cultural. Espero que continuem fazendo o sucesso merecedor. Valmir Viana, Olinda-PE

Sociologia Comovidamente, venho parabenizar todos aqueles que colaboram na elaboração desta espetacular publicação mensal, que em tão pouco tempo constituiu e firmou-se como um fenômeno sem precedentes. Como estudante de Bacharelado em Ciências Sociais da UFPE, sinto a necessidade de expressar os meus sinceros agradecimentos pela presença constante na Revista de matérias referentes à Sociologia... delirei com a edição de setembro (Gilberto Freyre – 70 anos de Casa-Grande e Senzala), principalmente com o artigo Do Transitório ao Permanente, do professor Fernando da Mota Lima. Sugiro que publiquem algo sobre o economista Celso Furtado, o meu pai ideológico. Por fim, uma salva de palmas eletrônicas para a Continente. Abraços multiculturais. Leonardo José de Lima – Recife, PE Filmes antigos Saudosista, fiquei sensibilizado com as referências aos filmes da década de 50, especialmente aos de farwest (Coluna Entremez, Continente Nº 31). Luiz Krause – por e-mail

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Turismo È lamentável o comentário do Sr. Bruno Melo sobre o artigo do colunista Ronaldo Correia de Brito, Turismo é lixo, publicado na Continente nº 34. O leitor parece que não foi além do título forte, ficando chocado com o mesmo. Ele precisa saber que a imprensa se vale desses ardis, para atrair a atenção do leitor. O Sr. Ronaldo Correia de Brito trata o tema com ironia e bom humor e alerta para os riscos do impacto social e cultural do turismo praticado no Brasil, país em desenvolvimento. Em nome dos lucros financeiros com o turismo, também sofremos danos ecológicos e entramos na rota da prostituição internacional. Mas o nosso “turismólogo” só leu o título do artigo e ainda insultou a Medicina. Uma pena! José Ulisses Peixoto – Aluno de Medicina da UPE Polaca Gostaria que o professor Ricardo Oiticica esclarecesse, de uma vez por todas, o seguinte: aprendi no meu tempo de universitário de Direito, mais precisamente na cadeira de Direito Constitucional, que a Constituição espúria de 1937 resultou apelidada de a “Polaca”, em razão dos costumes considerados extremamente liberais para o povo brasileiro à época, das migrantes polonesas então recém-chegadas ao país, principalmente ao Rio de Janeiro e São Paulo, ou seja, naquele tempo era pejorativo chamar qualquer mulher de “polaca”, o que quer dizer que a Carta bastarda de 1937 não teve qualquer relação e nem foi alcunhada de “Polaca”, “em referência à Constituição outorgada dois anos antes pelo marechal Pilsudski” na Polônia. Eduardo Meira Lins – Recife, PE Resposta de Ricardo Oiticica: “A dúvida do leitor é apenas mais uma comprovação de como a era Vargas – contrária aos interesses internacionais – é objeto de distorções, mesmo quando se trata, o que não é o caso, de seus aspectos positivos. Sim, caro leitor, a Polaca deve seu nome à constituição do ditador Pilsudski, que tanta admiração inspirou em Sérgio Buarque de Holanda”. Sugestão Agora, em março, serão transcorridos os 40 anos da Revolução de 1964. Sugiro a publicação de um artigo sobre esse fato político. Arnaldo Lima – por e-mail Continente janeiro 2004

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

A economia da cultura Fazer cultura é também gerar impostos, emprego e renda ntra e sai governo e a cultura é sempre vista como uma ação marginal da economia de mercado, envolvendo agentes e atores sociais bem e, às vezes, mal intencionados. Os poucos recursos viram fumaça e a sua aplicação nem sempre é vista como uma ação que agrega valor e gera riqueza. A tecnoburocracia implantada pelo governo Fernando Henrique – uma das estruturas mais eficientes e eficazes de mudança de paradigma do Estado brasileiro nos últimos 50 anos – estabeleceu as bases ideológicas de um Estado neoliberal, inspiradas nas teses do estado mínimo e do equilíbrio fiscal. Essa tecnoburocracia implementou com competência um modelo que, pragmaticamente, só prioriza a economia e os negócios. Um referencial que só considera as pessoas e sua cultura, como moeda de troca, como unidade econômica. Um modelo racional e legal, segundo os ditames de Max Weber com um pouco do gerencialismo de Peter Drucker. Construído de fora para dentro, o modelo de gestão pública implantado foi estruturado no equilíbrio fiscal, na redução do tamanho e do papel do Estado e no aprofundamento das relações econômicas com o capital internacional. Seus críticos observam que não foram levadas em consideração, como deveriam, as peculiaridades sociais, culturais e o estado da arte da tecnologia do país. Esse modelo encurtou distâncias e acelerou mudanças na medida em que passaram a ser avaliados, prioritariamente, os efeitos econômicos de todos os recursos aplicados na economia. Nessa análise de custo-benefício os investimentos em cultura também foram considerados importantes. Utilizando esta inspiração ideológica, o produto da dinâmica das manifestações e relações culturais é analisado sob o viés pragmático dos benefícios sociais e econômicos. A cultura sob essa perspectiva gera, além dos alumbramentos, trabalho, tecnologia e capital. Na sociedade pós-industrial em que já estamos inseridos, a cultura é um recurso que efetivamente gera riqueza. Seus benefícios sociais e econômicos produzem um expressivo efeito multiplicador. Os investimentos feitos nos últimos anos em Pernambuco comprovam esta afirmação. O Espaço Cultural Bandepe, os espaços do Banco do Brasil, da Caixa Econômica e

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da Fábrica Tacaruna (estes últimos em instalação) adensam institucionalmente a área. O Instituto Ricardo Brennand e, agora, a Accademia – o mais novo espaço de exposições do Museu Oficina Francisco Brennand – consolidam a presença dos mecenas em Pernambuco. O Espaço Cícero Dias – no novo Anexo do Museu do Estado – ratifica o compromisso do Governo; e o Paço Alfândega, um espaço moderno com livrarias, cinemas e salas culturais, acende a contribuição do empreendimento privado. O que nos falta é não deixar a cultura ser apenas uma ação underground. A sociedade e, mais particularmente, os governos precisam compreender que fazer cultura é também gerar impostos, emprego e renda. E é isso o que os empreendedores culturais estão fazendo em Pernambuco. Preservam o nosso capital cultural, agregam valor ao nosso capital social e fazem crescer o nosso capital intelectual e financeiro. Usando a metodologia de clusters ou das cadeias de produção, podem ser identificados todos os agentes e atores sociais, econômicos e políticos envolvidos nas relações de produção da cultura. Assim, pode-se avaliar a contribuição de produtores de teatro, de cinema, gráficos, designers, de CDs piratas ou não, de fotografia, de arte e artesanato, de música, de livros, de revistas, de vídeos, de rádio, jornal e televisão, de shows, de instrumentos musicais, de eventos de entretenimento e lazer, de insumos. De artistas, artesãos, escritores, poetas e cantadores. De empresários da indústria e do comércio formal e informal. De gente da gente. De gente do povo. São esses agentes e atores, produzindo através da dinâmica das relações sociais, que dão consistência ao método e à forma de descoberta do valor agregado da cultura no produto interno bruto do país, dos Estados e dos municípios. Os dirigentes públicos, os gestores sociais e os empresários têm que ter a compreensão do valor econômico da cultura e de seu efeito multiplicador na economia. Na sociedade pós-industrial, produzir bens e seviços culturais, requer atividade física e atitude cívica, dentro do paradigma de uma nova economia: a economia da cultura. • Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral. Continente janeiro 2004


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CONVERSA

MARLOS NOBRE

“Sou um globe-trotter da música”

Maestro e compositor fala sobre sua formação no Recife, sua carreira, o reconhecimento internacional, música eletrônica, indústria cultural e os limites nunca atingidos da criação Marcos Toledo


CONVERSA

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Fotos: Hans Manteufell

Como foi a sua saída de Pernambuco? Eu deixei Pernambuco em 1959. Sai do Recife direto para o Rio. O meio musical naquela época era muito limitado para o que eu queria. Até mesmo o Rio foi muito limitado. Eu fui para o Rio, mas, imediatamente, fui para a Europa, estudar com os maiores compositores, os maiores mestres da época, que eram o Olivier Messiaen, na França, o Luigi Dallapiccola, na Itália, o Aaron Copland, nos Estados Unidos, Alberto Ginastera, em Buenos Aires. Eu tive a sorte de ser aceito por eles. Isso me deu a dimensão daquilo que eu sempre procurei, que é a excelência total. Eu não me conformava com o mais ou menos, o pouco. Queria o máximo. Até hoje eu estou procurando a perfeição.

Mas, para o nível dos músicos de seu tempo, acredito que o sr. chegou ao que se poderia chamar de “o máximo”, não? É, eu acho que sim. Foi engraçado porque, aqui no Recife, eu tive uma formação muito boa. Estudei com as minhas primas, Nilda e Nize, piano. Depois, com o padre Jaime Diniz, um grande pedagogo, no Conservatório Pernambucano... Eu escrevi a primeira peça aqui, no Recife, o Concertino para piano e orquestra de cordas. Com o Trio para piano, mandei para o Concurso Música do Brasil, ganhei o primeiro prêmio. O segundo prêmio foi de Guerra Peixe, que já era uma sumidade. Villa-Lobos havia acabado de morrer e os críticos do Rio de Janeiro disseram que eu vinha para ocupar o lugar vago na música brasileira. O que mostra Continente janeiro 2004

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que o ensino do Recife era muito avançado. Eu não fui para o Rio para aprender. Fui para ganhar o prêmio máximo. De lá, eu só fui para a Europa, porque eu queria mais, eu queria atingir um nível internacional e, além de tudo, contatos internacionais.

"Tenho certeza de que não esgotei, e nem ninguém esgotou, o que a música tem para dar. Eu acredito que ainda existe muita coisa para descobrir e estou descobrindo o que posso"

No início de sua formação, o sr. estudava quanto tempo por dia? Eu estudava outras matérias, fazia ginásio no Colégio Marista. Música, eu estudava 8 a 10 horas por dia. Compondo, tocando... Além de o padre Jaime me fazer trabalhar muito: contraponto, a parte técnica. O Recife, naquela época, era muito peculiar. Eu tive uma formação erudita muito boa e, ao mesmo tempo, uma formação popular muito grande. É a isso que eu atribuo, graças a Deus, a força da minha música. Eu nasci na Rua de São João, onde passava, obrigatoriamente, o Carnaval do Recife. Os maracatus, os cabocolinhos, o frevo... Ali tinha um palanque onde ficava o júri para indicar os vencedores do Carnaval. Todo mundo tinha que passar à minha porta. O Carnaval passava à mideração por sua obra, como temos pela de Villa-Lobos, mas nha porta. acontece que nós não somos instituição cultural. Isso é coisa Após toda essa sua formação, qual a sua ligação do governo. Nós temos que pagar contas e a nossa conta é alta. O negócio aqui é indústria”. com a música folclórica? Muito forte. Eu não só ouvia, dançava. Minha mãe Mas os espetáculos em praça pública ou em dizia que eu, com quatro anos, dançava o frevo, o maracatu. Eu não fiz pesquisa de folclore. Esta música popular im- teatros lotam... É, você vê, o Teatro Aquários lota. O que acontece é que pregnou o meu subconsciente. Ela é uma espécie de alterego, uma riqueza profunda do meu inconsciente. É isto houve um certo problema, espécie de minimizar por baixo. que me alimenta até hoje, que dá força à minha música. A Não estou dizendo que essa coisa é baixa. Estou falando que música que você faz é uma síntese, o resultado do que você é um nível de música para você se balançar, para namorar... aprendeu. Se eu tivesse só aprendido a música clássica, só Mas o ser humano necessita de uma outra coisa, porque, Beethoven, Mozart, Chopin, eu teria uma falha na minha senão, a grande música não existiria. Você tem que ouvir formação. O que, aliás, é a falha dos conservatórios do Bra- uma obra de Mozart, uma obra de Villa-Lobos, uma obra sil e do mundo. O que eu faço, claro, não é música popular, minha, porque você intelectualmente precisa alimentar sua comercial, de consumo. Eu admiro compositores como cabeça com outras coisas. Eu considero música alimento (Egberto) Gismonti, Hermeto Pascoal, Sivuca. Esses com- para o espírito. Você não pode dar para seu espírito só rabapositores não tiveram a formação erudita que eu tive, mas da. Você pode dar rabada, uma vez ou outra, mas você tem tiveram uma formação boa de música e fazem uma música que dar também outras coisas. popular que não é uma música de comércio. Acho que hoje O sr. se considera hoje mais cidadão do mundo ou o Brasil está num dilema muito forte, estranho. Tudo é comércio. O que interessa à gravadora é ter um milhão, um homem ainda muito ligado à sua origem? Eu cometi a divina loucura de viver de música, o que dois milhões, três milhões de discos vendidos. Ora, na década de 70 a 80, eu era gravado em LP. Tive mais de 15 poucas pessoas se atrevem a fazer neste país. Eu tenho hoje LPs lançados. Não vendia mais de 10 mil, mas já era 189 obras. Minha obra é hoje considerada no mundo inmuito. Quando teve a crise do disco e a mudança para o teiro uma coisa importante no cenário da música. Eu vivo CD, os próprios diretores e executivos das grandes disso. Eu vou aonde sou prestigiado, sou chamado e aonde gravadoras me disseram: “Olha, nós temos a maior consi- vou como profissional. Sou um globe-trotter da música. Continente janeiro 2004


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Elementos do folclore, como o maracatu rural: riqueza profunda do inconsciente

Quais são os seus sonhos, depois de ter chegado a essa posição? Eu tenho alguns desejos. Uma das coisas que mais gostaria de fazer, primeiro, é ter um estúdio aqui no Recife. Nesse estúdio, fazer um ateliê de composição para jovens compositores do Recife e do Nordeste. Estou fazendo isso no Rio. Inclusivo dou aulas, master class, pela Internet, para alunos do Brasil inteiro. Mas a minha idéia é vir ao Recife, passar aqui, digamos, dois, três meses e fazer um ateliê prático de composição. O segundo sonho é fazer a ópera Lampião. Estou fascinado por este tema desde pequeno. O que quero fazer não é o Lampião bandido, a história verídica, documental. O que me interessa é o Lampião visto pela ótica popular. E qual é? A literatura de cordel. Estou fazendo uma pesquisa há dois anos, tenho já 178 folhetos só dedicados a Lampião –- estão faltando uns 50 ainda. Estou pesquisando pelo cordel porque é como a população sertaneja, o homem nordestino via – e vê ainda – o Lampião. O que ele representa para o povo? Pela atitude que tomou, reivindicar uma posição na sociedade. Ou ele baixava a cabeça ou atingia o limite. Quando passa aquele limite, o ca-

ra excede e passa para o outro lado, da revolta. Ele passou a encarnar, na mentalidade nordestina, que sempre é possível vingar-se. Essa realidade não é tão diferente do que acontece hoje, com a população massacrada. Os poderosos, tanto políticos quanto de capitais, continuam a exercer uma pressão. Um pobre rouba uma batata num feira e vai preso 15 anos. Um cara de família mete uma faca num empregado, responde processo como primário e vai pra a rua. Mas não prego a revolta popular. Já foi a época. Quando era jovem eu acreditava nessa coisa. O sr. fez a trilha de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Há alguma influência do Glauber Rocha nesse seu desejo de montar Lampião? Muito grande. Aliás, o sonho nosso era fazer o Lampião como um filme-ópera. Nós já tínhamos um projeto. O Glauber tinha uma personalidade operística e eu também. A partir de O Dragão da Maldade, estávamos planejando o Lampião. Mas Lampião visto sob a coisa do cangaço e do fanatismo religioso. Tanto o cangaceiro quanto o fanático religioso são caminhos opostos na mesma direção. É contra a Continente janeiro 2004


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situação. Um vai pela esperança de que Deus vai dar a avançado. Tinha dias em que eu ficava doente. A sensaída, aliena, e outro vai pela força da arma, é predador, vai sação auditiva me provocava algum problema físico. matar mesmo. É sebastianismo, Antonio Conselheiro, Como é para um músico assumir funções burocráticas? Zumbi dos Palmares... Nossa História está cheia disto. GosQuando assumi essas coisas era para tentar criar oportaria, como músico, de dar vida a esta ópera. tunidades. Os comitês nacionais da Unesco trabalham para Muitos músicos e críticos acreditam que tudo o que levar músicos para o exterior. Fiz um trabalho com o Duo havia de ser feito na música já foi feito. O sr. já afirmou Assadi, quando garotos. Consegui levá-los para concurso que “ainda é possível descobrir novas possibilidades de jovens intérpretes em Bratslava e eles ganharam o primeiro prêmio. Foi aí que começou a carreira deles. Através harmônicas” O que o levou a essa conclusão? Eu acho – e, se não achasse isso, não seria compositor – da Unesco, a gente conseguiu ajudar muito a música brasique cada criador, cada compositor é um universo único. leira lá fora. Como tive esse reconhecimento internacional Ninguém repete aquelas mesmas experiências que você teve muito grande, fui eleito como primeiro presidente do Conem sua vida. Mesmo que seja seu irmão gêmeo. O tipo de selho Internacional de Música da Unesco, em Dresden, universo que criei vem do que ouvi – desde o barroco, Alemanha, por aclamação. É uma honra muito grande. Eu música folclórica, da China, do Japão, da Palestina, da In- trabalhei toda essa parte administrativa da música durante donésia, tailandesa, africana, e a música do Nordeste, fun- muito tempo porque sempre pensei que o artista, além de se damentalmente, choro, escola de samba, tudo... –- trabalhei dedicar à sua obra, tem que dar uma contribuição ao seu tudo isso na minha vida toda, uns 50 anos. Até o rap. Na país. Agora, tem um momento que não dá mais. Hoje em Amazônia Ignota, no terceiro movimento, tem um momento dia, sou só presidente do Comitê de Música da Unesco, em que faço uma espécie de rap erudito. Por quê? Não porque é uma atividade mais leve. Deixei todos os casos posso me furtar às influências do mundo que me envolve. diretamente administrativos porque eles exigem demais. Tenho certeza de que não esgotei, e nem ninguém esgotou, Exigem uma participação muito grande nos problemas, na o que a música tem pra dar. Eu acredito que ainda existe organização, nas dificuldades, nos choques de interesse e muita coisa para descobrir e estou descobrindo o que posso. opinião. Você entra num oceano que acaba lhe tirando o Tanto é assim que a minha música é diferente da de todo tempo para compor. mundo. Fiz uma peça chamada Rhythmetron para 38 insO sr. acha que no Brasil tem um reconhecimento trumentos de percussão. A primeira no mundo. Quando d i g n o de sua carreira e sua obra? toquei no Carneggie Hall (Nova York), depois um crítico Eu nunca paro para pensar nesse negócio de recome disse: “Olha, maestro, quando eu vi aquele oceano de percussão no palco, sai, fui na farmácia e comprei um pro- nhecimento. Francamente, não tenho tempo para pensar em tetor de ouvido para me proteger”. Ele pensou que vinha homenagem. Fico até espantado quando leio “o maior porrada atrás de porrada. Geralmente é assim. Quando compositor da América Latina”... É o que o pessoal fala aí começo o Rhythmetron, é extremamente delicado. Tem mo- fora, no Brasil e no exterior, que sou considerado isto. E o mentos de grande força, mas tem momentos suaves. Uso pessoal pergunta como me sinto. Simplesmente não paro maracatu, escola de samba, tudo misturado. É meu uni- para pensar. Eu estou trabalhando. Não estou contente com verso. O crítico escreveu no NY Times: “Nasce a primeira o que fiz, não acho que fiz tudo o que quero. Estou ainda numa fase de criatividade muito grande. Agora é que cosinfonia para percussão”. meçam os grandes projetos, como a ópera Lampião. Eu esComo foi sua experiência com a música eletrônica? tou muito preocupado agora com os jovens. Eles precisam Trabalhei em NY. Eu não me dei bem e nem me ter uma formação mais forte, que não estão encontrando. dou porque a ausência do som acústico me faz muito Tenho falado com muita gente. Essa contribuição minha é mal. O som eletrônico irrita alguma coisa nos meus muito importante. Agora, quanto à repercussão, acho que neurônios (risos). Eu só posso suportar a música ele- sim, sou muito conceituado. Pelo que ouço e leio no mundo trônica quando ela se mistura com a acústica. Pura, inteiro, acho que atingi um ponto muito alto, mas que ainda eu não agüento. Trabalhei no melhor laboratório, o não é o meu limite. • da Columbia Princenton, nos EUA, o mais Marcos Toledo é jornalista.

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"Eu cometi a divina loucura de viver de música, o que poucas pessoas se atrevem a fazer neste país. Eu tenho 189 obras. Minha obra é hoje considerada no mundo inteiro uma coisa importante no cenário da música"


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16 CAPA

Clarice, por Carlos Scliar


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CAPA 17 »

Os mistérios de Clarice Clarice Lispector, ao longo de todo o seu itinerário, não fez outra coisa a não ser se movimentar em direção à própria liberdade, devassando os limites da criação e da arte, radicalizando seu projeto literário Cláudia Nina

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alar de Clarice Lispector não é referir-se a uma só pessoa. Nem tampouco a uma escritora de obra homogênea e sem fissuras. Clarice Lispector é múltipla em vida e obra. Talvez por isso a sua fortuna crítica seja tão extensa, incluindo aí os trabalhos biográficos que tentam rastrear a mulher por trás do mito. Ao perfil de uma Clarice que gostava de ir a cartomantes, era supersticiosa, acreditava no poder dos números e tinha um cachorro chamado Ulisses, soma-se a silhueta de mistério, penumbra e até um soturno encantamento de quem fazia questão de manter uma aura enigmática e que, atormentada pela idéia de morte, em uma de suas últimas entrevistas, já doente, chegou a dizer: “Estou falando de dentro do meu túmulo”. A obra de Clarice Lispector reflete essa complexidade e o caráter múltiplo que marcou a personalidade da autora. Não se prendeu a um gênero. Aliás, passou a detestá-los à medida que seus escritos iam perdendo contornos precisos. Começou no romance, com Perto do Coração Selvagem, a bela estréia de 1944, mas também foi brilhante contista e, a partir de fins da década de 1960, iniciou nas crônicas, publicadas no Jornal do Brasil, primeiro como uma forma de ganhar dinheiro nos anos difíceis após o divórcio, mas depois acabou tomando gosto; sua ficção chegou a ser diretamente influenciada pelo estilo pessoal e delator com que se lançava nos textos da imprensa. Tudo o que Clarice Lispector escreveu, seja em qual gênero, foi perturbador. Fingia escrever fácil, mas, por trás de uma simplicidade enganosa, havia um arranjo altamente elaborado, filosófico e metafísico. A bruxaria – tão comentada em função de sua participação num congresso de bruxaria na Colômbia – também veio daí: desta mistura fabulosa que “amarra” os leitores pelo pé. Impossível manter-se indiferente a uma escritora como ela.

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18 CAPA Reprodução: Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa

Clarice em Nápoles, nos anos 40

Clarice escreveu de tudo um pouco, sempre tendo como ponto de partida a vida urbana e o cotidiano, transformado em “delicado abismo da desordem”, como escreveria mais tarde em A Legião Estrangeira. Num tempo ainda fortemente marcado pela literatura regionalista, em meados da década de 1940, sua escrita diferenciada surgia com impacto surpreendente. Romance de formação (Bindungsroman), aventura da linguagem por excelência, Perto do Coração Selvagem trazia, em sua porosa estrutura, a palavra como sendo a grande estrela da narrativa, mais importante do que os fatos ou a história em si. Não é à toa que Joana, a personagem, brinca de criar poemas desde criança. Chega a inventar uma palavra – “lalande”, o seu abracadabra, que pode ser qualquer coisa: uma lágrima de anjo, um mar de madrugada, uma praia ainda escurecida... Logo após o sucesso de Perto do Coração Selvagem, críticos e leitores procuravam por um rosto – onde estava Clarice? Quem era a autora daquele romance tão singular que redimensionava a linguagem literária brasileira da época? Poucos sabiam. Afinal, Clarice partira para seu exílio pessoal acompanhando o marido, o diplomata Maury Gurgel. Logo ela, que nasceu na Ucrânia, mas se considerava a mais brasileira das brasileiras, que passara a infância no Recife, sua mais doce lembrança, e a adolescência no Rio, onde se formou advogada, viveria quase 16 anos entre a Europa e os Estados Unidos. Uma tortura, como atestam as várias cartas que escreveu no exterior e que montam um excelente e curioso epistolário, parte dele já publicado em livro. No exílio, a literatura foi a grande salvação emocional de Clarice. De lá, a autora enviou três romances – O Lustre, A Cidade Sitiada e A Maçã no Escuro – obras densas, soturnas, que falam de Continente janeiro 2004


CAPA 19 » personagens solitários e estranhados em seus desertos pessoais, numa atmosfera totalmente diferente daquela que marcou sua estréia. Interessante é observar, portanto, que a autora nunca teve medo de romper consigo mesma em busca da novidade. Sua obra é marcada por rupturas, uma delas a que inaugura a fase que se inicia após Perto do Coração Selvagem. Os romances escritos durante o período do exílio, ao contrário da estréia, não tiveram uma boa aceitação por parte da crítica e – insondáveis razões – ainda hoje permanecem como “patinhos feios” de sua ficção. Talvez seja justamente por eles terem “frustrado”, por assim dizer, leitores que esperavam da autora uma carreira de continuidade; esperava-se que ela escrevesse algo semelhante ao primeiro romance ou que, pelo menos, fosse algo que aprofundasse um estilo quase já consagrado em sua nascente. Clarice, no entanto, optou pela surpresa. Para o bem ou para o mal. Ao longo de sua carreira, a autora também não ficou restrita ao gênero com que iniciara. Aliás, ela começou, na verdade, escrevendo contos quando, ainda bem jovem, tentava emplacar nas páginas de jornal do Recife, sem sucesso. O grande público a conheceu primeiro como romancista, só depois vindo a descobrir o extraordinário talento da autora para as narrativas curtas, como o comprovam os preciosos contos reunidos em Laços de Família e A Legião Estrangeira, pertencentes a momentos distintos da trajetória de Clarice, mas igualmente intensos e magistrais. É em A Legião Estrangeira, por exemplo, que está o enigmático “O ovo e a galinha” (lido durante aquele tal congresso de bruxaria), em que se encontra a chave para uma melhor fruição – e não compreensão – da literatura da autora – “Entender é a prova do erro”. De volta ao Brasil, em fins de 1950, Clarice Lispector inicia uma nova fase. Mais uma ruptura. Seria como a travessia de um deserto, representada em A Paixão Segundo GH, de 1964, um dos textos mais complexos da obra clariceana e que marca uma verdadeira guinada em sua carreira. Pela primeira vez, um romance escrito inteiramente na primeira pessoa e uma corajosa reformulação da estrutura narrativa. Protagonista e narradora – a GH do título – são a mesma pessoa e a mesma voz num tom discursivo sobre os mais diversos temas que envolvem a vida e a morte. O romanesco desfaz-se aos poucos. É o anúncio da maturidade de Clarice Lispector que, nas obras tardias, iria dizer: “Gêneros não me interessam mais”. Ou então: “Eu nada planejo, eu dou um salto no escuro e mastigo trevas, e nessas trevas às vezes vejo o faiscar luminoso e puro de três brilhantes que não são comíveis”. É neste “delicadíssimo, esquizóide e esquivo” abismo de caos e desordem que Clarice Lispector passa a vivenciar sua literatura a partir de A Paixão Segundo GH, especialmente com os escritos tardios, como Água Viva, Onde Estivestes de Noite, Um Sopro de Vida (póstuma) e A Hora da Estrela – obra-síntese de sua história literária. Neles, não só a noção de gênero se estilhaça, como toda e qualquer definição, regra ou parâmetro. Tem-se a impressão de que Clarice Lispector, ao longo de todo o seu itinerário, não fez outra coisa a não ser se movimentar em direção à própria liberdade, devassando os limites da criação e da arte, radicalizando seu projeto literário, já audacioso em sua primeira incursão. É ela mesma que diz em Água Viva: “Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconseqüência. Liberdade? É o meu último refúgio. Sou heroicamente livre. E quero o fluxo”. • Cláudia Nina é jornalista e autora de A Palavra Usurpada: Exílio e Nomadismo na Obra de Clarice Lispector (EdiPucRS, 2003).

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20 CAPA

Clarice nos anos 40

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CAPA 21 »

O sonho irrealizável de uma escritora Na escritura de Clarice justamente o que lhe dá força e coerência se traduz em limitações de seu mundo ficcional Daniel Piza

que Clarice Lispector deixou, há uma característica comum que ninguém lhe N ostira,16porlivrosdebaixo da variedade de temas e gêneros: a preocupação com o que não se pode

dizer, com o que o verbo jamais poderia alcançar. E essa mesma característica que lhe dá coerência, a força específica que exerce sobre seus leitores, é a que muitas vezes se traduz em deficiências, nas limitações de seu mundo ficcional. Seja nos romances mais realistas, como A Hora da Estrela e A Maçã no Escuro ou mais intimistas como A Paixão Segundo G.H. e Água Viva, seja nos contos de Laços de Família e A Legião Estrangeira e até nas histórias infantis, como O Mistério do Coelho Pensante, o tema maior de Clarice Lispector é sempre aquele estado pré-verbal, pré-consciente, ao qual as palavras só chegariam perifericamente. Há um âmago indizível em toda personagem da autora, como uma mônada, uma essência misteriosa. Tal essência misteriosa, para Clarice Lispector, é partilhada pelos seres humanos com os animais e também com objetos, animados estes pelo contato com os indivíduos. O instrumento dessa partilha, nos seres humanos, é o corpo – sua concretude biológica, sua rede de sentidos e emoções, o que ela chamava de “caos orgânico”. O corpo, segundo ela, sabe coisas que a mente não sabe, que a palavra não apreende ou que até mesmo desvirtua. Sendo assim, a linguagem verbal é obrigatoriamente imprecisa, simbolista, como se apalpasse no escuro por um segredo que jamais fixará. Em todas as suas histórias há essa percepção. Pode ser, como no conto Tentação, o encontro de uma menina ruiva com um basset numa rua deserta. Eles trocam olhares, como que predestinados um ao outro, pois ambos são ruivos, e: “Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos”. A mesma troca silenciosa e reveladora de olhares entre uma personagem feminina e um bicho ocorre em O Búfalo. Há sempre uma revelação “depois das palavras” em Clarice Lispector, mesmo que ela não se traduza em felicidade na grande maioria das vezes. Em A Paixão Segundo G.H., por exemplo, a narradora encontra o que chama de “redenção” em colocar uma barata na boca. “O divino Continente janeiro 2004


22 CAPA Reprodução: Desenho de Alfredo Ceschiatti

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O sonho irrealizável das personagens de Clarice Lispector parece ser o de viver num êxtase espiritual, contínuo, pleno de silêncios divinos que a razão prática só serve para incomodar

para mim é o real”, diz ela em outra passagem. A mesma religiosidade é exposta em Água Viva: “Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus, Ele é segredo meu”. Ou seja: para Clarice Lispector, há um segredo a saber, mas não se trata de algo singular ou universal; não se trata do Deus das religiões, com sua ameaça de culpa, com seus mandamentos por escrito. O mistério é algo particular, sensorial, que se revela nos animais e nas coisas na forma de sensações. Em A Maçã no Escuro, único de seus romances com um homem como protagonista, o texto diz: “Ninguém ensinara ao homem essa convivência com o que se passa de noite, mas um corpo sabe”. E esse corpo sábio, deduzimos, é por excelência o feminino. Não se trata aqui de discutir a filosofia de Clarice Lispector. Está certo que ela abre caminho para uma série de interpretações pós-modernas, que misturam existencialismo (o ser e o tempo, etc.), feminismo (a identidade feminina, etc.) e desconstrutivismo (a linguagem como máscara, etc.) e explicam, por exemplo, o sucesso de sua obra nas academias francesas. Mas há escritores cujas teses centrais são as mais tolas, para não mencionar aqueles de ideologia repugnante, e mesmo assim suas obras têm grande valor literário. Há valor literário evidente em Clarice Lispector. Especialmente seus contos demonstram uma escritora capaz de criar um clima com apenas algumas frases descritivas, de apresentar seus personagens sem decantar sua biografia, de sustentar um ritmo narrativo contrapondo o contexto histórico e regional a uma vida peculiar. Seu texto é moderno porque se vale de elipses e coloridos que fogem às convenções dos gêneros; essa mulher nascida na Ucrânia e radicada desde a adolescência no Rio de Janeiro investe na elasticidade e coloquialidade da língua portuguesa falada no Brasil, urbana, ao tentar aproximar a prosa da poesia, assim como a narrativa do pensamento. No entanto, seus conceitos sobre a condição humana e a sabedoria do corpo também são responsáveis pelo que há de negativo em sua prosa. A intenção simbolista dá origem a frases em tom de clichê melodramático (“Finalmente, meu amor, sucumbi”, “Perder-se também é caminho”) ou a um excesso de termos afetados (“fulgurar”, “cintilações”, “uivo eterno”). Nos romances, talvez por sua extensão, fica óbvia a simplicidade das tramas, enxertadas como são de perorações meditativas que tentam lidar com ambigüidades e terminam oferecendo apenas frases vagas (“pensava confusamente com uma precisão sem palavras”). Mais ainda, seu idealismo não deixa espaço para observações concretas sobre a própria sexualidade feminina, que afinal tem suas dinâmicas, seus acertos e enganos. O sonho irrealizável das personagens de Clarice Lispector parece ser o de viver num êxtase espiritual, contínuo, pleno de silêncios divinos que a razão prática só serve para incomodar. Mas não há corpo humano sem palavras, e esta é a complexidade do real. • Daniel Piza é jornalista, escritor e editor-executivo do jornal O Estado de S. Paulo.

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Reprodução: Agência Estado

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Clarice escreve, como obedecendo a si mesma, perplexa muitas vezes diante do que ela própria realiza, como se o texto fosse ditado por alguém que não conhece, por uma voz interior ou por algo que a ultrapassa Luzilá Gonçalves Ferreira

A fala feminina U

ma mulher tímida, desconfiada diante da vida e da escrita. Lembro-me dela numa de suas vindas ao Recife: um animalzinho acuado diante do público que a amava, dizendo “Que é que vocês querem de mim?” E o que queríamos era apenas isto: ver Clarice, ouvir a voz de Clarice, pois o que dela sabíamos, ou melhor, pressentíamos, ela o colocara nos livros. Numa de suas crônicas no Jornal do Brasil, ela confessara: “Minha vida tem que ser escrever, escrever, escrever como exercício espiritual profundo? E incorporar o ar aéreo deste sábado no que eu escrever. O que escrever? Quero hoje escrever qualquer coisa que seja tranqüila e sem modas.” Qualquer coisa que seja tranqüila. Katherine Mansfield, em quem Clarice reconhecia uma alma gêmea (“mas essa mulher sou eu!”), havia escrito quase as mesmas palavras em seu Diário. Virginia Woolf, de quem sempre os críticos aproximam Clarice, também fazia da escrita um exercício espiritual profundo. Hélène Cixous, romancista, crítica, teatróloga, professora, aprendeu português para ler Clarice no original, reconhecendo na autora de Água Viva uma semelhante. Mas por que sobretudo mulheres na vizinhança de Clarice? Por que há em seus escritos um pouco daquilo que se costumou atribuir à fala feminina, uma certa busca do singular, do diferente, do que está à margem? E mais: um discurso onde palavras e frases buscam exprimir muito mais do que aquilo que dizem, que se deve ler nas linhas e entrelinhas, nas pausas, nos silêncios, no moContinente janeiro 2004


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24 CAPA

vimento de recuar e avançar, nas alusões mais do que nas nomeações? Tudo isso certamente, e um pouco mais. Octavio Paz escreveu que a gente escreve para vir a ser. Para se constituir um sujeito, para conhecer um pouco esse indivíduo que diz “eu” ou que se sente capaz de assumir uma fala pessoal, única, que é dele mesmo e de mais ninguém. E Clarice: “...o fato é que mesmo não me entendendo vou lentamente me encaminhando.” E mais adiante, respondendo à pergunta – O que acontece com a pessoa encabulada que você é, enquanto tem a ousadia de escrever? Ela responde: – “Desabrocho em coragem, embora na vida diária continue tímida”. Clarice escreve como obedecendo a si mesma, perplexa muitas vezes diante do que ela própria realiza, como se o texto fosse ditado por alguém que não conhece, por uma voz interior ou por algo que a ultrapassa. À medida que caminha, um texto vai se tecendo, com retalhos de frases mas também visões do quotidiano, pulsações, como chamava. “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador”, escreve numa crônica de 14 de setembro em 1968. Nesse texto que tece a si próprio, também uma mulher se constrói enquanto sujeito de sua fala, que é aproximação, busca, questionamento, construção, e consegue tocar de leve no seu eu mais profundo: “Alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imagino, eu existo.” Uma mulher que se busca, que investiga seus longes, mas que não se afasta de interrogar, de fazer de um quotidiano de mulher matéria literária, em seus romances, crônicas ou contos. Um quotidiano prosaico, onde faz rol de roupa (que ela pensa poder chamar de rol de sentimentos), bate um bolo para os filhos, conversa com a empregada, vigia a refeição do caçula que inventa histórias para não ser obrigado a comer, que conversa com Ofélia sobre empadas de legumes, que borda num canto da sala enquanto Aninha, a arrumadeira, lhe pede informações sobre a leitura, já que tem uma patroa escritora. Que não hesita em se construir um personagem feminino em suas próprias crônicas, confessando ao leitor sua indecisão diante da escolha de um par de brincos ou de um penteado, sua alegria por parecer bonita com o suéter vermelho que recebeu de presente, embora temendo, como o confessa, o risco de se tornar “pessoal demais”. Tudo isso é dito com um estilo inconfundível, onde fatos, objetos, pessoas e palavras parecem ser uma coisa só, elementos denunciadores de um universo mágico que a escrita apenas pressente. E a gente não pode deixar de vislumbrar na fala clariceana, mesmo sem o querer, mesmo sabendo que não se deve confundir o autor com seu personagem, a mulher que vibra, pulsa, existe. No texto e muito além dele. Uma mulher tão perto da gente que é impossível não lhe querer bem. • Luzilá Gonçalves Ferreira é romancista, estudiosa da literatura produzida por mulheres em Pernambuco e professora na UFPE.

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Um estilo inconfundível, onde fatos, objetos, pessoas e palavras parecem ser uma coisa só, elementos denunciadores de um universo mágico que a escrita apenas pressente


Reprodução:

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Até onde a cidade da infância de Clarice permaneceu na memória do seu coração? Nas ocorrências como palavra no texto da escritora, o Recife pode ser às vezes uma cidade só adivinhada Maria da Paz Ribeiro Dantas

A cintilante memória do coração um livro, importante para o que vou dizer, e adianto que não se trata de resenha .O E xiste livro é A Descoberta do Mundo, saído em 1999 pela Editora Rocco. Nele foram reunidos

textos diversos de Clarice Lispector. É um volume de 478 páginas , rotulado “crônicas”, mas inclui até mesmo entrevistas e contos. Contos que apareceram desde o volume Felicidade Clandestina (que eu li há mais de 20 anos). Nessa coletânea de textos, publicados no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, alguns desses contos saíram com novos títulos. É o caso de Os desastres de Sofia, que passou a chamar-se Travessuras de uma menina. Está distribuído em cinco partes correspondentes às datas de publicação na página então assinada por Clarice Lispector. Daí a submissão do texto original à necessidade de “preservar a continuidade” da matéria jornalística, segundo nota do organizador do volume. E agora vai o que interessa. Por curiosidade, mais do que por um sentimento de bairrismo, folheio, percorrendo com o olhar, de alto a baixo, as páginas de A Descoberta do Mundo, na expectativa de quantas vezes irei deparar-me com a palavra Recife. Não deixa de ser uma pesquisa... Embora o dado quantitativo não conte muito, é a partir dele que descobrirei até que ponto a cidade, onde Clarice viveu até os 12 anos, teria marcado a obra da escritora. No final da pesquisa, dá para perceber que a palavra não é tão freqüente, não pinta em mais do que 10% do total de páginas do livro. Nesse jogo ou tentativa de detectar agulhas no palheiro, quando avisto a palavra, ela provoca, em algum lugar de mim, quase uma cintilação de árvore de natal. Recife. Quero ver até onde a cidade da infância de Clarice permaneceu na memória do seu coração. Numa dessas cintilações, Recife, do mesmo modo como está no espaço geográfico, separa-se de Olinda, no texto, apenas por uma vírgula. O texto fala do mar ou, mais precisamente, Continente janeiro 2004


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A cidade que ficou sendo moldura da infância: o carnaval, os banhos de mar em Olinda antes do nascer do sol, as largas ruas do Recife, abertas aos ventos de todas as horas

dos banhos de mar em companhia da família, das temporadas de banhos de mar em jejum, tomados antes do nascer do sol. Banhos de conhecida propriedade terapêutica, bastante acreditada naquela época sem poluição. Clarice descreve, com intensas tonalidades interiores, o que era para ela, criança, despertar às quatro da manhã, cumprir diariamente o trajeto de bonde entre o Recife e Olinda, atravessando a cidade ainda escura, a troca de roupa nas cabines, o contato do seu corpo todo sensação com o mar muito iodado e salgado de Olinda E por fim, a expectativa do dia seguinte, quando o ritual se repetiria. De novo a palavra cintila, dessa vez remetendo, como nas outras, à infância da escritora.Traz de volta a lembrança do carnaval no Recife. Embora não participasse diretamente da folia, a menina era toda tomada pelo espírito que emanava daqueles três dias. “Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e as praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.” Apesar de uma infância atormentada pela doença da mãe e pela precária situação financeira da família, Clarice, como demonstra em seus textos, era uma mulher vital. Longe de um otimismo piegas, expunha o absurdo de certas situações, vendo-as sob ângulos em que nunca é impossível uma saída. No seu caso, privações tinham o seu lado de compensação. Como na personagem de Felicidade Clandestina, um conto ambientado no Recife. Nele, a narradora é torturada pelo desejo de ler um determinado livro, que alguém possui e promete emprestá-lo, mas sadicamente vai adiando a entrega, tapeando com mil desculpas. Entre o desejo e o momento em que o mesmo se realiza, há todo um percurso. É o contraponto entre a impossibilidade da menina (expresso na fome de ler e tocar o objeto do desejo) e o poder esmagador de quem poderia proporcionar-lhe o prazer e a isso se nega. Mas há um outro lado, e este é bem mais explícito: “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.” Nessas ocorrências como palavra, o Recife pode ser às vezes uma cidade só adivinhada. Não há nomes de ruas, de praças ou de praias. Tampouco há referência a acontecimentos datados. Os fatos se ocultam sob uma capa de generalidade, fugindo o mais possível ao detalhe pessoal (isso aliás foi conversado com Rubem Braga, pela própria Clarice Lispector, em autocrítica sobre o gênero crônica e os textos que escrevia para o Jornal do Brasil). Ao narrar episódios da infância, Clarice não cita nomes. Voltando às fontes do prazer: embora sem entrar na folia, viveu o carnaval a ponto de interiorizá-lo como “carnaval era meu, meu”. O mesmo foi com a cidade que ficou sendo moldura da infância: com o carnaval, os banhos de mar em Olinda antes do nascer do sol, as largas ruas do Recife, abertas aos ventos de todas as horas. • Maria da Paz Ribeiro Dantas é escritora. Continente janeiro 2004


CAPA 27 »

A menina com medo da altura Foto: Acervo da Fundação Joaquim Nabuco

A geografia particular de Clarice na cidade permaneceu parcialmente inalterada Mariana Camarotti

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o segundo andar de um sobrado na praça Maciel Pinheiro, uma menina espia o frenético movimento do comércio, os homens de casaca e chapéu que passam e o bonde que leva e traz, no Recife dos meados dos anos 20 do século passado. Não fosse pela retirada do coreto, a praça hoje seria a mesma, e o casario, apesar de algumas reformas, é tal qual o da época. Mas a menina, que achava o segundo andar alto demais e morria de medo de cair dali, cresce e se torna Clarice Lispector, uma das maiores e mais sensíveis escritoras do Brasil. A praça Maciel Pinheiro fica na Boa Vista, bairro onde moravam cerca de 350 famílias judias nesse tempo. Há 80 anos, Clarice chegava ao Recife, cidade em que vive a maior parte da infância e de onde carrega na memória cenários e histórias para os seus contos, romances e crônicas. Se viva fosse, a escritora teria hoje 83 anos. “A casa se acabou? Era pintada de cor-de-rosa. Uma cor acaba? Se desvanece no ar, meu Deus?”, pergunta Clarice, já adulta. O sobrado da Maciel Pinheiro, onde morou entre seus quatro e cinco anos de idade, existe e é o da esquina da rua do Aragão, antiga Conde d’Eu, com a travessa do Veras. Coincidência ou não, a cor ainda é rosa. Hoje ocupado pela loja de móveis Maison Clarice, o sobrado, naquela época, abrigava um armazém no térreo. As janelas e varandas dos andares de cima foram reformadas, mas a fachada mantida. O bonde já não passa mais pela praça e os trilhos foram cobertos pelo asfalto, mas a Maciel Pinheiro conserva um tanque com esculturas portuguesas de 1875 e uma fonte d’água. Desse casarão, a humilde família Lispector se muda para um próximo, na rua da Imperatriz, ocupando também o segundo andar. Aí, Clarice vive até os 12 ou 13 anos, quando se muda para o Rio de Janeiro, após a morte da mãe. Vinda da Ucrânia, a família instala-se primeiro em Maceió, tendo Clarice apenas dois meses. Movida pelas oportunidades de trabalho, a família muda-se para a capital pernambucana. Autora de Clarice, Uma Vida a ser Contada, Nádia Gotlib revela que a pobreza e a doença

Praça Maciel Pinheiro ao tempo de Clarice: somente os bondes e o coreto desapareceram

Arquivo do Ginásio Pernambucano


28 CAPA

Foto: Elpídio Suassuna

Foto: Acervo Fundação Joaquim Nabuco

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Clarice: “A casa se acabou? Era pintada de cor-de-rosa. Uma cor acaba?”

da mãe foram assuntos marcantes na vida da escritora, mas que ela utilizava-se da alegria e do bom humor para esconder as dificuldades. Fala-se que o nascimento da escritora teria provocado a doença da mãe. “Não deve ter sido fácil para Clarice suportar o peso da doença da mãe”, diz Gotlib. As longas escadarias do sobrado da rua da Imperatriz, Clarice as subia às carreiras, sapeca que era. Descia para brincar na rua e, quando não tinha companhia, esperava que alguma criança passasse. “Nunca gostei de ficar em casa. Sempre que podia, estava na calçada, querendo encontrar alguém para brincar”. Também na porta de casa, ela observava o Carnaval, que já não passa em frente à casa, mas acontece perto dali, nos bairros de São José e Santo Antônio, onde o Galo da Madrugada arrasta multidões. A casa em que Clarice morava é a segunda da rua da Imperatriz, perto do rio Capibaribe. Da varanda do segundo andar, a menina via do lado direito o rio, os barcos, a ponte Princesa Isabel e a da Boa Vista, a rua Nova e a avenida Guararapes. Do lado esquerdo, via a rua da Imperatriz, a Matriz da Boa Vista e a praça Maciel Pinheiro. Com a mesma arquitetura da época, o sobrado hoje é uma loja de produtos para cabelo no térreo e um estoque nos andares de cima. Da varanda do segundo piso, a vista ainda é a mesma de Clarice: o rio, as ruas e pontes, a praça e a igreja. Nos fundos da casa, mais uma Continente janeiro 2004

O sobrado continua no mesmo lugar, e cor-de-rosa

varandinha, de onde se vê a antiga Casa de Detenção, a ponte Velha, o mangue. Na Imperatriz de hoje, não moram famílias. A rua tornou-se inteiramente comercial, mas conservou o chão de pedras e uns banquinhos, sem que por ela passem carros. No sobrado da esquina, ao lado de onde a menina morava, funcionava a livraria Berenstein, mais tarde livraria Imperatriz, ainda hoje no mesmo local. Aí, Clarice teve as primeiras leituras: um livro fininho, que tinha a história da lâmpada mágica de Aladim e a do patinho feio. Lia e relia as duas histórias, mesmo já sabendo de cor e salteadas, como ela revelaria mais velha. Depois, encanta-se com Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. A escola João Barbalho, à época na Conde da Boa Vista (antes chamada rua Formosa), é onde a menina aprende a ler e a escrever, aos sete anos. De lá, passa ao Colégio Israelita e, em seguida, ao Ginásio Pernambucano. Clarice escreve para a seção infantil do Diario de Pernambuco, mas é ignorada por tratar de sensações e não de história de “era uma vez”. O Recife de Clarice Lispector é o de uma infância muito pobre, onde a menina corre pelas ruas, toma banho de mar logo cedo, pula muros para roubar flores. É também o Recife em que ela se deslumbra ao ter nas mãos um livro e descobre que quer ser escritora. • Mariana Camarotti é jornalista.


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30 JORNALISMO

Foto: Ministério da Defesa/UK

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Iraque, a batalha pelas mentes

A estratégia do governo inglês pelo controle da mídia durante a guerra no Iraque e como o conflito afetou a imagem política de Tony Blair Paula Fontenelle

Os repórteres britânicos, como Emma Hurd, tiveram um cordial apoio para a cobertura


JORNALISMO 31 »

E

m primeiro de maio do ano passado, o presidente norte-americano George Bush, aterrissou, triunfante, no porta-aviões Abraham Lincoln, local escolhido para o anúncio oficial do final da guerra no Iraque. Vestido em uniforme de piloto e carregando capacete, disse aos militares americanos: “por sua causa, o tirano caiu e o Iraque está livre. A América está orgulhosa de um trabalho bem feito”. Era a primeira vez que um presidente daquele país chegava ao Abraham Lincoln de jato, uma imagem impactante que foi explorada à exaustão pela mídia. Naquele momento, Bush interpretava, na verdade, mais um dos diversos personagens criados por sua equipe de marketing. Não demorou muito para vir a gafe. Saltitante, Bush confirmou aos repórteres o que, para ele, era uma informação relevante naquele contexto: “sim, ajudei a pilotar o jatinho e gostei muito”. Tamanho descuido com a palavra, marca de seu comportamento e fonte diária de constrangimento para sua equipe, contribuiu para a derrota numa guerra trava-

da em paralelo à dos mísseis skud: a batalha da comunicação na imprensa internacional. Enquanto Bush atropelava o roteiro escrito pelos marqueteiros, seu maior aliado político, o primeiro-ministro britânico Tony Blair, vivia a situação inversa. A operação de mídia do governo britânico, conduzida com profissionalismo pelo Ministério da Defesa, contou com a participação disciplinada do primeiro-ministro, mas esbarrou na resistência da população e da mídia em aceitar as justificativas da guerra. Apesar disso, merece a atenção da comunidade internacional, pois é um exemplo do respeito à liberdade de imprensa, um dos mais importantes pilares da verdadeira democracia. A estratégia de comunicação, adotada pelo governo britânico, foi cuidadosamente elaborada por uma equipe enxuta e experiente no trato com jornalistas. A operação teve três braços: o Centro de Mídia dos Aliados, em Doha, Qatar; o sistema de correspondentes “engajados” – repórteres que acompanhavam as tropas nos campos de batalha – e a Foto: Juca Varella/ Folha Imagem

Comboio de repórteres de TV a caminho de Bagdá, após a queda do regime de Saddam Hussein


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Conhecimento 32 JORNALISMO » 32 Foto: BBC

Ben Brown, da BBC: além dos limites da profissão

Unidade Móvel de Transmissão, iniciativa inovadora e de uso exclusivo do governo britânico. Foi para lá que os meios de comunicação internacionais enviaram seus melhores correspondentes. Da CNN, Cristiana Amanpour; da BBC, Ben Brown, num total de 40 repórteres. Inicialmente localizada no norte do Kuwait, a Unidade foi transferida para Safwan, sul do Iraque, nos primeiros dias da guerra. A idéia era permitir que os jornalistas tivessem acesso imediato à notícia, podendo transmitir, ao vivo, imagens das sangrentas batalhas travadas em solo iraquiano. Mas, como em toda estréia, houve problemas. Por exemplo, os tanques utilizados na UMT não eram blindados, limitando a locomoção dos jornalistas. Mesmo assim, os correspondentes recebiam dos repórteres engajados fitas com imagens e, providos de acesso irrestrito à Internet e telefonia, eles transmitiam vários flashes diários ao vivo. O imediatismo da cobertura jornalística só foi possível pela existência dessa Unidade, já que os engajados não podiam realizar transmissões para evitar que os sinais de satélite revelassem a posição das tropas. Longe da interferência dos americanos, os oficiais britânicos estabeleceram uma relação de cordialidade e confiança com os jornalistas. Tim Ewart, correspondente do canal de TV Inglês ITV News, concorrente privada da BBC, reconhece que em alguns momentos houve frustrações. “O fluxo de informação era, às vezes, desapontador. Mas isso teve a ver com logística. Eles (oficiais) eram bem-intencionados e tentavam sempre explicar o que estava acontecendo”. Já em Doha, onde havia centenas de repórteres no milionário Continente janeiro 2004

Centro de Mídia montado pelos americanos, o clima era de tensão e ameaças. A equipe de assessores enviada ao local pelo governo dos Estados Unidos era inexperiente e cometia erros injustificáveis para quem lida com a imprensa. Um exemplo: no dia em que, em coletiva, o general Vince Brooks apresentou o baralho com fotos dos 10 iraquianos mais procurados pelo EUA, ninguém lembrou de providenciar cópias das cartas. Após a entrevista, o general pôs o baralho no bolso e foi embora, deixando para trás câmeras e máquinas fotográficas sem imagens da notícia mais importante do dia. “Eles (americanos) tinham prazer em não fornecer informação e mentiam constantemente”, afirma Bob Roberts, do tablóide inglês The Daily Mirror. No entanto, ao comparar a forma como a mídia foi conduzida por britânicos e americanos, seria ingênuo dizer que o governo de Tony Blair tratou a imprensa com presteza apenas por acreditar estar prestando importante serviço à democracia. Não é bem assim. Por trás da cordialidade militar estava uma estratégia inteligente, cuja origem encontra-se numa história marcada por sucessivas participações em guerras. Ao decidir ampliar para 700 o número de jornalistas engajados às tropas – 135 eram ingleses –, o Ministério da Defesa sabia que a proximidade estabelecida entre soldados e repórteres resultaria numa cobertura jornalística mais favorável ao governo, como explica David Howard, coordenador da operação: “É da natureza humana. Se você convive com alguém, um elo é construído com essa pessoa e como conseqüência, algo de positivo virá”. E assim o foi. O correspondente Tom Newton Dunn,


JORNALISMO 33 » “Eu e meu câmera abraçamos o oficial (inglês), agradecendo-o, e a imagem do iraquiano morto me deixou exultante. Percebi, então, que tinha passado dos limites de minha profissão” – Ben Brown, jornalista da BBC

do The Daily Mirror, cobriu a guerra junto à Unidade 40 do exército britânico. Ao ser questionado sobre uma possível perda de objetividade como conseqüência da relação estabelecida entre ele e a tropa, o repórter negou incisivamente ter-se deixado influenciar. No entanto, após usar os batidos jargões jornalísticos de imparcialidade e isenção, Tom revelou a outra face da verdade: “Isso não aconteceu, até porque seria impossível escrever um número maior de notícias positivas sobre eles (soldados). Eu estava muito impressionado com o que faziam”. Outro exemplo de como a estratégia de comunicação britânica foi conduzida adequadamente, aconteceu com o repórter da BBC Ben Brown. Durante depoimento dramático, ele conta que um certo dia, próximo a Basra, viu um soldado britânico atirar em sua direção. Ao virar-se, constatou que o tiro teve como alvo um iraquiano, o qual, se não tivesse sido a precisão e rapidez do militar britânico, teria atingido e assassinado o próprio repórter. Ele reconhece a

espontaneidade de sua reação, mas admite ter extrapolado o papel de jornalista: “Eu e meu câmera abraçamos o oficial, agradecendo-o, e a imagem do iraquiano morto me deixou exultante. Percebi, então, que tinha passado dos limites de minha profissão”. Esperar que a transmissão de Ben Brown não fosse, naquele dia, impactada pelo que acontecera, seria extirpar do repórter suas características humanas. Em retrospectiva, pode-se dar ênfase a outro fator determinante para a escolha feita pelos dois países de como tratar a mídia. Enquanto George Bush tinha o apoio da grande maioria dos norte-americanos – mantendo-se na casa dos 72% – Tony Blair lutava internamente contra as pesquisas de opinião. O primeiro-ministro britânico tinha duas preocupações: convencer seus eleitores de que a guerra era necessária e manter seus índices de popularidade altos. Nada disso foi possível. No início de março do ano passado, duas semanas antes dos bombardeios, o instituto de pesquisa Mori registrava que 54% dos britânicos eram contra a invasão ao Iraque.

Foto: Juca Varella/ Folha Imagem

O Centro de Imprensa dos aliados, em Doha, no Qatar: tensão e amadorismo dos americanos Continente janeiro 2004


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JORNALISMO Infográfico: Zenival

Os números afetaram, inclusive, as intenções de voto no Reino Unido. Entre março e julho, em relação aos conservadores, o partido de Tony Blair perdeu oito pontos percentuais, passando de 43% para 35%. Pela primeira vez, desde 1997, quando Blair obteve sua primeira vitória, a oposição ficou à frente do Partido Trabalhista, com 38% contra 35%. Ainda é cedo para saber, mas a recente captura de Saddam Houssein pode reverter esses índices. Mesmo constatando que o esforço do Ministério da Defesa não foi suficiente para reverter os índices de aprovação do governo, seria prematuro concluir que a operação de mídia não obteve sucesso. Essa relação contraditória permite-nos chegar a duas conclusões. A primeira é que a cobertura serviu, sim, para mostrar o profissionalismo do exército britânico Continente janeiro 2004

– um dos objetivos do Ministério – cuja imagem foi positivamente retratada pela imprensa durante o conflito. Entretanto, a experiência confirma, mais uma vez, que de nada adianta montar uma estratégia de mídia meticulosa para vender um produto sem consistência. Tony Blair mentiu para a população do Reino Unido – inclusive na manipulação de dados para produção de dois dossiês que, teoricamente, justificavam a guerra. Como resultado, perdeu a confiança de seus eleitores. Por mais bem conduzida que tenha sido a operação de mídia daquele país, os britânicos optaram por acreditar nos fatos e não nas palavras. • Paula Fontenelle (pfontenelle_2000@yahoo.com.br) é jornalista e acaba de concluir tese de mestrado, em Londres, sobre o tema.


JORNALISMO 35 » Foto: Reprodução

Por dentro do Yomiuri Shimbum, o diário japonês que vive ainda na era dourada da imprensa escrita

O maior jornal do mundo Marcelo Abreu

E

m Tóquio, a maior metrópole do planeta, a madrugada começa especialmente movimentada na área central de Otemachi, onde ficam localizadas a redação e a gráfica principal do Yomiuri Shimbum. Nas primeiras horas do dia, caminhões saem das oficinas do jornal, onde estão 60 rotativas de alta velocidade, instaladas em um prédio moderno de oito andares. Os exemplares seguem para milhares de pontos de vendas na capital japonesa. Paralelamente, outras 22 oficinas estão imprimindo a mesma edição em cidades como Osaka, Nagoya e Fukuoka. Por todo o país, 2.700 caminhões se põem a caminho para distribuir o jornal. Em poucas horas, os exemplares se espalham pelo arquipélago japonês, através de 8.600 centros de distribuição, dezenas de milhares de pontos de venda e 106 mil entregadores para assinantes. O objetivo de todo esforço é fazer chegar o jornal às mãos de 10,2 milhões de japoneses. Esta é a tiragem matinal do Yomiuri Shimbum, um jornal que ainda vive em uma época de ouro da imprensa escrita. Além da edição matinal, mais 4,2 milhões de exemplares são vendidos no final da tarde, quando uma edição atualizada e mais leve, do mesmo jornal, chega aos escritórios e às casas de assinantes. Tiragem total diária: 14,4 milhões de exemplares, a maior do planeta. Continente janeiro 2004


Foto: Divulgação

Reunião de pauta: escolhendo os assuntos que 10,2 milhões de japoneses vão ler

O jornal é transmitido por satélite e impresso também em cidades como Hong Kong, Bangcoc, Los Angeles, Nova York e Londres, onde é lido pela comunidade de turistas e empresários japoneses que circulam pelo mundo. Com 129 anos de existência, o Yomiuri é uma instituição nacional, mais antiga do que a democracia e do que o fenômeno da ocidentalização que tomou conta do Japão ao longo do século 20. Fundado em 1874, simboliza os valores de um Japão conservador, liderado no pós-guerra de forma quase ininterrupta pelo Partido Liberal Democrata, no poder agora com o primeiro-ministro Junichiro Koizumi. O logotipo da primeira página, usando um estilo clássico de caligrafia, não muda desde 1946. O jornal representa o lado da tradição numa sociedade cada vez mais ameaçada pela frivolidade da cultura pop. A explicação mais plausível para as tiragens gigantescas parece estar no arraigado hábito de leitura presente na sociedade japonesa. Apesar do idioma japonês ter a escrita mais complexa do mundo (com o uso simultâneo de três sistemas de escrita), o analfabetismo foi erradicado no final do século 19, durante o período Meiji. Hoje, para uma população de 127 milhões de pessoas, cerca de 120 diários são impressos no país, com uma tiragem total de 72 milhões de exemplares. Mesmo desconsiderando que crianças pequenas e pessoas muito idosas não compram jornais, obtém-se uma média de 577 jornais vendidos por cada mil leitores, um número invejável que coloca o Japão na liderança mundial em circulação de jornais. O Yomiuri lidera o mercado desde 1977, mas compete com outros dois gigantes: o liberal Asahi Shimbum, que tem tiragens diárias de 8,2 milhões de exemplares na edição matinal, e 4 milhões na edição vespertina; e o Mainichi Shimbum, que tem tiragens de 4 milhões e de 1,7 milhão, respectivaContinente janeiro 2004

mente. Há ainda seis outros grandes diários com circulação acima de um milhão de exemplares no país, além de vários jornais populares de alta circulação, como os especializados em esportes. A redação do Yomiuri não se diferencia de outras tantas redações de jornais pelo mundo. Em um prédio construído em 1971, centenas de birôs, em fila, são ocupados por repórteres e editores pendurados ao telefone e escrevendo em seus terminais. São cerca de 1.300 jornalistas ao todo, dos quais quarenta estão nas sucursais do exterior. Os que trabalham no Japão tem à disposição sete aeronaves (entre jatos e helicópteros) para deslocamentos de emergência. Mas a grande diferença no trabalho jornalístico é que cada palavra escrita nesse jornal atinge mais gente do que qualquer outro veículo impresso no planeta. Apesar de ser publicado em japonês, em uma língua acessível a poucos estrangeiros, sua influência se faz sentir no resto do mundo a-

Edições especiais: força nas reportagens investigativas


Foto: Reprodução

JORNALISMO 37 Ronaldo em destaque nas páginas esportivas

través da edição em língua inglesa de The Daily Yomiuri, o mais lido entre a comunidade estrangeira no Japão. Do ponto de vista jornalístico, ao lado do seu noticiário consistente, o jornal se diferencia pelo destaque que dá a assuntos, como previdência social – de olho no crescente número de leitores de idade, conseqüência do envelhecimento da população. O Yomiuri tem, como tradição, circular no dia primeiro de janeiro de cada ano, com uma grande matéria de investigação complexa, um furo jornalístico bem apurado que repercute durante semanas. Conglomerado – O jornal é parte de um grande conglomerado, o Yomiuri Group, que controla uma editora de livros e revistas, canais de televisão como a NTV, serviços online, um jornal esportivo – o Sports Hochi –, parques de diversões, a Orquestra Sinfônica Japão Yomiuri e até um time de beisebol – o Tokyo Yomiuri Giants – e a equipe de futebol do Verdi. Kentaro Sonoura, relações públicas do Yomiuri, admite que quando o assunto é esportes, se o leitor torce contra o Giants (o beisebol é a maior paixão entre os japoneses), é melhor não ler o jornal porque a cobertura tende a ser parcial. Em relação à política, o jornal também define bem o seu público em um perfil que varia do centro à direita. Independente de ideologias, porém, o Yomiuri mantém um padrão editorial que lembra jornais tradicionais e conservadores como The Washington Post, nos Estados Unidos, e Le Figaro, na França. Grandes jornalões que noticiam tudo, e que o leitor mais progressista lê com uma ponta de desconfiança, mas satisfeito pelo conteúdo rico e pelo texto consistente. Os números do Yomiuri são impressionantes, mas já foram maiores, sobretudo no período da expansão econômica japonesa, que teve seu auge nos anos 80. Kentaro Sonoura reconhece que, com a crise financeira, muitas famílias não puderam continuar assinando dois ou três jornais diários, e as vendas caíram um pouco. É intrigante, no entanto, perceber

que o hábito das edições vespertinas persiste no Japão, ao contrário do que aconteceu no mundo ocidental. O Japão tem muitos canais de televisão e a Internet é muito usada, mas milhões de pessoas continuam comprando um jornal impresso duas vezes por dia. O sistema de transportes de massa, em trens e metrôs – no qual as pessoas passam, às vezes, algumas horas todos os dias – pode ser um dos fatores que levam ao alto consumo de jornais vespertinos, que são lidos no caminho entre o trabalho e a casa. Pensando nesse público cansado, após um dia de trabalho, e em donas de casa e adolescentes, é que o Yomiuri tem adotado mudanças. Na edição noturna, a fonte dos caracteres é um pouco maior para facilitar a leitura. Os temas tratados são mais leves. É um jornal mais próximo do lazer e dos esportes. Apresenta mais matérias de interesse humano, se comparado à edição matutina, cheia de notícias quentes e análises. Enquanto o mundo discute as possibilidades da Internet, na madrugada de Tóquio os caminhões se prepararam para distribuir 500 toneladas diárias de jornal impresso. O Yomiuri e seus concorrentes japoneses provam a vitalidade de um veículo de comunicação que, em outras partes do mundo, começa a se sentir ameaçado. Gutemberg, o inventor da imprensa, agradeceria a homenagem. •

Sede do Yomiuri: 1.260 jornalistas para produzir 500 toneladas diárias de jornal

Marcelo Abreu é jornalista. Foto: Marcelo Abreu


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38 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

No reino da repetição O mundo paralelo é este mesmo

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m dia desses, encontrei por acaso, entre as minhas desordenadas notas de leitura, um trecho do livro Roncador, onde o sertanista Willy Aureli narra a expedição da Bandeira Piratininga, que comandou em 1936. Transcreve ele o pranto de uma índia Carajá, na Ilha de Bananal, Estado de Tocantins, que perdera o filho havia dois meses: – Oh! Meu rico filho, alma de minha alma, flor da mata, peixinho do Berokãan, dentinho de capivara, alegria de teu pai, por que não voltas? Isso é poesia? É. Do mesmo jeito que uma bela mulher nua na praia é uma pintura ou no inverno ouvirmos a “música” da chuva no telhado. São poesia, pintura e música em sentido metafórico. Do mesmo modo que Bach é o matemático da música, Beethoven é o filósofo e Mozart é o poeta, conforme uma leitura de meu pai, quando eu era menino. Aquela índia Carajá fez poesia com sua dor, diariamente, durante pelo menos os quinze dias em que Willy Aureli passou na sua aldeia. Fez poesia como o vento faz música, como a nuvem sobre a montanha faz pintura. Poesia, para mim, como construtivista que sempre fui, é uma estrutura verbal específica, variável no tempo e no espaço, coisa que fez o excepcional Tzvetan Todorov perContinente janeiro 2004

guntar-se: “existiria uma ‘poeticidade’ transcultural e transhistórica ou então seríamos apenas capazes de encontrar respostas locais, circunscritas no tempo e no espaço?”. Bem, deixo essa pergunta no ar e não vou tentar respondê-la até a morte, mesmo porque já saí da casa dos trinta anos, quando considerava a poesia, essa imensa perda de tempo, uma categoria do absoluto. Essa história comprida que acabo de contar não tem quase nada a ver com o assunto inicialmente imaginado para esta crônica, desculpem a digressão. O que pensara discutir eram as semelhanças dos rituais dos povos ágrafos, arcaicos, com os monumentais espetáculos da música pop nos dias de hoje, até do lixo não-reciclável, produzido pelas duplas sertanejas ou pelos golpes malandros do brega romântico. Nesses eventos, milhares de jovens fazem movimentos sincrônicos com os braços, já que estão formando uma multidão compacta que os impede, por falta de espaço, de dançarem. Quais seriam as similitudes desses espetáculos com os rituais dos povos primitivos (perdão, arcaicos) em toda a parte do mundo, onde tribos e nações inteiras ainda não foram exterminadas pelos civilizados? Numa perspectiva generalista, só um antropólogo cultural da altitude de Melville Herkovits, em seu gran-


MARCO ZERO 39

de tratado Men and his works pode nos dar uma pista: “Exatamente, como a poesia existe unicamente como palavras para a música, e a música e as palavras são partes essenciais da dança, tudo isso contribui para dar às representações dramáticas dos povos ágrafos sua atração estética e sua validez artística”. Essas “representações dramáticas” são, na verdade, rituais que funcionam como elementos de integração grupal, pois tratam periodicamente de valores comuns, como religião, guerra, colheita, núpcias e, em algumas sociedades primitivas, de cultos aos mortos, por exemplo. Nos grandes espetáculos pop de nossos dias, a música, a dança e as palavras parecem apenas representar valores hedonistas e se, por trás deles, e dos grandes interesses comerciais que atendem, existe o culto a algum valor, seria o culto puro e simples da juventude, atraída pela temática romântico-amorosa, numa amplitude planetária. Do ponto de vista estrutural, tanto os espetáculos pop quanto os rituais primitivos dos povos ágrafos apresentam um elemento comum, que é a repetição ou o par4alelismo, sempre presente na maior parte da poesia ocidental pósclassicismo greco-romano. Ninguém melhor para definilo do que Roman Jakobson, ao falar da rima: “é apenas

um caso particular, condensado, de um problema mais geral, poderíamos mesmo dizer do problema fundamental da poesia, a saber, o paralelismo”. As repetições sem fim de uma frase besta nos espetáculos pop são, talvez sem o saberem os laboratórios ocidentais da música kitsch, elementos estruturais da poesia dos hebreus, dos árabes e dos egípcios e, vejam bem, no que poderíamos chamar de protopoesia dos Navajos e Esquimós, como nos lembrou o antropólogo Robert H. Lowie, e entre muitos outros, dos índios brasileiros Kadiwéu, como nos mostrou o nosso Darcy Ribeiro. E querem saber mais? Na melhor literatura brasileira temos dois grandes escritores paralelísticos: João Cabral de Melo Neto e Gilberto Freyre. O ser humano parece gostar de repetir-se, na arte e na antiarte, no bem e no mal. • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.

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ARTES

Um mestre A atualidade de Aldemir Martins vem da força de sua fidelidade a si mesmo e ao Brasil José Cláudio

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uando Deus criou o mundo, o primeiro lugar que ele fez foi o Brasil. Teve um tempo em que só existia o Brasil. E o Brasil, quer dizer, o mundo começava no Recife, fazendo minhas as palavras de Cícero Dias. Daqui, desta nova Roma de bravos guerreiros, contemplávamos o mare nostrum com as eminências de Telles Júnior e Lula Cardoso Ayres além de nomes que apareciam nos compêndios, como Victor Meirelles, que pintou a Batalha dos Guararapes ou Rafael na capa do caderno de desenho Raphael. Mas o que será que existia de fato no além-mar, no mare ignotus, cujo fragor das ondas ecoava no Cais José Mariano como Portinari e Di Cavalcanti? Eu queria saber. De ter ido lá, ver. Europa, França e Bahia. Comecei pela Bahia que estava mais perto, embora tudo fosse longe naquela época do descobrimento, princípios da década de 50, eu sem conhecer nada nem ninguém.

Continente janeiro 2004


ARTES 41 »

Na outra página, Aldemir Martins Ao lado, Marinha, acrílica sobre tela, 81 x 130cm, 1999 Abaixo, à esquerda, Mulher com flores, acrílica sobre tela, 85 x 35cm, 2000

Fotos: Divulgação

Abaixo, Gato marrom, acrílica sobre tela, 60 x 81cm, 1997


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Foto: Divulgação

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Jogadores, acrílica sobre tela, 60 x 81cm, 1986

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ARTES 43 » Quando cheguei na Bahia notei que o Brasil ou terminava, ao norte, na Bahia ou tinha pulado Pernambuco, recomeçando no Ceará com Aldemir Martins nesse novo mapa traçado pela Bienal de São Paulo. Só para entender: na verdade fui primeiro, de caminhão, para Feira de Santana, para sair do Recife, marcar minha desistência definitiva da Faculdade de Direito onde estudava, tendo sido a ida a Salvador determinada pela incompatibilidade de gênios entre mim e o meu hospedeiro, o pintor feirense Raimundo de Oliveira. Viajamos de trem: belíssima a chegada à capital, o trem passando pelos alagados, tema freqüente nos quadros do pintor sergipano Jenner Augusto, a quem seria apresentado em seguida por Raimundo, como aos principais artistas da Bahia, o pintor Carybé e o escultor Mário Cravo Júnior que estavam sempre no atelier deste último, onde fiquei asilado. Aí, no atelier de Mário, que ele chamava studio, ouvi falar em Aldemir Martins, premiado juntamente com o escultor, na primeira Bienal, Mário com a escultura de um galo feita de recortes de lâmina de cobre martelado, a qual anos mais tarde em São Paulo eu veria em cima de um armário na sala da residência do advogado paulista Luis Coelho, e Aldemir com desenho de cangaceiro. Representando a Bienal o “cosmopolitismo”, como diziam torcendo o nariz os esquerdistas, curioso esse prêmio ter saído para Aldemir, um regionalista. Aliás, quando cheguei nessa minha, lembrando Neruda, segunda residência em la tierra, isto é, o atelier de Mário Cravo Júnior, ainda na Avenida Garibaldi, 556, se não me falha a memória, o escultor investia valentemente no regional, esculpido num grande tronco de peroba-rosa um cangaceiro e numa raiz de jaqueira uma belíssima peça circular horizontal de uma braça de largura, duas figuras jogando capoeira: esculturas ambas inesquecíveis, o cangaceiro e a capoeira. Carybé nem se fala, que sempre foi intransigentemente regionalista. Mas estávamos falando, ou íamos falar, de Aldemir. A gente chega lá. Na Bahia conheci um artista desenhista de quem nunca tinha ouvido falar, Arnaldo Pedroso d’Horta, a quem fiquei ligado até a morte dele num acidente de automóvel muitos anos depois: foi ele quem me levou para São Paulo. No barzinho do Museu da Arte Moderna de São Paulo, quando cheguei ali, vi que tinha chegado no centro do mapa do Brasil daquele tempo. O modernismo tivera um grande compromisso com a brasilidade e, ao mesmo tempo que a arte brasileira procurava atualizar-se, pulando etapas, para, digamos, ombrearse com os grandes artistas contemporâneos, àquela alContinente janeiro 2004


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Pássaro, acrílica sobre tela, 60 x 81cm, 1997

tura já chegamos na terceira idade, da Europa, do Japão, que os Estados Unidos só iriam assumir maior importância em seguida, com a entrada de leão de Pollock e a escola de Nova York, procurava os valores autenticamente brasileiros, um reflexo da própria cidade de São Paulo, muito estrangeiro, muito italiano, principalmente Francisco Matarazzo Sobrinho (Ciccillo Matarazzo), criador da Bienal de São Paulo. A Bienal de São Paulo fazia pendent com a mais antiga, a Bienal de Veneza, e elas duas serviam como vitrine da arte no mundo todo, os países mandando os seus maiores craques numa disputa acirrada por um prêmio como se fosse uma copa do mundo. Aldemir era uma dessas moedas fortes, bom lá e aqui. A Bienal de São Paulo deu a ele um lugar de destaque nunca abalado, ratificado pela Bienal de Veneza, além de muitos outros prêmios importantes que obteve. Aldemir atendia a essas duas expectativas, a chamada linguagem universal, se é que existia, no seu desenho de nanquim a bico de pena sobre o papel em toda a sua pureza, servindo sim para representar cangaceiros e rendeiras, anéis, armas, alpercatas, bornais, sóis, cactus, mas de tal modo intrinsecamente ligados, figuras e trabalho gráfico, a montagem de seus ícones sertanejos organizados em único plano, e as tramas construídas de traços riscados um a um, seus “trabeculados” como dizia Continente janeiro 2004

o crítico e romancista José Geraldo Vieira, com rigor beneditino como disse Carlos Flexa Ribeiro, que mesmo quando tenha se aproximado da arte abstrata não conseguiu se afastar de si próprio, nunca perdendo o caráter, a identidade, o mesmo ocorrendo à sua pintura que numa segunda época de sua vida retomou. Para Aldemir foram criados os belos papéis, as superfícies de texturas várias, deixando o desenho o mirrado ofício ou no máximo duplo ofício e a condição de estudo para pintura, escultura ou outra arte e se impondo como uma arte em si, de prestígio extraordinário. O desenho brasileiro da era das bienais era mais respeitado do que a pintura ou a escultura, sendo Aldemir Martins um dos expoentes, quem sabe o principal na opinião de muitos, fazendo parte dessa linha de frente Carybé, Arnaldo Pedroso d’ Horta e o português Fernando Lemos. Mas tudo isso faz muito tempo, sendo essa a minha visão aqui dessa nossa distância em décadas e léguas, quando o mundo se dividia em pintura, escultura, desenho e gravura. E é somente assim que consigo ver o mundo até hoje, “fiel a minha gente geração”, como dizia Hélio Feijó. Aí está a atualidade, diria até a perenidade de Aldemir, na força dessa fidelidade a si mesmo e ao Brasil, sempre uma lição. • José Cláudio é pintor.


Foto: Fred Jordão/Imago

ARTES 45 »

Dois artistas de Pernambuco constroem obras diferentes a partir de um mesmo elemento: a fêmea Marco Polo

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oucos artistas conseguem unir uma linguagem contemporânea a uma intensa capacidade de sedução quanto Jeanine Toledo. Também poucos artistas têm tanta exigência para com sua obra quanto esta alagoana. Basta dizer que em 20 anos de arte – que completa agora, em 2004 – ela só realizou sete exposições individuais. Uma prova de rigor. Afinal, a artista costuma questionar cada quadro até chegar a um resultado que fuja da facilidade. A mostra Uns e os outros é um bom exemplo desta coerência. Depois de exercitar a pintura sobre tela por um longo tempo, Jeanine começou a ficar inquieta, achando que estava apenas repetindo uma linguagem já conquistada. Então, partiu para outras linguagens, testando outros materiais e exercitandose em objetos, fotografia e vídeo. Nesta exposição, ela utiliza cada uma dessas formas de expressão, acrescentando o retorno à pintura. Surpreendentemente, nenhuma linguagem entra em conflito com a outra, pelo contrário, a unidade do todo é absoluta. Tudo se complementa na síntese de um percurso.

Foto: Luiz Santos/ Divulgação

A mulher, segundo Jeanine e Joelson

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Fotos: Divulgação

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Ao lado, um trabalho sem título, de Jeanine Na página seguinte, cena do vídeo Uns e os Outros Abaixo, quadro Solidão, também da artista

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ARTES 47 » Jeanine dialoga, não só com o que já fez, como com o que já foi feito antes dela. Daí a referência a vários artistas e a incorporação de frases paradigmáticas ditas por eles, e que lhe servem como referência. São frases que falam da vida e da arte, e de como é preciso lutar para dar sentido a cada uma delas. São frases, portanto, que ela mesma poderia ter dito, pois dizem respeito à sua postura profissional e existencial. A referência maior é Coubert, mais particularmente seu famoso quadro A Origem do Mundo, que mostra uma vulva entreaberta. Ponto focal da feminilidade, o local por onde a mulher recebe o sêmem do homem é também o local por onde nasce o homem. Ponto, portanto, de fecundação e nascimento do novo. Em um dos quadros, a artista superpõe fotos transparentes da vulva coubertiana a uma tela onde está pintada uma mulher que despenca no vazio; nos objetos há a presença da vulva e dos pés (fetiche e referência a Frida Khalo); no vídeo, uma modelo tem sua pele coberta pelo nome de diversos artistas, assumindo às vezes poses clássicas, como a da Banhista, de Ingres, a Fontana, de Duchamp, ou, mais uma vez, a da vulva retratada por Coubert. Jeanine costuma dizer que há muitas Jeanines dentro dela. Daí a referência aos corpos e identidades múltiplas, a capacidade de superar uma crise questionando a própria arte e sentir-se livre, sem medo de desvirtuar a si própria. Pelo contrário, chegando a si pela arte, a sua e a dos outros. Matriz da Luz - Joelson é desses artistas que trabalham com uma paciente elaboração de uma idéia, ou de um conjunto de idéias, utilizando e relacionando estímulos gravados pela memória. Em 1987 teve seu primeiro contato com o universo da cerâmica, ao conhecer uma cidade no interior de Pernambuco, chamada – magicamente – Matriz da Luz. Lá, ele ficou sabendo da existência de barros com diversas cores e texturas, fato que o fascinou. Mas só começou a explorar a cerâmica em 1994. Em 1998, ao visitar um cemitério em Veneza, ficou encantado com as imagens fotográficas dos mortos, impressas no mármore dos túmulos. Mas foi só agora que resolveu explorar a técnica. E por um viés completamente diferente, ou complementar: o erotismo (que leva ao sexo, que, por sua vez, leva à vida: a viagem de Eros a Tânatos pelo inverso). Assim nascia a série Matriz da Luz, em que esferas, discos e cornucópias são adornadas com fotos de cartões postais eróticos do século 19, mostrando mulheres e casais nus. Continente janeiro 2004


Forno com peรงas de Joelson


ARTES 49

Fotos: Luiz Santos/ Divulgação

O barro é sempre mostrado em sua cor própria e, quando Joelson quer pintar, sobre ele, usa pigmentos naturais. É uma forma de manter fidelidade a uma matéria que, para o artista, remete ao barro ancestral do qual foi feito o homem. E é nessa segunda manifestação de vida que se agrega ao trabalho de Joelson mais um elemento: a sacralidade. Se o próprio sexo tem algo de sagrado, por seus rituais e suas entregas – sendo o próprio gozo uma forma de êxtase – há uma intrínseca união entre o erotismo e o sacro. Por isso, entre suas peças eróticas, o artista criou um grande Terço de barro. Uma das mulheres retratadas nos cartões eróticos, a quem Joelson batizou de Elvira, ao mesmo tempo em que mostra a vulva aberta, cobre a

cabeça e o rosto com um véu preto, destes usados por beatas nas igrejas. Sua expressão absorta contrasta com a pose obscena: anjo e demônio dentro da mesma mulher. Joelson dá preferência ao barro mais claro, de textura fina, com um acabamento que lembra a porcelana e a própria pele humana. A técnica de inserção da imagem fotográfica na peça cerâmica foi executada em conjunto com o fotógrafo Luiz Santos. • Uns e outros, de Jeanine Toledo. Galeria Dumaresq (Rua Prof. Augusto Lins e Silva, 1033, Setúbal). Até 29 de janeiro. Fone: (81) 3341.0129 Matriz da Luz, de Joelson. Aria Galeria de Arte (Av. Setúbal, 766, Piedade). Até 15 de janeiro. Fone: (81) 3341.1014

Terço gigante, de Joelson

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50 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Arte negra e modernidade As manifestações artísticas africanas traduzem um universo de mitos e símbolos, de práticas mágicas e rituais

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exposição de arte africana exibida no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, reunindo mais de 500 peças e que já foi objeto de uma matéria desta Revista, dá oportunidade a uma série de reflexões provocadas tanto pela riqueza expressiva das obras mostradas quanto pelo que significam como expressão de um universo cultural muito distinto do nosso. E, além do mais, porque esta arte teve papel importante na renovação da arte ocidental no começo do século 20. A primeira observação que fiz, enquanto visitava a mostra, foi a constatação da diferença de atitude dos produtores daquelas obras e a dos artistas ocidentais: se é certo que as cabeças femininas, os relevos em latão ou as figuras esculpidas em madeira exibem o evidente propósito de alcançar um alto nível de harmonia e expressividade – o que igualmente caracteriza a atitude do artista ocidental –, não resta dúvida, por outro lado, que o objetivo ali não é produzir obras de arte e, sim, satisfazer necessidades sociais (tribais, coletivas), vinculadas a uma concepção mágica do real. É justo admitir que, de algum modo, a arte medieval européia cumpria papel semelhante, quando concebia suas esculturas e afrescos para expressar a visão religiosa da comunidade. A diferença reside em que a concepção mágica do mundo, em comparação com a concepção religiosa, reflete um relacionamento entre o homem e o mundo bem menos objetivo, bem menos abstrato; por isso mesmo, a carga de subjetividade, que impregna as obras da arte negra, é de tal densidade que se afigura como a materialização da subjetividade profunda, inconsciente, daqueles homens. Em lugar, como no caso da arte religiosa, da criação de formas de representação ou alegóricas, temos aqui – especialmente nas máscaras – a criação de objetos

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mágicos, que não visam catequizar ou converter o espectador mas, de fato, envolvê-lo na magia, fazê-lo participar do ritual, oferecer-lhe a oportunidade de defrontar-se com seus demônios interiores e exorcizá-los. Impressiona, no conjunto dos objetos expostos, ainda que de épocas diferentes e de nações diversas, algumas características comuns e constantes como a necessidade de dar a cada um deles – seja um vaso, um facão, um instrumento musical – expressão decorativa e significação simbólica. É como se, naquelas comunidades, nenhuma ação, nenhum gesto, nenhum momento da vida, ocorresse fora do universo significativo que constituía a cultura da tribo. Esta observação vem confirmar a tese de que o homem, menos que um ser natural, é um ser cultural, e mesmo vivendo na floresta e em condições rudimentares ou primitivas, já elabora um universo de mitos e símbolos, de práticas mágicas e rituais, que constituem o seu verdadeiro habitat. Outro aspecto importante a ressaltar é o caráter eminentemente não-realista destas manifestações africanas: não apenas as figuras humanas ou animais nunca pretendem imitar a forma natural ou copiá-la, como também a constituição daquelas figuras – com exceção às feitas em cerâmica ou metal – se vale freqüentemente dos mais variados materiais – como sementes, conchas, cascas de árvores, miçangas –, o que as enriquecem plástica e simbolicamente, uma vez que tudo possui significação mágica ou ritualística. Essa unidade profunda, que liga todos os elementos e atos da vida, fazia com que estes objetos "artísticos", que agora contemplamos num outro contexto, tivessem uma importância vital para a comunidade em que surgiram. Estamos longe da arte como finalidade em si mesma, de que falaria Kant em sua Crítica do Juízo Estético, nos primórdios de processo artístico que iria desembocar na arte moderna.


TRADUZIR-SE 51 Foto: Divulgação

Estátua Nkonditatu, Congo (Séc. 19)

Não obstante, a arte moderna - pelo menos em alguns de seus aspectos – está mais próxima desta arte primitiva africana e, por outros aspectos, mais distante. Sem dúvida alguma, Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem mais afinidade com a escultura negra da Namíbia do que com a Mona Lisa de Da Vinci ou mesmo La Maja Desnuda, de Goya. Por outro lado, na sua essência, a obra picassiana pouco tem a ver com a arte negra, além de algumas características exteriores e outras, interiores, que apenas lhe são afins. Vamos examinar melhor esta questão. Sem dúvida, basta olhar as Demoiselles para logo perceber que aquelas figuras derivam de alguma máscara ou escultura negras: a estilização brutal, a simplificação geometrizante da anatomia, etc., são características de muitas das obras que vimos na exposição do CCBB. No entanto, uma coisa que também está evidente no quadro de Picasso é sua desvinculação com um universo tribal e mágico, ou seja, com a vida real de uma comunidade determinada. Pelo contrário, a obra do espanhol, ao ser concebida, expressou a ruptura com os valores estéticos vigentes e, portanto, com a comunidade artística: ela era a expressão extremada do individualismo do artista, de sua liberdade expressiva que se queria descompromissada com todo valor estético e

social vigente. A forma primitiva da arte negra foi por ele utilizada para contrapor-se ao bom gosto artístico e como uma alternativa à expressão pictórica em voga. Expressão extremada de individualismo. Este é o fator que distancia drasticamente as Demoiselles da arte africana, expressão de uma visão de mundo comum ao grupo social ou nação em que ela surgiu. E, neste particular, a obra de Picasso é apenas um exemplo, uma vez que a arte moderna, como um todo, expressa esta desvinculação do estético com o social, ou seja, com os valores e a prática vigentes na vida cotidiana. Se a máscara africana, apesar da aparência fantástica, é parte da prática mágica própria à comunidade tribal, as Desmoiselles não pretendem ser senão expressão artística, numa sociedade em que a arte pretende afirmar-se como valor autônomo. Nesta autonomia reside talvez o traço mais específico da arte moderna e também o núcleo de contradições que a conduziram ao impasse atual. Talvez tenha cabimento ver em algumas manifestações da antiarte atual o apelo nostálgico a um tempo em que arte e vida social estavam integradas. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.

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52 CIÊNCIA

Foto: Divulgação/Record

O cosmólogo João Mangueijo, do Imperial College, questiona “dogmas” da ciência contemporânea

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CIÊNCIA 53 »

O erro de Einstein Em Mais Rápido que a Velocidade da Luz, o físico português João Magueijo contesta o pai da teoria da relatividade e critica a comunidade científica Luciano Trigo

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instein estava errado? É o que ousa dizer João Magueijo, um físico português de 35 anos, radicado na Inglaterra, praticante de caratê e fã da música brasileira. Magueijo está lançando no Brasil seu polêmico livro Mais Rápido que a Velocidade da Luz (Editora Record), no qual defende, entre outras, a tese de que a velocidade da luz não é constante, contrariando um dos pilares da teoria da relatividade e da física moderna, que precisariam ser revistas. Com doutorado na Universidade de Cambridge e professor do Imperial College de Londres, Magueijo foi chamado de doido e irresponsável pela maior parte da comunidade científica. Um colega cientista, criticando seu livro, chegou a dizer que sua teoria equivale ao Papa dizer que Jesus Cristo não é filho de Deus, só amigo íntimo... Além disso, a revista científica Nature ameaçou processar o físico por suas críticas. Magueijo reagiu: “Recuso-me a apresentar artigos científicos ali até que cortem os tomates ao editor de cosmologia”. Mas Magueijo não se limita no livro a apresentar sua teoria herege de forma acessível ao público em geral. Colocando ainda mais a sua reputação em risco, ele também faz uma crônica cheia de ironia sobre o universo acadêmico – um mundo repleto de egos, celebridades, ciúme, inveja, “como uma telenovela brasileira” – e a batalha pela aceitação de uma idéia nova – uma espécie de “biografia” de uma especulação científica. Além disso, Magueijo já assumiu que

teve o lampejo inicial sob o efeito de uma ressaca de cerveja. Em entrevista exclusiva, Magueijo explicou a base de suas idéias revolucionárias, começando pela crítica à hipótese do Big Bang, uma gigantesca explosão que teria dado origem ao universo, e que este continuaria em expansão – um modelo que Magueijo já descreveu como “colado a cuspe”. – A teoria do Big Bang, a idéia de que o universo resultou de uma enorme explosão e que ainda se encontra em expansão, é um dos grandes sucessos do século 20, mas também tem os seus problemas – afirma. – Um exemplo é o problema do horizonte, o fato de o universo primordial estar fragmentado em pequenas regiões que não conseguem estabelecer contato entre si, comunicar, “verem-se” além de um muito reduzido “horizonte”. A partir dos anos 60, isso começou a ser reconhecido como uma falha grave na teoria, porque impedia explicar por que razão todos os cantos do universo têm as mesmas propriedades, o mesmo tipo de galáxias, com o mesmo espaçamento, que se afastam à mesma velocidade, etc. Esse tipo de concordância cósmica parece indicar um contato primordial entre todas as partes do universo, em conflito direto com o efeito do horizonte. Magueijo explica o que é o tal “efeito do horizonte”: – É fácil de explicar. De acordo com Einstein, nada pode viajar mais rápido que a velocidade da luz. De acordo com a teoria do Big Bang, o universo não é eterno, mas começou no momento do Bang. Portanto, qualquer

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54 CIÊNCIA

forma de contato no universo primordial está limitada espacialmente, porque tem um tempo finito desde o “Bang” e uma velocidade limitada. Por exemplo, quando o universo tem um ano de idade, o horizonte tem um tamanho de um ano-luz, que é a distância em que a luz se desloca durante um ano. Qualquer outra forma de comunicação viajaria menos que essa distância. A teoria da velocidade da luz variada (VSL) de Magueijo, segundo a qual a luz era mais rápida no início do universo, resolve alguns dos problemas mais difíceis da cosmologia, paradoxos que vêm enlouquecendo os cientistas há décadas. Além disso, se comprovada, a VSL pode trazer conseqüências fabulosas em relação às viagens espaciais, às pesquisas sobre buracos negros e dilatação do tempo, à relação entre matéria e energia e à maneira como compreendemos o nascimento do universo. – A idéia de exploração do espaço tem sempre em conta um limite de velocidade: o de que não é possível ser mais rápido do que a luz. E esta é uma dificuldade grande, pois ao contrário da percepção normal, a luz não é tão rápida quanto se pensa. A sua velocidade até é, na verdade, bastante lenta, se considerarmos a escala especial do Universo, a escala temporal da nossa vida. Ora, considerando a duração da nossa vida e partindo do princípio que não podemos ultrapassar a velocidade da luz, vemos que não podemos viajar muito longe no espaço. Por exemplo, a galáxia mais próxima está a mais de um milhão de anos de distância, neste tipo de escala. Mas se levarmos em conta a idéia de viajar bem próximo da velocidade da luz, aceitamos o conceito de que o tempo não é absoluto. Em tese, daria perfeitamente para ir à galáxia mais próxima e voltar. Mas quando o viajante retornasse à Terra, um milhão de anos já teriam passado. Tudo isso muda completamente com o conceito de velocidade variável da luz. No limite, a VSL pode ser a porta para a teoria da grande unificação que escapou a Einstein. – Não é preciso ser um Einstein para reparar que o problema do horizonte não existe se a velocidade da luz for muito mais elevada no princípio do Universo. Mas é preciso ser um físico para ficar horrorizado com essa proposta, porque ela abala o que de mais fundamental e Continente janeiro 2004

“Eu quis escrever uma autobiografia do que é ter uma idéia nova, desenvolvêla, propô-la à comunidade, e depois a batalha pela sua aceitação. Infelizmente, um lado que a maior parte dos cientistas gostam de esconder do público em geral. Talvez porque essa parte da história mostre o nosso lado mais irracional...”

querido há na física do século 20, a idéia de que a velocidade da luz é uma constante. Por outro lado, a idéia de que as constantes da natureza podem não ser assim tão constantes e podem variar durante a vida do universo não é nova. O físico inglês Paul Dirac usou idéias muito semelhantes, mas aplicadas a constantes, e não à velocidade da luz, nos anos 30. Sobre as reações da comunidade científica, Magueijo conta que no início foram extremamente negativas: – Quando tive a idéia, não consegui colegas para trabalhar comigo no tema. E depois foi uma batalha conseguir publicar, ir a conferências e congressos. As pessoas ou ignoraram a teoria, ou riram dela. No fundo isso é normal, dada a natureza altamente extravagante da idéia. As coisas melhoraram com as observações dos astrônomos australianos, indicando que eu podia ter razão. O que era uma idéia completamente maluca passou a ser uma teoria ainda maluca, mas que pode estar certa. Mas um pequeno grupo de físicos desde o início levou a teoria muito a sério. Alguns pelo lado positivo. Por exemplo, John Barrow, que começou de imediato a propor a sua própria versão da teoria. Outros, pelo lado menos positivo, dirigindo criticas à nova idéia. Mas mesmo estes últimos foram úteis no desenvolvimento e na maturação da teoria, porque muitas dessas críticas eram bem consideradas e articuladas. De certa forma, Mais Rápido que a Velocidade da Luz segue a trilha aberta por Stephen Hawking em Uma Breve História do Tempo: a popularização das idéias científicas. Mas quais seriam os limites dessa popularização? – Claro que explicar física sem usar matemática tem sempre os seus limites, porque de certa forma a idéia básica da física é que a natureza está escrita em linguagem matemática. Mas isto não quer dizer que não se possa dar uma idéia qualitativa do que andamos a fazer. Em parte, foi esse


Foto: Reprodução

Einstein teria errado ao sustentar que a velocidade da luz é constante

o objetivo do meu livro. Mas, muito mais do que isso, eu quis escrever uma autobiografia do que é ter uma idéia nova, desenvolvê-la, propô-la à comunidade, e depois a batalha pela sua aceitação. Isso é muito mais fácil de comunicar. E é o lado humano da ciência, infelizmente um lado que a maior parte dos cientistas gostam de esconder do público em geral. Talvez porque essa parte da história mostre o nosso lado mais irracional... Para Magueijo, o universo não teve um início: ele sempre existiu. Entramos então na questão quase filosófica, que tenta explicar o que havia antes da criação do Universo. Quando falamos da origem ou do fim do Universo, batemos à porta do que muitos consideram próximo da metafísica e do misticismo. Uma das frases atribuídas a Einstein é a de que “Deus não joga dados”, que muita gente interpretou como sinal de fé religiosa. – O grande presente que Einstein deu à Física, no século 20, foi a idéia de que o vácuo, o nada, tem energia. O vácuo, na verdade, não é o nada, é uma coisa com energia. Dentro da teoria da relatividade, a energia do

vácuo existe. Não é zero, provoca gravidade. Mas é impossível transferir essa energia para outras formas de energia ou para dentro da matéria. A explosão do Big Bang vem da energia entre o vácuo e a matéria. Sobre Deus, acho que a cosmologia não tem nada a ver com religião, são completamente independentes. Sou ateu, mas por razões pessoais e humanas. Quando os físicos citam Deus, a palavra tem valor de metáfora, e com certeza não se empregou no sentido literal. Eu mesmo utilizo no meu livro a expressão “Deus sob efeito de anfetaminas”. É uma metáfora, claro. Mas e se, no final das contas, Magueijo estiver errado? – A física é um jogo de alto risco, em que idéias novas ou acabam no lixo ou nos livros de escola... Mas, antes disso, há sempre uma fase em que isso não importa. O que interessa é tentar coisas novas, desde que bem motivadas, e depois verificar se estão certas ou erradas. Estar errado faz parte do processo científico. • Luciano Trigo é jornalista.

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56 LITERATURA

Silêncio em redor de Mino Carta Criador de revistas como Veja, Istoé e Carta Capital, o jornalista, que já faz parte da história da moderna imprensa brasileira, acaba de lançar o seu segundo romance e reclama do boicote que sofre como escritor Geneton Moraes Neto

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bem da verdade, diga-se com todas as letras que não existe na imprensa brasileira texto tão elegante quanto o de Mino Carta. A palavra é esta: elegante. Pouquíssimos currículos exibem um portfolio tão reluzente: como em jornalismo não existem propriamente criações individuais, o mais justo seria dizer que Mino Carta foi o co-criador de publicações que fizeram história na imprensa brasileira, como Veja, Jornal da Tarde, Quatro Rodas, Istoé, Carta Capital. Houve um fracasso, até hoje lamentado: o Jornal da República, trucidado no final dos anos 70 por um inimigo mortal – o déficit de caixa. Nestes últimos tempos, o jornalista Mino Carta vem dividindo espaço com o romancista Mino Carta. O escritor noviço lançou em 2000 um romance parcialmente autobiográfico – O Castelo de Âmbar. Aqui, um Mino Carta que – lastimavelmente – não se animou até agora a publicar uma autobiografia emerge na pele de um personagem chamado Mercúcio Parla. Agora, o romancista Mino Carta lança o segundo – e último – volume da odisséia de Mercúcio Parla, o romance A Sombra do Silêncio, publicado no selo Francis da W11 Editores. Procuro o quase novato romancista na Livraria da Travessa, em Ipanema, palco do lançamento carioca de A Som-

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bra do Silêncio. Cadê o homem? A mesa destinada à sessão de autógrafos, no primeiro andar deste supermercado de livros, permanece enigmaticamente vazia, no horário anunciado para o lançamento. Um porta-voz da livraria apressase a dizer que não, nenhum motivo de força maior impediu o lançamento. Mino Carta se instalou numa mesa do café da livraria, para regar com champagne a garganta presumivelmente já cansada de tantos embates. De repente, Mercúcio Parla se materializa na mesa de autógrafos, na pele de Mino Carta, em companhia de uma taça de champagne. A procissão de leitores em busca de um autógrafo não faria inveja a nenhum santo: são poucos os fãs que se aventuraram ao ritual de beija-mão nesta catedral de livros erguida na zona sul do Rio. É provável que o grosso do eleitorado de Mercúcio Parla se concentre em São Paulo. Camisa azul-claro,paletó quadriculado,cabelos grisalhos aparentemente intocados por tinturas, Mino Carta distribui adjetivos afáveis nas dedicatórias, posa para fotos, cumpre o ritual de romancista, sem dar sinais de enfado. “Quero logo dizer duas coisas”, avisa Carta, na entrevista telefônica que me concedeu, quando já tinha voado para São Paulo ,na tarde seguinte. “Primeira: jornalismo é trabalho de equipe. Não existe herói solitário no jornalismo. O que existe é aquele pequeno grupo formado por gente


Foto: Maurilo Clareto/AE

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Um crítico mal-humorado poderia reclamar: de tão sofisticado e elegante, o texto do romancista Mino corre eventualmente o risco de pecar por rebuscamento excessivo. Mas pobre do país em que um texto seja passível de condenação por excesso de qualidades

que carrega o piano – e sabe tocá-lo. Segunda: digo, com absoluta sinceridade, que tive sorte na vida profissional, porque estava no lugar certo, na hora certa. Nunca trabalhei num órgão de imprensa que existisse antes do meu comparecimento. Isso tornou minha vida profissional estimulante. Não tive a chance de me entediar na profissão”. Fica a dúvida: por que diabos Mino Carta não se despe dos recursos ficcionais para escrever logo uma autobiografia descarada? Os bastidores de momentos importantes da moderna imprensa brasileira escapariam do castigo de serem exilados para sempre na Terra do Esquecimento – o destino irrecorrível de tudo o que não é registrado em papel. “Em primeiro lugar, uso nomes fictícios para personagens reais” – vai explicando o criador de revistas, travestido de criador de romances.” O primeiro livro nasceu como uma reação espontânea – e talvez irritada demais – ao livro Notícias do Planalto. Mário Sérgio, o autor, sustenta a tese de que a figura de Collor foi criada pelos jornalistas. Mas a figura de Collor foi criada pelos patrões dos jornalistas! Além de tudo, Notícias do Planalto terminou valorizando as versões patronais a meu respeito. Por exemplo: a de que a Editora Abril me demitiu. Não é verdade. Eu me demiti. Se a Abril me tivesse demitido, eu teria levado uma belíssima grana. Não levei – até porque não queria levar. Queria ter a satisfação de não levar um único e escasso tostão dos senhores Civita – que comigo se portaram como pulhas que cederam a pressões do senhor Armando Falcão” (ministro da Justiça do governo Geisel). Um dos capítulos de O Castelo de Âmbar traz um aperiContinente janeiro 2004

tivo explosivo do que seria uma autobiografia do autor. Num intrigante jogo de espelhos, o imaginário Mercúcio descreve, como se fosse um repórter, os bastidores da traumática saída de Mino Carta da direção da revista Veja – à época submetida à censura. É Mino Carta escrevendo, com a pele de Mercúcio Parla, um capítulo descaradamente autobiográfico. Os nomes dos bois estão lá: Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel, Victor Civita. Tido como vaidoso, Mino Carta faz uma declaração modesta sobre por que recorreu à ficção para fazer uma quase autobiografia: – Não tenho estatura para chegar e dizer: eis o meu livro de memórias. Não me sinto à vontade. Os registros da imprensa sobre as expedições de Mino Carta ao território da ficção foram, na melhor das hipóteses, modestíssimos, se confrontados à fama do autor. Por que terá sido? O silêncio – quase ensurdecedor – é intrigante. O Castelo de Âmbar – queixa-se – foi boicotado claramente pela chamada “grande imprensa”: com exceção do Jornal do Brasil, o livro não mereceu nenhum tipo de coberFoto: Clara Moraes tura – menos ainda de crítica por parte de O Globo, Folha, O Estado de S.Paulo, Veja, Istoé, Época. Mas vendeu cerca de 20 mil exemplares. A Sombra do Silêncio acaba de ser lançado. Não sei o que vai acontecer. A lista de possíveis desafetos do jornalista Mino com certeza não seria suficiente para condenar ao limbo o romancista Mino – um italiano de nascença que adotou o País Tropical como pátria no final dos anos 40, quando aqui desembarcou em companhia do pai, também jornalista. A intimidade com a língua portuguesa foi adquirida com a leitura de Machado de Assis (a quem


Foto: Clara Moraes

LITERATURA 59 »

chama de gênio), Camões, Gil Vicente, Eça de Queiroz, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa – um escrete de primeiríssima. Um crítico mal-humorado poderia reclamar: de tão sofisticado e elegante, o texto do romancista Mino corre eventualmente o risco de pecar por rebuscamento excessivo. Mas pobre do país em que um texto seja passível de condenação por excesso de qualidades. Se lhe fosse dado o direito de escolher que destino teria neste vale de lágrimas, Mino Carta cravaria a opção “jornalista” em terceiro lugar. Porque, antes de se dedicar à nobre tarefa de passar a vida dedilhando vogais e consoantes num teclado, Mino pensou em ser, pela ordem, santo e pintor. Já disse que, jovem, sonhava em ter um cartão de visitas em que estivesse escrito, no espaço dedicado à profissão, a palavra “santo”. Logo viu que lhe faltava vocação para um dia ser entronizado nas paredes da Capela Sistina. Pintor nunca deixou de ser. Mas terminou se rendendo ao determinismo genético: neto e filho de jornalista, virou jornalista. Numa das passagens de A Sombra do Silêncio, o personagem Mercúcio Parla/Mino Carta faz ao avô, também jornalista, indagações sobre a natureza do jornalismo. Pergunto ao nosso personagem: e se, por um truque dramatúrgico, o Mino Carta quase setentão pudesse se encontrar com o Mino Carta de 20 anos de idade, que conselhos o Mino Carta experiente daria ao Mino Carta noviço, candidato a jornalista? Tenho três mandamentos, além da crença de que é fundamental respeitar o texto e não aviltar a língua. Os três mandamentos para um jornalista são os seguintes : primeiro, a fidelidade canina à verdade factual. Segundo: o exercício desabrido do espírito crítico – sempre. Terceiro: fiscalizar diuturnamente o Poder, onde quer que se manifeste – não somente no Palácio do Planalto ou no Congresso. O jornalista e escritor Mino Carta conseguiria definir, em apenas uma só palavra, o jornalista e escritor Mino Carta ? – Não.Eu diria que, profissionalmente, tive a sorte que não tive em minha vida como indivíduo. “Sortudo”, então, poderia ser uma palavra razoável? – Por que não? Sortudo como jornalista que sempre teve bons colegas e equipes ótimas. Mas o escritor sofre muito. • Geneton Moraes Neto é jornalista.

TRECHOS “O jornalismo tem encanto para quem o pratica com um mínimo de empenho: preserva a juventude. Sabe por quê? Porque um dia é igual a outro e as personagens a serem relatadas são sempre as mesmas, embora mudem de nome. E os enredos se repetem à exaustão. A certa altura, você acha que o tempo não passou e jamais passará, inclusive para você” (fala de um dos personagens de A Sombra do Silêncio, o avô do narrador Mercúcio Parla). “Jornalistas como ele conhecem de cor e salteado a gravidade da sua empreitada e a cumprem com ceticismo na inteligência e otimismo na ação, reservando-se o direito de manterem aceso o espírito crítico, como lâmpada votiva. Homens de muita fé, certamente, porque dispostos a viverem hora a hora uma contradição brutal – uma tragédia. Trata-se de fiscalizar o poder, controlálo, criticá-lo, denunciar os seus abusos e mazelas. Mas as empresas jornalísticas gravitam na órbita do poder, são o próprio poder” (O Castelo de Âmbar) “Um bom amigo me sugeria: ponha por escrito o que pretende dizer. Pus. Assim, todos vocês terão a oportunidade de verificar que pronuncio mediocridades tanto de improviso quanto por escrito” (O Castelo de Âmbar) “Ainda verá a ponta dos sapatos sobre a calçada de uma cidade remota e antiga, estaca diante do faiscar de uma moeda contra a pedra lívida. Recolhe-a, traz relevos em caracteres árabes, no verso o valor, no anverso um veleiro. O veleiro da infância, transfigurado no espaço absorto, sem tempo e sem dimensão, sem ponto de fuga”. (A Sombra do Silêncio)

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60 LITERATURA

Amantes dos livros Confraria dos Bibliófilos do Brasil lança 12ª obra – 100 Vezes Bandeira, com poemas de Manuel Bandeira – e abre chance para quem fica com água na boca ao criar um “selo independente”, Edições da Confraria

U

Sobrecapa de Maria Perigosa, em papel de fibras vegetais

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m livro não serve apenas para ser lido. Essa convicção une os 337 sócios da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, entidade sem fins lucrativos, com sede em Brasília. Para eles, livro é um objeto de arte que deve despertar os sentidos. Sob inspiração do seu presidente, o engenheiro eletrônico, colecionador e editor José Salles Neto, 55 anos, a Confraria reúne amantes do livro de várias partes do país, dois deles com endereço em zona rural. O mais famoso entre os integrantes da seita é o industrial paulista José Mindlin. De 1995, quando foi fundada, até agora, foram editadas 12 obras de autores nacionais, escolhidas por eleição entre os confrades. Todas de autores consagrados, alguns dos quais, entretanto, recuperados de injustificável esquecimento. Os livros são produzidos artesanalmente, com papéis especiais, capa dura, impressão tipográfica em uma só face do papel, caixa de acondicionamento especial, costurados manualmente e ilustrados por artistas de renome, como Aldemir Martins, Darel Valença, J. Borges, Flávio Tavares, Renina Katz, entre outros. Custam R$ 130,00 e são financiados pelos confrades durante o processo de impressão. Os exemplares são numerados e assinados pelo autor (quando possível) e/ou


LITERATURA 61 » Fotos: Divulgação

Caixa e sobrecapa de Prelœdio da Cacha a, com ilustraões de J. Borges. Abaixo, página inicial dos contos de Luís Jardim

pelo ilustrador. As edições não ultrapassam 350 exemplares. Os títulos publicados incluem obras raras, o que valoriza ainda mais a coleção, e são os seguintes: O Quinze, de Rachel de Queiroz; A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa; Juca Mulato, de Menotti Del Picchia; 7 Contos de Herman Lima; Prelúdio da Cachaça, de Câmara Cascudo; Poesias de Augusto dos Anjos; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Galinha Cega, Mansinho e Outros Bichos, de João Alphonsus; Pureza, de José Lins do Rego; A Polaquinha, de Dalton Trevisan; Maria Perigosa + Cinco Contos de Luís Jardim; 100 Vezes Bandeira, antologia de poemas de Manuel Bandeira. Os próximos lançamentos pautados são Antologia de Contos de Clarice Lispector, Antologia de Contos, de Breno Accioly; Os Ratos, de Dyonélio Machado, e Poesias, de Gregório de Matos.

O acabamento artesanal sofisticado encanta e fascina aqueles para quem um livro, além da qualidade do conteúdo, tem atributos sensoriais: textura, plasticidade, cheiro. Coisa para se degustar, como um bom vinho ou charuto. Por isso, num texto de apresentação de novas edições, o presidente Salles Neto proclamou, sem conter o entusiasmo: “Só papa-fina”. O que, sem dúvida, deve deixar de água na boca quem não tem a sorte de ser um dos confrades. Para aqueles, entretanto, existe uma trilha recentemente aberta: as Edições da Confraria, um programa editorial paralelo, com algumas simplificações na confecção (mas sem alterar o padrão da Confraria), preço menor – R$ 80,00 – e tiragem maior, entendendo-se por tiragem maior 500 exemplares que, após a aquisição preferencial pelos sócios, são vendidos aos interessados. A primeira edição é a coletânea Três Novelas da Masmorra, do escritor Octávio de Faria, autor da celebrada Tragédia Burguesa. Quem concorda com a afirmação inicial – um livro não serve apenas para ser lido – pode entrar em contato com a Confraria: Caixa Postal 8631 - Brasília, DF, telefones (61) 435.2598 e (61) 368.1792, fax (61) 577.3224 ou correio eletrônico conbiblibr@yahoo.com.br • Continente janeiro 2004


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62 LITERATURA

Foto: Divulgação

Peregrino do belo

“U

m laço misterioso en/laça e desenlaça/ umas às outras as palavras.” Com estes versos Marco Lucchesi abre seu novo livro de poemas, Sphera. Neles, e no próprio título do livro, há certamente a luz original de Dante, o poeta que foi sua obsessão e seu conflito, como ele própria confessa. Em um de seus ensaios, Marco Lucchesi narra que, ainda adolescente, se impôs recitar de cor “O Inferno”, movido por uma “demanda de infinito”. Uma provação que lhe serviria como ato iniciático do peregrino que correria o mundo à procura de idiomas – dos quais domina cerca de doze –, e de desertos – “o infinito, convertido em dunas e silêncio” –, animado pela paixão pelo Outro, no seu sentido mais profundamente humano. Se de Dante lhe veio a luz primeira, Sphera revela sua passagem pelos diversos ciclos de uma trajetória que o fez, aos 39 anos, um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Numa passagem de seu livro Os Olhos do Deserto, descobre-se, de forma

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O poeta Marco Lucchesi exercita em Sphera, seu novo livro, o gesto generoso de quem procura o diálogo entre os homens e declara a guerra em prol da diferença Everardo Norões


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metafórica, o que tem marcado o itinerário de Marco Lucchesi. Ao visitar a mesquita de “Al-Ualid”, em Damasco, na Síria, adormeceu de cansaço e sonhou que se aproximava de um xeique de turbante vermelho que se encontrava sentado na posição do lótus. No seu sonho, Marco Lucchesi pressentiu tratar-se de Abu Hamid Al-Ghazali (1085-1111), o polêmico autor do livro Autodestruição da Filosofia, místico reconhecido no mundo muçulmano como um dos “Hojjat al-Islam”, título que significa “avalista do Islã”. Sonhando, Lucchesi procurava um nome para acrescentar ao de Al Hajj (o peregrino que foi a Meca) que ele próprio se atribuíra. O sábio muçulmano Al-Ghazali, então, chamou-o pelo nome de Al Hajj Abdaljamil, “o peregrino servidor do Belo”. No livro Sphera, seus poemas confirmam o nome que lhe foi outorgado no sonho. E os termos da alquimia (conjunto de técnicas e conhecimentos químicos da Idade Média e da Renascença, voltados para a descoberta da pedra filosofal), empregados no livro, desvelam o sentido humanista da busca da transformação dentro da esfera harmônica que reflete a beleza: A vida toda e a pedra/ que não tive// quem sabe/ a pedra// que perdi/foi sublimada// e assim me trans/ formei na coisa amada. Em Sphera está contida a idéia do filósofo árabe Jabir Ibn Hayyân, que viveu no século 8: a linguagem é semelhante à alquimia. De acordo com o seu tratado, Livro do Glorioso (Kitâb al-Magid), a balança das letras pode ser utilizada por todas as línguas. Entre elas, certamente se inclui a nossa língua portuguesa, tributária de tantas culturas, que, através de contribuições como a de Marco Lucchesi, enriquece o patrimônio cultural de todos os homens. O forno interior onde se opera essa alquimia das palavras – ou onde “transforma-se o amador na coisa amada” – carece de uma energia cósmica alimentada pela inteligência, pela cultura, pelo humanismo e, sobretudo, pela paixão. É ele que move as esferas e os círculos presentes na filosofia chinesa do Tao, no mundo celestial dos guaranis ou na Divina Comédia, de Dante. Esse fogo anima o Sphera de Marco Lucchesi e o levou a traduzir do persa os poemas místicos de Rumi; assim como o fez revoltar-se contra os carrascos que perpetraram os massacres dos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, em 1982, com seus 1.500 civis trucidados pelas milícias cristãs do “Kata’ib”. Quando, do fundo de sua cela cristã, num convento de Beirute, Marco Lucchesi perscrutou o árabe com seus nomes que são “estrelas que rasgam a escuridão”, não foi apenas por uma pura satisfação de lingüista, mas para torná-lo a “língua dos oprimidos”. O idioma foi também a paixão do cristão e sábio francês Louis Massignon que, durante a guerra da Argélia, recolhia no rio Sena os cadáveres de argelinos mortos sob a repressão, para enterrá-los de acordo com o rito muçulmano. Nessa perspectiva, o Sphera de Marco Lucchesi, com seus círculos de poemas curtos envolvendo sonetos, não merece ser observado apenas como exercício literário de um poeta maior. Sugere as voltas do peregrino cristão em torno da Caaba, o mais sagrado santuário do Islã: é o gesto generoso de quem procura o diálogo entre os homens e declara a guerra em prol da Diferença. Por isso, não nos parece estranho que Marco Lucchesi, poeta, ensaísta, tradutor de Umberto Eco – uma das figuras mais representativas da inteligência do chamado Ocidente – tenha se prosternado, em Damasco, diante do túmulo do filósofo andaluz Ibn Arabi (1165-1240), a quem dedicou o poema: aqui me sinto/ mais// substantivo e beijo/ a pedra// rude/ que te guarda. • Everardo Norões é poeta. Continente janeiro 2004


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64 LITERATURA Foto: Ezequias Cordeiro de Siqueira

Nasce uma poetisa

M

icheliny Verunschk estreou duplamente com Geografia Íntima do Deserto e O Observador e o Nada. Mesmo sendo jovem, a poetisa já chega experimentada, conhecedora do seu ofício e sem as hesitações típicas da maioria dos iniciantes. A autora é recifense e radicou-se desde a infância em Arcoverde, na linha divisória entre o Agreste e o Sertão pernambucano, mas seus poemas não traem o lugar – ou os lugares – onde foram escritos. Seus versos nomeiam objetos e seres existentes em toda parte. Experiências que podem ser vividas tanto na cidade mais urbanizada como no campo mais ermo – em particular neste tempo em que estão sendo abolidas cada vez mais as fronteiras e zonas de difícil acesso ou de comunicação antes precária e até impossível. O Observador e o Nada contém apenas o poema de mesmo título, dividido em quatro partes, com algumas entradas de prosa poética. Fala, entre outras coisas, da morte e sua inevitabilidade e adiamento cotidiano, de uma sexualidade ansiosa onde se entremeiam nojo e asco, o embate permanente com a solidão e a conquista inglória de um prazer clandestino e espúrio. No cenário do poema, há sempre a invasão imagética de um “inseto” travestido de herói místico, assassino de aluguel ou observador renitente. O inseto deste poemalivro corresponde, em outro nível de escolha metafórica, ao “deserto” de Geografia Íntima do Deserto. Um olho de inseto que vê o nada ou que nada vê, que vê somente a si mesmo e ao outro como nadas, numa apropriação e devolução do seu próprio reflexo. O poema exprime também a coragem de quem se desvencilha de seus íntimos pudores de comportamento e de corpo. Em Geografia Íntima do Deserto, composto por três blocos não titulados, os poemas oscilam entre o muito curto e o que mais se alonga, embora sem chegar à extensão de O Observador e o Nada. Apesar de não lembrar diretamente a “terra”, que foi dita mais por “pastores rudes” do que por “poetas” nela nascidos, Verunschk fornece pistas que refletem um modo mais duro de dizer o agora. São sulcos abertos na cratera dessa “terra” e cavam mais fundo e mais

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Micheliny Verunschk estréia com dois livros em que já se manifesta uma dicção poética própria, feita de sutilezas, perplexidades e sensualidades Luiz Carlos Monteiro


LITERATURA 65 » forte que os insuflados pelo rei e seu filho, o novo rei de novos vícios. E daí podem ser inferidos os credos, os jogos e as contingências políticas resultantes da dominação e alternância do poder interiorano distribuído ao longo do tempo entre os mesmos circunstantes, como nestes versos do poema “Xadrez”: “Disseram aquela terra/ em sua fome branca,/ o contorno do pequeno cemitério/ continuamente redesenhado./ Disseram-na/ quando não havia mais terra a dizer/ e o filho do rei/ roía as unhas dos mortos que encontrava/ com o desejo franco/ de roer os próprios mortos./ Um novo rei com novos vícios./ Sim, um novo rei.” A temática da infância transfigura-se na escrita e na visão da poetisa adulta, comparecendo com a desilusão das coisas perdidas para sempre, e que quando recuperadas pela memória já não são as mesmas (em poemas como “O soldado verde”, “Toys” e “Meninas”). Em “Fotografia de menino”, confere-se um instantâneo de alta condensação metafórica: o menino morto mirando a máquina fotográfica como a um espelho e sendo mirado por ela. A lucidez do visto e do percebido pela poetisa não anula a crueza do escrito e do sentido, porque para aquele menino morto “o que o incomodava de verdade/ eram as mãos presas/ numa prece que ele não sabia como soltar/ e nem deveria, decerto,/ pois a mãe poderia vir a ralhar/ e seria um aborrecimento enorme.” Na poesia de Micheliny, a alusão ao corpo torna-se fundamental e efetiva-se poeticamente como descoberta, promessa ou realização do desejo. De modo enfático no poema que dá título ao livro, dividido em dois, mesmo quando no primeiro deles o corpo é o “deserto” e sua íntima geografia possui “areias cortantes” e é “água cristalina” ou “grãos tão leves/ indo embora ao vento”. No segundo poema, o nome

O Observador e o Nada - Recife, Edições Bagaço, 2003, 44 páginas, R$ 15,00

funda também o “deserto”, mas para elaborar a gestação e os “mistérios dolorosos” da poesia: “Seus dentes são agudos/ seus sóis raivosos/ e suas letras/ (setas de ouro e prata/ nos meus lábios)/ são o meu terço de mistérios dolorosos.” O deserto assume outras formas e imagens, ao revestir-se no poema “Evangelho” em “magra arquitetura do estio” e no poema “Deus” assemelhar-se a “uma língua de areia.” Entre os poemas de configuração urbana é exemplar “O rio”, onde ela escreve: “O dia e a cidade/ conspiram/ contra mim/ como um gatilho armado/ de um revólver orgânico:/ disparam/ signos/ concreto/ e a pele quente dos ônibus.” No mais extenso “Variação e rito sobre uma tourada espanhola”, trava-se o embate entre a “rosa negra” e o “touro vermelho”: “A cidade é escura,/ mas a arena é clara/ e a arena banha de festa e luta/ toda a praça/ que, luminosa e nua,/ acende, /uma a uma,/ as suas facas.” Em “Decalque” as manhãs se repetem e imobilizam-se em sua réplica e mesmice aos olhos atentos. Contudo, sem eliminar completamente as manhãs anteriores e futuras e sem desconhecer que, numa delas, não mais se logrará realizar-se a ação de vê-la: “A manhã seguinte decalcou/ quase toda a manhã anterior/ que se tinha fixado nos olhos.// E todas as outras manhãs/ copiariam detalhes/ cada vez mais tênues/ até que nem olhos mais houvesse.” Uma firme contundência e um certo tom cabralino não renegam, em absoluto, outras manifestações divergentes ou diferenciadas no cerne da dicção verunschkiana. Pois essa dicção é feita também de momentos delicados, solitários e marcadamente “íntimos” e expõe em boa poesia suas sutilezas, perplexidades e sensualidades. • Luiz Carlos Monteiro é crítico literário.

Geografia Íntima do Deserto - São Paulo, Editora Landy, 2003, 120 páginas, R$ 25,00 Continente janeiro 2004


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Adeus a Bastião

Cáustico, corrosivo, auto-irônico e antilírico, talvez Sebastião Uchoa Leite acreditasse na transcendência dos ossos, que os vermes não comerão Sueli Cavendish

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a primeira vez que vi Bastião, eu riscava uma “amarelinha” na rua em que morava no bairro dos Aflitos, que não tinha calçamento, mas que cheirava a jasmim. Chegou silencioso, alto, magro e de luto fechado pela morte do pai: “Jorge está?” Nessa época era tudo muito novo. Jorge Wanderley e Márcia acabavam de se conhecer, o próprio Bastião teria quando muito 22 anos, o “Gráfico Amador”, ao qual se agregavam os três, mais João Alexandre Barbosa, Luís Costa Lima, Gadiel Perucci e tantos outros, apenas se fundara. Sebastião e Jorge publicavam os seus primeiros livros pelo Gráfico, Dez Sonetos sem Matéria e Gesta. Mas o Recife não era feito apenas de bulício intelectual, havia outras atrações, igualmente esplêndidas, para um coração de menina. Achei-o sombrio, contra o fundo feérico desses anos. É inteligentíssimo, disseram-me, irmã e cunhado, e isso na época me metia medo. Só no final dos anos 70 nos reencontramos, já no Rio. Vi então o homem culto, o intelectual de tantas e tão complexas faces, assim como as arestas. Sebastião, embora não fosse triste, continuava sóbrio. O jeito esquivo confirmava o que escreveria anos depois em A Regra Secreta, numa veia surpreendentemente faulkneriana: “...na vida seria obrigado sempre a engolir as suas vergonhas como uma lição, mas só no sentido estrito de que a nossa vida de dentro é quase tudo o que temos de ocultar aos outros.” A nossa amizade desconheceu esses sustos, pois nasceu da mais perfeita gratuidade. Confidências e palavras corriam soltas. Éramos dois mimados, singularmente complacentes com as manias do outro. Bastião era muito amável, mas sem indulgências nem falseamentos. “Acho isso uma bobagem”, dizia, se algo soava extemporâneo. Ou “Isso é uma maluquice”, ponderação predileta. Quando Jorge morreu, serviu de parteira à palavra terrível: “O que foi, Sueli, que aconte-

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ceu?”, insistia, bondoso, grave, até que pelo telefone eu a articulasse. Nem bem se tornara poeta maior faleceu, sem tempo para curtir o prêmio da Portugal Telecom, concedido a A Regra Secreta. Comemoraríamos no sábado, ele, sua mulher Guacira, e eu, no Degrau. Ao invés disso Bastião foi hospitalizado. Tão importantes quanto os premiados são Isso Não é Aquilo, Obra em Dobras, A Uma Incógnita, e A Ficção Vida. O ofício da tradução era um ato de “desilusionismo”, disse em “Jogos e Enganos”, livro de ensaios. Em Krazy Kat, do mesmo livro, escreve sobre os geniais quadrinhos americanos dos anos 30, revelando erudição popular e engenho. Crítica de Ouvido, pelo qual esperou ansiosamente, não veio em tempo. Costa Lima filiou-o, certa vez, aos concretos. Mas Sebastião disse não: “Nunca fui vanguardista, jamais aderi à corrente alguma, não consigo ser uma pessoa grupal”. Assente, porém, quando o crítico o inscreve na “tradição da negatividade”, que aprofunda, radicaliza. João Alexandre Barbosa, outro crítico-amigo, dá conta, brilhantemente, das ruminações que o constituíram como poeta. Concorda-se que era cáustico, corrosivo, auto-irônico e antilírico. Talvez acreditasse na transcendência dos ossos, que os vermes não comerão, pois, disse-me certa vez, no Lamas, que gostava de Alfred E. Housman. O seu epitáfio – Aqui jaz/ para o seu deleite/ Sebastião Uchoa Leite – era por certo dirigido a eles. Gosto de pensar nos efeitos que me causam alguns de seus poemas. No sabor amargo da fisgada erótica de “Eros Cruel” provamos a potência do artista. Na perplexidade final do eu-novelo de A Regra Secreta explodimos grouxomarxianamente em estrepitosa gargalhada. • Sueli Cavendish é professora-doutora do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Foto: Bel Pedrosa/AE

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LITERATURA 67 Foto: Reprodução

Eça, o moralizador Intenção de combate ditou grande parte da obra do escritor português Ruy dos Santos Pereira

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inha afeição por Eça data dos tempos de ginásio, quando, adolescente, comprei todos os volumes da Edição do Centenário, de 1946, e depois, num sebo, o seu desconhecido livro póstumo, inédito: Dicionário de Milagres, editado em 1900. Posteriormente a biografia escrita por João Gaspar Simões e o excelente Eça de Queiroz no Centenário do seu Nascimento. Concordo integralmente com Esther de Lemos, quando afirma que uma intenção de combate ditou grande parte da obra de Eça de aplicar a moralizadora Bengalada do Homem nas instituições, costumes e tipos humanos errados da vida portuguesa. Sem ódio ou brutalidade. Daí começa seu combate contra os “defeitos e os vícios da ordem moral, social e estética então adotadas pela sociedade”. Como também combateu um falso patriotismo que só enxerga o que acha correto e procura justificar os erros de seu país, como denunciar a “ignomínia”da conduta portuguesa na Ásia, as vilezas e crimes

cometidos pelos portugueses na época dos descobrimentos. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, abandonou a carreira de advogado pela antipatia aos métodos geralmente utilizados pelos mesmos, de “argumentação astuta e calculada”. Aliás, o advogado, desde a Idade Média, tinha, com as naturais exceções, uma forma nada honesta. Como Émile Mâle, em seu magnífico livro sobre o gótico, cita o assombro do povo quando um advogado foi declarado santo, cantando: Advocatus et non latro Res miranda populo. Observa-se em Eça sua fé na missão da literatura de combater os defeitos e os pecados de ordem moral, social e estética que as sociedades aceitam e praticam. É o que se constata nas Farpas, no livro O Crime do Padre Amaro e no O Primo Basílio. Tudo isto com ironia, uma implacável análise crítica, numa arte moralizadora e revolucionária. Combateu também o falso, mentiroso e irracional “patriotismo” que tenta justificar todas as misérias e ignomínias cometidas em nome da colonização contra países e povos oprimidos. Como foi a colonização portuguesa em muitos aspectos no Brasil, jogando, através de navios repletos, os piores criminosos de Portugal. Tudo isto pode ser exuberantemente comprovado nas Cartas de Duarte Coelho a El Rei em Pernambuco e em Mem de Sá na Bahia. Duarte Coelho, em carta de 1546, pede pelo amor de Deus que “tal peçonha me não mande, porque é mais destruir o serviço de Deus e seu e o bem meu e de quantos estão comigo”. Eça denunciou, com uma coragem extremamente rara, que a colonização portuguesa na Ásia foi uma “ignomínia”. Como foi em muitos aspectos a do Brasil, como se pode provar em cartas, já citadas de donatários. Duarte Coelho combatia, sem descanso, os “trapaceiros ladrões, salteadores”, porque os “foragidos da justiça da metrópole, ficaram livres da prisão pelos crimes que tivessem cometidos em Portugal”. Em uma de suas cartas, Duarte Coelho chega a afirmar; “Não sei se lhes chame povoadores ou se lhes diga ou chame salteadores”. • Ruy dos Santos Pereira é médico. Continente janeiro 2004


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68 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Fotos: Bárbara Wagner/ cortesia da sorveteria Bacana

"Vou aqui por essa rua Para a rua Imperial. O sorvete que aqui levo O sorvete que aqui levo É sorvete especial". Negrinho do Sorvete (pregão do começo do séc. 20)

Um sorvete especial

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orveteria Gemba. Era a mais famosa do Recife. Ficava na praça Joaquim Nabuco, juntinho do Leite. Inaugurada em 1934, acabou depredada em 1941, por conta da entrada do Brasil na 2ª Grande Guerra. Seu proprietário, o japonês Heiji Gemba, ficou preso mais de um mês. Sobreviveu plantando morango e chuchu, em Garanhuns. Ele e sua mulher Emiko – que, ainda hoje, vende ovos e verduras no mercado da Encruzilhada. Finda a guerra, reabriu a sorveteria na rua da Aurora – entre as pontes da Boa Vista e Duarte Coelho. Foi um sucesso retumbante. Fim de semana, funcionários uniformizados serviam as famílias no carro. Sorvetes e os fantásticos biscoitos “Big” (“bi” de biscoito e “g” de Gemba), folhados, em forma de leque. Mas o Recife cresceu, outras sorveterias foram surgindo, e Gemba acabou morrendo sem ensinar o segredo de seu sorvete a ninguém. Em 1969. Encerrando-se, com ele, mais um capítulo da história do sorvete. Uma história que vem de bem longe.

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Segundo velhas lendas, o Rei Salomão já refrescava suas tardes com sorvetes. Na Judéia (hoje Palestina). Pode até ter sido. Mas os primeiros registros confiáveis re montam à China de 1110 a.C. De lá nos veio a técnica de conservar neve em caixas de madeira. Para resfriar alimentos ou para ser degustada – com polpa de frutas e mel. Daí se espalhou mundo afora. No Egito, faraós serviam a convidados taças de prata com neve e suco de frutas. Marco Pólo trouxe a novidade para Veneza. Árabes apreciavam uma bebida com mel, frutas e especiarias, resfriada com neve das montanhas, a que chamaram shorbat – donde o turco shorbet, o italiano sorbetto e o francês sorbet. Naqueles tempos, era privilégio apenas de mesas nobres. Catarina de Médicis levou para a França, no seu casamento com Henrique II (rei da França), receitas de sorvete e chefes de cozinha. Entre eles, Bernardo Buontalenti – a quem se atribui a invenção do sorvete. Em 1550, o médico espanhol Villafranca descobriu que o pon-


SABORES PERNAMBUCANOS 69 »

to de congelamento podia ser atingido mais rapidamente, quando se misturasse, à água, nitrato de potássio (ou sal de cozinha). Em seqüência, construindo recipiente de madeira, forrado com camadas sucessivas de sal e gelo, tendo no centro um recipiente menor de cobre – onde se depositava polpa de frutas. A primeira sorveteria de Paris foi inaugurada logo depois, em 1660, pelo italiano Francesco Procópio de Coltelli. Na mesma rue de l’Anciènne Comédie, onde ainda hoje funciona o “Procope” – o mais antigo restaurante de Paris. Garchi ficou famoso com seu “Frescati”. Mais tarde, em fins do séc. 18, o napolitano Velloni fundou a Tortoni – onde servia o “arlequim”, sorvete formado pela sobreposição de sabores com cores lembrando a roupa do rival de Pierrot, nos amores de Colombina. Em Portugal, as primeiras referências ao uso da neve em refrescos remontam a 1619. Quando Filipe II visitou Lisboa. E, para agradá-lo, foram estocadas enormes quantidades de neve na Serra da Estrela. Em buracos imensos, cobertos com mato e esterco – considerados, à época, eficientes para a conservação de baixas temperaturas. A primeira receita de sorvete português está em Arte de Cozinhar (1680), de Domingos Rodrigues – neve, açúcar, suco de limão, almíscar, pó de coral, de aljôfar, de ouro e de basalto. Mas, apesar de todo esse prestígio, os médicos da corte ainda o viam com restrições – por “perturbar a temperatura natural do estômago”. Depois, o congelamento passa de truque a conquista tecnológica. E o sorvete chega na América do Norte. Em 1803, um fazendeiro de Mariland, Thomas Moore (sem parentesco conhecido com seu homônimo inglês), patenteou o primeiro refrigerador. Era então um equipamento ainda rudimentar, formado por duas caixas de madeira, uma dentro da outra, isoladas entre si com carvão e serragem, guardando um pequeno depósito de gelo. O sorvete chegou ao Brasil com a Regência – período tumultuado por intensas lutas políticas de preparação para a República. Pouco depois, as primeiras barras de gelo eram importadas da Europa para Pernambuco. Em 1838, por L.G. Ferreira & Mansfield. A primeira fábrica foi

instalada em 1875, pela C. Stall & Cia – fundição famosa por fazer adereços de ferro, entre eles os portões dos cemitérios de Santo Amaro e dos Ingleses. Funcionava na rua da Aurora, com fundos para a rua que acabou conhecida como da Fundição. Em pouco tempo, esse gelo acabou caindo no gosto do povo, como se pode ver em numerosos anúncios da época – citados por Leonardo Dantas em livro ainda inédito, O Recife 1900. No começo do séc. 20 já havia, na rua Nova, duas casas de vender “neve” – como eram então chamados, por aqui, esses sorvetes: o “Café Familiar”, com seu famoso “creme de nuvem”; e o “Café Rui”, que realizava nos carnavais um famoso “sorvete dançante”. Por essa época, pelas ruas de um Recife ainda provincial, o “Negrinho do Sorvete” continuava anunciando sua mercadoria em pregões célebres: “quem foi que viu/ fazer sorvete assim/ as mocinhas dessa rua / as mocinhas dessa rua / só compram sorvete a mim”. Eram sorvetes vendidos em caixas apoiadas na cabeça, servidos em copinhos, misturando sabores – quase sempre coco, chocolate e uma fruta da época. Em 1930, já havia dois fornecedores de sorvetes na cidade. A sorveteria Barbosa (rua do Rangel, 200) e a Boa Vista (praça Maciel Pinheiro, 284). E havia também o raspa-raspa – sorvete primitivo, feito na frente do freguês, com gelo raspado e xaropes coloridos, guardados em garrafas vazias de aguardente, servidos em copos simples de vidro e colheres ordinárias de alumínio (hoje substituídos por copos e colheres sem graça, de plástico descartável). Além do Gemba, muitas outras sorveterias acabaram famosas. “Espinho Preto”, na praça Maciel Pinheiro. “Polar”, perto do antigo cinema Moderno. “Botijinha” – com balcões onde o filho do dono, o poeta Carlos Pena Filho, escreveu suas primeiras poesias – “Recife cruel cidade, / águia sangrenta, leão”. Juntinho dela ficava o “arranha-céu da pracinha” – 8 andares, como o Hotel Central (Manuel Borba), as duas mais altas construções do Recife daquele tempo. “Dudi” (iniciais de Deus Uniu Dois Irmãos), quase encostada na hoje Faculdade Esuda (Espírito Santo Uniu Dois Amigos). “Xaxá”, na Riachuelo Continente janeiro 2004


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SABORES PERNAMBUCANOS

– com o famoso “tatá”, picolé de leite coberto com chocolate. “Daqui”, na avenida Boa Viagem, próximo ao Pólo Pina, com suas carrocinhas de vender sorvete. E, junto do Salesiano, a “Ki-sabor” – que depois, por causa da marca carioca “Kibon”, foi obrigada a trocar sucessivamente de nome para “Que Sabor”, “Com Sabor”, “Frio Sabor” e, finalmente, “Fri-sabor”. Os sorvetes do Nordeste são especialíssimos. Porque, ao lado dos sabores tradicionais – chocolate, creme, morango, temos aqui sobretudo os feitos de nossas frutas – mangaba,

cajá, caju, tangerina, araçá, goiaba, maracujá. Além de novos sabores, como amendoim, milho, tapioca. Servidos até em self-service de sorvete. Ao gosto do freguês. Cobertos com calda – de caramelo, de chocolate, de morango. Salpicados com amendoim, castanha, passa, jujuba e cereja. Acompanhados por biscoitos de todo tipo – mas nenhum tão bom quanto o “Big”, claro. Pensando bem, nem o “Big” que se fizesse hoje seria tão bom quanto o “Big” daquele tempo. Que nos sabores, como na vida, nada é tão perfeito quanto as coisas boas que passaram irremediavelmente. •

Foto: Bárba Wagner/cortesia do restaurante Oficina do Sabor

RECEITAS:

Sorvete de mangaba Ingredientes: 2kg de mangaba bem madura, 500gr de açúcar,1 caixa de creme de leite Preparo: •Deixe as mangabas de molho por 1 hora, para retirar seu leite. •Escorra e lave. •Misture ao açúcar, em recipiente. Esprema com a mão. Passe tudo na peneira.

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•Congele essa polpa. •Dia seguinte, bata no liquidificador e passe em peneira bem fina. Volte para o liquidificador, junto com o creme de leite. •Deixe no congelador, até a hora de servir. Sorvete de goiaba Ingredientes: 10 goiabas bem maduras, 500 gr de açúcar, 1 caixa de creme de leite.

Preparo: •Descasque e bata as goiabas, com pouquíssima água, no liquidificador. •Peneire e congele. •Bata no liquidificador, com o açúcar e o creme de leite. Congele até a hora de servir.

Maria Lecticia Cavalcanti é professora.


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A invenção de uma praia

A Invenção de Porto de Galinhas Org: Luiz Eduardo C. Mendonça Editora Persona – 279 p. R$ 25,00.

Livro aborda a construção de Porto de Galinhas como destino turístico, sob a ótica da micro-história, do turismo, do empreendedorismo e das comunidades

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o jargão do setor, a praia de Porto de Galinhas é um dos principais destinos turísticos do Nordeste. O curioso é que, não obstante recentes investimentos públicos, esse destino foi construído espontaneamente, ao sabor de conjunturas históricas, imposições do mercado, iniciativas de empreendedores criativos, reivindicações de organizações sociais. No princípio, era a terra dos caetés, que durante cinco anos (1571-1576) bateram-se arduamente com os portugueses que, vencedores, implantaram na região engenhos de açúcar, integrados à economia dos oceanos. Isso até o século 19. Depois, as praias de Porto de Galinhas, Cupê e Maracaípe viraram fazendas de coco, até os anos 70 do século passado. A partir daí, com o “milagre econômico” acalentando os sonhos de consumo de uma classe média ascendente, tornaram-se praias de veraneio, onde famílias abastadas do Recife, principalmente, construíam casas para passar as férias. A extraordinária beleza natural do lugar começou a chamar a atenção de visitantes de várias partes e, então, numa velocida-

de estonteante, novas casas, pousadas, hotéis, bares, restaurantes, mercados, eletricidade, asfalto, telefone, chegaram e se instalaram, transformando a paisagem, trazendo novos habitantes, gerando uma economia dinâmica e criando alguns problemas de infra-estrutura. E, no bojo das transformações, nasceu um sentimento de comunidade, uma identidade coletiva não muito comum nesse universo. Tudo isso está contado no livro A Invenção de Porto de Galinhas, recentemente lançado pela Persona Empreendedorismo e Cultura, sob a coordenação do professor Luiz Eduardo Carvalheira de Mendonça. A publicação aborda os aspectos históricos, turísticos e comunitários, com ênfase na ação dos empreendedores. E traz um bônus: na parte histórica, da lavra da pesquisadora Virgínia Pernambucano de Mello, esclarece-se, documentadamente, a origem do nome Porto de Galinhas, que não vem de uma senha para desembarque clandestino de escravos na praia, no século 19, como narra a lenda, mas de uma etnia africana para lá trazida, desde os primórdios da colonização. É trabalho de micro-história, de valor e sabor. • Continente janeiro 2004


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TRADIÇÕES

Na hora do sol dormir Tradição oral indígena se pereniza em páginas de livros escritos pelos próprios índios, que buscam resgatar a memória cultural e espiritual dos povos tradicionais Isabelle Câmara

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tradição oral indígena, originalmente difundida de geração em geração como forma de transmitir o sentido da existência dos povos tradicionais e explicar, segundo as suas concepções, a criação do universo, começa a se perpetuar nas páginas dos livros. O que antes era repassado apenas pelos velhos das aldeias – que dominam a oralidade –, ganha impressões belas e bem acabadas. Mas agora escritas pelos próprios índios, visto que sempre foi normal que antropólogos e indigenistas documentassem e divulgassem as histórias ancestrais. As fábulas, mitos e lendas dos indígenas quase sempre tratam do seu cotidiano: tensões, problemas e soluções; da relação com a sociedade não-indígena; da beleza dos rituais; da pluralidade cultural; da religiosidade e das respostas para os questionamentos sobre a criação do universo, a vida e a morte. Todavia, estavam fadadas às alterações – quando contadas e recontadas, carregavam as impressões de cada contador – ou ao esquecimento – quando os velhos morriam, levavam consigo as histórias, pois em algumas aldeias já não existia o hábito da contação. Preocupados com o possível desaparecimento das suas identidades, um número considerável de índios e índio-descendentes resolveu registrar a tradição oral. O primeiro passo foi dado nos anos 70. Eliane Potiguara se

inspirou no movimento de poesia marginal do Rio de Janeiro e escreveu o poema “Identidade Indígena”, publicado no livro Metade Cara, Metade Máscara, de sua autoria. Depois veio a Constituição de 88, que garante aos índios o direito à educação por meio de processos próprios de aprendizagem. Além da Constituição, os Parâmetros Curriculares Nacionais levaram as editoras brasileiras a lançarem títulos sobre o assunto, pois obrigam as escolas de ensino médio a tratarem da questão indígena. Era o estímulo que faltava. Os índios assumiram a narração e o registro das suas histórias e empreenderam um movimento político e cultural que se manifesta de duas formas: uma é a geração de escritores indígenas que produz uma literatura voltada também para os não-índios; e a outra são as obras coletivas, escritas por professores e alunos, em salas de aula (nas próprias aldeias). Entre os autores individuais estão Kaká Werá Jecupé, Olívio Jekupé e Daniel Munduruku, autor indígena formado em Filosofia e Antropologia Social pela USP e fundador da Editora Peirópolis. Daniel recebeu o prêmio Érico Vanucci Mendes, concedido pelo CNPQ a autores que divulgam a cultura brasileira, pelo conjunto da sua obra. “Assumimos nossas histórias porque muitas pessoas exploraram as raízes ancestrais sem dar o retorno financeiro que as comunidades


TRADIÇÕES 75 » precisam. Além disso, sempre considerei uma dívida que tenho que pagar aos meus antepassados por me terem dado o saber que hoje tenho; nós queremos trazer para a cidade a forma como a vida é concebida pelas várias culturas. Neste sentido, podemos notar que o pensamento holístico indígena é circular e se contrapõe ao pensamento quadrado do Ocidente, aproximando-se mais de uma visão oriental”. Estes escritores foram objetos da tese Contrapontos da Literatura Indígena no Brasil, de Maria das Graças Ferreira, doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco. "O trabalho de autores individuais representa a autonomia indígena, pois eles não estão submetidos ao governo ou a uma ONG". Maria das Graças se refere às obras coletivas, que são financiadas por entidades externas às organizações indígenas, como o Livro das Árvores (prêmio de melhor projeto gráfico da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil), dos Tikuna (AC), financiado pelo governo estadual, e Filhos da Mãe-Natureza (selo de Altamente Recomendável da FNLIJ), dos Xucuru (PE), apoiado pelo Centro de Cultura Luiz Freire. Uma nova literatura - Mas que literatura é essa? Em que ela difere das obras não-indígenas? “A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico – de sobrevivência –, uma variante do épico, tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas ao longo do período da colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena vem se preservando na auto-história de seus autores e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones”, responde Maria das Graças. Daniel acredita que são leituras difíceis de compreender, como ele diz no prefácio de As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos: “Não são muito fáceis porque ocorreram num tempo em que o tempo ainda não existia, em que os animais governavam o mundo, em que o Espírito Criador andava junto com os homens no grande jardim chamado Terra”. Nesse mesmo livro, Daniel conta como começou a se interessar pela vida de seu povo: “Toda criança, de qualquer parte do mundo, é curiosa. (...). Até que um dia, um de nossos avós, vendo toda

Xucuru, filhos da mªe-natureza foi produzido coletivamente pelos professores e crianças do povo Xucuru (PE)

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Alguns dos principais autores indígenas do Brasil: As serpentes que roubaram a noite, de Daniel Munduruku, Ed. Peirópolis, 2001, R$ 25,00

Iarandu, o cão falante, de Olívio Jekupé, Ed. Peirópolis, 2002, R$ 15,00 Arandu Ymanguaré, de Olívio Jekupé, Ed. Evoluir, 2003, R$ 15,00 O diário de Kaxi, de Daniel Munduruku, Ed. Salesiana, 2001, R$ 17,00

Histórias de índio, de Daniel Munduruku, Companhia das Letrinhas, 1996, R$ 25,00

Kabá Darebu, de Daniel Munuduruku, Ed. Brinque Book, 2002, R$ 19,00 Verá, o contador de histórias, de Olívio Jekupé, Ed. Peirópolis, 2003, R$ 25,00

Sobre a origem do mundo:

"Há muito, muito tempo, o mundo não existia. Nada ainda havia sido criado. Somente dois Espíritos Criadores viviam no infinito: Tupana e Yurupary. Tupana criou A'at, o Sol, e Yurupary criou Waty, a Lua. E eles passaram a existir." (Trecho de Puratig, o Remo Sagrado)

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a nossa curiosidade, chamou-nos a um canto e disse que era chegada a hora de conhecermos a nossa história. – Mas, é preciso que vocês venham aqui na hora do sol dormir. E todos devem trazer uma pena de mutum”, disse ele. E as conceitua como uma literatura nova, sem regras, sem objetivos ou adjetivos; sem métodos ou estratégias para fazer o público comprar, adquirir. "É apenas uma expressão do ser, como fazem os poetas...uma leitura do mundo, como fazem os filósofos...um modo de estar, como são os mitos". E sugere: “São histórias para serem ouvidas com o ouvido do coração, o ouvido da memória. É preciso ler e reler deixando a razão de lado, fechar os olhos e contemplar, contemplar, contemplar... assim vocês irão ao encontro da palavra que mora lá dentro de vocês e certamente se apaixonarão por suas próprias memórias ancestrais”. •


MÚSICA 77 »

Mestre Siba Foto: Divulgação

Um poeta no meio do redemunho

Músico pernambucano selou um pacto com a tradição do maracatu de baque solto, renovando-o sem rupturas, numa circularidade reverente e criativa Astier Basilio

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dia já se iluminava de azul nos céus de Buenos Aires, cidade do interior de Pernambuco. Os caboclos de lança do maracatu local já faziam as últimas manobras. Como verdadeiros guardiões e protetores de uma tradição viva. O mestre improvisava as quadras e o terno executava uma marcha que já havia se consolidado entre eles. Ao meu lado, o poeta e jovem mestre do Maracatu Estrela Brilhante, Sérgio Veloso, com os olhos brilhando, me dizia: “Rapaz, essa marcha pegou mesmo”. Identifiquei como de sua autoria e ele confirmou. “É minha sim. Não tem dinheiro no mundo que pague isso”, comentava com um sorriso. O que seria o mero aproveitamento de uma criação individual num universo poético musical e brincante da tradição do maracatu do baque solto, era mais que isso. Estava ali, de maneira natural, a prova inconteste da sagração e reconhecimento de um poeta: Siba. Músico que vem percorrendo uma trajetória cheia de mudanças, e quem o vê, no meio do “redemunho” dos folgazões, assistindo às sambadas e sambando com o seu chapéu, camisa exuberantemente colorida, óculos e bigode, talvez desconheça que este mancebo, criado numa família de classe média do Recife, como boa parte dos adolescentes de sua geração, também curtia rock, chegando até a tocar guitarra em bandas efêmeras e anônimas. Graduado em música pela UFPE, na época da faculdade atuou como assistente de um Continente janeiro 2004


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MÚSICAonhecimento 7878 Foto: Eduardo Queiroga/Lumiar

Caboclo de lança do maracatu rural:

pesquisador norte-americano que veio a Pernambuco para estudar e gravar as manifestações da cultura popular, como o cavalo-marinho, ciranda, coco-de-roda e maracatu. Foi neste período, valendo-se dos atributos acadêmicos e de sua aguçada sensibilidade musical, que Siba aprendeu a tocar rabeca. Quando Siba manteve o primeiro contato com a riqueza do universo musical e poético do maracatu, não teve dúvidas: “É isso o que eu quero pra mim”. O trabalho acadêmico durou cerca de um ano, o americano foi embora, mas o músico, sempre ávido pela pesquisa e mais Continente janeiro 2004

do que isso, pelo contato direto com as tradições musicais nordestinas, continuou a freqüentar e gravar as sambadas. “Embora fosse algo muito incômodo pra mim. Eu não queria estar de fora, gravando, como um elemento estranho; eu queria estar entre eles e foi o que fiz”. De roqueiro a repentista – Com este suporte do rock e dos elementos da música de tradição nordestina, além do contato com os repentistas vindo através de seu pai, Siba foi um dos fundadores do Mestre Ambrósio. Banda que aliava todos os elementos de sua imaginação


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musical. Quando o grupo musical começava a se nada, ele mesmo misturou-se ao maracatu, à poesia e à brinconsolidar em termos locais, surgia a oportunidade de cadeira e incorporou-se de vez ao seu universo simbólico. O seu mais recente trabalho, No Baque Solto Somente, em uma temporada de um mês em São Paulo. Os integrantes do Mestre Ambrósio viram aí a chance de uma per- parceria com o também mestre Barachinha, é prova evidente manência na capital paulistana. Em idos de 1996, trans- disso. A marca individual está presente, mas os versos das Foto: Divulgação marchas, dos galopes, do samba feriram-se, definitivamente, em dez e do samba curto, não para São Paulo. propõem uma poética que Na maior capital nordestina pretenda para si uma supedo país, Siba tomou contato com rioridade sobre a poética dos aros repentistas que cantavam nas tistas populares, como no célepraças e no meio da rua. Neste bre caso da peleja (real ou invenperíodo, começou a freqüentar tada, não importa, tomo-a como cantorias e conheceu uma figura metáfora) entre o escravo e decisiva para a sua aproximação autêntico poeta, Inácio da Catincom o mundo do repente, o cangueira, e “o branco e aristocrata tador Sebastião Marinho. Aos Romano da Mãe d'Água”, que poucos foi aprendendo as técnina hora do aperto só derrotou o cas, que vieram a influenciá-lo negro escravo apelando para o posteriormente nas composições conhecimento livresco. dos sambas de maracatu. Siba Tampouco há a utilização antes utilizava rimas toantes, que não eram válidas na poesia imSiba não misturou o maracatu com nada, de estereótipos, clichês que pretendam impor uma aura artifiprovisada. Logo depois comeele mesmo misturou-se ao maracatu, à çou a realizar cantorias em casa e poesia e à brincadeira e incorporou-se de cialmente popular ao trabalho. Siba não fossiliza nem aprisiona a cantar nelas. Chegou, inclusivez ao seu universo simbólico nada. Como podemos ver na ve, junto com Mocinha da Pasfaixa da “Clonagem”, em ritmo sira, a dar aulas sobre cantoria de galope, cujos toques dos metais do terno de maracatu renas escolas de São Paulo. O ápice de sua trajetória como cantador foi sua produzem solos de músicas do “Marinheiro Popeye” e participação no 1º Campeonato Brasileiro de Poetas Repen- “Parabéns pra você”, emoldurando a letra cheia de humor, tistas, em 1998. “A partir daí vi que não dava mais pra conti- deste tema atual, como nos versos de Barachinha: Lá no meu nuar, tinha de me dedicar exclusivamente ao repente”. Por laboratório / fiz clonagem de cadela / Fi-fi é o nome dela / Pitibul falta de um parceiro que tivesse os mesmos objetivos, que é sua raça / só que o pessoal da praça / confunde você com ela. Toda a atmosfera existente em Nazaré da Mata tem sido exnão fossem tão profissionais , resolveu parar. tremamente fértil para o músico e poeta Siba. Já há, incluFuloresta do Samba – Mudar de São Paulo para Na- sive, material suficiente para gravação de outro CD de zaré da Mata, para Siba, está lhe proporcionando um dos maracatu e para o segundo trabalho com a Fuloresta. Atravessando os paralelepípedos das ruas animadas por momentos mais criativos de sua carreira. A Fuloresta do Samba, que está completando dois anos, é a realização de um carros de som, nas madrugadas de apito, gritos e festa, das sonho e de um ideal artístico de um poeta. A cultura popular cidadezinhas da Zona da Mata de Pernambuco, bebendo caé sempre utilizada como matéria bruta, seja como ingre- chaça, brincando com os caboclinhos, aprendendo e ensinandiente numa mistura, como no caso do Mangue Beat, seja do, como um verdadeiro mestre, Siba, que no primeiro secomo elemento a ser polido pelas técnicas eruditas, como no mestre de 2004, fará a primeira tournée internacional com a Movimento Armorial. No trabalho de Siba, contudo, ocor- Fuloresta do Samba, consegue ser universal, não apenas por re o contrário: vemos um pacto com uma tradição que se falar de sua aldeia, mas por vivê-la... • renova sem rupturas, mas numa circularidade reverente e criativa, acima de tudo. Siba não misturou o maracatu com Astier Basílio é poeta e jornalista. Continente janeiro 2004

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80 MÚSICA

O som que vem do Agreste

Tavares da Gaita, reconhecido por seus pares como excepcional músico intuitivo, ainda espera patrocínio para gravar o seu primeiro CD

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m 1990, levei para o percussionista Naná Vasconcelos, na época morando em Nova York, uma encomenda que me foi entregue pelo jornalista, já falecido, Héber Fonseca. Passei pela rigorosa alfândega americana sem problemas. Hoje em dia, depois do 11 de setembro, certamente, essa encomenda me deixaria em dificuldades. Como explicar à polícia aduaneira que aqueles objetos, que emitiam sons os mais esquisitos, tratavam-se de inofensivos instrumentos de percussão? E pior: como traduzir para o inglês os ainda mais estranhos nomes dos instrumentos: quenga-som, bambu-som ou aconguê? Quem inventou os tais instrumentos foi o pernambucano, de Taquaritinga do Norte, mas há anos morando em Caruaru, José Tavares da Silva, o Tavares da Gaita. Aos 78 anos, ele pretende lançar o primeiro disco solo, produzido pelo blueseiro carioca Jefferson Gonçalves. O homenageado oficial do São João 2003 de Caruaru, Tavares da Gaita freqüentou poucas vezes o camarote do Prefeito: “Não deu pra ir todas as noites. Não gosto da música destas bandas. Isto pra mim não é forró. É uma invenção, mas não forró. Agora, gostei da homenagem, porque sempre lembravam dos músicos novos, e eu ficava de fora”, comenta Tavares, com seu jeito meio direto de dizer o que pensa. A música esteve presente em sua vida desde criança: “Minha mãe cantava em igreja, um irmão meu, João, tocava clarinete, e eu comecei tocando triângulo, ganzá, maracá”, relembra Tavares. No entanto, não dava para se sustentar como músico; assim ele, até perto de completar 40 anos, trabalhou como agricultor, marceneiro e sapateiro. Um acaso foi responsável por uma guinada na trajetória do ainda então José Tavares: “Eu achei uma gaita na gaveta de uma sinuca, onde eu fazia um trabalho. Aí comecei a aprender, a tocar para

José Teles

o pessoal e aí ganhei este apelido”, recorda. Assim como no episódio da gaita, o acaso também contribuiu para que ele se tornasse artesão de instrumentos de percussão: “Me convidaram para fazer a sonoplastia da peça Os Tambores Silenciosos, de Vital Santos, então criei uns negócios que produziam o som que eles precisavam”, relembra, com modéstia. Modéstia que o fez continuar um ilustre desconhecido até o final dos anos 80, quando foi descoberto por Héber Fonseca (na época crítico musical do Jornal do Commercio, do Recife). Fonseca não apenas escreveu a primeira matéria na grande imprensa pernambucana sobre Tavares da Gaita, como também espalhou seu nome entre colegas de outros Estados, e instrumentistas como Naná Vasconcelos. A partir daí, o talento do artesão e de gaitista de Tavares foi sendo reconhecido. Convidado pelo citado Naná Vasconcelos, ele encarou, em 1992, um Teatro Guararapes lotado, ao participar de um show do percussionista, que há muitos anos não se apresentava no Brasil. Também com Naná, ele estreou em estúdio, numa das faixas do disco Contando Estórias (Velas, 1994). Houve mais gravações. Uma para um CD de forró, lançado apenas na Alemanha, e outra para uma coletânea organizada pelo percussionista Airto Moreira, saída somente na Inglaterra. A última “canja” foi no CD Navegaita (Gravadora Eldorado), do blueseiro (também gaitista) carioca Flávio Guimarães (da Blues Etílico). Hoje em dia, as visitas são constantes na modesta casa onde o músico vive com a mulher Elvira (com quem está casado há 51 anos). A localização, pertinho do centro de Caruaru, facilita para os visitantes, pois na casa não há telefone. São turistas, músicos de várias regiões do país, querendo conhecê-lo, comprar instrumentos, aprender com ele. Um desses visitantes foi o carioca Jefferson Gonçalves,


outro gaitista, que se impressionou com a técnica original de Tavares da Gaita: “Fascina-me a simplicidade na forma de tocar. Ele não sabe música, não conhece nem um dó, mesmo assim cria melodias geniais. O que mais me espanta, é que Tavares toca gaita com fraseado de sanfona, e trabalha principalmente com ritmos. Não existe nenhum gaitista igual. Eu mesmo tentei aprender essa coisa do ritmo, mas não saiu da mesma maneira. Ele é um diamante bruto”, analisa Gonçalves, que não ficou apenas nos elogios. Ele decidiu registrar a música de Tavares da Gaita em disco. Bancou do próprio bolso o estúdio: “Tavares gravou 19 músicas, muitas delas compondo na hora. Airto Moreira, eu, Marcos Bezerra, um percussionista do Rio, músicos de Caruaru, muita gente participou das gravações”. O dinheiro, no entanto, não deu para fabricar o CD: “Estou com a master terminada, a capa também está pronta, mas a grana acabou, e a gente não encontrou ainda quem patrocinasse uma tiragem de mil discos”, lamenta Jefferson Gonçalves, acrescentando que, quando Sanfona de Boca (o nome do CD) for finalmente lançado, todas as cópias serão entregues a Tavares da Gaita. Como não surgiram comerciantes interessados em patrocinar o disco, e as dita autoriades competentes de Caruaru também não se pronunciaram sobre o assunto, músicos da nova cena da cidade, mais Silvério Pessoa, planejam um show beneficente para levantar recursos para Tavares da Gaita finalmente estrear em disco (sem data prevista). O CD será um considerável reforço no orçamento familiar. Ele e a mulher sustentam-se com os R$ 240 da aposentadoria, mais o que arrecadam com eventuais vendas de instrumentos. Viviam um pouco mais folgados, quando Tavares da Gaita tinha saúde para viajar e fazer shows. Hoje suas apresentações são esporádicas (a última foi com Flávio Guimarães, no Recife, em fevereiro). Ele sofre de colite crônica e de constantes crises de depressão, agravadas pelo severo regime alimentar, que o impede de comer o seu prato predileto, feijão com arroz. •

Fotos: Leopoldo Nunes/ JC Imagem

“Fascina-me a simplicidade na forma de tocar. Ele não sabe música, não conhece nem um dó, mesmo assim cria melodias geniais. O que mais me espanta, é que Tavares toca gaita com fraseado de sanfona, e trabalha principalmente com ritmos.” – Jefferson Gonçalves

José Teles é jornalista.

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82 CINEMA

CAMILO CAVALCANTE

“Um filme pode mudar sua vida” Depois de ganhar o prêmio de Melhor Direção no último festival de Brasília pelo filme História da Eternidade, o infatigável cineasta pernambucano afirma, em entrevista exclusiva à Continente, que a televisão é o câncer da alma Alexandre Figueirôa

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o Recife, 18 horas. Ao som da “Ave Maria”, de Schubert, imagens de uma cidade e de seus habitantes comuns atravessam a tela, compondo, por meio de um mosaico de tipos e situações de vida, um poema de contrastes. Assim é o vídeo Ave Maria ou Mãe dos Oprimidos. Assim é Camilo Cavalcante, 29 anos. Um jovem realizador pernambucano que, remando contra a maré do audiovisual dominante, acredita num cinema de poesia e na força da imagem como transformadora de corações e mentes. Este trabalho realizado com equipamento digital é sua obra mais recente e traduz, com fidelidade, os ideais de alguém que escolheu a câmera para falar do homem e de suas angústias. O mote até parece um pouco deslocado nestes tempos de predominância do entretenimento banal. Talvez. Mas quem

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Para atingir seus objetivos, Camilo confessa não poder ficonhece um pouco do que Camilo realizou, nos últimos anos, não conseguiu ficar indiferente ao car parado. Grava imagens com o equipamento que tiver em seu estilo. Sua pulsão visceral para nos transmitir mãos e nas condições que lhe são oferecidas. Começou com uma visão de mundo sem concessão aos modismos VHS, já usou Betacam, Super VHS, 16 mm e 35 mm. Para já foi reconhecida em muitos festivais. O prêmio ele o que importa é experimentar e valer-se da técnica, não pade Melhor Direção do Cinema Brasileiro, por ra passar por cima do ser humano, mas para colocá-la em funHistória da Eternidade, em novembro do ano pas- ção do sentimento. “Para atingir um resultado estético, muitas sado, no último Festival de Brasília , é a prova de vezes o diretor de fotografia atropela o elemento humano e eu que a bandeira do cinemacabradapeste por ele er- não concordo com isto”. Camilo acredita no trabalho do ator seja ele o personagem principal ou um figurante. Suas obras, guida pode dar resultado. Camilo Cavalcante é um colecionador de tro- de certa forma, acabam refletindo esta filosofia. Em O Velho, o féus em festivais de cinema e vídeo. Desde o ví- Mar e o Lago, o ator Cosme Soares domina a mise-en-scène, já deo Hambre Hombre, realizado ainda quando sua em Ave Maria, atores e desconhecidos protagonizam cenas cabeça estava fervilhando do aprendizado adqui- ficcionais e documentais, para revelar os paradoxos da vida sorido no curso de Roteiro Cinematográfico na Es- cial e mostrar como ela pode ser medonha e bizarra. O cineascuela Internacional de Cine y TV de San Antonio ta, contudo, não acredita numa unidade em sua obra. “Cada de Los Baños, em Cuba, até o premiadíssimo trabalho revela um momento meu em relação ao mundo”. curta-metragem, em 35 mm, O Velho, o Mar e o Lago (MeHist ria da Eternidade: lhor Curta do Festival de poesia cruel Cinema de Cuiabá; Melhor Filme na 10ª Mostra Internacional Curta Cinema; Melhor Direção no XI Cine Ceará; Melhor Ator, Melhor Curta de Ficção e Melhor Direção no 5º Festival de Cinema do Recife; entre outros), de 2000, Camilo investe firme no que ele acredita: “as pessoas precisam da diferença. A televisão é o câncer da alma. Eu fui criado pela televisão e sei o mal que ela causa. Ela é um vício e o cinema, que podia seguir outro caminho, como está sendo feito, também tem contribuído para a uniformização”. Talvez por esta razão, Camilo confesse ter perdido recentemente um ídolo, o cineasta Hector Babenco, por ele ter afirmado que um filme não muda nada. “Um filme pode mudar a forma de se ver o mundo. Se ele tocar a pessoa de forma sincera, será capaz de abrir a cabeça do espectador e quebrar a visão unilateral das coisas. Se eu não acreditar nesta possibilidade de transformação eu não consigo realizar”, rebate convicto.

Fotos: Kk Santos

CINEMA 83 »

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84 CINEMA

Camilo Cavalcante planeja transformar Hist ria da Eternidade num longa

Depois do filme com Cosme Soares, cuja narrativa – a estória de um velho solitário, perdido nas suas lembranças – obedecia a uma certa linearidade, em História da Eternidade, Camilo resolveu trabalhar mais profundamente o universo alegórico. O filme não tem diálogos e pretende ser um panorama do instinto humano. A reação provocada no espectador é de estranhamento. “É como um passeio num trem fantasma, as pessoas ficam atônitas. Mas era exatamente isto que eu queria provocar. Não é uma obra fechada. O filme proporciona níveis diferentes de leitura e a possibilidade de quem o vê de criar suas próprias associações”. Camilo regozija-se de ter mais uma vez experimentado a sua criatividade. “Nele a poesia é cruel”. Rodado com 87 mil reais, foi, até hoje, a obra mais dispendiosa por ele realizada. Esta aventura, porém, parece ainda não ter chegado ao fim. Com o mesmo título, ele pretende desenvolver um projeto de longa-metragem contando três histórias de amor ambientadas no sertão pernambucano, mas avisa: “são amores que fogem às regras, são paixões em estado bruto”. Além desse, outros Continente janeiro 2004

projetos alimentam o sonho do cineasta. Entre eles há um longa que já tem recursos do BNDES de 400 mil reais e cujo título é Fuga. O filme é a história de um indivíduo que dorme numa cidade e acorda em outra e reúne outros quatro realizadores – Gustavo Spolidoro, do Rio Grande do Sul; Flávio Frederico, de São Paulo; Eduardo Nunes, do Rio de Janeiro; e José Eduardo Belmonte, de Brasília. Os demais roteiros e propostas estão espalhados nos diversos concursos de roteiros ou em busca de apoio das leis de incentivo à cultura. Enquanto os recursos não chegam, Camilo trabalha para o mercado publicitário. “Não gosto de fazer comerciais, mas preciso sobreviver. Viver só de cinema é impossível e em Pernambuco isto ainda é mais complicado”, confessa com conhecimento de causa. Para dar forma aos seus poemas, já construiu um farol para navios em plena caatinga e chegou a passar, direto, sem descanso, 23 horas no set de filmagem porque tinha que devolver a câmera no dia seguinte. • Alexandre Figueirôa é jornalista e crítico de cinema.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 85 Joel Silveira

7. OS CUIDADOS Quem me deu o conselho foi o velho Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, no casarão-museu em que ele morava, no Humaitá: – Vá em frente, sem medo. Mas não descuide dos freios!

1. O QUE A PÁTRIA NOS DÁ Meu amigo resmunga: – A mim a Pátria só deu o que dá compulsoriamente a todo mundo: um hino e uma bandeira...

8. INFORMAÇÃO Diz-me com quem andas – e eu te direi para onde vais.

2. OS ANOS PASSAM Pode-se ter absoluta certeza de que uma badalada colunável começa a envelhecer e resolve assumir essa incontrolável imposição do tempo, quando aparece no carnaval fantasiada de baiana ou de cigana, num excesso de panos e mangas bufantes. 3. MUITO PRAZER Você viu ontem à tarde a bruta ressaca lá na praia do Leblon? – Está falando com a própria... 4. QUE DESPERDÍCIO... Entre o desalento e o inconformismo, após ter lido um escorreito artigão do famoso literato, meu amigo comenta: – Um desperdício de rígida e intolerante gramática! Tanto pronome bem-colocado – e tudo para dizer o quê? Absolutamente nada. Ou melhor: apenas para que ele possa dizer que sabe gramática... 5. A APARÊNCIA Por mais que se adorne, cobrindo-se de jóias caras, aquela veterana senhora do nosso chamado society dá sempre a impressão nas fotos em que aparece (e aparece quase diariamente) de quem acaba de voltar de uma renhida e demorada passagem por uma feira livre suburbana.

6. CADÊ? ....Mas onde diabo perdi a minha alegria? Já a procurei em todas as gavetas, nos armários, no caderninho de telefones, nos bolsos dos ternos – e não há jeito de encontrá-la. Sem ela, que será de minha tristeza? As duas se davam tão bem... • Joel Silveira é jornalista e escritor.

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86 HISTÓRIA Fotos: Reprodução

Releituras do Recife de Nassau Livro antecipa-se às comemorações dos 350 anos da Restauração Pernambucana e discute o legado do período sob uma ótica multidisciplinar

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permanência de Maurício de Nassau em Pernambuco foi marcada pelo tom de relevância e incentivo dado às manifestações culturais, artísticas e científicas. Este período de sete anos permitiu, em 1637, a entrada da civilização européia, via Países Baixos, no que ela tinha de mais sofisticado no campo do conhecimento. Entre os componentes do séqüito de Nassau, estavam incluídos pintores, arquitetos e desenhistas, além de cientistas das áreas da Medicina, Botânica e Cartografia, muitos deles ainda jovens e desconhecidos. No Brasil holandês, a missão do Conde não ficou apenas nos propósitos políticos (a tarefa de apaziguar os ânimos e combater as sedições de espanhóis e luso-brasileiros na Colônia) e econômicos (o atendimento às exigências exploratórias, lucrativas e expansionistas da Companhia das Índias Ocidentais, pela força das armas ou pela persuasão cooptadora). Na ocasião das comemorações dos 350 anos da chegada da comitiva nassoviana ao Brasil, aconteceu uma rodada de leituras e debates sobre aspectos diversos de sua passagem por aqui. Os debates de 1997 resultaram no livro Relendo o Recife de Nassau (Recife, Bagaço, 2003, 238 p.), somente Continente janeiro 2004


HISTÓRIA 87

agora publicado. De todo modo, a publicação organizada por Gilda Maria Whitaker Verri e Jomard Muniz de Britto antecipa-se aos 400 anos do nascimento do alemão João Maurício de Nassau-Siegen, em Dillemburgo, a 17 de junho de 1604. A natureza ensaística deste trabalho reflete uma diversidade que contempla, inicialmente, o texto denso e polêmico de Denis Antônio de Mendonça Bernardes, “Nassau, Nassaus: notas brutas sobre o uso da história.” Denis Bernardes questiona, entre outras coisas, um estudo de Nicolau Sevcenko, onde prevaleceram os efeitos epistemológicos enfraquecedores do discurso histórico, resultantes dos “usos” indevidos da “imaginação histórica”. O impressionismo histórico acentua-se em detrimento das fontes, fatos e documentos abalizados pelos sucessivos especialistas e historiadores. Neste embate Bernardes discute, por exemplo, a fala de Sevcenko sobre “a construção da cidade Maurícia”, cuja imaginação “cria uma inexistente geografia do Recife e arredores e literalmente compõe uma narrativa que talvez pudesse ser parte de um romance utópico, mas que jamais teve lugar no chão histórico do Recife”. Na análise evolutiva do estilo arquitetônico e da configuração urbana da cidade, José Luiz Mota Menezes lembra a ênfase com que José Antonio Gonsalves de Mello já tinha se debruçado anteriormente sobre o mapeamento do Recife, e como as concepções estruturais da construção da cidade sofreram uma junção do esforço holandês ao português. O levantamento bibliográfico de Leonardo Dantas Silva é de suma importância, onde se encontram, enumerados, trabalhos raros que o Conde mandou imprimir após sua volta à Holanda, em 1644, aliando mapas e desenhos a testemunhos e relatos variados dos que estiveram com ele na cidade Maurícia. O texto de Antonio Paulo Rezende, “Recife: espelhos do passado e labirintos do presente ou as tentações da memória e as inscrições do desejo”, foge completamente à temática, com o presente urbano do Recife sobrepondo-se ao seu passado histórico, sendo excluídas, nesta operação, quaisquer referências diretas a Nassau e sua empreitada. Em Jomard Muniz de Britto o assunto insinua-se através da “poeticidade” entrevista em poemas urbanos de Joaquim Cardozo e Vital Corrêa de Araújo, com a cidade oscilando entre a visa-

da solene do primeiro e a reatualização contextual do segundo. Raul Córdula empreende um roteiro pictórico dos jovens Eckhout e Post, que deram destaque a uma maneira profana de pintar, salientando, com seu olhar europeu de artistas e sua condição de contratados pelo colonizador, a novidade dos costumes nativos, o exotismo da natureza tropical e dos habitantes que aqui se removiam. A partir de um levantamento da pintura pernambucana atual sobre a temática, estabelece conexões entre os dois tempos. Luzilá Gonçalves Ferreira preserva, na sua intervenção, a oralidade enxuta de um texto-depoimento, desvelando a gênese do seu romance A Garça Malferida, que tem como personagem central a brasileira Ana Paes D’Altro, amiga de Nassau, que se posicionou ao lado dos holandeses, mesmo após a sua expulsão: “O Recife dA Garça Malferida é certamente semelhante àquele onde viveu o Conde Maurício de Nassau. Mas é, sobretudo, a cidade que a autora sonhou: feita de ciência certamente, saída dos desenhos de Post e Eckhout, como dos belos livros de José Antonio Gonsalves de Mello ou da narrativa de Barlaeus, feita de pedra e cal, certamente”. Há, ainda, artigos sobre a história urbana do Recife e Olinda (Geraldo Santana), a escravidão no período (Pedro Puntoni), a bibliografia da dramaturgia (Antonio Cadengue), uma estadia na Holanda nos anos 60 (Roberto Motta), a espionagem romanceada de Verdunc (Jodeval Duarte) e o elogio diplomático do embaixador Wladimir Murtinho (Esther Caldas Bertoletti). Os quinze textos de Relendo o Recife de Nassau ramificam-se claramente em duas orientações – uma histórica, outra literária – que quase sempre se inter-relacionam e interagem. Contrariamente, pode-se pensar numa certa irregularidade e fragmentação temática Foto: Divulgação que caracteriza tais textos, embora essa constatação não diminua o seu mérito literário nem sua contribuição efetiva ao saber histórico, pela qualidade argumentativa da maioria das abordagens. O que significa também uma nova e necessária abertura à experiência neerlandesa, trazendo à tona muitas realizações culturais, administrativas, guerreiras e civilizatórias da época. (Luiz Carlos Monteiro) • Relendo o Recife de Nassau, org. Gilda Maria Whitaker Verri e Jomard Muniz de Brito, Edições Bagaço, R$ 20,00.

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88 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

A morte do cristianismo Nenhuma sociedade foi tão hedonista quanto somos agora

M

eu avô paterno José Leandro Correia morreu com 57 anos, convicto de que ia para o céu. Durante parte de sua existência ele deu esmolas para os cofres da igreja matriz de São Raimundo Nonato, paróquia de VárzeaAlegre, cidade onde sempre viveu. Em troca, recebia indulgências plenas, espécie de bônus ou previdência privada que a Igreja de Roma vendia, prometendo a salvação da alma. A Igreja Católica sempre manipulou o imaginário em torno da morte, prometendo uma outra vida além-túmulo. Céu, purgatório ou inferno seria o irremediável paradeiro de todos nós, dependendo da nossa trajetória terrena. Já nascíamos com a mancha do pecado original, praticado pelos avós ancestrais Adão e Eva, e ao longo da existência não fazíamos mais do que acumular pecados. Essa tirania da culpa era exercida com mão de ferro pela Igreja, e o seu clero intermediava as nossas súplicas a Deus, atribuindo-se o direito de nos absolver ou condenar. A liberdade individual tornou-se um fardo insuportável, cabendo à Igreja conduzir-nos como rebanho, jugulado ao seu poder absoluto. Com o passar do tempo, Roma e subsidiárias deixaram de se ocupar apenas das questões espirituais, cuidando em ampliar o seu poderio econômico pela força e pelo terror. A exemplo do terrorismo moderno sustentado pela propaganda, como no stalinismo e no nazismo, a Igreja Católica mantinha os seus fiéis submissos e tutelados, com medo de queimarem no inferno ou nas fogueiras da Inquisição. Há pouco mais de dois séculos todo esse poder entrou em declínio. Nietzsche declarou a morte de Deus,

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Fellini anunciou o fim da mitologia cristã e Dostoievski escreveu a fábula do Grande Inquisidor. Na fábula, Cristo volta à Terra, ao seio da Igreja por ele fundada, retoma as suas pregações no meio do povo, é reconhecido e aprisionado pela Inquisição. O Grande Inquisidor visita o prisioneiro numa masmorra de Sevilha e pergunta por que ele retornou, conforme prometera. As suas mensagens já haviam causado suficiente mal. Custara muito à Igreja assumir o destino dos homens, desgovernados e sem rumo com as promessas do Evangelho. Ao final, condena Cristo a ser queimado em praça pública por crime de heresia. E garante que as mesmas pessoas que antes o adoravam, carregariam achas de lenha para a sua fogueira. Escrita por Dostoievski no final do século 19, essa parábola moderna ilustra como o cristianismo se afastou de Cristo, a ponto de não reconhecê-lo nem aceitá-lo. Ou pior ainda, condená-lo como herege. Tornou-se obsoleto o cristianismo primitivo, praticado na Roma imperialista pelos escravos reunidos nas catacumbas. Nascimento e Paixão, nos dias de hoje, permanecem como símbolos desprovidos de significado, ou estereótipos do consumo. O Cristo, único cristão verdadeiro, segundo Nietzsche, foi transformado em bezerro de ouro. Desapareceu a ética cristã, ou judaico-cristã, ou platônico-cristã e não vislumbramos com nitidez o que ocupará o seu lugar. A moral dos velhos patriarcas bíblicos, dos profetas, da lei mosaica com os seus dez mandamentos; os evangelhos e o elevado sentido de compaixão; a castidade, a obediência, a pobreza e a caridade são valores que se mantiveram por dois mil anos no Ocidente, transformaram-se, trans-


Reprodução

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Lamentação sobre o Cristo morto (têmpera sobre tela, 68x81cm), Andrea Mantegna, c. 1490, Pinacoteca di Brera, Milão

mutaram, e hoje representam peças de museu no hagiológio dos santos. Ainda faz sentido comemorar as festas cristãs do nosso calendário? Somos de verdade um país católico, ou apenas oficialmente? Em algum tempo da nossa história acreditamos verdadeiramente em Deus? Abominadas pelos comunistas como “ópio do povo” e cada vez mais próximas do modelo capitalista de consumo, as religiões se transformaram. Cuidaram em atualizar a sua linguagem, usando a mídia, o marketing, os apelos comerciais, as promessas de ganhos terrenos. Os evangélicos não vendem as indulgências plenas, mas praticam outros tipos de assalto. Todas as religiões falam menos em Deus e mais no homem. O Natal, a Paixão e os Dias Santificados são pretextos para consumo e libações alcoólicas. Nenhuma sociedade foi tão hedonista quanto somos agora. A moral se elasteceu e não ligamos para o remorso e a culpa. Já não seduzem as promessas do céu, nem aterrorizam as ameaças do inferno. As novas gerações nem sabem do que se trata. O cristianismo das igrejas católicas e evangélicas tornou-se social, epidérmico e descartável, pouco se ocupando dos cuidados da alma.

Mesmo diante de um quadro tão pessimista, da insanidade das religiões que geraram o Fundamentalismo Islâmico e o Santo Ofício, não podemos viver sem a prática dos rituais. Sem o culto ao sagrado, surgem sociedades de indivíduos psicóticos, em que os afetos foram abolidos e os valores éticos e morais proscritos. Por mais que a mitologia dos eventos religiosos tenha se diluído em ceias regadas a vinho, castanhas e perus, a permanência do rito é melhor que a sua ausência. Quando surgiram as primeiras comunidades agrárias, as celebrações se incorporaram à rotina de vida do homem, como forma de marcar as estações, a passagem do tempo, o nascimento e a morte. O calendário cristão assimilou tradições arcaicas, de todos os povos do planeta. E o vinho sempre esteve presente nessas celebrações, a ponto de Cristo e Dioniso se confundirem num único mito. Meu avô, enquanto viveu, nunca deixou de fazer as suas doações para a festa de São Raimundo Nonato. Talvez, ele estivesse pensando na salvação da alma. Ou apenas contribuindo para que fosse mantida uma ordem do mundo em que acreditava. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Continente janeiro 2004


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» 90 MÚSICA

Para gente pequena Selo para o público infantil investe em músicas que primam pelo humor e inteligência Quem nunca cantou “Sapo jururu/ Na beira do rio/ Quando o sapo grita, ô maninha!/ É que está com frio?” Ou então “Como pode o peixe vivo, viver fora d’água fria?” São músicas que foram cantadas e marcaram a infância de várias gerações, mas que, se dependesse da indústria cultural, seriam esquecidas e apagadas do imaginário infantil. No contra-ritmo da mediocridade musical para o público mirim, está a preciosa produção do selo Palavra Cantada, criado pelos músicos paulistas Paulo Tatit e Sandra Peres. Há dez anos eles vêm pesquisando, registrando, documentando e divulgando cantigas e parlendas marcadas na memória popular, como as do CD Cantigas de Roda, e lançando novidades, como o Mil Pássaros, com sete histórias de Ruth Rocha, contadas por ela; Canções Curiosas (Prêmio Sharp 98), com músicas como “Pindorama”, uma versão para o descobrimento do Brasil, ou a estória do rato que quer se casar com a lua, mas se casa com uma rata (!). Tem também o Nação Erê, gravação do grupo pernambucano homônimo de maracatu, formado apenas por crianças que criam e tocam suas próprias canções; o Canções de Brincar (também vencedor do Prêmio Sharp 97), que trabalha, de forma lúdica, a construção dos saberes formais e o desenvolvimento de competências fundamentais para a vida; Noite Feliz; Canções de Ninar e Canções do Brasil, um CD-livro com 116 páginas que faz uma poética viagem musical por todos os Estados do país, registrando as mais diversas manifestações infantis. Aqui verificamos a enorme diversidade de ritmos, letras, melodias, sotaques e maneiras de cantar das crianças brasileiras. Meu Neném, recém-lançado, cria um ambiente envolvente: as kalimbas africanas e os diversos tipos de chocalhos, coletados na Alemanha, Cuba, Namíbia, Zimbabue, México e com os povos indígenas do Brasil, produzem sons delicados e estimulam a afetividade e o encontro entre pais e filhos. O selo Palavra Cantada é uma prova de que há vida inteligente no mercado fonográfico para crianças: contém a melhor música que você pode oferecer às da sua família.

Meu Neném, Canções Curiosas, Canções de Brincar, Mil Pássaros, Noite Feliz, Canções de Ninar, Nação Erê, Cantigas de Roda, preço médio R$ 22,00. Canções do Brasil, preço médio R$ 30,00.

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Um cavaco, um pandeiro e um tamborim

Fotos: Divulgação

Como diz Paulinho da Viola, “a rapaziada está sentindo falta de um cavaco, um pandeiro e um tamborim.” Mas já chegou a oportunidade de matar as saudades dos instrumentos que dão contornos ao samba carioca: quem não assistiu ao documentário Meu Tempo é Hoje, de Isabel Jaguaribe, que narra a vida do cantor, compositor e instrumentista (além de marceneiro); suas influências musicais, mestres e amigos, pode experimentar um revival com a trilha sonora do filme, lançada pela Biscoito Fino. O CD parece projetar imagens: é fácil ver Paulinho rodeado pela Velha Guarda da Portela, reverente ao sambista, ou a expressão de Zeca Pagodinho quando desabafa um “Só no cinema” dolente, ambíguo. A aventura vídeomusical oferece outros nobres duetos: Elton Medeiros, com sua incendiária caixinha de fósforos; Marisa Monte e Nó em Pingo D’água. Assim como o documentário, o CD delineia o Paulinho da Viola sábio, discreto e elegante, consciente de si e da contribuição que dá à história da música brasileira. Parafraseando Riachão, “O samba bem que merecia ter ministério algum dia/ então seria ministro Paulo César Batista Faria.” Meu Tempo é Hoje, Paulinho da Viola, Biscoito Fino, preço médio R$ 25,00.


Os bambas da flauta

Quem tem medo da Dona Zica?

A história da flauta brasileira, que começou a ser escrita por Pattápio Silva e Joaquim Callado no século 19, continua no CD Os Bambas da Flauta, da Kuarup. Com um repertório e interpretação primorosos, o disco reúne onze dos melhores solistas brasileiros, como Altamiro Carrilho, o maior virtuose vivo da flauta brasileira, Copinha, Carlos Poyares, Alexandre Maionese, entre outros “bambas” que abusam de seus talentos para celebrar, não só o mais antigo instrumento musical do mundo, mas também o centenário de Benedito Lacerda, que em 2003 faria 100 anos de nascido, o seu parceiro Pixinguinha e o próprio Altamiro. O CD promove uma deliciosa e alegre viagem musical: vai desde a bela e leve execução do clássico “Salomé” ao pife pernambucano (primo rústico da flauta), com “Carááá...caí!!!”, dando guinadas de estilo: passa pelo samba, baião contemporâneo, choro, polcas vertiginosas – uma delas, “Aleluia”, foi composta e é tocada no flautim por Altamiro –, música infantil, aqui tocada por Andréa Ernest Dias, e vai até o encontro antológico entre Carrilho e o saudoso Chiquinho do Acordeon, em “Carinhoso”, de Pixinguinha. Os Bambas engrena uma cadeia de músicas espontâneas, que afirmam o espírito criativo e brincalhão brasileiro.

Zica, na gíria paulista, é a diminuição de “ziquizira’, conceito de definição complexa, mas que pode ser traduzido como azar, olho grande, maldição. Mas DonaZica, banda recém-estreada em São Paulo, parece percorrer caminhos afortunados (qualquer relação com Dona Zica da Mangueira é bemvinda para o grupo). Capitaneada por Iara Rennó e Anelis Assumpção (filha de Itamar Assumpção) a banda conta com uma forte, e bela, presença feminina. Seus oito talentosos e criativos integrantes construíram um trabalho forte, instigante e original, que combina poesia direta com entradas sonoras ricas e inteligentes. No CD Composição DonaZica executa um repertório autoral e quase inédito, tecendo uma sonoridade própria com os fios do samba, rock, salsa, carimbó, drum’n bass e maracatu. As homenagens e citações ficam por conta das faixas “O fio da comunicação”, que abre com “Breu da noite”, de Itamar, “Jabá”, que inclui trecho de “Deixa isso pra lá”, de Alberto Paz e Edson Menezes. Já em “Quem quiser”, a vocalista emenda em “Quem quiser encontrar o amor”, de Geraldo Vandré e Carlos Lyra. Todo o trabalho está sob a atmosfera da Vanguarda Paulista, do Tropicalismo e do Modernismo de Mário de Andrade

Os Bambas da Flauta, Kuarup, preço médio R$ 18,00.

Composição, DonaZica, Independente, preço médio R$ 21,00.

Chorões pernambucanos Mundo livre

Lado B

A chegada das novas gerações à tocata do choro em Pernambuco confirma a sua reinvenção, impulsionada pelo catalisador do ritmo, aqui, professor Marco César, fundador do grupo Sexteto Capibaribe, que acaba de lançar o primeiro disco, Choros Pernambucanos. O CD é uma fotografia musical: com choros inéditos, registra, com uma levada própria, o rio Capibaribe, o sol, o mar, o alto de Olinda. São choros “chorados”, que desvelam a brincadeira, o improviso, o espírito e a maneira de tocar bem pernambucanos.

Ainda no bojo das comemorações dos dez anos do Manguebit, Mundo Livre S/A lança seu novo álbum, O Outro Mundo de Manuela Rosário. Sob a moldura do rock, do samba e das baladas melódicas, a banda lança um olhar crítico sobre as contradições brasileiras, como nas músicas “O Outro Mundo de Xicão Xukuru”, sobre o assassinato do líder indígena, ou “CNFS”, um groove sutilmente mixado com uma entrevista com Noam Chomsky, feita por Zeroquatro num assentamento do MST no Fórum Social Mundial.

Originalidade e inovação definem o CD Interior, de Márcio Faraco. Todo gravado e finalizado na França, o álbum tem um sotaque rítmico bem local: são baiões, bossas com matizes jazzísticos, xotes – e rock entremeado pela cadência do xote, onde é percebida a presença de Lenine –, sambas, até umas baladas impregnadas de poesia e paixão. Interior traz ainda uma novidade para o Brasil: é o primeiro CD com lado B. Um bônus com oito faixas acústicas, que podem ser ouvidas acionando o rewind na faixa um.

Choros Pernambucanos, Sexteto Capibaribe, Independente, preço médio R$ 15,00.

O Outro Mundo de Manuela Rosário, Mundo Livre S/A, Candeeiro Records/Trama, preço médio R$ 25,00.

Interior, Márcio Faraco, Biscoito Fino, preço médio R$ 25,00. Continente janeiro 2004

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MÚSICA 91 »


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» 92 TEATRO

O Sertão iluminado Grial apresenta espetáculo inédito no Janeiro de Grandes Espetáculos Lugar de sonhos e desejos, vida e morte, luta, sobrevivência e religiosidade, o Sertão é resumo, e antítese, do mundo. É também a inspiração para o novo espetáculo do Grupo Grial de Dança, O Pasto Iluminado, montado por Maria Paula Costa Rego durante uma “residência” artística em Salvador, no Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, e que será apresentado pela primeira vez no Recife durante o Janeiro de Grandes Espetáculos. O Pasto Iluminado não é a única novidade do evento, que se caracteriza por reunir grande parte da produção artística que esteve em cartaz na cidade e reapresentá-la a preços populares. Comemorando 10 anos de realização, o Janeiro traz para os palcos do Recife a Mostra Nova Cena Pernambucana, que reúne novos diretores teatrais e coreógrafos, e algumas produções de fora do Estado. Por quase um mês, atores, críticos, produtores e encenadores das artes cênicas de todo o país vão discutir o pensar e o fazer cênico. A programação também inclui oficinas, ciclo de palestras, debates, leituras dramáticas e exposição fotográfica.

Foto: Divulgação

Janeiro de Grandes Espetáculos – de 07 de janeiro a 03 de fevereiro de 2004, nos Teatros do Parque, de Santa Isabel, Armazém, Arraial e Hermilo Borba Filho. Os ingressos custarão entre R$ 10,00 e R$ 5,00 (artistas, estudantes e idosos). Informações: (81) 34233186 ou 34218456.

Programação Teatro de Santa Isabel – Pça da República, s/n, Centro. Tel. (81) 32241020 Auto da Compadecida, 08/01, às 20h; Um Piano à Luz da Lua, 09 /01, às 20h; Agnes de Deus, 10/01, às 20h; Um Livro de Fábulas, 11/01, às 20h; Raízes 1: Poemas Palestinos e Cantos Safarditas, 15 /01, às 20h; Daniela Malta, Academia Fátima Freitas, Balé Afro Majê Mole, Mimulus Cia. de Dança, Cia Mário Nascimento (MG) e Criart Cia. De Dança, 16/01, 20h; Mimulus Cia. de Dança (MG) e Balé Popular do Recife, 17/01, às 20h; Coração de Mel, 18/01, às 16h30; Maria e Duran, 22/01, às 20h; Zambo, do Grupo Experimental de Dança, 23/01, às 20h; Reinaldo ao vivo, com o ator Reinaldo de Oliveira, 24/01, às 20h; Histórias do Pajé, 25/01, às 16h30; O Pasto Iluminado, 29 e 30/01, às 20h; Um Sábado em 30, 31/01, às 20h; A Terra dos Meninos Pelados, 01/02, às 16h30. Teatro Armazém – Armazém 14, Bairro do Recife, Tel. 3424 5613 Muito Barulho por Nada, Cia. Teatro Mosaico, 09/01, às 20h; Fernando e Isaura, 10 e 11/01, às 20h; A-ma-la (SP), 16/01, às 20h; A Caravana da Ilusão, 17 e 18/01, 20h; Anjos da Noite, 23/01, às 20h; A.M.I.G.A.S., 24 e 25/01, às 20h; A Bicicleta do Condenado, 30/01, às 20h; Joguete (BA), 31/01 e 01/02, às 20h. Teatro do Parque – Rua do Hospício, 81, Boa Vista, Tel. (81) 34236044 Carolemos Dançarte, Aria espaço de dança e arte, Daruê MaContinente janeiro 2004

lungo, Icógnum Cia. de Dança e Cia. Forrobodó de Dança Tradicional, 09/01, às 20h; A Feira, 10/01, às 20h; Apresentação das principais escolas de dança do Recife, 11/01, às 20h; Sou Feio e Moro Longe, 16/01, às 20h; Caboré: a Ópera da Moça Feia (AL), 17 e 18/01, às 20h; As Malditas, 23/01, às 20h; Fome, com Cia. Ballet de Londrina (PR), 24/01, às 20h; Stúdio de Danças, Espaço Experimental, Cia. Jaime Arôxa, Dante Cia. de Dança e Teatro, Cia. de Expressão Popular, Cia. Ballet de Londrina (PR) e Balé Brasílica; 25/01, às 20h; Visse Menino!, 30/01, às 20h; Apresentação das principais escolas de dança do Recife, Bacnaré e Duda Braz (SP), 31/01, às 20h; Duda Braz (SP) e apresentação das principais escolas de dança do Recife, 01/02, às 20h. Teatro Hermilo Borba Filho – Cais do Apolo, Recife Antigo, Tel. (81)3224 1114 Mostra Nova Cena Pernambucana: O Mistério das Figuras de Barro, de Rodrigo Dourado, 10/01, às 18h30; O Ano do Coelho, 11/01, às 18h30; O Terceiro Dia, 17/01, às 18h30; O Mistério das Figuras de Barro, de André Cavendish, 17/01, às 18h30; O Mistério das Figuras de Barro, de Marcus Rodrigues, 24/01, às 18h30; Noturno, 25/01, às 18h30; Mostra Novíssimos Coreógrafos, 30/01, às 18h30; Versos do Nós, 31/01, às 18h30; Constança, 01/02, às 18h30. Teatro Arraial – Rua da Aurora, 457, Boa Vista, Tel. (81) 3423 7075 Leituras Dramatizadas dos textos do dramaturgo Luiz Felipe Botelho, dias 14, 21 e 28 de janeiro, às 20h.


As cidades de Câmara Pintor expõe o seu olhar sobre as cidades do Recife e Olinda

Em 1987, o artista plástico João Câmara lançou o álbum de litografias O Olho de Meu Pai Sobre a Cidade, em que mostrava o Recife sob a visão de um grande leitor de James Joyce, particularmente o romance Ulisses. Era, portanto, uma cidade mítica, vista à maneira como o escritor irlandês via Dublin. Nesta mesma época, o pintor já estava começando a maturar a série Duas Cidades, em que retoma o tema, acrescentando a cidade-irmã do Recife, Olinda. A série completa a trilogia iniciada com Cenas da Vida Brasileira (de caráter político, retrata a Era Vargas) e Dez Casos de Amor e Uma Pintura de Câmara (análise do erotismo e do corpo feminino). Composta de 52 peças, todas em grandes formatos, a série

explora a paisagem, personagens, prédios, monumentos e detalhes do Recife e Olinda, alterando o olhar realista pelo viés psicológico e mítico. É como se fossem as cidades que existem dentro do artista e das quais as que estão fora são apenas referências. A mostra impressiona por sua monumentalidade, particularmente a tela O Rio, pintura acrescida de objetos pintados, e as que retratam os Zepelins, O Dia e A Noite, bem como o objeto que reproduz o Farol de Olinda. E também pela exibição de maestria e virtuosismo do artista na utilização das cores e do pincel. A exposição, que já foi vista no Museu de Nacional Belas Artes, no Rio de Janeiro, e na Pinacoteca de São Paulo, está no novo anexo do Museu do Estado de Pernambuco, o Espaço Cícero Dias, que também está exibindo cerca de 100 obras do acervo daquela instituição. Entre as peças estão objetos artesanais indígenas, móveis antigos, objetos encontrados em escavações arqueológicas, esculturas, gravuras, desenhos e pinturas, com destaque para quadros de Frans Post, Cícero Dias e Telles Júnior (foto abaixo).

Museu do Estado, de terça a sexta, das 10 às 17 horas, sábados e domingos, das 12 às 17 horas. Avenida Rui Barbosa, 860, Graças, fone: 3427.0766.

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ARTES PLÁSTICAS 93 »


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» 94 LIVROS

Caixa de ressonância Edusp lança coletânea de documentos essenciais do Movimento Modernista É até truísmo dizer que, depois daquela semana de fevereiro de 1922, o Brasil nunca mais foi o mesmo (em termos culturais, claro). Naqueles dias, escritores, músicos, pintores – paulistas principalmente – concluíam que não éramos europeus, mas brasilianos antropófagos. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Paulo Prado, Anita Malfatti, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, e tantos outros, puseram por terra, na Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, os valores estéticos vigentes (importados). Depois, no Manifesto Antropófago, Oswald proclamaria: “Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. (...) Queremos a revolução Carahiba. Maior que a revolução Francesa”. Passadas mais de oito décadas, o terremoto cultural virou história e, nessa perspectiva, a Edusp, junto com a Editora da UFMG e a Imprensa Oficial de SP, editou a Caixa Modernista, um relicário contendo dois livros fundamentais – Paulicéia Desvairada, de Mário, e Pau Brasil, de Oswald, em edição fac-similar – e ainda um disco, 22 cartões-postais com fotos e reproduções de obras essenciais do período, o nº 1 da Revista de Antropofagia (de 1928) e reproduções de catálogos e programas. Organizada pelo professor Jorge Schwartz, a caixa é definida como “um museu portátil”. Museu vivo e valioso para os interessados em literatura, história literária, estética, modernismo, música e... Brasil. (HF)

Caixa Modernista – Coletânea de objetos – Edusp, UFMG, Imprensa Oficial - SP, R$ 150,00.

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O rosto da Rússia O escritor norte-americano John Steinbeck estava entediado num bar do Hotel Bedford, quando entra o fotógrafo Robert Capa, “com uma aparência desconsolada”. Era 1947 e o namoro entre EUA e URSS, durante a guerra contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), já acabara. Era o começo da Guerra Fria. E o que incomodava os dois era a manipulação das notícias que estava fazendo dos russos um povo de comunistas vis e ameaçadores. Nascia ali o projeto do livro Um Diário Russo, uma visita à União Soviética visando revelar o que pensava e sentia, realmente, o povo russo. Capa fotografava pessoas, não acontecimentos. Foi esse tipo de abordagem, centrado mais no personagem do que no fato, que fez a fama do fotógrafo. Também sentia solidariedade aos desvalidos e ojeriza ao autoritarismo de qualquer espécie. Tal postura casava-se perfeitamente com a de Steinbeck, cujos livros sempre estavam focados na gente comum. Nos dois vicejava um forte respeito pela dignidade humana, tanto mais necessária quanto mais fosse negada. Numa narrativa ora divertida ora emocionada, eles relataram e fotografaram o que viram. O resultado é um misto de grande reportagem e diário de viagem que se lê deleitosamente. Ao final, tanto a Rússia heróica da Segunda Guerra quanto a Rússia ameaçadora da Guerra Fria são substituídas pelo que mais interessa: o rosto humano de seus habitantes, no seu dia-a-dia de trabalho, religiosidade e festas, alheio às intrigas de polí- Um diário russo – John ticos e militares. (MP) Steinbeck e Robert Capa, Cosac & Naify, 280 págs., R$ 89,00.


Dicionário inusitado

Bom relançamento

Poeta inquieto

Filho de um russo com uma alemã, paulistano radicado no Recife, Igor Rafailov certa vez ficou intrigado com uma palavra que viu na televisão: “partenofobia”. Foi procurar no dicionário Aurélio o significado da palavra e não o encontrou. Recorreu então à biblioteca de uma universidade e finalmente descobriu o que significava: “fobia de virgens ou meninas adolescentes”. Começava ali a germinar a idéia – que teve como resultado um dicionário de fobias, publicação até então inédita em português. O livro traz também a criação dos nomes de fobias até então não-catalogadas, como “sociourinofobia”, que significa fobia de urinar em público. A publicação não interessa apenas a profissionais de saúde, podendo servir a quem trabalha com literatura.

Através da narrativa da história de uma eleição num pequeno lugarejo perdido nos confins do interior brasileiro, Mário Palmério traça, em Vila dos Confins, um painel da vida no sertão e a luta do povo para superar os interesses políticos de quem quer controlar seu destino. Publicado pela primeira vez em 1956, o romance ganha nova edição, dentro do novo projeto da José Olympio Editora que, adquirida pelo Grupo Editorial Record, vem resgatando clássicos da literatura brasileira que constam de seu catálogo, mas que não eram mais encontrados nas livrarias. Também estão sendo relançados Uma Mulher Vestida de Sol, de Ariano Suassuna, Os Corumbas, de Amando Fontes, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo.

O poeta Félix de Athayde passou a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro. Daí muita gente não saber que ele é pernambucano, e pernambucano apaixonado por Olinda, cidade que não cansou de cantar em seus poemas. Agora reunidos num volume, mostram que, apesar de muito amigo de João Cabral de Melo Neto, Félix soube escapar à influência do outro, exercendo a poesia com uma liberdade admirável. Incursiona pelo cordel, pelo poemaconcreto, pelo poema-práxis, pela crítica política e social, pela poesia erótica ou existencial, pratica o poema-minuto, o dístico, o haicai, a quadra, o soneto, envereda pelo texto longo em versos livres, utiliza a redondilha, as rimas soantes, a gíria e o palavrão.

Dicionário Igor de Fobias – Igor Rafailov, www.livrorapido.com.br, 160 págs., R$ 25,00.

Vila dos Confins – Mário Palmério, José Olympio Editora, 294 págs., R$ 25,00.

Poemas reunidos – Félix de Athayde, Editora Nova Fronteira, 160 págs., R$ 20,00.

Nova crítica

Humor e psicanálise

África em discussão

Nelson de Oliveira é romancista, contista premiado e ensaísta denso e claro. Em [Verdades Provisórias] – Anseios Crípticos produz um sopro de renovação na crítica nacional, revelando-se um pensador maduro, capaz de praticar a proeza de enxergar a floresta, mesmo dentro dela. Nestes 12 ensaios, aborda da demolição do absoluto ao papel da própria crítica, do vernáculo ao valor da literatura. O manifesto do autor pode estar resumido neste trecho: “Por puro comodismo, ninguém está disposto a questionar a validade dos autores canonizados, ninguém está com ânimo de ir contra a corrente. Por que ir contra a corrente? Pelo simples prazer de verificar se os compêndios de literatura estão mesmo com a razão”.

Na nossa era de melancolia, violência e depressão, o humor, paradoxalmente, ocupa um lugar de destaque, que se estende da política à publicidade, das artes às relações interpessoais. Daniel Kuperman, nessa obra originalmente produzida como tese de doutorado, explora o problema do humor nos universos metapsicológico (erotismo, prazer e ilusão), cultural (chistes e piadas) e clínico (questionando o entendimento do que é psicanalisar). E resgata dimensões da vida pouco abordadas em trabalhos de rigor, como a alegria de existir, o lúdico e o dom de criar. Apesar da densidade acadêmica, é capaz de despertar o interesse do mais amplo círculo de leitores.

Obra ao mesmo tempo didática e de referência. Nela, o africanista John Thornton, da Universidade de Boston, debruça-se sobre a história do continente e suas relações com a Europa e América, no escopo de uma visão atlântica, em que a economia, a cultura e a interação fornecem uma visão integrada, no marco teórico aberto pelo historiador Fernand Braudel. Questiona abordagens historiográficas difundidas e enfrenta, com originalidade e coragem, temas espinhosos, como o eurocentrismo, a escravidão e as diferenças de estágios de desenvolvimento, para concluir que a participação dos africanos no mundo atlântico – de um lado e de outro do oceano – foi muito mais ativa do que se proclama..

Ousar Rir – Humor, Criação e Psicanálise – Daniel Kuperman, Civilização Brasileira, 383 págs., R$ 40,00.

A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico – 1400 - 1800 – John Thornton, Editora Campus, 436 págs., R$ 69,00.

[Verdades Provisórias] – Anseios Crípticos – Nelson de Oliveira, Escrituras, 208 págs., R$ 28,00.

Continente janeiro 2004

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Só sei que foi assim... Tudo que fica para a história é dívida que nunca se paga. A curiosidade não mata mas maltrata

N

inguém pára pra pensar no que foi verdade ou não nos fatos que são anunciados ou mostrados nos noticiários jornalísticos. Apenas acredita passivamente. Os acontecimentos são explosivos, por isso tornam-se verdadeiros, às vezes pelo resto de nossas vidas. Não quero me referir à ficção das leituras de As Aventuras de Pinóquio, de Alice no País das Maravilhas, de Carrol, dos centeios daquele jovem que os apanhava, dos cães de Baskervilles, nem das cidadelas arcabuzadas de Cronin. Todo mundo se apega a toda e qualquer informação, seja pelo rádio, jornal ou televisão, quando não se prefere o boca-a-boca do povo nas esquinas e quinas dos dominós ou das sinucas “chulacas” das palhoças de chambaris e sarapatéis. Tudo que fica para a história é dívida que nunca se paga. A curiosidade não mata mas maltrata. Que acham, caros leitores, de enveredarmos por um teste intrigante? Hitler suicidou-se mesmo ou não? Tem monstro no Lago Ness? Será que o homem chegou e pisou realmente na Lua? A televisão mostrou, dizem, ao vivo, em 1969, e encantou os terrestres com tal proeza – Neil Armstrong deu um pulo para a fama do homem e, assim, um pequeno grande passo para a humanidade. Por que nunca mais voltaram lá, construíram uma filial da Nasa em solo lunar e dali alçaram outros vôos em mais descobertas planetárias? Não precisariam, por certo, da estação MIR pairando no espaço, não é verdade? Os homenzinhos, verdes ou não, vindos do espaço, baixaram suas ogivas interplanetárias para as bandas dos desertos de Roxwell, foram capturados, examinados por PhDs cientistas, energizados e operados por exigentes médicos – experts da Nasa – e foi tudo que a gente sabe. Tal os vistos e denunciados em Varginha. O Papa João Paulo I – aquele risonho e bonachão, Continente janeiro 2004

que quaisquer povos do planeta aprenderam a admirar – morreu de um infarto ou talvez de alguma comida estragada? Nunca e jamais saberemos o que ocasionou seu passamento. Jânio Quadros renunciou à Presidência da República Federativa do Brasil e nenhum dos historiadores ou amigos íntimos e familiares, até hoje, explicou, com clareza insofismável, aquele ato estapafúrdio que paralisou a Nação. A morte do presidente John Kennedy virou livro, cinema, pesquisa dos especuladores dos furos jornalísticos dos célebres repórteres, freelancers e focas – anchos por um lugar na galeria dos Pulitzers e Oscars, au le soleil de Cannes ou às luas de noitadas às mesas dos cassinos de Las Vegas. E assim, quem matou o jovem presidente dos Estados Unidos da América? Quem mandou? Quem lucrou?... O nosso presidente Castelo Branco, então ex, morreu a bordo de um teco-teco explodido sob o sol caliente do Ceará, do Sobral às serras do Baturité – falam que o jatinho da Força Aérea Brasileira, em testes, passara bem juntinho do avião em que ele estava, provocando uma desestabilização dos flaps e lemes. Como foi mesmo? Tal o Chicó de Ariano da compadecida de todos os autos – “Só sei que foi assim”. Seu substituto, o general Costa e Silva, teve um “piticó” – que noticiaram “um derrame de repente” – todavia, por conseguinte, forçou um triunvirato de generais cascas grossas, que resultou no Médici, reforçando uma repressão sem igual no Brasil. E então?... Aí está uma boa reflexão para os meus renitentes leitores! E depois vêm os elitistas de plantão, ou não, dar boasvindas ao combate à fome, pregado pelo presidente eleito Lula, de cá, fingidos boêmios das eras de incertezas das inflações, taxações e coisa e tal. A incerteza vem de muito, muito longe. • Rivaldo Paiva é escritor.




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