Foto: Hans Manteuffel
EDITORIAL
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Lenine: a música é seu passaporte
Antropófago contemporâneo
O
compositor Lenine não cita diretamente seu quase xará Oswald de Andrade, na entrevista que deu para esta edição de Continente, mas, num discurso eivado de referências pop-pós-moderno-bakuninianas, revela a gênese antropofágica de sua música: a deglutição de gêneros, estilos e informações locais e universais, cujo processo digestivo resulta numa obra original e contemporânea. Recifense do bairro da Boa Vista, Osvaldo Lenine Macedo Pimentel, filho de pai comunista e mãe católica, aprendeu desde cedo a misturar contrários e produzir daí uma nova substância, habilidade aperfeiçoada no curso de Engenharia Química abandonado pela alquimia dos sons. Depois de ingerir, na adolescência, quantidades pantagruélicas de rock internacional, descobriu, meio espantado, que trazia gravadas no DNA cultural as sonoridades escutadas na infância, que incluíam Luiz Gonzaga e, especialmente, Jackson do Pandeiro. Sempre misturando fontes e influências, o artista, que há 25 anos migrou para o Rio, construiu, passo a passo, uma carreira que parece ter alcançado agora o ápice, em
plena maturidade. Atualmente em turnê pela França, onde faz apresentações e grava CD e DVD, Lenine tem se apresentado em diversos países, o que o leva a proclamar: “A música é meu passaporte”. E pela quantidade de vistos no documento, alcançou reconhecimento internacional. O sucesso, entretanto, não inibe a crítica à indústria fonográfica em seu relacionamento com os artistas, a seu ver desequilibrado, o que o leva a empunhar a bandeira de mais poder para os criadores. Outro tema desta edição é o anúncio, pela Agência Espacial Americana (Nasa), de indícios de água em Marte, o que estabelece a possibilidade de ocorrência de vida no planeta vermelho. E levanta toda sorte de especulação e indagação filosófica a propósito da origem da vida e o funcionamento do universo, numa estimulante revivescência das questões metafísicas que, desde a Antigüidade, espicaçam a mente humana. De quebra, remete a questionamentos sobre o papel da ciência, o lugar que nos cabe na imensidão do espaço e as conseqüências da eventual migração do bicho-homem para outros ambientes planetários. Boa leitura. •
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CONTEÚDO » 36
Foto: Nasa/JPL
Foto: Hans Manteuffel
Lenine: criador versus mercado
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Marte e as origens da vida
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CONVERSA
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56 A gênese do espírito revolucionário de Che Guevara
08 Escritor africano refaz a rota Brasil-África »
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ESPECIAL
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CINEMA
12 Água em Marte traz de volta a questão
60 Marlon Brando e Doris Day: as duas faces
das origens da vida
de Hollywood Hilton Lacerda, o homem por trás dos filmes de Pernambuco
LITERATURA 22 A força do conto no panorama da nova literatura brasileira Antes do sucesso, Lya Luft já tinha seu lugar garantido Davi Arrigucci Jr. escreve narrativa com significados ocultos Poeta português fala de um homem incerto num dia qualquer
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mesmo espetáculo Cláudio Aguiar analisa o teatro de Franklin Távora
CAPA
TRADIÇÕES 82 Arcoverde constrói nova identidade através do coco
36 Lenine: "Sem o compositor, gravadoras e rádios não existem"
TEATRO 74 Cantos palestinos e israelitas juntos no
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REGISTRO
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AGENDA 88 Música, teatro, dança, fotografia, cinema e literatura
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ARTES 48 A pintura contundente e combatente do cidadão Siron Franco
Continente abril 2004
Agenda atualizada semanalmente no www.continentemulticultural.com.br
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Foto: Alcir Lacerda/Divulgação
Reprodução
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A pintura revoltada de Siron Franco
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Alcir Lacerda expõe na Torre Malakoff
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Colunas »
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Os internautas brasileiros num futuro próximo
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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 Querer trabalhar é um grande pecado para o MinC?
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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 54 O ímpeto e a audácia de Oscar Niemeyer aos 96 anos
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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 68 A história do carneiro na culinária brasileira
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 71 Adeus, infância
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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 O duro preço a pagar para assistir a um bom filme
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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Que reino é esse?
Continente abril 2004
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CRÉDITOS Cartão de visitas Cada vez que chega uma pessoa amiga ao Recife, tenho o maior prazer de apresentar nossa Continente Multicultural, revista que tem me apresentado tanta coisa importante e bela . Parabéns! Cristina Lyra, Recife/PE
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Diretor Industrial Altino Cadena Rui Loepert
Continente
Multicultural
Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Luiz Carlos Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Colaboradores Alexandre Figueirôa, André de Sena, Camilo Soares, Everardo Norões, Fábio Lucas, Fernando Monteiro, Francisco de Morais Mendes, Iêdo de Oliveira Paes, João Câmara, João Esteves Pinto, Lauro Lisboa Garcia, Luciano Trigo e Micheliny Verunschk Colunistas Alberto da Cunha Melo, Carlos Alberto Fernandes, Ferreira Gullar, Joel Silveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524 ; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533 ; fax: 3222.4130 ; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista
Continente abril 2004
Abril Ano 04 | 2004 Capa: O cantor e compositor pernambucano Lenine Foto: Hans Manteuffel
Prazeres renovados Picasso, Octávio Paz... Os prazeres continuam se renovando a cada edição dessa revista, que tanto orgulha a nós pernambucanos. Presentear alguém com uma assinatura é uma excelente sugestão! Parabéns a vocês todos. Rosa Pereira, Recife/PE Distribuição Na primeira semana de março deste ano, aproveitei uns dias de descanso para conhecer a Costa do Sauípe. No lobby do Hotel Sofitel Costa do Sauípe encontrei um exemplar da Revista Continente Multicultural de outubro de 2003. Excelente! Gostei dos temas, abordagens, conteúdos de alto nível. Fiquei surpresa, pois moro em São Paulo (capital) e não me lembro de ter visto ou ouvido qualquer comentário sobre este periódico. Na pequena vila local, assim como na praia do Forte, procurei comprar um exemplar, de qualquer mês. Não havia. No aeroporto de Salvador fui informada de que eles receberam a Revista durante algum tempo, e não recebem mais. Chegando a São Paulo, passei pela “La Selva” do aeroporto e qual minha surpresa por não encontrar. Na Saraiva também não conheciam. Como acho muito importante a divulgação das boas coisas, e como temos poucas publicações desse nível, seria ótimo se vocês distribuíssem por aqui também. Parabenizando toda a equipe pelo ótimo trabalho, aguardo indicação de onde poderei comprar exemplares aqui em São Paulo. Solange Pasquale de Mello Freire, São Paulo/SP Grande cômico Prezados senhores, gostei muito da matéria sobre o Carlitos, na edição de dezembro passado. Gostei particularmente dos artigos de Fernando Monteiro e Bráulio Tavares. O primeiro dizendo justamente o que eu acho que deve ser respondido aos que dizem que Chaplin não foi um cineasta inovador. Ora, ele não precisava inovar coisa nenhuma em matéria de cinema, já que era, acima de tudo, um grande cômico, e é isso o que realmente tem importância na sua obra. O segundo porque levantou uma questão de estética visual originalíssima. Parabéns. É com diferenciais assim que a Continente vem se destacando no jornalismo cultural do País. José Amaro Bezerra, João Pessoa/PB
CARTAS Enganação A única coisa que me agradou na matéria de capa da Continente de janeiro, foi terem dito que Clarice Lispector é “uma religião literária”. Porque todo mundo que eu conheço e que gosta da tal escritora tem total fanatismo por ela e não possui o menor senso crítico. É realmente “uma religião”. Acho Clarice uma escritora chatíssima. Mais uma enganação nesse terreno baldio em que se tornou a literatura brasileira. Acho uma perda de tempo e espaço precioso, uma revista como essa dando tanto destaque a essa dona. Sebastião Elias de Brito, Brasília/DF
Abelardo Teve uma matéria que me deixou feliz ao abrir a Continente No 36. Foi “A arte, depois de Abelardo”, sobre o grande artista de Pernambuco que é Abelardo da Hora. Sugiro que façam uma Continente Documento sobre ele agora em 2004, quando completa 80 anos. Abelardo faz parte da história do Estado e merece. Por seu trabalho como artista, como professor de tantos outros que hoje estão famosos, e também por seu profundo interesse nas questões sociais. Fica a sugestão. Coriolano Santos, Recife/PE.
Destaque Muito bom o destaque dado na Continente Multicultural de janeiro ao maestro e compositor pernambucano Marlos Nobre. Ele é um dos nomes mais importantes da música erudita no mundo. Pena que um Estado tão rico musicalmente e que inspira suas composições, ainda consiga ignorá-lo, o que reputo um absurdo. Antônio Carvalho, Olinda/PE Sabor de filme Recebi a Revista Continente nº 39 de uma amiga. Já a conhecia de nome, porém, nunca a tinha lido. Gratificou-me a sua leitura. Como gosto muito de cinema, impressionou-me (imaginem!) exatamente “Sabores Pernambucanos”: o flash back de filmes inesquecíveis, com a devida intertextualidade de tema/cenas costurando A Comilança, de Marco Ferreri, essa “parábola sobre a comida”, e o parágrafo final em que a reflexão sócio-filosófica da autora alerta – apesar de tudo – para a esperança proporcionam o que chamamos de prazer da leitura. Parabéns, Lecticia. A sua coluna excede a gastronomia, é pura cultura. Macário Granja – Recife
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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax Paz 2 Magnífica a matéria sobre os 90 anos de Octavio Paz, na edição de março desta Revista maravilhosa. Sou admiradora ferrenha desse que é um dos maiores ensaístas da literatura mundial. Helena Padilha, São Paulo/SP Aplausos Parabenizo os Editores dessa Revista pelo espaço aberto à cultura pernambucana. Sua ampla divulgação sempre foi um anseio de nossos artistas. O esmero gráfico, a tiragem e, principalmente, a qualidade do conteúdo informativo e educativo merecem nossos aplausos e sinceros agradecimentos. Romero Amorim, Recife/PE
Paz 1 Parabéns a Pernambuco pela excelente Revista. Li pela Internet o número sobre Octávio Paz e achei uma das melhores edições. Parabéns também pelo texto sobre Picasso no qual descreve seu comportamento com as suas mulheres. Uma beleza de texto. No entanto fico triste por não encontrar a Revista nas bancas de Brasília. Diniz Imbroisi, via e-mail
Novo olhar A Continente é instigante, enriquece a historiografia e a cultura pernabucanas e, certamente, é um valioso instrumento de pesquisa. Seus textos não se detêm apenas no “ver”, mas, através de perguntas e sugestões, nos faz olhar de vários e novos ângulos e nos deixa atentos ao fenômeno humano. Talmon Trajano, Olinda/PE Equilíbrio e sensatez Cumprimento o professor Denis Bernardes pela matéria sobre 1964. Apesar da repulsa pelas arbitrariedades e pelo mal político causado pela ditadura – que até hoje incomodam – , confesso que a matéria, por seu equilíbrio, verdade e sensatez, deixou-me com o senso crítico mais racional, menos exarcebado. Um bom veículo de comunicação provoca isso. Domingos Oliveira, Recife/PE Primeiro Emprego Conheci a Revista recentemente e li os dois últimos números. Li também pela Internet o artigo do colunista Carlos Alberto Fernandes falando sobre a falta de perspectivas para os jovens no futuro. A propósito tenho uma informação, noticiada na CBN: o programa Primeiro Emprego do Governo Federal que pretendia gerar 137 mil postos, principalmente para a população jovem, não atingiu a marca dos 2 mil. O governo, para este ano, ampliou o programa para as pessoas com 2º grau completo o que, talvez, possa aumentar o número de ofertas de emprego. Mas, quem vai empregar neste momento de juros a 16,25%? Parabéns pela Revista. Márcio Leão, via e-mail
Continente abril 2004
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CONTRAPONTO
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Carlos Alberto Fernandes
Tempo esgotado As mudanças de valores na era da tecnologia
última mudança na consciência humana ocorreu no início da era moderna, com a ascensão da classe burguesa, da produção e do consumo de bens. Produto de um capitalismo incipiente a burguesia foi destacada empreendedora e grande acumuladora de capital. Seus integrantes pregaram o evangelho do materialismo e exaltaram as virtudes da propriedade privada. Hoje, embora a propriedade privada continue sendo o valor central da sociedade, sua importância começa a se alterar. O acesso a bens apresenta-se como mais importante do que a propriedade. A posse do capital físico, que foi extremamente importante na era industrial, torna-se cada vez mais marginal ao processo econômico. Paradoxalmente, a mudança na ênfase dos valores materiais para os valores imateriais está sendo provocada pela tecnologia. Não é à toa que as empresas estão vendendo seus imóveis, reduzindo seus estoques, alugando seus equipamentos e terceirizando suas atividades numa corrida para se livrar do ônus de ter bens materiais. Ter coisas já não é bom negócio e está fora de moda. A riqueza já não se concentra no capital físico, mas na imaginação e na criatividade humana. A felicidade não mais está relacionada ao patrimônio real, mas ao patrimônio virtual. Nesse aspecto, dado o esgotamento do modelo de consumo de bens materiais, a cultura e as experiências de vida se sobressaem como os novos desejos do mercado consumidor, particularmente dos jovens, mesmo em condições extremas de apartheid social, como se configura a realidade brasileira. Prá dizer que não falei de flores, trata-se da inclusão do novo modelo de marketing social do mundo desenvolvido que é levado a todos os recantos do planeta. Nesse mundo novo, os costumes, as convenções e as tradições já não são levados em consideração porque já não há mais tempo disponível para o cultivo desses valores. E, como ocorre no mundo desenvolvido, a tecnologia e a economia global farão mudar, queiramos ou não, o comportamento dos incluídos, e mesmo dos muitos excluídos desse novo mercado de possibilidades de acesso a coisas e sensações. Ilustração: Mascaro
A
A despeito das diferenças econômicas e sócio-culturais, eles participam de um mundo acelerado e em constante mudança. Tal como os americanos já parecem hoje, segundo Jeremy Rifkin, creio que os internautas brasileiros num futuro próximo também serão identificados pelo seguinte perfil: 1. Irão crescer num mundo de emprego just-in-time e deverão se habituar à flexibilidade dos contratos temporários. 2. A tendência é que a vida deles seja bem mais instável e móvel e menos consolidada do que a de seus pais. 3. Serão mais executores do que ideológicos e provavelmente pensarão mais em termos de imagens do que de palavras. 4. Embora menos capazes de formar uma sentença escrita, certamente serão mais competentes para processar dados eletrônicos. 5. Tenderão a ser menos analíticos e mais emotivos e estarão muito mais preocupados em serem criativos do que produtivos. 6. Consideram os shoppings centers como espaços públicos e irão comparar a soberania do consumidor com a democracia. 7. O mundo deles será menos delimitado e mais fluido e estarão mais preocupados com o processo do que com o produto. 8. Podem estar menos interessados em história, mas são obcecados por estilo e moda, viagens, lazer e prazer. 9. São mais experimentais e gostam mais de inovações na medida em que experimentam novas formas de ser e de viver. 10. Mesmo crescendo no mundo dos hipertextos e dos links de websites, eles têm uma percepção da realidade que é mais sistêmica e participativa do que linear e objetiva. No Brasil, onde as contradições sociais, a cada dia, tornam-se mais gritantes, resultado de uma profunda desigualdade social, uma nova geração afluente, constituída por cerca de 15 milhões de internautas, já incorpora esse perfil. Diante disso, o grande desafio é iniciar um processo de inclusão da massa excluída que, a despeito de sua condição social, têm que ingressar nessa onda, por ser ela o único caminho que pode levar ao conhecimento sustentável. E aí, mesmo na onda, não se pode esperar que o segmento apartado ignore o sonho dourado de ter também a posse de bens materiais, considerando que o tempo de esperar que algum milagre aconteça está esgotado. • Carlos Alberto Fernandes é economista e diretor-geral da Continente Multicultural. Continente abril 2004
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CONVERSA
Fotos: Divulgação
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O
escritor togolês Kangni Alem vai pesquisar no Brasil o tráfico humano feito por ex-escravos, “um tabu na África” e que será tema de seu segundo romance, Tempos de Caravelas. Nessa estada, buscará os liames perdidos do que chama de “paradoxos de idas-e-voltas entre África e Brasil”, mas não está interessado em “fazer comparações”. Nascido em 1966, Kangni Alem vive desde 1992 na França, onde fez doutorado em Literatura Comparada, exilado da ditadura Gnassingbé Eyadema, no poder no Togo há 37 anos. Autor de peças teatrais e ensaísta, seu primeiro romance, Cola Cola Jazz, medita sobre o fio de identidade, perdido no labirinto do mundo das grandes cidades. Antes de viajar para o Recife, onde participaria do seminário “Francofonia e Diversidade Cultural”, promovido pelo Consulado da França, concedeu, na capital francesa, esta entrevista, em que revela a curiosidade em verificar se a cultura africana deixou digitais duráveis e visíveis deste lado do Atlântico. Camilo Soares, de Paris
KANGNI ALEM
Atrás dos paradoxos afro-brasileiros
CONVERSA
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Foto: Camilo Soares
Por que o Brasil, para ambientar esse segundo romance? Faz 15 anos que penso fazer um livro que se passe no Brasil. Há uma grande e influente comunidade de afrobrasileiros no Togo. Nosso primeiro presidente, Silvano Olímpio, que foi assassinado, foi afro-brasileiro. São exescravos que retornaram após a abolição e logo se lançaram no comércio de grande escala. A família “de Souza”, por exemplo, foi a primeira a implantar uma cultura de coco e explorar seu óleo. Esses brasileiros foram fundadores de três cidades: Porto Novo, Grand Popo e Petit Popo. No entanto, eles foram endemoniados pela ditadura, pois são adversários. O que me interessa é falar dessas famílias e da contribuição que elas trouxeram para nossa cultura e nossa vida intelectual. Que contribuições foram essas? Além da influência na política e economia, eles trouxeram a arquitetura do Brasil colonial, a música e a comida. A tapioca veio do Brasil. Não havia mandioca na África. Inclusive muita gente se intoxicou no começo com a raiz. Temos também a Burrina, um carnaval funerário influenciado pela festa brasileira. E a ficção, onde ela entra, dentro desses parâmetros históricos? Eu utilizo muito pouco os documentos históricos para escrever. Apenas quando falam de uma família que me interessa. Não quero polemizar com os historiadores, que são bem mais entendidos do que eu. Mas tenho a impressão de ter a verdade de meu lado, pois a ficção vai além da história.
”Além da influência na política e economia, os afro-brasileiros trouxeram a arquitetura do Brasil colonial, a música e a comida. A tapioca veio do Brasil. Não havia mandioca na África. Inclusive muita gente se intoxicou no começo com a raiz”
Então, essa história afro-brasileira fala de que verdades? O livro narra um confronto entre uma família afro-brasileira e um nobre escravagista. Esse nobre vendeu-os como escravos. Para se vingar, os abolidos escravizaram esse nobre e o embarcaram para a América. Falar de escravidão é tabu na África. Ninguém fala. Dizem que é coisa só para historiador. Meu livro conta eventos que atravessam dois séculos, de 1842 a 1992, o que vai me permitir esclarecer muitas coisas e tocar em alguns mitos, como a escravidão de africanos por ex-excravos. Como todo mito, é verdade e, ao mesmo tempo, não é.
Continente abril 2004
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10 CONVERSA
Quais são as expectativas quanto à viagem ao Brasil? Já comecei a escrever Os Tempos das Caravelas... Certo hora achei um tanto estranho falar de um lugar que só conhecia por documentos. Não queria cair nos clichês, tipo Carnaval e comida da Bahia. Quero ver se a cultura africana deixou digitais duráveis e visíveis. Sei que a religião afro no Brasil é bem avançada. No Togo, o vodu levou bem mais tempo para superar o preconceito do que o candomblé no Brasil. Eu mesmo tinha medo de passar perto de uma cerimônia. Hoje até vou ver, por curiosidade intelectual. No Rio, pode ser chique dizer que participa de terreiro. No Togo há mais reticência. O que gostaria é de encontrar esses paradoxos de idas-e-voltas entre África e Brasil, e não fazer comparações. Que papel tem a literatura num país que atravessa 37 anos de ditadura? Esse livro me permite descobrir a multiculturalidade que o discurso oficial quer apagar, falando em coisas como cultura única. Na escola, a cartilha de história do Togo começa em 3 de janeiro de 1967, quando Eyedemar chegou ao poder. Apagaram o Silvano Olímpio, que liderou as tropas pela independência do país. Era como se apagassem o de Gaulle da história da França. Eyadema, ditador do Togo, reprimiu os descendentes de brasileiros
Já no seu primeiro livro, Cola Cola Jazz, que narra a aventura de uma francesa mestiça que viaja à África para conhecer seu pai, a busca pelas raízes está lá. É um tema recorrente. A perda de memória é um problema do mundo atual? Perdemos enormemente nossa memória. Hoje, a história muda rápido demais. A urbanização nos obriga a fazermos gambiarras com nossas tradições. Se fomos ao Mali e perguntarmos aos jovens quem foi Soundiata Keita (rei mítico do Império de Mali), mesmo que reconhecessem o nome, não saberiam contar a história. Acho que é uma pena, pois é nos detalhes onde está a verdadeira história. Eu mesmo sei que perdi muito de minha memória, por isso que escrevo. Em Cola Cola Jazz, sua literatura não cai no engajamento panfletário. Apesar da realidade ser imponente, são os questionamentos individuais que ficam em primeiro plano. Se contasse simplesmente a história geral, não haveria grande coisa para acrescentar ao que sabemos. Para mim, o importante é como as pessoas vivem a história. É na travessia da vida dos indivíduos que se encontram as coisas mais essenciais. Duas pessoas não vivem a decadência da mesma maneira. Se, na pobreza, admiramos o alto, é a miséria que alimenta a riqueza. Fotos: AFP
Seu primeiro romance foi baseado numa música de Duke Ellington, Togo Brava Suíte. Como se deu essa transição para as palavras? Foi mais intelectual. Duke Ellington foi convidado ao Togo e, como não pôde ir, compôs essa música como uma forma de desculpas. Numa parte da letra diz, “Agora, entramos na selva”, e até hoje me pergunto onde ele encontrou selva no Togo. Como ele nunca tinha posto os pés lá, caiu no clichê da África, no imaginário ocidental. Se, no entanto, ele tivesse ido para lá e visse nossa ditadura, iria encontrar uma selva mais terrível do que a que imaginou.
CONVERSA 11
Tempo de Ca ara avela as Trecho do romance, em escritura
Duke Ellington viu o Togo pelo imaginário ocidental
TOGO
“Pois tinha atrás de mim nomes de glória, nomes ilustres para lhe colocar em plena vista... começando pelo meu e, então, esses de Bonito, Elpídio, Ovídio, Fabiano, Jacinto, Otelinda, Otávio, Augustino, Idelfonso, Militão, Vitório, Balbino, Felício, Juvíncio, Chaparita, Charita, Chariquinha, Feliciano, João, Rogério, Cosmão, Faustino, Joãozinho, Herculano, Jovino, Sinfônio, Imelda, Figueira, Vieira, Baeta, Freitas, Pinto, Davídio, Amorini, Sacramento, Gonçalves, Gomes, da Cruz... punhados de nomes que lembram nosso doloroso passado no Novo Mundo, em tempos de um Portugal no auge do esplendor brasileiro e nosso retorno à terra das origens, ao lado de nossos irmãos ficados na obscuridade de fetiches e sem um vintém furado. É uma vontade de terra que nos levou, gloriosos herdeiros de antigos escravos, para essa mesma costa atlântica de onde partiram no século 16, nos negreiros portugueses, nossos ancestrais do Sudão, do Congo, da Guiné e Zâmbia. Digo eu, Candinho Santana, filho de Papa Santana, presidente da Associação de Mestiços Afro-Brasileiros, bisneto de Félix Santana, morto em 1811, o qual foi capitão das milícias negras e maestro de orquestra em Salvador, digo à plebe de prepúcio mal cortado, essa bosta da humanidade que se diverte com minhas desregulações hormonais: deitado! E que servimos uma caipirinha bem dosada, como as que preparava Papa Santana nos dias de grande nostalgia”. Kangni Alem, Le Temps des Caravelles , romance, inédito. Tradução: Camilo Soares
Vai escrever Tempos de Caravelas inspirado num ritmo brasileiro? Vou, talvez, inspirar-me na Bossa nova, pois é o cruzamento de várias culturas. A música está em tudo que faço. O Togo é um pequeno país da África ocidental com área e população correspondentes mais ou menos à metade de Pernambuco: 56.785 km2 e 4,4 milhões de habitantes. É uma estreita faixa de terra, espremida entre Gana e Benin, banhada pelo Golfo da Guiné, região para onde retornaram muitos exescravos brasileiros, no século 19. (Ver reportagem sobre os agudás, de Benin, na Continente nº 36). Togo, cujas línguas oficiais são o francês, o cabiê e o euê, foi possessão alemã, francesa e inglesa, tornando-se independente em 1960. Desde 1967, é governado pelo ditador Gnassingbé Eyadema.
Toca algum instrumento? Tenho que admitir que sou um músico frustrado. No ginásio, queria ser cantor, mas essa idéia foi rapidamente desencorajada. Tinha um professor que me proibia de chegar perto do piano. Como está o cenário da atual literatura africana? É melhor ser músico africano. Rende mais. • Camilo Soares é jornalista. Continente abril 2004
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12 ESPECIAL
Marte
O enigma da vida Indícios de água em Marte, encontrados pela Nasa, trazem à tona a questão da origem da vida e os dilemas filosóficos sobre a criação do Universo Fábio Lucas
Foto: Nasa/JPL/Divulgação
A
creditamos um dia que os deuses estavam nas florestas, nos animais, na água, no fogo, na terra e no ar – menos em nós. Acreditamos um dia que éramos filhos de deuses. Mais tarde acreditamos que tudo era uno, indissociado da fonte primordial de que emanavam os seres, e chamamos essa fonte simplesmente de Deus. Um dia acreditamos que a Terra era plana, e que no final do horizonte havia um abismo, e que no abismo despencaríamos, se viajássemos até lá. Acreditamos que além-mar habitavam monstros, quimeras associadas à distância e ao desconhecido. Acreditamos que o nosso planeta era o centro do universo, morada nobre da criação, por sermos nós os donos da casa. Muitos mistérios permanecem em seu lugar de origem, milhares de anos depois que demos início à nossa saga. Um deles nos diz respeito diretamente. Continente abril 2004
Foto: Arquivo pessoal
ESPECIAL 13 »
Lapierre: “Água em Marte torna próximo passo excitante”
Terreno a sudoeste do ponto de pouso da nave Spirit
De que matéria é feita a vida? Que sopro nos permite existir, descrever a existência, e questioná-la? O que somos nós, afinal? No rastro da caça aos fundamentos da vida, pouca coisa inspira mais a imaginação do que a possibilidade de vida extraterrestre. Com a confirmação, pela Nasa, de indícios de água em Marte – após mais de um século de especulação – a inspiração ganha força e reintroduz a curiosidade na exploração espacial. E ainda que os gastos enormes com sondas, foguetes, naves e robôs venham sempre a ser alvo de críticas, o ímpeto que nos lança para outras órbitas não parece que, tão cedo, irá cessar.
Como atesta o astrônomo Pascal Lapierre, do Laboratório de Biologia Molecular e Celular da Universidade de Connecticut (EUA): “Agora que temos provas da existência passada de água em Marte, o próximo passo será enviar missões com a tarefa específica de procurar indícios de vida. E isso será excitante!” Mas o que muda, de fato, com a perspectiva de vida em Marte – e portanto em qualquer outro planeta? Deixaremos finalmente de ser o centro do universo, eliminando os vestígios da concepção antropocêntrica? O que representa a vida sem seres humanos para nós, que nos consideramos o grau máximo da evolução da vida? Para quem estuda objetos grandiosos e distantes como as galáxias, as questões colocadas pela novidade marciana não são tão novas assim. Eduardo Telles, por exemplo, astrônomo do Observatório Nacional, lembra que a evolução do universo independe da existência de vida. “A vida é formada num estágio extremamente avançado da evolução do universo”, afirma Telles, “e apesar da matéria-prima ter origem estelar, o possível surgimento de vida depende de condições microscópicas muito particulares e relativamente improváveis”. Segundo ele, a descoberta de água em Marte pode reforçar a hipótese de que a vida na Terra teve origem extraterrestre. Mas apenas se a água for de fato um elemento intrínseco à vida no universo. Poderia ser de outra forma? Para Pascal Lapierre, sim. “Acreditamos que a água seja eleContinente abril 2004
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mentar para a vida provavelmente por causa da biosfera que temos aqui, na Terra”, pondera. “Não possuímos nenhum exemplo de vida que não use água para se manter viva. A evolução sem água, do nosso ponto de vista, é altamente improvável... mas não é impossível”, diz Lapierre. Para ele, é muito cedo para a raça humana especular sobre qual seria a chave da vida – seja a água, seja o DNA. “Primeiro precisamos encontrar evidência de vida fora da Terra”, argumenta o biólogo molecular. O filósofo Osvaldo Pessoa Jr., da USP, também duvida de que a água e as moléculas de DNA e RNA sejam as précondições oficiais para a vida em todo ponto do universo. “Será que poderemos prever os diferentes tipos possíveis de vida que existem em outras estrelas?”, indaga o filósofo. Eduardo Telles admite, por sua vez, que as condições físicas especiais necessárias ao surgimento da vida a tornariam um evento de baixíssima probabilidade. O que aumenta as chances de ocorrência é um dado conhecido hoje por qualquer criança em idade escolar: há centenas de bilhões de galáxias no universo, cada uma com centenas de bilhões de estrelas que poderiam, em tese, abrigar sistemas planetários como o faz o nosso Sol. “Isso não implica que as condições ideais para vida possam ser encontradas em nossa vizinha galáctica com facilidade”, adverte, “e talvez não as encontremos jamais”.
Foto: Arquivo pessoal
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John Rummel: “Se a origem da vida foi em Marte, não é problema – poderíamos ser todos marcianos!”
Lapierre aposta no inverso: a vida pode ser comum até dentro do nosso Sistema Solar. Segundo ele, estudos demonstram indiretamente que a vida na Terra pode ter surgido tão logo as condições ambientais o permitiram, sem precisar de centenas de milhões de anos para evoluir. E além disso, a vida está por toda parte à nossa volta, preenchendo os mais impensáveis nichos ecológicos, desde a alta pressão da crosta terrestre até locais com alto nível de radiação. “Se a vida aparece rapidamente (e talvez facilmente) na Terra, e é capaz de ocupar ambientes tão diversos, por que não se daria o mesmo em qualquer lugar do universo?”, pergunta Pascal Lapierre. Para John Rummel, do Marine Biological Laboratory, um centro de pesquisa e ensino de biologia, biomedicina e ecologia em Massachussets (EUA), a vida deve ser um fenômeno usual no universo, porque “os
Foto: Nasa/Reuters
Em Marte, o robô Rover em ação
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Foto: Nasa/JPL/Divulgação
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A descoberta de que a vida na Terra veio de fora seria algo interessante, porém apenas iria transferir a fonte do mistério. “Como” e “onde” a vida começou permanece o mesmo enigma – assim na terra como no céu Operários fazem os últimos ajustes na espaçonave Mars Exploration Rover
processos que conduziram à vida na Terra acontecem em muitos outros lugares”, assegura. “Se não fizemos contato nem visitamos outras estrelas, é outro problema. Porque esperaríamos que a vida fosse aparente, quando somente agora olhamos para ela com real capacidade de inquirição?”, pergunta, com certa razão. Afinal, costumamos crer tanto na ciência que esquecemos as nossas deficiências. Osvaldo Pessoa Jr. recorda que a descoberta de vida inteligente seria muito mais impactante para nós do que a notícia sobre a existência de formas primárias de vida. Quanto a isso, os cientistas Telles e Lapierre concordam numa coisa: achar vida é bem diferente de achar vida inteligente. Para Telles, a inteligência requer uma combinação de fatores ainda mais singular para existir. E Lapierre explica que a vida precisa ser “espalhada” por uma explosão de supernova. Como o universo seria ainda muito “jovem” – com seus 13 bilhões de anos – não é de se descartar a hipótese de que sejamos os primeiros seres inteligentes na vastidão. “Se esperarmos alguns bilhões de anos, a vida poderá ser mais comum”, brinca o biólogo. A descoberta de que a vida na Terra veio de fora seria algo interessante, segundo Lapierre, porém apenas iria transferir a fonte do mistério. “Como” e “onde” a vida começou permanece o mesmo enigma – assim na terra como no céu. O professor Rummel, do MBL, tem a mesma convicção, e o mesmo espírito. “Não sabemos nada da origem da vida per se. Se foi em Marte, não é problema – poderíamos ser todos marcianos!”, ironiza. “É bom pensar que somos representantes da vida, capaz de se distribuir em múltiplos mundos”. Para o filósofo da USP Osvaldo Pessoa Jr., a matéria pode ter um grau de variedade suficiente para “gerar mecanicamente (ou seja, através de reações químicas que ocorrem sem uma finalidade previamente dada) sistemas auto-reprodutores”. Enigma sem origem ou “sistema auto-reprodutor”, a vida não se cansa de lançar perguntas àqueles que se empenham em desbravá-la. Não foi diferente antes, e não será diferente depois que o homem pisar pela primeira vez num planeta, como Marte, que pode ter abrigado ou ainda esconder em si alguma forma alienígena de vida. • Continente abril 2004
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tros internacionais sobre uma futura colonização do Planeta Vermelho, adianta-sse no tempo e afirma que as formas de vida nativa que porventura lá existam devem ser preservadas. No chamado processo de "terra-fformação", em que um meio ambiente semelhante ao terráqueo seria produzido artificialmente, a sobrevivência de todas as espécies, e não apenas a humana, precisa ser levada em consideração. “Seria muito preciosa para ser aniquilada”, diz ela. Por outro lado, do ponto de vista do cidadão, a tecnologia necessária para “terraformar” um planeta morto poderia nos ensinar bastante sobre como reparar danos feitos à nossa própria biosfera. O suíço Ueli Scheuermeier, consultor em agricultura para ONGs internacionais, reforça o caráter ecológico da nova era espacial: “Aprendemos muito sobre como devemos tratar a Terra ao observar os desertos e a água
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esmo com o novo vigor que ganha o investimento espacial, tendo Marte como moeda e mercadoria futura, muitos ainda se perguntam se vale a pena torrar bilhões de dólares numa aventura espacial. O biólogo Pascal Lapierre contra-aargumenta com uma das mais caras teses da ideologia científica: a de que a exploração faz parte da natureza humana. “Assim como a corrida espacial entre os EUA e a URSS nos anos 50 e 60 trouxe inovação e grandes aquisições, a nova e pacífica corrida entre várias nações é o empurrão às vezes necessário para ir além do que se pensa possível”, compara. Ir além do possível poderia ser o lema de qualquer programa espacial. No caso de Marte, o ímpeto da ciência já aparece equilibrado com preocupações que não existiam anos atrás sequer na Terra. Maggie Zubrin, da Mars Society, entidade americana que promove encon-
Na órbita da ciência Problemas políticos e econômicos no rastro da exploração do espaço
Foto: Arquivo pessoal
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escondida de Marte”, comenta. Para ele, o Brasil, com sua biodiversidade, poderia auxiliar muito e também receber benefícios diretos neste processo. O olhar crítico que a sociedade lança sobre a ciência pode ainda ser devolvido à sociedade, segundo o consultor, no que diz respeito sobretudo ao custo financeiro do empreendimento espacial. Scheuermeier rebate com o que se gasta anualmente nos países ricos para manter a obesidade das pessoas, ou para fazer girar a engrenagem dos combustíveis fósseis. “O investimento espacial não chega a algumas garrafas de cerveja por pessoa por ano”, diz ele. O diretor do Centro para Aplicações Comerciais de Combustão no Espaço da Colorado School of Mines, Michael Duke, por vários anos funcionário da Nasa, junta ao argumento o fato de que menos de 1% do orçamento americano é dirigido ao programa espacial. “É irônico que a elevação das aplicações espaciais na sociedade tenha levado as pessoas agora a questionarem esse investimento”, observa Duke. Países como o Brasil são beneficiários desse investimento, segundo Ueli Scheuermeier. "Não fossem os satélites, jamais saberíamos a extensão dos desmatamentos na Amazônia", sugere, acrescentando que a Índia, a Indonésia, a China e países africanos já entenderam que a pesquisa espacial pode contribuir concretamente para o seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o consultor em agricultura acha que enquanto não se responder claramente como a exploração de outros mundos pode melhorar a vida das pessoas nos países mais pobres, será difícil estabelecer colônias na Lua ou em Marte, apesar de toda tecnologia. “Infelizmente, muitos entusiastas da ciência não vêem esta ligação política”, lamenta. Um outro aspecto é levantado pelo filósofo Osvaldo Pessoa Jr., e diz respeito ao interesse da Nasa em alardear as descobertas para garantir e ampliar o financiamento às suas atividades. “Algumas falsas expectativas foram criadas em harmonia com esse interesse, como por exemplo a evidência de vida em poeira marciana
Telles: “Surgimento de vida depende de condições muito particulares”
encontrada na Antártida”, acusa o filósofo, sem desmerecer por causa disso as conquistas da agência espacial americana. “Mas o fato é que o marketing existe”, diz ele. Tal marketing inegável não vende só a Nasa, mas também os EUA. Quanto mais a Nasa obtém sucesso em suas missões, mais os americanos são identificados positivamente como exploradores do espaço. O mesmo modelo de ufanismo parece estar se transferindo para a China, embora na Europa haja um espírito de maior colaboração. É o que observa Scheuermeier, para quem a nova corrida espacial precisará ser cooperativa acima de tudo, e ensinará, via Marte, a colaboração entre os países na Terra. “Nunca seremos capazes de fazer nada sustentável no espaço se não conseguirmos a cooperação na Terra”, preconiza. Vale lembrar que o espírito cooperativo está na raiz da pesquisa científica desde Francis Bacon, no século 17. A fim de que tal cooperação seja possível, há que se pensar na ciência de modo mais democrático, não somente do ponto de vista da transparência na aplicação dos recursos, como em relação à participação da sociedade nos seus projetos. Paralelamente, os cientistas precisam ter consciência da aplicação do que fazem. Esta é a opinião de Michael Duke, ex-Nasa. “Eles não podem fugir das conseqüências negativas de suas descobertas”, enfatiza. Trata-se de uma postura ética que de modo algum inviabiliza a pesquisa, segundo Duke. Além do mais, para ele, a ética também muda. “O que é considerado bom para a sociedade hoje pode não ter sido ‘ético’ no passado”. • Continente abril 2004
Ilustra;ção: Corbis
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Metafísica marciana Novos paradigmas – e novos problemas – chegam de carona nas imagens e informações enviadas pelos robôs alienígenas (para os marcianos) à Terra
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Um antigo mapa dos céus de acordo com o sistema copernicano: a Terra gira em torno do Sol (1661)
ara Haym Benaroya, se o modo como vemos o universo muda constantemente, a nossa concepção de Deus também muda. “Quanto mais nós sabemos, mais nossas percepções de Deus e do universo se transformam”, diz. Isso implica numa transformação religiosa que pudemos verificar nos últimos milênios, à medida em que avançava o conhecimento humano, segundo Benaroya. “A Igreja e todas as religiões tiveram que evoluir para levar em conta o aumento do conhecimento”, provoca. “E terão que continuar crescendo com o tempo para incorporar uma melhor compreensão sobre a visão religiosa do homem e do mundo”. Maggie Zubrin, da Mars Society, acha que a pergunta sobre “quem somos nós” não muda substancialmente se adquirimos mais conhecimento sobre o universo. E também não afeta a idéia de um Deus por trás de tudo. “Como uma descoberta do homem poderia mudar a natureza de Deus?”, indaga ela. “Tudo que existe, existe com ou sem a nossa percepção. As leis fundamentais da natureza não serão alteradas por causa das descobertas que fizermos”, avalia. Padres, crentes e místicos não o diriam melhor. Antes que se pergunte se Cristo apareceu em todos os lugares habitados do Cosmo, se todas as raças vivas foram amaldiçoadas pelo pecado original ou abençoadas pelo Espírito Santo, é melhor
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Foto: Nasa/JPL/Divulgação
que se busque o papel da Igreja numa civilização que oscila entre o fanatismo religioso e o ceticismo científico. Para Zubrin, a Igreja desempenha um papel vital, fornecendo a base moral às interações humanas. “Em tempos de fanatismo violento, é dever de toda instituição religiosa lembrar aos seus membros a prática da caridade e da ternura, no caminho do amor, da generosidade e do perdão”, defende. Seria uma questão mais de convivência do que de metafísica, então? O astrônomo Eduardo Telles aponta o enfoque ético sobre a repercussão que a descoberta de vida em outros planetas poderia ter sobre nós. Para ele, “da mesma forma que devemos conviver harmoniosamente com todos os seres vivos em nosso planeta, devemos conceber a idéia de compartilhar o universo com outras formas de vida”. O que seria muito fácil – se não estivéssemos tão acostumados com a solidão. Foi esta solidão que talvez tenha levado Albert Einstein a dizer que a motivação dos cientistas pode ser considerada uma motivação religiosa. Por este prisma, a busca de nossa essência seria a mesma, seja para a ciência, seja para a religião. O filósofo Osvaldo Pessoa Jr., da USP, é da opinião de que a visão da ciência sugere um mundo sem espíritos, sem fenômenos paranormais e sem Deus, “já que essas entidades não são necessárias para explicar a natureza”. Mas a fé em geral não interfere negativamente com o trabalho do cientista, reconhece Pessoa Jr. Eduardo Telles, do Observatório Nacional, chama a atenção para o fato de que o trabalho do cientista independe de fé, mesmo que não o torne necessariamente
cético. “Trabalhamos para descobrir, provar, aprender e distribuir esse conhecimento à sociedade, e não para acreditar”, ressalta. Luís Florit, pesquisador do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), conta que a influência abstrata em seu trabalho se resume a fatores como curiosidade, beleza e intuição, sem qualquer aspecto “espiritual” no sentido religioso. “A religião jamais guiou as minhas pesquisas”, garante. Sobre o ceticismo científico, Florit acrescenta: “É bom dizer que não é o estudo das ciências que leva ao ceticismo, mas, em geral, o ceticismo que leva à ciência”. De todo modo, há uma fronteira inexpugnável na exploração cósmica que nos empurra à metafísica: o início de tudo. O tempo astronômico começou com o Big Bang, explosão primordial, de acordo com a Teoria da Relatividade. Antes disso, a ciência é cega, surda e muda, deixando aberto o caminho para especulações. O professor Samuel Moscowitz, da Universidade Hebraica de Jerusalém, dá um jeito de responder aos espíritos mais céticos: “Uma resposta objetiva para essa questão é dizer que existe um Criador geral chamado natureza, ao passo em que o desenvolvimento adaptativo das espécies, dentro de restrições impostas pelo ambiente e pela variação genética, produz resultados em conformidade com a teoria evolutiva”, racionaliza. Haym Benaroya, por seu lado, acredita que a incursão do homem pelo cosmos irá afetar positivamente o nosso modo de vida. “A capacidade de viajar, viver e trabalhar no espaço e em outros planetas transformará a forma como vivemos e o que pensamos de nós mesmos”, aposta. • Fábio Lucas é jornalista.
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As peripécias do conto no grande circo das letras Gênero retoma vitalidade, depois de duas décadas na sombra Francisco de Morais Mendes Continente abril 2004
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Foto: J. A. Fonseca/ Folha Imagem
m livro de contos, publicado na década de 60, é relançado em razão de sua adoção no vestibular de uma capital brasileira. Em poucos dias, a edição praticamente se esgota – mas não na cidade em questão. O livro é Tremor de Terra, o primeiro do escritor mineiro Luiz Vilela. Depois de duas décadas publicando novelas e romances, Vilela lançou em 2002 um novo volume de contos, A Cabeça. Não chegou ao topo das listas de mais vendidos, mas esgotou-se rapidamente. Outros veteranos da literatura brasileira, como Rubem Fonseca (Pequenas Criaturas), Dalton Trevisan (Pico na Veia e Capitu Sou Eu) e, mais recentemente, Sérgio Sant’Anna, (O Vôo da Madrugada), lançam livros de contos com grande repercussão na imprensa. Com a conquista de um lugar na mídia e nas livrarias, que não desfruta há vários anos, a narrativa curta está voltando a ganhar visibilidade. Bem, os veteranos têm espaço porque o conquistaram com uma obra sólida, construída ao longo dos anos. Mas escritores que nos anos 90 trabalharam num mercado periférico e longe dos holofotes também conseguem chegar às grandes editoras e despertar o interesse da imprensa. É o caso do paulista Marçal Aquino. Recentemente, a editora Cosac & Naify lançou Famílias Terrivelmente Felizes, reunião de textos de livros publicados na década passada, por pequenas editoras. A mesma editora lançou também Faca, do cearense Ronaldo Correia de Brito, tirando-o do circuito regional. O gaúcho Amilcar Bettega Barbosa e o paulista Nélson de Oliveira, que transitavam em circuitos alternativos, tiveram suas obras editadas pela Companhia das Letras. E novos autores, como o paranaense Miguel Sanches Neto (Hóspede Secreto), editado pela Record, são exemplos da retomada de um gênero que passou duas décadas na sombra. Cearenses, paranaenses, paulistas, mineiros e gaúchos? Sim, eles expandem o território literário, o que mostra que a força do gênero não é um fenômeno localizado. Essa retomada do conto quer dizer algo, mas exatamente o quê? Que se encerra um longo período de hibernação dos contistas? Que o mercado procura caminhos que aliem lucro à novidade? Que o romance brasileiro está em baixa? Por qualquer caminho que se inicie uma reflexão sobre o fenômeno, qualquer que seja o fio a desvelar o novelo das perguntas, o ponto de partida deve ser a constatação de que o conto saiu da sombra para disputar com o romance e a literatura infanto-juvenil uma fatia do crescente mercado editorial brasi-
Rubem Fonseca e Dalton Trevisan (abaixo): veteranos que lançam livros com grande repercussão
Foto: AE
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Se a cultura brasileira em geral vive uma crise e se as manifestações artísticas dominantes hoje no país estão à beira de um colapso, a literatura brasileira tem a oportunidade de se firmar como interlocutora de uma sociedade em confronto com seus próprios rumos
leiro. Se tal investida irá reverter em aumento do número de leitores é outra história. Mas há outro fato que não pode ser esquecido. Os escritores não deixaram de publicar livros de contos na década de 90. De tempos em tempos, ensaiava-se uma arrancada em direção ao grande público, mas a coisa logo minguava e o gênero continuava com sua circulação restrita, com edições magras e sem grande repercussão. Os contistas que tentaram publicar pelas grandes editoras na década passada, com raras exceções, ouviram em uníssono a pergunta: você não tem um romance? Se foi pela trilha individual com edições independentes ou por pequenas editoras que os escritores mostraram seu trabalho, a vereda do mercado parece ter sido reaberta pelas antologias temáticas – pecados capitais, dez mandamentos, erotismo etc. – com que as editoras costumam reunir autores novos e consagrados, e pelas antologias do século, do milênio, dos quinhentos anos e outros pretextos. À margem desse “grande mercado” circulavam e circulam coletâneas, revistas e fanzines, em que o texto curto tem presença assegurada. O que parece ser a grande diferença em relação a esses espaços, onde o conto murmurava, é o fato de ter, no início desse século, transformado esse murmúrio em barulho. Nélson de Oliveira conseguiu isso com duas antologias que organizou (Geração 90: Manuscritos de Computador, de 2001, e Geração 90: os Transgressores, de 2003, ambas publicadas pela Boitempo Editorial). Os dois volumes, que reuniram cerca de 30 escritores, foram parar nas páginas de cultura dos grandes jornais, nos sites de literatura, nos blogs. Renderam polêmicas e discussões e, entre elogios e bordoadas, conseguiram o que hoje o conto como um todo está conseguindo, a tal da visibilidade. Praticamente ao mesmo tempo em que era lançado o volume Continente abril 2004
Fotos: Divulgação
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Luiz Vilela, autor de Tremor de Terra – lançado em 1967 e relançado em 2003: edição praticamente esgotada
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Os Transgressores, o mesmo Nélson de Oliveira e o pernambucano Marcelino Freire lançavam a revista PS:SP, um belo projeto editorial, com escritores radicados em São Paulo. De novo, barulho, mídia, e um fato novo: a acusação de que estavam fazendo uma coisa terrível e nefasta para a literatura: publicidade. (Pausa para reflexão: o que é o cabotinismo? Cabotino é o indivíduo que procura chamar a atenção, ostentando qualidades reais ou fictícias, diz o dicionário. Pois bem, os jornais vivem ostentando que são os melhores, que você deve assiná-los; as revistas dizem de si a mesma coisa; a Rede Globo alardeia há quarenta anos que é a melhor tevê que existe. Assim o cartão de crédito, o Banco, a companhia energética que produz os melhores blecautes do planeta. O Paulo Coelho pode dizer que é bem-sucedido. O escritor, não; aliás, o indivíduo, não; esse não pode falar do seu trabalho, pelo menos bem; mal, pode; fica até chique.) Mas é tudo de que o conto precisa: publicidade. Circulação, leitores. Publicações como Ácaro, Coyote, Etcetera, Rascunho, e editoras, como a paulista Ciência do Acidente, a gaúcha Livros do Mal e a que mais edita livros no país, a editora do Autor, que se apresenta com diversos codinomes, têm contribuído para que o conto tenha publicidade, circulação e leitores. Agora, trazer ao mercado escritores que estão fora do grande circo das letras é papel – e decisão – das grandes editoras. O mercado, apesar da crise econômica, dá sinais de vitalidade e de expansão – sinalizada pela entrada no país de editoras internacionais e pelo surgimento de novos selos editoriais. Para onde se olha, vê-se que o conto está aí, vivinho da silva e morto de vontade de encontrar os leitores.
Amilcar Bettega (acima) e Miguel Sanches: renovação
Temáticas – Sem a repetição das condições em que se deu o boom do conto brasileiro nos anos 70, na esteira do boom da literatura latino-americana, marcado por uma conjunção de fatores que iam do interesse da Europa pelo exótico e pelo interesse da América Latina em respirar ares fora do sufoco das ditaduras, uma nova explosão do gênero mostrará a qualidade e a diversidade temática e estilística com que os escritores vêm esquadrinhando a realidade brasileira. Um dado citado por Nélson de Oliveira dá conta de que foram publicadas nos anos 90 duas vezes mais coletâneas de contos de estreantes que na década de 70. A equação é banal, mas nem por isso menos verdadeira: da quantidade resulta a qualidade. Se a cultura brasileira em geral vive uma crise e se as manifestações artísticas dominantes hoje no país, como certo tipo de Continente abril 2004
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O conto tanto busca territórios rarefeitos, como Mauro Pinheiro, em Aquidauana, ou o sertão de Ronaldo Correia de Brito, como espaços da memória e da casa. O recém-lançado Armada América, de Fernando Monteiro, amplia mais um pouco essa fronteira
música e a estética da televisão, estão à beira de um colapso (o que será bastante saudável para estas manifestações), a literatura brasileira tem a oportunidade de se firmar como interlocutora de uma sociedade em confronto com seus próprios rumos. Afinal, é a arte que mais tem dado conta de falar sobre o país e o mundo em que vivemos, e provocar as pessoas a despertarem do sono narcotizante da tevê e da indigência cultural em que – globalizados ou não – nos metemos nos últimos vinte anos. Se hoje há uma tendência da temática do conto enveredarse pelas ruas e retratar com crueza a violência e os impasses de nossos centros urbanos, como faz Marcelino Freire em Angu de Sangue e Balé Ralé, ela não é homogênea. O conto tanto busca territórios rarefeitos, como Mauro Pinheiro, em Aquidauana, ou o sertão de Ronaldo Correia de Brito, como espaços da memória e da casa. O recém-lançado Armada América, de Fernando Monteiro, amplia mais um pouco essa fronteira, buscando na história dos Estados Unidos elementos para a fabulação. O indivíduo em crise, a realidade e o tempo fraturados, as tecnologias que mais fragmentam a realidade do que a acomodam numa confortável totalidade não escapam ao gênero, que também se transforma, rompendo seus próprios limites e definições clássicas. Há obras que trazem dificuldades a quem quiser classificar dentro dos gêneros tradicionais da prosa, conto, novela ou romance. Os mineiros Sérgio Fantini e Wir Caetano, o paulista Ronaldo Bressane e o paranaense Manoel Karam trabalham num espaço que se situa entre o conto e a novela, mas também entre o conto e o fragmento, o instantâneo. Conseguindo, ou não, ampliar o número de leitores – e essa ampliação significaria mais atenção dos editores – o conto brasileiro se mantém e se renova, em diálogo com a tradição e com outras manifestações artísticas. Se vier um novo boom, ótimo; mas, se não vier, ele continuará, mesmo na sombra, dando provas de sua vitalidade. • Francisco de Morais Mendes é jornalista e escritor. Continente abril 2004
Foto: Reprodução AE
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Balé Ralé e a revista PS:SP editados pelo pernambucano Marcelino Freire (acima): expansão do território literário
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Lya Luft, autora do best-seller Perdas e Ganhos, lança mais um livro, Pensar é Transgredir, mas afirma que quem escreve sobre nós é a morte Iêdo de Oliveira Paes
Uma escrita de sombras
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ona de uma tessitura intensa e profunda, a escritora gaúcha de Santa Cruz, a partir de sua estréia, impôs o seu lugar na literatura brasileira através de uma linguagem refinada tanto em poesia como em prosa. Desde a estréia de As Parceiras (1980), de Perdas & Ganhos (2003) – um best-seller consagrado pelos leitores e pela crítica, até Pensar é Transgredir (2004), a bibliografia de Lya Luft vem merecendo estudos acadêmicos, como dissertações de mestrado e teses de doutorado. Por isso mesmo, à margem de qualquer cânone, já ocupa um espaço de destaque nos cenários nacional e internacional, considerando que sua obra já foi traduzida para o inglês (O Quarto
Fechado e Exílio), alemão (As Parceiras e Reunião de Família) e italiano (A Asa Esquerda do Anjo) . Formada em letras anglogermânicas e com mestrados em Literatura Brasileira e Lingüística Aplicada, começou aos vinte anos, traduzindo do alemão e inglês. Obras de Virgínia Woolf, Günter Grass, Thomas Mann e Doris Lessing foram vertidas para o português pela capacidade de construir espantos dessa escritora anjo-demônio, bruxa-fada, vida e morte. Em Pensar é Transgredir (Record), o mais novo livro de Lya Luft, encontramos a fuga ao enquadramento fácil e a inquietação do ser humano no universo pragmático. Ao transgredir a ordem do superficial a autora nos coloca diante Continente abril 2004
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das nossas escolhas, muitas vezes equivocadas pela falta de maturidade. São 50 crônicas que revelam a dicotomia desenrolada dos fios cotidianos sob a ótica de quem transita pelas veredas que nos oferecem ciladas. Morte, vida, família, amor e infância, temas recorrentes em Lya, surgem sutilmente renovados, próprios de quem está sempre buscando a reinterpretação da vida e das possibilidades impostas pelo tempo. “A vida há de rolar por cima da gente, reduzindo à poeirinha inútil quem se esquecer de às vezes parar pra pensar... mas sem se desmontar; olhar em torno ou para dentro: paisagens belas, ou áridas (sempre dá pra plantar um capim) ou quem sabe coloridas (a alma pode brincar de escondeesconde entre as folhas)”. (Pensar é Transgredir, 2004, p. 16). O diálogo intimista estabelecido entre Lya e o seu leitor é reiterado a cada livro de forma espontânea e confidencial: “Não inventei ao dizer que meu leitor é cada vez mais a síntese dos amigos imaginários que me fizeram companhia na infância das minhas complexidades”. (Pensar é Transgredir, 2004, p. 12). Universo por demais místico e simbólico, a ficção luftiana é pródiga em temas como o “grotesco”, “anjo e diabo” e “famílias fracassadas”. Há sempre a dicotomia que permeia a nossa existência. O duelo da vida e da morte faz do texto luftiano a história de cada um. Através da anomia, recurso recorrente na maioria de suas obras, a escritora tenta massificar a condição do ser humano. Não é a história de uma personagem que está sendo revelada, conta-se a trajetória de todos que se aventuram no tablado árduo e causticante das relações humanas. Muitas vezes a escritora torna-se uma porta-voz das dores humanas e instaura um pacto no tecido ficcional realizando a missão de condutora de destinos.
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De acordo com Lya Luft, “a morte é que escreve sobre nós – desde que nascemos ela vai elaborando conosco o nosso roteiro. Ela é a grande personagem, o olho que nos contempla sem dormir, a voz que nos convoca e não queremos ouvir, mas pode nos revelar muitos segredos” (Perdas & Ganhos, 2003, p. 145). Talvez para transportar à ficção, a morte é bastante conhecida dessa escritora que já passou “duplamente pelas águas da morte”: Celso Pedro Luft e Hélio Pellegrino. Perdas que impregnaram de luto, não só a sua vida, mas a sua teia literária. O trágico e a morte são elementos que norteiam a narrativa luftiana em romances, como Reunião de Família e O Ponto Cego. A personagem Cristiano de Reunião de Família perde os membros inferiores num acidente brutal contra um poste. Até parece que o limite entre a vida e a morte está demarcado sempre por um objeto de destruição, há sempre “uma pedra no meio do caminho” que encerra a nossa “secreta mirada”. Mais uma vez a morte disse sim ao destino. Sob essa ótica vida-morte, encontramos o mártir que há em Cristiano: o Cristo. Em O Ponto Cego, o menino narrador-personagem estabelece o diálogo autoritário e onisciente, permeando o fio condutor da narrativa que traz à tona a questão edípica instaurada no jogo narrativo do menino e sua mãe e as mortes nas águas violentas, turvas e assassinas do Riacho do Renegado (local da desova literária) onde a morte , personificada no cavalo-anjo, volteia no céu , faz rasantes e rufla as asas numa eterna súplica de culpa inevitável. Outro aspecto na obra luftiana é a simbologia utilizada como adereço e alegoria que faz um jogo com as palavras numa constante cumplicidade: anjo, diabo, gato, cachorro, vermes, cavalo, borboleta, anão, gnomo, duende; os elementos ar e água formam um par que pontua a relação divinizante que é
LITERATURA 29 » empreendida na narrativa luftiana. A redenção se passa pelo ciclo da água que fecunda e pela ação das potestades celestiais que se materializam nas tramas do texto. Como diz Roland Barthes, “o texto tem necessidade de sua sombra: essa sombra é um pouco de sujeito; fantasmas, bolsos, rastos, nuvens necessárias; a subversão deve produzir seu próprio claro-escuro” (O Prazer do Texto, 2002, p. 41). As relações fracassadas permeiam o esteio luftiano. São casais que mesmo na “cama de casal” estão “falhados” e “apartados”, num eterno paradoxo com a vida. Mulheres sufocadas pelo patriarcado lutam por um lugar nunca reservado na narrativa luftiana. Encontramos a tentativa de imposição na personagem Aretusa (Reunião de Família) que transgride as normas e vive intensamente a vida como uma “musa-Medusa”, petrificando todos os desejos e tornando-os possíveis. É nesse mundo sombrio que vamos desvendando o palco ficcional em que o olho perverso ou angelical trama os enredos e coloca o leitor nas armadilhas precisas. No feitiço do diabo, personagem de destaque em Lya, adentramos o mundo da sexualidade e sobrenatural. A sedução não só no seu aspecto libidinal, mas como envolvimento do leitor-autor, possibilitando a sensação do gozo textual. Lya cumpre a fun-
ção social do escritor a partir do momento em que imprime a sua temática à possível observação do público. Não importa a repercussão, mas o valor estético e social estão sempre a serviço desse público que consagra ou rejeita. As encruzilhadas luftianas estão cheias de personagens mortas, perspicazes, malditas, deformadas, fracassadas.... muito mais pela vida do que pela morte. Há solidariedade desde As Parceiras. No próprio jogo de xadrez é percebido o lance do destino entre as duas: ganha quem perde e nem sempre a vencedora é a heroína. Nesse jogo, interessa muito menos quem vai ganhar: são águas que se misturam e não precisam ser filtradas. De acordo com Lya Luft, “Nessa difícil história nossa, dizer ‘sim’ ao negativo, ao sombrio, em lugar de dizer ‘sim’ ao bom, ao positivo, é o desafio maior. Pois a questão é saber a hora de pronunciar uma ou outra palavra, de assumir uma ou outra postura. O risco de errar pode significar inferno ou paraíso”. (Pensar é Transgredir, 2004, p. 183) • Iedo de Oliveira Paes é Mestre em Literatura Brasileira pela UFPB e doutorando em Literatura Brasileira pela UFAL. É ensaísta e autor do livro Ecos do Arcadismo no Romanceiro da Inconfidência.
A ficção luftiana é pródiga em temas, como morte, grotesco, anjo e diabo, perdas e fracassos
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30 LITERATURA
Histórias entrelaçadas numa história Fotos: Divulgação
O crítico literário Davi Arrigucci Jr. estréia na ficção com uma narrativa de aparência despretensiosa, mas com ressonâncias ocultas
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avi Arrigucci Jr., autor consagrado de livros ensaísticos, como Coração Partido, sobre a reflexão na poesia de Carlos Drummond de Andrade, e O Escorpião Encalacrado, sobre a poética da destruição em Julio Cortázar, arrisca-se na aventura de explorar uma nova atividade e estréia no terreno movediço da ficção com o livro Ugolino e a Perdiz (Cosac & Naify, 80 págs. R$ 29,00). A história é contada pelo narrador dentro da clave da literatura oral, com as mesmas palavras, garante, com as quais a ouviu de Ugolino, um homem para quem caçar e narrar a caçada era a mesma coisa, esquadrinhando tudo e verrumando “até outras coisas sem explicação, entrelaçadas nas histórias que narrava, maquinando caraminholas”. E já aí, nesta possibilidade de variantes, o autor revela que uma narrativa despretensiosa pode ser, na verdade, um palimpsesto, com outros significados embutidos. Exatamente o que Ugolino e a Perdiz é.
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Mas o que primeiro se percebe no livro de Arrigucci é o acerto de tom que o narrador possui. O linguajar típico do interior de Minas Gerais/São Paulo perpassa o texto, dandolhe a necessária credibilidade para que o leitor se embrenhe na narrativa assim como o caçador se embrenha na mata. Linguajar típico, diga-se, mas não caricatural, funcionando menos pela escolha das palavras que pelo criativo desenho do fraseado. E, sempre, abrindo uma perspectiva para além do realismo: “Uma coisa ele tinha entendido, é que a danada da perdiz era capaz de voltas e dobras e até parecia feita de ferro: com o perdão da palavra, ela tanto se dilatava, quanto se contraía ao extremo, armando esquadrias próprias para escapar do cão e do tiro. Ora desgarrava-se em corrida desabalada, primeiro em linha reta, depois em aberto círculo, até desfechar vôo, distante de todo faro e chumbo, ora enrodilhavase no chão em paralisado instantâneo, quieta e amoitada com tal sigilo, que dela não se exalava cheiro algum, deixando o caçador no mato sem cachorro, perdido nos despistados labirin-
LITERATURA 31 » Foto: Divulgação
tos que arquitetava, assim reduzida a um só ponto invisível ou expandida em inatingível circunferência.” Note-se que a perdiz ultrapassa sua condição de pássaro comum e assume uma configuração quase fantástica, graças a suas artimanhas, que consistem, inclusive, em se transmutar num ponto invisível ou numa inatingível circunferência. Não é por menos que o tema da circunferência mágica (ou metafísica) já está prefigurado na epígrafe, tirada de Dante Alighieri, na qual o poeta fala dos atributos do Esplendor de Deus. A narrativa segue oscilando entre o real e o simbólico, e uma confirmação disso certamente está na descrição de Ugolino e seu amigo de caçadas, Joãozinho Dentista. O primeiro, alto e seco de carnes, muito imaginativo; o segundo, baixinho, gordo e bonachão, com grande apetite pela materialidade. Embora o narrador não se refira a isto explicitamente, é claro que eles são como um Dom Quixote e um Sancho Pança, repetindo no interior do Brasil o percurso da busca de um sonho. Ugolino começou a vida como aprendiz de serralheiro, chegando a “mestre construtor de engenhosos bordados de ferro”. Quando a narrativa acontece, ele já está velho e aposentado, dedicando-se a cozinhar (e na cozinha “gostava de misturar as coisas para ver no que dava”) e também a caçar e contar casos, sendo, nestas novas atividades, “de novo artesão, mas de construções imaginárias”. Toda sua vida, portanto, do início ao fim e independentemente das suas atividades, se estende na tentativa do exercício de uma “fina arte”. Não por mero acaso o sobrenome de Ugolino é Michelangeli. Importante, também, é atentar que, para Ugolino, o ato de caçar não finda em si mesmo, mas serve para muitas outras
utilidades. Leva-o, por exemplo, a prestar atenção no que não notava antes, com isso ampliando sua compreensão do que está ao redor (e, por extensão, do mundo). Na caçada (ou na narrativa da caçada), a própria natureza se apresenta como extensão do homem, ilustrando e intensificando os estados de espírito do caçador. Logo no início, quando pressente que aquele é um bom dia para caçar, nota que um joão de barro “cantou no abacateiro do vizinho, radiante com o clarão do dia”. E quando parte para a caçada final, a ventania convulsiona a copa das árvores num reflexo do tumulto que vai pela alma do caçador. Esse tipo de interligações e fusões acontece de maneira variada. O caçador é como um enxadrista que tem que se projetar no outro, e, ao eliminar a alteridade, prever seu comportamento, tornando-se caça ele próprio. Ao fazer isso, pode-se dizer também que, ao mesmo tempo, o caçador é modificado pela caça. Um outro tipo de metamorfose acontece na cena final, quando os dois caçadores adultos fundem-se com seus dois filhos (a inocência?) e os dois cachorros (o instinto animal?) na figura monstruosa de um polvo de tentáculos multiplicados e que é também um anel de ferro capaz de cercar, pelo chão e pelo céu, todas as rotas de fuga do pássaro misterioso. Apesar desses aspectos fantásticos, Ugolino e a Perdiz tem como tônica o humor ladino dos homens do interior e o saboroso das minudências, num estilo que mistura espontaneidade e cálculo com ótimos resultados. E, como em boa literatura o que importa mesmo é a renda da linguagem e dos enigmas nela contidos – salpicados ao longo do texto como anzóis vivos, ferindo a imaginação do leitor e puxando-o para dentro da trama –, não vai causar desgosto nenhum ao futuro leitor antecipar o final da história. A perdiz é finalmente atingida, mas não caberá ao caçador alcançá-la. Mesmo ferida ela vai subir e sumir em círculos (circunferêndcias) de luz e ar. História de caçador? Mais provável é que o significado final da narrativa seja o da perseguição a uma arte perfeita (ou a um ideal de vida, ou a um conhecimento totalizante) que, ao mesmo tempo em que se atinge como vislumbre, escapa-nos como realização. Tal como o pescador de O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, que busca um peixe magnífico, mas só consegue trazer para a praia um enorme esqueleto. (Marco Polo) • Continente abril 2004
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Um rio cinzento atravessou o café da Cave
E
sta é uma mesa qualquer De um café qualquer Sem a luz do dia E com um ruído de fundo Como se da vida Fosse o seu estranho respirar. Não sei que horas são Mas agora eu estou aqui Para não saber que horas são. Estou aqui no gesto injusto De um destino qualquer Que não me disponho a interrogar. Estou sem horas Sem referentes Sem ninguém. Estou vagamente cansado Mas faço por me sentir bem E vou beber uma bica Para que seja pacífico e discreto O meu direito de estar. A portinhola de vidro Para quebrar em caso de incêndio E estes anúncios todos (Que eu não leio) De livros, de filmes, de DVD Dizem-me que haverá por aí Coisas outras, projectos talvez, Antes do meu cansaço, Antes de mim. Tudo isto já estava aqui – Até a cadeira e a mesa Que são minhas Na eternidade deste instante Pelo preço exacto de uma bica – Toda esta eternidade Esperava ardilosamente O descanso de alguém E o anonimato como destino Desejável de quem
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Perdeu tudo Mesmo a memória E ganhou uma névoa como conceito Que não se dilui No fumo acre deste café. Ela rouba-me a identidade E faz apelo A uma origem qualquer Onde eu não sou eu Onde tudo é antes de acontecer: Antes das pedras E das navalhas nítidas E de haver coisas eruditas E sentenças transitadas Ou prescritas E outras coisas assim. Mas por que é que eu estou (in/feliz) Nesta foz casual Onde tudo perde a nitidez E é final? Por que é que eu Estou aqui Sem sentido nenhum Com esta minha mão ausente A desenhar talvez Um gráfico mental Com a letra dormente De quem está doente? Por nada. Aqui apenas há um mundo que gravita Nos solavancos torpes desta escrita Movido por uma energia de angústia Mesmo que eu busque A alegria como idéia No rio cinzento Que aqui corre: É precário O emprego Do empregado
LITERATURA 33 E o seu salário? São enigmáticos Os cotovelos Daquelas jovens Que suportam um fumo longo No olhar? Não sei, Deixem lá, que eu não quero questionar nada, Absolutamente nada Nem ninguém. Embora suponha que tudo, Mas tudo, é possível Que tudo, mas tudo, Se pode interrogar. Eu é que não estou aqui para nada disso – Ouviram bem? Eu agora tenho embotada A minha natureza Como uma raiva Que me morde a alma. Aqui não há coordenadas Nem sol. Apreendidas apenas estão Palavras de prisão, Meto-as a tormento A interrogatório lento Para que sofram elas E não eu Com a ânsia própria de quem. Fala obsessivo num parlatório. E que outro recurso tenho eu Senão as palavras? Eu que nasci Para imitar os anjos E os santos E para seguir de gravata exemplar Um projecto de cidadão De funcionário Ou de militar Mas que apenas estou aqui. Estou aqui a urdir pelas palavras Um território a centrar-me nele Como as aranhas sensitivas numa teia Para pensar Para pensar só Como se estivesse a respirar. Eu a ti pergunto, No tempo nulo desta mesa, A ti, Emmanuel, o Kant, Por que não vens até aqui Escrever a quatro mãos
O Auto da Razão Insuficiente E não me deixas a mim Um capítulo (um só me basta) Com o lado obscuro Que me deprime e não responde? Vem até aqui meditar No tempo lento Deste musgo sonolento Para que sejas tu a perguntar Porque é que chegou tão fundo Esta casa Sem janelas E sem porta E eu nela Com uma escada apenas E este mau ar Onde me sinto como se fosse Um (improvável) nativo do lugar A cultivar angústias Penas Reduzido a nada Ou a muito pouco (Só a falar) Diz-me, com vigor e convicção – Porque é bom para mim – Como se citasses uma lei Da física ou da matemática, Dos tempos em que elas eram absolutas E sagradas, Diz-me, assim, exaltado e solene Para que eu tenha um eco vibrante Dentro de mim: João, o homem é um incorrigível esteta E ainda bem, Sofre agora os constrangimentos do lugar E do tempo que é teu Sofre nos limites do nada A vastidão insuportável do deserto Como os anacoretas Que se despojavam em cadáver Com todas as fomes febris E a suspeita absoluta de Deus ...o tempo passou O empregado do café Arrastou as mesas E disse: Vamos fechar Acabou a eternidade. • João Esteves Pinto nasceu em Sabugal, Beira Alta, Portugal. Administra a INCM – Imprensa Nacional – Casa da Moeda S.A. Continente abril 2004
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ZERO
Alberto da Cunha Melo
Deu um nó no MinC Há muito DNA de Stalin nos sujeitos que vivem de criar reuniões
G
raças a Deonísio da Silva consegui entender a frase feita “deu um nó”, lendo seu recente livro A Vida Íntima das Frases, da editora paulista A Girafa. Segundo ele, a expressão teria vindo de Portugal e da Índia, e significava casar. No segundo país, para exprimir um laço permanente, davase um nó no vestido da noiva e no traje do noivo. Só depois começou a definir uma grande complicação. Influência da grande confusão dos casórios? Não sei. Sei apenas que deu nó no Ministério da Cultura, fruto, quem sabe, de um ano de ociosidade (a não ser que uma reunião atrás da outra possa ser considerada uma ação produtiva). Na verdade, a ociosidade é a mãe da fofoca e a avó da traição. Nos bastidores, fala-se numa luta pelo poder e numa grande armação. Lula precisa descer do palanque e começar a trabalhar. Seu anunciado espetáculo do crescimento transformou-se numa grande tragédia do desemprego: filas e mais filas multiquilométricas nos concursos para coveiro, gari e tira da PM, onde se misturam operários qualificados e profissionais liberais. Quanto a Gil, precisa sentar a bunda numa cadeira para ler, pelo menos, os documentos que assina, antes que dêem um nó em sua pasta, a menos dotada pelo Orçamento. Esse nó foi dado desde o dia 18 de dezembro passado, quando numa cerimônia do Palácio do Planalto, Roberto Pinho, amigo de infância de Gil e Secretário de Desenvolvimento de Programas e Projetos do MinC, entregou-lhe para assinar um termo de parceria entre o Ministério e uma sociedade civil de interesse público, Instituto Brasil Cultural. Como era notório que essa sociedade podia realizar serviços para órgãos oficiais sem necessidade de licitação, Pinho não submeteu o processo Continente abril 2004
para análise da Procuradoria Geral da União nem para a Consultoria Jurídica do Ministério. O secretário executivo, ao saber da assinatura, correu para Gil, acusando Pinho de irregularidade. O caso bateu nas referidas entidades jurídicas que consideraram a proposta de parceria no limite entre o “jurídico perfeito e imperfeito”, o que levou à anulação do contrato. Foi o bastante para que Gil pedisse à Casa Civil a exoneração do velho amigo. Revoltados, três importantes dirigentes do MinC, o assessor especial Antonio Desidério, o coordenador nacional do Programa Munumenta, Marcelo Ferraz, e a presidenta do Iphan, Elisa Costa, por solidariedade e desagravo, pediram demissão. As demais chefias, talvez com medo de que algo sobrasse para elas, escreveram uma carta coletiva de apoio a Gil. Antes de entrar no mérito do assunto, é preciso dizer que Lula telefonou apoiando o ministro, e este lhe pediu tempo para reorganizar a pasta. Eita argumento bom para trezentas reuniões que adiam as ações, entre elas a que Roberto Pinho tentou detonar, o primeiro projeto de importância do Ministério, o da criação inicial de 16 Bases de Apoio à Cultura, espécies de centros artísticos a serem instalados nas periferias das grandes cidades! Algo análogo, acredito (não li o projeto), às Casas de Cultura do México, Cuba e França e aos Centros de Arte da Inglaterra. Ou seja, uma tentativa de descentralização, ainda defeituosa, no meu entender. Embora não seja nenhum perito em Direito Público, estou propenso a acreditar que Pinho queria evitar o “reunismo”, título de um poema letal de Maiakovski contra a mania de reuniões no stalinismo. Hoje, estou propenso a acreditar que há muito DNA de Stalin nesses sujeitos que cafajestadamente vivem de
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criar e manipular reuniões (o assembleísmo que Brizola detesta) para impor autoritariamente suas vontades, tudo isso sob a maquiagem de um expediente falsamente democrático. O PT mudou muito. Tem hoje verniz neoliberal e está fazendo o sistema financeiro bater recordes de lucros e o desemprego recordes nacionais. Mas, o vírus stalinista da “reunite” parece que não o deixou. Reunir para decidir o que o povo já autorizou pelo voto é, também, uma forma de simular que está trabalhando com seriedade, e um ótimo pretexto para não fazer nada. Pareceme que isto não estava agradando ao amigo de Gil, Roberto Pinho, que certamente cria estar na hora de tocar os projetos, atribuição de sua secretaria. Concordo com sua tentativa: contra esses “bundassentadas”, só mesmo o fato consumado. O próprio Gil, depois de exonerá-lo, disse não acreditar em nenhum esboço de ilicitude consciente de Pinho. Para mim, se houve falha, foi apenas técnico-burocrática e o erário não chegou a despender um tostão.
O proprietário da sociedade com quem Pinho pretendia a parceria era seu amigo, sim, e dono da casa em que está morando em Brasília. Mas é esta circunstância conhecida e o fato de ele fazer tudo às claras que me convencem de que queria apenas trabalhar, certamente um grande pecado no MinC. Já disse Affonso Romano de Sant’Anna, que foi demitido pelo ex-ministro-zumbi Francisco Weffort porque estava fazendo um excepcional trabalho na Biblioteca Nacional: “Em geral a fórmula de sobrevivência no serviço público é essa: fique no seu canto, fingindo que não está nem aí.” O perfil de Gil, segundo o jornal inglês The Observer, é ioga pela manhã, diplomacia à tarde e hip hop à noite”. Bem, hip hop à parte, ninguém queria, muito menos eu, que nos fôssemos privar do grande talento musical de Gil durante quatro anos. Mas, pensei que ele pelo menos pegasse no Minc o controle do leme, para não chegar a esta “crise séria de gestão”, de acordo com suas próprias palavras. • Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo.
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Foto: Hans Manteuffel
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o ano passado, ao participar do Festival Internacional de Cinema de Havana, o cantor e compositor Lenine deu mais de 200 autógrafos para fãs cubanos. Detalhe: todos os discos eram de edições pirateadas. Daí ter descoberto uma “pirataria do bem”, pois sem as cópias clandestinas sua música não teria chegado à ilha do Caribe. Extrapolando para a realidade local, o músico considera incompreensível o patamar de preços de discos no Brasil e denuncia “uma questão mais importante do que a pirataria”: a inversão de valores no mercado fonográfico, onde, na sua opinião, “quem tem o poder não é o criador”. Essas e outras opiniões Oswaldo Lenine Macedo Pimentel, 45 anos completados no dia 2 de fevereiro passado, expressa com firmeza e bom humor em entrevista gravada no Recife, pouco antes do Carnaval. O recifense do bairro da Boa Vista, que migrou para o Rio em 1979, construiu lenta e solidamente uma carreira que chega ao ápice, com reconhecimento internacional. Tanto assim que desde o mês passado encontra-se em turnê pela França, onde, dias 29 e 30 próximos, se apresenta em Paris, na Cité de La Musique, com repertório inédito intitulado Lenine In Cité , que será gravado em CD e DVD. A seguir, os principais momentos da entrevista. Por Homero Fonseca e Marco Polo
O guerreiro Lenine contra o dragão do mercado Continente abril 2004
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Como foi sua ida a Cuba, no ano passado? Cuba foi realmente um momento muito especial para mim, quando do Festival Internacional de Cinema. Fui fazer o show de encerramento, lá no Martin Luther King, o Teatro Nacional deles. É um momento em que a cidade respira cultura e é realmente um pretexto que se armou até para o êxodo dos cubanos que estão exilados. É uma maneira oficial dessas pessoas voltarem à cidade... No encerramento são músicos exilados que tocam e o governo abre isso... A gente pensa que o jeitinho é brasileiro mas o jeitinho, na verdade, é cubano. Foi bacana também saber que existe uma pirataria do bem, que eu não imaginava. Mas eu, por exemplo, assinei mais de 200 discos piratas lá em Cuba e se não fosse assim não teria como circular. Então existe, por mais incrível que possa parecer, uma “pirataria do bem”. Transportando isso para o Brasil, conversa-sse muito aqui sobre a pirataria, o dano que ela causa. Mas por outro lado tem um bocado de gente que não teria acesso à música, pelo preço do disco... Aliás, vocês foram ao cerne da questão. Por que é que o preço do disco continua esse? Olhe, hoje com essa tecnologia digital houve uma real democratização desses meios de produção. Realmente, hoje você pode ter um estúdio em casa e isso gerar um trabalho de qualidade igual ao de qualquer grande estúdio analógico ou digital do planeta. Isso sociabilizou de alguma maneira os meios para se produzir. Hoje, com pouquíssima grana você grava um disco. Por que é que isso não é repassado ao preço final do disco? Eu acho que essa é uma questão muito importante a ser levantada, mais do que a pirataria, até porque a pirataria sempre existiu. É evidente que de uns tempos para cá começou a incomodar muito mais. Quando ela passa a significar 50% do mercado, alguma coisa está acontecendo e a gente não sabe. Mas eu acho que existe uma questão que é muito maior nesse mercado: Quem Continente abril 2004
realmente tem o poder? É quem divulga, é quem produz ou é quem cria? Houve uma inversão de valores nesse processo todo e o caso da pirataria, o caso da Internet, isso tudo vem a corroborar essa pergunta: Quem é a mola propulsora, quem é o estímulo inicial disso tudo? Eu acho que é o criador. Sem a criação, não tem a música na novela; sem a criação, não existe a rádio; sem a criação, não existe gravadora. A questão básica é justamente isso. Como sempre transitei de uma maneira artesanal, digamos assim, na maneira de fazer meus discos, fui sedimentando a minha própria trajetória. Por isso, hoje, eu passo meio ao largo de todas essas grandes
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questões que são levantadas, porque foi um processo diferente e eu acho que esse processo deve-se muito ao meu trabalho, ao trabalho dos meus parceiros, das pessoas que estão comigo o tempo todo. A gravadora, o rádio e a televisão são veículos para você poder mostrar esse trabalho. A propósito da sua trajetória: você fala que demorou muito a despontar, mas foi por fidelidade à sua proposta. Como foi isso? Eu não acho que houve demora. Essas leis são para todos e no fundo todo mundo está sujeito a isso. Para mim, foi em decorrência do trabalho da composição, eu me tornei intérprete das minhas coisas. Mas veja bem: eu só interpreto menos da metade do que eu produzo, mais da metade do que eu produzo não é para mim, é para teatro, é para cinema, é para televisão, para intérpretes, porque eu gosto desse exercício. Talvez, inconscientemente, essa atitude perante a criação tenha preservado o meu lado interno e tenha me propiciado a só fazer e só gravar o que eu realmente queria. Você falou que na França descobriu que a música é seu passaporte. Conte isso. É, isso é um fato muito bacana. Cada dia que passa eu constato isto, a música foi se transformando num passaporte, num salvo-conduto ou num livre trânsito. A França para mim sempre foi um mercado muito significativo, não sei dizer por quê. Eu fui pulverizando o que eu fazia, não só no Brasil mas fora dele, na América do Sul, na Europa e outros lugares. Na França, no Japão, no Canadá e na Inglaterra houve mais do que aqueles três mil discos, quatro mil discos, porque eu canto em português, sou lusófono, adoro a língua e isso é uma restrição, entre aspas, lógico. Com o tempo eu fui conseguindo em cada lançamento de disco fazer com que, em determinado país, saísse com as letras traduzidas. O primeiro país em que eu fiz isso foi a França. Eu acho que esse também foi um outro ponto a favor, que possibilitou que a minha música fosse mais divulgada e chegasse a mais pessoas. A partir dessa empatia, eu passei a viajar muito para lá. E foi numa dessas turnês que eu conheci o sul da França, onde realmente surgiu a figura do troubadour que é o nosso trovador, que é o cronista de sua época. Naquele momento não existia rádio, nem televisão, nem jornal, nem nada e essa figura do trovador era o porta-voz da sociedade. Ele atravessou os Pirineus, começou pela Europa, teve contato com os mouros na Península Ibérica, na época dos descobrimentos começou a se espraiar e uma parcela significativa da criação, principalmente latina, hoje, é apenas um eco dessa figura, um Bob Dylan, assim como um Chico Buarque, assim como os cantadores. Quando eu estive em Toulouse, num encontro, engraçado... era um encontro de línguas mortas. Eu estava ali representando o tupi-guarani e eu não sei porra nenhuma de tupi-guarani. E aí tem um grande intelectual e um grande fomentador cultural, Claude Sicre, que também é fundador de uma banda chamada Fabulous Troubadours. E é um maluco, um maluco do bem, eu digo, um maluco beleza. E até hoje ele defende a volta do occitan como língua oficial francesa. É como se alguém aqui dissesse: vamos voltar a falar tupi.
“Num Encontro no DCE, botou-se numa vitrola um disco do Jackson do Pandeiro, O Rei do Ritmo. Da primeira canção até a última eu sabia todas. E não sabia por que sabia. De Luiz Gonzaga eu conhecia quase tudo” Foto: Arquivo/AE
Foto: Reprodução/AE
Jackson e Luiz Gonzaga: influências randômicas
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Chico Antonio (19041993), embolador potiguar descoberto por Mario de Andrade na década de 20, tem uma estátua na Praça de Toulouse
Asterix para a Presidência. Asterix e Obelix, tanto é que ele me mandou a coleção do Asterix toda em occitan e é bacana, porque tem uma similaridade muito maior com o nosso português do que com o francês. Tem muitas palavras que são muito próximas, as conjugações, o maneirismo, são muito próximos. E para encurtar a história, na praça onde se encontram os troubadours tem uma estátua em tamanho natural do Chico Antonio, o cara que na verdade foi uma descoberta do Mario de Andrade que, mapeando a cultura brasileira, depara-se com Chico Antonio no Rio Grande do Norte e diz: “Esse cara é um monstro”. Lá os caras já o reconheceram como um dos maiores troubadours da atualidade, do século 20, ele é a figura-ícone e é uma pena que no Brasil poucas pessoas o conheçam. Não há uma estátua dele aqui. Não temos uma estátua de Chico Antonio. Mas é muito bacana você saber que a partir do Claude Sicre, dessa fomentação que ele faz, surgiram muitas bandas com embasamento dentro da cultura nordestina, porque foi a parte do mundo todo onde essa cultura talvez tenha se preservado de melhor maneira e tenha dado frutos muito mais interessantes. Porque eles tem três ou quatro fórmulas, fórmulas matemáticas – A, BB, CC, aqueles versos e tal – e a gente tem uma infinidade, a gente levou isso aos extremos, tem o você cai, tem o mourão voltado, o mourão rebatido. Na verdade foi muito bacana porque foi um reconhecimento da parte deles. Se não fosse o Brasil, não se teria preservado isso. Teríamos então esse papel de hibridização, de abrasileirar e recriar essas formas? Hoje a gente fala de globalização, independentemente desses prós e contras, do que isso pode vir a ser, mas se fala na tentativa de ter uma linguagem universal. Está todo mundo procurando um “desesperanto” aí, que faça as pessoas trocarem informações. Eu acho que o Brasil está na frente, estamos na frente até inconscientemente, porque temos 500 e poucos anos de História, de descobrimento ou de estupro, como queiram que se fale sobre o que se deu na História, e o que a gente fez foi misturar. Quer dizer, o que realmente nós temos anterior ao descobrimento é isso, que 1922 já formatou: “Chega aqui junto que eu vou te comer, porque eu vou pegar o que você tem de melhor”. E isto é anterior ao descobrimento, o resto tudo foi importado, chegou para a gente. Continente abril 2004
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Foto: Felipe Falcão
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Qual é a sua formação? Eu estudei Engenharia Química.
Foto: Waldemar Falcâo
Lula Queiroga (acima) e Bráulio Tavares: parceiros constantes
“Quando eu estou compondo com Lula Queiroga, com Bráulio Tavares, Dudu Falcão, Ivan Santos, que são pessoas que como eu trabalham tanto com letra como com música, aí é mais promíscuo ainda. A gente tem música em que um ligou para o outro e disse: ‘Vem cá, ouve isso aqui’. Aí o outro diz: ‘Essa frase não está legal não, cara, muda isso aqui para isso aqui’. Isso é parceria”
Não tem nada a ver. Rapaz, durante um tempo eu achei que não tinha nada a ver, mas do que eu estudei de Química, a coisa mais importante que ficou foi: se você quer ser homogêneo, tem que saber ser heterogêneo, tem que intuir, misturar. Aliás, eu fiquei pensando por que é que fiz Engenharia Química. Depois me lembrei de que no Colégio Salesiano tinha dois professores, o Kramer e o Mendes, um ensinava Química Orgânica e o outro Inorgânica. Os caras eram tão bacanas e mostravam a Química de uma maneira tão cotidiana, tão sem subterfúgio, que eu fiquei apaixonado por aquilo. Então foi realmente um divisor de águas e a Química me ajudou muito nisso. E com a música, como foi? A música sempre me acompanhou, porque sempre lá em casa a música era presente. Meu nome não é artístico, foi escolhido por meu pai que realmente foi um ativista e em contrapartida casou com uma mulher cristã. Então tinha esse dualismo que a gente sempre viveu na infância toda. Meu pai dizia: “Até os oito anos de idade tu vais fazer o que tua mãe quer”. E mamãe fazia questão, ia todo domingo à igreja e todo mundo tinha que ir. Aos oito anos de idade ele dava a opção: “Sua mãe vai à igreja porque ela acha que a conexão com o Divino se dá daquela maneira, ela acredita” e tal. Eu acho que existem outras maneiras. A partir dos oito anos de idade você já tem condições de escolher se quer ir às oito horas da manhã com sua mãe para a igreja ou quer se conectar com o Divino com seu pai aqui, ouvindo música. Resultado: mamãe perdeu todos os parceiros. E a gente, sem querer, para não ir à missa, teve uma bagagem cultural incrível. Eu ouvi canções napolitanas, modinhas portuguesas, Mário Lanza, todos os clássicos – Rimiski-Korsakov, Chopin, Beethoven – só para não ir à missa. E sem falar em toda a gama cultural que existia no Brasil – Nelson Gonçalves, Elizete Cardoso, Agostinho dos Santos, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. E veja bem, foi uma formação subliminar que eu não sabia que tinha, porque quando eu me conheci por gente, com 15, 16 anos, foi o rock que me levou para esse lado da música, cara! Sinceramente, eu não tinha essa ligação consciente com a música local, muito pelo contrário, era meio xiita, achava tudo muito ruim, malfeito, malgravado, sabe? Essa coisa de menino, de jovem querendo ir contra tudo, aliás, eu estou vivendo isto em casa com os meus filhos. E como você descobriu que aquelas, digamos, “raízes” estavam em você também? Na época da Faculdade ainda tinha aquela coisa dos Encontros nos DCEs, eu sou bem fruto disso. Houve um encontro e tal, e botou-se numa vitrola, naquela época ainda era vitrola, um disco do Jackson do Pandeiro, O Rei do Ritmo. Da primeira canção até a última eu sabia todas. E não sabia por que sabia. Quando começou “Morena bela eu era eu sou...”, eu disse: Isso eu Continente abril 2004
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conheço. E saí cantando tudo. Foi de uma maneira randômica que descobri que eu já tinha aquilo ali. Então, de Jackson eu conhecia muita coisa, de Luiz Gonzaga eu conhecia quase tudo, Nelson Gonçalves, Ciro Monteiro, Elizete Cardoso... Sem querer eu sabia. De uma hora para a outra eu saí do roqueiro mais contumaz para um cara completamente aberto que já tinha essa formação. Eu não fui buscar, eu só encontrei nos meus arquivos o que eu conhecia E aí, essa foi a minha escola. Realmente, isso foi a minha escola e o que me possibilitou, talvez esteja aí o cerne da questão desse meu estímulo e dessa minha sede de estar sempre atento, de querer ouvir todas as coisas, de me obrigar a não ter barreira nem filtro. Então isso me acompanhou a vida toda. A música de uma maneira nãoprofissional sempre esteve presente na minha casa, todos os meus irmãos tocavam algum tipo de instrumento, papai e mamãe tinham as rodas nos finais de semana para tocar Dilermando Reis, Canhoto da Paraíba, então eu fui muito sortudo. E a música foi muito generosa comigo. Você passou a viver de música a partir de quando? Não me lembro, cara, porque tem mais a ver com sobreviver. A música no Brasil é uma coisa meio difícil. A gente vai em algumas searas aí muito cabeludas, porque começa por direito autoral: Escritório Central de Arrecadação, o famoso ECAD. Eu não consigo entender por que é que no Brasil tudo o que é débito, eu recebo em casa no dia certo, se eu não pagar tem multa, cortam minha luz etc. Agora, tudo que é crédito, eu tenho que correr atrás, eu tenho que brigar com Deus e o Mundo para receber os meus. Eu acho que isso é uma questão muito séria: por que é que eu não posso receber, da mesma maneira, os meus créditos como recebo os meus débitos? Qualquer rádio tem um programador, qualquer televisão tem uma programação. Música tal foi executada, no mesmo dia botou no computador, três dias depois está no ECAD, e eu não entendo por que acontece isto (esta dificuldade em receber). Então eu acho que é um papo muito grande para se ter e deve se aprofundar isso o quanto antes. Você esteve recentemente com o Pedro Abrunhosa, em Portugal. Como é que foi essa mistura de, repentinamente, voltar à mãe, Portugal? Portugal tem uma história das mais estranhas, porque tem uma tristeza no espírito daquele povo, que a gente percebe, e uma falta de auto-estima pela língua. Não sei dizer o porquê disso, Foto: Fred Jordão/IMAGO
Ao lado: Fred 04, Chico Science e Nação Zumbi não têm clones, pois todo mundo quer fazer diferente Na página seguinte, o conjunto Tira a Poeira, que esquarteja o chorinho, mas com reverência
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No Brasil, o que é que está acontecendo de novo que lhe chama a atenção? Rapaz, tem pintado muita coisa nova. É engraçado, porque eu já ouvi até alguns colegas falando sobre uma possível escassez, uma falta de criatividade, eu acho que tem uma certa miopia em quem fala nisso. Basta você olhar aqui para o Recife. É natural, depois da exposição que teve a Nação Zumbi, que a gente tivesse alguns clones dela, tentando pegar o mesmo nicho do mercado. Eu não vejo isso. Eu vejo uma explosão de irrequietos querendo fazer uma coisa mais diferente do que o outro e isso é muito bacana. Você vê, no Rio de Janeiro, por exemplo, agora tem o Tira a Poeira, que é uma banda de jovens que pegaram o choro, que era aquela coisa de museu, e destrincharam, esquartejaram, mas com muita reverência. O Caio é filho do Paulo Sérgio Santos, tem pedigree no chorinho. E isso está acontecendo no Brasil de uma maneira geral. O Rio Grande do Sul é um grande pólo de rock brasileiro... Assim está acontecendo em Fortaleza. Assim está acontecendo no
“Hoje, com pouquíssima grana você grava um disco. Por que é que isso não é repassado ao preço final do disco? Eu acho que essa é uma questão muito importante a ser levantada, mais do que a pirataria: Quem realmente tem o poder? É quem divulga, é quem produz ou é quem cria? “ Foto: Divulgação
não tenho competência para dizer isso. Mais de 70% do mercado português de música é cantado em inglês. A gente aqui não tem isso, a gente canta em português e cantar e ser compreendido nessa língua, para mim, é o grande charme da coisa. Acho que qualquer língua morre de inveja das nossas esdrúxulas, a proparoxítona. Imagine um francês ouvindo pela primeira vez lâmpada, nítido, límpido. Isso arrasa porque tem essa sonoridade, essa possibilidade real do ritmo associado à sonoridade. A gente tem sete vogais. A gente tem a, ê, é, i, ô, ó, u. Ninguém tem isso. Ninguém tem ão, ão você não ouve em outra língua. Então, esses sons de que a gente se apropriou e deu um jeitão nosso é uma das coisas que temos de melhor e isso está presente na nossa música . Está muito presente e em Portugal, não. Com Pedro (Abrunhosa), já de imediato, tivemos uma empatia porque ele é um cara que batalha por isso com unhas e dentes, é um pop contemporâneo, um grande vendedor de discos, mas que só canta em português. Ele tem uma tradição literária bacanérrima, uma admiração pelo Brasil incomensurável e me convidou para fazer duas participações e uma das faixas virou clipe. E não só com ele eu tenho ligação: há Maria João e Mário Lajinha, que são dois intérpretes, aí numa seara mais jazzística, com quem tenho relação; eu conheço Rui Veloso...
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Maranhão. A gente começa a falar do Boi de Parintins, extremo norte e tudo, então a gente está começando até a descobrir outros Brasis que estão um pouco à margem e precisando ser descobertos. Eu acho que a gente nunca esteve tão bem das pernas, que nunca teve tanta coisa bacana acontecendo. Agora, o fato de a mídia estar focalizada nisso ou não, é uma outra questão e quem rege essa mídia também é uma outra questão, que interesses essa mídia tem, também é outra questão. Mas há um fato: continua existindo a sucessão de gerações de criadores, disso eu não tenho a menor dúvida. Você não sente necessidade de lançar um disco todo o ano? Há dois anos que você não lança discos. Está planejando alguma coisa? Estou, eu sou meio bissexto para fazer um disco, não é, velho? Mas isso não foi planejado, foi muito, como eu te falei, pelo fato de ter sido sempre um compositor, eu não sei fazer discos com essa voracidade. Você tem algum método de trabalho? Não. Não existe método de trabalho, existe tentativa de acerto e erro...
disse: “Vem cá, ouve isso aqui”. Aí o outro diz: “Essa frase não está legal não, cara, muda isso aqui para isso aqui”. Isso é parceria. Então é um outro tipo de coisa. Eu trabalho sozinho, mas talvez imbuído pela formação socialista eu prefira muito a parceria. E nesse caso da parceria não tem regra, não tem a mínima regra, tem canção que surge como que “psicofonada”. É como se eu estivesse aqui e pintasse aquele “engolindo sapo e vomitando príncipe”. Aquilo já está ali meio como uma represa, como um pipocar. Às vezes, você passa um ano atrás daquela passagem harmônica, daquela ponte melódica, falta aquele tantinho ali. Então não tem regra. A maioria das vezes é um estímulo visual, para mim é sempre visual, mais do que sonoro. É chegar ao estúdio atrasado, o produtor estar na rede se balançando e o barulho... (imita o barulho da rede balançando) Aí eu disse: Grava isso aqui. Eu não sabia o que ia fazer com aquilo, mas o groove estava ali – “nhoi, nhoi” – e a música “Rede” surgiu por causa do ruído, de eu ter chegado atrasado ao estúdio e estar o produtor, que é o Capone, que é um big produtor, acima dos 100 quilos, se balançando e fazendo aquele ruído. Então a rede, a rede de balançar, a rede de Internet, a rede de pescar, o estímulo foi visual, mais do que sonoro, apesar de eu ter usado o som da rede para ser o fio condutor da canção. Não tem regra.
Mas você faz primeiro a música e depois a letra ou faz a letra primeiro e depois a música, ou é de outro jeito? Quando a parceria é, por exemplo, com Paulo Cesar Pinheiro, com Sérgio Madureira, com Carlos Renó, é natural que minha participação seja muito mais musical, pois eles são poetas, são pessoas que lidam com a literatura, E formação de música, você com a mecânica das palavras. Mas existe uma área em que eu atuo mais, como no caso quan- estudou alguma coisa? do eu estou compondo com Lula Queiroga, Tentei, mas foi frustrante. O Consercom Bráulio Tavares, Dudu Falcão, Ivan San- vatório para mim foi uma... tos, que são pessoas que como eu trabalham E o curso de Química, você chegou a tanto com letra como com música. Aí é mais promíscuo ainda, porque tem canções onde a terminar? gente põe uma vírgula. Por exemplo, nessa parNão. Fiz quatro anos, quando faltavam seis ceria com Bráulio Tavares e com Lula, a gente meses, foi quando surgiu o MPB Shell, eu já tem música em que um ligou para o outro e estava indo para o Rio, nascendo o primeiro Continente abril 2004
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Eles mexem com música? Todos os três são “bichados”.
E a experiência de cantar para Fidel Castro? Pô! Bacanérrimo!
E o socialismo, Lenine? Saiu da moda? É apenas uma lembrança? É uma utopia? Contaste para o teu pai? A estátua do pobre coitado já caiu. Eu É lógico. Quando eu cheguei à Ilha, acho que o único Lenine em alta, atualmen- a primeira coisa que eu fiz foi pegar o te, sou eu. Mas os ideais, eu sempre fui mais telefone e dizer: Geraldo Pipara Bakunin do que para Lenine. Eu semmentel, estou na Ilha! E ele pre tive mais uma simpatia, desde a formafeliz da vida. É muito ção. Num primeiro momento, gostava do bacana. •
“Meu pai dizia: ‘A partir dos oito anos de idade você já tem condições de escolher se quer ir às oito horas da manhã com sua mãe para a igreja ou quer se conectar com o Divino com seu pai, aqui, ouvindo música’. Resultado: mamãe perdeu todos os parceiros. E a gente, sem querer, para não ir à missa, teve uma bagagem cultural incrível”
Foto: Hans Manteuffel
filho, tranquei a faculdade, achando que ia Trotsky, achei que ele tinha uma coisa mais passar só um tempo e voltar – e até hoje... condescendente e era a minha briga com o meu pai durante muitos anos, uma briga do São quase vinte e cinco anos... bem, uma briga de idéias. Mas com o tempo E os filhos? a gente foi de certa maneira se transformanTrês filhos, o João com 24, o Bruno com do. Então eu estou mais para Bakunin do l5 e o Bernardo com 9. Só fiz peru. que qualquer coisa.
Foto: Hans Manteuffel
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Brasileiramente universal
O músico, que tem se esquivado de corresponder a interesses comerciais, integra-se a um movimento espontâneo de renovação estética Lauro Lisboa Garcia
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esde que lançou Olho de Peixe (1993), parceria com o percussionista Marcos Suzano, Lenine mostrou que veio para balançar as pontes – não para derrubá-las. Não que tivesse arquitetado um estratagema durante os 10 anos que o separam do primeiro trabalho, o tímido Baque Solto (1983), com Lula Queiroga, grande parceiro de outras jornadas. Olho de Peixe foi produzido e lançado discretamente, mas cresceu no boca a boca, proporcionando o prazer das descobertas lentas, de detalhes que surgem a cada audição mais minuciosa. Tanto é que nos anos seguintes quase todas as canções do disco foram regravadas por outros intérpretes. Tornou-se, por fim, um dos pontos de referência de um movimento espontâneo de renovação estética, que se urdia no pop brasileiro em meados dos anos 90. Tanto pela personalidade das canções e do violão de Lenine quanto pela lição de entrosamento entre a rítmica percussiva desse violão com a mão de Suzano no couro. Mais ainda pela expectativa do que dali ainda iria brotar. Lenine demorou 20 anos para ganhar relativa popularidade e nem deve isso a uma imagem célebre, já que – com exceção da edição européia de O Dia em que Faremos Contato
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(1997) – nunca aparece nas capas dos discos. Prefere se esconder por trás das boas idéias, muitas das quais extrai das manifestações visuais, como cinema, quadrinhos e histórias de ficção científica. Samba, funk, rock, rap, maracatu, trip hop se entrelaçam e se justapõem sob o sotaque de Lenine para criar algo específico. Como se o tempo em que ficou amadurecendo no retiro impulsionasse a mola criativa para um salto urgente, Lenine expôs mais seu lado de intérprete e arranjador em ...Contato. Somado às categorias já reveladas de violonista e excelente compositor, o acúmulo de funções resultou em plenitude artística. A tecnologia, a partir daí, vem a ser uma das ferramentas fundamentais de afirmação de sua identidade. É brasileiramente universal, como outros que falam para o mundo a partir do seu quintal, mas com uma impressão digital inconfundível. Na Pressão (1999) e Falange Canibal (2002), seus discos seguintes, são de um acabamento técnico exemplar, à altura do conteúdo. Até a adolescência, Lenine era fã de rock progressivo e detestava música brasileira, principalmente pela precariedade técnica dos discos. Não seria ele, em plena era digital, quem faria por menos. A música brasileira pode ter perdido no tempo de maturação interna de Lenine, mas se tivesse caído nas malhas da indústria nos anos 80, ele provavelmente não vingaria. Com todas as incertezas que o falido mercado vive hoje, é melhor do que ter sido sugado no vácuo entre o rock insosso e a MPB caquética daquele período. Que digam os sobreviventes de exceção. Atualmente, como os executivos das gravadoras já não sabem para onde atirar, fica mais fácil para quem de fato usa a inteligência para o bem da música. Do sobrevôo pelos 80, com esporádicas aparições nos discos da sempre fiel porta-voz Elba Ramalho, ele aterrissou direto na ebulição neotropicalista dos 90. Em linha paralela, Cássia Eller, Chico Science, Zeca Baleiro, Chico César, Skank, O Rappa, Rita Ribeiro, Marisa Monte, Daúde, Daniela Mercury, cada um a seu modo, faziam-se valer das facilidades tecnológicas dos novos tempos, sem ideologia e de plena integração planetária, para deitar e rolar no conforto do canibalismo que não precisa rotular seu nome. Como o paraibano Chico César e o maranhense Zeca Baleiro, também revelados na casa dos 30 anos, Lenine virou alvo de uma infinidade de intérpretes. Atende àqueles que levam vida sossegada, esperando a cristalização suprema, mas reclamam que deviam ter ousado mais. E também sacia os que ousam. Ele já afirmou que se situa como um “espelho polido para refletir o que o cerca”. Nestes tempos esquisitos de vale-tudo, de jogos de conveniência e gosto duvidoso, o músico tem se esquivado de corresponder a interesses comerciais. Quando se dispôs a cuidar da direção musical de Cambaio (2001), peça teatral com belas canções dos curtidos Edu Lobo e Chico Buarque, aceitou os riscos do experimento com jovens inexperientes. Sem fórmula, numa cautelosa revanche pelos anos de marasmo da MPB – provocados tanto pelos filhotes quanto pelos donos da fonte da qual ele não bebeu – sua música, brotada da intuição, impõese emparelhada à juventude que o acompanha. E a leva adiante. • Lauro Lisboa Garcia é jornalista e crítico de música popular.
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Arte indignada Siron Franco constrói uma obra de alto teor crítico, onde não impera uma programática de engajamento, mas sim a revolta do cidadão Marco Polo
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iz Ricardo Piglia que “se ser de vanguarda quer dizer ‘moderno’, todos nós, escritores, queremos ser de vanguarda”. Mas, continua: “nos dias de hoje, pelo menos na Argentina, a vanguarda converteu-se num gênero. Existe uma maneira cristalizada, tão plena de convicções e de regras, que se poderia escrever um romance de vanguarda com a mesma facilidade com que se pode escrever, por exemplo, um romance policial”. Trocando a Argentina pelo Brasil, e o “romance de vanguarda” pelo que se convencionou aqui chamar de “arte contemporânea”, teremos uma equação similar, da qual poucos têm escapado (o que não quer dizer que não haja bons artistas fazendo arte contemporânea realmente criativa e de qualidade. Nelson Lerner, Cildo Meireles, Regina Silveira estão aí para provar isso). O fato é que poucos artistas têm tido a coragem de escolher um caminho realmente pessoal, que fuja às imposições das “últimas tendências internacionais” (leia-se “tendências de mercado”). Entre estes, destaca-se, pela coerência de seu percurso, paradoxalmente multifacetado, o goiano Siron Franco. Siron Franco nasceu de família pobre e, quando pequeno, contribuía para a economia doméstica ajudando o pai na padaria onde o mesmo trabalhava, ou vendendo nos campos de futebol os pastéis que sua mãe fazia. Apesar de aluno desatento – como geralmente eram os alunos de inteligência inquieta obrigados a uma pedagogia burocrática, típica do século passado – Siron gostava de desenhar. Com uma diferença. Se toda criança gosta de desenhar numa certa fase e depois pára, Siron não parou mais.
O pintor Siron Franco Abaixo, Sem Título, 1980, óleo sobre tela, 180x170cm, coleção particular, Recife Na página anterior, Situação (detalhe), 1977, óleo sobre tela, 70x60cm, coleção Uébio Salazar, Brasília
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Começou a freqüentar o estúdio de dois pintores locais, D. J. Oliveira e Cleber Gouvêa, mas foi no fradepintor Confaloni, fundador da primeira escola de belasartes de Goiânia, que Siron encontrou um mentor mais capacitado. Em pouco tempo estava pintando figuras de santos e madonas, que tinham comércio fácil numa comunidade onde o catolicismo era uma grande força. Depois, passou a pintar retratos de gente da sociedade local. Em 1967, com 20 anos, ao retratar a mulher do governador de Goiás, abriu caminho para Brasília, onde se tornou o pintor oficial de figuras da alta sociedade da capital brasileira. Neste mesmo ano fez sua primeira individual (antes mesmo de participar de qualquer coletiva) no Hotel Bandeirantes e conseguiu classificar três desenhos na Segunda Bienal da Bahia. Sua estréia como artista profissional foi tumultuada, como se preconizasse um futuro de conflitos ante desmandos e prepotências. Na noite mesma da inauguração, a Bienal foi fechada pelas tropas da ditadura militar e duas das obras de Siron foram destruídas. A que sobrou, Cavalo de Tróia, recebeu o Prêmio de Aquisição. Com escolaridade precária, sem acesso a galerias e museus nem a livros de arte, sem mestres nem parâmetros pelos quais se orientar, Siron, com este prêmio,
Salomé no Rio (detalhe), 1985, óleo sobre tela, 90x80cm, coleção Franz Hantkie, São Paulo Continente abril 2004
sentiu-se mais seguro para persistir. Começa então uma série de exposições em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília até despertar a atenção de Walmir Ayala, poeta, crítico de arte e editor de cultura do Jornal do Brasil, e de Jayme Maurício, editor cultural do Correio da Manhã, que passaram a promover o novo artista. A partir daí a carreira de Siron ascendeu. Em 1973 foi convidado para participar do Primeiro Salão Global da Primavera, em Brasília, ganhando o Prêmio de Viagem, que lhe possibilitou passar seis meses no México, a primeira de muitas viagens internacionais. Ao longo de sua carreira, Siron Franco passou por diversas fases, à maneira de Picasso, uma de suas admirações. Começou criando figuras monstruosas, meio homens, meio animais, embora o artista dissesse que “não retrato animais nem monstros. São seres deformados pelas circunstâncias, como o homem tecnológico, ingenuamente equilibrado sobre as próprias rodas, com a expressão brutal e empedernida dos radicais, dos executivos”. Em 1987, uma bomba de césio-137, utilizada em experiências médicas, foi criminosamente jogada num lixão perto da Rua 57, de Goiana. Crianças, adultos e animais se lambuzaram com o pó fosforescente que ela continha sem saber que era altamente radioativo. A tragédia
Acima, Sem Título, 1980, óleo sobre tela, 190x180cm, coleção Ruth Nilman, Porto Alegre Ao lado, Personagem Indeciso (detalhe), 1986, óleo sobre tela, 80x70cm, coleção particular, Nova York
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Acima, O Travesti (detalhe), 1981, óleo sobre tela,120x90cm, coleção particular, Rio de Janeiro À esquerda, Salão de Beleza, 1980, óleo sobre tela, 180x170cm, coleção Simone e Michael Naify, Rio de Janeiro
tocou particularmente Siron, que tinha morado naquela rua quando menino. Daí surgiu a primeira de suas séries mais polêmicas, enfocando criticamente o tema. Em 1986 já tinha aceitado uma encomenda da comunidade ecumênica Bahá’i. Siron idealizou uma ampulheta gigante que seria preenchida com punhados de terra de todos os países do mundo: um símbolo de igualdade e convivência pacífica num mesmo espaço e tempo. Em 1990, no Dia da Criança, fez uma instalação no platô governamental de Brasília, com mil e vinte caixões pequenos pintados de verde, amarelo e azul, que vistos de longe formavam a bandeira nacional, num protesto contra a mortalidade infantil. Em 1992, num terreno doado pelo colecionador Roberto Coimbra Bueno, em Buriti Sereno, próximo ao seu ateliê, Siron Franco criou um Monumento às Nações Indígenas, constituído de 500 colunas de 2,10 metros de altura, nas quais estão inscritas cópias de objetos indígenas e inscrições rupestres. Mas é sobretudo na pintura que a arte de Siron se faz soberana. Um bom exemplo é a famosa série Peles, iniciada também em 1992, em que denuncia a matança de bichos para serem transformados em casados de peles de socialites, Continente abril 2004
e na qual evolui para quadros que beiram a abstração. Para quem se sente mais confortável perante classificações, pode-se traçar uma genealogia da obra do artista goiano partindo de Bosch e Brueghel, passando por Goya, até chegar a Cuevas e Bacon, todos, artistas que usaram a deformação da figura como instrumento de crítica. Entretanto, o que se nota é menos influência do que identificação, até porque sua linguagem, apesar das várias transmutações acontecidas durante seu percurso, conserva a marca da sua personalidade. Uma personalidade forte que, com total desenvoltura, mistura “arte maior” e “arte menor” (se é que isso existe), construindo um trabalho de alto teor crítico onde, contudo, não impera uma programática de engajamento. É, isto sim, a revolta do cidadão Siron que se transmuda, pelas mãos do artista, em uma obra – indignada, sim, mas, sobretudo, obra de arte. E que termina por situá-lo no primeiro time dos pintores brasileiros. Como toda arte que merece este nome, para além de meros jogos lúdicos ou exercícios especulativos, a arte de Siron Franco está inextricavelmente ligada à vida, ou seja, ao que se passa ao redor e dentro do artista. •
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Metamorfose (detalhe), 1979, óleo sobre tela, 155x135cm, coleção Antônio de Souza Naves, São Paulo
Siron Franco carrega indagações em sua arte, em sua persistência e sina João Câmara
ondenado à figura, aos dramas que porejam do cerne e da casca da condição humana, Siron Franco aceitou tal compromisso sem resignação e com toda intensidade e energia exigida. Compromisso há, de fato, porque, mais que penalidade cômoda, pintar figuras impôs reciprocidades éticas entre o artista, a arte e o ofício. De tal modo que, cativo embora da contingência, ele, artista e homem, deveu romper limites, explorar paradoxos, pôr-sse para fora do cárcere e expiar-eespiar para dentro da jaula-ccaixa figurativa. A imaginação (que faz parte desta vertigem de espelhos e reflexos) é, portanto, obrigação, tarefa e ônus, embora pareça sempre – a quem veja a obra feita – uma beldade adejante e decorativa que apenas pousou no ângulo de um quadro. Nem um pouco. Tudo é puro (impuro) trabalho e, não bastasse o exigido e o exigível, há ainda a exação e o assédio para que tudo esteja claro e simpático, haja etiqueta e regras (in)sociáveis e estéticas, exare-sse a sentença exemplar ao sucesso e ao optimo currículo prático. Isto é: fora de um cárcere há um outro e outros mais, como exasperantes caixas chinesas invertidas. Siron tem lidado com esta pressão-pprisão e tem se livrado dela com humor e tática. Uma instalação aqui, uma reportagem visual ali... Denúncias humanitárias & ecológicas, veneno radiativo, mortandade de bichos e de gentes, ouro verrumado do chão. Manobras externas ao ato de pintar. Artista-ppersonagem. Pequenos e grandes
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Siron, franco, cativo teatros, gestos midiáticos. Tributos que paga para manter aguçados os instrumentos, armas e meios de produção e presença. Difícil vida (ele não esperava outra) para quem força saída do coração das trevas, de um mundo que é infernal não apenas por ser “destituído’ e recôndito, mas por ser encruzilhada e fronteira. Limites borrados. Onde termina o árabe (“o turco”) e começa o índio? A roupa de madame: onde termina o fausto, o pano, a seda, a pele, o couro e (re)começa o corpo? O bicho: quando vira fábula? De quem estas terras, a quem estes gados? Onde mataram “Chico” Mineiro? Onde termina, começa algum Brasil, uma Brasília? Siron carrega estas indagações em sua arte, em sua persistência e sina. Perguntas sobre a substância dos seres e, muitas vezes muitas, sobre a pele das coisas: a pele, o pêlo, a pelagem, a mimese do bicho e a mimese na e da pintura. Um tecido – a tessitura – a textura de cada coisa, ente, terra, paisagem. Tela ou onça, pintadas. A captura – (a caça) – destas coisas exige perícia e rapidez. É célere, o pintor. E hábil para produzir, em fuga, a espontaneidade do gesto preênsil, a atitude sedutora de olhos, hipnotizadora de presas e platéias. Caçador e caçado, nosso franco Siron persegue e é perseguido. O “dia da caça” dizem uns. “Do caçador”, gritam os outros. Siron (mateiro) é rápido, furtivo, matreiro. Siron escapa. • João Câmara é pintor.
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A arquitetura como vôo Oscar Niemeyer ampliou o vocabulário formal da Arquitetura
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Editora Revan acaba de lançar um livro de Oscar Niemeyer intitulado Minha Arquitetura. O volume, de excelente qualidade gráfica, nos permite conhecer melhor a personalidade e o pensamento do arquiteto bem como a sua obra caracterizada pela beleza e inventividade formal. Este não é primeiro livro em que ele fala de sua vida e de sua concepção arquitetônica nem tampouco o único em que se pode apreciar a amplitude e riqueza de sua arquitetura, mas justifica-se, quando mais não fosse, por nos mostrar as últimas criações deste artista incomparável que, aos 96 anos de vida, continua a criar com o mesmo ímpeto e audácia dos primeiros anos. O talento de Oscar manifestou-se muito cedo e já surpreendentemente maduro, como revela o episódio – que ele narra no livro – relacionado com o projeto de Le Corbusier para o edifício do Ministério da Educação e Saúde, em 1937. Como é sabido, aceito o projeto do mestre francês, foi criada uma equipe chefiada por Lúcio Costa para desenvolvê-lo. Oscar, o mais novo do grupo, esboçou, por sua conta, algumas modificações no projeto original. Um dos companheiros, ao ver o esboço de Oscar, entusiasmou-se e foi chamar Lúcio Costa para vê-lo. Oscar embolou o papel em que fizera os desenhos e o jogou pela janela. Lúcio mandou apanhá-lo e decidiu adotar as modificações sugeridas pelo jovem arquiteto e que deram ao célebre edifício a monumentalidade que passou a caracterizá-lo. Oscar Niemeyer era discípulo de Le Corbusier, apreendera em suas obras e livros a visão da nova arquitetura, Continente abril 2004
mas logo percebeu que a preocupação funcionalista limitava a inventividade formal, impondo aos projetos a construção ortogonal, uma espécie de ditadura do ângulo reto. Quando, em 1942, foi chamado por Juscelino Kubitschek para projetar o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, rompeu com o esquema funcionalista e deu preponderância às curvas, abrindo um novo caminho para a linguagem arquitetônica moderna e para a exploração das possibilidades plásticas do concreto armado. Não há exagero em supor que Le Corbusier, ao projetar em 1950, a capela de Ronchamp – em que se afastou da ortodoxia ortogonal – teria se inspirado nas inovações do jovem discípulo brasileiro. Mas a relação entre os dois arquitetos não acaba aí. Quando, em 1947, Oscar foi convidado por Wallace Harrison a participar da equipe de arquitetos que projetaria sede da ONU, em Nova York, Le Corbusier, cujo projeto estava sendo muito criticado, pedira a Oscar que tomasse sua defesa. Mas Harrison insistiu com o brasileiro para que também concorresse. Oscar foi para o hotel e esboçou um projeto, que foi aceito por unanimidade pela equipe. Após a escolha, Le Corbusier, inconformado, procurou Oscar e insistiu em que ele adotasse no seu projeto parte da concepção do dele, Corbusier. Oscar, embora discordando, aceitou. E assim, o projeto construído trouxe a assinatura dos dois arquitetos. Um tipo de delicadeza e generosidade que caracteriza a personalidade de Niemeyer, no trato com os amigos e companheiros, ao longo de sua vida. Na introdução do livro, José Carlos Sussekind, que substituiu o pernambucano Joaquim Cardozo como cal-
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culista das obras de Niemeyer, chama a atenção para o fato de que o desenvolvimento da sua obra “sempre esteve umbilicalmente ligado ao avanço da tecnologia do concreto armado”. A audácia do arquiteto brasileiro na concepção de formas arquitetônicas nunca imaginadas levou técnicos estrangeiros a considerá-las inexeqüíveis, como no caso da Universidade de Constantine, na Argélia, e da sede da editora Mondadori, em Milão. Em ambos os casos foi a competência de calculistas brasileiros que resolveu o problema. E, assim, através dos anos, Niemeyer tem introduzido na construção arquitetônica balanços de 25 a 80 metros e vãos de 50, que distinguem a arquitetura brasileira e a situam como inovadora da linguagem arquitetônica mundial e da técnica de construir. Mas, a par disso, um dos traços mais relevantes da obra de Oscar Niemeyer é a sua inventividade formal e poética que o distingue como um criador sem comparação em toda a história da arquitetura. Do conjunto de Pampulha, com sua capela e sua marquise ondulada aos edifícios residenciais de Belo Horizonte e São Paulo, dos palácios de Brasília com sua catedral aos últimos projetos para Niterói e Curitiba, deslumbra-nos a sua capacidade inventar novas formas de rara plasticidade e beleza. Tinha razão Joaquim Cardozo quando afirmou que, depois de Picasso, Oscar Niemeyer era o maior criador de formas da arte contemporânea. E ele foi, sem dúvida, o arquiteto que mais ampliou o vocabulário formal da arquitetura em toda a sua história. Esta sua inventividade, que fascina todos, levou alguns invejosos ou falsos entendidos a afirmar que Oscar é mais
escultor que arquiteto. A principal alegação é que ele se preocupa muito mais com a beleza exterior do edifício do que a sua funcionalidade. Não há dúvida – como já dissemos aqui – que foi o rompimento com a ditadura do funcionalismo arquitetônico que lhe possibilitou inovar a linguagem plástica da arquitetura. Isto não significa, porém, que ele não leve em conta a finalidade a que cada edifício se destina. Aliás, muitas vezes, essa finalidade inspira-lhe a solução plástica inovadora. É verdade, porém, que ele tem clara noção do peso que esse fator deve ter na criação do arquiteto. Respondendo a esse tipo de crítica, disse ele certa vez: “Com os anos, o que servia plenamente ao funcionamento do prédio torna-se insuficiente. Um edifício pode ser funcional hoje e não-funcional amanhã”. É verdade, e um exemplo extremo disso são as grandes mansões residenciais da época colonial que se valiam de grande número de escravos para funcionar. Com o fim da escravidão e a drástica redução dos serviçais domésticos, esse tipo de arquitetura residencial tornou-se funcionalmente inviável, conforme observou o mestre Lúcio Costa. Enfim, queremos terminar este registro chamando a atenção do leitor para a lição que está implícita na obra deste grande artista brasileiro que nos faz acreditar mais em nossa capacidade de criar o novo com alegria. Se a nossa sociedade continua injusta, não será com pessimismo que havemos de tornála melhor. Ao criar uma forma bela, como o novo museu de Curitiba, Oscar nos ensina como ainda há de ser a vida. • Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte.
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Um mito que não sai de moda Filmes e romance mostram a gênese do espírito revolucionário de Ernesto Che Guevara, que encarna um mito da juventude em todo o mundo Luciano Trigo
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Fotos: Reprodução
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Para Che, a América Latina deixava de fazer sentido como um agregado de nações, era antes uma entidade econômica e cultural, cuja libertação requeria uma estratégia intercontinental
O jovem Ernesto com a velha moto: início de um sentimento latino-americano
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ucesso no último Festival de Sundance e com estréia prevista no Brasil para julho, o filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles, é a ponta de lança de um revival em torno de Che Guevara, o revolucionário que se transformou num mito que não sai de moda. Inspirando geração após geração de rebeldes e inconformistas, encarnando o ideal de uma vida em que a exigência de justiça e o desejo de revolução não contradiz a decisão de encarar a existência como uma aventura, Che continua tendo seu rosto e seu sorriso reproduzidos em cartazes e camisetas no mundo inteiro, mesmo que a globalização torne cada vez mais escasso o espaço para utopias. Estrelado por Gael García Bernal (de Amores Brutos e O Crime do Padre Amaro), o filme narra a viagem de oito meses que o jovem médico argentino Ernesto Guevara de La Serna fez pela América Latina em 1952, aos 23 anos, antes de se tornar Che, com seu amigo Alberto Granado, hoje com 81 anos. A bordo de uma motocicleta, uma Norton 500 caindo aos pedaços, batizada por Granado de “La Poderosa”, eles
passaram por cidades do Chile, Peru, Colômbia e Venezuela. A moto, naturalmente, não resistiu nem à metade do caminho. Sem dinheiro, Guevara e Granado viajaram de carona e até mesmo como clandestinos em navios de carga. Se “La poderosa” foi o “tapete mágico” que os levou a desbravar o continente, ela foi também fonte de inúmeros percalços, como as peças quebradas constantemente e os acidentes – alguns tragicômicos. Antes de desistirem da empreitada sobre duas rodas e se tornarem andarilhos e caroneiros, numa viagem de poucos recursos e muito desprendimento, eles chegaram a sofrer nove quedas da moto num mesmo dia. Ao chegarem ao Chile, planejam uma viagem à Ilha de Páscoa, atrás de belas mulheres. São tratados como especialistas em lepra em Tamuco e, quando a moto quebra em definitivo, eles são obrigados a fugir de um povoado depois que Che seduz uma mulher casada. Passam por Cuzco e Machu Picchu, embrenham-se na selva e trabalham no leprosário de San Pablo. Sonham com um continente sem miséria. Navegando pelo rio Amazonas, entram por engano em território brasileiro. Continente abril 2004
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Foto: www.bogdant.net
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Machu Picchu, “expressão pura da mais poderosa raça indígena das américas”
Para Ernesto, não se tratou apenas de uma aventura juvenil. “Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa maiúscula América me transformou mais do que me dei conta”, escreveu no diário que inspirou o filme. Foi uma viagem iniciática, de conhecimento de um continente, de seus povos, suas culturas e suas explorações e misérias. Quando partiu, era um estudante de Medicina de 23 anos que andava entediado com a rotina e queria desbravar novos mundos. Não revelava interesses políticos e namorava uma dondoca, Chinchina, de uma tradicional família de Córdoba. A viagem o transforma. Che e seu amigo Granado também querem se divertir, conhecer mulheres e lugares turísticos. Visitam encantados a catedral de Cuzco, o Museu Arqueológico e Antropológico de Lima e a “expressão pura da mais poderosa raça indígena das Américas”, Machu Picchu. Mas têm também um projeto social: conhecer os médicos e os hospitais públicos dos países que visitam, particularmente os que atendem aos leprosos. Pa-
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ra pagar as despesas de viagem, trabalham como carregadores, lavadores de prato, marinheiros e médicos, o que já revela sua coragem, espírito de independência e desprezo pelo perigo. Foi a partir dessa viagem que Ernesto Guevara começou a se sentir e se expressar como um latino-americano, e não apenas como argentino, ao testemunhar o desamparo, a exploração e a miséria como traço característico do nosso continente. Alberto e Ernesto descobrem a injustiça do mundo e a chance de dar um sentido à sua própria extraordinária liberdade. A solução para o drama coletivo que testemunha parece estar na revolução. Para Che, a América Latina deixava de fazer sentido como um agregado de nações, era antes uma entidade econômica e cultural, cuja libertação requeria uma estratégia intercontinental. Nesse momento formou-se um homem que unia a sede de liberdade com a necessidade de uma escolha política radical e intransigente, em defesa de justiça social para as populações miseráveis da América
REGISTRO
Camilla Maia/ Ag. O Globo
Latina, vítimas, então como agora, do poder econômico e político dos Estados Unidos. Uma curiosidade. Já no final da viagem, os dois amigos navegavam pelo rio Amazonas na madrugada de 22 de junho de 1952. Usavam como transporte uma balsa rudimentar e tentavam dormir sob um ataque de mosquitos. Eles vinham da colônia de leprosos de San Pablo, no Peru, e se dirigiam à cidade colombiana de Leticia. Ao acordar pela manhã, avistaram uma cabana. Foram avisados pelo morador, em português, que estavam em águas brasileiras. Teriam de remar sete horas contra a correnteza para retornar ao destino planejado. Os dois percorriam havia seis meses a América do Sul. Prosseguiriam nas andanças por mais 34 dias. Encerraram a expedição em Caracas, Venezuela. Tinham reservado o ano de 1952 para a aventura. Biógrafos do mártir da esquerda encaram a perambulação de Che como um embrião da trajetória do futuro guerrilheiro. Sete anos depois da saga pelas estradas, Che tornou-se um dos líderes da Revolução Cubana. Tentou desencadear uma onda de revoluções populares no Terceiro Mundo e, durante uma das missões, foi capturado e executado por soldados bolivia-
“Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa maiúscula América me transformou mais do que me dei conta”
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nos, treinados pela CIA, em 1967. Além da obra de Walter Salles, Che Guevara também é tema do novo filme de Terence Malick (de Atrás da Linha Vermelha), com Benicio Del Toro no papel principal. Por fim, o cineasta Gianni Miná acaba de dirigir um documentário sobre a juventude do líder guerrilheiro, Viajando com Che Guevara, que relata a aventura dos dois amigos de motocicleta. A febre também chega às livrarias: o romance de estréia de Ana Menéndez, Loving Che, já é um fenômeno editorial. Ana conta a história de uma mulher que vai a Cuba em busca de informações sobre a mãe que nunca conheceu. Che sobrevive como ícone pop. A imagem do rosto do mito adornado por uma boina, registrada pelo fotógrafo Alberto Korda, é ainda amplamente reproduzida. No imaginário de todos os que sonham com um mundo diferente, ele é sinônimo de coragem, sacrifício, rebeldia e solidariedade. Mais do que um símbolo do socialismo, Che Guevara se tornou um herói da juventude. • Luciano Trigo é jornalista.
O revolucionário argentino sobrevive como um ídolo pop
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60 CINEMA
Reprodução: Paramount Pictures
Marlon e
As trajetórias diametralmente opostas de dois astros – Marlon Brando e Doris Day – são reveladoras das faces e entranhas da Meca da indústria do cinema mundial Fernando Monteiro
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maginem-se as duas faces de uma mesma moeda de ouro hollywoodiano, sem qualquer relação uma com a outra, apesar do cunho igual, da matriz idêntica de metal dourado mostrando as caras de dois “coroas” – um homem e uma mulher – nascidos no mesmo dia, mês e ano. Seus nomes, a Hollywood imperial das bilheterias tornou familiares como os retratos de César e Faustina, nas colônias culturais de todo o mundo: Marlon Brando e Doris Day. Ambos acabam de completar oitenta anos no mesmo dia (03 de abril), glórias vivas de uma época única, quando a casa da moeda do cinema moldava carreiras construídas laboriosamente e mitos surgidos da noite para o dia, na mesma fôrma da “usina de sonhos” que Nathanael West descreveu como de “pesadelos”, no apocalíptico O Dia do Gafanhoto. Não se pode pensar em duas pessoas, em duas “estrelas” mais diferentes do que Brando e Doris (que, segundo as más línguas, teria subtraído dois anos do
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seu nascimento como Mary Anne Kapelhoff, em Cincinnati, Ohio). Nada mais americano. Vale, entretanto, o que está na biografia “oficial” da atriz, mesmo que Miss Day talvez tenha comemorado secretamente, em 2002, a data real em que veio ao mundo num cenário bem diferente daquele que acolheu Marlon Brando, no Meio-Oeste americaníssimo. O ator nunca escondeu a idade (e a vaidade): Marlon Brando nasceu realmente Marlon Brando, o mesmo nome do pai (com quem jamais se entenderia bem), numa casa de telhas de madeira da rua Mason, em Omaha, Nebraska, naquele mesmo dia de aniversário da loura “namoradinha da América”. E a origem rural sempre foi motivo de orgulho para o ator de tez amorenada, que se considera um “matuto conquistador da cidade grande”. Os dois nunca fizeram nenhum filme juntos e fica até difícil imaginá-los a contracenar na tela, com suas personalidades tão diversas: Doris, a adorável cantora e comediante de filmes leves, e Brando, o rebelde com e sem causa, crítico número um da mesma América odiosa (para ele) pelas crueldades e injustiças perpetradas contra índios e negros no topo da lista das minorias e etnias pelas quais o astro fez campanhas, chegou a ser preso e viajou um bocado, pagando as despesas do próprio bolso de ganhador de fortunas, como 14 milhões de dólares por só um dos filmes (O Poderoso Chefão) em que ganhou o que sempre pede: 11,3 por cento de participação nos lucros. Doris Day – com o cabelo curto e o sorriso de eterna adolescente – nasceu no horizonte próspero das corridas e das fábricas remontadas sobre os sombrios anos da Depressão, começando como vocalista de The Browne’s (a guloseima de chocolate ianque). Nos anos 40, já encantava as tropas com um grande sucesso, acompanhada pela banda de Bob Crosby: “Sentimental Journey”, o primeiro hit da moça de beleza sardenta, confiante num futuro de pétalas de rosas sob o dossel de estrelas da MGM. Quase ao mesmo tempo, Marlon Brando não passava de um jovem arruaceiro que teve de ser mandado para a Escola Militar de Shattuck (onde o pai também estudara). Dali, “Bud” seria expulso por indisciplina, em 1943, entre outras coisas porque era um cadete de idéias tão radicais como passar as férias viajando, sem um centavo no bolso, na companhia de mendigos e vagabundos profissionais, apenas para ver como era vadiar a sério, sem rumo certo e deixando-se levar pelos encontros e desencontros de estrada (nada mais beatnik). Doris, naquele mesmo momento, talvez estivesse num dos trens que Marlon aprendera a escolher – “os mais pesados de carga, porque chacoalhavam menos” – ela nos vagões de passageiros da primeira classe, com o bilhete pago por Harry James, o célebre chefe de
o papel de “namoradinha da América”, nos anos 50
Foto: AFP
Doris
Este empreendimento conectava-se ao projeto de busca pela identidade nacional tão cara aos e, deBrando modo Namodernistas página anterior, Marlon como Don Corleone, novas como O Poderoa sonações Chefão degeral, o Brasil Abaixo, Doris Day, que encarnou
Foto: AFP
Doris se especializou em comédias leves e Marlon, com filmografia variada, viveu o papel de outsider
orquestra que aprimorou aquela voz clarinada, ligeiramente histérica, que alcançava as notas mais altas com um vibrato feminino indeciso entre pedir socorro ou abrir as pernas. Para quem não sabe, a jovem Doris Day foi uma das melhores intérpretes da canção americana, embora os produtores logo a tenham levado para Los Angeles, a fim de encarnar o papel de boa moça e virgem relutante, ao lado de Frank Sinatra, Rock Hudson – comediante de talento ofuscado pela sina de galã – e outros, em filmes como Corações Enamorados, Confidências à Meia-Noite e demais tortas (deliciosas) de celulóide dos anos 50. Por essa época, Marlon Brando estava se preparando para transportar o rude Stanley Kowalski, de Um Bonde Chamado Desejo, do palco para a tela – o que só faria ampliar o sucesso, na Broadway, do inconformista nato. Êxito internacional, Uma Rua Chamada Pecado (“achei a obra de Kazan melhor do que a peça de Tennessee Williams”, declara o ator) marcaria Marlon como o outsider de camiseta não muito limpa, sempre disposto a impor o seu sexo e a sua vontade. Nada mais parecido com o próprio Brando – por isso escolhido, quase em seguida, para o papel do problemático Johnny, de O Selvagem, de 1954. Com quepe de motociclista, jaqueta de couro e calça jeans – além de músculos debaixo do “uniforme” de rebelde –, assim se consolidaria o tipo capaz de influenciar até mesmo o James Dean (sete anos mais novo) de Juventude Transviada. Muito longe dos dois rebeldes, Doris seguiria em trajetória contrária, pelo caminho edulcorado das comédias musicais tipo Ardida como Pimenta e apenas um filme dramático memorável (O Homem que Sabia Demais, 1956), no qual foi dirigida pelo fanático por louras Alfred Hitchcock. Brando, pelo contrário, iria afirmando seu mito em sucessivos papéis de revolucionário mexicano (Viva Zapata!, 1952), boxeador fracassado (Sindicato de Ladrões, 1954), oficial nazista (Os Deuses Vencidos, 1958), espião inglês (Queimada, 1970), pistoleiro desorientado (A Face Oculta , de 1955, único filme por ele dirigido) e chefão da Máfia, para citar as suas atuações mais destacadas. Marlon foi um dos primeiros atores de Hollywood a romper com a “tirania dos contratos”, aceitando assinar somente
para um filme de cada vez – enquanto Doris Day evidentemente se sentia segura nas mãos dos grandes estúdios, que sempre tinham uma enfiada de títulos para seus contratados (geralmente por sete anos). O ator nunca deixou de ser considerado um “temperamento difícil”, que impunha mudanças no roteiro e reescrevia, invariavelmente, as suas falas – ditas daquele modo meio sussurrado que muitos ainda consideram “inaudível”. Doris falava como cantava, alto e claro - enquanto Brando chegava a irritar parte da crítica com a técnica aprendida com a grande Stella Adler (como ele esclarece na autobiografia – Songs my Mother Taught me – escrita com a colaboração de Robert Lindsey). O ator sustenta que, na vida, as pessoas falam baixo, frequentemente “para dentro” e “caçando as palavras, com todas as hesitações inevitáveis” etc. E diz que nunca foi compreendido nisso – como em muitas outras coisas – pela Hollywood onde sempre se sentiu um estranho. Por isso, o maior protesto, até hoje, contra a Meca hollywoodiana levou a assinatura MB, e exatamente numa cerimônia de entrega do Oscar: premiado como melhor ator (pela segunda vez) por seu papel de Don Corleone, ninguém viu Brando na platéia de astros & estrelas comportadamente sentados, no estilo Doris Day,
naquele noite de 1973. Ao se abrir o envelope, no lugar de Marlon Brando surgiu a índia apache Sacheen Little Feather, por ele designada para subir ao palco e, em seu nome, recusar a estatueta dourada, num protesto contra a maneira de ver os índios, plasmada pela indústria americana do cinema. Sacheen – nos seus cinco minutos de fama – não conseguiu ler o longo texto preparado pelo laureado “mal comportado”, mas um fragmento ainda é suficiente para fazer pensar duas vezes sobre as madrugadas de Oscars que hoje agitam também os corações brasileiros deslumbrados: “Em Hollywood tudo é medido em termos de dinheiro. Se eu tomasse parte num filme imbecil que tivesse rendido milhões de dólares, seria cumprimentado por todos pelo meu sucesso. No entanto, um filme bom como Queimada, de Gillo Pontecorvo, não deu lucro e por isso foi considerado um fracasso. Em Hollywood qualquer filme que renda dinheiro está salvaguardado pelo triunfo, mesmo sendo vulgar, infantil ou vazio. A televisão inglesa é melhor que a nossa, além de gigantesca em comparação com as rede de TV americanas; mas, apesar disso, Hollywood ainda rege o mercado televisivo e cinematográfico no mundo inteiro. E isso é uma tragédia.” • Fernando Monteiro é escritor e cineasta. Continente abril 2004
» Reprodução: Columbia Pictures
Brando em O Selvagem, de 1954: estereótipo da juventude rebelde
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64 CINEMA Foto: Gil Vicente/Divulgação
Hilton Lacerda (à esquerda) durante as filmagens de O Baile Perfumado
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O construtor da história
e 1994 até hoje, Pernambuco produziu seis longas-metragens. Três deles foram premiados em festivais, receberam elogios da crítica e tiveram uma boa carreira comercial – Baile Perfumado; o documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas; e Amarelo Manga. Os outros três ainda são inéditos, mas logo serão conhecidos; eles foram rodados no final do ano passado e estão em fase de finalização: Árido Movie, Cinema, Aspirina e Urubus e mais o documentário Cartola. Para quem presta atenção aos créditos dos filmes isto talvez não seja novidade, mas para os desatentos será bom saber que em quatro destes trabalhos o nome de Hilton Lacerda é uma marca registrada. No Baile, dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira, ele foi roteirista, assistente de direção e continuísta. No polêmico Amarelo Manga, de Cláudio Assis, foi roteirista, função que voltou a exercer nos novos filmes de Lírio Ferreira – Cartola e Árido Movie. Além disso, roteirizou e co-dirigiu, com a jornalista Clara Angélica, o curta-metragem Simião Martiniano, o Camelô do Cinema, um dos filmes mais premiados e elogiados da nova safra de curtas brasileiros e ainda escreveu e dirigiu o curta A Visita. Com uma apresentação desta, portanto, está na hora de conhecer melhor este recifense de 38 anos, que muito jovem foi morar em São Paulo, mas nunca perdeu totalmente o contato com suas raízes e antenas. Regularmente passava as férias no Recife, voltou a morar algum tempo por aqui, quando iniciou os cursos de Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco e Educação Artística na Universidade Federal de Pernambuco – embora nunca os tenha concluído – e hoje divide seu tempo entre a capital paulista, o Rio de Janeiro e a terra do maracatu e do manguebeat. Continente abril 2004
A assinatura de Hilton Lacerda em quatro dos seis longas-metragens pernambucanos traz à cena a importância do roteirista na arte cinematográfica Alexandre Figueirôa
CINEMA 65 » Foto: AE/Reprodução
"O Baile tem um frescor de realização de que eu gosto muito. Claro que faltam coisas; até hoje, quando o vejo, enumero as que estão nele e não deveriam, as que não estão e deveriam estar e outras que, graças a Deus, não estão”
O sambista Cartola é tema de um documentário, roteirizado por Hilton e dirigido por Lírio Ferreira, que está em fase de finalização
Hilton é indiscutivelmente um dos nomes mais importantes da cena audiovisual pernambucana. Apaixonado pelo cinema de Luis Buñuel, e admirador de Billy Wilder, Stanley Kubrick, Nelson Pereira dos Santos e Carlos Reichembach, na década de 80 ele flertava timidamente com a produção cinematográfica do Recife. Fez um curso de roteiro com Paulo Caldas e acabou trabalhando no projeto de curta de Lírio Ferreira, O Crime da Imagem, iniciado em 1988 e só concluído em 1992, por conta da grave crise que se abateu sobre o cinema nacional. No início dos anos 90 estabeleceu o que ele chama de “anarcossociedade” com Helder Aragão, formando a dupla Dolores & Morales. Fez projetos gráficos para Chico Science & Nação Zumbi, realizou videoclipes, produziu discos e outras tramas artístico-festivas. Depois voltou a juntar-se a Caldas e Ferreira, quando estes começaram a amadurecer a idéia de realizar Baile
Perfumado. Foi neste momento que a atividade de roteirista o fisgou. O projeto era discutido exaustivamente pelos três, mas coube a Hilton a redação do roteiro e a elaboração dos diálogos. “Quando o projeto foi premiado pelo Ministério da Cultura, começamos a reescrever a história do Benjamin Abrahão e, neste momento, trabalhei muito com as pesquisas de Frederico Pernambucano de Melo e passei horas ouvindo histórias de cangaço”, relembra. Hilton recorda, porém, que a produção do filme tinha algo de estranho: “Financeiramente era complicado e a equipe, em sua totalidade, era formada por pessoas basicamente virgens na realização de longa-metragem. Eu era ainda responsável pela assistência de direção e pela continuidade e isto quase me levou à loucura”. Quando o filme foi exibido no Festival de Brasília, Hilton observa que havia uma expectativa muito grande por ser uma obra vinda do Nordeste e de jovens diretores estreantes. “Quando a premiação saiu foi muito bom ver que o nosso trabalho havia ultrapassado essa expectativa, a crítica não precisava ser tolerante com nossas deficiências, o Baile tem um frescor de realização de que eu gosto muito. Claro que faltam coisas; até hoje quando o vejo, enumero as que estão nele e não deveriam, as que não estão e deveriam estar e outras que, graças a Deus, não estão”. O sucesso do filme foi o passaporte para Hilton abraçar de vez o cinema. Logo em seguida, Mônica Lapa, produtora do Simião Martiniano, o convidou para trabalhar com Clara Angélica, pois o argumento havia sido premiado, mas o roteiro precisava ser desenvolvido. Hilton acabou também co-dirigindo o filme. “Esta foi uma experiência maravilhosa para mim. No roteiro sugeri a possibilidade das profundidades de campo narrativo, com planos de interpretação em vários níveis”. O filme mistura elementos de documentário e ficção, algo que para ele não é um problema. “Ao desenvolver um roteiro de Continente abril 2004
Foto: Gil Vicente/Divulgação
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Amarelo Manga: controvérsias
documentário, comporto-me como se estivesse diante de uma obra de ficção”. Hilton descobriu neste trabalho que adora escrever e dirigir, duplicidade de ação que pode ser exercida ainda mais livremente quando ele fez A Visita. Este curta, porém, não teve uma carreira como ele esperava. “Eu gosto bastante do filme, ele não é fácil e nem era minha intenção que fosse, mas acho que houve um certo desleixo no lançamento”. Ele é uma adaptação de uma passagem do livro O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgakov e retrata uma obsessão do próprio Hilton: o universo das mulheres da classe média. Ele esclarece: “sou o caçula de sete irmãos e sempre fui cercado pela minha mãe, pelas minhas tias, irmãs, empregadas. Sempre estive mais próximo do universo feminino e percebi que quando os homens não estão em conflito profundo, eles têm uma atitude em relação à vida muito medíocre, já as mulheres são mais curiosas e loucas”. Mas é bem longe do retrato do mundo da classe média que Hilton realizou seus trabalhos mais radicais. Este caminho foi apresentado por Cláudio Assis, que entrou em cena na sua carreira ainda em 1995, quando o convidou para escrever o roteiro de Texas Hotel. O argumento era do próprio Assis e de cara Hilton não gostou da idéia. “Porém, quando descobri que o Texas Hotel existia perto do Pátio de Santa Cruz, meu ponto de vista mudou completamente. Eu conseguia ver aquele universo com mais interesse; os personagens criaram relevo, o que para mim é muito necessário”. Apesar de defender o filme, ele confessa ter uma relação esquisita com o mesmo: “não suporto os maneirismos de câmera, mas admito que ele funcionou como exercício narrativo”. Todavia, quando fala de Amarelo Manga, um desdobramento, digamos Continente abril 2004
assim, do Texas Hotel, Hilton não esconde seu entusiasmo. “Foi uma experiência feliz. Existe um certo folclore em trabalhar com Cláudio Assis (do qual ele é o principal estimulador). É claro que há uma distância muito grande entre a minha visão de mundo e a dele. Ele gosta das coisas viscerais e eu sou da turma que gosta de problematizar o máximo possível, mas, no meu caso, trabalhar com ele não foi um exercício de embate”. Durante o processo de escritura do roteiro e de realização do filme eles entraram em conflito sério apenas umas três vezes. “Tem cenas que não estão no roteiro, mas estão no filme e me parecem revelar uma certa atitude juvenil, a cena do boi é uma delas”. Por outro lado, Hilton confessa ter ficado numa posição muito confortável, pois passeava pelo set livremente, preocupando-se apenas em orientar os diálogos e a postura do elenco, sobretudo os atores de fora, como Chico Diaz, a quem ele precisava comandar detalhes, como a maneira de falar, para dar o tom local e não comprometer a narrativa. Amarelo Manga provocou reações heterogêneas tanto por parte do público quanto da crítica e Hilton acha bom que tenha sido assim. “Não era intenção de minha parte perseguir unanimidade, mas acho que existem alguns erros de avaliação do filme. Um deles, o mais grave, é afirmar que nele o naturalismo impera. Tem um crítico da Bravo que bate sempre nessa tecla e isso beira o ridículo. O naturalismo nos serve de meio, não de fim. É um filme feito de uma capa muito dura de aparências, mas isto é o interessante: subverte o olhar, partindo de um pressuposto caricato. Partimos da aparência para chegar ao sensível e este, não é necessariamente o agradável, não é necessariamente, o real”. Ele acrescenta também o fato de algumas pessoas implicarem com o personagem Dunga –
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Selton Melo em Árido Movie,um road movie existencial que enfoca o deslocamento de um filho em busca do pai
te. O filme tem a estrutura de um documentário clássico, usa material de arquivo, entrevistas, mas serão feitas interferências simbólicas no universo musical do artista, pois a pretensão é estabelecer uma analogia com a memória do cinema brasileiro. “É um trabalho complexo e custoso; a quantidade de documentos é imensa, mas ao mesmo tempo muito excitante. É muito excitante falar da vida de Cartola, dando-lhe uma nova roupagem narrativa, e isso soa mais absurdo quando são dois pernambucanos que estão fazendo”. Mas pela abertura que Hilton demonstra com suas preferências musicais, isto não será uma barreira. “Gosto de coisas muito diferentes: Mundo Livre, Nelson Gonçalves, Jackson do Pandeiro, black music, Bach, punk rock, Nação Zumbi, DJ Dolores, Lia de Itamaracá, Mestre Salustiano... Acredito que minha relação com a cultura popular é bem forte, só tenho verdadeira repulsa pelos defensores paternalistas, gente que, na ânsia de refinar a cultura popular, retira a espontaneidade do povo, como fazem os armoriais”. Hilton, por fim, confessa o êxtase que a força das manifestações culturais pernambucanas lhe causa. “Elas contêm uma violência exacerbada e tem por trás o homem comum sacrificado por uma sociedade, cuja estrutura é uma das mais perversas do país. É interessante, no entanto, tirar deste fato uma ação afirmativa. E essas afirmações não podem vir simplesmente de certo orgulho de ser pernambucano, mas de ter coragem de modificar algumas coisas que existem nessa relação”. • Alexandre Figueirôa é jornalista e crítico de cinema.
Foto: Gilvan Barreto/Lumiar
inspirado num empregado de sua avó que tinha uma pensão no bairro de São José – porque ele estaria caricaturando o homossexual. Hilton indaga por qual razão faria isto. “Isso faz parte do meu universo e não estava ali abrindo exceção às qualidades humanas. Num filme de personagens tão egoístas não ficava bem a parcialidade”. Ele é partidário de um cinema com alma. Gosta de filmes, como Madame Satã, de Karim Ainouz, e também vê com atenção os de Guel Arraes. “Não sou fã da temática, no entanto reconheço o seu talento na construção da narrativa, preservando o lirismo e o onírico da trama. Já O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, não gosto, é tecnicamente correto, mas é um filme sem alma”. Agora Hilton está em plena efervescência dos dois desafios propostos por Lírio Ferreira. Os filmes estão em fase de pré-montagem e deverão ficar prontos no segundo semestre deste ano. O primeiro é Árido Movie, um road movie existencial, enfocando o deslocamento de um filho em busca do pai, deslocamento que se dá tanto no interior do personagem quanto no mundo exterior. O roteiro teve diversos tratamentos, a partir de um argumento do próprio Lírio e de Sérgio Oliveira. O mais difícil foi articular os antagonismos presentes na narrativa, mas que segundo Hilton lhe dá uma força extraordinária. Pela primeira vez em sua carreira o roteirista não acompanhou as filmagens e isto tem lhe causado uma certa angústia. O outro desafio é o documentário sobre o sambista carioca Cartola. Como as etapas de finalização de ambos estarão correndo em paralelo, Hilton vai dedicar-se mais a este trabalho. Para ele esta tem sido uma experiência fascinan-
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68 SABORES
PERNAMBUCANOS
Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Fotos: Gilvan Barreto/Lumiar
Símbolo para os cristãos, o carneiro foi rejeitado pelos índios, quando chegou ao Brasil
Carneiros de Deus
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ada família judia sacrificava um cordeiro, marcando a porta da casa com seu sangue – segundo o antigo testamento. Enquanto pelas ruas um anjo exterminador distribuía morte entre os infiéis, poupando apenas os que não estivessem nas casas marcadas por aquele sangue. À meia-noite, reuniamse em volta da mesa, para provar o cordeiro sacrificado – macho, de um ano e sem defeito (absque macula, asculus, anniculus), como recomendava o Êxodo. Era servido assado, inteiro, sem quebrar os ossos, acompanhado de ervas amargas, pão ázimo, caldo de maçãs, amêndoas, figos e outras frutas cozidas no vinho. Esse ritual se repetia, todos os
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"Não há pão como o pão branco, Nem carne como carneiro; Nem peixe como a pescada, Nem amor como o primeiro." Santos Graça (“O Poveiro”)
anos, na noite da passagem – em hebraico pesach, donde o próprio nome Páscoa. Os cristãos também celebram sua Páscoa tendo o cordeiro como símbolo. João Batista chamou Jesus de “Cordeiro de Deus, aquele que se sacrificou para tirar os pecados do mundo”. Cristo é “pastor”, aquele que conduz o seu rebanho. Missa é “santo sacrifício”. A tradição do carneiro bíblico sobrevive ainda hoje. Não custa lembrar que cordeiro é filho novo de carneiro e ovelha. O hábito de sacrificar esses cordeiros vem de longe. Está presente em todas as culturas. “Não podia haver festival celebrando um deus sem sacrifício sangrento”, porque “sacrifício é a forma mais antiga de ato religioso”, es-
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creveu Wolfgang Giegerich (Matanças). Os primeiros registros da prática remontam à Mesopotâmia e ao Egito, há mais de 5.000 anos. Pastores nômades hebreus celebravam a passagem da primavera (hag ha’pesach), sacrificando um cordeiro – “sobre o altar toda a noite até a manhã... um doce sabor ....para o Senhor”, proclama o Levítico. Com pompa e sangue de cordeiro os romanos purificavam trombetas com que as guerras eram anunciadas, no templo de Saturno. A essa festa chamavam “Tubilustro”. Depois passaram a apreciar naquela carne, oferecida aos deuses, qualidades muito especiais – por ser saborosa, adocicada, macia, firme e pouco gordurosa. O cordeiro transformou-se em iguaria. Trocando o altar dos deuses pelas mesas dos pecadores. Convertendo-se em receitas tradicionais de muitos países na França, rim de carneiro ao champanhe ou brochete de carneiro; na Irlanda, irish stew (ensopado com nabos, cenoura e batata); na Turquia, chachi kebassi (espetinho acompanhado de molho de amêndoa e creme azedo); na Grécia, prassato (guisado com molho de gemas, suco de limão e alho poró); na Inglaterra, carneiro assado acompanhado de mint jelly (geléia de menta); em Portugal, perna de carneiro no tacho, ensopado de carneiro, carneiro assado, guisado, de forno, carneiro à Beira, cabeça de carneiro assada no forno. O carneiro chegou ao Brasil com o colonizador. Foi rejeitado pelos índios. Jonh Luccok (Notas Sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais de Brasil,1808) tentou uma explicação sofisticada – “talvez por não ser comida própria de cristão, os nativos do país jamais comem cordeiro”. Foi contestado por Saint-Hilaire (Viagem às Nascentes do Rio São Francisco) – “um autor inglês supôs que os brasileiros não comiam carne de carneiro porque o cordeiro é um símbolo para os cristãos. Nada ouvi dizer que justificasse isso; o que há de certo é que as carnes de carneiro, nas partes quentes do Brasil, são infinitamente menos saborosa do que na Europa”. Dando Henry Koster (Viagem ao Nordeste do Brasil) explicação bem mais simples e plausível – “No sertão, a carne de carneiro nunca é saborosa, talvez pelo pouco tratamento dado ao rebanho”. Com o tempo, a qualidade dessa carne foi melhorando. Provavelmente pelo cruzamento de novas raças. Hoje virou preferência nacional. No sertão diz-
se que do carneiro tudo se aproveita, menos o berro. Sendo preparado de muitos jeitos – grelhado, assado, cozido ou ensopado. Na hora de fazer, cuidado só com o bodum – glândula fétida que fica na perna, entre o tendão e o osso. E que deve ser sempre retirada, antes de se começar a preparar o prato. Cabrito é filho novo do bode e da cabra. Parente distante do cordeiro. Por conta do forte cheiro de glândula que desenvolve na cabeça, a partir dos 5 meses de vida, melhor abatê-lo antes dessa idade. Seus primeiros registros remontam ao Cáucaso e às montanhas do Irã. Na Grécia Antiga, viviam no Olimpo. Tanngniostr e Tanngrisnir foram bodes escolhidos por Tor, deus do trovão e dos raios, para puxar sua carruagem. Zeus, divindade suprema, foi amamentado por uma cabra – Amaltéia. Em Qumran (Jordânia), outra cabra ficou famosa. Por pastar entre velhos papéis. Com seus pastores encontrando a cabra perdida junto a manuscritos até então desconhecidos do antigo testamento. No Nordeste brasileiro, esse cabrito se deu bem. Por serem pouco exigentes quanto à alimentação e se adaptarem bem a qualquer clima. Resistindo inclusive às grandes secas. “No sertão jumento não morre de fome nem bode de sede”, observou Cascudo (História da Alimentação). O gosto por essa carne Continente abril 2004
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SABORES PERNAMBUCANOS
foi herança do colonizador. “Comem os lusitanos principalmente carne de cabra”, observou o historiador grego Estrabão (Geografia). Sendo preparada de muitas maneiras – cabrito estonado à moda de Oleiros, grelhado na brasa, recheado à moda de Barril de Alva, à Transmontana (coxa assada em vinho branco, hortelã e outros temperos, depois assada e empanada em farinha de rosca, voltando ao forno para dourar), à moda de Monção, chanfana (cozido no vinho), borrego assado, ensopado de cabrito. Por aqui foram inclusive surgindo maneiras novas de preparar esse cabrito – guisado, assado, ensopado. Além da buchada, claro, que tem origem no “maranho” português. A diferença é que, na Europa, se faz mais com porco; enquanto, por aqui, usamos carneiro, ovelha ou cabrito. Cabra é o primeiro animal leiteiro conhecido pelo homem. Produz, proporcionalmente ao seu tamanho, muito mais leite que qualquer outro animal. Um leite muito especial, usado inclusive na fabricação de queijos finos - entre eles Limburgse (Holanda), Crottin de Chavignol e Camembert (França), Los Vasques (Espanha),
Hardaneger (Noruega). O futuro acabou reproduzindo o passado. Com a ovelha Dolly - clonada no Instituto Roslin de Edinburgh, sendo sacrificada apenas 6 anos depois de sua clonagem. Não, como antes, para ser oferecida aos deuses. Mas apenas por ter seu criador, Ian Wilmut, percebido que lhe faltavam poderes divinos. Sua ovelha nasceu com anomalias genéticas. Está hoje empalhada no Museu Nacional da Escócia. Em verdade Dolly era parte de um exótico zoológico particular, composto por duas ovelhas iguais entre si (Megan e Morag), por uma ovelha geneticamente alterada (Tracex), e por uma vaca que produzia leite humano ( Roster). Dolly era filha de três mães – a primeira que deu a célula; a segunda que deu o óvulo; e a terceira que deu o útero. Faltando nesse texto apenas lembrar outra passagem do Levítico. Em que se narra, com riqueza de detalhes, ritual repetido todos os anos. Com os hebreus descarregando suas iras sobre um bode, para expiar os pecados de Israel. Nascia ali a expressão “bode expiatório”. •
Foto: Leo Caldas/Titular
RECEITA: CABRITO ASSADO INGREDIENTES: 01 perna de cabrito, 06 dentes de alho, 02 folhas de louro, 01 colher de sopa de páprica, 08 colheres de sopa de azeite, 03 colheres de sopa de banha, ½ litro de vinho branco, sal grosso. PREPARO: Tempera-se o cabrito, de véspera, com pasta feita com alho amassado, sal grosso, páprica, louro, azeite e banha. Coloca-se em assadeira de barro e leva-se ao forno, bem quente. Quando começar a dourar, regue, aos poucos, com vinho branco. Sirva acompanhado de batata cozida e passada no azeite, em que foi anteriormente colocado um dente de alho. Maria Lecticia Cavalcanti é professora.
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA 71 Joel Silveira
Adeus, Sergipe
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echo a mala, visto o paletó, vou ao banheiro verificar se não esqueci alguma coisa. Pergunto à arrumadeira, miúda e extrovertida, como se chama, ela diz que se chama Barbosa (– Barbosa? – “Maria Barbosa. Mas todo mundo só me chama de Barbosa”), dou-lhe a gorjeta e mais um monte de revistas já lidas. Barbosa agradece num sorriso aberto, aperta minha mão num gesto tímido e me deseja uma feliz viagem. Mas, antes de ir embora, chego à janela, no décimo andar do hotel, para um último encontro com a cidade onde nasci, onde fui criança doente, menino mais solto (e então meu nome era Joca) e adolescente atormentado por um sem número de inquietações. Lá está, defronte, o rio largo, com seus saveiros de velas sujas e pandas. Lá está, do outro lado, a carrada fileira dos coqueiros, avassalador exército verde que a qualquer mo-
mento poderá jogar no rio as casinhas coloridas e os casebres que se agacham na praia estreita. E, mais distante, o vigilante farol, cujo olho insone o sol a pino imobilizou numa cegueira ardente. E aqui embaixo a própria Aracaju, que minutos depois, do avião, eu veria encolhida entre o rio e as dunas, cavada no massapê, a estirar-se indolente a partir da encosta do morro do Urubu até a boca do rio que, ávido, se entrega ao Oceano, cada vez mais desejoso de ser possuído. Depois, é a reta franjada da costa – uma única praia que irá até o rio Real, nos limites com a Bahia. E creio perceber da janela do avião, cravados no céu sem nuvens, os contornos da Serra de Itabaiana, onde gritam (pelo menos gritavam na minha infância) as mais estridentes seriemas do mundo inteiro. Adeus, Sergipe. Adeus, Aracaju. Adeus, Joca. • Joel Silveira é jornalista e escritor.
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74 TEATRO
Companhia de Teatro Paralelo da Graviola transita pelos cantos sefardins, os poemas palestinos e a poesia sertaneja no espetáculo Raízes Everardo Norões
Canções do exílio em nossas raízes
O conflito vira poesia no espetáculo Raízes
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TEATRO 75 »
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fotografia tem o mar como pano de fundo e, no primeiro plano, uma vela acesa sobre um rochedo. É o retrato de um desejo: “Vá à praia de Haifa no instante da primeira luz do dia, respire profundamente e acenda uma vela em honra de todos aqueles que morreram pela Palestina”. O desejo de um palestino, nascido no Cairo, vivendo em Riad, na Jordânia, impedido de visitar seu próprio país, é cumprido e registrado pelo fotógrafo Emily Jacir. Texto e fotografia fazem parte de uma publicação da fundação Al-Mamal for Contemporary Art, de Jerusalém, Israel. O documento ilustra pequenos desejos de palestinos que vivem no exílio: o sabor de uma comida, a esquina de uma rua, a visita a uma casa perdida na memória. Dentre as fotografias, a imagem daquela pequena chama sobre o mar Mediterrâneo lembrou meus tempos de Argel, e fez ressurgir a voz de Abed Azriê, cantando em árabe os poemas palestinos de Mahmud Darwish. Os mesmos poemas que, pela cumplicidade do acaso, voltei a ouvir, recentemente, declamados por Elisa Toledo Todd e Mayra Waquim, num espetáculo do grupo Paralelo da Graviola: “Nesta terra existe o que merece vida: o final de setembro, uma mulher que desperta de sua quarentena, madura de todos os seus damascos, a hora do sol no pátio da prisão, as nuvens que imitam um vôo de criaturas, os aplausos de um povo para aqueles que se erguem, sorrindo, rumo à própria morte” (...) O espetáculo da companhia Paralelo da Graviola é sóbrio, despido de cenários. Mas, a essência do que somos transita por aquelas vozes e fazem refletir sobre os motivos pelos quais alguns homens são levados a preservar suas tradições e a criar o que se convencionou chamar de ‘arte’ em circunstâncias que desafiam a própria sobrevivência. Raízes – assim se chama o espetáculo – mostra que a centelha que incendeia os versos de Mahmud Darwish, e faz resplandecer os cantos dos judeus sefardins perseguidos pelos tribunais do Santo Ofício, é a mesma que aquece o cadinho cultural que tornou o Nordeste brasileiro tributário das culturas árabe e judaica. Na tradição poética sertaneja e nordestina as vozes também se escondem por detrás da escrita, confirmando que, no princípio, era o verbo. Somente depois de ecoarem sertões adentro, os versos dos nossos cantadores são dependurados nas feiras, sob a forma de cordel, que antes de ser folheto, era corda muito delgada, no dizer do Aurélio.
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76 TEATRO
Versos dependurados eram também as Mou’allaqât – “As Suspensas” – odes árabes dos séculos 6 e 7, surgidas muito antes de o Crescente islâmico atravessar o Mediterrâneo para implantar a culta civilização andaluza. Essas odes se inscrevem entre os grandes tesouros poéticos da Humanidade e fundam a tradição dos trovadores. Chegaram até nós como o sopro do siroco, vento que transporta até o Ocidente as areias do deserto. Falam do que fala nossa poesia sertaneja: a terra, o amor, o combate, temáticas eternas do homem. O nome Mou’allaqât (“As Suspensas”) porque muito tempo depois de “faladas” foram as escolhidas para serem bordadas a ouro no linho e suspensas na Caaba, a pedra venerada como o mais sagrado santuário do Islã. O Paralelo da Graviola nos atormenta com suas indagações e conduz-nos a uma espécie de cidade sitiada, na qual os habitantes são obrigados a conviver, mesmo em conflito, para que possam, um dia, subsistir. Esse é o destino de mestres e artistas que tentam, a qualquer custo, buscar o compromisso entre a arte e a vida no despojamento do texto ou do espetáculo. Pela ousadia da simplicidade e por não se ater ao espetáculo do convencional, Raízes nos coloca em situação de descobrir que o exílio palestino é também o nosso e os lamentos dos judeus sefardins desterrados da Península Ibérica povoam nosso inconsciente como miragens nascidas das areias.
Acima, o livro Por que Você Deixou seu Cavalo Sozinho, de Mahmud Darwich, poeta que inspirou a montagem À direita, cena do espetáculo: sobriedade
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Que estranha força leva um poeta a ignorar sua vida para que seu poema possa se confundir com o destino de sua pátria? Ou um mestre de maracatu rural a percorrer o itinerário das estrelas como um personagem dos rituais aztecas no seu compromisso com o sagrado? Depois do espetáculo, sentadas nos palco, as atrizes do Paralelo da Graviola suscitam nosso olhar para o que não foi visto ou falado, mas paira, aceso, em qualquer lugar onde o teatro do mundo se realiza. Nas suas Antimemórias, o escritor francês André Malraux confessa que foi no Egito, diante da Esfinge e das Pirâmides, que começou a distinguir as duas linguagens que durante cerca de trinta anos não conseguira diferenciar uma da outra: de um lado, a linguagem da aparência e do efêmero; do outro, a linguagem do eterno e do sagrado. Só então ele se dera conta de que aquelas formas gigantescas se erguiam de uma pequena câmara funerária, “do cadáver embalsamado que elas tinham por missão unir à eternidade”. Com talento que enobrece nossa cultura, a companhia do Paralelo da Graviola nos inicia na linguagem do eterno. • A equipe do Paralelo da Graviola é formada por Elisa Toledo Todd, diretora e atriz; Mayra Waquim, atriz e produtora; Urian Ágria de Souza, artista plástico; Magali Bührer, dramaturga; Carlos Sandroni e Edson Bandeira de Mello, músicos; Daniel Kahan, diretor de arte; François Billeau, artista plástico; Lucas Monteiro e Daniel Breda, historiadores. O espetáculo Raízes foi encenado em teatros e espaços culturais de Pernambuco e Ceará.
Foto: Arquivo pessoal
Cláudio Aguiar: o teatro de Franklin Távora foge de esquemas regionalistas ou históricos
Quando a vida subiu ao palco A dramaturgia de Franklin Távora, fundadora do realismo no teatro brasileiro, é destrinçada em obra de Cláudio Aguiar André de Sena
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ranklin Távora figura ao lado dos romancistas José de Alencar, Bernardo Guimarães e Alfredo Taunay, entre outros, como um escritor que trouxe à literatura brasileira o gosto pelo sentimento da natureza, evocando a paisagem aliada ao enfoque de personagens que simbolizam os arquétipos do sertanejo. No entanto, como a maioria de seus colegas de geração, escreveu também para o teatro. E é justamente esse lado menos conhecido do artista, que o estudioso Cláudio Aguiar está resgatando, com a obra Teatro de Franklin Távora. As obras reunidas neste volume por Aguiar representam significativos exemplos de dramas realistas aparecidos
justamente no momento em que tal movimento ganhava força no cenário da dramaturgia brasileira. Franklin Távora nasceu em Baturité, CE, em 13 de janeiro de 1842, falecendo no Rio de Janeiro, RJ, em 18 de agosto de 1888, após passar longas temporadas em Pernambuco. É o patrono da Cadeira nº 14, da ABL, e formou-se pela Universidade de Direito do Recife, celeiro de grandes escritores no período. Um dos fundadores da Revista Brasileira, foi intérprete literário de um regionalismo que vinha se exprimindo ideologicamente desde o início do século. Távora defendeu o que chamava uma literatura do Norte, em oposição a uma literatura do Sul, considerada por Continente abril 2004
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Foto: Acervo ABL
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Franklin Távora: desgosto com a literatura no fim da vida
faro psicológico e firmeza das tintas do que em Alencar, no qual reconhecia, por outro lado, maior imaginação. José Veríssimo classificou Um Casamento no Arrabalde como um dos melhores da literatura brasileira. Lúcia Miguel-Pereira, apesar de propensa a destacar mais os defeitos do que os acertos da obra de Távora, chamou a atenção “para os novos rumos que delineia”, querendo dizer com isso que Távora naquele romance apontava para caminho nitidamente realista. Candido considerou Um Casamento no Arrabalde a obra-prima de Távora exatamente pelo “traço realista”. Então, em rápidas palavras, verificamos que Távora afirma-se desde os primeiros passos literários, quer no romance, quer no teatro, como um autor realista. Isso não significa que não tenha tentado, ainda muito jovem, obras com fortes laivos românComo poderíamos classificar a presença de Franklin ticos, as quais não alcançaram nenhuma repercussão e logo Távora na literatura brasileira? foram abandonadas pelo próprio autor, como ocorreu a Os Ela acha-se bastante documentada nos mais importantes Índios do Jaguaribe, de 1862. livros que tratam de nossa história literária, como os de Até que ponto as querelas literárias entre Távora e Sílvio Romero, José Veríssimo, Lúcia Miguel-Pereira, Antonio Candido, para ficar apenas nos mais conhecidos. A Alencar refletiram-sse no período? Não concordo com a afirmativa de que Távora ficou marca fundamental aparece com o romance Um Casamento conhecido por causa da polêmica com José de Alencar. Esno Arrabalde, de 1869, que o situa como uma das principais obras que se caracterizam por abandonar o tom romântico tudei profundamente a vida e a obra do autor cearense (Cf. então predominante. Por isso, boa parte da crítica viu nesta Franklin Távora e o seu Tempo, Ateliê Editorial, São Paulo, obra de Távora um momento precursor do realismo no con- 1997, 400 págs.) e cheguei à conclusão de que nessa polêmica texto da literatura brasileira. O mesmo acontecia com sua Távora tinha boa intenção e agia como crítico, aliás, de boa estréia no Teatro de Santa Isabel, no Recife, com a peça Um cepa. Acho que ele foi o mais prejudicado devido à Mistério de Família, de 1861, embora a primazia sempre te- exploração política que se tornou praticamente perseguição, nha recaído para autores que então freqüentavam o eixo não devida a Alencar, mas aos amigos e admiradores deste Rio-São Paulo. Sílvio Romero chegou a ver em Távora mais político, então poderoso no cenário brasileiro. O próprio ele cheia de estrangeirismos e antinacionalismo. Ficou conhecido, especialmente, pelas obras Três Lágrimas (1870), Cartas de Semprônio a Cincinato (1871), O Cabeleira (1876), O Matuto (1878) e Lendas e Tradições do Norte (1879). Cláudio Aguiar, como Távora, nasceu no Ceará e formou-se pela Faculdade de Direito do Recife, com doutorado pela Universidade de Salamanca, Espanha. Conquistou mais de uma dezena de prêmios literários nacionais e pertence a diversas entidades culturais. Pelo conjunto de sua obra, em l994, recebeu na Espanha o prêmio-homenagem da Universidade Pontifícia de Salamanca. Nesta entrevista, Aguiar aborda a vida e a obra do dramaturgo nordestino.
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TEATRO 79 » própria vida humana: a honra e a desonra de pessoas que são feridas em seus sentimentos mais íntimos e sagrados, ainda que preponderem aspectos relevantes em determinada época. Creio que a importância do teatro de Távora está exatamente no elevado senso da condução do drama. Do ponto de vista da historiografia literária destaco, porém, fatores que influenciaram o surgimento de intensa fermentação dramática que apontavam para novos caminhos do teatro brasileiro. O principal deles era o enfoque realista que deixava para segundo plano o romantismo, também, à época, ocorrendo no Recife com as mesmas características do Rio de Janeiro e São Paulo. E mais: a novidade recifense surgia da pena do jovem Franklin Távora, com apenas 20 anos de idade, que conseguia levar à cena no Teatro de Santa Isabel um drama com o concurso de grandes companhias e renomados atores, circunstância que no mínimo chancelava a Qual a importância do teatro de Franklin Távora, onde qualidade de seu texto. convivem num mesmo espaço o regionalismo, certa preoEm O Cabeleira, Távora apresenta uma visão progressista cupação realista, histórica, e enredos de teor folhetinesco? A importância do teatro de Távora, segundo penso, não sobre o cangaço, pois acredita que um bom sistema reside basicamente na possibilidade de conviver no mesmo educacional resolveria muitos dos problemas do banditismo espaço circunstâncias de gêneros, movimentos ou escolas. As do mundo agrário. Revela assim a sua proximidade com peças selecionadas, a meu ver, fogem de esquemas regionalis- aquela ideologia “ilustrada” que Castro Alves e outros rotas ou históricos e centram-se em questões fundamentais da mânticos da última geração expressavam. Até que ponto essa função social da arte moldou a obra de Távora, em sua opinião? A idéia de que o progresso contribui para resolver um problema como o banditismo não é uma visão exclusiva de Távora. Quem o lê, porém, terminará chegando a essa conclusão, porque deixa uma mensagem que, a exemplo de muitas outras, se apóia na crença de que a obra de arte pode ter
Foto: Acervo ABL
Alencar, anos antes, combatera Gonçalves de Magalhães e depois Joaquim Nabuco polemizou com maior virulência com Alencar. Nem por isso, Magalhães ou Nabuco ficaram conhecidos por causa dos embates com Alencar. Creio que para dar difusão e maior relevância à vida de um escritor concorre sempre de maneira decisiva a própria obra. Se esta não existe, nem as polêmicas nem os escândalos darão sobrevida a ninguém. De qualquer sorte, sou de opinião que a ressonância alcançada pelo nome de Franklin Távora é devida à importância de sua obra literária. Foi ele que, a exemplo de outros escritores como Alencar, Bernardo Guimarães e Taunay, trouxe à nossa literatura o gosto pelo sentimento da natureza, a evocação da paisagem como cenário de personagens, como o sertanejo, o matuto, o gaúcho, o bandido, o cangaceiro, o jagunço etc.
José de Alencar: escritor e político poderoso com quem Távora polemizou
“Não concordo com a afirmativa de que Távora ficou conhecido por causa da polêmica com José de Alencar. Se o autor não tem uma obra, nem as polêmicas nem os escândalos lhe darão sobrevida” Continente abril 2004
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TEATROConhecimento
também a função social. Cabeleira e Lampião são exemplos de bandidos perigosos e violentos, mas que hoje nos dão a impressão de seres insignificantes diante da magnitude dos atuais “bandidos urbanos”, que atuam até com vinculações internacionais no mundo da droga, do contrabando de armas e outras formas de lavagem de dinheiro, influência etc. As idéias defendidas por Távora devem ser vistas numa visão macro e não particular. A função social da arte não moldou a obra de Távora, mesmo porque sua obra-prima Um Casamento no Arrabalde, como salientaram José Veríssimo e Antonio Candido, não defendeu “tese alguma, nem dependeu da elaboração requerida pelos romances históricos”. Ele foi um escritor de verticalidade e de horizontalidade temática. Foto: Arquivo DP
desgostoso no final da vida com a literatura, também não encontrei em sua trajetória nenhuma razão plausível para tal atitude. O que constatei foi justamente o contrário. Revelouse um escritor bastante forte para não sucumbir diante das injunções adversas da vida, das ingratidões, do sofrimento com a atividade burocrática, das dificuldades financeiras. Ele, porém, teve momentos de realização pessoal em sua curta vida (morreu aos 46 anos), creio, decorrentes exatamente de atividades literárias, de jornalismo militante, polêmicas e campanhas ligadas a princípios dignificantes e construtivos, como a defesa da liberdade, da fraternidade e da igualdade entre os homens, tríade que, ao longo da história, tornou-se apanágio e obsessão daqueles que miram utopicamente o horizonte e nunca o próprio umbigo. • André de Sena é jornalista.
Sua obra-prima Um Casamento no Arrabalde, como salientaram José Veríssimo e Antonio Candido, não defendeu “tese alguma, nem dependeu da elaboração requerida pelos romances históricos”. Ele foi um escritor de verticalidade e de horizontalidade temática
Alguns críticos consideraram Franklin Távora o primeiro romancista do Nordeste. Mas dizem que, no final da vida, mostrou-sse desgostoso com a literatura. Qual terá sido o motivo? Távora realmente leva vantagem cronológica sobre o aparecimento do primeiro romance cearense, isto é, escrito por autor cearense, quando, em 1862, publicou Os Índios do Jaguaribe, no Recife, aliás, anterior a Iracema, de José de Alencar, que é de 1865. No entanto, não é um romance de regionalismo extremado, mas, sim, extremadamente romântico. Nele há um certo ufanismo mesclado a um saudosismo que só uma atitude romântica poderia justificar. Foi uma obra totalmente abortada. Tanto que ele prometia continuar a publicação do resto do romance e não se tem notícia da edição dos tomos seguintes. Quanto ao fato de revelar-se Continente abril 2004
Teatro de Franklin Távora – Cláudio Aguiar, Ed. Martins Fontes, 370 páginas, R$ 42,50.
Conhecimento 81 Âť
AnĂşncio
Continente junho 2003
82 TRADIÇÕES
Foto: Roberta Guimarães/Imago
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Terra do samba de coco Excluída da rota da Missão de Pesquisa Folclóricas de Mario de Andrade, Arcoverde hoje inventa para si uma nova identidade Coco Raízes de Arcoverde, festejado pela mídia e com dois CDs gravados
Micheliny Verunschk
TRADIÇÕES 83 » Reprodução
Mario de Andrade, coordenador da Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo
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m fevereiro de 1938, a Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo partiu tendo por itinerário o NorteNordeste e por objetivo o registro de manifestações da cultura popular brasileira. Idealizada e orientada por Mario de Andrade, chefe do Departamento de Cultura à época, a Missão foi realizada por Luís Saia, Martin Braunwiser, Benedicto Pacheco e Antonio Ladeira. Outra figurachave, mas que não participou diretamente das viagens, foi Oneyda Alvarenga, diretora da Discoteca Pública Municipal e responsável pela organização do material enviado pelos pesquisadores. Fazendo o registro fotográfico e fonográfico, filmando e descrevendo as manifestações populares, a Missão foi pioneira neste tipo de trabalho no Brasil e acabou por estruturar um acervo significativo da história cultural do país, acervo este que hoje pode ser encontrado no Centro Cultural São Paulo. Foram objetos de estudo dos pesquisadores cocos, toadas, bumba-meu-boi, aboios, tambor de crioulo e tambor de mina, xangôs, reis do congo e tudo o que coubesse sob o rótulo de folclore ou cultura popular. Este empreendimento conectava-se ao projeto de busca pela identidade nacional, tão cara aos modernistas e, de modo geral, a nações novas como o Brasil. Buscar o característico, o tradicional, a impressão digital parece ser ainda a melhor forma de afirmar-se perante este mundo, que, às vezes, sugere se dissolver na polifonia da globalização. A Missão visitou cidades na Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão, Pará e também em Pernambuco. Neste Estado, que teve cinco cidades visitadas, os pesquisadores foram recebidos calorosamente, como atestam os jornais da época que apontavam o caráter revolucionário da empresa. De início, Recife e Tacaratu eram as cidades de interesse principal para os pesquisadores, a primeira, pela importância dos xangôs, duramente reprimidos pela polícia pernambucana, com apoio da Igreja; a segunda, Tacaratu, pelo praiá e os encan-
tados dos índios Pankararu. Mário Melo foi o elo entre os paulistas e a cultura popular do Estado, o que ele registra em artigo publicado no Jornal do Commercio de 15 de fevereiro de 1938, em que relata “a colheita de motivos sertanejos” da “missão de cultura folclórica”, que ele acompanhou ativamente. Entretanto, uma das cidades pesquisadas em Pernambuco não constava dos planos iniciais da Missão, a não ser como local estratégico para pouso e passagem. Nesta cidade, os pesquisadores tomaram um caminhão em direção ao alto sertão, devidamente protegidos por uma guarnição de policiais para defendê-los de possíveis ataques dos cangaceiros. Não antes, porém, de deixar registrado algo de suas manifestações. Curiosamente, esta cidade desponta hoje no interior pernambucano como depositária de tradições populares genuínas e atrai tanto turistas ávidos pela singeleza dessas tradições quanto novos pesquisadores de todas as partes do Brasil e do mundo, interessados em Continente abril 2004
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84 TRADIÇÕES
coco, reisado, banda de pífanos e outras tradições que se possam encontrar nos sítios mais afastados da sede. Trata-se de Arcoverde, a 256 km do Recife e que, nos registros da Missão, figura sob sua antiga denominação: Rio Branco. Em 8 de março de 1938, Luis Saia e sua equipe chegam a Rio Branco, hospedam-se numa pensão, gravam algumas toadas e aboios, uns dois cocos, fotografam uma criança negra e às 18 horas, com o caminhão cedido pela Prefeitura, partem rumo a Tacaratu. A cidadezinha não estava na rota da pesquisa, não lhes era de interesse. A curiosidade reside no fato de que, hoje, Arcoverde é conhecida como “Terra do Samba de Coco”, produto cultural negro e popular, forjado por alguns mestres conhecidos nas redondezas e outros, inúmeros, anônimos. O coco, que tanto chamou a atenção de Mario de Andrade, especialmente na figura do mestre coquista do Rio Grande do Norte, Chico Antonio, não despertou o mesmo interesse dos seus pesquisadores em terras de Arcoverde. Mas, já naquela época era uma manifestação marcante na região. Costumava-se pisar o coco depois da construção de
uma casa para aplanar o piso e também depois das novenas de maio, quando se cobriam os santos com panos e rendas, como sinal de respeito, e se dançava até o raiar do dia. Foi na década de 30 que a família dos Galegos, família de coquistas, fixou-se na cidade e começou a dançar o coco no bairro Coqueiro, de sugestivo nome, hoje COHAB I. Remanescentes da família afirmam que o coco era acompanhado por cavaquinho. Nessa mesma época a família de Ivo Lopes, mestre coquista, deixava o sítio Batalha e se fixava no bairro do Cruzeiro. O bairro do São Geraldo também já possuía suas salas de coco, salas minúsculas nas casas de família em que os homens empregados na estação da Great Western ou na Sanbra como carapuceiros faziam delas seus palcos. Palco de mestres afamados entre os mais simples, Arcoverde celebrou nos bairros pobres os nomes de mestres, como Quincas Galego, Brasa Viva, Alfredo Sueca, Das Dores, Ivo Lopes, Luís Calixto. Pessoas humildes que no cultivar de sua arte nunca poderiam supor que contribuíam de forma tão importante para a construção/invenção da identidade da cidade em que nasceram ou que adotaram como sua.
Foto: Luca Barreto
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Foto: Arquivo Centro Cultural São Paulo
TRADIÇÕES
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Este empreendimento conectava-se ao projeto de busca pela identidade nacional tão cara aos modernistas e, de modo geral, a nações novas como o Brasil Em um só dia (8 de março de 1938), a equipe da Missão chega a então Rio Branco, grava alguns ritmos, faz a foto acima e parte rumo a Tacaratu
Hoje Arcoverde conta com dois grupos de samba de coco que, ao mesmo tempo em que rivalizam entre si, fazem a alegria das festas da região: o Coco das Irmãs Lopes e o Coco Raízes de Arcoverde. O coco das Irmãs Lopes é herdeiro de Ivo Lopes, mestre que conquistou fama, inclusive fora da cidade, sobretudo nos anos de 1960 e 1970. Hoje, é liderado por Severina Lopes, sua irmã, que mantém em sua residência um museu popular dedicado à memória cultural de sua família e da própria cidade. Já o Coco Raízes de Arcoverde, festejado pela mídia pernambucana e com dois CDs gravados, é a prova viva da luta de um homem pela preservação da sua história e da história do seu povo. Toda esta retomada das tradições populares em Arcoverde (e não só do samba de coco, como se pode imaginar) deve-se ao trabalho de Luís Calixto Montenegro, o Lula Calixto, que revitalizou o festejo depois da morte de Ivo, em 1985, e arregimentou mestres que estavam afastados, como
Cícero Gomes, Biu Neguinho e as próprias Irmãs Lopes, formou crianças e adolescentes na arte de pisar o coco, de tocar o ganzá e o pífano num trabalho incansável nas ruas e escolas de Arcoverde, deu novo fôlego à arte e à cultura popular da cidade, como também uma nova auto-estima aos seus brincantes e a uma significativa parcela de arcoverdenses. Hoje, o Coco Raízes de Arcoverde é exemplo de autogestão de grupo popular sem precedentes em Pernambuco e segue com o trabalho de Lula, falecido precocemente do mal de chagas, em 1999. Com sede no Cruzeiro, mantém um memorial para Lula Calixto que é ponto de referência a todos que chegam à cidade. Arcoverde, lugar de pouso e passagem, terra de forasteiros, como também era conhecida há alguns anos, constrói/inventa para si uma nova identidade que é híbrida, popular, lúdica e sempre jovem, como aquele menino anônimo da fotografia: terra do samba de coco, do reisado das Caraíbas, do pífano de “padim” Batista e das pessoas de carne e osso que a compõem e que nas suas (con)tradições tramam uma nova forma de ser e de fazer história. • Micheliny Verunschk é poetisa e historiadora.
Figura do Reisado de Caraíbas Foto: Luca Barreto
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86 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Por favor, não me convidem para o cinema
Entre o modelo americano e o soviético, escolho o sofá da minha casa
N
ão vi Dogville. Desejei ver, mas não tive coragem. Três horas sentado numa cadeira do cinema da Fundação Joaquim Nabuco seriam fatais para a minha coluna. Não sei quem inventou que as salas de filmes de arte precisam ser desconfortáveis. Sempre foi assim, desde o tempo do Cine Coliseu, que virou supermercado. O Cinema do Parque não é melhor, nem apresenta a excelente programação do Joaquim Nabuco. E o Apolo ainda não se firmou como opção para quem deseja ver películas fora do circuito comercial e mostras retrospectivas. O preço para assistir um bom filme pode ser uma lombalgia. Ou uma escoliose, dependendo dos anos Continente abril 2004
que o cinéfilo se contorceu procurando uma posição. Até imaginei um serviço de fisioterapia especializado em atender vítimas dos cinemas de arte. E porque não um seguro saúde contra a Lerpvt? Seria uma contribuição à medicina que tanto tem alertado para os perigos da LER – lesão do esforço repetido. Os nossos assegurados receberiam benefício somente nos casos de lesão do esforço repetido para ver a tela – Lerpvt. A idéia me veio depois que presenciei um altão sentar na frente de uma baixinha, numa sala sem declive. A infeliz fez tantos malabarismos para ver o filme que sem o preparo de um ator de kata-kali, deve ter-se machucado severamente.
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Por conta desses riscos, quase nunca saio de casa para o cinema. Desconfio de todo filme americano recente, principalmente os indicados ao Oscar. Eles me dão a impressão de que estou assistindo um comercial de sabonete. Na essência, o esquema de produção e venda de O Último Samurai, é o mesmo da pepsi-cola. Não gosto de ver um filme com a sensação de que me empurram um bigmac de goela abaixo. Os diretores americanos dirigem, mas não montam os seus filmes, com raríssimas exceções. A mais famosa e folclórica é Woody Allen. Como nas novelas da Globo, em que os autores desenvolvem a trama em função do Ibope alcançado junto ao público, os filmes de sucesso são montados e remontados depois de vistos por platéias experimentais. Gênios como Fellini, Antonioni, Bergman e Kurosawa não teriam a menor chance em Hollywood. O Oscar é pura maracutaia. Cidade de Deus não teria sido colocado no páreo sem o empenho de Harvey Wenstein, da Miramax. Ou vocês acreditam que os méritos foram apenas dos nossos favelados? Todos os meus amigos adoraram As Horas, aquele filme com Nicole Kidman no papel de Virgínia Wolf. Insistiram tanto, que furei o meu bloqueio e fui ver. É o típico produto para as pessoas de bom gosto, uma pílula dourada. No seu objetivo de ganhar o público, pouco difere de Ed Murphy, porcaria in natura. Eu não vou ao cinema, mesmo gostando de cinema. Não suporto a idéia de sair de casa para um shopping center, atravessar corredores de lojas, subir e descer escadas rolantes e por fim chegar a uma sala de projeção. Sinto-me grilado em parecer que fui às compras. Não acho que faz bem à saúde o excesso de tecnologia das novas salas dos shoppings, o som alto, as imagens parecendo reais, provocando taquicardia e pânico. Como Lars von Trier, o diretor de Dogville, creio que há tanto excesso em filmes americanos, como O Senhor dos Anéis, que já não tem mais graça. E este excesso é fabricado para os laboratórios sensoriais em que se transformaram os cinemas. É por isso que aprecio os filmes iranianos e sonho com salas simples
e confortáveis, fora dos centros de compras. No lado contrário, o nosso cinema de arte da Fundação Joaquim Nabuco também não passa uma impressão agradável. Pela fachada do prédio já sabemos que se trata de uma repartição pública com porteiro, livro de ocorrências, vigilantes mal-informados e uma bilheteria burocrática, com filas intermináveis. Só falta pedir que a gente bata o cartão de ponto. O ar-condicionado não funciona, e onde mal caberiam 150 poltronas, imprensam 320 cadeiras. Sentimos o desconforto de um caminhão pau-de-arara, lotado de romeiros. O cinema do shopping é modelo americano e o da Fundação Joaquim Nabuco um exemplar soviético. Íamos ao cinema de arte como os devotos vão à igreja, com persistência e fidelidade. O público da Fundação é muito parecido com o do antigo Coliseu. Suporta o calor com estoicismo, e ainda aplaude no final. Com o tempo, a gente reconhece as pessoas e cumprimenta-as como se fossem velhas amigas. Sabemos que elas partilham do nosso gosto, que fazem parte de uma confraria de amantes da sétima arte, o que tem um certo glamour. Um pouco como os evangélicos, só que os homens não vestem paletó, as mulheres não usam o cabelo preso e ninguém anda com uma bíblia debaixo do braço. Mas pertencer a esse público é como fazer parte de uma casta. No Recife, tratam a casta de cinéfilos do mesmo modo que a dos impuros, na Índia. Se fosse diferente, já teriam criado cinemas com o mínimo de qualidade. Enquanto isto não acontece, prefiro rever filmes antigos, lançados em DVD. Nunca é o mesmo encanto de uma sala em que as luzes se apagam e você mergulha na magia de imagens e sons. Em casa, você pode ter a companhia da mulher e dos filhos e o conforto de uma boa poltrona. Ninguém do seu lado vai estar mastigando pipoca ou arrotando coca-cola. O telefone pode tocar, é bem verdade. Mas é só tirá-lo do gancho. • Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.
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Foto: Beto Barata/AE
Temporada do rock Entre os dias 16 e 18 de abril, Olinda se transforma no maior palco de pop rock do Brasil
Maior festival independente do Brasil, o Abril Pro Rock chega à sua 12a edição consolidado como o mais importante evento de música pop do Brasil, consagrando-se também como o único no país que alcançou tal continuidade, fiel aos objetivos iniciais: dar suporte à cena musical pernambucana e trazer para o público local grandes nomes da música nacional e internacional. O evento que lançou nomes e bandas como Penélope, Los Hermanos, Bonsucesso Samba Clube, Devotos, Mestre Ambrósio, Eddie, Querosene Jacaré, Otto, Cascabulho e Selma do Coco – alguns já consagrados e outros que serviram de laboratório para carreiras solo –, mantém-se conectado às origens. Durante os dias 16, 17 e 18 de abril, o Centro de Convenções, no entrocamento do Recife com Olinda, servirá de palco para 25 atrações, entre elas nove pernambucanas e alguns lançamentos, que injetam sangue novo no festival. O rapper Marcelo D2 abre o APR na noite da sexta-feira. Em seguida, o palco é da dupla belga Vive La Fête. Outra atração da noite é o DJ Dolores (foto acima) com seu novo projeto, Aparelhagem – confluência da música urbana do norte-nordeste com a eletrônica. Ainda nesta noite, a música tradicional nordestina ganha voz com a cearense Karine Alexandrino e com a pernambucana Cinthya Zamorano (ao lado), que na ocasião lança o disco Littlefishdublongwatersamba. Cyz, como é conhecida, faz umas misturas rítmicas e melódicas das suas várias influências: espanhola, legado materno, e pernambucana, herança do lugar onde nasceu e cresceu ouvindo batuques de candomblé, caboclinhos e maracatus. Juntou tudo às suas castanholas e produziu um som original e surpreendente, no qual as bases eletrônicas funcionam apenas como elos harmônicos. Continente abril 2004
O rock pesado domina a noite de sábado, aberta pela Ratos de Porão. Ainda nesta noite tocam Krisiun (RS) e Destruction (Alemanha), entre outras. A produção musical de Pernambuco ganha seu maior espaço no domingo, com as bandas Los Sebozos Postizos (segunda identidade da Nação Zumbi), Mombojó, Suvaca di Prata, A Roda e Mula Manca e a Triste Figura, grupos que vêm renovando a cena pernambucana, assumindo Foto: Divulgação
AGENDA
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Eventos paralelos – Este ano, o festival abre espaço para algumas novidades. Durante a semana do evento, os principais representantes dos selos independentes do país estarão reunidos debatendo os caminhos do mercado fonográfico independente no Brasil. Em paralelo, estará acontecendo a Mostra Música e Tecnologia, que reunirá o que há de mais moderno na produção de tecnologia voltada para música, e a Feira de Arte e Comportamento, onde serão comercializados serviços, livros, instrumentos musicais e CDs. Os eventos paralelos acontecerão no Pavilhão de Feiras do Centro de Convenções. (IC)
Sotaque cearense
Abril Pro Rock 2004, de 16 a 18 de abril, no Centro de Convenções, Olinda/PE. Ingressos: R$ 30,00 (estudante paga meia).O passaporte para os três dias custa R$ 50,00 (com direito a um CD promocional do evento). Informações: www.abrilprorock.com.br
Quem toca: Sexta, 16/04 Marcelo D2 (RJ) Vive La Fête (BÉLGICA) Dj Dolores: Aparelhagem (PE) Karine Alexandrino (CE) CYZ (PE) MM Dub (PE)
Sábado, 17/04 Ratos de Porão (SP) Krisiun (RS) Destruction (ALEMANHA) Eminence (BH) Forgotten Boys (SP) Switch Stance (CE) Maldita (RJ) Lava (SP) Insurrection Down (PE) Vamoz! (PE) Domingo, 18/04 O Rappa (RJ) Pitty (BA) Los Sebosos Postizos (PE) Cabruêra (PB) Mombojó (PE) Suvaca di Prata (PE) A Roda (PE) Mula Manca e a Triste Figura (PE)
O Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza (CE) organiza mensalmente uma vasta programação na área musical, marcada pela proposta de levar as tradições populares para o ambiente urbano e projetar para o Brasil artistas nordestinos. É dentro dessa idéia que grupos como Tao e Coisa, que mistura as influências do município de Itapipoca (CE) com canções antológicas do cenário musical brasileiro, Verso de Boca, que propõe a intersecção entre as linguagens da música, teatro e literatura, interpretando especialmente poetas, como Fernando Pessoa, Florbela Espanca e Vinícius de Moraes, e Joana Angélica, cantora de forte presença no cenário cearense e que vem se destacando nacionalmente pelo impecável repertório, apresentam-se no CCBN. Mas a programação não pára por aí, inclui a Série Choro no Centro. Dentro dela se apresentam grupos, como o Choramingando e Cordas que Falam, e artistas, como Gladson Carvalho, Fernando Abreu e Nonato Luiz (foto). Todos trazem um repertório consagrado no gênero, temperado com o sotaque cearense. Programa Cultura Musical e Série Choro no Centro, Centro Cultural Banco do Nordeste, Rua Floriano Peixoto, 941, Centro, Fortaleza/CE. As apresentações acontecem sempre nas quartas e quintas de abril (01, 07, 08, 14, 15, 22, 28 e 29), às 12h e às 18h30. Entrada gratuita. Informações: www.bnb.gov.br/cultura
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que a música tradicional, para eles, não é tão importante e que a definição “mangue” já não comporta tamanha variedade sonora. Neste último dia, ainda sobem ao palco O Rappa, Pitty (BA) e Cabruêra (PB).
Foto: Divulgação
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AGENDA
» 90 MÚSICA
Clara Sandroni
Música de Câmara
Fotos: Divulgação
Não é todos os dias que tenho o prazer de ser apresentada a uma voz bela e segura, talento original e ousado como o de Clara Sandroni, de quem já ouvira falar por estar próxima a Carlos, seu irmão e compositor de algumas músicas presentes no álbum Clara Sandroni. Lançado originalmente em 1989, pela Kuarup, este terceiro disco volta ao catálogo em merecida reedição da Biscoito Fino. A gravação de “Guardanapos de Papel” – canção do uruguaio Lee Masliah adaptada para o português por Carlos Sandroni – já vale o álbum. “Guardanapos” é uma canção romântica, mas fora do lugar-comum oferecido pelo gênero; possui os maneirismos e a elegância do minueto, só que em quatro tempos. E o registro de Clara é superior ao feito por Milton Nascimento, que aqui participa da releitura de “Um Índio”, de Caetano Veloso, de quem Clara também canta “O Homem Velho”. O repertório primoroso inclui músicas já conhecidas de Paulinho da Viola, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Gilberto Gil, Luís Vieira e João do Valle, Joyce e, claro, dos seus irmãos Carlos e Luciana, mas com arranjos que se harmonizam com a sua proposta de fazer uma música conceitual, apoiada na experimentação. Clara Sandroni também reúne bambas do instrumento: Jaques Morelenbaum, Marcos Suzano e Paulo Malagutti. (IC)
Fantasia Brasileira é o segundo disco da Orquestra de Câmara Rio Strings. O grupo capitaneado pelo violoncelista inglês David Chew toca quatro dos melhores orquestradores da música popular brasileira: Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Wagner Tiso e Francis Hime. O resultado é um álbum que enobrece o repertório erudito, abrindo caminhos para os poucos grupos camerísticos do Brasil. O CD começa com o “Prelúdio das Bachianas Brasileiras No 4”, de Villa-Lobos, que ganha uma interpretação mais intimista. Wagner Tiso é autor da “Diáspora Cigana”, suíte politemática que narra a saga da sua família, originária da região do rio Tisa, na qual o acordeom e o piano, solados por Tiso, parecem dialogar com o quarteto de cordas. Na sua primeira versão em CD, a “Diáspora” foi acrescida de mais dois temas e recebeu arranjos inéditos de sopros. De Guerra-Peixe, fluminense, que em Pernambuco viveu e pesquisou a riqueza das músicas, temos “Mourão”, peça que nasceu originalmente como uma vinheta de rádio e que faz uma clara reverência à riqueza rítmica local, incluindo a cadência do frevo e do xote. Francis Hime fecha o álbum, recuperando uma das suas primeiras composições para piano, “Fantasia para Piano e Orquestra”, reescrita para a versão camerística, que abre solando o primeiro tema e depois vai se misturando à orquestra numa harmonia lírica.
Clara Sandroni, Biscoito Fino, preço médio R$ 20,00.
Fantasia Brasileira, Biscoito Fino, preço médio R$ 20,00.
Canto agreste
Dance com Elas
Bossa eletrônica
As lavadeiras de beira de rio, cantando enquanto trabalham, criaram um estilo de canto agreste, conhecido como “rojão”, tão aberto e solar quanto a paisagem das caatingas. E é esse cantar rasgado um dos encantos do grupo Comadre Fulozinha, que está lançando seu segundo CD, Tocar na Banda. A maioria das canções é de Karina Buhr, que, como letrista, surpreende com imagens insólitas: “Chumbo de vidro, estrela de papel/ Poeira virou o céu”, em “Chumbo de Vidro” ou então: “Sopro cor de anilina/ De cor que não se via”, em “Amaralina”, a mais bonita do disco. Boa também a letra de “A Cidade Tá Subindo”, de Isaar de França.
Elas traz uma seleção de músicas que parecem formar a trilha sonora da alma feminina – mas daquelas mulheres que vêem na relação a dois a maior meta da vida a ser alcançada. O álbum tem uma coletânea de músicas de gosto fácil, já diluídas pela grande mídia, porém cantadas por mulheres detentoras de vozes poderosas. O ponto alto do CD é o encontro de novas vozes femininas, como a de Helena Cutter, vocalista da Acid X, com vozes consagradas, como a de Belô Velloso, Zélia Duncan e Luciana Mello. Destaque para a caixa do CD, que faz referências às placas sinalizadoras dos banheiros femininos.
Nem tudo é relaxamento no CD de lounge Eletrobossa Nights. Gênero onde tudo cabe, o lounge é conceituado como músicas para inspirar serenidade e leveza, abarcando desde o eletrônico ao acústico, passando pelo banquinho e violão, DJ e banda de rock. No caso de Eletrobossa, a Bossa Nova fundamenta as harmonias, que recebem acordes maravilhosos de violão, mas também os bits eletrônicos – o que resulta numa música ambiente, é certo, contudo nem sempre relaxante, como acontece nas faixas “Samblack”, “Balanço do Trem”, “Amar Não Dói” e outras.
Tocar na Banda, Comadre Fulozinha, Ybrazilmusic/Trama, preço médio R$ 20,90.
Elas, Band Music/ST2 Records, preço médio R$ 20,00.
Eletrobossa Nights, Azul Music, preço médio R$ 23,00.
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A comunhão da dança
Portugueses da Companhia Paulo Ribeiro se unem a bailarinos brasileiros no espetáculo 7 Solos para 11 Cenas Falling Through... A língua é a mesma. Mas, no espetáculo 7 Solos para 11 Cenas Falling Through..., é a sincronia dos corpos dos bailarinos portugueses e brasileiros que aproxima Portugal do Brasil. O espetáculo, que faz parte do Projeto Transatlântico da Companhia Paulo Ribeiro de Portugal, chega aos palcos recifenses, este mês, com o objetivo de criar uma ponte entre os dois países e consolidar o intercâmbio cultural. A direção e a coreografia são do dinamarquês, cidadão do mundo, Peter Michael Dietz, que vive no Recife há três anos e já fez parte da companhia portuguesa. Na apresentação, que vai passar por Fortaleza, Salvador e Portugal, os passos dos bailarinos (quatro portugueses, dois pernambucanos, um baiano e um cearense) mostram a vida de pessoas comuns, narrando experiências e exprimindo sentimentos. Os movimentos individuais, aparentemente sem co-
nexão, se fundem e entram em comunhão, ao som da música do DJ Dolores. A Companhia de Dança Paulo Ribeiro foi fundada em 1995, na cidade de Viseu, em Portugal. Desde então, o grupo tem se destacado em seu país e no continente europeu com espetáculos como Silicone, Não (foto, 2003) e Tristes Europeus – Jouissez Sans Entraves (2001). 7 Solos para 11 Cenas Falling Through... Abril – 16, 17 e 18 - Teatro Santa Isabel – Recife 21 e 22 – Teatro Isba – Salvador 24 e 25 – Centro Dragão do Mar – Fortaleza Maio – Teatro Viriato – Viseu / Portugal Informações: 81 3424 5429.
Teatro na estrada De abril a setembro, 19 cidades do interior de Pernambuco vão receber o IV Circuito Pernambucano de Artes Cênicas, que se caracteriza por descentralizar as artes, levando o que de melhor a Capital pôde ver nas áreas de teatro e dança para os municípios do Agreste e do Sertão do Estado, bem como oficinas e palestras sobre as linguagens. Este ano, 12 espetáculos, selecionados entre 53 inscritos, integrarão o Circuito: Samba no Canavial, O Mistério das Figuras de Barro, Zumba Sem Dente (foto), Dançando nas Alturas, Zambo,
Foto: Marcelo Lyra/Divulgação
Uma Mulher Vestida de Sol, O Santo e a Porca, O Nosso Pastoril, O Auto da Compadecida, Um Livro de Fábulas, O Ano do Coelho e Vertentes. Cada município poderá escolher que montagem quer receber. IV Circuito Pernambucano de Artes Cênicas De abril a setembro Municípios: Afogados da Ingazeira, Arcoverde, Bezerros, Cabo, Camaragibe, Carpina, Caruaru, Floresta, Garanhuns, Limoeiro, Ouricuri, Palmares, Pesqueira, Petrolina, Serra Talhada, Sertânia, Timbaúba, Triunfo, Tuparetama.
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» 92 FOTOGRAFIA
Fotografias de mestre O fotógrafo Alcir Lacerda expõe imagens dos seus 62 anos de carreira O rigor estético e o pioneirismo foram os dois principais critérios utilizados pela curadoria da exposição Alcir Lacerda – Fotografia para selecionar as 110 imagens, em P&B, do fotógrafo Alcir Lacerda. As fotos que estão ocupando quatro salas da Torre Malakoff registram momentos únicos, imortalizados desde o início da carreira do fotógrafo, em 1942, quando teve seu primeiro contato com uma rolleiflex. Hoje, com 76 anos, ele continua em plena atividade. A exposição é uma homenagem a sua obra e ao seu incentivo constante à fotografia pernambucana. As praias nordestinas são retratadas no primeiro espaço da mostra. As lentes do fotógrafo levam o público a recantos fascinantes e recortam momentos, como o encontro de jangadas em Tamandaré. Depois, os monumentos do Recife e de Olinda entram no seu foco, inclusive com fotos aéreas. Marcando os 40 anos da tomada do poder pelos militares, são expostas imagens inéditas do Golpe de 64, que tiveram seus negativos apreendidos na época e que mostram um pouco da faceta fotojornalística de Alcir Lacerda. Na quarta e última sala, o enredo é o interior, a seca, a miséria, o vaqueiro e a família de Mestre Vitalino. Complementando a Mostra e a homenagem, a recém-inaugurada Sala Alcir Lacerda (dedicada exclusivamente à arte fotográfica) expõe, atendendo a um pedido do homenageado, trabalhos de 33 convidados de três gerações de fotógrafos, entre eles Fritz Simon, Edmond Dansot, Júlio Jacobino, Otávio de Souza Edvaldo Rodrigues, Josenildo Tenório, Beto Figuerôa e Marcelo Lyra. Continente abril 2004
Exposição Alcir Lacerda – Fotografia Até 9 de maio Torre Malakoff – Recife Antigo Terça à sexta das 9h às 20h / sábados e domingos das 15h às 20h Entrada Gratuita.
Sérgio Rezende volta a inovar em Onde Anda Você, filme que estréia nos cinemas nacionais no dia 09 de abril Dono de uma das mais ricas filmografias nacionais, Sérgio Rezende, depois do drama intimista Quase Nada, volta a inovar em Onde Anda Você. O cineasta mais conhecido pelas produções competentes e comportadas, como O Homem da Capa Preta, Lamarca e A Guerra de Canudos, embarca agora numa viagem humorada neste novo filme – que, como Quase Nada, é simples; mais barato se comparado às suas outras produções. Pela primeira vez, Rezende investe na comédia como gênero, mais exatamente na comédia poética italiana e no melhor do humor nacional. Onde Anda Você conta a história de Felício Barreto, um velho comediante em busca da alegria perdida. Para isto, ele é capaz de inventar uma delirante aventura que o leva da fria metrópole de São Paulo a um lugarejo perdido no Ceará, reencontrando seu velho parceiro e sua ex-mulher, que o traíram, e um genial comediante, que pode ser seu novo parceiro. Neste filme, o espectador irá encontrar desde a camaradagem típica dos personagens do Mario Monicelli ao olhar melancólico sobre os efeitos do tempo de Ettore Scola. Tudo pontuado pela comicidade nostálgica do Fellini de O Sheik Branco, Os Boas Vidas, e Oito e Meio. Aqui Sérgio Rezende faz reverências ao melhor do cinema italiano, sem deixar de prestar homenagem aos grandes comediantes brasileiros, seja através de citações a Chico Anysio e Mazzaroppi, seja por intermédio das participações em cena de atores, como Castrinho, Paulo César Pereio e José de Vasconcelos. O cineasta também reverencia Chaplin, Nino Rota e Brahms. Onde Anda Você foi o primeiro filme de Rezende em que a música – peça 11 de Danças Húngaras, também utilizada por Chaplin em O Grande Ditador – chegou antes do filme. Nas mãos de David Thygel, responsável pela trilha sonora, o tema de Brahms ganhou várias versões. Onde Anda Você, de Sérgio Rezende. Com Juca de Oliveira, José Wilker, Drica de Moraes, Regiane Alves e José Dumont. Estréia nos cinemas nacionais no dia 09 de abril de 2004.
Veja esta canção É bem mais profunda a relação entre música e cinema do que se pode imaginar. Quantas trilhas sonoras ou temas musicais estão marcados em nossa memória? E o que dizer das trilhas que nos fazem projetar as imagens do filme em questão? Baseado nesta relação tão intrínseca, o Centro Cultural Banco do Nordeste organizou a Mostra Cinema Cantante, em cartaz todas as segundas-feiras de abril. Apesar de não ter tradição em musicais, o cinema brasileiro produziu diversos filmes que falam sobre música e até alguns musicais, como A Ópera do Malandro, de Ruy Guerra. Programado para exibição no CCBN, A Ópera conta a história de um elegante e sedutor malandro (Edson Celulari) e suas aventuras e trambiques no boêmio bairro carioca da Lapa. A programação ainda exibirá os filmes Veja Esta Canção (foto), de Carlos Diegues; O Mandarim, de Júlio Bressane, e Villa-Lobos, de Zelito Viana.
A Ópera do Malandro Dias 12 e 19 de abril, às 12h e 18h30 Veja Esta Canção Dias 19 e 26 de abril, às 12h e 18h30 O Mandarim Dias 12 e 26 de abril, às 15h30 e 12h Villa-Lobos, Uma Vida de Paixão Dias 12, 19 e 26 de abril, às 12h, 18h30 e 15h30
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Um filme sobre cinema
CINEMA 93 »
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A festa do livro A 18ª Bienal do Livro de São Paulo traz atrações culturais, destacando o aniversário da cidade Os 450 anos da cidade de São Paulo vão ser lembrados, mais uma vez, este ano. A homenagem será feita na 18a Bienal do Livro de São Paulo. Entre os dias 15 e 25, o Centro de Exposições Imigrantes vai sediar o evento, que atraiu, na sua última edição, cerca de 600 mil pessoas. Serão mais de 18.300 metros quadrados dedicados à literatura. Além de expor os lançamentos de editoras brasileiras e estrangeiras, haverá uma vasta programação com atividades direcionadas a públicos diversos. As crianças terão um espaço garantido. O Centro Difusor de Cultura (Cedic), que edita livros didáticos e paradidáticos, selou uma parceria com o criador da Turma da Mônica, Maurício de Souza, que estará presente no estande. Os leitores mirins que visitarem a Bienal poderão ainda conhecer um pouco sobre a cultura dos povos que vieram para São Paulo, num espaço montado pela coordenação do evento. Para o público adulto, o Salão de Idéias é o grande destaque. Esse é o espaço para o encontro do escritor com o leitor. Serão realizadas aproximadamente 40 sessões, quatro por dia, mediadas por um jornalista. Cerca de 100 escritores e personalidades da literatura nacional e internacional vão participar do Salão. Já o Café Literário vai focar suas atenções no aniversário da cidade. Os lançamentos serão bastante variados. A editora Geração Editorial vai trazer dois escritores estrangeiros. O multimídia Leonard Mlodinow lançará A Janela de Euclides e Nick McDonell trará seu romance Doze. Na Melhoramentos, que apresentará 30 obras inéditas, o destaque é Os Meninos Morenos de Ziraldo. O veterano das bienais Moacyr Scliar vai relançar O Centauro no Jardim e 18ª Bienal do Livro de São Paulo o jornalista Fernando Moraes 15 a 25 de abril apresenta o seu 100 Quilos de Centro de Exposições Imigrantes Ouro, uma coletânea de gran- R$ 8 e R$ 4 (estudante) www.bienaldolivrosp.com.br des reportagens e entrevistas. Continente abril 2004
Em nome de Deus Durante o período colonial brasileiro, uma instituição tornou-se tão poderosa a ponto de rivalizar com o poder real e esse poderio foi a sua ruína. Assim pode ser resumida a história, já contada e conhecida, da Companhia de Jesus na América lusitana. Agora, lançando mão de minuciosa pesquisa, inclusive em fontes primárias, o historiador Paulo de Assunção debruça-se sobre os aspectos econômicos da empreitada dos inacianos que, para manter colégios, igrejas e residências e prover o sustento dos religiosos e alunos, empreenderam uma aventura capitalista nos trópicos, gerindo fazendas, engenhos e sítios, dentro da lógica do latifúndio monocultor do período, que requeria capital e trabalho escravo, orientando a maior parte da produção para os mercados europeus – tudo em nome de Deus. O crescimento desse patrimônio, os privilégios e favorecimentos de que gozavam, a disputa em torno dos territórios indígenas, a desobediência aos decretos e alvarás reais, entre outros motivos, atiçaram a oposição aos jesuítas, culminando com sua proscrição e expulsão de Portugal e do Brasil em 1759.
Negócios Jesuíticos – O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos – Paulo de Assunção, Edusp, 512 pág., R$ 65,00.
Impacto e surpresa
Poetas da África
Uma boa frase de abertura não garante que uma narrativa seja boa. Mas há as que começam contundentes na primeira frase e continuam mantendo a tensão inicial. Um bom exemplo é a novela A Metamorfose, de Kafka, detentora da provável melhor abertura de um texto de ficção em todos os tempos. Nela, o protagonista começa a “viver” um pesadelo justo no momento em que acorda de um pesadelo. O romance O Dia em que Matei meu Pai, estréia do jornalista Mario Sabino na ficção, é mais radical. Começa impactando desde o título. E segue assim por todo o primeiro capítulo, em que o narrador entra em detalhes sobre seu ato criminoso, continuando nos capítulos seguintes numa espécie de explicação e justificativa arrevesadas desse ato. Ao narrar para uma psicanalista muda como se desenvolveu nele o desejo do parricídio, o protagonista utiliza um repertório de mentiras e verdades, entremeadas de idéias filosóficas, religiosas, psicanalíticas e literárias. Entre estas, a inserção de um romance dentro do romance. O resultado é uma narrativa rápida e nervosa, que o leitor devora de uma só vez. Atenção: as últimas linhas do livro guardam uma surpresa.
Editado sob a chancela da Academia Brasileira de Letras, a antologia Poesia Africana de Língua Portuguesa é um precioso painel do trabalho poético feito em Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe. A exaltação da raça negra ou da igualdade de todas as raças, a luta pela autonomia e dignidade dos povos, a natureza e os costumes, o amor e a amizade são alguns dos temas mais recorrentes numa poesia de cunho moderno, mas sem grandes interesses no experimentalismo. A seleção é assinada pela professora e tradutora italiana Lívia Apa e pelos poetas Arlindo Barbeitos e Maria Alexandre Dáskalos, também presentes com poemas na coletânea, ao lado de nomes conhecidos como Agostinho Neto, de Angola, e José Craveirinha, de Moçambique. Entonações diferentes dentro da nossa língua e outras maneiras de olhar o mundo são algumas das gratificações com que contará o leitor deste livro, além da inegável beleza e força de vários poemas.
O Dia em que Matei meu Pai. Mario Sabino. Record. 224 páginas. R$ 25,00.
Poesia Africana de Língua Portuguesa. Lívia Apa, Arlindo Barbeitos, Maria Alexandre Dáskalos. ABL/Lacerda Editores. 238 págs. R$ 35,00.
Golpe em Pernambuco
O cidadão e a política
Liberdade de voar
Este livro faz um mapeamento do Golpe Militar de 64 sob um ponto de vista estritamente pernambucano, o que talvez seja seu grande diferencial. Historiador e cientista político, Fernando Coelho, o autor, faz um minucioso levantamento do que pensavam, sentiam e faziam todos os atores daquela época histórica, de todas as orientações políticas. Sendo ele próprio um destes atores, consegue, mesmo assim, uma postura isenta ante os fatos e um autêntico compromisso com a verdade. Contrapondo de um lado a “cultura política da casa-grande” e de outros setores progressistas, inclusive dentro da Igreja, Coelho mostra o quanto foi pesada a repressão em Pernambuco.
Na década de 40, nos EUA, a pioneira obra de Paul Lazarsfeld The People’s Choice inaugurou a moderna pesquisa política. A ainda raquítica literatura brasileira a respeito vem a ser enriquecida com o lançamento de A Construção da Política, de Alessandra Aldé, doutora em Ciência Política. Durante mais de um ano (período que incluiu as eleições presidenciais de 1998) ela entrevistou mensalmente um grupo de cariocas de idades, classes sociais e níveis educacionais diferentes, sobre suas atitudes políticas e relações com os meios de comunicação de massa. Os resultados mostram como a pessoa comum se posiciona e ratificam a influência relativa da imprensa nesse processo.
Vem da terra dos irmãos Wright a mais recente e aclamada biografia de Alberto Santos-Dumont, o brasileiro atormentado e sonhador, pioneiro da aviação mundial. O autor, Paul Hoffman, é um respeitado jornalista americano, ex-presidente da Enciclopédia Britânica e divulgador científico na televisão. Nessa obra, ela desvela a personalidade brilhante e contraditória de um homem apaixonado pela idéia de que temos a liberdade de voar. A exaustiva pesquisa de Hoffman esclarece detalhes da vida do aviador, inclusive seu suicídio em julho de 1932, e esclarece as reais contribuições do brasileiro e dos americanos ao invento do avião, para além da disputa sobre a primazia pelo invento.
Direita, Volver: O Golpe de 1964 em Pernambuco. Fernando Coelho. Edições Bagaço. 608 páginas. R$ 40,00.
A Construção da Política – Democracia, Cidadania e Meios de Comunicação de Massa – Alessandra Aldé, FGV Editora, 216 páginas. R$ 34,00.
Asas da Liberdade – A Extraordinária Vida de Santos-Dumont – Paulo Hoffman, Objetiva, 344 páginas. R$ 42,00. Continente abril 2004
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ÚLTIMAS PALAVRAS
Rivaldo Paiva
Que reino é esse? Há 500 anos, só reinozinhos sem-vergonhas
L
á pelas barafundas dos cafundós colonizadores uma porção de reizinhos portugueses resolveram extrapolar conquistas por mares nunca dantes navegados e atracaram-se por aqui. Terra do pau Brasil, de índios nativos - o reino dos caciques. Entretanto, D. João III bateu na mesa e decidiu presentear com capitanias - terras e lotes definidos e grandes matas latifundiárias - suas famílias e apadrinhados. Iniciavase o ciclo das elites - as classes dominantes e poderosas. Daí em diante foi um rococó só - um Deus nos acuda. Tornamo-nos súditos do reinado lusitano e dos senhores de bacamartes, ora pois, pois. Então começaram a aportar pelo Nordeste os holandeses com naus poderosas e invasores inteligentes. Começou um bate-boca do impossível. Eram portugueses de Olinda contra os recifenses brasileiros e vice-versa, mascateando no varejo os atacados de Nassau príncipe insigne dos armadores das Índias Ocidentais. Foi briga pra ninguém botar colher. O correio marítimo dos papiros pincelados por penas de gansos funcionava às trivelas. No trono dos Dons Joãos já se encontrava o VI - o pantagruélico gourmet das galinhas d'Angola, que de tantas trapalhadas, nomeou dono da coroa brasileira seu filho Dom Pedro I - o primeiro hedonista dos Orleans e Braganças e botem força. Faz e acontece, criou um bocado de coisas, fez bailes monumentais, plantou palmeiras pra cantar o sabiá e orquídeas e baronesas. Deu o grito de independência ou morte e deixou o reino brasilis para outro Pedro, o II, que tirava retrato até para carteira de saúde. E a safadeza comendo no centro. Fortificavam-se as elites burguesas, com certeza - chicoteando os negros escravos ou negociando-os como farinha de mandioca ou charque de cavalos. Surgiram revoltosos, folhetins e cochichos em botecos falados. Nabuco reclamava alto contra a escravidão e Castro Alves poetava. A princesa Isabel arretou-se e assinou a Lei Áurea. De nada adiantou. As elites continuavam a pisar nos pobres negros livres - trabalha, senão apanha! Mas temos que ser uma República - abaixo a Monarquia! Olavo Bilac versava e Chiquinha Gonzaga musicava, Zé Bonifácio já conchavava e viramos outro tipo de reino - o dos políticos de estolas e cartolas, gordos, bigodudos e cheios de patacas nos baús de suas fazendas e engenhos. Agora sim, acabaria a roubalheira desses seletos
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burgueses em conluio com os novos mandatários. Qual quê? O primeiro presidente da nossa estreante República era um marechal, depois outro marechal derrubou o primeiro - o Visconde de Mauá abandonou a ferrovia, a geração cafécom-leite do eixo São Paulo-Minas Gerais criou a manha do toma lá dá cá e a gauchada das bombachas estabanou-se, bah! Fizeram uma ponte com a Paraíba, montaram em seus cavalos baios e se mandaram para a capital paulista. Era a tal revolução de 30 que chegara com Getúlio Vargas para acabar com os "acertos" das elites e políticos, melhorar a vida dos trabalhadores, botar moral na divisão das terras improdutivas, acabar com a pobreza dando casa, comida, saúde e educação para todos - a Constituição carimbou isso. Mas eis que tudo passou a ser ditadura até 50 - o homem suicidouse - e desde então só se falava em democracia, liberdade etc. Houve uma trégua para o voto livre, os partidos ufanavam, os políticos rapinavam e as elites davam risadas. E o povo, que povo? Ah! Os trabalhadores - eram iscas para dizerem que eram unidos. O zarolho do Jânio renunciou a esperança daquele mesmo povo e deixou nosso reino ao Deus dará. Os militares quando viram aquilo rolando, pegaram ar e fizeram e bordaram por 24 anos com AIs, torturas, o escambau. Veio Diretas Já, lenta e gradual, Geisel, eleição de novo - e os políticos em negociatas de 1,5,10,20 e tantos por cento para os lobistas dos grandões. Os empresários gargalhavam ainda mais e seus jatinhos não paravam de pousar em paraísos fiscais. Um presidente é dedurado por um motorista e renuncia para não levar um impeachment para casa, e seu tesoureiro foge, foge e depois é assassinado. No entanto isso tem que mudar. O povo precisa tomar o poder do reino. As massas não européias de Gasset começam a funcionar, e sua tese de que o homem médio vai se apoderando de tudo pegou feio. Elege-se um ex-torneiro mecânico de boa índole, que promete tudo e mais alguma coisa. Para apurar tudo que houve de errado nos governos dos reinos passados. Cadê as CPIs? Esquece, porém, que no seu habitat as feras do reino atual, brabas e ardilosas, não deixam. É o reino dos Dirceus, dos Mercadantes, dos bispos da Universal, dos Waldomiros, dos Genoínos e outros com outros fins - enfim, reinozinhos sem-vergonhas. Apurar que é bom, nada! E quem é besta, sô?... Rivaldo Paiva é escritor.