Continente #041 - Salvador Dalí

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EDITORIAL

Reprodução

Dalí, em 1971, em frente da estátua de Ernest Meissonier, de autoria de Antonin Mercié

Surrealismo, Razão e Alvíssaras

N

esta edição da Continente Multicultural fazemos questão de compartilhar com leitores e amigos duas notícias alvissareiras. A primeira, a posse de um pernambucano da melhor estirpe na Academia Brasileira de Letras, neste 3 de maio: o senador Marco Antônio Maciel, homem público honrado e cidadão de lhano trato, cuja proficiência o habilita a integrar aquele sodalício da inteligência e da cultura brasileiras. A ele, nossos melhores votos de uma vivência profícua na Casa de Machado de Assis. A segunda é a aceitação, pelo também acadêmico Marcos Vinicios Vilaça, do convite desta empresa para participar do Conselho Editorial desta revista, que se encontrava desfalcado desde a morte do grande artista Cícero Dias e que agora se recompõe com um integrante do seu gabarito. Todos os que fazem a CEPE – Companhia Editora de Pernambuco expressam sua satisfação por esses eventos, que nos honram e desvanecem. Quanto à pauta editorial desta edição, dois assuntos preparados por nossa equipe merecem destaque: Um, o centenário do pintor espanhol Salvador Dalí, oportunidade para uma revisão crítica do legado do artista catalão. Conforme ressaltam os analistas, na época em que realmente esteve dedicado a uma obra revolucionária, ele foi, sem favor, um artista genial. Outros aspectos de sua personalidade criativa também estão sendo revalorizados, como o de escritor e teórico do Surrealismo, além de sua contribuição para o cinema e o balé. O outro assunto destacado nesta edição é a crise da Razão ou, pelo menos, a sua perda de credibilidade, numa época em que as conquistas científicas alcançam alturas antes somente imaginadas na ficção científica, como a clonagem de seres vivos e a inteligência artificial. Talvez pelo fato de o avanço do conhecimento nos tempos recentes não ter se feito acompanhar de um correspondente aprimoramento ético do Homem, tantos estejam hoje colocando em suspeição o legado da Razão Iluminista. Essa questão central do pensamento contemporâneo é abordada em artigos com pontos de vista diferentes, na linha de pluralidade que é nossa marca editorial. •

Marcelo Maciel

Presidente da CEPE Continente maio 2004


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CONTEÚDO Reprodução

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Mae West por Salvador Dalí

Paula Prandini/Divulgação

» 34 A epopéia de Che por Walter Salles

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CONVERSA

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DESTAQUE 60 Marco Maciel toma posse na Academia Brasileira

08 Salim Miguel: “Sempre há lugar para o romance”

de Letras »

NARRATIVA 12 Num parque público, um homem começa a despir-se

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62 A crítica à Razão, responsabilizada pelo mal-estar no mundo

POESIA 15 Peleja antológica em versos de Astier Basílio »

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CAPA CINEMA

e competência »

TEATRO 40 A peça Terça Insana, que critica enquanto faz rir

REGISTRO 80 Mané Garrincha, o ídolo-clown do futebol brasileiro

34 Walter Salles dirige mais um “filme de estrada” »

FOTOGRAFIA 76 História da fotografia no Brasil revela criatividade

18 O centenário de Salvador Dalí, artista e marqueteiro »

ESPECIAL

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PERFIL 82 A jornalista Ana Maria Bahiana se transforma em produtora de filmes

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DANÇA 44 Bailarinos desafiam coreógrafos num diálogo criativo

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MÚSICA 54 Como o maracatu mudou a música de Guerra Peixe Há exatos 30 anos, o jazz perdeu Duke Ellington Continente maio 2004

AGENDA

» 88 Festivais de cinema e de quadrinhos, estréia de peças, exposições de artes plásticas e lançamentos de livros e discos Agenda atualizada semanalmente no www.continentemulticultural.com.br


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Hans Manteuffel Zenival

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Rox, Xox, Fox... diálogo dançado

62 » A Razão Iluminista na berlinda

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 As reformas só devem aparecer no longo prazo, mas até lá...

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 16 O problema do mercado editorial do Brasil

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 32 A posição especial de Glauco Rodrigues na história da arte brasileira

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 50 O cardápio de nossos índios, variado e rico

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 53 Um gélido encontro com Getúlio Vargas

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 Romance desenha o Rio como um quebra-cabeças

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Os reformistas preferiram os ideais às idéias

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Maio Ano 04 | 2004

Diretor Industrial Rui Loepert

Capa: O pintor surrealista Salvador Dalí

Continente

Foto: Bettmann/Corbis

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Luiz Carlos Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

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Colaboradores desta edição: AÉCIO AMARAL JR. é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba, escritor e sociólogo. ASTIER BASÍLIO é jornalista, poeta e cantador de viola. Já publicou 11 livros. CIEMA SILVA DE MELLO é doutoranda em Antropologia na UFPE. DANIEL GIRALT-MIRACLE é comissário do Ano Gaudí e assessor da Fundação Gala-Salvador Dalí para o ano Dalí. DANIEL PIZA é jornalista, editor executivo do jornal O Estado de São Paulo e autor, entre outros, dos livros Jornalismo Cultural e Questão de Gosto. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestrando em Filosofia na UFPE. FERNANDO MONTEIRO é cineasta e escritor, autor, entre outros, dos romances O Grau Graumann e A Cabeça no Fundo do Entulho. IVANILDO SAMPAIO é jornalista, diretor de Redação do Jornal do Commercio, do Recife. JARBAS MACIEL é músico, matemático e físico, graduado em Filosofia e fundador do Departamento de Informática da UFPE. JOÃO LUIZ VIEIRA é jornalista. KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema do Jornal do Commercio (Recife) e videasta. Fez o filme Enjaulado e criou o site www.cinemascopio.com.br. MARCOS VINICIOS VILAÇA é escritor e membro da Academia Brasileira de Letras MARIO ALBERTO SMULEVER é Membro Titular da Sociedade Psicanalítica do Recife e da Associação Psicanalítica Argentina. RICARDO OITICICA é doutor em Literatura de Língua Portuguesa e professor na UniverCidade do Rio de Janeiro. SEBASTIÃO VILA NOVA é professor, sociólogo e músico, autor, entre outros, do livro Introdução à Sociologia. TOBIAS QUEIROZ é jornalista e escritor.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. Tem inédito livro sobre gastronomia pernambucana. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – Uma História de Poder. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.


CARTAS Liberdade em poesia Oportuníssima a edição sobre Paz, autor que revolucionou a poética latina e que trouxe até nós a sangria de uma poética também livre. Para nós, poetas menores, é como se uma energia nos impulsionasse a continuar acreditando que a poesia não perdeu a sua identidade, a sua matéria, o seu espaço, a sua vida. A Paz, a nossa reverência; a César, os nossos aplausos. Acendedor da geração, fez-nos pequenos, grandes, apesar de marginal, nas periferias da poética, no entanto, crendo que o ar é o mesmo e o céu conspira como espaço para todos. As minhas homenagens – a Paz e a César. Daniel Fernandes Viana Filho, via e-mail

Brinquedos Gostaria de parabenizá-los pela excelente Continente Documento sobre Brinquedos e Brincadeiras. Uma produção caprichada de pesquisa sócio-antropológica dentro da temática, aliada a um editorial claro e otimamente fundamentado no psicólogo russo Lev Semenovich Vygotsky. Felicidades e continuem com este capricho e qualidade. Eduardo Jorge S. da Silva, via e-mail

Patrimônio Sou professora e acho esta Revista um patrimônio da cultura pernambucana. Fico aguardando a chegada da mesma na escola: leio, divulgo, incentivo a coleção, sem contar que é um dos poucos materiais de que dispomos para trabalhar arte na escola, de forma bem pernambucana. Parabéns a vocês e a nós por termos vocês! Helena Ferreira, Recife/PE Poesia Vocês estão de parabéns. Realmente, não há uma revista tão rica culturalmente como a Continente Multicultural. Acho interessante a idéia de vocês publicarem poesias. Parabéns pela oportunidade concedida aos poetas anônimos de mostrarem sua arte. Érika Bandeira de Albuquerque, Recife/PE Lenine 1 Durante vários meses pensei em escrever à redação da Continente, declarando minha admiração pelo excepcional trabalho que tem produzido ao longo de suas edições. Sempre deixei para depois. Mas, ao receber a edição número 40, cheguei à conclusão de que devo parabenizá-los imediatamente. Não pude controlar o desejo de agradecer a oportunidade de “devorar” a melodia de cada palavra desse alquimista musical. Ele descobriu a pedra filosofal, a fórmula para visualizar o mundo e transformá-lo em poesia, música, som e ritmo. Ouro para quem não é tolo. Lenine é um químico musical que engenhosamente fala para o mundo através de sua mágica musicalidade. Parabéns ao Lenine e à Continente Multicultural. Renara Almeida, Garanhuns/PE

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Lenine 2 Parabenizando pelo conteúdo da publicação, ressalto a importância da matéria sobre o cantor Lenine (edição 40), na qual ele levanta a questão da pirataria de uma forma diferente, além de citar a despercebida criatividade dos músicos pernambucanos. Gabriel Alves Maciel, Secretário de Produção Rural e Reforma Agrária, Recife/PE Cultura pernambucana É impossível alguém folhear a Continente Multicultural e não ficar impressionado com a valorização da nossa cultura, expressa na Revista com uma qualidade gráfica incomparável. Parabéns! Erinaldo Cavalcanti, Terezinha/ PE Escola A Revista Continente, através de textos literários, aborda assuntos que interessam aos alunos do ensino médio. Gostaria que se aprofundasse mais nos autores de época ou nos movimentos literários portugueses e brasileiros. Cícero Santos, Recife/PE Clarice Gostei muito da Revista. A matéria de capa da edição de janeiro chamou minha atenção, pois adoro a obra de Clarice Lispector. A matéria está ótima. Parabéns! Juliana Albuquerque, via e-mail

Revista educativa É com grande satisfação que envio os meus parabéns pela coluna sobre o cristianismo (“Entremez”, edição 37), pois é um tema de ilustre curiosidade do povo brasileiro, que muitas vezes se ilude com sua fé. Adorei também quando falaram sobre os projetos de Antonio Nóbrega (edição 39). Mais uma vez, vocês estão de parabéns. Sou de Tacaimbó, interior de Pernambuco e leio as revistas que vêm para minha escola. JulianaValéria, Tacaimbó/PE Realidade A Revista é de boa para ótima. Recordo-me da revista Realidade, mas a Continente está melhor por não opinar com juízo de valor. A análise é nossa. Paulo Oliver, via e-mail Continente maio 2004

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

Fim de sonho Abandonados pelas dificuldades da vida, nossos jovens enfrentam o pior sobre duas rodas Flávio de Almeida

T

entou correr para a frente e para os lados, mas viu que lhe faltara chão nos pés. A mente se esvoaçara e o ar se tornara escasso. O choque parecia tão forte que ele não acreditava no que estava acontecendo. A trágica realidade parecia um pesadelo repentino. “Deus levou o meu príncipe”. Esta foi a frase desesperada de um pai que acabara de saber que seu filho, de 24 anos – vítima de acidente de motocicleta –, acabara de falecer. Utilizando Deus como escudo e a religião como sustentáculo, agarrara-se na fortaleza da fé para não cair no desespero. Esses recursos, certamente, continham a sua revolta por tamanha tragédia pessoal. Fortalecido por sua crença, procurava ser forte, mas desabou ao primeiro abraço. Lembrara o temor que todos tinham das motocicletas. Ressaltara a alegria do filho com o emprego, as suas conquistas profissionais, a sua alegria contagiante, a sua liderança e empatia pessoal, os seus sonhos e o seu desejo de crescer e vencer na vida. Enfim, tudo acabara numa escura noite de verão. Deus, realmente, levara o seu príncipe. No Brasil apartado de hoje, da violência, do desemprego e da profunda exclusão social, esse é o destino de muitos jovens trabalhadores e sonhadores que compulsoriamente usam a motocicleta como instrumento de trabalho e, naturalmente, como meio de transporte para o lazer – e são compelidos a infiltrar-se num trânsito desrespeitoso e caótico, fazendo-os ver os seus sonhos (e de seus pais) espatifados no asfalto. Ressalte-se contudo que, diante da massa de desempregados que o país incorpora, o enfrentamento diário da morte talvez seja a única maneira de sobrevivência dos muitos que lutam pelo emprego e pela vida. Nesse aspecto, parece que o destino não permitiu que aquele jovem visse desenhado o novo rumo que o país precisa ter para amenizar a crise do desemprego, da violência (inclusive no trânsito), da perversa distribuição de renda, da falta de perpectivas para a juventude e da profunda exclusão social, onde o Estado continua sendo o principal agente.

Aquele e outros tantos jovens foram vítimas e testemunhas do caos urbano que assola as grandes cidades. Dos desatinos da velocidade. Dos riscos extremos de viver e trabalhar sobre rodas. Vítimas também do modelo econômico, neoliberal ou não, que continua concentrador, dependente do capital internacional e sem uma alternativa clara para os problemas nacionais e para a juventude que precisa de educação e emprego dignos. Continuamos na encruzilhada da tentação conservadora de achar que a economia é tudo em contraposição aos desafios de realizar as mudanças históricas que sempre foram objeto dos discursos políticos. Todavia, os auspiciosos resultados macroeconômicos não se configuram como solução única para os nossos problemas, porque a exclusão continua. Por analogia, podese dizer que a educação universal seria o mais importante dos passos para o resgate da nossa dívida social, mas não o único. Assim, abandonados pela lógica econômica excludente e pela racionalidade política leniente, nossos jovens enfrentam os desafios das duas rodas pensando em construir um caminho para o seu futuro. Infelizmente, muitos desses caminhos não têm volta. O almejado crescimento, tão decantado pelos reformistas de ontem e de hoje, não tem aparecido. As reformas consideradas de Estado, cujos resultados são vendidos pela mídia, se concretizadas, talvez só apareçam no longo prazo. E, como diria o pensador e economista John Maynard Keynes, “no longo prazo todos estaremos mortos.” Diante dessa assertiva, acreditem, o que pode nos acontecer, considerando as ocorrências do dia-adia, é que, já no curto prazo, continuemos a sepultar nossos sonhos e nossos filhos. • Continente maio 2004


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CONVERSA Ilustração: Salatiel

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SALIM MIGUEL

“O livro é o primo pobre da cultura”


CONVERSA

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S

anta Catarina se prepara, neste ano da graça de 2004, para prestar uma série de homenagens a um dos seus filhos mais queridos: o escritor, jornalista e cidadão do mundo Salim Miguel que, nascido numa aldeia perdida entre as montanhas do Líbano, aportou aos três anos de idade em Biguaçu, na Grande Florianópolis, que o viu crescer e de onde saiu um dia para guiar a sua própria caravana. Casado com a também escritora Eglê Malheiros, Salim tem uma larga folha de serviços prestados à cultura brasileira, iniciado com o Grupo Sul, em 1947, um movimento regionalista que intercambiava informações com outras regiões do país e com o Exterior. Salim trabalhou na imprensa catarinense e como correspondente de jornais e revistas até que, com o Golpe de 64, foi preso e proibido de exercer sua profissão. Mudou-se em seguida para o Rio de Janeiro, onde acabamos nos encontrando e sedimentando uma amizade na ecumênica redação das Empresas Bloch, onde havia talentos e malucos para todos os gostos. Durante 13 anos, Salim foi copy-desk, como se dizia na época, repórter e chefe de redação de algumas das muitas revistas editadas pela empresa. Foi colaborador por quase 10 anos do caderno Idéias, do Jornal do Brasil. Amigo de Antonio Houaiss, redigiu verbetes sobre escritores brasileiros para a Enciclopédia Delta-Larousse. Na companhia de Eglê, escreveu argumento e roteiro do filme O Preço da Ilusão e, mais tarde, com Marcos Farias, fizeram adaptação e roteiro de A Cartomante, de Machado de Assis, e Fogo Morto, de José Lins do Rego. Autor de 22 livros – romance, conto, crítica, depoimentos – Salim Miguel recebeu, em 1999, o prêmio Melhor Romance do Ano, da Associação Paulista de Críticos de Arte ao seu Nur na Escuridão. Em 2002, foi escolhido pela UBE-SP e pelo jornal Folha de São Paulo o Intelectual do Ano, recebendo também o Troféu Juca Pato. E aguarda o lançamento, pela Editora Record, do seu novo romance – Mare Nostrum – no início do segundo semestre deste ano. Ivanildo Sampaio

Você, ao que parece, abandonou o ofício de jornalista para se tornar apenas escritor. Que avaliação faz da literatura brasileira hoje? Por mais que procure me manter atualizado, não é fácil uma avaliação, pois com a idade já não consigo manter o mesmo ritmo de leitura de anos atrás. Além disso, a extensão territorial do Brasil, com a concentração no eixo Rio-São Paulo, e a deficiente distribuição de livros fazem com que não se fique sabendo de boa parte do que se publica. Por exemplo, só por acaso, ao retomar contato com Nagib Jorge Neto, maranhense há muitos anos radicado no Recife, fiquei sabendo do seu excelente A Fantasia da Redenção. E quantos aí pelo Nordeste saberão de um escritor da força do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil? Há muita gente escrevendo e só o tempo vai determinar quais vão persistir. Você falou de Nagib Jorge Neto e do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. Não é muito pouco num país com as dimensões e as caraterísticas do nosso? Há mais gente – e gente boa – escrevendo, sim. Vou me limitar a citar alguns escritores que não são tão novos assim, mas que são importantes na nossa literatura. Por exemplo: eu destacaria o gaúcho Walmor Santos, o paranaense Miguel Sanches Neto, o mineiro Luis Ruffato, o baiano Valdomiro Continente maio 2004

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10 CONVERSA

Breno Laprovitera/Divulgação

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“A concentração no eixo Rio-São Paulo e a deficiente distribuição de livros fazem com que não se fique sabendo de boa parte do que se publica no Brasil”

Santana, todos eles excelentes prosadores. E escrevendo poesia da melhor qualidade, eu lembraria o paraibano Cláudio Limeira, o amazonense Jorge Tufic, o catarinense C. Ronald, o cearense Francisco Carvalho.

O nordestino Nagib Jorge Neto: “O seu A Fantasia da Redenção é excelente”

Houve um período, a partir dos anos 30 do século passado, em que os escritores nordestinos, com o seu regionalismo, sacudiram a literatura brasileira. Você não acha que a literatura regional como um todo – e aí o Nordeste incluído – perdeu fôlego em favor de uma produção mais universalizada e, por isso mesmo, mais pasteurizada? Você acha que ainda há lugar para o romance regional? Sempre haverá lugar para um bom romance, seja ele regional ou não. Em Santa Catarina, por exemplo, tivemos um excepcional escritor, Guido William Sassi, que poderia ser classificado como regionalista pelos temas que abordava, mas, contudo, era universal pela maneira de tratá-los. Nesses nomes que você citou, eu sinto falta de Rachel de Queiroz e Ariano Suassuna. De outras regiões do país, eu citaria o gaúcho Simões Lopes Neto e o goiano Hugo de Carvalho Ramos. É bom acrescentar que a literatura regionalista ajudou o Brasil a se conhecer.

de ficção com elementos autobiográficos, em que procuro traçar a trajetória de uma família libanesa e os problemas de adaptação ao Novo Mundo. Tentei abordar tanto o que havia de específico quanto o de universal nessa experiência. Qualquer mistura é válida, se se propuser a criar uma obra de arte literária. Pelo jeito, no meu caso, deu certo, pois o livro publicado por uma pequena editora, a Topbooks, está indo para a quarta edição. Em Nur estão presentes os temas centrais de minha obra: velhice e morte, tempo e memória.

É verdade... E nesse particular a gente não pode esquecer a contribuição de Érico Veríssimo... Também a literatura urbana, nem toda pasteurizada, tem contribuído para o melhor conhecimento do País. Para não ficar só em Machado de Assis, veja-se o caso de Marques Rebelo e de Mario de Andrade.

Durante muito tempo você militou no jornalismo. Aliás, foi aí que nos conhecemos, dividindo uma ampla sala no edifício da Manchete, no belo edifício projetado por Niemayer na Praia do Flamengo. A imprensa de hoje, no seu julgamento, é melhor ou pior do que aquela que se fazia há 20 ou 25 anos? Desde a infância sonhei ser jornalista e escritor, nunca soube fazer outra coisa. O jornalismo de hoje é muito diferente, em primeiro lugar pelo avanço tecnológico, e muitos jornais ainda não se aperceberam disso. Em comparação com o passado, continuamos tendo muitos profissionais de talento, mas nem sempre devidamente aproveitados, porque muitas vezes o lado “empresa” se sobrepõe à análise crítica e a uma informação mais objetiva. Isso, para não falar nos meios de comunicação oligopolizados e na luta ingente dos órgãos que procuram se manter independentes.

Um dos seus últimos livros – Nur na Escuridão – é um belo romance com um percentual de autobiografia. Por que você não optou por escrever uma autobiografia pura e simples, ou uma ficção apenas ficção? O que levou você a fazer essa mistura que, afinal, deu tão belo resultado? Nur não se propôs a ser uma autobiografia; é uma obra

Você sabe que fenômenos de venda, no mundo da literatura, nunca são exemplos de qualidade. Como é que você avalia a literatura de Paulo Coelho? Ele é um grande escritor, um grande marqueteiro dele mesmo, ou um enorme blefe? Nunca consegui terminar a leitura do primeiro livro de

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CONVERSA 11

Paulo Coelho e parei por aí... O problema não é Paulo Coelho vender muito, o problema é os outros não venderem. O problema é a falta de bibliotecas, inclusive nas escolas. O problema é que não existe, nunca existiu, uma política consistente de apoio ao livro. Na verdade, falta espaço para o livro, esse primo pobre da cultura, nos meios de comunicação. Há muita gente, cuja produção literária é igual a zero, ingressando na Academia Brasileira de Letras. Como você vê esse pessoal integrando a Academia? Desde os tempos do Grupo Sul nunca me interessei por academias e assim continuo. A ABL é um clube fechado e os nomes importantes, que lá estão, não pioram nem melhoram por a ela pertencerem. Quando cobrados, os acadêmicos justificam a presença de não-escritores pelo fato de seguirem o modelo da Academia Francesa.

“O problema não é Paulo Coelho vender muito, o problema é os outros não venderem”

Divulgação Assis Brasil: quantos no Nordeste conhecerão a força do escritor gaúcho?

Como vai a sua produção literária? Existe alguma coisa nova sendo produzida? Em agosto próximo deve sair pela Editora Record meu novo livro, Mare Nostrum. Como o próprio título já diz, o mar é o tema central, com personagens e situações transitando de um texto para outro. Será meu vigésimo quinto livro e espero não parar com ele. Tomara apenas que seja tão bem recebido pelos leitores e pela crítica quanto Nur foi. •

Trecho do livro Mare Nostrum, a sair em agosto pela Editora Record, RJ:

Sentia-se desnorteado, não apenas pelo fato de se encontrar numa cidade desconhecida, da qual tinha raras informações. Eram os gritos, a correria, a balbúrdia, a música, rojões explodindo, bandeiras tremulando, a multidão aumentando sempre. Aproveitou a passagem de um jovem empunhando uma bandeira do Brasil, tendo na outra mão uma garrafa de bebida, puxou-o pelo braço e perguntou: “O que está acontecendo?” “Ué, vem do mundo da lua, cara, até lá estão sabendo, toma um gole pra aclarar as idéias, a guerra acabou, companheiro, é 8 de maio.” Como

Altimar com um gesto de cabeça recusasse a bebida, o outro disparou a fim de se juntar a um grupo que passava. Visualizou o pai a seu lado, participando do júbilo geral, tomando-o pela mão e dizendo: “Estás vendo, os fatos de tua vida coincidem com datas importantes.” Pensou em retrucar: “Pai, em 1941 nada de pior podia me acontecer, o senhor me deixou”, receou que o pai se afastasse e com ele foi envolvido pela multidão. Estava cansado, com fome, com medo, o pai sumira. Entrou num frege, pediu um refresco e um sanduíche, pagou, notou a noite chegando, o movimento persistia, perguntou ao rapazola que o atendia onde encontrar um quarto para passar a noite. “Um banco de praça você certamente não quer, num hotel de luxo nem te deixam entrar, tem uma pensão por perto e o dormitório.

Marulho

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12 NARRATIVA

Memento excadescere Aécio Amaral Jr.

E

ntrei no parque a fim de efetivar o plano. Plano tecido com vagar por muito tempo, e que teria ares de receituário para a vida. Tinha consciência do que deveria fazer, passo a passo, embora ninguém nunca tenha me dito qual a melhor forma de assomar ao patamar da memória e, como quem trai a vida, entrelembrar-se de um passado inexistente. Tal encargo inventei para mim mesmo – não recomendo a maiores de dezoito anos. Não sou de extravagâncias, e não havia indício de vaidade no meu ritual. Movia-me um impulso. Sentia precisão de me despregar do tempo, arrancar-me à vigília da lembrança. Fazer isso sem sobressaltos exige perícia. É como atirar pedra no vento. Requer pontaria. E talento. Escolhido o local, restava certificar-me de que não atrairia atenções. Nada atrapalharia mais que a curiosidade pública. Se bem que nisso fui ajudado pelo desinteresse das pessoas que freqüentavam o parque. As folhas secas espalhadas pelo chão distraíam os que arriscavam uma caminhada ou corrida. Um grupo de crianças ocupava-se de alimentar pombos, adultos de ar grave liam jornais e revistas, uns poucos velhinhos ludibria-

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NARRATIVA 13 » vam a existência fazendo ginástica... Ninguém poderia antever minha ousadia. Ousadia ou necessidade? Já disse: tinha precisão; algo me urgia. Se há algum lance de ousadia nisso, consiste apenas em levar a cabo uma atitude irreparável. Portanto, apesar do desinteresse coletivo, o mínimo desajeito na execução da tarefa não mereceria perdão. Convinha silenciar por completo. Até mesmo diante da menina que me oferecia parte da pipoca destinada aos pombos – ela deve ter pensado que sou mudo. Antes assim. Diante da insistência da menina, não tardei a perceber: o silêncio não bastaria. Era preciso manter as pessoas a certa distância. Afinal eu não podia prever o impacto de meu ato. Compus um aspecto sisudo, em nada bonachão. Livrei-me do assédio da menina. Os demais me ignoravam como quem ignora o violáceo do crepúsculo. Perfeito. Tirar a roupa num parque não é o mesmo que se despir para uma amante. O desejo é muito maior. Fazer isso desapercebido, então, vale mais que o suor ganho com a refrega dos corpos. Mas, já disse: não ia nenhuma vaidade nisso. Só o impulso a me urgir. A ordem das peças a serem retiradas não importava. Na hora agá eu saberia por onde começar. Empreendi o desnudamento a partir da camisa. A cada botão desalojado de uma casa, uma roupa do passado atirada fora pelas janelas da alma. Desabotoada a camisa, restou-me jogá-la aos pombos, para regozijo das crianças. Punha-me a salvo de boa parte da bagagem da vida. Ao contrário do que esperava acontecer, senti frio nos ombros, apesar do sol do meio-dia. Sem esforço ou indiscrição, livrei-me do relógio. Agora seria mais fácil suportar as horas. A menina que me oferecera pipoca faria melhor uso do relógio. E ainda mereci um sorriso franco. Abotoou a peça ao contrário no pulso, de cabeça para baixo. As crianças sabem mesmo lidar com o tempo: fingem acreditar nele. Talvez sem relógio eu conseguisse fazer o passado permanecer lá no longe, no sem-fim, de onde nunca deveria ter saído. E o futuro não se calcularia. Aí consistia o núcleo de minha ousadia: fugir do tempo como quem foge de si próprio. Como quem foge da vida para entrar na vida. Como quem tira a roupa num parque. Investi contra os sapatos e as meias. A desenvoltura de um jogador de futebol ao final do expediente. Retidão de craque. Gozei as cócegas provocadas pela grama. Aos poucos os pés desnudos conhecendo o chão, que se mostrou movediço. Quase atolo as pernas até o joelho. Os pés se ressentiram do solo infirme. Eu precisava pôr o chão sob os pés. A dificuldade era prosseguir: nenhum fundamento para me postar ereto. O frio aumentando nos ombros, o chão me faltando. As pernas fraquejavam. Se ao menos eu tivesse um par de muletas – quem sabe a toga dos magistrados ou a batina dos sacerdotes. Mas haveria de prosseguir. A necessidade suplantava a adversidade. Precisava ficar em pé, pois ainda faltava a calça e a cueca. Eu não estava muito certo de que culminaria com a cueca; tudo dependeria do alvoroço da turba. A julgar pela passividade, ou melhor, a indiferença geral que até agora reinara, tirar a cueca só feriria meus brios de macho. Nenhuma moral castigando a nudez, para meu constrangimento. Não haveria contundência em meu proceder? A quem importava o desabrigo do meu corpo, o meu desabrigo? Ainda sentado, desprendi o botão da calça e abri a braguilha. Num ato sem precedente, como para salvar a vida, reuni forças a fim de me manter de pé o tempo suficiente para baixar a calça até as coxas. Mais uma vez sentado, e ainda exausto pelo esforço despendido, consigo tirar o restante da peça. Atingido este ponto, desContinente maio 2004


14 NARRATIVA

cobri-me revigorado. Sentir o vento nas pernas, sem a proteção da calça, era experimentar a liberdade – sentir na pele o fluxo do presente sem o intermédio do passado. Pela primeira vez desde o início da empreitada me vi esperançoso quanto à possibilidade de concluí-la. Súbito, escuto os silvos do apito do guarda. Ele caminhando em minha direção. Bravo! A moral não se terá desavergonhado de todo! Meu constrangimento e meu desapontamento aumentam quando ele, só polidez, diz por favor, apanhe as peças do chão, é contra o regulamento do parque espalhar roupas pela grama. Recolho a calça e a camisa picotada pelos pombos. A criançada dá muxoxo. Aproveito para, num zás-trás, tirar logo a cueca bem ali na frente do guarda. Indiferença e passividade de todos. Nenhum vento de protesto nos galhos das árvores. A conivência do guarda provocara em mim o resto de ousadia, de desespero. Quanta ira pela desatenção à nudez! Em seguida enrolo sapatos, meias, calça e cueca na camisa. Um embrulho feito dos cacos de pano, retalhos de reminiscências que já não escondem o corpo nu. Deixo a trouxa no banco e saio a vagar pelo parque, sem saber aonde ir. Ufa, consegui: tornei-me um animal obliviscens. O contentamento. A desincumbência de mim mesmo. Minha alegria durou o instante de um relampejar. Bastou eu voltar o olhar e ver um vulto aproximandose do banco em que eu deixara as roupas. Um mendigo serve-se delas com pressa. Aquilo me encheu de pânico. Não poderia acreditar que me deixariam nu. Deliberar desfazerse da própria roupa é uma coisa, ser usurpado dela é outra. A vida inteira ensaiando a arte de esquecer. O planejado mergulho nas águas do Letes. E quando vejo a correnteza arrastando as angústias da infância, as contrariedades de amor e os mais desatinos para o nada do olvido, acomete-me um horror de morte. Por que cargas d'água fui olhar para trás? Um homem que se quer nu não olha para trás. Por que me incomodar com a atitude do mendigo, se ele me prestou um favor, roubando-me ao arrependimento? Devia era preocupar-me com ele. Agasalhar-se com as minhas roupas não seria bom negócio. Ou talvez estivesse aí a possibilidade de inventar um novo passado, num corpo alheio. As roupas fingindo que pertencem a ele, ele fingindo que lhes presta contas. Tal perspectiva me trouxe algum alívio. Dei de ombros para as roupas, enfim. Mal me refaço, deparo com a constatação de que não suportaria ser testemunha ocular de minha própria nudez. Dei-me conta, então, da dimensão do problema: eu não me havia posto a salvo de tudo: faltavam os óculos. Quantas memórias nestas lentes! A correção do olhar impede o esquecimento. Convida à vigília da lembrança. Um par de lentes fornecendo a clareza meridional das coisas. Apanágio dos míopes de espírito. Quem precisa da saúde dos olhos para enxergar? Atirei os óculos para longe, para onde a vista não pudesse alcançá-los. Com a visão refratada das coisas ao redor atingi o ápice da empresa a que me propusera. Agora sim, executara a tarefa. Agora sim estava pronto para enfrentar a vida. Assomei à rua com ar de contida insanidade. A cabeça erguida despreocupara-se do atrás do tempo presente. Só eu e meu passo reto, ignorando carros, pedestres, bancas de revista, vendedores de água-decoco. Pairei por sobre os vulgares laços. Enxergava o horizonte baratinado, a vista turvando o longe. Como convém ao míope. •

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POESIA

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ASTIER BASÍLIO

Rapsódia sertaneja A Luta dos Homens, Samico, 1977, xilogravura (detalhe)

I Minha graça é Romano de Mãe d’Água no meu Sangue naufraga a fidalguia desta Lira de Sol que me consagra galopando os Brasões da Poesia

II O meu nome é Inácio e a Catingueira é o lugar onde habita a sombra rasa que desenha os roteiros na ladeira de minha vida, ó senhor dono da casa,

a memória de Homero me esculpia um Castelo que é lar e que é ágora. O improviso da vida, a fantasia já compunha os meus passos de estátua.

meu repente rabisca-se em poeira, as esquinas têm grades mas na prática sonham aves em minha voz violeira, o meu sangue é um mar buscando a África

Mas Inácio já vem, com ele ataques e o desejo da carta de alforria manuscrito em estrelas de atabaques.

o luar do pandeiro é meu calibre, foi Zumbi quem me deu como presente, mas Romano já vem, eu ouço o timbre

A ciência é uma espada que me afia na insônia movida a almanaques e eu não temo a peleja que inicia.

de sua pressa afogada no poente. – Enquanto eu canto meu caminho é livre esta peleja vai durar pra sempre.

A célebre peleja Patos das Espinharas, no alto sertão paraibano, foi o palco da lendária peleja ocorrida entre o fazendeiro branco e letrado, Romano de Mãe D’Água (faleceu com 50 anos, em 1891) e Inácio da Catingueira (nascido em data ignorada e morto em 1879), negro e escravo. Ambos trazem no nome as cidades da Paraíba

em que nasceram. Há algumas versões para a cantoria acontecida em 1874, no Mercado Público de Patos, que, segundo a lenda, durou oito dias, na qual estava posta em jogo a liberdade de Inácio. As mais conhecidas são de Leandro Gomes de Barros e do escritor padre Manoel Otaviano. • Continente maio 2004


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16 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

Colher de chá para a ficção “A cultura ganhou mais pelos livros nos quais as editoras perderam dinheiro”. (Thomas Fuller)

N

a última semana de março, uma notícia do Estadão surpreendeu o bicho do livro que eu sou. Houve um recuo na invasão do livro estrangeiro nas prateleiras das livrarias do país. Diz ainda que, segundo o presidente da Liga Brasileira de Editoras, reduziu-se a aquisição de obras alienígenas por “motivos principalmente econômicos”. Começou a chover no meu roçado, pensei, e graças, que paradoxo, à falência progressiva do país, orquestrada pelo governo de Lula, que trocou as barbas sindicalistas pelas de Papai Noel dos banqueiros. As obras de autores brasileiros começaram a ter destaque nos pontos de venda, desbancando, quem diria, os romances ou novels estrangeiros. Não tenho ido ultimamente às livrarias, mas desconfio de que os fabricantes de best-sellers mais conhecidos continuam inamovíveis, como Sidney Sheldon, o brasileiro Paulo Coelho, J. K. Rowling, Roberto Ludlun e Stephen King. Conforme uma anotação minha, os dois últimos já tinham vendido, em 1998, 200 e 250 milhões de exemplares, respectivamente. Quanto à senhora Rowling, em junho do ano passado, vendeu num só dia em seu país, a Inglaterra, nada menos que 1,8 milhão de exemplares. Eis o esplendor do kitsch, “o simulacro da arte” (Merquior) no Ocidente. Essa ficção best-seller, típica literatura de massa, foi classificada pelo sociólogo Sebastião Vila Nova como “literatura de cordel das classes médias”. Os escritores “de verdade” têm o direito de considerar de baixo nível artístico-literário essa ficção milionária, mas não caiam na besteira de achar que ela é fácil de ser escrita, e que só não o fazem para não baixar o nível do seu, como dizem, work in progress. Não é fácil escrever um best-seller, e certamente não existirá nenhum segredo de cozinha válido univerContinente maio 2004

salmente. De uma coisa estou certo: em sua grande maioria demanda pesquisa minuciosa, que possivelmente é realizada pelo próprio autor no começo da carreira e por uma equipe, depois da fama. Um romance sobre aviação, por exemplo, parecerá escrito por um engenheiro experiente. Se algum desses “cordelistas” cismasse de escrever sobre um castelo, que é título da maior obra-prima de Kafka, certamente encomendaria, de início, uma maquete de castelo medieval. Um escritor literário não saberia manipular aquele realismo rasteiro, mas pragmático, que é uma das marcas registradas do best-seller. Contente-se, pois, com o anonimato e a baixíssima conta bancária. Qualidade e Ibope não combinam. Na matéria do Estadão, uma das coisas que me surpreendeu foi o preço de aquisição de direitos para o lançamento de best-sellers, no Brasil. De repente compreendi minha oceânica ignorância de nosso mercado de livros. Acreditava eu que um romance que estava estourando no mercado internacional custasse uma nota preta para ser publicado no Brasil. Custa pouco, muito pouco, diante, pelo menos, de minhas expectativas. E o que me intrigou foi esse pouco ser responsável pelo “esfriamento na aquisição de títulos estrangeiros”, segundo declaração do presidente da Liga. Eu pensava que as negociações do editor brasileiro com o agente literário estrangeiro, em torno de um título famoso, girassem em torno de R$100 mil, por aí. Ledo Ivo engano. Os bons contratos não passam, segundo aquele dirigente (mas o diz achando caro) de US$ 3 mil, ou míseros R$9 mil ao câmbio atual. E, enquanto um bestseller tem, nos Estados Unidos, uma tiragem que vai de 500 mil a 1 milhão de exemplares, aqui no Brasil segue a tiragem padrão de indigentes 2 mil exemplares. Vôte! Eu


MARCO ZERO 17

acho que o Sr. Angel Bojadsen não foi bem entendido pelo repórter. Prefiro ficar com o editor Oswaldo Siciliano que informa ser a tiragem inicial, de um livro traduzido e publicado em brochura, de 5 mil exemplares. Se é assim, então viva o poeta Jorge de Lima, que publicou seu Poemas Escolhidos pela Anderson Editores do Rio, em1932, numa tiragem fantástica para um gênero marginal como a poesia, de 5 mil exemplares. Eu tenho a impressão de que esse tal Anderson faz parte daquele clã que, segundo Darcy Ribeiro, “em 1920, sendo composto de antigos livreiros importadores, começaram a editar e imprimir no Brasil, e eram, principalmente, imigrantes, como Plancher, Laemmert, Leuzinger, Briguiet, Garroux, Pongetti, Vecchi, Ogier, Garnier e Bertoso”. Meus milhões de leitores já estão acostumados com essas minhas digressões em torno do que realmente interessa: a maior visibilidade nos displays das livrarias dos autores nacionais. Para estarem lá, eles devem ser mais baratos e, se achei que o custo dos estrangeiros é uma ninharia, nossos autores, os que vendem, os de ficção, é claro, devem ganhar uma gorjeta vergonhosa, enquanto seus pares no primeiro mundo tomam tequila cercados de gar-

ças nas ilhas do Caribe, com o dinheiro que lhes foi adiantado para escrever um livro no futuro. Quem olha as estatísticas fica deslumbrado: dos 39.800 títulos editados no Brasil, no ano passado, 90% são de autores nacionais. Mas, sabem por quê? Os didáticos. Como nos países desenvolvidos o investimento estatal no livro didático é muitas vezes superior ao do Brasil, é melhor não levar os nossos 90% em consideração. Basta dizer que aquisição per capita do livro não-didático está entre 0,66 (média anual) a 1,8%. Enquanto isso, na França é de 7; nos Estados Unidos, de 5,1; na Itália, de 5; e na Inglaterra, de 4,9. Não era para menos: só 17 milhões de pessoas alfabetizadas, com idade acima de 14 anos, adquiriram um livro no ano passado, neste país. O problema do mercado editorial do Brasil é um problema comum a todos os setores. É preciso crescimento, aumentar a produção e a demanda, para que o editor, o livreiro e o autor ganhem mais. No caso do livro, o binômio alfabetização e estímulo à leitura é um desafio, não para os agentes editoriais, mas para o Estado: o Ministério da Educação e o da Cultura e as secretarias correspondentes, nos Estados e Municípios. • Continente maio 2004


Âť

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A persistĂŞncia do surrealismo Continente maio 2004


Bettmann/Corbis

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Salvador Dalí em Nova York, 1960

Quinze anos depois do desaparecimento de Salvador Dalí sua figura continua viva na memória coletiva de nosso mundo, porque tudo relacionado com a sua vida e sua obra continua sendo um referente do século 20, o que sugere que o seu aporte às artes não vai envelhecer. Um par de exemplos ilustra essa afirmação: até hoje, a exposição antológica que lhe dedicou o Centro Georges Pompidou, em 1979, continua mantendo o recorde de a mais visitada da história do centro parisiense, e o óleo La Persistencia de la Memória é a peça mais visitada pelo público do MOMA de Nova York. Dalí criou um personagem poliédrico, que sob muitos ângulos continua sendo desconhecido. É por isso que devemos comemorar que ao longo de 2004 se celebre o centenário de seu nascimento, porque, sem dúvida, isso vai nos ajudar a desvelar alguma das faces do artista que ainda permanecem ocultas. O ano Dalí anuncia exposições com obras inéditas, a edição de escritos esquecidos ou até agora inacessíveis, filmes desconhecidos, como o realizado com Walt Disney, entrevistas, fotografias, correspondências, documentação diversa que ainda não foi possível estudar e que prova que Dalí é um dos artistas mais férteis e trabalhadores da sua geração, e que o seu potencial criativo não tinha limites, visto que conseguiu transcender o âmbito da pintura para invadir todas as artes da sua época. E não é por acaso, tudo o que fez continua sendo motivo de discussões e análise: depois de uma longa postergação, sua pintura experimenta uma crescente revalorização, sua literatura é cada vez mais apreciada, seu interesse pela ciência desperta admiração, suas opiniões sobre a História da Arte não podem ser omitidas, o seu aporte ao cinema continua a ser um dos mais relevantes do século 20, suas montagens publicitárias mostram a sua antecipação, haja vista que podem ser consideradas exemplos do melhor marketing; sua relação com a Arquitetura continua assombrando e o seu comportamento extravagante e disparatado continua sendo motivo de discussão entre amigos e inimigos. Por tudo isto, parece-me absurda tanto a teimosia em superestimar Dalí como a de desmistificá-lo impiedosamente, procurando demolir a figura que ele próprio construiu ao longo de toda sua vida. Por este mesmo motivo, parece-me imprescindível trabalhar com os materiais que ele nos deixou e interpretá-los com a serenidade que proporciona o passo do tempo, no intuito de elucidar objetivamente sua complexa e multifacetada figura.

A Persistência da Memória é o quadro mais visitado pelo público do MOMA, em Nova York. Uma amostra de que Salvador Dalí, que completaria 100 anos no dia 11 de maio, continua espicaçando a imaginação das pessoas Daniel Giralt-Miracle

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Imagens: Reprodução

Mercado de Escravos com Aparição de Busto Invisível de Voltaire, 1946, óleo sobre tela, 46,5 x 65,5 cm

É evidente que Dalí passou toda sua vida construindo um personagem. Seus bigodes, sua maneira de agir frente às câmeras, seus deboches, suas declarações de princípios, os amigos que escolhia... não eram produtos do acaso, tudo estava pensado, como na sua obra, na qual tudo remete a ele próprio: os argumentos de suas biografias e romances, seus filmes angustiantes, os títulos e os temas de seus quadros... e por tudo isto provavelmente o personagem Dalí seja a sua obra suprema.

Para uns, a vida de Dalí foi simplesmente uma impostura exibicionista. Sem embargo, para outros foi uma autêntica obra de arte. Duas afirmações que, ao meu ver, é arriscado emitir separadamente, porque Dalí sabia administrar as duas atitudes em benefício do personagem a que se propunha fazer perdurar. O que não é discutível é que Dalí vivia com intensidade e que as suas experiências são a origem das imagens mentais que o artista teve o tino de transformar nos ícones pictóricos, literários ou visuais que lhe sobreviveram.

Os primeiros passos na criação de um personagem Já na sua adolescência, Dalí decidiu que queria ser um gênio, e então dedicou todo seu talento e capacidade a este A importância da paisagem Dizia Salvador Dalí: “Conheço de memória todos os propósito. Por isso não há de estranhar que agisse de uma contornos das rochas e praias de Cadaforma desaforada, até chegar ao paroxismo, qués, todas as anomalias geológicas da sua não importando qual fosse o objetivo imediato. paisagem única e sua luz” e este conheciO descobrimento do seu corpo, os temas mento do território do Ampurdán (região da sua pintura, as reflexões da sua obra esda Catalunha) foi realmente básico na sua crita, seu comportamento pessoal e público, trajetória. Gasch, na sua L’Expansió de tudo ia além dos limites estabelecidos pelos l’Art Català em el Món (1953), afirmava: usos e costumes sociais, pelos saberes aca“É inegável que, por não ter nascido nesta dêmicos e, inclusive, além da moral, porque terra, a pintura do nosso artista teria uma nada podia deter seu interesse por explorar fisionomia diametralmente oposta à que territórios ignotos e descobrir formas e commanifesta neste momento”. Y. J. V. Foix portamentos diferentes que lhe ajudassem a foi ainda mais radical e explícito: “Sem a atingir o seu desejo. Continente maio 2004


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Cristo de São João da Cruz, 1951, óleo sobre tela, 205 x 116 cm

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único. Existe outro fator, sem o qual a obra de Dalí resultaria incompreensível: seu mundo interior. As vivências, conflitos e tensões do Dalí adolescente, a exploração de seu âmbito mais íntimo, o querer penetrar nos recantos do ser o conduziram a uma meditação introspectiva que não o abandonaria em toda sua vida. Possuidor de uma “anormalidade psíquica crescente” (Vida secreta), a qual tudo estimulava, o descobrimento de Sigmund Freud foi como uma revelação para Dalí, visto que lhe ajudou a penetrar no insondável mundo da psicologia. Segundo nos conta Moreno Villa, companheiro de Dalí na Casa do Estudante, este mergulhou na leitura de Freud assim que pôs os pés em Madrid; a primeira edição em espanhol da Psicopatología de la Vida Cotidiana marca o inicio do encontro intelectual (o físico aconteceria em Londres, em 1938) entre Dalí, que contava então com 18 anos, e Freud, mas não o único, já que a este lhe seguiram Tres Ensayos Sobre la Sexualidad e o não menos importante La Interpretación de los Sueños. Freud foi para Dalí “um dos descobrimentos capitais da minha vida” e ainda o induziu a um verdadeiro “vício de auto-interpretação, não apenas dos sonhos, mas de tudo que me sucedia, por casual que parecesse à primeira vista” (Vida Secreta). E esta não é uma hipótese interpretativa, é uma realidade certificada pelas muitas passagens sublinhadas de La Interpretación de los Sueños que costumava manejar. Os grandes argumentos da pintura de Dalí, os temas de suas reflexões escritas e faladas, sua cosmovisão, mudaram sob a influência de Freud, que se converteu no seu pensador de referência, porque descobriu nele uma alma gêmea, alguém que se interessava pelos temas que mais lhe inquietavam (inconsciente, sexualidade, sonhos, prazer, angústia etc.) e que estimulava sua criatividade, agudizando suas imagens pictóricas A força de um mundo interior e literárias. A natureza é um elemento intrínAo final de 1929, Dalí percebeu em Paris que suas seco no cosmos daliniano, mas não é o representações pictóricas desconcertantes e cheias de

paisagem de Cap de Creus não existe interpretação possível dos temas dalinianos mais pessoais” (La Publicidade, 1935). E é real a existência de uma vontade de osmose única entre homem e terra e entre terra e homem. De fato, não conheço nenhum outro caso semelhante na pintura do século 20. Há uma profusão de artistas que são associados a uma determinada paisagem (Cézanne, Gauguin, Van Gogh etc.) mas nunca ao ponto de Dalí que chegou a reivindicar que ele era a encarnação da paisagem do Ampurdán: “Estou convencido de que sou o próprio Cap de Creus, que sou a encarnação do núcleo vivo desta paisagem (...) sou inseparável deste céu, deste mar, destas rochas, estou ligado para todo o sempre a Port Lligat (ligado ao porto) onde defini as minhas verdades e raízes mais profundas” (Confesiones Inconfesables,1953). Afirmações como essas me ratificam o convencimento de que a força exuberante e desbordada de Dalí é telúrica, procede da sua identificação física e intelectual com a paisagem agreste e descarnada da região do Empordà, com a qual chegou a se antropomorfizar, o que não nos deve surpreender, pois, quando Dalí estava em Madrid, Paris, ou Nova York, cidades em que viveu e nas quais projetou o seu talento, necessitara voltar a sua terra para repor as suas energias criativas. É que Figueres, Púbol e Port Lligat, os três vértices do chamado triângulo daliniano, configuram geográfica e paisagisticamente a essência de Dalí e são fontes imprescindíveis para entender o sentido profundo da sua obra, na qual resulta visível o quanto as forças geofísicas que atuam no Empordà chegaram a possuir o artista e a lhe infundir esse arrebato que o distinguiu de todos os seus contemporâneos.

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registros do artista. É por isso que não deve ser analisado desde a ortodoxia da museologia e da museografia e, sim, entendido como uma apoteose do imaginário daliniano, o ponto onde o artista quis concentrar toda sua memória, o lugar que escolheu para congregar suas invenções e seus galimatias, seu cosmos. A importância do Teatro Museu radica então no conjunto, as partes são muito significativas, mas é a sua articulação com o todo o que lhe confere sentido. Trata-se de uma imensa colagem inspirada no conceito de Duchamps de ready-made. É um grande objeto, um objeto de objetos, que Dalí, mediante sua atuação, transformou numa grande obra de arte. É um espaço físico e mental que nos permite entrar em contato com todos os Dalí: o pintor, o escultor, o cenógrafo, o desenhista, o gravador, o design, o calígrafo, o que se interessava pela imagem dupla, a estereoscopia, a holografia, a procura da quarta dimensão, os domos geodésicos, o clássico e o inovador, o ultralocal e o universal, o grotesco e o genial. O Teatro Museu foi um dos mais longos work-inprocess de Dalí, que tardou 13 anos em dá-lo por concluído, nele controlou tudo, incluso o simbolismo que este centro tinha para ele e para Figueres. É esse o motivo da sua localização: frente à igreja onde foi batizado e no antigo teatro municipal de Figueres, já que no seu salão principal tinha se realizado a sua primeira exposição (1918) e por se tratar de um lugar onde poderia realizar atos de mágica “que, em última instância, é o poder de materializar a imaginaO reflexo de uma maneira de ser e/ou proceder ção em realidade”. Dalí era consciente de que o lugar mais É evidente que são muitos os fatores que determinam adequado para acolher sua obra não era um museu conuma personalidade tão complexa quanto a de Dalí, mas vencional e, sim, um teatro. acredito que a paisagem do Empordà e o seu mundo interior, unidos ao seu desejo de se converter num gênio Um artista precoce também no manejo da publisão os três elementos incontestáveis e os que mais se refle- cidade O Dalí-personagem, com todo seu rico anedotário, tem na sua obra e, portanto, no Teatro Museu Dalí de Figueres, a obra global de Dalí, porque contém todos os transcendeu o século 20 e segue alimentando os temas de mistério respondiam àquilo que um grupo de pintores e poetas definiam como Surrealismo, um movimento que considerava que a fonte de toda inspiração artística devia ser buscada no inconsciente, na associação livre de idéias, no automatismo psíquico, ir além dos limites da razão, da moral e dos estilos, entender os sonhos como fonte de inspiração ou o ir além do visível para entender a realidade. Exatamente o que Dalí fazia. Assim que os surrealistas tomaram conhecimento do trabalho de Dalí, converteram-no em um dos seus porta-estandartes. Breton até chegou a manifestar que “Dalí encarna o espírito do Surrealismo”. E mesmo quando mais tarde viessem a ruptura e a desavença, ninguém se atreveria a negar que naqueles anos Dalí tinha sido a imagem mais significativa do Surrealismo: “O Surrealismo sou eu”, escreveria anos depois. Sem dúvidas, a leitura de Freud e a introspecção no pensamento freudiano ajudaram-lhe a gestar o método paranóico-crítico, um “conhecimento irracional, baseado na objetivação consciente e sistemática de associações e interpretações delirantes” do qual tanto falou e que tanto deu o que falar aos surrealistas e aos seus seguidores (ainda que nunca tenha formulado uma teoria), já que o levou a exibir suas neuroses de uma maneira desavergonhada, sem complexos, e a transformar suas cavilações e suas fabulações em imagens que respondem tanto a elucubrações de tipo sexual e místico quanto a interesses e ambições.

O Farmacêutico de Ampundán à Procura de Absolutamente Nada, 1936, óleo sobre madeira, 30 x 52 cm

Reprodução

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24 CAPA Imagens: Reprodução/ Fundação Gala-Salvador Dalí

Detalhe de Leda Atômica, 1949, óleo sobre tela, 61,1 x 45,3cm

conversa do século 21, não apenas porque os meios massivos o lembrem regularmente, senão pela indiscutível originalidade daquilo que se deu em chamar o “código Dalí”, um amplo repertório de imagens que inclui caixões, pães, relógios moles, carros, sofás, manequins, cabeças escultóricas, esferas, ovos e formas ovóides, chifres de rinocerontes, formigas, asnos podres, anjos, caveiras etc.; uma iconografia que não é comparável à de outros artistas de sua época, do seu tempo, e que ele imortaliza em obras tão emblemáticas, como Cenicitas (1928), El Gran Masturbador (1929), El Enigma del Deseo (1929), El Hombre Invisible (1930), La Persistencia de la Memoria (1931), El Espectro del Sex-Appeal (1932), Construcción Blanda com Judías Cocidas. Premonición de la Guerra Civil (1936), El Sueño (1937), El Enigma sin Fin (1938), Poesía América. Los Atletas Cósmicos (1943), La Madonna de Portlligat (1949) o Cabeza Rafaelesca Estallando (1951), sem as quais não se podem explicar as preocupações, angústias, idéias e a história da arte do século 20. Dalí sabia que para chegar à meta que tinha traçado na adolescência, ou seja, chegar a ser reconhecido como um gênio, devia realizar uma obra original diferente e de projeção pública. E, efetivamente, antes da criação da realidade virtual dos artifícios simplórios do Photoshop, concebeu umas imagens rotundas, potentes e insólitas com as quais alcançou a popularidade que desejava. Paradoxalmente, porém, esta popularidade acabou provocando uma diminuição da originalidade que até então tinha caracterizado a sua obra. Talvez devido a uma crise de identidade pictórica, a dificuldades econômicas ou a exigências do mercado norte-americano, o caso é que Dalí, tentando superar esta situação, converteu sua vida numa atuação permanente e acompanhou sua criação de um grande aparelho publicitário e de uma constante presença na mídia, revistas, rádios e televisões. E mesmo incomodando algumas pessoas, Dalí se vangloriava de seu poder de convocatória, afirmando: “a publicidade sou eu”, mas, realmente, ele foi precoce nesta prática, da qual acabou sendo um paradigma. Publicado originalmente na revista Vanguardia – Grandes Temas, Barcelona, janeiro de 2004. Tradução: Marcelo Perez. Continente maio 2004


A estética do estranho Sigmund Freud, criador da psicanálise, escreveu um artigo sobre o “estranho” e nele nos dá uma base para compreender o Surrealismo Mario Alberto Smulever

A Persistência da Memória, 1931, óleo sobre tela, 24 x 33 cm

Em 1919, pouco antes de seu trabalho Além do Princípio do Prazer, onde apresenta a pulsão de morte na teoria psicanalítica, Sigmund Freud escreveu um artigo sobre o “estranho”. Nele nos dá uma base para compreender o Surrealismo. “Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. O analista opera em outras camadas da vida mental e pouco tem a ver com os impulsos emocionais dominados, os quais, inibidos em seus objetivos e dependentes de uma hoste de fatores simultâneos, fornecem habitualmente o material para o estudo da estética. Mas acontece ocasionalmente que ele tem de interessar-se por algum ramo particular daquele assunto; e esse ramo geralmente revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada da estética”. Assim começa Freud o estudo do sentimento do estranho, o sinistro, o ominoso (o umheimlich). Continente maio 2004


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26 CAPA Fundação Gala-Salvador Dalí

Salvador Dalí, ainda criança (centro), com sua família Fundação Gala-Salvador Dalí

Dalí e Gala em Port Lligat, 1931

Reprodução Proibida, 1937, do também surrealista René Magritte

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Para aceder à cultura, nós, homens, devemos submeter-nos à Lei Paterna. Isto é, aceitar as ameaças de castração, sofrer angústia de castração e reprimir nossos desejos parricidas e incestuosos. Alguns aspectos narcísicos primários que ocupam preponderante lugar na infância, pensamento mágico, onipotência dos pensamentos, fantasias de completude fálica, desconhecimento e não-aceitação dos limites, sobretudo aqueles referidos à nossa finitude, sobrevivem em nós como aspectos escindidos de nossa vida. A desmentida da castração (verleugnung) permite que esses aspectos permaneçam ativos. Agora vejamos: onde se manifesta esse narcisismo primitivo? As patologias narcísicas, como a melancolia, as adicções, as psicoses são prova de dita subsistência. Mas também nossos sonhos e nossas produções artísticas são produtos dessa parte desmentida de nossas limitações. Enquanto a produção literária ou plástica adere a princípios neuróticos, isto é, resulta de uma repressão instalada, seus produtos são simples, refletem a realidade cotidiana, não produzindo forte impacto estético. Mas quando a arte é um produto tanto dos setores recalcados quanto dos não-recalcados, ou seja, daqueles que surgem da desmentida da castração, seu resultado produz um alto impacto emocional. Aí surge o que Freud chama de “estranho” (umheimlich): aquilo que foi familiar (heimlich) em uma época e se transformou no contrário. Os produtos do Surrealismo, tanto na literatura (G. Apollinaire, A. Breton) como nas artes plásticas (S. Dalí, M. Ernst, R. Magritte) ou no cinema (L. Buñuel), fazem-nos mergulhar num mundo fantástico, que mistura tanto os aspectos “estranhos” quanto aqueles que nos são familiares. Lembremos o quadro de Dalí, A Persistência da Memória, no qual um relógio parece perder a forma, numa alusão ao tempo elástico, que escoa. Ou ainda a imagem do filme O Fantasma da Liberdade, de Luiz Buñuel, onde uma mulher carrega em seu colo um pequeno porco como se fosse um bebê. Não esqueçamos os quadros de Magritte, com suas transparências opacas e suas opacidades transparentes. Membros arrancados, uma cabeça decepada, mão cortada pelo pulso, pés que dançam por si próprios, todas essas coisas têm algo peculiarmente estranho. Como já sabemos, essa espécie de estranheza origina-se da sua proximidade ao complexo de castração. Para algumas pessoas, a idéia de ser enterrado vivo por engano é a coisa mais estranha de todas. Ainda assim, a psicanálise nos ensinou que essa fantasia assustadora é apenas uma transformação de outra fantasia que originalmente nada tinha em absoluto de aterrorizador, mas caracterizava-se por uma certa lascívia – quero dizer, a fantasia de retorno ao útero materno. Acerca do animismo e dos modos de ação do aparato mental que foram superados, mas persistem em sua atividade, penso que algo merece destaque especial. Refiro-me a um estranho efeito que se apresenta quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade, ou quando um símbolo assume as plenas funções da coisa que simboliza, e assim por diante. É esse fator que contribui não pouco para o estranho efeito ligado às práticas mágicas. Nele, o elemento narcísico infantil, que também domina a mente dos neuróticos, é a superenfatização da realidade


Imagens: Reprodu莽茫o

路JJovem Virgem AutoSodomizada, 1954, 贸leo sobre tela, 40,5 x 30,5cm


Imagens: Reprodução

Freud retratado por Dalí, em 1937

psíquica em comparação com a realidade material – um aspecto estreitamente ligado à crença na onipotência dos pensamentos e à desmentida dos limites humanos. Estritamente falando, todas essas complicações relacionam-se apenas àquela categoria do estranho que provém de formas de pensamento que já foram superadas, mas subsistem em nossa mente. A categoria dos objetos que provêm de complexos reprimidos e desmentidos são mais resistentes e permanecem poderosamente na ficção e na experiência do real.

Salvador Dalí: aproximações psicanalíticas A história de Dalí provocou, com certeza, em Freud algum interesse, mas ele não fazia estudos psicanalíticos de personagens ainda vivos. Portanto, atrevemo-nos a deixar algo escrito a respeito de um artista tão significativo do século 20. Salvador Dalí nasceu em 11 de maio de 1904, filho de Salvador Dalí y Cusi e de Felipa Doménech. Um primogênito dessa família, também chamado Salvador, morreu nove meses antes do nascimento do artista. Além de colocar-lhe o mesmo nome do irmão, sua família referia-se a ele como a reencarnação do irmão morto, e esperava que ele trouxesse prestígio à família Dalí. O nascimento da irmã, quatro anos depois, não provocou nenhum afastamento do lugar de privilégio que tinha o artista. Seu pai realizou duas exibições de pintura no Teatro Municipal de Figueres e contribuiu para que seu filho estudasse pintura com Juan Nuñez. Em 1921 morre a mãe e Salvador vai a Barcelona, onde se encontra com L. Buñuel e Federico García Lorca. Salvador Dalí faz sua primeira exposição cubista aos 18 anos, em Barcelona. Todos esses fatos determinaram nele uma personalidade onipotente, narcísica e auto-suficiente, que negava qualquer frustração. O encontro com Gala, mulher do poeta surrealista Paul Eluard, em 1929, incendiou-o de paixão. Começam a conviver após o divórcio dela. Mas isto provocou uma rejeição do pai de Dalí, o qual nunca voltou a falar com seu filho.

O dia em que Dalí pensou que Jasmin fosse Lorca O encontro, num hotel de luxo de Nova York, entre o pintor surrealista e o jovem artista baiano Luiz Jasmin, que quase resultou num filme dirigido pelo espanhol e estrelado pelo brasileiro Fernando Monteiro Continente maio 2004


capa 29 » Sob uma perspectiva psicanalítica, podemos pensar que ter de carregar o peso do irmão morto (em 1963 pintou Retrato de Meu Irmão Morto), junto com as aspirações ideais de toda a sua família, provocou nele uma reação do tipo “ego ideal-onipotente”. Ou cumpria com as aspirações familiares ou teria que morrer como seu irmão. Que o pai não aceitasse sua relação com Gala, com certeza provocou nele uma forte frustração, mas ele insistiu nessa relação apesar da oposição do pai. Isto determinou o forte vínculo de Dalí com Gala ao longo de toda sua vida. Sabe-se que o quadro A Persistência da Memória foi realizado quando Gala, tendo ido a um encontro social sem ele, demorou a voltar. Por isso aparece um relógio pendurado, como se o tempo fosse elástico. Após a morte de Gala em 1982, Dalí entrou em uma profunda depressão. Podemos considerála, sem dúvida, uma depressão melancólica, pois seu vínculo era de natureza totalmente narcísica. O método de transformação crítica paranóica foi definido por Salvador Dalí como “um conhecimento irracional”, baseado em um “delirium de interpretação”.

Mais simplesmente, é o método onde o artista encontra novos e únicos caminhos para ver o mundo que o rodeia. É a habilidade do artista de ver e perceber múltiplas imagens com a mesma configuração. Na verdade, todos nós praticamos o “método paranóico crítico”, quando olhamos e interpretamos as formas das nuvens e as deformações da pintura das paredes, e encontramos diversas figuras nelas. Dalí elevou esta característica humana em suas formações artísticas. Dalí não era um paranóico verdadeiro, mas era capaz de simular um estado paranóico, sem usar drogas, e após seu retorno à “perspectiva normal”, ele podia pintar aquilo que vira nos estados imaginários. Dalí podia criar o que ele chamava de “sonhos fotográficos pintados à mão”, os quais eram representações das alucinações e imagens que ele via em seus “estados paranóicos”. Podemos dizer que as alucinações paranóicas não dominavam sua mente e, portanto, permitiam que ele as transformasse em imagens artísticas.

Foi no começo de uma tarde novaiorquina de abril que se deu o encontro de dois pintores, cujos destinos teriam tudo para não se cruzarem, nos caminhos sinuosos entre Oropa, Noviorque e Bahia: o espanhol Salvador Dalí e o jovem artista baiano Luiz Jasmin. O ano é 1966. O cenário é o Hotel Saint Regis – o preferido do mestre surrealista, quando estava na Big Apple –, na esquina da Rua 55 com a Quinta Avenida. Jasmin relata que se achava no luxuoso hotel – precisamente na penumbra do bar gelado – para atender ao desejo de Veruschka (a modelo mais magra que eu conheci) de ser retratada pelo jovem e bonito brasileiro, cujas ilustrações de moda já haviam aparecido até no Harper’s Baazar. Como todo manequim festejado nas altas rodas, Veruschka se atrasara, e Jasmin tinha decidido esperá-la no bar, debaixo do quadro de um rei nu (“soltando um pum, nada constrangidamente, no meio da sua corte”). A certa altura, a porta se abre e, em vez da bela modelo, adentra a penumbra um senhor vestindo terno jaquetão cinza com listras brancas, colete dourado e duas gravatas, uma sobre a outra (a de cima, preta, a de baixo, dourada), além de bigodes retorcidos para cima... que, nem assim, fizeram o distraído Jasmin identificar o ilustre hóspede. A luz vinda da espetacular entrada deve tê-lo iluminado, na linha de visão do homem que o fixou, com estranha intensidade, e caminhou

Dalí e Federico García Lorca, em Barcelona, 1927

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30 CAPA João Luiz de Albuquerque/Reprodução

Foto surrealista encenada por Dalí e Jasmin para a revista Manchete

direto na direção de um dos melhores desenhistas brasileiros (ainda se fará justiça, neste país, a Luiz Jasmin – e também ao bico-de-pena de Percy Lau). – “Eu lhe esperei desde ontem”. Foi a frase, em inglês, que Dalí pronunciou, sem mais aquela, como se houvessem marcado encontro. E Jasmim respondeu, na lata, na mesma língua: – “Mas eu só pude vir hoje”. Eis o diálogo absurdo que, de partida, deve ter encantado, de imediato, o homem mais velho. Jasmin recorda que o pintor ficou parado (“olhando-me com uma intimidade para mim desconhecida”), de maneira que, afinal, ele pôde reconhecer o rosto que era um dos mais fotografados do jet-set. Quanto à resposta – entrando na onda do “desconhecido” – fora dada mais pela sofisticação do lugar, pelas lembranças dos diálogos no cinema (sempre o cinema) e pela vontade de dizer qualquer coisa que o livrasse do embaraço. Saindo do breve catatonismo daliniano, o célebre catalão apontou uma mesa reservada para “Mr. Dalí”: – Aceita sentar-se comigo? Era uma mesa redonda, com cadeiras e mais um sofá de canto – porque o pintor nunca chegava sem uma trouContinente maio 2004

pe que ocupava sete ou oito lugares. Além da onipresente esposa (Gala Gradiva), Dalí andava, naquela ocasião, na companhia de dois gêmeos – sempre de mãos dadas –, uma javaneza muda, dois anões, uma princesa italiana autêntica e outras duas ou três figuras na sombra, voltados para a pintura do “rei do pum” (que, estranhamente, não era de SD). Depois que todos se sentaram – Jasmin, ao lado de Dalí –, a celebridade voltou a encarar o brasileiro: – Você me conhece? Mesmo tendo a desculpa dos vinte e poucos anos, Jasmin não quis parecer com o que se chama, hoje, de nerd, e balançou afirmativamente a cabeça: – Salvador Dalí. O artista assentiu, solene (como se esperasse ouvir “sim, você é o Mahatma Ghandi”), parecendo satisfeito com a própria celebridade, as mãos cruzadas sobre o cabo da bengala usada por puro charme. Luiz reparou em dois anéis grandes e, principalmente, “naqueles dedos grossos, descomunais, como se o manejo dos pincéis houvesse elastecido, deformado as mãos do gênio, segurando a paleta e os vários pincéis ao mesmo tempo”. – Você se parece com um amigo meu.


Reprodução

CAPA 31

Ovos Estrelados sem Prato, 1932, óleo sobre tela, 60 x 42cm

Foi o que ele ouviu, passado algum tempo. – Eu sei. – Sabe? Jasmin fez que “sim”, com a cabeça. – Quem é? – perguntou Dalí, ainda surpreso. – García Lorca. – Como você sabe? – foi a nova pergunta atônita. – Eu sei. Devia fazer “mistério”? Os bigodes revirados estavam, quase, também arqueados, junto com as sobrancelhas agudas. Jasmin resolveu explicar: – Um amigo meu me falou. Um poeta: Vinicius de Moraes. – Você é brasileiro? – a pergunta foi feita em português. E Jasmin respondeu com outra: – Você fala português? Os dedos grossos de uma das mãos (seguradas em milhares de dólares) se soltaram do cabo da bengala para sinalizar um modesto “assim-assim”. – O que você bebe? Dois ou três dry martinis rolaram até que chegasse, por fim, uma Veruschka cheia de magras desculpas. A magérrima modelo já conhecia Salvador Dalí do hotel, e, ao ser beijada por ele (que se levantara, galante), voou um garfo na direção dos dois. O utensílio viera, perigosamente, da geniosa Gala, até então calada e pacífica. O seu marido, entretanto, não teve dúvidas: pegou um dos pães do couvert e atirou, com certa força, na direção da mulher que ele dizia “ter organizado a sua vida, ao preço de fazê-lo suportar o seu ciúme terrível”. Depois de pedir desculpas, voltou a falar de Federico García Lorca: – Ele falava na morte umas cinco vezes por dia. Já

na cama, preparado para dormir, na Residência dos Estudantes, terminava a conversa discutindo o problema da morte, principalmente a dele próprio. Quando recebi a notícia de que Federico morrera, exclamei apenas: Olé! Esta exclamação usada pelos amantes das touradas ou pela platéia, encorajando cantores de flamenco, eu a usei, na ocasião, para assinalar como o destino de Lorca foi alcançado por via do trágico, típico sucesso espanhol... Isso, a coisa mais inteligível e concatenada que Dalí pronunciou, naquela tarde, sobre o seu amigo assassinado pelos fascistas, na Guerra Civil espanhola. Tocado pelas lembranças do “poeta-mártir” – e pela semelhança física que o assustara, à porta do bar –, o velho pintor falou muito, ora em diálogo, ora em monólogo para si mesmo, mas sempre fixo em Luiz Jasmin como se o baiano fosse o bardo andaluz. As evocações terminaram com Dalí convidando-o para estrelar um filme sobre a vida de Lorca, que ele “sempre sonhara em produzir”. – Amanhã faremos um teste de fotogenia, aqui mesmo no hotel! Entusiasmos típicos do pintor de bigodes levantados nas pontas. Jasmin voltou a encontrar, outras vezes, o mestre surrealista em Nova York. Chegaram a fazer uma sessão de poses para o fotógrafo João Luiz de Albuquerque (na qual Dalí pediu que o jovem artista acendesse o seu isqueiro, para representar “a luz que ilumina as inteligências do mundo”), porém o filme sobre García Lorca – dirigido por SD e com o hoje baiano-pernambucano Luiz Jasmin no “papel principal” – jamais foi feito. • Continente maio 2004


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32 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Otávio Magalhães/AE

O pintor Glauco Rodrigues e seu painel com o retrato do fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Glauco e o Brasil alegórico O pintor gaúcho era mestre do desenho e da cor

F

az um mês que morreu, no Rio de Janeiro, o pintor Glauco Rodrigues, gaúcho de Bagé e um dos últimos integrantes do grupo de artistas que, em 1951, fundou com Carlos Scliar o Clube de Gravura de Porto Alegre. Nesse período, Glauco aprimora sua capacidade de desenhar, de reproduzir as coisas do mundo com seu traço, o que vinha coincidir com o realismo socialista, tendência adotada pelo Clube da Gravura. No Rio, a partir de 1959, desenvolve seu talento Continente maio 2004

de paginador e ilustrador na revista Senhor, que marca época. Os anos que passa na Europa, notadamente na Itália, num período em que a arte não-figurativa se impõe internacionalmente, Glauco também adere ao abstracionismo, influenciado pela linguagem de signos de Julius Bissier. Essa fase constituiu uma espécie de quarentena, que possibilitou a Glauco voltar às origens e retomar a linguagem figurativa com maior liberdade. De fato, era uma nova relação que se estabelecia.


TRADUZIR-SE 33

A primeira fase figurativa de Glauco caracterizou-se pela estrita fidelidade ao real. Pode-se dizer mesmo que, pelo conteúdo estético-ideológico que a determinava, era uma linguagem deliberadamente intranscendente: mostrar o real tal como era lhe bastava. A fase carioca – pela própria aplicação de seu talento às tarefas de ilustrador e paginador de uma revista sofisticada – possibilita-lhe um afastamento daquele realismo cru e a abertura para outras possibilidades da linguagem gráfica. É essa fratura do objetivismo realista que abre caminho para as experiências abstratas por ele realizadas na Europa. Por isso mesmo, o reencontro com a linguagem figurativa não poderia repetir a mesma relação dos anos iniciais. E com um fator a mais: instalara-se uma ditadura no país. Se a relação de Glauco com a linguagem figurativa agora é outra, a relação dessa linguagem com a realidade também é outra. Se, na fase gaúcha, a figuração nascia da observação direta do objeto, como se o artista nada mais fosse que um espelho a lhe refletir fielmente a imagem, agora, o diálogo não é diretamente com o mundo real, mas com um mundo de imagens; também não é com o país real, mas com um país imaginado. Glauco passa a se expressar através de uma metalinguagem. Deve-se observar, porém, que, apesar das diferenças entre a linguagem do final dos anos 60 e a dos anos 50, uma afinidade permanece: ambas têm conteúdo político. Só que, na fase nova, esse conteúdo se expressa de maneira mais rica e sofisticada, com recursos da fantasia e do humor. O melhor exemplo disso é a paródia que ele fez da Primeira Missa, de Victor Meirelles, da qual estão ausentes a floresta, os montes e o mar que, no quadro original, são a própria afirmação do Brasil primitivo e autêntico. Glauco parece situar os personagens num espaço vazio, como a sublinhar a irrealidade da cena e sua falta de ligação com o país de verdade. Pode-se entender também que, como a paródia não deixa de ser obra pictórica de Glauco e nela há personagens atuais por ele introduzidos, a eliminação do fundo – do ambiente real – refletiria uma atitude inconsciente do artista com respeito ao país de então, submetido aos militares: ele o dá como não-existente. Não obstante, sendo essa ou outra a razão do uso do fun-

do branco naquela fase de Glauco, a verdade é que esse fundo se tornou um elemento estilítico, parte inerente de sua linguagem pictórica na época. Não resta dúvida, aliás, de que, qualquer que seja a explicação lógica ou psicológica que se adote, o fundo branco indica a intenção de livrar as figuras e as cenas do condicionamento realista que o cenário (paisagem, rua, interior de casa etc.) impõe. A ausência do fundo real acentua, ao mesmo tempo, o caráter alegórico da maioria dessas composições, permitindo a junção, num mesmo espaço, das figuras mais díspares. Essa retomada da pintura figurativa, por Glauco Rodrigues, inserindo-a numa temática brasileira, nacional, atende à tendência tropicalista, em voga naqueles anos. Sua postura é gozadora e carnavalizante, como se observará comparando a sua Primeira Missa com a de Cândido Portinari, pintada em 1948. Também neste caso, o modelo é o quadro de Victor Meireles e mais uma vez o altar com os padres é o único elemento tomado de empréstimo ao quadro original; da paisagem, a parte preservada são os morros, mas com outro desenho e outras proporções. Como na paródia de Glauco, também na versão portinariana a floresta é eliminada e, de maneira sumária, do mesmo modo que os índios. Se Glauco ainda mantém alguns deles – alguns como índios mesmos e outros como brancos fantasiados de índios –, Portinari é implacável: a missa é assistida apenas pelos portugueses que o fazem numa atmosfera de contrição e dramaticidade, que nada tem a ver com o espírito de religiosidade natural do quadro de Meireles e muito menos com a irreverência de Glauco. A afinidade maior da obra de Portinari com a de Victor Meireles está na profunda convicção de ambos de que fundam, com sua pintura, a verdade histórica. Já a missa de Glauco, ao contrário, nos passa leveza, improviso e inteira despretensão quanto à abordagem do tema, que não é tratado como verdade histórica e, sim, como produto de uma retórica nacionalista que não deve ser levada a sério. Essas considerações sumárias sobre a pintura de Glauco Rodrigues indicam, a par de suas raras qualidades de mestre do desenho e da cor, a posição muito especial, muito própria e original que sua obra ocupa na história da arte brasileira contemporânea. • Continente maio 2004


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CINEMA

Filmes de estrada Em Diários de Motocicleta, Walter Salles reafirma sua tendência em produzir filmes “que caem na estrada” e constata que os problemas estruturais da América Latina, revelados na viagem de Che Guevara e Alberto Granado, continuam presentes Kleber Mendonça Filho

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iários de Motocicleta é o sexto longa-metragem de Walter Salles. Até a data de fechamento desta edição, a imprensa brasileira ainda não havia visto o filme, que tem sua estréia no Brasil marcada para 7 de maio. A data de lançamento é estratégica, uma vez que o filme estará em evidência na maior vitrine cinematográfica do mundo, o Festival Internacional de Cinema de Cannes, que tem início dia 12 de maio e duração de duas semanas. Adaptado do livro Notas de Viaje, de Ernesto Guevara, Diários de Motocicleta tem como um dos seus produtores Robert Redford, astro hollywoodiano que fundou nos anos 80 o Sundance Institute, responsável pelo cada vez maior Festival de Sundance, dedicado ao cinema independente e onde o filme teve sua estréia mundial no último mês de janeiro. Despertou reação mais do que positiva na crítica internacional (a revista Variety afirmou que seria “o melhor filme de Salles”). Mesmo com produção essencialmente americana, o filme é falado em castelhano, algo que Salles fez questão de defender. Hoje, Granado tem 83 anos e mora em Havana. Por problemas de visto de viagem para os EUA, Granado não pôde ir ao Festival de Sundance, em janeiro. Salles, portanto, levou o filme até ele, em Cuba. Num depoimento divulgado recentemente, Granado diz ter vivido, assim como Guevara, uma

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Paula Prandini/Divulgação

Guevara (Gael Garcia Bernal) e Granado (Rodrigo de La Serna) deixam a Argentina para cruzar a América Latina

vida consistente com suas convicções, “e sempre fizemos o que acreditávamos ser a coisa certa a fazer. O fato de um filme ser feito da nossa viagem é mais um fato inesperado na minha vida”, disse. O filme dá continuidade ao interesse de Walter Salles investigar a viagem em estrada e, ao longo da sua carreira, a “estrada” tem se configurado elemento essencial na sua obra. A Grande Arte (1991), Terra Estrangeira (1995, co-dirigido por Daniela Thomas) e Central do Brasil (1998) certamente refletem esse interesse, enquanto seus outros filmes – O Primeiro Dia (1999, também co-dirigido por Thomas) e Abril Despedaçado (2001), se não têm na estrada propriamente dita seus respectivos eixos, apresentam personagens que se descobrem como se estivessem viajando ao longo de uma estrada. Salles acaba de encerrar as filmagens do seu mais novo trabalho pós Diários de Motocicleta. Chamase Dark Water, a versão americana do thriller japonês Honogurai Mizu No Soko Kara (2002), com Jennifer Connely (Réquiem Para Um Sonho) no elenco. Foi do Canadá que Salles concedeu esta entrevista à Continente Multicultural sobre “filmes de estrada”, a descoberta que cada um traz e, em especial, a América Latina.

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Paula Prandini/Divulgação

Walter Salles e Alberto Granado durante as filmagens de Diários de Motocicleta

“A estrada e sobretudo aquilo que você encontra à margem da estrada mostram o quanto as certezas que você tinha são relativas. No caso de Diários de Motocicleta, a viagem pelo continente latino-americano, a viagem que foi fazer este filme, acabou tendo uma repercussão profunda em todos nós”

Você já saiu à procura de países em seus filmes, em especial, do próprio Brasil. Como foi sair à procura da América Latina em Diários de Motocicleta? Se há um tema que sempre me interessou em cinema é o da busca de identidade. Terra Estrangeira e Central do Brasil são a extensão desse desejo de descobrir quem somos, de onde viemos, para onde vamos. No caso de Diários de Motocicleta, havia um fascínio duplo. Primeiro, porque Notas de Viaje, o livro de Ernesto Guevara, parte não somente em busca de uma identidade latino-americana, mas também revela como esses dois jovens que eram Alberto e Ernesto acabam descobrindo as suas vocações éticas e políticas ao se defrontarem com uma realidade desconhecida. Era, portanto, uma jornada de descobrimento e de autodescobrimento.

O que você encontrou nesta viagem que lhe chamou a atenção como algo novo, você sendo um viajante experiente pessoal e profissionalmente? A estrada e sobretudo aquilo que você encontra à margem da estrada mostram o quanto as certezas que você tinha são relativas. No caso de Diários de Motocicleta, a viagem pelo continente latino-americano, a viagem que foi fazer este filme, acabou tendo uma repercussão profunda em todos nós. Também fomos transformados pela experiência, espelhando aquilo que tinha acontecido com aqueles dois jovens que partiram com uma velha moto pela estrada, em 1952, numa época em que boa parte da América Latina estava muito mais voltada para a Europa do que para si mesma.

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CINEMA

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“Se eu pudesse resumir esse filme em uma frase, eu diria que é a história de dois jovens que partem para uma aventura, descobrem uma realidade que eles desconheciam e decidem, no final do percurso, em que margem do rio eles querem ficar”

Já pensando num possível paralelo entre você mesmo, Guevara e Granado, quanto de você mesmo foi parar nos dois e quanto dos dois se alojou em você? Boa pergunta, e a resposta não é fácil porque ela se encontra num território dificilmente definível pela palavra. Fiquei fascinado pelo tema desse filme e mergulhei nele, com tudo que eu podia, ao longo de três anos. Antes do início da viagem, a admiração que eu tinha por Ernesto Guevara era intensa, mas a aproximação permitida por anos de pesquisa deu foco a esse sentimento. Passei a admirá-lo ainda mais, pela sua coerência e integridade, pelo fato de ele ter vivido e morrido por este continente. Durante a realização do filme, também me tornei um admirador de Alberto Granado, outro homem que soube viver de acordo com os seus ideais. Ele é hoje um jovem de 83 anos, e aprendi muito com ele. Se eu pudesse resumir esse filme em uma frase, eu diria que é a história de dois jovens que partem para uma aventura, descobrem uma realidade que eles desconheciam e decidem, no final do percurso, em que margem do rio eles querem ficar. No caso de Ernesto, ele vai cruzar este rio para sempre, ultrapassando as suas barreiras de classe, aguçando uma visão ética e política do mundo. Junto com Gael, Rodrigo e muitas outras pessoas da equipe, eu me senti também de alguma forma cruzando aquele rio. Por isso tudo, esta foi uma experiência única, que dificilmente se repetirá.

Divulgação/Rio Filmes

Cena do filme Central do Brasil que também traz a estrada como vertente

Divulgação

Nós, brasileiros, temos uma dificuldade, até certo ponto compreensível, de não nos sentirmos parte da América Latina. Durante esse seu processo de filmar Diários isso pareceu se confirmar? Como você posiciona o Brasil na América Latina? Essa América é terra estrangeira para o Brasil? Sim e não. Um amigo que assistiu recentemente ao filme me disse que, do meio para o final da projeção, começou a chorar calmamente pelo fato de sentir-se latinoamericano, mas também pela vergonha de não se sentir mais latino-americano. Nós, brasileiros, somos o fruto da colisão entre a Europa e a África. Pessoalmente, penso que fomos salvos pela África. A nossa língua nos distancia da América Latina? De certa forma, sim, como no título do filme de Wim Wenders, Tão Longe, Tão Perto. Por outro lado, sinto que esse desejo de pertencer ao continente do qual fazemos parte só faz aumentar. Isso foi claramente estabelecido, aliás, nas últimas eleições brasileiras. Compare a eleição de Lula com a barra pesada que vivemos durante os anos Fernando Collor. Passamos daquela idéia pernóstica de pertencer a um suposto “primeiro mundo” para outra diametralmente oposta, muito mais próxima dos nossos vizinhos. Tanto do ponto de vista político quanto cultural, só temos a ganhar com esta aproximação. Só para ficarmos no campo do cinema: hoje, o melhor cinema jovem que se faz no mundo é o da Argentina. Está ao nosso lado, mas pouco sabemos dele. Em outras palavras, ainda há um longo caminho pela frente. Walter Salles filma Abril Despedaçado, seu último longa rodado no Brasil Continente maio 2004


Paula Prandini/Divulgação

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Na cena, Guevara visita uma colônia de leprosos, no Peru

Qual a importância para você de ter feito este filme em espanhol, e não em inglês, algo notável pelo simples fato de ser uma produção essencialmente norte-aamericana? Fundamental. Foi o único pedido que eu fiz a Robert Redford quando ele me convidou para realizar Diários da Motocicleta. Pedi que este filme fosse feito em castelhano. Ele aceitou prontamente, e nos deu total liberdade criativa. Foi a favor da idéia desde a largada, o que não facilitou a sua tarefa como produtor. Justamente pelo filme ser em espanhol, ele foi recusado por muitas distribuidoras norte-americanas, que não quiseram comprá-lo antes da filmagem. Encontrar o financiamento do filme durou cerca de dois anos, e se não fosse a Film Four inglesa, associada ao Channel Four – uma espécie de TV Cultura da Inglaterra – este filme provavelmente não teria acontecido. Existe um abismo entre a América Latina sonhada por Guevara e Granado e a América Latina que nos abriga hoje? Gael, Rodrigo e eu falávamos constantemente disso durante a viagem, de como os problemas estruturais revelados na viagem de 1952 ainda estavam presentes hoje. É por isso, aliás, que tanto o livro de Guevara quanto o de Granado são tão contemporâneos. Em algumas regiões – como em Temuco, no sul do Chile, que é uma cidade fronteira assentada no que foi o território dos índios Mapuches, a situação está francamente pior, hoje, do que em 1952. Se a América Latina de hoje não é a América Latina sonhada por Guevara e Granado, isso não quer dizer que as possibilidades de transformação morreram. As transformações políticas que estão ocorrendo em diversas partes do continente nos permitem algum otimismo nesse sentido. O que mais o fascina no filme que se desenvolve na estrada e numa viagem? Dark Water seria uma quebra, ou intervalo pessoal nesse tema? O que me fascina na estrada é a idéia do movimento: não só aquilo que diz respeito à geografia física, mas sobretudo à geografia humana confrontada com a estrada e com aquilo que está à margem da estrada, os personagens são obrigados, ou levados a mudar. Este processo de transformação, aquilo que se chama às vezes de “arco psicológico”, é, para mim, a essência do cinema. Por outro lado, não acho que é possível fazer um filme na estrada depois de outro. Diários de Motocicleta torna a próxima experiência muito mais difícil, porque a experiência que vivemos foi inesquecível. Daí a idéia de experimentar, por uma vez, com um filme completamente diferente, algo que pudesse me fornecer uma base de comparação. Estou chegando ao final desse filme com uma estranha certeza daquilo que me interessa em cinema: filmes que caem Continente maio 2004


CINEMA 39

na estrada e tentam tocar um mundo que eu ainda não conheço. Penso que, do ponto de “Gael, Rodrigo e eu vista pessoal, é isso que me motiva realmente. Tenho muito mais interesse e curiosidade por falávamos constantemente aquilo que ainda não conheço do que por aquilo que me é excessivamente próximo. disso durante a viagem, de como os problemas Como você vê as contribuições latinas para o cinema, nos últimos anos? Parece-m me estruturais revelados na um cinema de qualidade, mas que ainda precisa ganhar o devido respeito. viagem de 1952 ainda Concordo com você. Conforme disse anteriormente, acho que o melhor cinema jovem estavam presentes hoje. É feito hoje mundo afora é argentino. Pablo Trapero (El Bonaerense), Lucrecia Martel (La por isso, aliás, que tanto Cienaga), Pablo Reyero (La Cruz del Sur) são alguns dos mais brilhantes diretores da o livro de Guevara geração. Sou fã deste cinema, e acho que ele ainda é de fato pouco reconhecido. Você sabe, quanto o de Granado são isso funciona por ondas. Há décadas que a crítica européia está fascinada pelo cinema asiá- tão contemporâneos” tico, por exemplo... A maioria dos cineastas latino-americanos tem que romper uma série de barreiras para conseguir que seus filmes sejam vistos. Não é uma batalha fácil, mas merece ser travada. Pelo que eu entendi, o filme estará em competição em Cannes. Para começar, jamais pensei que Diários de Motocicleta tivesse a cara daquilo que é considerado “filme de festival”. É um filme simples, feito numa ordem direta, impuro. Do ponto de vista da narrativa, limitei-me a tentar acompanhar os personagens, esqueci na maioria das vezes o quadro. Mais do que ganhar um prêmio num festival, o que no caso deste filme me parece uma possibilidade remota, o que mais me interessa, o que mais interessa a todos nós que fizemos o filme, é a possibilidade de iniciar um diálogo, alguma forma de debate interessante dentro do continente latino-americano.

Os personagens enfrentam a Cordilheira dos Andes

Walter Salles/Divulgação

Fale-m me um pouco sobre Gael Garcia Bernal e a idéia de quem Guevara foi para ele mesmo e para você. Gael foi um companheiro de viagem maravilhoso, e acho que eu não teria chegado ao final desta aventura sem a dedicação e o talento que ele colocou neste filme. É um cara extremamente inteligente, solidário, com um senso de humor corrosivo que lembra, aliás, o de Ernesto Guevara. Gael também é um cara culto, que lê sem parar, com uma maturidade impressionante para os seus 26 anos. Éramos ambos admiradores de Ernesto Guevara, e ambos achávamos que a sua trajetória excepcional não cabia em um filme. Não cabe nem em dez. Por isso, debruçamo-nos apenas nestes oito meses que aconteceram em 1952, quando Ernesto tinha 23 anos e Alberto, 29. É a pequena estória que precede a História, um filme sobre os jovens Ernesto e Alberto, e só. •


40 TEATRO

Terça Insana Torcendo o preconceito ao contrário

Tiago Queiroz/AE

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Atriz gaúcha utiliza o Stand Up Comedy para fazer rir ao mesmo tempo que exige mais respeito ao cidadão João Luiz Vieira

A

platéia fica no escuro até ela acender o primeiro cigarro e passar por entre as mesas, bebendo a cerveja de um, o uísque de outro. De vestido preto, usando botas até os joelhos e uma peruca que ora é vermelha ora é roxa, surge, alterada de tanta cocaína no sangue, Cinderela, a maior traficante do país, uma das mais aplaudidas criações de Grace Gianoukas. A atriz, porém, não só tem esta carta ou personagem na manga. Gaúcha, morando em São Paulo há 20 anos, ela é a mentora e diretora do fenômeno de público e crítica Terça Insana, uma sucessão de esquetes satíricos, filiada ao secular Stand Up A atriz de Terça Insana, Comedy inglês. O projeto, no entanto, foi além do mero Grace Gianoukas sucesso pessoal. Por causa de Grace, carreiras ressurgileva nos braços vestígios de queimaduras, carrega um nariz ram das cinzas e o gênero teatral em questão saiu do limbo, exageradamente adunco no rosto, mantém uma postura onde estava confinado, para virar programa de classe média irreverente e, garante, não leva uma piada sequer para casa. no pouco tradicional dia de teatro que é a terça-feira. Ri da própria vida. “Estou atenta a tudo ao meu redor. Do Grace está rindo, literalmente, por último. Quando ela trânsito, da relação entre amigos, dos serviços de telefonia comentou com celebridades de ocasião sobre a idéia de pública, de qualquer lugar pode sair uma boa piada”, exmontar um espetáculo com os amigos talentosos e comi- plica. “O que antes me deixava irritada, hoje me serve de camente viáveis que estavam, àquele momento, desempre- inspiração. Depois desse projeto, comecei a ver o lado engados e com sérias dificuldades financeiras, muita gente riu graçado de tudo.” Ela acredita que faz um teatro político à da cara dela. Rir da cara dela, aliás, é pleonasmo. Grace sabe moda. Fala de cidadania. Por causa disso, ainda este semesque é engraçada à primeira vista. Mulher de estatura baixa, tre deve estar estreando um programa de rádio, com seu

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TEATRO 41 »

elenco, para tratar exatamente disso: respeito ao cidadão. A rotina da atriz é intensa, mas ela garante que ensaia o Terça Insana só no dia do espetáculo mesmo. “O elenco leva as idéias para suas cenas para mim e fazemos um brain storm levando em conta a temática daquele dia. Juntos, avaliamos se aquela performance é suficientemente engraçada ou não”, explica. “Na hora H, tudo depende da química com a platéia. Normalmente, dá certo.” O espetáculo, que será visto no Recife ainda neste semestre, já recebeu mais de 100 mil pessoas. Cinderela é apenas uma das personagens de Grace. No seu portfolio, há espaço para Ariel, uma estrela de cinema, teatro e TV que é viciada em Lexotan e a mais recente, Leona P. Cavalera, uma sátira a uma das atrizes da nova geração, Leona Cavalli, também gaúcha e conhecida por um certo grau de estrelismo. Ex-garçonete de um restaurante de comida natural em Porto Alegre, Grace tentou, mas largou o curso de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Chegou em São Paulo para morar com Caio Fernando Abreu, escritor e um de seus maiores amigos. Ficou na casa dele por quase dois anos. “Aprendi muito com ele e sua vasta biblioteca. Naquela época, conheci de fato a obra de Clarice Lispector e, como ela dizia, ver é irreversível”, afirma. Voltou a trabalhar como garçonete em São Paulo e, entediada, começou a representar enquanto segurava as bandejas. Começou, assim, sua ascensão. Na capital paulista, uniu-se a Angela Dip e Marcelo Mansfield e criaram a Companhia Harpias e Mansfield. Os dois, aliás, estão com ela em Terça Insana. Ela também escreveu peças, como Não Quero Droga Nenhuma – A Co-

média, Paraíso e O Pequeno Grande Pônei. Na TV, fez a minissérie Chapadão do Bugre (TV Bandeirantes), o humorístico Escolinha do Professor Raimundo (TV Globo), a minissérie Sex Appeal (idem) e a novela Tiro e Queda (TV Record). “Fui sondada diversas vezes para o TV Pirata, mas era cortada sempre que alguém comentava que eu era a louca”, desabafa. A experiência na Globo, aliás, não foi das mais felizes. “Quando assinei o contrato, avisei que não queria reforçar preconceitos, mas foi o que aconteceu e fiquei muito triste àquela época.” Sente falta do salário? “De jeito nenhum. Um ator ganha, no máximo, R$ 10 mil, se não for um dos medalhões no Zorra Total.” Ganha mais fazendo Terça Insana. Ela diz não sentir a menor falta de TV, pois os programas estão nivelados por baixo. Quer fazer, sim, TV por assinatura. No cinema, Grace esteve em Festa, de Ugo Georgetti, e Eu Não Conhecia Tururu, dirigido por Florinda Bolkan. De vez em quando faz quadros no programa de Hebe Camargo, mas foi no Terça Insana que se consagrou. Grace acredita que resgatou uma era. “Verdadeiros gênios da comédia estavam enterrados no sofá por falta de espaço para se apresentar. Lembro que ninguém queria se expor comigo no palco do Next e hoje a fila de atores querendo atuar conosco cresce a cada dia.” A atriz acredita que o público voltou a valorizar esse tipo de espetáculo que faz porque aprendeu a discernir um bom de um mau espetáculo. “Acho que as pessoas tornaram-se nossas cúmplices. Estamos superexpostos no palco, além de feios e ridículos”, diz. “A minha intenção é testar novos motivos para rir e torcer o preconceito ao contrário, denunciar desigualdades e injustiças.” O público provou que entendeu o recado. Filipe Araújo/AE

Juliana Ruiz, Claudia Cavalheiro, Marcela Leal e Andréa Barretto, em cena do espetáculo TPM


Divulgação

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Um olhar crítico sobre o mundo Up Comedy, Agnes Zuliani A estudiosa do Stand-U

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princípio básico para a existência de um espetáculo teatral – a interação entre um ator e um espectador, munidos ou não de um texto – tem no Stand Up Comedy o gênero que, hoje, melhor o representa. Em geral as pessoas confundem a categoria com o ato de estar em cima de um palco – em pé, como o nome sugere em inglês – contando uma piada. Isso é uma meia-verdade, uma imprecisão conceitual. O gênero tem dois tempos em sua estrutura. Primeiramente, apresenta uma série de setups (preparações). Em seguida, os punches (socos ou porradas), ou seja, parte de um comentário para a apoteose. “A Stand Up foi criada principalmente para ser apresentada em bares”, explica Agnes Zuliani, atriz, diretora teatral, historiadora formada pela USP, e uma das maiores estudiosas de Stand Up Comedy do país. Uma das principais características do gênero é a crítica. “Primeira e, principalmente, de si mesmo e depois a crítica social e/ou política”, diz Agnes. O comediante precisa criar uma “empatia” com o público, ganhar sua confiança. “É preciso que o comediante acredite no que está dizendo para que o público faça o mesmo. Para isso, o assunto escolhido precisa ser sério e pessoal, além de divertir você mesmo.” O Stand Up Comedy não é um gênero estanque. A ele Continente maio 2004

O Stand Up Comedy se fundamenta num princípio básico para a existência do teatro: a interação entre o ator e o espectador

é permitida a interferência de elementos culturais específicos da região onde está sendo produzido e apresentado. É um gênero que se mistura e se confunde com formas diferenciadas de comédia muito específicas de certas culturas. É o caso das performances cômicas apresentadas nos cabarés alemães e até mesmo os esquetes teatrais que pipocaram pelos bares undergrounds do Recife nos anos 80. A raiz do gênero, no entanto, é inglesa e os representantes legítimos podem ser encontrados nos EUA e Canadá. Um comédia deste tipo precisa ser curta: três minutos é o tempo suportável, mas o ideal fica entre meio minuto e dois minutos . O público é aquele que vai ao bar para se divertir e beber, portanto o entretainer deve ser “curto e grosso”. Agnes, que estudou o gênero no período em que morou nos EUA, na década passada, esclarece que a base de sustentação do espetáculo é a palavra “verbalizada” e não escrita. O comediante cria uma persona e sua performance depende do que ele vê e experimenta do mundo. “Ele comenta fatos, nacionais e internacionais, e os pequenos eventos do cotidiano”, situa Agnes. Precisa ter timing cômico, mas o mais importante é ter coragem para falar de si, opinar sobre o mundo que o cerca e, especialmente, ter um profundo sentido crítico e observador.


Leonardo Aversa/O Globo

TEATRO

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Aloísio de Abreu e Luís Salem, em cena de Subversões

Espetáculo abriu espaço para atores Na trilha do sucesso de Terça Insana, 11 novos espetáculos surgiram na noite

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race Gianoukas, a mentora do Terça Insana, orgulha-sse do mercado que (re)abriu para a classe artística e, exagerada, afirma que muita gente vai assistir ao espetáculo para copiar sua idéia. Se é verdade ou mentira, o fato é que surgiram muitos “filhotes” do projeto defendido por ela. Somente em São Paulo, oito espetáculos que arranham o conceito do Stand Up Comedy estão em cartaz. No Rio de Janeiro, outros três. Marcelo Mansfield, um dos pioneiros deste conceito e parceiro de Grace desde os anos 80, está em cena com um outro trabalho do gênero, Comedy Hour, em cartaz no Rife Café, somente às quartas, a partir das 22h. Trata-sse de dois monólogos cômicos que ele divide com o ator Júlio Rocha e, garante, pretende excursionar por todo o país. Mansfield faz Stand Up Comedy desde 1985, mas sempre amparado por algum personagem. Já o TPM, outro exemplo do que se está fazendo pela noite de São Paulo, é um espetáculo com elenco

exclusivamente feminino, algumas das atrizes, inclusive, fizeram participações no Terça Insana. O elenco prepara esquetes diferentes a cada semana. Nenhum deles ultrapassa dez minutos. Das personagens, podemos citar Luz Cristalina, vidente que faz tudo por dinheiro; uma mulher viciada em jaca; Jovina, prostituta que narra a sua vida pregressa; e uma mulher com um mau hálito inexplicável. No elenco, Juliana Ruiz, Claudia Cavalheiro, Marcela Leal e Andréa Barretto. No Rio, Bruno Mazzeo e Nizo Neto, filhos de Chico Anysio, estão à frente de empreitadas similiares. Eles fazem Os Famosos Quem, intercalandose no palco. A atriz Renata Cássio Barbosa também está no elenco. Ela, por exemplo, faz uma Mulher Maravilha. Nizo, um stripper, e Bruno, um Marcos Frota. Sim, o ex-m marido de Carolina Dieckman. Ainda no Rio, Aloísio de Abreu e Luís Salém estão no cultuado Subversões. Todos, exemplos de derivados do Terça Insana em 2004. •


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DANÇA

Reprodução

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No solo Rox, Xox, Fox... a travesti L. Fox (óleo sobre tela, 70x70 cm), de Pedro Buarque, ganha vida

O diálogo da dança Em formato inédito, o projeto O Solo do Outro leva para o palco montagens que falam sobre experiências emotivas, cognitivas e ideológicas Isabelle Câmara


Hans Manteuffel

DANÇA 45 »

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uando o jovem artista plástico Pedro Buarque idealizou a série Lola, obra em progressão e que hoje é formada por nove quadros independentes, mas que juntos formam um mosaico, ele jamais imaginou que um dia os seres por ele criados, pertencentes ao terceiro sexo, poderiam sair das telas e ganhar movimento. A bailarina Juliana Siqueira, que tem um vocabulário corporal formado pela estética do balé clássico, também jamais imaginou que um dia se renderia à dança contemporânea e transformaria a linguagem do seu corpo, assimilando aos valores do clássico uma técnica mais libertária, menos tensa, mais preocupada com o conteúdo do que com a forma. Para quem estava acostumada a interpretar apenas damas, princesas, rainhas, deusas, fadas e camponesas, foi muito estranho perceber e interiorizar os sentimentos que devem habitar a mente de um travesti, como solidão, tristeza, humor, delicadeza, vaidade e frustração, e criar uma nova relação entre emoção, vivência e condicionamento comportamental. Foi o que lhe propôs o coreógrafo José W. Júnior, que depois de três anos na França, como bailarino do projeto Passarela Brasil e França, da Cia. Marianne Isson, passou um tempo “dançando nas nuvens do Recife”, sem encontrar onde aplicar todo o conhecimento que adquirira no exterior – até ser escolhido por Juliana para coreografá-lla dentro do projeto O Solo do Outro e optar por dar movimento às Lolas de Pedro Buarque no solo “Rox, Xox, Fox...” (sobrenome das Lolas de Pedro). Criado pelo Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas ApoloHermilo para promover um diálogo entre coreógrafos e bailarinos que trabalham com estilos diversos de dança, o projeto O Solo do Outro está em sua terceira edição. Este ano, ele é integrado também pelos coreógrafos Kleber Lourenço e Isabel Ferreira, que, assim como José W. Júnior, foram cuidadosamente selecionados, curiosa e ineditamente em projetos desta natureza, pelos bailarinos Kleber Cândido e Viviane Madureira, respectivamente. A dialética entre artes plásticas e a flexibilidade da dança configurou-sse um desafio à dupla de coreógrafo e bailarina. “É um encontro difícil. Começamos a trabalhar achando que as Lolas eram mulheres. Elas nos dão o mote para os sentimentos, mas o que está posto no palco são as emoções de Juliana”, adianta Júnior. “Eu não sei quantas Lolas existem dentro de mim. Achava que nenhuma, mas agora vejo que são muitas a serem descobertas”, reflete a bailarina. O corpo de Juliana fala sobre a dualidade entre o masculino e o feminino. Na voz dela, é muito tênue a linha que separa os dois sexos. Em seus movimentos estão marcados os conflitos que devem permear a vida dos travestis, numa dramatização do gestual cotidiano. Mesmo provocando um instigante estranhamento, o dia-aa-ddia dos travestis é substituído por imagens coreográficas que desmistificam e poetizam estas pessoas, ampliando a discussão sobre a existência do terceiro sexo.

O corpo de Juliana fala sobre a dualidade entre os dois sexos. Em seus movimentos estão marcados os conflitos que devem habitar a mente de um travesti

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DANÇA

Viviane Madureira dança o abandono, a rejeição, a raiva, sentimentos presentes no conto João e Maria

Isabel e Viviane – Os conflitos presentes nos contos de fadas, especialmente João e Maria, a história de Hansel e Gretel, registrada pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, no século 19, também ganham movimento no corpo de Viviane Madureira, bailarina já conhecida nos palcos do Recife pelos sete anos no Balé Popular do Recife e cinco no Grupo Grial. Mas quem espera ver João e Maria dançados por Viviane vai se frustrar. “Danço o abandono, a rejeição, a raiva, os medos, os sonhos de uma vida melhor e as perdas, sentimentos implícitos na narrativa”. A idéia de trabalhar com o universo simbólico da criança surgiu do laboratório feito por Viviane e Isabel em busca de um tema para o solo. Foi nos livros do pai de Viviane, Anselmo Madureira, que elas descobriram A Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim. “É a primeira vez que trabalho com textos pré-existentes, tanto como coreógrafa quanto bailarina. Esse é o grande desafio”, avalia a coreógrafa Isabel Ferreira. Jovem tanto na idade quanto na profissão, Isabel acredita que o projeto O Solo do Outro está fortalecendo um movimento que existe no Recife, que é o da interação entre os bailarinos. “Há alguns anos era comum perceber um grupo tentando puxar o tapete do outro. Agora começamos a ver que todos querem interagir, crescer juntos”. Kleber e Kleber – Os bailarino e coreógrafo Kleber Candido e Kleber Lourenço, respectivamente, além do nome, têm trajetórias artísticas em comum. Ambos são do interior do Estado, iniciaram suas carreiras no teatro há 14 anos (têm 24) encenando os autos de Páscoa, vieram morar sozinhos no Recife e depois migraram para a dança. As histórias de vida que os aproxima é o tema da montagem da dupla. E dançar um solo, preenchendo todos os espaços do palco, sustentando a dramaturgia da cena, também é uma inspiração. “Falamos sobre a solidão, mas não a solidão geralmente ligada à tristeza, e sim da relação de estar


DANÇA

só num determinado espaço e todas as possibilidades que esta condição oferece”, diz Lourenço. Discípulo de Henrique Schüller e também bailarino e assistente de direção do Grial, Lourenço está utilizando os princípios do Teatro Físico na montagem. Segundo ele, trata-sse de uma terminologia adotada para um teatro que busca explorar ao máximo a ação até chegar a uma construção psicológica. Essa recente estética de dança cênica requer intérpretes com liberdade de movimentos aliada a um domínio técnico do corpo. É o caso de Candido. De forma simbólica, sem utilizar códigos gestuais pré-eestabelecidos e em estado alterado de consciência, ele nos fala de experiências emotivas, cognitivas, ideológicas e espirituais. Conceitos como contenção, expansão, liberdade, dinâmica, espaço, energia e exaustão são adotados na montagem da partitura coreográfica, que também conta com o elemento da imprecisão, pois, alerta o coreógrafo, é certo que as improvisações façam parte das frases. As apresentações dos três solos acontecerão durante todo o mês de maio, às quintas-ffeiras, sempre às 20 horas, no Teatro Apolo. O espetáculo será seguido de debates, que esclarecerão a platéia sobre o processo de cada montagem e sobre os caminhos da dança no Recife. •

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Apresentações do projeto O Solo do Outro. Todas as quintas-feiras de maio (dias 06, 13, 20 e 27), às 20h, no Teatro Apolo (rua do Apolo, S/N, Bairro do Recife. Tel: (81)3224.1114)

Fotos: Hans Manteuffel

De forma simbólica, sem códigos gestuais pré-estabelecidos e em estado alterado de consciência, Kleber Candido dança a solidão

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PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Rogério Reis/Tyba

Índia Ianomami numa casa de farinha, em Maturacá, Amazonas

Comida de índio

"O homem da minha terra, para viver, basta pescar e se estiver enfadado de peixe, arma o mondé e vai dormir e sonhar... que pela manhã tem paca louçã, tatu verdadeiro ou jurupará... pra assá-lo no espeto e depois comê-lo com farinha de mandioca...” Ascenso Ferreira (“Minha Terra”)

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s nativos a chamavam de Pindorama – terra das palmeiras. “Homens andavam pela praia ... pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e as suas setas”, segundo registro de Pero Vaz de Caminha. Foram, pelos portugueses, chamados de “negros da terra”. Ou “índios” – assim como fez Colombo, ao chegar à terra que um dia seria Cuba, pensando estar no Oriente. O primeiro encontro se deu logo no dia seguinte ao da chegada. Dois tupiniquins foram levados à caravela de Cabral (ao todo eram 3 caravelas e 10 naus), “deramlhes ali de comer; pão e peixe cozido, confeito, fartes, mel e figos passados. Não queriam quase nada daquilo; se alguma coisa proContinente maio 2004

varam, logo a lançaram fora”. Eram então muitos, esses índios. Mais de 5 milhões. Hoje restam só 300 mil – mestiçados, aculturados, domesticados. Nosso litoral abrigava quase todas as mais de 900 tribos. Entre elas os Kaetés, que andavam aqui por Pernambuco, entre Itamaracá e o rio São Francisco. Estes, depois que comeram o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha e mais 91 náufragos, acabaram considerados “inimigos da civilização”, sendo todos exterminados por Mem de Sá. Dentre os muitos costumes daqui, a antropofagia foi aquele que mais horrorizou os europeus. Por compreensíveis razões. Mas nossos índios não comiam carne humana propriamente para matar a fome. Faziam-no por vingança, incorporando a alma


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dos vencidos. Para as vítimas, curiosamente, era honra morrer assim. Melhor que apodrecer no chão. Alguns esperavam anos, até cumprir seu destino, em ritual festivo descrito pelo alemão Hans Staden – ele próprio refém dos Tupinambás. Os presos eram bem alimentados e enfeitados. Ainda recebiam mulher, por companhia. Tribos amigas eram convidadas para a ceia, regada a muito cauim. O prisioneiro era banhado e depilado, pintado de preto, untado de mel e recoberto por plumas e cascas de ovos. Morria por golpe de tacape, na nuca. As velhas da tribo recolhiam o sangue, numa cuia. Para ser bebido, ainda quente, por todos. Até bebês – que sugavam o bico do seio de suas mães, untados com aquele sangue. Depois o cadáver era assado e escaldado, para permitir a raspagem da pele. Introduzia-se um bastão no ânus, impedindo a excreção. Só então era esquartejado. Miolos e vísceras iam para as crianças, em forma de mingau. Língua para os jovens. Órgãos sexuais às mulheres. O resto do corpo para os homens. Os ossos também eram aproveitados: crânio fincado em uma estaca, como troféu; tíbias transformadas em flautas e apitos; dentes usados como colar. Mas o cardápio de nossos índios ia bem além do consumo da carne humana. Era variado e rico. Aproveitavam tudo que a terra lhes podia oferecer. Viviam da caça – cágados, caititus, cobras, jabutis, jacarés, jaguatirica, lagartos, mocós, porcos-do-mato, queixadas, tamanduás, tartarugas. “Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária”, dizia Caminha. De todas essas novidades, trazidas pelo colonizador, a galinha era a menos apreciada. Com o tempo aprenderam a criá-la, é certo. Mas não para comer. Vendiam ovos e animais nos engenhos. Por muito tempo, ainda, continuaria sendo considerada iguaria de gente rica. Como se pode comprovar nessa estrofe, cantada pelo povo do Recife, falando mal da mulher do governador (1821): “ A mulher de Luis do Rego/ não comia senão galinha/; inda não era princesa/ já queria ser rainha.” Apreciavam outras aves – acauã, araponga, arapuá, canindé, curió, graúna, jaçanã, jacu, jandaia, maguari, maracanã, patativa, paturi. “Algumas maiores que as comuns em Portugal”. E também insetos – besouros, cupins amarelos, gafanhotos, larvas, tanajuras e tapurus. Viviam também da pesca - baiacu, beijupirá, camurim, caramuru, curimã, jaú, lambari, piaba, piranha, parati, saúna, surubim, tambaqui, traíra, tucunaré. Além do pirarucu, com língua que usavam para ralar guaraná. E mais amêijoas, camarão, cernambis, mexilhões, ostras, pitus. Como tempero, pimenta – de todos os cheiros, cores e sabores. Às vezes pura. Às

vezes numa mistura salgada a que chamavam ionquet – colocada diretamente na boca, junto às carnes. Raramente cozinhavam os alimentos na água. Quando o faziam, usavam vasilhames de cerâmica. Não conheciam fritura – técnica aprendida só bem depois, com os portugueses, que usavam para isso gordura animal e óleos vegetais (de oliva). Costumavam assar as carnes no moquém – espetos paralelos, sobre a brasa, precursores dos churrascos de hoje. A prática foi assim descrita por Jean de Lery, um viajante do século 16 – “enterram profundamente no chão quatro forquilhas de pau, enquadradas à distancia de três pés e à altura de dois pés e meio; sobre elas assentam varas com uma polegada ou dois dedos de distância uma da outra, formando uma grelha de madeira”. A função primeira do moquém não era o preparo, para consumo imediato da carne. Mas sua conservação. “Equiparava-se ao fumeiro europeu”, comparou Cascudo. Esse uso difundiu-se inclusive entre piratas, que o preparavam nas praias de desembarque. Principalmente franceses, que chamavam esse moquém de bouquen. Eram, por isso, conhecidos por boucaniers. Não por acaso sendo “bucaneiro”, nos dicionários, o mesmo que pirata. Alimentavam-se também de amendoim, batatas-doce, cará branco, cará roxo, ervas, feijão, inhame, jerimum, palmito. Além de milho – consumido assado, cozido, em mingaus, transformado em fubá ou sob a forma de bebida. E, sobretudo, muita mandioca. Como farinha pura, pilada com carne ou peixe (paçoca), frutas, vegetais; ainda como pirão, mingau, tapioca, beiju e bebidas alcoólicas. Quando se mudavam, pelo cansaço das terras ou pela proximidade do inimigo, todo o mandiocal era então transformado em farinha e levado, na viagem, entre os bens mais preciosos da tribo. Folhas não apreciavam. A essas folhas chamavam “cumbari”, comida de brincadeira – leve, sem sabor, sem sustança. Viviam em territórios razoavelmente determinados. Não se deslocavam à procura de alimentos, salvo raríssimas exceções – como o caju, disputado em cada safra por todas as praias do nordeste. Colhiam frutas, mas não as plantavam. Eram muitas – abacate, abacaxi, abajeru, açaí, abiu, ananás, amaitim, bacaba, biriba, camboim, cambucá, cucura, cumã ou sorva, curuiri, guti, guajiri, ingá, inajá, japurá, jataí, jatobá, matapi, murici, piquiá, pupunha, tucumã, ucuqui, ubaia, umari. Bananas pacovas também – cruas, assadas ou sob a forma de mingaus. Doce, na cultura do índio, era o mel de abelha. Consumido puro, como simples gulodice. Ou misturado a raízes e frutas, no preparo de bebidas fermentadas – como alué, açuí e tiquira. Além do cauim, claro. Continente maio 2004


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SABORES PERNAMBUCANOS

Cozinhar era tarefa da mulher índia. Preparavam a massa e a farinha de mandioca. Mastigavam as raízes para fabricação de bebidas. Fabricavam também os instrumentos usados na cozinha – alguiares, cabaças de beber água, cerâmicas, cuias, pilão. Usavam fibras – algodão, piaçava, tucum. Para fabricação de cestos, urupemas, balaios e esteiras. Tudo acabou, depois, incorporado à cozinha do colonizador. Cuidavam ainda da lavoura, dos filhos e dos adornos. Além de suprir a casa de água e transportar fardos, usando o aturá – cesto comprido, seguro das costas à testa por uma facha de embira. Vem daí o verbo “aturar”. Aos homens cabia caça, pesca, defesa da tribo contra os inimigos e construção de habitações – tarefa nada modesta, dadas as grandes dimensões de cada oca, destinadas a abrigar de 85 a 140 pessoas. Além de acender o fogo pela fricção de varas – que o choque pelo sílex veio só depois, com os portugueses. Esse fogo era usado no preparo da comida. Mas, também, como instrumento de defesa e aquecimento da oca. O cronista franciscano Frei Vicente do Salvador escreveu: “a noite toda têm fogo para se aquentar, porque dormem em redes no ar e não têm cobertores nem vestido, mas dormem nus, marido e mulher na mesma rede, cada um com os pés para a cabeça do outro...”. Rede foi nome dado pelo português à “ini”ou “quisaua”. Dos hábitos indígenas, deitar nessas redes foi, talvez, o costume que mais se arraigou a nossa cultura. Fabricavam ainda tintas. De várias cores – branco, tirado da tabatinga; preto, de jenipapo; amarelo, de tatajuba; encarnado, de araribá, urucu e pau-brasil. A esses índios devemos muito. Um pedaço de nossa maneira de ser. De nosso temperamento. De nossos hábitos alimentares. De nossa música. Os negros utilizavam sobretudo tambores – tinham obsessão por percussão, mas a música do índio era sofisticada, feita de maracás, flautas e tambores. Depois incorporaram violão e pandeiro. Segundo Bernardo Alves (A Pré-História do Samba), o próprio samba nasceu na nação cariri, e não nas senzalas – como reza a tradição. E aqui mesmo, no Nordeste, longe do Rio de Janeiro. Esse debate vai longe. De lamentar, apenas, que a história brasileira não celebre nenhum herói indígena. Nem mesmo personagens especialmente notáveis – como o tupiniquim Tibiriçá, que ajudou o colonizador na formação de São Paulo (1562); o temiminó Araribóia, que ajudou a vencer os franceses de Villegaignon (1567), no Rio; ou o potiguar Felipe Camarão, que contribuiu para derrotar os holandeses de Nassau (1649), em Pernambuco. Santo de casa não faz mesmo milagres. Continente maio 2004

Leo Caldas/Titular/Cortesia do restaurante Parraxaxá

RECEITA: PAÇOCA DE CHARQUE INGREDIENTES: 1 kg de charque (demolhada durante 12 horas), 250 gr de farinha de mandioca, 3 colheres de sopa de manteiga, 2 cebolas (cortadas em rodelas bem finas). PREPARO: Pise a carne e a farinha, no pilão, até que estejam bem trituradas. Em uma panela, no fogo, derreta a manteiga, doure a cebola e junte a carne pilada. Sirva acompanhada de banana-prata frita e batata-doce.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 53 Joel Silveira

Meu encontro com Getúlio Vargas

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uem, em abril de 1954, me levou até a sala, no andar térreo do Catete, onde Getúlio Vargas me esperava? Não posso me lembrar ao certo. Mas recordo perfeitamente que quem me apresentou Getúlio, naquele fim de tarde, fê-lo com estas palavras: – Aqui está o homem, Presidente. Era a primeira vez que eu via Vargas assim tão de perto. “Como é pequeno”, disse comigo mesmo, enquanto estirava a mão, à procura da outra que ele me estendia – uma mão delicada, quase feminina, de unhas bem tratadas. – Muito prazer em conhecê-lo, Dr.Silveira. Não o imaginava tão moço. O meio-sorriso abria-se na fisionomia tão conhecida, mostrando um pouco dos dentes muito brancos. Brancura, limpeza: tal a impressão que tive de Getúlio Vargas naquela primeira vez – que seria também a última – em que eu me encontrava com ele para um diálogo que imaginara pudesse se prolongar por uma hora, mas que iria demorar apenas alguns minutos – cinco ou dez. Terno de linho de uma brancura imaculada; a camisa de linho, cujos punhos, regiamente engomados, sobravam além das mangas do paletó. De que cor era a gravata? Também aqui minha memória claudica, mas lá no fundo da lembrança se denuncia um azul claro, listras brancas e estreitas. Eu disse: – Bem, Presidente, não quero tomar mais o tempo de Vossa Excelência (por que Presidente da República tem de ser Excelência – serão todos obrigatoriamente excelentes?), que sei precioso (Oh! A imbatível inclemência dos lugares comuns!). Estou aqui como jornalista, trouxe um questionário (tirei o papel do bolso, fiz intenção de entregá-lo), gostaria que Vossa Excelência res-

pondesse a estas perguntas... O desastre! Uma nuvem sombria – de um cinzento bilioso – escondeu o róseo das faces, a mão pequena repeliu a folha de papel como se quisesse afastar para o mais longe possível algo extremamente repugnante, e a voz mansa se encrespou, tornou-se rascante, fria como gelo, dura e fria como gelo – e, dura e fria e cortante, bateu-me no rosto e nos ouvidos com toda a fúria de uma chicotada: – O senhor deixe o papel com o Dr.Lourival. Ele lhe telefonará depois. E o homenzinho levantou-se, esmagou no cinzeiro de cristal o que restava do charuto e desapareceu por uma porta ao lado, que bateu com força. Nem ao menos me estirou a mão – apenas a chicotada – e como doeu! E como ainda dói! Voltei ao boteco, lá fiquei horas amargando o fel da derrota, alisando a cara onde o chicote acertara em cheio e depois de las seis de la tarde vieram as sete, as oito e já quase media noche, luna, lunera, quando entrei, trôpego e chicoteado, no Danúbio Azul, na Lapa, onde, horas depois, iria me encontrar, anuviado e enxovalhado, uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas, desde que existem mundo e manhãs de abril. •

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Compositor e maestro, que estaria com 90 anos agora, teve experiência marcante no Recife dos anos 50, onde absorveu “o impacto da cultura espontânea do povo” Jarbas Maciel

GUERRA PEIXE

Do dodecafonismo ao maracatu

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Recife de nossa “era de ouro do Rádio” era uma cidade extremamente simpática, bem equipada, em franco progresso, apesar dos anos de chumbo da primeira metade dos anos 40 do século passado. O Recife que mereceu as deliciosas crônicas de Eustórgio Wanderley, em seu Tipos Populares do Recife Antigo, e que abrigava impressionante plêiade de intelectuais, jornalistas e artistas – homens da estirpe de Mário Melo, Gilberto Freyre, Samuel Campelo, Waldemar de Oliveira, Ernani Braga, Nelson Ferreira, Vicente Fittipaldi, Mauro Mota e tantos e tantos outros. Aliás, a vida cultural do Recife já era pujante e variada desde os anos 30. O Grupo Gente Nossa, de onde Waldemar de Oliveira partiria para formar o Teatro de Amadores na década seguinte, é de 1931. A Orquestra Sinfônica do Recife (por sinal a mais antiga do Brasil) tinha sido fundada pelo maestro Fittipaldi um ano antes. A Sociedade de Cultura Musical, também criação de Waldemar de Oliveira, junto com Ernesto Odenheim, é de 1932 . Mas, por que a referência à nossa “era de ouro do Rádio”? Por dois motivos: primeiro, porque o Recife nos anos 40 já havia sedimentado uma importante experiência no campo da radiodifusão, graças à Rádio Clube de Pernambuco, que impulsionava a

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Arquivo/O Globo

música, o teatro “cego” (com suas novelas) e outras expressões artísticas e culturais; e segundo, porque foi graças à criação, pelo Dr. F. Pessoa de Queiroz, de uma nova estação de rádio – a Rádio Jornal do Commercio – que o Recife experimentou uma nova renascença artística, particularmente no campo da música, tanto erudita como popular. Quando o maestro Guerra Peixe, pressionado pelo sucesso que sua música fazia lá fora, teve finalmente de optar entre um convite do maestro Hermann Scherchen para que fosse residir na Europa, de um lado, e a possibilidade de conviver com a imensa riqueza folclórica de Pernambuco – que ele havia conhecido numa viagem incidental ao Recife em 1949 –, não pensou duas vezes e assinou contrato como orquestrador e compositor com a nova emissora. Músicos de primeira linha, vindos do eixo Rio-São Paulo e da

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Itália, foram contratados. Alguns apenas voltaram, como foi o caso do violinista, arranjador e compositor Benny Wolkoff; ou de Teófilo de Barros, futuro diretor artístico da poderosa estação que procurava se impor diante da comunidade radiofônica nacional com sua famosa divisa “Pernambuco falando para o mundo!”. O impacto que a criação da nova emissora teve sobre a paisagem cultural do Recife foi enorme – somente comparável ao impressionante descaso com que nossa cidade tem tratado algumas de nossas melhores iniciativas ao longo dessas últimas décadas. Se não, vejamos. Enquanto tudo isso acontecia, iniciativas notáveis eram tomadas na Prefeitura, com a presença de figuras importantíssimas, como as de Hermilo Borba Filho e Césio Regueira Costa. Por exemplo, foi organizada uma Diretoria de Documentação e Cultura, a célebre DDC, que fez implantar um moderníssimo serviço de biblioteca e discoteca, onde minha geração pôde escutar quase todo o repertório da chamada música erudita, em cabines sonorizadas e aclimatadas, com a melhor tecnologia Philips da época. Tudo isso se perdeu, foi jogado fora. Em 1968, estando eu trabalhando de noite na redação da Rádio Universitária, recebi o aviso de que havia um caminhão da Prefeitura com uma carga de material “imprestável” que deveríamos receber. Era parte do acervo da DDC – ou melhor, os restos mortais do que três décadas antes fora motivo de orgulho da cidade e uma enorme, uma incalculável contribuição ao desenvolvimento da cultura de gerações de pernambucanos e nordestinos. Mas o grande impacto, mesmo, foi a vinda do maestro Cesar Guerra Peixe, um dos maiores músicos deste país, já naquela época compositor de expressão internacional, detentor de uma técnica de orquestração incomparável a que ele aliava uma compreensão profunda da música brasileira tanto erudita como popular. A esse cabedal ele iria acrescentar, no Recife, o conhecimento in loco das manifestações folclóricas que tanto o impressionaram. “Em 1949 larguei o dodecafonismo Continente maio 2004


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Sua passagem por aqui provocou dois impactos: o de Pernambuco sobre o compositor, através do seu rico substrato folclórico; e o do maestro sobre Pernambuco – na realidade, sobre o Nordeste

(...) ao impacto da cultura espontânea do povo do Recife, da sua força nativa, às vezes até agressiva”, escreveu; “foi uma emoção espetacular, diante dessa riqueza regional de Pernambuco!”. Aqui, nos quatro anos em que permaneceu na Rádio Jornal, ele recolheu abundante material folclórico, com destaque especial para os maracatus e os toques e toadas dos terreiros de xangô. Sobre os primeiros, publicou uma excelente monografia, Maracatus do Recife, em l955. Sobre os segundos – um formidável acervo, pesquisado em longo e íntimo contato com os melhores tamborileiros de nossos terreiros –, não chegou a publicar nada. Um desses tamborileiros, o negro Gobá, ensinou-lhe não somente dezenas de toques diferentes, mas centenas de variações atreladas aos rituais e à teogonia complexa que se desenvolve nos terreiros de xangô. Guerra logo descobriu as relações implícitas, invisíveis, entre os rituais de xangô e esse grande ritual que é o maracatu, uma procissão para celebrar a coroação de um rei negro apenas disfarçada de folguedo popular no Carnaval recifense. Gobá era descendente direto de uma figura lendária do Maracatu Elefante, de Dona Santa – uma figura não menos impressionante –, um dos primeiros negros escravos que puseram os pés em Pernambuco. Chamava-se Costa Véia. É engraçado, olhando para esses tempos em persContinente maio 2004

pectiva, percebemos que há aí, na verdade, dois impactos: o de Pernambuco sobre o maestro Guerra, através do seu rico substrato folclórico; e o de Guerra sobre Pernambuco – na realidade, sobre o Nordeste. Gilberto Freyre percebeu bem o que estava ocorrendo, quando chamou Guerra Peixe de “um sulista nordestinizado”. Guerra foi o professor de Sivuca, Capiba e Clóvis Pereira – um trio por todos os títulos respeitável. Naquele momento, Luiz Gonzaga começava a se destacar como o menestrel da veia nordestina de nossa música popular. Sivuca disparava nas paradas de sucesso como instrumentista genial. Tudo isso ocorria defronte dos microfones das emissoras de rádio, primeiramente; só depois nos microfones das gravadoras. Foi com Nelson Ferreira que Sivuca começou. Foi nos ensaios e nas apresentações no auditório da Rádio Jornal, como percusionista da Jazz Paraguari, que Jackson do Pandeiro começou. O maestro Clóvis Pereira ainda hoje tem esta dúvida: se foi Guerra quem nos influenciou mais, ou se não teria sido Sivuca, com seu extraordinário toque de sanfona; ou Luiz Gonzaga, com a força de seu cancioneiro; ou ainda Jackson do Pandeiro – os que mais influenciaram Guerra em sua música do período da maturidade. Guerra Peixe já ensaiava as suas primeiras composições, quando adolescente, em Petrópolis. Nessa épo-


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ca, tomava lições de violino com Gao Omach, no Conservatório de Santa Cecília. No início da década de 30 mudou-se para o Rio, onde fazia parte de conjuntos instrumentais dos cafés-concerto, confeitarias e salões. Compunha então música popular. Ao findar a década, estudou harmonia, contraponto e composição com Newton Pádua, no Conservatório Brasileiro de Música. No início da década de 40 conheceu H.J. Koellreutter, que trouxe para o Brasil a chamada técnica dos doze sons (dodecafonismo), um tipo de música que rompe com o conceito de tonalidade. Até então, as suas peças eram compostas dentro do modelo clássico, com melodia construída em cima de temas brasileiros, como em sua “Suíte Infantil no 1”. Sua primeira composição dodecafônica foi a “Sonatina para flauta e clarineta”, uma obra a bem dizer “ideológica”, porque sua intenção era fortemente antinacionalista. Seu “Noneto” e sua “Sinfonia no 1” são também dodecafônicas. Foram estas peças que, executadas pela Orquestra da BBC de Londres e por várias outras orquestras continentais, entusiasmaram o maestro Hermann Scherchen, que queria Guerra Peixe na Europa. Guerra deixou o Recife em 1953. Em 1954, compunha sua “Suíte Nordestina no 2”, obra em que buscava “uma identificação tão fiel quanto possível entre a minha música e as fontes”, em suas próprias palavras. É uma obra séria, densa, premiada no Concurso Comemorativo do 150o Aniversário da Editora G. Ricordi & Cia., de Milão, de 1958. Em 1972 compôs seu “Concertino para Violino e Orquestra de Câmara”, em três movimentos. De volta ao Rio, Guerra Peixe passou a integrar como violinista a Orquestra Sinfônica Nacional, ensinando composição no Semi-

nário de Música PróArte e na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais. Faleceu no Rio, em 26 de novembro de 1993. Quando garoto ainda, aprendi com o maestro Guerra Peixe não somente harmonia e composição, mas aprendi acima de tudo a pensar o Brasil primeiramente musical, depois cultural, em geral – histórico, literário, o Brasil da Semana de Arte Moderna, o Brasil de Mario de Andrade, de Jorge de Lima e dos grandes mestres do Romance Nordestino. Suas aulas eram aos domingos: começavam às 9 da manhã e não tinham hora para terminar. E vai aqui um detalhe impressionante: ele não cobrava absolutamente nada. Em compensação, reservava-se o direito de escolher os seus alunos, uma prática que lhe rendeu não poucos ressentimentos: ele só teve aqui quatro alunos. Foi meu primeiro professor de sociologia brasileira: fez-me mergulhar na leitura do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre e na obra de interpretação de Mario de Andrade. Foi meu primeiro professor de Estética (e não só Estética musical). Foi meu primeiro professor, enfim, dessa ciência e dessa arte difícil que é a arte e a ciência da simplicidade. Quando ele foi embora, em 1952, ficamos todos órfãos. Clóvis segurou a chama o quanto pôde – e, com seu grande talento, jamais desmereceu o mestre que teve – , até que, com os anos 60, veio a televisão e a velha e grande emissora entrou em decadência. Todos ficamos marcados, de um modo ou de outro, inclusive o Recife, pelo gênio desse homem extraordinário que foi o maestro Guerra Peixe. Que Deus o tenha em boa conta. •

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Duke Ellington 1899 – 1974 Há exatos 30 anos, o jazz perdeu Duke Ellington, que era capaz de, em cima de improvisos de poucos compassos, construir uma composição completa Sebastião Vila Nova

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uando se fala de Duke Ellington, lembra-se logo de “Sophistcated Lady” e de “Solitude”. Foi bem um autêntico músico de jazz, como nos seus primeiros tempos, quando tocava blues. No início, estudou pintura, mas o chamado da música foi mais forte, e foi aí que ele revelou sua verdadeira vocação. Nos primeiros anos de sua carreira tocava blues e o seu modo de executar o piano era calcado no ragtime, incitando o notável modo de tocar de Luckey Roberts, levantando espetacularmente as mãos. Não havia recebido senão algumas aulas de piano, ministradas por sua mãe, as quais começaram quando ele contava sete anos, e algumas instruções de música por Henry Grant, professor do liceu. Sua primeira melodia surgiu no Poodle Dog Café, onde compôs “The Soda Fountain Pag”. Em 1923, tocou em Nova York, seu primeiro contrato, levado pelas mãos da cantora e mestre-de-cerimônias Ada Smith, em um night club. Sob o nome de Duke Ellington and his Cotton Club Orchestra Whoopee Maker, Harlem Footwarmers, Six Jolly Jerters, Ten Belack Berrier e apenas Duke Ellington and his Orchestra. A orquestra gravou entre 1927 e 1932. Atravessou os anos negros da depressão dos anos 30 tirando proveito do swing, apesar de já ser reconhecido na época como um músico sério. Como composi-

tor de valor, em dezembro de 1927, entrou com sua orquestra no Cotton Club. No início engajou-se em pequenas orquestras em Washington, tocando principalmente nas orquestras Lewis Thomas, Daniel Dog e Oliver Perry. Começou então a formar seu próprio conjunto. Seus músicos inicialmente foram: Tolby Hardwick, Whetsel, Snowden, três irmãos chamados Miller, bem como o baterista chamado Willie Greer. Sua melhor cantora foi Juy Anderson, que foi introduzida no grupo em 1931, tendo deixado em 1942, por problemas de saúde, asma. Seus solistas eram de tal modo integrados que traziam frases curtas de dois a oito compassos em torno dos quais Duke escrevia uma composição completa, como por exemplo, a célebre “Sophistcated Lady”, canção de Tolby Hardwick. Duke transformou 32 compassos num espetacular sucesso. Em 1933, fez sua primeira viagem, com sua orquestra, passando pela Inglaterra e com uma breve estadia em Paris. No outono do mesmo ano, Duke levou sua orquestra para o sul dos Estados Unidos. Em Hollywood, fez filmes para a Paramount, para tocar sua música na Sebastian Cotton Club. Em Chicago, gravou “Day Break” e outra de suas gravações: “Solitude”, surgida depois de “Sophistcated Lady”, à qual se nivelava em sucesso. Em 1955, atinge o clímax de sua primeira década de gravação com dois discos de uma composição em quatro partes, “Remiwishing in Tempo”. •

Divulgação

Atravessou os anos negros da depressão dos anos 30 tirando proveito do swing, apesar de já ser reconhecido na época como um músico sério


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Academia grande, grande Academia Marcos Vinicios Vilaça

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Marco Maciel, em arte de Zenival

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is uma pessoa quase sobrenatural... não podia defini-lo melhor já que se move e fala constantemente. É monstruosamente alto e magro... um ar cavaleiresco de D. Quixote, qualquer coisa de apostólico...sempre transbordante de vida e sempre a contar histórias interessantes...”. Dá para pensar ser um desenho de Marco Maciel, mas não é. Trata-se de Bernard Shaw, visto por Bertold Brecht. Depois de Brecht, Mario Vargas Llosa principia a Guerra do Fim do Mundo, a saga de Canudos, com esta frase: “O homem era alto e tão magro que parecia sempre de perfil”. Não parece Marco Maciel? É que Marco Maciel é magro como relíquia de sacrário. Magro e alto. O novo acadêmico chegou à Academia Brasileira de Letras, alto e magro, mas não de perfil. Entrou de frente, sob o pálio de valores fundamentais à convivência em nossa Casa: brasileiro, serviços à cultura, produção intelectual, honradez irretocável, grande vida de político. Ressalto a sua vertente de político, recordando Carnelutti, uma das leituras indispensáveis dos nossos tempos da Faculdade de Direito, que disse assim: “Admiro os políticos porque escolheram como profissão conviver com gente”. Não causaria nenhum mal se este fosse o seu único título. Ali, nunca deixamos de ter a grande cota de políticos. Todos, como no caso dele, de densa vida dedicada à letras. A Política é a sua vocação. Jorge Semprun conta que na admissão aos horrores de Bunchenwald indagava-se da profissão, mas profissão no sentido burocrático de produzir algo material para o campo de concentração. Quando disse: “Sou filósofo”, a reação foi braba. Isto não é profissão, rebateu a voz de censura. Retrucou Semprun: “Pode não ser profissão, mas é vocação”. No caso de Marco Maciel poderia ter proclamado no pórtico acadêmico compromissos com a vida pública como a sua grande vocação. Seria bem aceito. Academia não é política mas não é apolítica, nem politófoba. A instituição estaria desinteressada dela própria se estivesse desinteressada do destino da Pátria. A Academia é um espaço de liberdade e convívio. E de solidariedade. Tanto que, passada a eleição, queimadas as cédulas, todos se proclamam eleitos por unanimidade. É de tradição. Dizemo-lo alto e bom som. Ali, só se fala baixinho quando a gente escreve. Aí sim, a gente fala baixinho. Como a modéstia é título que lhe cai muito bem, Marco Maciel deve ter se sentido confortável. Daquele ambão não toleramos exibicionismos mas estimamos testemunhos de humildade, naquela mesma moldura doutrinada na Sétima Regra de S. Bento, que ouvimos dos monges, nos serros libertários da nossa Olinda, Olindíssima. Se há cidades orais, Lisboa, do fado; Buenos Aires, do tango; o Rio, do samba;


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o Recife e Olinda são do frevo. Ao lado dessas oralidades musicais, nós sempre ouvimos ali a oralidade cívica das idéias libertárias. Grande entre nós, ninguém. Grande é a Academia. Gosto de contar e vou contar novamente. Quando esse suave e convergente homem público, esse poeta que parece vem sendo superado pelo romancista e pelo cronista, nosso José Sarney foi eleito para a Academia, teve o cuidado, neto carinhoso, de avisar ao avô, lá nas lonjuras maranhenses. O velho chamou o fogueteiro e deu-lhe ordem: solte uma dúzia de rojões. Juntou gente à porta, naquela ruazinha da cidade de Pinheiro, a indagar: ‘Seu Assuero que comemoração é essa?”. E ele: “Meu neto José foi eleito para a Academia”. E todo mundo: “O que é que é Academia?”. Assuero ensinou: “Não sei. Só sei que é coisa grande”. Está explicado. Só a Academia é grande. Reconheço no confrade recentemente empossado o apetite preferencial pela ação pública, até mesmo porque do outro apetite não há nada a se registrar. Esta não é uma gloríola. Procede alardear-lhe vitórias, tenacidade, noites indormidas, auxiliares exaustos e desnutridos, modernidade no jeito de administrar, propostas bem maturadas. Tudo misturado adequadamente. Bergson lembra que o intelectual na política realiza-se em homem completo, aliando o pensamento à ação e Max Weber arremata que a Política exige paixão, senso de responsabilidade e senso de proporção. Bergson e Weber sobram em Marco Maciel. A leitura dos discursos, conferências e livros que nos oferece mostra a sua superfície e o seu símbolo, a ética. Marco-Aurélio de Alcântara, aplicou-lhe com propriedade, o conceito do ensaísta português Luís Bliroco: “Política não se faz sem pessoas, mas as pessoas de nada valem em Política se não se batem por idéias”. Com isto não quero dizer que Marco Maciel descarte o pragmático. Isto, nunca. São clássicos dois bordões das conversas: “Quem tem prazo não tem pressa”; “Fique atento, pode acontecer tudo, inclusive nada”. Com tiradas desse tipo o novo acadêmico alinha-se a Machado de Assis. O Bruxo sentenciou: “O imprevisto é espécie de Deus avulso que pode ser voto decisivo na assembléia dos acontecimentos”. Luis Otávio Cavalcanti observa do modo perdulário com que Marco Maciel gasta silêncio, sem deixar de ser um crente na alquimia da conversa. Integra, entre os pernambucanos, a cota dos moderados na política, porque também temos os de pavio curto. Ou mesmo sem pavio. Ele é como que a versão moderna do Marquês de Olinda, para quem

Câmara Cascudo reservava essa observação: “Araújo Lima não acelera, não retrograda, mas também não pára”. Por isso, o estilo de Marco Maciel não tem nada de Opus Dei e tudo de opus by day and by night. Por outro lado, a tradição pernambucana é a dos intelectuais engajados na política, de que Nabuco é o exemplo básico. Como Nabuco, Marco Maciel chegou à Academia sem trazer da Política nenhuma decepção, nenhum amargor, nenhum ressentimento. K. Mehnert, numa verdadeira contramão, argumenta que o intelectual nunca deveria meter-se em política, já que lhe faltam senso de oportunidade e capacidade de tomar decisões. Bobbio diz diferente: “Na medida em que se faz político, o intelectual trai a cultura; na medida em que se recusa a fazer-se político, inutiliza-a. Ou traidor ou inutilizador”. Gustavo Krause aprendeu muito bem o pensamento de Bobbio de superação do dilema, pois o que há nisto é distinção e integração recíproca, portadora de uma força não-política, uma força moral, sobre a qual repousa a missão política do homem de cultura. O intelectual é espectador ativo da cena cultural, conseqüentemente, apto a perceber que o ato público abrange raio muito mais amplo do que o ato meramente intelectual. A convivência da política com a atividade do intelectual esplende na Casa. Machado de Assis afirmou: “Na Academia (a política) é o sentimento mais ativo de todos e a ABL, graças ao seu quociente de mortos, jamais foi uma academia morta. Os abençoados mortos deram-lhe a mais preciosa das vidas – a vida eleitoral”. A política concedeu a Marco Maciel, assim como a muitos dos nossos confrades, a boa oportunidade de ouvir o povo, conhecer-lhe as agruras, acumular experiências. Esse cabedal apresenta-se nos seus textos onde o político não apenas reclama direitos, mas assume responsabilidades. Ao se sentar neste cadeiral, José Sarney perguntou: “A ação política não é, em grande parte, tanto a que se diz e a que se cala, como a que se ouve e a que se guarda; a que se imagina ter sido silenciada como principalmente a que se cumpre?”. Foi muito bom que Marco Maciel buscasse a nossa companhia. Era natural que o escritor, o professor universitário, o conferencista, o pensador, conhecesse saudações de chegança em mais uma academia, pois já as ouviu ao ser introduzido na Academia Pernambucana de Letras. Naquela ocasião, escutou de um confrade este prognóstico: “Foi natural que integre a Academia, a Pernambucana. Isso, por enquanto”. Pois bem, o “por enquanto” acabou. Marco Maciel chegou à Academia Brasileira. • Continente maio 2004


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O mundo contra a Razão Neste início de século, são cada vez mais freqüentes as críticas à Razão. Um neoromantismo ubíquo alastra-se de vanguardas artísticas a novelas da rede Globo, de movimentos humanitários a discursos de George W. Bush, alimentando uma onda de anti-racionalismo Zenival

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Daniel Piza


ESPECIAL 63 »

H

á uma canção de Arnaldo Antunes que começa assim: “As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, forma, cor, textura” – e segue enumerando características que nós humanos, com nossos nomes, batizamos tudo. Os últimos substantivos fogem da materialidade: “preço, destino, idade, sentido”. Até a conclusão: “As coisas não têm paz”. Pode não parecer, mas essa é uma posição que só vem crescendo nas últimas décadas. Em muitas bienais de arte contemporânea, por exemplo, é comum ver instalações e vídeos que denunciam essa mania humana de classificar, decodificar e qualificar o que vê. Das medições concretas de peso e tamanho até as atribuições subjetivas de valor e sentido, a mente parece querer o domínio total da realidade, o controle pleno da natureza, o conhecimento que Fausto barganhou com Mefistófeles. E paga um preço alto por esse orgulho, por essa hubris (termo grego para o pecado humano de desafiar os deuses), por essa pretensão totalizante. O preço é a inquietude permanente, a ausência de paz, a recorrência do conflito, a ansiedade por uma serenidade que nunca vem. A partir especialmente do Renascimento, segundo esses artistas da nossa chamada pós-modernidade, o ser humano arrogou a si o direito divino de medir tudo, de prever tudo, de esquadrinhar a natureza até não sobrar nenhum mistério. Na verdade, a crença no “homem como medida de todas as coisas”, ilustrada por Leonardo da Vinci em seu Homem de Vitrúvio, não passaria de uma ilusão, uma arrogância da Razão a ser punida com a loucura ou a maldade, tal como nos mitos de Prometeu e Pandora. Ou basta ver qualquer filme de ação de Hollywood ou mesmo telenovelas da Rede Globo. O vilão tem sempre de ter uma aura de racionalidade, de inteligência, de fria sofisticação, antes de tropeçar em sua própria artimanha e ser liquidado pelo mocinho – o qual, ainda que tenha apanhado mais, vence ao final porque acredita no coração. Há uma explicação histórica para essa onda de neo-romantismo ou anti-racionalismo que vem ocorrendo. A Segunda Guerra Mundial foi lida por muitos como uma demonstração de que a Razão, com suas tecnologias, seria perigosa demais para não ser controlada. Essa suposta idéia do superhomem que avança acima da moral com suas formas simétricas e seus aparelhos mecânicos foi lamentada em tom apocalíptico por inúmeros escritores, que viram na apologia da técnica a voz do demônio. A transformação de uma descoberta científica como a fissão nuclear em arma de destruição em massa, despejada sobre a cabeça de milhões de japoneses em Hiroshima e Nagasaki, fez muito mal para a imagem da ciência e da tecnologia. Mesmo hoje, com o fim da Guerra Fria e o advento da Internet, rede mundial de computadores nascida das pesquisas bélicas e convertida no novo e infinito meio de comunicação planetário, há todo um discurso de temor ao racionalismo, ao uso que faz do engenho humano, como se vê na trilogia do cinema Matrix. A mesma Web tem servido para vender um discurso semi-religioso sobre uma “comunhão virtual” da humanidade, como se o cibermundo fosse um universo à parte, outra forma de existência etc. Há, enfim, o medo de que a tal razão técnica nos afaste dos afetos, tire-nos a compaixão, converta-nos em burocratas desalmados. No entanto, isso não passa de uma espécie de sentimento de Continente maio 2004


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64 ESPECIAL

Não existe uma “crise da Razão”, apenas uma crise de credibilidade da Razão. Mas o fato é que apenas a Razão, o senso crítico, pode lidar com as crises sem esperar que uma utopia se materialize, ou então o Apocalipse Reproduçaõ

Reproduçaõ

Newton: além da noção ditada pelos sentidos

Galileu: emblema de um embate histórico

culpa primordial, comum a sociedades fundadas nos mais diversos tipos de religião, que faz supor que a humanidade cometeu um pecado contra a natureza pelo simples fato de existir e precisar produzir para sobreviver. Experimentamos a maçã, gostamos e agora pagaremos. Por falar em maçãs, um dos casos históricos mais importantes para refletir sobre a questão da racionalidade é o de Isaac Newton, recentemente biografado com talento por James Gleick. Em primeiro lugar, a história da maçã caindo sobre sua cabeça e, eureca!, despertando-oo para a lei da gravidade é obviamente uma caricatura romântica. Newton realmente observava as maçãs no solo de sua propriedade, entre outras coisas, e se intrigava com o fenômeno que as fazia despencar em vez de subir. Mas isso é uma ínfima parte de todo o raciocínio e transpiração, além da imaginação e inspiração, que Newton precisou empregar para enfrentar nossa noção convencional ditada pelos sentidos (como o de que a Terra não está girando), enxergar outras escalas, desenvolver um método matemático para dar conta delas e assim erguer as bases da ciência moderna. Ao contrário dos sentimentos, o pensamento racional, consistente, não brota por geração espontânea. É verdade que racionalidade é uma coisa, racionalismo é outra. A excessiva sistematização do conhecimento termina por atingir o próprio conhecimento; a presunção de razão onipresente, infalível, não é nada razoável. Mas não se pode falar em Razão sem pressupor um trabalho de catalogação e mensuração, sem as quais não se formulam e muito menos se testam as hipóteses, nos mais diversos campos do conhecimento. Isso não é querer extinguir a subjetividade, mas atenuar seus riscos. Se você pegar outro exemplo de indivíduo que muito lutou para que a Razão pudesse pautar um pouco mais a justiça e o comportamento, Voltaire, verá que ele nada tinha de frio, desumano ou ardiloso – muito pelo contrário. Com sua mente lúcida e curiosa, Voltaire defendeu a causa da tolerância religiosa, por exemplo, como ninguém. Sempre em nome da Razão. Continente maio 2004


ESPECIAL 65 » Não são as coisas que não têm paz, é a natureza humana. E ela pode não transferir para as coisas essa sua guerra permanente, essa sua vontade de nomear todas as coisas como se pudesse encaixotá-las e congelá-las. Mas mesmo isto exige operações racionais – que não precisam ser lineares e antropocêntricas como eram antes – e eis aqui uma boa definição de modernidade. Nestes tempos em que vivemos, em que o presidente dos EUA e as telenovelas da Globo dizem que a clonagem terapêutica é perigosa porque o ser humano está brincando de ser Deus, a racionalidade e a modernidade correm risco, como se fossem responsáveis por tudo de ruim que existe no mundo. Mesmo nas atitudes mais inofensivas, como ler horóscopo enquanto se toma café da manhã, parece haver esse medo da complexidade que a ciência implica, esse desejo de que as coisas da natureza humana e inumana sejam explicadas da forma mais simples e aceitável. Só que não é assim. Mais importante ainda é desvincular essa leitura da história que diz que o excesso de ciência e a falta de religião são os males do presente. Antes de mais nada, um fator não implica o outro; uma pessoa pode ter convicções materialistas – não crer em alma, em vida após a morte etc. – e agir de acordo com valores que a religião diz prezar, como a bondade e a humildade. Além disso, muitas das principais guerras existentes no mundo atual envolvem

diferenças religiosas; e não adianta dizer que os ateus Hitler e Stalin mataram milhões de pessoas, pois é fácil demonstrar como suas ideologias tinham fundo religioso (a começar pela noção de “povo eleito”). E o grande embate histórico entre ciência e religião se deu quando a primeira desafiou a segunda; quem diz que a Razão é arrogante esquece o quanto ela precisou sofrer, especialmente a partir de Galileu, para derrubar os dogmas religiosos que impediam a liberdade até então. Sim, a ciência precisa ser monitorada, contida em seus excessos pela pressão social e pelo debate ético. Como tudo o mais nesta vida. Mas essa onda conservadora – neo-religiosa ou neo-romântica, muitas vezes escondida em rótulos de vanguarda artística ou causa humanitária – que continua a se espalhar neste início de século, condenando o ser humano por tentar interpretar as coisas ao seu redor com algum método e pragmatismo, não leva a lugar nenhum. Qualquer um de nós sabe o quanto é difícil manter a racionalidade nas variadas situações do cotidiano, e isso vale para as sociedades tanto quanto para os indivíduos. Não existe uma “crise da Razão”, apenas uma crise de credibilidade da Razão. Mas o fato é que apenas a Razão, o senso crítico, pode lidar com as crises sem esperar que uma utopia se materialize, ou então o Apocalipse. Como Newton provou, manter os pés no chão é fácil – difícil é não ver a mente flutuar para o éter. Colin McPherson/AFP

A ciência precisa ser monitorada, contida em seus excessos pela pressão social e pelo debate ético. Como tudo o mais nesta vida

Dolly: clonagem e desejo de ser Deus


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66 ESPECIAL

O declínio da Razão Os dissidentes da Razão Iluminista recusam-na como filosofia da História que ainda hoje se exerce como vontade de potência perversamente dissimulada sob o discurso aliciante da civilização/ modernização/ ocidentalização/ globalização Ciema Silva de Mello

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o lastro deixado pela abrupta dissolução da União Soviética, a queda do Muro de Berlim no já “remoto” novembro de 1989 consumou o fim da Guerra Fria, o fim do socialismo real (como se pudesse havê-lo “irreal”...) e supunha-se, àquela altura, também o fim da História nos moldes prescritos pela Razão Iluminista cuja retórica inspirada nos romanos – para os quais, vale lembrar, o fim da História significava tão- somente o domínio de Roma sobre o mundo muito embora fosse nobre, e sempre é nobre, o pretexto de salvá-lo da barbárie e do inferno – habilmente persuadiu o Ocidente a acreditá-la capaz de substituir com vantagem a religião, uma vez promovida a via ascensional da humanidade das trevas à luz, da barbárie à civilização: promovida a Redentora. Por um curto período pareceu que a Razão Iluminista ia enfim redimir-se e, apesar dos dois séculos transcorridos desde a Revolução Francesa, honrar a promessa feita em setembro de 1789, data em que a Assembléia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo artigo primeiro inaugurou irresistivelmente a Modernidade ao afirmar que “os homens nascem, e permanecem sempre, livres e iguais no que tange aos seus direitos”. Quem, se não for louco ou perverso, ainda hoje discordará da promessa inaugural da História Moderna? Por conseguinte, como permanecer indiferente à expectativa da paz e da prosperidade que, acreditava-se, fatalmente adviriam do mundo agora despolarizado, mesmo que essa indiferença no fundo só refletisse um último gesto de solidariedade ao projeto socialista fracassado pela História? Nesse clima de euforia o mundo voltou a subestimar a verdade tão superiormente demonstrada por Jacques Le Goff de que, e não obstante o empenho secular da burguesia para resolver o impasse, na prática lucro e salvação não combinam. Assim, ao invés da calmaria e da repartição de benesses esperadas do processo de globalização em curso, o que se viu foi a ressurreição, o transbordamento de nacionalidades e até de etnias julgadas extintas ou, no mínimo, seriamente descaracterizadas pelos pesados aparatos ideológicos da modernidade. Para perplexidade geral, essas nações não apenas ressurgiram, como ressurgiram “barbarizadas” à vista da violência manifestada na reapropriação de suas singularidades. Como imaginar naquele mês de novembro, em Berlim, que, em breve, a drástica re-configuração geopolítica do Leste Europeu reabilitaria guerras religiosas e tentativas de purificação étnica na esquina da União Européia, precariamente explicáveis apenas pelo fato de que ideologias – sejam quais forem – não reprimem para sempre rivalidades anteriores, latentes nas culturas sob o seu império? Onde se haveria escondido a Razão, cuja ausência proporcionou aos sérvios, croatas e bósnios matarem-se barbaramente no final do Continente maio 2004


ESPECIAL 67 Âť

Continente maio 2004


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68 ESPECIAL

Sob os escombros do World Trade Center, em pleno centro de Nova York, jaziam mortos três mil americanos civis e todas as filosofias da História! Divulgação/Record

Le Goff: lucro e salvação não combinam

Divulgação/Cia das Letras

Said: a superioridade ocidental em dúvida

século 20 e na esquina da sede do poder Iluminista? Nesse ínterim sobreveio o 11 de setembro e então... foi o fim. Sob os escombros do World Trade Center, em pleno centro de Nova York, jaziam mortos três mil americanos civis e todas as filosofias da História! Nessas circunstâncias era inevitável que o Ocidente fosse ao encalço da Razão Iluminista até encontrá-lla, acuada por seus sucessivos fracassos, voluntariamente exilada na academia sob a vigilância de suas missionárias, as ciências, então mobilizadas para empreender manobras teóricas de emergência com o fim de salvá-lla da multidão dos seus algozes. Pois como recusar a superioridade do conhecimento científico sobre os demais, cristalinamente provada desde o Teorema de Pitágoras que antes de ser descoberto já era verdadeiro? Afinal, reconheça-sse, a História presente e a futura nada poderão contra a fixidez do seu enunciado: triângulos retos não são sensíveis a guerras religiosas ou a revoluções! Será mesmo que a turbulência do momento histórico justifica cancelar a vigência do paradigma capaz de produzir conhecimento com um tal grau de verificabilidade que à semelhança improvável de uma virtude teologal se manifesta – idêntico – em todo o planeta? Como decentemente negar à Razão Iluminista o crédito da ciência? Ninguém discorda ser a razão ocidental, por enquanto, a única competente para nos revelar o que ainda nos falta saber sobre a Física molecular. Contudo, também, ninguém em sã consciência discordará que o justo – o racional – seria que todos pudéssemos partilhar igualmente dessa revelação até mesmo no sentido extremo de, se quiséssemos, prescindir dela. Tampouco se trata de negociar com o presente a repristinização da História e a título de indenizálo devolver os antibióticos, o avião, e a Internet em troca do restabelecimento de formas arcaicas hipoteticamente mais sadias, mais humanas de socialização. O que os partidários recalcitrantes da Razão Continente maio 2004


ESPECIAL 69 »

Odd Andersen / AFP

Iluminista não percebem – a rigor, fingem não perceber – é que seus dissidentes não a recusam como conhecimento puro: recusam-na, isto sim, como a filosofia da História que ainda hoje se exerce como vontade de potência perversamente dissimulada sob o discurso aliciante da civilização / modernização / ocidentalização / globalização. Perversidade nítida na ironia recente lançada à obra de Edward Said por um scholar americano: – “Mostre-me um Zulu Tolstoi!” Ora, da ausência de um Tolstoi entre os Zulu os dissidentes do Iluminismo não deduzem que eles sejam inferiores aos sofisticados leitores do romancista russo, a pretexto de favorecer a hipótese da superioridade cognitiva ocidental. Da perspectiva iluminista, a crença na unidade do Homem, correlativa da diversidade de civilizações, deixou de ser uma petição moral, pois hoje em dia unicamente procede de um tipo de racionalidade que se arvora capaz de liquidar a longo prazo as variações históricas encarnadas nas diversas culturas, as quais nada seriam além de tentativas, mais ao menos bem sucedidas, de reproduzir o modelo da Cultura vitoriosa: a ocidental. Quando na verdade, ser ocidental é apenas uma forma, entre outras igualmente possíveis, de se exercer a humanidade. Acontece que o tempo das teorias abtrusas, superiormente lógicas porém desvinculadas da realidade, acabou. Já não se admite que as ciências, e sobretudo as Ciências Humanas, a título de manterem-se neutras, permaneçam inertes diante das dificuldades e das urgências dos homens reais, os quais estiveram a um triz de ser transformados em abstrações puras para evitar os exemplos adversos à Razão Iluminista. Quem vai sucedê-la na missão de prover a humanidade do “sentido”, na ausência do qual os homens se sentem à deriva na sua existência quotidiana, ainda não se sabe. Porém, já se sabe que reconduzi-la ao poder, e permitir que ela novamente se auto-designe o “fim” da História, é temerário. Os perdedores da modernidade não esqueceram as injúrias passadas, e os vencedores andam assustados desde que se deram conta do número mortal dos seus inimigos. Seja como for, as Ciências Humanas que antes viviam ermas, desertas, devastadas pelos anos de tirania da Razão Iluminista que em seu interior só admitia o ingresso dos ocidentais, repovoaram-se: curiosamente, dessa vez os primeiros colonos a desembarcar foram os árabes...!

Bósnia: na esquina do poder iluminista


A Razão como argumento Zenival

A história demonstra que não há coisa tão reacionária como a negação da expansão do conhecimento científico. E também não há coisa mais inútil: as teorias vão se acumulando e as técnicas progredindo, enquanto a reação fica para trás Fábio Lucas

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ESPECIAL 71 »

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tentador olhar em volta e achar que nada tem sentido, e que é vão o esforço racional. Aliás, porque a Razão é também um esforço explica em parte o desejo de matá-la. A espera é longa, e a consciência da espera pode ser insuportável. Se a natureza humana é o único lugar em que o mundo existe, a Razão se torna um milagre sem serventia. Na bela imagem do filósofo Evaldo Coutinho, na morte teríamos o naufrágio absoluto: não apenas da nau da vida, mas também do oceano inteiro em que flutua. Mas mesmo que o mundo morra junto conosco, o exercício racional, para o homem, não é dispensável. Ser compreensão do ser, para usar um jargão heideggeriano, é mais do que “guardar o ser”, na definição de Heidegger – é descobri-lo, é querer ir sempre em busca de uma verdade que se intui, de antemão, inalcançável. Entre o prazer da curiosidade e a dor da angústia, entre o ímpeto de saber e o tédio de já saber (na maioria das vezes, pensar que se sabe), muitos se rendem aos argumentos falaciosos da irracionalidade, ou mergulham nas viagens alucinantes sem destino e sem sentido. Embora pareçam coisas bem distintas, Deus e o Nada podem ser vistos como bordas opostas de um círculo em que a Razão ocupa o centro. A religião é tanto uma droga quanto as drogas são religião. São tentativas de fuga com a mesma origem, apresentando soluções diferentes para o problema da existência racional. Deus – ou o caos – e o Nada vêm confortar-nos em nossa frágil condição de “caniços pensantes” num universo cada vez mais amplo e de difícil apreensão. Por que precisamos de uma explicação última para viver? Onde procurar uma razão para a Razão? Sem dúvida, Deus é a melhor saída, sendo uno, eterno, infinito, necessário, ubíquo e além de tudo, fiel. O Nada, por sua vez, é uma resposta apaziguadora. Podemos refazer a questão de Leibniz: por que o Nada e não outra coisa? Ora, tudo ao redor oprime, enquanto o Nada é libertador. Afinal, o “nada nadificante” é como um bálsamo sobre a realidade. E a vida, que é gerada, nomeada e concebida, é a perfeita oposição ao real, a toda hora pondo em xeque e em questão o que presencia num misto de choque e admiração. Viver é estarrecedor, e não há salvação – nem no vácuo de um cético ou delirante vazio – conforme o caminho que se escolha – nem no totalizante conforto religioso. Quando a Razão atinge o cume, ela é humilde. Todos os grandes pastores, poetas, filósofos e cientistas viveram, como nós, em um “circuito fechado”, na analogia do astrônomo Hubert Reeves. A Razão não pode sair de si mesma, por mais que as lições de Ghandi, os versos de Fernando Pessoa, os diálogos de Platão e a relatividade de Einstein nos convidem à transcendência. É como se a “floresta de símbolos da natureza”, de Baudelaire, nos olhasse não apenas com olhares familiares, mas com fitos desafiadores. O conhecimento, que é tanto uma defesa (“conhece-me ou te devoro”) quanto o melhor ataque (“saber é poder”), não é capaz de se libertar do círculo lógico (nem do ontológico) em que está inserido. Isso não significa, de modo algum, submissão aos padrões vigentes e nem às crendices de uma época. Pode-se queimar na fogueira para entrar na história, porém o espírito humano não consegue deixar de lutar com as perguntas da natureza, mesmo que tenha que ir à guerra contra os espíritos que se consideram, a priori, salvos. Na heresia que o levou à morte, Giordano Bruno foi provocado pelos padres: “Só Deus é infinito”, disseram. “Pois o Deus em que creio é mais poderoso que o vosso, ele criou um universo infinito”, devolveu o mártir cientista. A objetivação é um esforço, vale repetir, e tal esforço demanda a mudança na direção do olhar. É a direção do olhar que muda o mundo ou é vencido pelo cansaço do objeto contemplado. O olho que se projeta não é visão completa, mas também não é imagem descartada: o que se vê está tão dentro quanto está fora. Os prisioneiros da caverna platônica estão presos por própria vontade, enfeitiçados pela representação de um real ignorado. A corrente que nos prende está na vista, não está nos punhos Continente maio 2004


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ESPECIAL

Reprodução

Giordano Bruno: um Deus mais poderoso

Reprodução

Heidegger: inversão de fórmula

ou nos pés – não é corrente concreta, é algema abstrata. O símbolo é um desvio para longe, amiúde afasta mais que aproxima a realidade. Embora tudo que seja o caso, seja símbolo... Somos prisioneiros do imaginário. O que se tem à frente raramente é o que se tem na mente, mas pouco importa, a diferença não nos diz respeito – e se disser, não temos como expressá-lla. A filosofia é aquém e a poesia vai além do que precisamos compreender. Pois a compreensão exata não seria outra coisa senão a coincidência improvável entre o que trazemos e aquilo que levamos do tempo que é por nós, ora de bom grado, ora com desleixo, vivenciado. O ceticismo camicase que se volta contra a Razão baseia-sse talvez numa espécie aguda de enfado, produto da impaciência com as clássicas promessas de esclarecimento universal. Ocorre que o “saber é poder” de Francis Bacon há muito foi distorcido, em uma fórmula que privilegia o poder – da minoria dos que sabem sobre a maioria dos que não sabem – em detrimento do acesso democrático ao conhecimento, via expressa de qualquer utopia ou pragmática iluminista. A restrição do conhecimento para fins de dominação tecnológica é um dos alvos preferidos dos detratores da tradição científica. No entanto, a essência dessa tradição reside na convicção de indivíduos e grupos humanos que elegem como bandeira o pensamento livre, e como objetivo de vida o progresso do saber. Como no caso de Giordano Bruno, a história demonstra que não há coisa tão reacionária como a negação da expansão do conhecimento científico. E também não há coisa mais inútil: as teorias vão se acumulando e as técnicas progredindo, enquanto a reação fica para trás. Então a ciência abriu uma trilha inexorável? Parece que sim. Será que é bom ou ruim? Depende, assim como o fogo pode queimar ou aquecer. Mas antes de queimar a Razão instrumental, melhor seria levar em conta as vantagens legadas pelo instrumento da Razão. Contra a tese do fracasso das Luzes pode-sse dizer que a idéia liderada por Diderot e inspirada em Bacon jamais foi, de fato, concretizada. Ao avanço vertical do conhecimento científico não correspondeu um crescimento horizontal da potência do saber, e por isso tem-sse a impressão de que a ciência está anos-lluz adiante do conhecimento possível à maioria de nós. E contudo, embora o sonho iluminista esteja longe de ser alcançado, nunca é demais lembrar que o pouco que foi conquistado na


ESPECIAL

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Reprodução

Quando a Razão atinge o cume, ela é humilde. A Razão não pode sair de si mesma, por mais que as lições de Ghandi, os versos de Fernando Pessoa, os diálogos de Platão e a relatividade de Einstein nos convidem à transcendência

O Homem de Vitrúvio, de Leonardo da Vinci: o exercício racional não é dispensável

universalização dos valores da liberdade e dos direitos do homem se deve ao pressuposto de que é preciso conhecer para libertar, e libertar para conhecer. O que não retira consistência à sensação de que entre a mente e o que ela tem à frente há uma enorme distância. A mente e o mundo não compartilham a mesma dimensão, embora repartam o universo referenciado. E pela referência, como se sabe, pouco se descobre a respeito de tudo. Do que se mira ao que se faz, a resposta depende da direção da pergunta, e nunca se obtém a mesma resposta, porque nunca se parte de direção igual. Cada sentença provém de diferente juízo. Cada ética varia conforme a estética dominante. Cada ato reflete um íntimo atomizado. A mente é o domínio da multidão, não da massa. Impossível é massificar o infinito. A mente é o infinito, o mundo é limitado. Talvez seja, o mundo, a mente contingenciada, um pedaço ínfimo dela. Mais uma vez percebemos como os sentidos enganam: a mente não é fatia do mundo, na verdade, dáse o inverso – o que está lá fora são partes mínimas, visíveis, daquilo que carregamos aqui dentro. Que se inverta, portanto, a fórmula lingüística de Heidegger: trata-se mais precisamente, não do ser-no-mundo, mas antes, do mun-

do-no-ser. Por isso, um dia a mente poderia explicar o universo inteiro, da criação ao fim, porque é infinitamente maior, e não infinitamente menor que ele. O sonho de uma “teoria de tudo” aproxima a Razão da irracionalidade: o que sobraria para pensar? O ser cognitivo é indecifrável justamente por ser incognoscível. A ciência só frustra os que nela depositam fé irracional. A Razão é sempre fechada, o racional, sempre aberto. Há uma diferença clara de escala entre a projeção no fundo da caverna platônica e os vultos que se movem lá fora, porque os vultos não se fiam no que vêem tanto e de maneira tão crédula quanto os fiéis do conhecimento dito objetivo. A sombra se deixa ver à meia-luz, em lento movimento, como verdade provisória. A luz inteira não faz contornos: inunda, destruindo a sapiência. Para saber é preciso não saber. Quem achar que tem a luz, descubra a sombra. Quem achar que está na sombra, veja a luz que a cria. O segredo está no código, na mensagem que atravessa a ponte da fala. Toda caverna tem sua penumbra, sua mensagem. A caverna pede que tentemos decodificá-la. Esta é uma tarefa não apenas da ciência, mas de todos que não se contentam em ser escravos de um maldefinido abstrato. • Continente maio 2004


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76 FOTOGRAFIA

Homenagem a Picasso, de Geraldo de Barros, 1951. Experimentação e valorização do insólito

As metamorfoses da fotografia brasileira Livro traça o percurso da fotografia no Brasil desde 1946, reafirmando a criatividade e competência dos nossos profissionais Marco Polo

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FOTOGRAFIA 77 »

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abirintos e Identidades – Panorama da Fotografia no Brasil, do pesquisador e crítico Rubens Fernandes Junior, é um livro delicioso de ver/ler, não só pela criatividade e beleza das fotos que traz, como pela revelação do fecundo percurso que a arte fotográfica desenvolveu no Brasil, entre 1946 e 1998. A primeira parte, dedicada à década de 40, mostra Geraldo de Barros, Thomaz Farkas, José Medeiros e Pierre Verger como construtores de uma imagem identificatória do Brasil moderno e da exploração de uma sintaxe visual, seja através da documentação jornalística ou antropológica, seja através da experimentação formal. Experimentalismo este revelado nas sofisticadas composições de Barros e na angulação original de Farkas ao registrar a construção de Brasília; documentação antropológica nas elegantes imagens de índios e negros obtidas por Medeiros e Verger. As primeiras manifestações de modernidade na fotografia brasileira partem de Mario de Andrade que, entre 1923 e 1931, fez, com sua “codaque” (como chamava sua máquina), várias experimentações ousadas para a época, como o close, o corte, a figura vista de costas e a foto da sombra, por exemplo. Mas é com Geraldo de Barros – que faz a primeira mostra de fotografias num museu com o ensaio FotoFormas, no Masp, em 1950 – que o processo se radicaliza. Ele tira da foto a mera representação documental da realidade, valorizando o insólito, a partir de sobreposições, solarizações parciais e intervenção nos negativos, riscando-os, pintando-os e recortando-os. Paralelamente, na mesma época, mas dentro da ótica do fotojornalismo, outro grande nome contribuidor para o

surgimento de uma visão moderna da fotografia no Brasil foi José Medeiros, considerado pelo cineasta Glauber Rocha como o único fotógrafo capaz de captar uma “luz brasileira”. Trabalhando quase sempre para a revista O Cruzeiro, a primeira revista nacional a abrir amplos espaços para fotos, mapeou o território brasileiro em suas mais distintas manifestações: grupos indígenas, o candomblé, o futebol, a política, a praia carioca, o manicômio, o carnaval, usando a luz natural em situações espontâneas, e buscando flagrar o momento decisivo de cada acontecimento com um olhar atento e sensível. Na década de 60 o desenvolvimento da fotografia no Brasil se intensifica com a presença de diversos fotógrafos estrangeiros que aqui se estabeleceram, entre eles a inglesa Maureen Bisilliat, que realizou extensos ensaios a partir das obras de Euclides da Cunha, Jorge Amado e João Guimarães Rosa. E também a partir do trabalho de fotógrafos brasileiros, como Luis Humberto, que registrou a “estética” da ditadura militar que se instalou no país a partir de 1964, burlando a censura com uma ironia tão sutil quanto contundente. Os anos 70 e 80 marcam o surgimento de galerias, espaços institucionais, cursos e escolas, agências cooperativadas, revistas e livros de fotografias, realçando a profissionalização e intensificação da atividade fotográfica no território nacional. É neste período que surgem nomes hoje internacionais, como Mário Cravo Neto e Miguel Rio Branco, que exploram a fotografia mais como linguagem artística e conceitual, ou Pedro Vasquez, Cristiano Mascaro e Sebastião Salgado, que misturam poesia e documentação na percepção da realidade.

Índios, de José Medeiros – criador da “luz brasileira” – anos 50

Operadores de motosserra, de Marcos Santilli, 1978. Fotografia engajada não tem que ser pobre

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Maria Cristina Martins Barreto, de Gal Oppido, 1998. Retrato do habitante de SĂŁo Paulo atravĂŠs da colagem


FOTOGRAFIA

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Nos anos 70 e 80 surgem galerias, espaços institucionais, escolas, agências, revistas e livros de fotografias, assinalando a profissionalização da atividade fotográfica no Brasil

Serra Pelada, de Sebastião Salgado, 1986. Imagem como síntese da ideologia do fotógrafo

Na década de 90 e princípio do século 21, predomina a “nova fotografia”, em que já não se “tira” uma fotografia, mas se “faz” uma fotografia, a partir de interferências químicas, concretas ou eletrônicas. Nesta nova tendência, que privilegia o que poderíamos chamar de uma fotografia de invenção, estão presentes fotógrafos (ou seria melhor chamá-los artistas?), como Gal Oppido, CássioVasconcelos e Eustáquio Neves. O fato é que hoje a fotografia brasileira tem espaço garantido no mundo da visualidade internacional. Tanto que, já no final dos anos 80, diversas revistas especializadas, como a belga Clichês, a alemã European Photography, a francesa Zoom e a norte-americana Popular Photography

destacavam a excelência dos fotógrafos nacionais. O livro Labirintos e Identidades, editado pela Cosac & Naify, surgiu a partir de uma exposição organizada por Aracy Amaral para o Kunstmuseum, de Wolfburg, Alemanha, num projeto que enumerava as principais manifestações culturais do Brasil na segunda metade do século 20. Além do texto de Rubens Fernandes Júnior e da reprodução dos trabalhos dos profissionais enfocados, traz ainda uma extensa bibliografia sobre o assunto, cronologia de 1900 até 2003 dos principais eventos ligados à fotografia no país, e resumo biográfico dos participantes da mostra. • Continente maio 2004


80 REGISTRO Divulgação

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Entre o primeiro drible e o derradeiro trago, Garrincha foi do sonho ao pesadelo como o herói que tudo ultrapassa, até a medida humana Ricardo Oiticica

Mané Arlequim, Mané Pierrô

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ara João Cabral, juvenil do Sport Club Recife, futebol é “dar aos pés astúcias de mãos”. Talvez por isso o Football Association, de 1863, tenha se desligado do rugby logo após a famosa teoria de Darwin: a evolução da espécie tem que ir da cabeça aos pés. O rugby é o arranco de um primata com uma pedra lascada na mão. Já o futebol é a invenção da roda. Os braços a serviço do equilíbrio. Os pés, da escritura: um G que chuta um O dentro do L, como no poema de Vinícius. Não é outro o sentido da gíria “caneta” para as pernas do jogador. Com as suas, o maior driblador do mundo escreveu certo por linhas tortas. É tão torto o destino de Garrincha que o ano de 2003 passou de passagem, sem ninguém lembrar os 70 anos de nascimento e os 20 da morte do “Anjo das pernas tortas”. Tem origem atávica a popularidade do futebol: o craque é o triunfo do bípede, sua melhor expressão. Quem realizou o sonho do pithecanthropus erectus? Ademir, Didi, Falcão – toda essa raça que joga de cabeça em pé. E o sonho do homo habilis? Zico, Zizinho, Tostão. Finalmente, na cadeia evolutiva, o homem que sabe tudo: Pelé. Darwin à parte, Deus criou o craque a sua imagem e semelhança. E descansou no domingo para vê-lo jogar. Eu vi Garrincha jogar. Ele entortava. Aí está sua identificação profunda com o torcedor. Etimologicamente, o torcedor é aquele que se torce com as jogadas. E ninguém fez ninguém se torcer tanto. Torcia ao marcador, torcia ao torcedor, torcia até a si mesmo. Se alguém quiser entender a doce redundância do seu drible, sempre para o mesmo lado, basta ouvir o locutor de futebol Ari Barroso – “ah, esse coqueiro que dá coco”. E se quiser entender os obstáculos de sua vida, ouça o antigo hóspede do joga-

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Mané: como num filme de Chaplin Na página seguinte, última aparição pública, no carro alegórico da Mangueira, no carnaval de 1980


REGISTRO 81 dor Falcão no Hotel Majestic, o gaúcho Mário Quintana: “Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho,/ Eles passarão,/ Eu passarinho”. Garrincha e Maracanã: dois nomes de passarinho. O estádio carioca foi palco dos primeiros vôos e da última aterrissagem de Mané, num jogo beneficente para tirá-lo do buraco. Ainda uma vez, não foi o bastante. Entre o primeiro drible e o derradeiro trago, Garrincha foi do sonho ao pesadelo como o herói que tudo ultrapassa, até a medida humana: “de que planeta vem Garrincha?”. Foi quando o destino o puniu exemplarmente: a bola se tornou expiatória, a admiração das pessoas se converteu em terror e piedade. Mané tornou-se um ébrio. Um amigo de farra contou para a imprensa o fim do craque: “Garrincha vinha bebendo direto há uma semana (...). Tomava conhaque, enxugava com cerveja” – não sei, mas esse conhaque botou a gente comovido como o diabo. Drummond tinha razão: “O pior é que as tristezas voltam e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos preencha o sonho”. Vamos sonhar. Depois da tragédia de 1950, no Maracanã, surgiram dois heróis distintos no futebol brasileiro: o apolíneo Pelé e o dionisíaco Garrincha. Manchete do France Soir na Copa da Suécia, em 1958: “O Brasil tem um rei: Pelé”. Era um conto de fadas: a coroa cabia direitinho na cabeça do garoto pobre. Garrincha ria daquilo tudo. Quase não joga a Copa por chamar para o drible um jogador já batido, antes de fazer o gol num jogo preparatório. Entre a Copa do Mundo e as peladas de Pau Grande, sua terra, não havia diferença: “Que campeonato mais mixuruca, esse! Não tem nem returno!”. E como um bobo da corte para o choroso menino-rei: “Bota a cabecinha no meu ombro e chora”. A verdade é que durante muito tempo o Crioulo carregou o Brasil nas costas. Mas quando ele nos faltou, na Copa de 62, lá estava o Mané. Manchete do inglês Daily Mirror na Copa do Chile: “O maior jogador do mundo não é Pelé, é Garrincha”. Era a hora e a vez do Mané Matraga, o “Rei dos Reis” para a imprensa mundial (o que em pleno mês de junho fazia pensar no balão do tipo “King of the Kings”, orgulho de baloeiros e empinadores de pipa como Garrincha). A Bruxa rondava aquela Copa desde que uma distensão fez de Pelé “rei morto”. Mané, atendendo a um reclamo coletivo por “rei posto”, deixava a margem em direção ao cen-

tro do campo. A sucessão estava em jogo. Na vacância do Rei, machucado logo na segunda partida, Garrincha fez tudo o que se esperava de Pelé: gol de cabeça, com as duas pernas (uma de cada vez), passes de mágica. Mais até que Pelé, que nunca foi artilheiro de Copa. O que não se esperava do novo rei era uma inversão carnavalesca das expectativas. Garrincha recusou a gaiola de ouro. Ele também sentia a necessidade de não deixar vago o trono. Só não encarava a tarefa como a substituição de um Rei em plena batalha, mas em plena folia. E fez um carnaval. Primeiro, entronizou a colombina Elza Soares a seu lado, transformando a comissão técnica em alcoviteira de um romance extraconjugal. Depois, como num filme de Chaplin, deu um pontapé caricato no traseiro de um jogador do time da casa, que o caçava durante a semifinal, obrigando até o governo brasileiro a trabalhar para sua absolvição. Acabada a finalíssima, a imprensa foi com sua arapuca ouvir o “canarinho”, no que poderia ser o fecho de ouro da gaiola da fama (da qual, aliás, o Sublime Crioulo até hoje é escravo). Foi pedido a Mané que desse um adeus ao microfone da rádio chilena. E ele: “adiós, micrófono”. Cômico e trágico. Seria a despedida de Garrincha de seu governo provisório, a quarta-feira de cinzas do seu último carnaval mundial. Ele fez daquela coroação um ritual bufo: “Pára com isso, gente! Chega de fotografia... Não sou Miss nem nada! Se eu ainda fosse uma Marta Rocha... E que negócio é esse de Rei Mané? Que Rei sou eu?”. E saía cantando a música de Francisco Alves, o Rei da Voz, “sem reinado e sem coroa”. Depois daquela Copa em que fez o mundo sonhar, o camisa sete voltava à ponta, ao corner, ao botequim da esquina. O lugar do “Anjo das pernas tortas”, de Vinicius de Morais, era a zona de sombra do “Poema de sete faces”, de Drummond : vai, Mané, ser torto na vida. A última vez que a multidão viu Garrincha, ele estava num carro alegórico da Mangueira no Carnaval de 1980, ainda sonado depois de mais uma internação hospitalar. Um passista da bola entronizado num carro... de rodas. Outra coroação às avessas: no auge, a de um gozoso Arlequim; na decadência, a de um Pierrô triste – o seu carnaval sem nenhuma alegria. • O filme Garrincha – Estrela Solitária, de Milton Alencar Jr., está no Cine PE (de 29/04 a 05/05). Continente maio 2004


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PERFIL

As paixões de Ana Maria Especializada em música e cinema, a jornalista Ana Maria Bahiana dedica-se agora a produzir filmes Tobias Queiroz Continente maio 2004

Reprodução/AE

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na Maria Bahiana começou a carreira de jornalista especializada em cultura nos idos de 1972, na versão brasileira da bem sucedida revista Rolling Stone, dos Estados Unidos. Especializada em música e cinema, suas duas paixões, escreveu seis livros sobre o assunto, entre os quais, destacam-se A Luz da Lente, coletânea de entrevistas com cineastas, e Nada Será Como Antes, sobre a música popular brasileira dos anos 70. Atualmente, ela tem uma produtora, na cidade americana de Los Angeles, a Pacific Sense, através da qual atendeu regularmente à Rede Globo e ao canal por assinatura TeleCine, com matérias e programas na área de cultura. A opção de morar e trabalhar nos EUA veio em 1987. “Sou sagitariana, vou aonde minha curiosidade me leva. Moro no mundo, e gosto muito disso”, revela. Quem a vê agora, entrevistando Jack Nicholson ou qualquer outra referência cinematográfica hollywoodiana, não imagina como foi o começo da sua carreira. “Não era uma vida glamurosa – meu primeiro apartamento era uma sala e dois quartos em cima de um botequim em Ipanema. Não tinha porteiro, de carne osso ou eletrônico, nem elevador, obrigando amigos e visitantes a berrar meu nome acima do burburinho da rua para que eu Por mera descesse e abrisse a porta. O que levou um bêbado de plantão a acreditar que era meu pai, coincidência o filme e a gritar, a todas as horas do dia e da noite: ‘Abre a porta, Ana Maria, minha filha!!!”’ 1972, produzido pela jornalista, era muito A temporada na Rolling Stone foi, realmente, o divisor de águas em sua vida. E até a parecido com Quase Famosos, de relação cabalística com 1972 (ano da estréia na revista) é tão presente no seu cotidiano que Cameron Crowe seu e-mail pessoal contém o número 72. “Não sou supersticiosa e não gosto de cabala, apesar de estudá-la. Mas sei que os números expressam verdades profundas e ocultas. 1972 – noves fora um, o começo de tudo. E de fato, 1972, foi o começo de uma estrada muito importante na minha vida”, diz. Pensando exatamente no triângulo sentimental (filme, música e 1972), Ana Maria escreveu o argumento e co-produziu o longa 1972, a primeira aquisição brasileira da Buena Vista International. Era seu primeiro filme e ultrapassava a visão política de esquerda e direita, vigente naquela época. “Falava de todo mundo que queria apenas levar sua vida, sonhar, planejar, apaixonar-se, trabalhar”. Ou seja, um filme “quase igual” à obra de Cameron Crowe Quase Famosos. Os dois filmes tocam nos mesmos pontos, têm idéias convergentes, principalmente quando o assunto é música, e são relatos sobre uma mesma geração. Para Ana Maria, na verdade, “são o mesmo filme, embora completamente diferentes. Não sabiamos da existência de Quase Famosos quando escrevemos a primeira versão de 1972. O susto foi até maior porque o filme de Cameron se chamava 1973, originalmente. Quando lemos o primeiro relato na revista Variety, nossa primeira passada do roteiro de 1972 já estava concluida. Decidimos continuar no caminho, “Meu primeiro apartamento era em cima até porque não havia mais o que fazer. José Emílio (seu marido e co- de um botequim em Ipanema. Não tinha produtor) até hoje não viu nem o trailer de Quase Famosos, de propósito, porteiro, obrigando os visitantes a berrar para não haver “contaminação”, esclarece. “No coração, os dois filmes meu nome acima do burburinho da rua seguem o mesmo impulso. Impossível olhar para trás, para esse mo- para que eu descesse. O que levou um mento no tempo, e não ver os mesmos sinais de referência. Mas, Ca- bêbado a acreditar que era meu pai, e a meron e sua história estão nos EUA, a nossa está no Rio de Janeiro da gritar, a todas as horas: ‘Abre a porta, ditadura. E as narrativas, por esses e outros motivos, são compleAna Maria, minha filha!!!’” tamente diferentes”. Continente maio 2004

Divulgação


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IMPRENSA Bruno Veiga/Tyba

Otto, um dos músicos prediletos de Ana Maria

Arrecifes volta a circular Conselho Municipal de Cultura do Recife lança o número oito de sua revista

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rrecifes é o nome da revista do Conselho Municipal de Cultura do Recife, fundada há quase três décadas e que, de lá para cá, teve publicadas apenas sete edições, afora alguns números especiais. Agora, o Conselho, sob a direção do músico Fred Zeroquatro, acaba de lançar o n 8, assumidamente “em caráter experimental”, com uma temática instigante: “Mudar de lugar ou mudar o lugar?” São entrevistas, perfis, depoimentos e análise da vida e obra de pessoas que, nascidas no Recife ou que para aqui migraram, contribuíram, uns no exílio voluntário, outros na permanência na cidade, para a construção de nossa identidade feita de miséria e esplendor. Entre eles, estão Manuel Bandeira, Paulo Freire, Alberto Cavalcanti,Chacrinha, Nelson Rodrigues, Marlos Nobre, Cícero Dias, João Falcão, Capiba, Brennand, Chico Science, Gilberto Freyre, Alberto Cunha Melo, Hermilo Borba Filho, Jomard Muniz de Brito e Ariano Suassuna. Gente, como se vê, das mais diversas áreas, ideologias e épocas. Um mosaico que compõe uma valiosa iniciativa para o nosso conhecimento enquanto estar-no-mundo. Os editores prometem mais duas edições ainda este ano. • o

Ana Maria Bahiana, entretanto, está voltada para seu mais recente projeto. Está em andamento a produção do filme nipônico-brasileiro escrito a oito mãos – ela, José Emílio, Wakako Myiakuni e Noriko Kitani – Cinemeiro, que apresenta a história de um japonês no interior de São Paulo. “Existem dois elementos que amo nesta historia: a questão do choque cultural, do fato de que ‘ser estrangeiro’ depende apenas de circunstâncias; e o poder da imagem, que me fascina. Em quantas coisas acreditamos, ou passamos a acreditar, apenas porque achamos que as estamos vendo?” – pergunta a jornalista-produtora. Militando em diversas frentes, Ana Maria diz que alcançou um aspirado equilíbrio emocional, potencializados por 32 anos de profissão. “Já fui apunhalada, pisoteada, cuspida e empurrada tantas vezes que já perdi a possibilidade de ferir numa esfera emocional”, confessa. E apesar da dedicação ao cinema, não esqueceu a música. Atualmente gosta de “Celso Fonseca, Lenine, Otto, Lan Lan e os Elaines, Fernanda Abreu, alguma coisa do acid jazz, os artistas da Trama (mas não tudo). E coisas obscuras das quais não me lembro e que compro sempre em pequenas lojas de discos, em bancas de ofertas e até em lojas de produtos esotéricos”, confessa. Para ela, música e cinema formam“uma balança quase perfeitamente equilibrada, e só digo ‘quase’ porque já aprendi, há muito, que nada é perfeito. Mas música e cinema são mais que isso em mim: formam uma integração orgânica. Em muitos níveis uma coisa não existe sem a outra na minha vida”. • Continente maio 2004

Arrecifes No 8, tiragem 1.500 exemplares, 122 páginas, distribuição gratuita.


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Visão do Rio Desenhado como um quebra-cabeça, cada texto do livro de Rodrigo Lacerda suscita uma impressão de autonomia

André Cypriano/Divulgação

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icardo Piglia, no livro de ensaios intitulado Formas Breves (Companhia das Letras, São Paulo, 2004), afirma existir, na elaboração do conto, um jogo entre a vacilação do começo e a certeza do fim. Essa afirmação também vale para um romance e encontra-se bem ilustrada em Vista do Rio, do escritor carioca Rodrigo Lacerda (Cosac&Naify, São Paulo, 2004). Desenhado como um quebra-cabeça, cada texto do livro suscita uma impressão de autonomia. No entanto, todas as peças se interligam, compondo uma narrativa, cujo enredo e desfecho surpreendem. E nossa curiosidade é instigada a descobrir até onde a história é tecida com a trama da vida de quem a escreve. Num primeiro momento, dois meninos, Marco Aurélio e seu amigo Virgílio, trucidam um beija-flor, colocando-o num liquidificador, e assistem a agonia do pássaro, transformado numa pasta grossa e vermelho-escura.

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O segundo momento do livro, desprovido de efeitos dramáticos, descreve o edifício Estrela de Ipanema com minúcia dos detalhes arquitetônicos. Por meio desse personagem de concreto, quase onipresente, conheceremos as pessoas que o habitam, seus estilos de vida, os estratos sociais a que pertencem. O Rio de Janeiro é mostrado, até quase o final do livro, pelas repetidas descrições do prédio, sempre em novos detalhes. “Para quem nasce na cidade, o que é feito pelo homem é que é o natural...” Num outro momento, Virgílio assiste a uma “cena primária”, entre o motorista da sua casa e o filho, um adolescente de 12 anos. Por mais que Freud afirme que somos portadores dessa “cena original de sexo”, mesmo que nunca a tenhamos testemunhado, os estragos causados em Virgílio serão eternos. O filho sacrificado não arde numa fogueira, como nos relatos míticos, mas nos braços do próprio pai.


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Com linguagem fragmentária e tempo recorrente, Vista do Rio lembra um roteiro cinematográfico, pleno de ousadias, tais como de findar num remoto passado, quando todos os possíveis desfechos já foram anunciados. Apesar dos arrojos de estilo, o fio da narrativa é mantido pelos dois personagens: Marco Aurélio, futuro escritor e estudante de história, e seu amigo e mestre Virgílio, um diretor teatral rebelde, iconoclasta e cínico, que escandaliza e seduz. É inevitável a lembrança dos colegas Arcádio e Bazárov, do Pais e Filhos, de Turguéniev, e do humor elegante e ferino de Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray. Marco Aurélio, o personagem que conduz a narrativa, afirma uma “assepsia de tudo, menos de sentimentos”. Mas o que se observa na primeira metade do romance é um bloqueio afetivo entre narrador e narrado. Como se o seu desejo fosse o de não se contaminar com qualquer emoção que impregna o mundo, embora afirmando sempre o contrário. A cada intervenção sobre o Estrela de Ipanema, com sua arquitetura moderna alienando o homem da natureza e do sagrado, ele reforça essa ruptura com a emoção. “E quando, (...) se analisava o Estrela de Ipanema propriamente dito, via-se que o conjunto e todos os seus componentes arquitetônicos, em perfeita sintonia, reafirmavam a superioridade indiscutível do intelecto e da civilização. (...) O prédio obrigava a espécie humana a crescer mais rápido, a se libertar mais cedo de seus impulsos naturais...” Jogando com o tempo, fazendo incursões pela história social e política da cidade e do país, intercalando narrativas, Rodrigo Lacerda mostra o seu talento de romancista, um perfeito domínio da técnica concebida para inquietar o

leitor, para impedir que ele saia imune da leitura. Na segunda metade do livro, quando começam os relatos mais pormenorizados da doença de Virgílio e sua interlocução com o amigo Marco Aurélio, o romance se desfaz dos excessos de sua estética e assume uma comovente poesia e humanidade. O Rio de Janeiro das paisagens luxuriantes e misérias sociais também se abre nas últimas páginas, numa dolorosa celebração. O livro de Rodrigo Lacerda chega ao seu termo com a imagem de um Virgílio luminoso, liberto, voando de asa-delta sobre a cidade. Tempo remissivo tão bem encaixado que chegamos a esquecer um Virgílio presente, apodrecendo num leito de hospital, vítima do seu hedonismo. Num contraponto genial, o adolescente Marco Aurélio olha com inveja o amigo alado, e deseja uma vida de “experiências, de permanente e simultânea excelência artístico-ético-sexual”. Porém, já se conhece o vencedor. Mesmo afogado no vômito e na náusea, Marco Aurélio é o sobrevivente. Fiel a Kipling, quando afirma que ao escritor é dado criar a fábula, mas não a moral da fábula, o autor evita qualquer moralismo na análise do seu personagem Virgílio, e quase nunca o contradiz. Mas, não o poupa do castigo da doença e da morte. Da mesma forma que Turguéniev matou o cínico Bazárov e Wilde puniu Dorian Gray. O romance se encerra com a dolorosa reminiscência de tudo o que se anunciou nas primeiras páginas, e com a pergunta: “Onde está escrito que o papel do homem na terra é ser feliz?” A história volta ao começo. Desmontase o quebra-cabeça, novos encaixes são buscados. Mas as peças só se ajustam às formas para que foram desenhadas. A terceira leitura do livro confirma a mesma certeza: só é possível existir. • Continente maio 2004


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CINEMA Fotos: Divulgação/Cine PE

Dois longas inéditos no país, Conspiração do Silêncio e O Outro Lado da Rua, estão na programação da 8a edição do Cine PE – Festival de Audiovisual O Outro Lado da Rua, um dos mais esperados do evento

A festa da imagem Considerado o maior festival popular de cinema brasileiro, pois reúne cerca de 2.600 pessoas por noite, o Cine PE chega à sua 8a edição (segunda com o nome atual) consolidado como um dos mais importantes eventos do gênero no país. A formatação de 2004 traz novidades. A primeira é que o Cine PE agora tem 14 dias, sete a mais em relação às edições anteriores. Também conta com uma programação mais enxuta, que promete evitar exibições adentrando a madrugada e com uma mostra da nova safra de filmes espanhóis, inéditos no Estado, e de 18 vídeos pernambucanos. As outras novidades ficam por conta de dois longas inéditos no país: O Outro Lado da Rua, de Marcos Bernstein, com Fernanda Montenegro e Raul Cortez, e Conspiração do Silêncio, de Ronaldo Duque, que será lançado no Festival, numa sessão especial de encerramento, dia 05 de maio. Conspiração do Silêncio fala sobre a Guerrilha do Araguaia, um dos mais obscuros episódios da História brasileira contemporânea. O Outro Lado da Rua, que concorre ao Troféu Calunga, conta a história de Regina, uma aposentada que para se refugiar da solidão exerce a função de “araque”. Até o dia em que ela acredita ter presenciado um assassinato e acaba se envolvendo com o suposto assassino. O Cine PE exibirá mais seis filmes em caráter competitivo, entre eles um documentário Mensageiras da Luz – Parteiras da Amazônia, que disputa com os outros sem distinção de categoria. Concorrem ainda Contra Todos, que narra a história de vida de quatro pessoas moradoras do subúrbio paulista que tentam desesperadamente mudar de vida; Garrincha – Estrela Solitária, que expõe a vida do “demônio das pernas tortas”; Espelho D’água – Uma Viagem no São Francisco, uma co-produção de Continente maio 2004

Françoise Fourton em Conspiração do Silêncio

Pernambuco e Rio de Janeiro; Como Fazer um Filme de Amor, primeiro longa de José Roberto Torero, curta-metragista premiadíssimo; e Viva Voz, de Paulo Morelli. Antes dos longas serão exibidos, também em caráter competitivo, 39 curtas-metragens, entre eles cinco pernambucanos: História da Eternidade, de Camilo Cavalcante; Porcos Corpos, de Sérgio Soares; Ventilador, de Leonardo Lacca; Thelastnot. com, de Léo Falcão; e É Mais Fácil um Boi Voar, de Maria Pessoa. O evento conta ainda com realização de oficinas e seminários, que avaliarão a situação sócio-econômica dos festivais de cinema e a tão vigente temática dos direitos autorais e de imagem. (IC) Cine PE – Festival de Audiovisual, de 29 de abril a 05 de maio, no CineTeatro Guararapes, Centro de Convenções (Complexo de Salgadinho, S/N, Olinda). Ingressos: R$ 6,00 (estudantes e idosos pagam meia).


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Do livro para o palco

Angu de Sangue Teatro Hermilo Borba Filho (Av. Cais do Apolo, s/n, Recife Antigo). Até 31 de maio. Sábados às 21h e domingos às 20h. Inteira R$ 10,00 e meia R$ 5,00.

O texto do escritor pernambucano Marcelino Freire está sendo encenado, desde abril, nos palcos do Teatro Hermilo Borba Filho, em Angu de Sangue, título homônimo do livro. O espetáculo multimídia conta com 10 histórias interligadas, estruturadas sobre nove contos de dois livros seus, Angu de Sangue e Balé Ralé. O quadro final da montagem foi inspirado em fatos reais, presentes no universo retratado pelo autor. A direção é de Marcondes Lima, que assina também o cenário, o figurino e a maquiagem. São dez quadros distintos e interligados por cenas de passagem, com-

postas por vídeo e música, em que os cinco atores cantam a trilha original de Henrique Macedo. No palco, vários tipos urbanos (catadores de lixo, manicure, mendigo...) expõem as diferenças ideológicas e sociais das cidades, alternando poesia e crueza. A maioria dos textos são monólogos com forte intensidade dramática. Durante a apresentação, que tem pouco mais de uma hora, o público vai conhecer os contos: “Faz de Conta que não Foi. Nada”, “Muribeca”, “Volte Outro Dia”, “O Caso da Menina”, “Angu de Sangue”, “The End”, “Socorrinho”, “Daluz” e “A Volta de Carmem Miranda”, utilizados sem adaptação na peça.

O caminho percorrido, dia a dia, por muitos catadores de caranguejos é o ponto de partida do novo espetáculo da Trupe Circus da ONG Escola Pernambucana de Circo. Vendedor de Caranguejo estréia no próximo dia 22, no teatro Armazém 14. A encenação, que conta com a participação de 20 artistas, apresenta o percurso de um vendedor de caranguejo do manguezal até o ponto de venda do produto. Ao longo dessa caminhada, vão surgindo os números de circo-teatro. Palhaços e performances aéreas representam os astros; artistas com pernas de pau simbolizam os grandes arranha-céus e os malabaristas, acrobatas e equilibristas representam, juntos, a confusão e a agitação peculiar às metrópoles. A trilha sonora variada e bem regional (samba de roda, coco, cavalo-marinho, maracatu e ciranda) é executada, ao vivo, por monitores da própria escola. A ONG trabalha com crianças carentes, utilizando a pedagogia do circo para trabalhar a inclusão social. Os alunos que se destacam passam a fazer parte da Trupe Circus.

O texto é do paraibano Ariano Suassuna. Os atores e o diretor são da Zona da Mata de Pernambuco. Essa é a composição básica do espetáculo a Inconveniência de Ter Coragem, produzido pela Consultoria de Ações Culturais de Limoeiro. A montagem, que chega, este mês, aos palcos do Teatro Joaquim Cardozo, é toda estruturada na estética do mamulengo. Os atores, sob a direção do limoeirense Fábio André e com a ajuda do mamulengueiro Mestre Tonho, seguem a orientação do próprio Suassuna e interpretam como se fossem bonecos. “O colorido, os gestos grotescos, a magia, a farsa e a musicalidade são os ingredientes que confirmam o riso de uma encenação dirigida a um público inegavelmente de todas as idades”, descreve o diretor. O mote da peça é o ditado popular “o mundo é dos mais espertos.” Cinco atores e dois músicos (no clarinete, na flauta e no violino) apresentam as aventuras vividas por personagens do Sertão Nordestino, suas relações de amor, ciúme e poder. No final, a astúcia e a esperteza perdem a supremacia para a inconveniente coragem.

O Vendedor de Caranguejo Teatro Armazém 14 (Rua Alfredo Lisboa, Bairro do Recife). Estréia: dia 22 às 20h. De 23 de maio até fim de junho, sábados e domingos às 17h. Inteira R$ 10,00 e meia R$ 5,00.

A Inconveniência de Ter Coragem 15 de maio a 20 de junho, no Teatro Joaquim Cardozo (Rua Benfica, 175, Madalena). Sábados às 21h e domingos às 20h. Informações: (81) 3227.0657.

Valdir Gomes/Divulgação

A estética do mamulengo Divulgação

Mangue e circo

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AGENDA

Tuca Siqueira/Divulgação

TEATRO


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» 90 ARTES VISUAIS Imagens: Divulgação/Fundação Iberê Camargo

Diante de Iberê Pela primeira vez, o Recife verá grande parte da obra quase biográfica de Iberê Camargo, que este ano comemoraria 90 anos

Tudo é falso e inútil, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 250 cm

Uma parte significativa da obra do intricado Iberê Camargo chega ao Recife para uma exposição inédita no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM, abrangendo as fases mais importantes da sua produção, desde as primeiras paisagens, que já apontam a tendência expressionista (um dos traços característicos do pintor), feitas no Rio Grande do Sul, ainda nos anos 40, até as últimas e dramáticas telas do final da vida. Artista de rigor e sensibilidade únicos, Iberê produziu, ao longo de sua vida, mais de sete mil obras, entre desenhos, pinturas, gravuras e guaches. Dono de uma pintura variável e subjetiva, sua obra não se prende a rótulos nem convenções. Quase biográfica, pode ser dividida cronológico-formalmente – Primeiras Pinturas, Os Carretéis, Os Ciclistas, Os Retratos, As Idiotas e As Linhas –, mas uma classificação que sem o entendimento da sua complexidade estética, emocional e cognitiva, de nada vale. O carretel era o brinquedo de infância de Iberê. Era o objeto enSem título, 1990. Nanquim, caneta e lápis sobre papel contrado na caixa de costura da mãe e que ganhava personalidade na imaginação do garoto. Os ciclistas são personagens incorporadas à obra iberiana nos anos 80, quando o artista retorna a Porto Alegre, impulsionado por duas tragédias que marcaram profundamente a sua vida: a prisão por ter matado em legítima defesa e um câncer. Assim como os ciclistas, que pedalam muitas vezes sem rumo, as idiotas esperam a vida passar. Sentadas em bancos de Continente maio 2004

praça, nuas e disformes, com os rostos de expressões irritantes até, essas personagens marcam a que é considerada a fase mais assustadora da pintura iberiana, mas na qual ele simboliza sua solidão, seus medos do fim, do erro, da ação erosiva do tempo, da morte. Esta última etapa da sua obra é o exercício de uma linguagem levado a seus limites; as personagens parecem gritar a revolta e o inconformismo do artista diante da falta de sentido da existência humana. O pintor morreu aos 79 anos, em Porto Alegre, em agosto de 1994. Grande parte da sua obra foi deixada a sua esposa, Maria Coussirat Camargo, e integra hoje o acervo da Fundação Iberê Camargo. E é parte desta obra que o Recife verá exposta, a partir de 16 de maio no MAMAM. (IC)

Estrutura em movimento III, 1962. Água-tinta sobre papel

Iberê Camargo, Diante da Pintura Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM (Rua da Aurora, 265, Recife-PE, Tel: 81.3423.3007) A partir de 16 de maio. Visitação de terça a domingo, das 12 às 18h


Cartuns, quadrinhos e afins

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Divulgação/CCBB

O universo das histórias em quadrinhos, dos cartuns e do humor gráfico entram em destaque a partir deste mês. É que, de 25 de maio a 30 de junho, acontece o VI Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco (FIHQ-PE), na Torre Malakoff. Exposições, palestras, oficinas, sessões de caricaturas ao vivo e concursos compõem a programação do evento, que conta com a participação do norte-americano Keno Don Rosa, autor da premiada biografia do Tio Patinhas. O convidado vai presidir a Comissão de Premiação do VI Concurso Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco, que recebe inscrições de mais de 700 obras, de cerca de 20 países, nas categorias charge, cartum, caricatura e história em quadrinhos. Os trabalhos selecionados são apresentados durante o evento e os quatro vencedores anunciados na abertura. Don Rosa, que se dedicou, na última década, a criar novos clássicos e aprimorar o trabalho de Carl Barks (criador original de Patópolis), vai expor seus trabalhos na linha Disney, além de projetos anteriores como o Capitão Kentucky, da década de 70. Também serão apresentadas aos visitantes mais duas mostras: uma coletiva com cartunistas de todo o Nordeste e outra com obras de três convidados especiais (Lourenço Mutarelli, Samuel Casal e Cláudio Oliveira), que estarão ministrando oficinas. Nos dias 26, 27 e 28 de maio vão ser realizadas as palestras com Don Rosa, Camilo Riani (Curador do Salão Universitário de Humor de Piracicaba), João Gualberto Costa (curador do Museu de Artes Gráficas de São Paulo), entre outros. Pesquisadores da área, como os professores Amaro Braga e Henrique Magalhães, vão discutir a visão atual das universidades sobre o estudo dos quadrinhos e do humor gráfico. Outro ponto forte do FIHQ-PE será a reinauguração da Gibiteca Ionaldo Cavalcanti, inaugurada em 2001 e desativada em 2002, numa nova sala, dentro da Torre Malakoff. VI Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco Torre Malakoff – Bairro do Recife www.fundarpe.pe.gov.br Imagens: Divulgação/FIHQ

Keno Don Rosa trabalha numa nova versão de Los Tres Caballeros (Pato Donald, Zé Carioca e Panchito)

Borges em Brasília Um pedaço da vasta obra do pernambucano José Francisco Borges, ou simplesmente J. Borges (como prefere ser chamado), cruzou os mais de dois mil quilômetros que separam a cidade de Bezerros (Agreste de Pernambuco) de Brasília, para compor a exposição A Arte de J. Borges: do Cordel à Xilogravura, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil. São mais de 100 xilogravuras e 50 cordéis que percorrem a história pessoal do artista e o inserem dentro da arte brasileira. A mostra, que foi inaugurada no dia 6 de abril e tem curadoria de José Octavio Penteado, é dividida em vários segmentos. O primeiro traz um pouco da história do cordel e suas técnicas de xilogravura. O ambiente é todo baseado na cidade de Bezerros, com características típicas das cidades do interior nordestino. Nos primeiros dez dias da exposição, o próprio J. Borges esteve mostrando ao público como se faz uma xilogravura. Agora, quem assumiu esse posto foi o filho do artista, Ivan. Um documentário que conta um pouco da sua vida e da relação com sua cidade natal também compõe a segunda parte da exposição. No final, estão expostas as 50 matrizes originais e as cerca de 100 xilogravuras. A Arte de J. Borges: do Cordel à Xilogravura Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília Até 16 de maio De terça a domingo, das 10h às 21h Informações: (61) 310.7087 Continente maio 2004

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ARTES VISUAIS


Em busca do Rumo Fotos: Divulgação/Palavra Cantada

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» 92 MÚSICA

Grupo “se arruma” para comemorar 30º aniversário e relança toda a discografia

Integrantes do Rumo: reencontro depois de 10 anos

Há dez anos separado, o grupo Rumo, que contém 10 integrantes, decidiu reorganizar-se para comemorar 30 anos de carreira – mesmo que esta não mais exista enquanto grupo. A nova idade é festejada com o lançamento de uma caixa com toda enxuta e valiosa, porque cuidadosamente elaborada, discografia em CD pela Trama. As vidas dos músicos tomaram rumos distintos: Luiz Tatit e Na Ozzetti seguiram carreira solo; Paulo Tatit é sócio do selo Palavra Cantada; Hélio Zisnkind grava trilhas para programas da TV Cultura; Gal Oppido dedica-se à fotografia; Zecarlos Ribeiro virou arquiteto; Ciça Tuccori morreu em 2001; Geraldo Leite virou empresário da mídia; Pedro Mourão fundou e dirige a Escola de Música Domus, onde Akira Ueno é professor. Fábio Tagliaferri e Ricardo Breim juntaram-se ao grupo em 1985. Em 2004 eles decidiram se reencontrar para festejar a independência com shows e com a caixa Rumo. São seis títulos: dois gravados em 1981, Rumo e Rumo aos Antigos, que fazem uma recriação interpretativa das canções do nosso passado musical, especialmente as menos divulgadas de Noel Rosa, Lamartine Babo e Sinhô, álbuns que juntos renderam dois prêmios concedidos pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte); Diletantismo (1983) e Caprichoso (1985), que permaneciam inéditos em CD; Quero Passear (1988), título infantil ganhador do prêmio Sharp; e Rumo ao Vivo (1991), que mais uma vez deu ao Rumo o título de melhor grupo do ano, concedido pela APCA. Destaque para o belo Rumo aos Antigos, onde são feitas releituras dos clássicos do samba. Mas no Rumo ao Vivo também estão lá “Marcianita” e “Trem das Onze”, que aqui ganha Continente maio 2004

uma melodia apressada, crescente, como o ritmo de um trem. O infantil Quero Passear insere canções que brincam com os sons das palavras e travalínguas, além de falar sobre o respeito às diferenças. Em Caprichoso, o Rumo zomba da sua própria condição de marginal do mercado fonográfico no samba-enredo “Release”, de Luiz Tatit, música que agora mais parece uma premonição: narra um pseudoencontro de todos os seus integrantes 30 anos após a sua fundação. Com humor, perspicácia e sutileza harmonias que valorizam o canto cênico, numa relação curiosa entre letra e melodia, estética que requer intérpretes com total domínio da técnica aliada a uma consciente liberdade criativa –, o Rumo foi um dos expoentes da chamada Vanguarda Paulista, movimento que nunca se configurou, mas que teve no grupo, em Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé seus principais representantes. (IC)

Rumo – Caixa comemorativa aos 30 anos, Distribuidora Independente Trama, preço médio R$ 100,00.


A suavidade de Salmaso

Língua de fogo

Iaiá, quarto CD de Mônica Salmaso, guarda muitas surpresas. A começar pela voz da moça, que é forte, porém doce; capaz de transformar suas interpretações em clássicos, transitando entre o popular e o erudito. E ela parece imprimir essa docilidade a todo o trabalho, que é cheio de imagens: tem um quê de interiorano, de vida leve, cheia de graça e poesia. O repertório começa com “Moro na Roça”, mas aqui o samba de Clementina tem o suingue do samba baiano, com congas melódicas que trazem a cadência do candomblé, do lundu e do ijexá nagô; passa por “Cabrochinha”, de Maurício Carrilho e Paulo César Pinheiro; “Estrela de Oxum”, que tem a simplicidade e a delicadeza das cantigas de ninar; visita Tom Zé, em “Menina Amanhã de Manhã”; Francisco Mattoso e José Maria de Abreu, em “Vingança”, onde o acordeom sola chorando a dor da saudade; Tom Jobim e Vinicius de Moraes em “Por Toda a Minha Vida”, belíssima na voz de Mônica; José Miguel Wisnik, em “Assum Branco”, canção de delicada e cuidadosa construção melódica; Chico Buarque, em “Sinhazinha”, na qual o sofisticado piano parece conversar com a voz; e Dorival Caymmi, que muda a paisagem do álbum e se entrega às ondas do mar, em “É Doce Morrer no Mar”.

Ladrão de Fogo é um CD de poesia que como o próprio autor, Ricardo Corona, define é a apropriação da referência para fazê-la vital em outro contexto. Num discurso repleto de alusões, Corona revela a gênese antropofágica da sua obra: “do universo ao multiverso. Da invasão de propriedades artísticas, culturais e intelectuais à contaminação de formas, conceitos e conteúdos”. O livro falado promove uma aventura lítero-musical ora sinestésica ora perturbadora, lançando ao fogo de Férrez a Lautréamont, de Lobão a Win Wenders, de Tom Zé a Pasolini, de Augusto de Campos a Shohei Imamura, também pegando Leminski, Basquiat, Foucault, Duchamp, Eisenstein, Andy Warhol e Tarkovski como material de combustão. A poesia de Corona surpreende com imagens insólitas, como em “Narayama”: “põe a meia-lua dos pés/ na mudez das pedras/ corpo e alma no chakra da encosta/ a fronte na fonte fresca/ lava a saúva das costas/ e entra em Narayama/ ensine outra sensibilidade/ antes que o branco da neve/ crie suas cristas/ (a noite amontoa corvos)/ e volta/ sem olhar para trás”. A guitarra de Gilson Fukushima faz o desenho sonoro do “livro”, acendendo a chama da difícil arte de unir poesia e música.

Iaiá, de Mônica Salmaso, Biscoito Fino, preço médio R$ 20,00.

Ladrão de Fogo, de Ricardo Corona, Ed. Medusa, preço médio R$ 18,00 (mais despesas de correio). Pedidos: editoramedusa@brturbo.com

Opereta de Cordel

Homem de Ferro

Para clarinete e clarone

Difícil a arte de juntar poesia e música. Se for certo que a maioria dos músicos é poeta, o inverso nem sempre é verdade. Mas o jornalista e poeta Ricardo Mello decidiu fazer um cordel metamorfoseado em canção. O trabalho não se limita a declamar versos, o que virou costume entre versejadores. Mello recria sua poesia, valorizando a melodia, falando sobre a gente, os lugares e as culturas do Nordeste. Quebra com o estigma de que poesia gravada é um simples registro da voz do autor. O trabalho ficou em 2º lugar no 1º Concurso Nacional de Poesia para Jornalistas, da Academia Brasileira de Letras.

Batuque é um grupo de composição multiartística que, além de unir as linguagens do teatro e da música, junta as inspirações poéticas fornecidas por João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Sebastião Salgado, pelas paisagens da cidade do Recife, da Zona da Mata Norte e do Sertão pernambucano no CD Homem de Ferro. O álbum excursiona pelos ritmos da música popular pernambucana: coco entremeado com forró e capoeira com cadência de xote. Mas também tem maracatu de baque solto, rock e muita consciência social.

Duo Clarones é um CD de vanguarda e experimentação do clarinete na música erudita. Um CD que promove um instigante sentimento de estranheza, de prazer da descoberta. Os músicos Henri Bok e Luis Afonso “Montanha”, que estendem a amizade para a música, dialogam com clarinete e clarone nas canções do disco, onde fica a clara a harmonia entre os artistas. É como se os músicos fossem atrás de cada nota, qual fosse um bordado, algo em delicada construção. O repertório do álbum inclui Edu Lobo, Wagner Tiso, arranjos de jazz e canções da própria dupla.

Homem de Ferro, da Batuque, Independente, preço médio R$ 10,00.

Duo Clarones, da Duo Clarones, Ybrazilmusic, preço médio R$ 20,00.

Opereta de Cordel, de Ricardo Mello – com ilustrações de Samuca, Edições Bagaço, preço médio R$ 17,00.

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Fotos: Divulgação

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Hitler na Baía da Traição Intricado jogo de máscaras em romance de estréia de Paulo Fernando Craveiro Faltando um mês para o fim da 2a Guerra Mundial, uma notícia assombra a vila de Rio Tinto, na Paraíba: Hitler desembarcara do submarino U-510, na Baía da Traição, carregando um violino de estimação. Esse é o ponto de partida do romance Os Olhos Azuis da Sombra, do veterano jornalista, cronista e poeta Paulo Fernando Craveiro. Autor de oito livros, entre crônicas e poesia, PFC estréia no romance com essa “tragicomédia de enganos”, como ele próprio o define. A presença do enigmático visitante, acolhido no Palacete Vila Regina, do dono de enorme complexo têxtil instalado na vila, onde trabalha uma colônia de alemães, desata medos, ódios, paixões e perplexidades, envolvendo o fugitivo, os alemães, os operários têxteis e um comunista devoto de Santa Rita. Não há certeza se o homem é mesmo o Fhürer,

mas isso não importa. O próprio personagem, alemão, de olhos azuis e bigodinho quadrado, interroga-se sobre sua identidade, masturba-se ansiando por Eva Braun e se engolfa num intricado jogo de máscaras. Intercalando fortes cenas eróticas, traições, atentados, conspiração e equívocos risíveis, a trama tem um final eletrizante e, em meio a alguns circunlóquios, destila belos achados, como nestes exemplos: “um furor de cigarras anuncia o fim da tarde”, “a morte é um exagero de escuro”, “as guerras prolongam-se nas pessoas”, “começam a tirar a roupa num alvoroço de pardais”, “entre as ruínas Deus parece supérfluo” ou “tem de conviver com os olhares desesperados dos homens no pasto do decote de Fanni”. Não obstante o pecado venial de exageros de citação de marcas de objetos da época, a denunciar o esforço de pesquisa do autor, a nar- Os Olhos Azuis da Sombra – rativa alcança momentos da Paulo Fernando Craveiro, Nossa mais alta prosa. (Homero Livraria Editora (81-3301.7788), 276 páginas, R$ 30,00. Fonseca)

Reflexão e prazer

Clareza e rigor

Texto polêmico

Em ficção ou teoria ler Ricardo Piglia é sempre um prazer. Neste livro, composto de pequenas peças teóricas sobre a literatura e a vida, o escritor argentino aprofunda suas teses sobre o conto que, segundo ele, narra sempre duas histórias simultaneamente, uma aparente e outra secreta. Utilizando exemplos de suas admirações – Poe, Tchekhov, Kafka, Hemingway e Calvino, além dos conterrâneos Borges, Cortazar, Macedônio Fernandez e Roberto Arlt – Piglia entrelaça reflexão e experiência pessoal para chegar a conclusões surpreendentes e criativas. Teoria e autobiografia, aliás, entrelaçam-se; afinal, para ele, a crítica é a forma moderna de se contar a própria história.

A partir do século 18, as idéias filosóficas oriundas da França influenciaram o continente americano nas áreas cultural, artística e política, chegando a tornarem-se hegemônicas no século seguinte. Registrando e estudando o fato, há uma grande bibliografia. No século 20, entretanto, houve um abrandamento desta influência que, todavia, não cessou. Para mapear parte dessa presença do pensamento francês nas Américas do século passado, a USP promoveu um curso que resultou neste livro. O positivismo, Roger Bastide, Deleuse, Foucault, Lyotard e Althusser, além do desconstrutivismo de Derrida, são alguns dos pontos abordados em artigos que unem rigor e clareza.

O polêmico jornalista Paulo Francis, que exercia o colunismo cultural e político no jornal Última Hora na época, conta sua visão pessoal do Golpe de 1o de Abril de 1964, num livro escrito no 30o aniversário da “Redentora”, e agora novamente editado. Num típico estilo em zigue-zague, que passa de filósofos e políticos para estrelas cinematográficas e cantoras de rádio, traça um painel do que aconteceu no período, mostrando como aquele momento trágico influiu na sua geração, fazendo com que perdesse as ilusões. É livro dinâmico e fácil de ler, pela velocidade com que Francis passa de um assunto para outro, sempre comentando e opinando sobre tudo no seu modo abusadão e provocante.

Formas Breves – Ricardo Piglia, Companhia das Letras, 120 páginas, R$ 27,00.

Do Positivismo à Desconstrução: Idéias Francesas na América – Org. Leyla Perrone-Moisés, Edusp, 304 páginas, R$ 36,00.

Trinta Anos Esta Noite – Paulo Francis, W11 Editores, 300 páginas, R$ 36,00.

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Rocinha, a protagonista Romance revela um microcosmo onde todos os vícios e umas poucas virtudes do País estão concentrados num exíguo espaço

Sorria – Você Está na Rocinha – Julio Ludemir, Editora Record, 402 pág., R$ 44,90.

Um escritor vai viver na Rocinha para desvendar seu enigma e escrever um livro sobre sua luta para se transformar num bairro. Mergulha num mundo onde viver é uma negociação permanente e termina sendo escorraçado pelos bandidos. Só que os bandidos não são necessariamente os narcotraficantes. Esse é o enredo-mínimo de Sorria – Você Está na Rocinha, de Julio Ludemir. A obra trafega naquela fronteira onde os gêneros se dissolvem: tem a linguagem ágil e descritiva do jornalismo conjugada a uma construção literária em que o ritmo, as elisões, a temporalidade descontínua jogam o leitor entre a reflexão e a perplexidade. Na primeira parte, o homossexual negro Paulete, cria da favela, narra em primeira pessoa a perturbação causada pela presença do estranho. A segunda é o diário do escritor, fragmentário e reflexivo. Na última parte, um nar-

rador conduz, na terceira pessoa, o desfecho, ao estilo de um thriller. A Rocinha, com 120 mil habitantes, sua economia dinâmica e caótica, seus desníveis sociais (reprodução do “asfalto”) e seus podres poderes, é a grande personagem do livro. Há vilões, como os traficantes e a elite local (comerciantes, funcionários de ONGs e líderes comunitários), e uns poucos heróis – dirigentes de creches ou mães desesperadas a tentar impedir que os filhos caíam no tráfico de drogas. É texto para ler de olhos bem abertos. (H. F.)

Além do objeto

Aula de tradução

Cápsula da história

Nos tempos em que o poema-objeto é tomado como único representante da poesia capaz de referir o homem pós-moderno, faz falta a presença de um poeta apto a operar com os arquétipos e dialogar com a transcendência. Um poeta como Dante, Blake, Whitman, Pessoa, Hölderlin ou Nietzsche. É o que pensa o poeta e ensaísta alagoano, radicado no Recife, Ângelo Monteiro. E que acrescentaria à lista outro alagoano: Jorge de Lima. No livro que acaba de publicar, Ângelo sustenta a tese de que a poesia nasce antes da linguagem e que em Jorge essa realidade se afirma “desde o caos da realidade bruta das sensações e percepções” até “o cume de uma plenitude estética ordenadora e instauradora”.

Entre setembro de 1944 e junho de 1946, o carioca Diário de Notícias publicou 89 artigos semanais de crítica às traduções de livros. Foi um deus-nos-acuda. Minucioso, erudito sem empáfia, didático, o colunista que se assinava C.T. expunha falhas de tradutores, alguns renomados escritores, como Monteiro Lobato e Lúcio Cardoso, despertando ira e curiosidade. Tratava-se de Agenor Soares de Moura, um pacato professor secundarista de Português, de Barbacena, Minas, culto e versado em cinco idiomas. Ivo Barroso organizou a publicação dos artigos em livro, como saborosas e percucientes lições do árduo ofício de traduzir.

O Conhecimento do Poético em Jorge de Lima. Ângelo Monteiro. Calibán/EdUFAL. 160 páginas. R$ 20,00.

À Margem das Traduções Agenor Soares de Moura, Editora Arx, 272 pág., R$ 39,00.

Dando continuidade à publicação da obra fundamental de Gilberto Freyre, porque vista em perspectiva demonstra como o antropólogo encapsulou mais de quatro séculos de história em três livros, a Editora Global lança Ordem e Progresso, terceiro e último volume da trilogia conhecida como Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. Mas talvez esta seja a obra mais experimental do autor, onde se pode observar os seus modernismo e compromisso com a atmosfera cultural dos seus anos de formação. O tempo aqui abordado parte da Lei do Ventre Livre até a irrupção da I Grande Guerra, que ao mesmo tempo corrói a economia cafeeira e acelera o processo da modernização compulsória do país. Ordem e Progresso – Gilberto Freyre. Editora Global, 1140 págs., R$ 110,00. Continente maio 2004

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Sinal amarelo para um ano vermelho Todo pastoril tem a sua diplomática Diana

P

ara toda cobrança de justiça social existe um caminho de entendimento, paciência e bom senso, mesmo contabilizando a audácia típica dos aprendizes de revolucionários. Refrescando a memória dos meus leitores, vou contar uma historinha verdadeira, pela qual começou a se desenhar e se desenvolver a “besteirol” tese da invasão vermelha do comunismo no reino verde-amarelo: a 1a Liga Camponesa nasceu em 1o de janeiro de 1955 no Engenho Fogo Morto, Galiléia, em Vitória de Santo Antão, com a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, que agrupava, com fins beneficentes, 140 arrendatários – o dono da terra era convidado para presidente de honra. Ameaçados de expulsão devido ao preço do foro, os camponeses fizeram da tal sociedade um órgão de resistência e chamaram para defendê-la o advogado e deputado estadual do então PSB, Francisco Julião. A saga dos galileus dura 4 anos de lutas jurídicas, políticas e policiais, até a sentença judicial que lhes entrega a terra. Neste ínterim, a SAPP organiza delegacias em outros municípios e Estados. O Diário de Pernambuco foi quem passou a chamá-las de Ligas, buscando identificá-las com as Ligas formadas pelo PCB em 1945/47. E as Ligas logo se expandem atemorizadamente até 1960, chegando ao ápice em 1962, durante o primeiro governo Arraes, atingindo, sobretudo, foreiros, meeiros e minifundiários, além de poucos assalariados por este Brasil afora. Pois muitíssimo bem. Já em 1961 têm implantação nacional, invadindo vales e serranias, brigando com onças pintadas, pacas, tatus e cotias. Só no Estado da Paraíba somavam 10 mil filiados com sede de comando em Sapé. Nesse Nordeste, quem dava o grito de guerra era o senhor José dos Prazeres, da Galiléia, João Pedro Teixeira, de Sapé e, em especial, Julião – líderes maiores. Surgiam organizações de massas, apartidárias, porém com a participação de militantes do PCB, PC do B, trotskistas e da AP (Ação Popular – onde figuravam com influência os senhores José

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Serra, o finado Sérgio Motta, Pe. Alípio de Freitas, Paulo Renato de Souza e Fernando Henrique Cardoso, todos, há pouco tempo, com exceção do padre, manejando as rédeas deste País). Esses ativistas, entusiasmados pela cartilha vitoriosa da guerrilha castrista, se apóiam nas feiras livres, empregam versos de cordel, citações bíblicas (para neutralizar a oposição da igreja) e textos de Julião (da chamada Carta de Alforria do camponês). Na Paraíba então, “pintaram o sete” com foices e enxadões em mãos, desmoralizando jagunços, obrigando-os a andarem com um badalo de boi pendurado no pescoço. E as alegorias não ficaram por aí, não. Criaram, em 1960, lá pelas friezas dos pampas o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra). E no auge de 1962, essa nova entidade lança (em Sarandi-RS) a forma de luta dos acampamentos na periferia dos latifúndios (à luz do então governador Brizola e do recém-formado Igra-Instituto Gaúcho de Reforma Agrária), abrigando quase 100 mil associados, conquistando desapropriações e assentamentos. Em Pernambuco, as Ligas Camponesas, mais radicalizadas ainda, ocupam engenhos (começando por Jaboatão e Cabo) e enfrentam policiais, gerando 10 mortos e 15 feridos, num conflito em Miri-PB, como fazem hoje os Sem Terra por este nosso Brasil afora. Em 1963, sua direção adere à idéia de uma revolução agrária armada (inspirada em Cuba) e instala campos de treinamento guerrilheiro no norte de Goiás. Tudo com o aval permissivo do presidente João Goulart, que anunciara as reformas sociais de base. As Ligas entram em crise. Os reformistas idiotas preferiram os ideais às idéias... Aí veio o Golpe de 64 e tivemos o que todos já sabem. Tudo por conta dos Sem Terra de então e de governantes sem autoridade, num pastoril sem juízo. Esqueceram do azul com bolinhas brancas e nem deram outras bolas para a Diana. Mas, hoje, que fique o sinal amarelo bem forte e aceso. Não está bonitinha essa história?... •




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