Continente #038 - Picasso no Brasil

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Foto: Divulgação

EDITORIAL

Picasso em retrospectiva

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m dos maiores artistas do século 20, Pablo Picasso, tem sua maior retrospectiva, na América Latina, acontecendo até o início de maio no Pavilhão da Oca, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. São 125 obras que abarcam sua produção, desde a adolescência até a sua morte aos 92 anos incompletos, vindas do Museu Picasso, de Paris. Sua vida, sua obra e suas mulheres são o tema principal desta edição que destaca também, como matéria especial, os carnavais do Brasil e do mundo. Embora haja controvérsias sobre as origens exatas do Carnaval, pode-se considerar que todas as festas celebrativas que acompanham a humanidade, desde seus primórdios, são, de algum modo, prenúncios desta festança em que a ordem máxima é virar o mundo pelo avesso: pobres se fantasiam de reis, ricaços vão a bailes vestidos de mendigos, homens colocam perucas, saias, “seios”, saltos altos e batom, políticos são satirizados, poderosos são ridicularizados e as pessoas entram num saudável clima de alegria, irreverência e descontração. Entretanto, seguindo as características culturais de cada local, a folia ganha contornos diferentes. Enquan-

to em Pernambuco reina a diversidade, com a manifestação de blocos, troças, nações de maracatu, caboclinhos, papangus, la ursas e todo tipo de caracterizações, às vezes até surrealistas, saídas da imaginação popular, na Bahia prevalecem os cortejos atrás do trio elétrico que – segundo pesquisadores – nasceu da passagem do Clube Vassourinhas de Pernambuco pela capital baiana; enquanto que no Rio de Janeiro impera o desfile das Escolas de Samba, sob horários e critérios rígidos, num Carnaval mais de espetáculo para se ver do que para se brincar. Mas a festa carnavalesca não é privilégio brasileiro. Pelo menos dois carnavais, um na Europa e outro nos Estados Unidos, conseguem atrair um grande público e manter – cada um a seu modo – as características do mundo pelo avesso típicas do Carnaval. O Carnaval de Veneza, com suas máscaras sofisticadas, e o Mardi Gras de Nova Orleans, com seus carros alegóricos. Frenéticas, belas, regradas ou totalmente anarquizadas, as festas de Carnaval formam um fenômeno único: um período com data marcada para começar e data marcada para findar, em que a ordem é subverter a ordem do mundo. Continente fevereiro 2004


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CONTEÚDO Fotos: Divulgação

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Dogville: humilhação e vingança

Retrospectiva de Picasso

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CONVERSA

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REGISTRO 54 Norberto Bobbio, o pensamento autônomo de um

08 Santiago Kovadloff relaciona filosofia com cotidiano

socialista »

COMPORTAMENTO 12 Argentinos vão às livrarias, apesar da crise

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ESPECIAL 56 O Carnaval em Veneza, Nova Orleans, Pernambuco,

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LITERATURA

Bahia e Rio

14 Poeta argentino tem antologia lançada em português Escritora adolescente choca os franceses O romance escrito no cárcere pelo revolucionário Bukharin

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68 Cenas, expressões e gestos de um Carnaval tranqüilo »

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FOTOGRAFIA

NARRATIVA

MÚSICA 78 As afinidades sonoras entre o Brasil e as Ilhas de

24 A passagem incógnita de Francis F. Coppola pelo

Cabo Verde

Recife »

CAPA

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84 Dramaturgia de Joaquim Cardozo reinterpretada

32 A maior exposição retrospectiva de Pablo Picasso no Brasil

TEATRO

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AGENDA 92 Livros e discos em tempo de Carnaval

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CINEMA 44 Em Tiresia, Bertrand Bonello aborda o terceiro sexo Lars Von Trier mostra uma vida de cachorro nos EUA

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Agenda atualizada semanalmente no www.continentemulticultural.com.br


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Reprodução

Foto: Acervo Instituto de Cultura Brasil-Itália/Flávio Lamenha

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84 » O teatro de Joaquim Cardozo

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Carnavais do Brasil e do mundo

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Valores e consumo mudam com novo modelo de sociedade

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 28 WAS, um estranho arquipoeta brasileiro, e seus signos

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 42 Os sinais de esgotamento da arte conceitual

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 74 Carnaval, festa de sangue, suor e cerveja

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 77 Lição do hábito de ler horóscopo ao final do dia

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 O mundo de cabeça para baixo

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 A vagabundagem da arte de escrever

Continente fevereiro 2004


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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Luiz Carlos Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Alexandre Figueirôa, Daniel Piza, Fábio Araújo, Fernando Monteiro, Fernando Wanderley, Julio Ludermir, Kleber Mendonça Filho, Luciano Trigo, Luiz Carlos Monteiro, Maria Alice Amorim, Mariana Camarotti, Murilo Dália Matos, Rodrigo Petronio Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente fevereiro 2004

Fevereiro Ano 04 | 2004 Mulher, 1907, óleo sobre tela, 1,19 x 0,93 m. Beyeler Collection

Iraque, a batalha pelas mentes Parabéns, Fontenelle. Estilo preciso e elegante que soube selecionar e tratar, com eficaz discernimento, os problemas que advêm dos inevitáveis conflitos da “liberdade”, no poder “ser jornalista” ou, mesmo, no poder ser “gente” (edição 37). Quais as conseqüências de tumultos dessa espécie na percepção de analistas que, teoricamente, deveriam ser imparciais no uso da teórica “liberdade” de opinarem, descreverem, relatarem ou retratarem? Pergunta difícil de ser respondida, até para os rotineiros casos que maculam nossas emissoras de televisão, de rádio, nosso jornalismo e um marketing grosseiro que quase tudo deforma e torna vil... Edson Magalhães Bandeira de Mello, via e-mail Congratulações Tenho a satisfação de comunicar que o vereador Ricardo Toscano consignou, em ata dos trabalhos deste poder legislativo, votos de aplausos e congratulações para com a Revista Continente, editada pela Companhia Editora de Pernambuco, pela excelente qualidade de edição, pelo conteúdo e diversidade de assuntos, equiparando-se com as melhores revistas editadas em todo o mundo, enaltecendo o nome do nosso Estado. Valério Leite – 1º secretário da Câmara Municipal de Olinda Mulheres de Mossoró Parabenizamos esta Revista, todo o seu pessoal e colaboradores, pelo grande trabalho que vêm fazendo em prol da cultura nordestina e brasileira. Gostaríamos de retificar apenas uma informação, dada no belíssimo artigo Antes da Abolição (edição 34), assinado pelo jornalista Tobias Queiroz. Segundo os historiadores locais Francisco Fausto, Câmara Cascudo e Raimundo Soares de Brito, o Motim das Mulheres não foi devido à Guerra do Paraguai (1864 - 1870), mas devido à obrigatoriedade do Recrutamento para o Exército e a Armada, imposto pelo Governo Central, sob o decreto 5.881 de 27/02/1875, assinada pelo então Visconde do Rio Branco e colocada em prática pelo Duque de Caxias. Em setembro de 1875, as mulheres de Mossoró, comandadas por Ana Rodrigues Braga, mais conhecida por Ana Floriano, uniram-se, rasgando os editais, livros e listas dos sorteados/indicados para o recrutamento, que foram distribuídos nos diversos pontos da cidade (Igreja Matriz, jornal O Mossoroense e avenidas), portanto, cinco anos após o término da Guerra do Paraguai. Kydelmir Dantas, pesquisador e membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC


CARTAS Mestre Siba Linda, esta matéria sobre Siba e seu trabalho (edição 37)! Quem o conhece apenas nos palcos ou sambadas, cultiva, inevitavelmente, uma grande admiração pelo músico e poeta. Mas, quem o conhece como amigo, apaixona-se pela maneira sincera e bela com que ele encara a vida. Parabéns à Continente por este justo e merecido reconhecimento. Alessandra Leão, via e-mail

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Camilo Cavalcante 1 Grande cabra da peste, este Camilo. Ainda existe vida inteligente, sem precisar buscar com lanternas... Edgar Arruda, via e-mail Camilo Cavalcante 2 Achei fantástica a matéria, não apenas por informar o público pernambucano sobre fatos que ocorrem na cena cultural do Estado, mas também pelo incentivo dado aos grandes talentos que ainda não foram descobertos e apreciados por todos. Ana Teresa Guerra Barros, via e-mail Viva o pastoril Precisamos reagir ao modelo de sociedade pelo qual se optou desde os anos 60. O consumismo e a “globocolonização” propõem a universalização dos costumes, que se limitaram ao ato da compra, ao shopping. Urge a descoberta das raízes para fazer a diferença e tolerá-la. Necessito, enfim, alimentar o espírito com a minha terra (edição 36). Rêmulo Manuel Gomes, via e-mail Revolução cultural Realmente, a Universidade precisa de uma reestruturação (edição 35). Não só ela, mas todo o processo educativo do país. Sempre cito, como referência ao ensino, o exemplo dado pelo Japão após ser destruído por duas bombas: investimentos em educação e pesquisa. Esta é, e continua sendo, a fórmula do sucesso na educação. Arão de Azevedo, via e-mail Contra-ataque ao Império Achei a matéria de significativa importância e a visão do intelectual Toni Negri muito contundente e dentro da realidade atual (edição 36). Certos de que não podemos nos manter à margem do processo de globalização, é necessário convivermos com essa nova fase da economia, política e cultura, entretanto não basta pregarmos o antiamericanismo como responsável pelas deturpações mundiais – seja econômica e/ou social – mas as desigualdades promovidas por uma sociedade educada a reproduzir o poder dominante, distanciando o sonho de uma sociedade mais justa e solidária – “liberdade, igualdade e fraternidade”. Gleide Portela, via e-mail

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Os mistérios de Clarice 1 Finalmente houve a (re)descoberta de uma Clarice Lispector (edição 37)!!! O nascimento desta escritora, no cenário literário brasileiro dos anos 40, representou de certa forma, um verdadeiro choque social e cultural, pois no como dizia a própria autora: “Meus livros, infelizmente para mim, não são superlotados de fatos e, sim, da repercussão dos fatos nos indivíduos”. Daí, talvez, as centenas de artigos,ensaios e teses que rondam sua obra,tentando decifrar o perfil místico dessa escritora que provocou (e provoca) tanto fascínio para alguns e mal-estar e perplexidade para outros. É desse assombro constante do ato de narrar diante da realidade, sempre impossível e inatingível pela palavra, que a obra de Clarice irá tratar, convulsiva e compulsivamente. A sua principal temática era a busca do autoconhecimento, mas a identidade de si mesma permanecia-lhe obscura, e sua escrita parece ter sido sempre uma tentativa de encontrar-se. E perder-se novamente. Aliás, para entender sua obra, só através da telepatia, como outrora ela própria ressaltou. Porém, a referência maior deste descobrimento do significado da obra é explicitada pela própria autora: “Se eu tivesse que dar um título à minha vida e obra, seria: à procura da própria coisa”. Enfim, de forma sucinta, a presente Revista soube de forma esplêndida trazer para o leitor um pouco da preciosidade desta enigmática escritora. Parabéns, Continente Multicultural!!! E muito obrigada pelo valioso presente. Giselle Araújo, via e-mail Os mistérios de Clarice 2 Sou de Juiz de Fora, MG, e conheci a Revista de vocês em um blog da Internet, que citava essa edição, falando sobre Clarice Lispector. Sou admiradora da escritora e procuro comprar tudo o que sai em livros ou na imprensa a seu respeito. Interessei-me demais pela publicação de vocês. Juliana Gervason, via e-mail

O erro de Einstein Parabéns pela qualidade da Revista. Vi hoje um exemplar de edição do ano passado e a abri, pela Internet, para ver a edição de janeiro. Sucesso para vocês. O cientista português está abrindo a Ciência (edição 37). Antônio Gilberto Ribeiro – via e-mail Porta-voz Que bom usufruir de um “porta-voz”como Fausto Wollf que, em entrevista à Continente (edição 36), reforça a inutilidade de um diploma para os profissionais das artes e comunicações. Um artista não tem sua competência e/ou eficácia comprovadas por um curso universitário, mas por sua capacidade de tocar as pessoas através de seu ofício. Aqui mando minha sugestão à Continente: profissionais que atuaram na área das ciências humanas, sem formação acadêmica, e suas contribuições valiosas. Um assunto para uma longa discussão! Mariz, Recife/PE Longe do comum Quero apenas registrar minha satisfação, graças a vocês, em ter uma revista como a Continente para ler. Só lamento que as leis e o mercado impeçam que todo tipo de público tenha acesso. Pode parecer até utópico, pois nem interessaria aos semi-analfabetos, por exemplo, ou aos leitores da Contigo! Mas sonho dessa forma porque é um recorte da diferença que eu gostaria que fosse propagado. Os meios de comunicação de massa estão cheios de repetições de idéias, formas e linguagem. Saiu-se do comum, para oferecer espaço à informação, através de ricas entrevistas e matérias bastante apuradas. Relembro e aprendo mais sobre história, arte e cultura. Tornou-se um complemento à minha formação. E da mesma maneira que elogio, espero poder criticar, pois não estou com demagogias. Ana Valeria Carvalheira, via e-mail CORREÇÕES O autor da entrevista com Jurandir Freire Costa, no encarte Entrevistas (dezembro/ 2003), é o jornalista Fábio Lucas, e não Fábio Costa. A edição de janeiro/2004 da Continente corresponde ao número seqüencial 37.

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

Carpe diem As pessoas desejam viver seus melhores momentos, as incertezas podem fazê-los poucos

Q

uando sua filha, na faixa dos 25 anos e com um bom emprego, resolver partir para Florença, na Itália, para fazer um curso de história da arte e aprender um pouco de italiano sem dar ouvidos à sua idéia fixa de fazê-la pensar em poupança ou em comprar um apartamento, fique certo de que os tempos estão mudando. A forma de viver e encarar a vida pela juventude é o primeiro sinal da mudança no comportamento social. Queiram ou não os mais sábios, os jovens vêem primeiro e se envolvem da melhor forma no processo de mudança. E essa mudança vem vindo para fincar definitivamente (enquanto durar) suas estacas. A cultura do prazer, da qualidade de vida, do lazer, da saúde e da educação está modificando a ordem de prioridade do consumo das pessoas. Viver na simplicidade com qualidade de vida está, pouco a pouco, colocando por terra a filosofia da ostentação material como um fim em si mesma. As pessoas desejam, cada vez mais, viver seus melhores momentos, considerando que, nas condições atuais, as incertezas podem fazê-los poucos. De uma certa forma, esse comportamento mostra que os valores e o eixo do consumo estão mudando em função de um novo modelo de sociedade. Um modelo com menos estabilidade e por isso, talvez, até mais estressante, daí a necessidade das pessoas viverem mais e melhor os alumbramentos do dia a dia. Carpe diem. Seguindo esse curso, a economia, naturalmente, está se deslocando da produção de bens materiais para a produção de bens culturais. A nova cultura do prazer, envolvendo o corpo, as artes, a cultura e o lazer, entre outros, já demonstra a ocorrência de sinais da transição da sociedade industrial para a chamada sociedade pós-industrial. No Estado de Santa Catarina, por exemplo, mais de 60% dos empreendimentos não são mais industriais. São culturais. Dos festivais de música ao balé clássico, dos circuitos de gastronomia e lazer às oficinas e encontros de intelectuais. São atividades de uma nova modalidade econômica que gera, fora das fábricas, emprego e renda. Em Pernambuco, os empreendimentos de maior visibilidade, em 2003, foram relacionados

Ilus tra ção :

Mig uel

às artes e à cultura. Os empregos e os operários são de outra natureza. A empregabilidade está tomando novo rumo. Esta nova realidade mostra que as visões de mundo, com as quais nos pautamos no passado, são insuficientes para explicar o presente. As mudanças na tecnologia, relacionadas à informação e à informática, atingem as massas e a vida cotidiana das pessoas. Nesse sentido, a crise brasileira não é crise de Estado. É crise de ponto de vista sobre o modelo em que estamos assentados. É crise de visão do mundo globalizado. Diante desse paradoxo, é importante reconhecer que não é a realidade que está em crise e sim a nossa forma de compreendêla e de avaliá-la. Para o pensador italiano Domenico De Masi, defensor da cultura do ócio criativo, e para o físico Fritjof Capra, essa crise é resultado da difusão de novas tecnologias que eliminam o trabalho físico do homem e potencializam suas capacidades de memória, de inteligência e de criatividade e permitem transformar o tempo de trabalho em tempo livre, a ser dedicado às artes, à cultura, à qualidade de vida e ao lazer. De Masi lembra que 20% dos americanos, 23% dos italianos e 25% dos ingleses só trabalham um expediente e têm o resto do tempo livre para atividades sociais de cultura, lazer e trabalhos de voluntariado. É o paradigma da sociedade pós-industrial que bate à nossa porta e vai entrar, queiramos ou não. Com relação aos países em desenvolvimento e às classes menos favorecidas economicamente, o impacto de dificuldades certamente será muito mais gravoso. Os níveis de compreensão e de inserção nessa nova sociedade são precaríssimos e, só a educação e o tempo superarão os desafios de sua inclusão nesse novo modelo, para que, efetivamente, possam aproveitar o cotidiano da vida. • Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. Continente fevereiro 2004


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SANTIAGO KOVADLOFF

“A função da filosofia é salvar-nos da ideologia”


CONVERSA

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Um dos mais respeitados filósofos argentinos da atualidade, Santiago Kovadloff, autor de quatro livros (O Silêncio Primordial, O Irremediável, Sentido e Risco da Vida Cotidiana e Ensaios de Intimidade) que são sucesso de vendas, tem uma estreita relação com a língua portuguesa desde que passou parte da adolescência em São Paulo. Traduziu Fernando Pessoa, Machado de Assis, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Em sua biblioteca, montada com esmero no apartamento em que mora, no centro de Buenos Aires, um boneco, miniatura de Manuel Bandeira, entre os livros denuncia a admiração pelo poeta pernambucano, também já traduzido por ele. Aos 53 anos de idade, membro da Academia Argentina de Letras e articulista do jornal La Nación, Kovadloff discute, nesta entrevista, as questões filosóficas da contemporaneidade. Mariana Camarotti

Há espaço para a filosofia no mundo de hoje, um tempo em que a vida é tão imediata e os valores tão efêmeros? Tudo o que acontece nesse mundo acelerado é profundamente filosófico, isto é, uma matéria resultante de opiniões, crenças, e, nessa medida, resultante de uma matéria filosófica. E isso deve ser apreendido como reflexão. Os grandes conceitos da filosofia operam e agem com as experiências cotidianas. A filosofia é uma reflexão sobre a vida cotidiana e o que tem de comovente é isso precisamente. O homem é, em primeira instância, alguém pré-determinado por suas crenças, que são as que, necessariamente, esse homem presume ter. São as suas orientações diante das reflexões.

de cada um, uma criação filosófica. No nível mais espontâneo, a filosofia é a mais corriqueira das reflexões. Por exemplo, podemos refletir sobre o nosso tempo que passa depressa, que age sobre nós, que não sabemos o que é e nem aonde vai nos levar. Num nível mais elaborado, a filosofia é a capacidade de descobrir que podemos usar palavras, mas não sabemos o que é a linguagem que podemos criar, não sabemos as condições de possibilidade de criação. Temos identidade, mas não sabemos dizer qual é. A filosofia, em síntese, é o destino de interpretação que corre na nossa experiência, na nossa consciência.

É preciso dominar o pensamento, a imaginação, o poder de abstração? A mais alta imaginação é a do conceito. Ele, o conceito, é Qualquer um pode exercitar a filosofia? profundamente imaginativo, ao contrário do que se costuma Como? dizer. Também não se costuma dizer que a racionalidade é uma Antes de mais nada, filosofia é uma vocação, um expressão da imaginação. Mas eu acho que é assim, que a razão, chamado. E a resposta a esse chamado é, dentro dos limites na verdade, vem da imaginação, é uma conseqüência dela. Continente fevereiro 2004

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Os ensaios que você escreve são uma maneira de compartilhar a sua filosofia ou é apenas uma maneira de escrever críticas, desenvolver raciocínios? Ser ensaísta não foi uma eleição, é uma possibilidade. Fui, tenho sido e desejo sempre continuar sendo um ensaísta. É uma forma iminente que me toma a vocação de escrever. Em conseqüência, com esse gênero, eu desejo exprimir o meu ser, o que ele tem de carnal e espiritual, no que ele tem de loquacidade e espiritualidade. O que quero é me dar a conhecer nas minhas palavras. Dou intimidade e apreço ao leitor. Para mim, as idéias são acontecimentos biográficos.

Se a humanidade buscasse e respeitasse mais as diferenças, faria melhor o mundo de hoje, que vive em tantos conflitos movidos pelo capitalismo e pela religião? Não. Mais interessante poderia ser sim, mas não sei se melhor. Nós devemos, acredito, combater as ortodoxias, mas elas nunca são definitivamente derrotadas. O homem é um animal com medo e as ortodoxias lhe oferecem a ilusão de que tem a razão e não o medo.

“Nós devemos, acredito, combater as ortodoxias, mas elas nunca são definitivamente derrotadas. O homem é um animal com medo e as ortodoxias lhe oferecem a ilusão de que tem a razão, e não o medo”

Você acha que o leitor está preparado para abstrair-sse? Posso lhe responder pelo destino dos meus livros. Todos foram reeditados e alguns, traduzidos. O Silêncio Primordial tem três edições e dez mil exemplares vendidos. Dos outros, O Irremediável tem quatro mil exemplares. E os outros têm três edições cada. O Ensaios de Intimidade teve uma tiragem de quatro mil exemplares. Considero-me um escritor afortunado, com muitos leitores, que não devem ser procurados, mas que é sempre um prazer encontrá-los. É necessário que nos juntemos a pessoas que tenham valores diferentes dos nossos e tenhamos leituras também diferentes para que essas diferenças nos acrescentem e ajudem no exercício da filosofia? O que nós chamamos de próximo não é tão semelhante assim, e valorizar a diferença é valorizar o que o outro tem de único, singular, que não é repetível. Essa valorização significa que o outro não pode ser reduzido ao que nós acreditamos conhecer dele. Em conseqüência, amá-lo é também amar o que ele tem de inacessível para nós, o que ele tem de misterioso. Todo bom relacionamento com alguém é um relacionamento lúcido com a imponderabilidade do outro. Continente fevereiro 2004

Em seus ensaios, você costuma citar a sua biblioteca, seu fascínio pelos livros e sua ânsia pela leitura e pela releitura. Qual sua relação com a leitura? O tempo de leitura é um tempo de revelação. Há um antes e um depois de uma leitura cabal. Nelson Rodrigues, polêmico escritor e teatrólogo brasileiro, costumava chamar de idiotas os que cultivavam e exerciam a objetividade. O que você acha disso? Se a realidade não coincidir com as minhas palavras, pior para a realidade. Eu acho que a objetividade é um sonho do dogmatismo, principalmente naqueles terrenos em


CONVERSA 11 que se impõem valores. O semáforo em vermelho é um fato objetivo, mas a sua significação pode mudar. Por exemplo, se um suicida entender que essa luz vermelha está dizendo que ele pode se jogar na avenida... Somos objetivos nos campos e nas áreas práticas. Não somos nos campos e nas áreas que têm a ver com o sentido e o valor da vida. A filosofia evoluiu desde os gregos ou a base é a mesma? Não há evoluções na filosofia, há orientações. Cada época pode acreditar ter resolvido problemas que as anteriores não resolveram. Mas a função primordial da filosofia é salvar os problemas das soluções esquemáticas que as ideologias lhes impõem. Neste sentido, a filosofia desenvolvida desde os gregos parece ter sido a mesma.

ma sensibilidade metafísica. Certamente, uma sensibilidade que não é freqüente, um poeta excepcional que habitou a crise da identidade moderna como poucos outros fizeram. Você tem um livro chamado Sentido e Risco da Vida Cotidiana (lançado em 1998). Qual é o sentido e risco da vida cotidiana? O risco maior é a crença na objetividade, na naturalidade e na presunção de que a estabilidade está aí para sempre. O costume, o hábito. O sentido é nos oferecer a estabilidade mínima, isto é, a rotina, para podermos procurar a instabilidade mais inspirada.

O que você tem escrito e traduzido atualmente? Estou traduzindo a obra poética de Fernando Pessoa e Você é tradutor de grandes escritores da língua escrevendo um livro de ensaios líricos chamado O Crepúsportuguesa. Como é traduzir Fernando Pessoa? culo e a Aurora. Também estou preparando um livro de filoPessoa é um produtor de beleza e, para traduzi-lo, é sofia, cujo título é O Enigma do Sofrimento. preciso habitá-lo. Só devemos traduzir escritores cuja Já que você está escrevendo sobre a ligação do sofricompreensão é imprescindível para nós. O tradutor é um intérprete, no sentido musical da palavra. Executa o autor, mento com a filosofia, eu pergunto: a filosofia tem a ver com isto é, escuta-o e, ao mesmo tempo, o cria ou recria através a psicologia? de sua própria personalidade. Nesse aspecto, o tradutor é Não, ela tem a ver com a psicanálise. Mas há um abismo também um ator. entre filosofia e psicanálise, pois esta trata e age no pensamento do indivíduo, enquanto a filosofia tenta caracterizar Os textos de Fernando Pessoa costumam intrigar e os dilemas, questões próprias de uma atmosfera espiritual atrair leitores das mais diferentes culturas, países e idade. coletiva. Isso sem esquecer que toda enunciação filosófica é Ele desenvolvia pensamentos sobre a vida, o amor, o sempre profundamente pessoal. Quando escreve, o filósofo, desassossego. Você vê Pessoa também como um filósofo, o saiba ou não, faz uma autobiografia. • em certa maneira? Não, Pessoa não é um filósofo. É um homem com extreMariana Camarotti é jornalista.

“O que nós chamamos de próximo não é tão semelhante assim, e valorizar a diferença é valorizar o que o outro tem de único, singular, que não é repetível. Em conseqüência, amá-lo é também amar o que ele tem de inacessível para nós, o que ele tem de misterioso”

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COMPORTAMENTO

Livraria El Ateneo, 95 mil títulos, afluência de 3,5 mil pessoas por dia

Cenas de livrarias portenhas A crise abalou a indústria cultural na Argentina e, segundo alguns, houve um empobrecimento intelectual no país. Mas a leitura de obras densas continua a fazer parte da vida cotidiana das pessoas

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Meia-noite de um sábado de seis graus no inverno de Buenos Aires e um senhor veste camisa de manga longa e gravata para atender em sua banca de revista aos clientes que, apesar do frio e da hora, compram o que ler. Ao lado de jornais cuidadosamente arrumados, títulos da literatura clássica mundial – como Divina Comédia, de Dante Alighieri, e Anna Karenina, de Leon Tolstoi – estão à venda nas bancas por R$ 6 a R$ 10, em publicações promocionais. Livrarias do Centro permanecem abertas até as 10 horas da noite, algumas até as primeiras horas da madrugada, mesmo nos domingos e feriados. O vendedor discute sobre um ensaio ou romance, comenta um lançamento, recomenda um clássico e faz uma boa venda, resultado de quem lê o que vende. Cenas recorrentes em um país que tem um gosto ávido pela leitura e a tradição de belas livrarias, cafés com bibliotecas e bancas de revistas. A Argentina tornou-se famosa pela efervescência literária incomum aos países vizinhos. No início dos anos 70, chegou a ter mais livrarias em seu território que padarias no Brasil e o maior consumo de livros per capita da América Latina. Mas o gosto pela leitura, que ainda salta aos olhos nas calçadas, trens, cafés e salas de espera, vem mingüando. “Desde o golpe militar, em 1976, houve uma deterioração da indústria cultural e, em particular, da indústria de livros. Houve um empobrecimento intelectual e já não estou mais seguro de que temos o maior consumo de livros”, diz Ecequiel Leder Kremer, presidente da Câmara Argentina de Papelarias, Livrarias e Afins (Capla) e dono de uma das mais aconchegantes livrarias de Buenos Aires, a Hernandez.


COMPORTAMENTO 13

Houve ainda um agravante. A decadência da economia argentina a partir do anos 90 trouxe o desemprego e a queda na renda para a população, atacando em cheio o mercado editorial. Em 2000 e 2001, pico da crise, muitas livrarias não resistiram e mais de 200 pontos de venda fecharam – principalmente no subúrbio e províncias do interior. Para adequar-se ao poder de compra da população, os preços caíram e as edições de bolso se multiplicaram. Quando a paridade com o dólar acabou e o peso foi desvalorizado, publicações de editoras espanholas, mexicanas e colombianas, comuns até então, ficaram mais caras e raras nas prateleiras. A importação de edições em outras línguas, para atender aos turistas que vão a Buenos Aires, quase já não existe mais. A indústria editorial começou a expandir-se nas décadas de 20 e de 30, não só com a edição de clássicos da literatura mundial, mas também com títulos espanhóis e hispano-americanos, com forte cunho político e analítico. Foi nas décadas de 60 e 70, quando a juventude da América Latina mergulhava na política e a Argentina vivia seus anos de glória econômica, que a venda de livros teve seu auge. Nessa época, Jorge Luis Borges já era consagrado, e despontavam Júlio Cortázar e Ernesto Sábato – três dos maiores escritores argentinos. Discussões sobre romances e declamações de poemas multiplicavam-se nos cafés e bares de Palermo, bairro de Buenos Aires, de tradição intelectual, onde escritores e poetas se reuniam. As tiragens variavam de 10 mil a 30 mil exemplares. Hoje, têm uma média de três mil, chegando a sete mil quando o título é considerado muito bom. Com a mudança dos tempos, Ecequiel critica a rotatividade e a preocupação com a vendagem, em detrimento da qualidade. “É uma ditadura de mercado. Se em 90 dias o livro não vende, a editora recolhe e já coloca outro no lugar.

Não há tempo para difundir, trabalhar. Isso é carnívoro, tratase um livro como um chorizo (salsichão argentino vendido nas ruas), e isso não é bom”, diz. Mesmo assim, a Argentina, com 38 milhões de habitantes, tem mais de mil livrarias e quase 300 editoras. O costume da leitura continua uma marca desse país e o difere dos companheiros de terceiro mundo. Para se ter uma idéia do perfil intelectual dos leitores, basta saber que o que mais se vende é a não-ficção: são livros de ensaios, filosofia e história. No Brasil, os campeões são os de auto-ajuda e esoterismo. Ainda que em crise, em 2001, um tradicional teatro, abandonado há anos, foi transformado na maior livraria da América Latina, no coração de Buenos Aires. El Ateneo Grand Splendid conserva o palco com cortina – onde funciona um café – e três andares de camarotes – onde estão exposições de arte, música clássica e DVDs. Uma média de 3,5 mil pessoas passam por El Ateneo todos os dias, onde estão 95 mil títulos. Na Argentina, a leitura começa ainda cedo, quando argentinos vão às bancas de revistas comprar jornais e saem pelas ruas com eles debaixo do braço. Sentam-se em cafés e fazem sua rotineira leitura entre um gole e outro na xícara. No final da tarde, as cafeterias voltam a ficar cheias. Cenas de leitura se repetem com livros ou jornais vespertinos. Locais assim, tradicionalmente, têm diários em cima da mesa. A crise argentina ficou para trás e as boas perspectivas vêm junto com a recuperação do país. A chegada da primavera e a proximidade com o verão não trazem apenas folhas às árvores secas nem rosas aos quiosques de Buenos Aires. Trazem, às calçadas, tabuleiros em que florescem livros, livros e mais livros, a cada esquina, no centro, nas feirinhas típicas. (Mariana Camarotti) • . Fotos: Mariana Camarotti

Livros expostos nas ruas e promoções nas livrarias: tradição e adaptação Continente fevereiro 2004


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Fotos: Divulgação

O poeta argentino Rodolfo Alonso lança em português sua Antologia Pessoal Rodrigo Petronio

Sob o signo da lucidez Alonso mostra domínio formal em variados tipos de verso: sete sílabas, alexandrino, livre ou cubista

A obra do poeta argentino Rodolfo Alonso pode ser definida como uma longa reflexão sobre a condição humana e as questões políticas do homem dentro da noite veloz da história. Sob o signo da lucidez, sua forma dá sentido a esse mundo perturbado e que muitas vezes se mostra carente de redenção. Sua vitalidade criadora e seu engajamento na causa da poesia já começam por sua biografia. Um dos membros mais jovens da lendária revista Poesía Buenos Aires, editada ao longo dos anos 50, Rodolfo é dono de uma ampla lista de títulos que vão da poesia, cuja estréia se deu em 1954, com Salud o Nada, à prosa de ficção, com El Fondo del Asunto (1989) e Tango del Gallego Hijo (1995), e a livros de ensaios, onde explana algumas de suas idéias sobre arte, cultura e sobre o papel do escrito na sociedade. Essa dedicação fervorosa às letras se completa com seu admirável trabalho como tradutor. Além de franceses como Valéry, Baudelaire, Apollinaire, Marguerite Duras, Prévert, Sade, Éluard, e dos italianos Ungaretti, Pavese, Guillo Dorfles, Montale, Dino Campana, Pasolini, Elio Vittorini, RoContinente fevereiro 2004

dolfo é notadamente um dos grandes difusores e tradutores da poesia brasileira e de língua portuguesa na Argentina, tendo vertido ao castelhano parte da obra de Antonio Ramos Rosa, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Manuel Bandeira, entre outros. Se desde os simbolistas a arte de calar tem sido uma tomada de partido nos acontecimentos e um tipo especial de recusa dos valores instituídos, um imperativo ético que convoca o poeta a se fechar na clausura dos seus versos e no exercício (crítico) da arte, vista a um só tempo como sacerdócio e como crise, e nela ele passou a encontrar a única redenção possível, nas mãos de Rodolfo esse exercício se torna uma via para a superação moral do plano puramente estético e deságua em uma proposta de transmutação da própria vida. Rodolfo é o cantor de poemas como “Al Nível del Mar” e “Muertos del Siglo XX”, dois pungentes lamentos fúnebres sobre os mortos em campo de batalha, e de outros, marcados por uma forte nostalgia do passado, inspirada em resquícios de peças gregas de mármore, ou pela melancolia de um mundo em ruínas, como no poema “Dulce Pájaro”, onde apenas uma ave solitária entoa seu canto vazio em um


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mundo devastado. Mas há também, em sua obra, uma abertura para a transformação da dor em ato, uma agonia ativa que não se recolhe ao anonimato feliz das formas e aos paraísos artificiais dos conceitos e só neles encontra conforto. É um poeta cuja tônica é a luta corporal com as idéias e o mundo, luta recuperada pela linguagem e nela transfigurada. Se a rainha árida (a arte) não crê nem mais na paz dos abismos, e como diz um soneto dedicado à memória de Albert Camus, negamos para ser e só somos negando, o futuro é ontem e só o presente está deslocado, apenas na recusa ativa e total de tudo quanto nos escraviza Rodolfo vê a marca indelével da verdadeira poesia, pois será aí que ela se abrirá e oferecerá sua palavra e a si mesma como sinônimo da mais almejada liberdade. É só aqui, quando superamos a dualidade vida versus arte, que podemos dar uma forma vibrante à nossa revolta e aspirarmos àquela morte feliz, da qual tanto nos falou o grande escritor argelino, cuja conquista é termos a consciência de que nenhuma das nossas escolhas foi vã. Só isso nos livra do absurdo de ter herdado uma existência milagrosa, plena de possibilidades, e ao mesmo tempo estarmos desprovidos do livre-arbítrio que nos faz humanos. Do ponto de vista temático, El Arte de Callar é um belíssimo testemunho de um poeta consumado, ciente de todos os seus meios e que refinou sua percepção da realidade ao longo de muitos anos de meditação consciente e conseqüente. São muito poucos os momentos em que sua poesia resvala em uma visão um pouco mais panfletária, como ocorre de maneira visível em dois poemas: “J’Accuse!”, onde Rodolfo retoma o espírito combativo de Émile Zola e a famosa polêmica do caso Dreyfus, e “El Outro 68”, uma revisão da revolução estudantil francesa. Sob o aspecto mais técnico, chama a atenção a extrema habilidade com que Rodolfo transita por várias modalidades poéticas, a precisão de tratamento dos versos curtos, como os de sete e oito sílabas, o domínio do alexandrino e do soneto, e a elasticidade com que passa destas formas ao verso livre, aos epigramas e a poemas de linha cubista, de grande síntese e forte visualidade. Neste livro temos uma amostra recente de uma dicção vigorosa e de uma poesia filtrada pelas luzes da lucidez, tanto formal quanto política, que encontramos fartamente e numa perspectiva diacrônica na Antologia Pessoal, primeira antologia do poeta argentino publicada no Brasil, sob os cuidados da Editora Thesaurus, de Brasília. Tendo em vista a fragilidade da condição insular brasileira e o desconhecimento crasso que temos da cultura e da arte de nossos vizinhos hispano-americanos, devemos sau-

A mão que canta Rodolfo Alonso

Quando chegares ao fundo encontrarás um clima claro e fértil, de fáceis estragos, um dia cativo cuja luz não irradia senão sobre a força da desordem. A rebeldia que sentes ser tua, ponto extremo da tua vida, a rebeldia que não te negas a partilhar, descobre-se às vezes partindo a cabeça do seu próprio dragão. Finalmente chegaste a verificar, depois de breves ou longos encontros, que o bem e o mal formam-te um só meridiano. E que tanto um como outro te são hoje necessários. Os amigos, a mulher, então, todos os que se elevam ao sol e à sua fácil honradez, não poderiam compreender este rancor que sabes útil, esta cadência do mundo na tua cintura. Tradução de José Augusto Seabra

dar a edição desta antologia de Rodolfo Alonso como um bom augúrio e esperar que seja apenas o início de um longo diálogo. Os idealistas, como sempre, parecem estar equivocados. Mais do que um mero espelho ou reflexo da realidade, a arte não é só produto, mas também produz realidade. Quanto mais e melhor conhecermos a arte do nosso continente tanto mais lúcida será nossa inserção no mundo e outro será o espelho no qual nos veremos e a partir do qual poderemos transfigurar o real em linguagem, fazendo desta a forma mais nobre, elevada e fraterna de habitar o tempo. • Rodrigo Petrônio é escritor. Autor de Transversal do Tempo (ensaios) e História Natural (poesia). Prepara dois livros que devem ser lançados em breve: Eco (poesia) e Anavarata (contos).

El Arte de Callar, Rodolfo Alonso, Alción Editora, (0351) 423 3991. alcion@inflovia.com.br Antologia Pessoal, Rodolfo Alonso, Editora Thesaurus, www.thesaurus.com.br editor@thesaurus.com.br

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16 LITERATURA

“E

screver para mim é uma vocação. Se quisesse assegurar uma existência dourada, não escreveria livros. Ouvi dizer que há trabalhos mais lucrativos, como o de jogador de futebol ou traficante de armas”. A declaração demonstra o gosto de Lolita Pille pela provocação. Nem poderia ser diferente para quem lançou, aos 19 anos, o polêmico Hell, mistura de romance e relato autobiográfico que mostra, com certo orgulho, o lado podre dos jovens ricos e consumistas parisienses, para quem só importam o dinheiro e as aparências. Orgulho sim, pois não se trata de um olhar exterior, nem autocrítico: no universo luxuoso da protagonista, até a angústia é um artigo sofisticado e caro. Hell, que está sendo lançado no Brasil pela recém-criada Editora Intrínseca, vendeu 25 mil exemplares em menos de um mês, agitou o mercado editorial francês e despertou o ódio e o entusiasmo dos leitores e da crítica. “Eu sou uma putinha”. Narrado em primeira pessoa, o livro começa assim, sem meias palavras. Assumidamente frívola e preconceituosa, Hell gasta, diariamente, em butiques de luxo, mais do que o salário mensal da maioria dos leitores do livro. Niilista, despreza a humanidade, e seu único credo é “seja bela e consuma”. Todos os sonhos que o dinheiro pode comprar estão à sua disposição, incluindo drogas legais e ilegais. Faz amor sem amor, e resume sua vida assim: “Aos 14 anos entrei numa boate e nunca mais saí”.

Inferno com grife Em Hell, a jovem Lolita Pille mostra com orgulho o lado podre da juventude dourada parisiense Luciano Trigo

Reprodução/ AE

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Aos 19 anos, Lolita Pille lançou o polêmico Hell, mistura de romance e relato autobiográfico que mostra, com certo orgulho, o lado podre dos jovens parisienses ricos e consumistas

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Foto: Maurício de Souza/ AE

LITERATURA 17 » Usando drogas e fazendo sexo sem amor, a personagem do livro resume sua vida assim: “Aos 14 anos entrei numa boate e nunca mais saí”.

Nesse nervoso relato confessional quase não há trama, porque Hell e suas amigas vivem um presente perpétuo, uma sucessão de prazeres, cujo sentido está nas aparências e na superfície das coisas. À primeira vista, elas têm um cartão de crédito no lugar do cérebro, um aspirador no lugar do nariz – e no lugar do coração, um vazio. Sua identidade reside nos signos exteriores da riqueza e do status social. Sem suas bolsas de grife, elas perdem o equilíbrio. Neste sentido, Hell acaba sendo um fascinante estudo antropológico, perturbador, por registrar um comportamento de classe politicamente incorreto, mas sem intenção edificante. Lolita Pille põe o dedo na ferida, mas pelo lado de dentro. A jovem autora faz uma espécie de elogio da futilidade, escrevendo sem pudor sobre o mundo ao seu redor. Retrato sincero e devastador da juventude rica e consumista de Paris, que preenche suas vidas com sexo, álcool, drogas e roupas de grife, Hell poderia se passar em qualquer grande cidade do mundo, pois espelha os valores e o comportamento de uma classe para quem o mundo se divide em duas categorias: “nós e vocês”. Uma classe que, sem encontrar limites para o prazer, vive o angustiante vazio do excesso.

Se Sartre disse que o inferno são os outros, por sua vez, Hell carrega o inferno dentro dela, e no próprio nome. Ela é filosoficamente pessimista, tendo moldado seu ceticismo nas leituras de Baudelaire e Bataille: “Se os ricos não são felizes, é porque a felicidade não existe”, reflete. Ou ainda: “A humanidade sofre, e eu sofro com ela”. Mas, por mais que seja cínica diante da mediocridade que a rodeia, Lolita/Hell se recusa a assumir o papel de pobre menina rica. Ela não abre mão dessa vida, mordida pela engrenagem infernal da noite: “Não vou parar de sair. O que iria fazer do meu guarda-roupa Gucci?” E ela não está sendo irônica. Lolita escreveu o livro nas mesas de cafés da moda, às quatro horas da manhã, depois de sair das boates mais caras de Paris. E nos intervalos das (e durante as) aulas, a que pouco assistia, no Liceu La Fontaine, freqüentado pela juventude dourada do 16e Arrondissement. Não precisou pesquisar muito: bastava olhar para os lados, conversar com as amigas insolentes e mimadas, e descrever seu próprio cotidiano, vivido em badalados restaurantes, bares de hotéis e áreas vips de boates, sem falar nos passeios, em Porsches e Ferraris, e nas viagens nos jatinhos de amigos.

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LITERATURA Reprodução/ AE

Apesar do sucesso, a jovem autora enfrentou reações iradas, sendo classificada de preconceituosa e arrogante. Acima, a capa da edição em português

Apesar do sucesso, a jovem autora enfrentou reações iradas, sendo clasificada de preconceituosa e arrogante: “Eu nunca disse que detestava os pobres”, ela se defende. Na verdade, Hell é um livro desabusado e lúcido, diante do qual é impossível permanecer indiferente. Talvez o segredo de seu impacto esteja no fato de que, por trás da deliberadamente irritante exaltação do meio que freqüenta, Lolita acaba por denunciar o seu vazio. A partir do momento em que faz um aborto, Hell adquire (diante de uma loja Baby Dior, naturalmente) uma consciência amarga das coisas. É, então, que a autora desvenda, sem hipocrisia, o mundinho fútil dos muito ricos, o lado sombrio da juventude dourada. Outro motivo de polêmica – alimentado pela pouca disposição da autora em falar de seu livro, é que se levantou a suspeita de que Hell foi, na verdade, escrito por Frédéric Beigbeber, jovem romancista e crítico literário francês, que ajudou decisivamente na promoção do romance. “Sim, eu confesso, para que continuar a negar?”, Lolita se defende com ironia. Ela trabalha, neste momento, na adaptação de Hell para o cinema e escreve seu segundo romance: “Será sobre o destino trágico de uma jovem provinciana que busca o sucesso em Paris, e fracassa. Não é uma continuação, mas Hell e seus amigos aparecerão no livro”. Continente fevereiro 2004

Para as leitoras que se identificaram com o estilo de vida sofisticado e autodestrutivo de Hell, Lolita tem alguns conselhos: “Não existe mal algum em usar Gucci, Prada, somente não escolham seus amigos em função do dinheiro dos pais deles, do tamanho de seus apartamentos ou da marca dos carros que eles dirigem. E não vá tanto às boates, os homens são uma coisa pavorosa, e hoje em dia 95% dos freqüentadores são imbecis. O restante, somos eu e meus amigos, que já não vamos tanto”. Mesmo que Hell esteja longe de ser um romance moralista ou maniqueísta (“Não acho que o dinheiro seja responsável por gerar todos os vícios”, afirma. “Desde que as pessoas te façam rir e te queiram bem, não há mal algum em serem ricas e passarem a noite em boates”), essa traição de Lolita ao seu próprio meio teve seu preço. Depois do lançamento, ela chegou a ser proibida de entrar em boates e rejeitada por amigos que se viram retratados em situações embaraçosas. Até porque Lolita nunca disse que qualquer semelhança de seu livro com a realidade seria mera coincidência. Ao contrário, ela assume que não exagerou em nada, apenas romanceou um pouco a sua vida real. • Luciano Trigo é jornalista.


Conhecimento 19 »

ANúNCIO

Continente junho 2003


Foto: Divulgação/Record

Bukharin escreveu romance, poemas e obras teóricas, durante os 13 meses em que esteve preso

O lápis e o terror Romance escrito no cárcere pelo revolucionário russo Nikolai Bukharin, executado por Stalin, é comovente metáfora de uma era de paranóia e terror Julio Ludermir


LITERATURA 21 »

O

Romance do Cárcere, autobiografia de Nikolai Bukharin, escrita como um romance de formação durante os últimos quatro meses de vida de um dos maiores expoentes da revolução soviética, é um livro comovente. No entanto, a história de Kolia Petrov, alter-ego de Nikolai Bukharin que apresenta com uma incrível riqueza de detalhes os meandros da sociedade russa ao longo dos anos que antecederam a revolução de 1905, jamais vai superar em dramaticidade a saga que foi para o seu autor escrevê-la e, mais ainda, publicá-la. Nada menos do que 56 anos separaram a publicação da festejada primeira edição deste livro, na terra natal do autor, da fria noite de novembro de 1937 em que Bukharin escreveu a sua primeira linha, trancado em uma das celas do presídio de Lubyanka. Ao longo desse tempo, nem mesmo o seu principal biógrafo, o historiador norte-americano Stephen Cohen, suspeitou que o homem que para Lenin era o maior teórico da Revolução Russa seria capaz de escrever um romance que tivesse como tema a sua infância e a sua amável família. Durante todo esse tempo, os manuscritos permaneceram soterrados nos arquivos secretos de Joseph Stalin, juntamente com os outros três livros da copiosa produção de Bukharin ao longo de seus 13 meses de cárcere e a correspondência que trocou com o seu algoz enquanto esteve preso. Pode-se dizer, porém, que Bukharin teve muita sorte, pois não foram poucos as obras que Stalin mandou incinerar. É possível que tenha sido esse o destino do caminhão de documentos retirados do apartamento, no Kremlin, de Bukharin, no dia em que foi preso. No meio dessa papelada, jamais encontrada, estavam um livro inédito e as numerosas

cartas que recebeu de Lenin. A sua correspondência com Stalin, composta de quatro volumosas cartas, contém os primeiros capítulos da saga que se encerrou em 1996, quando os livros póstumos de Bukharin enfim chegaram ao mercado. Ela documenta, por exemplo, a hábil negociação que este verdadeiro animal político entabulou com o seu algoz para ter o direito de esgrimir suas mais poderosas armas – um lápis e um papel. Antes da descoberta desses manuscritos, imaginava-se que Bukharin estava negociando a segurança de sua família. Ainda faltam muitos documentos para que se possa contar com precisão o que foi a temporada no inferno do que Lenin chamava de “o garoto de ouro da Revolução” – por exemplo, só se tem conhecimento de uma das muitas cartas que escreveu para Anna Larina, sua segunda esposa e autora de um tocante livro com as memórias de seu amor com Bukharin. Mas o material que foi resgatado do arquivo de Stalin já é suficiente para se saber que nos seus primeiros três meses de cárcere Bukharin se negou terminantemente a interpretar o papel que Stalin criara para ele no grande julgamento que o aguardava, realizado ao longo de 11 dias, em março de 1938, depois de ser adiado por duas vezes. O papel que cabia a Bukharin era confessar-se o líder de um criminosa gangue de espiões, terroristas e corruptos que a poderosa máquina de falsificação de Stalin cunhou de contra-revolucionários. Era um papel inglório para um bolchevique que fizera todos os tipos de sacrifícios e enfrentara todos os riscos para que a maior das utopias do século 20, a revolução socialista, virasse uma realidade. Lutou na Revolução de 17, participou da guerra civil que por muito pouco não abortou o sonho das repúblicas soviéticas, ajudou Lenin a formular e a implantar a chamada Nova Política Econô-

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Reprodução

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22 LITERATURA

Durante 56 anos, os manuscritos permaneceram soterrados nos arquivos secretos de Joseph Stalin, juntamente com os outros três livros da copiosa produção de Bukharin ao longo de seus 13 meses de cárcere

Stalin: intrincado jogo de xadrez para desmoralizar “o garoto de ouro da Revolução”

mica e por fim cerrou fileiras ao lado do próprio Stalin para minar a resistência do grupo liderado por Leon Trotski. Stalin tinha poder de vida e morte tanto sobre Bukharin como sobre seus familiares, mas, ao contrário do que fez com todos os bolcheviques da geração de Lenin, não ousou botar as mãos nele. Bukharin era um verdadeiro mito popular, que só podia ser vencido se fosse humilhado. Daí a importância de fazê-lo participar do macabro espetáculo arquitetado por Stalin para dar um fim à carreira do único homem capaz de minar o culto oficial da infalibilidade do ditador. No intrincado jogo de xadrez que ambos disputaram, uma das estratégias que Bukharin formulou foi tentar atrair Stalin para uma grande luta política contra a ascensão do fascismo. Pode ter sido ingênuo da parte de Bukharin, mas o primeiro livro que escreveu do cárcere foi um tratado antifascista, que poderia ser traduzido como Socialismo e sua Cultura. Depois de escrevê-lo em apenas quatro semanas, sugeriu a sua publicação com um pseudônimo e um prefácio assinado pelo próprio Stalin. Mas, se desde a década de 1920 Bukharin via o nazi-fascismo como uma ameaça à segurança de toda a Europa, para Stalin Hitler e Mussolini não passavam de ditadores capitalistas com os quais se podia Continente fevereiro 2004

fazer o que no jargão socialista se chama de realpolitik. Bukharin só percebeu que o seu manifesto antifascista não seria publicado depois de já ter escrito um segundo livro, concluído em setembro de 1937, ao final do seu sétimo mês em Lubyanka. Esse livro, composto em sua maioria de poemas com reflexões sobre os grandes pensadores, artistas e líderes populares do século 19, também continha pungentes declarações de amor a Anna Larina e desesperadas odes à liberdade. Dizem os estudiosos que esses poemas mais pessoais são uma leitura indispensável para os historiadores do terror. Está ali, ao vivo e a cores, a alma de um homem condenado. A amargura que tomou conta de seu coração não lhe tirou o ânimo e empreendeu então a maior aventura intelectual de sua vida, o livro de teoria marxista que poderia ser traduzido como Arabescos Filosóficos. Essa obra seria sua resposta a uma provocação de Lenin que, ao ler Materialismo Dialético, disse que esse cânone do comunismo internacional fazia dele o maior teórico do partido, mas, por outro lado, mostrava que Bukharin “nunca estudou e (...) jamais entendeu completamente a dialética”. Escrever um livro “dialético do princípio ao fim”, como “Ilich recomendava”, tor-


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Bukharin, à direita, com o irmão Vladmir e o pai Ivan Antonovitch

nou-se então uma obsessão. Stalin pode ter roubado o espólio do grande pai da revolução soviética, mas nessa batalha de contornos edipianos ninguém lhe tiraria o título de herdeiro intelectual de Lenin. Cinco noites depois de concluir sua última homenagem a Lenin, Bukharin iniciou Vremena, palavra russa, de difícil tradução, cujo significado sugere um processo interminável de tempo ligando o passado, o presente e o futuro. Escreve este romance como os outros três livros do cárcere, à noite, ao voltar das longas sessões de interrogatório com os temíveis homens da NKVD que tinham a incumbência de prepará-lo para o julgamento exemplar. Também como os demais, foi escrito ao correr da pena. Até a morte, Bukharin tinha a esperança de que seu pai verdadeiro, um amante das belas-letras como ele, faria a indispensável revisão de estilo de seus últimos livros. Para honrar as circunstâncias em que foram escritos, todos os seus manuscritos foram publicados como encontrados. “Me acalma”, disse ele quando Stalin lhe perguntou a razão para escrever sobre a infância e sua amável família no ocaso de sua vida. Stalin, porém, viu nessa vremena uma inevitável ligação entre a opressão czarista e o terror stali-

nista. Não foi à toa que não demonstrou nem um pouco de clemência diante do patético pedido de Bukharin para que tivesse piedade – “não de mim, mas do trabalho!” Não era preciso ter uma mente paranóica para reconhecer no dramático painel da vivência de Bukharin na Rússia czarista uma metáfora da era do Terror em que o país mergulhara e da qual foi a sua vítima mais famosa. • Julio Ludermir é jornalista.

O Romance do Cárcere, Nikolai Bukharin. Tradução: Zoia Prestes, Editora Record, 434 páginas, R$ 48,00.

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Coppola no Recife A imponderável passagem do cineasta na terra do pão-doce com caldo-de-cana Fernando Monteiro

Ilustrações: Mascaro

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N

o final de 2003, um visitante ilustre – o cineasta Francis Ford Coppola – chegou, incógnito, ao Recife. Vindo de Foz do Iguaçu, Coppola esteve em Curitiba durante mais de uma semana, sem ser reconhecido, até que um cinéfilo o “descobriu” e o diretor acabou fazendo até palestra para alunos da Universidade Tatuí e cozinhando nhoque com tofu, na casa do ex-governador Jaime Lerner. Os jornais deram tudo isso, rompendo com o seu desejo de passar pela capital do Paraná como um turista qualquer, despercebido no início da temporada brasileira. Aqui, ela terminou com o ano – e o cineasta conseguindo ser mesmo um “turista” entre outros, pois Coppola pôde circular tranqüilo, não foi reconhecido no Recife nem em Olinda (onde se hospedou no hotel “Sete Colinas”, um belo casarão transformado em pousada – pelo empresário Fernando Marroquim – numa daquelas ladeiras íngremes). Como um anônimo americano de barba branca, boné e óculos mais do que escuros – para não ser de novo reconhecido, suponho –, o cineasta reclamou apenas do calor e, na agitação do Natal, tomou muito café e visitou as praias do litoral sul. O dono do hotel (filho do jornalista Murilo Marroquim, de quem fui amigo) foi quem me avisou da entrada do hóspede mais célebre que o hotel até agora abrigou. Já na manhã seguinte, tendo eu passado lá por pura coincidência, mostrou-me a ficha com um garrancho ilegível, como assinatura, e me pediu, “pelo amor de Deus”, que não dissesse nada a ninguém, uma vez que o “cara queria ficar na dele”, sem alardes, imprensa, fotos e outras chateações. Só abriu o bico para mim porque sabia que eu tenho, em vídeo, Apocalypse Now e os três filmes do Chefão etc. Fernando não curte muito cinema, mas tinha perfeita noção da celebridade do hóspede que, por sinal, achou “meio mal-encarado”.

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NARRATIVA 25 »

Que nada. Coppola surgiu nesse momento mesmo, na recepção e, mais descansado, ele é receptivo como todos os descendentes de italianos. Queria alugar uma van e eu me apresentei para lhe conseguir isso, fingindo não saber quem ele era, naquele momento. Foi o melhor caminho. Coppola é atento, pega tudo no ar, é muito curioso. Quer saber sobre, provar das coisas (até caldo-de-cana de rua, com moscas voando), sem frescura nenhuma: do caldo, ele tomou três copos, com gelo batido, no Mercado de São José (o primeiro lugar aonde fomos, já na van), depois ficou meio enjoado, mas passou. Só no almoço é que eu confessei saber estar diante de Francis Ford Coppola – que ninguém reconheceu (duas mesas mais adiante, Ernesto Barros, louco por cinema, acenou, falando comigo, mas passando batido pelo homem que estava sentado, naquela mesa “Leite”, de costas para ele. Se tivesse se aproximado, claro que Ernesto iria pôr tudo a perder...). Coppola atacou uma “sinfonia marítima”, e sorriu, satisfeito com a comida, perguntou se eu era jornalista, disse que não iria dar entrevista nenhuma, mas um homem satisfeito com um bom prato diz isso de um jeito simpático. Perguntei pelo motivo da viagem. Ele fez mistério sobre os

novos projetos – todo cineasta faz –, disse que tinha vindo “levantar umas locações para seu novo filme, Megalopolis”, junto com o desenhista de produção, Dean Tavoulares, e o assessor Tony Dingman (que já haviam retornado, de Foz para os Estados Unidos). Essa informação tinha aparecido já nos jornais, até perderem a “pista” de Coppola aqui no Recife (cidade recomendada por seus “amigos brasileiros”, entre os quais citou o músico Airto Moreira, que vive na Flórida). Coppola registra tudo num caderninho enfiado no bolso da calça, riscado com letra graúda e alguns desenhos rápidos, bem esboçados. Em Curitiba, alguns jornalistas lhe haviam dado novas dicas, também anotadas entre um café e outro (ele toma café como um viciado). Por incrível que pareça, a conversa foi indo assim, no início: ele falando de café, do turco, do africano, dos cafés dos ingleses (que “nunca entenderam o princípio do cafezinho e servem sempre em xícara grande, acompanhado, como num chá, de biscoito, brioche, pão de queijo”)... Coppola adorou o pãozinho de queijo, que só presta “muito quente”. Descendente de músicos e padeiros, de imediato sacou que a massa do pãozinho não mantém o sabor, quando esfria e endurece. É um glutão de suco, de

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pães e de pratos como os que repetiu duas vezes (a “sinfonia marítima” e também a “cartola” – ficando impressionado que “banana frita com queijo resulte naquele “incrível sabor”)... Uma barriga enorme tira qualquer possibilidade de porte elegante do grandalhão desajeitado que ele é (quando a sua faca caiu no chão bem encerado do “Leite”, FFC a pegou e continuou comendo com ela, mesmo depois que o garçom se acercou, presto, com outro talher reluzente). Como eu disse, ele não tem frescuras – nem muita paciência. É agitado, atento, e meio apressado, de uma hora para outra. Quis engraxar os sapatos e, assim que o menino lustrou o bom couro, fez um gesto de parada, pagou e saiu para o sol “de lascar”, conforme ensaiou comentar, em português (porque gostou do som, aprendeu, acha graça no verbo de vogais abertas). Tem bom ouvido e não perde nada do que vê com uns olhos ligeiramente estrábicos, debaixo das sobrancelhas que precisam ser aparadas quase diariamente. (Coppola não as apara, é claro, quando viaja sozinho – levando também alguns dias para se acostumar com camas novas e cheiros penetrantes, de flores e temperos). Não fala de cinema – se ninguém falar. Elogiou a filha, Sofia, como diretora que “a melhor crítica está considerando um talento confirmado em Encontros e Desencontros, seu Continente fevereiro 2004

segundo longa-metragem”. Estava lendo uma edição de bolso – que nunca saiu dali o tempo suficiente para que eu lesse o título da brochura. Quando lhe perguntei, disse que não estava lendo nada, no momento, e eu preferi não “pegá-lo na mentira”, mencionando o volume, que, aliás, ele poderia dizer que era um dicionário (até podia ser, mas não era). Ficamos nisso aí, em matéria de livros – exceto pelo fato de Coppola mencionar Machado (“li um romance dele, sobre adultério”) e Jorge Amado (“nunca li nada desse. Vi um filme baseado em Dona Flor, dirigido pelo marido da Amy Irving, não gostei”). Estive com o diretor durante os três dias de aluguel da van (do meu cunhado, Walter, que faz passeios), e posso dizer que nos demos bem. O americano gostou do despachado Walter, conversou muito com ele – até mais do que com o fã aqui. Levei uns vídeos, para que autografasse as capas, e ele assinou dentro, no rótulo de papel meio plástico, onde não pegou bem a tinta do garrancho que ele fez: FrncvisFCoppla... No sábado, ia embarcar de volta. E eu lhe dei uma talha, de presente. Que não sei se deixou no hotel, ou se a levou com ele. Levou? Bem, acontece que, ontem, Walter reviu o Cop-


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pola em Casa Forte. Então, não tinha viajado, mas havia ficado aqui mesmo durante a passagem do ano, fazendo mistério ou sei lá o quê. Walter encontrou com ele numa padaria do Pina, comendo um sanduíche de frango assado. “Era ele mesmo?” – perguntei. E Walter não hesitou: “Era, lógico. Falei com ele. Ofereceu do sanduíche, até.” Calculamos que agora não estivesse precisando mais da van (necessária para ir conhecer os arredores, as praias de Calhetas, Porto de Galinhas e outras). Só não entendi por que motivo ainda não viajara, quer dizer, de volta para Nova York. Faz uns dez dias, neste janeiro quente, voltei a ter notícias, digamos, de Coppola: Rubem Rocha Filho, que mora em Boa Viagem, me disse que tinha visto um sujeito, no Shopping, que “era a cara do Coppola”. E eu balancei a cabeça: “Pois era ele mesmo”. E Rubem riu, pensou que fosse uma brincadeira. Ontem, foi a minha vez. Coppola estava... Bem, não posso dizer onde ele estava. O cara também ficou meio sem graça, me olhando, e depois riu, perguntou pelo Walter. Terminou dizendo que tinha até um vídeo, um filme para mim, mas que a fita estava no hotel (que não era mais o Sete Colinas). Isso foi no domingo passado. Já faz mais de um mês desde que, na van, percorremos as praias que o cara fotograva onde não tinha nada para ver (só praia, céu e areia). E não tomou banho de mar, nem disse por que não tomava. Agora, ele está mais queimado. E sabem o que eu acho? Que Francis Ford Coppola não está nada bem. Digo isso porque está diferente, relaxadão, com uma aparência meio desgrenhada para a celebridade que é. Não tenho bem certeza (na hora, não olhei direito), mas acho que ele estava de sandália de dedo – além do boné e dos óculos escuros (mas sem o paletó branco, que usou por aqui, debaixo do calor). Tem aquela aparência “aclimatada”, dos turistas que vão ficando por aqui, atendendo cada vez menos os telefonemas, mudando de endereço e encontrando

uma graça qualquer em se mimetizar com a paisagem, como se fosse um vício, um visgo, uma dificuldade de prosseguir viagem (“uma coisa esquisita de gringo”, nas palavras do meu cunhado, acostumado com visitas de estrangeiros, curtas ou longas). Alguns taxistas, amigos dele, já deduraram: costumam levar o “gringo” (não sabem quem é Coppola, claro) em certas corridas que estão se tornando folclóricas. Um deles disse que ele comprou uma moenda de cana, daquelas portáteis (transportaram no carro), que foi levada para dentro do apartamento que, parece, a “celebridade” alugou (fiquei pasmo) no Holliday. “No edifício Holliday? Sério?” Isso mesmo. Walter garante que Coppola está lá, num apartamento alugado. E tomando caldo de cana e fazendo mais o quê – ainda incógnito – eu não sei, nem posso saber. Ando até com receio de topar com ele, de novo, o cinesta famoso zanzando por aí. Que coisa mais estranha. Pensando bem, achei o cara meio esquisito, às vezes. E chato, de repente, muito cheio de mistérios, essas coisas. Vai ver, o tal Coppola talvez seja mesmo até um tanto mafioso... • Fernando Monteiro é escritor e cineasta. Continente fevereiro 2004


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Alberto da Cunha Melo

A cultura sob o signo WAS “Que é que poderia proibir dizer-se a verdade rindo?” (Horácio – Sátiras)

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ignos Involuntários é o recém-lançado livro de um estranho arquipoeta brasileiro, conhecido apenas – até aqui – por uma rala irmandade que viceja entre os desvãos da kitschlândia nacional. Seu nome para os leigos é Wilson Araújo. Mas, para os iniciados, WAS, o poeta que não estava, era, desde sempre no ministério da poesia. Signo é o encontro necessário de uma ânsia de dizer com seu meio material de reprodução/imitação, o significante. Signo é, como o encontro de um próton com um elétron, o átomo da informação. Mas, por que Involuntários? Porque a ânsia de dizer está condenada a ser. No caso de Wilson, a ser o que chamo de tecnologia de ponta da palavra, a Poesia. Antes de qualquer comentário formal sobre os poemas, submeto-me, contrariando Cabral (“conversar sobre poesia é conversar sobre forma”), ao comodismo de considerações semânticas, conteudísticas, tão do gosto preguiçoso (ou incompetente?) do que restou da crítica literária no país, fora do âmbito universitário. Não vou dizer grande coisa, mas vou me expor, tentando falar sobre o que o livro diz, antes da rápida abordagem sobre “como” o diz. Com suas 360 p., Signos Involuntários é, bibliotecariamente falando, o primeiro “livro” de WAS, um sujeito Continente fevereiro 2004

que daqui a pouco é sexagenário. De súbito, posso dizer que é uma visão, ao mesmo tempo, crítica e lúdica da arte, com simpatia pela ruptura e respeito pela tradição. Na verdade, trata-se de um longo e monumental trailer da cultura artística ocidental no último século, ou uma espécie de painel minimalista de variadas tendências estéticas, em tom bem-humorado (afinal, nem só a “indignação faz o verso”, como queria Juvenal), onde não poderia faltar a estesia do carnaval: “tropical melancolia/ da janela/ examina a folia”. Os poucos privilegiados com a aparição episódica da poesia de WAS acostumaram-se com sua vertente satírica que, na verdade, é sua impressão digital, e pouco ou nenhum contato tiveram com a outra face dessa rara moeda, que é a sua vertente lírica, da qual fazem parte os versos citados e outros deste jaez: “um urubu pousou no azul/ a um pássaro da eternidade”, ou “a Poesia não tem paz:/ a Vida quer ser poema”, ou ainda: “a sombra magra da arte/ assombra/ a casa agra da morte”. Embora seu livro mostre um número considerável de poemas representantes de sua face lírica, a face mais brilhante e exposta ao sol é a satírica, como é um forte exemplo esta “Ecologia Social: é arrancar o ipsilone/ de Gilberto Freyre/ pela raiz/ e plantar uma árvore/ no lo-


Ilustração: Zenival

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cal// insone ipsilone/ lonely ícone”. São dezenas de invenções assim, sem fim... A poesia satírica de WAS está próxima do conselho antigo: Ridendo castigat mores (Rindo castiga os costumes), uma sátira amena, alegre, horaciana, distinta daquela “mordaz, azeda”, de Juvenal, segundo classificação didática de Massaud Moisés. Mas essa distinção entre poesia lírica e poesia satírica é baseada num critério antigo, o do conteúdo, e sem qualquer valia hoje, eu o uso para mostrar que no Brasil atual temos WAS e Bruno Tolentino como poetas completos, da natureza de Horácio, o pai da poesia construtivista ocidental: grande na lírica e na sátira. Em 1870, no entanto, Henrique Carlos Midose, em seu Poesias Seletas – Diversos Gêneros de Composições Poéticas (Fábula, Didático, Pastoril, Epigramático, Elegíaco, Lírico, Épico e Dramático), não inclui o satírico. Chama-os de “gêneros”, quando deveria chamá-los de espécies. A modernidade pôs fim a essa numerosa classificação. René Wellek diz: “Na sua maioria, a moderna teoria literária mostra-se inclinada a pôr de parte a distinção entre prosa e poesia e dividir a literatura imaginativa (Dichtung) em ficção (romance, conto, épica), drama (quer em prosa quer em verso) e poesia (centrada no que corres-

ponde à antiga ‘poesia lírica’)”. Nesta concepção, até João Cabral, malgré lui (oxente!), é lírico. Mas, ao que interessa: como se expressa formalmente o poeta WAS? Majoritariamente em versos de uma a quatro sílabas, com algum peso especial naqueles de uma e duas sílabas (quando Said Ali diz que “o verso propriamente começa com o trissílabo”). Os poemas têm a linguagem descontínua que lhes é própria, mas, na verdade, são composições com alto refinamento de prosa fragmentada, ostensivamente discursivas, como uma grande parcela da poesia de descendência concretista que procura distribuir-se geometricamente no espaço. WAS não se preocupa com o espaço, faz uma poesia de prosa estilhaçada como também o faz Ferreira Gullar, nos seus últimos livros. O interessante é que, quanto mais o faz, mais os equivocados dizem que ele “aboliu a discursividade da poesia”. Ora, quem estiver pensando que essas constatações diminuem, aos meus olhos, os dois poetas, está maquiavelicamente enganado. Quem considera Kafka o maior escritor do mundo, pouco está se lixando para autonomia do poema e diferença específica da poesia. Concorda ou não, WAS? • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.

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Foto: Reprodução

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Picasso no Brasil O pintor catalão tem 125 obras expostas na Oca, no Ibirapuera, vindas do Museu Picasso, de Paris

A mais completa retrospectiva do artista, na América Latina, acontece na capital paulista

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arquiteto Felipe Tassara e a cenógrafa Daniela Thomas vão novamente pintar a Oca –- espaço de arte situado no Parque do Ibirapuera, na capital de São Paulo – totalmente de branco. A idéia é evitar que qualquer cor interfira na exposição de 125 trabalhos do pintor espanhol Pablo Picasso, que virão diretamente do Museu Picasso, em Paris, constituindo-se na mais completa retrospectiva do artista vista na América Latina. Com patrocínio do Bradesco, esta é a 48ª exposição da instituição e vem somar-se às comemorações pelo aniversário dos 450 anos de São Paulo. O clima diferenciado será estabelecido já a partir da entrada, onde os visitantes passarão por um túnel com projeções e espelhos com imagens do artista e suas obras. A mostra estará dividida em módulos, de acordo com as fases pelas quais ele passou. A mostra, que tem como meta didática mostrar todo o rico percurso do artista, começa justamente com as primeiras pinturas, realizadas quando ele tinha apenas 15 anos, em 1895, e termina com a exibição dos seus últimos trabalhos, finalizados pouco antes de sua morte. Estão contemplados na mostra as diversas técnicas e suportes utilizados por Picasso em 45 pinturas, 20 esculturas, 56 obras sobre papel e quatro cerâmicas. A seleção das obras foi feita pela curadora do museu Picasso de Paris, Dominique Dupuis-Labée. Continente fevereiro 2004


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Fotos: Divulgação

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Acima, Nu Sobre Fundo Branco, 1927, óleo sobre tela, 1,30 x 97m Ao lado, Mulher Adormecida com Persianas, 1936, óleo e carvão sobre tela, 54,5 x 65,2cm Abaixo, Mulher Sentada Diante da Janela, 1937, óleo e pastel sobre tela, 1,30 x 97,3m. As três obras estão na mostra da Oca

Entre as peças expostas, estão: Le Baiser (1925), Minotaure (1936), Baigneuse (1931), Femme Assise Devant La Fenêtre (1937), Femme Enceinte (1949), Nu Cpuche (1932), Verre - Pipe - As de Tréfle et dé (1914) e Le Retour du Baptême, D’Aprés, D’Aprés Le Nain (1917). O Programa Educativo da BrasilConnects, empresa que coordena a exposição, inclui visitações, oficinas e eventos especiais para todas as faixas etárias. Grupos de escolas públicas, privadas e de entidades sociais podem agendar suas visitas à exposição Picasso na Oca. Agendamento pelo fone (11) 3253-7007. • Picasso na Oca Pavilhão da Oca – Parque do Ibirapuera – São Paulo – SP Até 2 de maio.

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Foto: Reprodução

Auto-rretrato, 1907, óleo sobre tela, 50 x 46 cm. Národni Gallery, Prague

Pintor, escultor, desenhista, gravador, o espanhol uniu energia criadora, imensa criatividade e forte personalidade Fernando Wanderley

Vida e obra entrelaçadas


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Os Saltimbancos, 1905, óleo sobre tela, 2,13 x 2,30m. National Gallery of Art, Washington

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importância da obra de Picasso, aliada a sua personalidade forte e controversa – envolvendo a sensibilidade ao lado de sua enorme energia criadora, suas paixões e seu engajamento político – são fonte quase inesgotável para as centenas de publicações que abordam múltiplos aspectos da arte e da vida privada desse famoso espanhol. No dia 23 de outubro de 1881, em Málaga, nasceu Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santissima Trinidad Ruiz y Picasso, filho de José Luis Blasco (Dom José, professor de desenho e pintor) e Maria Picasso y López. Sua infância, adolescência e primeira juventude são vividas sob precárias condições materiais. Demonstrando desde cedo grande aptidão para o desenho e a pintura, aos treze anos pinta a tela Viejo Pescador, que impressionou pela qualidade e rapidez na execução. Conta-se que no final de 1894 seu pai entregou-lhe sua paleta, tintas e pincéis, e não mais voltou a pintar. Em 1895, a família muda-se para Barcelona, onde ingressa na Escola de Belas Artes. Dois anos depois obteve menção honrosa com sua grande obra acadêmica Ciência e Caridade. Conhece Paris no outono de 1900, quando visita a Exposição Universal, e se instala definitivamente nesta cidade em 1904, num casarão chamado “Bateau Lavoir”. Já tendo produzido obras célebres (O Velho Judeu, O Asceta, O Velho Guitarrista, A Vida, entre outras), a “fase azul” dos mendigos e mulheres sofridas (iniciada em Barcelona, 1902) dá lugar a cenas mais alegres, marcando o início da “fase rosa”, inspirada em temas circenses. Percebe-se que a obra de Picasso é como um diário pessoal, refletindo suas vivências. Assim, o azul que havia desaparecido, de repente volta, enquanto o rosa/ salmão fica mais ou menos intenso, dependendo do seu estado de espírito. Daí essas fases (rosa e azul) não terem delimitação precisa no tempo. Fernande Olivier, sua primeira mulher, surge em 1905, ano em que inicia o retrato de Gertrude Stein, causando estranheza ao reduzir seu rosto a uma máscara. No ano seguinte começa a se inte-

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capa 37 » Rotulado como gênio, transgressor, arrogante, egocêntrico etc., o fato é que Pablo Picasso, sempre entrelaçando vida e obra, caminhou com extrema ousadia e criatividade entre as técnicas de pintura, escultura, cerâmica e gravura ressar pela arte negra e por Cézanne (que havia lançado as sementes do Cubismo), demonstrando maior preocupação com a expressão plástica. Aliás, ele dizia aos artistas que copiar os outros também era uma forma de aprendizado, “só não se deve copiar a si próprio”. Em 1907, fruto da sua incansável busca pelo novo – uma vez afirmou: “eu não procuro, eu encontro...” – e desejo de se contrapor, conclui Les Demoiselles d’Avignon, marco dessa revolução estética e anúncio do Cubismo. As figuras femininas são destorcidas e sem definição formal de volume, algumas delas com traços da arte negra africana. Esta destruição do conceito ocidental de beleza e da tradição greco-latina de arte é prontamente reprovada por seus amigos. Por sorte, um único homem “compreende” e aceita a transgressão do pintor: o marchand D.H. Kahnweiler (que junto com outros dois, Vollard e Paul Rosenberg, contribuiram decididamente para a valorização da obra de Picasso, fazendo sua fortuna e a deles, mantendo sempre em ascensão os preços dos trabalhos do artista). Entre 1907 e 1916 Picasso mergulha no chamado Cubismo, junto com Georges Braque. Avesso às análises dos críticos de arte, repudiava aquelas que procuravam explicar o Cubismo através de conceitos matemáticos, da química ou psicanálise, e disse: “(...) tudo isso não tem sido mais do que palavras, nonsense, e produziu o terrível resultado de cegar as pessoas com a ciência”. Em outra ocasião afirmou: “(...) desde o Cubismo e muito antes, eu mesmo contentei a todos esses críticos com todas as embromações que me ocorriam, e eles tanto mais me admiravam quanto menos me compreendiam. À custa desses jogos fiz-me célebre rapidamente, e conseqüentemente, rico. Portanto, não posso considerar-me um artista no grande sentido desta palavra. Grandes pintores foram Giotto, Ticiano, Rembrandt e Goya. Eu sou apenas um embromador que compreendeu seu tempo e tirou o que pôde da imbecilidade, da vaidade e da ganância de seus contemporâneos”. Sua aversão à necessidade de se “compreender” a pintura era externada com ironia e sarcasmo. Certa vez,

numa exposição, uma senhora americana diante de um quadro, perguntou-lhe: “Senhor, o que quer dizer isto?” E ele respondeu: “Isso quer dizer ... 20 mil dólares!” A permanente inquietação de Picasso leva-o, em 1912, aos papiers collés e às construções com materiais diversos (madeira, tecido, ferro), que proliferam no biênio 1913-14. É considerada uma fase de grande importância, pois traz o rompimento completo com os cânones do renascimento e com o academicismo. Em 1911 rompe com Fernande e inicia sua vida com Eva Gouel. Seu pai morre em Barcelona, em maio de 1913 e, no ano seguinte, a guerra o surpreende em Avignon. Paris transforma-se num lugar desconhecido. No final de 1915, Eva, doente há algum tempo, morre. O ano de 1916 é marcado pela solidão, refletida nas tonalidades sombrias das obras desse período Em 1917, parte com Jean Cocteau para Roma, onde irá realizar os cenários do balé Parade, idealizado por Diaghilew, com base num libreto de Jean Cocteau e música de Erik Satie.

Menina no Espelho, 1932, óleo sobre tela, 1,62 x 1,30m. MoMA, New York Continente fevereiro 2004


Trrês Mulheres Junto à Fonte, 1921, sangüínea sobre tela, 2 x 1,61m. Obra em exposição na Oca

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Foto: Divulgação

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Mesmo sem abandonar o Cubismo, Picasso faz várias incursões pelo figurativo, às vezes fundindo estilos, como nas versões dos Três Músicos. No mesmo período pinta uma série de figuras maciças que se assemelham a esculturas volumosas. Sua produção passa a ser influenciada pela euforia dos novos acontecimentos. Em 1918 casa com Olga Koklova, bailarina russa, com quem terá um filho, Paul, em 1921. As transformações dinâmicas da sua obra são acompanhadas pelas mudanças na sua vida pessoal. Com a deterioração do seu relacionamento com Olga, em 1927 Picasso conhece Marie-Thérèse Walter, jovem amante que lhe enche de alegria e, em 1935, lhe dá uma filha: Maia. Passa a ter uma vida dupla, assim como sua obra, que ressalta o cultivo da escultura de formas arredondadas e, ao mesmo tempo, elabora outras agressivas, em ferro forjado (1931). Aí surgem também as figuras talhadas em madeira, muito estilizadas, jogando com a fragilidade dos materiais. Nos anos seguintes (1933/34) faz uma viagem pelo interior da Espanha e retrata diversas cenas de touradas. Sua produção se concentra nas gravuras. Mas, em seguida, por conta do divórcio de Olga e das dificuldades financeiras, permanece um período sem pintar. É a primeira e última vez que isso lhe acontece desde os oito anos de idade. Em 1936 eclode a guerra civil espanhola. Picasso apóia a República e é nomeado diretor do Museu do Prado. Naquele ano conhece a fotógrafa Dora Maar, que será sua companheira por quase dez anos. Escreve, em 1937, o panfleto “Sonho e Mentira de Franco”, e publica no New York Times denúncia contra o general Franco. Um mês depois do bombardeio de Guernica, quando a aviação nazista usa sua prepotência animal para atacar uma população indefesa, Picasso inicia os esboços do grande e famoso mural que pinta, em preto e branco, para o pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris, em 1937. Também se conta que, diante de Guernica, o general alemão Otto Abetz, governador de Paris durante a ocupação, perguntou a Picasso: “Foi o senhor quem fez este horror?” Ao que ele teria respondido: “Não, senhor embaixador, esse horror foi feito pelos senhores!” Resumir a obra de Picasso é tarefa fadada à incompletude. Mas, dizem os experts, as obras mais repreContinente fevereiro 2004

sentativas dos últimos anos da segunda guerra são as esculturas. Em 1944 entra para o partido comunista. Em 1946, começa a namorar Françoise Gilot, de cujo casamento nascem os filhos Claude (1947) e Paloma (1949). Nesse ano, Aragon escolhe a famosa litografia da pomba para simbolizar o “Congresso da Paz” dos comunistas. A nova relação amorosa reflete-se mais uma vez na sua arte, multiplicando a criação na pintura, na litografia e, principalmente, na cerâmica. Por sua postura política, em 1950 recebe o Prêmio Lênin da Paz. No ano seguinte pinta Massacre na Coréia, forte crítica à participação americana na guerra daquele país. Um ano após a separação de Françoise (1953), Jacqueline Roque torna-se sua musa e companheira até o fim de seus dias. Formalizam o casamento em 1961, quando se mudam para Notre-Dame-de-Vie, em Mougins (Provence). A partir daí, Picasso inicia uma nova forma de expressão que se prolonga por anos: a gravura sobre linóleo. As obras têm cores brilhantes e formas extrovertidas. Nos seus últimos anos, Picasso produz arduamente. São pinturas, gravuras, cerâmicas, esculturas e desenhos elaborados simultaneamente. O erotismo, uma de suas fontes de inspiração, volta com grande vigor. Sempre ávido por novas descobertas, permaneceu ativo até o fim da vida, pintando e desenhando com ampla liberdade criadora. Rotulado como gênio, transgressor, arrogante, egocêntrico etc., o fato é que Pablo Picasso, sempre entrelaçando vida e obra, caminhou com extrema ousadia e criatividade entre as técnicas de pintura, escultura, cerâmica e gravura. Alguém já disse que suas esculturas seriam suficientes para imortalizá-lo entre os maiores gênios da arte. E, sem fugir do lugar-comum, não seria demais afirmar que ele foi o mais genial de todos os artistas plásticos do século 20. No dia 8 de abril de 1973, com 92 anos incompletos, Picasso faleceu em Mougins (França). Um jornal italiano estampou na primeira página: “Picasso morreu (se é que Picasso morre)”. • Fernando Wanderley é empresário e artista plástico.


Foto: Reprodução

Espécie de superstar da época, Pablo Picasso colecionou mulheres ao longo de 90 anos de vida Marco Polo

As mulheres de Pablo

Mulher Chorando, 1937, óleo sobre tela, 60 x 49cm. Tate Gallery, London


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Fotos: Reprodução

Ao lado, Françoise Gilot, na primavera de 1943 Abaixo, Les Demoiselles d’Avignon, 1907, óleo sobre tela, 2,44 x 2,35m. MoMA, New York

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escultor francês Auguste Rodin passou a vida toda com Rose Beurer, com quem veio a se casar já próximo da morte. Tida como mulher simples e até mesmo ignorante, pelos biógrafos do mestre, Rose foi continuamente traída por seu marido, cujo apetite sexual não fazia distinção entre empregadas domésticas e senhoras da mais alta sociedade. O poeta alemão Rainer Maria Rilke, que conviveu com Rodin, conta que muitas vezes Rose comportava-se de maneira extremamente grosseira com o escultor, ao que esse reagia com total indiferença. Incomodado com a questão, Rilke inquiriu Rodin sobre o assunto e este lhe confidenciou que precisava de uma mulher apenas para cuidar da casa e das crianças. Para ele, a única coisa que importava era sua arte. Exemplarmente, conta a historiadora de arte Carol Strickand que, certa vez, “durante um ataque de raiva, sua esposa entrou no ateliê e pôs-se a andar pela sala aos gritos. Rodin fez o molde de seu rosto enraivecido, sem olhar para o barro. Obrigado, querida. Foi excelente, disse ele no final do episódio”. Vítima cruel do egoísmo de Rodin foi Camile Claudel, jovem e talentosa escultora, que por ele se apaixonou e por ele foi rejeitada, terminando seus dias internada num hospital psiquiátrico, sem ter conseguido realizar por completo a grande obra para a qual parecia estar destinada. O egocentrismo dos gênios e a importância (ou desimportância) das mulheres em suas vidas têm sido tema de vários estudos. Baudelaire mantinha uma relação de atração e repulsão para com as mulheres, sendo autor de alguns dos mais ferinos ditos contra a condição feminina. Como este: “Sempre me admirei que deixassem entrar as mulheres nas igrejas. Que diálogo elas poderão estabelecer com Deus?” No lado oposto, Dante, que se apaixonou por Beatriz quando esta tinha apenas oito anos, e dela nunca se aproximou, conseguiu sublimar sua paixão, transformando-a num foco de inspiração, cuja pureza idealizada seria a única capaz de colocá-lo em contato direto com Deus. Já Sócrates teve sorte oposta. Sua esposa, Xantipa, perturbava tanto a vida do filósofo que até hoje é tida como uma das maiores megeras da história. No relacionamento com as mulheres, Pablo Picasso é um caso à parte. Espécie de superstar da época, equivalente ao que são as megaestrelas do cinema e da música pop atuais, o artista era continuamente assediado por mulheres e, muito vaidoso e priápico,

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capa 41 Do signo de escorpião, que, segundo os entendidos, é tão intenso no abraço quanto na ferroada, podendo passar de um à outra sem pausas nem explicações, Picasso descartava-se de uma mulher tão logo se apaixonava por outra

aproveitava-se disso sem o menor remorso. Do signo de escorpião, que, segundo os entendidos, é tão intenso no abraço quanto na ferroada, podendo passar de um à outra sem pausas nem explicações, Picasso descartavase de uma mulher, tão logo se apaixonava por outra. Foram sete, as mulheres oficiais de Picasso: Fernande Olivier, em 1905; Eva Gouel, em 1911; Olga Koklova, em 1918, bailarina russa com quem se casa e com quem tem o filho Paul, em 1921; MarieThérèse Walter, em 1927, jovem que lhe dá uma filha, Maia, em 1935; Dora Maar, em 1936, fotógrafa que, repetidamente retratada por ele, lhe rendeu alguns de seus mais expressivos trabalhos; Françoise Gilot, em 1946, estudante de pintura com quem se casa e tem dois filhos, Claude, em 1947, e Paloma, em 1949. E, finalmente, Jaqueline Roque, de 1953 até sua morte. Conta-se que, quando Picasso, então com 60 anos, conheceu Françoise Gilot, que tinha 23, sua mulher, Dora Maar, comentou que ele repetia com todas uma mesma técnica de conquista, dizendo: “Sabia que antes de você nascer eu pintei o seu rosto? Quando você anda pelas ruas, nunca lhe disseram que você é um quadro de Picasso?” Apesar de, ao se apaixonar por outra, abandonar sem remorsos uma mulher com quem tivera um grande relacionamento, todas elas exerceram grande influência no trabalho do artista catalão. O pintor pernambucano Cícero Dias, que foi amigo íntimo do espanhol, contou que Picasso era tão compulsivo que, se ganhasse um cachorro, a primeira coisa que fazia era pintar o bicho. Talvez o pintor espanhol tivesse necessidade de reafirmar a realidade do que tinha em volta, fosse objeto, animal ou pessoas, aprisionando-os nos seus quadros, transformando-os em arte. E se tinha por eles grandes considerações naqueles momentos, talvez achasse que depois nada mais lhe tinham a oferecer. •

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Nem tanto ao mar nem tanto à terra Em nenhuma outra época, a arte esteve tão sujeita às injunções mercadológicas

O Outro Lado do Rio (1980), Gilvan Samico: “boa e verdadeira arte”

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ostaria de chamar a atenção do leitor para uma questão que decorre de minha atitude crítica em face de certas manifestações da arte conceitual. Trata-se do seguinte: questionar um tipo de expressão que não se vale dos meios tradicionais da pintura ou da escultura, não significa estar aberto à aprovação de toda e qualquer obra ou tendência artística que utilize aqueles meios. Tal presunção é inteiramente descabida, mesmo porque tenho horror a todo e qualquer maniqueísmo; além disto, não me pretendo líder de uma cruzada contra a arte conceitual, duchampiana ou tendências afins. Pelo contrário, estou a todo momento refletindo sobre as questões atuais da arte e reconheço que a crise que se expressa Continente fevereiro 2004

nas obras derivadas do caminho aberto por Duchamp decorre de questões consubstanciais com o processo artístico contemporâneo. Não se trata, portanto, de uma farsa montada por falsos artistas com o propósito de engabelar o público. Certamente, essas manifestações ocorrem num quadro complexo em que atuam tanto a legítima busca por um novo caminho da expressão artística como fatores outros, extra-artísticos e que atendem a interesses criados. No primeiro caso, considero que a atitude antiarte da geração dadaísta foi conseqüência de circunstâncias históricas (a 1ª Guerra Mundial) e do questionamento dos valores artísticos e de sua função numa sociedade que se industrializava velozmente. Quanto aos fatores extra-artísticos, trata-se de


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um fenômeno novo na história da arte, já que em nenhuma outra época a produção artística esteve de tal modo sujeita a injunções mercadológicas e midiáticas tão poderosas que deixam em segundo plano a própria obra de arte ou o que hoje pretende substituí-la. Tais fatores não podem, no entanto, obscurecer o fato de que as expressões tradicionais da arte (pintura, escultura, gravura etc.) vivem uma fase crítica, de pouca criatividade e raros novos artistas a despontar. De fato, no Brasil pelo menos, afora os artistas consagrados naqueles gêneros, quase nenhum outro grande talento surgiu. Se é certo que, no campo da arte, tais fenômenos não podem ser explicados a partir de diagnósticos simplistas, por outro lado é difícil afirmar a vitalidade de gêneros artísticos que refletem tão pouca criatividade. Afinal de contas, a arte viva é a que manifesta criatividade e renovação. Lamentavelmente, não é isto que se observa no momento. A carência de novos talentos e de obras notáveis conduz à valorização exagerada de obras medíocres, que aparecem ilusoriamente como a reafirmação da pintura, da gravura ou da escultura, beneficiando-se do vácuo criado pela também supervalorização das obras conceituais. De fato, a promoção das tendências tradicionais resulta num desserviço à verdadeira arte, não apenas porque subverte a ordem dos valores estéticos como porque nivela por baixo a exigência da crítica e do próprio público, que terminam ambos se contentando com a mediocridade. Estas observações, que agora faço, não são gratuitas nem furto de simples especulação. Verifico que instituições de prestígio têm promovido ultimamente exposições de pintura, escultura, aquarela etc., de valor duvidoso, como se fossem arte de alta qualidade. As razões para que isto ocorra são diversas e vão desde os sinais de esgotamento da arte conceitual (cada dia mais repetitiva, sem nem o impacto do começo) até

a necessidade de preencher a programação dos numerosos espaços culturais que hoje proliferam nas grandes cidades brasileiras. A par disto, há também um outro fator, mais sutil, que decorre da crescente distância entre os chamados “curadores” e os gêneros tradicionais da arte. Muitos deles, desligados desses gêneros de arte, perderam a capacidade de apreender-lhes as qualidades e os defeitos. O mesmo ocorre com o público. Em suma, quero dizer que a boa arte nos ensina o que é a arte, enquanto a obra medíocre nos deseduca. Por isso mesmo, é necessário mais que nunca que se realizem, nesses espaços culturais, mostras de grandes artistas, dos mestres modernos, pois as suas obras hão de fazer com que todos nós (inclusive os curadores) voltemos a distinguir melhor os valores estéticos. Tais afirmações, que talvez pareçam exageradas, são fruto de minha própria experiência. Durante os anos em que fiz crítica de arte para a revista Veja, dei-me conta, ao deparar-me com uma bela retrospectiva de Alfredo Volpi, do que era a boa e verdadeira pintura; é que, de tanto ver e escrever sobre pintura de qualidade sofrível, já estava eu abaixando o meu nível de exigência. Com mais razão, isto ocorre hoje em dia, quando as exposições de altas qualidades escasseiam. Por tudo isto, são de muita importância iniciativas recentes que nos permitiram ver, por exemplo, no Paço Imperial, no Rio, uma impactante retrospectiva de Iberê Camargo; no MNBA, a densa mostra Duas Cidades, de João Câmara Filho (agora aberta no Recife) e um amplo panorama da pintura de Brennand, na sua bela Accademia, que acaba de inaugurar no Recife. Não menos significativa é a sala de gravuras de Gilvan Samico, parte da exposição Panorama da Arte Brasileira, realizada atualmente no Paço Imperial. •

Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.

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Tiresia

O terceiro sexo

Filme do diretor Bertrand Bonello relê mitologia grega e oferece visão profunda sobre o homem, a mulher e a sexualidade Kleber Mendonça Filho

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B

ertrand Bonello tem 35 anos e três longas realizados – Quelque Chose d’Organique (1998), O Pornógrafo (2001) e Tiresia (2003) –, os dois últimos lançados no Brasil. Seus filmes são considerados difíceis pelo público, com certa incidência de adjetivos como “chato”, “irritante” e “intelectualizado”. Seu trabalho, no entanto, tem achado forte aceitação no seio da crítica francesa, que tradicionalmente defende a idéia de um cinema autoral, precisamente como o de Bonello, feito sem concessões para o público ou mercado. Curiosamente, nesta entrevista feita durante a última edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Bonello diz ter achado na crítica sua escola pessoal de cinema. Para um cineasta que tem abordado a sexualidade sem tirar os olhos das imagens mais cruas, Bonello diz utilizá-la apenas como um ponto de partida para contar histórias.


Foto: Divulgação

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Você sente que com seus filmes O Pornógrafo e agora Tiresia há um desejo pessoal seu de mapear a sexualidade como imagem de cinema? Eu não penso muito sobre isso, pelo menos, não de maneira racional. Estive recentemente num debate sobre “a sexualidade filmada”, participei, falei, respondi a perguntas, mas, de qualquer forma, sempre fico surpreendido comigo mesmo, de me ver em situações desse tipo. Não é o que me interessa. Pornografia ou transexualidade são apenas pontos de partida. Em O Pornógrafo, a pornografia era o que menos me interessava. Em Tiresia, a transexualidade é apenas “um personagem”, e não o tema que carrega o filme. Leio muitos artigos sobre “sexo no cinema”, concordo que meus filmes sejam encaixados em análises do tipo, mas não as considero preocupações centrais deles.

Foto: François Guillot/ AFP

O que lhe interessou no caso específico de Tiresia, subtraída a questão forte da sexualidade? Essencialmente é uma história maravilhosa. Quando digo “maravilhosa”, refiro-me à sua qualidade de história de ficção como possibilidade para o cinema. Quando se parte para fazer um filme, você sempre procura essa qualidade. Depois disso, passa a localizar mais especificamente os elementos que lhe interessam. No plano geral, no entanto, a história precisa lhe fisgar pelas possibilidades como cinema, uma qualidade que é rara. Há temas que me estimulam, claro, a sexualidade, o homem e a mulher, o terceiro sexo, a fé e, principalmente, a idéia de destino. Hoje em dia, a maior parte dos filmes trabalha com a psicologia humana, e psicologia e destino são opostos, não se entendem. Será que o destino e o corpo podem ser compatíveis, eles têm relação um com o outro? O corpo de Tiresia é consumido, mas é consumido pelo destino? Esta não seria uma pergunta que transexuais, que viram o filme, seriam capazes de responder? O Sr. tem tido retorno deles, como espectadores sensíveis à abordagem e ao tema? Mesmo que eles não sejam a base do filme, é inevitável, como você mesmo diz, não tê-los como espectadores, talvez mais sensíveis à personagem e a algumas das sequências, e me refiro, especificamente, à cena do Bois de Boulogne. Uma coisa que me deixou feliz foi a existência de aceitação do filme, pelo fato de Tiresia ser interpretada por uma mulher e por um homem. Eles talvez tivessem reagido negativamente, se Tiresia fosse, o tempo todo, um homem, ou o tempo todo uma mulher. Inicialmente, tive medo até pelo fato de muitos deles desejarem o papel, no sentido de “se vão fazer um transexual, empreguem um transexual para o papel”. Ao explicar meu ponto de vista, “vou usar um homem e uma mulher”, eles diziam imediatamente, “entendi, OK”, com um alto grau de compreensão de quem eles mesmos são. Uma frase que eu escrevi sem realmente saber e que tocou os transexuais foi: “Você acha que isso aqui é um grande prazer, mas está mais para um banquete desesperado”. Bertrand Bonello: “em Tiresia a sexualidade é apenas um personagem”. Acima (à dir.), Thiago Teles, ator brasileiro que interpreta Tiresia em sua fase macho

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Isso choca-sse contra a imagem mais ou menos estabelecida do transexual, como pessoas cheias de humor e escracho, imagem que o próprio cinema adota com frequência. Exatamente, o que eles vivem é extremamente violento e brutal, a começar pelo próprio corpo. Eles promovem mudanças físicas que resultam, na verdade, numa guerra contra eles mesmos. A partir do momento em que você afirma que é uma mulher, presa num corpo de homem, você está declarando guerra contra seu corpo original. É por isso que há, de fato, humor e escracho, dança e gritos, pois se eles não fizerem isso, creio que eles simplesmente não se sustentam. De uma certa forma, vejo isso no brasileiro, um povo cheio de vida e alegria, talvez uma forma de compensar as dificuldades e a pobreza que aflige tanta gente. Saindo por São Paulo, senti muito isso. Você já pensou que, para quem perde os créditos iniciais, a leitura do filme pode ser diferente em relação aos dois personagens que Laurent Lucas interpreta, Terranova e o padre? É verdade. Se você achar que o padre é Terranova, a leitura – possível, diga-se de passagem – é cristã, católica. Há redenção. Para mim, prefiro ver o filme do ponto de vista grego. Destino, para mim, me interessa mais do que redenção. A idéia de destino numa sociedade politeísta me interessa mais ainda, pois há aí uma firme contradição. Sobre a questão do som em Tiresia, especialmente se visto numa sala bem equipada, como a que eu tive a oportunidade de ver. A sequência do Bois de Boulogne me chamou a atenção pela forma como as vozes em português, e todos os outros sons parecem estar vindo pelas árvores, somando-sse à atmosfera, um tanto fantástica, do todo. Nós trabalhamos muito essa seqüência, que eu chamo de “O Jardim das Rosas”, e só a mixagem nos levou quatro dias de trabalho. Eu tinha uma idéia bem exata do que eu queria e de como aquilo

Tiresia, no corpo da brasileira Clara Choveaux, é aprisionada por Terranova, esteta que a admira

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Fotos: Divulgação

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Ao tornar-se prisioneira, Tiresia readquire o aspecto de macho

deveria soar. A questão ali era a seguinte: para filmar no Bois de Boulogne, ou filmar aquele Bois de Boulogne que o filme exigia, algo precisava ser verdadeiro, e a outra metade teria que soar absolutamente irreal, como um sonho na cabeça do cara. Trabalhamos um pouco a imagem, mas funciona melhor ainda com os sons, pela quantidade de coisas possíveis, e que o espectador nem imagina quais são. Na imagem, está tudo aparente, mas no som é possível ser mais sutil e criar uma partitura, onde as notas podem ser um carro, ou vozes em português, ou o ruído do vento. O Sr. citou, agora há pouco, a seqüência dos olhos. Que não estava na primeira versão do roteiro. Depois, decidi incluí-la com o sentido de que é necessário fazer Tiresia deparar-se com a barbárie. Sei que muita gente acha a cena violenta, mas discordo. A cena é bárbara. Perceba que não há um interesse meu no ato de violência em si, é tudo filmado num plano só, sem cortes e a uma certa distância. O que me interessa é o ato e o que ele significa: um ato de barbárie. No último Festival de Cannes, Tiresia teve uma acolhida calorosa por parte da crítica. Na verdade, é provável que, dada a natureza do filme, Tiresia aconteça especialmente junto à crítica, bem menor em termos de público. Qual a sua relação pessoal com a crítica? Tenho uma relação que funciona em dois níveis. Primeiro, quando o filme é exibido pela primeira vez, nem você sabe ao certo se o que fez, presta. Saem as críticas e você as lê. Num segundo momento, quando você já se distanciou do processo, digamos, uns seis meses depois, eu tenho o hábito de reler as críticas de verdade, ou seja, as mais extensas, e não essas de jornal, curtas e que não dizem nada. Enfim, eu acho que os críticos me ajudam a entender o meu filme, realmente levo isso a sério. Sei que há diretores que adoram dizer “não dou a mínima”, mas não é o meu caso. Quando filmo, não penso no público, Continente fevereiro 2004


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penso apenas em fazer o melhor filme possível. No final das contas, no entanto, público e crítica passam a contar para mim, pois posso aprender com ambos. A crítica é um registro, preto no branco, de uma obra que foi escrita, pensada e filmada, ao longo de um processo de anos. Gosto, particularmente, quando um crítico extrai uma parte, em especial, do

filme e escreve algo pessoal. É aí que eu digo: “Algo nesse filme funciona”. Além disso, sou francês e tenho consciência de toda uma tradição de crítica cinematográfica, muito cara à nossa cultura. Minha escola de cinema foi a crítica, uma vez que não tive uma formação acadêmica em cinema. • Kleber Mendonça Filho é jornalista e crítico de cinema.

Um poema de escrita peculiar iresia (França, 2003), o francamente estranho, lo-

T go depois intrigante, e finalmente belo exercício

em imagem e som do jovem cineasta Bertrand Bonello (O Pornógrafo), não é filme fácil. Mesmo na França, terra que criou e ainda nutre a liberdade do olhar para um cinema autoral, Tiresia foi visto por não mais do que 30 mil espectadores, número desestimulante em qualquer país. O filme foi bem recebido no Festival de Cannes, 2003, onde participou da mostra competitiva. Oferece visão profunda sobre aspectos relacionados ao homem, à mulher e à sexualidade. Versa também sobre a capacidade que o ser humano tem de se reinventar e, nesse sentido, o filme é um poema de escrita peculiar. Tiresia (a brasileira Clara Choveaux) é um transexual brasileiro em Paris. No Bois de Boulogne – já filmado por Robert Bresson em As Damas do Bois de Boulogne –, ela é tida como a mais bela das rosas desse jardim frio e inóspito. Observada por Terranova (Laurent Lucas, sua frieza facial aqui emprestada a dois papéis), um fã que admira sua beleza, acaba por ele aprisionada. Terranova, o esteta que a admira. A seqüência do Bois de Boulogne é um primor de cinema, abrindo o filme e estabelecendo seu tom. Sob as sombras da noite e das árvores, Tiresia canta “Terezinha de Jesus”, prostitutas e travestis se oferecem no frio de um vento que sopra muito levemente, enquanto são vistoriados por possíveis clientes que os observam de dentro de carros ou a pé. Nesse filme francês, e nessa seqüência de maneira especial, ouvimos o português falado de maneira tranqüila (na França foi apresentado sem legendas). Soa como se viesse com o mesmo vento frio que parece arrepiar os seios nus dos travestis. Bonello dirige a seqüência como a versão onírica do que Almodóvar filmou com realismo mais familiar, em Tudo Sobre Minha Mãe (1999), onde o personagem Agrado é localizado num antro de prostituição noturno, ao ar livre. Continente fevereiro 2004

Ao tornar-se prisioneira, Tiresia irá lentamente perder os traços femininos, que os hormônios lhe garantem, readquirindo o aspecto de macho, e isso inclui pêlos faciais impensáveis em seu delicado rosto andrógino. É uma releitura intrigante do mito grego Tiresias, homem que vira mulher depois de testemunhar duas cobras no processo de intercurso sexual. Incomodadas com a intromissão, as cobras o atacam, Tiresias mata a fêmea e, com isso, transforma-se imediatamente numa mulher, que se torna uma famosa prostituta durante sete anos. Um dia, ela mata uma cobra macho, em circunstâncias idênticas à primeira, voltando a ser um homem. Numa discussão, entre Zeus e Hera, sobre qual dos dois sexos é mais capaz de ter o maior prazer sexual, Tiresias é chamado para esclarecer a dúvida, já que ele teve experiência de vida como macho e fêmea. Ele explica que, se o prazer carnal pudesse ser classificado dentro de uma escala entre um e dez, os homens ficariam com um e as mulheres com três vezes três. Hera, contrariada, cega Tiresias; Zeus, por sua vez, prorroga sua vida ao longo de sete outras gerações e dá-lhe sabedoria interior e o poder de ver o futuro. Na fascinante adaptação de Bonello, Tiresia é brutalmente castigada (cena profundamente perturbadora) por Terranova por murchar como flor, renascendo como uma nova Tiresia (desta vez, no corpo do ator, também brasileiro, Thiago Teles). Sua luz interior a levará a toda uma série de idéias que irão refletir a sua inadequação junto ao mundo, especialmente no campo terreno, místico e religioso. O estilo de Bonello parece emular o tom do grande mestre francês Bresson, cuja obra o jovem cineasta e roteirista reconhecidamente admira. Com esse seu cinema, certamente difícil, Bonello, por outro lado, consegue montar um mundo próprio que se equilibra numa escrita pessoal, dura e fantástica, mas dando-nos a impressão de que essas palavras foram apenas recentemente cunhadas por ele. (KMF) •


Foto: Gerard Julien/ AFP

Uma vida de cachorro Em Dogville, com Nicole Kidman, o cineasta dinamarquês Lars Von Trier mostra a maldade inerente ao ser humano Luciano Trigo

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ugindo de um grupo de mafiosos durante a grande Depressão dos anos 30, nos Estados Unidos, a jovem e bela Grace se refugia no povoado de Dogville, no Colorado. Mas, em troca da proteção, os habitantes da pequena comunidade tipicamente americana cobram um preço cada vez mais alto. O convívio é, inicialmente, amistoso, graças ao esforço de Tom (Paul Bettany), um tímido intelectual, para integrar a moça.

O diretor Lars Von Trier

Grace ajuda de forma abnegada cada família com seus afazeres, mas quando se descobre que ela está sendo procurada pela polícia, as exigências – incluindo as sexuais – se tornam crescentemente absurdas. A reticência inicial é substituída pelo impulso de tirar partido da situação. Bondade, solidariedade e generosidade se revelam a face visível e enganosa de uma perversão coletiva, diante da qual Grace é uma vítima impotente. Continente fevereiro 2004


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Nesse mundo cão, quanto mais vulnerável Grace (o nome não é casual, remetendo à graça cristã) se mostra, mais os habitantes do povoado mostram os dentes, até que esse processo de escravização atinge dimensões inimagináveis, como se Grace estivesse sendo oferecida em sacrifício a uma divindade maligna: o espírito protestante do capitalismo. Essa história de humilhação e vingança, que revela a maldade inerente ao ser humano, é contada em Dogville, a experiência mais ousada do cineasta dinamarquês Lars Von Trier. Com quase três horas de duração e um elenco que reúne estrelas como Nicole Kidman, Lauren Bacall e James Caan, o filme causou grande controvérsia no último Festival de Cannes e pode ser entendido como um questionamento radical aos alicerces morais da sociedade e da cultura dos Estados Unidos. É claro que o diretor alimenta a polêmica em torno do antiamericanismo: por exemplo, ao encerrar o filme com um seqüência de fotografias de época sobre a dureza da Continente fevereiro 2004

Depressão, ao som de David Bowie. Mas Dogville é mais que isso: Lars Von Trier, um dos criadores do movimento Dogma 95, faz uma fábula perturbadora sobre a natureza humana. É claro que a América da grande Depressão proporciona os ingredientes ideais para esse empreendimento, porque ali se radicalizaram de forma hiperbólica distorções de valores, mas o alvo do raivoso diretor não respeita fronteiras: é o espírito burguês e hipócrita que massacra, explora e desumaniza o indivíduo, não importa onde nem quando. Aliás, Dogville foi filmado na Suécia – entre outros motivos, porque Trier tem horror de avião. “Quando estive em Cannes com Dançando no Escuro, alguns jornalistas me criticaram por ter feito um filme que se passava nos Estados Unidos, sem nunca ter posto os pés naquele país”, declarou o diretor. “O comentário me irritou. Que eu me lembre, ninguém da equipe de Casablanca havia pisado no Marrocos. Isso me pareceu injusto, e foi então que decidi fazer mais filmes sobre os Estados Uni-


CINEMA 51 » Fotos: Divulgação

Fugindo de mafiosos durante a Depressão, a jovem Grace, vivida por Nicole Kidman, vai procurar proteção no povoado de Dogville

dos. Dogville foi o primeiro. A ação transcorre na América, mas numa América vista por mim. Além disso, a voz do narrador foi gravada por um ator inglês (John Hurt), porque eu não queria esconder que se trata da visão de um observador exterior. Não me preocupei em fazer uma pesquisa, porque não se trata de um filme histórico. É um filme de emoções, que fala dos Estados Unidos, mas poderia falar de qualquer país do mundo. Acredito que os Estados Unidos são um estado de espírito, um mito que pertence a todo mundo, e não somente aos americanos. Kafka tampouco esteve lá, mas escreveu o romance América, que eu adoro”. De fato, não se trata de um filme histórico, embora reflita uma posição política do diretor: é, antes, sobre a nossa época, de uma depressão mais ampla e generalizada. Tratar Dogville como um filme antiamericano, é fazer uma leitura redutora, embora não totalmente equivocada – já que ser explorado no trabalho e moralmente esmagado é o preço que muitos estrangeiros pagam diariamente para se inte-

grarem à sociedade americana: a única forma de se assimilar, na chamada terra das oportunidades, é aceitar docilmente as regras do jogo. Mesmo que seja para se vingar depois: é quando Grace passa da posição de vítima à de carrasco ou justiceira. O que marca uma inovação na filmografia de Trier, cheia de mulheres que se deixam explorar por amor e percorrem até o fim um calvário rumo à redenção (caso de Ondas do Destino e Dançando no Escuro). “Creio que a vingança feminina é mais interessante de abordar que a masculina, que as mulheres expressam e interpretam melhor esse sentimento”, afirma o diretor. “Num homem, a vingança se converte em crueldade e brutalidade. Numa mulher, em sutileza e sangue frio. Acho que provoquei a mim mesmo ao escolher o tema da vingança pessoal, que é algo que vai totalmente contra os meus princípios”. Numa época de tanta mesmice e falta de criatividade dos cineastas, Dogville faz uma fusão entre o cinema, o teatro e a literatura. Com uma proposta inovadora e polêmica, Trier Continente fevereiro 2004


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aboliu os cenários convencionais e reuniu sua equipe e elenco num grande estúdio, onde todas as casas e ruas foram desenhadas no chão, o que aproxima Dogville do teatro – lembrando, por exemplo, a peça Nossa Cidade, de Thornton Wilder, um clássico da dramaturgia americana, além de outras referências – e elimina do filme qualquer caráter naturalista. O foco das atenções se concentra nos personagens e seus dramas pessoais: a misteriosa chegada de Grace ao povoado faz cada indivíduo libertar o que tem de pior dentro de si, sugerindo que o ser humano se torna capaz das piores crueldades com seu semelhante, quando não há perspectiva de punição. Ou, melhor, capaz de tudo com seu “diferente”, já que é a resistência ao “outro”, como elemento desestruturador, que desencadeia tudo. “Eu me senti inspirado pelas fotos em preto e branco realizadas por encomenda do governo americano na época da Depressão, mas nunca pensei em fazer um filme em preto

e branco”, explica o diretor. “Seria como colocar um filtro entre o filme e o público, uma forma de estilização. Quando se faz um filme que já tem algo muito estranho –no caso, os cenários desenhados no solo –o resto deve ser o mais normal possível. Se existem muitos elementos chocantes, o público se distancia do filme. Quando se experimenta, só se deve mexer em um elemento de cada vez”. Os elementos teatrais, começando pelos cenários riscados no chão, criam um efeito de artificialidade que a divisão da narrativa em capítulos (um prólogo e nove quadros) e até mesmo o estilo da interpretação acentuam. A intenção fabular é evidente, bem como a assumida inspiração brechtiana, na maneira como Dogville mostra o avesso das relações sociais. E Lars Von Trier já está trabalhando numa continuação, que será a segunda parte de uma trilogia sobre a América. “Meu problema é que a cada filme quero fazer uma nova experiência formal. Mas o mundo que criei em Dog-

Grace com uma das moradoras da cidade, Gloria, a atriz Harriet Andersson

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Grace conversa com Jack McKay, interpretado por Ben Gazzara Abaixo, Grace e Tom, vivido por Paul Bettany, num caloroso abraço

“Quando estive em Cannes com Dançando no Escuro, alguns jornalistas me criticaram por ter feito um filme que se passava nos Estados Unidos, sem nunca ter posto os pés naquele país”, declarou o diretor. “O comentário me irritou. Que eu me lembre, ninguém da equipe de Casablanca havia pisado no Marrocos”

ville me inspira tanto que eu gostaria de continuar vivendo ali um pouco mais, pois há um potencial que quero seguir explorando. É claro que fazer três filmes de três horas da mesma forma é problemático, mas tenho a intenção de desenvolver a história de Grace. Já escrevi o roteiro da segunda parte, que se chama Manderlay, que se passa no sul dos Estados Unidos e começa dois dias depois do final de Dogville. Mas, para a última parte, estou pensando numa cidade como Washington. A trilogia será o retrato de uma mulher e seu processo de amadurecimento. Vai ser divertido fazer três filmes, dando continuidade à mesma história. Gosto de histórias longas, é como ler um bom livro”. “Divertido” é uma palavra pouco apropriada para descrever o cinema de Lars Von Trier, marcado pela angústia e por uma feroz virulência moral, que se expressam sempre com uma inovadora radicalidade formal. O confinamento dos personagens num espaço preciso, como recurso para enfatziar a encenação, não é novo na filmografia do diretor dinamarquês: foi o caso do trem em Europa, da casa em Os Idiotas e da fábrica em Dançando no Escuro. No caso de Dogville, o distanciamento é reforçado pela estética do teatro televisado dos anos 70, com câmera na mão e sem nenhum efeito especial. Nascido em 1956, Lars Von Trier revelou seu gosto pela provocação e pela transgressão desde seus primeiros trabalhos – sua estréia foi em 1984, com O Elemento do Crime, mas ele só alcançou reconhecimento internacional a partir de Europa, de 1991. A filmagem de Dogville foi um calvário para o elenco – o diretor chegou a instalar “confessionários” no estúdio, para os atores desafogarem suas mágoas diante de uma câmera, depois das longas sessões de trabalho espartano. Nos depoimentos, que estão sendo usados no trailer do filme, Nicole Kidman começa a chorar, e o veterano Ben Gazzara diz que nunca mais voltará a trabalhar com um “cineasta louco”. Trier é, de fato, conhecido por empregar métodos pouco ortodoxos para levar os atores ao limite de suas capacidades. A cantora Björk, que fez o papel principal de Dançando no Escuro, disse que a experiência foi um pesadelo, e que nunca mais voltaria a fazer um filme. Aos que o chamam de excêntrico, Trier responde: “Meu modesto objetivo na vida é enriquecer o cinema”. • Luciano Trigo é jornalista. Continente fevereiro 2004


54 REGISTRO

Fotos: Reprodução

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Norberto Bobbio (1909 - 2004)

A história está apenas começando Ao morrer, aos 94 anos, Bobbio havia construído uma obra em que as questões candentes da contemporaneidade foram enfrentadas com lucidez Homero Fonseca

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uas grandes correntes de pensamento político dividem os homens. Norberto Bobbio, o grande intelectual italiano/universal morto no começo do ano, sintetizou-as de maneira magistral (no sentido rigorosamente etimológico): “Uma das poucas coisas que aprendi da história e da meditação através dos livros com homens de todos os tempos é que uma das maiores linhas de divisão entre os homens, em sua atitude para com seus semelhantes, é a que ocorre entre igualitários e não-igualitários, ou seja, entre os que crêem que os homens são iguais entre si, apesar das diferenças, e os que crêem que são desiguais, apesar das semelhanças”. (As Ideologias e o Poder em Crise, UnB, 1988). Dessas concepções, colocadas na moldura da história, isto é, das condições reais em que os homens vivem em sociedade, decorrem os grandes embates políticos da nossa era. De um lado, o socialista – “aquele que tende a evidenciar não o que distingue os homens enquanto indivíduos, mas aquilo que têm em comum enquanto homens”. De outro, o liberal – “aquele que tende a evidenciar não aquilo que os homens têm em comum enquanto homens, mas aquilo que têm de diferente enquanto indivíduos”. Continente fevereiro 2004

Bobbio em 1996: um pensador autônomo


REGISTRO 55

Em 1986, em pleno regime Pinochet, estudantes da Faculdade de Direito de Valparaiso recebem Bobbio com faixa de saudação

Isto posto, o debate resvala para a dicotomia fundamental, historicamente consubstanciada nos grandes regimes políticos da nossa história recente e fundadora da “guerra fria”: a existência dos regimes “socialistas”, encarnados na exURSS (e hoje em processo de revisão na China), em que o ideal igualitário, sob gigantescos aparatos estatais, corrói a liberdade individual versus a dos regimes de “democracia liberal”, cujo ícone supremo é o Império Americano, em que as liberdades individuais convivem fundamentalmente com a desigualdade social. Os intelectuais foram chamados a literalmente tomar partido frente a essa dicotomia. E Norberto Bobbio o fez resolutamente. Militante antifascista desde a juventude, professor, escritor, filósofo político, conferencista, colaborador de jornais, Bobbio escreveu centenas de textos em livros e jornais, em que explicitou sua opção socialista e, principalmente, trouxe uma contribuição original. Pois, apesar de viver numa Itália torturada pelo dilema ideológico, opôs-se intelectualmente à simplificação partidária do confronto igualdade x liberdade. Ao rejeitar o “estatismo totalizante” soviético e o “individualismo atomizante” do capitalismo liberal, acrescentou uma abordagem teórica em que, refinando o conceito de igualdade, inclui nele a liberdade como qualidade imanente. Isto, ao definir igualdade como “reciprocidade de poder”. Em suas palavras: “A igualdade do poder é uma das maiores condições para o crescimento da liberdade. Se por um lado não faria sentido algum dizer que sem liberdade não há igualdade,

por outro, é perfeitamente legítimo dizer que sem igualdade (como reciprocidade do poder) não há liberdade”. E deixando mais claro: “Objetivamente, uma das razões através das quais numa sociedade existem pessoas livres e pessoas não-livres, ou ainda, mais livres e menos livres, é a péssima distribuição do poder”. Essa é a grande contribuição de Bobbio que, mesmo engajado no ideal socialista, mas totalmente liberto das amarras ideológico-partidárias, representou o papel digno de um intelectual: o de ter a coragem de pensar. Ao morrer, aos 94 anos, Bobbio havia construído uma obra em que as questões candentes da contemporaneidade – moral política, poder, ideologia, socialismo, comunismo, capitalismo, terrorismo, igualdade, liberdade – foram enfrentadas com lucidez. E, embora inúmeras vezes se proclamasse um pessimista, enfatizando mesmo o “dever” de se ser pessimista (como postura crítica para fugir da tentação totalitária das utopias inexeqüíveis), afirmou, numa espécie de balanço do século 20 (Diário de um Século - Autobiografia, Campus, 1998): “A democracia, sim, venceu; mas sua vitória não é definitiva. Numa visão laica (não mítico-religiosa), liberal e realista (não totalizadora e utópica) da história, nada é definitivo. A história humana não apenas não acabou, como anunciou há alguns anos um historiador americano, mas, talvez, a julgar pelo progresso técnico-científico que está transformando radicalmente as possibilidades de comunicação entre todos os homens vivos, está apenas começando”. • Continente fevereiro 2004


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56 ESPECIAL

O mundo pelo avesso Em Pernambuco, na Bahia, no Rio, em Nova Orleans e em Veneza, é tempo de Carnaval


Foto: Hans V. Manteuffel

ESPECIAL 57 »

Maracatu rural, de Pernambuco: camponeses transformam-se em guerreiros multicoloridos

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té hoje não há consenso entre historiadores e estudiosos sobre as origens do Carnaval. O mais provável, no entanto, é que uma série de atividades celebrativas, ao longo dos séculos, foi engendrando e dando forma ao que hoje conhecemos como período momesco. Desde os cultos agrários praticados cerca de dez mil anos a.C, em cortejos nos quais as pessoas, pintadas e enfeitadas, dançavam para os deuses da fertilidade, antes da época de plantio, até o Egito, nas comemorações da deusa Ísis e do boi Ápis, e a Grécia, nas festas de culto a Dionísio, entre os anos 605 e 527 a.C. Mas os festejos que mais se parecem com o Carnaval moderno estão no Império Romano, ainda antes do nascimento de Cristo, onde haviam as Saturnálias, em louvor de Saturno, o deus do tempo. Aconteciam entre novembro e dezembro e, dos nobres aos escravos, todos se misturavam nas ruas para comer, beber e dançar, sob a proteção de Baco, deus do vinho. Durante os festejos tudo se invertia, tanto que o Rei Momo, que podia ordenar o que quisesse durante o período, era encarnado por um escravo da classe mais baixa de Roma. Dentro deste esquema de inversão, as pessoas representavam papéis, fingindo serem o que não eram. Daí ao costume das máscaras, herdadas do teatro clássico grego, representando não só outros personagens como também figuras fantásticas. A história tem continuidade na Idade Média, com as festas em que as pessoas comiam, bebiam e se entregavam alegremente a todo tipo de excesso, compensando, antecipadamente, o período da Quaresma cristã, caracterizada por tristeza, jejuns e abstinências. É nesse tempo, também, que se cogita estar a origem do nome da festa, a partir da expressão “carnem levarem”, depois modificada para “carne, vale” (adeus, carne), referindo-se à proximidade proibitiva da Quaresma. Segundo Roberto Benjamin, presidente da Fundação Nacional do Folclore, o Carnaval se caracteriza, sobretudo, como um período de tempo limitado e repetido todos os anos na mesma época, onde se provoca a ruptura da ordem social e a inversão de valores e papéis, especificada paradigmaticamente na expressão “o mundo pelo avesso”. De acordo com o estudioso, “a ruptura da ordem social vai dar lugar a manifestações de fuga das situações do cotidiano. A fantasia de ser “rei, pirata ou jardineira” nos três dias de Carnaval e ser, no resto do ano, motorista, pedreiro, empregada doméstica ou biscateiro. A fantasia de travestir-se e assumir o outro sexo. A fantasia de fugir da condição humana e assumir o corpo do animal, cujos atributos lhe sejam simbolicamente desejados”. Mas, adverte, ainda, “seria um equívoco tomar todas as transfigurações carnavalescas como manifestações de pura alienação. Na verdade, a oportunidade de ter o mundo pelo avesso é o momento propício, também, para a crítica política e social, expressa através de manifestações satíricas, da dessacralização das pessoas e coisas da religião, do poder político e do poder econômico”. Em Pernambuco, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Veneza ou Nova Orleans, esse espírito ganha características específicas da cultura de cada local, é claro. Em uns prevalece o frenesi, em outros, a beleza, em outros, ainda, o excesso de organização. Mas em todos eles, a ordem primeira é sempre a mesma: é tempo de virar o mundo pelo avesso! •

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Os outros carnavais

Foto: Acervo Instituto de Cultura Brasil-Itália/ Flávio Lamenha

O Carnaval de Veneza, na Europa, e o Mardi Gras, nos Estados Unidos, mantêm a tradição da folia em outras paragens

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ESPECIAL 59 »

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As máscaras, representando personagens da commedia dell’arte, são uma das características do Carnaval veneziano

Foto: Acervo Instituto de Cultura Brasil-Itália/ Flávio Lamenha

rlequins, pierrôs, colombinas e polichinelos, todos usando fantasias de corpo inteiro e belas máscaras de seda e veludo, são as figuras mais comuns encontradas principalmente na Praça de São Marco, durante o Carnaval de Veneza, na Itália. A festa tem origem nas comemorações pagãs da Roma Antiga e foi fortemente influenciada pelo teatro popular, apresentado nas feiras da Idade Média e pela commedia dell’arte, da qual herdou os personagens principais. Se não é o maior nem o mais frenético, o Carnaval de Veneza é, certamente, o mais belo, graças às máscaras e fantasias. E seu grande trunfo consiste, justamente, em todo mundo estar disfarçado. Muitas vezes, não dá para saber se o mascarado é homem ou mulher. Muitas vezes, por trás de uma máscara, está um personagem famoso – do cinema, da música, até da política – que aproveita o anonimato para se esbaldar... Como os artesãos italianos desenvolveram um grande apuro na confecção de máscaras, o Carnaval veneziano terminou se caracterizando por grande elegância. Uma das máscaras mais procuradas é a tradicional bauta (branca, em forma de bico), completada por um chapéu de três pontas, um tabarro (casaco largo) e uma capa preta de seda cobrindo ombros e pescoço, recriando a figura do nobre veneziano. E, graças à sua origem teatral, passou-se a esperar, dos seus participantes, a encarnação, na gesticulação e no comportamento, da personalidade de cada uma das fantasias escolhidas. Como no Brasil, é uma festa que está carregada de erotismo. Tanto que um de seus maiores símbolos é Giacomo Casanova, um veneziano do século 18, considerado o maior conquistador de todos os tempos, e que reinava absoluto durante o período carnavalesco, aproveitando a mascarada para suas ardentes aventuras. No século 19, entretanto, a festa entrou em decadência, até desaparecer por completo. Ressurgiu no século 20, por decreto, visando incentivar o turismo. Terminou dando certo. Hoje, a festa retomou seu espírito espontâneo e tradicional, sendo vivida alegre e democraticamente por italianos e turistas. Mardi Gras – O Carnaval de Nova Orleans, o Mardi Gras, é famoso mundialmente pelo

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60 ESPECIAL Foto: Reuters

O Mardi Gras (EUA) é famoso pelo desfile de carros alegóricos dos

desfile de carros alegóricos dos clubes carnavalescos, lá conhecidos como krewes, e pela folia das pessoas que celebram pelas ruas da cidade com todo tipo de fantasias e máscaras. Cada grupo de carros alegóricos possui um trajeto fixo e um tema, e saem em desfile jogando enfeites, adereços e presentes aos foliões que os acompanham pela rua. O princípio dos carros alegóricos de Nova Orleans é o mesmo dos nossos blocos carnavalescos locais. Todos têm seus próprios membros que organizam e executam o desfile sempre no objetivo de entreter e fazer brincadeiras com o público. Os desfiles mais esperados e famosos são dos krewes de Zulu e de Bacchus. Este último, por exemplo, promove uma parada com mais de mil membros e 31 carros alegóricos. Desde o século 18, quando a Louisiana ainda pertencia à França, os franceses já promoviam bailes de máscaras particulares. Quando o governo espanhol tomou o controle, baniu as festas populares, máscaras e danças na rua, que só voltaram a ser permitidos em 1827 com os americanos no poder. Entretanto, o Mardi Gras de Nova Orleans, como é conhecido hoje, só tem sua origem em 1857, quando um grupo de homens decidiu criar uma Continente fevereiro 2004

sociedade chamada The Mystick Krewe of Comus, a fim de planejar e organizar celebrações pela cidade. Promoveram uma parada com dois carros alegóricos e assim nasceu a tradição. A festa foi ganhar ainda mais impulso, em 1872, com a visita do duque russo Alexis Romanov, que estava na cidade atrás de uma atriz por quem havia se apaixonado em Nova York. Os habitantes de Nova Orleans, sabendo da presença do duque na cidade, resolveram planejar uma festa digna para receber um nobre. Criaram um novo krewe, escolheram o roxo, o verde e o dourado como as cores do Carnaval e realizaram um desfile de muita exuberância, que é o que caracteriza o Mardi Gras de Nova Orleans até hoje. •

Para saber mais: Exposição Itália – Um Carnaval Diferente. Instituto de Cultura Brasil-Itália. Até 31 de março. Rua Marques de Amorim, 46. Boa Vista, Recife - PE. Fone (81) 3221.4112. www.culturabrasilitalia.hpg,com.br.


Foto: Ricardo Leoni/ AG. O Globo

O mundo não é um sambódromo


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Se há algo em processo de extinção no Carnaval brasileiro, é justamente a malícia, o improviso, a espontaneidade Daniel Piza

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ue ainda pensem em ampliar o Carnaval carioca é inacreditável. Já não é de hoje que o Carnaval se transformou num espetáculo, num megashow que alimenta a indústria do turismo e a da mídia, como sabe qualquer espectador que se senta diante da TV Globo durante a transmissão dos desfiles das escolas do Rio (e de São Paulo também, cada vez mais) e vê aquele exagero de câmeras e travellings, de modelos de silicone, de sambas-enredos feitos apenas de transpiração e sem inspiração. Está certo, Carnaval rima com apoteose, com festa “dionisíaca”, com exagero, com lixo convertido em luxo. Mas esse Carnaval-Hans-Donner, superproduzido, overkitsch, para europeu ver e ouvir até ficar surdo, termina sendo uma traição do que ele mesmo costumava significar. Não se trata de nostalgia à la Tinhorão, nem de ressentimento ideológico contra o oportunismo marketeiro desses eventos, mas de uma verificação simples de que, em nome do entretenimento, o Carnaval sacrificou boa parte de sua arte. Os fãs do espetáculo, que pagam bom dinheiro para ir ao Sambódromo ou muito mais para alugar sua fantasia e tentar rebolar na avenida, argumentam que não há nada como ver a bateria passar, o mestre-sala e a porta-bandeira dançarem, o povo todo chacoalhar e cantar em uníssono enquanto identifica os habitantes da Ilha de Caras nos destaques dos carros alegóricos. Há, afinal, ingrediente suficiente para garantir a audiência do evento por muitas décadas: música ritmada, gente famosa (“Olha lá, não falei que ela tinha botado silicone?”), atenção nacional e mundial. Mais sofisticadamente, também é possível argumentar que, mesmo envelopado em ocasião midiática, o Carnaval carioca, além de ser um exemplo de organização popular, ainda é uma demonstração indispensável da identidade nacional, da conversão do comportado entrudo português em erotizada folia multirracial – assim como os brasileiros pegaram o nobre esporte britânico e o encheram de malícia e improviso. Continente fevereiro 2004


Foto: Marcelo Theobald/ Ag. O Globo

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As mulatas são um item de peso no Carnaval empacotado para turistas

Mas este é o ponto. Se há algo em processo de extinção no Carnaval brasileiro, é justamente a malícia, o improviso, a espontaneidade. E se engana quem pensa que Carnaval é uma simples expressão de alegria, de prazer de viver, de molecagem tupi. Não, Carnaval nada seria sem o samba, e o samba, como disseram Vinicius de Moraes (“Tristeza não tem fim/ Felicidade sim”) e Caetano Veloso (“A tristeza é senhora/ Desde que o samba é samba é assim”), nada seria sem a tristeza. Foi da tristeza de uma vida simples e apaixonada que Noel Rosa e Cartola compuseram suas canções memoráveis; e mesmo nas marchinhas de Ary Barroso e Lamartine Babo era a tristeza que tinha de ser espantada. Nesse samba-enredo monótono e marcial que se ouve nos desfiles, afora a pretensão das letras, o que sobra é alegria artificial, de fora para dentro, sem o poder transforma-dor do samba de qualidade. E que espontaneidade pode haver num desfile de mais de uma hora, controlado no cronômetro, submetido a quesitos pseudocientíficos, dedicado a algum tema esdrúxulo como os faraós egípcios e transmitido em todos os detalhes para as TVs do mundo todo? Nem mesmo os carros alegóricos mais carregados de tecnologia e gigantismo conseguem surpreender, e tudo se passa como se fosse uma festa para a qual não fomos convidados, mas obrigados. É como se o mundo tivesse de caber no sambódromo. Até frases de efeito como a de Joãozinho Trinta (na verdade criada por Elio Gaspari), “Quem gosta de miséria é intelectual”, fazem parte do sistema. Mas, ao final das contas, não há megalomania que salve. Se no futebol uma boa dose de disciplina e tática faz bem, no Carnaval o excesso de controle e propaganda está fazendo mal. Com exceção dos políticos locais, dos bicheiros e traficantes e dos turistas de primeira viagem, esse Carnaval desagrada aos amantes do bom samba e às pessoas de espírito folião. Pode ter até gente boa do pé, mas certamente só interessa àquela ruim da cabeça. • Daniel Piza é jornalista. Continente fevereiro 2004


Foto: Antônio Melcop

O som metálico dos frevos é a marca principal, mas as manifestações da folia são muitas e diferem entre si

Carnaval de Pernambuco

Um roteiro de diversidade S

e o termo “multicultural” está assim tão em moda, não é de hoje que a marca do Carnaval pernambucano é a multiplicidade de culturas. Uma eficaz prova disso é a existência de agremiações populares e manifestações da cena pop que dão o tom de tradição e contemporaneidade a um velho conhecido de brasileiros e turistas mundo afora. O que se vê oferece uma dimensão do variado repertório de brincadeiras, que, já no início dos anos 60, inspirou a antropóloga norte-americana Katarina Real a escrever uma das mais importantes obras sobre o folclore no Carnaval do Recife. Isto, para falar apenas no que pode ser visto na capital do Estado, como uma espécie de extrato, bem concentrado, da variedade que se espalha nos limites do território

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A folia pernambucana mistura tradição e contemporaneidade, num variado repertório de brincadeiras, ritmos e fantasias da criação e da arte Maria Alice Amorim

pernambucano. Na Mata, Agreste, Litoral e Sertão, o caboclinho, o maracatu, o boi, o urso, o papangu, os caretas, as cambindas e tantas outras manifestações populares tradicionais e/ou espontâneas do nosso Carnaval falam, com sotaques diferentes, a mesma língua de batuques e clarins, de danças dramáticas e festas religiosas, de ancestralidades africana, ibérica e indígena. Logo, nessa festa que reúne importante fatia dos ritmos marcantes de Pernambuco, não podem faltar, sob hipótese nenhuma, o baque virado dos tambores de maracatu nação, o sopro e a percussão misturados ao ronco da porca e à batida rouca dos chocalhos do baque solto de maracatu rural, os acordes líricos dos blocos de pau e corda, o som metálico do frevo de rua, a pancada ágil de


ESPECIAL 65 »

Foto: Hans V. Manteuffel

marinho, cambindas, Reis de Congo. É imperdível, por exemplo, assistir à cerimônia da trincheira ou chegada dos folgazões à sede do Cambinda Brasileira, no engenho Cumbe, em Nazaré da Mata, ou do Estrela de Ouro, no sítio dos Batista, em Chã de Camará, em Aliança, não só pela riqueza do espetáculo, quanto pela ambiência. É num cenário rural, onde a cana-de-açúcar dá o tom dos verdes cabelos ao vento, que o mestre de maracatu, batuta à mão, desfia os versos improvisados, chamando, um a um, os caboclos, as baianas, os caboclos de pena, para juntos cumprirem o rito de mais um Carnaval, visitando as cidades da Zona da Mata e Região Metropolitana do Recife. Na Cidade Tabajara, o maracatu Piaba de Ouro tem sede e acolhe todos os grupos de maracatu rural que chegam por lá, oferecendo um espetáculo de plasticidade singular. Show à parte são os mestres de maracatu, improvisadores, que ofertam ao espectador um repertório poético-musical singular. A Noite dos Tambores Silenciosos reúne todas as nações do maracatu de baque virado

Foto: Helder Ferrer

um boi, o som melífluo da flauta de caboclinhos, a marcha-frevo da sanfona da la ursa, o batuque sincopado do samba de escola ou de bloco. Claro que ficar no Recife – na praça de Casa Forte, no Bairro do Recife, ou no pátio de Santa Cruz, na Boa Vista – é uma opção para quem deseja usufruir dessa diversidade num determinado endereço. Por essas localidades, e pela avenida Nossa Senhora do Carmo, Pátio de São Pedro e do Terço, passam orquestra e clube de frevo, bloco carnavalesco misto, bloco afro, afoxé, troça, clube de boneco e tantas outras variedades da nossa fauna carnavalesca. O encontro de blocos líricos – Rua da Aurora, Praça Maciel Pinheiro, Bairro do Recife, Praça de Casa Forte – é momento imperdível para quem se emociona com o modo menor, o tom melancólico do frevo de bloco. Aliás, o Bloco da Saudade, de 1974, comemora os 30 anos com muitos festejos e mais um disco. Irreverência e misturação de ritmos, pelos artistas da cena mangue, pop, da música étnica, confirmam a dinâmica das tradições: sempre em diálogo com a modernidade, apesar dos embalsamadores da cultura. No Quanta Ladeira, de Casa Forte, é possível apreciar a mesma força do improviso poético presente em diversas brincadeiras do Carnaval pernambucano. O Boizinho da Gurita Seca e o Boizinho Alinhado, de Olinda, fazem o mesmo, desfiando versos no território acidentado daquela cidade-monumento, onde a irreverência é uma velha sócia da criatividade na hora de botar a alegria para subir e descer ladeira no embalo de tudo isso e mais as reinvenções do tradicional. Entretanto, se chega a vontade de passear pelos diversos cenários da folia pernambucana, não custa ir conferir, por exemplo, a performance do maracatu rural em alguma cidade da Zona da Mata, região à qual se atribui localidade de origem dessa manifestação, misto de cavalo

Os blocos de pau e corda dão um clima de lirismo à folia

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66 ESPECIAL Foto: Hans V. Manteuffel

Papangus dominam o cenário, na cidade interiorana de Bezerros

Na cidade de Buenos Aires, o mestre Zé Galdino é um craque, e não deixa fazer feio o maracatu Estrela Dourada. Em Aliança, o mestre Zé Duda, da Estrela de Ouro desde 1969, é outro dos grandes. Portanto, se o desejo é ver maracatu rural, Nazaré, Buenos Aires, Aliança, Tracunhaém, Araçoiaba, Igarassu são algumas das cidades que ofertam uma folia “rurbana”. Para apreciar os maracatus nação, um dos locais de topografia propícia é o sítio histórico de Igarassu, onde está sediado o maracatu Estrela Brilhante, um dos mais antigos em atividade, que existe, segundo a tradição oral, desde 1824, naquela localidade onde há remanescentes de negros escravos. Na abertura do Carnaval da cidade, vemos o grupo, que, durante o período, se desloca também para o Recife e Olinda. A batida do maracatu nação convida à dança e não nos deixa esquecer a estreita relação do baque virado com os terreiros de xangô. A vestimenta e adereços do baianal e demais componentes, assim como a dança, o ritmo, os personagens, tudo remete à origem desta festa: aquela antiga festa de coroação dos Reis de Congo, realizada durante o período colonial, cerimônia que acontecia diante de igreja dedicada à Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, e que serviu para aprofundar o sincretismo religioso. Criada nos anos 60, pelo jornalista Paulo Viana, e que vem acontecendo, com certa regularidade, desde essa Continente fevereiro 2004

época, “A Noite dos Tambores Silenciosos” reúne no Pátio do Terço, Recife, maracatus pernambucanos que prestam homenagem aos eguns, ou espírito dos mortos, no dia a eles dedicado, segunda-feira, em ritual conforme manda a tradição jeje-nagô. Variedades - Se o folião quer mesmo cometer a ousadia de abandonar a irreverência da folia olindense ou o lirismo das ruas do Bairro do Recife, pode dirigir-se à Mata Norte, como já foi dito, para ver maracatu, e também caboclinho, boi, burra. Lá, é fácil assistir a encontro de bois em Paudalho, Timbaúba, Limoeiro. Mas, se a direção escolhida é a Mata Sul, Agreste ou Sertão, logo em Vitória a diversidade dos clubes de alegoria impera: Zebra, Urso Branco, Galo do Cajá, Cisne, Camelo, Leão são alguns dos responsáveis pela animação carnavalesca da cidade. Entretanto, a atração mais exótica de Vitória de Santo Antão é o clube de fados Taboquinhas, em que os participantes estão vestidos à moda portuguesa, dançando e fazendo a marcação do ritmo batendo no chão com um pedaço de bambu pintado de verde, ao som de pandeiro, atabaque, violino, rabeca, cavaquinho e violão. Se em Ribeirão as cambindas apenas saem às ruas no domingo anterior ao de Carnaval, há, em Pesqueira, para sorte de quem estiver no Sertão, outro grupo de cambindas, a Cambinda Velha, de 1909 (conforme registrado no es-


ESPECIAL 67 tandarte), fundada por Aprígio Amaral, avô do atual presidente e mestre do grupo, Rosano Amaral. São aproximadamente 36 participantes, que desfilam no domingo e terça-feira. Enquanto em Triunfo quem dá o tom da festa são os caretas – enigmáticos mascarados que desfilam sozinhos ou em grupo com mensagem nas costas, guizos e relho (chicote) –, em Bezerros, no Agreste, são os papangus, os mascarados que fazem a fama, sobretudo no domingo, dia do concurso dos bandos mais criativos e originais nas fantasias. Uma das localidades especiais para quem já gosta de caboclinhos, ou se interessa em conhecê-los, é, além do Recife, a cidade de Goiana, litoral norte de Pernambuco. O Cahetés, Canindé, União Sete Flexas são três dos grupos que existem na cidade e também podem ser vistos na terça-feira, dia do encontro de caboclinhos, data especial para comparar coreografia, sotaque e visual de, pelo menos, algumas dezenas deles. Tracunhaém e Buenos Aires são tradicionais na beleza dos caboclinhos, como o Índio Brasileiro e o Índio Tupi-

O frevo exportação

Guarani. Influenciados pelo maracatu rural, os caboclinhos da Mata Norte têm vestuário parecido com o dos caboclos de lança e há a figura do mestre improvisador. Outras especialidades goianenses são as burrinhas, que têm encontro marcado nas ruas da cidade; as Pretinhas do Congo (baldo do rio e praia de Carne de Vaca); as escolas de samba (a maior é a Bambas do Ritmo); bonecos gigantes (O Homem da Praia, em Ponta de Pedras, Negro Bento, Boneco Liso); clubes carnavalescos tradicionais (Lenhadores); as orquestras de frevo. Experimentando ou não roteiro tão diversificado, uma garantia que se dá ao folião é a de que não faltará animação à festa pernambucana. Agora, quem quiser cair na farra, mesmo com toda a diversidade e complexidade de canto, dança e música, não necessita primar pela coreografia, nem entender de teoria musical, basta seguir a onda dos ritmos e, sentidos aguçados, deixar-se contaminar pela rica atmosfera de criatividade e tradição cultural. • Maria Alice Amorim é jornalista.

Foto: Valter Pontes/ Coperphoto

Pesquisas mostram que ritmo influenciou Carnaval do Rio e da Bahia Fábio Araújo

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Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas, colocou o médico pernambucano Pedro Ernesto Batista no posto de interventor do Distrito Federal. Carnavalesco, de família ligada ao Clube Filomomos, Pedro Ernesto tornou-se figura-chave na “exportação” da folia de sua terra natal, ao criar, em 1934, o Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Rio de Janeiro. Espécie de filial da famosa agremiação pernambucana, o Clube passou a desfilar nas ruas da então capital federal e lançou uma semente que rendeu inúmeros frutos. Em seu rastro surgiram grupos como Bola de Ouro (34), Pás Douradas (40), Batutas da Cidade Maravilhosa (42), Lenhadores (45) e Gavião do Mar (82). Em 1950, a presença do frevo no Rio de Janeiro já era tão forte que o Vassourinhas original, o do Recife, foi convidado para desfilar lá, levando uma orquestra de 65 músicos da Polícia Militar, regidos pelo tenente João Cícero. No entanto, a viagem do Vassourinhas estava destinada a mudar para sempre os rumos não do carioca, mas do baiano. Aproveitando uma parada do navio em Salva-

Trio elétrico baiano tem origem no clube Vassourinhas, do Recife

dor, o Clube desceu e se apresentou nas ruas para um público estupefato, que nunca havia visto uma orquestra de metais tocando frevo. A receptividade dos baianos foi tão positiva que inspirou, os hoje lendários, Adolfo Antônio do Nascimento (o Dodô) e Osmar Álvares de Macêdo a restaurar um velho Ford 1929 e sair, no domingo de Carnaval do mesmo ano, tocando em cima do carro. Osmar empunhava a “guitarra baiana”, conhecida pelo som agudo, enquanto que Dodô dedilhava o “violãopau-elétrico”, grave. Em 1951, a dupla repetiu a dose numa pickup Chrysler, convidando o amigo Temístocles Aragão para acrescentar o som do “triolim”, ou violão tenor. Estava criado o Trio Elétrico, filho legítimo do Vassourinhas. • Fábio Araújo é jornalista.


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Uma festa de bons costumes Continente fevereiro 2004

De 1998 a 2002, Murilo Matos fotografou o Carnaval do Recife Antigo, registrando as expressĂľes e gestualidade dos personagens, bem como o movimento e plasticidade das cenas Fotos: Murilo DĂĄlia Matos


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a virada do século, com a restauração do bairro do Recife Antigo, várias pessoas que não conseguiam mais espaço tranqüilo para brincar no Carnaval de Olinda, invadido pelos turistas, começaram a freqüentar o local onde também começavam a se apresentar, com regularidade, clubes mistos líricos de pau e corda, muitas vezes compostos por pessoas idosas. Famílias inteiras, das crianças aos avós, iam para aquele local rodeado de árvores e de uma belíssima arquitetura de prédios antigos revitalizados, alguns remontando ao século 17. Aos poucos o Recife Antigo começou a atrair outros tipos de agremiações carnavalescas e hoje congrega um dos mais bonitos carnavais de Pernambuco. A folia começa geralmente ao cair da tarde, quando vão chegando os pequenos grupos de foliões. Desfilantes e gente do povo misturam-se a pessoas da classe média, principalmente moças e rapazes, que também já desfilam e tocam em blocos e maracatus de baque virado. De 1998 a 2002, Murilo Dália Matos fotografou o Carnaval do Recife, visando principalmente o registro das expressões e do gestual, mas também atento à composição, movimento e plasticidade das cenas. O que pode ser comprovado neste belo ensaio. • Continente fevereiro 2004


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As moças que se preparam para a dança, o batuqueiro e sua coreografia, o casal real e a evolução das crianças: é o Carnaval tranqüilo do Recife Antigo

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A moça de classe média no maracatu, o músico do bloco lírico, o boneco gigante e a criança: tudo sob o olhar da mulata que descansa entre um desfile e outro

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74 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

“Nas vésperas do Natal, as mulheres iam para a festa na cidade e os homens passavam a noite tomando pinga, café, vinho ou batida de frutas”. J.Borges (Os Fins de Ano no Sertão)

Todas as bebidas

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oram 1.300 frangos, 500 perus, 300 pernis de presunto, 64 faisões, 18 pavões, 800 kg de camarão, 800 latas de trufas, 1.200 latas de aspargos, 12.000 sorvetes, 500 bandejas de doces sortidos. Mais 258 caixas de vinho, 300 de champanhe, 10.000 litros de cerveja e licores sem conta. Milhares de velas, balões e lanternas venezianas iluminavam os amplos salões, com vistas para o mar. Tudo ali era de um luxo fora de tempo. Os 3.500 convidados celebravam as bodas de prata da Princesa Isabel e do Conde D’Eu. De quebra, homenageando a tripulação do cruzador chileno “Almirante Cochrane”. Como toda festa que se preza, não faltaram brindes à saúde dos amigos – prática que remonta a velho hábito bárbaro, de beber sangue do inimigo em seus próprios crânios, para dele herdar vigor e virtudes. O Baile da Ilha Fiscal foi, literalmente, a última farra do Império. Seis dias depois, era proclamada a República. As bebidas nasceram quando o homem aprendeu a plantar. E aprendeu, também, a transformar em álcool o açúcar que vinha de frutas, cereais e raízes. Naquele tempo havia somente bebidas fermentadas – vinho e cerveja. Usadas, primeiro, apenas como remédio – para curar cálculos renais e infecções respiratórias ou digestivas. De-

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pois, em celebrações religiosas. Por fim, só por puro deleite. Com alguns exageros, claro. Platão chegou a recriminar o “uso imoderado do álcool, que causava desarmonia e perda da luz”. Todas as grandes civilizações daquela época celebraram seus deuses do vinho: Osíris, no Egito; Dionísio, na Grécia; e o mais famoso deles, Baco, em Roma – donde as bacanais. Calígula governou em meio a orgias. Nero, depois de alguns copos, declarava ser “homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens”. Achando pouco, incendiou Roma, e matou a mulher e a própria mãe. Onde havia fartura de cevada e lúpulo – especialmente na região em que hoje estão Inglaterra, Holanda, Bélgica, Alemanha, Polônia e Rússia – a preferência recaia na cerveja. “Vinho de cevada”, como chamavam os egípcios. Mas, em terras onde se podia plantar uva, reinava o vinho. Monges franceses tornaram famosos os da Borgonha e de Bordeaux. A Idade Média sagrou o apogeu dos mosteiros. O beneditino Dom Pérignon, encarregado das adegas da Abadia de Hautvillers, foi mais longe. Depois de ter tentado tudo para diminuir a acidez do vinho branco da região de Champagne, teve a idéia de colocar esse vinho em garrafas de vidro, para uma segunda fermen-


Reprodução

SABORES PERNAMBUCANOS 75 »

Bacchus, de Caravaggio, óleo sobre tela, c. 1597, Galeria Uffize, Florença

tação. Uma heresia, à época. Anos depois, provando o resultado de sua excentricidade, compreendeu que havia sido perdoado pelos deuses: “Venham todos! Estou bebendo estrelas!”. De quebra, ainda inventou a rolha de cortiça, em lugar dos couros e estopas até então usados para vedar garrafas; e o musselet – grampo de arame para prender essas rolhas, que teimavam em voar dos champanhes. O vinho passou a fazer parte da própria cultura. Até no linguajar. “Bom como vinho” é elogio. “De água para vinho” é mudar para melhor. “De boa cepa” diz-se de quem tem boa origem, em alusão à parte inferior do tronco das videiras, que determina a qualidade das uvas. Mas não reinaram sozinhos, os fermentados. Logo se começou também a produzir destilados. Invenção de alquimistas, a partir de técnica árabe – em que o calor eliminava o excesso de água, aumentando a concentração de álcool na mistura. Não por acaso, sendo árabe a própria palavra álcool (al-kool), significando algo que se evapora com facilidade. No retorno das Cruzadas, por volta do século 17, muitos desses equipamentos de destilar acabaram vindo à França. O governo francês começava, por essa época, a cobrar pesadas taxas sobre os vinhos. E quase nenhuma sobre os destilados. Começaram, então, a

ficar populares. Jacques de la Croix-Maron, imitando Dom Pérignon, submeteu a uma segunda destilação um vinho medíocre – o Charente, feito com uvas (folle blanche). Era ácido e se estragava com facilidade. Sobretudo quando transportado. Deu certo. Nascendo assim, meio por acaso, o primeiro e mais nobre dos destilados de vinho envelhecido, que tomou nome da própria região em que era produzido – Cognac. A partir daí, pouco a pouco, foram nascendo outras bebidas destiladas: uísque – à base de cevada, milho ou centeio; vodka – de cereais e batatas; gim – de cevada, aveia ou trigo, aromatizadas com zimbro; cachaça e rum – de cana-de-açúcar; e licor – de frutas, aromatizantes e álcool de cereais. O português trouxe com ele, para o Brasil colônia, um fermentado (vinho) e um destilado (bagaceira). Além de sangria – mistura de vinho, água, açúcar e rodelas de limão. A essas bebidas, vindas de longe, os índios deram o nome de “cauim-taiá” (bebidas de fogo), por serem bem mais fortes que as por eles preparadas, com matéria-prima da terra: mandioca – cauim, aipij, caxixi, carimãm, tikira; milho – aluá, abatií; batata doce – ietici; frutas – pacobi (pacova), nanai (ananás), ianipapa (jenipapo); e sobretudo mel – mulsum, militides, aqua mulsa, carimbá, caribé. Continente fevereiro 2004


SABORES PERNAMBUCANOS

“Com mel pode-se preparar licor, sem levá-lo ao fogo, apenas misturando-o com água da fonte e deixando-o ao relento”. A observação é de Joan Nieuhof (Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, 1682). São muitas as crônicas da época que falam dessas bebidas – consideradas deliciosas no sabor, mas repugnantes na preparação. É que as raízes eram mastigadas, e depois cuspidas, para que a saliva desse início à fermentação. “As mulheres é que fazem a bebida. Tomam as raízes de mandioca, que fervem em grandes potes. As moças sentam-se ao pé e mastigam essas raízes”, assim descreveu Hans Staden (1554) o preparo do cauim. Índias moças, segundo Gândavo; ou velhas, segundo Marcgrave. Tanto faz. Steinen se referia a essas bebidas como “ponche de ptialina”. A palavra tem raiz no Indostão (região do Gange), onde pânch significava “cinco” – porque cinco eram os ingredientes que entravam em sua composição – chá, açúcar, canela, limão, aguardente. Daí vem punch (Inglaterra) e ponche (França). Cada grupo familiar fazia sua própria bebida. Nas festas, iam em peregrinação de uma oca a outra, bebendo tudo que estivesse disponível. Durante a noite toda. Até a exaustão. “Bebem sem comer e comem sem beber”, escreveu Cascudo (História da Alimentação). Cantando, tocando trompetes rudimentares e dançando entre fogueiras. Escravos também tinham bebidas só deles: “garapa”, feita com a borra de caldo fermentado da cana; e “cachimbo”, mistura de cachaça e mel (de abelha ou de engenho). A cerveja chegou a Pernambuco com os holandeses, no século 17. Não fez sucesso. Depois, por volta de 1810, veio com os ingleses uma cerveja de gengibre a que chamavam ginger beer. Na linguagem popular, acabou “jinjibirra”. Esse gengibre logo foi, aqui, substituído por suco de fruta. Preferencialmente abacaxi. Mantendo-se inalterado o restante de sua fórmula – água, açúcar, cremor de tártaro, fermento de padaria ou ácido cítrico. “No beco de José da Costa, no Forte do Mato, se vende jinjibirra muito útil para refresco. Com botija custa 160 rs e sem botija 120 rs”, registra um anúncio de O Cruzeiro, em 1829, no Re-

Foto: Bárbara Wagner/ Cortesia Bar do Neno

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A cerveja chegou a Pernambuco com os holandeses, no século 17

cife, segundo Cascudo (História da Alimentação). A primeira fábrica de cerveja chegou ao Brasil só em 1836 – instalando-se na rua Matacavalos, nº 90, Rio de Janeiro. Era bebida do povo. O Cozinheiro Nacional refletia esse espírito, separando Casa Grande e Senzala – “na mesa vinho, no bar cerveja”. Depois vieram Antártica (1888), Brahma (1904) e mais um mundo delas. Passando a se fazer cerveja para todos os gostos. De baixa fermentação (pilsen, lager, bock) ou de alta (ale, porter, stout). Acabou virando preferência nacional. Sobretudo no Carnaval – festa feita, literalmente, de sangue, suor e cerveja. •

RECEITA: Ponche (de Vovó Maria José) INGREDIENTES: 2 maçãs, 2 pêras, 6 laranjas, 2 cachos de uvas sem sementes, 1 garrafa de Champanhe, 1 garrafa de vinho branco seco, 1 garrafa de suco de uva, 1 copo de vinho do Porto

PREPARO: • Descasque e corte em cubos maçãs, pêras e laranjas. • Coloque todos os ingredientes na poncheira. Sirva bem gelado. Maria Lecticia Cavalcanti é professora.

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA 77 Joel Silveira

1. MEU HORÓSCOPO Amolecido até as entranhas pelo calor, derrotado pelo bochorno, a cabeça pesada e vazia, tranco-me no quarto e ligo o ar-condicionado ao máximo. Motivado por vício antigo, vou procurar meu horóscopo no jornal do dia – e o dia já vai morrendo. Lá está: “Pensamento inquieto, rápido, alerta, afastando do seu corpo a preguiça e a indisposição. A noite será proveitosa”. Leio, bocejo, pego no sono. 2. FIGURA ÍMPAR – Sem modéstia, posso afirmar que sou uma figura ímpar na literatura brasileira. – Por que ímpar? – Em toda a minha vida, jamais, jamais recebi uma carta de Mário de Andrade. Nem mesmo através de Chico Xavier. 3. HORA DE FUGIR Tentar de toda maneira fugir de um fim de semana com todos os seus apelos e tentações – eis aí um sério problema para quem quer sobreviver nesta cidade do Rio de Janeiro. Tremo da cabeça aos pés, sinto frio na medula quando sexta à tarde ou no começo da noite o telefone toca e alguém do outro lado pergunta: – Você já tem programa para amanhã? O que me salva é que estou sempre saindo de uma hepatite – doença que nunca tive.

4. CAFÉ QUENTE, INSTRUMENTO DE SOPRO Tarde de ensaio na banda de música local, numa cidadezinha do interior. O suarento maestro dirige-se a uma senhora, gorda e compenetrada, que parecia entendidíssima em sons e harmonias: – A senhora toca ? – Só um instrumento de sopro: café quente. 5. SEM BANCA, NADA FEITO Eu jamais moraria num lugar que não tivesse uma banca de jornais na esquina – de preferência das bem grandes e sortidas. – Pode haver coisa mais viva que uma banca de jornais na esquina? • Joel Silveira é jornalista e escritor.

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MÚSICA

Cabo Verde Música transoceânica

Afinidades musicais entre Cabo Verde e Brasil ultrapassam a distância e os séculos Eduardo Lobo

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Foto: Achin Lewandowski Foto: Divulgação

Mindelo, capital cultural do Arquipélago de Cabo Verde

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iolão, cavaquinho e percussão: formação instrumental típica da música brasileira. Certo? Não totalmente. Nas ilhas de Cabo Verde isso também é verdade. E as semelhanças não param aí. Há muito mais em comum entre o que se produz musicalmente no Brasil e no arquipélago do oceano Atlântico, como nós, descobertos e colonizados pelos portugueses, e como nós, com forte influência de culturas africanas. Ponto de escala estratégico entre Brasil, Europa e a África Continental, principalmente para o tráfico de escravos, Cabo Verde também passou por intensa miscigenação que, entretanto, gerou uma cultura e língua própria – o crioulo, um dialeto baseado no português antigo com estruturas e expressões africanas. “Morna”, “coladeira” e “funaná” são os três ritmos musicais mais populares das ilhas de Cabo Verde. Ritmos que misturam toques de fado português, chorinho brasileiro, batidas cubanas, tango argentino e raízes africanas. A influência brasileira é, sem dúvida, uma das mais fortes. Cabo Verde foi um dos poucos casos em que o Brasil regressou à África para devolver cultura. No início do século passado, marinheiros brasileiros chegavam à ilha de São Vicente com seus instrumentos e, não raro, tocavam com os compositores locais. Assim, o chorinho e o samba influenciaram a música urbana do arquipélago. O “funaná” e a “coladeira” são os ritmos mais quentes e dançantes das ilhas. Esta última apareceu na década de 30, como uma aceleração da “morna”, por influência de estilos musicais brasileiros e cubanos. Já o “funaná” é o ritmo mais popular entre os jovens. Surgiu na ilha de São Tiago, da junção de um acordeão (em Cabo Verde chamado de “gaita”) e de um “ferrinho”, espécie de reco-reco de metal. A “morna” é o gênero que mais caracteriza o povo cabo-verdiano. É o blues do país. Uma música que nasceu do sofrimento do povo, tocada num ritmo lento e com letras que evocam a tristeza, o amor, a perda e a “sodade”, saudade em crioulo. A saudade é uma temática muito presente na música de Cabo Verde, por causa da grande diáspora que atingiu seu povo. As difíceis condições de vida em Cabo Verde, em virtude de vários ciclos de seca e do governo opressor da metrópole, provocaram vários fluxos migratórios, através dos séculos, de um povo que fugia da fome e do sofrimento, para várias partes do mundo. Hoje, existem mais cabo-verdianos e descendentes morando em outros países do que no próprio arquipélago, que tem uma população aproximada de 450 mil pessoas. Obviamente, vários artistas e músicos se viram na necessidade de partir também. Daí a constante presença da saudade da terra natal nas letras das “mornas”, cantadas quase sempre acompanhadas de violão, cavaquinho, piano e ocasionalmente violino. E não se pode falar em “morna”, sem citar Cesária Evora, a diva de Cabo Verde. Ela foi o grande divisor de águas para a música de Cabo Verde. Foi com seu sucesso internacional que as portas do mundo se abriram para a música do arquipélago. Com uma voz carregada de sentimento, freqüentemente comparada a Billie Holliday, “Cize”, como gosta de ser chamada pelos amigos, chega aos 62 anos de idade, dona de uma carreira bastante peculiar, na qual o sucesso só veio tardiamente. Como a maioria dos músicos e artistas de Cabo Verde, Cesária Evora nasceu em Mindelo, a capital cultural do país. Filha de um violinista e sobrinha de B. Leza, compositor cabo-verdiano, morto na década de 50, Cesária começou a carContinente fevereiro 2004


Foto: Divulgação

Simentera: música de raiz é o caminho das estrelas

reira, cantando nos bares e bordéis de Mindelo e nos lares de aristocratas portugueses. Com a independência de Cabo Verde, em 1975, um regime socialista foi instalado no país, provocando a fuga da aristocracia portuguesa que tinha sido o sustento da cantora. Pelos dez anos seguintes, ela praticamente abandonou a música. Até que, em 1985, numa excursão a Lisboa, um produtor francês de origem cabo-verdiana, José da Silva, conheceu a voz de Cesária e a convidou a Paris, a fim de gravar aquele que seria seu segundo disco e o estopim de sua carreira internacional, La Diva aux Pieds Nus (1988) – uma alusão a como ficou conhecida, a Diva dos Pés Nus, pelo seu hábito de cantar descalça. A partir daí, até hoje, foram mais 13 discos, turnês internacionais e seis indicações ao Grammy Awards na categoria World Music,

um rótulo que não agrada à cantora. Com Cesária Evora, entre os anos de 1994 e 1999, tocou o cavaquinista e violonista Rufino Almeida, mais conhecido como Bau, hoje considerado o melhor e mais respeitado instrumentista de Cabo Verde. Bau é reconhecido por apresentar várias influências estrangeiras e inovações nas suas composições. Autodidata, ganhou seu primeiro cavaquinho aos sete anos e não parou mais. Hoje, ele é um multiinstrumentista que, além do cavaquinho e do violão, também domina o violino. Bau tem como seu cavaquinista preferido, e também uma fonte de inspiração, o brasileiro Waldir Azevedo. Em seu último disco, gravou o maior sucesso de Waldir: “Brasileirinho”. Mas não foi a primeira vez, pois, em 1993, em seu primeiro disco, já havia gravado “Delicado”,

CESARIA EVORA

“Temos muito em comum” Na sua opinião, como a música cabo-vverdiana e a brasileira se assemelham? Existem muitas similaridades entre a música brasileira e a de Cabo Verde, e também da cultura em geral. Nós temos muitos dos mesmos costumes, a comida é muito parecida, as pessoas são amigáveis e acolhedoras e acho que é por isso que existe um elo tão grande entre Brasil e Cabo Verde.

Quais músicos e cantores brasileiros você mais admira? Eu sempre fui e ainda sou uma grande fã de Ângela Maria. Também admiro muito Caetano Veloso, Maria Betânia, Marisa Monte, Alcione e Martinho da Vila, só para citar alguns.

O que você acha, quando dizem que a música de Cabo Verde está fugindo de suas raízes? A música brasileira influenciou a sua carreira? Não acho que a música de Cabo Verde esteja fuEu amo a música brasileira e sempre escutei dife- gindo de suas raízes. Existem agora várias outras inrentes artistas, mas eu canto música tradicional de Cabo fluências na nossa música, especialmente nos artistas Verde. Apesar de haver várias semelhanças, eu não acho mais novos, mas eu acho que é normal e isso depende do gosto de cada um. que, de fato, tenha influenciado minha carreira.


MÚSICA

Foto: Divulgação

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Rufino Almeida, o Bau: abertura a influências externas

sica crioula. O grupo, de nove integrantes, tem como líder o músico e advogado Mário Lúcio de Souza (todos do grupo têm formação universitária). Usando apenas instrumentos acústicos (cavaquinho, violões de 6, 10 e 12 cordas, saxofone e percussão), a banda tem nos vocais dois tenores, duas sopranos e uma contralto e produz uma música surpreendente, cheia de nuances. Eles criticam a música eletrônica que se espalha pelo arquipélago, como produto de consumo. Mário Lúcio define assim, sobre para onde está indo a música de Cabo Verde: “Há duas direções. Há uma música que está a afunilar-se e há outra que vai em direção às estrelas”. • Eduardo Lobo é jornalista.

Foto: Divulgação

outro clássico do brasileiro, deixando evidente sua relação estreita com o baião e o choro brasileiro. Este último, um estilo pelo qual Bau se diz realmente seduzido. Porém, suas influências não param na música brasileira. Ele é também um apreciador da guitarra flamenca de Al di Meola e dos violinistas Stephane Grapelli e Jean-Luc Ponty, mais ligados ao jazz. Alguns críticos apontam a música de Bau como sendo demasiadamente estrangeirada. O músico discorda de tal julgamento, mas confessa que não gosta de ficar muito preso às tradições. Ele reconhece a inovação como um aspecto muito importante na sua música, fazendo evoluir a música de Cabo Verde à sua maneira. Com a mesma proposta de Bau, de inovação da música cabo-verdiana, mas numa direção diferente, está o grupo Simentera. Ao invés de inovar em direção ao exterior, o Simentera procura fazê-lo, regressando e partindo das raízes da mú-

Por outro lado, existem artistas que buscam um resgate das raízes de Cabo Verde, como o grupo Simentera. Qual sua opinião sobre isso? Assim como o Simentera, há vários outros artistas que ainda estão tocando música tradicional de Cabo Verde. Acho muito importante nos mantermos ligados a nossas raízes. Qual tem sido o caminho da música cabo-vverdiana? Acho que a música de Cabo Verde tem se tornado muito popular, não somente por causa de artistas como eu, que mostraram nossa música para o mundo todo, mas também por causa dos próprios cabo-vverdianos que moram nas ilhas e os que estão espalhados pelo mundo. (EL) •

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82 MÚSICA

Fotos: Reprodução

Toinho Alves, Marcelo Melo, Kiko Oliveira, Roberto Medeiros e Ciano Alves, o Quinteto em 1989: lançamento de disco só de música cabo-verdiana

O Quinteto Violado e as Ilhas de Cabo Verde Músicos pernambucanos lançaram, em 1989, um disco no qual fazem uma releitura da música caboverdiana e que permanece inédito no Brasil Fábio Araújo

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MÚSICA 83

O engenheiro agrônomo Marcelo Melo realizava pósgraduação em Sociologia Rural na Universidade Católica de Luvain, na Bélgica, quando entrou em contato com a comunidade cabo-verdiana. O gosto comum pelo violão e pela música o aproximou dos cerca de 500 estudantes daquele país, integrantes de uma “república” unida e engajada na mobilização contra o domínio de Portugal. Corria o ano de 1969 e as colônias lusas na África se lançavam na luta pela independência. Perto de Luvain ficava o porto holandês de Roterdã, onde a presença dos cabo-verdianos era enorme. Afinal, vindos de um país formado por 10 ilhas vulcânicas com menos de 20% de terras agricultáveis, era natural que eles tivessem uma formação voltada para o mar. O senso de resistência e preservação cultural ocasionou a criação de um selo, o Morabeza (“arte de bem receber”, em crioulo), por meio do qual gravavam discos ouvidos pelos compatriotas espalhados por toda a Europa. Boa parte desta produção tinha cunho político, de protesto. Naquele mesmo ano, Marcelo Melo foi convidado por seus amigos de Cabo Verde para participar de um disco a ser lançado pelo Morabeza. O trabalho se chamou Stora Stora e foi o início de uma longa relação entre o futuro vocalista do Quinteto Violado e o arquipélago africano. “Metade do disco tinha música brasileira, incluindo Luiz Gonzaga e clássicos da MPB, e a outra metade era de ritmos folclóricos de Cabo Verde”, lembra Melo. Em 1971, Marcelo volta ao Brasil e participa da fundação do Quinteto. Quatro anos depois, as colônias portuguesas da África conseguem a sua independência e os amigos que o músico fizera na Bélgica e Holanda assumem cargos estratégicos no novo governo. Um deles, Aguinaldo Rocha, vem para o Brasil e se torna cônsul-geral. O tempo passa e, no início dos anos 80, o Quinteto é convidado para participar de uma exposição de produtos culturais nordestinos naquele país. Faz vários shows e a antiga identificação musical ressurge com força. “Eles sugeriram que nós poderíamos fazer uma releitura de sua música. Conseguimos patrocínio, selecionamos repertório e gravamos o disco Ilhas de Cabo Verde em 1989”, lembra o músico. O trabalho permanece até hoje inédito no Brasil – foi lançado no arquipélago e distribuído entre caboverdianos ao redor do mundo. Era uma versão “quintetiana” de temas de domínio público e de compositores conhecidos daquele país. Duas canções, “Nho Miguel Pulnore” e “Nho

Jon”, já haviam sido gravadas pelo Quinteto. Duas outras, “Facada” e “Coisa de Nego”, são composições próprias do grupo. Marcelo afirma ter sido esta a primeira vez que uma banda estrangeira interpretava a música cabo-verdiana. A repercussão foi tão grande que o disco passou a ser usado como uma espécie de cartão-de-visitas do país. O timing acabou sendo bem oportuno, já que, exatamente nesta época, artistas, como Paulino Vieira, B. Leza, Morgadinho, Luiz Morais e Daniel Spencer começavam a se tornar conhecidos pelo Ocidente. Sem falar, claro, de Cesaria Évora. A amizade continua e, até hoje, o Quinteto Violado é convidado para eventos musicais em Cabo Verde. Influências comuns – Assim como no Brasil, a música daquelas ilhas tem fortes elementos vindos do colonizador português e do continente africano. A “morna” foi influenciada pelo fado. É um estilo nostálgico, que chora pelos filhos obrigados a deixar o país em busca de uma vida melhor. Já na “coladera” e principalmente no “funaná”, o suíngue africano é inconfundível. “Há pontos em comum com nossa música, como os fraseados do choro. As modinhas brasileiras estão presentes na “morna”, afirma Marcelo Melo. Devido à sua estratégica localização geográfica, entre a Europa, a América do Sul e a África, Cabo Verde sempre recebeu grande quantidade de informações culturais brasileiras, levadas pelos navios que lá paravam. Muitos caboverdianos vinham também ao Brasil, bebendo diretamente de várias fontes de cultura. O Carnaval deles, em especial, recebeu enorme influência da folia brasileira. Folguedos populares, como a marujada e a dança da umbigada, encontram identificação naquele lado do Atlântico. Após mais de três décadas de convivência, Marcelo Melo demonstra uma grande admiração pelo povo caboverdiano. “É uma comunidade muito musical, criativa e identificada com a canção e a poesia. Mesmo os que moram fora, guardam pelo seu país grande carinho e atenção, evitando que se percam os laços de afetividade”, descreve. Características fundamentais para a sobrevivência desta nação de 4 mil km2, a pouco mais de 400 km da costa africana, que tem muito mais filhos espalhados pelo globo do que morando em seu próprio chão. • Fábio Araújo é jornalista. Continente fevereiro 2004


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84 TEATRO

O bumba-meu-boi no teatro da morte Livro escrito pelo dramaturgo João Denys oferece interpretação original da obra do poeta-engenheiro Joaquim Cardozo Alexandre Figueirôa Foto: Arquivo DP

Joaquim Cardozo: talento comparável ao de Osman Lins, Eugenio Barba, Peter Brook e Ariane Mnouchkine

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uem conhece as peças do dramaturgo pernambucano Joaquim Cardozo – algumas delas reeditadas, no ano passado, pela Fundação de Cultura da Cidade do Recife (FCCR) – ou já teve a oportunidade de assistir às raras montagens de alguns de seus textos mais conhecidos, entre os quais destacam-se O Coronel de Macambira e O Capataz de Salema, deve ler Um Teatro da Morte: Transfiguração Poética do Bumba-meu-Boi e Desvelamento Sociocultural na Dramaturgia de Joaquim Cardozo. O trabalho do potiguar radicado no Recife, João Denys Araújo Leite, está disponível em publicação da FCCR e conquistou o prêmio Jordão Emerenciano do Conselho Municipal de Cultura na categoria ensaio, em 2002. Escrito como dissertação de mestrado em Teoria da Literatura para o Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, João Denys nos oferece uma interpretação original de um dos autores pernambucanos mais instigantes de nossa dramaturgia contemporânea. Cardozo, engenheiro responsável pelos cálculos das estruturas que permitiram ao arquiteto Oscar Niemeyer erguer Brasília, há tempos merecia um estudo minucioso de sua produção literária ou de, pelo menos, parte dela. O teatro de Cardozo, como nos faz lembrar com precisão João Denys, é vítima de um esquecimento lastimável. As menções a sua obra são esporádicas em compêndios sobre a história do teatro brasileiro (aliás, um equívoco recorrente no que se refere à produção teatral fora do eixo

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Foto: Eduardo Queiroga/Ag. Lumiar

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Bumba-meu-boi: operação estética que constrói um teatro da morte de múltiplas dimensões


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86 TEATRO Foto: Beto Figueirôa/JC Imagem

João Denys nos revela um Cardozo maiúsculo e sem delimitações Ao lado, reprodução da ilustração de Poty para a edição da peça O Coronel de Macambira (1963)

Rio-São Paulo), embora O Coronel de Macambira, por exemplo, na década de 60, ter sido posta em cena por diversos grupos, inclusive o TUCA, Teatro Universitário Carioca, com direção de Amir Hadad e música de Sérgio Ricardo. Joaquim Cardozo era um homem de cultura vastíssima e sua obra teatral, apesar de fincada nas raízes da terra nordestina, difere de todos os seus contemporâneos. Segundo João Denys e outros analistas, como Luiza Barreto Leite, pode-se afirmar, sem hesitação, uma distância do poeta-engenheiro das comédias municipais de José Carlos Cavalcanti Borges e de autores mais reverenciados como Hermilo

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Borba Filho, Luiz Marinho e Ariano Suassuna. A ousadia expressiva de Cardozo, observa, pode ser comparada com a de Osman Lins de Mistério das Figuras de Barro e Auto do Salão do Automóvel, pela forma nova de abordagem do teatro épico, apesar dos procedimentos de apropriação da matéria popular serem desiguais entre os dois autores. Cardozo, pelas mãos de João Denys, é colocado sem delimitações de fronteiras entre Ocidente e Oriente, pois seu teatro não pode ser emoldurado numa ótica aristotélica ocidental, mas na busca de um teatro absoluto, como o de encenadores do quilate de Eugenio Barba, Peter Brook e Ariane Mnouchkine.


TEATRO 87

Nas palavras dele: “é um teatro que busca nas manifestações espetaculares dos povos a matéria-prima para a criação e a expressão, mantendo uma posição extremamente crítica para com o poder das instituições capitalistas, desvelando com sua poesia as intricadas, ambíguas e contraditórias relações socioculturais”. Para João Denys, ao adotar o bumba-meu-boi como ponto de partida para suas obras, Cardozo não o faz por questões regionalistas ou por um tipo de resgate folclórico, mas por uma operação estética que constrói um teatro da morte de múltiplas dimensões, uma morte integrada na vida e geradora de vida, revestida de significados estéticos, sociais e históricos. Por esta razão, o estudo de João Denys baseia-se em três peças-chaves da dramaturgia cardoziana, a já citada O Coronel de Macambira, De uma Noite de Festa e Marechal, Boi de Carro. Como exige um trabalho acadêmico, o autor desenvolve sua análise dentro dos cânones da exegese universitária. Ela, no entanto, não desmerece de forma alguma o esforço empreendido. João Denys é um homem de teatro em todas suas diversas faces e funções. Dramaturgo, encenador, ator, cenógrafo, figurinista e professor. Premiado por vários trabalhos, conhece as entranhas do fazer teatral e isto o habilitou a mergulhar na dramaturgia de Cardozo com a pluralidade que se fazia necessária, como bem remarcou Jomard Muniz de Britto na apresentação de Um Teatro da Morte. O pioneirismo de tal empreendimento por vezes obrigou João Denys a ser enciclopédico, a indagar as relações da cultura popular e do teatro nordestino, todavia não poderia ter sido diferente. Era mister estabelecer pontos de referências, desconstruir idéias pré-concebidas e proporcionar ao leitor a possibilidade dele confrontar-se com um projeto dramatúrgico singular, como o foi o de Joaquim Cardozo, em que tradição e modernidade se complementam, escapando, todavia, dos enquadramentos e convenções. João Denys com sua escrita correta nos revela um autor maiúsculo que, por meio do seu teatro e de um texto irônico e culto, faz-nos ver um Nordeste muito além dos limites da visão imobilizada que uma certa elite cultural tenta preservar e cuja utilidade é apenas manter cristalizados os equívocos de um modelo de dominação. • Alexandre Figueirôa é jornalista e crítico de cinema e teatro.

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88 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Cabeça para baixo, pernas para cima Não existem fronteiras na guerra de Momo

O

Carnaval nunca mudou, desde os seus primórdios, nos temas reais e simbólicos que o definem: carne e bebida, sexo e violência. Para os italianos, é da palavra carne que vem o seu nome – carnevale, significando vale comer carne. Precedendo os magros dias da quaresma, cujos símbolos eram um homem esquelético e um peixe magro pendurado na ponta de uma vara, o Carnaval era a festa do excesso, da opulência, da fartura. No Brasil de hoje, o “vale comer carne” se refere a outras carnes, cuja degustação não implica necessariamente em canibalismo, apesar do nosso passado antropofágico. Os índios comiam os semelhantes moqueados, para incorporar as suas virtudes. Dizem. Conversa fiada de antropólogo. Nossos tapuias não estavam nem aí para as virtudes católicas. Já imaginaram os caetés degustando o bispo D. Pero Fernandes Sardinha e falando: “Está uma maravilha essa castidade”; “Acabo de engolir a memória de um salmo”; “Depois dessa panturrilha, me tornarei um retórico imbatível”. Não concebo o canibalismo ritual, apesar da moda estar voltando na Alemanha civilizada. No Carnaval brasileiro, as funções do verbo comer não passam pelos maxilares. Ninguém desfila com estandartes de suculentos pernis de porco, como na Europa medieval. Com o fracasso do “Fome Zero”, seria um risco exibir carnes tão provocantes. Os famintos do Piauí acabariam a festa. Ainda bem que mudamos significados e valores, exageramos noutros apetites. Expomos o nosso corpo rebolante, opulento ou magro, a pé no asfalto ou trepado em carros alegóricos, não importa. Interessa ser visto, a qualquer preço. Ocultar-se como antigamente? Brincar anônimo como faziam os príncipes italianos? Está louco? No nosso Carnaval, as máscaras perderam a função. Mundo de cabeça para baixo, quando a cabeça do mundo era para cima. No carnaval, o rei saía disfarçado no meio do povo e um

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camponês ostentava uma coroa. Hoje, os políticos fazem questão de mostrar-se em palanques oficiais ou camarotes de luxo. Nas gravuras antigas, os homens aparecem vestindo roupas femininas e as mulheres de calças, botas, chicote na mão, fumando charuto e dando ordens. Os velhos símbolos da inversão do mundo foram para os baús e o que era exclusividade do Carnaval virou rotina. Para que servem os três dias de Carnaval, que no Recife e Olinda, dependendo do calendário, podem ser trinta ou sessenta? Controle social? Fuga de um cotidiano miserável? Reunião de classes e culturas, celebrando a alegria e o prazer? A democracia do Carnaval, cantada em marchas e sambas, existe mesmo? Desfeita a maya alcoólica é possível o reencontro dos homens e mulheres que se abraçavam como foliões? Um cordão de isolamento, real ou simbólico, divide as gentes pernambucanas na festa de Carnaval, como o Capibaribe separa o Bairro de Santo Antonio do Recife Antigo. Alguma coisa mudou, é bem verdade. Antigamente, um cavalo-marinho pedia licença ao senhor de engenho para se apresentar no terreiro da casa-grande. Os donos da casa assis-


Fotomontagem: Zenival

ENTREMEZ 89

tiam ao brinquedo lá de cima do calçadão alto. Hoje, é possível ver na rua do Bom Jesus um mestre rabequeiro tocando ciranda num palanque, para deleite dos antigos senhores, que dançam embaixo, no meio da rua. Valorizouse a arte popular com o olho no turismo e no mercado do exótico, mas ainda não mudou a realidade social da maioria dos artistas. Os brincantes dos maracatus rurais continuam sendo transportados da zona da Mata Norte em carrocerias de caminhões, feito cana ou gado, para os desfiles no Bairro do Recife. Enquanto se apresentam nas passarelas, nenhum brilho ofusca o das suas golas de vidrilhos e lantejoulas. Tontos de cachaça, os caboclos carregam o surrão de chocalhos, como se fosse uma cruz leve, bem mais maneira que o facão de cortar cana. Cumprem o cortejo e refazem o caminho de volta às casas de taipa onde vivem. O Carnaval tem alegrias e amarguras. É insuportável sem a embriaguez dionisíaca. Os ditirambos do deus grego eram movidos a vinho. Sem as libações alcoólicas a dura realidade não se transforma no sonho de três dias. Os olhos continuam enxergando em preto e branco, com as lentes de sempre. Vendo

que é bem diferente o povo que brinca na Avenida Guararapes do povo que brinca no Bairro do Recife. Que há camarotes no Galo da Madrugada inacessíveis ao salário mínimo. Que nas ruas estabeleceram espaços, definiram fronteiras. Os cortejos reproduzem uma falsa democracia social, a perigosa convivência entre ricos e pobres. As flechas dos caboclinhos, as lanças dos lanceiros e as espadas da corte romana do maracatu são todas alegóricas. Nenhuma dessas armas fere a realidade que jugula os brincantes. Mesmo que vivamos em clima de guerra civil, separados em campos de batalha, em morros e condomínios fechados, favelas e prédios de luxo, palafitas e Lago Sul, no Carnaval as investidas são todas pacíficas, os ataques ao passo de dança, as embaixadas poéticas. Numa esquecida representação do auto de caboclinhos, o tuxaua conclama os seus guerreiros: – Tupiriçá! – Taquá! – Que caboclos são vocês? – Caetés! – Caetés pedem paz ou guerra? – Guerra! Felizmente, a crônica policial da quarta-feira de cinzas atribui a acidentes ou motivos passionais o saldo de mortos da guerra de Momo. – Será o Brasil o verdadeiro mundo de cabeça para baixo? • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Continente fevereiro 2004


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» 92 MÚSICA Fotos: Divulgação

Saudade que alegra Há 30 anos, Edgar Moraes dava início ao Bloco da Saudade, com a marcha “Valores do Passado”

Todos os sentidos

1962. Edgar Moraes compõe a marcha “Valores do Passado”, homenageando 24 blocos já desaparecidos do Carnaval pernambucano, sonhando com a possibilidade de um dia existir um que revivesse o lirismo e a alegria do passado. Onze anos depois, o músico armorial Zoca Madureira e o jornalista Marcelo Varela desafiam Edgar a concretizar sua idéia. Em 1974, saindo das ruas do bairro do Cordeiro, o Bloco da Saudade levou beleza, nas cores azul, vermelha e branca, graça, canto, música e dança às ruas do Recife e Olinda. O ano de 2004 marca 30 anos de “carnavais saudosos”, o lançamento do seu quarto CD, Saudade 30 anos, e o centenário de nascimento de Edgar Moraes. Este é um disco com a cara do Bloco, faltando apenas a euforia do povo nos dias de Momo: os arranjos do maestro e violonista Éwerton Brandão, o popular Bozó, regendo a orquestra que acompanha os saudosistas nas ruas – composta por mais de 30 músicos que tocam instrumentos de sopro, pau e corda –, dão o tom e o clima de acerto de marcha às faixas. O CD recupera canções que um dia já foram, e ainda são, entoadas pelo povo: o hino “Valores do Passado”; a vibrante “Carnaval da Vitória”, do maestro Nelson Ferreira; “Recife, Cidade Lendária”, de Capiba – aqui com uma belíssima introdução em violão e flauta –, e “Recife Manhã de Sol”, de J. Michiles, uma marchinha entremeada com a cadência do maracatu. Traz também novidades de Cláudio Almeida e Humberto Vieira, como “Sonhos e Luz”; de Getúlio Cavalcanti, como “Madrigal” e “Saudade, 30 Anos”; de Heleno Ramalho, como “Louvores”, e um “Tributo a Bajado”, do estreante Ivanildo Andrade. (IC) Saudade, 30 Anos, Independente, preço médio R$ 21,00. Continente fevereiro 2004

O Coral Madeira de Lei faz valer a premissa de que família que canta unida permanece unida. Formado por 11 jovens, com idade entre 16 e 25 anos, todos da família Da Fonte (o que parece maravilhoso, pois não estão interessados nas baladas comuns aos da sua idade, e sim em preservar e fortalecer a sua cultura), o Madeira de Lei lança o seu segundo CD, Frevo, Ciranda e Maracatu, que reúne uma seleção antológica da música popular pernambucana, entre elas “Minha Ciranda”, de Capiba; “Voltei Recife”, de Luiz Bandeira; “Ciranda da Rosa Vermelha”, de Alceu Valença; “Quem meu deu foi Lia”, de Baracho; “Maracatu Misterioso”, de Antônio Madureira e Marcelo Varela; e algumas novidades, como os maracatus “Sambada dos Mestres” e “Há Segredos e Há Encantos”. O Madeira de Lei levanta uma bandeira inusitada: “revolução gráfica na música”. Segundo seus produtores, Paulo Roberto Nunes e Silvia da Fonte, trata-se de um refinado encarte para os CDs. E de fato é. Do ponto de vista visual, Frevo, Ciranda e Maracatu é belo e precioso, além de incluir interessante pesquisa etnográfica, registrando onde, como e por quem as manifestações musicais são realizadas. Merece aplausos sinestésicos. (IC) Frevo, Ciranda e Maracatu, Independente, preço médio R$ 30,00.


Harmonia instrumental Fotos: Divulgação

Rozenblit ambulante

O tecladista, pianista e acordeonista niteroiense Marcos Nimrichter, que faz parte do grupo “Novo Quinteto”, formado para resgatar a obra de Radamés Gnatalli, relança, via Biscoito Fino, seu primeiro disco solo em seu nome. Prodígio que aos quatro anos tocava Bach e Chopin ao piano, Nimrichter não se prende a gêneros: o trabalho autoral apresenta exclusivamente composições próprias, que, fundamentadas no improviso tipicamente jazzístico, mesclam samba, frevo, maracatu e bossa nova. Da “Segunda Barca”, referência essencial para niteroienses que dispensam a ponte para atravessar a Baía de Guanabara, à “Querubim”, o instrumentista navega pela suíte “Frevo do Frei Frívolo”, dividida em dois movimentos que parecem rachar as ladeiras de Olinda, e por “Cara de Feliz”, ladeado por ases como o Quinteto Villa-Lobos, Paulo Sérgio Santos e Carlos Malta. Em faixas solo, como “Paráfrase”, Nimrichter exibe um rico imaginário, enquanto na coletiva “Paixão de Carnaval” apresenta um batuque percussivo em câmera lenta. Na única faixa cantada por Altay Velloso (“Querubim”), o virtuose encerra quebrando limites estéticos.

Se nos anos 1950 e 1960 era a gravadora Rozenblit que impulsionava o frevo em Pernambuco, dos anos 90 para cá esse papel (guardadas as devidas proporções) cabe ao produtor musical Luiz Guimarães. Médico de formação, ele já produziu CDs de Capiba (de quem foi médico e amigo), Sa Grama, Sexteto Capibaribe, Getúlio Cavalcanti, Bloco da Saudade, Coral Edgar Moraes etc. Também organizou coletâneas e songbooks de Aldemar Paiva e Nelson Ferreira. Totalizando, são 33 CDs de música popular pernambucana selados com o “LG Produções”. Mas ele não pára por aí. Também é homem da música. Já compôs mais de 100, destas, 70 foram gravadas por diversos artistas locais. São frevos de rua e de bloco, chorinhos, baiões, alguns com matizes jazzísticos, e blues. Um exemplo emblemático da sua trajetória é o recém-lançado Frevos de Rua, com músicas dele e arranjos dos maestros Clóvis Pereira, Guedes Peixoto, José Menezes e Duda, interpretados pelas Orquestras de Frevo da Banda Sinfônica do Recife, Spokfrevo e de Duda. Neste novo empreendimento, vemos um músico que mexe nas estruturas harmônicas do gênero, explorando caminhos diferentes daqueles já percorridos e hoje tão comuns.

Marcos Nimrichter, Biscoito Fino, preço médio R$ 23,00.

Frevos de Rua, Independente, preço médio R$ 10,00.

Música de entrada

Brincante das cordas

Poemas de carnaval

Chill Out Rapadura é o tipo de música para ser consumida antes da festa começar. Uma mistura de grooves, bits eletrônicos, jazz e drum’n bass com ritmos afros e indígenas – onde é percebida a presença de instrumentos como zabumba, pandeiro, gonguê, alfaia, sanfona, além de vocais –, Chill Out garante uma viagem pelo universo das canções devocionais entoadas pelo povo. O Movimento Mangue parece modular o trabalho que os caranguejos com cérebro começaram, há 11 anos, misturando o tradicional com as novas tecnologias.

Lenda viva das cordas, Armandinho reúne técnica e sensibilidade em seu mais novo CD, Retocando o Choro. O álbum mostra o músico esmerilhando o gênero como quem brinca com o bandolim, como se ali ainda estivesse a guitarra com a qual fez história, e escola, em cima do trio elétrico ou à frente da banda A Cor do Som. Acompanhado apenas pelo violão ora de José Paulo Becker, ora de Yamandu Costa e Fábio Nin, neste novo trabalho vemos um Armandinho que barbariza nas cordas, ao tocar clássicos do choro, da MPB ou do frevo pernambucano.

Partindo da cultura visual e sonora dos carnavais de Pernambuco, o poeta Romero Amorim lançou o CD Esses Blocos, um disco de frevos de bloco, no qual transforma palavras em arte e promove viagens poético-musicais pelos carnavais, seus ícones e paisagens pernambucanos. Assim é com “Aurora de Amor”, uma das mais belas canções do frevo pernambucano e hoje hino do carnaval local, “Voltando ao Jardim” e “Recifloração”, interpretadas pelo Coral Edgar Moraes e por uma orquestra composta especialmente para esta gravação, formada como se fora um poema.

Chill Out Rapadura, Azul Music, preço médio R$ 20,00.

Retocando o Choro, Biscoito Fino, preço médio R$ 23,00.

Esses Blocos, Independente, preço médio R$ 16,00. Continente fevereiro 2004

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MÚSICA 93 »


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Metáfora do amor mortal Novo romance de Raimundo Carrero aprofunda experimentação textual, em que poesia e prosa às vezes se confundem Beto Figueirôa / JC Imagem

O Brasil dos sobrados e mucambos Os instantes de tensão e suspensão que antecedem um crime passional perfazem a motivação central de Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula? – livro recém-publicado pelo ficcionista Raimundo Carrero. Os personagens Leonardo e Alice encontram-se confinados no ambiente opressivo e semi-escuro de um quarto. A única componente externa é a música insistente e intimista de um sax, que parece impulsionar o ritmo e a velocidade das palavras e frases. A imobilidade da mulher “sentada na poltrona de espaldar alto”, com o revólver apontado para o marido que dorme, é apenas aparente, porque tensa e repleta de emoção extremada. O homem deitado, bipartido entre o sono e a vigília, tem seus sonhos infantis e presentes aflorantes ao longo do sono, além de espreitar sorrateiro os gestos e movimentos da mulher. A supressão de diálogos dá lugar à experimentação com os sinais de pontuação – técnica que não é nova, mas que pode trazer surpresas que devem ser creditadas à verve de cada autor. Carrero promove exaustivamente justaposições, inversões, acúmulos, repetições e permutas de vocábulos e frases inteiras, num texto em que prosa e poesia caminham juntas e às vezes se confundem. Sexo e morte, ódio e paixão, ternura e violência fazem parte Ao Redor do Escorpião... de um jorro verbal delirante, aplicado, Uma Tarântula? porém, com a consciência estética de Raimundo Carrero, quem conhece o seu ofício. (Luiz Carlos Editora Iluminuras, 192 páginas, R$ 35,00. Monteiro) Continente fevereiro 2004

O cerne da obra fundadora de Gilberto Freyre pode estar contido na trilogia Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso, reunidos, os livros, sob o enunciado geral Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil. A Global Editora, que adquiriu os direitos de publicação, num episódio moderadamente rumoroso, no ano passado, lança agora a 14ª edição de Sobrados, cujo foco de abordagem é a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano. Freyre fixa-se, nesta obra, nas modificações da paisagem social do Brasil no século 18 e primeira metade do 19. Como a de Casa-Grande, esta edição prima pelo esmero editorial, que inclui apresentação por Roberto DaMatta, bibliografia por Edson Nery da Fonseca e notas bibliográficas por Gustavo Henrique Tuna. Na introdução, DaMatta sublinha o viés culturalista freyriano, ao configurar a identidade nacional, e flagra o estudo original do “escravismo das casas-grandes e dos sobrados ainda hoje pressentido”. Bem impresso e com ilustrações Sobrados e Mucambos, atraentes, o livro é inescusável Gilberto Freyre, Global presença em qualquer bi- Editora, 968 páginas, R$ 98,00. blioteca básica de Brasil.


Samba na cabeça

Mitos de ontem

Visões de mundo

Não é uma história do samba, dos primórdios à atualidade. Mas um mapa de todas as tendências e caminhos que o samba tem percorrido e provocado. Coletânea de artigos, ensaios, textos de encarte e songbooks, verbetes e resenhas de Tárik de Souza, mistura Clementina de Jesus com Marcelo D2, Carmem Miranda com Rappin’Hood, Sinhô com Bebel Gilberto. Sem esquecer a turma que trafega pelo meio, entre a tradição e a vanguarda. Figuras como Paulinho da Viola e Chico Buarque, só para ficar em dois nomes de respeito. E sem falar na bossa nova e no sambaenredo, entre outras vertentes do gênero. Ricamente ilustrado e escrito numa linguagem saborosa, é livro para quem gosta de música e não tem preconceitos.

Neste livro, todos os deuses e deusas, heróis e monstros da mitologia greco-romana são relacionados, com suas características especificadas didaticamente, ao mesmo tempo em que se mostra o quanto ainda permanecem presentes em nossa vida atual, seja em citações em peças de teatro, discursos, artigos, ensaios, livros de filosofia e ficção, ou ainda através da psicanálise – ao traduzirem arquétipos do inconsciente – e até mesmo na cultura pop, como em filmes, desenhos animados e histórias em quadrinhos. A autora, a norte-americana Lesley Bolton, acrescenta, porém, que além dessas ilações tão fascinantes, os mitos são interessantes por si mesmos, com todas as suas arrebatadoras aventuras, paixões, guerras, traições e mistérios.

O que Norman Mailer tem em comum com Paulo Freire? Ou o que Juliete Binoche tem a ver com Noam Chomsky? O jornalista Edney Silvestre, que já nos deu um delicioso livro de crônicas, Dias de Cachorro Louco, entrevista essas e mais 18 personagens públicas de diversas áreas profissionais, para que dêem sua visão de mundo. São pessoas que têm em comum uma sensibilidade especial, uma inteligência atenta, e uma postura responsável perante a vida e os problemas da atualidade. Dividindo os entrevistados em grupos de Boxeadores, Tempestuosos, Cordiais, Militantes e Visionários, Edney extrai de cada um o máximo de respostas com as quais podemos concordar ou não, mas que nos ajudam a entender melhor o nosso mundo.

O Livro Completo da Mitologia Clássica, Lesley Bolton, Madras, 280 páginas, R$ 34,90.

Contestadores, Edney Silvestre, W11 Editores, 342 páginas, R$ 37,80.

O espaço alheio

Banquete erótico

A pobreza circundante

Este livro documenta, em fotos e textos, a intervenção feita por 13 artistas em um hotel da Lapa, no Rio de Janeiro, chamado Hotel Love’s House. O projeto se identifica com a postura de diversos artistas plásticos contemporâneos que consideram premissa fundamental que a arte escape do “cubo branco” de galerias e museus e parta para a rua, para o espaço público, enfim. A primeira parte do livro é toda de fotos do local, tanto durante as instalações, como de seus arredores e personagens esparsos, seguindo-se uma segunda parte em que se explica a intenção de cada artista, sem maiores teorizações. Um documento estimulante para a imaginação de artistas inquietos e espectadores curiosos por uma nova maneira de fazer arte.

A antologia As 100 Melhores Histórias Eróticas da Literatura Universal, organizada por Flávio Moreira da Costa, tem na amplitude sua maior virtude e seu maior defeito. O calhamaço reúne textos da Antiguidade oriental e ocidental a autores brasileiros e estrangeiros contemporâneos, de anônimos a escritores famosos, trechos de romances e manuais de erotismo, contos, poemas, do Kama Sutra a Ulisses, de As Mil e Uma Noites a Uns Braços, de Machado. O esforço colossal de leitura e pesquisa engrandece o trabalho e convida o leitor para “um vôo sobre o abismo”, gratificante e pleno. Mas resulta num livro sem qualquer alinhavo, a não ser o conceito lato de erotismo.

As pessoas que moram em edifícios sobre pilotis, andam de carro por vias asfaltadas e estudam em escolas particulares, pouco ou nada conhecem daquela outra parcela da população (a metade) que vive nas favelas do Recife. Tal e qual em outras metrópoles brasileiras. Para aquelas, o livro Do Mocambo à Favela, do arquiteto e urbanista Alberto Souza, é leitura esclarecedora. Baseado em tese de doutoramento na Universidade Paris I, o texto analisa historicamente o fenômeno, caracteriza as favelas de ontem e de hoje, radiografa as intervenções do setor público ao longo do tempo e apresenta um painel da economia interna desses aglomerados insalubres. Trabalho científico não isento de um olhar compassivo.

As 100 Melhores Histórias Eróticas da Literatura Universal – Flávio Moreira da Costa, Ediouro, 635 páginas, R$ 69,00.

Do Mocambo à Favela – Recife, 1920 - 1990 – Alberto Souza, Editora da Universidade Federal da Paraíba, 165 páginas, R$ 25,00.

Tem Mais Samba: das Raízes à Eletrônica, Tárik de Souza, Editora 34, 344 páginas, R$ 39,00.

Love’s House – 13 Artistas em Curta Temporada, Vários autores, Casa da Palavra. 224 págs., R$ 25,00.

Continente fevereiro 2004

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Vagabundos escribas Cantemos as histórias esquecidas em quinas, mas guardadas na lembrança

A

grande chamada para o ordenamento mundial em todos os segmentos é, sem dúvida nenhuma, a leitura. Evidentemente que sem os escritores – literatos – até mesmo os escribas, escrevedores, escrivães, escriturários, escrevinhadores e plumitivos, não haveria leitores. Ler faz a digestão de comidas, a irrigação da alma, o entendimento da boa solidão – mesmo na irreversível e constrangedora prisão de pensamentos e idéias vagueantes em regimes absolutistas e tirânicos. Escrever é relevar e elevar uma história que se passou, realçar uma inspiração poética, beatificar o amor, sacramentar a paz, legalizar direitos, relatar o bem e o mal – repelir o diabo e divulgar o Deus da paz. Deveria existir uma sede bem monástica do livro, ao menos, em todas as capitais do Brasil, um verdadeiro centro da atração de um povo de todas as classes – tal como Vinicius, umas difíceis, outras fáceis. No entanto, é bom lembrar que, a qualquer forma de participação dos velhos-jovens, jovens-moços – pobres ou abastados, todos serão sempre bem-vindos às bancas de editoras e livrarias que abrilhantam shoppings e galerias a serviço do consumidor mais exigente. Bienais, nacionais ou internacionais, haveriam de funcionar o ano inteiro, inspirando a multiplicação de leitores e escritores. Não há como dissociar o escritor do leitor, do deleite ao aprendizado, do trabalho da pesquisa e do brilho da mente criativa, do fazer tudo e o de não fazer nada. Quando em meados “meadíssimos” dos anos 70 encontrei por honraria do destino o grande Otto Lara Resende num boteco literário do Rio de Janeiro, precisamente em Ipanema, vi abrir uma janelona de conhecimentos, servindo-me um manancial de entusiasmo pela literatura – que para mim já se irmanava desde a infância, obviamente de uma maneira completamente primária no universo da leitura e da escrita. Era a coincidência mais do que factível para um jovem que iniciara há pouco (1967) nos batentes do jornalismo. Não sabia que entrara num gole de chope com a nata da mineirice cultural, pois logo depois chegariam Fernando Sabino e Hélio Pellegrino. E, Continente fevereiro 2004

no pouco tempo que conversei com Otto, antes de nos juntarmos aos seus patrícios amigos, a convite do mesmo, ouvi uma historieta que me acompanha até hoje. Mal sabia também que no prédio ao lado morava Rubem Braga (que conheci e privei por meses de sua convivência e bom papo), em meio a sua floresta tropical montada na cobertura do seu apartamento. Foi a “deixa” para que Otto me contasse, a risos gozadores, que ao chegar naquele recinto, foi logo perguntando ao “portuga” Neves (proprietário daquele boteco de cervejas lourinhas e suadas, queijinhos, cebolas, coxinhas e lulas ao vinagrete) pelo Rubem Braga, naquela de conversa fiada e conseqüentemente jogada fora: – E aí, seu Neves, cadê o Braga?... Não desce mais nem pra comprar jornal? – Sabe, seu Lara, ando pras tantas de preocupado com seu Rubem. Ora, pois não é que ele por vezes de dias não por aqui apeia... Não trabalha mais... Está numa vagabundagem que faz gosto... Agora só faz escrever de manhã à noite... – Estás vendo, ó lusitano laborioso!... Que vagabundo, hein?... Que escrevam bilhetes, cartas, livrecos ou livrórios, mas escrevam. Que leiam gibis, almanaques, horóscopos e até bulas de remédios, mas leiam. Que não precisem comprar tudo que encontrarem pela frente, mas adquiram o que mais lhes aprouver o gosto. Apenas não deixem o hábito da leitura... Pela salvação da humanidade e de si próprios, pois, pois! Porém, só não deixem, como Eduardo Frieiro, o que acontece freqüentemente com os livros por lá expostos, os quais, pela maior parte, não são lidos e nem ao menos abertos: “Essa livroxada vai-se então acumulando a um canto.” Um canto talvez funesto à incineração da nossa inteligência. Cantemos assim a esses livros esquecidos em quinas, mas guardados na lembrança. Saudemos então os escribas que preferem ser vagabundos da leitura. • Rivaldo Paiva é escritor.




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