Continente #042 - Joyce

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Zenival/Edward Maloney/James Joyce Resource Center

EDITORIAL

A montagem de A Criação de Adão, de Michelangelo, reflete o sentimento de veneração por Joyce que, entretanto, se definiu certa vez como “um grande piadista do universo”

A literatura, antes e depois de Joyce

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terça-feira amena de 16 de junho de 1904 entrou para a história da literatura como o dia em que se passa o enredo mínimo das 957 páginas do Ulisses, o mais sagrado ícone do romance moderno. Num acesso de romantismo improvável, seu autor, James Augusta Joyce, escolheu aquela data por ter sido o dia em que conheceu Nora Barnacle, com quem se casaria e viveria até o fim da vida. No romance, o personagem principal, Leopold Bloom, corretor de anúncios e marido traído, protótipo do pequeno burguês da era moderna, vaga pelas ruas de Dublin, numa pseudo-epopéia irônica. O mundo da alta literatura comemora, agora, o centenário do Bloomsday. Desde o seu lançamento, em fevereiro de 1922, o Ulisses se tornou objeto de veneração e repúdio, fonte permanente de polêmicas entre críticos, estudiosos e escritores. Antes mesmo de sua publicação, autor e obra já eram famosos, graças ao trabalho missionário do poeta Ezra Pound, mecenas e propagandista do escritor irlandês. Não obstante ser considerada por alguns como um texto enfadonho, hermético e até ininteligível, a obra tornou-se cult por suas qualidades narrativas revolucionárias. Com efei-

to, Ulisses era uma resposta radical ao impasse a que chegara o romance, esgotado por mestres como Flaubert e Tolstoi. Daí ter o poeta T.S. Eliot afirmado: “Joyce matou o século 19”. As cerca de 400 mil palavras deste livro monumental continham as inovações estilísticas que caracterizariam o romance moderno. Pound definiu esta fábula contemporânea recheada de enigmas como “uma obra-prima, na linha de grandes livros rebeldes, como Gargântua e Dom Quixote”, uma perfeita representação do caos da modernidade. Joyce, cuja obra soma apenas sete títulos, entre romances, contos e poesias, tornou-se uma espécie de monumento vivo, endeusado por seguidores empenhados na ritualização de sua leitura. Ele próprio, entretanto, embora tivesse plena consciência do valor de sua obra, muitas vezes a dessacralizava, como no episódio descrito pelo biógrafo Richard Ellmann, em que, a um jovem reverente que lhe perguntara se podia beijar a mão que escreveu o Ulisses, respondeu: “Não, ela fez uma porção de outras coisas também”. É nesse espírito que comemoramos o Bloomsday: reconhecendo a importância do legado joyciano, sem preconceito ou mistificação. •

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CONTEÚDO

Carola Giedion-Welcker/Zurich James Joyce Center

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Joyce: um dia muito especial em Dublin Divulgação

As linhas de força do cinema africano

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CAPA

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ARTES

08 Os 100 anos do Bloomsday, o dia mais celebrado

46 Tomie Ohtake: a geometria feita com a mão solta

da literatura mundial

O Manifesto do Neo-Realismo

LITERATURA

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MÚSICA

21 Escritores pernambucanos lutam por espaço

64 Silvério Pessoa leva forró eletrônico para a Europa

nas livrarias Há 80 anos morria Kafka, um dos três maiores escritores do século 20

Eric Clapton grava CD só com blues de Robert Johnson »

TRADIÇÕES 72 Refazendo as pegadas de Mario de Andrade

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CINEMA 30 Festival em Milão revela o criativo e desconhecido

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TEATRO

HISTÓRIA 84 As etiquetas de livros como fonte histórica

38 Poeta pernambucano e diretor espanhol fazem peça em parceria

ESPECIAL 76 Não há consenso sobre a Pós-Modernidade

cinema africano Cine PE se caracteriza por intensa participação do público

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AGENDA 88 Dança, música, artes plásticas, teatro, cinema,

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DANÇA 42 Coreógrafos incorporam outras artes ao universo da dança

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tradições e livros Agenda atualizada semanalmente no www.continentemulticultural.com.br


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Zenival

Denise Adams

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Tomie Ohtake, uma arte depurada

Silvério: forró na Europa

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Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Governo revela incompatibilidade entre desejos e possibilidades

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MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 O livro sempre foi a Máquina do Tempo sonhada por Júlio Verne

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TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 Hélio Oiticica negou a arte para poder reinventá-la a partir de zero

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SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 60 Em Taprobana, pequena ilha, foi encontrado um fruto milagroso

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 63 Limpo e totalmente azul é o azul belo-horizontino

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ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 Nossa era especializou-se no espetáculo da crueldade através de imagens

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ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Um sonho dificilmente deixa de ser um sonho

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CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Junho Ano 04 | 2004

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Capa: James Joyce Ilustração: Baptistão

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Luiz Carlos Monteiro, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival

Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista, crítico de cinema, mestre em Cinema pela ECA-USP, doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade Paris 3 Sorbonne Nouvelle. AUREA DOMENECH é escritora e artista plástica. CLÁUDIA CORDEIRO REIS é professora especialista em Literatura Brasileira, editora e webmaster dos sites “Plataforma para a Poesia” e "Trilhas Literárias". DANIEL PIZA é jornalista, editor executivo de O Estado de S. Paulo, autor, entre outros, de Jornalismo Cultural (2003) e Questão de Gosto – Ensaios e Resenhas (2000). EDUARDO LOBO é jornalista. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestrando em Filosofia pela UFPE. Trabalhou na Gazeta Mercantil Distrito Federal. GUILHERME AQUINO é jornalista.

Edição de Imagens Nélio Chiappetta

INÁCIO FRANÇA é jornalista, editor da revista Pacto e diretor da Carcará Agência de Conteúdo.

Revisão Maria Helena Pôrto

IVAN JUNQUEIRA é poeta, ensaísta e presidente da Academia Brasileira de Letras.

Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

JOÃO LUIZ VIEIRA é jornalista. JOSÉ TELES é jornalista, escritor, crítico de música e autor do livro Do Frevo ao Manguebeat, Editora 34. LEIDSON FERRAZ é jornalista e ator. LUÍS AUGUSTO REIS é jornalista e professor de Teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário e poeta, autor de Poemas e Vigílias. MICHELE

DE

ASSUMPÇÃO é jornalista.

PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. Trabalhou nos jornais Rascunho e o Jornal do Estado, ambos de Curitiba. SÉRGIO BARCELLOS XIMENES é dicionarista, autor do Minidicionário Ediouro da Língua Portuguesa (1997) e membro da National Puzzler’s League, dos Estados Unidos.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – Uma História de Poder. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.

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CARTAS Coragem Li, com uma satisfação imensa, o artigo do poeta Alberto Cunha Melo, intitulado “Deu um nó no MinC” (edição nº 40). Parabenizo a Revista pela publicação do artigo em tela e aproveito o ensejo para dizer que é um orgulho para Pernambuco ter um escritor corajoso e brilhante como o Alberto. Saudações democráticas. Lucivânio Jatobá, via e-mail

Continente pernambucano Adorei a edição de abril, com Lenine. Sem falar na matéria “Marte, o enigma da vida”. Parabéns pelo “continente” pernambucano e mundial explorado nesta Revista exemplar. Giselle Marques, Jaboatão dos Guararapes/PE Coluna Muito bom o artigo “Que futuro é esse?” (“Contraponto”, edição nº 39). Apenas uma observação com relação ao texto: “Até as ‘igrejas’, em que pese o seu papel de amortecimento das tensões sociais, aparecem como verdadeiras empresas de comercialização da fé e confecção de passaportes para um céu cheio de tesouros e luz”. Há exceções: as igrejas espíritas, por exemplo, não têm objetivos mercantilistas e praticam ações verdadeiramente cristãs! José Edson Furtado, via e-mail Lya Luft Excelente a matéria sobre a escritora Lya Luft. O universo ficcional desta conceituada artista estava precisando de um estudo bem elaborado e preciso, como o fez o ensaísta Iêdo de Oliveira Paes. Desvendar a narrativa luftiana deve ser, acima de tudo, uma viagem sedutora e prazerosa. Assim é Lya Luft. Cecília Tavares, via e-mail

Resenhas Gostei muito da resenha do filme Dogville, sempre é bom ler sobre cinema! Entretanto, achei de um amadorismo decepcionante todas as resenhas literárias. Falta um pouco de preparo e técnica na abordagem crítica: literatura é linguagem, não fofoca ou papo-cabeça de bar. Daniel Sampaio de Azevedo, João Pessoa/PB

Lamento Adorei a Revista de abril de 2004. Tanto a reportagem com Lenine quanto a matéria sobre ele estão muito legais. Só lamentei que na matéria do Lauro Lisboa não tenha saído a foto da capa do disco O Dia em que Faremos Contato. O mesmo só é citado quando se comenta a sua edição européia. Como todos os outros discos do Lenine, este também é muito bom e bem que merecia uma foto de sua capa. O que houve? Algo contra este trabalho especificamente? A discografia merecia estar completa na reportagem. Moisés Caldas, Paulista – PE Onde está o dinheiro da Fundaj? Quero parabenizar o articulista Ronaldo Correia de Brito por chamar a atenção para o desconforto do cine Fundaj (edição nº 40). É um verdadeiro desrespeito ao público fiel daquele cinema, além de uma falta de compromisso com a cultura em nosso Estado. A situação se agrava, pois um diretor da Fundaj anunciou publicamente que a reforma ocorreria em fevereiro de 2004 e até o momento nada aconteceu. Onde foram parar os recursos previstos para a reforma? É uma pena que esse tipo de coisa aconteça com o melhor cinema da cidade, conforme avaliou o guia da revista Veja. Adelino Montenegro, via e-mail

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redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Samba de coco Mais uma vez, esta primorosa Revista realiza um trabalho excepcional, que vai da valorização ao resgate das mais variadas formas de expressão cultural do nosso rico país. Refiro-me especialmente ao artigo publicado na edição nº 40, da historiadora e poetisa Micheliny Verunschk, sobre a cultura do samba de coco no município de Arcoverde – PE. Demostrando um profundo conhecimento da matéria, numa pesquisa feita não só com interesses didáticos, mas também com o verdadeiro afeto dos que amam e se dedicam à preservação da arte e da identidade cultural do seu povo, Micheliny traça um mapa de toda a trajetória das principais famílias envolvidas, que hoje transformam Arcoverde num grande reduto cultural de relevância nacional. Jorge Filó, Recife/PE Cinemas... Não se deve ter receio de se dizer a verdade. Por isso, o colunista Ronaldo Correia de Brito não tem o que temer. Numa das poucas vezes em que fui ao cinema da Fundação, assistir a Dogville, constatei duas coisas: a primeira é a disponibilidade de um conteúdo de qualidade, muito diferente dos “enlatados” que compõem os cinemas das salas dos centros de compras; a segunda é que a qualidade do mesmo cinema cai justamente pela infraestrutura: a sala é plana; péssimo sistema de ventilação; e há, entre o público, alguns rebeldes que teimam em fumar em pleno filme! Mudemos... Henrique Toscano, Olinda/PE Correção O artigo “O Declínio da Razão”, publicado na página 66 da edição nº 41, que saiu sem créditos, é de autoria de Ciema Silva de Mello, doutoranda em Antropologia pela UFPE. Correção 2 A foto publicada na pág. 64, da matéria “O Construtor da História” (edição nº 40), é de autoria de Fred Jordão. Correção 3 A foto publicada na pág. 69, da coluna “Sabores Pernambucanos” (edição nº 40), é de autoria de Leo Caldas. Continente junho 2004

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

Governar é preciso A ambigüidade das ações de governo demonstra que “a ficha ainda não caiu” os últimos meses, os auspiciosos resultados da política macroeconômica do Governo não têm sido suficientes para minimizar as tensões ocorrentes entre as possibilidades do Estado e os desejos da sociedade. Acresça-se a isso a falta de sintonia entre o discurso do Governo e o da base aliada, o acirramento do ânimo da oposição em função do chamado caso Waldomiro Diniz e a leniência oficial nas questões agrárias, do meio ambiente, da política indígena e da segurança pública. Mas, no fundo, o que a ação governamental do país tem revelado é uma incompatibilidade crônica entre desejos e possibilidades. Entre vontade platônica e realidade agônica. Entre as circunstâncias do presente e as perspectivas extemporâneas do futuro. Nesse mundo de ilusões refratárias, o que se enxerga são as contradições entre o poder que o Estado efetivamente tem e o poder que o Governo e seus partidários – agora engrossado pelo coro das oposições – acham que o Estado deve ter. Esquecem que o Estado brasileiro foi redesenhado e tem se enfraquecido nos últimos dez anos e que já não é mais o principal propulsor do desenvolvimento, considerando que muitas dessas responsabilidades foram repassadas ao mercado à luz do paradigma neoliberal. As forças políticas que dão sustentação ao governo têm que compreender que o Estado não tem mais o poder nem os recursos de antes. Promover o crescimento com geração de emprego, fazer política social para os excluídos e atender, simultaneamente, no curto prazo, às metas e objetivos do equilíbrio fiscal, apesar de sua razoabilidade, fazem parte da teia de impossibilidades. O modelo de Estado implantado nos anos 90, sob as asas de um liberalismo de mercado, não é o modelo de Estado que está na cabeça dos partidários do PT. A ambigüidade das ações de governo e as suas contradições entre o falar e o fazer demonstram que “a ficha ainda não caiu”. Com efeito, a administração federal ainda não descobriu a diferença entre Governo e Cidadania, Estado e Sociedade,

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Gestão Pública e Movimento Social. É bom observar que na cultura popular o povo sabe bem distinguir as diferenças entre o papel do martelo e o do prego. Daí porque a nação perplexa ainda espera que o PT tenha um projeto como Governo e não mais como Movimento Social. De outra parte, a Oposição – em realidade, a principal responsável pelo modelo de Estado implantado no Brasil – faz a sua parte no discurso e toma a iniciativa de cobrar a execução de promessas de campanha, mesmo sabendo das impossibilidades do Governo em cumpri-las, consideradas as restrições impostas pela aplicação da política macroeconômica. Não é sem sentido que suas principais lideranças chegam até a usar de retórica falaciosa, defendendo a economia social de mercado (sic) ou mesmo o liberalismo social, no sentido de minimizar a forma descomprometida como as políticas liberais tratam as questões sociais. Ressalta-se que a crise social no Brasil é uma situação que se acumula há anos e o paradigma neoliberal do Estado mínimo e o mercado como depositário de esperanças ainda não surtiram os efeitos necessários para minimizar a exclusão social, nem aqui nem alhures. A realidade nua e crua é que quando o Estado sai de cena como o principal agente do desenvolvimento social, as contradições sociais se agravam e denunciam o clima de letargia e impotência de que é vítima a máquina pública. A fragilidade na coordenação das ações de governo é um fato, mas não é tudo. Acredita-se que os espasmos de inapetência administrativa são resultado do choque entre as ações do Governo e o discurso que por mais de duas décadas seus integrantes defenderam em todas as praças, todos os pátios (de fábrica) e em todos os recantos e recônditos sindicais do Brasil. Enfim, diante das promessas discutíveis e das possibilidades desfeitas, só nos resta a consciência de que apesar dos problemas da exclusão social serem os mesmos, o Estado é outro e ao Governo não lhe resta nada mais do que assumir suas responsabilidades porque... governar é preciso. • Continente junho 2004


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Desrespeite

Joyce! Continente junho 2004


Edward Maloney/James Joyce Resource Center

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Montagem sobre pintura de Gustave Caillebotte, Rue de Paris, Temps de Pluie, 1877

Joyce quis dessacralizar a literatura e, por isso, não deixa de ser irônico que Ulisses tenha se tornado objeto sacro Daniel Piza

s pessoas não acreditam que alguém tenha terminado de ler Ulisses, de James Joyce. Os que tentam lê-lo, na grande maioria, não passam da página 30 do romance. E muitos dos que o citam também não o leram. O problema é que basearam sua expectativa na exaltação crítica do livro, não raro eleito como o maior romance do século 20 ou um dos maiores clássicos da literatura de todos os tempos. Diante de tais hipérboles, pegam aquele catatau e imaginam que vão entrar num paraíso literário. Nas primeiras linhas, já começam a empacar. Os personagens não são apresentados. A linguagem é cheia de trocadilhos e imagens desconexas, de palavras difíceis e referências. Não há “ação”. Não há nem mesmo uma descrição clara das cenas e figuras. E o resultado é que, como ocorre com toda expectativa ilusória (não é, companheiro Lula?), a frustração chega rapidinho. “Que livro chato!” é o veredito instantâneo. “Esses críticos viajam demais”, o seguinte. Se a tentativa for com a tradução brasileira, então, tudo fica ainda mais complicado. Antonio Houaiss fez, em 1982, uma empreitada admirável por diversos motivos. Mas, como reconheceu uma década mais tarde (e vinha trabalhando nisso antes de morrer), a tradução precisava ficar mais “pedestre”; afinal, um dos segredos de Joyce é a mistura de erudito e mundano. Millôr Fernandes sempre se queixou do final, o famoso monólogo de Molly Bloom, onde o Yes! que é grito de orgasmo perde a força ao ser traduzido para “Sim!”, em vez de “É!” ou “Eu vou!”. Mas os tropeços do leitor já começam na primeira linha: “Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada” etc. Trata-se de uma das mais engraçadas aberturas de romance: Mulligan levanta a tampa da privada e diz, em latim, Introibo ad altare Dei (Entrarei no altar de Deus); é típico de Joyce, chamar o vaso de altar. Mas esse humor profano quase desaparece atrás dos polissílabos da versão de Houaiss. No entanto, mesmo uma tradução com mais ginga não bastaria para fazer de Ulisses um livro fácil, fluente, como até Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, se torna fluente depois que o ouvido do leitor se acostuma com o ritmo daquela prosódia sertaneja. Em outras palavras, Ulisses poderia ser menos chato. Até os admiradores mais ardorosos do livro, como o crítico americano Edmund Wilson, que o analisou com afinco em O Castelo de Axel, Continente junho 2004

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10 capa Divulgação

Cartaz da mais recente adaptação de Ulisses para o cinema, do diretor Sean Walsh

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reconhecem que há nele vários trechos dispensáveis ou sintetizáveis, como o questionário jurídico anterior ao monólogo de Molly. Mas então o que fazer? Primeiro, ler sem muito compromisso pontual com o conteúdo. Se passar por uma frase como “Uma bicampânula prímula, o valete da sorte, sorria do meu medo”e não entender, não se incomode e siga adiante. Segundo, se por outra quiser esquadrinhar o romance, mal que acomete não poucos literatos jovens, há diversos guias na praça, como o de Stuart Gilbert (James Joyce's Ulysses), que inclui até mapa, e há diversas leituras didáticas, como a de Wilson. Terceiro, e igualmente importante, ler antes os outros livros de James Joyce, especialmente os contos de Dublinenses e a novela Retrato do Artista Quando Jovem, nos quais, com um estilo mais ortodoxo e no entanto belíssimo, suas obsessões já aparecem. Um fato, porém, é preciso ter em mente: James Joyce era o primeiro a dizer que Ulisses não é um romance como os outros romances, um romance linear, com início, meio e fim, dotado de alguma mensagem moral final, e, sim, um romance enciclopédico e fragmentário, para ser lido por prazer, sem ordem fixa. Eis o depoimento de alguém que leu e releu o livro de ponta a ponta: o divertido é abrir Ulisses ao acaso e cair, digamos, no episódio das sereias, ao redor da página 200 da edição brasileira, em que a balbúrdia de bêbados, mulheres, risadas e canções é recriada em prosa poética: “Lenehan bebia ainda e dentiarreganhava-se para a cerveja inclinada dele e para os lábios de Miss Douce”, “Segue que mexe que ginga que ginga”, “Tenores conseguem mulheres em penca”... Eis Joyce on the rocks, revelando toda sua paixão musical e suas origens irlandesas: “Jorrar de represas efusões. Fluxo, efusão, fluido, jorralegre, pulsipulso. Eia! A língua do amor!”. Pasme, Ulisses é sobre isso e nada mais: as manifestações orgânicas do amor. O assunto desse livro moderníssimo é bem antigo, portanto. E Joyce tem o que dizer sobre sexoamor, duas entidades que nunca viu dissociadas, ao contrário da canção de Rita Lee que ora toca na novela das 8. Pule – pule sem constrangimento, ele diria a você – para a página 275: “E tu um homem casado com uma moça solteira! É o que elas gostam. Tomar homem de outra mulher. Ou mesmo falar disso”. E depois para a página 392, no trecho que mais parece uma peça: “STEPHEN (cochicha): Continua. Mente. Agarra-me. Acaricia-me”. E então para o monólogo de Molly, lá na 534: “eles são loucos para entrar em de onde eles saíram”. Ulisses é, assim, uma espécie de trepada lingüística, um rio de pornografias e citações que incorpora afluentes de diversos idiomas para criar uma festa, uma féerie carnal-verbal. Joyce quis dessacralizar a Literatura, fundindo gêneros, épocas e registros, mostrando personagens que soltam pum enquanto estudam a Grécia Antiga, entrando na cabeça ao mesmo tempo suja e culta de um flâneur em Dublin, de um incomum homem comum (assim como em Finnegans Wake entraria no território dos sonhos, do inconsciente, para romper de uma vez por todas com o romance tradicional). Que Ulisses tenha se tornado esse objeto sacro, alvo de devoção em tantas universidades, posto no altar-mor das listas dos "melhores livros de todos os tempos", não deixa de ser irônico. Mas, claro, o próprio sabia que a última e melhor risada seria a sua. Moral da história: desrespeite Joyce. Ele agradece.


Horst Trappe

A revolução da linguagem

Pound visita o túmulo de Joyce, em Zurique (a estátua de bronze é de autoria do escultor Milton Hebald)

Joyce, que teve no poeta Ezra Pound um mecenas generoso, inaugurou a junção poesia-prosa de um modo jamais visto antes Luiz Carlos Monteiro

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12 CAPA

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obra ficcional de James Joyce recebeu um impulso inesperado e definidor para a sua divulgação e permanência após uma conversa entre Ezra Pound e William Butler Yeats, em fins de 1913. Aparentemente desinteressada, essa conversa – posteriormente registrada por Pound – onde o assunto era a poesia, terminou contribuindo para uma mudança radical e surpreendente nos rumos da literatura do século 20. De férias em Sussex, Inglaterra, os dois escritores referiam-se à antologia dos poetas imagistas, que Pound estava organizando. Yeats lembrou-se então de um novo e desconhecido escritor, o irlandês James Joyce – tinha publicado apenas um livro de poemas líricos, Música de Câmara (1907). Um dos poemas deste livro, “Ouço um exército atacando a terra”, foi recomendado por Yeats para a coletânea do amigo e secretário. Por iniciativa de Yeats, Pound tratou de escrever imediatamente a Joyce, listando revistas e periódicos em que poderia divulgar seus trabalhos. Antes da resposta, escreveu-lhe novamente pedindo autorização para publicar o poema, sendo prontamente atendido. Começava aí, com poucas e explicáveis interrupções, uma intensa troca de cartas entre Pound e Joyce, consolidando uma amizade que duraria três décadas. Sem edição brasileira até agora, estas cartas podem ser lidas na edição espanhola da Barral Editores, intitulada Sobre Joyce (1971), de Ezra Pound, comentada por Forrest Read e traduzida por Mirko Lauer. Esta edição origina-se da nova-iorquina de um ano antes, Pound/Joyce: The Letters of Ezra Pound to James Joyce, with Pound's Essay's on Joyce. A leitura da correspondência mostra como Pound tomou para si a tarefa de divulgar e editar a obra joyciana, interferindo já na publicação de Dublinenses (1914) e intermediando a serialização do segundo livro, Retrato do Artista Quando Jovem, na revista londrina The Egoist. É revelado também como Joyce, no espaço de uma década, com o aval e o esforço inestimável de Pound, faria a passagem progressiva e editorialmente conturbada do anonimato para a fama e o reconhecimento internacional. Assunto recorrente nas cartas são as rusgas constantes de ambos com agentes literários, editores, tradutores e impressores, inclusive censores do correio norte-americano que apreenderam três números de The Little Review contendo capítulos de Ulisses. Outro tema constante é o traçado de estratégias de financiamento para que Joyce continuasse escrevendo sem ter de dar aulas. Ele não parecia incomodar-se com o apoio financeiro vindo de fontes tão diversas quanto doações anônimas, empréstimos de amigos e pensões temporárias do Estado. Quando Pound o convoca a um encontro em Sirmione, Itália, alega entre outros motivos para o atraso da viagem, falta de roupa: “Não tenho e não posso comprar. Os outros membros da família ainda contam com roupa decente comprada na Suíça. Eu uso as botas de meu filho (que têm dois números a mais) e um velho traje seu que fica estreito nos ombros; os outros acessórios pertencem ou pertenciam a meu irmão ou a meu cunhado”. O pós-escrito desta carta intenta redimir um Joyce queixoso de sua situação material: “Esta é

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CAPA 13 » Alain Le Garsmeur/CORBIS/Stock Photos

Panorama da Dublin atual, com o rio Liffey em primeiro plano: referência principal

uma carta muito poética. Não imagine que é um sutil pedido de roupa de segunda mão. Deveria ser lida de noite, enquanto as águas do lago acariciam as margens, ritmicamente”. Do lado oposto, havia também o Joyce perdulário que, mesmo em meio à pobreza extrema, permitia-se prazeres caros e requintados, gastando compulsivamente qualquer dinheiro que tivesse. Ele foi, certamente, o escritor mais beneficiado e contemplado pela cruzada de Pound, que possuía uma espécie de senso prático peculiar aos norteamericanos. Estava sempre a procurar, dentro do seu vasto círculo de amizades e influência cosmopolita, formas ágeis de veicular e profissionalizar os trabalhos literários de sua geração. Além de Joyce, a geração modernista contava com o poeta T.S. Eliot, detentor da única opinião que Pound respeitava, excetuando-se a sua própria. No entanto, Joyce parecia não dar importância ao que estavam fazendo seus contemporâneos, sem excluir nem mesmo Pound. À medida que os trabalhos de Joyce iam aparecendo, Pound ia escrevendo uma série de ensaios, resenhando até Exilados, única peça do irlandês. Ele expõe com sinceridade suas restrições flagrantes ao drama: “Exilados No espaço de uma é uma obra de teatro sofrível, com um conteúdo sério; a influência de década, com o aval de Ibsen se manifesta por todos os lados; as muitas virtudes da obra são as de um novelista, não as de um dramaturgo. Era um passo necessário. Pound, Joyce faria a Joyce tinha de escrever algo desse tipo antes de escrever Ulisses.” travessia do anonimato Os livros de Joyce revelam as feições diurna e noturna da humanipara a fama dade, de dentro e de fora da Irlanda, embora sem jamais desligar-se dela. A referência principal é Dublin, com seus personagens grotescos e sublimes, seus bêbados e religiosos caricaturados ou inventados, removendo-se num mundo excessivamente limitado e castrador. Em Dublinenses, os contos descarnam a vida pequeno-burguesa e os costumes provincianos de sua terra e sua gente, no início do século 20, sob o domínio inglês. Joyce não investe ainda nos experimentos formais que distinguirão sua obra de tudo que se fazia em literatura àquela época, bem próxima ao século 19. O prosador vai apagando o poeta bissexto, apesar dos versos bem elaborados. Sua poesia não tinha o brilho e o prestígio “lírico” de Yeats, velho mestre a quem não conseguira superar. A técnica do “monólogo interior” encontraria sua aplicação máxima em Ulisses, promovendo um deslocamento psicológico complexo do mundo e da história para a mente do homem e o personagem que este encarna. O mundo vivo de Ulisses é o mundo da vida num simulacro de torre urbana, onde toda a experiência humana, coletiva e individual é flagrada em seus recônditos, aparências, imobilidades e movimentos. A convivência estética de clássico e moderno referenda-se, no passado distanciado, no plano odisséico, modelo estrutural de Ulisses, na grande aventura que explode violentamente no intervalo de um dia. Outras fontes literárias do passado mais imediato, como Flaubert, realizam-se no culto da palavra exata, ou Cervantes, cuja influência se apresentava bem maior do que Joyce desejaria. Continente junho 2004


John Quinn Memorial Collection, Rare Books and Manuscripts Division, The New York Public Library

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James Joyce e Ezra Pound ladeados pelo editor Ford Madox Ford (E) e pelo advogado John Quinn, que defendeu a revista Little Review por publicar capítulos de Ulisses nos EUA, em 1921

A revolução lingüística em Ulisses e Finnegans Wake inaugura a junção poesia-prosa de um modo jamais visto antes. Efeito muito mais encontrável no Finnegans, onde todos os diferentes símbolos e idiomas importam no resultado final. A simples letra isolada, a palavra de significado intrincado ou implícito e a expressão mais obscura e de difícil decifração caracterizam o itinerário circular e configuram também a velocidade, o andamento e a tônica de inventividade que perpassam todo o livro. O Finnegans desagradou tanto ao autor dos Cantos, que a correspondência foi interrompida em definitivo, em 1937 (a primeira interrupção tinha se dado no período 1920-1924, quando se viam constantemente em Paris). A desaprovação de Pound às inovações expressionais e estilísticas do Finnegans instaura uma discordância estética entre ambos, sem conciliação ou retorno possível: “Não imagino a última obra de Mr. Joyce preocupando mais que uns poucos especialistas, e tampouco posso ver nela nenhuma grande preocupação pelo presente, nenhuma grande compreensão do presente, o que poderia indicar uma incapacidade de minha parte, ou que meu presente e o de Mr. Joyce são muito diferentes entre si e, mais ainda, que eu não posso crer em aceitação passiva. (...) Em outras palavras, o tempo atual me parece mais interessante que o período do que me parece uma reminiscência – a que (para mim) parece dominar Anna Lívia e todo o resto dos enredados enigmas joycianos”. O escritor Valéry Larbaud, tradutor francês de Joyce, passaria a substituir Pound na apreciação crítica da obra joyciana. Em Paris, Joyce viveu durante 20 anos, alcançando notoriedade mundial com a tradução de seus livros, principalmente Ulisses. O seu exílio vivencial e literário iniciou-se verdadeiramente em 1904, ao abandonar Dublin com a mulher, Nora Barnacle. Morou também em Trieste e Zurique, voltando a esta última cidade em 1939, para morrer em 1941, aos 58 anos, exatamente quando se deflagrou a Segunda Guerra Mundial. Pound, já convertido ao fascismo (posicionamento que, somado à acusação de traição ao seu país, o levaria a um confinamento psiquiátrico e prisional prolongado), presta-lhe uma homenagem final em Roma, num programa de rádio. Mesmo nessa ocasião, ao fazer a leitura do texto “James Joyce: à sua memória”, não esqueceu de reiterar seus ataques ao Finnegans Wake, em mistura com um humor tipicamente joyciano: “Enquanto ritualiza-se o Velório de Velórios que é o de Finnegans, uma lástima, mil lástimas que Joyce não tenha podido assistir a seu próprio enterro. O sacerdote irlandês estava ausente; possivelmente não soube que se avizinhava um velório, ou a improbabilidade de um velório em Genebra ou qualquer outro maldito vale em que o querido Jim foi enterrado, poderia tê-lo detido. Porém o humor da situação era do tipo predileto de Joyce”. Continente junho 2004


Carola Giedion-Welcker/Zurich James Joyce Center

“Ulisses é um embuste” Trata-se de um romanceenigma. E, dentro dessa categoria, Ulisses é o mais complexo romance-enigma jamais criado Sérgio Barcellos Ximenes

James Joyce em Zurique, 1938

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ríticos, resenhistas e professores de literatura apreciam Ulisses, de James Joyce. Para eles, mais vale o que vem depois da leitura, o raciocínio objetivo sobre a obra, do que a experiência da leitura, a vivência subjetiva da obra. Provavelmente, na literatura ocidental, não haja obra mais carregada de paratextualidade do que Ulisses. Se você ainda não leu o romance (isto é, se pertence a esse grupo formado por 99% do total dos leitores), pense em tudo quanto “sabe” sobre Ulisses, isto é, todas as opiniões, artigos, menções em resenhas, já lidas por você ao longo de anos, referentes ao romance de James Joyce. E Continente junho 2004


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pense na impressão causada por esses conteúdos: como são os personagens, como se desenvolve a trama, o tema da história, o grau de dificuldade da leitura, o estilo de Joyce. Por se tratar do mais sagrado ícone do romance moderno, faço aqui um pedido explícito: represente o que vai ler abaixo como uma opinião pessoal, só minha, carregada de subjetividade. Não atribua nenhuma autoridade a ela, e deixe para tirar suas próprias conclusões se e quando tiver acesso ao livro. Então vamos nós. Ulisses é um embuste. O maior embuste da literatura universal. Não o livro em si, mas o que fizeram dele. Para explicar e especificar essa conclusão, retirada da leitura de todas as 957 páginas do livro (sim, eu consegui, ainda não acredito, mas consegui), preciso dar uma idéia geral das características de Ulisses. Logo no primeiro capítulo, que vai da página 9 à 70 na tradução brasileira de Antônio Houaiss, ficam patentes algumas características do estilo de Joyce e da tradução de Houaiss. Por exemplo, a combinação adjetivo + substantivo + adjetivo: “escura escada espiral” (p. 9), “meneante cara grugulhante” (p. 9), “fornida cara sombreada” (p. 10), “soturna queixada oval” (p. 10) Uma das características do estilo joyciano são os neologismos, palavras criadas pelo autor, geralmente pela junção de duas palavras conhecidas. Eis algumas traduções de Houaiss: “verdemuco” (p. 11), “azulargênteo” (p. 52), “longuiciliados” (p. 67), “sandalizante” (p. 69). Também aparecem várias frases, versos ou palavras em outros idiomas (francês, italiano, inglês, alemão e latim). Todas sem tradução. Há ainda uma grande quantidade de nomes de pessoas, lugares e obras, quase sempre mencionados de passagem e sem que o tradutor as explique por meio de notas de rodapé. O narrador, ao contar a história, relaciona-se com poucas pessoas, mas uma boa quantidade de outros personagens é mencionada durante as conversas, aparecendo neste capítulo apenas como nomes, sem outro referente concreto. E há ainda, é claro, o próprio estilo de Joyce. Este trecho da página 62, um dos mais legíveis de todo o capítulo, pode passar uma idéia de como se dá a leitura: “Uma carcaça inchada de cão jazia reclinada sobre bodelha. Diante dele a apostura de um bote, soçobrado no saibro. Un coche ensablé, Louis Veuillot chamou à prosa de Gautier. Estas pesadas areias são linguagem que maré e vento inscreveram aqui. E lá, os montículos de pedras de construtores mortos, cortiços de fuinhas. Esconde ouro lá. Tenta-o. Tens algum. Areias e pedras. Prenhes de passado. Brinquedos do Senhor Bicho-Papão. Cuidado para não receberes um bofetão na cara. Sou o danado do gigan-

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The Poetry/Rare Books Collection, State University of New York at Buffalo

tão que rola os danados dos pedregulhões, ossos para os passos das minhas passadas. Fiufeofium. Eu xinto o xeilo do xangue num ialundeixe.” O conteúdo dos pensamentos do protagonista, Leopold Bloom, das descrições do narrador e das falas dos outros personagens revela a total falta de seletividade por parte do autor. Joyce simplesmente descreve, em minúcias e do seu jeito enigmático, um dia (16 de junho de 1904) na vida de um grupo de amigos. Existem em Ulisses características suficientes para justificar a especificação da categoria genérica “romance”. São elas: 1. A intenção do autor. A frase de James Joyce (“Incluirei no romance tantos enigmas e quebra-cabeças que ele manterá os acadêmicos ocupados durante séculos.”) revela que o autor considerou sua obra, desde a concepção, uma espécie de vale-tudo na área da criação de enigmas e de quebra-cabeças. 2. A construção do texto. A leitura de Ulisses permite verificar que o autor realmente incluiu no texto uma grande quantidade de recursos lúdicos, enigmas, alusões, citações e brincadeiras lingüísticas, como era seu propósito. 3. A leitura do texto. Não se lê Ulisses com a mesma atitude reservada aos romances que apresentam princípio, meio e fim bem definidos, e um enredo cujos fatos e significados sejam acessíveis ao leitor, ainda que essa apreensão dependa de algum trabalho intelectual. É impossível, no caso do romance de Joyce, simplesmente acompanhar a história e apreciar a condução dela pelo narrador. A atitude imposta pelo autor é a de aceitação de um desafio intelectual, de extraordinária dificuldade. O leitor deve estar atento a cada detalhe do texto, buscando dicas ocultas para entender cada passagem, e sua mente deve se manter bem afiada, pesquisando fatos na memória, gerando e testando hipóteses, para verificar a validade de suas suposições na seqüência da leitura. 4. A interpretação do texto. Nos romances tradicionais, o leitor tem acesso a uma história e à sua interpretação, sugerida ou explicitada pelo narrador. Em muitos romances modernos, o narrador procura deixar dúvidas sobre o significado dos fatos – isso quando não afirma explicitamente que há várias interpretações possíveis para a sua história. Já em Ulisses, tanto a interpretação da história como um todo quanto a interpretação de cada um de seus capítulos e de cada uma de suas cenas (quando não das próprias frases) tornam-se um mistério a ser decifrado pelo leitor. Prova disso é a quantidade de estudos publicados sobre o romance. Nenhum leitor sozinho conseguiu identificar todos os truques, alusões e jogos de palavras criados por Joyce. Para captar todas as nuances, é preciso comprar vários livros e ler vários ensaios ou artigos, correndo o risco de deparar-se com autores que, na ânsia de interpretarem o texto, acabam vendo o que não existe e projetando conteúdos de sua própria imaginação sobre a obra.

Joyce com Sylvia Beach, editora de Ulisses, em Paris

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Imagens: Reprodução

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Ulisses é o mais extraordinário exercício dos direitos do autor, na área da ficção. Mas esse exercício criou tantos obstáculos à fruição da leitura que fez do livro o menos amigável da literatura universal, do ponto de vista do leitor

Além da atenção ao nível do detalhe e das relações internas entre os enigmas plantados por Joyce, o leitor precisa decifrar outras informações essenciais, referentes à estrutura total do enredo. Portanto, no relacionamento do leitor com Ulisses conta mais o desafio da atividade de decifração do significado do que o prazer da leitura do texto e do acompanhamento de uma história. Quando essas diferenças são percebidas, torna-se evidente que Ulisses se insere numa categoria específica de romance, bem distante do romance tradicional ou mesmo do romance dito moderno. Ulisses pertence a essa área da literatura, ou seja, à combinação entre literatura e “enigmismo”. Trata-se de um romance-enigma. Tecnicamente, não é correto designá-lo como o vêm fazendo os estudiosos da literatura, há décadas: um “romance”, e ponto. E, dentro dessa categoria, Ulisses é o mais complexo romance-enigma jamais criado. Joycianamente, aliás, proponho intitular essa categoria como “romancenigma”. Assim conceituado, é fácil entender a relação do livro com os leitores. Tratado como romance “normal” ou como uma história tradicional, Ulisses é insuportável, um texto desastroso do ponto de vista da recepção. O “enredo” e o estilo exigem um grau altíssimo de paciência, cultura, inteligência, esforço mental e elaboração do conteúdo exposto nas 957 páginas, anos-luz além dos exigidos pelos outros romances. Abrindo um parêntese: Ulisses é o mais extraordinário exercício dos direitos do autor, na área da ficção. Mas esse exercício criou tantos obstáculos à fruição da leitura que fez do livro o menos amigável da literatura universal, do ponto de vista do leitor. A diferença básica entre Ulisses e o outro romance-enigma que se tornou um clássico da Literatura, Alice no País das Maravilhas, está na relação entre o primeiro e o segundo planos da narrativa. Alice possui uma história fácil de acompanhar, no primeiro plano, o nível superficial da obra; quem se interessa, pode então procurar no segundo plano o seu nível complexo, exercendo a atividade de decifração dos enigmas plantados ali por Lewis Carroll. Já Ulisses trouxe os enigmas para o primeiro plano, deixando a história praticamente sepultada por ele. A conclusão é óbvia: entre os leitores comuns, só deve ler Ulisses quem gosta dessa categoria de romances, o romance-enigma, que possui regras específicas para a sua criação e que exige um tipo específico de relacionamento do leitor com o conteúdo e a forma do texto. Quem aprecia a compreensão e o acompanhamento de uma história, ainda que uma história elaborada com um razoável grau de complexidade, perderá dinheiro e/ou tempo se vier a se curvar à imposição da leitura desse clássico, apenas por ser um “clássico”. Aliás, foi admirável a campanha de marketing realizada pelos críticos e pelos professores de literatura, durante décadas, tentando convencer os leitores de que “todos” deveriam conhecer esse romance-enigma, escondendo, com isso, a sua destinação a quatro públicos-alvo bem específicos: os estudiosos da literatura, os escritores profissionais, os apreciadores de enigmas e os masoquistas literários. Continente junho 2004

Excerto do texto publicado originalmente em http://www.blogdoromance.com/Blog92.html


Philip Massey/James Joyce Center

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O Bloomsday

Atores durante encenação de trechos de Ulisses, em Dublin

Comemorações se estendem pelo mundo e, em Dublin, assumem caráter de atração turística Eduardo Lobo

O

dia 16 de junho de 1904 teve um significado muito especial na vida do escritor irlandês James Joyce. Foi nesta data que teve seu primeiro encontro marcado com Nora Barnacle, que viria a ser sua futura esposa, apaixonando-se por ela depois de uma caminhada romântica pelas ruas de Dublin. Sugestivamente, James Joyce escolheu esta mesma data para encenar as “épicas” perambulações de Leopold Bloom e Stephen Dedalus em seu livro Ulisses. O livro inteiro se passa no dia 16 de junho de 1904, quando Bloom e Deadalus percorrem vários pontos da capital Dublin numa grande jornada psicológica. Depois da publicação de Ulisses, em 1922, não demorou muito para o termo “Bloomsday” nascer, referindo-se ao dia 16 de junho. A primeira comemoração do Bloomsday de que se tem registro aconteceu, com um pouco de atraso, no dia 27 de junho de 1929, num almoço também celebrando a publicação da tradução em francês de Ulisses, em fevereiro do mesmo ano. O ainda jovem escritor Samuel Beckett, presente na ocasião, deixou a formalidade de lado e aproveitou para tomar umas doses além da conta. Tradicionalmente, o Bloomsday só começou a ser comemorado a partir de meados da década de 1950. A festa foi ganhando força e hoje é celebrada em mais de sessenta países. Algumas cidades como Sydney, na Austrália, e Toronto, no Canadá, homenageiam Joyce não apenas no Bloomsday, mas também promovem um festival de uma semana de duração. As festas normalmente são caracterizadas por dramatizações, leituras de trechos de Ulisses para o público, além de ser uma boa ocasião para tomar umas canecas de Guinness, a tradicional cerveja irlandesa. Como este ano é o centenário do Bloomsday, Dublin já está em festa desde 1º de abril e as atividades seguem até agosto. O clímax do festival, denominado Rejoyce Dublin 2004, acontecerá, obviamente, em junho, quando haverá reconstituição dos caminhos feitos por Bloom e Dedalus, leituras públicas, palestras, mostras, espetáculos teatrais e musicais. Prédios e pontos referidos em Ulisses ou que tenham ligação com Joyce receberão iluminação especial, como atrações turísticas. Um dos eventos mais esperados da prograContinente junho 2004


Carola Giedion-Welcker/Zurich James Joyce Center

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Detalhe do centro de Dublin, onde se assinalam os principais pontos referidos em Ulisses

Roteiro de Bloom e Dedalus 1- Taverna Barney Kiernan´s 2- Ponte O´Connell 3- Ormond Hotel 4- Rua Eccles, nº 7 (Casa de Leopold Bloom) 5- Bordel de Bella Cohen 6- Coluna de Nelson

7- Arco dos Mercadores 8- Rua Westmorland 9- Escritório do Freeman´s Journal 10- Taverna Davy Byrne´s 11- Biblioteca e Museu Nacional 12- Abrigo do cocheiro

mação é o 19º Simpósio Internacional James Joyce, que acontece entre os dias 12 e 19 de junho. A expectativa é de atrair mais de mil acadêmicos, alunos e leitores de Joyce para uma semana de oficinas, debates, palestras e apresentações, tendo como foco sua vida e obra. Milhares de turistas e admiradores do autor passarão por Dublin durante os quatro meses de festival. O Brasil também tem seus festejos joycianos para relembrar o escritor irlandês e o Bloomsday. Em São Paulo o evento já se repete há dezessete anos, no Finnegan’s Pub, desde que foi criado pelo poeta Haroldo de Campos. Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e o Recife também dão destaque para o Bloomsday. Na capital pernambucana, a seção regional da União Brasileira dos Escritores promoverá uma reunião aberta para debates e discussões acerca da obra do escritor, juntamente com entidades psicanalíticas. • Continente junho 2004


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A guerra do livro

Hans Manteuffell

Escritores pernambucanos lançam movimento reivindicando espaço para o livro local nas livrarias das grandes redes Inácio França

N

em feira bienal nem lançamento de alguma obra-prima capaz de mudar os rumos da literatura nacional. O fato que vem mobilizando escritores, editores e distribuidores locais é o lançamento do Movimento em Defesa do Autor e do Livro Pernambucanos, uma articulação de escritores independentes e de entidades como a Academia Pernambucana de Letras, a secção regional da União Brasileira de Escritores e a Academia de Artes e Letras do Nordeste. Longe de ser uma iniciativa com pretensões estéticas ou políticas, o Movimento surgiu com uma motivação de fundo econômico ou de mercado: a dificuldade encontrada pelos escritores locais de conquistarem espaço para suas obras nas prateleiras das livrarias. Com o comércio de livros praticamente centralizado nas grandes redes nacionais de livrarias, a figura tradicional do livreiro, que mantinha contato direto tanto com o leitor quanto com o autor, praticamente desapareceu. “Algumas livrarias de rede, como a Saraiva e a Nobel, praticam uma política amistosa com os autores locais, expondo títulos regionais em suas gôndolas. As outras simplesmente ignoram a produção do nosso estado”, queixa-se o economista Jacques Ribemboim, principal mentor do movimento ao lado de Vital Corrêa de Araújo, presidente da seccional da União Brasileira dos Escritores. Professor de Economia da UFRPE, Ribemboim sabe que nenhum empresário tem preconceito quando visa lucro. “A discriminação é mercadológica mesmo e não por conta de algum tipo de bairrismo. As compras são centralizadas na matriz, em São Paulo ou Rio. O problema é que a gerência de compras se nega a receber livros publicados sem a marca das grandes editoras”, assegura. A rede Sodiler, um dos principais alvos do movimento, já avisou que irá flexibilizar sua política de compras, desde que os livros sejam entregues por distribuidoras que emitam nota fiscal e toda a documentação necessária.

Durante o Fórum que o Movimento promoveu no auditório da Fundação Joaquim Nabuco, no dia 29 de abril, não faltaram relatos de escritores que bancaram as edições dos seus próprios livros e receberam sonoros “não” como resposta ao levar exemplares para as lojas das livrarias no Recife. Os pernambucanos que têm ou tiveram seus livros editados por grandes editoras nacionais acreditam que é preciso superar esse comportamento amador. “Ofereço todo meu apoio e minha energia para respaldar um movimento como esse, mas não podemos ser ingênuos. É preciso entender o mercado para enfrentá-lo com inteligência. Não se conquista um mercado tão restrito como é o editorial com lirismo e romantismo”, afirma Raimundo Carrero, autor exclusivo da editora paulista Iluminuras. O contista e dramaturgo Ronaldo Brito complementa o raciocínio de Carrero: “Não adianta, por exemplo, criar uma lei que obrigue as livrarias instaladas no Recife a reservarem uma estante para os livros pernambucanos. Perto dos livros publicados no eixo Rio-São Paulo, os nossos vão passar vergonha. Serão como patinhos feios ao lado de cisnes”. Brito não se refere à qualidade literária, mas ao alto padrão editorial de gigantes como Companhia das Letras, Nova Fronteira ou Record. “Pernambuco tem escritores de qualidade. Isso é indiscutível. Mas não tem um mercado livreiro competitivo. Não temos crítica especializada nem suplemento literário que gere discussões e alimente debates. E isso não é obrigação do Poder Público ou de governos. Precisa partir da iniciativa privada, de algum empresário disposto a correr riscos”. O escritor Cláudio Aguiar defende a consolidação da Bienal do Livro de Pernambuco e a criação de conselhos seletivos nas editoras locais como meio de melhorar a inserção do autor local no mercado dos livros. O presidente da UBE, Vital Corrêa, defende mais objetividade ao movimento: “Não podemos ficar no oba-oba, precisamos de mais objetividade. O Movimento não pode se perder no discurso paroquial e ufanista”. • Continente junho 2004


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LITERATURA Reprodução

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Manuscrito de Kafka, sobreposto sobre sua última foto, de 1924


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Kafka: “a mão estendida na

escuridão”

Franz Kafka viveu e morreu entre as duas Grandes Guerras, incrustou sua obra em todas as listas da crítica literária e, ao lado de Marcel Proust e James Joyce, figura entre os três maiores escritores do século 20 Cláudia Cordeiro Reis

“V

iena, 3 de junho de 1924. ‘Com a mais profunda dor, damos conhecimento de que nosso filho Franz Kafka morreu no dia 3 de junho, no sanatório de Kierling, com 41 anos de idade”. Essa nota de Hermann e Júlia Kafka foi emitida há 80 anos. Conforme também nos informa Aída Bárbara, em O Estado de S. Paulo, aos 3 de julho de 1983, dia em que se comemoravam os 100 anos do nascimento do autor, no cemitério judeu de Praga, “entre o túmulo de um professor e o de um fabricante de óleo, está a sepultura de Kafka. A sua lápide, escrita em hebreu, não fala de Franz, mas de Anschel, o seu nome judeu, e diz que morreu no terceiro dia do mês de Sirva, do ano hebraico de 5684”. Mas esse judeu, que escrevia em alemão, nasceu austríaco e morreu tcheco, muito pouco estaria se importando, se pudesse reconhecer que essa lápide não identifica seu nome literário, porque ele próprio negou-se a todas as etnias, a todas as geografias: “Que eu tenho em comum com os judeus? Mal chego a ter algo em comum comigo mesmo”, foi a resposta que deu à insistência de Max Brod em dar uma conotação religiosa judaica ao seu trabalho literário. Assim, desafiando a história, ele atravessou as cortinas de sangue do século 20, pois viveu e morreu entre as duas grandes Guerras, e incrustou sua obra em todas as listas da crítica literária em raro ecumenismo e, ao lado de Marcel Proust e James Joyce, figura entre os três maiores escritores do século 20. Em Conversas com Kafka (Nova Fronteira, 1983), de Gustav Janouch, obra que permitiu a Max Brod, o seu testamenteiro literário, recordar as conversas de Eckermann com Goethe, o registro: “A arte é sempre assunto da personalida-

de inteira”. Essa frase dita ao jovem admirador de 18 anos (1920), parece configurar toda a sua obra, pois, na verdade, seus textos constituem-se em uma extensa autobiografia, ele é o único protagonista de suas histórias, não importando se metamorfoseado em K., de O Processo, ou em K., de O Castelo, no jovem Karl Rossman, em América (hoje, O Desaparecido), ou em Gregor Samsa, em A Metamorfose; e outros tantos personagens, além dos animais de suas fábulas, principalmente aqueles cuja vida se resume em uma impossível fuga de uma força indomável que sempre os imobiliza, alcança e destrói, por dentro e por fora. Em todas as personagens, bichos, coisas ou pessoas, a eterna insciência para concluir ou mesmo aventar o porquê de tal arbítrio. “Os rostos de todos os dias desfilam como um misterioso exército de insetos”, declararia Kafka, ao jovem Janouch. Para ele, toda a fantasia é fundamentada no pessoal, no dia-a-dia, um narciso que, paradoxalmente, se descrevia como frágil e desprezível, mas que tinha o poder de sobrepujar-se a si mesmo. “E não tenho ‘interesses literários”, Kafka escreveu a Felice, “literatura é de que sou feito”. A grande metamorfose kafkiana é a sua própria obra, ele mesmo transubstanciado em sua grandiosa invenção. De fato, Kafka só viu ser publicada uma sexta parte de sua produção literária: A Sentença (1916), A Metamorfose (1926), Na Colônia Penal (1919), O Médico Rural (1920). Não deixou nenhum testamento, mas uma recomendação expressa ao amigo Max Brod: que destruísse toda a sua obra e a totalidade de seus manuscritos. Felizmente, não foi obedecido e devemos, a esse fiel amigo, a graça de termos em nossas estantes os volumes de uma das mais importantes Continente junho 2004

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LITERATURA 2424 realizações literárias do século 20. “As obras do espólio”, como se convencionou chamar, viriam a público a partir de três grandes romances: O Processo, O Castelo e América, além de numerosos textos, diversos em tamanho e feição: parábolas, fábulas, apólogos, contos, prosa poética, diários, cartas etc. Parte dessa produção (31 textos que Kafka jamais viu publicados) foi reunida em As Narrativas do Espólio (Companhia das Letras, 2002), com a tradução de Modesto Carone. Quando se pensava ter Kafka por inteiro, em 21 de março de 2003, o jornal O Globo noticiava a venda, pela bagatela de 1,2 milhão de euros, do espólio de Robert Kloptock: um baú contendo toda a sua correspondência manuscrita e inédita com personalidades, como Albert Einstein, Thomas Mann e Franz Kafka. O “pássaro completamente impossível”, como o próprio Kafka se autodenominou em suas conversas com Janouch, voltaria a se metamorfosear na escrita dos críticos que até hoje se debruçam em inumeráveis interpretações de seus textos. Para se ter uma idéia do que uma descoberta desse tipo pode acarretar, basta retomar-se a estatística anterior a esse fato, que consta no artigo “A Lição de Kafka”, de Modesto Carone, (1977, Folha de São Paulo): contabilizavam-se, em 1961, cinco mil títulos, e, dez anos depois, o dobro: 10 mil títulos, entre livros, ensaios, teses etc. “Em meados de 1970 já se escrevia mais sobre os textos kafkianos do que sobre o Fausto, de Goethe, por sinal, um dos seus autores prediletos”, concluiu esse excepcional tradutor brasileiro. Mas, por que nele a eterna insegurança quanto ao valor de sua obra e ainda mais o pedido de destruição depois da

morte? A psicanálise apontaria de imediato para o pai, Herman Kafka, sobre o qual o filho “medroso” escreveria: “Você adquiriu aos meus olhos aquela enigmática qualidade comum a todos os tiranos, cuja autoridade não repousa no que ele pensa, mas no que ele é”. (Carta ao Pai, Nova Época Editorial, 1966). Em todas as personagens opressoras: o chefe, o comandante, o professor, o carrasco, espelha-se essa imagem do pai. Mas, sobre a segunda parte da pergunta, julgamos de rara lucidez o parecer de Jorge Luís Borges (Folha de São Paulo, 10.12.1983): “No mais, o autor que realmente deseja a desaparição de sua obra não encomenda essa tarefa a outro. Sem dúvida Virgílio e Kafka não desejavam profundamente a destruição de seus escritos: só queriam desligarse da responsabilidade que uma obra sempre nos impõe. Kafka, como Chesterton, teria preferido a redação de páginas felizes, mas sua felicidade não condescendeu em escrevê-las”. Na “impossibilidade absoluta de ser socorrido” (utilizando aqui uma frase do kafkiano Alberto da Cunha Melo), um ser esmagado por contingências poderosas das quais desconhece a procedência e a razão é vítima de uma espécie de um determinismo indissolúvel do cerceamento da vontade, a percorrer toda a obra do autor, seja nas narrativas longas, ou curtas. Nelas, o estranhamento, se confinado ao universo ficcional tecido pelo autor, ganha tal verossimilhança que nos obriga a reconhecer uma profunda coerência, bem distante do absurdo com que se costuma rotular as suas obras. O mundo construído por Kafka não é absurdo, é meticulosamente ordenado pelo Imagens: Reprodução

Centro de Praga, capital da Tchecoslováquia, em 1890, onde morou Kafka


LITERARTURA homem que se torna vítima de sua própria ordenação. Nesse universo, a sensação de estranhamento do leitor se funda em fatos “absurdamente” cotidianos, banais e até grotescos, quando não, risíveis. Estaríamos então diante de uma espécie de banalização do absurdo, ou do absurdo da própria banalização, que talvez se sedimente no vocábulo simples, na sintaxe clássica, em meio às mais espessas sombras que repousam indevassáveis e invencíveis sobre as suas personagens. Não raro, o leitor será removido do âmbito de toda a percepção automatizada, para uma atmosfera angustiante e vertiginosa. Comentando a crítica de Kasimir Edschmid, registra Janouch uma fala de Kafka: “Edschmid afirma que manipulo os fatos banais para neles introduzir o maravilhoso. É naturalmente um grave erro de sua parte. A própria banalidade já é maravilhosa! Só anoto”. A sua particular habilidade de “anotar” os fatos mais corriqueiros, talvez resida no detalhamento da sensação mais do que da ação. Como a maçã enterrada no corpo do monstruoso inseto em que se tornou Gregor Samsa, em A Metamorfose: “Uma que logo se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele; Gregor quis continuar se arrastando, como se a dor surpreendente e inacreditável pudesse passar com a mudança de lugar: mas ele se sentia como se estivesse pregado no solo e esticou o corpo numa total confusão de todos os sentidos”. Observe-se a coerência entre esse fragmento e o testemunho de Kafka a Janouch dizendo não existir nada de definitivo, concluindo que “definitivo só há o sofrimento”. A própria indefinição de tudo já configura a dor. Como em “As Árvores”: “Porque somos como troncos de árvores na neve. Aparentemente, apenas estão apoiados na superfície, e com um pequeno empurrão seriam deslocados. Não, é impossível, porque estão firmemente unidos a terra. Mas atenção, também isto é pura aparência”. O foco narrativo completa a harmoniosa e coerente agonia. Sentado quase que confortavelmente em um “ponto de fuga” elegido pelo autor, na linha do horizonte, o narrador, em primeira ou terceira pessoa, apenas “anota” o formidável desamparo de suas personagens numa onisciência paradoxalmente insciente, lacônica, fria: uma aparente aceitação do curso dos acontecimentos. Como em “O Povoado mais Próximo”, da obra Um Médico Rural, onde o ser, sob constante ameaça, é sentenciado a uma espécie de imobilidade preste a derrotar toda a esperança, bastando para isso um único movimento: “Meu avô costumava dizer: – A vida é assombrosamente curta. Agora, ao recordá-la, aparece-me tão condensada, que por

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Desenhos de Kafka, nos tempos de estudante universitário

exemplo quase não compreendo como um jovem pode tomar a decisão de ir a cavalo até o povoado mais próximo, sem temer – e descontando certamente a má sorte – que mesmo o lapso de uma vida normal e feliz não chegue para começar semelhante viagem”. A “vida normal e feliz” nunca chegaria, mas, próximo à sua morte, Kafka tem um relacionamento aparentemente pacificador com Dora Diamant, a quarta mulher de sua vida e de sua morte, embora o Cartas a Milena configure ser Milena Jesenka, seu verdadeiro caso de amor. Milena, como as três irmãs judias de Kafka, também foi assassinada nos campos de concentração nazistas. Ela não era judia, mas fez parte de organizações que promoviam a fuga de judeus da Alemanha hitlerista. No entanto, é Dora que permanecerá ao seu lado, até o dia 3 de junho de 1924, juntamente com o devotado amigo Robert Kloptock, quando a tuberculose já havia sugado todas as possibilidades de vida corpórea do judeu, que escrevia em alemão, nasceu austríaco, morreu tcheco e assim definiu a Arte: “A Arte é, como a prece, a mão estendida na escuridão, que quer apanhar uma parte de graça para se transmutar na mão que dá”. • Continente junho 2004


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ZERO

Alberto da Cunha Melo

Hábitos de ler e vender livros “Oh! Bendito o que semeia/ Livros... livros à mão cheia.../ E manda o povo pensar!” (Castro Alves)

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migos levaram-me à 18ª Bienal do Livro de São Paulo realizada em abril, no Centro de Exposições Imigrantes. Dei um pulo no estande da editora A Girafa (SP), e autografei uns três exemplares do meu livro Dois Caminhos e uma Oração, editado pelos poetas-editores José Nêumanne Pinto e Pedro Paulo de Sena Madureira. Naquele oceano de títulos se não tive um “alumbramento” como Manuel Bandeira ao ver a primeira mulher nua, senti-me orbitando na Galáxia de Gutemberg (1962) (The Médium is the Message), título do livro do canadense e “oráculo da era eletrônica”, Marshall McLuhan, que anunciou a morte do livro, assim como Nietzsche anunciou a de Deus e Fukuyama a da História. Vieram os micro-computadores, os lap-tops, a TV a cabo, a Internet, o escambau, e aquela galáxia, ao invés de explodir, cresceu. Não tanto em periferias, como o Brasil, onde os best-sellers têm uma tiragem mixuruca de cinco mil exemplares, enquanto aquelas mesmas porcarias têm edições iniciais de 500 mil a 1 milhão de exemplares, nos EUA, segundo informação do editor brasileiro Oswaldo Siciliano. A Internet, por exemplo, ao invés de matar o livro, está ajudando a vendê-lo, como aconteceu com a última obra de Stephen King, Riding the Bullet, lançado exclusivamente por aquele sistema, e que teve um resultado estrondoso: foram vendidos 400 mil exemplares no primeiro dia. O que antes era uma mera proposição ou hipótese, pode ser considerado hoje em dia um axioma: os meios de comunicação não se excluem, complementamse. O que talvez seja previsível no Ocidente é o fim da poesia para ele. Não por falta de poetas ou poemas, mas de editores. Já se disse que a tiragem de livro de poesia Continente junho 2004

no Brasil era a mesma de Porto Rico, que tem 2% da população brasileira, mas não se explicou se foi antes ou depois de ele tornar-se um Estado norte-americano. Transcrevo mais uma vez aqui a opinião do sociólogo e editor Pedro Vicente da Costa Sobrinho: “a poesia tem-se tornado uma arte marginal no mercado editor”. É sempre bom lembrar que o Brasil é um dos países mais mesquinhos do mundo, quando se trata de Poesia, que é para mim a quintessência da linguagem humana. Lembrar, por exemplo, que o primeiro livro de Manuel Bandeira, Cinza das Horas, teve uma edição de 200 exemplares, em 1917. Na Bienal de São Paulo eu suspeito que a lanterninha de vendas tenha sido a poesia. Estou com um bocado de estatísticas nas mãos, da Bienal do Rio e de Frankfurt (nesta, sucesso de Paulo Coelho e Chico Buarque com seu Budapeste) em 2003, e da recente de São Paulo, mas desconfio de todas as estatísticas, as oficiais e as da iniciativa privada, que procuram mostrar tudo, como as boazudas da praia, menos o essencial. Eu que faço parte do segmento mais numeroso deste país, os “sem-renda”, não pude comprar na Bienal um só livro ou levar para casa um mísero meteorito da Galáxia de Gutemberg. Mas lá dentro, na vertigem de tantos títulos, senti-me vingado da arrogância de McLuhan, como me sinto remido da petulância autoritária dos poetas concretos, que confessaram abertamente o assassinato do verso, para onde voltam todos, agora, por desconhecidos determinismos estéticos, entre eles o da humildade universal. Os livros de poesia que vi expostos eram todos escritos em versos... A redução progressiva de renda e de emprego neste governo tão popular do PT deve ter provocado a queixa


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dos editores na 18ª Bienal de São Paulo de uma discutível queda de grande parte das vendas, da ordem de 40%, em relação às bienais anteriores (dados do Jornal do Brasil). Isso ocorre precisamente quando o governo promete estímulos oficiais para aumentar, em nosso semi-analfabeto país, o hábito de leitura. Caso esse hábito se desenvolva de modo similar ao que aconteceu comigo e aos meninos de minha idade nas cidades do interior, teria que ser restaurado o esplendor do “gibi” em plena parafernália eletrônica de nossos dias. Foi lendo as histórias de Tarzan, Homem-Borracha, Batman, Super-Homem, Capitão Marvel e família, além de uma publicação em quadrinhos chamada Epopéia, com as sagas de Ricardo Coração de Leão, do Máscara de Ferro e dos Cavaleiros da Távola Redonda, que me iniciei no reino da leitura. Depois, veio a X-9, contos policiais e uma secção de páginas amarelas com casos célebres. E aquela troca de “gibis” na calçada do cinema, nas manhãs de sábado... Tudo isso tinha virado um costume salutar, que teve suas conseqüências positivas.

Dizem os sociólogos de hoje que é mais fácil induzir mudanças para a aceitação de itens tecnológicos do que para alterar costumes e valores arraigados no âmago das comunidades. Introduzir o hábito de leitura talvez implique, hoje em dia, nas dificuldades de mudar hábitos de uma geração de crianças e adolescentes que crescem diante de monitores. Fazê-los (falo da população infanto-juvenil urbana muito acima da linha de pobreza) largar TVs e computadores para pegarem num livro vai ser um desafio que eu (perdoem-me a ignorância) não sei como será vencido. Quem sabe se as crianças e adolescentes excluídos dos bens modernos, inclusive das tecnologias da comunicação, não aceitariam o livro de forma mais fácil e espontânea? Que os doutores dos ministérios gastem seus parcos e partidários neurônios em resolver a questão. Para mim e para os velhos companheiros de geração, o livro sempre foi a máquina do tempo sonhada por Júlio Verne, ou o mais barato meio de viajar – para aqueles que nasceram na palha. •

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CINEMA

Set de filmagem na África. Diretores, atores e roteiristas estão preocupados com o neocolonialismo audiovisual

Um cinema de resistência Festival de filmes africanos em Milão, na Itália, revela um cinema criativo, mas totalmente desconhecido no Brasil e, em geral, no resto do mundo Guilherme Aquino, de Milão

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cinema produzido na África não só volta as suas lentes para o resgate de sua identidade fragmentada – ou a descoberta de uma nova – como também propõe uma outra postura diante de um mundo cada vez menor, intolerante e pasteurizado. Temas religiosos, sociais e políticos ganham as telas em forma de imagens e diálogos ácidos. “Estou cansado de ser preto e africano, pois antes de tudo sou um ser humano e senegalês”, diz o personagem de um filme rodado em Paris, sobre a discriminação sofrida na pele dos africanos que se exilaram nas grandes metrópoles européias.

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CINEMA

Diretores, atores, roteiristas estão preocupados com o neocolonialismo audiovisual. O elevado grau de analfabetismo na África faz do cinema um importante instrumento de educação e contra-aculturação. “O cinema na TV não pode ser visto apenas como entretenimento, mas verdadeiramente como meio de formação. Ele tem uma grande responsabilidade na educação dos novos africanos. Nem sempre nos damos conta, mas o lixo, as piores produções do cinema mundial ocupam as telas das salas de cinema na maior parte dos países africanos. Agora, com a TV, finalmente já se pode ver um pouco mais a própria imagem. As novas produções locais se preocupam em contar o cotidiano, o que acontece no quintal de casa, suas estórias. É alienante ver sempre imagens de um mundo no qual ele, o africano, não está inserido, ou, se está, é figurante. Uma vez um jovem diretor argelino estava rodando no deserto, mostrando uma tenda de beduínos com uma TV que funcionava com bateria. Eram imagens da América diante de um espectador passivo, que se submete apenas porque não tem possibilidade de escolha”, analisa Anna Maria Gallone, diretora do Festival de Cinema Africano, realizado recentemente em Milão, na Itália. Na sua 14ª edição, o Festival trouxe para o continente europeu as principais produções africanas, abrindo também janelas para o cinema asiático e latino-americano. Este, e os festivais de Los Angeles e Ougadougou, em Burkina Fasso, são as únicas vitrines para os diretores africanos. Cem filmes, entre curtas, médios e longas-metragens, em película e vídeo, formam um retrato fiel do cinema criativo e de resistência realizado na África. Uma prova de que o continente é bem maior do que os problemas de financiamento às produções locais. “Os patrocinadores clássicos, como a França, diminuem o aporte de dinheiro, mas, a meu ver, a questão

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mais séria é a da distribuição. Se existe o cinema africano, infelizmente ele não é visto nem nas salas da África e nem nas da Europa. E isso é muito grave, pois significa negar-lhe a própria existência”, diz Anna Maria. “E não é só um caso de distribuição, mas também de criação de pólos cinematográficos na região”, acrescenta o senegalês As Thiam, realizador de Le Sifflet, um filme com 22 minutos de duração, resultado de uma co-produção da França com o Senegal. O curta conta a estória de um casal de cegos que, por causa da greve de ônibus, é obrigado a ir até a cidade caminhando através do campo. “Conseguimos verbas para os nossos filmes no exterior, mas depois somos obrigados a montá-los na Europa. Seria muito melhor se criássemos um centro de produção em Ougadougou, um outro centro de edição em Casablanca, assim por diante. Desta forma poderíamos espalhar e criar novos empregos e manter todo o processo cinematográfico na África”, opina o diretor. A seleção para o Festival não foi fácil e diante do alto nível dos filmes inscritos em vídeo e digital, com custos mais baixos, os organizadores foram obrigados a estender o Festival às produções nestes formatos. O resultado foi um leque de estética – do lay out publicitário ao documentário nu e cru – e de linguagem tão variada que desautoriza qualquer um a generalizar o cinema africano. Mas, com raras exceções, a temática que varre o continente encontra um denominador comum nas estórias da diáspora negra, nas tradições orais e no confronto das gerações nascidas na Europa com aquelas ainda radicadas na África. Sobra espaço, ainda, para mostrar os efeitos da modernizaçao sobre o cotidiano dos africanos. Um bom exemplo desse último ponto é a chegada da telefonia móvel à África, um fenômeno recente que tem alte-

O diretor senegalês Ousmane William M’Baye, que realizou Xalima La Plume; o marroquino Faouzi Bensaidi, diretor do filme Mille Móis; e Katy Lena N’Diaye, do Senegal, que dirige Traces, Empreintes de Femmes

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CINEMA

Cena do curta L’Autre Côté. Na outra página, Le Sifflet, dirigido pelo senegalês As Thiam

rado o hábito de muitos vilarejos. Uma observação sobre este processo levou o cineasta Rasmane Tiendrebeogo, de Burkina Fasso, a criar um filme de animação. Tiga au bout du fil revela, com muito bom humor, a “descoberta” das vantagens e, rapidamente, das desvantagens do celular. Um vigia acha, por acaso, o telefone do patrão e a partir daí coloca-se em contato com o seu próprio mundo e o do seu chefe. “A telefonia móvel revolucionou o mundo da comunicação em todos os países e sobretudo no meu, basta ver a vida de todos para perceber que o celular é muito importante. Principalmente para as pessoas mais pobres. Normalmente elas desconhecem que existem as contas por trás, que são altas e devem ser pagas, e depois que o compram e usam, vêem-se obrigadas a vendê-lo”, comenta Rasmane. E vai mais além: “Como artista na África você tem muito a dizer, basta ver as pessoas no próprio ambiente, basta olhar os seus movimentos, escutar com atenção o que dizem. O trabalho artístico é o resultado de um olhar na realidade ou no imaginário”. Já a diretora de Traces, Empreintes de Femmes, Katy Lena N'Diaye, do Senegal, decidiu fazer um contraponto às produções sobre a tradição dos famosos murais pintados pelas anciãs de um vilarejo do interior de Burkina Fasso. “A maior parte das mulheres que encontrei pinta o muro como um trabalho qualquer e são chefes de família. É verdade que as pinturas são bonitas, sensuais, mas essas mulheres são operárias num canteiro de construção; não é fácil trabalhar a pintura com a terra seca, deve-se esperar a chuva. Elas chegam às sete da manhã e terminam às sete da noite, tem muito trabalho físico. É uma sinfonia em que cada uma tem o seu papel. Li muito sobre esses murais, assisti a pequenos documentários que exaltavam as pinturas extraordinárias, mas nunca mostravam quem eram as mulheres que os faziam. Na minha estória um ponto central é o da transmissão oral desta técnica”, revela a cineasta que hoje vive em Bruxelas, na Bélgica. Outra africana exilada e que retorna ao seu país por trás de uma câmera de filmar é a angolana Pocas Tisserand, diretora de Il y a Toutjours Quelqu’eun qui T’aime, uma espécie de catarse para exumar a dor da perda da irmã e do autoexílio. “Trata-se da minha estória íntima, da morte da minha Continente junho 2004

irmã. No momento em que ela morreu eu perdi muito a minha memória e duvidei do que tinha acontecido durante a guerra de Angola, quando nós duas fomos presas por um dos partidos no país. E neste momento em que ela morreu, eu tive a necessidade de retornar para Angola, para poder encontrar esses lugares onde vivemos esses momentos difíceis”, conta a diretora que ficou quase vinte anos sem voltar à terra natal. “O meu filme é universal e nem estou à procura de um estilo africano. Apesar de viver na França, de ter estudado cinema na França, trabalhar como montadora, noto que o cinema europeu é também universal. A linguagem do cinema africano segue por este caminho”, teoriza. Pocas Tisserand diz que descobriu o país em ruínas físicas e psicológicas e que há muito que fazer. “O Ministério da Cultura em Angola existe só há um ano e meio; acho que isso diz tudo, não?!”, exclama. Temas – O conflito entre o pai marroquino que nutre um sentimento de inferioridade em relação ao filho, advogado de sucesso em Paris, o racismo dos moradores de uma cidade em Camarões contra os pigmeus da floresta, a vida dos negros sul-africanos nas minas de ouro do país, a história política do Instituto do Cinema de Moçambique e o seu papel com os cinejornais na luta pela independência, um trem no interior da África como o elo entre a infância e a vida adulta de homem, as fortes raízes dos ancestrais, estes são os temas do cinema africano. Aliás, o culto aos antepassados e a espiritualidade nascida desta relação são elementos fundamentais na história oral


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“As novas produções locais se preocupam em contar o cotidiano, o que acontece no quintal de casa, suas estórias. É alienante ver sempre imagens de um mundo no qual ele, o africano, não está inserido, ou, se está, é apenas figurante” menção ao tema do sagrado e do profano. Faousi explica que “queria que o título remetesse à noite de Ramada, que é a vigésima sétima noite do mês de Ramadã, em que acontecem muitas coisas aos personagens. Medi, o menino, pecou, não jejuou, e então entra neste mundo de morte; a mãe, Amina, sente uma espécie de tentação em relação ao amigo do marido que está na prisão; e o avô rouba a cadeira de casa para ganhar dinheiro. Diz-se que esta é uma noite em que Satanás não vem à Terra, já que ele está preso em uma bola de fogo e de ferro, e os homens estão protegidos da tentação, do pecado e do mal. Todos são santos nesta noite, mas o que eu queria mostrar é que nesta noite existe muita fraqueza humana, e que Satanás está presente sobre a Terra.

e escrita da África. Não em poucos filmes esta relação com o sobrenatural permeia os personagens. O realismo fantástico está presente na figura de bruxos e pajés que curam e intuem o futuro e o destino de uma pessoa ou de um grupo. Mas, em tempos de terrorismo islâmico, o tema religião é sempre delicado. O filme Mille Móis, do marroquino Faouzi Bensaidi, longa-metragem de estréia deste premiado diretor de curtas, conta a estória de um menino, sua mãe e seu avô no interior do país. A religião do Marrocos é a mulçumana e, até mesmo sem querer, a estória acaba desvendando algumas páginas do Corão para os laicos, católicos e curiosos em geral. “Um espectador me disse que todos os católicos deveriam ver o filme. Gostei muito disso, mas eu nunca estive interessado pelo islamismo, a religião está na moda, lamentavelmente, e eu não queria que o meu filme fosse ligado à religião. A religião no filme não é simples e nem vista de um só lado, ou seja, em alguns momentos estamos em uma posição de rejeição a ela, como aos preceitos e às leis. Em outros momentos, pode-se falar de transgressão da religião e, em outros ainda, de admiração, um olhar admirador pelo que a religião veicula como imaginário muito aberto”, explica o diretor vencedor do Festival. O próprio título do filme Mille Móis (Mil Meses) é uma

Espaço – A África é dona de dimensões continentais, do vazio, do território infinito. Assim, de uma forma ou de outra, as longas distâncias e os tempos de ausência ganham importância nas obras de muitos cineastas. Faouzi confirma o espaço como personagem. “Eu acredito muito na força de um corpo que atravessa um espaço, e é por isso que eu filmo muito a distância, eu procuro este efeito”, conta. E acrescenta: “As locações , os espaços, têm uma importância enorme. Contam muito das emoções que quero passar. Quando acho um espaço para o filme tenho a mesma felicidade de quando encontro um ator para o personagem. Mas, segundo os meus produtores, comigo é sempre complicado. Com Mille Mois, aconteceu-me gravar numa sala de cinema que está a 400km de onde a gente estava filmando. Mas eu disse que era absolutamente necessário que a gente gravasse naquela sala de cinema, os produtores me disseram que não, que havia uma outra sala mais perto, não valeria a pena ir tão longe. Mas eu fiquei irredutível. Aquele cinema me interessava porque de uma só vez ele conta outras coisas, um pouco a estória dele próprio, com um afresco magnífico no seu interior. Tinha que ser aquele e não outro”, insiste. Faousi Bensaidi compõe as cenas como uma partitura de imagens. “Eu gosto da idéia de um filme que começa lentamente. Gosto de trabalhar de forma calma e sutil, não fazer um filme de impacto. Meu filme é de pequenos moContinente junho 2004


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CINEMA

Cena do filme de animação Tiga au bout du fil, de RasmaneTiendrebeogo, que revela, com muito bom humor, a descoberta das vantagens e, rapidamente, das desvantagens do celular

vimentos, mexe um pouco com a expectativa do público. Normalmente um professor diria que não se mata um personagem ao qual se dá tanta importância no começo. Eu o fiz e surpreendi a platéia com um solo inesperado. Tento compor a estória de um ponto de vista musical, como uma abertura, um primeiro movimento, um segundo movimento...”, revela o cineasta. Sobrevivência – Não é fácil viver de cinema na África. Com pouca exceções, muitos cineastas têm uma segunda atividade para sobreviver, enquanto lutam por financiamentos. O diretor Ousmane William M’Baye é filho da primeira jornalista mulher do Senegal. Ele realizou Xalima La Plume, um documentário sobre o retorno do exílio do músico Sydina Insa Wade, um pioneiro do folk no país. Ao ser perguntado sobre o que fazia para pagar as contas quando não estava à frente de um projeto, ele respondeu: “Esta pergunta também deve ser feita a outros oito milhões de senegaleses”. Para o brasileiro José Tavares de Barros, presidente do júri do Festival de Cinema Africano, pelo fato de os filmes africanos não serem distribuídos no Brasil, “estamos perdendo alguma coisa que diz respeito à nossa própria etnia. Nós somos formados pelos portugueses, indígenas e africanos. O Continente junho 2004

fato de não haver este intercâmbio diminui o nosso conhecimento do mundo. Em geral, da África, sabemos apenas sobre os eventos de Ruanda, os problemas e massacres, mas os verdadeiros valores, que são, por exemplo, a vida em comunidade, a tradição oral, nós perdemos. E quando um desses valores nos chega há uma receptividade imensa. Existe um filme de animação, um desenho animado, chamado Kiriku e a Feiticeira, um filme produzido na Bélgica a partir de uma lenda original de um país africano. Este filme foi recebido de uma forma excepcional na França, com cinco milhões de espectadores, algo inédito para um filme de animação que não é infantil, ele serve às crianças mas também serve a um público adulto. E no Brasil este filme foi exibido e está sendo distribuído em videocassete e passado em alguns cineclubes. E isso comprova que se este material chegar será bem recebido”. Nos filmes africanos exibidos, José Tavares destaca uma tendência: “É a narrativa de uma resistência. Ou seja, tanto no meio das crianças, das pessoas simples dos povoados, quanto também da própria sociedade, encontramos um discurso sobre a opressão e a resistência. São em geral personagens e protagonistas que buscam, com êxito ou não, sair da opressão”. •


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CINEMA

Divulgação/Cine-PE

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O Festival do Recife apresentou uma programação mais enxuta e concluiu sua oitava edição fortalecendo-se e confirmando a marca registrada da platéia mais vibrante do país Alexandre Figueirôa

A vitrine do cinema

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s festivais de cinema e vídeo estão definitivamente na moda. No Brasil já existem cerca de 85 catalogados. O Cine-PE Festival do Audiovisual, ocorrido entre 29 de abril e 5 de maio, foi mais uma vez um sucesso com milhares de pessoas lotando diariamente o Centro de Convenções de Pernambuco. Esse tipo de mostra é uma vitrine para o cinema brasileiro e números divulgados pelo Fórum dos Festivais, reunido no Recife no mesmo período, comprovam tal fato. Por ano, esses eventos captam R$ 22 milhões de investimentos, geram nove mil postos de trabalho e promovem 16 mil exibições de curtas e longas-metragens para cerca de dois milhões de espectadores. Fortalecidos como promotores da indústria audiovisual, os coordenadores devem lançar brevemente um selo de qualidade dos festivais e, a despeito dos pessimistas – como um certo produtor cinematográfico que, durante o Cine PE, divulgou num jornal do Recife um artigo ressentido e com erros de informação –, eles têm o apoio da crítica e os aplausos do público. O Cine PE recebeu realizadores de todo o país e consolidou seu prestígio na mídia nacional. O Festival recifense também serve como termômetro para mudanças na área: abertura para filmes de perfil mais comercial entre os concorrentes e o crescente uso de tecnoContinente junho 2004

logia digital na captação da imagem. A primeira mudança suscita questionamentos, embora para o freqüentador do Cine PE, aparentemente, isto não se constitua um problema. Os longas selecionados são convidados pela coordenação do Festival e têm respaldo em pesquisa feita em anos anteriores. Foi isto, por exemplo, que determinou, ao contrário de edições passadas, a presença de apenas um documentário e de obras que não precisariam estar concorrendo ao Calunga (troféu do Cine PE), como Viva Voz, de Paulo Morelli, quiproquó high-tech que usou o Festival como palco para sua pré-estréia no circuito comercial. Já o uso de câmeras digitais é uma transformação incontornável. Entre os longasmetragens, um dos trabalhos mais premiados foi o paulista Contra Todos, filme de estréia de Roberto Moreira – levou cinco prêmios, entre eles, o de Melhor Direção e o Prêmio da Crítica. A obra mergulha no universo suburbano da maior cidade do país e, apesar de alguns exageros, causa impacto pela inquietação provocada. Rodado com uma câmera miniDV das mais simples, ele segue a linha de um novo realismo pontuado pelo improviso interpretativo e dramatúrgico. É visivelmente o oposto de O Outro Lado da Rua, de Marcos Bernstein – prêmio de Melhor Filme e Melhor Atriz para Fernanda Montenegro – obra bem-cuidada feita com os recursos tradicionais do 35 mm, mas que parece constranger


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val. Uma delas é a qualidade dos filmes de animação. No Cine PE eles ganham destaque na programação e, como os curtas-metragens em 16 mm, são exibidos no horário nobre. Os quatro filmes exibidos – Portinholas, dos alunos da Rede Municipal de Ensino de Vitória-ES, O Fantasma da Ópera, de Ale Machado, O Curupira, de Humberto Avelar, premiado pelo júri, e A Moça que Dançou Depois de Morta, de Ítalo Cajueiro; divertiram a platéia e mostraram bom nível de realização e criatividade ao investirem em temas da cultura brasileira. Outros filmes que não poderiam ser esquecidos são: Transubstancial, de Torquato Joel, prêmio da Melhor Fotografia, visão existencialista da obra do poeta Augusto dos Anjos, reafirmando o diretor paraibano como um dos mais inspirados artesãos de imagens do país; Truques, Xaropes e Outros Artigos de Confiança, de Eduardo Goldenstein; Jonas, de Allan Sieber; Bala Perdida, de Victor Lopes, considerado o Melhor Filme pelo júri e Thelastnote.com, de Leo Falcão, o preferido entre os curtas pelo voto popular. Um capítulo à parte deve ser dedicado à produção pernambucana vista na tela do Teatro Guararapes. Não há dúvida da habiPE é a mais vibrante do país. Na página anterior, cena de Contra lidade de Leo Falcão como realizador proA platéia do Cine-P Todos, que levou cinco prêmios, entre eles, o de Melhor Direção e o Prêmio da Crítica missor. Seu trabalho revela um roteiro bem armado, direção precisa, montagem idem, mas denota a falta de algo que sobra em Camilo CavalcanEntre os curtas-metragens também vemos a imagem registrada por equipamento digital, não devendo nada aos te com o controverso A História da Eternidade (curiosasuportes tradicionais. Os filmes em 16 mm, apesar da boa mente o único filme vaiado e aplaudido de todo o Festival): vontade e criatividade dos cineastas, acabam sofrendo res- um tom mais visceral. Em Thelastnote.com até as contraditrições técnicas visíveis. É legal vê-los exibidos junto com ções do personagem são mostradas com assepsia quase hosos demais concorrentes – os realizadores, em geral, recém- pitalar – num curta cujo tema poderia provocar mais inquieegressos das escolas de cinema adoram esta possibilidade tação. Ventilador, de Leonardo Lacca, é uma brincadeira. – mas eles se mostram visualmente inferiores aos filmes Porcos Corpos, de Sérgio Oliveira é, infelizmente, uma boa feitos com câmeras digitais e transferidos para cópias em idéia que não alcança o que pretende. Mas o pior exemplo 35 mm. O que os digitais contam também apresenta – pro- veio de uma obra que não fez jus ao que se propôs. É Mais gressos sensíveis, seja no gênero documental, como se viu Fácil um Boi Voar, de Marcílio Brandão, pretendia ser no carioca Batuque na Cozinha, de Anna Azevedo, que le- “um registro documental, etnográfico e musical, em forvou de forma merecida todos os prêmios na sua categoria, ma de ficção, da cultura pernambucana”, mas o que se viu seja na ficção. Entre estes o paranaense Infinitamente Maio, foi um longo videoclipe, como os que as emissoras locais de Marcos Jorge e o paulista Seu Pai Já Disse que Isso Não de televisão realizam, anunciando a programação de carÉ Brinquedo, de Kiko Mollica, concebido a partir do pon- naval. Deu para sentir saudade do cineasta Fernando to de vista de inúmeras câmeras, foram alguns dos exercí- Spencer com seus documentários clássicos sobre a culcios mais estimulantes deste ano no Cine PE. tura popular pernambucana, num tempo em que a pesSeria injusto, porém, num balanço do evento não fazer quisa dessas manifestações ia além de cores exóticas menção a outros aspectos observados nos sete dias do Festi- para turista ver. • Edvaldo Rodrigues/DP

seu realizador a filmar de maneira convencional um tema cuja motivação – uma aposentada bisbilhoteira e dedo-duro – poderia suscitar algo mais contundente. É também muito superior ao irregular Garrincha, Estrela Solitária, do mineiro Milton Alencar Jr., prêmio de Melhor Filme no voto popular. A produção tem reconstituição de época desajeitada, interpretações pífias e uma concepção visual anacrônica.

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Moncho Rodriguez e Weydson Barros Leal, autores de Caetana

O poeta e o encenador Numa parceria inédita, o poeta Weydson Barros Leal e o dramaturgo Moncho Rodriguez montam Caetana Luís Augusto Reis

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scrita a quatro mãos, a peça Caetana, que estréia em julho, é o resultado do encontro entre o poeta Weydson Barros Leal e o encenador Moncho Rodriguez, espanhol radicado no Nordeste há 19 anos. Amplamente reconhecidos em suas respectivas áreas de atuação, esses dois artistas se uniram há alguns meses em torno de um desejo em comum: escrever para teatro. A rigor, antes de se conhecerem, ambos já haviam ensaiado algumas experiências dramatúrgicas. Weydson ainda guarda em suas gavetas “umas três ou quatro peças escritas anos atrás”. Moncho, por sua vez, lembra que chegou a trabalhar “pequenos textos seus em Portugal; mas nada de maior relevância”. Somente agora, satisfeitos com o resultado obtido em Caetana, os dois perceberam que esse era o momento de levar sua escritura aos palcos, dividindo-a com os espectadores, transformando-a em um espetáculo teatral pleno, produzido profissionalmente.

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Fotos: Hans Manteuffell


De estrutura simples, lembrando por vezes autos vicentinos ou farsas medievais, Caetana propõe um diálogo entre uma rezadeira nordestina (Benta) e “sua parceira”, a Morte

De pronto, após ouvir Weydson recitar seu poema “Caminho”, publicado originalmente no livro Os Ritmos do Fogo (1999), Moncho o convidou para escreverem um texto teatral em parceria. “Todos os anos passamos pelo dia de nossa morte”, foi esse o verso que desencadeou uma profusão de imagens teatrais na cabeça desse encenador que, já há algum tempo, procurava um texto que abordasse a problemática da morte de forma poética. “Depois de andar às voltas com o mito de Don Juan, e depois de investigar diversas significações do diabo, parece-me natural que eu desejasse discutir em cena as questões da morte”, diz Moncho. Foi ele, portanto, quem concebeu as linhas mestras da peça. De estrutura simples, lembrando por vezes autos vicentinos ou farsas medievais, Caetana propõe um diálogo entre uma rezadeira nordestina (Benta) e “sua parceira”, a Morte. Por intermédio de recursos do teatro de bonecos, diversas figuras, arquétipos presentes na tradição do mamulengo, vão surgindo na história, interagindo com as personagens centrais da trama. Repletos de vícios e de pecados, parecem querer mostrar que nem “do lado de lá” estaremos livres das imperfeições humanas. A Weydson coube a tarefa de cuidar da métrica e da rima dos diálogos. Tendo poucas falas em prosa, esse zelo na elaboração das frases assume uma importância definitiva na recepção da obra. Não se trata, todavia, de um “poema dramático”, no sentido clássico do termo. Nem tampouco se trata de uma coletânea de poemas alinhavados por uma fábula teatral. Visitando a riqueza das fontes populares, mas sem abrir mão da erudição, Caetana é uma peça teatral que valoriza o verso, o ritmo e a musicalidade de um texto escrito para ser dito pelos atores. “Sempre senti um prazer enorme ao assistir a espetáculos teatrais rimados e metrificados. Cria-se uma atmosfera mágica, densa, dentro do teatro; uma atmosfera que nos transporta para outras realidades”, diz Weydson. Esse cuidado com o texto não se limitou à escrita da peça. Presente em quase todos os ensaios, o poeta supervisionou de forma rigorosa a declamação do elenco, formado por Lívia Falcão e

Caetana valoriza o verso, o ritmo e a musicalidade de um texto escrito para ser dito


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Fotos: Hans Manteuffell

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Fabiana Pirro. Além de atuarem, as duas atrizes assinam a produção do espetáculo. Para Moncho, esse tipo de preocupação com a prosódia também não é novidade. Embora seja um diretor muito afeito aos elementos visuais da cena, ele não abre mão de trabalhar com uma literatura dramática capaz de se impor de forma autônoma na elaboração do espetáculo. Sempre em busca de um “teatro essencialmente nordestino”, tão mítico quanto popular, no qual se ouvem os ecos do catolicismo barroco da península Ibérica, Moncho tem encenado peças de autores de destaque na dramaturgia contemporânea do Nordeste, tais como Ronaldo de Brito, Lourdes Ramalho, Oswaldo Barroso e Racine Santos. Porém, é a primeira vez em que aparece como co-autor do texto encenado. E essa parceria com Weydson Barros Leal parece estar apenas começando: já existe uma segunda peça em andamento. Dessa vez, escrita quase toda por Moncho e entregue a Weydson apenas para a elaboração das cenas finais. Renovação – “Como sempre tive influências de poetas europeus, esse encontro com Moncho – que por sinal eu nem sei se é nordestino ou europeu – me reaproximou do popular brasileiro. Sempre admirei dramaturgos que conseguem dar uma dimensão poética à linguagem mais coloquial, mais próxima ao dia-a-dia do povo”, afirma Weydson. Por outro lado, ele também comemora o fato de ter conseguido escrever uma peça que apresenta vários momentos de comicidade, pois reconhece que em sua poesia não existe muito lugar para o jovem alegre e bem-humorado que foi. Nesse prisma, o teatro representa para ele uma feliz oportunidade de renovação. Apesar de ser um leitor assíduo da melhor dramaturgia universal – conhecedor de Shakespeare e de Nelson Rodrigues, por exemplo –, Weydson admite que não se sentia à vontade diante dos desafios da chamada “carpintaria Continente junho 2004

É a primeira vez que o diretor Moncho Rodriguez aparece como co-autor de um texto


TEATRO

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Fabiana Pirro, que interpreta a Morte, e Lívia Falcão (na página anterior), a Rezadeira, também assinam a produção da montagem

Sempre em busca de um “teatro essencialmente nordestino”, tão mítico quanto popular, Moncho tem encenado peças que se destacam na dramaturgia contemporânea do Nordeste

Caetana. Estréia: 17 de julho, às 19 horas, Teatro Luiz Souto Dourado (Praça Guadalajara), durante o 13o Festival de Inverno de Garanhuns.

teatral”. Algo que, segundo ele, o olhar de diretor teatral de Moncho o tem ajudado a resolver. “Sinto-me nas nuvens; tenho certeza de que minha alegria com essa peça é maior do que a de Moncho, pois aprendi muito com ele”. Na cena local, sua estréia em dramaturgia também deverá ser festejada como um sopro renovador. Afinal, a literatura dramática sempre foi morada de grandes poetas – aliás, essa distinção entre poeta e dramaturgo é coisa relativamente recente na história do teatro. No entanto, poucos poetas pernambucanos têm procurado se aproximar dos palcos. Moncho entende que, além da poesia, o teatro local deveria dialogar mais intensamente com outros campos da expressão artística, como o cinema, a música, as artes plásticas e a dança. Talvez, um dos entraves para que essas aproximações aconteçam com maior freqüência seja justamente o prévio conhecimento das crônicas dificuldades enfrentadas por quem se arrisca a produzir um espetáculo de teatro por essas bandas do país. Sem fugir a essa regra, a montagem de Caetana, a despeito do reconhecimento em torno dos artistas envolvidos na peça, também tem enfrentado grandes dificuldades de captação de recursos. O projeto foi levado à frente graças à determinação dos autores e das atrizes-produtoras. Dessa forma, independentemente de patrocínios, o grupo segue decidido a levar seu trabalho a um público o mais amplo possível, atingindo inclusive aqueles espectadores menos favorecidos socialmente – pessoas que, de outra maneira, dificilmente entrariam em contato com a poesia de Weydson Barros Leal. O plano, portanto, é se apresentar não somente em teatros, mas também em espaços públicos, sobretudo nos bairros da periferia e nas cidades do interior, aonde raramente chegam produtos culturais mais refinados. • Continente junho 2004


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DANÇA

Todas as artes num só corpo

Coreógrafos do Recife investem em novas linguagens e na comunicação com outras formas de arte Leidson Ferraz

Contrastes é "um ensaio de dança-teatro"

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ssumir uma dança cada vez mais teatral sempre foi uma necessidade do bailarino, coreógrafo e também ator Raimundo Branco. À frente da Compassos Cia. de Danças há 14 anos, somente há pouco mais de dois anos é que ele pôde experimentar a dança-teatro como linguagem-mestra de sua equipe. A continuidade de trabalho com um mesmo elenco – maior dificuldade das companhias no Recife – serviu como pontapé para a experimentação em outros estilos. Na sua trajetória, a Compassos surgiu voltada para o popular, mas com o tempo transformou-se num dos destaques da dança contemporânea no Estado, com trabalhos como Portas, Pássaros e Oratorium. Com Contrastes, a mais recente montagem, em temporada no Teatro Apolo, Raimundo Branco dá vazão a sua porção dança-teatro, linguagem pouco explorada pelas companhias locais. “A resistência dos bailarinos a esse estilo sempre me criou um entrave. Quando reuni grande parte das pessoas que estavam transitando em teatro, quase todas iniciantes, pude acompanhar um amadurecimento nessa linguagem”, comemora. Ele refere-se a um necessário processo de criação do bailarino-ator, não mais como um simples receptor das invenções do coreógrafo.


DANÇA

Charles O´Rear/Corbis

A observação e discussão sobre as mais diferentes imagens do cotidiano, desde o atravessar de uma rua até a posição de um sujeito sentado numa calçada, passaram a ser subsídio para o surgimento de solos e duos. “Era necessário que eles compreendessem a construção de uma criação”. E, assim, todos se tornaram intérpretes-criadores. “A grande dificuldade é fazer com que o corpo de cada um assuma, verdadeiramente, o movimento, mesmo quando se trabalha intensamente para um mínimo de movimentação”, revela. Nesse misto de vivência teatral – acompanhada de perto pelo diretor teatral Eron Villar – e um gestual coreográfico sem grandes arroubos nasceu Contrastes, segundo Raimundo Branco, “um ensaio de dança-teatro”. Leia-se ensaio como uma proposta inicial que ainda não está concretizada. “Quero abordar a relação humana com a solidão através de uma trilogia. Em Contrastes muitas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo, mas as respostas para determinadas cenas podem estar num outro espetáculo”, diz com certo suspense. Permeando toda essa experimentação, está a relação entre o claro e o escuro, presente tanto na utilização dos equipamentos técnicos quanto nas diversas “tramas” que compõem a montagem. Por vezes em total escuridão, ou priorizando sombras e clareamentos em cena, os bailarinos-atores valorizam a força imagética extraída de poemas do francês Jean Genet; das pinturas expressionistas do holandês Vincent Van Gogh e das criações do carioca Artur Bispo do Rosário. Segundo o coreógrafo, “três grandes insanos que experimentaram o confinamento”. O primeiro na prisão, acusado de roubo e devassidão, e os dois últimos em hospitais psiquiátricos. Conceito Arquitetônico – De um certo ponto de vista, é a forma, muito mais que o conteúdo, que chama a atenção do Grupo Experimental nos últimos tempos. Segundo a diretora e coreógrafa Mônica Lira, a explicação é simples. Diferentemente do que foi proposto em 2000, quando a

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vida de moradores e transeuntes do popularíssimo edifício Holiday, no Recife, serviu de matéria-prima para o espetáculo Quincunce, desta vez é a fachada das construções urbanas que tenta definir o que será O Corpo na Arquitetura, nova proposta do grupo, com estréia prevista para setembro. Quem despertou para essa exploração cênica entre dança e arquitetura foi o produtor Marcelo Zamora. “Arquitetura significa arte de construir. Pretendemos, então, analisar o corpo nessa construção, seja ele o corpo sólido de um prédio, ou dinâmico como os bailarinos, já que estes, a partir do movimento, tornam-se também peças de uma nova estrutura”, diz esse argentino que em 2002 fez sua primeira parceria com o Experimental. Dessa união surgiu Lúmen, um diálogo entre a dança contemporânea e o cinema, que resultou num dos mais instigantes trabalhos da equipe, com 10 anos de carreira. Já o projeto de O Corpo na Arquitetura foi concebido a partir do próprio Recife. O projeto nasceu, literalmente, para ganhar as ruas. “As apresentações gratuitas vão poder dar ao espectador o prazer de poder reinterpretar os espaços de sua cidade, incluindo bairros da periferia”, avisa. A cena será composta por uma estrutura pré-existente – um prédio, um morro, uma ladeira ou a praia; uma cenografia transportável para cada local de apresentação – dois andaimes com seis metros de altura cada, uma rampa e duas passarelas e a utilização de recursos audiovisuais: som, projeções e luz cênica, tudo isso para provocar leituras diferenciadas de cada espaço que a montagem venha a ocupar. Fotos: Marcelo Lyra/Divulgação

O Corpo na Arquitetura foi concebido a partir da cidade do Recife

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Mostra da diversidade

Marcelo Lyra/Divulgação

A bailarina Priscilla Yokoi coleciona prêmios mundo afora

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calendário de dança no Recife tem no mês de julho o seu maior expoente. É o que afirmam os produtores Paulo de Castro e Luiz Tamashiro que, no próximo mês, realizam a segunda edição da Mostra Brasileira de Dança. A iniciativa, surgida no ano passado, veio ocupar a vaga deixada pelo tradicional Festival de Dança do Recife que, transferido para novembro, por pouco não foi sepultado em 2003. A II Mostra Brasileira de Dança ocupa desta vez, além do Teatro de Santa Isabel, o Teatro do Parque, palco já acostumado à mistura de linguagens. Dança clássica, do ventre, de salão, de rua, popular, afro, moderna, contemporânea e sapateado, tem de tudo neste evento que, dizem seus organizadores, tenta reunir diversidade e qualidade. Entre as atrações confirmadas, casais de bailarinos clássicos, como a paulista Duda Braz e o cubano Luis Ruben, o mineiro Valdir Alexandre com a paulista Priscilla Yokoi, esta última com vários prêmios mundo afora; os cariocas Rogério Mendonza e Sarah Palhares, salseiros que apostam em verdadeiras acrobacias e uma dose a mais de sensualidade; além do mineiro Netto, que explora a até então tradicionalmente feminina dança do ventre. Como único convidado a apresentar um espetáculo completo, o Ballet Stagium, de São Paulo, comemorando seus 32 anos de existência em Memória, que reúne três trabalhos distintos, em dança contemporânea, concebidos na década de 70: Jerusalém, Kuarup e Batucada. O maior espaço na programação é dedicado mesmo à participação quase maciça das companhias de dança de Pernambuco, incluindo academias e grupos estreantes. Entre os destaques, Balé Popular do Recife, Criart Cia. de Dança, Bacnaré, Stúdio de Danças, Majê Molê, Cia. Forrobodó, Daruê Malungo, Cia. Jaime Arôxa Recife e a Cia. Pernambucana de Sapateado. Tudo isso sem o caráter competitivo e a preço popular. (L.F.) II Mostra Brasileira de Dança, de 04 a 10 de julho, às 19h, no Teatro de Santa Isabel (Pça da República, S/N, Santo Antonio.Tel: 81. 32241020). Ingressos: R$ 15,00. De 05 a 09 de julho, às 19h, no Teatro do Parque (Rua do Hospício, 71, Boa Vista. Tel. 81. 3423.6044). Ingressos: R$ 10,00.

Financiado pelo Funcultura, O Corpo na Arquitetura deve percorrer 18 espaços do Recife, entre eles o Cais da Alfândega, o Morro da Conceição, o bairro da Várzea e a praia de Boa Viagem. O projeto inclui ainda uma oficina gratuita de pesquisa do corpo cênico para o elenco e mais vinte interessados, já em andamento. O caminho da criação – Labirindo, escrito com “d” mesmo, é uma palavra que não existe. Mas, segundo a coreógrafa e bailarina Cláudia São Bento, deveria existir porque traduz exatamente o caminho que cada artista percorre em seu processo de criação. Labirindo é o título do novo trabalho da equipe dirigida por ela, a Cia. dos Homens, que comemora 16 anos de criação, considerada a pioneira em dança contemporânea no Estado. Com financiamento do Funcultura, o espetáculo também estréia em setembro. De acordo com o Aurélio, labirinto é sinônimo de um espaço em disposição irregular, confusa. E ele povoou os sonhos de Cláudia São Bento. “Minhas idéias de trabalho, curiosamente, vêm sempre através de sonhos. Pensando nos labirintos, percebi que sigo um caminho até chegar à coreografia. É esse percurso que estará em cena”. Mas, como transformar idéias em movimentos coreográficos? “Pensando em algo mais consistente na dança contemporânea, gosto de trabalhar com improvisações em grupo e como todos os meus ensaios são filmados, só depois reaproveito o que foi feito”, diz a coreógrafa, confessando que suas montagens demoram a ficar prontas. “Precisamos descobrir com o corpo como dizer o que quero. Para isso experimento muito junto aos meus bailarinos. Essa é a tendência atual do contemporâneo”. Para abordar os caminhos que o artista trilha antes de um produto final, Cláudia São Bento foi buscar no mundo da escultura o diálogo que precisava chegar para a cena. “A escultura tem o poder de preencher o espaço, assim como a dança. Não é a representação de algo que já existiu. Ela possui dimensão, exis-


DANÇA te de fato e com vida própria”. Certa do universo artístico a inspirar os movimentos corporais de sua Companhia, Cláudia passou a visitar vários ateliês. “Através de Valerie la Verne e Zé Roberto, com suas obras em concreto, de Demétrio Albuquerque, que trabalha com resina, de Zeferino, que utiliza o ferro em seus inventos e de Jacaré, que transforma o plástico e a lata que estão no lixo em arte, descobri artistas que me diziam alguma coisa em suas criações”. Desde então, ela tem trocado figurinhas com os cinco escultores, inclusive acompanhando o processo de trabalho de cada um. Todos prepararam uma peça especialmente para o espetáculo.

A memória da dança

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“No palco estarão a angústia da criação, o fato de que criar não é algo simples, o apego do artista com suas obras à venda, o próprio desequilíbrio humano, os medos e também a leveza da vida. Tudo isso são referências que esses trabalhos inéditos estão me propondo”, diz a coreógrafa, certa de sua escolha. As artes plásticas agradecem tal parceria. • Contrastes – Teatro Apolo (Rua do Apolo, S/N, Bairro do Recife. Tel: 81. 3224.1114). Todas as quintas e sextas, às 21h. Até 25 de junho. Ingressos: R$ 5,00 (preço único promocional).

Cena do vídeodança Elástico, da Cia. Cais do Corpo, com direção de Lírio Ferreira (1992)

Projeto Recordança remonta história da dança no Recife em banco de dados inédito no Brasil

história da dança cênica no Recife finalmente ganha o seu espaço. Não mais restrita aos velhos baús e álbuns de fotografias de quem a fez, mas numa inédita coleção de vinte CD-ROMs, disponíveis ao público, que reúne 99 vídeos, 548 fotografias e 160 cartazes e programas de espetáculos devidamente digitalizados. Este é o resultado do Projeto Recordança, iniciativa da bailarina e jornalista Valéria Vicente que, em 2003, viabilizou sua idéia através do Funcultura, conseguindo aprovar R$ 70 mil, um dos maiores investimentos já feitos para o estudo da dança no Estado. Priorizando a proposta estética do que foi à cena, o Recordança é muito mais do que um apanhado de imagens antigas, já que conta com o registro das experiências pessoais de bailarinos, coreógrafos, produtores e professores de dança atuantes nas décadas de 70 a 90. Nos depoimentos de 24 personalidades, pode-se constatar tanto o contexto sócio-cultural que levou à profissionalização das companhias até os processos de criação dos espetáculos. Um rico material que procura explicar a evolução

Imago/Divulgação

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das pesquisas que geraram o momento atual da dança no Recife, sem esquecer informações sobre política cultural, intercâmbios e festivais. A equipe de 15 profissionais consumiu nove meses nesse trabalho. Depois de tanto vasculhar uma história que iria ficar restrita a acervos particulares, os organizadores do projeto comemoram uma outra vitória com a formação de um Grupo de Estudo em Dança que se encontra semanalmente na Fundação Joaquim Nabuco, instituição que já acenou planos de ampliar a pesquisa para outros Estados do Nordeste. Aos pesquisadores e amantes da dança, toda essa memória cultural, livre da ação do tempo, é bom ressaltar, já pode ser consultada na Biblioteca Pública Estadual, Centro Apolo-Hermilo e Fundaj, que também disponibilizou parte desse resgate na internet (www.fundaj.gov.br). O Projeto contou ainda com o apoio institucional do Itaú Cultural. (L.F.) Continente junho 2004


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ARTES

Simplicidade brasileira, essencialidade oriental Aos 90 anos, Tomie Ohtake, artista plástica de origem japonesa naturalizada brasileira, não tem preconceitos em arte e garante que não pretende se aposentar João Luiz Vieira

Sem Título, 1987, acrílica sobre tela, 150x150cm


Divulgação/Instituto Tomie Ohtake

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omie Ohtake é econômica nas palavras como o é em seu trabalho e na maneira de se vestir. É daquelas mulheres que acreditam nas frases curtas e substantivas para dizer o suficiente e nos poucos elementos para descrever uma cena, seja ela uma instalação, uma obra pública, uma escultura, um painel, um cenário, uma pintura, um jantar ou ela mesma, quase sempre de preto e acompanhada do par de óculos de aros grossos. Para ela, palavras são, sim, efêmeras. Ao contrário do seu trabalho. Tomie não se nega a dar entrevistas, mas as concede por e-mail e as respostas ditadas são, invariavelmente, sucintas. Não nega, assim, as raízes japonesas. Nascida em Kioto há quase 91 anos – completará no dia 21 de novembro deste ano –, Tomie foi naturalizada brasileira nos anos 60 depois de visitar e se apaixonar pelo país que adotou. Fisicamente aparenta estar saudável, embora o corpo já se curve ao peso do tempo. Mesmo no Brasil desde 1936, fala português com dificuldade e ainda tem forte acento japonês. A opinião unânime de quem a conhece é que ela encanta a todos por causa do jeito simples, franco, bem-humorado e por sua delicadeza humana ao tratar todas as pessoas com especial atenção. Na sessão de fotos, por exemplo, serviu suco, café e um doce japonês dos mais chiques. Apesar da longeva e consagrada carreira, Tomie não pensa em se aposentar. Mantém ativa a rotina profissional e a vida social não chega a ser exatamente a de uma reclusa. É fácil esbarrar com ela em vernissages. “Na minha cabeça, só se pode chegar aos 90 na ativa porque trabalho é vida”, adianta. “O dia em que fiz 90 foi natural como o dia anterior e todos os outros. Se eu tivesse que pensar – agora eu não vou ter mais trabalho – daí, sim, seria um problema, mas continuo trabalhando muito, tenho muitos projetos para entregar e por isso é a mesmíssima coisa”. Disciplinada, acorda bem cedo, anda um pouquinho, toma café às 8h e uma hora depois começa a trabalhar. Só costuma parar às 17h, com uma breve pausa para o almoço. Aos domingos, reúne a família e, à mesa, ficam horas e horas conversando e experimentando os variados quitutes que ela costuma preparar. Segundo ela, a casa/ateliê onde vive, projetada pelo filho Ruy, é o melhor lugar do mundo para estar. Pintora originária da abstração informal, foi se aperfeiçoando na relação forma-cor a partir dos anos 50, quando voltou à pintura depois de anos de dedicação integral à família. “Foi uma opção. Criei meus filhos e só depois me dediquei ao trabalho. Só queria desenhar, mas nem sonhava em me tornar artista”, situa. Tomie estudou com Keisuke Sugano, artista plástico japonês, mas ela garante que não começou fazendo uma arte tipicamente japonesa aqui no país. “Sempre fiz uma arte ocidental”, frisa. “Também nunca me interessei nos pontos que as culturas japonesa e brasileira se cruzavam ou se diferenciavam”. Tomie faz questão de sublinhar que é uma artista brasileira, embora “possa ter algumas peculiaridades japonesas adquiridas na formação”. Continente junho 2004

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ARTES 4848 Depois do início dedicado à pintura, Tomie partiu para a gravura, painéis, murais, cenografias e esculturas. Das formas com as quais se exercitou, incluem-se as ovais, as retangulares, as cruciformes e as quadradas, colocadas isoladamente, justapostas ou em série. Eclética, não confere dedicação maior a nenhuma das expressões artísticas na qual se exercita ou se exercitou. “Realmente não tenho preferência”, diz. “Gosto muito de desafio, não importa se é com pintura, escultura ou instalação”. Mesmo maternal na consideração à sua expressão artística, Tomie aponta que dentre expôr numa galeria, numa casa de espetáculos ou nas ruas de uma metrópole prefere estar visível nesta última. “Tudo é bom para o artista. Mas eu gosto muito de ter obras públicas para que muitas pessoas tenham acesso”, assume. “Como acredito que a arte leve as pessoas a refletir sobre coisas Tomie Ohtake: “Na minha cabeça, só se pode chegar aos 90 na ativa porque trabalho é vida”

absolutamente fora de seus afazeres cotidianos, sinto que a obra de arte em espaços públicos cumpra com mais abrangência esta função”. Por causa disso, acredita que o grande público tem ou teve acesso ao seu trabalho. “Para uma artista plástica, acho que até recebo muito carinho do público”. Tomie Ohtake não sabe responder onde seu trabalho é mais evidente. “Fico sempre muito contente quando as pessoas reconhecem o meu trabalho, mesmo em suportes diferentes”. Recentemente, ela inaugurou uma grande escultura em frente à Usiminas, em Belo HoriContinente junho 2004

zonte e, segundo ela, as pessoas diziam: isto tem cara de Tomie. “Ouço, com freqüência, este tipo de coisa. É muito bom, pois parece que há uma característica marcante na minha arte”. Em relação à pintura, ela dá pistas dessas tais marcas. Tomie começou em traçados mais figurativos e depois foi se aproximando do abstracionismo. Por quê? “Acho que você vai simplificando a figura até chegar a algo que não tem mais o significado da figura, mas algo que participa do espaço da tela”. A geometria feita com a mão solta, sem esquadros nem réguas, é outra de suas marcas. Tomie diz que, nesse caso, chegou a uma forma que apenas parece geométrica. “Não parti dela, assim como dela me afastei.” A economia de cores e a limpeza de elementos e formas também estão sempre atreladas à obra de Tomie Ohtake. Ela considera que hoje pode ter chegado a uma econoDenise Adams

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mia de cores, mas que já passou, sim, pela profusão. E confessa que a limpeza de elementos e formas seja, sim, influência da cultura oriental voltada à essência. Antenada com o que há de mais moderno nas artes plásticas, pontua que em sua atividade não se deve fechar questões a nada. É, por exemplo, uma entusiasta das instalações conceituais que têm dominado a arte contemporânea. “As manifestações artísticas decorrem da sociedade e cada uma se expressa de uma forma diferente, mas todas, sem exceção, são importantes”, diz. “O principal é não ter preconceitos”. Como é de seu feitio, recusa-se


ARTES Sem Título, 1994, acrílica sobre tela, 170x170cm

Imagens: Divulgação/Instituto Tomie Ohtake

Tomie Ohtake considera que hoje pode ter chegado a uma economia de cores, mas que já passou pela profusão. E confessa que a limpeza de elementos e formas seja, sim, influência da cultura oriental voltada à essência

a apontar artistas que admira ou seguidores de seu estilo. “Gosto do artista que tem trajetória coerente”, afirma. “Não acredito em seguidores de meu estilo. Acho que cada um tem de seguir seu próprio caminho, do contrário não chegará a lugar nenhum”. É de casa que observa este movimento. Tomie vi ve, hoje, cercada por suas obras e por um jardim que herdou do paisagista Burle Marx e que gosta de man tê-llo “selvagem”. Muito longe de qualquer padrão burguês, o projeto da casa é amplo, mas erguido à custa de materiais bem simples, num misto de concreto e vidro sob pé direito baixo. À esta arquitetura, Tomie agrega objetos e obras que ela mesma escolhe. Como ela trabalha nesse hiato dentro de São Paulo, só sai de lá por um excelente motivo, seja ela “uma boa ex posição, um filme, um espetáculo de dança, um jan tar gostoso e até uma festa em casa de amigo”. Mes m o r e c u s a n d o o r ó t u l o d e z en , é d a c u l t u r a o r i e n t a l que tira suas lições de bem viver.

Sem Título, 1983, acrílica sobre tela, 150x150cm

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Sem Título, 2002, acrílica sobre tela, 200x200cm


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Um endereço para a arte O Instituto Tomie Ohtake, apelidado de A Carambola, abriga exposições de artes plásticas, arquitetura e design e existe uma polêmica na vida da família Ohtake, ela atende pelo edifício que agrega o Instituto

S Tomie Ohtake ou, como é conhecido em São Paulo, A Carambola. O edifício, oficialmente

Imagens: Divulgação/Instituto Tomie Ohtake

chamado de Ohtake Cultural e desenhado pelo filho mais famoso de Tomie, Ruy, agrega o instituto, 22 andares de escritórios e um heliporto. A construção possui arquitetura eclética e uma escultura de sustentação lateral que tem, realmente, a forma da fruta de ângulos agudos. Muita gente acha uma obra-pprima, outros tantos acham que a obra é caótica. O que interessa é que o lugar é mais um endereço interessante para aprender e apreender arte em São Paulo. O Instituto em si, em alguns andares do prédio, tem 7,5 mil metros quadrados para exposições de artes plásticas, arquitetura e design , a lém d e sa la s ind ic a d a s p a ra a t eliês, seminá rio s e d o c u mentação. Sem contar o restaurante, a livraria e a loja de objetos. O edifício, que ainda está em fase de finalização, disporá de outros 6,5 mil metros quadrados e, neste espaço, contará com teatro e um cinema. Inaugurado há quase três anos, fica no bairro de Pinheiros, perto da Fnac e da badalada Vila Madalena. •

O Instituto que leva o nome da artista tem 7,5 mil metros quadrados para exposições de artes plásticas, arquitetura e design Continente junho 2004


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ARTES

Ivan Junqueira defende o Realismo Contemporâneo como um novo sopro na abafada confusão das artes plásticas

A re-volta do Realismo O Realismo é protesto nas épocas de falsidade e de frivolidade literária, já se disse; o que pretende é o retrato fiel das personagens Ivan Junqueira

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tempo presente não acrescenta nada de novo à literatura ou às artes em geral. Na realidade, o tempo presente assiste à volta de um movimento que sempre existiu. Todo século que se inaugura vem carregado do espírito da época, e esse espírito é sempre novo, inobstante o fato de que nada é realmente novo no caminho da produção humana. A maioria dos movimentos estéticos foi reação contra o que havia anteriormente e que, por força do tempo a que ficou exposto e à avalanche de seus partidários, impregnou-se de exageros radicais, de ratices, chegando à sua própria exaustão. Doutrina medieval originada da teoria das idéias de Platão, segundo a qual os indivíduos existem por si independentemente das coisas que se manifestam, o Realismo não nasceu aqui ou ali, porque sempre existiu. Sempre volta quando há uma exacerbação. No século 19 veio revestido da reação ao Romantismo e aos exageros do lirismo e da imaginação. Continente junho 2004


Divulgação/Editora Record

Na literatura, a corrente realista está bem representada por Charles Dickens (Tempos Difíceis, 1854), quando retrata com fidelidade as classes trabalhadoras dos sofridos e sombrios anos 40. Ao contrário do que podem pensar alguns, o Realismo não pretende submeter-se a uma visão demasiadamente ordenada da vida, pois a vida é naturalmente desordenada. O Realismo é protesto nas épocas de falsidade e de frivolidade literária, já se disse; o que pretende é o retrato fiel das personagens. A precisão e a fidelidade, eis o escopo do Realismo. Pretende apresentar a verdade. Apenas faz uso do protesto, mas não tem o protesto como finalidade ou lenitivo. De modo que o que vemos no cinema hoje, à guisa de exemplo, são obras de cunho realista, como A Paixão de Cristo de Mel Gibson e os nossos Central do Brasil e Cidade de Deus. Vemos o ultramoderno Alexei Bueno na literatura. É a vanguarda de nossas letras. É o apagar-se voluntário do minimalismo que empobreceu, salvo exceções, o século 20. O mesmo fenômeno acontece com as artes plásticas, com o surgimento de artistas como Nelson Skanks, Jeremy Lipking e Pugliese nos Estados Unidos, e Aurea Domenech – que também é escritora – Maurício Barbato e Daniel Grosman no Brasil. A missão da arte não é protestar simplesmente. A missão do Realismo é muito mais profunda e abrangente. Ele decide reorganizar o que por si só se desestruturou. Ele não desconstrói, mas, sobre escombros, reconstrói. Em nosso tempo, o Realismo nada mais é que o ressurgimento de uma escola com as novas características a ela inerentes. O advento de uma novidade nas artes sempre se reporta ao que antecedeu o mais moderno, procurando ali o cânone esquecido, semidestruído pelas falácias de uma revolução. Assim, o Realismo Contemporâneo é um retorno à busca da beleza, ao estudo dos grandes mestres, tudo isso visando ao surgimento – neste sentido ao ressurgimento da grande e duradoura arte. Assim foi o Esteticismo que se seguiu ao Pré-Rafaelismo. Swinburne escreveu em seu ensaio sobre William Blake (1866) que a arte não pode nunca ser o manufaturado de uma religião, o expoente do Dever, a pioneira da Moral. O Esteticismo veio carregado de uma natureza eclética, inspirada em vastas e inesgotáveis fontes. As raízes européias, particularmente do Renascimento Italiano e da Escultura Grega, foram os nutrientes do processo. O século 19 foi descrito como a Renascença do Renascimento. Temas musicais, figuras tocando instrumentos, tornaram-se comuns no movimento estético da época. Whistler deu títulos musicais a sua obra: Nocturnes, Symphonies, Arrangements. Tais temas foram igualmente comuns no Simbolismo Europeu. São tidos como os apresentadores do Simbolismo os Pré-Rafaelitas e os Estetistas. Fizeram emergir o Classical Revival”. O americano James Whistler, que se mudou para Londres em 1859, foi o precursor da nova filosofia estética que deu ao Pré-Rafaelismo novo vigor. Tal movimento mudou, na Era Vitoriana, a percepção sobre arte, alargando sua visão e perspectivas. Como em muitos artistas vitorianos e escritores da época, a vida de Burne-Jones teve égide, entre outras forças, na literatura. Quando jovem, foi leitor de Shakespeare e Homero e de poetas românticos como Byron, Scott e Keats.

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Para Goethe, o que é o estudo dos antigos senão um retorno ao mundo real? Abaixo, Homero, poeta grego

Imagens: Reprodução

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Arquivo pessoal

Importado da França, onde idéias como L’Art pour L’Art já eram correntes Uma obra de arte nos escritos de Gautier e Baudelaire – ambos tidos na Inglaterra como verdadeira não deve perigosos decadentes –, o Realismo evoluiu. limitar-se a um estilo, ser Rara é tão-somente a própria vida. Uma busca mais intensa da perfeição é profundamente à la page, o novo caminho da arte. cegamente fiel à moda, ao Uma obra-de-arte verdadeira não deve limitar-se a um estilo, por assim espírito da época, pois dizer ser profundamente à la page, cegamente fiel à moda, ao espírito da época, assim estará se pois assim estará se autocondenando à sua própria vulgaridade e tempora- autocondenando à sua lidade. A expressão da verdade – e nela deve estar contida a regra áurea de sua própria vulgaridade e definição – é o que hoje está dando apoio à arte. Deve dar aos homens tal temporalidade expressão a impressão de algo invulgar, que jamais poderá ser repetido. Os plágios a que assistimos nos abstracionismos nada mais são que a exacerbação do que houve no século passado. As vãs repetições dos desvarios de um só necessitaram de grandes telas que foram se ampliando até desaguarem nas nulas instalações. A novíssima escola do Realismo Contemporâneo, que por “coincidência” inaugurou há poucos anos a Florence Academy of Art no berço do Renascimento, ergue a bandeira de que quando mortos aqueles poucos que a podem explicar, morta estará a arte dos que a pretenderam intangível. É o processo circular do que o que de tanto querer ser incomum acaba por se tornar ordinário. O que Caetano chamou de “o avesso-do-avesso-do...” Eis o Realismo Contemporâneo enaltecido por Aurea Domenech em seu Manifesto, escrito em forma de poesia, e já assinado até mesmo por pintores abstratos renomados como M. Cavalcanti e Tarciso Viriato, naiifs como Chico Oliveira, por filósofos e doutores em Filosofia, brasileiros, com formação européia e por músicos e compositores. “A personalidade, eis o que nos salvará” há muito já disse o crítico francês. A artista plástica e escritora Áurea Domenech


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Manifesto do Realismo Contemporâneo ARS GRATIA ARTIS Aurea Domenech

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Desprezo ao bon vivant que traça nada e gasta a tinta Dos que levam a sério a bagagem que com eles veio E do nada; por intermédio de suas almas claras. Pois somos todos arte, mas artistas nem todos somos. Abaixo o rebaixamento do amor à condição Erótico-ddecadente da poesia antiquada, sovina e diminuta. Abaixo o aprender o que se sabe de antemão, O desvairar-sse sem razão, o esconder o que, aflito, Desliza nos papéis, nas telas, nos desvãos.

Levantem as bandeiras os que nasceram sábios Que a arte é autonomista e prescinde de interpretação.

Levantem as bandeiras os que nasceram sábios. Já basta de impostura, já basta de imposição.

Abaixo as invenções iconoclastas, as tertúlias vãs E o desprezo à arte legítima e natural. Abaixo as tentativas de tornar a arte amálgama político-ssocial. A arte não tem compromisso senão com a beleza. Abaixo os pseudo-aartistas que não querem nada Senão confundir e tornar difícil o que é legítimo. É tempo de enaltecer aquele que, em realidade, pinte. Que venha o que é simples, pois que a simplicidade É a expressão mais alta do requinte.

A arte e outras belezas querem invadir, não se evadir; Não querem agredir, e sim suavizar e sublimar Retirem-sse as gigantescas telas nulas, as instalações. Fora o entendimento de que o que predomina é a imaginação, Porque a literatura, a escultura, a arte verdadeira rejeitam Os que pretendem que o contemporâneo seja feio e aleijado. E pedem passagem em meio ao turbilhão das grosserias Dos que tentaram reduzir a grande e densa poesia verdadeira Em texto mesquinho, liliputiano e condensado.

Levantem as bandeiras os que nasceram sábios. A hora é esta, e a ela vamos nós erguer o brinde.

Levantem as bandeiras os que nasceram sábios Que o tempo do bom gosto e da sublimidade já é chegado.

Uma visão mais fervente e ampla e mais viva, e uma individualidade mais íntima e mais fecunda agora se fundem fazendo emergir o real – nada de novo portanto; um sopro autêntico que tentaram abafar no século passado, pois como disse Goethe – o que é o estudo dos antigos senão um retorno ao mundo real? O retorno à absoluta disciplina na arte (não foi por menos que Adonias Filho viu em Aurea Domenech “uma artesã rigorosa, alheia a qualquer modismo, que não recusa a disciplina valeriana”), eis o caminho mais moderno da arte. Aurea estudou Belas-Artes na prestigiada The School of The Art Institute of Chicago, tem feito exposições no Brasil e nos Estados Unidos e já tem escrito o seu terceiro livro. O Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância – por três anos consecutivos reproduziu em seus cartões os trabalhos da artista. Um novo sopro na abafada confusão das artes plásticas, eis o que representa o Realismo Contemporâneo, esse novo caminho de clareza e perfeição. Nada novo. Nada que a verdadeira arte não tenha conhecido anteriormente . Afinal, o objetivo da cultura intelectual não é a rebelião, mas a paz. Assim quis Oscar Wilde. •

Reprodução

ão conseguiram destruir nem a poesia, nem a arte. Os princípios honestos da perfeição as protegeram. O cânone da beleza está desperto agora, pois que é hora Da grande e eterna arte reerguer-sse e levitar. A responsabilidade do artista, no rigor da bela escrita, O bom conhecimento e a dedicação indispensáveis Legitimando estão o que desacolhe qualquer definição; Pois quando morrerem os que as interpretam Que será das artes todas da passada geração?

John Keats, poeta inglês

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Arquivo/AE

Ferreira Gullar

A experiência radical de Hélio Oiticica Nenhum artista anterior a ele questionou tão radicalmente a expressão artística

Bólide-V Vidro, vaso de vidro com pigmentos, plásticos e tecido pintado

D

epois de muitos anos, reencontro-me com os trabalhos de Hélio Oiticica, no vídeo de Kátia Maciel, intitulado H.O. O Supra-Sensorial, que me possibilitou rever as diferentes etapas por que passou a sua experiência artística. Tive oportunidade, em diferentes momentos, de analisar detidamente a obra de Lygia Clark – que formou com Hélio Oiticica a dupla mais arrojada da arte neoconcreta –, mas sobre ele só escrevi na época do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, entre 1959 e 1961, e depois apenas esporadicamente. No entanto, era com ele que mantinha – à parte Lygia Clark – o diálogo mais continuado e fecun-

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do, envolvendo nossas perplexidades, indagações e invenções. Hélio era como um irmão mais novo, que me ouvia, com quem discutia durante a vertiginosa aventura que nos arrastava naqueles anos intensos e inquietos. O grupo neoconcreto era constituído, como se sabe, de artistas plásticos e poetas, entre os quais Reynaldo Jardim, Théon Spanudis e eu. Reuníamo-nos com freqüência na casa de Mário Pedrosa ou de Lygia Clark, ocasião em que tomávamos conhecimento do que estava realizando ou pensando cada membro do grupo. Além disso, eu costumava freqüentar a casa de Amílcar de Castro e de Hélio, para ver seus trabalhos e conversar. Este


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permanente intercâmbio, acredito, foi um dos fatores responsáveis pela notável contribuição do grupo à arte brasileira, determinando em boa parte o rumo que ela tomou. Naturalmente, cada um de seus integrantes tinha seu modo próprio de perceber e interpretar as questões fundamentais implicadas na proposta inovadora do neoconcretismo. Uma dessas questões era a superação do objetivismo ótico e racionalista da arte concreta, e a outra, a audácia de avançar além dos limites em que se mantinham a pintura e a escultura modernas. Lygia e Hélio foram os que mais avançaram nesta direção, abandonando a tela e buscando inventar uma linguagem nãometafórica nascida do desenvolvimento da forma no espaço real. Foram as primeiras tentativas de Lygia que me levaram a cunhar o nome não-objeto, como um meio de assinalar sua especificidade com respeito ao que, até então, se compreendia como obra de arte. Minha proximidade com esses dois artistas fez com que influíssem em suas buscas algumas tentativas por mim realizadas na época: o livro-poema e os poemas espaciais. Essas tentativas culminariam com o Poema Enterrado, que concebi em 1959 e pelo qual Hélio se tomou de entusiasmo, a ponto de obrigar seu pai a construí-lo no quintal da nova casa da família, na Gávea Pequena. Dele nasceriam os projetos Cães de Caça de Hélio e, depois, os Bólides, que estão entre as suas criações mais significativas. As obras da primeira fase de Hélio Oiticica, após a ruptura com a pintura, são os Relevos Espaciais, em que ele ainda tateia em busca da obra que necessitava criar e que não se limitaria à experiência visual, mas que devia somar a ela a ação manual do desvendamento (ou da invenção) do que está oculto, do que constituiria o miolo da forma-espaço-táctil. Os Bólides são caixas que ocultam outras caixas que, por sua vez, ocultam materiais diversos, como terra ou tecidos de cor, trapos, que lembram vísceras ou lixo. Essa idéia de uma caixa que contém outras caixas veio sem dú-

vida do Poema Enterrado, cujo núcleo se compunha de caixas cúbicas dentro de outras caixas mas, em meu poema, esses elementos eram, por assim dizer, formas ideais, limpas de qualquer organicidade, enquanto as de Oiticica são “sujas”, primevas, como se arrancadas a alguma dimensão misteriosa e noturna. Neste sentido, elas indicam uma espécie de abandono da forma enquanto construção intelectual, concebida com harmonia e equilíbrio. Com seus Bólides Oiticica chega ao pólo oposto à arte concreta e caminha na direção de uma linguagem severamente sensorial, onde tudo é pré-linguagem, ou melhor, onde o artista se nega a reconstruir a fala estética desconstruída e, portanto, nega-se à “arte”. Foi por esta razão que escrevi, certa vez, nesta coluna, que certas vanguardas não apontam para o futuro, mas para o passado. No caso de Oiticica, porém, tal opinião é incorreta. Seus Bólides não apontam para o passado, uma vez que nenhum artista anterior a ele questionou tão radicalmente a expressão artística, como ele o fez, para afirmá-la como origem, começo que não quer ser mais que isto. Começo sem futuro, se o futuro for o retorno à superfície, à fala. O que quer dizer isso? Se, como creio, o homem se inventa também através da arte, Hélio Oiticica negou a arte para poder reinventá-la a partir de zero: qualquer caminho seria válido, menos o já trilhado. Por isso com os seus Bólides ele tenta criar um conteúdo (uma linguagem) que ele próprio desconhece porque ainda não existe e só passa a existir à medida que ele o descobre (o cria) como ocultação. As obras que realiza depois não possuem, a meu ver, a mesma densidade já que, ao contrário dos Bólides, não ocultam nem revelam nada, como é o caso do Parangolé, uma espécie de performance em que a forma se torna explícita através do movimento e da ação do sujeito. Esta explicitude é o preço que Oiticica pagou para vencer o impasse da prélinguagem e, de certo modo, voltar à luz do dia. • Continente junho 2004


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60 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Leo Caldas/Titular

"Coqueiro da Bahia Quero ver meu bem agora Quer ir mais eu? vamo Quer ir mais eu? vambora" (versos de cantoria pé-de-parede)

“Ô, esse coqueiro que dá coco”

“N

avegar é preciso, viver não é preciso” foi lema da Escola de Sagres – para os que acreditam ter mesmo havido uma Escola de Sagres, claro. A frase é de Pompeu, que viveu e morreu muito antes de Cristo. Acabou atual graças a texto que se supõe seja de Fernando Pessoa – “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: navegar é preciso, viver não é preciso”. Sendo esse “preciso” que acompanhava o navegar, na frase original, apenas indicação de “exato”, de “científico”, em oposição às incertezas da vida. Mas essa é outra história. Certo é que enfrentar esse mar salgado, sobretudo no tempo das grandes navegações, era mesmo uma grande aventura. Por conta de embarcações frágeis, cartas marítimas não-confiáveis, doenças de todo tipo e culinária muito limitada – carne seca salgada, bacalhau, vinagre, cebola, alho, mel, vinhos lastimáveis e biscoitos duros e secos. Sem contar a falta d'água. Em muitos casos, chuva era diferença entre vida e morte. Há registro de tripulações inteiras obrigadas a beber a própria urina, para sobreviver à sede. Ao menos até começo dos anos 1600 – quando certo Pero de Queiroz inventou um esquisito equipamento para destilar água do mar. Mas essa também é outra história. Descobrir mundos novos era mesmo, sobretudo naquele tempo, um desafio irresistível. Embora nada disso tenha impedido que, em busca de ouro, especiarias ou apenas glória, tantos se lançassem “por mares nunca dantes navegados”. Numa dessas via-

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gens navegadores portugueses, “em perigos e guerras sublimadas”, acabaram “passando ainda além da Taprobana” – como ensina o canto primeiro dos Lusíadas. Essa Taprobana era uma pequena ilha, ao sul do continente asiático, hoje conhecida como Sri Lanka. E lá, nessa ilha, foi encontrado pelos navegadores um fruto verdadeiramente milagroso. Que além de carne branca e saborosa, própria para matar a fome dos homens, tinha em seu interior também água. Podendo ser facilmente transportado, nas longas viagens. A partir de então passaram a estar sempre a bordo das embarcações. E ganhou o mundo – coco, em Portugal e na Espanha; na França, noix de coco; na Itália, noce di cocco; na Alemanha, kokosnuss; na Inglaterra e nos Estados Unidos, coconut. As primeiras mudas de coqueiro (“cocos nucifera”) chegaram ao Brasil em 1553 – “foram os primeiros cocos à Bahia de Cabo Verde, d'onde se enchem a terra”, segundo Gabriel Soares de Souza (Notícias do Brasil, 1587). Passaram então a ser, por aqui, conhecidos como “coqueiros-da-baía”. Depois se espalharam, muito rapidamente, por todo nosso litoral. Algumas mudas nascendo meio por acaso, de frutos levados às praias pelas correntes marítimas. Mas sobretudo sendo cultivados. E acabaram mudando a paisagem de nossas costas, pouco a pouco tomando o lugar da vegetação existente à época – mata atlântica, mangabeiras, cajueiros. Em Pernambuco esse cultivo começou com Maurício de Nassau – que “fez o sítio com a melhor terra, e pôs nesse jardim dois mil pés de coqueiros ...; e


SABORES PERNAMBUCANOS 61 »

deles fez umas carreiras compridas, e vistosas, a modo de alameda de Armazém”, tudo como testemunhou Frei Manoel Calado (O Valeroso Lucideno– 1637). Desse coqueiro o colonizador português só aproveitava água e polpa – “cultivam-se palmeiras de cocos grandes e colhem-se muitos, principalmente à vista do mar, mas só os comem e lhes bebem a água que têm dentro, sem os mais proveitos que tiram na Índia”, observou outro Frei, o Vicente do Salvador (em 1627). Escravos que aqui chegaram tinham hábitos culinários que variavam a partir de suas terras de origem. Os trazidos da África Ocidental (Guiné, Angola, Gana, Nigéria, Luanda) preferiam, como tempero, azeite-de-dendê; enquanto os vindos da África Oriental (especialmente Moçambique) usavam leite de coco no preparo de quase todos os pratos. O processo usado para extrair esse leite do coco evoluiu pouco, desde aquela época. “Do miolo do coco fresco se tira leite com que cozem arroz, ralado e bem lavado em duas ou três águas, e espremido entre as mãos, de modo que lhe façam lançar toda a umidade que tem” – observou mais um Frei, agora o João dos Santos (Etiópia Oriental-1609). Hoje continuamos triturando a polpa do coco (só que, agora, no liquidificador) com pouquíssima água, e côa-se para ter o leite de coco grosso; ao bagaço que ficou, junta-se água fervendo, triturase novamente e côa-se, para ter leite de coco ralo. Da mistura de técnicas africanas e portuguesas, e do manuseio de ingredientes da terra, foram nascendo por aqui novas receitas. Sempre usando muito leite de coco. Pratos salgados – vatapá, caruru, efó, xinxim-de-galinha, moqueca de peixes, bobó de camarão, ensopado de camarão, lagosta, bacalhau, ostra, aratu, casquinho de siri, siri-mole, feijão, arroz de coco, molhos; e também doces – baba-de-moça, queijadinha, manjar branco, canjica, pamonha, angu, mungunzá, cuscuz, quindim, quindão, bom-bocado, pudim de coco, tapiocas de todo tipo (molhada, com coco, com queijo), bolos (de aipim, milho, massa puba, farinha de trigo), mingaus (de milho, de puba de tapioca), sorvete, batida de cachaça. Além de cocada – branca ou queimada, de cortar ou de colher. Essa nossa cocada que é, segundo Gilberto Freyre, o doce preferido dos intelectuais brasileiros – Machado de Assis, Otávio de Faria, Rubem Braga, Carlos Lacerda, Jorge Amado, Josué Montello, Rachel de Queiroz. Costuma-se dizer, aqui no Nordeste, que “com leite de coco, come-se até areia”. Mas esse leite de coco, para sermos justos, não é privilégio só brasileiro. Sendo muito usado também em outras culinárias – especialmente da Índia, Tailândia, Indonésia, Havaí e todo o Caribe. Muitas são as palmeiras que, no Brasil, dão frutos – babaçu, buriti, carnaúba, dendê, catolé, índia, pindoba. Mas, dessas pal-

meiras, o coqueiro “é a mais importante de todas”, escreveu Pio Corrêa (Dicionário da Plantas Úteis do Brasil e das Exóticas Cultivadas – 1926). Porque, dele, tudo se aproveita. Água de coco é nutritiva e terapêutica, já tendo sido até usada como soro na Segunda Guerra. Polpa se presta à fabricação de leite de coco, óleo, azeite, margarina, sabão, vela. A fibra que envolve essa polpa serve para fazer capacho, passadeira, saco, broxa, escova, rede, esteira, cabos de navio. Folha para coberta de casa, cesto, esteira, chapéu. E tronco em móveis ou esculturas – com a desvantagem, aqui, de não resistir bem ao tempo. Coco é também remédio, e para quase tudo – enjôo e diarréia (água de qualquer coco), icterícia (água de coco amarelo), desidratação (água de coco verde), dor de barriga (chá de cabelo de coco seco), coqueluche e tosse braba (xarope de coco verde ralado), desmaios em geral (chá de cabelo de coco torrado), vermes (xarope de coco ralado batido com água e uma pitada de sal, tomado em jejum). O “coqueiro-da-praia” vive em média 150 anos. Começa a dar frutos a partir do 6º ano, mas só alcança a maturidade perto dos 15. Da Malásia nos veio, em 1925, um coqueiro que vive menos tempo, frutifica mais cedo e tem a água mais doce. É o que usualmente bebemos, à beira-mar. Esse coqueiro cresce devagar e bem menos, donde seu próprio nome – anão. Da Costa do Marfim veio, em seguida, um híbrido que chegou ao Brasil por volta de 1970. Com produção muitas vezes maior que a dos outros coqueiros. O povo da praia até diz, de todos os coqueiros, que coco é como filho. Porque o período entre a formação do fruto e sua colheita é de 9 meses. Valendo dizer que são, todos, enormemente rústicos. Só que, diferente dos filhos, não exigem maiores cuidados. Está em nossa cultura. “Cocada-de-coco-de-coqueiro-dapraia” significa tudo bem explicadinho. “Quanto maior o coqueiro maior a queda”, que nada nesse mundo é eterno. “Calado como um coco” é não dizer nada. “Tirar coco sem vara” diz-se de pessoa muito alta. “Coco na bola”, em futebol, é cabeçada. “Subir no coqueiro” é tomar cuidado – e, no jogo de pôquer, parar de apostar. “Quenga” é mulher dita de vida fácil. Está em numerosíssimas letras de músicas, nessa terra de sambas e pandeiros, entre elas “Aquarela do Brasil”. Coco é também sinônimo de “embolada” – em que “coquistas” vão fazendo versos, usualmente sextilhas, sobre motes sugeridos pela platéia. E nome de dança popular, nascida em praias nordestinas, com coreografias que remontam a tradições indígenas e africanas. Como se não bastasse, essa fruta dos deuses ainda está presente no mais belo dos hinos, o de Pernambuco – “Salve ó terra dos altos coqueiros/ de beleza soberbo estendal”. É pouco? • Continente junho 2004


Leo Caldas/Titular/Cortesia do restaurante Parraxaxá

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SABORES PERNAMBUCANOS

RECEITA: COMPOTA DE COCO VERDE INGREDIENTES: 10 cocos verdes, água de coco,1 kg de açúcar,1 litro de água PREPARO: Retire com colher a lama do coco e vá juntando em recipiente com água de coco. Escorra bem. Leve ao fogo água, açúcar e lama do coco. Deixe apurar a calda até que o coco fique transparente. DOCE DE COCO VERDE INGREDIENTES: 2 cocos verdes, leite de 2 cocos maduros, 450 gr de açúcar, 2 xícaras de água, 6 gemas de ovo. PREPARO: Retire com colher a lama dos cocos ainda verdes. Retire o leite dos outros cocos (maduros), colocando no liquidificador coco ralado e bem pouca água; passe em peneira fina. Faça calda com água e açúcar. Junte, na calda, leite de coco misturado com as gemas. Acrescente a lama do coco. Mexa até que engrosse um pouco e se possa ver o fundo da panela. DOCE DE COCO RALADO INGREDIENTES: 1 coco ralado fino, 1 kg de açúcar, 1 copo de água, 4 gemas, ½ xícara de chá de farinha de trigo dissolvida em um pouco de leite de vaca, 2 colheres (de sopa) de parmesão ralado, 1 colher (de sopa) de manteiga PREPARO: Faça calda com água e açúcar, em ponto de fio. Junte coco ralado fino e deixe apurar o ponto. Acrescente o trigo dissolvido, as gemas, o parmesão e a manteiga. Mexa bem. Coloque em refratário e leve ao forno para dourar. BABA DE MOÇA INGREDIENTES: 2 gemas, 1 xícara de leite de coco puro, 250 gr de açúcar, 1 xícara de água PREPARO:

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Faça no fogo uma calda com água e açúcar. Retire do fogo e junte gemas (bem batidas) e leite de coco. Leve de volta ao fogo, mexendo sempre, até aparecer o fundo da panela. COCADA “LAGOA AZUL” INGREDIENTES: 3 cocos ralados, 1 kg de açúcar, 1 lata de leite condensado PREPARO: Junte coco, leite condensado e açúcar. Leve ao fogo e mexa até soltar do fundo da panela. Espalhe em superfície lisa e espere esfriar, para cortar. Observação: O anúncio foi publicado no Estado de São Paulo de 22 de janeiro de 1890. Estava à venda, na Drogaria São Paulo (Rua São Bento), um leite condensado fabricado por Dr. Henri Nestlé. Importado da Suíça. Esse novo produto passou imediatamente a ser conhecido, pelo público, como “leite da mocinha” – por ter, no rótulo original, o desenho de uma tirolesa estilizada. Quando começou a ser fabricado no Brasil, esse desenho foi mantido. E quase não sofreu alteração, até hoje. Passando o nome, de como era conhecido o produto, a ser sua própria marca registrada – “Leite Moça”.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 63 Joel Silveira

Azul azul

R

ápida viagem a Belo Horizonte – ida e volta no mesmo dia. Deixo um Rio cinza e garoento, venho encontrar Belo Horizonte num dos seus melhores dias, estival e límpido, e de céu imaculadamente azul. É o mesmo azul, lá está ele. Lembro-me de outros azuis – o azul do céu rafaelesco da Toscana, pousada de querubins e arcanjos; o de La Paz, azul transido e empedrado, azul de mármore, fronteira azul entre o fim da montanha e o além-céu, para lá das nuvens, no limiar da solidão sideral e infinita. Todos azuis, limpa e totalmente azuis. Mas os comparo e concluo, sem medo de errar, que é este azul do céu de Belo Horizonte que me parece mais azul; o que melhor ensina aos meus olhos o que de fato é azul.

Talvez esse azul belo-horizontino me diga mais (e me pareça mais azul) porque outrora já lhe pertenci, como ele me encontrava diariamente, tantos anos atrás, nele vivi e dele vivi, quando éramos os dois igualmente azuis. Reencontrá-lo, nesta tarde tão exageradamente azul, é reencontrar um velho amigo; mais do que isso: um velho confidente. Ou ainda mais – um cúmplice que ao moço de vinte e poucos anos, todo azul, induziu a caminhos azuis, a azuis arrancadas, para deixá-lo, mais tarde, não no inconstante azul do mar, onde deságuam os rios nem todos azuis, mas para deixá-lo na cinza e na sombra, que é o que acaba restando a quem desperdiçou de uma só vez a porção de azul que lhe coube – e que lhe deveria bastar para a vida inteira. •

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MÚSICA

Remixando a tradição O cantor e compositor pernambucano Silvério Pessoa encontra na França boa recepção ao misto de forró e música eletrônica que vem desenvolvendo em seus trabalhos mais recentes Michelle de Assumpção

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T

erras plantadas com tudo quanto é cultura, produção de leite, queijo, soja, vinhos; carros de bois sendo puxados por velhos agricultores, homens fortes, com a face marcada pelo trabalho, mas o porte de um vencedor, que vive dignamente com o que retira da terra e dos animais. Todo um aparato tecnológico a serviço desta produção rural, mas ao lado de um forte sentimento de respeito às tradições, nas famílias que ali residem. Neste mesmo contexto, a atuação de dezenas de bandas com o propósito de fazer contracultura. Essas foram as imagens que ficaram para o cantor e compositor pernambucano Silvério Pessoa, em suas viagens pela França, em sua mais recente turnê e para onde retorna este mês, já com o CD Bate o Mancá – O Povo dos Canaviais sendo lançado lá e em toda a Europa, através do selo Outro Brasil. Perceber aquele mundo tão diferente e ao mesmo tempo tão parecido com o de onde veio fez Silvério entender por que naquelas terras distantes sua música estava sendo tão bem recebida e por que ele estava sendo considerado lá como o artista que estava levando o forró para a França. Mesmo que, em 1986, Luiz Gonzaga já tivesse mostrado, no Olympia de Paris, a grandeza do gênero.


Imagens: Arquivo pessoal/Silvério Pessoa

MÚSICA

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Silvério Pessoa mostra, na Europa, show e CD baseados na obra de Jacinto Silva (de chapéu)

Da janela da van que o transportou numa maratona de shows impactantes para o povo estrangeiro, aquelas imagens rurais traziam-no de volta ao seu passado, ainda recente: a Zona da Mata com sua economia canavieira, a subsistência dos sítios dos trabalhadores dos engenhos, num dos quais o futuro cantor cresceu, ajudando o avô, tirador de cana, no que era preciso. Foi ali que, ouvindo Jackson do Pandeiro, Jacinto Silva, Trio Nordestino, Luiz Gonzaga, Abdias e Marinês, ia formando, sem saber, sua identidade musical. Nunca imaginaria que trinta anos depois estaria levando, ele mesmo, essa música a terras estrangeiras. Não da forma original, mas renovando e remixando toda uma tradição. Os campos verdes da França, com a resistência do povo das províncias em manter a cultura occitã (cujo símbolo, Silvério, em seu retorno ao Recife, tatuaria no braço direito), fizeram o artista entender que seu papel ali – e toda admiração e alegria que sua música despertou – era também de devolução. Porque a dança e a música da quadrilha, mais tarde chamadas forró, entraram no Brasil no tempo da Regência (1830-1841), através do modelo francês de contradança a dois ou quatro pares (quadrilha dupla), com seu som alegre e movimentado, dividido em cinco partes com diferentes figuras, todas em “allegro” ou “allegretto”. As cinco figuras dessa quadrilha francesa denominavamse, respectivamente: Pantalon (por tê-la dançado em 1830 o rei Luís Felipe, em Paris, vestindo pantalonas, e não calções

curtos), Eté (antes chamada Avant Deux), La Poule (pela música imitar o cacarejo da galinha), Pastourelle (por inspirar-se a música do pistonista Collinet no romance Gentil Pastora) e Chassé Croisé ou Galop (por fazer terminar a dança com animado galope, em que todos os dançarinos mudam de lugar e passam uns na frente dos outros). Este é um dos elos que unem a música de Silvério, com seus forrós e cocos de emboladas, ao inconsciente coletivo daquele povo dos campos verdes e tecnológicos. E é justamente a tecnologia, que também está presente na música do pernambucano, outro ponto de contato com os europeus. Partindo da tradição como uma base forte, mas utilizando equipamentos como o Kaoss Pad, que possibilita centenas de maneiras de remixar o som da voz e de qualquer outro instrumento convencional, além do uso dos samplers e de uma carismática postura de palco parecida com a de um astro do rock’n’roll, Silvério Pessoa apresentou uma linguagem nova, com uma sonoridade conectada à tendência mundial da eletrônica. A banda que o acompanha nos palcos, alguns remanescentes de sua antiga banda, a Cascabulho, também contribui para essa imagem de força dupla, unindo forró com experimentalismo. Wilson Farias (percussão), Elias Paulino (cavaco e banjo), Israel Silva (baixo) e André Julião (acordeom) compreendem as viagens sonoras de Silvério, executando-as com o rigor que pede a tradição e com as variações exigidas pela proposta de inovação. Continente junho 2004

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MÚSICA 6666

Presença do compadre – Silvério diz agradecer todos os dias, antes de dormir, ao “compadre” Jacinto Silva, autor das canções do disco, pelo sucesso conseguido e que ele atribui, em grande parte, à rítmica e poesia de suas composições, quase totalmente desconhecidas pelas novas gerações. O caruaruense Jacinto Silva, que faleceu em fevereiro de 2001, é co-protagonista desta história. Discípulo de Jackson do Pandeiro (que Silvério já havia interpretado num projeto anterior, ainda à frente da banda Cascabulho), ele sedimentou o estilo vocal de Silvério, que desde Jackson havia assimilado aquela forma única de cantar, com divisões rítmicas inesperadas, síncopes e vozes sobrepostas. Participar de todo processo de feitura do CD, desde a escolha das composições até sua gravação em estúdio, foi o último projeto de Jacinto Silva. Para Silvério, sua presença era também uma forma de perceber o forró vivo, pulsante, e não o “folclore” simplesmente, no sentido de uma manifestação intacta, imutável. “Forró é cultura viva e moderna de um povo que mesmo sacrificado celebra, dança, divertese e tem como valor intrínseco a criatividade”, diria Silvério. A felicidade do pernambucano foi justamente não negar suas origens. Percebeu que não podia quando assistiu pela TV, lá pelos anos de 1994, ao então maior ponta-de-lança da música pernambucana, Chico Science, recomendando: “Faça o que você é, que está dando certo”. “Foi quando eu montei o Cascabulho para cantar Jackson do Pandeiro, eu sou isso”, conta Silvério. Daí aproveitar as informações recebidas, ainda na infância, de uma música de aspecto rural, sertanejo – e deixá-las caminhar com o seu tempo presente, com os aparatos tecnológicos que podem ser comparados aos usados pelos agricultores das provinces francesas. Cotação quatro estrelas – O CD de Silvério toca em diversas rádios daquele país. A TV3 (espécie de TV Globo da França), anunciando a turnê que o pernambucano estava a fazer pelas cidades, foi quem o responsabilizou pela introdução de uma outra música brasileira, o forró, na França e em toda a Europa. No elegante Moods, em Zurique, casa noturna cujo palco acolhe grandes mestres do jazz, Silvério foi ovacionado por uma platéia perplexa com sua performance. A mesma euforia aconteceu no circuito de clubs e pubs de cerca de vinte e sete cidades da França e Bélgica. Neste último país, tocou no mais importante palco da turnê, o Sfinks Festival, para quase cinco mil pessoas, que exigiram seu retorno ao Continente junho 2004

Arquivo/AE

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palco, mesmo sendo a prática do bis inibida pela produção do evento. Silvério voltou para mais cinco minutos e saiu de lá consagrado. O disco – que recebeu a cotação de quatro estrelas da revista Le Molde de la Musique, de Paris – vendeu mil cópias nos primeiros vinte dias do circuito. Pelas suas contas, a primeira remessa, de 4 mil cópias, já deve estar se esgotando. Se continuar nesse pique, chegará à próxima turnê – inicia no dia 20 de junho – com a nova tiragem já pronta. Já existem quinze shows marcados, mas a volta para casa ainda não foi definida, pois outras apresentações estão sendo fechadas. Além de cidades como Marseille, Nice e Toulouse, na França, onde já esteve, o músico e sua banda irão dessa vez a Portugal, Dinamarca, Indonésia e Espanha. O álbum, que está sendo distribuído por toda Europa, é essencial para este desbravamento musical. O mercado estrangeiro para as bandas pernambucanas – mais acessível na Europa do que nos Estados Unidos – está aberto há alguns anos. Timidamente, desde Alceu Valença e sua geração, nos anos 70, depois de forma mais agressiva com Chico Science & Nação Zumbi, nos anos 90, que abriram portas para outros grupos, como Mestre Ambrósio, Selma do Coco e diversos grupos de maracatus de baque virado,


Imagens: Arquivo pessoal/Silvério Pessoa

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Jackson do Pandeiro (à esquerda), primeira influência. Silvério e o CD em edição européia

entre outros artistas regionais da nova geração. No entanto, é preciso mais do que passagens, shows agendados e até mesmo talento para dizer que está fazendo mercado no exterior. Sem um disco e esquema de uma empresa que trabalhe sua distribuição e divulgação lá fora, os músicos voltam para sua terra com a impressão de que simplesmente fizeram shows em locais mais distantes que os de costume. Silvério e banda, ao contrário, parecem ter fincado raízes, importantes não apenas para seu próprio futuro, mas também para toda uma comunidade artística nordestina que não encontra mais em suas cidades o sustento e o reconhecimento para a música que produzem. Diante da insistência das televisões e rádios locais numa programação medíocre, a falta de políticas culturais eficientes, a falência das gravadoras ou sua atual objeção em contratar grupos de propostas diferenciadas e de qualidade, entre outras carências que geram desconforto ao artista em trabalhar no seu próprio meio, o mercado europeu tem se mostrado como uma saída promissora. No caso de Silvério, ter caído nas graças do produtor francês Marc Regnier foi primordial. Atualmente, ele é o

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manager do cantor na Europa, onde articula o lançamento, pelo mesmo label Outro Brasil, do disco Micróbio do Frevo. O álbum, lançado ano passado no Brasil, foi mais um projeto de Silvério, de reutilização de um gênero convencional, folclórico, e ainda de resgate, pois outra vez foi pesquisar o universo de Jackson do Pandeiro, desta vez, pinçando sua obra carnavalesca. Tais articulações denotam ainda a necessidade de uma certa maleabilidade com o mercado externo. O que os estrangeiros querem é novidade, e novo para eles não é nada que possam fazer melhor: o rock e o hip hop “puros”, entre outras vertentes mais urbanas, por exemplo. O que pega lá fora é a nossa música mais ancestral, e toda essa capacidade e criatividade artística de transformar tal legado em algo que soe novo, moderno e universal. Os franceses se viram na música de Silvério. O cosmopolitismo de sua cultura parece não permitir que experimentem a possibilidade de chegar às raízes mais profundas de suas manifestações artísticas, musicais, neste caso. A proximidade de Silvério com a Mata, o Sertão e as periferias de uma grande metrópole como o Recife, cidade portuária como tantas outras francesas que conheceu, moldou um tipo único, uma sonoridade que soou ao mesmo tempo diferente e familiar aos ouvidos deles. É, portanto, essencial que haja essa permuta entre o urbano e o rural, o regional e o universal, sempre com o que é local se sobressaindo às outras informações, dando a referência. Entretanto, vai ousar sempre mais, como faz atualmente no show Refinaria, no qual toca coco e baião com batidas eletrônicas. Também aqui pretende gravar, até o final do ano, um CD autoral. Será uma síntese de toda sua vida. Coco, forró, samba, frevo, embolada, tudo liquidificado, reprocessado, como é natural no fazer musical da maioria dos grupos contemporâneos de Pernambuco. Sempre partindo de sua tradição, para poder ver outra vez sua infância passando como um filme, e usar esta afetividade como fonte inesgotável de inspiração, e informação. Diz não poder fugir mais disso. Tem medo de se perder. • Continente junho 2004

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Quadro que mostra Robert Johnson gravando, num quarto de hotel em San Antonio, Dallas

Blues do capeta Robert Johnson passou a maior parte da vida no Mississipi. Ali nasceu e morreu. Uma morte cercada de mistérios José Teles

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blues é a expressão de sentimentos mais íntimos, é o desabafo do coração. Quando se canta o blues, canta-se para espantar o blues (tristeza) e aliviar dele sua cabeça”, de The Meaning of the Blues, de Paul Oliver. “Não toco blues para ninguém se sentir bem. Toco, para as pessoas sentirem-se ainda pior”, um saxofonista, para Lisa Simpson, no desenho animado The Simpsons. Ao contrário da cantoria de viola nordestina, com a qual tem afinidades (sobretudo a que se praticava do final do século 19 até a década de 30 do século 20), o blues não tem maiores compromissos com o mundo, o universo, o próximo, a não ser que estes, de alguma forma exerçam sua influência sobre o blueseiro. Os maiores são seres amargura-

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dos, que extravasam seu pesares não apenas nas letras do blues, mas na forma de cantá-los: um lamento destilado do mais profundo do seu ser, que se estendeu mais tarde ao jazz instrumental. Robert Johnson (1911? – 1938) foi talvez o mais amargurado dos blueseiros. Sabe-se pouco de sua vida. Embora ele tenha viajado muito, como faziam os violeiros nordestinos e do Sul e Centro-Oeste brasileiros, passou a maior parte da vida no Mississipi. Ali nasceu e morreu. Uma morte cercada de mistérios. Numa das versões, teria sido esfaqueado por um marido ciumento. Noutra, envenenado. Uma terceira diz que foi vítima de magia negra. Son House, contemporâneo e, feito Johnson, um dos pilares nos quais o blues se apoia, garante que Robert John-


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Johnson nasceu em Hazlehurst, Mississipi, em data incerta Abaixo, o cantor em uma de suas raras fotos

son fez um pacto com o capeta. No início de sua carreira ele tocava muito mal. Ninguém lhe dava atenção quando insistia para que lhe ensinassem o blues. Um dia, conta Son House, Johnson desapareceu. Não se sabia para onde havia ido. Reapareceu, meses depois, num sábado. Foi a uma roda de blueseiros e pediu para tocar. Son House diz que eles e outros blueseiros conversavam diante da casa e, súbito, lá de dentro irrompeu um blues com uma força que ninguém ali jamais havia antes escutado, e nem entendia como é que ele dominara a arte do blues em tão pouco tempo. Robert Johnson naquela noite tocou e cantou o blues que lhe fora ensinado pelo demo. É no que acredita Son House (que fez dupla com Johnson em muitas cidades e fazendas no Sul americano, nos anos 30). “Me and the devil, was walking side by side/ Oooo, me and the devil, was walking side by side/ I’m going to beat my woman, until I get satisfied”.

(“Me and the devil blues”, Robert Johnson). O pacto artístico com o capirroto é lenda que remonta a dezenas de séculos. Goethe fez de Fausto um clássico com este tema. No ambiente mais simples de cantores e violeiros brasileiros, o contrato com o cão é comum. Já foi mais, até meados do século passado. O violeiro Roberto Correa, no livro A Arte de Pontear Viola, tem um capítulo dedicado às superstições dos violeiros do Sudeste e CentroOeste. Entre os vários casos que narra, há um, contado por Daniel, violeiro quase centenário, que vive em Flores (GO). Daniel revelou a Correa que aprendeu a tocar com um velho que havia feito um pacto com o diabo: “Daniel lembra que, de certa feita, este violeiro estava tocando para as pessoas dançarem e resolveu também dançar. Levantou-se, colocou a viola em cima do banco e entrou na roda a sambar ao som de sua viola, que continuava a tocar, deitada em cima do banco”. O repentista paraibano José Alves Sobrinho narrou a Rober-

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Quase todos os grandes nomes do pop/rock gravaram alguma canção de Robert Johnson. Rolling Stones, Allman Brothers e o Cream foram alguns desses megagrupos

to Correa duas “pautas” (sic) acontecidas com ele próprio. Uma se deu quando tinha 15 anos e queria dominar a arte da cantoria de viola. Foi ter com o Véi Cipriano, um catimbozeiro, que lhe ensinou duas receitas para ajudá-lo a chegar perto do capeta. Uma a do gato preto, a outra a da flor de arruda. A do gato consistia no seguinte: pegava-se o bichano, colocava-se numa panela com água. Tapava-se bem o vasilhame e botava para ferver (com o gato dentro, óbvio), até os olhos do felino saltarem para fora das órbitas. Aí era apanhá-los e, na boca da noite, dirigir-se a algum lugar deserto e invocar o capeta. Os olhos seriam entregues ao diabo que, em troca, daria talento ao cantador. José Alves Sobrinho, com os olhos do desditado bichano, foi até um lugar deserto. O tinhoso, no entanto, não deu o ar de sua graça. Acha o cantador que pelo fato de o gato não ser de todo preto. Tinha uma mancha branca no dorso. Ele tentou em seguida, a mezinha da folha de arruda. Que também não surtiu efeito. Mesmo sem ajuda do coisa ruim, José Alves Sobrinho tornou-se um dos maiores nomes da cantoria nordestina. A “pauta” de Robert Johnson com o maldito já foi cantada em verso e prosa. Em filme, intitulou-se Crossroad (A Encruzilhada) e foi um sucesso de bilheteria. Em versos, os paraibanos Bráulio Tavares e Sebastião da Silva (famoso repentista) compuseram “A Balada de Robert Johnson” (gravada pelo blueseiro carioca Flávio Guimarães no CD Navegaita, de 2000): “Dizem que foi o Diabo/ quem lhe ensinou a tocar/ em um encontro marcado/ numa noite sem luar./

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Cruzando as estradas tortas/ daquelas veredas mortas/ chegou na encruzilhada:/ veio com a mão vazia/ e partiu com melodia/ ponteio, rima e toada”. Em vida, Robert Johnson testemunhou o lançamento de apenas 11 de suas composições (de 29 gravadas pelo pequeno selo Vocalion, em 1936 e 1937), a mais bem-sucedida tendo sido “Terraplane Blues”, com cinco mil cópias vendidas. Depois de morto, seu mito foi sendo incensado ao ponto de, nos anos 60, ser equiparado a lendas americanas como Woodie Guthrie, Hank Williams ou Elvis Presley. Os dois CDs com sua obra completa, saído na década passada, já venderam mais de dois milhões de cópias. King of Delta Blues, lançado nos anos 60, encantou milhões. Quase todos os grandes nomes do pop/rock daquela década e das décadas seguintes gravaram alguma canção de Robert Johnson. Rolling Stones, Allman Brothers e o Cream foram alguns dos megagrupos que cantaram Robert Johnson. O nome do blueseiro volta a ser badalado novamente por dois motivos. O primeiro é Eric Clapton que lançou Me and Mr.Johnson, um CD inteiro com composições de Johnson, e pelo livro Escaping the Delta: Robert Johnson and the Inventions of the Blues, de Elijah Walds. Em Me and Mr. Johnson o guitarrista inglês finalmente criou coragem de encarar de frente o homem da encruzilhada. Quando Jimi Hendrix morreu, Clapton comentou com um amigo que queria ser um Robert Johnson: “Viver uns bons dias e depois ir embora”. A biografia de Eric Clapton tem passagens dignas de um blueseiro do Delta do Mississipi. Nunca conheceu o pai, que abandonou a mãe antes


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Capa do CD de Eric Clapton, com músicas de Johnson Na outra página, selo norteamericano, em homenagem ao bluseiro

de ele nascer. Inquieto e insatisfeito, foi junkie (viciado em heroína) durante boa parte dos anos 70. Entregou-se ao alcoolismo nos 80. Ou deixava o álcool ou morria. Deixou. Neste disco ele dá um toque de Chicago aos blues de Mr. Johnson, escolhendo 14 dos mais contundentes de Robert Johnson para compor o repertório do álbum. É visceral sua interpretação de If I Had Possession of Judgment Day (“Se eu tivesse controle sobre o Dia do Juízo”), uma das mais poderosas e menos conhecidas canções de Robert Johnson. Já em seu livro, Elijah Walds pretende desmistificar o blueseiro, por considerar que a lenda Robert Johnson foi em grande parte montada por fãs brancos e críticos de música dos anos 60. “Até onde vai a evolução da música negra, Robert Johnson foi uma figura menor. Muito pouco do que aconteceu nos anos que se seguiram à sua morte teria mudado, se ele não tivesse tocado uma única nota”, afirma. Em outros livros, a exemplo de Robert Johnson: Mythmaking and Contemporary American Culture (Robert Johnson: A criação de mitos e a cultura contemporânea americana), Patricia R. Schroeder lembra que, de selos postais a romances, Ro-

bert Johnson foi tão incensado que se tornou larger than life, numa tradução aproximada, a lenda tornou-se maior do que o homem. Talvez ele até tenha sido incensado em demasia nos anos 60, que afinal foi quando sua música se disseminou entre a classe média branca, com o citado King of Delta Blues. Mas é inegável que Johnson, embora não tenha sido um cantor excepcional, foi inigualável como compositor e instrumentista. Não é exagero considerá-lo precursor do rock, pelo ritmo frenético de seus blues (“If I had Possession”, por exemplo, é um desses). Neste disco, Eric Clapton mostra, mais do que em qualquer outro de seus trabalhos, que o blues não é forma, é sentimento. O grande blues de Clapton, ressalta Dave Marsh, em Mistery Train (um dos grandes livros já escritos sobre música popular americana), foi Layla (do álbum Layla and Other Assorted Songs, de 1970), em que ele externa, como um velho bluseiro negro do Mississipi, toda a dor de não possuir a mulher que amava: Patty Boyd, mulher do seu melhor amigo, o beatle George Harrison. • Continente junho 2004


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TRADIÇÕES Pesquisadores seguem os passos da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, coordenada por Mario de Andrade, registrando em CD músicas de tradição oral de Pernambuco e da Paraíba Isabelle Câmara

A devolução da memória Fotos: Maria Acselrad

Os pés fazem o chão da casa durante a brincadeira do Coco de Tebei

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m fevereiro de 1938, acreditando que “O Brasil realmente não conhece a sua música nem seus bailados populares (...)”, o modernista Mario de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do Centro Cultural São Paulo, decidiu colocar em campo a Missão de Pesquisas Folclóricas, que tinha por objetivo registrar, inclusive pentagramar, as músicas de tradição oral presente nos lugares então mais inóspitos do país. Instruídos por Mario e municiados dos melhores equipamentos de imagem e som, os pesquisadores Luís Saia, Martin Braunweiser, Benedicto Pacheco e Antônio Ladeira partiram rumo aos Estados de Pernambuco, Paraíba, Piauí, Ceará, Pará e Maranhão


Centro Cultural São Paulo

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Antônio Ladeira e Luís Saia a caminho de Brejo dos Padres, área indígena Pankararu, em Tacaratu (PE)

para gravar, filmar, fotografar e descrever o maior número possível de manifestações populares que fossem encontradas nas cidades que percorreram. A Missão visitou cinco cidades em Pernambuco, 18 na Paraíba, duas no Piauí, uma no Ceará, uma no Maranhão e uma no Pará. Assistiu a apresentações de bumba-meu-boi, nau catarineta, reisados, caboclinhos, maracatu, tambor de crioula, tambor de mina e praiás. Por onde foram, os pesquisadores encontraram colaboradores, como Câmara Cascudo – este, a pedido do modernista, que lhe disse em bilhete: “Cascudinho, aí vai o Luís Saia com a Missão. Me ajude que isto é coisa de vida ou de morte pra mim. Qualquer dia estouro por aí” –; anotaram versos de poética popular e dados sobre a arquitetura. O envio da Missão resultou em mais de 30 horas de gravação da música tradicional, que à época era chamada folclórica, centenas de fotografias, instrumentos musicais e cadernetas de campo, acervo que hoje se encontra preservado (disponível para consulta) pelo Centro Cultural São Paulo e que reúne uma perspectiva etno-histórica singular. Mas as comunidades que foram visitadas pela MPF não deixaram de fazer música. De 1938 para cá, continuam a existir, com reelaborações maiores ou menores, os cantos do xangô e do toré pernambucano, dos cocos paraibanos, do tambor de mina maranhense, do carimbó paraense etc. Foi a partir daí que pesquisadores das Universidades Federais de Pernambuco e da Paraíba das áreas de Etnomusicologia e Antropologia decidiram percorrer, 66 anos depois, a trilha deixada pela equipe da Missão.

Também com modernos equipamentos de gravação, incluindo DATs portáteis e estúdios de gravação multipistas, vídeo e foto, pesquisadores como Carlos Sandroni, professor da UFPE, presidente da Associação Brasileira de Etnomusicologia, coordenador da Associação Respeita Januário e do Núcleo de Etnomusicologia da UFPE; Maria Ignez Ayala, professora da UFPB, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular e do Laboratório de Estudos da Oralidade da mesma universidade e Marcos Ayala, professor da UFPB; Cristina Barbosa, etnomusicóloga e musicista e Gustavo Vilar, professor de História, etnomusicólogo e músico, revisitaram as cidades de Tacaratu e Arcoverde, em Pernambuco, e algumas na Paraíba, com patrocínio da Petrobrás e apoio do CNPq, buscando informações mais recentes dos repertórios e práticas musicais que pudessem vitalizar as deixadas por Mario de Andrade. No caminho eles descobriram pessoas como Domingos Cunha, filho de Raimundo Cunha, coquista de Tacaratu e Técnico de gravação com estúdio multipistas, sendo observado por um bacamarteiro

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Dona Senhorinha Magalhães, informante da Missão em 1938, escuta os cocos que gravou há 66 anos

informante da MPF. De posse de uma fita com os cocos gravados em 1938, Carlos Sandroni mostrou a Domingos as músicas cantadas e dançadas pelo seu pai. Domingos, figura reservada, dançou animada e eloqüentemente, rememorando a dança do coco praticada por seu pai. Este episódio está registrado no vídeo Memória da Missão de Pesquisas Folclóricas em Tacaratu, feito pela equipe de pesquisa atual em parceria com a Etapas Vídeo. No vídeo também está o depoimento de Dona Senhorinha Freire Magalhães, 86 anos, informante da Missão quando tinha 20. Ao ser apresentada

O canto do Sertão As músicas do álbum Arresponde a Roda Outra Vez dão exemplo do patrimônio musical existente no Sertão

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ifícil definir os gêneros musicais presentes no CD duplo Arresponde a Roda Outra Vez, produzido pela equipe de pesquisas coordenada por Carlos Sandroni, com o apoio da Petrobrás, a ser lançado em julho. Isso se buscarmos referências no que é catalogado pela indústria fonográfica brasileira. Mas, se questionarmos a quem produz essas músicas, “A Roda” é simplesmente a roda. Coco de Tebei é coco de tebei. Toante é toante. Rojão de Roça é rojão de roça. “O próprio povo classifica suas músicas. Primordialmente tentamos entender o contexto no qual elas se inserem. Temos que dialogar com os saberes próprios de cada cultura”, alerta Sandroni. Dentro do que é possível classificar, os CDs contêm torés, aboios, toadas, loas, cocos, novenas e ladainhas, marchas, samba, forró e valsas. O que não é possível,

“Esta pesquisa estabelece vínculos com o passado e permite comparar registros, o que nos possibilita entender melhor o processo cultural e as mudanças, migrações, persistências e resistências”

aos cocos gravados pela equipe da MPF, lembrou alguns hábitos da juventude, como tirar um ritmo de duas colheres, que confrontadas produzem um som semelhante ao das castanholas. Ouvindo o coco “Mandei cortar capim”, ela identificou: “Eu estava aqui... esta é a minha voz”. Até levantar e sair cantando e dançando, tal qual Raimundo, com a audição da música “Sereno de Amor”. Também encontraram Biu Saloia, antigo participante da brincadeira Barca da Torre (PB) e que foi filmado pela Missão. Suas imagens deram origem ao vídeo A Brincadeira da Barca, no qual ele conta suas memórias, ilustradas pelas imagens feitas em 1938. “Estamos devolvendo a memória aos cantadores e cantadeiras, restituindo documentos etnomusicológicos às pessoas que lhe deram origem, 66 anos depois”, comemora Sandroni. “Esta pesquisa retoma as áreas visitadas pela MPF e as preocupações de Mario de Andrade, estabelecendo vínculos com o passado e permitindo comparar registros, o que nos possibilita entender melhor o processo cultupelo menos para quem está como observador, é de uma vasta riqueza musical. Músicas que apresentam melodias ondulantes, convidativas à dança, tiradas a partir de instrumentos incríveis – como a flauta produzida com o rabo do tatu, ou a gaita dos praiás, feita com bambu ou PVC e sem um único furo, e o adufe, pandeiro quadrado de rara utilização – e interpretadas por cantadores e cantadeiras que possuem vozes tão abertas, solares e polifônicas quanto a paisagem do Sertão; ou poesias cantadas/músicas faladas, numa relação curiosa entre letra e melodia. O encarte é um livreto de 50 páginas com fotografias, informações sobre o projeto e letras das canções – assinadas pelos autores e devidamente contextualizadas e analisadas, o que raramente acontece em gravações do gênero, nas quais as músicas do povo são sempre registradas como de “domínio público”. A tiragem será destinada, quase que na sua totalidade, a universidades, instituições culturais e aos próprios músicos. (I.C.) CD duplo Arresponde a Roda Outra Vez, vários. Independente, preço médio R$ 50,00. Informações: (81) 2126.8596.


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ral e as mudanças, migrações, persistências e resistências”, complementam Marcos e Maria Ignez Ayala. Renovação – Um exemplo de renovação do acervo do CCSP é dado pelas pesquisas desenvolvidas por Gustavo Vilar na área indígena Pankararu. Mario chamava de “praiás” o gênero musical daquele povo. Ao gravar a mesma música registrada em 1938, Gustavo identificou que praiás, afirmam os pesquisados, são as entidades espirituais recebidas pelos índios, que em transe cantam toantes. Mas nessa área indígena o pesquisador reconheceu várias manifestações tradicionais, cada uma com um repertório específico, a exemplo dos torés – nos quais são utilizados instrumentos como maracás e “rabos de tatu” e onde os pés também são instrumentos –, dos rituais Menino do Rancho, Mesa do Jucá, Noite dos Passos e Corrida do Umbu; das bandas de pífanos (a maioria confeccionados em PVC), grupos de reisado, de coco (inclusive um, chamado “coco de tebei”, no qual as pessoas se reúnem para dançar, pisando o chão de uma casa em construção, também comemorando a finalização da obra), de rojão de roça (cantos de trabalho), de São Gonçalo (dança de penitência, mas que tem seu lado profano) e um grande movimento de novenas. No caso de Arcoverde, cidade que hoje desponta no cenário musical devido ao sucesso do Cordel do Fogo Encantado e do Samba de Coco Raízes de Arcoverde, os pesquisadores atuais foram quase pioneiros, visto que a equipe da MPF utilizou a cidade, então Rio Branco, apenas como pouso e passagem: lá ela passou um dia, gravou algumas toadas, aboios e cocos, tirou uma foto de uma criança e partiu para Tacaratu. “Arcoverde tem vários povoados com estrutura bem rural, sem nenhum contato midiático. Descobrimos grupos consolidados, como o Reisado de Caraíbas, Coco das Irmãs Lopes, Reisado de São José, Banda de Pífanos de Umburanas, Banda de Pífanos de Santa Luzia, e o próprio Raízes”, atesta Cristina Barbosa. Na Paraíba foram muitos os municípios pesquisados e as manifestações encontradas. Em Caiana dos Crioulos, um remanescente de quilombos de Alagoa Grande, foram encontrados cirandas, cocos e ladainhas. Em Santa Luzia, Seu Mané da Bia é o representante do movimento de cocos, vaquejadas, poemas e canções. Em Patos, foram registrados vários cantadores de viola, entre os quais se destaca Fenelon Dantas, profissional reconhecido na cantoria, e Derréis, que tem um estilo semelhante ao de Jackson do Pandeiro. Em Pombal, os Congos e os Pontões, brincadeiras que ocorrem na Festa do Rosário desde o século 19. Em Aparecida, ocorre um movimento de novenas, feitas

Maria Acselrad

Gravação para o CD do São Gonçalo. Acima, os Pontões, brincadeira que ocorre em Pombal (PB)

numa sala transformada em capela, a “sala do santo”. Já nos municípios de Cajazeiras, São José de Piranhas, Triunfo e Santa Helena, os pesquisadores tiveram contato com várias bandas cabaçais (pífanos). O projeto já tem alguns desdobramentos. Além da gravação do CD com as músicas dessas comunidades, devidamente contextualizadas e analisadas, existe aprovado pelo Instituto Júnia Rabelo, do Banco Rural, um projeto de educação musical, no qual os mestres das localidades visitadas serão os próprios professores, para que esta tradição não se perca e que as músicas sejam valorizadas em seus locais de ocorrência, gerando um novo olhar das comunidades sobre suas próprias tradições. • Continente junho 2004


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Ilustração: Kipper

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O que quer dizer PósModernidade? Intelectuais expõem suas visões na polêmica em torno de um rótulo onde pode caber tudo ou nada Fábio Lucas

No rastro da PósModernidade

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ivemos no tempo da profusão de símbolos no vácuo de conceitos, da explosão de imagens sem fixação, do turbilhão de dados sem conexão nem direção. No universo pós-moderno, entretanto, o inverso da verdade é outra verdade, sem contradição: proliferação de conceitos no vazio simbólico, reino das imagens de apreensão veloz, corrente de informação conectada em várias direções. O infinito está num ponto, tudo é nada, no universo da Pós-Modernidade. Há muitos que duvidam até de sua existência. “Trata-se de um termo guardachuva, que abriga um sem número de fenômenos culturais diversificados, nas mais variadas manifestações culturais – filosofia, arte e até mesmo na ciência”, define o

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Henri Cartier-Bresson/Reprodução

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França, 1968: revolta estudantil no limiar pósmoderno

arquiteto e historiador Abílio Guerra, professor na Puccamp. Ele diz que nem usa o termo “pós-moderno” quando escreve, porque exprime “coisas tão distintas, tão contraditórias, muitas vezes antípodas em seus objetivos e proposições, e não explica absolutamente nada”. O paranaense Carlos Costa, mestre em Comunicação pela ECA/USP e professor da Cásper Líbero, concorda que existe uma certa pressa na rotulagem pós-moderna. “Ainda estamos na modernidade”, garante. “Como ensinava Barthes, definir e catalogar nos deixa mais tranqüilos”, recorda. Mas não é uma pressa desinteressada, na sua opinião. “Os criadores desses novos movimentos acabam abrindo franquias – com seus franqueados, os intelectuais periféricos, transformando-se em ‘intérpretes’ e ‘tradutores’, como há os franqueados de Foucault, de Derrida, de Bourdieu, de Peirce, entre tantos outros”, aponta Costa. O filósofo Michel Paty, diretor de Pesquisa Emérito do CNRS, na França, vê o mesmo problema na concepção de “pós-modernidade”. E mesmo que se entenda “modernidade” como o século 17, e chamemos o nosso momento histórico de “contemporâneo”, o essencial permanece: “O mundo moderno vai do moderno inicial ou clássico ao contemporâneo”, diz ele. Segundo Michel Paty, as palavras “Pós-Modernidade” e “PósModernismo” denotam uma pretensão de se apropriar do amanhã. “Pelo menos, a palavra “futurismo” era mais interessante, aberta. Era apenas uma indicação, a abertura de um caminho possível, visto de hoje. Não tinha imposição. Ao contrário, que haverá depois do Pós-Modernismo, senão o nada?”, questiona Paty, para quem essa denominação revela uma retórica vazia, “para ser utilizada sem pensar, pois pode ser consumida sem pensar” pelos compradores da ilusão pós-moderna. Devemos lembrar ainda que aquilo que é “pós”, para a História, representa não apenas a superação, mas a negação do que vinha antes. E não é de hoje que se fala em Pós-Modernismo. Segundo Amália Quevedo, autora de De Foucault a Derrida, a origem do termo “pós-moderno” remonta a 1870, pelo artista britânico John Chapman. Em 1917, o termo aparece no livro de Rudolf Pannwitz sobre a crise cultural européia – onde o homem pós-moderno já é descrito como “nacionalista, militarista e elitista”. Depois da Segunda Guerra, a principal referência é Arnold Toynbee, para quem o pós-moderno era algo negativo, com a perda de valores Continente junho 2004


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Arquivo pessoal

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“Os criadores desses novos movimentos acabam abrindo franquias – com seus franqueados, os intelectuais periféricos, transformando-se em “intérpretes” e “tradutores” de Foucault, Derrida, Bourdieu, Peirce...”

Carlos Costa: “Ainda estamos na modernidade”

tradicionais, certezas e estabilidades. Em contraponto otimista, Peter Drucker escreve em 1957 que a sociedade pós-moderna iria superar a pobreza e a ignorância, após presenciar o fim das ideologias e do Estado-nação. É contudo na França, a partir da década de 1960, que a Pós-Modernidade ganha um contorno visível, com pensadores como Michel Foucault, Derrida, Deleuze, Rorty e Jean Baudrillard, na esteira do estruturalismo lingüístico de Ferdinand de Saussure. Feitas as devidas ressalvas, além dos registros, é impossível ignorar a transformação que atravessamos desde a segunda metade do século 20. Juremir Machado da Silva, historiador e sociólogo, especialista no assunto, professor da PUC do Rio Grande do Sul e pesquisador do CNPq, acredita que a Pós-Modernidade vem mesmo dos anos 1960, com as revoltas estudantis, tendo se consolidado com a queda do Muro de Berlim e o declínio das utopias de esquerda. Carlos Costa, da Cásper Líbero, por sua vez, admite que, apesar da abstração dominante, existem traços concretos de que o mundo passa por um período de mudanças e redefinições, “com algumas seguranças e certezas desintegradas e desfeitas”. “As bases da modernidade, como a presença de um Estado organizador, ruíram”, diz ele. Para Costa, o nosso tempo é uma espécie de liquidificador, em que tudo está em movimento. O que é muito diferente de tomar a realidade como um simulacro, como faz Baudrillard. Esse tipo de confusão, segundo Costa, demonstra mais o caipirismo dos “pós-modernos” franceses que qualquer outra coisa. Ele cita Susan Sontag em seu novo livro, Diante da Dor dos Outros, em que ela escreve: “Dizer que a realidade se transforma num espetáculo é um provincianismo assombroso. Universaliza o modo de ver habitual de uma pequena população instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias precisam ser transformadas em entretenimento”. Juremir Machado, que fez pós-doutorado em Sociologia da Cultura, na Sorbonne, sendo orientado por Michel Maffesoli, Jean Baudrillard e Edgar Morin, conceitua a Pós-Modernidade como a “descrição da atmosfera de uma época, com o que ela tem de bom e de ruim, originando uma percepção mais lúcida e mais desencantada das coisas”. A respeito de um suposto simulacro no coração da Pós-Modernidade, Machado contesta com veemência: “A Pós-Modernidade não inventa a simulação, reconhece-a e descreve seu grau de impregnação na sociedade”. Somos ou não somos pós-modernos? – Mas a crítica aguda sobre a modernidade não é válida, até necessária? A desconfiança que critica os críticos vem do fato de que os pós-modernos não fazem questão de ser auto-referentes, como se nenhuma outra classificação lhes servisse para nominar o caráter, a obra ou o estilo. A ânsia por um rótulo bem talhado é um traço pós-moderno. E na ponta dessa escala, o pós-moderno se quer de vanguarda, à frente do próprio tempo – e por isso talvez não se preocupe em ser incompreensível em suas Continente junho 2004


Nilton Santolin/Editora Sulina

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“O pós-moderno é o atestado de óbito da idéia de vanguarda. É a desconstrução dos mitos vanguardistas, iluministas, utópicos e missionários da emancipação, da verdade e da sociedade perfeita”

Juremir Machado: “Pós-Modernidade não inventou a simulação”

negações e desconstruções. Juremir Machado refuta o vanguardismo pós-moderno. “O pós-moderno é o atestado de óbito da idéia de vanguarda. É a desconstrução dos mitos vanguardistas, iluministas, utópicos e missionários da emancipação, da verdade e da sociedade perfeita”, defende. O filósofo Paty prefere não atirar o vanguardismo na lata de lixo. “A vanguarda inovadora prepara o futuro. A pseudo-vanguarda não acredita no futuro, na imaginação, no poder renovador das idéias, e nos vende velha mercadoria pintada de brilhante, chamando-a de nova. É a vanguarda do atraso, a vanguarda do nada.” Eduardo Subirats, na trincheira da crítica, prefere levantar a bandeira de combate do Pós-Modernismo latino-americano, existente até a década de 1970. Subirats alega que o projeto de uma civilização brasileira e latino-americana foi abafado pelo “Pós-Modernismo norte-americano” que trouxe a idéia de “fim do sujeito”, e com isso ajudou os fascismos patrocinados pela Guerra Fria a se verem livres dos intelectuais locais. Ao lado disto, segundo ele, impôs o pensamento marginal, valorizando escritores que tratam “das putas de Havana ou das favelas do Rio”, ao invés de projetos civilizatórios como o de Lina Bo Bardi. “Este é o jogo que, com diferentes retóricas, manejam as instituições políticas e culturais globais”. Um jogo em que, visivelmente, os jogadores estão preocupados em descobrir quem são, e o que fazem. Com as identidades individuais em xeque por uma cultura de violenta ruptura com normas e costumes até ontem vigentes, e as identidades coletivas modificadas pelo gene da globalização, a realidade avisa que está longe de acatar uma definição pacífica sobre a Pós-Modernidade – porque estamos longe de saber o que somos quando formos pós-modernos. E nisso a Pós-Modernidade falha, pois apesar do discurso vasto, uma concepção firme do “sujeito pós-moderno” ainda não vingou. Soa insuficiente a negação do “sujeito iluminista”, na linha de sucessivos “descentramentos”. Se estamos tontos e sem rumo, ainda somos algo quando não temos idéia do que somos. Mas o quê? Juremir Machado aposta no que pode sair do “liquidificador pós-moderno”, para usar a imagem de Carlos Costa. “O Pós-Modernismo é a conciliação dos inconciliáveis, o equilíbrio dos antagonismos, a convivência dos contrários, o aqui e agora, o silêncio e rumor. É a vida como ela está sendo”, resume. Ocorre que, para muitos, na Pós-Modernidade a vida não é “como ela é”, e sim “como ela é comunicada”. Michel Paty traduz a inquietação: “Não somos, somos vistos e comunicados. Comunico, ergo sou”. A difusão incessante de mensagens que nos interceptam diariamente, em casa ou no trabalho, sobretudo pela TV, serve de argumento conclusivo para o filósofo francês: “São geralmente imagens sem sentido que nos dão para comer, e ficamos com fome. Temos fome do real e do verdadeiro: somos modernos, vivos. Não somos pós-modernos.”

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Pós-Modernismo: nascimento e morte O Pós-Modernismo é um termo que se banalizou e define praticamente tudo o que é produzido em arte nos últimos 30 anos, no Brasil e no mundo Paulo Polzonoff Jr.

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uem vai a uma exposição de artes plásticas, dificilmente escapa do termo. Geralmente o curador da exposição o repete de dois em dois minutos. E lá está ele, o Pós-Modernismo, bebericando o vinho branco junto aos demais visitantes. Poucos o compreendem, na verdade. E não é à toa. Na literatura ele, o Pós-Modernismo, é mais tímido como termo, mas apenas para os leigos. Nas universidades ele é usado com a maior banalidade possível. É pós-moderno para cá, pós-moderno para lá. Tudo, na verdade, que se produziu nos últimos 30 anos pode ser chamado de pós-moderno, ao menos para os acadêmicos. E ninguém nos avisa? Mas há um momento histórico marcante que delimite este momento cultural? Ao que parece, não. O Pós-Modernismo surgiu exatamente da falta deste momento histórico determinante. Por este prisma, ele é simplesmente a queda natural do movimento moderno, que atingiu seu ápice ainda na década de 20. Não por acaso o termo tem sido substituído por algo que é historicamente mais correto: Baixo-Modernismo. Isto é, o Modernismo já em decadência. Curioso é perceber que o Pós-Modernismo deve ser o único dos movimentos culturais a ter data e hora – isso mesmo: hora! – para nascer. O arquiteto Charles Jencks decretou como hora oficial da passagem do Modernismo para o Pós às 15h32 do dia 15 de julho de 1972. Neste dia e a esta hora o edifício Pruitt-Igoe, projetado dentro dos parâmetros modernistas de Le Corbusier para abrigar pessoas de baixa renda e depois considerado inabitável, foi posto abaixo numa simples demolição em Saint Louis, Missouri, Estados Unidos. O Continente junho 2004

Ilustração: Kipper

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Defensible Space

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Demolição do Pruitt-Igoe, às 15h32 do dia 15 de julho de 1972: passagem do Modernismo para o Pós

espaço aberto pela construção de pouco menos de 20 anos e premiado anteriormente pelo American Institute of Architects abriu uma brecha ideológica entre os arquitetos, que viram no meio dos entulhos do ideal demolido múltiplas possibilidades de não só se reverter o quadro de deterioração do velho, isto é, do moderno, como também de criar algo inusitado. A demolição de Pruitt-Igoe foi simbólica, mas deixou uma mensagem cuja herança é bem real: as paredes do novo ruíam para surgir o pós-novo. O que não deixa de ser significativo é saber que nos 34 acres sobre os quais se erguiam os prédios de PruittIgoe até hoje nada foi construído. Há controvérsias, como não poderia deixar de ser. Os mais empolgados dizem que o Pós-Modernismo nasceu ainda na década de 30. O que seria espantoso, se levarmos em conta que a Semana de 22, marco do Modernismo brasileiro, foi realizada apenas oito anos antes. Mas é o que garante Perry Anderson em seu As Origens da Pós-Modernidade (1999). Neste texto, ele conta que foi um amigo de Unamuno e Ortega, Frederico de Onís, que imprimiu o termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo conservador dentro do próprio Modernismo. Termos iguais, pois, para coisas distintas, ou melhor, antagônicas. Affonso Romano de Sant´Anna, poeta que se especializou no assunto por conta de sua briga com os artistas plásticos contemporâneos, adverte: “Quem quiser entrar nesse assunto prepare-se para andar num cipoal ou, às vezes, num pântano. Para ter uma idéia geral das contradições, vale começar por Poética do Pós-Moderno, de Linda Hutcheon (Imago). Aí encontrará todos os nomes pró e contra, os que se julgam fundadores, a diferença entre franceses e americanos etc. Tipo: Newman, Eaglaton, Jameson, Vattimo, Baudrillard, Rorty, Said.” Apesar dos muitos pais e muitas mães, parece que a arquitetura foi mesmo o ponto de partida do PósModernismo, que mais tarde infestou as artes plásticas, a literatura e a música. Além disso, por sua amplitude e vacuidade, também foi usado por tendências ideológicas as mais diversas, como contestação ao capitalismo e à globalização. Moda nas universidades, o Pós-Modernismo virou um lucrativo filão para os acadêmicos. Bolsas de estudos para pesquisas pós-modernas nunca faltaram. Parece mesmo que ser pós-moderno não foi uma opção para os artistas das últimas décadas. Ele se tornou prérequisito. O pintor Renato Alvim que o diga. Jovem de apenas 27 anos, ele se dedica à pintura tradicional no Rio Continente junho 2004


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de Janeiro e denuncia: “Hoje é praticamente proibido pintar. Só querem saber de instalações, interferências, estas coisas. A pintura, por mais nova que seja, é considerada velha apenas por ser pintura”. As artes plásticas são mesmo o campo mais minado para este tipo de discussão. O Pós-Modernismo se incorporou de tal forma ao vocabulário dos artistas e marchands que é praticamente impossível dissociá-lo de qualquer coisa produzida nos últimos 30 anos, no Brasil e no mundo. Aos poucos, contudo, o termo começa a perder seu viço, teórica e pragmaticamente. Tanto é assim que um dos templos do Pós-Modernismo nas artes plásticas brasileiras, a Bienal de São Paulo, anunciou recentemente a volta das pinturas em suas paredes. Menos veloz, mas não menos importante, a literatura ainda sofre com os efeitos do Pós-Modernismo. O termo, ainda que não seja indispensável, é desejável por todos aqueles que fazem a chamada literatura contemporânea. Para o crítico Rogério Pereira, do jornal literário Rascunho, de Curitiba, o Pós-Modernismo “é um rótulo polêmico que se põe em quase toda produção literária contemporânea”. Para ele, ainda, a discussão acerca do termo acabou por vulgarizá-lo, a ponto de ter perdido seu sentido original, se é que houve um. Isso se deve sobretudo às controvérsias filosóficas de Lyotard e Habermas, que acenderam o facho apenas dos acadêmicos para o assunto. No bojo do pós-moderno literário cabe tudo. Há listas que incluem Millôr Fernandes, José Saramago e Rubem Fonseca no mesmo balaio dos poetas concretos, práxis e neoconcretos. Curioso é perceber que o Pós-Modernismo nasceu, cresceu, multiplicou-se mais do que se esperava e morreu sem que nos déssemos conta. Pelo menos é o que dizem os especialistas no assunto, que parecem estar sempre em busca de um novo termo para rotular aquilo que é inclassificável num primeiro momento. Quando se trata de Pós-Modernismo, no entanto, nada é tão simples quanto parece. Tanto é assim que a vanguarda do movimento tem duas frentes, a dos catastrofistas e dos neocatastrofistas. Os primeiros acreditam não só que o tempo está desgastado, como é inútil. Preferem usar o termo “contemporâneo” para substituir o obsoleto “pós-moderno”. Na música é que este movimento se revela mais intensamente. Para os teóricos, o Pós-Modernismo apenas resvalou na música, em movimentos como o Tropicalismo brasileiro. As diferentes correntes da música eletrônica já pertenceriam a outra vertente. Seria um movimento contemporâneo, totalmente dissociado, pois, do Modernismo, que é coisa de velho. Os neocatastrofistas, por assim dizer, são mais radicais. Guiados pelo espírito demolidor de Francis Fukuyama, que na década de 90 chocou o mundo com uma tese ininteligível na qual propunha o “fim da História”, eles dizem que o Pós-Modernismo acabou, sim, mas a busca por outro forte movimento cultural não cessou.

Quando se trata de Pós-Modernismo, nada é simples. A vanguarda do movimento é formada por duas correntes: a dos catastrofistas e a dos neocatastrofistas

Habermas: acendendo o facho para os acadêmicos

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Divulgação/Rocco

Ralph Orlowiski/Reuters

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Affonso: preparando-se para andar num pântano


Paulo Giandalia/Folha Imagem

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Bienal de São Paulo: templo do Pós-Modernismo trará a pintura de volta às paredes

A explicação é interessante. O Pós-Modernismo, ou Baixo-Modernismo, como preferirem, morreu porque sua existência só tinha sentido no enfrentamento do Modernismo, que praticamente se extinguiu. Também contribuiu para a queda do Pós-Modernismo a falta de uma estratégia intelectual homogênea. O que não deixa de ser curioso, porque a essência do Pós-Modernismo é a heterogeneidade em absolutamente tudo. “Quem explicaria isto melhor seria Jorge Luis Borges, que dizia que o que chamam de pós-moderno é, na verdade, pósantigo”, diz Sant’Anna. A galhofa, por incrível que pareça, tem sentido. Perdidos entre tantos termos, há quem aposte num regresso às artes ditas puras. É um movimento que encontra seu principal expoente na literatura, onde as formas clássicas vêm ganhando cada vez mais espaço entre os jovens poetas. Gente como Glauco Mattoso, que mistura a métrica perfeita dos sonetos com a temática moderna do homossexualismo e da podofilia. Muitos apostam também no ressurgimento da pintura tal qual a conhecemos desde o século 16. É um retorno ao antigo, travestido de progresso. • Continente junho 2004


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84 HISTÓRIA

Pequena história de papel Pesquisa pioneira sobre etiquetas de livros, além de subsídios para uma história das livrarias, traça um painel sócio-histórico da vida cultural brasileira nos dois últimos séculos Homero Fonseca

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o século 19, para preservar o seu negócio, os livreiros eram obrigados a trabalhar com os mais diversos produtos: artigos de papelaria, chá, fumo, louça, tinta, rapé, porcelana, tecidos, remédios. No início do 21, para enfrentar a concorrência das megastores, “muitas livrarias passaram a vender objetos de papelaria, tabacaria, CDs, presentes, o diabo a quatro”. Essa “espécie de regressão ao comércio não-especializado de suas longínquas ascendentes do século 19” foi flagrada por inusitada pesquisa sobre as etiquetas de livros no Brasil – a primeira deste tipo de que se tem conhecimento e que se insere no escopo da chamada petite histoire. Até então, como sublinha o autor de A Etiqueta de Livros no Brasil – Subsídios para uma História das Livra-

rias Brasileiras, Ubiratan Machado, “esse pedacinho de papel, que constitui uma das mais antigas formas de publicidade, ainda não encontrou seu historiador. Nem mesmo o seu cronista”. Agora encontrou. Pena que o livro e a editora não forneçam qualquer informação sobre o autor. Mas, pela dimensão do trabalho, que temporalmente vai dos inícios do Oitocentos, quando se instalaram as primeiras livrarias em Pindorama, até a atualidade, e, espacialmente, abrange todos os Estados brasileiros, é obra de mais que um colecionador, de pesquisador minucioso e persistente. Englobando, além da expressão estética, aspectos sócio-históricos sumamente interessantes, o autor debruçou-se sobre milhares de volumes recolhidos durante décadas, analisando a provável data de sua


emissão, o papel usado, as técnicas de impressão etc, compondo um comovente painel da memória das nossas livrarias. É estudo valioso, inclusive, para a história da mentalidade tupiniquim. “Em sua humildade - comenta o pesquisador - , as etiquetas mantêm viva a lembrança de livrarias desaparecidas, retratam aspectos curiosos do processo de comercialização do livro, desvendam práticas comerciais, hábitos sociais, técnicas promocionais muitas vezes rudimentares, e até a receptividade ou a resistência a conquistas tecnológicas”. E identificam “de forma impressionante um desafio constante do comércio livreiro ao longo dos tempos: a dificuldade de manutenção de um negócio de vendas nem sempre rápidas e de retorno lento de capital”. Ubiratan Machado descobriu “exemplares belos como um selo ou um pequeno affiche, ao lado de outros sem nenhum gosto”. Constatou períodos de esplendor - nos quais alguns livreiros chegaram a mandar imprimir as etiquetas em Paris - e também de absoluto descaso, “como se a crise das instituições descolorisse almas e etiquetas”. Acompanhando o avançar do tempo, as etiquetas deixaram de ser coladas e passaram a ser adesivas, incorporando o espírito de época em que tudo que é sólido desmancha no ar, e passaram a ostentar informações da contemporaneidade, como endereços eletrônicos das lojas. Também desvelam as próprias mudanças mercadológicas do setor, registrando, a partir da segunda metade do século passado, a presença avassaladora das redes e das megalivrarias. Como sobremesa para o leitor servido nesse banquete memorialístico, o autor nos serve informações deliciosas, como a provável primeira livraria a colar etiquetas, na Bahia, na década de 1820; a chegada da novidade ao Rio de Janeiro, na década seguinte; as primeiras livrarias do Recife, nos anos 40 do século 19; e a curiosa constatação de que pouquíssimas livrarias brasileiras homenageiam escritores com seus nomes ou a de que, em plena ebulição do Movimento Modernista, a nova estética praticamente tenha ficado ausente do design das etiquetas. O livro, bem encadernado, capa dura, com profusas ilustrações coloridas, é um maravilhoso atestado de como a História, ao contrário dos pregoeiros do fim, está em toda parte, até mesmo em registros (quase) imperceptíveis como esses pequeninos pedaços de papel. •

A Etiqueta de Livros no Brasil – Subsídios para uma História das Livrarias Brasileiras. Ubiratan Machado, Edusp –Oficina do Livro, Imprensa Oficial de SP, 468 páginas, R$ 180,00.


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86 ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Reflexões sobre o nosso tempo

I - A imagem

Nem o teatro possui o alcance e a força persuasiva do cinema e da televisão

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ansei de imagens violentas. Até perdi o sono na noite em que a televisão mostrou os amotinados da penitenciária Urso Branco, de Porto Velho, esquartejando outros prisioneiros. A reportagem repetiu várias vezes a cena em que atiravam os mortos de cima do telhado. Poucos dias antes eu assistira à explosão de um ônibus com crianças, no Iraque, e também vira o triste espetáculo dos corpos ensacados de garimpeiros de Rondônia. A imprensa tem o mesmo deleite dos tiranos que cercavam as cidades de reféns empalados, cobriam pirâmides com a pele dos vencidos e construíam paliçadas com as cabeças das vítimas, espetadas em varas pontiagudas. Os tiranos desejavam intimidar os rebeldes, coibir os transgressores. E a imprensa, o que deseja de nós, mostrando esses horrores? Amedrontar-nos para além do terror em que já vivemos? O espetáculo da crueldade é comum a vários tempos e diversas civilizações. A nossa era especializou-se em representá-lo através de imagens, subestimando o texto. Por mais realista que seja uma literatura (e quase todos os escritores contemporâneos se ocupam em representar o real), ela não produz o impacto da imagem. Nem o teatro, com todos os excessos, possui o alcance e a força persuasiva do cinema e da televisão, cada vez mais calcados no real ou no hiper-real. Os mitos antigos relatam a história da Medusa, que transformava em pedra qualquer um que a olhasse de frente. O herói grego Perseu só conseguiu vencê-la porque a mirou através da imagem refletida no escudo. Existirá uma forma de contemplar as imagens que nos apresentam, sem endurecer o coração? O exemplo de

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Perseu nos ensina que não é possível encarar a górgona, apenas o seu reflexo. O equivalente moderno do escudo seria a nossa vigilante crítica, a capacidade de ver e pensar, única defesa possível contra o monstro poderoso. A Medusa guardava nas entranhas um cavalo alado, Pégaso, que saltou do corpo dela quando o monstro foi vencido. Seria uma representação da leveza, contida dentro do que é pesado e aprisionador. E a televisão, o que esconde nos seus urdimentos? Já existiu um tempo sem a obsessiva necessidade da imagem. A palavra possuía um poder inerente a ela própria. Falava-se, escrevia-se. O teatro fundado pelos gregos sobreviveu através da poesia. Mesmo havendo o complemento da música, dos cantos, das danças e alegorias, a força maior era da palavra. A fala ilustrava a fala, a ação se narrava. Em Édipo Rei, de Sófocles, Jocasta descobre que


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dormiu com o próprio filho e se enforca. Em seguida, Édipo fura os olhos com um broche da mãe e esposa. Não são necessárias imagens de corda e corpo se debatendo, nem de órbitas sangrando. O fato trágico é simplesmente narrado pelo Corifeu, o que não diminui os nossos sentimentos de compaixão e dor. Na seqüência, há uma fala do Coro que se refere “a um ponto tão terrível de ver quanto de escutar”. A modernidade, com suas máquinas de fabricar imagens, baniu esse “ponto” de escuta. Precisamos compreender as imagens que nos são apresentadas na televisão e no cinema, buscando a sua ética. Elas possuem um sentido artístico, político e educativo ou buscam apenas preencher um tempo, venderse como produto? Para os gregos, o que se representava como teatro era indissociável dos conceitos de religião, política e sociedade. Uma ação criminosa do indivíduo

gerava a falha trágica, instaurando o caos no Universo. O herói agia pela força do destino, como Édipo. Tentando fugir ao oráculo que previra que mataria o pai e casaria com a mãe, ele terminou cumprindo o que o destino traçara. Mesmo sendo vítima dos acasos, ele não foge à inevitável punição; aceita-a e “se purga de suas faltas, realizando diante da platéia a função exemplar de que se reveste a tragédia”, restaurando a ordem individual e do cosmo do qual faz parte. Muitas vezes não consigo estabelecer um nexo dentro do amontoado de imagens e informações que me apresentam todos os dias. Não encontro uma razão ordenadora e transformadora. Posso ter extrapolado limites, quando comparo a mais elevada criação do gênio humano, a tragédia grega, com o noticiário comum ou o cinema comercial. Associo extremos para ilustrar o que em um se constrói com palavras e no outro com imagens. É possível traçar um paralelo entre Antígona, de Sófocles, lutando para reaver e enterrar o corpo do irmão, morto nas muralhas de Tebas, e os familiares dos presos da Urso Branco, assistindo ao massacre dos seus, e também lutando para reaver seus corpos e sepultá-los. O que difere é a maneira de apresentar a tragédia. Para o poeta grego há um compromisso com o bem e o eterno. Para o jornalismo de imagens interessa apenas o alcance provisório de um grande público, e seu rápido esquecimento. Muitos espectadores não se doem além da epiderme, e outros sofrem um transtorno que se revelará inútil, porque as imagens são desvinculadas da crença numa ação divina e no Estado Político. Solitário, frente ao espetáculo da tela, o homem moderno sente-se perplexo e impotente como um personagem kafkiano. As palavras fazem-lhe pouco sentido, porque há muito não conversa com outras pessoas, perdendo a noção de coletividade. Prefere a companhia de imagens semelhantes à sua, multiplicadas infinitamente como somente o mais perverso dos espelhos seria capaz de conseguir. Desarmado, ele não se atreve a cortar a cabeça da Medusatelevisão. Contempla a tela de olhos monstruosos, deixando que o coração se transforme em pedra. • Continente junho 2004


AGENDA

» 88 ARTES CÊNICAS

Dançando na rua

Divulgação

Divulgação/Fundarpe

Memórias nacionais O Grupo Wasu (SP) apresentará a coreografia “Ãmu-tu”

XI Mostra de Dança de Florianópolis apresentará mais de 60 coreografias nos palcos da cidade Junho é o mês da dança em Florianópolis. Entre os dias 16 e 20, a cidade vai ver mais de 60 coreografias, que ocuparão os palcos do Centro Integrado de Cultura, do Teatro Álvaro de Carvalho e das ruas. Isso mesmo, serão 12 as coreografias mostradas nas ruas da cidade. Os estilos são vários: dança de salão, balé clássico, dança contemporânea, moderna, dança de rua, flamenco, sapateado, neoclássico e algumas peças de balé clássico de repertório, como D. Quixote; apresentados por grupos de quase todo o país, como a Cia. Paulista de Dança e o Wasu (SP), Grupo Vórtice (MG) e Ballet Concerto e o Quarta Parede (RS). O evento não tem caráter competitivo. XI Mostra de Dança de Florianópolis. De 16 a 20 de junho, no Centro Integrado de Cultura (Avenida Irineu Bornhausen, nº 5000, Agronômica. Tel: 48.2122300). Ingressos: R$ 10,00 (estudantes e idosos pagam meia). Teatro Álvaro de Carvalho (Praça Pereira Oliveira nº 26, Centro. Tel: 48.2243422). Ingressos: R$ 5,00 (estudantes e idosos pagam meia). Gratuitamente nos terminais de ônibus, praças, escolas e hospitais.

Allez Brasil 2005 é o ano do Brasil na França. E as inscrições para entrega dos formulários de projetos nas áreas de artes cênicas, literatura, música, dança, cinema, vídeo, fotografia, design, arte popular, patrimônio, esportes, seminários e congressos encerram no próximo dia 30 de junho (o prazo para inscrição de projetos de artes plásticas encerrou no último dia 30 de abril). Como convidado, o país participará da Saison Culturelle, uma série de eventos culturais brasileiros na França, em especial em Paris Todos os interessados poderão submeter projetos culturais à apreciação do Comissariado Brasileiro. Os formulários encontram-se disponíveis no site do Ministério: www.cultura.gov.br Maiores informações: Comissariado Brasileiro, no Ministério da Cultura (Esplanada dos Ministérios, bloco B, sala 205, Brasília/DF). Telefones: (61) 316.2146/2246/2360 ou pelo e-mail: anobrasilfranca@minc.gov.br

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A veterana Lurdes Ramalho, conhecida pelo público por espetáculos como As Velhas, voltou a trazer seus textos para os palcos do Recife. A peça de sua autoria, Guiomar, a Filha da Mãe, está em cartaz desde o mês de abril, no Teatro Arraial. A direção do espetáculo ficou a cargo de Moncho Rodriguez – que já realizou parceria com a autora no citado As Velhas. A atriz Augusta Ferraz dá vida a Guiomar, enquanto Márcio Carneiro se desdobra para interpretar mais de um personagem. A Guiomar de Augusta Ferraz é uma mulher atormentada que mescla suas recordações tragicômicas com os acontecimentos históricos do país, do descobrimento aos atuais problemas políticos. Ela suporta o peso de toda a memória nacional em sua carroça de madeira, de onde desembarcam o descobridor, o inquisidor, as damas da corte, os nobres e variados estereótipos da nossa história. O processo de montagem, produzido dentro do Projeto de Integração de Atores do Nordeste (Piane), durou três meses. O espetáculo, que reflete a busca do teatro Nordestino por suas raízes, estreou em Brasília, em novembro de 2003, no II Festival de Teatro de Brasília – Cena Pernambucana.

Guiomar, a Filha da Mãe Teatro Arraial – Rua da Aurora, 463, Boa Vista. Sextas e sábados às 20h e domingos às 17h, até 20 de junho. Ingressos: R$ 5,00 (preço único). Informações: 31343000 (R-3072).


89 » Divulgação

Festivais no eixo NorteNordeste

Cena do filme Abril Despedaçado, de Walter Salles

Em junho, Belém e Fortaleza recebem a produção nacional de cinema Este mês, os longas e curtas-metragens brasileiros têm passagem obrigatória por duas capitais do eixo NorteNordeste. Entre os dias 7 e 13 de junho, acontece o 1o Festival de Belém do Cinema Brasileiro; depois, em Fortaleza, entre os dias 23 e 29, entra em cartaz o 14o Cine Ceará. A maratona terá início com o 1o Festival de Belém do Cinema Brasileiro, organizado pela atriz Dira Paes e pelo produtor Emanoel Freitas. Segundo o Guia Brasileiro dos Festivais de Cinema e Vídeo, dos 95 festivais catalogados no país, nenhum acontece na região Norte. O evento busca suprir essa lacuna e integrar a cultura audiovisual paraense à cultura brasileira. Ocorrerão mostras competitivas de longas e curtas-metragens e de vídeos. As sessões oficiais dessas mostras vão acontecer na Estação das Docas, complexo turístico situado às margens da Baía do Guajará. O Cine Olympia, inaugurado em 1912 e hoje o mais antigo cinema em funcionamento ininterrupto do país, também vai sediar parte da programação. Os ganhadores receberão o Prêmio Ver-o-Peso do Cinema Brasileiro, homenagem a uma famosa feira livre da cidade, considerada a maior da América Latina.

Com um pouco mais de tradição e atraindo cerca de 35 mil pessoas por edição, o 14o Cine Ceará presta homenagem a dois grandes nomes do cinema: o brasileiro Walter Salles e o espanhol Luís Buñuel. Cada um vai ganhar uma retrospectiva de suas obras, sendo as de Buñuel exclusivamente do seu período mexicano. Além das duas mostras, que ocorrem nas duas salas Unibanco de Cinema do Centro Dragão do Mar, a mostra competitiva de longas, curtas e vídeos acontece no Cine São Luís Centro. Em paralelo ao Festival, acontece o Encontro da Federação Ibero-Americana de Produtores de Cinema.

1o Festival de Belém do Cinema Brasileiro,de 7 a 13 de junho. Site: www.festcinebelem.com.br Informações: (91) 224-0561 e 222-0029 14o Cine Ceará, de 23 a 29 de junho (entrada gratuita). Cine São Luís (Centro) – Praça do Ferreira e Centro Dragão do Mar – Rua Dragão do Mar, 81 – Praia de Iracema. Informações: (85) 288-7773. Site: www.festivalcineceara.com.br E-mail: festcineceara@festcineceara.com.br

Encanto na chuva

Gramado

A Warner lança em DVD a edição (de luxo) comemorativa dos 50 anos de Cantando na Chuva (assinalados em 2002), considerado um clássico dos musicais de Hollywood. É puro encantamento assistir ao metamusical restaurado digitalmente, com extraordinária qualidade de cor e som. O estojo de metal, contendo um pôster de tecido, seis reproduções de cenas do filme e um folheto, traz um disco extra, com um competente making off, documentário sobre a história dos musicais e outros agrados. Revendo agora Gene Kelly, Donald O’Connor e Debbie Reynolds, percebe-se a burrice da Casa Branca: a arma mais poderosa dos EUA não está no Pentágono, mas nas colinas de Hollywood.

Já estão abertas as inscrições para o 32o Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino, que será realizado entre os dias 16 e 21 de agosto. Podem participar longas-metragens brasileiros em 35mm nas categorias documentário e ficção, curtas e médias-metragens. As inscrições podem ser feitas até o dia 18 de julho pelo e-mail festcinegramado@terra.com.br ou no site www.festcinegramado.com.br.

Cantando na Chuva – Produção da MGM, 1952. Distribuição Warner Home Vídeo, 2004. Estojo de colecionador com disco duplo e outros brindes. Preço médio: R$ 95,00.

Mais informações: (51) 3235-1776.

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CINEMA


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ARTES PLÁSTICAS

Adorável jogador Duas mostras de Nelson Leirner em São Paulo refazem a carreira do artista nos últimos dez anos, mas com apenas 30% das obras já vistas Nelson Leirner é um demolidor de conceitos, mas ao mesmo tempo aquele que os instaura e esclarece. Avesso à dominação cultural e à lógica perversa do consumo da arte, decidiu substituir o termo “arte” – para salvá-lo do desgaste – pela palavra “orte”, que do grego designa correto, exato. Mas a “orte” de Nelson, aparentemente contra a “arte”, subverte corrigindo, porque o “ortista” possui essas duas facetas: a de criticar e ao mesmo tempo se adequar às regras do jogo. Tanto que está fazendo uma retrospectiva, na galeria Brito Cimino e no Instituto Tomie Ohtake, das obras que produziu ao longo dos dez anos desde a sua última, em 1994. Mas nesse aparente revival, o expectador vai se deparar com apenas 30% de obras já vistas: Leirner preparou uma série de novidades. Na nova instalação (Brito Cimino), a paródia, a ironia e o deslocamento; uma vitrine particular. Os objetos por ele peneirados são colocados em uma das paredes da galeria, representando parte

de seu atelier. Entretanto, numa parede oposta, a biblioteca está fotografada em oito módulos, do mesmo tamanho que a real (2,65 x 5 m), oferecendo uma ilusão de ótica, como se estivéssemos dentro de uma caixa de surpresas. Já no ITO ele reúne desdobramentos da obra que apresentou em 2000 na Bienal de Veneza, como os vários trabalhos em que faz homenagem a Duchamp, “seu tio”. Mostra Era uma vez…. Galeria Brito Cimino, Rua Gomes de Carvalho, 842, Vila Olímpia, São Paulo. Até 17 de julho (entrada franca). Informações: (11) 3842.0635/0634. Mostra 1994+10. Instituto Tomie Ohtake, Av. Faria Lima, 201, São Paulo. Até 11 de junho (entrada franca). Informações: (11) 6844.1900.

Divulgação/Instituto Cultural Bandepe

Prêmio

Espelhos de Nassau Em comemoração aos quatrocentos anos do nascimento do Conde Maurício de Nassau, o Instituto Cultural Bandepe promove a exposição Eu, Maurício – Os Espelhos de Nassau, que vai até 20 de junho. No dia 17 de junho (aniversário de Nassau) a exposição será visitada pelo Príncipe de Orange. Dividida em três grandes núcleos, a mostra apresenta a vida de Nassau na perspectiva da construção de seu destino e a parte que lhe coube ao forjar o seu traçado. Um amplo panorama iconográfico constrói o roteiro desta exposição, incluindo gravuras originais do século 17, maquetes da Cidade Maurícia, na qual se transforma o Recife holandês, e um elaborado projeto de multimídia para refletir os diferentes aspectos da vida de Nassau. Continente junho 2004

Eu, Maurício – Os Espelhos de Nassau. Instituto Cultural Bandepe, Av. Rio Branco, 23 – Bairro do Recife – Recife-PE. De terça à quinta-feira, das 14h às 20h, e de sexta a domingo, das 14h às 22h (entrada franca). Até 20 de junho. Informações: (81) 3224-1110.

Os interessados em participar do Prêmio CNI Sesi Marcantonio Vilaça, que vai premiar cinco bolsas de R$ 30 mil para artistas plásticos, já podem fazer suas inscrições até 15 de julho, somente pelos correios. Para concorrer, é preciso ter nascido após 1962 (ano de nascimento de Marcantonio Vilaça), ter realizado até três exposições individuais em galerias comerciais ou ter até dez anos de carreira ininterruptos. O regulamento completo está a disposição no site www.sesi.org.br ou via telefone no número 0800610606.


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Os sotaques do boi Foto: Divulgação/Secretaria de Turismo de São Luís do Maranhão

Durante o mês de junho, bois-bumbás de várias cores e sotaques transformam São Luís do Maranhão na capital da alegria e da diversidade O mês de junho anuncia a chegada da festa do bumba-meuboi à capital maranhense. Vindos de vários municípios do Estado, eles invadem São Luís, enchendo a ilha de cores, alegria, dança e música em vários sotaques. Isso mesmo, sotaques. São 300 grupos de bumbas-meu-boi de “sotaques” diferentes. Tem sotaque de Matraca, de Zabumba, da Ilha, de Pindaré, de Orquestra, de Costa de Mão. O de Matraca é marcado pela presença de um instrumento produzido a partir de duas pequenas tábuas, que medem cerca de 25cm. Confrontadas, elas produzem um som agudo. No de Zabumba, possivelmente o mais antigo e autêntico representante dos bumbas do Maranhão, a zabumba faz o centro da marcação do ritmo, também acompanhado pelos maracás, pandeirões, tambores de fogo, tambores-onça e tamborinhos, que preenchem os silêncios do som central. O de Ilha, também conhecido como “batalhões pesados”, usa pandeirões e matracas para produzir um som forte. Dele se aproxima o de Pindaré, que também usa os mesmos instrumentos, mas produz um ritmo mais lento. O de Orquestra é o mais diferente dos demais. Conta com arranjos de sopro e de cordas. Já o de Costa de Mão é marcado por uma forma talvez única de se tocar: com as costas das palmas e dedos das mãos. A festa começa desde o primeiro dia de junho, com os ensaios abertos. Mas é a partir do dia 23, véspera de São João e hora do batismo do boi, que a brincadeira ganha maiores proporções. Dia 24, São João, os grupos começam a circular, brincando pelas ruas, ladeiras e alamedas seculares, carregando fitas

Bois de todas as cores invadem as ruas de São Luís no mês de junho

coloridas, espelhos, golas de veludo, penas e pedrarias e arrastando mais de 200 mil pessoas diariamente. Só param no dia 30, dia de São Marçal, para celebrar o auto de pai Francisco e mãe Catirina, protagonistas do drama da morte e ressurreição do boi. Mas nesse período São Luís não é só bumba-meu-boi. Os brincantes também podem se deparar com o Tambor de Crioula – roda de dança sensual feita apenas por mulheres, em cujo centro apenas uma evolui, tendo como ápice a “punga” ou umbigada, convite para que outra dançarina assuma o centro –; Tambor de Mina – denominação popular para o culto religioso dos descendentes africanos de origem jeje e nagô, uma variante do Candomblé –; e com o Cacuriá, também uma dança de roda animada por instrumentos de percussão que tem origem na festa do Divino Espírito Santo, quando, após a derrubada do mastro, as caixeiras se reúnem para brincar, o lado profano da festa. São João de São Luís do Maranhão, de 23 a 30 de junho. Informações: www.turismo.ma.gov.br

Circuito de cantorias Cantadores de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará estão participando, desde maio, do 4º Desafio Nordestino de Cantadores, que, este ano, perdeu o caráter competitivo e está destacando os cantadores consagrados nos anos anteriores. Oito cidades do interior do Estado, pólos da cantoria, já tiveram a oportunidade de conferir as apresentações, que têm como principal objetivo projetar o gênero como arte popular. A abertura do evento, composto

de apresentações, exposições e feira, foi em Petrolina. Nos próximos dias 10, 11 e 12, o Desafio aportará no Marco Zero, no Recife. Depois, numa ação inédita, o circuito será fechado com uma apresentação em São Paulo, na Praça da Sé, no dia 19 de junho, e outra no Rio de Janeiro, em São Cristóvão, no dia 20 de junho. Desafio Nordestino de Cantadores 10, 11, 12/06 - Marco Zero, Recife/PE 19 de Junho - Praça da Sé, São Paulo/SP 20 de Junho - Bairro de São Cristóvão, Rio de Janeiro/RJ

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TRADIÇÕES


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» 92 MÚSICA Fotos: Divulgação

Violões e bandolins

Orquestra Engenho Barroco, de São Paulo

O suntuoso Teatro de Santa Isabel será palco para o encontro das cordas dos violões, cavaquinhos e bandolins de Cláudio Almeida, violonista que passeia especialmente pelos ritmos pernambucanos, conferindo-lhes novas inflexões; João Lyra & Paulo Rafael, que excursionam por vários gêneros; Racine & Lalau, que vão do choro à bossa-nova; Grupo Arabiando e o Sexteto Capibaribe, integrantes da nova geração da tocata do choro em Pernambuco, que, com levadas próprias, renovam e difundem a brincadeira, o improviso e o espírito chorísticos. Pela segunda vez no Recife, o sofisticado encontro, que ano passado trouxe nomes como Henrique Annes, Heraldo do Monte e Neneu Liberalquino, visa estimular a produção e a audição da música instrumental em Pernambuco, criando um espaço privilegiado para os artistas locais serem vistos e ouvidos.

Virtuosi em edição especial Concerto acontece em comemoração aos 400 anos de Maurício de Nassau O Festival Internacional de Música de Câmara de Pernambuco – Virtuosi, um marco na história da cultura musical do Estado, também vai participar das celebrações dos 400 anos do Príncipe Maurício de Nassau. Preocupado com a excelência musical e com a apresentação de espetáculos inéditos, o Virtuosi realiza uma edição especial do Festival, que pretende se consolidar no calendário de eventos do Estado de Pernambuco. O Festival Virtuosi Celebra Nassau, sob a direção musical do flautista Ricardo Kanji e direção artística do maestro Rafael Garcia, apresentará obras de compositores holandeses e brasileiros do período barroco. O Virtuosi realizará três concertos com artistas nacionais e internacionais, nos quais várias obras serão apresentadas em primeira audição no Nordeste e algumas até no país. Virtuosi. Teatro de Santa Isabel (Praça da República, S/N, Sto. Antônio), de 16 a 18 de junho, às 21 horas. Os ensaios gerais pela manhã serão abertos para os estabelecimentos de ensino da cidade.

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Sexteto Capibaribe

II Encontro de Violões e Bandolins. Teatro de Santa Isabel, Praça da República, S/N, Santo Antônio, dias 1º e 2 de julho, às 21 horas. Tel: 81. 3224.1020. Ingressos: R$ 15,00 (estudantes e idosos pagam meia).

Multi Pop Com o objetivo de promover uma integração cultural entre a comunidade lusófona, foi lançado, em maio, o Festival Multi Pop Brasil, que pretende reunir atrações culturais dos oito países de língua portuguesa – Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste – no Recife, entre os dia 4 e 6 de novembro deste ano. A partir deste mês, o público já pode selecionar, no site do evento (www.multipopbrasil.com.br), os artistas brasileiros que gostaria de ver.


O último canto de Itamar No único álbum que reuniu Itamar Assumpção e Naná Vasconcelos, Isso Vai Dar Repercussão, feito a partir de um projeto de Zeca Baleiro, Itamar parece ressurgir das cinzas. Aqui vemos o músico bem-humorado, como em “Leonor”, na qual ele diz, numa letra falada com sotaque d'além-mar, que o que possuía de valor eram dois gatos, três agasalhos e quatro jogos de baralho. O CD contém apenas sete (preciosas) faixas, pois foi feito em meio à doença de Itamar e às várias viagens de Naná. Os arranjos de percussão são simples e refinados: as congas melódicas de Naná, que em algumas faixas produzem um samba chorado, reforçado pela presença da cuíca, dialogam com o violão de Itamar. Enriquecidas pelas palmas, as músicas parecem reproduzir a aura quilombola. Isso Vai Dar Repercussão, de Naná Vasconcelos e Itamar Assumpção, Elo Music, preço médio R$ 15,00.

E por falar no Recife... Momento raro da discografia de Edu Lobo finalmente chega ao CD. Terceiro disco da sua carreira, e o primeiro no qual ele aparece como arranjador, Edu foi gravado em 1967, quando seu autor já desfrutava de alto prestígio na MPB. O próprio compositor não tinha cópia do álbum, retirado do limbo pela Dubas e transformado em CD. O disco passeia pelo samba, choro, frevo e bossa-nova. No repertório estão as versões originais de “Corrida de Jangada”, “Embolada”, “Candeias” e “No Cordão da Saideira” – canções impregnadas do Recife, onde o músico, filho do compositor pernambucano Fernando Lobo, passou férias até os 18 anos. As duas últimas reaparecem no final do CD, recriadas por Edu em 2003 especialmente para o relançamento. Edu, de Edu Lobo. Dubas, preço médio R$ 26,00.

Jazz de senzala Jazz de Senzala, nono CD de Filó Machado, surpreende pela originalidade. Filó barbariza com seu “voz e violão”, como na faixa “Procissão” que parece ter um aporte percussivo devido às evoluções que faz com o instrumento e com a voz. “Tema pro Macumbinha” abre solando com o sax de Vinícius Dorin e dá espaço para os solos do violão de sete cordas de Arismar do Espírito Santo. Ao empunharem o instrumento, o som que sai tem o improviso do jazz americano e do batuque brasileiro. Aqui, “Notícias do Brasil”, de Milton Nascimento, ganhou arranjos bem característicos e virou uma embolada. O disco, que parece ter a presença de João Bosco, conta com composições de Toninho Horta, do próprio Filó e de Theo de Barros, que aparece também como arranjador. Jazz de Senzala, de Filó Machado. Maritaca, preço médio R$ 20,00.

Tempo de forró Nesta época do ano, em que milhares de pessoas comemoram os festejos juninos com fogos, comidas de milho, quentões e muito forró, explodem lançamentos de CDs do gênero. Entre o que há de melhor, vale citar o da Biscoito Fino, Cada um Belisca um Pouco, um antológico encontro entre Dominguinhos, Sivuca e Oswaldinho do Acordeom, instrumentistas hoje responsáveis pela propagação do baião e do xaxado, ritmos apresentados ao mundo por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, que aqui são reverenciados. A seleção do álbum é primorosa. Tem “Feira de Mangaio”, “Qui Nem Jiló”, “Sabiá”, “Isso Aqui Tá Bom Demais”, “Xote das Meninas” e “Asa Branca”. Mas os lançamentos não param aí. O produtor e compositor Xico Bizerra organizou a coletânea polifônica Mulheres Cantadeiras de uma Nação Chamada Nordeste, somente com composições dele, cantadas por intérpretes como Amelinha, Dalva Torres, Marinês e Nena Queiroga, entre outras. Também tem lançamento de Santanna, Forró de Bem-Querer, que tem um sotaque rítmico bem local: são baiões e xotes impregnados de poesia e paixão pelas paisagens, humanas ou geográficas, que lhe inspiram – temáticas fundamentais para a continuidade do forró que teve as bases assentadas por Gonzagão; e de Maciel Melo, Dê Cá um Cheiro, que logo na primeira faixa, que dá título ao CD, incorpora o clima alegre dos festejos juninos, incendiado pelos arranjos e pela sanfona de Genaro. Feitos para dançar, estes lançamentos não têm nada de forró pé-de-serra de ocasião. São atemporais.

Cada um Belisca um Pouco, com Dominguinhos, Sivuca e Oswaldinho. Biscoito Fino, preço médio R$ 20,00. Mulheres Cantadeiras de uma Nação Chamada Nordeste, de Xico Bizerra. Independente, preço médio R$ 10,00. Dê Cá um Cheiro, de Maciel Melo. Independente, preço médio R$ 10,00. Forró de Bem-Querer, de Santanna. Atração Fonográfica, preço médio R$ 10,00.

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MÚSICA 93 »


Imagens: Divulgação

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» 94 LIVROS

Ilustração de Delacroix para o Fausto, de Goethe

Edição irretocável A Editora 34 dá a público a primeira parte de Fausto - Uma Tragédia, de Goethe A lenda do Doutor Fausto tem origem histórica. Entre 1470 e 1540 viveu na Alemanha um erudito de nome Johann Faustus, que abandonou a ciência para se dedicar à magia. O povo, supersticioso, passa a atribuir a ele um pacto com o diabo em troca de conhecimento. A lenda toma corpo e, em 1587, aparece, na Feira do Livro de Frankfurt, uma obra anônima narrando-a. A partir daí foi retomada criativamente por diversos autores, como Christopher Marlowe, contemporâneo de Shakespeare, e, mais recentemente, por Thomas Mann, em Doktor Faustus e Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, chegando também à história do blues nos EUA (ver matéria sobre o cantor Robert Johnson, nesta edição). Mas o Fausto mais célebre continua sendo o de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), sob o título Fausto – Uma Tragédia. O poeta alemão teve seu primeiro contato com a lenda ao assistir a um espetáculo de marionetes, aos quatro anos de idade. Aos 22 começou a escrever seu poema dramático e só veio a concluí-lo mais de 60 anos depois, próximo de sua morte. A Editora 34 publica agora a primeira parte da obra - que pode, e deve, ser vista como autônoma, embora se complemente em complexidade na segunda numa edição que merece registro. Primeiro, pela celebrada tradução de Jenny Klabin Segall, cuja primeira edição foi em 1949. Como de lá para cá foram se acumulando erros tipográficos até grosseiros, eles foram devidamente expurgados pelo germanista Marcus Vinicius Mazzari, que também assina as notas. Diretas e curtas, elas não atrapalham a fluidez da leitura, e esclarecem trechos mais obscuros ao leitor contemporâneo ou ressaltam alguma ênfase sacrificada pela obrigatoriedade de métrica e rima na tradução. Edição irretocável também pela inclusão, em apêndice, da missa satânica censurada Fausto – Uma Tragédia. Johann Wolfgang pelo próprio Goethe na edição original, e von Goethe. Tradução de Jenny Klabin pela presença das maravilhosas ilustrações Segall, Editora 34, 552 páginas, R$ 59,00. de Eugène Delacroix. (Marco Polo) Continente junho 2004

Para entender o Mal Neste início do século 21, em que as patologias políticas e sociais – a violência urbana, a tentação totalitária, o terrorismo de grupos e de Estado – assumem proporções alarmantes, a obra da filósofa judia-alemã Hannah Arendt (1906-1975) mais que nunca ratifica sua condição de clássico. Autora de reflexões profundas sobre questões como a banalização do mal, Arendt tem sido objeto de estudos, como no colóquio internacional realizado em fins de 2002 na Universidade Federal do Paraná, numa abordagem interdisciplinar em que confluíram as dimensões política, filosófica, histórica, jurídica e ética. O resultado dessa iniciativa vem a ser publicado em livro, reunindo as participações de 23 especialistas brasileiros e estrangeiros. Temas como dominação, autoridade, poder, revolução, desterritorialização e a alienação fundamental de nossa época, decorrente da desvalorização da vida humana, são abordados a partir do legado de uma autora que, além da contribuição teórica de sua obra, ainda nos convida, como salienta Celso Lafer, ao selbstdenken, isto é, ao pensar pela própria cabeça.

A Banalização da Violência: A Atualidade do Pensamento de Hannah Arendt. André Duarte (org.), Relume Dumará, 252 páginas, R$ 45,00.


Inimigo do preconceito

Próximos e distantes

Memória e História

O antropólogo alemão naturalizado americano Franz Boas é famoso por aqui por ter sido o grande mentor de Gilberto Freyre na Universidade de Columbia, fornecendo as bases teóricas para a obra do sociólogo pernambucano. Numa época em que prevaleciam interpretações racistas travestidas de ciência, Boas concluiu e ousou afirmar em plenos Estados Unidos do começo do século passado que a suposta inferioridade da raça negra devia-se a causas sociais e culturais, e não raciais. Também desmontou as teses de que a miscigenação produzia degeneração de raças. Numa lacuna incompreensível, jamais foi editado no Brasil. Antropologia Cultural traz ensaios curtos, mas que são uma abrangente introdução a Boas.

É surpreendente a escassa produção sobre o relacionamento complexo entre o Brasil e o gigante da América do Norte. Assumindo uma perspectiva da necessidade de cooperação, Brasil e EUA no Novo Milênio nasceu do trabalho do Núcleo de Estudos Americanos da UFPE, coordenado pelo professor Marcos Guedes. Trata de temas candentes e atuais como segurança, Alca, narcotráfico, meio ambiente, guerrilha, na ótica da percepção do outro. Estudiosos brasileiros e americanos constroem uma olhada em fragmentos do amplo e quase inexplorado território dos estudos comparativos e estadunidenses no Brasil. O livro aponta para um “otimismo realista” nas relações entre os dois países.

Tudo pode servir de material para o ofício de tecelã desta velha senhora chamada História. Uma de suas matérias-primas é a memória das pessoas, observados os corretos procedimentos teóricos para permitir uma interpretação objetiva de dados inevitavelmente eivados de subjetividade. Isto é o que faz este original Escrita de Si..., reunindo estudos diversos sobre cartas, diários e textos memorialísticos do século 20. Entre os missivistas e memorialistas estão Gilberto Freyre, Monteiro Lobato, Oliveira Lima, Capistrano de Abreu, Paulo Prado, Getúlio Vargas, João Goulart e Plínio Salgado, exilados da ditadura militar de 64 no Chile, e até bilhetes de censores.

Antropologia Cultural. Franz Boas, Jorge Zahar, 110 páginas, R$ 19,00.

Brasil e EUA no Novo Milênio. Marcos Guedes (org.), Editora da UFPE, 232 páginas, R$ 30,00.

Escrita de Si, Escrita da História. Ângela de Castro Gomes (org.), FGV Editora, 380 páginas, R$ 36,00.

Conflitos e niilismo

Cavalo verde

As mulheres da Nigéria

Embora escritor poderoso, Ivan Turguêniev tem sido ofuscado por dois conterrâneos e contemporâneos seus: Tolstoi e Dostoievski. Mas, mesmo diante desses dois gigantes, o russo mantém-se de pé. A Cosac & Naify, que vem lançando em traduções e edições esmeradas, uma série de livros importantes mas poucos divulgados no Brasil, aposta na obra-prima do escritor russo: Pais e Filhos, um romance que enfoca o conceito de niilismo e o famoso conflito de gerações. O conflito abarca também as batalhas de idéias, sensibilidades e classes, num painel nervoso em que cada personagem se revela pelo que fala, sem desfocar o pano de fundo, o momento histórico em que se passa a narrativa.

Poeta, ensaísta, biógrafa, jornalista e pesquisadora, Lourdes Sarmento tem uma longa lista de serviços prestados à cultura pernambucana, inclusive divulgando-a nas antologias de poesia que organiza, até mesmo para o exterior. E “como tudo que ela faz, faz bem feito”, segundo afirma Olga Savary, Lourdes lança mais um volume de seus poemas, onde há versos como estes: “Vem cavalo verde/ neste agosto/ e outros meses./ Trazes no teu tropel/ o cheiro do mato/ que me desperta/ e me excita/ quando a morte/já era meu pasto.//Vem horizontalmente verde/ no vaivém da brisa/ não importa tua rota/ a cerca que nos cerca/ é o espaço que me resta”. São poemas como este que, com límpido lirismo, justificam um livro.

Safiya é a autobiografia de Safiya Hassaini Tungar Tudu, a nigeriana condenada em 2001 à morte por apedrejamento pela Sharia – lei em vigor naquele país desde o século 16 e levada ao pé da letra pelo islamismo fundamentalista – por ter cometido o “crime de adultério”, mas que mobilizou o mundo em sua defesa. Absolvida, ela narra detalhes da sua vida desde a infância, relatando a cultura à qual as mulheres nigerianas estão submetidas, algo do tipo “não pense, não fale, não olhe, não ouça, não sinta”, mas que desde então ela questionava. Num tom parecido com o de Xinran, de As Boas Mulheres da China, Safiya sai em defesa da mulher em seu país, abrindo uma luta sem precedentes.

Pais e Filhos. Ivan Turguêniev, Cosac & Naify, 358 páginas, R$ 42,00.

Guardiã das Horas. Lourdes Sarmento, Cia. Pacífica, 136 páginas, R$ 15,00.

Eu, Safiya – A história da nigeriana que sensibilizou o mundo. Safiya Hussaini Tungar Tudu e Raffaele Masto, Verus Editora, 186 páginas, R$ 25,90. Continente junho 2004

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Não há limite para sonhar Antes, bem mais novo, é claro, queria ser presidente da República

S

onhos agradáveis, aflitivos – mundo de sonhos, como os de Machado de Assis que coincidiam com a realidade, unindo-se na imaginação ou fora dela. Pensamentos seqüenciados, de idéias vagas, mais ou menos pungentes de alegria, mais ou menos incoerentes, como as de Aurélio, às quais o espírito se entrega em estado de vigília – geralmente em devaneios, baseadas em trechos da natureza. Sonhamos a paz, sonhamos liberdade, sonhamo-nos ricos ou pobres de marré, sonhamos planos – incertos e vocacionais. Sonhamos ilusão – fugas da realidade, o próprio sono, a fantasia e a quimera. Sonhamos pensar com insistência – ter a idéia fixa, sonhamos com a glória e a tragédia, com o amigo e o inimigo, sonhamos amor e ódio. E tal Martins Fontes, sonhamos recontando o passado, no vago misticismo de quem sonha um sonho abandonado. Há sempre a capitalização do imaginário. Se há, na face da terra, de um hoje propagador do cansaço de viver, creditemos nossos anseios à vontade de sobreviver nas divagações noturnas que nos fazem a melhor forma de apreciar a vida. Quando se vai ficando velho, é preciso reunir as forças que restam para aproveitá-las mais viáveis ao romantismo de cantar, escrever, conversar – saber o que se fez e o que deixou de fazer sem as lamúrias do arrependimento. Sempre podendo recordar o que passou, saudando o que saldou de bom, com saudade atual e alicerçando os finais de horas e minutos no recanto que mais aprouver a nós na companhia dos entes mais queridos. Já não agüento a dinâmica da violência, quantitativamente esturricada no cotidiano, absorvendo-nos a paciência – absolvendo-nos de todo o mal. Violência de todo tipo – não somente a da agressão física, mas a da incompreensão, da mentira, da falta de amor, do descaso, da falta de cidadania, da incoerência, do ódio, da omissão, da injúria e do perjúrio.

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Portanto, não há limite para sonhar. Antes, bem mais novo, é claro, queria ser presidente da República – na medida do possível, absolutista, única maneira de acabar com políticos espúrios e corruptos e com essa elite burguesa que atola nosso País há século seculorum; acabaria com essas igrejas universais forjadas por mentes “sem-vergonhentas” de pastores de caras lisas; mandaria evacuar os humildes de bem dos morros do Rio de Janeiro e incendiaria com napalm os traficantes que resistissem; não permitiria nenhum menor abandonado sem lar nem comida, muito menos sem escola; obrigaria todos os vagabundos de movimentos de siglas fajutas a trabalharem para o bem geral da Nação; meu Sport Club do Recife teria o melhor time de futebol do mundo e nem o Real Madrid teria coragem de enfrentá-lo; expulsaria todos os estrangeiros das matas da Amazônia, proporcionando guarida ao maior pulmão do mundo, e me notabilizaria, tal a sumptuosa freira Bernarda de Odivelas, pelo espírito malicioso e pela cintilação do talento de Júlio Dantas, combinando com as confidências de suas abelhas doiradas em todas as ceias de cardeais. Hoje, tudo mudou. Sonho-me diferente. Dou-me o direito, assim, de terminar meus dias como um eremita da natureza de faunas e floras, do amor de minha amada e dos meus filhos – com certeza daquele diferenciado dos meus netos que virão e, mais explicitamente, da fidelidade dos animais de estima – do carinho dos familiares e dos amigos. Serei roteirista de um filme não-americano e ganharei o Oscar em Hollywood. Beberei meu chá pingado do mais puro scotch, ouvirei os cantos dos pássaros silvestres e colherei todas as flores do campo de cada estação. Escutarei as mais belas obras de Ketelbey às margens dos igarapés de águas claras e fascinantes a tranqüilizarem meu espírito. Saborearei o fofo sonho recheado de doce e salpicado de canela, às tardinhas, numa casinha pequenina no alto da colina, sob o frio abrasador da harmonia. Não é à toa que sempre me lembro de que um sonho dificilmente deixa de ser um sonho – mas esses são de vera! •




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