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Foto: Ivan Finotti/Folha Imagem
EDITORIAL
Garoto exibe pipa na Praça da Constituição, na Cidade do México
Pensador latino-a americano
P
rovavelmente o maior intelectual latino-americano do século 20, Octavio Paz foi poeta e ensaísta, tendo contribuído com reflexões lúcidas, pertinazes e criativas sobre temas tão diversos, como artes plásticas e política, literatura e erotismo, história e antropologia, de tal forma que muitos hesitam em escolher qual a área em que mais se destacou. Prêmio Nobel de Literatura em 1990, o escritor teve uma postura polêmica diante do seu país, o México, do qual cobrava uma atitude mais autêntica – cobrança que estendia a toda a América Latina, para ele apenas um rótulo sem existência concreta. Como poeta, defendeu uma arte inovadora, mas que não desse as costas à tradição, da mesma forma como seus posicionamentos políticos fugiam das facilidades maniqueístas e das simplificações da esquerda ou da direita. Humanista convicto e iluminista moderno, evitou se esconder atrás das máscaras da erudição, tendo participado ativamente do mundo em que viveu, dando um exemplo de postura diante da vida e da arte. Em março deste ano, Octavio Paz completaria 90 anos, comemorados nesta edição da Revista Continente.
Ainda neste mês estão se completando 80 anos de vida do também poeta e ensaísta César Leal, cearense radicado no Recife, que além de uma obra de altíssima qualidade, notabilizou-se por sua generosidade, dando visibilidade e crédito à Geração 65, formada por poetas e ficcionistas de Pernambuco, além de outras realizações, como a criação do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Pernambuco. E nestes mesmos idos de março, assinalam-se 40 anos do golpe militar de 1964, que lançou o país na aventura de uma modernidade imposta, sobre a base de uma mentalidade anacronicamente patriarcalista (o “sabe com quem está falando?”) e cujos métodos repressivos produziram uma realidade esquizofrenicamente kafkiana, com conseqüências políticas, econômicas e sociais que ainda se fazem sentir. Na área cultural, além da censura, a ditadura gerou o mito de que artistas e intelectuais, sob o guante do autoritarismo, produzem mais e melhor – o que não parece ser corroborado por uma mirada sob uma perspectiva histórica. Esse e outros aspectos são postos em questão, numa reflexão livre, atributo dos períodos democráticos, como o que o país vive hoje. • Continente março 2004
Reprodução
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CONTEÚDO » 08 Reprodução
Octavio Paz: o México como metáfora
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Angélica, de Vik Muniz, 1998
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CAPA
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ESPECIAL
08 OS 90 anos de Octavio Paz, poeta e pensador
58 1964: uma realidade kafkiana
CINEMA
A cultura sob o tacão dos militares Um general americano suspeito
22 O conflito segundo o palestino Elia Suleiman
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O conflito segundo o israelense Amos Gitai Cartum, poesia e violência em Kill Bill
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LITERATURA
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74 Os muros que dividem o mundo
As outras grandes vozes de Portugal A melancolia no Brasil e além-mar César Leal completa 80 anos
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ARTES
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46 A imagem reconstruída de Vik Muniz As formas abstratas de Luciano Pinheiro
Continente março 2004
DANÇA 80 O projeto televisivo de Antônio Carlos Nóbrega
32 O novo livro de António Lobo Antunes
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CONTEMPORANEIDADE
ARTES CÊNICAS 84 Teatro e artes marciais dão voz ao corpo
AGENDA 90 Discos, exposições, peças e livros Agenda atualizada semanalmente no www.continentemulticultural.com.br
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Foto: Hans Manteufell
Foto: Arquivo/AE
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1964, a linguagem dos tanques
80 » Nóbrega dialoga com os mestres do maracatu
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CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Nas condições atuais, a economia domina tudo
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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 44 A furiosa burrice da censura a partir de 1964
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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 Oficial do exército confisca livro sobre Cubismo
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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 68 Um filme feito para embrulhar o estômago
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 71 Uma feijoada para salvar o presidente
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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 A repressão e o terror numa aula de anatomia
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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 De 64 só nos resta uma tempestade de liberalismo
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CRÉDITOS Nordeste capaz Sou diretor da TV Educativa de Alagoas, editor de cultura de O Jornal e professor de Jornalismo da Universidade Federal. Gostaria de parabenizar a equipe pelas ótimas páginas produzidas a cada edição. É realmente impressionante a qualidade. É o Nordeste mostrando o quanto é capaz. Roberto Amorim – Maceió-AL
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert
Continente
Multicultural
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Luiz Carlos Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Ângelo Monteiro, Camilo Soares, Daniel Piza, Denis Bernardes, Ernesto Barros, Everardo Norões, Fábio Araújo, Fábio Lucas, Fabrício Carpinejar, Fernando Monteiro, Geneton Moraes Neto, Jefferson Del Rios, Kleber Mendonça Filho, Luciano Trigo, Marcus Accioly, Weydson Barros Leal Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista Continente março 2004
Março Ano 04 | 2004 Capa: O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, 1992 Foto: Corbis
Coragem Escrevo para me congratular com o escritor Ronaldo Correia de Brito pelo seu artigo “A morte do cristianismo” (edição 37). Mesmo com a visível decadência do império católico, bater de frente com a igreja pode trazer sérios problemas de ordem política e social, dada a grande massa de hipócritas que se camuflam atrás do manto da instituição religiosa. A Continente Multicultural está, também, de parabéns, pela sua postura independente e corajosa. Já está mais do que na hora de quebrar a redoma de vidro, na qual se coloca como intocável, da igreja católica e denunciar seus atos de crueldade cometidos contra a humanidade para o engrandecimento do seu poder, tanto econômico e político, quanto alienante e fantasmático. Jorge Filó – Recife/PE Pesquisa Chamo-me Josafá Gomes, tenho 20 anos. Tive a oportunidade de ler alguns artigos de edições passadas desta super-Revista, deliciando-me com tão boas informações sobre literatura. Gostei bastante das entrevistas com Ariano Suassuna, Raimundo Carrero e outros. Senti-me feliz por conhecer melhor um escritor sobre qual tinha poucas informações, obtidas ao pesquisar os livros que eu tive que ler para o vestibular. Parabéns pelo bom trabalho que vocês têm realizado, engrandecendo a arte dos pernambucanos. Josafá Henrique Gomes – Recife/PE Pastoril Sou recifense, nascida e criada no bairro de Tejipió e em São José da Coroa Grande, praia do litoral sul. Tive muitas oportunidades de vivenciar e participar das festas e folguedos populares, sendo o pastoril o meu preferido. Esse folguedo merece mais apoio, investimentos e divulgação por parte dos gestores e agentes culturais. Fazemos parte da Mangaba Produtos e temos o orgulho de valorizar e manter viva a figura do nosso mais querido personagem, o Véio Mangaba. Por que não fazer uma boa matéria sobre a sua trajetória artística? Saudações azul e encarnada!!! Maria Luciani Burichel – Recife/PE
CARTAS Clarice Lispector 1 Eu amei a matéria, pois adoro Clarice Lispector e há muito não vejo uma reportagem tão bem feita. Amei a diagramação, as fotos... Uma amiga foi ao Recife e sabendo que amo a Clarice, trouxe-me a Revista. Quando a vi, eu agi como a personagem de Felicidade Clandestina. Vocês estão de parabéns! Denyse, via e-mail Clarice Lispector 2 Gostaria de agradecer pela edição 37, que fala sobre Clarice Lispector. Foi uma ótima oportunidade para os leitores da Revista Continente conhecerem um pouco mais deste grande ídolo literário. Ressalto a brilhante abordagem da jornalista Mariana Camarotti. Desejo que a Continente continue nesse caminho promissor, enfocando temas culturais e interessantes, pois a arte é indispensável, assim como a identidade cultural, desde que destrinchadas sob uma ótica positiva. Ivanilson Martins – Olinda/PE
Delmiro precursor Sou leitor inveterado da revista Continente Documento. Lendo a edição sobre Delmiro Gouveia, grande figura de empreendedor nordestino, uma ilustração me chamou a atenção, já nas últimas páginas. Era um cartaz com horário de trabalho afixado na fábrica de Delmiro, em Pedra, sertão de Alagoas. Ali estão escritos os vários turnos de trabalho dos operários e pessoal de escritório. Observando-se com atenção o quadro, verifica-se que os empregados de Delmiro tinham uma jornada de trabalho de oito horas diárias, o que o coloca na condição de precursor, uma vez que esta jornada, cuja instituição provocou lutas operárias em todo o mundo, somente foi legalmente adotada no Brasil em 1925. Como Delmiro morreu em 1917, então ele aplicava essa conquista trabalhista em sua indústria com pelo menos oito ou nove anos de antecedência. Mais um ponto para a biografia desse grande industrial cearense-pernambucano, já tão inovador em tantos aspectos como bem demonstra a reportagem da revista. Luiz Armando Santos – Recife, PE
Lampião Sou curioso sobre a história do cangaço e do banditismo mas não consegui ainda formar uma opinião assim alicerçada sobre o caráter desse filho de Serra Talhada que ganhou notoriedade nacional, quiçá mundial, Virgulino Ferreira, o Lampião. Herói ou bandido? Para uns, um bandoleiro cruel e vingativo, sem lei nem rei. Para outros, herói do povo, vingador de injustiças. E a História, como fica? Acho que vocês da Revista podem ajudar a deslindar essa espinhosa questão. Fica a sugestão, modesta mas sincera. Ananias J. Nascimento – Jaboatão dos Guararapes, PE Edgar Moraes Li a Documento sobre Capiba. Supimpa, como se diria antigamente. Agora acho que vocês deviam fazer também justiça a Edgar Moraes, outro grande compositor de frevo que também estaria fazendo 100 anos agora e também merece homenagem. Pode ser na Documento ou na Continente Multicultural, tanto faz, ambas são danadas de boas. Lenora Borges – Olinda, PE Importante contribuição Sou estudante do Ensino Fundamental e quero agradecer pela importante contribuição que a Revista Continente vem dando à cultura pernambucana ao publicar matérias que falam sobre nossos ícones e manifestações culturais. Adorei a Documento sobre o Carnaval de Pernambuco, que foi muito útil em pesquisas escolares, sobre Abreu e Lima e a África, tão importante na nossa formação cultural. É muito bom saber quem são as pessoas que dão nome às ruas, bairros e municípios do nosso Estado, percebendo que foram revolucionários em suas ações e idéias. Stephanie de Andrade – via e-mail Êxtase Concordo com Antonio Candido quando ele afirmou na edição 36 (dezembro de 2003/seção cartas) que a Revista Continente é um grande feito cultural. Fazendo das suas as minhas palavras, a Revista é séria, inteligente, imaginosa. E eu vou além: não existe no país uma publicação igual, que além de divulgar fatos culturais e intelectuais que fazem diferença no nosso país, e no mundo, cerca os assuntos com diversas abordagens, deixando o leitor extasiado com a gama de informações sobre um mesmo tema. Parabéns pelo belo trabalho. Vida longa à Continente! Tiago Araújo – Recife-PE Holandeses Quero saber onde vocês arrumam tanto assunto para fazer matérias sobre holandeses. Não existe nada mais interessante, não? João Ribeiro – via e-mail
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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax
DJ Sou fã de música eletrônica e sugiro que a Revista faça uma matéria sobre a cultura dos DJs. Em Pernambuco, por exemplo, o DJ Dolores faz um ótimo trabalho que já ganhou o mundo, mas não chegou, ainda, às páginas da Continente Multicultural. Fica a sugestão. Maria Luiza Mendonça – Recife -PE Restauração Pernambucana Parabenizo toda equipe pela forma extremamente importante como vem tratando o aniversário da Insurreição Pernambucana, pois multiplicar os estudiosos através da Continente Documento e da Continente Multicultural, com suas publicações riquíssimas, é feito marcante na cultura pernambucana contemporânea. Não é bairrismo algum. Pernambuco é berço de grandes guerreiros! E esta data “de rombo” merece muita comemoração. Walter Eudes – Limoeiro-PE
Lirismo e poesia Parabéns ao fotógrafo Murilo Dália Maia pelo belo ensaio fotográfico publicado na edição 38 da Revista Continente (“Uma festa de bons costumes”). É preciso muita sensibilidade para transmitir lirismo, leveza e poesia em imagens de carnaval, sempre marcadas pela desordem. Camille de Almeida – Recife-PE Correção 1 O ensaio fotográfico “Uma festa de bons costumes” é de Murilo Dália Maia e não Murilo Dália Matos, como publicado na edição 38. Correção 2 A foto da Agenda, matéria “Saudade que alegra”, é da Imago, e não de divulgação, como publicado na edição 38.
Continente março 2004
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CONTRAPONTO
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Carlos Alberto Fernandes
Que futuro é esse? A falta de perspectivas é um fenômeno estrutural Ilustração: Mascaro
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onsciente das dificuldades que seu filho – estudante de escola pública – teria para ingressar numa universidade pública, gratuita, Manoel Dolores resolveu vender o seu Fiat Uno para bancar os custos de uma universidade privada, das muitas que são criadas em cada esquina das capitais brasileiras. Achava que, após os primeiros meses, o filho o ajudaria com um emprego facilitado pela condição de ser universitário. O sonho não durou um ano. O filho continuava desempregado. Com o orçamento estourado e o crédito negativado, Manoel Dolores nem mesmo conseguiu habilitar-se para o crédito educativo. Não pôde mais bancar as mensalidades. Não adiantaram os desejos nem tampouco a força de vontade. O filho fora abandonado pelos estudos. Este insólito exemplo, dentre muitos, mostra as contradições contemporâneas do nosso país com relação aos excluídos socialmente. Neste caso, por não oferecer na base social educação pública de qualidade, o próprio Estado contribui para a exclusão social dos seus jovens. A propósito, a realidade tem mostrado que o aumento do uso de tecnologia não contribui para a geração de empregos. Recente pesquisa da Fundação Getúlio Vargas mostra que nos últimos anos o desenvolvimento da tecnologia destruiu 10 milhões de empregos. Outra pesquisa desenvolvida pelo IPEA prova que o crescimento econômico por si só não é capaz de contribuir decisivamente para a diminuição da violência urbana. Ou seja, as contradições entre os discursos oficiais e a realidade são visíveis a olho nu. Amparadas pelos benefícios da tecnologia e da ideologia do consumo, as empresas crescem, multiplicam seus lucros e diminuem o número de empregos. Aliás, o desemprego deixou de ser um episódio ocasional, temporário, na vida das pessoas e transformou-se em fenômeno estrutural, durável e de massa. Passou a ser tragédia individual, pois sem o emprego as pessoas não têm como construir uma identidade social, num mundo onde o trabalho define, em última instância, a inserção das pessoas na sociedade. A realidade dura para os jovens é que muitos, provavelmente, são “inempregáveis” e que só os mais “competentes” serão agraciados nesse admirável mundo novo da globalização, da competitividade e da virtual eficiência econômica. Nesse sentido, “nunca é demais compreender que quando se arranca de alguém os sonhos do futuro, já não há mais razão para
se continuar vivendo. A perspectiva de um futuro sem trabalho aniquila qualquer sonho”. Esta afirmação do ex-ministro e embaixador Rubens Ricupero mostra a sua indignação com o conformismo dos liberais (de ontem e de hoje), quando aceitam passivamente o aumento das disparidades como conseqüência inevitável da sociedade da informação e do conhecimento. Nessa mesma linha de contestação, Leonel Jospin afirma que com o aprofundamento da globalização desaparece a economia de mercado, sendo substituída pela “sociedade de mercado”. Na medida em que a economia perde o seu sentido de reduzir a escassez e aumentar o bem estar, contribui para o aumento exponencial do desemprego e das desigualdades sociais. Nas condições atuais, a economia passa a dominar a sociedade, a política e o homem. E em torno dela, tudo se apaga: a religião perdeu sua importância, as grandes ideologias se desintegram, desaparecem todos os demais sistemas capazes de imprimir sentido à vida social. Até as “igrejas,” em que pese o seu papel de amortecimento das tensões sociais, aparecem como verdadeiras empresas de comercialização da fé e confecção de passaportes para um céu cheio de tesouros e luz. Nesse mundo novo cheio de idéias velhas, o compromisso ético dos governos com o combate à desigualdade e à exclusão social passa a ser apenas slogan publicitário, na medida em que os mecanismos institucionais dessas ações são cada vez mais frágeis. E no caso do filho de Manoel Dolores, não adianta amaldiçoar a escuridão e se contrapor ao desenvolvimento da tecnologia. O grande desafio é usá-la corretamente em benefício de uma massa de jovens que precisa dos governos e da sociedade para ter futuro. • Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral da Continente Multicultural. Continente março 2004
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Ilustração: Corbis
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O labirinto de Octavio Paz
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O poeta e ensaísta mexicano, prêmio Nobel de Literatura, capaz de tratar de cultura e política com a mesma intensidade intelectual, estaria completando 90 anos neste mês Daniel Piza
Foto: AFP
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ctavio Paz, que completaria 90 anos se estivesse vivo, foi o maior intelectual latino-americano do século 20. Suas contribuições para as mais diversas áreas – poesia, história, pintura, política – são tão variadas e consistentes que não têm igual. Para comparar com o Brasil, grandes homens de letras, como Sergio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux (austríaco de nascimento), não conseguiram demonstrar tanta propriedade e originalidade em tantos assuntos. E suas vozes não atingiram a dimensão internacional que a do ensaísta mexicano, ganhador do Nobel de Literatura de 1990, atingiu. Sua obra se destaca também por uma combinação entre um pensamento político que não é de esquerda ou direita, como o da maioria dos intelectuais latino-americanos do século 20, e uma defesa da arte que é inovadora, mas dialoga com a tradição, ao contrário do que sempre defenderam os escritores e artistas do continente. Em outras palavras, Paz não caiu nas dicotomias globais e locais do século passado: foi um liberal, um progressista consciente, tanto na política e na economia como na cultura e na moral. E foi um intelectual público, que não se fechou detrás dos muros da academia nem se rendeu às superficialidades do jornalismo. Ensaísta na grande linhagem de Montaigne e Samuel Johnson, Paz jamais deixava de mesclar informação e reflexão, embutindo perspectivas humanistas em tudo que escrevia. Por isso era capaz de tratar da história política e cultural de seu país e ressoar para os demais. Rompeu, assim, com a noção de que o intelectual “periférico” não pode dizer coisas novas – ou pelo menos de formas novas – para leitores inteligentes de qualquer parte do mundo. Antifascista desde que se deu por gente, criador de revistas de artes e idéias como Taller, Plural e Vuelta, Paz se dissociou do provincianismo mexicano e ainda soube falar do México para todo o planeta. Poeta e diplomata, morou nos EUA, na França e na Índia, participou de diversos movimentos estéticos e assim construiu uma obra que fala de Marcel Duchamp, do hinduísmo e de Fernando Pessoa com a mesma intensidade. Ao mesmo tempo, leu o México como ninguém: aos 36 anos publicou um de seus melhores livros, O Labirinto
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da Solidão, que devassa o caudilhismo histórico do país, sua resistência oligárquica e burocrática à modernidade (no sentido amplo da palavra, que inclui a separação entre público e privado e entre Estado e religião), seu descaso com o controle populacional e a educação de qualidade – temas que retomaria em O Ogro Filantrópico, apelido que deu ao Estado paternalista e corrupto. Soa familiar? Mas o ensaísta, por esse mesmo talento, também mostra as particularidades mexicanas, como a nostalgia de uma idade do ouro pré-européia que, na verdade, ocupa mais o campo mítico que o real. “A América hispânica não teve século 18”, costumava se queixar. “Não tivemos nenhum Kant, Voltaire, Diderot, Hume.” Iluminista modernizado, que aprendeu a lição de Nietzsche de olhar atrás das máscaras das palavras, Paz combateu o atraso do continente em todas as frentes, a começar pela poética. Ao contrário de seus amigos brasileiros, os intelectuais do grupo concretista, por sinal socialistas, dizia que a linguagem deve ser para o criador um objeto ao mesmo tempo de “veneração e transgressão”. Em livros como O Arco e a Lira e Signos em Rotação, leu como poucos a experiência da poesia modernista, que usa as elipses no tempo e os aspectos materiais da palavra sem abandonar o referencial da sintaxe e da semântica, sem cair no onanismo vanguardóide ou no efeito fácil. O mesmo tentou fazer em sua poesia, como em Blanco, embora fosse melhor ensaísta que poeta. Se bem que, quando o crítico de arte se expressava em forma de poemas (veja exemplo sobre Monet nesta página), o resultado era memorável. Para ele, no entanto, não fazia sentido ser um defensor da arte ao mesmo tempo tradicional e transgressora e, na política, apoiar ideologias salvadoras, sistemas fechados, planos utópicos. Pelo contrário, sua consciência da modernidade é tão completa que Paz sabe que é dentro da moldura do capitalismo democrático que a justiça social pode se aproximar da realidade, que a civilização pode combater todas as modalidades de barbárie inclusive aquela que se veste de “civilização”. Num continente que sempre oscilou entre utopias e populismo, e onde até mesmo auto-intitulados “liberais”, como o brasileiro José Guilherme Merquior e o peruano Mario Vargas Llosa, cederam a artifícios conservadores, nada poderia ser mais desconcertante. Sua visão não era tão serena, no entanto; Paz via em Mallarmé, como em Duchamp, uma tentativa de “convocar o vazio” numa era em que a presença divina já entrara em crise. Hoje ele veria que o que se busca, nos melhores artistas e pensadores, é esse meio-termo basculante entre o presente e o ausente, sem aposta definitiva em nenhum. Mas Paz, como dito, era um homem do século 20, embora mais inteligente que o século 20. União rara do intelecto com a sensibilidade, combinação impensável de Raymond Aron com Charles Baudelaire, viveu até o final da vida produzindo com uma lucidez única e um inconformismo sem o qual ela nada seria. Livre-pensador, sabia que o labirinto é ainda mais interessante quando sabemos que, justamente por não ter saída, não podemos ficar parados. • Daniel Piza é jornalista e editor executivo do jornal O Estado de São Paulo.
Continente março 2004
Fotos: Reprodução
Montaigne, parâmetro humanista
Nietsche, olhar através da máscara das palavras
Quatro Álamos A Claude Monet
Octaviio Paz Como além de si mesma vai esta linha Pelos horizontais confins se perseguindo E no poente sempre fugitivo Em que se busca se dissipa – Como esta mesma linha Pelo olhar levantada Voltam todas suas letras Uma coluna diáfana Resulta em uma não tocada Não ouvida não apreciada mas pensada Flor de vogais e consoantes – Como esta linha que não termina de se escrever E antes de se consumar se incorpora Sem cessar de fluir mas até o alto: os quatro álamos. Aspirados Pela altura vazia e dali para baixo, Num charco feito céu, duplicados, Os quatro são um só álamo E são nenhum. Atrás, folhagens em chamas Que se apagam – a tarde à deriva – Outros álamos já andrajos espectrais Interminavelmente ondulam Interminavelmente imóveis. O amarelo desliza para o rosa, Se insinua a noite no violeta. Entre o céu e a água Há uma franja azul e verde: Sol e plantas aquáticas, Caligrafia flamante Escrita pelo vento. É um reflexo suspenso em outro. Trânsitos: pálpebras do instante. O mundo perde corpo, É uma aparição, é quatro álamos, Quatro moradas melodias.
Monet: As Quatro `rvores, da série `lamos, óleo sobre tela, 1891
Frágeis ramos trepam pelos troncos. São um pouco de luz e outro pouco de vento. Vaivém imóvel. Com os olhos Ouço-oos murmurar palavras de ar. O silêncio se vai com o regato, Regressa com o céu. É real o que vejo: Quatro álamos sem peso Plantados sobre uma vertigem. Uma fixidez que se precipita Para baixo, para o alto, Até a água do céu do remanso Num esbelto afã sem desenlace Enquanto o mundo zarpa para o obscuro. Latir de claridades últimas: Quinze minutos sitiados Que vê Claude Monet de um barco. Na água se abisma o céu, Em si mesma se afunda a água, O álamo é um disparo violáceo: Este mundo não é sólido. Entre ser e não ser a grama titubeia, Os elementos se aligeiram, Os contornos se esfumam, Lampejos, reflexos, reverberações, Cintilar de formas e presenças, Névoa de imagens, eclipses, Isto que vejo somos: miragens. (Tradução de Daniel Piza) Continente março 2004
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12 CAPA
A imagem bifronte da Poesia Em Octavio Paz há a feliz combinatória de um profundo senso de simetria no exercício da crítica e de um agudo senso analógico na própria criação poética Ângêlo Monteiro
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ma das vantagens da leitura da poesia de Octavio Paz é a de jamais se saber diretamente a sua procedência: se aterrissou, entre nós, a partir do misterioso México ou da constelação de Andrômeda; se de algum lugar do tempo ou de um sopro qualquer da eternidade. O fato marcante é que a sua poesia é de dupla face: às vezes parece irromper de um influxo mágico-demiúrgico, mas em outras parece ser puro produto de uma formalização racional. Por um lado, temos um dos mais poderosos críticos da literatura hispano-americana, que não raramente parece engolir o poeta, mas, por outro, temos um poeta prodigiosamente dotado que consegue escapar, jovem e lépido como nunca, das inúmeras armadilhas que o crítico armou para ele. Mas nem sempre o mágico consegue ganhar a partida para o racional. Mesmo quando se leva em consideração que em Octavio Paz há a feliz combinatória de um profundo senso de simetria no exercício da crítica – não isenta do jogo dos paradoxos e de uma rede intrincada de sutilezas – e de um agudo senso analógico na própria criação poética. E sabemos que a linguagem poética, assim como a linguagem mítica, é sobretudo analógica. Como analógico é o ponto de partida de todas as metáforas.
Continente fevereiro 2004
Reprodução
É fácil compreender Fernando Pessoa, através de Octavio Paz, em seu magnífico ensaio O Desconhecido de Si Mesmo: Fernando Pessoa, ou Sóror Juana Inês de la Cruz, com ensaio ainda mais assombroso, porém se torna extremamente difícil compreender Octavio Paz através dele mesmo. Se o crítico e o poeta, até certo ponto, se completam, nem sempre poderemos conciliar num mesmo poeta uma concepção de poesia enquanto manifestação anterior à linguagem, porque proto-histórica e arquetípica, e a postulação do poema-coisa ou do poema-objeto defendido pelos nossos concretistas. Por um lado afirma: “O poema é poesia e, além disso, é outras coisas. E este “além disso” não é algo postiço ou acrescentado, mas um constituinte do seu ser”. Por outro lado nega a afirmação anterior: “A disposição tipográfica, verdadeira anunciação do espaço criado pela técnica moderna, particularmente a eletrônica, é uma forma que corresponde a uma inspiração poética distinta”. Qual dos dois Octavios poderemos melhor apreciar, é o grande problema. Aquele afirma: “Compreender um poema quer dizer, em primeiro lugar, ouvi-lo. Ler o poema é ouvi-lo com os olhos; ouvi-lo é vê-lo com os ouvidos. O poema deve provocar o leitor: obrigá-lo a ouvir – a ouvir-se”. O segundo diz precisamente o contrário: “depená-las,/destripá-las, touro/boi, arrastá-las,/fazer, poeta,/fazer com que engulam todas as suas palavras”. Mas se a linguagem humana é bífida e, por extensão, ambígua, por que o poeta não pode ser bifronte como Janus, o deus das portas dos romanos, dos dias e das noites de todos os janeiros do mundo? O poeta Octavio Paz – como esse deus bifronte – é, ao lado das últimas posições de vanguarda, o cantor dos temas ancestrais de sua cultura, o estudioso da poesia zen e das diversas poéticas ocidentais e, acima de tudo, um dos renovadores de uma das vertentes da poesia hispano-americana que, em lugar de Borges, privilegia Neruda e, no plano europeu, em vez de Gôngora, é atraído por Mallarmé.
“A imagem desafia o princípio da
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Num dos textos mais esclarecedores de Signos em Rotação, “A imagem”, assim se pronuncia Octavio Paz: “A imagem resulta escandalosa porque desafia o princípio da contradição: o pesado é o ligeiro. Ao enunciar a identidade dos contrários, atenta contra os fundamentos do nosso pensar. Portanto, a realidade poética da imagem não pode aspirar à verdade. O poema não diz o que é e sim o que poderia ser. Seu reino não é o do ser, mas o do “impossível verossímil” de Aristóteles. Apesar desta sentença adversa os poetas se obstinam em afirmar que a imagem revela o que é e não o que poderia ser. E ainda mais: dizem que a imagem recria o ser”. Essa dupla natureza da imagem – de revelar o que é e, ao mesmo tempo, de constituir-se, como “impossível verossímil”, no poder ser – fatalmente exercerá alguma repercussão sobre o seu mediador por excelência, o poeta; e não só no seu campo teórico ou visualizador, mas no domínio mesmo da criação. E isso não poderia deixar de acontecer certamente ao próprio Octavio Paz. Dessa maneira, seguindo tal ótica, só deixando de lado os livros Blanco, Topoemas e Discosvisuales, poderemos melhor vislumbrar a duplicidade da imagem em todos os seus vínculos analógicos e recolher o que há de primacial e originário na poesia de Octavio Paz. Ora, quem entende tanto de personas quanto de heterônimos, como o poeta, a ponto de ser um dos melhores intérpretes de Fernando Pessoa, ao lado de Adolfo Casal Monteiro e Harold Bloom, com certeza entenderá a nossa escolha que se dará, basicamente, em dois dos seus livros mais importantes. O primeiro poema escolhido é do seu livro Liberdade sob Palavra (1935-1957) sob o título, aliás significativo, de Destino de Poeta: “Palavras? Sim, de ar, / e no ar perdidas. / Deixa-me perder entre palavras, / deixa-me ser o ar nuns lábios, / um sopro vagabundo sem contornos / que o ar desvanece .// Também a luz em si mesma se perde”. Neste poema vemos ressaltado o caráter pneumático da poesia em seu sentido tanto inspirador quanto expirador, pois justamente as palavras constituem sua matéria. O poema se conclui pela relação entre esse caráter pneumático e essa luz que diafaniza todo o vazio mas que, em sua superabundância, em si mesma se perde, como é próprio, também, do destino do poeta essa mesma perdição. Sítio arqueológico de Palenque, em Chiapas
Foto: Mariná Lessa
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Reprodução
capa 15 » O poeta Octavio Paz é, ao lado das últimas posições de vanguarda, o cantor dos temas ancestrais de sua cultura, o estudioso da poesia zen e das diversas poéticas ocidentais e, acima de tudo, um dos renovadores de uma das vertentes da poesia hispano-americana
Jovem mexicana: como
O segundo poema se encontra em Salamandra (1958-1961) e é intitulado “Movimento”: “Se tu és a égua de âmbar / eu sou o caminho de sangue / Se tu és o primeiro nevão / eu sou quem acende a fogueira da madrugada / Se tu és a torre da noite / eu sou o cravo ardendo em tua fronte / Se tu és a maré matutina / eu sou o grito do primeiro pássaro / Se tu és a cesta de laranjas / eu sou o punhal de sol / se tu és o altar de pedra / eu sou a mão sacrílega / Se tu és a terra deitada / eu sou a cana verde / Se tu és o salto do vento / eu sou o fogo oculto / Se tu és a boca da água / eu sou a boca do musgo / se tu és o bosque das nuvens / eu sou o machado que as corta / Se tu és a cidade profanada / eu sou a chuva da consagração / Se tu és a montanha amarela / eu sou os braços vermelhos do línquen / Se tu és o sol que se levanta / eu sou o caminho de sangue”. Como no poema anterior, em referência ao ar tivemos a inspiração e a expiração, e sua correlação com a luz, o eixo imagético deste poema se centra em dois pólos: a atividade e a passividade, pois o movimento cósmico é feito de ambas, já que o contrário do movimento é o repouso. Também, em vez de luz, temos o sangue, na significativa repetição do segundo verso no último: Eu sou o caminho do sangue que, além de perfazer o círculo vital e poemático, aponta simbolicamente para o cumprimento inelutável da trajetória existencial de tudo que é vivo e alude, ao mesmo tempo, à força mediadora (através do poeta, que é veículo deste sangue) da Poesia. Talvez seja esta a mais perene lição da poesia de Octavio Paz. •
Mulher Chorando, 1937, óleo sobre tela, 60 x 49cm. Tate Gallery, London
Ângelo Monteiro é poeta, ensaísta e professor adjunto de Estética e Filosofia da Arte da UFPE.
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Dança de Los
“A mexicanidade será uma máscara que, ao cair, deixará ver por fim o homem” (Octavio Paz) Everardo Norões
Viagem a Octavio Paz: ler o México
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Cidade do México, set. 2002 A cidade do México, capital do país de Octavio Paz, tem no seu centro uma das maiores praças públicas do mundo, a Praça da Constituição. O Zócalo (nome dado às praças principais da maior parte das cidades mexicanas) é um vasto pátio que intimida pela sua profunda sensação de vazio. Na noite do dia 15 de setembro, aquela espécie de limbo fincado no coração da imensa metrópole torna-se palco de um grande carnaval. É a comemoração do Dia do Grito, ou da Independência Nacional, homenagem ao gesto do padre Miguel Hidalgo que, em 1810, conclamou seus compatriotas a pegarem em armas e a se rebelarem contra o jugo espanhol. Hidalgo foi preso e executado. Mas, como quase tudo no México se reveste de máscaras ou se transmuda, a data de uma derrota acabou sendo considerada o dia da Nação. Octavio Paz foi o intelectual à medida exata daquele país carregado de contradições, cuja história pesa nos mínimos detalhes do cotidiano de seu povo.
A grande traição que inicia a história do México, segundo Octavio Paz, é a dos deuses. A chegada dos espanhóis assinalava, para os astecas, o fim de uma era cósmica
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A leitura de Octavio Paz explica a reticência de alguns mexicanos, quando indagados sobre o autor de O Labirinto da Solidão. Quando dissecou a realidade de seu país, fê-lo com a agudez de um bisturi. Ao desvendar metáforas, criadas para adormecer a visão de uma história particularmente dominada pelos mitos, assumiu uma atitude que pode ser resumida num dos versos de seu poema “Blanco”: “La irrealidad de lo mirado/Da realidad a la mirada”. Seu México nada tem da Argentina ou da Buenos Aires fantásticas de um Jorge Luis Borges. Para compreender os mecanismos profundos do México, Octavio Paz procurou ir além do que revelam os fatos históricos, que considerava “embebidos de humanidade”. Na sua opinião, o mexicano, ao se servir das circunstâncias, “converteas em plástica e com ela se funde”. Cria fantasmas, vestígios de realidades ancestrais que se tornam reais e dele se apoderam. Se a história é capaz de esclarecer as origens
Fotos: Reprodução
Foto: Mariná Lessa
Acima, Igreja de San Juan Chamula: para entrar tem que ser católico Ao lado, máscara da morte: tudo se transmuda Continente março 2004
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desses fantasmas, nunca conseguirá dissipá-los. Porque somente os mexicanos podem enfrentá-los, destinados que são a travar combate com suas próprias sombras. Na sua visão, a América Latina também é um desses fantasmas: um rótulo, algo que não conseguiu existência própria, apenas um nome. Suas nações resultam de situações estranhas à realidade das populações, desenhadas artificialmente por oligarquias nativas, caudilhos militares, imperialismos estrangeiros. Diplomata e escritor de um país onde o nacionalismo foi assimilado como ideologia oficial, Octavio Paz não hesitou em considerá-lo não apenas “aberração moral”, mas uma “falácia estética”. E quando foi preciso manter o equilíbrio entre sua postura crítica e o cargo de embaixador de seu país, optou pela ruptura e o exílio.
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Chiapas, out. 2002 A dez quilômetros de San Cristobán de las Casas – cidade que foi tomada pelos guerrilheiros do Exército Zapatista, em 1994 – situa-se a aldeia indígena de San Juan Chamula. No seu adro, uma fila de índios se prosterna em direção a um dos pontos cardeais. Para cruzar a porta principal, outro índio pergunta se o visitante é católico. É preciso dizer que sim. A igreja não tem cadeiras, nem lâmpadas. O piso é recoberto de folhas, há milhares de velas e o teto é negro de fumaça. Sentados no chão, ou de cócoras, índios bebem, imolam galinhas e sussurram orações em tzotzil, dialeto falado pelos descendentes dos antigos maias. As estátuas, com fisionomias trágicas dos santos espanhóis, têm espelhos pendentes dos pescoços e neles os índios procuram refletir a própria alma. O padre comparece à igreja apenas para celebrar a missa do domingo. O chofer do táxi aponta para casas na colina ao longe e conta que para lá foram banidos os índios que ousaram se converter às seitas protestantes. No mercado próximo à igreja, entre produtos artesanais, bonecos de pano têm a forma de um homem a cavalo, boné, parte inferior do rosto coberta com um lenço na boca: o subcomandante Marcos. Dos ídolos de pedra de Palenque ou de Chichen-Itzá aos bonecos da feira de San Juan Chamula, a mesma lógica da criação dos mitos que tanto fascínio exerceram sobre Octavio Paz.
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A grande traição que inicia a história do México, segundo Octavio Paz, é a dos deuses. A chegada dos espanhóis assinalava, para os astecas, o fim de uma era cósmica. A fé católica, pela lógica da cosmogonia asteca, significava para os índios – traídos pelos deuses e cujos chefes foram exterminados – a certeza de um lugar no Cosmo. Mas, segundo Octavio Paz, nada transformou a relação do povo com o Sagrado, “força constante que dá permanência à nossa nação e profundidade à vida afetiva dos desprivilegiados”. Mas, qual o Deus dos mexicanos? – indagava. Cristo ou as antigas divindades da terra?
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(Na moderna Basílica de Guadalupe – como nos recintos sagrados das cidades pré-hispânicas – há um orifício por onde, num momento preciso do ano, uma réstia de sol projeta sua luz sobre o manto da Virgem de Guadalupe, padroeira do México que, em 1531, apareceu ao índio Juan Diego.)
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Praça das Três Culturas Um templo asteca em ruínas. Com suas pedras foi erguida, no século 17, a igreja de Santiago, que fica ao lado. Um mural do pintor David Alfaro Siqueiros sugere a presença da cultura mestiça. Os prospectos turísticos não omitem que ali ocorreu o massacre de Tlatelolco, durante as Olimpíadas de 1968.
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“Procurarei evitar toda declaração pública, enquanto permanecer no território da Índia. Não quero dizer aqui, onde fui representante de meu país por quase seis anos, o que não terei receio de dizer no México: não estou de acordo em absoluto com os métodos empregados para resolver (na realidade: reprimir) as demandas e problemas postos pela nossa juventude”. O texto consta da carta que Octavio Paz enviou, em 4 de outubro de 1968, à Secretaria de Relações Exteriores do México, em protesto contra o célebre episódio de Tlatelolco, na Praça das Três Culturas, onde estudantes e populares foram massacrados pelo exército mexicano. No dia 16 de outubro recebeu um telegrama, informando que o governo aceitara seu pedido de demissão. Octavio Paz, um dos maiores intelectuais latino-americanos do século 20, deixou seu país por um exílio de três anos. No ensaio Olimpíada e Tlatelolco, registrou que a matança de Tlatelolco revelara um passado que se julgava enterrado, e que irrompia, novamente, mascarado e armado. Um passado que, segundo ele, “não soubemos reconhecer, nomear, desmascarar”.
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Cidade do México, set. 2002 O Zócalo é também um microcosmo, formado pelas várias camadas geológicas da história do México. Está cercado por edifícios coloniais, entre os quais se destacam a Catedral Metropolitana e o Palácio Nacional. Num de seus cantos mais afastados, encontram-se as ruínas do Templo Mayor, testemunho dos sacrifícios ancestrais. Construído entre os séculos 14 e 15, foi demolido pelos espanhóis no alvorecer da Conquista. É o que resta da Tenochtitlán, a cidade imperial de Montezuma, construída nas alturas, sobre um imenso lago.
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Zócalo A Festa do Grito se desenrola naquele recanto emblemático, origem dos pontos cardeais do povo mexicano. Mescla de carnaval, comemoração cívica, manifestações folclóricas, ali paira a estranha energia de um povo habituado a conviver entre ídolos e pirâmides. Mas, na visão de Octavio Paz, no México, a festa é, sobretudo, uma das raras ocasiões em que os mexicanos deixam cair suas próprias máscaras. Ele que, certamente, foi um dos poucos que dispensou o seu uso... • Everardo Norões é poeta.
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22 CINEMA
Elia Suleiman
Na fronteira entre poesia e política O premiado filme Intervenção Divina apresenta, de forma bem-humorada, o recrudescimento do conflito entre Israel e Palestina Kleber Mendonça Filho
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conteceu no Festival de Cannes de 2002. Um filme oficialmente tido como “da Palestina” (Intervenção Divina, de Elia Suleiman, com previsão de lançamento para março) e um outro de Israel (Kedma, de Amos Gitai). Ambos em competição na Seleção Oficial do maior festival de cinema do mundo. A programação foi uma calculada provocação da organização, provocação que eu vi ser transformada em tensão durante um jantar. Tinha acabado de ir à sessão noturna de imprensa do filme de Suleiman, quando fui me encontrar com amigos franceses para comer. Ao chegar ao restaurante, meus três amigos estavam acompanhados de um casal de Israel. Naturalmente, os amigos me perguntaram o que tinha acabado de ver, e respondi Intervention Divine. Imediatamente, a garota de Israel perguntou se eu tinha visto Kedma, exibido dias antes. Eu respondi que sim. Ela então quis saber de qual dos dois eu tinha gostado mais. Eu disse Intervention Divine e ela respondeu “que pena...”. Meus amigos se apressaram em me informar que ela estava em Cannes integrando a equipe de Kedma (foi assistente de direção de Gitai). O tom do jantar foi cordial, mas marcado por uma tensão inegável, causada pelo meu favorecimento superficial do palestino em relação ao israelense que, de qualquer forma, é um belo retrato sobre a criação de Israel em 1948. Para um olhar brasileiro, o clima poderia ser distraidamente descrito como o de uma “copa do mundo”, mas, na realidade, sabemos que há ali toda uma carga de história, identidade cultural, terra e sangue. No balanço final do Festival, Intervenção Divina ganhou o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio da Crítica Internacional. Kedma não ganhou prêmios. No início do ano passado, o filme de Suleiman foi notícia por não poder concorrer a uma indicação ao Oscar de Filme Estrangeiro, uma vez que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood não poderia endossar um filme “sem país” (Palestina). Suleiman esteve, em outubro pasContinente março 2004
Foto: Gustao Stephan/ Globo
CINEMA 23 »
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24 CINEMA
sado, no Festival Internacional do Rio 2003, onde apre- Israel, um gueto econômica e psicologicamente deprimido. sentou Intervenção Divina, que aguarda lançamento no Bra- Num lugar como esse, as pessoas descontam suas frustrações entre si, síndrome que pode ocorrer em qualquer lugar sil. Eis os principais trechos de nossa conversa: do mundo, aqui mesmo no Rio, creio. A diferença é que em É difícil imaginar o que teria acontecido se Intervenção Israel há uma minoria que é uma entidade nacional, os Divina tivesse chegado ao grande público em Israel? palestinos. Os israelenses tentam ignorar o fato de que são Muito difícil pré-julgar. O que posso dizer é que os gente da Palestina, terra que eles invadiram. Por isso que são distribuidores decidiram que o público israelense não deve- chamados “árabes israelenses” por Israel, e nota-se aí um ria ver o filme. Nas exibições na cinemateca, israelenses e pa- quê de “dependência” política e cultural no termo quando, lestinos aplaudiram juntos, e vaiaram juntos. Tenho certeza na verdade, nós não somos dependentes. A pergunta é: que cinéfilos de Israel gostaram do que viram e consegui- “quem eram esses árabes israelenses antes de Israel existir”? ram superar seus sentimentos nacionalistas, vendo o filme De onde surgimos? Eu simplesmente apareci em Nazaré, do nada? Dessa forma, vejo o filme apenas como a descrição com a distância necessária. O filme não é particularmente agressivo para um lado, de um ambiente, de palestinos vivendo duas vidas em Israel. ou outro, ou é? Vivi em Nazaré durante partes importantes da minha vida, Esta é uma questão que me interessa muito, no sentido há uma experiência pessoal de vida, há vizinhos meus no de como meu filme é interpretado. Posso dizer que não é de filme, há histórias que presenciei, ou que me contaram. forma alguma agressivo, e também que é tão agressivo jus- Anoto fatos e idéias no meu caderno e o filme torna-se uma tamente por não ser agressivo. Como fui agressivo com os série de vinhetas, creio que isso é cinema. Por tudo isso, não palestinos? O fato de eles estarem sempre alimentando pi- acho que seja justo dizer que eu cheguei para dissecar um cuinhas diariamente? Acho que não. Não tenho um histó- sistema social, uma vez que não sou antropólogo ou rico de tecer comentários socialmente críticos. Escrevo sociólogo. Apenas servi de esponja para uma realidade e esta cenas e situações pelo fato de serem engraçadas, ou de ter é a minha forma cinematográfica de tratar o espaço poético. vivido ou percebido essas situações. Não é uma questão de De qualquer forma, a violência que eu mostro está mais no criticar esse lado ou o outro, são imagens e momentos. Não ambiente do que na violência ativa que existe hoje. A única sou equilibrado. Nesse filme, observo uma situação numa verdade que existe num filme como esse é a verdade que cidade palestina dentro de Israel, onde pessoas são obri- você sente como espectador. Não é o caso de discutirmos o gadas a andar com cédulas de identificação, totalmente dis- que é ou não real, mas a sinceridade que está impressa em criminadas por Israel, uma cidade cortada e oprimida por cada imagem. Fotos: Divulgação
Elia Suleiman (que também atua no filme): Arafat simboliza o conflito que parece não ter fim Continente março 2004
CINEMA 25 »
Cena de Intervenção Divina: sátira ao universo da Moda
"Não acho que seja justo dizer que eu cheguei para dissecar um sistema social (...). Apenas servi de esponja para uma realidade"
Qual a sua relação com a crítica, especialmente num filme que lida com questões políticas tão delicadas? É um processo produtivo, não apenas ao ler o que é escrito, mas também ao conversar com as pessoas. Isso é essencial, no sentido de fazer com que a experiência deixe de ser solitária do ponto de vista do autor. A auto-avaliação vem de um processo de troca, através de diálogo e observação. Sempre me interessei em observar como platéias diferentes, com bagagens culturais distintas, reagem ao filme. No Festival de Nova York, por exemplo, na explosão do tanque, um homem levantou-se e saiu apressado para nunca mais voltar. Isso me interessa. Você me pergunta sobre “a crítica”, mas eu lhe pergunto: “quem é o jornalista”? É apenas um homem, ou uma mulher, que viu o filme e desenvolveu uma ligação estética com a obra projetada. Se o crítico é um escritor, ou seja, alguém que está à procura de si próprio em obras de arte, sejam elas filmes ou literatura, seja lá o que for, aí teremos um diálogo construtivo. Se eu me procuro no que faço e você se procura no que você faz, a tendência é nos encontrarmos e vermos que ninguém é juiz de nada. É apenas uma questão de levantar questões e debater o que foi feito, e como foi feito e percebido. Como o filme foi percebido nos vários níveis de crítica que existem? Sim, nesse sentido preciso lidar com os “juízes” e os “escritores”. Há os que elogiam o filme e isso torna-se algo de pragmático, porque é bom para o filme e, por ser bom, o filme terá mais público. Às vezes, leio uma crítica que me dá o prazer efêmero da leitura, a forma como ele ou ela escreveu. Nesse sentido, há ali um pedaço de literatura com interesse pessoal ainda maior pelo fato de ter sido escrito
sobre algo que você, como autor, fez. Infelizmente, a impressão geral que eu tenho é que a grande maioria dos críticos não gosta do que faz. Se gostassem, eles sairiam de si próprios um pouco mais. Veja que falo isso como alguém que não tem uma relação frustrante com a crítica, mas alguém que tem sido sistematicamente mimado. Posso afirmar que não li uma única crítica negativa desse filme, ou do meu anterior, Chronicle, na verdade, apenas uma do New York Post, que eu guardei para emoldurar. Você deve conhecer o New York Post, eles são tão pró-Israel que queriam assassinar o filme antes mesmo de vê-lo. De qualquer forma, como poderiam, se o público do New York Post não vê filmes desse tipo? Também fui criticado por críticos árabes, e isso para mim é frustrante porque eles se consideram os críticos oficiais por viverem em “juntas” não – democráticas, os “cavalheiros da causa”, sempre em busca de identificações tribais e esperando que você vá beijar suas mãos. São tão medíocres, tenho pena deles. Morrem de medo de trazer um momento que seja de sinceridade para o mundo e serem cobrados por isso. O filme tem a identidade “palestina”, mas foi feito também por isralenses. Claro que sim. Muita gente me perguntou sobre as filmagens e se havia tensão no set. Não mais do que um filme normalmente tem. É verdade que esperamos seis meses por causa da Intifada. No mais, os palestinos e isralenses da equipe trabalharam bem, juntos, e a verdade é que todos nós ríamos muito, algo que pode parecer absurdo hoje, quando há, de fato, guerra. • Kleber Mendonça Filho é jornalista. Continente março 2004
O conflito sob as lentes de um israelense Amos Gitai, mais importante cineasta israelense da atualidade, afirma que, para continuar existindo, Israel precisa de um novo projeto Camilo Soares, de Paris
S
eu avô materno teria sido um admirável contador de histórias. Teria narrado para o futuro cineasta, quando criança, a história da família. Eram judeus russos chegando de barco de Odessa para se instalar na Palestina, onde sua mãe nasceu. Teriam ido até a Alexandria e, então, alugado camelos para seguir até Jaffa. Judeus, eram sim, mas também socialistas, ativos nos movimentos operários para a abertura dos kibboutz. Seu pai, que nasceu na Silésia, deixou para enfrentar o comitê de seleção da Bauhaus, integrado por Gropius e Kandinsky. Conseguiu convencer o severo júri, mas acabou preso pelos nazistas. Conseguiu escapar para a Suiça e depois, quando esse país começou a entregar seus judeus, para a Palestina. Marcado por tantas histórias, o jovem Amos Gitai até tentou ser arquiteto, mas, uma vez com a câmera na mão, percebeu que não tinha como evitar a sina de contador de histórias, herança familiar. Em 1977, começa a trabalhar para a televisão israelense. Em 1982, seu documentário Diário de Campo, filmado durante a Guerra do Líbano, desencadeia violenta polêmica que o obriga a deixar Israel. Chega em Paris, onde ele assina quatro longas-metragens. Cineasta prolixo, Gitai obteve um
forte reconhecimento da crítica, o que lhe permitiu uma licença poética cujo resultado nem sempre foi positivo para a qualidade de sua obra. Entretanto, firmou-se como o mais importante cineasta israelense da atualidade, com uma importante filmografia, entre documentários e ficções. Foi alvo de honrosa mostra no Centro Pompidou em fins de 2002, em Paris, que estará provavelmente migrando para o Festival de São Paulo este ano. A seguir, o depoimento de Gitai, sobre vários tópicos: Retrospectiva em Paris: Fiquei feliz em ter essa ocasião de montar um tipo de sumário intermediário de minha obra. Há 30 anos, filmei minha primeira imagem, em outubro 1973, que está na fachada do Centro Georges Pompidou. Foi durante a guerra, com uma pequena camêra super 8. Neste momento, gostaria de aproveitar para olhar para trás e fazer uma análise de diferentes trabalhos que fiz. Israel e o fim da utopia: Não é questão de fim de utopia. Na minha vista, é preciso desmistificar essa utopia. Se aceitamos o desejo da diáspora judia como representação da religião pura, ou do nacionalismo, é uma contradição, pois
não se pode viver apenas de gesto simbólico. Se as pessoas não querem apenas viver materialmente, ou seja, consumir e comer, elas precisam de existência espiritual. Mas espiritual não quer dizer religioso, mas sim ter um projeto do que se faz. Senão, elas apenas existem. É hora de encontrar um projeto novo. Até porque o primeiro foi bem sucedido: o de ser um poderoso país, com tecnologia avançada, agricultura de ponta. Agora é hora de encontrar um novo projeto e isso não quer dizer o final da utopia. Globalização: Isso é uma condição da humanidade, as pessoas vivem em lugares diferentes, deslocam-se. É uma maneira moderna de existirem. Não significa o fim de nenhuma utopia.
que tudo o que você vive, até nos mais íntimos termos, está relacionado todo o tempo com as força históricas e sociais. Nada está isolado. Objetivismo: Nunca pensei em pôr na balança o real como o imaginário. Acho que tudo o que o ser humano faz é subjetivo. Cada indivíduo deve procurar diferentes pontos de vistas subjetivos para encontrar sua própria visão. Os jornais da noite, nas televisões brasileiras, francesas, japonesas, palestinas, mexicanas e israelenses são documentos subjetivos. Eles gostam até de se apresentarem como objetivos, mas nunca o são. Representam o ponto de vista dado pelo background político ou, às vezes, religioso, ou dado a interesses econômicos. Por isso, encorajo pessoas a olhar diferentes elementos para construir seu próprio universo, visto que objetivismo não existe.
Exílio: Acho que o cinema deve ser engajado com o real. Percebi isso quando participei desse evento público que é a guerra, quando sofri um evento pessoal, quando fui baleado dentro de um helicóptero. A partir de então, busco, em meu trabalho, olhar para eventos públicos através de meu prisma Projeto: O estudo anterior, a planificação do trabalho, pessoal. Em Field Diary, por exemplo, filmei no campo de elaboração do roteiro, isso tudo depende de cada projeto. Para batalha da Guera de Onze Dias. Israel é o tipo do país em Arena do Assassinato (sobre a morte de Itzhac Rabin), eu não li
Foto: France Press
Seqüência de Kedma, mais recente produção de Gitai: história, identidade cultural, terra e sangue
Fotos: Divulgação
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Gitai e cenas de Kedma (abaixo): ponto de vista oferecido pela carga política, religiosa e econômica
“É hora de encontrar um projeto novo. Até porque o primeiro foi bem sucedido: o de ser um poderoso país, com tecnologia avançada, agricultura de ponta. Agora é hora de encontrar um novo projeto e isso não quer dizer o final da utopia”
nada, pois sabia sobre aquilo tudo. Para Ananas, li bastante com meu colaborador sobre a economia do terceiro mundo, organizações multinacionais, condições das Filipinas, a Constituição de Ferdinando Marcos, com leis especiais para oprimir greves. Queríamos aprender bastante. Coletamos muitas informações que , inclusive, nem estão no filme. Serviram apenas para ajudar a saber para onde estávamos indo. Por isso, pretendo sempre coletar informações de maneira independente. Quando faço um filme em Israel, tento não ser dependente apenas de recursos israelenses. Pois não gosto que eles manipulem meu filme, cortando aqui e ali, o que aconteceu no começo de minha carreira. Felizmente, consegui resistir. Se alguém controla financeiramente cem porcento de um produto, controla também cem porcento de seu conteúdo. Quando estávamos fazendo Ananas, tivemos uma proposta da Pineapples Co de nos financiar e não aceitamos. Itzhac Rabin: Lembro que na premier de um filme sobre Itzhac Rabin em Tela-aviv, a viúva e a filha dele vieram e não entenderam o filme. Acho que não era um filme convencional. Certamente, estavam esperando mais um tipo de sumário de Itzhac Rabin. Eu nao queria fazer isso. Religião: Acho que a religião judia tem a ver com a preservação da vida e não com o fetichismo da morte. Se há um governo estúpido que proclama a autodestruição, então o indivíduo tem que se proteger. Mas, antes de se organizar, as pessoas devem entender o que estão fazendo. Yasser Arafat x Ariel Sharon: Acho que há dois lados controlados por lideranças que pensam ainda que podem vencer. O que poderia ser uma solução é o múltiplo respeito de ambas as nações. • Camilo Soares é jornalista e fotógrafo.
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CINEMA 29 »
Kill Bill
Sangue à moda oriental Quarto filme de Quentin Tarantino mistura a violência de sempre, “licenças poéticas” surpreendentes e ação em pintura de cartum Ernesto Barros
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uando o ex-funcionário de locadora Quentin Tarantino conseguiu rodar seu primeiro filme, o já clássico Cães de Aluguel, em 1992, a crítica mundial ficou estupefata por dois motivos. Primeiro, com o seu dom natural para criar diálogos impagáveis e cenas de extrema violência. E, segundo, com a sua falta de cerimônia em “homenagear” um obscuro filme policial realizado em Hong Kong cinco anos antes. Na época, mais de um jornalista acusou-o de plágio. No entanto, com a estréia de Pulp Fiction – Tempo de Violência, dois anos depois, a acusação perdeu a importância e Tarantino, de uma hora para outra, transformou-se no cineasta mais influente da recente história do cinema americano. Desde a sua vertiginosa ascensão, porém, Tarantino só voltou aos sets de filmagens para realizar Jackie Brown, em 1997, e o díptico Kill Bill, cujo Volume 1 estréia este mês nos cinemas brasileiros. Em Kill Bill – Volume 1, Tarantino faz um comeback radical, como se quisesse reinventar a própria carreira. De certa maneira, ele reclama para si a autoridade máxima sobre um certo orientalismo pop que, nos últimos anos, já deixou marcas no cinema americano e europeu, mais notadamente na França. Apesar de não ser uma novidade a paixão de Quentin Tarantino pelo cinema oriental, como indicam o episódio com Cães de Aluguel e o fato de ele ter distribuído alguns filmes de Wong Kar-Wai nos Estados Unidos, Kill Bill – Volume 1 é uma grande surpresa. Afinal, ninguém imaginaria que Tarantino dedicaria tanto tempo ocioso pensando em fazer um filme que poderia ser definido numa única frase: a vingança de uma guerreira samurai. Pois Kill Bill, em termos anedóticos, é pouco mais do que isso. Aliás, só não é apenas isso porque ele faz um
crossover quase inacreditável com o western spaghetti; não por meio de imagens-símbolos, mas surrupiando tudo o que ele ouviu de legal nas trilhas sonoras de Luis Bacalov, Riz Ortolani, Ennio Morricone e Armando Trovajoli. Este amor de Tarantino pelos western-spaghetti e pelos western-soja (como ficaram conhecidos os filmes de kung-fu por estas plagas) é bastante compreensível. Afinal, ele foi muito aos cinemas no final dos anos 60 e durante toda a década de 70, época de sua infância e adolescência. Só desta maneira pode-se explicar que a maior referência de Tarantino em Kill Bill seja a obra do cineasta japonês Kinji Fukasaku, que morreu no ano passado, em Tóquio, aos 73 anos. Fukasaku, que realizou mais de 60 filmes em pouco mais de 40 anos de carreira, era especialista em fazer escorrer hectolitros de sangue, na tela. Nos anos 70, ele realizou uma série de filmes sobre a yakuza, a máfia japonesa, cujo
único exemplar disponível nas locadoras brasileiras é o genial Alugados pelo Inferno. Mas, se Tarantino ficasse apenas na utilização pura e simples do banho de sangue arterial de Fukasaku, certamente Kill Bill seria impossível de se assistir. Mesmo assim, nos Estados Unidos, a produção recebeu a classificação R (impróprio para menores de 18 anos) e entrou no índex dos filmes mais violentos do cinema americano. Para fugir dessa armadilha, Tarantino fez uma opção pela fantasia: a violência parece meramente cartunesca. Uma das mais sanguinolentas seqüências de Kill Bill foi realizada em anime, a tradicional animação japonesa. A inclusão de outra vertente muito rica do cinema japonês, a chambara, que consiste em longos combates de espada, foi uma maneira que ele encontrou para encaminhar seu filme para a esfera irrealista, tal qual O Tigre e o Dragão, de Ang Lee, e Hero (ainda inédito
CINEMA 31 nos cinemas brasileiros), de Zhang Yimou. Todas essas licenças poéticas transformaram Kill Bill no primeiro filme estritamente de ação de Quentin Tarantino, mesmo que a necessidade de enquadrá-lo num gênero específico não seja uma tarefa convincente. Para tornar as incessantes cenas de ação mais consistentes, Tarantino recrutou um dos seus maiores ídolos, o veterano ator japonês Sonny Chiba, um especialista no gênero, que responde pelas coreografias de lutas com espadas ao lado do lendário Yuen WoPing (o mesmo de Matrix, As Panteras e dezenas de outros filmes hollywoodianos). Shiba é um personagem-chave de Kill Bill. Ele é Hattori Hanzo, um exímio artesão que vai confeccionar a espada da vingança para A Noiva (Uma Thurman), a razão de ser do filme. A primeira imagem de Kill Bill é ela em primeiro plano, toda ensangüentada, conversando com Bill (David Carradine, que não mostra o rosto nesse Volume 1), até receber um tiro à queima-roupa na cabeça. A partir dessa cena, filmada em preto e branco, a história da vingança de A Noiva, como sói acontecer nos intricados roteiros de Quentin Tarantino, será feita em círculos, num vai-e-vem espácio-temporal que só por milagre não vira uma grande bagunça narrativa. Essa habilidade em burlar a ordem natural, ou seja, convencional, do que está sendo contado é uma das maiores marcas da curta, porém poderosa, obra cinematográfica de Quentin Tarantino. É só lembrarmos do point of no return de Pulp Fiction, quando o personagem de John Travolta morre e a história continua. Em Kill Bill, essa sobrevivência post-
mortem é revista em tom de paródia, já que A Noiva renasce de um longo período de coma num leito de hospital, para iniciar um terrível acerto de contas com Bill e seus asseclas do Esquadrão de Assassinos Víbora Mortal, da qual ele fez parte. Assim, A Noiva vai atrás de cada membro do grupo. De início, ela enfrenta apenas dois inimigos, as letais Vernita Green (Vivica Fox) e O-Ren Ishii (Lucy Liu). A primeira, na Califórnia, e a outra no Japão. É lá que A Noiva vai vestir um macacão amarelo, como se fosse clone de Bruce Lee, para enfrentar uma horda de assassinos mascarados que parecem ter saído da série de TV Besouro Verde. Mas como Kill Bill foi dividido em duas partes porque o produtor Harvey Weinstein, da Miramax, quis faturar mais na bilheteria e também deixar que Tarantino ficasse mais desimpedido quanto à metragem do filme, este Volume 1 parece um work in progress. Esse caráter de obra incompleta, no entanto, não prejudica em nada Kill Bill porque Tarantino galvaniza a platéia do início ao fim da projeção. Uma pena que vamos ter que esperar mais seis meses para assistir à segunda parte do filme e acompanhar o desfecho da vingança de A Noiva, quando ela vai ficar frente a frente com Elle Driver (Daryl Hannah), Budd (Michael Madsen) e Bill, o homem que ela amava e que se tornou o seu maior inimigo. Nos Estados Unidos, a estréia do Volume 2 está marcada para acontecer na primeira quinzena de abril deste ano. • Ernesto Barros é crítico de cinema
Fotos: Divulgação
Kill Bill utiliza as técnicas de chambara, longos combates de espada
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Ao terminar a leitura de Boa-Tarde às Coisas Aqui de Baixo, do escritor português António Lobo Antunes, o leitor talvez imagine que ele, coitado, é que não soube firmar a imagem correta do quebracabeça Fernando Monteiro
Ginástica africana
Treinamento de soldados do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), em outubro de 1975
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abe ao leitor reunir as mínimas partes, juntar e colar os fragmentos maiores e menores que constituem o mosaico romanesco do novo livro de António Lobo Antunes – nome que, unido ao de José Saramago, esteve em consideração pela Academia sueca (que acabou optando por nobelizar o Zé alentejano, em 1998). Ficou Lobo Antunes “para depois”, supõe-se. E Saramago, o Ungido, reconheceu que o mais cobiçado prêmio literário do planeta deveria ter sido atribuído a Jorge Amado, escritor brasileiro várias vezes indicado e sempre preterido como herdeiro – apenas herdeiro – da língua até então sem Nobel. (O fato é que, quando chegasse a vez de afinal distinguir a “última flor do Lácio”, os suecos sempre optariam pela cartilha européia, que rezava: deverá ser na pessoa de algum autor português da gema, e não de um Guimarães Rosa, de um João Cabral não-nascido na Europa, longe da pátria de Camões etc.) Bem, diz-se que Lobo Antunes faturará um novo Nobel luso, nos próximos cinco ou dez anos (não há, parece, brasileiros à vista), e ele parece seguir à risca o perfil “inovador” que mais e mais reforce as credenciais para tanto. O autor de Os Cus de Judas, Auto dos Danados e Manual dos Inquisidores – seus melhores livros – vem esperando a “ordem natural das coisas” e espera ser reconhecido, internacionalmente, pelo traço “original” que traz prêmios (Lobo foi o grande vencedor do XIV Prêmio Internacional União Latina de Literatura), prestígio, críticas solenes, respeitosas... e também a distância regulamentar de leitores cansados dos doze trabalhos de Hércules para juntar os cacos da narrativa. É o que acontece com a obra mais recente de Antunes, o tijolaço intitulado Boa-Tarde às Coisas Aqui em Baixo (Editora Objetiva, 2003, 565 páginas), de linguagem “triturada” até quase o limite da originalidade gaudiana que incrustou o Parque Güell de porcelana policromada de todo tipo.
Não que o romance – constituído de três “Livros” vazados na mesma técnica de mosaico esmigalhado – se torne particularmente difícil para os leitores afeitos aos bons e maus truques... até porque se acompanha bem, ou mais ou menos bem, a pluralidade de vozes, situações e camadas da realidade que o Boa-Tarde pulveriza ao longo de quinhentas páginas escritas para contar (e “ocultar”) a missão de alguns agentes enviados à paisagem de destruição de Angola. Quem os envia? Um certo Serviço espectral que, camuflado, busca diamantes e informações políticas naquela mesma África, onde Lobo Antunes fez a sua viagem pessoal de Kurtz, de 1971 a 1973. Como no Congo do horror-para-o-horror, o escritor de O Esplendor de Portugal pretende acompanhar, aqui, qualquer coisa sobre a qual ele não tem o poder de um Conrad para tornar realmente horrível, nem a clareza de um Greene para tornar diamantina, e, muito menos, o senso de ação de um Simenon para tornar atraente ao menos como incursão de espionagem, digamos, do autor de angústias do ex-colonizador. Pelo contrário, as “missões” dos espiões portugueses (?) são tão disfarçadas – pelo artifício de desfocar – que não rendem nada em termos ficcionais, e a pergunta um é por que o Antunes resolveu patinar nessa área difusa entre ação e fluxo da memória, como se fosse o Molloy (de Beckett) com algum plot explosivo travado pelo aviso de terreno minado – pela pretensão de ser constantemente “obscuro”? O leitor de bom faro sente que há uma história que poderia ter se desenvolvido de modo direto e mais eficiente, e isso faz mais lamentar do que apreciar todos os vidrinhos foscos que António sacode para formar as rosáceas e mandalas estilísticas através das quais devemos ver os acontecimentos partidos e os personagens que não se firmam para além da sombra de subtendidos. Quem faz o que a quem? – pergunta dois –, é lícito indagar, quando não se trata de um mundo mental (como o dos romances beckettianos), mas do
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Lobo Antunes e o seu novo livro: tijolaço gráfico e de linguagem partida
Antunes já declarou que o romance, como gênero, ele o vê para sempre “mudado”. Agora, por seus próprios livros, é no que sinceramente acredita
cenário real, lisboeta e africano, onde se mexem “Marina”, “Seabra Miguéis”, “Gonçalves”, “Morais”, os agentes sumidos como fantasmas que se desfazem, e Angola vista sob o caleidoscópio mudado da memória falha ou seletiva... Enfim, as coisas todas nos afastam, no Aqui em Baixo, com uma mão excessiva de guache, de tinta diluída na água dos capítulos monocórdicos que, em vagas de repetição, impõem a recorrência mnemônica como manobra diversionista. É como se você tivesse um fragmento de parede bizantina (ou uma peça de coral incrustrado de Torre del Greco) e pretendesse tornar ainda menores as pequenas partes que formam as imagens marchetadas maiores e em miniatura. Nada o impede de fazê-lo, e, todavia, há sempre um “ponto de equilíbrio” além do qual o esmigalhamento dos cacos tende a tornar o conjunto de cada mosaico apenas um “chapado” de detalhes, e isso faz perder o melhor, por exemplo, do efeito de transparência iluminada. Eis uma velha lição, aprendida daqueles narradores do século 19, na sua habilidade de bons observadores e mestres tanto da amplitude quanto do olho de lente (e é desse modo, ainda, que se conserva o leitor naquela espécie de perfeita tensão, sem prejuízo do quadro-geral de romances que, assim, nunca se decompõem em fragmentos diminutos demais). António Lobo Antunes, sabemos, quer fazer a velha narrativa “andar” – mesmo que desacompanhada do leitor sem entusiasmo. É certo que se lê (ainda?) para dilatar a consciência, mas isso pode ser feito sem o véu pesado do aborrecimento (nosso), uma vez que, em última instância, Continente março 2004
ninguém lê para se aborrecer. Antunes já declarou até que o romance (o gênero), ele o vê para sempre “mudado”, agora, por seus próprios livros – é no que sinceramente acredita –, mas posso garantir que foi com um supremo esforço (eu que gosto de dificuldades literárias) que cheguei ao epílogo vazado no estilo de uma redação escolar. Quando se chega ali, então se compreende que as centenas de quadros sucessivos anteriores nadavam como que em suspensão, assim como a cena evocada pela menina no remate de um romance que verdadeiramente não progride (ou progride pouco, pá) do “primeiro” para o “segundo” e “terceiro” livros. Pergunta três: o tal “epílogo”, então, viria a ser o epílogo de que, Miguéis? Ao terminar a leitura, o volume pesado ainda no colo, cheio de dúvidas, o leitor talvez imagine que ele, coitado, é que não soube firmar (formar?) a imagem correta do quebracabeça de areia africana na fronteira do equívoco: “li ou não li um grande livro do Lobo corredor se esfalfando sobre a esteira de ginástica em que ele julga correr na savana?”... Uma estranheza final: mesmo editado no Brasil, o livro conserva a norma portuguesa, com todos os “cobardes”, “factos”, “bisoiros” etc., conforme se escreve e se publica na terra lusa. Pergunta quatro: foi por exigência do autor ou por preguiça, cá, da editora tão objetiva quanto imbatível em matéria de capas feias? Porque o Boa-Tarde na edição do selo carioca é um horror de tijolo, graficamente. • Fernando Monteiro é escritor e cineasta.
Terreiro do Paço, no centro de Lisboa
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om a publicação de Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen (Cia. das Letras, em agosto) – depois de Boa-Tarde às Coisas Aqui em Baixo, de António Lobo Antunes, já à venda – estarão finalmente reunidos nas estantes brasileiras os personagens da alta literatura portuguesa envolvidos na querela do Nobel, concedido a José Saramago. Os dois primeiros também estavam nas cogitações do Prêmio com grupos de apoio que refletem os enquadramentos ideológicos no país desde a Revolução dos Cravos, de 1974. Sophia é próxima ao ex-presidente socialista Mário Soares. Lobo Antunes, que serviu na guerra de Angola como oficial médico e, na fase militar do novo governo português (1974-75), esteve próximo de Ernesto Melo Antunes, líder dos oficiais “moderados” que se opunham aos comunistas nas Forças Armadas. Lobo dedicou O Manual dos Inquisidores ao amigo, já falecido, chamando-o de “meu capitão”. José Saramago é do Partido Comunista. As divergências políticas acabaram por se misturar à Literatura. Há uma surda rivalidade para se saber quem seria melhor escritor. Penosa competição entre os dois (afora Sofia, poeta de alto vôo). Saramago, solene e irônico, é curiosamente mais
A nova safra de autores portugueses é mais interessante do que a polêmica sobre o Nobel de José Saramago Jefferson Del Rios
Outras vozes além-mar Continente março 2004
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filósofo do que comunista, como criador. Já Lobo Antunes, extenso e apaixonado, é um “subversivo” no acerto de contas com a História e as técnicas da prosa. São grandes romancistas da atualidade, como José Cardoso Pires por quem se sofreu por não receber o Nobel; como antes dele, esperou-se em vão pela escolha do poeta e prosador Miguel Torga, que voltará a ser editado no Brasil. Do lado de cá, Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto também foram citados. O dado é esse: a língua espanhola, desde José Achegaray, em 1904, contabiliza, entre Madri e a América Hispânica, dez Nobel literários. Acontece. Prêmio a mais ou a menos é discutível, quando se sabe que Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Garcia Lorca e Rafael Alberti ficaram de fora. O que interessa, sempre, é a literatura portuguesa anterior, pós ou simultânea a Saramago, Lobo Antunes e Sophia de Mello Breyner Andresen que só agora (tem 75 anos) vamos conhecer melhor. Antes, aparecera esparsamente, caso da fundamental Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, organizada por Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno (Lacerda Editores, 1999). A notícia importante é que o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB), organismo do Ministério da Cultura, chega ao Brasil com um subsídio financeiro aos editores daqui, uma percentagem que pode oscilar entre os 40% e os 60% do custo total da edição. A parceria tem o apoio da Câmara Brasileira do Livro e o atual programa inclui as seguintes edições ao longo de 2004: Miguel Torga – Os Bichos, O Terceiro Dia da Criação do Mundo, Pedras Lavradas, Novos Contos da Montanha (Ed.Augusto Laranja); Mário de Sá Carneiro – Poemas, Correspondência com Fernando Pessoa (Cia das Letras); Carlos Alberto Vilar Estevão – Educação, Justiça e Autonomia: os Lugares da Escola; Boaventura de Sousa Santos – Conhecimento Prudente Para Uma Vida Decente (Cortez); Pedro Tamen – Caronte e Memória – Poesia Clara Pinto Correia, autora de Adeus Princesa – um dos mais importantes romances portugueses escritos sobre Portugal
O Prêmio Nobel José Saramago
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As divergências políticas acabaram por se misturar à Literatura. Há uma surda rivalidade para se saber quem seria melhor escritor: José Saramago, solene e irônico, ou António Lobo Antunes, extenso e apaixonado. Sem falar em Sophia de Mello Breyner Andresen, de alto vôo poético
O escritor português Miguel Torga
e Prosa; Nuno Júdice – Antologia Poética; Rosa Alice Branco – Soletrar o Dia (Escrituras); Paulina Chiziane – Niketche, Uma História de Poligamia; AAVV – Antologia de Poemas Para Crianças e Jovens; Daniel Sampaio – Inventem-se Novos Pais; Sidónio Muralha (que viveu no Brasil) – Todas as Crianças da Terra; Antero de Quental – Melhores Poemas (Global); Pedro Paixão – Onze Noites em Jerusalém; Viver Todos os Dias Cansa, Nos Teus Braços Morreríamos (Gryphus); Miguel Sousa Tavares – Equador; Fernão Mendes Pinto, da genial – Peregrinação (Nova Fronteira); Filipa Melo – Este é o Meu Corpo; Agustina Bessa Luís – A Sibila (Planeta); Almeida Garret – Cartas de Amor à Viscondessa da Luz (7 Letras) e Arnaldo Saraiva – O Modernismno Brasileiro e o Modernismo Português (Unicamp). Durante a Bienal do Livro de São Paulo, no mês de abril, o Instituto divulgará ainda livros não incluídos nesse projeto de edição: Ficção – Ana Teresa Pereira, Intimações de Morte; Mafalda Ivo Cruz, Vermelho; Mário de Carvalho, Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina; Rui Nunes, Boca na Cinza; Teresa Veiga, As Desencantadas. Poesia – Fiama Hasse Pais Brandão, As Fábulas; António Franco Alexandre, Duende; Daniel Faria, Dos Líquidos; Ensaios – António Damásio, Ao Encontro de Espinosa. Na Bienal, o Instituto também apresentará ao público dois autores recém-editados no Brasil: Rui Zink, de O Suplente e Filipa Melo de Este é o Meu Corpo. Ou seja, para além das disputas e do Nobel, Portugal tem autores novos e bons, como Inês Pedrosa que chegou bem ao Brasil com Fazes-me Falta (Planeta), e vem aí Nas Tuas Mãos. Há outros, como Jacinto Lucas Pires de Para Averiguar do Seu Grau de Pureza, e outros títulos, José Rico Direitinho do misterioso A Casa do Fim, Clara Pinto Correia louvada por Inês Pedrosa – “Adeus Princesa, de Clara Pinto Correia é um dos mais importantes romances portugueses escritos sobre Portugal. E a mais profunda das reportagens sobre o Alentejo”. Autores com,no máximo,40 anos. Este, sim, é como eles cantam no seu hino nacional (e um título de Lobo Antunes) “o esplendor de Portugal”. A literatura dos “heróis do mar, nobre povo” – ainda do hino. • Jefferson Del Rios é jornalista. Continente março 2004
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ois livros, dois destinos complementares. Ambos são ensaios de fôlego, com bagagem enciclopédica. O primeiro é Mitologia da Saudade (Companhia das Letras, 1999), de Eduardo Lourenço, grande crítico português, prêmio Camões de Literatura. O segundo é Saturno nos Trópicos – A Melancolia Européia Chega ao Brasil (Companhia das Letras, 2003), do médico e ficcionista Moacyr Scliar, agora integrante da Academia Brasileira de Letras. Impressiona o conteúdo contíguo dessas obras, uma interrogando a outra involuntariamente. Eduardo Lourenço apresenta as características do humor melancólico português, identificado em boa forma física nos versos de Camões, Almeida Garret, Teixeira Pascoaes e, posteriormente, em Fernando Pessoa. No autor de Tabacaria, encontra-sse um riso saudosista, que não
espera a resposta (tem a exata noção do que se passou), dono de uma lucidez resignada, um reconhecimento saciado. A melancolia lusitana não equivale ao “antipensamento europeu”, presente em Nietzsche. Diz mais respeito ao estado de “desinteresse ativo”, de conformidade entre o acontecido e o ideal. É feliz, apelidada de saudade. Enquanto a nostalgia representa uma ausência vivida e o sentimento de ruptura dos laços com a memória, a saudade é a consciência carnal da finitude, numa temporalidade apaziguada. O espanhol Miguel de Unamuno, filósofo “do sentimento trágico da vida” e um dos que melhor aproveitaram a culpa imposta ao desejo no catolicismo, explica: “quando nada resta de nada, fica ainda o tudo desse nada”. O “tudo desse nada” simboliza a saudade. O “nada desse tudo” talvez seja a melancolia do brasileiro, altamente irônica, oferecendo um
Saturno nos Trópicos reconstitui a história do pensamento melancólico, partindo do livro Anatomia da Melancolia, de Robert Burton, até o Retrato do Brasil – Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, de Paulo Prado Fabrício Carpinejar
Portugal e Brasil:
Canção em Modo Menor, Fernando Lopes
melancolia em dois sotaques
LITERATURA 39 » sentimento de perda mas com uma total irresponsabilidade com o destino. É uma saudade insatisfeita, inconseqüente, onde não se medem esforços em suplantá-la com a esperança. Existe uma maior troça do que o emplasto do defunto Brás Cubras, de Machado de Assis, para corrigir a “melancólica” humanidade do brasileiro? Ou a morte de Macabéia, personagem de A Hora da Estrela de Lispector, justamente quando a vidente lhe anuncia um amor generoso? Se a melancolia portuguesa é auto-suficiente, de um passado fadista, glorioso e sebastianista, a do brasileiro se condiciona à espera de um futuro sempre atrasado ao seu compromisso. Poderse-ia dizer de um futuro desprovido de antecedentes, desmemoriado. Decorre desse ponto a importância do que virá, do porvir, da expectativa ardente e messiânica de uma mudança, articulada em narrativas de Lima Barreto, de Machado, de Euclides da Cunha e de Clarice. A melancolia no país não vem do espelho narcisista baudelariano, muito menos da náusea paralisante de Sartre (curiosamente, o pensador francês quase chamou sua obra Náusea de Melancolia). Moacyr Scliar prepara um apanhado histórico minucioso, com um prelúdio dos primórdios de males que ajudam a esclarecer e fundamentar o destino da melancolia no Brasil. Suas hipóteses não são chutes de zagueiro, mas passes bem encaminhados de volante. Aborda as doenças como fenômenos culturais, não apenas biológicos, de transição entre eras e períodos. Exemplifica que a peste e a sífilis surgiram em momentos de transição, no fim da Idade Média e Renascimento, desencadeando um malestar definitivo na civilização, que se acostumou a enxergar a morte como companhia banal e irremediável e procurou abrir os horizontes com as ciências. Com cinco anos de pesquisa e erudição transmitidas em linguagem acessível, sem pedantismo, o autor gaúcho narra Gabriela, Darel
e mostra como a melancolia se popularizou, no rastro da evolução de costumes e do surgimento e combate das infecções. Trabalha na encruzilhada entre medicina e literatura. Se a peste favoreceu uma noção mais clara da melancolia com o clássico de Burton, na Inglaterra de 1621, no Brasil, o estopim ocorre em nome de outra doença, a febre amarela, que provoca um surto em 1849, a partir da chegada de um navio norte-americano vindo da escala Nova Orleans/ Havana. Como não poderia deixar de ser, toda a calamidade tem um porta-voz. No século 16, havia sido Burton (seu clássico ainda é estranhamente inédito no Brasil). Em São Paulo, do início do século 20, marcando a transição para a modernidade, a figura teórica sustenta-se em Paulo Prado, com Retrato do Brasil – Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, um sucesso editorial. A depressão brasileira, escondida pela malandragem, resultaria da fusão de três legados: a tristeza lusa dos colonizadores; a do índio, dizimado; e a do negro, escravizado. Entre os viventes de Saturno nos Trópicos, o que se sobressai é Oswaldo Cruz, o médico pioneiro que briga com os cariocas durante a Revolta da Vacina. É interessante que o protagonista de Sonhos Tropicais seja retomado como um dos guias do ensaio. Movimentos, como a Revolta da Vacina, Muckers, Canudos e o Contestado, foram reações extremadas à vocação ao desespero. Do mesmo modo, o Carnaval, o futebol, a tropicália, o humor e a cachaça encarnam ações radicais do otimismo. O comportamento bipolar do brasileiro ganhou um intérprete à altura. Uma consulta com Moacyr Scliar assegura longevidade intelectual. •
Fabrício Carpinejar é jornalista, poeta e autor de Caixa de Sapatos (Cia. das Letras), entre outros. www.carpinejar.com.br
Ilustração: Salatiel
Fotos: Divulgação
O poeta, ensaísta e romancista cearense radicado no Recife, César Leal, completa 80 anos consagrado como autor e como fomentador da cultura
César Leal Vida dedicada à poesia
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comemoração dos 80 anos de César Leal se deve a muitos fatores. Em primeiro lugar, pela excelência de sua obra poética, que começa em 1957, com o livro Invenções da Noite Menor, com o qual ganhou o Prêmio Nacional de Literatura Vânia Souto Carvalho. Em segundo, por seu trabalho como ensaísta e crítico literário (seu estudo sobre Dante lhe proporcionou o título de Cavaliere, com a condecoração da Ordem do Mérito da República Italiana). Também por suas atividades como jornalista que, ao dirigir o Suplemento Literário do Diário de Pernambuco, levou-o a descobrir e incentivar toda a Geração 65, de Pernambuco, integrada por nomes que hoje se firmam dentro da literatura nacional, como os poetas Alberto da Cunha Melo e Marcus Accioly e os romancistas Cláudio Aguiar e Raimundo Carrero. Por seu trabalho na Universidade Federal de Pernambuco, onde fundou o Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, considerado um dos melhores do país. E por atividades de repercurssão internacional, como, quando membro do Conselho Federal de Cultura, foi o autor do parecer, em 1988, do processo que resultou na criação conjunta, pelos governos de Portugal e do Brasil, do Prêmio Luís de Camões, destinado a escritores que contribuíram para a difusão da língua portuguesa no mundo. Ao longo da vida, César Leal acumulou numerosos prêmios, entre os quais, se destacam o Menendez y Pelayo, em 1956,do Instituto de Cultura Hispânica, e o Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, em 1987. Durante todo este ano, várias homenagens serão prestadas em Pernambuco ao poeta e ensaísta, que nasceu em 20 de março de 1924, em Saboeiro, Ceará.
Depoimentos Ponto de referência “César Leal é um ponto de referência na literatura pernambucana, um mediador entre várias gerações. Fez incursões originais na área do ensaio (como a revisão de Jorge de Lima), tem intimidade com os clássicos (coisa cada vez mais rara) e nos surpreendeu agora com esse instigante Minha Amante em Leipzig, que é uma narrativa, onde cruza textos poéticos seus com personagens imaginários”. Affonso Romano de Sant’Anna. Escritor e poeta.
Motivo de orgulho “Os 80 anos de vida do professor, poeta e crítico literário César Leal são motivo de orgulho para esta Universidade que teve a honra de, durante décadas, tê-lo no seu quadro de docentes, no Departamento de Letras. Em reco-
nhecimento ao seu trabalho, a UFPE concedeu a um dos mais ilustres membros da comunidade acadêmica o título de professor emérito, que se juntou a inúmeras condecorações e honrarias já dedicadas ao professor. César Leal também tem o seu lugar entre os grandes da crítica literária e da poesia do nosso País”. Amaro Lins. Reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Bibliografia Poesia Invenções da Noite Menor, 1957; Romance do Pantaju, 1962; O Triunfo das Águas, 1968; Jornal do Verão, 1969; Ursa Maior, 1969; A Quinta Estação, 1972; Tambor Cósmico, 1978; Os Heróis, 1983; Constelações (poesia reunida), 1986; A Oriental Safira, 1992; O Arranha-Céu e Outros Poemas, 1994; Alturas, 1997; Tempo e Vida na Terra, 1998, Quatro Poemas e Quatro Estudos 1998. Em preparo, segunda edição de Tempo e Vida na Terra, acrescida de 60 poemas inéditos. Crítica literária Os Cavaleiros de Júpiter, 1968; Três Ensaios, 1968; Literatura: A Palavra Como Forma de Ação, 1978; O Mito Ontem e Hoje (em colaboração com outros autores), 1985; Entre o Leão e o Tigre, 1987; Dimensões Temporais da Poesia – Estudos de poesia e crítica do poema, a ser lançado este ano, em três volumes. Romance Minha Amante em Liepzig, 2002.
Fidelidade à palavra “Não existe acaso no espírito, nem nos nomes. César Leal, senhor mágico de um território épico e lírico que sabe unir o simbólico e alegórico presos à realidade, visionário e inventor, com sua “língua de fogo”, sua fidelidade à palavra num império de sonhos e silêncios, é dos grandes deste país. Governa com a primavera dos oitenta anos, numa Continente março 2004
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cidade diferente de tantos outros lugares do “Reino da Dinamarca”. Diferente da realidade que contém o terrível clamor de Cernuda, dirigido à sua Espanha: “Nenhum país suporta os seus poetas vivos”. Recife é o descumprimento dessa profecia: suporta, valoriza e ama os seus poetas vivos”. Carlos Nejar. Poeta e ficcionista, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Erudito concreto “O poeta e ensaísta César Leal chega aos 80 anos. Chega trazendo consigo uma obra de poeta e ensaísta que se foi impondo ao longo do tempo. A sua poesia, sendo de timbre essencialista, universalizante mesmo, nunca deixou de ser uma poesia enraizada, no solo da sua terra e na alma da sua gente. O seu ensaio abriu perspectivas de compreensão do fenômeno literário. Ele releu os clássicos, de forma inovadora, e leu os seus contemporâneos, de maneira inabitual. Seu convívio com a poesia do Ocidente fez dele um erudito, mas nunca um erudito abstrato, desoxigenado, anêmico, que se perdesse em divagações mais ou menos inúteis. Ele é o erudito concreto, voltado para as coisas da vida vivida”. Eduardo Portella. Crítico literário e membro da ABL.
Pilar da cultura “César Leal é um dos quatro pilares da cultura pernambucana” Francisco Brennand. Artista plástico.
Pacto com a genialidade “Considero o César Leal o melhor nome atual para as Academias Pernambucana e Brasileira de Letras, pelo grande modelo que ele representa no mundo intelectual do nosContinente março 2004
César Leal: poeta e ensaísta completo
so país. Poeta, crítico, professor, fundador da Pós-Graduação de Letras da UFPE, grande incentivador dos escritores da Geração 65, César Leal merece todas as homenagens. Além disso, o seu feitio, notadamente singular, surpreendente, que tem pacto com a genialidade honra as letras e tudo o que se produz na literatura universal contemporânea”
tamos, faz bem repetir versos seus: “As imagens no tempo/ estão sempre mudando,/ mas o tempo não muda/ e a tudo olha mais alto” Marcos Vilaça. Escritor e membro da ABL.
Participação destacada “O professor César Leal vem tendo uma destacada participação no quadro cultural do Nordeste, há déLucila Nogueira. cadas, com uma atividade de crítico Poeta e professora da UFPE. e de poeta. Um poeta que por todo este tempo veio refazendo o seu Um mestre trabalho, buscando novas formas e “Desde Invenções da Noite Menor consolidando o seu modo de dizer. venho lendo César Leal. Lendo e Um crítico que não descansou de estudando. O poeta, ao se ocupar suas bases, não aderiu a modismos, do que é o cotidiano, não se desgru- não se encantou com regionalismos da da apreciação sob o ponto de vis- excessivos e não evitou o unita da filosofia. É poeta que conquis- versalismo que toda literatura, em ta seu lugar na literatura; é crítico alguma medida, deve comportar” convincente. É um mestre. Nelson Saldanha. Membro do Instituto BraNas homenagens que todos lhe pres- sileiro de Filosofia e professor da UFPE. •
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Tercetos para César Leal Marcus Accioly
Teu nome eu conheci por meio de uns descantes de um poeta popular (um cego cantador dos Inhamuns)
O triunfo das águas (como A máquina do mundo de Drummond) encheu, secou, sacudiu o oceano – verde lágrima
Calei-m me e ele seguiu: “Para as raízes retorno o meu ganido de silêncio, o meu faro de bois e de perdizes,
sobre o Barão do Icó, no Ceará. Porém foi teu rafeiro Pantaju (que a boi-xxucro sabia derrubar
ao celeste olho azul – e transbordou um dilúvio de estrelas sobre o homem – Constelações, O arranha-ccéu – soou
o estouro da boiada e o vôo suspenso: Francisco era o seu nome (que hoje é César Leal) sobre o sertão – um mar imenso.
e que a dente ferrava boi-zzebu) foi o teu cão – já morto pela víbora, de suástica à testa, uma urutu –
a trombeta dos cantos que consomem a realidade vã com a phantasía. Mas o que digo são palavras, somem.
O seu pai, Manuel, dono das reses, com sua mãe, de seca e chuva, Anália, viviam na fazenda os doze meses
que, pondo em meu ouvido a sua língua, com a voz do seu silêncio foi falando qual se pregasse aos peixes da caatinga:
Escreva, pois, escreva. O que diria, sobre um poeta grande, um cão apenas que, por ti, fala a ele, no seu dia?"
e davam festa às armações da água. Foi meu irmão-dde-iinfância o teu amigo e o papagaio, que ensinou palavra
“Pelo Nordeste, sombra ao sol, passando das terras dos Leal, no Jaguaribe, o meu dono-m menino foi mudando
Perguntei: “Pantaju, ainda gangrenas ou deliras com a febre da lembrança? Ai, mais que da mordida, te envenenas
aos nossos sons, conhece o amor que digo. A pedra e a planta sabem do animal que ainda eu sou (pois me encantai em bicho).
e chegou homem-ffeito no Recife. Pastorador de verso ele exercia, na vigília do sonho, uma difícil
de tempo (todo cão é uma criança que não chega jamais a ser adulto) No meu tímpano a tua língua mansa
vocação de inventor de poesia. Do meu nome surgiu o seu romancede-ccordel e Invenções de cada dia,
lambe-m me a solidão, fala o que escuto. É o presente a verdade entre a mentira do passado e futuro - este minuto
ou da noite menor, da lua em trance, d’o Jornal do verão, d’Os cavaleiros de Júpiter, de Zeus e – a cada lance
entre esse e aquele – enquanto a terra gira. Porém não declinaste o nome dele, exceto o sobrenome (o que te inspira
de dados sobre o acaso – os mensageiros poetas do seu tempo (como Dante e Virgílio) viravam passageiros
a falar sem dizer?) Um C e um L, um efe ou fê, um símbolo talvez, pois um nome se grava à flor da pele
da sua nave-ccósmica – del cante jondo – que navegou deste a galáxia de Gutemberg à linha do horizonte.
ou das obras (das tantas que ele fez). Começaste a dizer: ‘Foram felizes’. E findaste dizendo: ‘Era uma vez’”.
O cão-ffiel teve um senhor-lleal: o são-F Francisco que acordou, depois da minha morte, o pó já sob a cal. Fazes agora o mesmo e deixo aos dois – adeus – as minhas fábulas completas. Volto a dormir até que chames, pois os cães mortos conversam com os poetas. •
Marcus Accioly é poeta, autor de Latinomérica (TopBooks).
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44 MARCO
ZERO
Alberto da Cunha Melo
O garrote de Garrastazu & Cia “Geraldo Vandré e Taiguara comeram o pão que o diabo amassou”. (Roberto M. Moura)
P
ara os artistas e intelectuais brasileiros, principalmente os que já estavam crescidinhos para sofrerem as dores e estertores provocados pelo tumor maligno que foi a ditadura militar de 1964, duas palavras definem e rimam perfeitamente: censura e tortura. No entanto, a obra mais pérfida e duradoura, deixada pelo leviatã fardado ou engravatado na presidência de um banco, foi a de garantir e agravar as desigualdades sócio-econômicas do país. Na verdade, para os usurpadores do poder, o fantasma do comunismo atuou, como diria Robert K. Merton, como função manifesta. Sua função latente era, sob o pretexto de aumentar a poupança interna, elevar até onde fosse possível a concentração de renda. Castelo Branco deu a sua partida inicial, congelando de imediato os salários dos funcionários públicos, e a correção monetária fez o resto. Como conseqüência do legado da “gloriosa”, o Brasil chegou ao pódio mundial não só em concentração de renda, mas, também, em altitude dos juros básicos, em número de impostos e, até 1994, em inflação. Se ainda tem gente burra elogiando a ditadura, é que a sede de privilégios da elite nunca será saciada. Desculpe, hipotético leitor, por eu começar com digressões, deslocamentos temáticos e desabafos, outra vez. O espaço é curto e o que eu pretendia, mesmo, era falar sobre a censura. Não sobre a que age contra a livre expressão do pensamento, de um modo genérico, mas a que atinge em sua expressão cultural, restritivamente, a
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arte, o artesanato e o folclore artísticos ou estéticos. Abordar a censura como um fenômeno multissecular e mundial, em especial como controle social espúrio e antidemocrático, que vai desde as primeiras sociedades organizadas à democracia relativa da Grécia, que fez Sócrates beber cicuta como punição ao desvio religioso e influência nociva sobre a juventude de sua época, é trabalho de historiador. Interessa-me a censura às atividades culturais, em período recente, quando a corrupção oficial e privada corria solta, impune e não-denunciada (até hoje) pela imprensa. Mais que a do Estado Novo, a censura da ditadura militar procurou agir com toda a sua furiosa burrice. Em primeiro lugar, contra a música popular brasileira, procurando obstacular a sua divulgação não só em discos, mas, e principalmente, em teatros, espetáculos ao ar livre, no rádio e na televisão. Em segundo lugar, contra as peças teatrais e produções, não só do cinema nacional, mas internacional. Estão lembrados das borboletinhas pretas que cobriam as pererecas das bailarinas, em grande plano, no Laranja Mecânica, do perfeccionista Stanley Kubrick? Pois é, a polícia realizava cursos de censura
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para ensinar aos tiras como esconder as bichinhas. Seria até uma piada se não fosse um odioso vandalismo. Ao que me consta e está lá no recém-lançado livro de Caio Túlio Costa, Cale-se, publicado pela novíssima editora paulista A Girafa, os dois únicos compositores brasileiros famosos a serem presos, em 1968, foram Caetano Veloso e Gilberto Gil. Este, ao voltar da Inglaterra, protagonizou, junto com Chico Buarque de Holanda, o mais comentado episódio da censura a uma obra de arte, na década imunda de 70: a interrupção, em pleno palco,
de uma canção composta pelos dois, sob encomenda de sua gravadora, a Phonogram. Estávamos em 1973, e ela resolveu realizar um grande festival intitulado Phono73, a ser levado no mês de maio, no Palácio das Convenções do Anhembi, São Paulo. A canção da dupla foi Cálice, iniciada por Gil, que fez a primeira estrofe-refrão. Compartilharam letra e música, e no final das nove estrofes, cinco eram de Gil e quatro de Chico. Eles não conseguiram cantá-la em seu dia, o segundo, porque um censor ordenou o desligamento de todos os microfones. Foi um sufoco, um vexame de lascar. É preciso lembrar que o movimento estudantil estava completamente desarticulado, desde a violenta dissolução do XXX Congresso da UNE, em 1968, em Ibiúna, São Paulo. Agora as poucas lideranças estudantis procuravam uma válvula de escape, para dizer alguma coisa, nos shows de música e nas peças de teatro. Foi isso que deu oportunidade a Gilberto Gil, sozinho, de cantar a música proibida “Cálice”. Os estudantes da escola Politécnica da USP, no mesmo mês de maio de 1973, convidaram Gil e ele foi para dar uma canja de meia hora (o show estava proibido pelo reitor Miguel Reale) e ele passou mais de duas. A estudantada paulista mais esclarecida apoiou-se nas atividades culturais, para não emudecer de vez. Hoje, que foi feito dela? E dos sindicatos? Só o MST é que sobe, sozinho, ao patíbulo. Para terminar, terei de falar do meu pasto, a literatura. Dos autores nacionais, só alguns ficcionistas tiveram suas obras censuradas, algumas confiscadas nas livrarias. E os poetas? Ora, nisto os pífios censores foram até sábios, deixando os inofensivos e sem público descendentes de Homero, com suas metáforas e suas edições de 500 ou 1000 exemplares, em paz. O mais perto a que os censores chegaram de mim foi iniciar um processo na UFPE, por eu ter publicado, no Jornal Universitário, um poema onde constavam estes dois versos: “uma terça parte dos anjos/ já veste túnicas vermelhas”. Mas Ariano Suassuna suspendeu tal processo, dizendo aos censores que eu nunca fora partidário. Falta-me, hoje em dia, o status de ex-preso político, ex-torturado e excensurado. Dispenso-o. Na verdade a censura, seja ela religiosa, nazista, fascista, salazarista ou stalinista, só pode impedir a divulgação da obra de arte e não a sua criação. • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.
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ARTES
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A reconstrução da imagem Vik Muniz fotografa “quadros” feitos com chocolate, açúcar, poeira, lixo, arame, fios de algodão e papel picado, entre outros materiais Luciano Trigo
C
om obras em acervos de museus, como o Metropolitan, o Whitney e o MoMA, de Nova York, e o Reina Sofia, de Madri, o artista plástico Vik Muniz é muito mais conhecido no exterior que no Brasil – onde seu trabalho mais famoso é o desenho feito com chocolate na capa do CD Tribalistas. Vik já tinha sido tema de quase uma dezena de livros na Europa e nos Estados Unidos. Mas estava faltando um livro de arte em português, que apresentasse todas as fases de seu trabalho. Isso se tornou possível por iniciativa da Fundação Biblioteca Nacional que, com apoio do Banco Safra, lançou o volume Vik Muniz – Obra Incompleta, título mais que adequado em se tratando de um artista de 42 anos, em pleno vigor criativo. “Um livro assim tão completo dá até medo. Parece livro de gente que já morreu. Por isso decidi chamá-llo de Obra Incompleta”. Em edição bilíngüe (inglês-pportuguês) de capa dura, o livro traz 360 reproduções coloridas e textos inéditos do curador brasileiro Moacir dos Anjos e dos críticos americanos Shelley Rice e James Elkins. Trata-sse do primeiro de uma série de livros que serão editados pela Biblioteca Nacional sobre artistas contemporâneos brasileiros que, à longa lista de sucessos já alcançados, somarão assim a consagração de integrar o precioso acervo da seção de iconografia da instituição – destino das matrizes das últimas obras de Vik, uma série de grandes retratos (incluindo os do Presidente Lula e da atriz Camila Pitanga) feitos com um mosaico de pedacinhos de papel, colados sobre uma base fotográfica. “Além de um esforço de preservar a obra, essa doação foi uma tentativa de me proteger de mim mesmo” – explicou o artista, que recebia constantemente propostas para vender
Auto-retrato (Recta), 2003
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aquelas matrizes – “Era uma tentação, mas eu não podia vendê-las, porque se colocasse a matriz e a foto no mesmo plano criaria um curto-circuito ético”. Filho único de pai garçom e mãe telefonista, Vik reconhece que, com sua origem, foi quase um milagre ter alcançado tamanho êxito internacional: “Eu nunca pensei que seria possível trabalhar e ganhar a vida como artista plástico”. O envolvimento com as artes plásticas veio tardiamente, quando ele se mudou para os Estados Unidos, em 1983, com um vocabulário restritíssimo em inglês (yes e no). Passou cinco anos vivendo de subempregos e chegou a dormir na rua. Foi quando trabalhava numa molduraria de Nova York que ele teve o estalo: quando soube que as horríveis pinturas que emoldurava eram vendidas por 200 dólares, pensou que podia fazer melhor. Além de produzir quadros kitsch, que lhe valiam alguns trocados, começou a fazer esculturas estranhas e incomuns que lhe abriram as portas do circuito de arte novaiorquino. Inicialmente Vik fotografava essas esculturas para documentá-las e divulgá-las; com o tempo, passou a conceber uma obra apenas para fotografá-la: foi a primeira subversão da relação entre o mundo real e a ilusão/representação fotográfica, um dos principais objetos da pes-
quisa do artista. “Tento expor os mecanismos da interpretação da imagem, como ela é pensada, onde estão os gatilhos cognitivos, para descobrir novas formas de ver a imagem e ir além delas”, afirma. Em seguida Vik começou a usar materiais perecíveis e comestíveis, em fotografias que tinham que ser feitas rapidamente, porque os alimentos logo começavam a se deformar, a apodrecer, a desmanchar. Para fotografar obras de chocolate, por exemplo, ele só tem uma hora. “Senão, seca e perde o brilho. As de açúcar ou pó são ainda mais frágeis. Qualquer ventinho pode estragar”, explica o artista, acrescentando que não é possível comer suas peças: “Uso material de péssima qualidade, o chocolate mais barato”. A exceção aconteceu num jantar em Paris, no qual vários artistas assinavam os pratos. Muniz ficou com a sobremesa. No momento apropriado, garçons colocaram na mesa apenas pratos e talheres. Vik, então, começou a comê-los. Eram feitos de açúcar, com gosto muito ruim, mas todos adoraram. Vik Muniz explora o horizonte da percepção visual dos objetos e diz gostar de jogar com os conceitos da gramática visual. “Trabalho com o reconhecimento de imagens arquetípicas de coisas comuns. Há a imagem que está na cabeça da pessoa e a imagem que foi recons-
Ao lado, A Partir de Van Gogh, 2001. Acima, Cabeça de Palhaço, 1989
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Marilyn Sangrenta (A partir de Warhol), 1999
truída por mim. Você só contribui com a metade da obra de arte, porque ela só acontece quando tem uma pessoa adiante que repensa seus arquivos de imagens”. Pode-se argumentar que, a rigor, usar materiais inusitados como serragem, açúcar, areia, papel de parede, jornais ou lixo numa obra de arte não é algo novo: Picasso e Braque já o faziam por volta de l9l2 em Paris. Mas Vik usa açúcar, arame, terra, barbante, chocolate, especiarias, lixo, gel, mel, poeira e outros elementos que seria cansa-
tivo enumerar, de uma maneira radicalmente criativa. O lixo, o chocolate, o açúcar, o tempero, possuem significados próprios, doçura, sabor. Por exemplo, na série Crianças de Açúcar retrata imagens de meninas de rua, crianças que trabalham em plantações de cana de açúcar no Caribe. Outra série, Aftermath, traz fotos de meninos de rua de São Paulo, retrabalhadas com lixo do Carnaval. Aliás, todas as vezes em que Vik retrata problemas sociais, parte da renda das vendas é doada para insti-
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Cárcere XIV, (T The Gothic Arch), a partir de Piranesi
tuições de menores. Não é pouco dinheiro. A fotografia mais barata de Vik Muniz custa US$ 5 mil. Nos Estados Unidos, ele já alcançou US$ 75 mil por uma fotografia e US$ 150 mil por um conjunto de 14 painéis, arrematados num leilão em Paris Para o artista, o mais importante é ficar atento às miudezas do cotidiano: “Inspiração é uma simples questão de estar aberto para as experiências, sem muito preconceito. Uma vez que você pára de criticar o mundo, ele começa a se manifestar através da sua experiência no dia-a-dia”. A obra de Vik é um reflexo dessa banalidade aparente, impressa com os elementos mais triviais. Para criar suas obras, Vik recorre a ferramentas que ele próprio inventa, como o compasso com cotonete, a pinça com lixa ou os minúsculos aspiradores de pó feitos de canudinhos. Agora, ele está treinando desenho com microscópio. Depois, tudo será fotografado por câmeras gigantes. Vik tem o hábito de tocar diferentes projetos ao mesmo tempo. Cercado por quatro assistentes, o seu maior trabalho é administrar sua criatividade. “Trabalhar com arte é estar em contato com todas as nuances de temperamento, que mudam de um momento para o outro. Eu Continente março 2003
gosto de trabalhar com diversos projetos ao mesmo tempo para poder explorar toda a gama de sentimentos que uma pessoa normal experimenta todos os dias. Há trabalhos nervosos, outros que requerem atenção ou paciência. Nos últimos tempos sinto uma reaproximação com a minha cultura natal, cuja exploração tem sido muito gratificante”. Apesar da consagração, Vik Muniz não perdeu a simplicidade, o que se revela quando lhe perguntam quem são seus mestres: “Lá na minha casa em Minas existe um homem chamado seu Zé Lica. Ele olha para dois metros quadrados de terra e pode falar por horas do nome e das propriedades medicinais e práticas de cada erva daquele pedaço de terra. Quando falo com ele, sinto-me cego à paisagem. Para muitos ele é um caipira qualquer. Para mim, ele é um mestre. Existem mestres nas artes plásticas que servem como base estrutural acadêmica quando se começa a trabalhar. Com o tempo, os nomes desaparecem, e somente suas obras principais passam a figurar no panteão pessoal do artista. Não tenho mestres, tudo me influencia”. • Luciano Trigo é jornalista.
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Acima, 14.624 Metros Le Songeur, a partir de (L Corot), 1996. À esquerda, Valícia se Banha em Roupas de Domingo, 1996. Ao lado, Camila, 2003
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A recordação da forma
O maior trunfo de Luciano Pinheiro é ter desenvolvido uma pintura de marca própria, onde o abstrato tem elos com a realidade Weydson Barros Leal
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ARTES 53 » Fotos: Flávio Lamenha
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igamos que, para o pintor, a forma é uma prisão. Ou um labirinto, que, uma vez penetrado, requer décadas para permitir o sol ou a saída. A imitação do modelo, do objeto, da paisagem, assombra-o por corredores onde o que busca, no fim, é apenas uma recordação: a recordação da forma – ou sua distorção – como memória do percurso. Daí decorre uma infinidade de artistas, cujas obras de “linguagem abstrata” têm um passado figurativo. Suas formas foram, com os anos, apenas se “abstratizando” e, não raro, há aqueles que tudo apagam, buscando no branco uma negação da própria pintura, tornando-a asséptica ou insípida. Uma recordação da forma, no entanto, é o que resume toda “abstração”, que nada mais é do que algo concreto, figurativo mesmo, pois a pincelada da curva ou da reta mais aleatória sempre nos conduzirá a uma outra forma: a mancha torna-se imagem na retina da pintura. Há aproximadamente 35 anos, o pintor pernambucano Luciano Pinheiro transita entre a cor e sua memória. Um dia, senhor de seu próprio labirinto, abandonou as grades de uma figuração na qual depositava todas as cores e seguiu para o outro lado do rio, o rio de imagens que, para ser verdadeiro, é também invenção. Há pelo menos metade desse tempo, sua pintura é uma pintura da cor, da forma da cor, e a cor é sua forma e seu entendimento. Em seus quadros, onde a figuração se distancia da imitação do objeto – dando ao gesto e à tinta uma autonomia total – Luciano não se preocupa em seguir este ou aquele plano – ele não realiza estudos para seus quadros – e é o ato de pintar o que faz de cada tela um retrato do instinto e do instante. Mas ali está o conhecimento das cores, das relações do azul com seus complementares, das luzes que, da alquimia de seu êxtase, recriam o conceito primário.
Acima, Luciano Pinheiro Na outra página, a alquimia de cores e formas que impera na obra do artista
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54 ARTES
No desenho (à esquerda) ou na gravura (na página ao lado), sonho e realidade mesclados e abstracionismo ligado à figura Abaixo, o ateliê do artista, no Alto da Sé, em Olinda
A maneira da cor na pintura de Luciano Pinheiro é mais claramente identificada, curiosamente, em pintores de vertente figurativa. Isto ocorre, talvez, por ele mesmo, em seu princípio, manter a chama do objeto, e não cair na ilusória premissa de uma pintura destituída de seu elo com a realidade. A abstração existe enquanto existe esse elo, pois uma arte dissociada da realidade – ainda que o real seja o exercício do abstrato – é a antiarte, ou o anti-humano, e assim deixa de ser arte. Mesmo nas representações artísticas mais inóspitas – como as chamadas “instalações” – o que se busca é a religião do real, algo a “religar” a idéia ao mundo concreto, a uma realidade cognoscível para o espectador. A pintura de Luciano Pinheiro, altíssima em sua expressão real – a cor do real, a luz do real –, sobrepõe-se ao reducionismo de uma abstração que seja apenas o vazio do elo: seus objetos estão em cada quadro, suas paisagens resistem sob suas cores, o sonho e o real são seus alicerces. A mesma força da cor de um André Derain, a pureza de um Erich Heckel ou ainda as intenções de um Robert Dalaunay são os matizes referenciais que encontramos nas imagens de Luciano Pinheiro. Poder-se-ia, de forma simplista, apenas recorrer às intensidades tonais de um Gauguin ou um Matisse, mas ainda prefiro compreender esta pintura como um processo de busca e encontro interior exteriorizado, se precisamos de referências do passado – à maneira de um Pechstein, de um Rouault ou Continente março 2004
de um Kirchner, no que se refere à força de uma coloração expressionista. Desde o começo de seu ofício de pintor, na década de 1960, no Recife, o gesto de Luciano Pinheiro, então um pintor “figurativo”, parecia intuir o que ele faz hoje. Uma liberdade intuitiva, aliada a certa violência expressiva, fazia-se notar mesmo na representação da figura. Ao longo dos anos de 1970 e 80, Luciano esteve ao lado de artistas
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de Olinda e Recife – onde a expressão figurativa até hoje é quase unânime – e onde toda uma geração teve como estro de força e influência o pintor João Câmara, o mais importante artista pernambucano surgido no Brasil depois dos anos 50. Junto com Câmara, que exerceu sobre essa geração a inevitável sombra de sua pintura, Luciano Pinheiro compôs a Oficina Guaianases, onde desenvolveu um trabalho de litogravuras de igual qualidade em sua obra. Em toda análise crítica da pintura de Luciano Pinheiro, este talvez seja – pela força da pintura de João
Câmara – o seu maior trunfo: Luciano desenvolveu uma pintura de feição pessoal, com uma marca própria, tornando-se tão inconfundível em seus quadros quanto Câmara o é em sua obra. Tanto quanto o desenvolvimento da gravura em pedra na época do grupo Guaianases, a partir dos anos de 1980, Luciano Pinheiro passou a desenvolver, ao lado da pintura sobre tela, outras formas de expressão gráfica, como a xilogravura e a aquarela. Essas técnicas, até hoje cultivadas (ainda que em menor escala), guardam uma expressão que só encontra o seu veículo na madeira, na pedra ou na aguada sobre papel, o que abre janelas em torno de uma mesma criação. Esta idéia nos remete ao processo ou ao exercício da pintura realizado hoje por Luciano Pinheiro. Buscando uma forma universal para a leitura de suas imagens, o artista realiza cada quadro, afastando-se, no princípio, da ortodoxia do chassis e do cavalete, e opera o que chama de pintura em cinco dimensões: com a tela fixada sobre uma mesa, trabalha de pé, rodeando o móvel. Reinicia o quadro a partir de cada nova “dimensão” – cada lado da mesa – tendo por fim, após a tela já postada no chassis e levada ao cavalete, a quinta dimensão da pintura. Dessa forma, e pintando planos seqüenciais, cria o que chama de grandes painéis, que podem ser vistos como objeto único ou divididos em diferentes paisagens (quadros) de seu imaginário. Tendo realizado exposições nos mais importantes museus e galerias do Brasil – recebendo premiações, como o Prêmio de Viagem ao Exterior do Salão Nacional de Artes Plásticas do Rio de Janeiro, em 1983, que o levou a viver em Paris por dois anos – Luciano Pinheiro mantém, até hoje, seu ateliê no alto da cidade de Olinda, onde mora. Ali prepara, atualmente, uma série de novas telas, entre pinturas individuais e grandes painéis seqüenciais para uma exposição no segundo semestre deste ano, no Recife. A exposição deve se chamar Assim na Terra Assim no Céu, mas o nome ainda é uma idéia, e pode ser outra coisa, como cada quadro do artista. Entre prêmios, catálogos e exposições, no entanto, o fato mais importante para a obra de Luciano Pinheiro será, em breve, a publicação do livro do pesquisador Eduardo Bezerra Cavalcanti, que durante oito anos realizou um dos mais completos estudos sobre a obra de um artista pernambucano. O livro está em fase de conclusão e apresentará ao público uma minuciosa análise sobre o percurso e a memória artística de Luciano Pinheiro. • Weydson Barros Leal é poeta e crítico de arte. Continente março 2004
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56 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
A censura às artes plásticas No propósito desesperado de calar os intelectuais, os militares chegaram às prisões em massa
O
regime militar que tomou o poder no Brasil em 01 de abril de 1964 deparouse, desde o primeiro momento, com a oposição da intelectualidade brasileira, e particularmente dos artistas da área do teatro, do cinema e da música popular. Sete meses depois da derrubada do governo João Goulart, estreava num obscuro teatro da rua Siqueira Campos, no Rio, o show Opinião, escrito e montado pelo mesmo grupo de escritores e artistas que dirigiam o Centro Popular de Cultura da UNE, extinto pelo golpe militar. Era a primeira manifestação pública de inconformismo com o regime autoritário, que atrairia contra si a rebeldia de dramaturgos, cineastas, poetas e compositores. Essa rebeldia se espraiaria para todos os campos da atividade intelectual e brotaria nas diferentes cidades e capitais brasileiras, naturalmente de acordo com as possibilidades objetivas existentes em cada uma delas. No Rio e em São Paulo, como centros de maior atividade cultural e artística do país, a resistência intelectual foi mais atuante e, por isso mesmo, mais intensa também a ação repressora do regime. Inicialmente, essa ação se manifestou na proibição dos espetáculos teatrais e musicais, na censura a canções populares e filmes, alcançando mais tarde formas mais drásticas, que iam desde a suspensão das subvenções oficiais ao teatro, o seqüestro e prisão de atores e atrizes, até os atos de terrorismo, como a colocação de bombas em casas de espetáculos. No propósito desesperado – e inútil – de calar os intelectuais, chegaram à prisão em massa de escritores, editores, diretores de teatro e cinema quando da decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Os jornais foram submetidos à censura, mas o livro continuava a salvo, talvez por sua significação simbólica de liberdade de expressão: censurar livros equivaleria a voltar à Idade Continente março 2004
Média e reviver o nazismo. Mas os militares terminaram vencendo a hesitação e os escrúpulos, e decidiram censurar também os livros. A reação firme de dois dos mais prestigiados e populares escritores brasileiros da época – Jorge Amado e Érico Veríssimo – obrigaramnos a recuar. Logo em seguida, mandaram incendiar a sede da editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, um dos mais aguerridos adversários da ditadura militar. As artes plásticas, durante algum tempo, estiveram fora do foco repressor do regime. Isto se devia a seu limitado raio de ação e ao baixo grau de participação, na vida política, dos artistas plásticos. Havia exceções, certamente, mas a natureza mesma da atividade do artista plástico, solitária e individualista, retardou sua reação ao arbítrio que a ditadura instaurara no país. A resistência apresentada, particularmente no Rio, pelos estudantes universitários e secundaristas, acirrou o conflito com as forças de repressão, resultando em verdadeiras batalhas campais no centro da cidade. Em junho de 1968, a sociedade carioca mobilizada promoveu a histórica passeata dos Cem Mil, que estimulou os demais setores da intelectualidade - inclusive os artistas plásticos – a participarem da resistência à ditadura. A repressão não se fez esperar. Exposições realizadas em Belo Horizonte e Ouro Preto foram invadidas pela polícia que delas retirou obras consideradas subversivas. A II Bienal da Bahia também sofreu a ação dos censores, que vetaram a exibição de várias obras de arte e submeteram a constrangimentos os organizadores do certame. Mas o ato repressivo que mais chocou a opinião pública foi desfechado contra uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de artistas brasileiros selecionados para participarem da Biennale des Jeunes, de Paris. A censura oficial determinou o encerramento da mos-
TRADUZIR-SE 57 Reprodução
O Exercício da Censura, 1984, Siron Franco. Coleção Francisco de Assis C. Esmeraldo
tra, alegando que as obras expostas eram ou de protesto contra o regime ou obscenas. Esta medida implicava a proibição do envio das obras à Bienal de Paris. A reação contra a censura foi imediata. A Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), então presidida por Mário Pedrosa, emitiu uma nota de repúdio ao ato do governo, afirmando que ele atentava contra “a criação da obra de arte e o livre exercício da crítica de arte”. O documento recomendava a seus associados que se recusassem a participar do júri de certames artísticos promovidos pelo governo. A conseqüência disso foi a decisão tomada por muitos artistas brasileiros de boicotarem a X Bienal de São Paulo que se realizaria naquele ano (l969). A Bienal que contava, como sempre contou, com apoio oficial, foi inaugurada normalmente, sem que nenhum protesto perturbasse a solenidade, coisa de fato impensável no Brasil daquela época. Mas, dos 25 artistas brasileiros, convidados a participar da exposição, apenas 10 enviaram suas obras, alegando a importância da Bienal na vida artística do país. Na França, reunidos no Musée d'Art Moderne de Paris, 321 artistas e intelectuais assinaram um manifesto – Non à la Biennale – baseado na declaração de testemunhas e em documentos que provavam a existência de censura à atividade artística no Brasil. Vários artistas americanos e europeus desistiram de integrar a representação de seus países na Bienal paulista. O pintor mexicano David Siqueiros recusou-se a aceitar uma sala especial com
suas obras. Países, como Chile, Venezuela, União Soviética e Iugoslávia também não participaram. Artistas brasileiros que se encontravam no exterior também se recusaram a tomar parte no certame, entre eles Lygia Clark, Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Antônio Dias, Luiz Piza, Rossini Perez e Frans Kracjberg. Os responsáveis pela Bienal tiveram que organizar novas salas, alterando o projeto original da X Bienal, a fim de compensar as numerosas ausências. O conflito entre a intelectualidade brasileira e a ditadura só terminou quando os militares, depois de derrotados nas urnas em 1974, decidiram devolver o poder aos civis, encerrando um período dos mais negros da história brasileira, mas que teve seus momentos engraçados, quando não mais devido à ignorância dos repressores, especialmente no que dizia respeito às artes plásticas. Lembro, a propósito, o episódio ocorrido em minha casa, que estava sendo varejada por militares. O oficial do exército topou com uma pasta contendo artigos meus publicados no SDJB; na capa estava escrito a mão: “Do cubismo à arte neoconcreta.” – Isto vai comigo – disse ele. – Mas por quê? – reagi – São artigos sobre artes plásticas. – Artes plásticas? Eu sei!... E levou consigo a pasta, certamente convencido de que o livro tratava de alguma coisa referente a Cuba. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.
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Foto: Arquivo/AE
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1964 Kafka à brasileira
A obsessiva idéia de segurança nacional, resultado de uma visão de realidade distorcida, produziu o sentimento de que se vivia num mundo do realismo mágico Denis Bernardes
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O marechal Castelo Branco, primeiro presidente militar, em Curitiba, setembro de 1964
ntre abril de 1964, quando o marechal Humberto de Alencar Castello Branco foi legalizado pelo Congresso Nacional como o sucessor do presidente deposto João Belchior Marques Goulart, e março de 1985, quando o general João Baptista de Oliveira Figueiredo deixou a presidência da República, para a qual fora elevado de forma indireta, como todos os seus antecessores do ciclo de generais-presidentes saídos do golpe de Estado de 1964, passaram-se vinte anos, onze meses e quinze dias. Na história da república no Brasil, esta duração equivale a quase a metade de toda a chamada República Velha (18891930), a um período maior do que o da reconstitucionalização pós-Estado Novo (1945-1964) e a três vezes o que durou o Estado Novo (1937-1945). Para um movimento que proclamara a sua vontade de ser permanente, não foi uma duração muito longa, mas pelo que representou como que-
ESPECIAL 59 » período histórico cuja simples enunciação evoca imagens que vão desde o que o precedeu, passando pela quebra da legalidade republicana, pela instauração gradativa do mais violento regime repressivo de nossa história, pela mistura de “milagre econômico” e institucionalização da tortura, até a luta armada como meio de combate à ditadura e de instauração do socialismo, então ainda no horizonte de muitos, tudo isto indica a complexidade e, sob muitos aspectos, a cruel riqueza da experiência histórica então vivida. 1964 tem muitas faces, embora todas elas marcadas pela semente de onde tudo brotou: a quebra da legalidade republicana, acompanhada da idéia de que a vida política é por natureza o lugar da corrupção e da manipulação demagógica das massas inconscientes. Portanto, como conseqüência, cabe a uns poucos decidir pela Nação e ditar as regras pelas quais ao conjunto da sociedade apenas resta a passividade do conformismo e a aceitação da sabedoria dos iluminados. Esta idéia não é nova, nem A Marcha da Família com Deus Pela Liberdade: classe média conservadora apoiava o golpe
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bra da legalidade republicana e de suspensão de direitos, tão duramente conquistados ao longo de toda a história do Brasil, desde o Império, foi um tempo que parecia não ter fim. 1964, por sua duração e por vários elementos que singularizam este período na história brasileira, constituiu uma experiência histórica coletiva, com conseqüências ainda presentes mas cujo conhecimento, embora já significativo, ainda possui lacunas e sombras. Basta lembrar que não existe nenhum estudo abrangente e exaustivo sobre as articulações do golpe no Nordeste e sobre o funcionamento, na região, das novas estruturas de poder e sua convivência com as velhas oligarquias e a emergência de novos quadros políticos identificados com “os ideais da revolução de 1964”. Do mesmo modo que não existe uma história cultural do Nordeste e de seus intelectuais durante a vigência da ditadura. A transformação da própria data, 1964, em algo mais que um marco no calendário, passando a significar um
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O mais poderoso regime jamais implantado no Brasil foi omisso e ineficaz no enfrentamento dos problemas sociais. Assistiu indiferente ao crescimento da pobreza urbana, à favelização das cidades, à associação entre a criminalidade e o aparato policial corrupto
mesmo é própria da cultura ou incultura política brasileira, e nem desapareceu do horizonte político. Ela sempre está presente diante do funcionamento da democracia representativa, inseparável, até o presente, em maior ou menor grau, do mundo dos negócios, dos interesses, das negociações e mesmo negociatas. A grande ilusão dos que fizeram 1964, pelo menos a daqueles que agiram com ingenuidade ou boa fé, foi pensar que a supressão da política partidária, do livre jogo parlamentar, da expressão dos interesses sociais, acompanhada de disciplina, de controle social e de desmobilização da sociedade, pudesse exorcizar o exercício do poder das tentações da corrupção e da demagogia. Desde o início foi o contrário que se deu, nestes como em tantos outros aspectos da vida nacional. Ou seja, embora as conseqüências históricas do golpe civil-militar de 1964 ainda hoje se façam sentir e ainda se farão sentir por muito tempo, tais conseqüências, em grande parte, foram no sentido contrário do que era proclamado, ou desejado. O golpe de 1964 foi o resultado de uma confluência de múltiplos interesses, de múltiplas forças sociais e de confrontos políticos cujas raízes históricas vinham, pelo menos, da década de 1920. Juntou interesses do capitalismo internacional, notadamente do norte-americano, com o moralismo de amplos setores de classe média, ainda profundamente impregnados de um catolicismo tradicional, de raízes rurais e que não se acomodara inteiramente com o mundo urbano-industrial e seus novos valores. E deveu sua vitória à aliança do velho “golpismo udenista”, do mundo empresarial, financeiro, latifundiário, de setores intelectuais e de parte expressiva da oficialidade do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, cuja visão de mundo estava marcada pela Guerra Fria, e para quem o Brasil estava à beira de uma revolução de caráter socialista, o que o colocaria como mais um “satélite” do império soviético, como demonstrava a experiência cubana. Oficialidade que cultivava a mesma ideologia “tenentista” de desprezo pela política partidária e pelo jogo parlamentar e para quem os civis eram, em geral, corruptos e antipatriotas. Continente março 2004
Mas, qualquer que seja o ponto de vista sobre as razões do golpe, importa dizer o óbvio: ele aconteceu, alijou atores da cena política, conservou alguns e deu condições para a emergência de muitos outros. E, o que constitui seu aspecto fundamental no plano político e cultural: redefiniu as bases e as regras do poder do Estado, de suas relações com a sociedade. Atualizou diversos aspectos do Estado Absolutista e revigorou as práticas do Estado Totalitário, embora conservando formalidades dos regimes representativos, evitando o poder ditatorial personalizado e deixando funcionar, com toda a precariedade conhecida, o poder legislativo e o judiciário. O grande mal político causado pela ditadura e, ao mesmo tempo, a fonte das arbitrariedades que praticou estavam no fato de que ela criou uma realidade distorcida, filtrada pelos óculos escuros dos generais. Esta distorção que a tudo atingiu foi também a origem de muitos erros e ilusões de seus adversários que foram à luta armada. Tudo se transformou em uma obsessiva idéia de segurança do Estado e, nesta obsessão, tudo podia, potencialmente, pôr em risco tal segurança. Daí a idéia e o
ESPECIAL 61 » O grande mal político causado pela ditadura e, ao mesmo tempo, a fonte das arbitrariedades que praticou estavam no fato de que ela criou uma realidade distorcida, filtrada pelos óculos escuros dos generais. Esta distorção que a tudo atingiu foi também a origem de muitos erros e ilusões de seus adversários que foram à luta armada
O general Médici no Maracanã, em 1969: o Brasil era uma ilha de felicidade e ponto final
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sentimento de que se vivia em um mundo kafkiano ou em um mundo do realismo fantástico Toda a máquina política foi erigida com a virtude da infalibilidade e qualquer crítica aos atos dos agentes do Estado, fosse este o presidente da República ou algum desonesto ou arbitrário funcionário, confundia-se com um ato de subversão. Mais ainda, qualquer agente do Estado julgava-se no direito de impor à sociedade seu moralismo estreito, suas idiossincrasias, suas neuroses. Além do mais, a fusão entre o poder político e o poder militar, com a preeminência deste último, criou as condições para todas as práticas que caracterizaram o período, desde a virtual oficialização da tortura e da censura até a incapacidade de aceitar a existência de problemas que o Estado não conseguia resolver. O Brasil era uma ilha de tranqüilidade e felicidade e qualquer opinião que contrariasse esta evidente falsidade era atribuída às artimanhas do movimento comunista internacional, ou à sobrevivência de bolsões de subversão que era preciso eliminar, inclusive pela força. O fato de que em plena epidemia de meningite a imprensa tenha sido proibida de noti-
ciá-la é um significativo exemplo, entre tantos, do mundo kafkiano e, no limite, paranóico, no qual se enredou o poder ditatorial. Pois, em boa lógica, alertar a população sobre a epidemia seria o meio mais elementar de ajudar a combatê-la, mas admitir a existência da epidemia seria admitir um fracasso na política de saúde do governo, dando razão aos seus adversários e isto era impensável. Para os que ainda sonham com soluções de força para os persistentes problemas brasileiros, a experiência vivida a partir de 1964 e até o fim da ditadura pode oferecer ocasião para confrontar sonho e realidade. O mais poderoso regime jamais implantado no Brasil foi omisso e ineficaz no enfrentamento dos problemas sociais. Assistiu indiferente ao crescimento da pobreza urbana, à favelização das cidades, à associação entre a criminalidade e o aparato policial corrupto. Capitulou diante do latifúndio e deixou intocada a injusta estrutura agrária brasileira, criou as condições para que a saúde se transformasse cada vez mais em um negócio, dominado pelo interesse do lucro. O Estado foi, como jamais o fora antes, colocado a serviço dos interesses privados, vendo com desconfiança, ou mesmo hostilidade, qualquer idéia de realização de políticas cujo horizonte fosse a de direitos para todos. O meio ambiente ou o patrimônio arquitetônico das cidades podiam ser destruídos, em nome da modernidade ou da criação de riquezas, com total inconsciência em relação às futuras conseqüências desta destruição. A demolição da igreja dos Martírios, no Recife, para prolongamento da avenida Dantas Barreto, constitui um exemplo, entre tantos outros, desta cultura, exacerbada pela ditadura, de sobrepor interesses privados e imediatos aos interesses coletivos e de mais longo alcance. Todas as contas feitas, o regime do “Brasil Grande” foi social e politicamente pequeno e teve um custo, inclusive de sangue, muito alto. Por estas e outras razões e parodiando o que se dizia e se diz sobre o levante comunista de 1935, é preciso repetir, também e sempre: lembrai-vos de 1964. • Denis Bernardes é historiador e professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco.
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Estudantes e artistas protestam contra a censura, no Rio, em 1969
O golpe na cultura Mito de que a resistência à ditadura exigia que artistas apurassem a criatividade não se sustenta nos fatos, embora possa fazer sentido dentro de certos limites Daniel Piza
ESPECIAL 63 » panhias teatrais, como o TBC, exibiam montagens modernas de clássicos, modernos e brasileiros; intelectuais, como os da revista Clima (Antonio Candido, Paulo Emilio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado), chegavam à grande imprensa via Estadão. Em Juazeiro, na Bahia, um amante de samba e jazz chamado João Gilberto começava a desenvolver uma batida que mais tarde seria o elemento definidor da Bossa Nova. No Rio Grande do Sul, Erico Veríssimo atingia a maturidade literária. E assim por diante, numa lista grande e mais ou menos conhecida. O Rio, como capital política e cultural, fervia mais que todas as cidades. Além da Bossa Nova, que tinha juntado o baiano João Gilberto ao carioca Tom Jobim e ao acreano João Donato, entre outros, a cidade começava a debater o cinema nacional com intensidade. Mais tarde, num ano como 1962, isso seria refletido na premiação em Cannes de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, para o qual os intelectuais viravam o nariz, e a exibição de Os Cafajestes, de Ruy Guerra, que eles consideraram o início do Cinema Novo, supostamente mais artístico e participante do que o anterior. O teatro também era centro de atenções intensas no Rio, da passagem dos anos 50 para os 60, e a “busca do autor nacional” (pós-Nelson Rodrigues) começava a dar frutos, como Gianfrancesco Guarnieri, Millôr Fernandes, Jorge Andrade e muitos Gláuber Rocha: ícone do Cinema Novo, que nasceu antes de 1964
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lguns defendem a tese de que o regime autoritário instalado a partir de 1964 e acirrado a partir de 1968 exigia que os artistas apurassem a criatividade e encontrassem soluções para protestar contra a ordem vigente sem cair na malha grossa da censura. Isso pode até fazer sentido dentro de certos limites, principalmente se pensarmos na quantidade de nostálgicos que a abertura democrática nos anos 80 deixou – pessoas que não conseguiam (ou ainda nem conseguem) disfarçar a tristeza de ter perdido a sensação de importância que um governo censor parecia lhes conferir. Mas muito do que foi exaltado na produção cultural daquela época, quando revisto nos últimos anos, se revelou “datado” na melhor das hipóteses (afinal, não deixa de ser um valor o ter marcado uma geração) e inacreditável na pior. O argumento esbarra antes de mais nada na observação de que, nos 10 a 15 anos anteriores ao golpe militar, a cultura brasileira viveu um grande momento sob os mais diversos critérios. A partir de 1950, principalmente, uma série de transformações começou a ocorrer nas artes e no pensamento. E não só no Rio, então capital federal. Em São Paulo, por exemplo, em poucos anos surgiriam a Bienal de Artes, o Museu de Arte Moderna e o Museu de Arte de São Paulo, sem os quais movimentos, como a pintura e a poesia concretistas, não teriam ocorrido; com-
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Passeata dos 100 mil, Rio, 1968
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mais. O jornalismo não estava menos frio: com as reformas do Jornal do Brasil, do Diário Carioca e do Correio da Manhã, uma nova geração com nomes, como Paulo Francis, Ivan Lessa e Alberto Dines, daria brilho coloquial e cosmopolita à crítica e à reportagem. Nesse mesmo período a revista Senhor, editada por Francis, conseguiria uma mistura local e memorável de revistas americanas, como Esquire e New Yorker e publicaria contos de autores então em alta, como Guimarães Rosa, Jorge Amado e Clarice Lispector. Essa efervescência é associada aos anos JK, o “presidente bossa nova”, que, em seu governo de 1955 a 1960, ao contrariar o clima de desânimo que se abatera sobre o país com o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, realmente estimulou uma mentalidade mais otimista no país, com a inteligência de ao mesmo tempo abri-lo para as multinacionais, como as de automóveis, e forçá-lo a descobrir seu potencial interior, como na construção de Brasília, a nova capital, no planalto goiano. Como uma espécie de Getúlio mais jovial e futurista, JK fez brotarem as iniciativas de modernização cultural e industrial que o antecediam e, apesar de sua política inflacionária, fez de um mandato uma era, deixando uma herança que transcenderia os anos de chumbo. Até um poeta antes melancólico e europeizado como Vinicius de Moraes passaria para a composição e interpretações de canções populares. Mesmo com a renúncia tresloucada de Jânio Quadros em 1961 e a instabilidade institucional de seu sucessor João Goulart, ou até mesmo por isso, os anos 60 deram seqüência àquela onda de criatividade e debate iniciada na década anterior. Nem mesmo o golpe de 64 pôde revertê-la. O Cinema Novo ganhou força com o advento (ele gostaria do termo) de Glauber Rocha, o ci-
neasta baiano de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). A Jovem Guarda, nascida em grande parte em São Paulo, abriria caminho para a influência do pop-rock na música brasileira, que mais tarde a Tropicália de Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, durante os agitadíssimos festivais da TV Record, proclamaria como gesto “antropofágico”, de afirmação nacional. E, por falar em Oswald de Andrade, a montagem de O Rei da Vela por Zé Celso, em 1968, seria a expressão-símbolo da contracultura à moda brasileira, por debaixo de um governo cada vez mais linha-dura. Afinal, até intelectuais de esquerda acreditavam que a tomada do poder pelos militares em 1964 seria breve, e de fato o general Castello Branco assumiu com a intenção de fazer uma “limpeza” no Estado – que julgava desmoralizado pela corrupção e pelo filocomunismo de Jango – e devolvê-lo no máximo em dois anos para os líderes civis, como o próprio JK ou Carlos Lacerda (que apoiou o golpe, mas foi cassado no ano seguinte). Com o AI-5 decretado no final de 1968, não houve mais dúvidas de que os militares não estavam no poder a passeio. Os governos Costa e Silva, Médici e mesmo Geisel teriam ainda a propaganda do “milagre econômico”, um crescimento de quase 10% ao ano para regozijo da classe média e dos investidores estrangeiros. E foi a partir desse momento que a barra pesou sobre a cultura brasileira. A turma que, censurada nos grandes jornais, faria o semanário Pasquim a partir de 1969, misturando humor político, entrevistas libertárias, pensatas e cartuns, começaria a ser presa, assim como os músicos tropicalistas e intelectuais de esquerda, como o romancista Antonio Callado, o poeta Ferreira Gullar e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Enquanto Pelé e sua turma mostravam para o mun-
ESPECIAL 65 » Foto: Arquivo/AE
do, nos campos de futebol, a leveza O Rei da Vela, 1968: complexa de uma arte brasileira contracultura à brasileira (pois Pelé também era bossa nova), a repressão e a tortura chegariam a extremos no Brasil do início dos anos 70. Aos poucos, o efeito disso na cultura brasileira seria divorciar os “engajados”, interessados numa cultura de protesto, politizada, esteticamente convencional, dos “descontraídos”, afeitos a uma nova cultura de comportamento, juvenil, eticamente descompromissada. E esta cisão seria o principal sintoma do golpe político sofrido pela cultura brasileira, que tardaria a ver de novo obras com ousadia artística e consistência intelectual, como as que vira nos anos 50 e 60. Até hoje, com um toque de sebastianismo, muita para começar a se recobrar. E só gente espera pelo novo Tom Jobim A cisão entre "engajados" agora, com a retomada do cinema, o (ou pela nova Elis Regina), pelo e "descontraídos" seria surgimento de novos valores litenovo Guimarães Rosa, pelo novo o principal sintoma do rários, a rica oferta cultural das granGlauber Rocha... ou então vê nos golpe político sofrido des cidades, a publicação de livros, trabalhos recentes de Zé Celso, como a história do regime militar Caetano Veloso e Cacá Diegues mais pela cultura brasileira por Elio Gaspari, a real ocupação força artística do que possuem. Eis produtiva do centro-oeste e outras mudanças, a cultura uma prova do impacto cultural da ditadura. Não era a cultura brasileira que estava sendo impul- brasileira pode se sentir um pouco livre desse passado. Se sionada pela repressão política, mas a repressão política, deixar de lado seus excessos utópicos, estará pronta até depois de intensificá-la com seu ácido, terminaria diluin- mesmo para ombreá-lo. No céu não há nada mais que do a cultura brasileira. Aquela geração que sonhava trans- aviões de carreira. • formar o Brasil – ou muito mais que o Brasil – acabou Daniel Piza é jornalista e editor executivo por sentir o golpe, do qual levaria mais de duas décadas de O Estado de S. Paulo. Foto: Evandro Teixeira/AJB
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Adido militar da embaixada americana na época do golpe, o lendário general Vernon Walters esteve no centro do redemunho em 1964, mas levou segredos para o túmulo Walters: migalhas de toneladas de informações
Geneton Moraes Neto
O Demônio Americano S
e nomes próprios pudessem ser traduzidos, qual seria o significado de Vernon Walters? Quem se opôs ao golpe militar de 1964 responderia de bate-pronto: Vernon Walters quer dizer o cafute, o cambito, o capeta, o coisa-ruim, o diacho, o esconjurado, o mequetrefe, o mofento, o tinhoso. Em uma palavra: o demônio. O coronel que, durante a conspiração que derrubou João Goulart, desempenhava o papel de adido militar da embaixada dos Estados Unidos, entrou irremediavelmente para a história do movimento militar de 1964 como símbolo de conspiração. Procuro o general Vernon Walters para uma entrevista que seria gravada num cenário apropriado: um salão da Biblioteca do Exército, no prédio que já foi sede do Ministério da Guerra,no centro do Rio de Janeiro. O general tinha feito uma viagem-relâmpago ao Brasil, para divulgar um livro autobiográfico (Poderosos & Hu-
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mildes). Imagino que a figura lendária do esconjurado, o mofento, o cafute de 1964 vá se materializar em minha frente com o peito ornamentado de condecorações de todo tipo. Afinal, é assim que ele aparece, impávido, na capa do livro. Surpresa: o homem desembarca na porta de entrada do prédio numa cadeira de rodas, embalada por um sobrinho. Problemas na articulação dos joelhos tinham nocauteado os movimentos do militar que um dia fez carreira nos campos de batalha: Walters lutou na Europa na Segunda Guerra e no Vietnam, na década de 60. Os trajes civis do mequetrefe são discretos: a farda deu lugar a um paletó marrom, uma camisa amarela, uma gravata estampada. Poliglota que falava francês, espanhol, italiano, alemão, holandês e russo, Walters fazia questão de conduzir a conversa em português. O forasteiro que tentasse arrancar de Walters segre-
ESPECIAL 67 dos sobre os bastidores do movimento que tirou o presidente João Goulart do poder era brindado com uma resposta pronta. O cafute trazia no bolso do colete uma frase de efeito: "um coronel americano inexperiente em golpes de Estado (como ele se auto-intitulava) não teria grandes lições a dar a generais brasileiros razoavelmente habituados a derrubar presidentes". Insisto. Walters abre um flanco. Mas é parcimonioso na hora de ceder a pressões de bisbilhoteiros profissionais. Tira uma cena do fundo do baú da memória: reconhece que meteu o bedelho em "assuntos internos" brasileiros durante um almoço com um militar, nos dias que se seguiram à quartelada de 1964. O militar - que, na lembrança de Walters, era Emílio Garrastazu Médici deu-lhe uma notícia quentíssima: o ex-presidente Juscelino Kubitscheck iria ser cassado. Walters contra-argumentou: a repercussão da cassação seria desastrosa no exterior, porque, fora do Brasil, “Juscelino é a imagem de Brasília”. Mas a cassação, disse-lhe o militar de alta patente, estava “assinada”. Era irreversível. Lá estava o adido militar da embaixada americana exercendo plenamente a função extra-oficial de palpiteiro. Deve ter cumprido o papel em outras situações – que preferiu manter em segredo. Não se deve esquecer que Walters passou a vida manuseando segredos: chegou a ocupar, por anos a fio, o posto de vice-diretor-geral da CIA, depois de deixar o Brasil. O cafute faria outra concessão à insistência do repórter: diria que manteve segredo durante décadas sobre uma impressão que guardou do presidente João Goulart depois de uma audiência, no Rio de Janeiro, em companhia do então embaixador americano, Lincoln Gordon. Os dois – adido e embaixador – relataram ao presidente a gravidade da crise dos mísseis cubanos: fotos aéreas comprovavam que a União Soviética poderia usar Cuba como base de lançamentos de mísseis contra os Estados Unidos. Goulart fez com a mão um gesto que Walters interpretou como uma indicação de apoio a uma rápida ação americana contra a ameaça soviética. Que ação seria esta? Walters diz que, no carro, na viagem de volta à embaixada, imaginou que o gesto de Goulart poderia ser traduzido como “bomba atômica”. Fica o registro: informações importantes – sobre até onde iria o apoio de um presidente brasileiro a uma eventual reação americana contra a instalação de mísseis soviéticos em solo cubano – nem sempre são cristalinas, indiscutíveis, pétreas. Podem depender da interpretação de um simples gesto com a mão. Política pode ser mí-
mica. Assim caminha a humanidade. O general de pijama – ou de terno – reconhece que os Estados Unidos iriam, sim, fazer “alguma coisa” se a crise de 1964 descambasse para uma situação de guerra civil no Brasil. Bastaria que os soviéticos tentassem, por exemplo, “abastecer um dos lados em luta”. Como não estava aqui em 1964 para ir passear no Maracanã, Walters tratou de reunir informações sobre a crise política brasileira. Diz-me que tinha “quase certeza” de que o movimento militar seria deflagrado no dia 31 de março de 1964. A suspeita era tanta que ele aconselhou o embaixador americano a cancelar de última hora uma viagem ao Recife para inauguração de casas populares construídas com dinheiro americano. Assim foi feito: o embaixador desistiu da viagem ao Recife. Goulart terminaria partindo para o exílio em Montevidéu, derrubado pelos militares. Walters faria reminiscências pessoais sobre o amigo Castelo Branco. Os dois se conheceram nos campos de batalha na Itália, na Segunda Guerra. O primeiro militar a ocupar o poder depois do golpe de 64 chamou Walters para um almoço – a dois – no dia em que assumiu a Presidência da República. A deferência dá uma idéia da proximidade entre os dois. Quando estava na Guerra do Vietnam, Walters soube da morte de Castelo Branco, num acidente de avião, após ter deixado o poder. Não teve dúvida: ordenou ao capelão que rezasse uma missa pelo brasileiro, numa base militar, em meio ao conflito no sudeste asiático. Termina a entrevista. O general desliza a bordo de uma cadeira de rodas pelos corredores da antiga sede do Ministério da Guerra. Cumpriu o ritual a que se habituara há décadas: concedeu a um repórter migalhas das toneladas de informações que armazenou numa memória freqüentemente citada como “prodigiosa”. O militar que povoa a galeria de personagens de 1964 como a face oculta do “imperialismo americano” despede-se com um aceno. Já escureceu no Rio. Dez dias depois, na segunda semana de fevereiro de 2002, o cafute, o cambito,o capeta, o coisa-ruim, o diacho, o esconjurado, o mequetrefe, o mofento, o tinhoso do imaginário de 1964 estava morto, num quarto do Good Samaritan Medical Center, em West Palm Beach, Flórida. Tinha 85 anos de idade. E séculos de segredos. • Geneton Moraes Neto é jornalista.
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68 SABORES
PERNAMBUCANOS
Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
A Comilança
M
aio é mês das noivas. Junho é São João. Setembro, começo de verão. Fevereiro é carnaval. Mesmo quando cai em Março, atrapalhando o calendário – que Março é mês do cinema. Por conta da festa do Oscar – que esse ano aconteceu no último dia de Fevereiro. Tempo de lembrar filmes que ficarão para sempre em nossas memórias. Como o cinema celebra a própria vida, seria mesmo natural que nele tivesse destaque o ritual da mesa. Não por acaso os irmãos Lumière escolheram o Grand Café, no Boulevard des Capucines, para a primeira exibição de seu cinematógrafo. Gastronomia e cinema, a partir de então, nunca mais se separaram. Algumas cenas acabaram imortais. Buster Keaton como garçon de restaurante, tentando ensinar cliente a comer espaguete (O Cozinheiro, 1918). Charles Chaplin provando sopa e milho, em máquina que não parava de girar (Tempos Modernos, 1936), na primeira grande sátira a uma globalização ainda incipiente. Audrey Hepburn esbanjando elegância ao degustar um prosaico sanduíche, no meio da rua (Bonequinha de Luxo, 1961). Elizabeth Taylor comendo uvas, sensualmente, para seduzir Richard Burton – que acabou seu marido, depois desse filme (Cleópatra, 1963). Catherine Deneuve com marrons-glacês e sua classe inimitável (Tristana, 1970). Sem contar filmes que são, eles próprios, uma epifania da mesa – Tampopo (1986), A Festa de Babette (1987), Como Água para Chocolate (1993), O Jantar (1998), O Amor Está na Mesa (1998), Chocolate (2000), Vatel (2000) e tantos outros. Mas nem sempre a mesa provoca prazer nos filmes. Alguns parecem feitos só para embrulhar o estômago. Em Como Era Gostoso o Meu Francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), por exemplo, os índios devoram um ho-
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"A inspiração que é precisa para cozinhar bem, assim como a criatividade e o poder de improvisar, é muito semelhante ao que se usa para fazer um filme" Martin Scorsese
mem inteiro. Em O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante (Peter Greenaway, 1989), o ladrão, mesmo depois de jantar, ainda tem apetite para comer pedaços do amante de sua mulher. Em A Carne (Marco Ferreri, 1991), o amante – sempre ele – congela o cadáver de sua amada para poder comê-lo depois, com calma. Mas em nenhum desses filmes a comida está tão presente, e é tanta, e causa tanto desconforto, quanto A Comilança (Le Grand Bouffe, 1973), obra prima do mesmo Marco Ferreri, prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cinema de Cannes. Seu roteiro é fascinante. Quatro amigos, por razões desconhecidas, decidem se fechar em uma casa para comer até morrer. Os personagens vão sendo apresentados aos poucos. Têm o primeiro nome dos próprios atores Marcello (Mastroianni), piloto de avião e irrecuperável sedutor; Michel (Piccoli), produtor de TV com duvidosa preferência sexual, que tem o estranho hobby de dançar balé; Ugo (Tognazi), chefe de cozinha de reconhecidas habilidades; e Philipe (Noiret), juiz, diabético e atormentado por manter caso de amor com uma velha ama que o criou. Nada mais se saberá deles, no filme. A casa em que tudo se consumará pertence a Philipe. Foi herdada de seu pai. Na aparência austera e fria, mais parece um museu. Nunca foi habitada pela família. O próprio Philipe a descreve, com desdém – “se um perfume sentimental não se prende à casa, se não há tradição familiar nas paredes, então a noção de moradia é vã e sem razão”. Para cuidar da casa havia Hector, fiel empregado da família. E foi Hector quem, cumprindo ordens, providenciou os ingredientes da comilança – dois javalis jovens e selvagens, para serem marinados em temperos suaves; dois cabritos de olhos doces, trazendo na carne o perfume da floresta de Couvres; dez dúzias de galinhas-d’angola,
SABORES PERNAMBUCANOS 69 » Foto: Ag. Estado
Philipe Noiret e Andréa Ferreol, no filme A Comilança La Grand Bouffe, 1973) (L
alimentadas com cereais e zimbro; três dúzias de galetos de Ardenas; um quarto de boi das pastagens de Charolais; cinco cordeiros dos prados de St. Michel; um peru engordado por chocolate, nozes e conhaque; peixes, gansos, patos, bacalhau, ostras, muito mais. Tudo colocado sobre enorme mesa de madeira, no meio da cozinha, para ser cortado por afiadas facas – “um bom cozinheiro é como um cirurgião”, ensina Ugo. No café, pão, geléia, croissant, bolos, rum Borgnhon. Nos intervalos, entre as refeições, chocolate quente – para abrir o apetite. No almoço, ostra, assados e crepe Suzette. No jantar, cozido de carnes magras, feito em “caldo desengordurado e passado no chinois”; lagosta à Mozart, sobre arroz à Sully, com molho Aurore; rins à Bordolesa; frangos e leitões recheados com castanha, toucinho defumado e trufas; peru assado no forno à lenha; codornas e galeto espetados; bolo confeitado. Crianças de uma escola próxima atrapalham a programação. Queriam conhecer no jardim em frente à casa, o “loureiro de Boileau” – homenagem ao famoso poeta francês (1636-1711), amigo de Molière e Racine, que à sua sombra costumava escrever versos. Com esses meninos vem a rechonchuda e maternal professora Andréa (Ferreol), que aceita convite para o jantar. Philipe teme que possa haver problemas, quando ela encontrar três mulheres de vida "dita fácil", convidadas por Marcelo para tornar a noitada memorável. Mas todos se dão bem. Encantado, Philipe pede Andréa em casa-
mento. E encantada, Andréa aceita. A comilança continua – carneiro assado na brasa, saladas, pães, pizza à provençal. Além de uma bacia de purê medicinal – “para absolver os gases”. Todos começam a passar mal, em arrepios e flatulências. “É preciso comer para morrer”, lembram uns aos outros. E continuam à mesa. Macarrão com molho a que deram o nome de Andréa. Tortelline com molho branco e champignon. Panquecas com licor. Peru com purê de castanha, creme de maçã e bolo. Marcelo seduz Andréa e a leva para seu quarto. A relação não se consuma e ele se desespera – “vou embora, descobri que não se morre comendo”. E sai de casa. Andréa chora, com remorso, e lamentando ser gorda. Os amigos lhe animam – “você é linda, doce, graciosa, leve, sensível e cozinha bem”. Todos dormem. Dia seguinte, Marcelo é encontrado morto, no jardim, congelado pelo frio. Decidem não enterrá-lo. Colocam o corpo num canto da casa e continuam comendo - polenta na tábua regada com ragu e torta. Michel também morre. E é colocado junto de Marcelo. Os sobreviventes ficam em volta da mesa. “A dificuldade está em mesclar os sabores, no ponto de cozimento de cada ingrediente” explica Ugo. Ninguém mais lhe escuta. Querem só comer, para abreviar seus destinos. Pato com vinho do Porto, ganso no champanhe, patê de fois gras decorado com ovos porque “para os judeus ovo é o símbolo da morte". Ugo come patê até morrer. Cachorros Continente março 2004
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SABORES PERNAMBUCANOS
latem na rua, atraídos pelo cheiro da morte. Philipe come dois pudins, preparados por Andréa, e morre também. Chega um caminhão com mais comida. Andréa decide colocar tudo no jardim. Os cachorros avançam em direção àqueles alimentos. Ela entra e fecha a porta da casa. É o fim. Literalmente. Essa parábola sobre a comida faz lembrar a legião de famintos que perambulam pelas esquinas brasileiras. Convertendo o roteiro do filme em contraponto à vida real dos excluídos. Comida muita e fome zero. No filme é lagosta, patê de ganso e javali marinado; na vida apenas os produtos da cesta básica – feijão, arroz e farinha. No filme
são pessoas que tiveram sucesso; na vida, almas simples que apenas exercitam a sobrevivência. No filme uma casa grande austera e fria, na vida palafitas e mocambos descuidados. No filme se morre por excesso de comida, na vida são seres humanos morrendo um pouco a cada dia, por falta dela. Sem esquecer a grande e magnífica diferença entre ficção e realidade. O desencanto que leva homens a desistir, e o sonho de educar os filhos, de ter uma casa, de ser gente. Na ficção sobra comida e falta esperança. Em nossa realidade acontece quase sempre o contrário. Nas águas de março são paus, são pedras, mas são sobretudo promessas de vida no coração do povo brasileiro. • Foto: Alexandre Gondim/DP
RECEITA: CREPE SUZETTE INGREDIENTES: MASSA: 1 ¼ xícara de leite, 2 ovos, 1 colher de sopa de manteiga derretida, 1 colher de sopa de Grand Marnier, 1 xícara de farinha de trigo peneirada, 1 pitada de sal. CALDA: 100 gr de manteiga, ½ xícara de açúcar, 1/3 de xícara de suco de laranja, 1 colher de sopa de suco de limão, 2 colheres de sopa de Grand Marnier, ¼ de xícara de conhaque para flambar. PREPARO: MASSA: Coloque todos os ingredientes da massa no liquidificador e bata rapidamente. Passe na peneira. Cubra e deixe descansar por 1 hora. Unte frigideira com bem pouco óleo. Coloque a massa aos poucos. Deixe no fogo até soltar dos lados. Vire e asse, também, do outro lado. Dobre cada crepe em 4 e reserve. CALDA: Em frigideira grande coloque manteiga, açúcar, suco de limão e de laranja. Quando a calda começar a engrossar, junte o Grand Marnier. Traga os crepes para a calda. Deixe até que fiquem embebidos. Junte o conhaque, flambe e leve à mesa ainda em chamas.
sualmente criado por Eduardo VII. O Príncipe de Gales preparava crepe para amiga, de quem só se sabe o primeiro nome – Suzette. Um pouco de conhaque caiu na panela, por acidente, e flambou o prato. Deu certo. O acaso, como a história da culinária vem mostrando, é mesmo grande cozinheiro.
Observação: Esse crepe, segundo se conta, foi ca-
Maria Lecticia Cavalcanti é professora.
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA 71 Joel Silveira
Uma monumental feijoada como estratégia
O “dispositivo” que defenderia João Goulart em 1964
A
ntes que o sol daquele primeiro de abril nos surpreendesse assim, entre atônitos e anuviados, resolvi desligar a televisão. Durante horas, na cobertura do amigo na rua Barata Ribeiro, havíamos assistido a um intenso desfilar de oratória “revolucionária” da mais vária espécie. Em todos os eloqüentes e bravos arautos e donos do Poder Novo, um traço comum: a intolerância, a baba raivosa que dava a cada palavra um tom bilioso. O pequeno general, ainda em trajes guerreiros (o capacete enterrado na cabeça miúda fazia-o ainda menor; aquele imenso revólver guardado no coldre bangue-bangue completava o que poderia ser uma fantasia de cowboy disputando um prêmio no baile infantil de qualquer clube carnavalesco), esbravejava: – Chegou a hora da limpeza! Torci o botão do aparelho, o prateado retângulo em ebulição sumiu. Sobre todos e tudo desceu uma redoma de chumbo. Ali fiquei, na ampla varanda, o corpo amolecido procurando acomodar-se da melhor maneira possível na dura e estival cadeira de peroba pintada de branco, tentando pôr em ordem o pensamento que o cascatear verbal, bramido, gritado e cantado no vídeo, havia quase pulverizado – como se minha cabeça fosse uma vidraça barata que tivesse acabado de receber o impacto de uma certeira pedrada. Ao tentar recompor diligentemente o que fora estilhaçado, consegui ordenar a seguinte linha de raciocínio, separando em duas porções distintas o que, para mim, naquelas últimas horas, fora e não fora surpresa. Feito isso, arrumei ainda mais o pouco que já conseguira recompor. Em seguida, afastei miudezas supérfluas, até chegar a uma
conclusão óbvia e, na medida do possível, aceitável. Que foi esta: Não-surpresa: acabava de se consumar o golpe militar que vinha sendo articulado desde 1954, quando do suicídio de Vargas. Surpresa: como e por que haviam conseguido os golpistas um êxito tão fácil, tão fulminante ? Onde falhara o dispositivo do governo ? O dispositivo! Então, tudo aquilo que me fora exposto quando da monumental feijoada em casa do jovem ministro, quinze ou vinte dias antes, tudo não passara de devaneios oriundos de uma estratégia traçada por um EstadoMaior onírico? Maldita feijoada! Então, o dispositivo que defenderia o governo de Jango resumia-se a apenas ela? Cheguei em casa. Logo me pus debaixo de uma chuveirada morna e, em seguida, estendido na cama, na qual tombei como um morto e da qual só iria me erguer quatorze horas depois. O longo sono nada teve de tranqüilo. Ao contrário: foi todo ele sacudido por pesadelos, estremecimentos, mergulhos em profundezas abissais e sonhos tão vivos que mais pareciam a continuação da realidade. Num desses sonhos, vi-me diante da metralhadora do soldado; ao escutar o arrogante desafio – “por aqui não passa !”– inflei o peito e num enfurecido arranco encostei a barriga no cano da arma que me visava, faminta; e o fiz com tal decisão que ao bom sentinela não restou alternativa senão a de puxar o gatilho e me furar a pança, em cima do fígado. E, para espanto meu, vi que da ferida aberta esguichava, em vez de sangue, um impetuoso e espesso jato de caldo de feijão. • Joel Silveira é jornalista e escritor.
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74 CONTEMPORANEIDADE
O “muro de segurança” que separa israelenses e palestinos: questionamentos políticos e morais
Um mundo cercado de muros A guerra contra o terror e a ameaça dos imigrantes servem de desculpa para um tipo de construção que se imaginava banida após a destruição do símbolo da Guerra Fria Fábio Lucas Continente março 2004
Foto: Menahem Kahana/AFP
CONTEMPORANEIDADE 75 »
O
medo atávico do outro, há milênios, pede e recebe proteção. Primeiro, contra outros animais. Em seguida, contra outras tribos. À medida que evoluímos, fomos levantando as barreiras da raça, do credo, do sexo, da classe, até quase não sobrar nenhum semelhante. As nossas metrópoles são cidades muradas, como na Idade Média. Temos muros para todo tipo de anseio. Os condomínios residenciais se gabam por serem “condomínios fechados”. Os shoppings, mais do que templos, são fortalezas de consumo. Nas praças e nos parques, grades poluem a paisagem, emoldurando a falsa liberdade urbana. Nas ruas e avenidas, as janelas fechadas dos carros são muros de vidro, a separar dois mundos que se cruzam por alguns segundos. O muro enquanto entidade abstrata é um reflexo de nossa civilização. Como podemos derrubá-lo? Queremos fazê-lo? Um muro é sempre construído, e isso diz bastante, do muro e de nós. É produto da vontade humana, seja uma cerquinha entre vizinhos ou uma muralha de centenas de quilômetros de comprimento, como a que se levantou na China, séculos atrás, como as que surgem na Cisjordânia, nos EUA e na Espanha, em pleno século 21. Para o professor de História da UFPE, Severino Vicente, o muro da Cisjordânia é uma prova de que o nazismo, embora derrotado militarmente na 2ª Guerra Mundial, foi na prática vitorioso, pelos seguidores que conquistou. “No caso de Israel, Estado que nasceu como conseqüência daquela guerra, ocorreu o fenômeno do prisioneiro ter adotado os hábitos do seu aprisionador”, comenta o professor da UFPE. Mas ele lembra ainda que os Estados Unidos (grandes beneficiários da vitória sobre os alemães) também têm o seu muro, que está sendo erguido na fronteira com o México, para conter a onda migratória. A Espanha igualmente levanta o seu bloqueio antiimigração, para deter os marroquinos. “São muros que se afirmaram silenciosamente e são aceitos sem discussões. Muros que negam a Declaração Universal dos Direitos do Homem, conseqüências de um mundo concentrador de renda e excludente por natureza”, critica Vicente. Continente março 2004
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76 CONTEMPORANEIDADE Foto: David Brauchli/Reuters
Muro de Berlim no dia da derrubada: útil ao poder dos dois lados
A escritora nova-iorquina Mina Hamilton classifica os muros externos como muros “contra o outro”. “O Outro não deve ser visto, ouvido, tocado, e muito menos amado”, diz ela. “Se compreendêssemos e amássemos o Outro, não poderíamos chamá-lo de estrangeiro ou de inimigo, nem poderíamos fazer guerra, invadir e ocupar suas terras. Não podemos matar crianças, pilhar a cultura e a terra do outro se o percebemos como igual”. Também de Nova York, o professor de História da NYU, Tony Judt, tem uma visão menos passional sobre o assunto. “Como as fronteiras, os muros são neutros por essência”, define. “Podem começar temporários e virar permanentes, ou podem resultar de uma intenção permanente e se mostrar efêmeros. Alguns, como o Muro de Berlim, de 1961, podem ser moralmente injustificáveis e sofrerem enorme oposição, mas na prática se mostram bastante úteis para aqueles que ocupam o poder nos dois lados”, avalia Judt. Para ele, há ainda muros moralmente aceitáveis que se revelam pouco úteis. Severino Vicente adota igualmente a tese da neutralidade genérica: “Muros não parecem ser bons nem parecem ser maus. Alguns muros são erguidos para garantir privacidade, promover o crescimento espiritual. Os monges – budistas ou beneditinos – recolhem-se silenciosos, protegidos Continente março 2004
por muros de pedra, com o objetivo de alcançar uma maior proximidade da Perfeição”, ressalva, para completar a imagem dizendo que “muros podem ser bonitos ou feios, de cimento bruto, ou escondidos por uma erva que lhes esconda a dura pedra”. No caso prático do muro de Israel, Judt concordaria com Vicente, pois o considera tanto moralmente questionável como um desastre político. Mesmo que respeite os limites de terra internacionalmente aceitos entre Israel e a Palestina, o muro atenta contra uma realidade demográfica: a economia israelense depende em grande parte do trabalho palestino. Além disso, a razão principal de sua construção – barrar o terrorismo – é furada, já que cada vez se sabe mais que os terroristas são recrutados dentro do próprio território de Israel. Mas o professor da Universidade de Nova York está de acordo com a existência dos muros, de uma maneira geral. “Limites e fronteiras são coisas boas, porque explicitam o que muitos relutam em aceitar: a perda de terras, os limites do poder do Estado, o fim do império etc.” Segundo Tony Judt, não há motivo para se imaginar que a necessidade de fronteiras, muros e cercas vá acabar, e tampouco crê que sua existência contradiga a liberdade humana. “Como se observa desde Aristóteles, a liberdade funciona melhor com res-
Foto: Abdelhak Senna/AFP
CONTEMPORANEIDADE 77 »
trições acordadas. Mas essas restrições somente podem emergir quando houver um consentimento geral para a ação de autoridades com ampla legitimidade. É isso o que falta no Oriente Médio no momento”. A utilidade da separação concretizada pelos muros pode ser evocada como uma questão de segurança, como pretende Ariel Sharon, ou pode conter formulações mais elaboradas, como a do historiador americano. Em todo caso, a origem do que se quer separar é a mesma. Escreve o sociólogo polonês Zygmunt Bauman que “qualquer cenário ambivalente ou terra de ninguém (ou melhor, qualquer terra com donos demais, de propriedade disputada) é um território de constante tensão e luta, tanto quanto espaço de diálogo, cooperação e compromisso”. Ou seja, por maiores que sejam suas dimensões, todo muro possui passagens, por onde teoricamente passa algum diálogo, alguma esperança de convivência, até que a necessidade do muro venha abaixo. À diferença de predecessores famosos como o de Berlim e o da China, o muro que está sendo feito em Israel para afastar os palestinos é um muro vivo, ressalta a escritora Mina Hamilton. “Exceto pelos livros de história, não temos relação com o Muro de Berlim ou com a Muralha da China. Em Israel, enquanto o Muro do Apartheid (como é chamado pelos opositores) avança, a humanidade inteira sofre”, diz Hamilton.
Muro no porto de Tânger, Marrocos: fechando a porta para a Europa
Foto: Chris Wilkins/AFP
"Se compreendêssemos e amássemos o Outro, não poderíamos chamá-lo de estrangeiro ou de inimigo, nem poderíamos fazer guerra, invadir e ocupar suas terras. Não podemos matar crianças, pilhar a cultura e a terra do outro se o percebemos como igual" Mina Hamilton
Imigrantes ilegais pulam o muro na fronteira MéxicoEUA, no Arizona
A escritora aponta “muros internos” como a causa dos “muros externos” da História. “Os piores muros estão dentro de nós. São aqueles que nos impedem de olhar para nós mesmos e para o nosso papel no mundo honestamente. São os muros que erguemos entre os nossos atos e pensamentos e as conseqüências desses atos e pensamentos”, indica. Por sua vez, o professor Severino Vicente lembra Caim e Abel para mostrar o quanto são antigos os arquétipos fundadores da intolerância. “Abel é um pastor, um indivíduo para quem a propriedade e os limites de um território pouco ou nada dizem. O que lhe interessa são os seus carneiros e cabras que estão sempre andando em busca de alimentos. Por outro lado Caim é um agricultor. Ele limpou um pedaço de terra e nele pôs algumas sementes e espera o seu crescimento”, recorda. “A questão da propriedade se coloca e Caim se vê obrigado a matar Abel na defesa do território que definiu como seu. Agricultura e propriedade estão juntos desde o primeiro de nossos arquétipos. Nessa história, contada por um povo que não era agricultor, era pastor, os cultivadores são invejosos.” De tijolos culturais poderíamos retirar a justificação dos muros, neste prisma. Causas e conseqüências políticas e econômicas não deixam de aparecer a toda hora nas discussões que cercam a guerra interminável entre a liberdade e a segurança. No entanto, antes da política e da economia, a ética do isolamento e da segregação que remonta aos nossos primórdios torna patética a comemoração feita sobre os escombros de qualquer muro, como o de Berlim, em 1989. Pois à ilusão de que destruímos mais do que pedras empilhadas, segue-se a desilusão do reencontro recorrente com um dos símbolos mais feios da civilização. Neste começo amedrontado do terceiro milênio, com terroristas e excluídos de toda sorte nas ruas de todo o planeta, não devia ser de espantar a volta dos muros - como se não viessem de nossos defeitos, mas brotassem da terra, naturalmente. • Fábio Lucas é jornalista.
Conhecimento 79 »
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80 DANÇA
Cartilha de dança
Ao ancorar o projeto Danças Brasileiras, para a TV Futura, Antônio Carlos Nóbrega recria um código através do qual possa se expressar, criar coreografias e representar personagens Fábio Araújo
Continente março 2004
Fotos: Hans Manteufell
DANÇA 81 »
A
Nóbrega está fazendo um inventário da dança brasileira, em 11 episódios televisivos
os 52 anos, Antônio Carlos Nóbrega se considera um artista próximo da maturidade. As três décadas de trabalho como cantor, instrumentista e dançarino deixaram-no íntimo das manifestações culturais brasileiras, em especial as danças típicas do Nordeste e de Pernambuco. Ao mesmo tempo, seu corpo está num estágio de agilidade e domínio de movimentos que talvez não se mantenha intacto com o passar do tempo. Essa junção de conhecimento e habilidade motora lhe convenceu de que chegou a hora certa de uma empreitada ousada na sua carreira: o registro televisivo das danças brasileiras. A oportunidade surgiu quando foi procurado pelo diretor Belisário Franca, que pretendia fazer com a dança um trabalho semelhante à sua premiada série Música do Brasil, um inventário de 15 programas e 108 estilos musicais que teve o hoje ministro Gilberto Gil como mestre-decerimônias. Nóbrega seria o cicerone ideal para guiar o diretor e a equipe da Giros Produções pelo intrincado universo das danças, folguedos e brincadeiras do país. A série Danças Brasileiras já tem verba garantida para seis programas de 30 minutos, mas a idéia é realizar 11 episódios a serem exibidos pelo Canal Futura. Serão mostradas representações artísticas onde a dança esteja fortemente presente. Os seis primeiros programas devem ser veiculados no final deste ano, seguindo um roteiro temático: cultura indígena (toré e caboclinho); frevo e capoeira; bois (cavalo-marinho, reisado, boi-bumbá); maracatu; samba (carioca, de roda e de parelha). O sexto será gravado em São Paulo e mostrará o trabalho de recriação que Nóbrega e sua esposa, a também dançarina Rosane Almeida, farão a partir de todo o material pesquisado. Quando a segunda etapa for viabilizada, será a vez de ritmos, como as congadas, o moçambique, o coco, danças do Sudeste e batuques, como o tambor de crioulo. A presença de Antônio Carlos Nóbrega nas gravações se reveste de um caráter “paulofreiriano”, nas palavras do diretor Franca. Ele ora brinca, ora ensina. Enquanto ensina, aprende. Em Nazaré da Mata, por exemplo, ver de perto o Maracatu Leão Misterioso foi enriquecedor para o brincante. Numa conversa com Mestre João Paulo, Nóbrega percebeu a Continente março 2004
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82 DANÇA
Em Nazaré da Mata, os mestres do Maracatu Leão Misterioso mostraram algumas diferenças
sutil diferença entre a dança do caboclo e a dança para arreia-mar. A primeira é mais solta, mais ágil, pois o dançarino não precisa carregar o surrão. Este caráter pedagógico é um dos fatores que mais animam o artista. “Ardência orgíaca” – Naturalmente, Pernambuco ganha destaque na série. Não por ser o Estado natal do artista, mas por sua óbvia riqueza e diversidade de ritmos. Aqui estão o maracatu nação, o maracatu rural, o caboclinho, o cavalo-marinho, o coco. E o frevo. Segundo Mário de Andrade, citado por Valdemar de Oliveira em O Frevo e o Passo, de Pernambuco (Boletim Latino-Americano de Música, abril de 1946), “a vibração paroxística do frevo é realmente uma coisa assombrosa (...) É, sem dúvida, o entusiasmo, a ardência orgíaca mais dionisíaca de nossa música nacional (...) É um verdadeiro título de glória, que o país ignora, simplesmente porque entre nós ainda são muito raros os que têm verdadeira convicção de cultura”. Desde que iniciou o périplo, em dezembro, a trupe já esteve em Aliança, visitando o cavalo-marinho de Mestre Biu Roque; em Nazaré da Mata, registrando o encontro dos maracatus Leão Misterioso e Continente março 2004
Cambinda Brasileira; e numa acanhada travessa do bairro de Água Fria, no Recife, sede do caboclinho Sete Flexas. As câmeras captam tudo, mas o olhar é dirigido principalmente à dança. Porém, antes de desembarcar em Pernambuco, o circo de Nóbrega e Belisário passou pelo Sítio Baixio Verde, no Crato (CE), onde entrou em contato com o reisado de Mestre Aldenir. Autor da dissertação Reis de Congo – Uma Etnografia do Reisado no Ceará, submetida em 1996 ao Mestrado em Sociologia da UFCE, Raimundo Oswald Cavalcante Barroso afirma que o reisado apresenta pelo menos cinco variações bem definidas: Reis de Couro ou Reis de Careta, característico do Sertão Central; Reis de Bailes, raridade do Cariri cearense; Reis de Caboclo, típico da região de Camocim e Sobral; o Boi, urbano, que emana de Fortaleza; e o Reis de Congo, também do Cariri, que tem em Mestre Aldenir um de seus significativos representantes. Segundo o autor, este tipo de reisado apropria-se mais corretamente do nome, pois trata da temática dos reis. Surgida numa região de marcante presença negra (nos engenhos de cana que fabricam rapadura e aguardente), a mani-
DANÇA
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pernambucanas, o projeto se insere em festação tem números musicais e quaUm dos olhares possíveis, nossa trajetória de reelaboração de dros dramáticos encenados por persoa partir do material coletado, uma nova linguagem, um código anagens organizados numa hierarquia seria reunir passos de várias que mistura elementos das economias danças para criar uma “cartilha través do qual possamos nos expressar, criar coreografias e representar persoaçucareira e pecuária e das cortes megeral” de dança brasileira nagens. O registro dessas danças é dievais, sob o comando do mestre. O toque rebelde e galhofeiro é dado pelos ex-escravos Mateus quase como o registro de nosso aprendizado ao longo dos e Catirina, que desobedecem ao mestre e ridicularizam os anos”, define o criador de Tonheta. Um dos olhares poscostumes estabelecidos. A íntegra do trabalho de Oswald síveis, a partir do material coletado, seria reunir passos de Barroso está disponível no site da Secretaria de Cultura do várias danças para criar uma “cartilha geral” de dança braEstado do Ceará, no endereço www.secult.ce.gov.br/ MIS/ sileira. Cartilha esta que reuniria um rico amálgama de tradições indígenas, negras e brancas. Para Nóbrega, esse foi o Reis_de_Congo.pdf. plasma que se cristalizou pelo menos nos três A segunda parada foi em Mussuca, distrito da cidade primeiros séculos de nossa existência e adquihistórica de Laranjeiras, em Sergipe, onde o grupo regisriu diferentes sotaques regionais. trou o samba de parelha. Citando o livro A África Está em Nós (João Pessoa: Editora Grafset, Projetos – Além das filmagens de 2003), de Roberto Benjamin, o estudioso serDanças Brasileiras, o brincante prepara a gipano Luiz Antônio Barreto descreve o loexcursão de lançamento do DVD Lunário cal: “A Mussuca mais parece um quilombo Perpétuo. E já tem um novo trabalho a caextinto, com uma indisfarçável maioria minho: o Nove de Frevereiro, trocadilho com o negra de moradores, que ganha visiDia do Frevo, com estréia prevista até nobilidade nos grupos do São Gonvembro, no Recife. O projeto será composto çalo, do Samba de Parelha, forde show, CD, DVD, oficinas e ma de dança de coco, formada aula-espetáculo, tendo como por mulheres, com seus tpersonagem principal o frevo de amancos, saias rodadas, canrua. tando e dançando suas jornadas”. Para montar o repertório, Nóbrega vai fazer Segundo Barreto, a Mussuca tem um apanhado da história do gênero, desde os grupos folclóricos singulares, primórdios das marchas, polcas e dobrados até os como o do São Gonçalo, forcompositores mais modernos. A trajetória evomado por homens vestidos de lutiva será apresentada com diferentes formações: calça, saiote e turbante. Eles quinteto de metais, orquestra de frevo, orquestra de dançam ao som de um cancâmara. O artista pretende, com isso, expor as posto repetido que diz: “É na sibilidades de reinterpretação do estilo, que vão ponta dos pés / é de calcamuito além do mais conhecido frevo de orquestra. nhar”. E pergunta: A ênfase será dada não só ao frevo enquanto mú“Onde mora o Rei de sica, mas também ao passo, seu parceiro indisCongo?”. solúvel. Para Nóbrega, a junção do passo de frevo Para Nóbrega e Rosane, participar com o frevo em si dá o testemunho de uma música das gravações como dançarinos é um que nasceu casada com uma dança, ambas de grande forma de enriquecer o projeto, moscomplexidade. • trando dois artistas em processo de assimilação de passos e movimentos. “Como já tenho intimidade com muiFábio Araújo é jornalista. tas dessas danças, especialmente as
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84 ARTES
CÊNICAS
A voz do corpo Georges Stobbaerts, belga radicado em Portugal, promove um diálogo sistemático entre artes marciais e teatro, defendendo que a arte do movimento não se limita à procura da forma, mas é também linguagem Everardo Norões
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Foto: Divulgação
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ARTES CÊNICAS 85 »
E
m 1970, no Japão, enfrentaram-se dois mestres do kendo, o esgrima japonês. De um lado, Yukio Mishima, um dos mais célebres escritores daquele país, que perseguia o retorno à tradição autoritária de um Japão feudal. Do outro, Georges Stobbaerts, um belga nascido no Marrocos, fascinado pela cultura oriental. Foi uma das últimas competições de Mishima, autor do livro Confissão de uma Máscara. Após a tentativa fracassada de golpe de Estado, cercado pelo exército japonês, Mishima se recusou a entregar-se. Morita, seu amigo e ajudante, acompanhou-o na morte: ambos executaram o sepuku, o suicídio ritual japonês. Após a competição, no avião que o trazia de volta à Europa, Georges Stobbaerts viu nos jornais a fotografia das cabeças de Mishima e Morita expostas sobre a mesa de um general. Embora Georges Stobbaerts observe o movimento na perspectiva da arte do instante – que tem no corpo humano o seu mais perfeito instrumento de realização – a lembrança mais forte foi a dos detalhes do elegante keikogi (quimono) usado por Mishima durante a luta. Stobbaerts, que já naquela época percebia os ges-
tos como algo susceptível de despertar a beleza e de buscar o entendimento entre diferentes culturas, viria a tornar-se um dos grandes mestres de yoga e de aikido. Georges Stobbaerts tomou Portugal como seu país de adoção. Cônscio de que a arte do movimento não se limita à procura da forma, mas é também linguagem cuja dimensão ultrapassa o círculo das artes marciais, estabeleceu um diálogo, que prossegue até hoje, com o mundo do teatro, através de pessoas, como o dramaturgo Jorge Salazar Sampaio, Felipe La Féria, Carlos Avilez, Jorge Listopad, João Lourenço, Adolfo Gutkin, Mário Barradas e Zita Duarte. Seus conhecimentos sobre os fundamentos do teatro oriental, Foto: Ivan Dias sobretudo o Nô e o Kabuki, somados à sua vasta experiência nas artes marciais, converteram-se em contribuições inovadoras para o teatro português. Das anotações feitas no decorrer de montagens de espetáculos e de cursos de Antropologia do Gesto que ministrou na Fundação Calouste Gulbenkian, no Conservatório Nacional de Teatro ou no Centro Experimental de Cascais, surgiram os textos do livro O Corpo e a Expressão Teatral (Hugin Editores Ltda., Lisboa, 2002). No
Georges Stobbaerts: no teatro e nas artes marciais, o corpo é instrumento para o “gesto justo” Continente março 2004
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86 ARTES
CÊNICAS
“obrigação de reproduzir o real”, a aprender a livro, Georges Stobbaerts examina os expressar-se sem a palavra e a incorporar moprincípios do teatro oriental, suas influênvimentos que não fazem parte dos gestos de seu cias, e as formas de entendimento e de cotidiano. O encontro do artista com o próprio aperfeiçoamento do corpo como lugar de corpo – tomada de consnossas emoções e instrumento para a execiência da arquitetura corcução do “gesto justo”. poral, de suas caracterísNa perspectiva de Georges ticas e especificidades – é Stobbaerts, a abordagem do corpo circunstância fundamental conduz à convergência das técnicas da arte do movimento e do teatro e das artes marciais: ambos perpressupõe o conheciseguem a essência da técnica “e em ambos o corpo mento da verticalidade, do equilíbrio, do movimento, intervém pela inscrição do gesto e do movimento na ação”. Sua concepção de trabalho induz o ator a libertar-se da da energia, da respiração.
ARTES CÊNICAS Em julho de 2002, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o espetáculo A Dança do Sopro reuniu mestres e artistas das mais diversas tradições (artes marciais, teatro, música, dança) numa espécie de síntese das concepções de Georges Stobbaerts sobre a arte do movimento. A Dança do Sopro, na opinião de Adolfo Gutkin, personalidade do teatro português, subentende “um conhecimento profundo da relação entre a respiração e a fisiologia, entre o ar que purifica o sangue e os centros de energia, a habilidade e saber que permitem transmitir essa energia pelos diferentes centros expressivos do ator, desde a sua postura às suas deslocações”. Georges Stobbaerts dedica-se, há mais de 30 anos, ao
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ensino de aikido e de yoga. Preocupado com a evolução das artes marciais e da sociedade em direção à competição e à violência, criou uma nova arte do movimento, o Tenchi Tessen. É autor de vários livros, entre os quais Aikido, Harmonia do Corpo e do Espírito, A Arte do Movimento e a Meditação, Hatha Yoga, além de O Corpo e a Expressão Teatral. Georges Stobbaerts vem regularmente a Pernambuco ministrar seminários de aikido e seus livros estão disponíveis no Centro Georges Stobbaerts (Rua Padre Anchieta, 571, Torre, Recife, Tel.: 081.34454497), dirigido pelo professor Paulo Roberto Nunes. • Everardo Norões é economista e poeta.
Fotos: Divulgação
O encontro do artista com o próprio corpo – tomada de consciência da arquitetura corporal, de suas características e especificidades – é circunstância fundamental da arte do movimento
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88 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
O dia em que me torturaram com choque elétrico
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m filme sobre o golpe militar de 64? Com certeza não deveria ser realizado por Costa Gravas. Nem por Babenco. O golpe tem lances de ópera bufa que esses diretores omitiriam. São sérios demais. Será que a turma do Casseta já fez o filme? E os três volumes de Elio Gaspari não bastam para exorcizar de vez esse porão mal-assombrado? Mas, eu quero imagens de cinema, movimento. O jeito é ressuscitar Fellini e pedir que rode um novo Amarcord, com roteiro de Gabriel Garcia Marquez. Como no original italiano, que tem o fascismo de Mussolini como pano de fundo, o olhar da câmera tem de ser o de um adolescente, mais preocupado com a bunda e os peitos da Gradisca do que com os desmandos políticos do ditador macarrônico. Uma câmera marginal, varrendo as periferias, focando os rostos comuns, abismados, sem nada compreender dos discursos pró-comunistas e anticomunistas. A grande angular se abriria apenas para as sociedades isoladas desse Brasil, as vilas interioranas que demoraram a saber o que acontecia no país, e ainda hoje não sabem. Registraria histórias, como a de Cândio da Muzela, um sertanejo cearense que mandou construir um trono de madeira de mulungu, e partiu com um bando de fanáticos com destino ao Rio de Janeiro para repor D.Pedro II, quando soube que ele havia sido deposto pela república. – “Tomaram o trono do imperador?” – perguntava ele. – “Não seja por isto. Mandei fazer outro. Se não servir de trono, serve de privada.” Eu tinha doze anos quando o golpe aconteceu. Acreditei que alguns fatos anteriores ao 31 de março foram os responsáveis diretos pela manobra. A disputa ferrenha entre a vassoura e a espada, O Louco e o Marechal. A nossa cidade se dividiu. Tornou-se obrigatório o uso de uma espada na gola da camisa, ou uma vassourinha (nada a ver com o hino carnavalesco de Pernambuco), que lembrava o bigode do candidato a presidente, Jânio
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Conheci a repressão e o terror no meio de uma aula de anatomia Quadros. Os cidadãos passaram a se odiar e vez por outra, no calor de um comício, mandavam um para o cemitério. Isto durou até o resultado das eleições, com a vitória de Jânio sobre Lott. Confeccionaram uma vassoura gigante, transportada no caminhão de Orlandino, um GMC, popularmente conhecido por “grande merda comprei”. O udenista mais fanático da cidade encomendou uma bateria de bombas, que ia de uma ponta à outra da rua onde morava, e achou de queimá-la numa quinta-feira à tarde, dia em que o gado subia para o matadouro. Quando escutou os estampidos, a boiada também estourou. O único portão aberto era o do palácio do bispo e foi por lá que entraram bois, vacas e garrotes, profanando a sagrada residência. A meu ver, nesse dia se armaram as funestas coordenadas. Os militares, com o apoio do bispo Dom Vicente de Araújo Mattos, conhecido por Dom Ratão, e dos membros da Irmandade do Sagrado Coração, figuras vestidas de roupas pretas e palas encarnadas, tramaram o golpe. Meu pai ficou uma noite escutando o comício do dia 13, no Rio de Janeiro. Mamãe entronizou a imagem de Nossa Senhora Aparecida junto do rádio, por onde chegavam as notícias da agitação política. Parecia que o Brasil se condensava naquele objeto falante e que a Padroeira obraria o seu milagre nas válvulas e bobinas, impedindo a vitória do comu-
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nismo ateu. Os vermelhos estavam a caminho, tomando as terras do povo, pisando as imagens dos santos. Arrepiei-me com a visão de Nossa Senhora transformada em cacos. Felizmente, no dia 31 os sinos da Igreja Matriz tocaram dobrado, não sei se em homenagem ao golpe, ou porque o ditador que assumia era um marechal cearense, de cabeça chata e sem pescoço, caricatura de todos nós. Começaram as prisões. Levaram Dedé Alencar, do armazém de farinha, porque tinha escutado a música da campanha de Arraes na vitrola de casa. Prenderam Juvêncio Mariano, o comunista dono da Sapataria Popular. E um bancário de nossa rua. Não compreendíamos nada. No cinema, os jornais recheados de façanhas militares, atrasavam o horário dos filmes. Cresceu a campanha da União para o Progresso, duas mãos apertadas, a americana e a brasileira. O mito Jacqueline e John Kennedy tornou-se o conto de fadas da revista O Cruzeiro. Novelas lacrimosas tinham por cenário uma ilha da América Central, onde não existia liberdade e o catolicismo fora expurgado. Eu desconhecia o sentido da palavra burguês, usada nos discursos do personagem ditador, um presumível Fidel Castro. – “Porque os burgueses...” Misturei com burguesas, umas rolinhas que cantavam presas na gaiola, e com búlgaro, o povo da Bulgária. Demorei anos para desfazer o nó lacaniano. Fecharam o teatro estudantil, por conta de uma frase de ordem: tupy or not tupy. Tivemos notícia da prisão de Luciano Siqueira, na praça do Cristo Rei, o que olhava do alto do seu pedestal para a zona
de prostituição do Crato, e com os braços abertos dizia: “Daqui pra frente tudo é puta”. Em Fortaleza, vi da janela de um ônibus estudantes reprimidos e espancados pela polícia. Arlindo Soares, preso mais tarde, estava entre eles. Tempos nebulosos, dissimulados. Nada a ver com nossa infância banhada em nascentes e cachoeiras da serra do Araripe. Só muito depois, já no Recife, com dezoito anos, tive consciência do estrago. Senti como um choque elétrico na glande, igual ao que davam nos presos torturados. Não foi o balaço nas costas de Cândido Pinto, nem os crimes dos quartéis que me abriram os olhos. No meio de uma aula de anatomia, no curso de medicina na Universidade Federal de Pernambuco, por conta das nossas brincadeiras de estudantes, o professor Bianor da Hora ameaçou chamar o Quarto Exército para nos levar presos. Nesse dia, conheci a repressão e o terror, o lado escuro da ditadura que me parecia uma farsa burlesca. E nunca mais me curei. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.
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Na pisada do terreiro Renata Rosa faz seu primeiro show de lançamento do CD Zunido da Mata no Recife Foto: Michele Zollini/Divulgação
Do canto das caboclas, do universo feminino de transformação e fé e dos Rojões (cantos de trabalho cantado nas regiões do Baixo São Francisco pelas populações ribeirinhas e indígenas) vem a principal influência de Renata Rosa, cantora, compositora, poetisa, rabequeira e pesquisadora que desistiu de três cursos universitários, entre eles o de Canto, e se embrenhou pelos interiores do Brasil em busca de informações sobre a riqueza e diversidade das vozes das mulheres viventes nos lugares mais inóspitos do país. “O canto de um coco, sua prosódia, a polifonia vocal indígena, são simplesmente ignorados dentro da Academia. Lá os estudos parecem estar de costas para toda a sutileza e técnica da música popular tradicional”. Assim é Renata Rosa, paulistana do Brás, reduto dos cantadores repentistas em São Paulo, filha de pai poeta. Uma Continente março 2004
artista que, além de voz polifônica, é vária em suas pesquisas: abdicou dos cursos de Letras na USP, de Canto na Universidade Livre de Música e de Fonoaudiologia (USP) para ministrar aulas de movimento-voz no Pólo Sul-Americano do Ator Contemporâneo (RJ), morar no Recife e conviver com comunidades ribeirinhas do Baixo São Francisco; com os índios Kariri Xokó (AL) e com alguns personagens e manifestações da cultura tradicional, como Seu Luís Paixão, virtuoso rabequeiro de Itaquitinga (PE), o maracatu de Aliança (PE) e o cavalo-marinho de Chã de Esconso (distrito de CondadoPE). “Admiti que cantaria como sempre gostei de cantar, como as cantadeiras que eu acompanhava desde pequena e que me metiam medo, me maravilhando com sua forma de cantar a vida, a fé, a morte, a transformação. Assumi de instinto seguro que as minhas viagens seriam a minha faculdade; meu aprendizado seria definitivamente na pisada do terreiro”. Como as grandes mestras populares com as quais coexistiu e que lhe marcaram, Rosa tem uma voz e um canto de uma imensidão cristalina, vibratório, firme, pleno de nuances, capaz de romper os ares, os terreiros e as ruas; capaz de transmitir o zunido das gentes e o calor dos jogos e das brincadeiras. Quem quiser conferir a profundidade e originalidade do trabalho capitaneado por Renata Rosa pode adquirir o CD Zunido da Mata, relançado pela Tratore Discos no Brasil e pelo selo Outro Brasil na Europa. O álbum traz coco, ciranda, rojões, caboclinhos, toré, baião, samba de coco, forró e cantos de domínio público que aqui recebem influências dos terreiros de candomblé e das pesquisas de Rosa – uma metáfora do povo brasileiro. Depois de uma longa temporada na Europa (para onde volta em abril), Renata faz seu primeiro show de lançamento do CD no Recife, no próximo dia 03 de abril, no Pátio de São Pedro, a partir das 22 horas. (IC)
Fotos: Divulgação
Show de lançamento do CD Zunido da Mata, de Renata Rosa, no Pátio de São Pedro, dia 03 de abril de 2004, a partir das 22 horas.
Recital para Arrigo
Quarteto Camargo Guarnieri
Fotos: Divulgação
Luar – Canções de Arrigo Barnabé é um CD de vanguarda. Nada mais natural para quem lançou Clara Crocodilo, disco marco da Vanguarda Paulista. Mas não espere de Luar a estéticaregistro de Arrigo Barnabé. Interpretado pela cantora Tuca Fernandes e o Quinteto Delas, aqui encontramos um Arrigo tão original quanto, mas com a roupagem das canções camerísticas, conferidas por Tuca e o Quinteto, que possui uma rara formação instrumental – violino, viola, violoncelo, contrabaixo e piano. Neste novo trabalho percebemos o Arrigo poeta, que buscou inspiração nas figuras avessas aos cenários urbanos (ao contrário de Clara), como os vagalumes, o seresteiro que sofre de amor ou o amante que lança à lua questionamentos acerca das suas paixões. De todas elas, o seresteiro talvez seja a personagem mais ligada à tradição da canção sentimental brasileira, que tem origem na modinha, gênero que parece que coube a Arrigo dar-lhe nova e bela feição. A parceria entre Arrigo e Tuca Fernandes, que já data de 24 anos, com o aporte do Quinteto, resulta em composições originais e surpreendentes, nas quais a canção popular tradicional é fundida com a erudita, ficando com ares de recital – com um admirável jogo de voz.
O Quarteto Camargo Guarnieri, fundado há dois anos, vem fazendo uma justa homenagem ao grande compositor paulista que lhe dá nome. Formado pelos violinistas Elisa Fukuda e Cláudio Micheletti, pelo violoncelista Raiff Dantas Barreto e pelo violista Renato Bandel, o Quarteto acaba de lançar o primeiro CD em seu nome. Bela sonoridade, consciência estilística, dinamismo e emoção são marcas do disco de estréia do grupo. Além da merecida homenagem a Guarnieri, neste álbum ouvimos outras não menos justas: Osvaldo Lacerda e VillaLobos. De Osvaldo, temos o “Quarteto No 1”, composto por “Prelúdio & Fuga”, uma toada lírica dividida em três partes com um caráter de choro polifônico; “Ária”, uma seresta efusiva com os quatro instrumentos participando polifonicamente; e “Dansa” , que tem um caráter coreográfico, mas seu ritmo não é de dança alguma. Do prolífico Villa-Lobos, o “Quarteto No 1”, obra que foge dos padrões tradicionais e se apresenta sob a forma de uma suíte em seis movimentos. E de Guarnieri, o “Quarteto No 2”, dividida em três partes: “Enérgico”, uma sonata bitemática com vários motivos secundários; “Nostálgico” e Allegro, um rondó que encerra o “Quarteto” de maneira feliz e cheia de vitalidade.
Luar – Canções de Arrigo Barnabé, Ybrazilmusic, preço médio R$ 26,00.
Quarteto Camargo Guarnieri, Ybrazilmusic, preço médio R$ 20,00.
O circo da solidão
Caboclos envenenados Notas de Viagens
O Circo da Solidão conta a história de um circo que chega a uma cidade nova com suas contradições entre alegria e tristeza, magia e realidade. O álbum marca a estréia da banda pernambucana Mula Manca & a Triste Figura, nome-metáfora do consumismo. O CD é uma aventura lítero-musical, com direito a inserções narrativas de Raimundo Carrero, contos e excertos de livros. Músicos que escrevem ou escritores que tocam? A pergunta está no ar (ou nas páginas?) para você, leitor-ouvinte, responder.
O CD Várzea do Capibaribe, de Abissal e os Caboclos Envenenados, chega ao mercado fonográfico com algumas missões: sustentar a bandeira da despoluição e preservação do rio Capibaribe, levantada pelo Projeto homônimo, e levar aos ouvidos do Estado a voz e o tambor, em batidas de maracatus e afoxés, de jovens cônscios da sua responsabilidade social. O CD reúne nomes importantes da cena cultural pernambucana: Siba, Erasto Vasconcelos, Silvério Pessoa etc., que se aliam ao Projeto em defesa do Capibaribe – resumo do povo pernambucano.
Partindo dos nomes de pequenas cidades de que nunca ouvira falar, mas que viu no Guia Quatro Rodas, o arquiteto cearense, compositor e letrista bissexto Ricardo Bezerra promove uma viagem musical pelos recantos do país no CD Notas de Viagens. Por ele pilotado o trabalho é interpretado por músicos também cearenses e parece modulado por Villa-Lobos. Quase cem por cento instrumental, o disco passeia pelo jazz, modinhas, forrós, baiões, toadas e cantigas infantis de domínio público, como “Escravos de Jó” (cantadas pelo coral infantil Arte em Canto).
O Circo da Solidão, Independente, preço médio R$ 15,00.
Várzea do Capibaribe, Independente, preço médio R$ 15,00.
Notas de Viagens, Independente, preço médio R$ 10,00. Continente março 2004
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Desarranjo conceitual Panorama da Arte Brasileira 2003 propõe um antipanorama
Reprodução
Foto: Divulgação
O desarranjo é o conceito da próxima exposição que vai ocupar o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), de 11 de março até 2 de maio. Intitulada de Panorama da Arte Brasileira 2003 (desarrumado) 19 Desarranjos, a exposição bienal traz para Pernambuco uma seleção de esculturas, vídeos, instalações, intervenções, pinturas e objetos de artistas brasileiros e estrangeiros, sob a curadoria do cubano Gerardo Mosquera. Esta será 28a edição do Panorama, criado e mantido pelo MAM de São Paulo desde 1969. Serão 60 obras de 19 artistas, incluindo duas duplas. Artistas consagrados, como Adriana Varejão e Vik Muniz vão expor ao lado de artistas ainda fora do circuito, como a dupla de gaúchos Lucas Levitan e Jailton Moreira, o paraense Marcone Moreira e a mineira Sara Ramo. Mosquera, que é curador adjunto do
New Museum, em Nova York, explica que na arte brasileira existe uma tendência para criar sentido mediante desarranjos de estrutura, porém, sem deixar de obedecer a uma lógica construtiva. Daí, o curador definiu o conceito da exposição, imprimindo o sentido de antipanorama. A palavra “desarrumar” no título corresponde, segundo Mosquera, à idéia de desorganizar a exposição como instituição. O curador passou por ateliês e analisou portfólios em todas as regiões do país, para escolher as obras expostas. Essa é a primeira vez que o evento tem a curadoria de um estrangeiro e expõe trabalhos de artistas de fora do país. Os trabalhos do argentino Jorge Macchi, da chinesa Kan Xuan e do belga Wim Delvoye foram escolhidos por se aproximarem, na visão do curador, da condição da arte contemporânea brasileira.
Exposição: Panorama da Arte Brasileira 2003 (desarrumado) 19 desarranjos, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Rua da Aurora, 265. Tel (81) 3423.2095 | 3423.3007. Visitação: de terça a domingo, das 12h às 18h. Ingressos: R$ 1,00. (Arte-Educadores cadastrados no MAMAM, crianças até 05 anos e adultos com mais de 65 anos não pagam entrada)
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As danças de Abelardo As danças carnavalescas na ótica de Abelardo da Hora. Esse é o enredo da exposição O Carnaval de Abelardo da Hora – Mostra da Série Danças Brasileiras de Carnaval, que está em cartaz desde o dia 12 de fevereiro no Centro Cultural Brasil – Alemanha. Essa mostra inicial, que segue até o dia 31 de março, abre o espaço para novos artistas pernambucanos, no novo programa de exposições do Centro. As 15 reproduções das peças originais fazem parte da fase social do artista. Na época em que foram produzidas (década de 60), a cultura popular era vista com preconceito e, ao inserir elementos do folclore em uma arte considerada nobre, Abelardo da Hora estava dando o valor merecido a essa cultura. Os caboclinhos, os maracatus rural e nação, de baque solto e de baque virado, a la ursa e as escolas de samba são tão bem representadas pelo mestre, que quase saem das telas. O pernambucano Abelardo da Hora é um dos grandes nomes das artes plásticas brasileiras, um dos poucos escultores expressionistas em plena atividade no país. Além de escultor, é pintor, gravador, ceramista e desenhista. Exposição: O Carnaval de Abelardo da Hora – Mostra da Série Danças Brasileiras de Carnaval, no Centro Cultural Brasil-Alemanha – Rua do Sossego, 364, Boa Vista, até 31 de março. Visitação de segunda a quinta, das 9h às 12h e das 13h às 20h. Informações: 3421.2173.
Fotos: José Luiz Pederneiras/Divulgação
Grupo Corpo harmoniza o caos A companhia de dança apresenta o espetáculo Benguelê, musicado por João Bosco A companhia de dança mineira Grupo Corpo traz para o Recife, no dia 18, o espetáculo Benguelê, com músicas de João Bosco e coreografia de Rodrigo Pederneiras. O espetáculo, com cerca de 40 minutos, assim como as músicas produzidas pelo compositor, têm uma forte ligação com a África, mas não deixa de visitar outras referências. Banzo de Benguela, Benguelê. Benguela é uma região da África e o fonema “lê”, significa, banzo. O sentido explorado na apresentação é, justamente, a saudade das terras africanas. Há um bom tempo, o Grupo Corpo buscava a parceria de Bosco, visando, principalmente, o lado mais primitivo e negro do seu trabalho. Porém, a união da
companhia de dança com o compositor, também mineiro, só se concretizou em 1998, com a estréia de Benguelê em São Paulo. As marcações de pé, de pélvis, de ombro e o remelexo da cintura e dos quadris deixam invisível a presença da técnica clássica, sem a qual os vinte bailarinos seriam incapazes de executar a coreografia construída por Pederneiras. Os movimentos vão do festivo ao ritualístico e o figurino colorido contrasta com a ausência de cor do cenário. O espetáculo combina referências diversas, sugestão da música de Bosco, e tenta dar coesão a esse caos, formando uma nova imagem. Os ritos afros, a quadrilha, as danças dos devotos e o jogo de roda se organizam, gerando um único bloco. No final da apresentação, esse sincretismo culmina com a apresentação do congado, um dos mais tradicionais autos populares afro-brasileiros.
PE no Festival de Teatro de Curitiba No final deste mês, entre os dias 18 e 28, a capital paranaense vai sediar o 13o Festival de Teatro de Curitiba, um dos principais eventos de artes cênicas do país. O grupo Cênicas Companhia de Repertório será o representante pernambucano no evento, apresentando o espetáculo Apaga a Luz, de Ronald Radde. Os pernambucanos sobem ao palco a partir do dia 20 e fazem seis apresentações, dentro da mostra paralela do Festival, conhecida como Fringe. Eles foram selecionados junto com cerca de 140 participantes, entre mais de dois mil candidatos. Este é o segundo ano em que o grupo Cênicas Companhia de Repertório se apresenta em Curitiba. No ano passado, eles apresentaram as montagens Um Gesto por Outro e Transe. A Mostra Oficial contará com 16 espetáculos, alguns deles inéditos, como Investigações sobre o Adeus, drama de Edson Bueno e Cleide Piasecki e Fausto Zero, de Gabriel Vilella. Além das apresentações, o Festival vai promover oficinas, exposições e debates. Festival de Teatro de Curitiba – 18 a 28 de março. Ingressos: R$ 10,00 e R$ 20,00. Mais informações: www.festivaldeteatro.com.br Foto: Divulgação
Benguelê – 18 de março, às 21h, Teatro da UFPE. Ingressos: R$ 20,00 e 10,00.
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ARTES CÊNICAS 93 »
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» 94 LIVROS
Páginas de Sombra – Contos Fantásticos Brasileiros, Braulio Tavares, Casa da Palavra, 168 páginas, R$ 28,00.
Uma viagem pelas trevas Coletânea mostra que, mesmo sem tradição de literatura fantástica, o Brasil tem escritores que visitaram o gênero O escritor e compositor paraibano radicado no Rio de Janeiro, Braulio Tavares, organizou a coletânea Páginas de Sombra – Contos Fantásticos Brasileiros, para mostrar que aqui também se cultiva o gênero, embora ele mesmo reconheça que não exista uma literatura fantástica nacional. Grande conhecedor do assunto, Braulio norteou sua seleção procurando exemplos das diversas modalidades do conto fantástico. Assim, da “história de fantasma” escolhe um texto de Drummond, onde há um fantasma mofino, mas insistente. O tema dos “olhos de raio X” é apresentado por Humberto de Campos, que em vida era considerado o maior escritor brasileiro, mas que, logo depois de sua morte, em 1934, já tinha sido completamente esquecido. O “realismo fantástico” está representado pelo mineiro Murilo Rubião, naquele que provavelmente é o melhor conto do livro: “Teleco, o Coelhinho”. A presença de pessoas que deflagram processos inexplicáveis está na pequena jóia de delicadeza e horror que é “As Formigas”, de Lygia Fagundes Telles. Pena que, por problemas relativos a direitos autorais, Braulio não tenha podido incluir contos de José J.Veiga, um dos mestres do gênero, e Guimarães Rosa. De qualquer jeito, o livro Páginas de Sombra, aliás, muito bem editado e com ótimas ilustrações de Romero Cavalcanti, mostra que também no Brasil a literatura fantástica tem seus cultivadores. (MP) Continente março 2004
Estação Recife – Coletânea Poética 1 – Vários autores, Fundação de Cultura Cidade do Recife. Lançamento: Dia 23 de março, às 18h30, no Teatro de Santa Isabel,Praça da República, Recife-PE.
Coleção de poemas A Fundação de Cultura Cidade do Recife lança o primeiro volume da coletânea Estação Recife. O bom gosto editorial une-se à criteriosa seleção de poemas (e poetas) feitas por Everardo Norões, José Carlos Targino e Pedro Américo de Farias. Mas o melhor de tudo está na publicação de dois poetas praticamente inéditos e na revelação de um outro, que mora fora do Estado. Os dois primeiros são Esman Dias, excelente, e Severino Filgueira, originalíssimo, autores que permanecem desconhecidos do público em geral. O outro é Geraldo Holanda Cavalcanti, cuja Poesia Reunida foi lançada, já em segunda edição, pela editora do Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, em 1998, mas que é praticamente desconhecido em Pernambuco, sua terra natal. Estes destaques não diminuem a presença dos outros poetas da coletânea, como Alberto da Cunha Melo, Almir Castro Barros, Ângelo Monteiro, Jaci Bezerra, Janice Japiassu e Lucila Nogueira, todos com poemas de primeira qualidade. Sem falar num outro nome da maior importância: o poeta César Leal, espécie de mentor Meu lado da cama é a morte dos poetas de PerGeraldo Holanda Cavalcanti nambuco, principalmente da chamada Meu lado da cama é norte Geração 65, e que o teu é o sul minha escova de dentes é verde será homenageado, a tua a azul pelos seus 80 anos, é minha a gaveta de cima com um recital de e a toalha nova poemas durante o teu lado da cama é a noite lançamento do livro. o meu é a morte (MP)
Correspondência ilustre Imagens coletadas Este é um livro escrito a seis mãos, pois, à presença dos dois correspondentes principais, Machado e Nabuco, deve-se acrescentar a do coletor e organizador das cartas que os dois trocaram entre si, ao analisar e interpretar, com clareza e rigor, tudo que está nas entrelinhas, principalmente de Machado de Assis, pessoa por natureza tímida e reticente em opinar sobre, principalmente, suas simpatias políticas. O livro serve também para que se acompanhe a formação da Academia Brasileira de Letras e o papel dos dois grandes intelectuais à sua frente. Nabuco como agitador, propondo e hierarquizando candidaturas, Machado preocupado com o fortalecimento da instituição. Uma boa oportunidade de privar da intimidade dos dois.
Neste livro é feito um mapeamento do percurso da artista plástica mineira radicada no Rio de Janeiro, Rosângela Rennó. A partir de uma coleção de seis caixas completas de slides compradas num mercado de pulgas de Bruxelas, Rosângela desenvolveu uma obsessão por fotografias antigas, a partir das quais começou a elaborar um amplo trabalho. Fotos 3x4 para documentos, fotos de pessoas assassinadas, fotos coloridas de populares mexicanos, casais de noivos saindo para a lua-de-mel, fotos de tatuagens de detentos, fotos de militares (estas quase escondidas sob camadas de tinta vermelha), formam um painel, onde o estranhamento – pela repetição e pela despersonalização das imagens – redimensiona as imagens.
Dicionário diferente Souza, Miranda, Pinto e até mesmo o comuníssimo Silva, são todos sobrenomes de ascendência judaica. É o que prova este dicionário, resultado de oito anos de pesquisas e estudos, que analisaram 16.914 nomes diferentes. Em edição bilíngüe (inglêsportuguês), alcança cerca de 17 mil sobrenomes em 12 mil verbetes. Dividido em três partes, na primeira, segue o percurso dos judeus de Espanha e de Portugal, dos anos 700 à Inquisição e a formação de comunidades em países como o Brasil; na segunda, analisa a onomástica sefaradita, que explica a etimologia, transformação e morfologia dos nomes próprios; na terceira está o dicionário propriamente dito, com informações históricas, culturais e religiosas.
Rosângela Rennó – Rosângela Rennó, Cosac & Naify, 72 páginas, R$ 119,00.
Dicionário Sefaradi de Sobrenomes – Guilherme Faiguenboim, Paulo Valadares e Anna Rosa Campagnano, Frahia, 528 páginas, R$ 140,00.
Poesia experimental
Economia da arte
Feminismo involuntário
Este livro traz parte de um poema experimentalista do pernambucano Delmo Montenegro, que transpõe para um plano narrativo mítico, personagens e a cidade do Recife, numa obra in progress. Fundindo tempos e espaços, Delmo faz uma hibridização de gêneros, unindo formas épicas com a narrativa de um “romance de formação” e utiliza um vasto repertório de poesia gráfica, indo dos caligramas de Símias de Rodes, do século 3 a.C., até os dadaístas. Poema épico e lírico, ao mesmo tempo, Delmo, no dizer do poeta e crítico César Leal, que assina o prefácio do livro “rompe com o conservadorismo artístico do Recife (...) fazendo reconhecer que a epopéia propriamente dita está presente hoje mais nas formas experimentais”.
Em A Produção da Crença, o sociólogo Pierre Bourdieu dessacraliza o negócio da arte, expondo os mecanismos que fazem, entretanto, sua especificidade: os fabricantes de arte (escritores, pintores, dramaturgos) têm uma relação especial com os banqueiros da arte (editores, marchandes, produtores) e com os consumidores, onde todos proclamam desprezar “o vil metal”. O jogo no final dá certo, pois todos acreditam na mentira. A tensão maior fica por conta da luta entre dominantes e pretendentes. Como este, instigantes, outros dois ensaios compõem o livro, todos escritos nos anos 70: um sobre a alta costura e outro sobre dominação.
Em Dalai Lama, Meu Filho, Diki Tsering desmistifica as origens de Sua Santidade, como ela mesma chama o filho. Sua autobiografia é uma espécie de As Boas Mulheres da China do mundo ancestral. O que a chinesa Xinran faz por suas compatriotas, Diki faz pelas mulheres tibetanas, oprimidas pela cultura patriarcal. Mas parece que ela não teve essa consciência. A sua visão sobre a vida dura que levou, trabalhando no campo de sol a sol, passando fome, tendo filhos levados por “espíritos maus”, submetendo-se às hipocrisias do poder tibetano, já como “avó do Tibete”, é comovedora. Sua intenção não é denunciar, mas a realidade subjacente à narrativa é eloqüente. Morreu exilada na Índia.
A Produção da Crença – Contribuição para uma Economia dos Bens Simbólicos – Pierre Bourdieu, Editora Zouk, 224 págs, R$ 29,00.
Dalai Lama, Meu Filho – Diki Tsering, Ediouro, 182 páginas, R$ 29,00.
Machado de Assis & Joaquim Nabuco – Correspondência – Org. Graça Aranha, Top Books/ABL, 256 páginas, R$ 39,00.
Os Jogadores de Cartas – Delmo Montenegro, Edições Bagaço, 158 páginas, R$ 20,00.
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ÚLTIMAS PALAVRAS
Rivaldo Paiva
As poucas sobras de 64 Só nos resta uma tempestade de liberalismo para salvar
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ara mim, jovem sonhador, há 40 anos, ainda não tinha lido Doris Lessing, mas tinha o penhor da liberdade e revelava o retrato do idealismo daquela juventude filha da paz e do amor. Nada sabia sobre que éramos uma ilusão - pois, como pregavam os cubistas, a então esquerda era exatamente isso, quando imaginava as “cerdas eriçando em alguns cangotes” – simplesmente não existíamos. O sabonete Lever cheirava e amaciava a pele de nove entre dez estrelas do cinema e naquele dia, 1º de abril, acordaram-me dizendo que havia serpentes verdes escondidas sob as atapetadas gramas de jardins das praças do meu Brasil – era o dia da mentira, no entanto, para desconforto de Virgílio (70-19 a.C.), não passavam apenas de robotizadas e inofensivas serpentes, guarnecidas em suas voltas por caminhões militares e tanques de guerra escamoteando seculares paralelepípedos, “carrapetados” de soldados rastejando sem pensamentos, num cenário metamorfósico. Haveria resistência a um golpe da direita contra um governo eleito pelo povo dito da esquerda? Direita e esquerda – uma invenção que só Bobbio explicou. A ilegalidade estava sendo posta à prova. Seríamos nós uma esquerda imaginária, dando procuração ao Exército brasileiro para fazer uma revolução contra o País? Ensaia-se, então, uma resistência – partisans de ouvidos colados nos imensos rádios de válvulas marcianas instalados nas esquinas dos botecos e bancas de bicho. As famílias, pasmem, de classe média – imbatíveis sempre na formação de opiniões – fechavam os basculantes das janelas de suas casas e, reunidos, desfiavam jaculatórias em nome da fé na tradição da família e propriedade. Bisonhas e líricas eram as idéias ou ideais, que para a maioria da população significavam sinônimos de burrice. Ainda não havia para mim carrinhos de controle remoto nem rádios portáteis ao meu alcance – televisão só a do bondoso vizinho, permitindo-nos assistir ao seriado Jim das Selvas seguido pelo Repórter Esso – a testemunha ocular da história. Um encontro da ficção huxleyana onde o corajoso
Continente março 2004
e musculoso Weissmuler dava-nos ares do “é tudo ou nada” com a realidade de um possível confronto civil. As notícias chegavam romanticamente e cadê reação? Brizolla acantonou-se nos pampas e jurava defender o cunhado Jango até a morte – ainda vive, e reclamando. Por outro lado, Lacerda se encarcerava no Palácio Guanabara exibindo uma metralhadora pendurada em seu suspensório, tal Elliot Ness, prometendo atirar nos comunistas, porventura até papangus ou bichos-papões que aparecessem. Não atirou nem nos passarinho das Laranjeiras. Finalmente, quem estava brigando contra quem, por que e para quê? As Minas Gerais ouriçavam com o eriçamento de outro javali, o general Mourão, para delírio do marreco Magalhães – governador das finanças de Lincoln Gordon e Vernon Walters. No meu Recife, Arraes caiu no conto do general Justino e balbuciou do Palácio das Princesas que dali não saía, só morto. Saiu e ainda fuma seus cubanos. Quem sabia dos 2 bilhões de dólares ianques que seriam emprestados ao Brasil para que não se fizessem as tais reformas de base? – para as Ligas Camponesas de Julião a reforma agrária viria com a união dos peões das zonas da Mata rurais por aí afora. Um porta-aviões norte-americano, o Forrestal, boiava no nosso mar territorial nordestino e um show de grandeza materialista fez com que nós nos considerássemos as, ainda hoje, vítimas de uma ditadura que duraria por longos 24 anos. Depois dessa explosão temática, digna dos capitalistas Magics Kingdoms, o que sobrou? A globalização neoliberal, a decepção dos idealistas que pensavam que os pelegos de Jango – aí já com o apoio de JK, o mesmo Lacerda, Arraes, Brizolla, Prestes e outros mais – dariam a volta por cima. Mas, aqueles jovens que se escaramuçaram pelos países vizinhos, e de além-mar, perderam boa parte de suas vidas, seus encantos e, hoje, concordo com Jabor, de que só nos resta uma tempestade de liberalismo para salvar, como escreveu Oswald de Andrade, essa “bosta mental sul-americana”. • Rivaldo Paiva é escritor.