Continente #044 - Hermeto Pascoal

Page 1



Hans Manteuffel

EDITORIAL

Hermeto, universal e polêmico Hermeto Pascoal em show no Teatro de Santa Isabel, no Recife

O

alagoano Hermeto Pascoal, cuja carreira foi começada no Recife, ao lado de Sivuca, é talvez o músico brasileiro mais cultuado, aqui, e sobretudo no exterior, entre os aficionados mais sofisticados da música popular. Não dissemos música popular brasileira – que tem até sigla, MPB – porque, sem abandonar em nenhum momento as suas origens, ele produz uma obra universal. Além de compositor inventivo, ele é também um performático nos palcos e até nas entrevistas. Fala aos borbotões e, não sem um certo histrionismo, é franco, exuberante e direto nas suas respostas. Como nesta entrevista exclusiva com que brindamos o leitor, em que fala de seu processo de criação, da arte musical que se produz no Brasil e manifesta sua indignação com a afirmação de Caetano Veloso de que a melhor música popular é a norte-americana, refutando-a bem a seu modo: “A melhor música é a brasileira, é a feita por Hermeto Pascoal”.

Outro tema desta edição é o direito de imagem e o direito autoral, garantidos por lei. Preservam o cidadão de ver sua imagem sendo utilizada indiscriminadamente e o profissional de ter uma imagem por ele produzida sendo usada sem seu consentimento. A globalização e a Internet, entretanto, tornaram mais fácil o acesso a imagens as mais diversas e oriundas dos mais recônditos lugares, criando aspectos novos a serem discutidos. A complexidade do assunto aumenta ainda mais, quando imagens produzidas, há cinco séculos, e que já fazem parte do imaginário universal, passam a “pertencer” a uma empresa – como é o caso da Mona Lisa, de Da Vinci, cujos direitos de reprodução foram adquiridos pela Corbis, agência de Bill Gates. A Continente coloca o tema em pauta, buscando esclarecer os freqüentes equívocos que cobrem a compreensão do direito de imagem e abrindo o debate para um aprofundamento da questão. •

Continente agosto 2004


CONTEÚDO

Hans Manteuffel

2

Paloma Granjeiro

»

» 08

A música total de Hermeto

A dança congelada em luz e sombra

» 38

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 »

CAPA

»

58 Vau da Sarapalha comemora milésima encenação

08 Hermeto Pascoal: música múltipla, língua afiada »

LITERATURA

»

»

POESIA CONVERSA

ESPORTES 78 A Olimpíada alternativa contra

29 Rodrigo Garcia Lopes canta a paisagem recifense »

ESPECIAL 69 As controvérsias em torno do direito de imagem

» »

REGISTRO 63 A evolução dos móveis através da História

18 Livro inédito marca comemorações dos 90 anos de Cortázar Autor de Meu Tio Atahualpa é rememorado Livro mostra complexidades de Joaquim Cardozo Poeta brasileiro ignorado é reconhecido na América Latina

TEATRO

a Olimpíada nazista »

TRADIÇÕES 84 Mitos e fatos de uma cantoria lendária

34 Historiador Peter Burke analisa da retórica ao ciberespaço » »

»

FOTOGRAFIA

AGENDA 88 Artes plásticas, artes cênicas, música, cinema,

38 A beleza da dança em preto e branco

literatura

CINEMA

Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br

46 Michael Moore faz história com seu novo documentário

Continente agosto 2004


3

Divulgação/ W11 Editores

» 46

»

Divulgação

Michael Moore: o homem que odeia Bush

» 88

Samico na Pinacoteca de São Paulo

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas »

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Informação da cultura universal deve ser democratizada

»

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 30 Pode um poeta, sem dinheiro, enfrentar a cultura de massa?

»

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 44 As diferenças da imagem na pintura e na fotografia

»

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 54 Mangaba e graviola, frutas dignas dos deuses

»

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 57 Quando não se tem a menor importância

»

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 A visão de um linchamento é a mais terrível das experiências

»

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Tudo começou com uma guerra em 490 a.C

Continente agosto 2004


»

4

CRÉDITOS

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Agosto Ano 04 | 2004 Capa: o compositor e multinstrumentista Hermeto Pascoal Foto: Patrícia Santos/Folha Imagem

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly

Colaboradores desta edição: DIVA MARIA GONSALVES

DE

MELO é historiadora.

ÉSIO RAFAEL é pesquisador e mestrando em Literatura na UFPE.

Diretor Geral Carlos Fernandes

INÁCIO FRANÇA é jornalista, editor da revista Pacto e diretor da Carcará Agência de Conteúdo.

Editores Homero Fonseca e Marco Polo

LAURO LISBOA GARCIA é jornalista, crítico de música popular do jornal O Estado de S. Paulo.

Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais

JUSSARA SALAZAR é poeta e artista plástica. KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema do Jornal do Commercio (Recife) e videasta. Fez o filme Enjaulado e criou o site www.cinemascopio.com.br

Diagramação Gilvan Felisberto

LINALDO GUEDES é jornalista, editor do suplemento Correio das Artes, do jornal A União, de João Pessoa.

Ilustrações Zenival

LUCIANO TRIGO é jornalista e escritor. Foi editor do suplemento Prosa & Verso, de O Globo e editor-assistente do Idéias, do JB. É autor de seis livros.

Edição de Imagens Nélio Chiappetta

LUIZ AUGUSTO REIS é jornalista e professor de Teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura.

Revisão Maria Helena Pôrto

LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário e poeta, autor de Poemas e Vigílias.

Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

MARIA FILONILA DOS SANTOS DIAS REGUEIRA é geógrafa e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco – Museu do Homem do Nordeste. MARIANA CAMAROTTI é jornalista. PALOMA GRANJEIRO é fotojornalista. PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. Trabalhou nos jornais Rascunho e Jornal do Estado, ambos de Curitiba. RODOLFO ALONSO é poeta argentino. Autor de El Arte de Callar (Alción Editora, Buenos Aires). Lançou, em português, Antologia Pessoal, pela Editora Thesaurus. RONALDO LEMOS é mestre em Direito pela Universidade de Harvard, coordenador de Tecnologia e Propriedade Intelectual da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e diretor do projeto Creative Commons no Brasil. SÉRGIO LUZ é jornalista e radialista.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – Uma História de Poder. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.

Continente agosto 2004


CARTAS Kafka Apesar de a articulista Cláudia Cordeiro ser uma especialista em literatura brasileira, constatei, pela leitura do artigo que a referida ensaísta publicou, nesta Revista, sobre Franz Kafka, que Cláudia possui sólidos conhecimentos acerca, também, da literatura universal. Seu texto é muito bom, flui bem, e me parece livre dos detestáveis jargões acadêmicos que povoam a escrita de muitos críticos, especialmente os oriundos de algumas universidades brasileiras. Ricardo Vieira Lima, Rio de Janeiro–RJ Artistas brasileiros Achei muito interessante a matéria de Marc Chagall (junho/2004), apenas acredito que uma revista como a Continente, que é nosso maior veículo nordestino, deveria focar seu interesse nos bons artistas brasileiros. Acho que a Revista deve, sim, dar uma pincelada em artistas internacionais, mas deveria, se assim for, prestar mais atenção naqueles artistas que nós conhecemos pouco, como, por exemplo, os modernos David Hockney, Lucien Froyd, recentemente descoberto como uns dos mais interessantes da Inglaterra, sem a necessidade de falarmos de Picasso, Dali, Chagal, Rembrandt, De Chirico e tantos outros que estamos cansados de ver em quase todas as revistas do mundo. Já que temos pouco espaço e temos este tão grande veículo, vamos usar mais com nossos artistas. Fred Svendsen, João Pessoa – PB Bálsamo A Continente atenua (ou aumenta?) a saudade e funciona como bálsamo para nós pernambucanos que vivemos no exílio. Josué Francisco, Aracaju–SE Razão iluminista As matérias são boas, mas não posso deixar de manifestar minha admiração pelo especial “A Crise da Razão Iluminista” (maio/2004). Parabéns aos autores. Pedro Queiroz de Souza, Campinas–SP Um piano na estrada Atitudes como esta só dignificam o verdadeiro artista brasileiro, aquele que não mede esforços para propagar a nossa cultura. Parabéns pela reportagem (junho/2004) e também ao excepcional Arthur Moreira Lima. Carlos Alberto Salles Leite, via e-mail Distribuição Primeiramente, gostaria de parabenizar a Revista. Infelizmente, não conheço uma revista feita em Salvador que trate a cultura como vocês o fazem. A diagramação e os textos são muito bons. Porém, não consigo encontrar a Continente em nenhuma banca de revista. Priscila Oliveira, Salvador–BA

Notícias de uma guerra Acho muito importante lançamentos como o O Valeroso Lucideno (volumes I e II), Diário de um Soldado e Olinda Conquistada, editados pela CEPE (junho/ 2004), pois divulgam mais um pouco da nossa linda história. Gerailson Moreno da Silva, Recife–PE

5

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Casamento perfeito A Revista, de um modo geral, é excelente. Antenada com assuntos de interesse do leitor, trazendo, ao mesmo tempo, várias análises do mesmo assunto por diferentes profissionais. Mas, acima de tudo, o que satisfaz o leitor é o casamento perfeito do conteúdo abordado com ilustrações de qualidades ímpares. Giovanni Luiz S. de Silva, Olinda–PE Joyce Gostaríamos de parabenizar a Revista Continente pelas reportagens alusivas a James Joyce, na comemoração dos 100 anos do Bloomsday. Estamos preparando um Simpósio Joyce-Lacan, Dublin-2005, que reunirá psicanalistas, literatos, escritores, poetas e estudiosos de várias áreas e do mundo todo. Maiores informações poderão ser obtidas no site oficial do Simpósio: http:// joycelacandublin2005.cjb.net, no qual disponibilizamos um acesso para o site da Revista Continente, no nosso endereço eletrônico. Comissão Joyce-Lacan, Dublin-2005 de Intersecção Psicanalítica do Brasil. Fãs alemães Moro em Leipzig, cidade do Estado de Sacksen, na Alemanha, e tenho três CDs do Lenine. Aqui fiz várias cópias deles para os alemães. Consigo traduzir em alemão e todos são fãs do Lenine. Sou recifense e estive no último show dele, no Rec Beat, no carnaval de 2003. Ich Liebe Dich, Lenine. Frau Rösler. Andréa Rösler, Leipzig, Sacksen–Alemanha Livros Venho cumprimentá-los pela excelente matéria publicada na Revista Continente Multicultural, edição nº 43 – junho/ 2004. Em texto conciso, vocês capturaram de forma clara a essência do Movimento em Defesa do Livro e do Autor Pernambucano. Estamos concluindo o relatório final do Fórum para envirarmos aos participantes. Este será o documento norteador de iniciativas para o fortalecimento do livro em Pernambuco. Jacques Ribemboim, Recife–PE

Capiba Parabéns pela Documento enfocando a vida e a obra do mestre Capiba. O centenário de nascimento deveria ser festejado em todo o Nordeste, pela alegria contagiante que ele proporcionou em vida. Juracy Regis de Lucena, João Pessoa–PB Gonzagão É com satisfação que parabenizo pela Revista Documento sobre o nosso inesquecível e eterno Luiz Gonzaga (edição nº 22 – junho/2004). Por sinal, uma revista excelente, principalmente com respeito à qualidade do papel e fotografias. A situação do Museu do Gonzagão, no Parque Aza Branca, é precária. Pena que depois de todo o trabalho que Gonzaga teve para colecionar as peças, elas estejam à venda, como informa nota publicada no Jornal do Commercio do dia 5 de junho de 2004. Hélio Fontes Santos, Aracaju–SE Novos escritores Agradeço à Continente pelas excelentes publicações. Sem mais me estender com elogios, que chegam a ser redundantes, pois é truísmo a importância da mesma para nossa sociedade, tão carente de boa leitura. Com o respeito e consideração que como leitor imagino ter, manifesto um desejo coletivo: espero uma publicação enfocando, principalmente, novos escritores, desconhecidos ou não. Ivanilson Martins, Olinda–PE Errata Na edição nº 21, Rodolfo Aureliano, da Revista Documento, foi publicado que o Fórum Rodolfo Aureliano está localizado na Ilha do Leite. Na verdade, o Fórum está situado na Ilha Joana Bezerra.

Continente agosto 2004

»


Anúncio


CONTRAPONTO

7

Carlos Alberto Fernandes

A realidade das utopias A literatura acredita ser sensato o desejo do impossível

I

mprovisada de professora, uma jovem de 16 anos, de um bairro da periferia do Recife, foi censurada por uma professora aposentada, por estar passando oralmente para seus jovens alunos de reforço escolar, entre 08 e 12 anos, contos de William Shakespeare. Especificamente Romeu e Julieta, Hamlet e Otelo. Eram textos resumidos de uma edição especial. O argumento era que o nível da literatura era muito alto para a compreensão dos alunos. Sem embargo, aquela experiente professora tinha informações sobre as pesquisas, retratando as angustiantes deficiências de leitura e compreensão de texto dos alunos das escolas públicas brasileiras. Por se achar isenta, atribuía aos Governos toda a culpa pela incúria dessa insidiosa exclusão social. Ela não tem noção da opinião de Barthes que defende que, precisamente por exercer uma função utópica, a literatura acredita ser sensato o desejo do impossível. E isso vale para o sujeito e para o objeto. Mas, naquele universo particular da periferia da metrópole, tanto a professorinha como seus carentes alunos ignoravam esses assuntos propedêuticos. Eles não só adoravam as histórias, como incorporavam os personagens dos contos em suas conversas e brincadeiras e passaram a cobrar da professora outras histórias. Aos mais adiantados era solicitado um resumo dos textos. Na mesma linha de clássicos da literatura, a neófita mestra foi passando pelas fábulas de La Fontayne, os contos de Machado de Assis, sem esquecer das histórias de Lampião, Padre Cícero, Frei Caneca e Antonio Conselheiro, até chegar aos gregos com a história de Helena de Tróia. Em realidade, a jovem professora – que dava suas aulas num terraço anexo à sua casa, com uma mesa rústica e tamboretes – era remunerada na base de dez reais mensais por aluno, e repassava para seus orientados textos que ela recebia para resumir de um professor que era amigo de seu pai, cuja ocupação era porteiro. Certa vez, seu pai, depois de compulsoriamente fazer a leitura, resistiu em passar-lhe Dom Casmurro, alegando que a história não era boa para menores. Madame Bovary, nem pensar. Por sua vez, mais do que ligeiro, repassou-lhe o Pequeno Príncipe, argüindo que era fácil de ler, mas difícil de

Jarbas Domingos

compreender. Certamente, metáforas não eram o seu forte. Guimarães Rosa dizia que, não do ponto de vista filológico, e, sim, do metafísico, no Sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoiévski e Flaubert, porque o Sertão é o terreno da eternidade e da solidão. Se o mesmo homem do Sertão encontra-se hoje nas cidades, por que não estender essa proposição para a periferia das metrópoles, onde a matéria transcultural e a solidão existencial incorporam características similares? As virtuais elites intelectuais têm que compreender que, nos espaços da periferia, arte é artifício e literatura se faz com palavras e não com idéias. A periferia tem seus códigos e dialetos culturais que naturalmente separam os excluídos da elite, mas incorporam valores intrínsecos. As expressões literárias do hip hop e do rap confirmam isso. Afinal, todos “quebram o barraco”. Surgida por geração espontânea, essa literatura multicultural incorpora, através de seus cenários discursivos, as pontes indispensáveis para resgatar culturas locais e regionais, soterradas pelo impacto da modernização. Não obstante os muros de exclusão que as próprias elites impõem às populações periféricas, fique claro que o barro-homem é o mesmo. A cultura dominada, sob o impacto da plasticidade cultural, deve ser capaz de inscrever-se na cultura dominante, sem que isso implique perda substantiva de seus próprios componentes culturais. Daí a importância de se promover a fecunda mediação entre a dimensão local e a dimensão universal e ignorar a posição retórica, conservadora e arrogante das elites intelectuais brasileiras. A democratização da informação cultural, universal, exerce um papel educacional transcendental na medida que faz o confronto de culturas sem perdas dos valores culturais. Os resultados dos esforços dessa jovem professorinha não são nada mais do que a constatação dos efeitos dessa transculturação. A sua história é particular, mas o conteúdo de seus ensinamentos, segundo Aristóteles, assume características de universalidade. Trata-se da realidade de uma utopia. • Continente agosto 2004


» 8 CAPA

O músico Hermeto Pascoal critica Caetano Veloso, que, ao lançar o disco Foreign Sound, disse considerar a música americana “a melhor do mundo”, e proclama “A melhor música do mundo é a do Brasil, feita por mim, principalmente” Inácio França

H

Hermeto Brasileiro Universal

ermeto Pascoal, talvez o músico brasileiro mais cultuado no exterior, gosta de dizer que não faz parte da indústria do entretenimento ou do showbusiness . A música que cria não é um produto, não é feita para ser colocada em CDs, algo que ele sempre deixa claro para os executivos de gravadoras que cruzaram o seu caminho. Quando desembarcou no Recife para tocar no Teatro de Santa Isabel como a principal atração do festival Instrumental Concert, tinha acabado de completar mais um dos compromissos internacionais de sua agenda repleta. Foram seis shows e quatro workshops na Inglaterra e na Irlanda. Disposto a relembrar seu início de carreira no Recife, ao lado de Sivuca, e ansioso para visitar a filha que mora em Olinda, Hermeto avisa que gosta de falar e que as fitas reservadas para gravar a entrevista não iriam “dar para nada”. Além de contar histórias, o músico alagoano defendeu a pirataria, rejeitou rótulos e assegurou que, depois de se apresentar em palcos de todos os continentes e tocar ao lado dos maiores nomes da música mundial, não perdeu a essência do garoto que tocava oito baixos ao lado dos irmãos, todos albinos, nos bailes de Lagoa da Canoa, Sertão alagoano. Durante a conversa, seu bom humor só desapareceu quando fez duras críticas a Caetano Veloso, à indústria fonográfica e para revelar as tensões no relacionamento entre os intérpretes e os músicos que os acompanham.


Hans Manteuffel

Hermeto no Teatro de Santa Isabel, Recife


»

10 capa

Algumas vezes o senhor é rotulado como vanguardista, outras é citado como um experimentador e, muitas vezes, é apresentado como um músico erudito contemporâneo. Algum rótulo lhe deixa mais à vontade? Eu sou um músico. Sou um músico intuitivo, não premedito as coisas. Por exemplo, eu vou andando na rua e, de repente, dou uma topada na pedra e meu pé dói, mas ela tem um som bonito. Parece que aquele som fica rodando: em vez de ficar com raiva, vou atrás da pedra e levoa para casa, para fazer música com ela. Se isso é fazer experimentação, então, sim, sou um experimentador. Esse fato da topada na pedra realmente aconteceu ou é uma metáfora? Não, isso já aconteceu. Não é muito, mas de vez em quando acontece. Do jeito que eu enxergo bem, imagina se eu não dou topada! Mas essa coisa de dizerem o que é que eu sou, eu não sei definir, só defino minha música, que não é minha, é nossa, universal. É do universo, é uma coisa que tem praticamente todas as tendências e em que predomina a harmonia, que é a mãe da música. A partir daí é que vêm as intuições, a criatividade que a gente vai desenvolvendo com o passar do tempo. De repente, estou conversando com você, ou lá com ela, com Aline, meu amor, minha vida, minha musa, minha pianista, e a torneira da casa dela começa a soar huuuuuummmm. É afinada em ré! São essas coisas que a gente não pode deixar escapar, quando se tem a percepção. Agora, eu procuro o som? Aí já não é meu negócio, eu não saio à procura de som. Hans Manteuffel

Hermeto criando sons com bonequinhos de borracha

Continente agosto 2004


capa 11 » O que é “sair à procura de som”? É quando você bola, planeja umas coisas e diz: “Ah, hoje vou tirar som com não sei o quê”. Eu faço filmes, fiz um filme com os sapos, chamado Hermeto Campeão. Os caras queriam já bolar o lugar para onde nós iríamos. Eu disse: “Não, não. A gente vai para a lagoa, que é onde estão os sapos. A gente vai fazendo o som e eles vão aparecendo”. Eu nunca deixo de falar com os sapos, os passarinhos, eu sou do mato. Agora, não dá para imaginar antes do som acontecer, só depois. Senão sai aquela coisa muita premeditada, muito padronizada. E meu negócio não é moda. São todos os sons de todos os tempos. O mercado precisa rotular para tentar vender. Quais foram os rótulos que já lhe aplicaram? Já ouvi que eu fazia jazz, ouvi de tudo. Essa música que eu chamo de universal, abrange todos os estilos, mas nunca fico num ritmo só. Eu sou de Alagoas. Eu vim tocando baião, tocando chorinho, tocando forró, eu não perdi essa essência, mas eu modernizei tudo isso e misturei a outros ritmos. Tem vez que a gente toca na Alemanha e os alemães perguntam: “Você já morou aqui?” – porque eles acham parecido. Ou o cara que só escuta música erudita, ele acha também que tem alguma coisa parecida. Minha música tem de tudo que você possa imaginar. Música é isso, é uma coisa infinita. O senhor chegou a estudar teoria musical na juventude? Não, não cheguei a ir para a escola estudar teoria, não. Sou autodidata. Só fui estudar teoria com meus 40, 41 anos de idade, mais ou menos. Hoje eu não tenho problema nenhum com a teoria. Ela é que tem comigo. Não dá para me encaixar nela. A teoria é cheia de padrões, é cheia de coisa. Muita matemática e a cabeça cria sempre coisas bem diferentes. Se a teoria falasse, ela diria de mim, assim: “Não era nem para esse cabra ter nascido”. Vou falar uma coisa leve: Caetano Veloso falou, há pouco tempo, numa entrevista, que a melhor isso que as gravadoras música do mundo, a música de mais qualidade, era a música norte-aameri- fazem não é nada mais cana, seguida da música cubana. Existe esse ranking? nada menos do que roubo. Eu acho que existe. A melhor música do mundo é a música do Brasil, As minhas músicas, todo feita por mim, principalmente. Boto banca mesmo, ninguém está fazendo a mundo pode piratear música que o Hermeto está fazendo. A melhor música está sendo feita por Hermeto Pascoal e sua escola, os músicos que tocam comigo. Agora mesmo, nós viemos da Inglaterra e foi uma explosão em teatros com mais de três mil pessoas. Tenho que falar isso, porque não dá para ouvir uma besteira dessas de um cara como Caetano que, como poeta é muito bom, mas musicalmente é um musiquinho... Para falar de música tem que ser músico, tem que tocar muito bem... Música não é poesia. Na poesia, ele é um dos mestres. Mas, como músico, não. Ele não pode falar isso. Os Estados Unidos já eram... o jazz morreu, há muitos anos. E Cuba está muito para trás. Não tem nada a ver. É o Brasil que manda. Fico chateado com uma declaração dessas. Caetano é um músico medíocre, ele não toca bem os instrumentos que toca, ele não toca nada, quase nada. Nem acompanhar direito ele sabe. Ele só sabe escrever poesias. Com todo o respeito. Ele não pode falar em música. De música deixe para eu falar, para o Egberto (Gismonti) falar, para o (Astor) Piazzola falar lá do céu, deixe para o Miles Davis falar lá do lugar onde ele estiver, deixe pro Herbie Hancock falar, para quem entende de música falar. Caetano tem que ficar quietinho e respeitar os músicos, porque ele é um músico medianozinho... Quem é músico no Brasil, hoje? Tem muitos. Posso falar muito bem do Guinga, um cara que está fazendo um trabalho muito bonito. Posso falar de Dominguinhos, de Zeca Pagodinho, que é o único de quem eu gosto do Continente agosto 2004


12 CAPA

pagode. Se for para falar de bons músicos, não paro mais. Tem o Itiberê, que está fazendo um trabalho extraordinário com a banda dele, a maior orquestra do Brasil no momento. Ele toca contrabaixo com a gente. A orquestra é a Orquestra Família. Fiquem atentos a Itiberê Zwarg. Esse, sim, está fazendo um trabalho maravilhoso. Ele tem até um ou dois CDs na praça. Não existe nenhum país no mundo que está fazendo a música instrumental que o Brasil está fazendo no momento.

Divulgação/Universal Music

»

A música instrumental tem o espaço apropriado na agenda cultural brasileira? Não. Existe medo por parte da maioria Caetano Veloso: “musicalmente, um musiquinho” dos cantores. Sem querer generalizar, mas a música instrumental é um perigo para os cantores. Eles usam os músicos. Os músicos que não têm personalidade, que infelizmente são a maioria, fazem tudo o que os cantores querem. Quem tem personalidade, tem que chegar e dizer: “Vou te acompanhar, mas eu quero solar, quero fazer um solo. Temos piano, baixo e bateria, e a gente só acompanha você, se tiver dois solos, no mínimo, em cada show”. Eu fazia isso. Mas os cantores começam e vão até o final. Eu ia ter paciência de fazer um negócio desses? Não ia mesmo. Mas os cantores têm medo. Estou falando isso construtivamente, defendendo nosso espaço. Mas você está falando de um mundo, o mundo do showbusiness, onde a vaidade fala alto. Deve ser muito difícil convencer um cantor desses a dividir espaço sob os holofotes... Além disso, os produtores... Eu tive várias pessoas que apareceram querendo me produzir, logo no começo... Por exemplo, o principal produtor da Elis Regina, o Marcos Lázaro. Eu não aceitava, porque ele queria me dizer como eu devia me vestir, o que é que eu tinha de fazer e mais não-sei-o-quê... e eu nunca aceitei isso. Mas você nunca usou umas roupas mais espetaculares ? Ah, teve sim... Uma vez, para tocar uma flauta, eu me vesti de Satanás. Eu lembro como se fosse hoje, foi no Teatro Municipal de Campinas. Eu achei tão bonita aquela asa do diabo, mas era verde! Verde, com lantejoulas. Bonito aquilo! Mas, como eu não enxergo direito, não sabia que era o Satanás. Vesti-me de Satanás, sem saber. Quando vou chegando ao palco, uma coisa veio na minha cabeça: “Agora, quero ver realmente se as pessoas vão prestar atenção no som que eu faço ou nisso aqui que estou vestindo”. Que maravilha que foi! Eu fiquei até frustrado. Frustrado no bom sentido! Tocava a flauta e fazia assim... balançava a cabeça... tinha uns chifres na roupa... mas, para você ver, não deram uma risada! E eu, chateado, no bom sentido, porque aquilo para mim era uma vitória. A música se impôs. Outra vez, nesse mesmo teatro, a gente ia fazer um show e o cara do som não apareceu. E ninguém me avisou nada. Nem ao público. Olha o que é que me veio de repente: “Entre lá e apresente os instrumentos como se fossem pessoas e fale sobre o cara do som”. Aí, eu cheguei, encostei na bateria e disse: “Gente, isso aqui é uma bateria que está dentro desse estojo, chorando, louca para tocar e para ser tocada, mas o indivíduo que tinha que ter vindo botar o som, não veio, mas nós vamos fazer esse som de qualquer maneira”. Continente agosto 2004


CAPA 13 » E a platéia, como reagiu? Veio abaixo. Aí, fiz aquela coisa toda e, depois que acabei de apresentar os intrumentos todinhos, um cara começou a assoviar, mas não foi fazendo galhofa nem nada. Pedi para ele: “Vem cá, rapaz! Não pare de assoviar não e venha até aqui ao piano”. Quando ele veio ao piano, comecei a acompanhar o assovio. E ele começou a desafinar e eu fui mudando os acordes para seguir a desafinação dele...

Caetano é um músico medíocre, ele não toca bem, ele não toca nada, quase nada. Nem acompanhar direito ele sabe. Ele só sabe escrever poesias

Como é “seguir a desafinação”? É você fazer uns acordes mais atonais que são correspondentes àquela desafinação e aquilo deixa de ser desafinação e passa a ser um negócio atonal. É como se fosse uma pintura! Você está pintando e, de repente, borrou. Em vez de passar uma caneta para tirar aquilo, você faz outro borrãozinho de lado e mais outro borrãozinho, mais outro e faz uma rosa. Aí, no palco, a gente fez uma rosa de borrõezinhos.

E o/ A du çã ro n/ Re p to ax Cl am illi

Então, nesse sentido, a globalização foi boa para o senhor? E nas maneiras de me fazer escutar. É bom que outras pessoas escutem meus discos para tirar suas conclusões. Então, tem o Itiberê, de quem falei, agora há pouco, que chega lá em casa dizendo que tinha receio de fazer

Miles Davis: “pode falar de música, lá de onde estiver”

W

Esse fenômeno da globalização ajudou a música, favorecendo a mistura, ou deixou tudo mais pasteurizado, mais padronizado, transformando tudo em produto? Atrapalhou tudo. E o que atrapalhou mais foi a televisão. Tirando as TVs educativas, a televisão é a desgraça do mundo. Depois do dinheiro, a televisão é a pior coisa do mundo. Não generalizando, lógico, porque tem essas de que eu falei. Seria bom se globalizassem as coisas bem feitas. Você está vendo um canal de televisão e, às vezes, tem uma música bonita, mas eles cortam no meio para dar a notícia de um assalto. Para dar a notícia de uma coisa ruim. Não deviam parar, deviam dar depois. Uma vez, eu estava dando uma entrevista, o cara pede desculpas, porque o jornal ligou dizendo que houve um acidente, não sei onde e ele não poderia terminar a entrevista, porque tinha que ir para o local do acidente. Você não acha isso uma vergonha? Também não voltei a dar entrevista para essa pessoa e para esse jornal. É chato, isso já aconteceu comigo. Essa globalização está dando certo para mim, porque estou fazendo uma mistura daquilo que é bom. Eu faço uma panelada, essa música que chamo de música universal, se você quiser chamar de panelada, chame. É uma panelada. É o mundo misturado, mas é o Brasil que predomina. Ninguém come no mundo, como se come no Brasil, com as misturas que têm no Brasil. A música está no Brasil, aliás, sempre esteve.

Continente agosto 2004


»

Hermeto, a namorada e o filho Fábio, tirando um som na Ponte de Santa Isabel, no Recife

14 CAPA

músicas muito parecidas com as minhas. É um respeito que ele tem. Eu disse para ele: “Rapaz, influência todos nós temos, desde que ela não seja premeditada, está valendo. Não tenha medo de fazer”. Daí para a frente, ele deslanchou, escrevendo muito mais. É por isso que eu digo que essa música que a gente faz é uma música que abre caminhos: não é preciso ficar pegando disco e ficar escutando disco solo a vida toda. Você escuta o disco até o ponto em que você queira e tira suas conclusões. Não é para decorar as coisas, para você compor, se você for um compositor. Você passou um tempo sem gravar, na década de 1990, entre 1992 e 1999. Foi muita confusão com gravadora ou foi uma opção sua? Confusão com gravadora sempre tem. Essas gravadoras multinacionais, então, nunca mais eu quero conversa com elas. A não ser que façam um contrato com tudo estabelecido antes. Na verdade, nunca tive problema com gravadora, com referência a como eu deveria tocar. Eu sempre fiz como eu quis e eles sempre concordaram. O problema é depois. Não adianta você fazer, porque depois eles ficam usando você como catálogo, só. Aí tem um festival de jazz e eles põem, lá, o disco do Hermeto Pascoal. E vende, vende mais do que todo mundo. Acabou aquele festival, eles recolhem tudo. Adianta nada. E não existe isso deles pagarem o que deviam pagar. Isso praticamente não existe. Você não prova nada. Você não prova que eles não pagam e eles dizem que me pagam. De vez em quando, mandam R$ 100,00 e pronto. Vou falar uma coisa leve: isso que as gravadoras fazem não é nada mais, nada menos, do que roubo. É roubo. E as gravadoras estão numa briga enorme, com ajuda dos meios de comunicação, contra a pirataria. Quem é pirata nessa história? Já falei muito sobre pirataria e essa é mais uma oportunidade boa para falar. As minhas músicas, todo mundo pode piratear. Eu não vou nunca ser contra, porque é muito mais fácil para elas estarem no ouvido das pessoas. Podem piratear à vontade. Tem mais é que piratear mesmo. O público vive carente. Tem uma coisa: quando eu comecei, não pensei em gravadora. Não pensei em gravar disco. Eu pensei em fazer um trabalho baseado assim... como se fosse teatro. Música independente é essa que a gente faz. Hoje, eu tenho público que independe de ter CD ou não. Se tem CD, tudo bem. Se não tem, tudo bem. Não precisa ter CD meu nas lojas para o público ir para os shows. Na primeira vez em que fui procurado por uma gravadora, para fazer um disco, de cara já comecei a dar na cabeça deles. Fui fazer um disco e o cara me veio com uma lista do que eu devia gravar. E eu tinha minhas composições e falei: “Mas eu quero gravar minhas músicas”. Continente agosto 2004


Hans Manteuffel

CAPA 15 »

Qual foi a gravadora? Foi com Alfredo Borba e a gravadora era a Odeon. O Alfredo era o produtor. Aí, ele disse: “Não, ninguém conhece suas músicas”. E eu: “E essas aqui, alguém conhecia antes deles gravarem pela primeira vez? Essas músicas só se conhecem agora. Como é que vou fazer conhecerem minhas músicas?”. Aí, ele disse que não ia dar. Eu agradeci e ele ficou chateado porque eu era um cara que não tinha nome nenhum e fazia umas músicas que, para ele, não agradavam nada. Mas eu tive peito de não querer. E ele achava que eu iria ter a vaidade de achar que era uma oportunidade. E eu digo para todos os músicos e digo para quem for ler esta entrevista: ninguém pense que é o disco, nem o CD que levam você a fazer uma boa música. Eles apenas registram um momento pequenininho da sua carreira. Disco para mim é como uma máquina de tirar fotografia. A foto é o momento. Agora, esses shows que a gente faz, com grupo, com dança e tudo mais... com três noites de auditório lotado no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, e que vamos levar para Curitiba... Quer dizer, a música é isso. Se eu não estivesse fazendo música, nem ia querer dar entrevista sobre o meu trabalho. Dou entrevista porque me sinto bem, como se tivesse tocando um instrumento. Música não é só tocar. Música é conversar também. Sua música ainda tem muita coisa de Lagoa de Canoa, lá dos matos de Arapiraca? A essência ainda é de lá, sim. Mas tem o Brasil inteiro dentro dela. Quando faço show pelo mundo afora, os críticos dizem: “Ele não perde a essência”. De repente, você transforma um tipo de música tão variada, que as pessoas de diferentes países se sentem participantes daquele show. O negócio da gente com o público é que ele não se sente separado do artista. Eles também se sentem artistas e é verdade. O senhor escuta música em casa? Não tenho tempo. Isto é, às vezes, até que eu parava para escutar uma música, mas quando chegava na primeira frase, tanto minha como de outros músicos, eu escutava e já vinha outra música, na cabeça, para fazer. Uma música que não era igual àquela que estava tocando. Aquela puxava uma outra música que estava na minha cabeça. Eu escuto mais de músicos que estão começando. Exatamente porque me pedem para eu escutar e dizer o que acho, o que não acho. Eles mandam CDs, mas é um monte de CDs, então, passo o trabalho para o Fábio (Fábio Pascoal, o filho percussionista) e para Aline (a namorada, cantora e compositora). Quando encontro com eles, perguntamme: “E aí, gostou do meu CD?”...Este encontrava-se entre mais de 100, 200 discos... Eu digo: “Olha, que eu me lembre, como era teu CD?” Então, o cara sempre ri, porque percebe que eu não lembro. Mas lhe dou a certeza de que, de cada um, escuto pelo menos umas duas músicas. • Continente agosto 2004


»

16 CAPA Hans Manteuffel

O caçador de sons Ilimitado, imprevisível, viciado em música, Hermeto busca sempre o inexistente, não consegue parar de compor Lauro Lisboa Garcia

H

avia nos anos 70, em São Paulo, no antigo Colégio Equipe, um projeto do hoje apresentador de tevê Sérgio Groisman. Grandes figuras da música brasileira alternativa – essa gente que faz arte e por isso mesmo nunca tocou em FM e na televisão – passaram por ali em shows memoráveis que lotavam o auditório de estudantes. Hermeto Pascoal foi um desses, cujo acontecimento sonoro (sim, é sempre mais do que um show) não cabia no teatro e foi programado para a quadra de esportes. Acontece que o colégio tinha prédios residenciais como viziContinente agosto 2004

nhos, o que gerou protestos a partir de certa hora. Inconformado por ter a aparelhagem e os microfones desligados, Hermeto, munido de sua flauta (e não sem antes soltar um estrondoso palavrão contra a vizinhança), convocou seus músicos e o público a acompanhá-lo para a rua. E lá ficou um tempão, na escadaria de uma igreja, a entreter os insaciáveis admiradores e a chamar a atenção de quem passava. Para quem mergulhou na dimensão criativa de Hermeto a partir dali, este foi um episódio marcante, mas não isolado.


capa Com Hermeto é assim: quando não é ele, é a platéia que não deixa o show terminar. Qualquer relação entre o flautista mágico dos contos infantis com o apelido de bruxo, que esse múltiplo instrumentista ganhou, não é casual. Hermeto tem o poder do encantamento, com seu jeito alegre e buliçoso de mexer com os sentidos a partir da burilação de sons. E surpreende sem precisar se valer das palavras. Mas, quando as usa, também repercute. Certa vez, convidado a opinar sobre determinados expoentes do rock (gênero que sempre criticou), saiu-se com isto: “Lobão, musicalmente, não existe. Deveria ser proibido”. E Lulu Santos: “Ué, mas não é a mesma coisa que o Lobão?”. No auge da guerra da indústria fonográfica contra a pirataria, declarou que queria ser pirateado. Pelo menos, assim, sua música seria ouvida. É, de fato, lamentável que a maioria de seus discos nunca tenha chegado ao CD. Um de seus clássicos internacionais, Slaves Mass (1976) só saiu no Brasil com uma horrenda embalagem e em forma de coletânea. É quase inevitável cair no lugar-comum de termos como alquimista ou mágico para tentar expressar a originalidade de seu universo musical. E acabar não dizendo nada com isso. Antes de ressaltar as liberdades harmônicas e rítmicas, é preciso lembrar que Hermeto é uma espécie de força magnética que capta (e reprocessa) tudo o que vibra ou produz ruído ao seu redor. O socar de um pilão, o grunhido de um porco, a percussão do feijão borbulhando na panela. Não há instrumento que não seja musical em sua concepção. Para ele tanto faz ser um piano ou uma chaleira. Tudo é ferramenta musical, como se sabe. Tudo se arranja e se harmoniza com instrumentos convencionais que tanto se entrelaçam como são explo-

aj

tária e Fund

dio Universi

/Acervos Rá

Reprodução

17

rados individualmente. Hermeto começou a tocar sanfona ainda menino e depois tornou-se um ás em sopros e no piano, além da percussão. Para o Campeão (como os músicos o chamam), nunca foi importante ler ou estudar música, mas sentir. E sempre se interessou por tudo. Ilimitado, imprevisível, viciado em música, busca sempre o inexistente, não consegue parar de compor. Tanto que, aos 60 anos, dedicou-se a montar um calendário sonoro, criando um tema novo por dia, de 23 de junho de 1996 a 22 de junho de 1997. Disse que recebeu mensagens intuitivas para fazer o que denominou Calendário do Som. Fechou em 366, para valer em anos bissextos. Calcula ter composto mais de 2.500 músicas, a vida toda, o que é bastante considerável. Mesmo nas suas composições mais conhecidas, “Bebê” e “Um Chorinho Para Ele”, as harmonias nunca se repetem, quando tocadas ao vivo. Combinando jazz com ritmos tradicionais nordestinos, entrou para a roda dos artistas de estilo inclassificável. Não é justo, porém, acondicionar sua criação à excentricidade. Há uma técnica desenvolvida, a serviço da satisfação de inventar um som novo, de descobrir novos timbres. Só quem sabe tudo de harmonia e de acordes pode romper barreiras com tamanha segurança. Grande parte de seu trabalho se desenvolveu pela criação coletiva – daí alguns excessos –, mas a personalidade nunca deixou seu eixo. Aos quase 70 anos (completou 68 no dia 22 de junho), Hermeto ainda percorre caminhos melódicos surpreendentes, como no disco Mundo Verde Esperança, com canções dedicadas a cada um de seus 13 netos e outra a Victor Assis Brasil. Uma beleza. Parafraseando o mestre, só não ouve (e não toca) quem não quer. •


»

18 LITERATURA

Caleidoscópio Cortázar Continente agosto 2004


LITERATURA 19 »

Com exposição de textos e fotos no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, de setembro a outubro, e lançamento de livro inédito na Argentina, comemoram-se os 90 anos que o escritor, ícone da geração do chamado boom latino-americano, faria agora em agosto Mariana Camarotti, de Buenos Aires

C

onta o escritor Julio Cortázar que, uma vez, a agência do correio argentino, na rua Serrano, em Palermo, bairro de Buenos Aires, ficou a cargo de uma família que fazia cada tarefa de uma maneira especial. Foram apenas três dias, mas a dedicação e o carinho eram tantos que gente de outros bairros vinha despachar correspondências naquela agência. Uma senhora gorda emocionou-se e molhou de lágrimas um selo, quando, ao comprá-lo, ganhou um balão colorido de festa. Ela era apenas a primeira de muitas das pessoas que formaram fila naqueles dias para receber um balão. O ocorrido, que na verdade nunca ocorreu, é parte do conto “Correios e Telégrafos”, de um dos mais belos livros de sua biografia, História de Cronópios e de Famas. Nascido em Bruxelas, Bélgica, muda-se com a família para a Espanha e, a partir dos quatro anos de idade, passa a viver na Argentina. Mais velho, toma Paris como sua residência e lá vive até o final dos seus dias. Apontado como um dos grandes nomes da literatura de língua espanhola, Cortázar completaria 90 anos este ano, se não tivesse morrido há duas décadas. Em comemoração ao instituído “Ano Cortázar”, será publicada a historieta inédita A Raiz do Ombú, pela Fundação Internacional Argentina, entidade que difunde vida e obra do autor e que realiza uma série de eventos desde fevereiro. Assim como “Correios e Telégrafos”, boa parte da obra de Cortázar habita um realismo fantástico singelo, com personagens que poderiam ser reais, em lugares que muitas vezes existem. Mas esses personagens vivem histórias que mesclam a realidade criada pelo autor com acontecimentos encantados. Assim acontece em outro conto, “Casa Tomada”, que compõe o livro Bestiário. Nele, o narrador e sua esposa são encurralados, aos poucos, em uma parte de um casarão, na medida em que os cômodos são tomados por algo não identificado que fazia ruídos. Enquanto isso, a esposa segue fazendo tricô, como se nada estivesse acontecendo. O realismo fantástico de Cortázar é comum à literatura latino-americana, como nos cíclicos romances do colombiano Gabriel García Márquez e nas curtas histórias andantes do uruguaio Eduardo Galeano, por exemplo. Acontece que Cortázar precede a popularização do realismo fantástico e usa desse estilo muito antes de García Márquez, Galeano e os demais. Ele lançou seu


primeiro livro em 1938, sob o codinome de Julio Denis, com sonetos. Bestiário, seu terceiro livro e o primeiro em que as histórias fantasiosas aparecem, é lançado em 1951. Os escritos de Cortázar são um divisor de águas na literatura hispano-americana, que com ele perde as últimas amarras à retórica do século 19, destaca Alberto Cousté, autor de O Leitor de Cortázar. Dono de uma extensa obra de romances, contos, relatos e textos políticos de esquerda, Cortázar tem uma vida caleidoscópica que se confunde com as linhas que escreve. “Viveu como escreveu, assombrado”, diz Cousté. “Cortázar nunca esteve seguro de nada, e nisso residia sua peculiar maneira. Essa ambigüidade surge em Amarelinha”, acrescenta. Amarelinha, seu mais conhecido romance, pode ser lido de várias maneiras. Cada capítulo tem um número e o autor indica a ordem. Mas a história também pode ser lida na ordem convencional ou em qualquer outra, o leitor é quem escolhe. Assim como a ambigüidade do que escrevia tem a ver com sua vida, Cortázar leva para os seus contos o universo em que vivia. A presença do bairro Palermo em “Correio e Telégrafos” e em outros contos é a prova de que vida e obra se confundiam. Charmoso bairro de Buenos Aires, Palermo era conhecido por reunir importantes intelectuais, entre escritores, poetas e jornalistas, no século passado. Cortázar não morava ali, mas era seu freqüentador. Sua presença ainda está impregnada nos bares, que estampam suas fotos nas paredes, e em alguns de seus contos, que se passam no bairro. A agência de “Correio e Telégrafos” existe de verdade e funciona normalmente. A rua Serrano é que, nessa altura, agora se chama Jorge Luis Borges, homenagem a outro grande escritor e poeta argentino e que também viveu parte de sua vida em Palermo. O tempo trouxe consigo as reformas e a agência já não tem mais as janelinhas de atendimento para entregar pacotes, receber cartas e vender selos como no conto. Na história, além dos balões coloridos de festa, havia outras delicadezas durante os três dias em que essa família esteve no comando. As caixas com encomendas eram adornadas com plumas e entregues “sem o lacre tão vulgar e com o nome do destinatário que parece que vai metido debaixo da asa de um cisne”. O final da história, ápice do conto, é também o cume do fantástico. Tomada pela polícia, provavelmente devido às inovações no atendimento, a agência do correio é fechada de maneira fantasiosa. Enquanto muitos clientes esperam ser atendidos, a mãe do narrador faz voar flechas coloridas fabricadas com formulários de telegramas e cartas certificadas. A família retira-se ao som do hino nacional. “Vi chorar uma menininha que havia ficado na terceira fila da agência para ser atendida e que sabia que já era tarde para que lhe dessem um balão colorido de festa”. Assim termina a história. Cortázar contrói imprevisíveis figuras e personagens, é capaz de passar de um poema a uma convicção ideológica, de uma confissão a uma resposta pública, de um escrito singelo a fortes textos de esquerda, de Paris a Cuba. Mas nesse caleidoscópio de vida e obra estão as perguntas sem respostas de toda uma existência desse escritor. •

Continente agosto 2004


LITERATURA 21 »

Em 1977, dois argentinos no exílio, um escritor, o outro desenhista, se unem para recordar suas respectivas vidas em Buenos Aires. As lembranças eram, muitas vezes, terríveis, reais, fantasiosas e imaginárias. Desses encontros, nasce La Raíz del Ombú, uma alegoria da história argentina entre os anos 30 e o final da década de 70, que é relatada sob a perspectiva da família Cedrón, através da concepção mágica sempre presente em Júlio Cortázar: “...Na Argentina de nossos dias, se encontra ou se escapa da morte por razões muitas vezes eventuais; ser assassinado ou conseguir uma poltrona num avião depende cada dia de arbitrariedades, erros, coincidências e azares...” E é com uma pluralidade de possibilidades de acontecimentos, bastante característica da obra de Cortázar, que começa essa historieta. A vida dos Cendrón é cheia de fata-

Parceria inédita Vinte e sete anos depois de escrito, é lançado em Buenos Aires La Raíz del Ombú, uma alegoria da história da Argentina, numa parceria entre Cortázar e o desenhista Alberto Cedrón lidades e vantagens, tal como o que ocorre com o pai de Alberto Cedrón, imigrante que chega à Argentina com ilusões de progresso e consegue salvar-sse milagrosamente de um naufrágio. La Raíz del Ombú relata também o exílio de Alberto, enquanto um irmão seu, Jorge, misteriosamente se suicida em Paris, depois de apunhalar-sse quatro vezes no coração. E, como era de se esperar, a história em torno do livro concorda com este predestinado mundo cortaziano de surpresas e obstáculos. A obra chega ao público 27 anos depois de escrita, graças à iniciativa da Fundação Internacional Argentina, num trabalho conjunto com Alberto Cedrón e um grupo de desenhadores e artistas, com o apoio da herdeira de Julio Cortázar, Aurora Bernárdez. (MC) • La Raíz del Ombú – Textos de Julio Cortázar e desenhos de Alberto Cedrón. Editora: Fundação Internacional Argentina, coordenação de Facundo de Almeida e Liliana Piñeiro. 56 páginas.


»

22 LITERATURA

Diplomata, ficcionista, antropólogo, ensaísta, o sergipano Paulo de Carvalho Neto, falecido há um ano, é autor de aclamado romance picaresco, Meu Tio Atahualpa, escrito originalmente em espanhol Luiz Carlos Monteiro

O pai do Tio Atahualpa Divulgação / Editora Rocco

Paulo de Carvalho Neto viveu em diversos países da América Latina e escreveu a maior parte de sua obra originalmente em espanhol

O

escritor Paulo de Carvalho Neto representou uma figura atípica de intelectual brasileiro. Conhecido em numerosos países da América e da Europa, era praticamente anônimo no Brasil. Sergipano, nasceu em 1923 e morreu aos 80 anos no Rio de Janeiro, em agosto do ano passado. Reunindo as qualidades de pesquisador do folclore e ficcionista, deixou livros de bastante repercussão nos dois campos. Com relação ao folclore, compôs uma série a que chamou de Interdisciplinar, onde se ressalta Folclore e Educação, traduzido no Brasil em 1981, após edições no Equador, na Argentina e Guatemala. Além disso, o original Folklore y Educación recebeu o “Prêmio Internacional de Folclore Giuseppe Pitrè”, em 1969. Na ficção, a sua obra mais bem realizada é o romance picaresco Meu Tio Atahualpa, publicado inicialmente no México, em 1972, e com tradução brasileira de Remy Gorga Filho, em

Continente agosto 2004


LITERATURA 23 »

1978. O título deste romance representa um duplo registro: primeiro, a referência ao lendário guerreiro inca do século 16, nos tempos da conquista, e depois a sucessividade de índios equatorianos com este nome, que nem sempre o honravam. O guerriante Atahualpa transforma-se em Atahualpa tio, mordomo de uma Embaixada em Quito, exercendo as atividades mais esdrúxulas, desde enfiar supositórios no Embaixador, para acalmálo, até estuprar a nora deste, quando drogada e inconsciente. E este Atahualpa tio reaparece, por sua vez, depois de morto (ao ingerir, sem que soubesse, uma dose de licor envenenado, preparada por Terrèze, nora do Embaixador, que já havia asfixiado a Embaixatriz um dia antes, com um travesseiro), como Atahualpa sobrinho, personagem-narrador do romance. Meu Tio Atahualpa dá continuidade à tradição da novela picaresca espanhola, iniciada já no século 16 com o Lazarillo de Tormes, e que tem seu momento máximo em Cervantes. O tema recorrente dos romances picarescos mostra-se como a precariedade de vida de personagens reais ou inventados que, por esse motivo, cometem suas “picardias” roubando, mentindo e enganando descaradamente seus amos. O pícaro Atahualpa tio revela certas aproximações com os pícaros antigos: de profissão criado, era astuto, subserviente, desajeitado e, sem que seus patrões desconfiassem, irreverente e traiçoeiro. Considerado um “índio sacana”, por servir aos brancos, Atahualpa tio disfarça o desprezo subterrâneo pelo Embaixador e sua família, com um respeito falseado e dissimulado. Antes de abrir a porta para alguém, passa invariavelmente no bar do Embaixador, toma um cálice de licor e imitando-o erradamente, exclama um “Ah, delecioso!”. Carvalho Neto expõe estes acontecimentos com grande pertinácia, em numerosas passagens do livro, através de Atahualpa sobrinho, que relata tudo o que ouviu do tio. E ao ser convocado por Terrèze para ser criado na Embaixada, provoca situações as mais desastradas e hilariantes no cotidiano da família. Numa festa que o Embaixador promove, bebe demais e desafia todos os presentes, sem distinguir entre autoridades, mulheres ou os donos da casa, que mandam trancafiá-lo. Atahualpa sobrinho, que

se auto-intitulava “pueta dos legítimos”, responde a tudo de bom ou mau que enfrenta em sua vida, em versos, na modalidade popular das coplas, e posteriormente mudará sua trajetória para índio revolucionário (quando é preso, coloca em xeque a cultura letrada do advogado Zaguala, um intelectual dúbio e vacilante, ao servir-se das coplas nas conversas que mantinham). Dois conflitos aparecem com maior saliência no livro, o social e o lingüístico. Eles se acentuam no embate entre a língua quíchua e a espanhola e na condição oprimida dos índios, em permanente desavença com os brancos. Mas também nos confrontos entre os próprios índios, os serranos e os da costa do Equador. A utilização indevida de palavras aprendidas na Embaixada, por Atahualpa tio, leva a confusões de difícil solução, quando outro sobrinho seu, Atahualpa o Santarrão, responde ao cura de Quito que gostaria de aprender ofício “pra subversivo” e é imediatamente delatado e encarcerado. Três índios e um branco, juntos, adquirem uma nova consciência revolucionária. Juan, o jardineiro, cujo maior sonho é ser chofer, fica no Equador, enquanto os outros três fogem para a Colômbia. Tempos depois, em Cuba, Atahualpa sobrinho aprende “ofício de escrever”; Dom Simón, o curandeiro, estuda para “médico prático”; e Píter/Pedro, filho do embaixador, passa de “menininho de família a guerrilheiro”. Paulo de Carvalho Neto escreveu sobre a aculturação dos índios de um modo marcante e bem-humorado, utilizando a linguagem rural e dialetal praticada por eles e enriquecendo a cultura antropológica e secular do Equador com o desvendamento de lendas, mitos e costumes presentes em sua história. Adotou o espanhol como língua-matriz, tornando-se, em certa medida, um desenraizado da língua portuguesa. E isto, a partir de um longo exílio, iniciado em 1949 (que durou quase toda sua vida), depois de um convite para fazer parte de uma missão cultural no Paraguai. Contudo, para todos os povos com quem teve contato e para os países onde viveu, ensinou e pesquisou, sua contribuição cultural resultou inestimável. Em Meu Tio Atahualpa repartiu-se num processo criativo peculiar que contemplava os estudos folclóricos em aplicação dinamizada, pertinente e muito própria à prosa de ficção. • Continente agosto 2004


24 LITERATURA

Chaves para entender Cardozo Em novo livro sobre o escritor pernambucano Joaquim Cardozo, Maria da Paz Ribeiro Dantas lança luz sobre aspectos complexos de sua poesia Marco Polo

Maria da Paz Ribeiro Dantas. Ao lado, Joaquim Cardozo em desenho de Di Cavalcanti

Continente agosto 2004

Imagens/Reprodução

»


LITERATURA 25 »

T

oda escrita tem seus segredos. Chaves que abrem portas inesperadas para “locais” inesperados, sentidos ocultos, planos secretos, mistérios. Sentidos, planos, mistérios que a escrita dos poetas multiplica, às vezes, em vários níveis. Poucos têm a sorte, porém, de encontrar exegetas argutos, dedicados e à altura de seus textos. João Cabral de Melo Neto, em sua última visita ao Recife, em 1995, quando veio lançar sua Obra Completa, em edição de luxo pela Aguilar, sentia-se assim. Após várias solenidades e discursos tediosos, já num bar – na verdade, um boteco com chão de terra batida e teto de lona, em Boa Viagem –, acompanhado de umas poucas pessoas mais próximas, confessou, entre um gole e outro de uísque: “Esse pessoal todo fala da minha poesia, mas nenhum deles me leu”. Ante os protestos generalizados dos que estavam à mesa, continuou, ranzinza: “Mas é isso mesmo. E, dos poucos que me leram, menos ainda entenderam o que eu quis dizer”. Se estivesse vivo, Joaquim Cardozo – outro grande poeta pernambucano – poderia dizer que encontrara pelo menos uma leitora à sua altura. Autora de O Mito e a Ciência na Poesia de Joaquim Cardozo e Joaquim Cardozo: Ensaio Biográfico, Maria da Paz Ribeiro Dantas arremata e reafirma seu trabalho em seu terceiro livro sobre o poeta, Joaquim Cardozo: Contemporâneo do Futuro (Ensol Editora, 339 páginas, R$ 27,00). O livro está dividido em três partes. Na primeira, a autora traça um desenho biográfico de certas fases na vida do poeta, partindo dessas experiências para examinar alguns aspectos de sua poesia. Na segunda, detém-se sobre aspectos formais da obra de Cardozo e, mais minuciosamente, sobre certas angulações surpreendentes do poema “Visão do Último Trem Subindo ao Céu”. Na terceira, seguindo o bom preceito de Ezra Pound, reproduz na íntegra os poemas referidos no texto crítico. Relacionando vida e obra, Maria da Paz mostra como a atividade de Cardozo, na juventude, enquanto topógrafo, ao mesmo tempo em que o colocava em contato com a natureza e os espaços livres, refletia-se na sensibilidade finíssima do poeta “como espaço interior, horizonte do olhar, gravitação em torno da liberdade como signo da vastidão, do ilimitado, associado às imagens do espaço e do movimento”. Aliás, a percepção do movimento nos poemas de Cardozo é outro bom insight de Maria da Paz. “Aí, tudo se integra numa dança: as cores, as flores e os cheiros, a saia florescendo, a mu-

lher fugindo; tudo vira um movimento de formas e cores em que quase não se distingue o ver do que é visto”. Maria da Paz assinala, ainda, que na poética cardoziana importa mais o sentido semântico da palavra que seu encantamento sonoro. Daí o interesse do poeta pela ciênCardozo, por Paulo Bruscky cia. E a utilização até do que pode parecer fórmulas matemáticas num poema. Mas, atenção. Cardozo, assinala Maria da Paz, não reduz a poesia à mera divulgadora da ciência, como o fez Lucrécio. Quando utiliza os números, faz, isto sim, uma referência à dinâmica das quatro operações, no sentido de avanço e recuo, expansão e retração do que existe. Isso, mais conceitos como espaço-tempo, teorias como a dos quanta e efeitos de vanguarda, como a narrativa descontínua e a desintegração das palavras, são recursos utilizados no poema mais complexo de Cardozo, “Viagem do Último Trem Subindo ao Céu”, conforme o demonstra com eficácia e brilho a autora. Em Cardozo, esclarece ela, a ciência serve para fornecer não apenas metáforas que permitam ao poeta exprimir o que seria inexprimível em simples palavras. Mas também para enunciar concepções que traduzam um novo sentido para as palavras. “No poema de Joaquim Cardozo, a ciência forneceu ao poeta os materiais para expor o nervo do mistério”, destaca. Toda essa complexidade de nuances pode explicar por que o escritor pernambucano tem se caracterizado mais como um poeta para poetas do que como um autor popular. Aliás, na mesma noite em que se queixava dos leitores, João Cabral reafirmava seu profundo respeito e admiração por Cardozo, ao qual dedicou vários poemas. A seleção de poemas que fecha o livro é um prazeroso demonstrativo das teses levantadas por Maria da Paz, e nos dá a chance de reler o poeta dentro de uma perspectiva mais iluminada e enriquecida. Joaquim Cardozo certamente sentiria orgulho desta sua leitora. • Continente agosto 2004


»

26 LITERATURA

O poeta mais desconhecido do Brasil Quando morreu, em Curitiba, Milton de Lima Sousa havia escrito 20 volumes inéditos em prosa e verso, mas só chegou a ser reconhecido fora do Brasil, no âmbito da América Hispânica Rodolfo Alonso, de Buenos Aires

O

convívio com o memorável e fecundo Modernismo brasileiro gerou em mim, entre outros paradigmas, a convicção de que seus integrantes – contrariamente ao que costuma acontecer em outras praias, onde florescem tantas mesquinhas concorrências literárias – criavam e conviviam num clima de exigência e de fraternidade, de devoção e de afeto, que lhes permitia, ao mesmo tempo, reconhecer-se, compartilhar e diferenciar-se. Desde meu próprio país, resultava-me fácil estender esse crédito ao caráter extrovertido e comunicativo que se adjudica, e não sem razão, ao povo brasileiro, e supor, então, que essa feliz característica ia além dos patriarcas modernistas. Continente agosto 2004

Entretanto, e seja qual for a realidade virtual desse suposto, há pelo menos um caso na literatura brasileira contemporânea que constitui a exceção à regra. Nascido em Vargem Grande do Sul (Estado de São Paulo), em 1925, e falecido em Curitiba, onde se havia radicado, em 4 de agosto de 1999, não muito depois de termos nos conhecido pessoalmente, nessa cidade, depois de uma amizade epistolar de muitas décadas, Milton de Lima Sousa gozou de um desconhecimento praticamente absoluto na sua própria terra. Diferente do que acontecia em alguns dos principais países de fala hispânica, onde não somos poucos a reconhecer sua originalidade e sua indubitável presença. Nas nossas cidades, faz um longo tempo, se dão a conhecer, quase que


LITERATURA 27 » Arquivo pessoal de Rodolfo Alonso

Milton de Souza Lima (de óculos) ao lado do poeta argentino Rodolfo Alonso

reiteradamente, traduções de seus textos. E onde foi aceito desde o começo como mais um – sem ter nunca saído do Brasil – no grupo reunido ao redor da lendária revista argentina Poesía Buenos Aires (1950-1960), que modificou de maneira definitiva o critério e a prática da poesia entre nós. Seus poucos livros: a poesia de Abecedário Interior (1947), Caos Intacto (1952), Êrmo de Pupila (1955), Ditado no Escuro (1967), e os relatos de Muro de Arrimo (1971) não foram nunca publicados por nenhuma editora, mesmo as menores, senão por conta do autor, que, inclusive, para os mais recentes, teve que recorrer a modestos sistemas de reprodução. E, no entanto, escreveu e reescreveu mais de 800 poemas, nada discursivos, ou simplesmente coloquiais. Em sua casa à rua Lindolfo da Rocha Pombo, 328, em Bacacheri, Curitiba, superando o inesgotável legado de Fernando Pessoa, deixounos mais de 20 livros, cuidadosamente acabados, em prosa e verso, “que não foram editados por questões financeiras”, como me disse sua esposa, Rebeca Stein, ao me comunicar seu falecimento. Ante minha interrogação sobre o assunto, ele me respondera sabiamente numa carta pessoal, de 10 de agosto de 1981: “Não entendes por que minha poesia não é valorizada no Brasil. Te explico. Em primeiro lugar, como sabes, vivo inteiramente apartado dos chamados meios literários, organismo fantasma que geralmente cria as reputações no país. Não freqüento os cronistas literários nem conheço as pessoas que circulam como críticos. Sou, por temperamento, mais pro-

penso a conviver com o silêncio e com a solidão. Repugname a ginástica de praça pública. Impregnado de zen, não quero nada mais do que criar minha poesia. E ainda isso me é difícil, porque estou obrigado a sair de casa para ganhar meu pão. Admiro os grandes enclaustrados, começando por Emily Dickinson, que, não tendo dito nada, disse tudo sobre a vida do poeta e da poesia. A sua lição é inesgotável”. Não obstante, Milton de Lima Sousa foi capaz de dirigir por muitos anos uma exigente revista multinacional de poesia: Narceja, sob cujo auspício também organizou e levou a cabo em São Paulo, durante abril e maio de 1961, uma importante Mostra Internacional de Poesia. Mas, ratificando com seus próprios atos o que se desprende daquelas afirmações da sua carta, fixou sua residência em um tranqüilo bairro de Curitiba, no Estado de Paraná, onde viveu voluntariamente recluso, depois de haver habitado desde 1936 a barulhenta metrópole paulista. Resulta difícil, sem dúvidas, arriscar interpretações sobre um assunto, não apenas em boa medida alheio, senão também complexo. Mas tampouco resulta fácil aceitar, pelo menos de forma exclusiva, a interpretação do próprio interessado. Mesmo que seu saudável e exemplar retraimento da malchamada vida literária – o que me consta – tenha alguma coisa a ver no assunto, intuo que possa haver ali, alguma coisa a mais, mais sugestiva, mais intensa, acaso mais reveladora. Estou me referindo à atitude mesma de Milton de Lima Sousa em relação a sua criação, à escritura árdua e funContinente agosto 2004


»

28 LITERATURA Priscila Forone

humor negro venha a aportar inesperadas derivações. Mas que esconde tanta ou maior paixão, tanta ou maior ternura, tanto ou maior lirismo. Porque em todas estas questões, como se sabe, as aparências não fazem mais do que destacar, em sentido oposto, outros conteúdos latentes, porém tão reveladores quanto. Aquilo que aparentemente se antepõe (ou se opõe) à paixão, o que se apresenta como um predomínio da razão ou da mente, pode implicar abismos muito mais profundos, iluminar realidades mais vastas, descobrir mundos mais amplos – justamente como nos ensinou o Modernismo brasileiro – que Aspecto de Curitiba, a cidade que Milton escolheu para viver e escrever sua obra o que se propõe apenas a descrevê-lo, refleti-lo ou exaltá-lo. da que foi construindo, com invejável coerência, praticaA essa radical (acaso aparente) falta de paixão, Milton mente desde o começo da sua atividade. de Lima Sousa adiciona outra distinção não menos radicuÉ um lugar-comum (discutível, como tantos outros) lar, e em certa forma complementar: a absoluta e pouco aceitar que universos, como o do Brasil, tão ricos em exube- complacente indagação sobre o seu eu, característica quase râncias visuais e sonoras, deveriam encontrar sua expressão organicamente constitutiva – digamos – do homem chamaartística legítima em cálidas expansões, em introversões ve- do moderno. E que se torna brasileiríssima desde a medula, ementes. Não ocorreu isso, porém, com o nosso autor; e o já que está desprovida da mínima carga pitoresca. Uma linfundacional Modernismo brasileiro, que soube ser autenti- guagem precisa, descarnada, de uma eficácia quase feroz, camente nacional sem deixar de ser absolutamente moderno, exigida até a desolação, transmite-nos cruamente, sem sene, portanto, contido, quando circunspecto, e até debochado timentalismo nem superficialidade alguma, aqui sim, aquilo ou mordaz, embora sempre profundo. Lembremos, de pas- que alguma vez H. A. Murena tentou adjudicar a Albersagem, que já durante a memorável Semana de Arte Moder- to Girri: “a épica de uma alma.” na de 1922, sempre em São Paulo, que deu origem ao moviPenso que o estilo de Milton de Lima Sousa é tão immento, falou-se que, de um ponto de vista mais ou menos so- portante como o homem, para explicar este evidente afastaciológico, era componente da alma brasileira. E não esqueça- mento antípoda: o desse meio com este autor, o deste autor mos tampouco a receita, áspera e pouco complacente, da poe- com esse meio. Mas não creio que a palavra de Milton de sia de João Cabral de Melo Neto, tão enxuta por fora e tão Lima Sousa seja menos importante (e necessária) para exsubstanciosa por dentro como algumas espécies vegetais do pressar o Brasil legítimo que o resto de tantos de seus ilussertão, e talvez por isso mesmo tão significativa. tres compatriotas. Pelo contrário, muitas vezes aquilo que A escrita de Milton de Lima Sousa, ricamente encarnada nós resistimos a ver é precisamente, não só o que mais nos na sua linguagem, em parte sobriamente barroca, como quer atrai, senão – no fundo, e às vezes de uma maneira inconso Modernismo, mas mesmo assim exercida fundamente para ciente – também, o que mais nos interessa, o que nos toca irradiar, e não para se espraiar, vai se mostrar claramente dife- mais de perto. • rente em certa atitude, aparentemente menos cálida, mais desapaixonada, ou talvez mais fria. À qual, a sutil virulência do Tradução de Marcelo Perez.

Continente agosto 2004


POESIA 29

Casas antigas sob um céu armorial Solitude, récif, étoile Mallarmé Rodrigo Garcia Lopes

Casas antigas sob um céu armorial Brasões celestes & pedras caiadas de sangue Caídas no tempo da hora mais inimiga. Águas sedentas entre águas, casas entre águas, Plumas de mangue, uivos de suas aéreas raízes, Pontes unindo (o que restou) a alma à lama Palafitas exibindo seus troféus de miséria entre ferocidades e o jade mar de recife: enigme ou me decifre. Onde a verbena reverbera Baque solto Em sua louca simetria De cortes e a laje alojada No ocre lacre dos tijolos. O que nos cerca é essa seca verde, lua em Braille, seus rastilhos. Som que assimila o suor.

Frio que acaricia as lâminas da tarde anunciada em seus vacilos: Ar cortando e dividindo o açúcar do ar (flor em caule) em seu canavial ouvido. O agreste não é alegre nem triste É agre para quem não sabe O doce do que existe, resiste Na voz que erige imagens Neste milagre em pleno sertão (Reste em cactos, sabres sabores) Janela para a amplidão. Ruge a rude simetria de seus verdes escarpados escapam eras e vales salivam ritmos em tua pele de céu entre sete colinas desterro de dentro, fora, deserto, sertão.

Rodrigo Garcia Lopes, escritor, tradutor, jornalista e compositor, nasceu em Londrina (PR) em 2/10/1965. Desde 2002 edita, com Marcos Losnak e Ademir Assunção, a revista de literatura e arte Coyote. Este poema foi escrito durante temporada passada pelo autor em Pernambuco.

Continente agosto 2004


»

30 MARCO

ZERO

Alberto da Cunha Melo

A dúplice usurpação “Mediocridade dourada” (aurea mediocritas) Horácio (Odes, II, 10)

N

um dos 17 volumes inéditos de Notas Alheias, um livro doido, de colagens de coisas, que li, vi na TV ou ouvi em algum lugar, em nota de 23 de junho de 1998, relatei: “A morte do cantor Leandro, da dupla sertaneja Leandro & Leonardo, ocorrida hoje, aos 10 minutos da madrugada, levou a Rede Globo de Televisão a passar o dia todo dando flashes sobre o velório. No jornal Hoje, a âncora, Sandra Anemberg, chegou a dizer: ‘Sem Leandro, o Brasil ficou sem palavras’. Isso foi dito a milhões de telespectadores. E não precisa de comentários.” Agora, volto atrás. Sim, precisa de comentários. Essas duplas melosas, muito imprecisamente chamadas de “sertanejas”, dominam, juntamente com a axé-music e o pagode, o panorama musical do Brasil, desde começos da década de 90. A mal-dita “sertaneja” é, das três usurpações do kitsch paramusical do fim do século, a que mais cheira a estrume de laboratório. Os piores xote, xaxado e baião dão de 10 a zero na melhor (se isso fosse possível) impostura de Milionário e José Rico, Zezé Di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó ou João Paulo e Daniel, para ficar apenas em alguns nomes, que nos são enfiados ouvidos a dentro no ônibus, na TV ou no toca-discos dos vizinhos. As referidas duplas tiveram seu auge de prestígio no início da década de 90, pois eram louvadas, admiradas e

Continente agosto 2004

protegidas pelo então presidente Collor que, segundo Paulo Francis, estava mais preparado para a presidência do que Luiz Inácio Lula da Silva (porque sabia inglês portuário). Mas, esteticamente, as preferências estéticomusicais de Collor e Lula coincidem, pois o atual presidente também é um entusiasta da “música sertaneja”, do Sudeste, como “Severino arrependido”, para usar aqui uma classificação do poeta Bruno Tolentino. Na festa junina realizada na Granja do Torto, em que se comemorava, também, os trinta anos de casamento de Lula e d. Marisa, o toque de “estesia” ficou por conta da dupla Zezé Di Camargo e Luciano. Ainda bem que Gilberto Gil estava por lá, na condição de ministro e, como um dos quatro grandes da música popular brasileira, deu uma canjinha à canjiquinha do chefe. Eu não sei por que aquela coisa é chamada de “música sertaneja”, melhor seria “música country”, mais condizente com os faroésticos rodeios e cowboys do Sudeste. O problema é que, talvez, os compositores country dos EUA se sentiriam justificadamente injuriados com a comparação. O kitsch paramusical que domina as gravadoras, com apoio privilegiado da grande mídia, a cada lançamento, é uma espécie de borra da Revolução Industrial: a cultura de massa (vírus tecnológico e genocídio cultural). Em um país, como diria Olavo de Carvalho, que “não tem


MARCO ZERO 31

uma política cultural, mas um orçamento cultural”, todos os abusos e distorções são possíveis. Um dos fatos mais escandalosos, mas que não teve qualquer repercussão, porque os chamados produtores culturais estão mais atentos às próprias reivindicações do que aos abusos da Lei Rouanet, de incentivo à cultura, foi promovido pela Petrobrás Distribuidora, que tirou dos impostos, a repassar, nada menos que R$3 milhões para financiar 30 shows de Roberto Carlos, quando uma enorme fila de empresários faria esse investimento sem pestanejar, e os impostos que pagamos à Petrobrás poderiam ser melhor aplicados em escolas de dança, de música, de cinema, de teatro, pelo Brasil afora. Mas, como esses investimentos subterrâneos não explodiriam com fotos nas manchetes, impatrioticamente, a empresa resolveu aplicar “onde há retorno”, como qualquer camisaria da esquina. As grandes gravadoras e os meios de comunicação de massa, neste país, prestam um enorme desserviço à nação, quando, ao invés de contribuírem para a formação de artistas e de público, principalmente do público mais desamparado, os milhões que só dispõem, como oportunidades de lazer, do rádio e da televisão, investem no que há de mais reles e medíocre, criando um círculo vicioso: acostumam o povo ao que não presta e este, cada vez mais, pede-lhes o que não presta. Este é o

círculo da idiotia cultural que, numa espécie de formação de quadrilha, os grandes das gravadoras e da mídia impõem à população brasileira, em nome da democracia e da livre manifestação do pensamento. E – por que não? – do neoliberalismo. No seu Dicionário Crítico de Sociologia, H. Boudou & Bourricaud fazem esta expressiva observação: “Até o final do século 19 e começo do século 20, o sucesso junto à burguesia equivalia à canonização; com o advento da cultura de massa, as crianças da burguesia preferem, às vezes, Asteriz à Corneille”. Fala-se em “crianças da burguesia”, lá na França. A cultura de massa no Brasil chegou um pouco mais tarde, depois da II Guerra, mas não se limitou em seu avanço demolidor a uma classe social, agiu universalmente. Sua força é tão grande que vai expulsando progressivamente as citações de poetas e ficcionistas nos livros didáticos e colocando letras de música, para ajudar as gravadoras a vender mais discos. Eu fiz, no princípio da década de 90, um levantamento estatístico sobre o assunto, e comprovei a invasão, mas, infelizmente, foi publicado incompleto na imprensa do Recife. Pergunto agora a vocês, caros milhões de leitores: Vale a pena, um poeta liso lutar contra tudo isso? Ou seria melhor pegar seu iate invisível e ir pescar um marlim azul no mar-oceano? •

Continente agosto 2004


Anúncio


Anúncio


» Divulgação/Editora Jorge Zahar

34 CONVERSA


CONVERSA 35 » Historiador Peter Burke analisa o fenômeno do efêmero, rejeita qualquer simplificação sobre a cultura global e acha cedo para se medir a extensão da “ciber-revolução” Luciano Trigo

PETER BURKE

Reprodução

Mundo mutante

A

história dos meios de comunicação, dos primórdios até o século 20, já foi tema de diversos livros, mas é raro encontrar uma obra tão concisa e fluente como História Social da Mídia: de Gutenberg à Internet, de Peter Burke e Asa Briggs, recém-lançado pela Jorge Zahar Editor. Professor de História da Cultura na Universidade de Cambridge, Burke analisa os meios de comunicação, destacando os contextos sociais e culturais em que eles surgiram e se desenvolveram, além de traçar a história das diferentes mídias e das novas linguagens que elas criaram para a civilização ocidental – da invenção da prensa gráfica até a criação da Internet. Burke avalia os estudos dos meios de comunicação, da retórica ao ciberespaço, analisando a história da Europa no período que antecedeu a era moderna – da difusão da imprensa até as Revoluções Francesa e Inglesa. Nesta entrevista, o historiador inglês comenta aspectos do livro e revela detalhes da pesquisa que está fazendo sobre Gilberto Freyre.

Wood Type, a primeira fonte móvel criada por Gutenberg

O senhor já disse que pretende escrever uma grande História Social do Silêncio na Europa. Fale sobre isso. Eu gosto da idéia de que o silêncio tem uma História, e na verdade achei muito fácil escrever um pequeno ensaio introdutório sobre o tema, que despertou bastante interesse. Eu gostaria de investigar o problema mais a fundo, um dia, mas no momento tenho outros projetos no caminho. De qualquer forma, não estou certo de que quero escrever um livro extenso. Meu papel na vida acadêmica parece ser o de escrever pequenos livros sobre grandes temas, e acho que vou continuar assim. Como historiador, como o senhor analisa o fenômeno da globalização e do crescente hibridismo cultural no mundo? As culturas se misturam e hibridizam há muito tempo. O que é novo, é a velocidade do processo de hibridização, e o fato de que ela está acontecendo numa escala global. Ou seja, está ocorrendo um Continente agosto 2004


»

36 CONVERSA

único e grande processo, em vez dos vários processos pequenos, como acontecia na Espanha medieval, na Escandinávia etc. O que é certo, é que a globalização cultural sucede claramente a globalização econômica. Mas é interessante observar que a influência não segue uma via de mão única, por exemplo, dos Estados Unidos para a Itália ou o Brasil. Ela também faz o percurso inverso, como no caso da moda italiana, da música brasileira etc. E também existe a questão da adaptação local. Mesmo no famoso exemplo da Coca-Cola, segundo uma análise do antropólogo inglês Daniel Miller, o produto muda de significado, dependendo do contexto cultural. Da mesma forma, o seriado americano Dallas era compreendido de maneiras diferentes em lugares diferentes, como Israel ou as Ilhas Fiji. Então, eu rejeito qualquer simplificação em relação à homogeneização da cultura global. Ao longo da História, as mídias tiveram um desenvolvimento linear? Não acredito na evolução linear da mídia, da mesma forma que não acredito numa evolução linear da cultura. Quero dizer, eu penso que as mudanças culturais são, normalmente, mais aditivas do que substitutivas. Mesmo no caso de transformações tecnológicas, por exemplo, a passagem da luz de velas para a iluminação a gás, e depois para a luz elétrica, diferentes tecnologias coexistiram por um longo período, mesmo que a eletricidade tenha se tornado dominante, graças àquilo que os sociólogos chamam de “inércia cultural”. Gastou-se tempo e dinheiro para levar a eletricidade ao mundo, e acredito que na maior parte do Nordeste do Brasil essa mudança foi bastante tardia. No caso da mídia, minha tese é que as novas mídias não eliminam as velhas, mesmo quando elas competem entre si, porque mídias diferentes têm diferentes funções, e existe uma espécie de divisão do trabalho entre elas. É bastante óbvio que, quando a escrita foi inventada, as pessoas não pararam de falar, e quando a imprensa foi inventada, não se deixou de escrever à mão. Hoje em dia, pelo menos na Inglaterra, é comum que uma mesma pessoa ouça rádio numa determinada hora do dia, passe para a televisão em outra hora, e durante a semana vá ao cinema e ao teatro. Marshall McLuhan dizia que houve três revoluções tecnológicas: a invenção do alfabeto fonético, a invenção dos tipos móveis e a invenção do telégrafo. Estaríamos no meio de uma Reprodução AE nova revolução? Seriado americano Dallas: compreensão diferente em Israel ou Ilhas Fiji

Continente agosto 2004


CONVERSA 37 Acredito que existem duas maneiras de se interpretar o que chamamos, por conveniência, de “ciber-revolução”. A primeira é considerá-la uma verdadeira revolução, que marca o início de uma nova era, que chamamos, por conveniência, de “pós-modernidade”. A segunda é entendê-la como uma combinação da revolução eletrônica, que passou por diversos estágios desde 1844. Então, não deveríamos chamar a era que estamos vivendo de pós-modernidade, mas, sim, como os franceses dizem, de surmodernité – supermodernidade, se você gosta dela, ou sobremodernidade, se você a odeia. Como historiador, eu acredito que levará alguns anos, ou mesmo décadas, até termos certeza de que se trata de uma etapa realmente nova, de forma que eu ainda não decidi qual das duas interpretações é a mais plausível. A tarefa do historiador está mudando, na idade do efêmero em que vivemos? A importância crescente do efêmero certamente representa um desafio para os historiadores, porque estes precisam de fontes que sobrevivam por um longo período. A substituição de cartas particulares por chamadas telefônicas e e-mails é um desastre para nós, embora o gravador, por outro lado, nos ajude. Também os museus estão reagindo a esta nova situação, guardando amostras de garrafas de leite, por exemplo, e outros objetos do cotidiano, imaginados como triviais demais para merecerem atenção, mas que hoje são vistos como parte da história da vida cotidiana. Se são efêmeros, são também bastante reveladores sobre a nossa cultura, por estarem sujeitos a mudanças ao longo dos anos e das décadas. Eu não penso que a tarefa principal do historiador, que é compreender e interpretar culturas do passado, esteja mudando, mas, sim, as maneiras pela qual essa tarefa se cumpre. Especialmente, no caso da História contemporânea. Como o papel das bibliotecas e dos museus será alterado pela Internet? Não estou seguro de que a Internet modificará de forma fundamental o papel das bibliotecas e dos museus. É claro que é possível ler livros e ver quadros on-line, mas é muito mais fácil ler um livro, se você o tem nas mãos, e imprimir um livro on-line é muito caro. Uma foto de um quadro ou escultura não é a mesma coisa que o original. Então, eu não acredito que as pessoas simplesmente ficarão em casa. Talvez elas passem a ir às bibliotecas e museus com menos freqüência, mas, em compensação, mais preparadas, sabendo o que querem ver. O senhor está fazendo um livro sobre Gilberto Freyre. Fale sobre isso. Estou escrevendo um livro sobre Gilberto Freyre, junto com minha mulher. Trata-se de um estudo geral, que tem como objetivo principal tornar a obra de Freyre mais conhecida fora do círculo de estudiosos da América Latina. Não vamos falar apenas sobre Casa-Grande & Senzala, mas tentar compreender a obra de Freyre em seu conjunto. Como historiador, eu admiro Freyre há muito tempo. Eu descobri sua obra nas notas de rodapé do livro de Braudel sobre o Mediterrâneo. Eu já tinha lido parte dela, quando Freyre foi fazer uma conferência na Universidade de Sussex, acho que em 1966. Meu interesse por Freyre tem a ver com meu interesse por Braudel e a escola de historiadores franceses dos Annales, isto é, com meu interesse por uma visão ampla da História, vista por cima e por baixo, abordando a vida cotidiana, mas também as instituições formais, e procurando entender as mudanças culturais de longa duração, mas também os acontecimentos dramáticos. •

seriado dallas

Sebastião Lucena

“Meu interesse por Freyre tem a ver com meu interesse por Braudel e a escola de historiadores franceses dos Annales, isto é, com meu interesse por uma visão ampla da História”

Continente agosto 2004


»

38 FOTOGRAFIA

Movimento ritmado em luz e sombra Ensaio flagra a brilhante plasticidade da dança em suas variadas formas e modalidades Fotos de Paloma Granjeiro

A Cia. de Dança Edson Nunes encena a sensualidade do tango argentino,, Florianópolis – SC


FOTOGRAFIA 39 »

D

ança, língua e voz do corpo, desde os primórdios da humanidade. Celebrando a fertilidade da terra ou a ferocidade das batalhas, o homem primitivo já elaborava num conjunto de sons, ritmos e movimentos uma expressão simbólica e transcendente. Uma linguagem em que o corpo que gira, o pé que bate no chão, as mãos que sobem para o céu estabelecem uma simbiose do homem com a vida que nasce e o sangue que jorra. Em Pernambuco, terra de rica diversidade cultural, a dança tem inúmeros caminhos. Dos folguedos populares aos ritos folclóricos, do balé clássico à dança experimental, nossos bailarinos têm percorrido toda a gama de possibilidades do movimento ritmado. A música erudita, os ritmos da moda, a tradição do afoxé, do coco, do bumba-meu-boi, do maracatu e do frevo, entre outros, servem de suporte para um rico leque de manifestações do que é belo. Com a experiência de quem já pisou o palco como bailarina, a fotógrafa Paloma Granjeiro assina o ensaio Dança – O Espetáculo, em que flagra a brilhante plasticidade da dança em suas variadas formas: a simetria do casal no salão, o vôo das moças transformadas em pássaros, a sincronia do pas de deux, o giro ondulante das bailarinas, o vigor das etnias no rito tribal. Em todas estas manifestações, em todos estes momentos, entre luz e sombras emergem o músculo e a pele, a forma e a textura, a beleza e a força do corpo humano em movimento. •

Quincunce – espetáculo de dança contemporânea do Grupo Experimental, Recife – PE

Continente agosto 2004


Leveza e precisão no pas de deux de Duda Brás e Flávio Salamanca, Recife – PE

A foto flagra a brilhante plasticidade da dança na simetria do casal no salão, no vôo das moças transformadas em pássaros, na sincronia do pas de deux, no giro ondulante das bailarinas, no vigor das etnias no rito tribal

Continente agosto 2004


FOTOGRAFIA 41 »

O tradicional balé da Academia Neuma Guerra, Recife – PE

Cia. Municipal de Dança de Caxias do Sul: dança e teatro num espetáculo comovente, Caxias do Sul – RS

Continente agosto 2004


»

42 FOTOGRAFIA

A dança africana representada pelo

Entre luz e sombras, movimento e ritmo, emergem o músculo e a pele, a forma e a textura, a beleza e a força do corpo humano que se expressa para além das palavras, pura imagem

Jayme Arôxa e Bianca Gonzalez: referência na dança de salão brasileira, Recife – PE

A técnica apurada do pas de deux de Flávia Garcia e Guilherme de Oliveira, São Paulo – SP

Continente agosto 2004


Zen Cia. de Dança: representante da dança contemporânea, Recife – PE


»

44 TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Foto e Pintura – verdades diversas Um retrato pintado é uma imagem produzida pelas mãos do pintor, enquanto a foto de uma pessoa é a sua imagem transposta para o papel

N

osso conhecimento da relação entre a fotografia e a pintura limitava-se, até bem pouco tempo, à influência exercida pela nova técnica de reprodução da realidade objetiva e a pintura de meados do século 19, inclusive, a impressionista. Acredita-se mesmo que a fotografia, por sua capacidade de captar com inteira fidelidade a imagem das coisas, determinou o abandono, pelos pintores, da intenção de copiar as formas do mundo externo. O retrato pintado, então, sofreu drástica mudança, uma vez que a preocupação com a fidelidade fisionômica deu lugar a uma maior liberdade de abordagem e execução da imagem retratada, que ganhou em inventividade e expressão o que perdera em cópia fiel. Se não se pode garantir ter sido a fotografia o fator decisivo da ruptura com a linguagem pictórica do passado, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que ela estimulou e ofereceu argumentos aos impressionistas, fauvistas, cubistas e expressionistas para seguirem na busca de uma pintura mais autônoma com respeito à natureza e, por isso mesmo, mais criativa. Em linhas gerais, essas eram as relações conhecidas entre a fotografia e a pintura. No entanto, em 2001, David Hockney publicou um livro intitulado O Conhecimento Secreto, onde procurou demonstrar que esta relação é muito anterior, vem de séculos antes da invenção da fotografia, numa época em que se tentava captar as imagens do mundo externo com o recurso de lentes. Hockney deContinente agosto 2004

monstrou em seu livro que grandes mestres, como Caravaggio e Velázquez, valeram-se de tais meios para pintar seus quadros, o que provocou a reação de alguns estudiosos da arte, para quem tais revelações eram verdadeiras heresias. A verdade, porém, é que as afirmações de Hockney estão baseadas em documentos, estudos e experimentos que lhe dão credibilidade. Tudo começou, quando ele – que também é pintor – visitou uma exposição de pequenos retratos feitos por Ingres e percebeu que alguns desenhos possuíam uma misteriosa precisão, difícil de obter em desenhos feitos a olho nu. Após dois anos de estudos e análises, descobriu que muitos artistas ocidentais, efetivamente, utilizaram recursos óticos – espelhos e lentes – para criar projeções fiéis dos objetos. Eles se valiam dessas imagens, projetadas diretamente sobre o papel ou a tela, para produzir desenhos e pinturas fiéis à imagem natural. Para comprovar suas suspeitas, de que Ingres se valera de uma “câmara lúcida”, recém-inventada, para fazer seus desenhos, decidiu realizar uma experiência com esse instrumento. Esta experiência mostrou-lhe que a iluminação intensa, possibilitada pela câmara, cria sombras profundas, semelhantes às que identificara em obras de Caravaggio e Velázquez. Esta descoberta levantou polêmica, tendo alguns estudiosos da arte visto nela o propósito de negar o gênio artístico inato daqueles pintores. Mas não foi este o pro-


TRADUZIR-SE 45

foto era uma montagem, conseguida graças à técnica digital. Hockney afirmou que esta falsificação assinalava o definitivo descrédito da fotografia como registro documental da realidade. Tal afirmação pode ser exagerada, mas ela se baseia num fator importante que constitui a própria essência da fotografia. Certamente não se podem ignorar as fotomontagens criadas pelos dadaístas e surrealistas, cujo objetivo era, precisamente, superar o caráter naturalista da fotografia. Mas isto nada tem a ver com a falsificação que, pelo contrário, usa o prestígio da fotografia, como registro autêntico do real, para produzir um falso documento e burlar a boa-fé do espectador. Os dadaístas e surrealistas, em suas fotomontagens, inventavam uma imagem subversiva do real, buscavam tirar o espectador da atitude convencional e acomodada, ao submetê-lo ao choque do insólito. Quando digo que a autenticidade é a essência da fotografia, nada mais faço que me ater ao que a fez nascer e a consagrou como um novo instrumento de apreensão da realidade: a possibilidade de transferir para o papel a imagem verdadeira do mundo material. Um retrato pintado, por mais fiel que seja ao modelo, é uma imagem produzida pelas mãos do pintor, enquanto a foto de uma pessoa é a própria imagem da pessoa transposta para o papel, através de um processo que imita o sistema ótico humano. Walter Benjamim, num célebre ensaio, intitulado Pequena História da Fotografia, observa que um retrato pintado torna-se, com o passar do tempo, não mais retrato de alguém e, sim, a obra do pintor: passa a falar apenas dele, autor, e não mais da pessoa por ele retratada. O contrário acontece com a fotografia, já que a imagem das pessoas, ali fixada, guarda a expressão fisionômica de cada uma delas, no instante em que a foto foi batida, seus gestos, seu sorriso, a pose, seu olhar; não fala, portanto, do fotógrafo e, sim, das pessoas fotografadas. Esta verdade só a fotografia é capaz de nos oferecer e é ela que a técnica diFamosa foto da capa do Jornal da Tarde, quando o Brasil foi desclassificado, na Copa do gital ameaça. • Mundo de 1982: a fotografia diz mais das pessoas fotografadas do que do fotógrafo

Reginaldo Manente/AE

pósito de Hockney, para quem as projeções óticas, de seiscentos anos atrás, na verdade, facultaram ao pintor um modo de observar e representar o mundo material. Ao escrever, três anos atrás, sobre o livro de Hockney, observei que suas descobertas não vão além de possibilitar uma releitura da pintura figurativa, anterior ao Impressionismo, uma vez que o valor artístico da obra pictórica figurativa não está na maior ou menor fidelidade fotográfica às imagens do mundo real. Mas é o próprio Hockney que, agora, abre a discussão sobre a própria fotografia em sua relação com a realidade objetiva, hoje, em face dos novos recursos da câmara digital. A discussão foi deflagrada por uma fotografia falsificada, que um jornal inglês publicou com estardalhaço, apresentando-a como prova de torturas praticadas por soldados ingleses no Iraque. A

Continente agosto 2004


»

46

CINEMA Com seu filme Fahrenheit 11 de Setembro, Michael Moore quebra os padrões hollywoodianos e entra para a história com a primeira obra de não-ficção a cruzar a barreira dos U$100 milhões arrecadados nas bilheterias Kleber Mendonça Filho

Golpes violentos contra a guerra

M

ichael Moore levou a Palma de Ouro no último Festival de Cannes, em maio, pela cause célèbre Fahrenheit 11 de Setembro (Fahrenheit 9/11, EUA, 2004), apenas dois anos depois de Tiros em Columbine (Bowling For Columbine, 2002) sair premiado do mesmo festival. Se, no primeiro, Moore ensaiava golpes violentos contra a administração de George W. Bush, questionando o amor do povo americano por armas de fogo e como isso refletiria o posicionamento dos EUA no mundo, desta vez o documentarista e show man da verdade aplica sua verve num comentário demolidor que objetiva claramente evitar que Bush seja “re”-eleito. O “re”, entre aspas, vem do próprio Moore, que faz questão de frisar, nos primeiros minutos do filme, que George W. nunca foi, de fato, eleito na problemática eleição de 2000. A discutida Palma em Cannes (arte? cinema? política?) foi o empurrão inicial para esse fenômeno de mídia, debate e dinheiro que é Fahrenheit 11 de Setembro. Na verdade, é a segunda vez, em seis meses, que um filme desenvolvido fora do padrão “Hollywood” monopoliza as conversas e gera o tipo de publicidade que verba alguma é capaz de garantir. Se A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, foi o filme “reaça” e fundamentalista cristão que levou milhões aos cinemas, Fahrenheit 11 de Setembro é o agitador de esquerda que, agora, faz o mesmo tipo de barulho não exatamente religioso, mas político e financeiro, nos cinemas. No final de junho, o filme de Moore ganhou lançamento de arrasa-quarteirão nos EUA, algo inédito para o gênero documentário. Também entrou para a história como a primeira obra de não-ficção a cruzar a barreira dos U$100 milhões arrecadados nas bilheterias. Para se ter uma idéia do alcance popular de Moore, o recordista anterior era o seu próprio Tiros em Columbine, com U$ 21 milhões ao longo de toda a carreira, quantia conquistada já no primeiro final de semana do lançamento de Fahrenheit. Isso para uma obra que, mesmo depois de Cannes, não tinha distribuidor oficial, uma vez que a Miramax, dona do filme, foi proibida pela sua empresa-mãe, a Walt Disney Company, de trabalhar com o documentário por causa do teor político-explosivo do mesmo. A Paixão de Mel Gibson também passou por situação semelhante, uma vez que nenhum estúdio hollywoodiano quis saber do filme pelo seu conteúdo religioso. A ascensão de Moore nos últimos dois anos está diretamente relacionada à não menos controvertida administração de George W Bush. Num EUA confuso e inseguro do pós-11 de Setembro, Moore assumiu o papel de crítico principal da nação, misto de bobo da corte com carrasco oficial de

Continente agosto 2004


Rune Hellestad/Corbis

Moore fez uma mistura explosiva de documentário, marketing e provocação


48 CINEMA

“O que me deprime na figura de Tony Blair é que ele é inteligente e deveria saber o que está fazendo. Qual é a dele de ficar na conversa mole com um cara como Bush? Nunca entendi isso. É o casal mais estranho que já vi em toda minha vida”

Divulgação / W11 Editores

»

Bush, e tem ao seu favor habilidade incomum na manipulação e sugestão de imagens. Para Quentin Tarantino, presidente do júri, em Cannes, que deu a Moore sua Palma de Ouro, um filme como Fahrenheit 11 de Setembro não deve ser visto como um documentário, mas como um “ensaio cinematográfico do burlesco”. Montado didaticamente como um passeio de duas horas pelos últimos quatro anos da história dos EUA, Moore nos diz indiretamente, com o seu filme, que a imagem televisiva parece ter perdido por completo a sua credibilidade. Isso porque seu filme, planejado e produzido para as salas de cinema, é, ironicamente, em grande parte, composto por imagens televisivas, arrumadas por alguém que tem uma voz e ponto de vista dos mais pessoais. No todo, as imagens canibalizadas da TV são mastigadas para um espectador que, através e por causa da imponência do cinema como meio, imagem e experiência coletiva, ganham um novo sentido, um novo respeito. Mais estranho ainda é perceber que Fahrenheit 11 de Setembro promove uma espécie de volta emergencial – para a causa antiBush – do antigo modelo “cine-jornal”, onde as salas de cinema exibiam as notícias, antes da chegada da TV. Hoje, a telenotícia é onipresente e, talvez por isso, um cinejornal como Fahrenheit 11 de Setembro atraia tanta atenção. Oferece a versão resumida (mas parcial, apaixonadamente política, diga-se de passagem) de todo o gigantesco fluxo midiático que parece entupir o mundo. Não deixa de ser curioso que o filme, nos EUA, tenha recebido classificação etária “17 anos”, segundo o órgão responsável (Motion Picture Association of America), “por imagens violentas e perturbadoras”. Isso nos leva a crer que a guerra vista na CNN teria “censura livre”, e essa talvez seja a questão mais forte e cristalina do filme. Para muitos americanos, ver a Guerra no Iraque diferente, mais sangrenta e sem controle editorial antipânico, deverá mesmo ser um choque, e está sendo, serviço de inegável utilidade pública prestado pelo filme. Sobre Moore, como cineasta, ele parece evoluir em alguns sentidos, e insistir na sua militância em outros. Mostra maturidade numa seqüência inteligente, que respeita a idéia de uma overdose imagética que todos nós já tivemos, dos choques dos aviões nas torres do World Trade Center. O resultado é cinema de qualidade. Ele também não mente, quando afirma que Bush ficou com as melhores falas. A utilização desse material tem o escárnio inspirado de um Chaplin, destruindo a arrogância de Hitler, em O Grande Ditador. A seqüência onde Bush não reage, durante sete minutos, ao saber dos aviões em Nova York, no 11 de setembro, é a imagem do ser humano no seu momento mais patético. Se o filme chega a assustar pela militância, é porque, mais uma vez, em se tratando de uma produção feita, essencialmente, para os norte-americanos, o mundo assiste de penetra. Moore tenta comunicar seu ponto de vista e, como um bom político do alto do palanque, ele apela para o sentimental, usando o sentimento de perda de uma mãe, cujo filho soldado morreu no Iraque. E usa essa senhora durante um bom tempo, esclarecendo que o objetivo é mesmo a catequese, um cinema político que acredita poder mudar o mundo. •


“Acho importante poder rir em tempos como esses”

O diretor quer fazer filmes que façam rir e chorar, mas que também estimulem o pensamento

Michael Moore diz que sua intenção é expressar algo de relevante sobre a época na qual vivemos e também se divertir ao longo do processo

C

uriosamente, em Cannes, a entrada de Michael Moore na sala onde são realizadas as coletivas de imprensa, logo após a primeira exibição do filme no festival, foi tímida, tensa. Moore, que tem o porte de um urso, com quase um metro e noventa em pé, estava algo de cabisbaixo, ciente de que, pela primeira vez no mundo, seu filme acabara de ser visto. Talvez esperasse ataques dos cerca de 200 jornalistas internacionais que lotaram a sala para uma sabatina midiática. Ao longo de pouco mais de uma hora, Moore foi se abrindo, ao perceber que a resposta não era, no geral, brutal ou mesmo negativa. De qualquer maneira, Moore não concedeu entrevistas individuais depois dali, limitando-se a falar nessa instituição que é a coletiva de imprensa do Festival Internacional de Cannes.

O filme deseja claramente fazer uma diferença em relação ao resultado da próxima eleição americana. Até que ponto um filme tem esse tipo de poder? Faço filmes que eu mesmo gostaria de ir ver numa sexta à noite, essa é a minha preocupação. Fazer um filme que faça rir, chorar, enquanto as pessoas comem pipoca, depois, estimular o pensamento e, quem sabe, uma hora, um dia depois, o espectador estar, ainda, discutindo o filme. Minha inten-

ção é expressar algo de relevante sobre a época na qual vivemos e me divertir ao longo do processo. Acho também importante poder rir em tempos como esses. Meus filmes são sempre assim, com a diferença que, desta vez, eu sou o sério e Bush terminou ficando com as melhores piadas, escritas por ele mesmo. Não sei o que vou fazer, quando ele entrar com uma ação no sindicato dos roteiristas, exigindo crédito de tela. Sobre o poder do filme, espero que o espectador apenas saia do filme com mais informações para ser e agir como um bom cidadão, seja lá o que isso significa. Mas, sim, meu interesse é que o filme seja lançado o mais rápido possível, afinal de contas, não se lança filme de Natal em maio, não é mesmo? O filme parece funcionar mais pelo efeito acumulado do que vemos, do que exatamente pelas imagens, que não chamam a atenção pelo ineditismo. O que o senhor considera novidade? Há muita coisa nova no filme, e creio que será o aspecto mais chocante para a maior parte dos americanos. O histórico do serviço militar de Bush, por exemplo, que eu trouxe comigo aqui (Moore mostra uma folha de papel à platéia), em cópia, para quem quiser ver, mostrando como Bush Continente agosto 2004

Kleber Mendonça Filho

ENTREVISTA


»

50 CINEMA Divulgação/Europa Filmes

alterou informações. Creio que não ouvimos, antes, soldados americanos, no Iraque, falando da maneira que falam no filme, desiludidos e desesperados com o que está acontecendo, isso não passa no noticiário da noite. Uma coisa sobre o povo americano é o fato de que, ao obterem a informação adequada, toma a iniciativa. A parte mais difícil é arranjar a informação. Se os nossos jornalistas que foram ao Iraque, com os poucos recursos que tínhamos ao nosso dispor, conseguiram material como o mostrado no filme, eu imagino o tipo de coisa que as redes de TV não registram diariamente, e que preferem não exibir. O povo americano não gosta de que a verdade seja escondida, e meu filme levanta a cortina para que todos vejam o que está acontecendo. Eu quero chocar e quero que a resposta, seja lá qual for, esteja à altura. Por que o senhor acredita que as redes de TV americanas preferem não exibir material como o que pode ser visto no seu filme? Você precisa colocar essa questão para a NBC, ABC, CBS, CNN, Fox e MSNBC. Tony Blair saiu praticamente ileso do filme. Sim, Blair saiu ileso pelo fato de eu ser um americano que tenta corrigir um problema que está na Casa Branca, e não no no. 10 da Downing Street. De qualquer forma, o que me Cartaz do filme Fahrenheit 11 de Setembro. A intenção é impedir que Bush seja reeleito deprime na figura de Tony Blair é que ele é inteligente, e deveria saber o que está fazendo. O presidente Bush referiu-sse aos soldados flagrados Qual é a dele de ficar na conversa mole com um cara como Bush? Nunca entendi isso. É o casal mais estranho que já vi torturando prisioneiros iraquianos como “fracos de caráter”. Que tipo de fraqueza de caráter o senhor identifica no em toda minha vida. presidente Bush? É mais um exemplo de o quanto as tropas estão ao reNo filme, há uma acusação de que negros de baixa renda são os primeiros a serem recrutados para o lento. Bush e seu governo desprezam os soldados, que se serviço militar nos EUA. Como fará para que essa ofereceram para servir e proteger nosso país. Eles estão danclasse desprivilegiada tenha acesso a Fahrenheit 11 de do suas vidas para uma guerra inspirada pela mentira, é a pior violação de confiança possível. Bush, ao dizer isso, reSetembro? Meus filmes são geralmente exibidos em multí- vela-se totalmente contra as tropas americanas. Fracos de plices, shopping centers, e não em cinemas de arte. O caráter são ele mesmo, Dick Chaney e Donald Rumsfeld, e filme chega ao povo e espero que o povo vá vê-lo. Fi- vemos que o peixe apodrece da cabeça até embaixo. Como zeram uma pesquisa durante o lançamento de Tiros está no filme, comportamento imoral resulta em comportaem Columbine, e 70% dos que foram ver o filme afir- mento mais imoral ainda. É agradecer por esse governo ter maram que nunca tinham visto um documentário, an- sido pego no ato, relativamente cedo, se lembramos do Vietnã, que levou anos para que a mentira viesse à tona. tes, no cinema. Continente agosto 2004


CINEMA 51 » Qual o balanço que o senhor faz dessa cultura do medo que seus filmes têm enfocado nos EUA? Tiros em Columbine já falava sobre a cultura do medo num nível pessoal, onde as pessoas são manipuladas por imagens na TV que as levam a ter medo, e a ter armas de fogo em casa. Em Fahrenheit, eu tentei enfocar um medo maior, que o poder cria para melhor controlar toda uma sociedade, desviando a atenção para os temas realmente importantes, e que não estão sendo tratados. Dessa forma, teria sido impossível, para a administração Bush, promover a guerra no Iraque sem que, antes, se aterrorizasse a sociedade americana ao associar Saddam Hussein ao 11 de Setembro. Nesse sentido, eles saíram-se muito bem, com pesquisas apontando que mais de 70% do povo americano acreditava numa ligação entre o Al-Qaeda e Saddam Hussein. Eu queria mostrar o outro lado da manipulação do alerta vermelho, laranja, de várias cores, isso e aquilo, nos levando a crer que poderíamos ser atacados a qualquer hora e lugar, algo que George Orwell, em 1984, sugeriu brilhantemente. Para Orwell, o líder precisa deixar o povo num estado constante de medo, convencendo-o de que o preço pela proteção é o medo. Não me entendam errado, esse mundo é perigoso, sempre foi. Teremos ameaças no futuro, mas apenas acho importante que os EUA precisam se acalmar e entender que a liberdade não precisa ser suprimida.

Sim, e sei que a Icon foi pressionada pela Casa Branca para que saísse do projeto. A Icon distribuiu Tiros em Columbine na Austrália e na Nova Zelândia, onde o filme arrecadou o que seria o equivalente a U$72 milhões, se fosse um lançamento – per capita – nos EUA. Nosso relacionamento era dos melhores, e eles se interessaram por Fahrenheit 11 de Setembro. Fechamos negócio, chamamos os advogados, uma matéria enorme saiu na revista Variety, fizemos festa e demos início à produção. Eles estavam animadíssimos. Durante este processo, eu cheguei a perguntar: “Mel está sabendo disso?”, resposta: “Ah, Mel está na Itália, fazendo um filme aí, parece que sobre... ermm... Jesus”. De qualquer forma, era uma quantidade pequena de dinheiro para a Icon, mesmo assim, não sei, Mel é o chefe... Estávamos fazendo o filme, de repente, não estávamos mais fazendo o filme! Bruce Davidson, sócio de Mel Gibson, na Icon, liga para o meu empresário e diz: “Você tem que me ajudar, precisamos sair do acordo e cancelar o contrato”. Como vê a censura da Disney em relação ao seu filme? A Disney não censurou o filme, eles apenas preferiram não distribuí-lo. Seria censura se estivessem distribuindo o filme e cortes fossem feitos para satisfazê-los.

Divulgação/Europa Filmes

Nesse filme, sua presença na frente da câmera é bem menor. Foi uma tentativa de abrir espaço para a verdadeira É verdade que a produtora Icon (de A Paixão de Cristo), estrela do filme, George W. Bush, ou seria uma mudança de Mel Gibson, pediu para sair do projeto semanas depois de estilo no seu cinema? de dar o sinal verde para a produção? Correto. Nesse caso, o material era forte o suficiente e

Moore acha que o povo americano não gosta de que a verdade seja escondida: “Quero chocar e quero a resposta, seja lá qual for” Continente agosto 2004


Divulgação/Europa Filmes

52 CINEMA

não precisava de auxílio. Às vezes, acho-me demais, e aqui, certamente, seria demais. De qualquer maneira, minha voz está lá, minha visão e senso de humor. Há uma teoria sobre a Guerra no Iraque que aponta para os americanos como “heróis acidentais”, pois, mesmo indo à guerra pelos motivos errados, eles, de qualquer maneira, livraram os iraquianos de Saddam Hussein. A história irá julgar se, no final, foi positivo. A questão é que, liberdade para um povo precisa ser algo orgânico. No nosso caso, e no caso dos franceses, a liberdade foi obtida via revolução; na África do Sul, através de boicotes e de um sentido internacional de vergonha; ou pela não-violência, como foi o caso de Gandhi; ou, ainda, como os canadenses, que esperaram pacientemente até os colonialistas irem embora. Os iraquianos não imploraram para que os americanos agissem, e quando agiram, foi uma ação desorganizada, míope, sem refletir sobre as conseqüências, ou como sair dela. O senhor teme pela sua vida? Você sabe de algo que eu não estou sabendo? Deveria ter medo? Todos nós vimos no filme a reação de Bush ao saber que os EUA estavam sob ataque no 11 de setembro. Qual teria sido a sua reação? Não sei, mas talvez soubesse responder o que teria feito no dia 10 de setembro, ou 10 de agosto, ou em julho. Os EUA tinham, na época, um presidente que estava dormindo na direção. Para um presidente que estava no governo há nove meses, talvez uma reunião sobre ameaça terrorista, quem sabe duas, fosse saudável. Como o senhor achou as imagens inéditas de Bush na escola lendo o livro infantil, depois de saber dos aviões?

Bush lendo o livro infantil Meu Cabrito de Estimação, logo após saber do ataque às Torres Gêmeas

Que fique registrado: Bush estava lendo My Pet Goat (Meu Cabrito de Estimação). Nós ligamos para a escola e perguntamos se alguém tinha registrado a visita do presidente. Eles ficaram surpresos pelo fato de que ninguém tinha pensado nisso antes. Deram-nos a fita. O senhor acredita que, mesmo Bush sendo anti-aaborto, estimulando o fundamentalismo cristão etc., metade do país ainda votaria nele? Parece-me que, não importa o quê, os EUA são um país 50-50, com oito ou 10% em cima do muro. O problema é que a esquerda americana vota menos que a direita, que está, às seis da manhã, esperando na fila, cada um trazendo 10 pessoas. A esquerda ainda está acordada, às seis da manhã, depois de virar a noite. No dia dois de novembro, veremos quem vai sair para votar. Fiz esse filme para ser visto como um filme, que teria sido útil ano passado, que será útil ano que vem, e também este ano. Não é necessariamente um filme sobre Bush, ou para as eleições de 2004, pois lida com assuntos importantes que não irão sumir, magicamente, dentro do período de um ano. Não sou membro do partido democrata e não tenho interesse especial em eleger os democratas, mas tenho interesse de questionar o que está acontecendo. •


53

Anuncio

Continente junho 2003

Âť


»

54 SABORES

PERNAMBUCANOS

Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Leo Caldas/Titular

Mangaba e graviola “Estou com a pele rosada de quem esteve no Sol, ou pelo menos em Pernambuco, e uma expressão no rosto que, dizem, só tem quem provou picolé de mangaba” Luis Fernando Veríssimo (“Ao Mar”)

N

o primeiro dia Deus criou a luz e as trevas. No segundo o céu. No terceiro mares e terras, provendo estas terras de flores e frutos. No quarto o sol, a lua e as estrelas. No quinto aves e todos os animais que habitariam os mares. No sexto, afinal, os outros seres vivos. Entre estes o homem, para que reinasse “sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra” – Gênese, 26. Mas, segundo versões não autorizadas, teria ficado levemente desgostoso com sua “imagem e semelhança”. Talvez Continente agosto 2004

porque, ao criar o homem, já houvesse então consumido quase todas as suas esperanças. Em compensação, estava orgulhoso com algumas crias – entre elas, sobretudo mangaba e graviola. Frutas diferentes na forma, no cultivo e no gosto. Mas semelhantes na excelência dos sabores. Literalmente, própria dos deuses. Mangaba (Hanconia Speciosa) é daqui mesmo, das praias do Norte e do Nordeste brasileiro. Os índios a chamavam “ma’ngawa” (fruta boa de comer). Logo caíram no gosto do colonizador português. São muitos os registros desses primeiros tempos. Fernão Cardim, reitor do colégio jesuíta da Bahia, dizia “jamais farta-


SABORES PERNAMBUCANOS 55 »

se”delas (Do Clima e Terra do Brasil – século 17). Logo depois, escreveu Ambrósio Fernandes Brandão – “mangava, fruta que pode ser estimada entre as boas que há no mundo, qual semelham as sorvas de Portugal” (Diálogos das Grandezas do Brasil). Encantados ficaram também os franceses, que aqui vieram embalados pelo sonho grandioso de fundar uma França Equinocial. Sendo prova o comentário do capuchinho Claude d’Abbeville – “são frutos muito doces e agradáveis e que derretem na boca”. Mangabeira não é árvore alta. Tem galhos pequenos. A madeira avermelhada é de bem pouco valor econômico, prestandose à fabricação de lenha e móveis baratos. Dela se pode extrair ainda um látex rosado de qualidade inferior. As folhas têm manchas que lembram ferrugem. As flores são claras e levemente perfumadas – nem de longe lembrando cheiros fortes como o do jasmim. É medicamento caseiro de prestígio, entre a gente simples, para tratamento de tuberculose e úlcera. Os frutos podem ser consumidos ao natural – mas não são muitos os que apreciam o travo de seu visgo. Melhor quando convertida em suco, refresco, sorvete, geléia, doce em calda, licor. Nunca nas saladas de fruta. Nem nas de folhas. E estação da mangaba, não custa lembrar, vai de novembro até maio. Com produção pequena, que não dá para quem quer. Durante muito tempo parecia impossível cultivar mangaba. Ela apenas surgia na natureza e pronto. Da providência divina, e não pela mão do homem. A crença era de que, para germinar, as frutas precisavam ser engolidas por algum animal, para receber os ácidos da ruminação e voltando a semente ao solo, depois, para germinar. Ocorre que, com o desenvolvimento da botânica, essa cultura acabou se tornando possível. A Embrapa ensina algumas regras simples. Sementes devem ser colhidas só de frutos maduros e sadios. E bem lavadas, que não germinarão se estiverem com restos de polpa. Não devem nunca secar ao sol – melhor sombra, por 24 horas, para serem semeadas ainda úmidas. Em terra sem adubo e sem esterco – que a planta só se dá bem em solo arenoso, pobre e sem muitos nutrientes. Como os do Nordeste. Enterram-se quatro sementes em cada saco, a um cm da superfície. 50 dias após o semeio, escolhe-se a planta mais bonita do saquinho, abandonando as restantes. Mais quatro meses e pode ser plantada no lugar definitivo. De preferência, em período seco – que umidade atrai lagartas e produz um fungo, antracnose, que dizima as mudas. Quem preferir, use estufa, onde estarão sempre mais protegidas.

Já a graviola (Anona Cherimólia) é natural do Peru e da Colômbia, onde é conhecida como aguanábano. O historiador Gonzalo Fernandez de Oviedo, amigo de Colombo, escreveu – “as frutas por dentro se parecem com natas ou com manjar branco. Isso que se come, se desfaz logo na boca, como água, deixando um bom sabor” (História Geral e Natural das Índias – 1535). Os conquistadores espanhóis se encarregaram de espalhar a fruta para outras regiões tropicais do planeta. Acabou recebendo diferentes nomes, por onde passou. No México é chirimoya. Nas Antilhas, custard-apple. Na América, soursop ou sugar-apple. Na França, corossolier. Chegou ao Nordeste do Brasil já no começo da colonização. Deu-se bem, por aqui. Tão bem que o Ceará é, hoje, o maior produtor mundial. Com o tempo ganhando diferentes nomes – guanabano, anona-de-espinho, jaca-do-pará, araticum-manso, araticum-grande, coração de rainha, gravéola. Além de graviola, claro. A árvore da graviola, como a mangabeira, também não é alta. Tem, no máximo, 8 metros de altura. Prefere solo argiloso. As folhas são verdes e brilhantes. E flores amareladas. A produção, por árvore, não é grande. Em compensação os frutos, com relação ao tamanho das árvores, são enormes – doces, ligeiramente ácidos e muito perfumados. Recomenda-se colher antes de amadurecer - que os galhos, usualmente, não suportam o peso dos frutos. Mas não muito verdes, para não alterar o sabor. Graviola, diferente de quase todos os outros frutos, não tem safra em meses específicos. Dá o ano todo. Quando verdes, podem ser cozidas para consumir como legume. Maduras, prestam-se a suco, refresco, sorvete, geléia. E também purê e chutneys agridoces – ótimos para acompanhar carne assada ou file de peixe grelhado. Há quem dela faça ainda remédio – para febre, tosse, hipertensão, diarréia, cólica, artrite, reumatismo. E compressa, misturada ao azeite, eficiente alívio para dores musculares. Na hora de comprar, alguns cuidados. Quando forem maduras, escolha as de pontas com espinhos pretos e casca fina, que não ofereçam resistência quando pressionadas. Evite as de casca preta, rachadas, moles demais ou com sinal de mofo. Se preferir verdes, recomendando-se escolher as de coloração verde-clara, opacas, com saliências bem afastadas umas das outras, porém firmes. Para amadurecer, deixe-as em espaço arejado, sem luz, até que fiquem macias. A sugestão final, que vale para as duas frutas, é de provar esses frutos com os olhos fechados. Tentando entrever, em seus sabores superiores, os verdadeiros gostos do Criador. • Continente agosto 2004


56

SABORES PERNAMBUCANOS Leo Caldas/Titular/Cortesia Casa do Suco Tropical

RECEITA: SUCO DE MANGABA INGREDIENTES: 1 kg de mangaba bem madura, 300gr de açúcar, água. PREPARO: Deixe as mangabas de molho por 1 hora, para retirar o leite. Escorra e lave. Bata a mangaba ligeiramente, no liquidificador, com açúcar e água. Passe na peneira duas vezes. Sirva logo, para não escurecer. SORVETE DE MANGABA INGREDIENTES: 2 kg de mangaba bem madura, 500 gr de açúcar, 1 caixa de creme de leite. PREPARO: Deixe as mangabas de molho por 1 hora, para retirar o leite. Escorra e lave. Misture mangaba e açúcar, com as mãos. Passe tudo na peneira. Congele essa polpa. Dia seguinte, bata a polpa no liquidificador e passe em peneira bem fina. Volte ao liquidificador. Junte o creme de leite. Deixe no congelador até endurecer. Bata tudo novamente no liquidificador. Congele. E está pronto para servir. MANGABA EM CALDA INGREDIENTES: 1 kg de mangaba grande e ainda verde, 1 kg de açúcar, 2 copos de água. PREPARO: Deixe as mangabas de molho em água, por 1 hora, para retirar o leite. Escorra e lave. Faça calda rala com açúcar e água. Coloque as mangabas na calda. Deixe em fogo brando até que, ainda firmes, fiquem cozidas e transparentes. SUCO DE GRAVIOLA 1 kg de graviola, 300gr de açúcar, água. PREPARO: Lave e descasque a graviola. Bata, ligeiramente, a graviola, no liquidificador, com açúcar e água. Passe na peneira e sirva. SORVETE DE GRAVIOLA INGREDIENTES: 2 kg de graviola, 500gr de açúcar, 2 claras em neve, 1 caixa de creme de leite.

Continente agosto 2004

PREPARO: Bata a graviola, ligeiramente, com metade do açúcar, no liquidificador. Passe tudo em peneira fina. Reserve. Bata as claras em neve. Junte o restante do açúcar, o creme de leite e a graviola batida e peneirada. Misture tudo e leve ao congelador. LICOR DE GRAVIOLA INGREDIENTES: 1 graviola grande, 1 litro de água, 1 kg de açúcar, 1 garrafa de álcool de 40º, suco de 1 limão. PREPARO: Descasque a graviola e retire os caroços. Bata no liquidificador graviola, açúcar, água, álcool, suco de limão. Passe tudo em peneira fina e filtro de papel. Engarrafe, feche bem. E sirva, depois de, pelo menos, 15 dias.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA 57 Joel Silveira

Questionário

–V

ocê lutou na batalha de Salamina ou na de Termópilas, ao lado dos gregos e contra os persas? – Claro que não. – Participou da batalha de Actium, ao lado de Cleópatra e contra o imperialismo romano? – Não fui convocado. – Alguma vez bateu papo com Sócrates? – Não sei grego. – Já passou alguma noite com Paulina Bonaparte? – Quem sou eu? – Foi guilhotinado em 1794, apenas por ser amigo de Saint-Just? – Nunca fui amigo de Saint-Just. – Lutou em 1871 numa das barricadas da Comuna, em Paris? – Não sou de briga. – Esteve de fuzil na mão em 1937 e 38, defendendo Madri contra os fascistas de Franco? – Por que haveria? – Lutou em Stalingrado? – Com aquele frio ?

– Participou do frustrado complô de 20 de julho de 1944, para matar Hitler? – Só soube depois. – Deu uma mãozinha a Stendhal quando ele escrevia Le Rouge et le Noir? – Claro que não. – Agüentou firme, sem abrir o bico, uma daquelas depressões terríveis de Beethoven ? – Deus me livre. – Você já teve oportunidade de encarar Stalin e lhe dizer, alto e bom som: “Camarada, a única diferença entre você e Hitler é o bigode”. – Não. Prezo muito o meu pescoço. – Chegou alguma vez a aconselhar o nosso desanimado D. Pedro I: “Majestade, moderação. Sífilis mata.”? – Não sou médico. – Já esteve na Lua? – Nem na Lua nem em Xapecó. – Bem, meu caro, fiquemos por aqui. E lamento dizer que o saldo é bem negativo, ou seja: você não tem a menor importância. • Continente agosto 2004


58 TEATRO Bertrand Lira/Divulgação/AE

»

Mil vezes Vau da Sarapalha Espetáculo aclamado do grupo Piollin, de João Pessoa, comemora 1.000 apresentações em 12 anos de cena Linaldo Guedes

Os atores Everaldo Pontes, Soia e Nanego Lira


Márcia Foletto/Agência Globo

TEATRO 59 »

Luiz Carlos Vasconcelos, o diretor: lágrimas ao ler pela primeira vez o texto de Guimarães Rosa

“S

erá que vou chegar aos 60 anos fazendo Vau da Sarapalha?” A indagação, entre emocionada e reflexiva, é da atriz Soia Lira e pode parecer exagerada, mas não é. Soia interpreta a personagem Ceição na peça Vau da Sarapalha, adaptação do conto de Guimarães Rosa, dirigida por Luiz Carlos Vasconcelos (o intérprete do médico Dráuzio Varela no filme Carandiru), numa produção do Grupo Piollin da Paraíba. O espetáculo já somou mais de 1.000 apresentações desde sua estréia, em 1992. No ano passado, inclusive, esteve se apresentando em Londres e na Bélgica. Este ano, volta à cena, com apresentações programadas para os dias 23, 24 e 25, em Campina Grande, no Teatro Severino Cabral. Segundo o diretor Luiz Carlos Vasconcelos, existem alguns convites ainda para este ano. Um deles é para o Teatro do Jóquei, no Rio de Janeiro, em outubro, dentro de um evento da Prefeitura do Rio sobre investigação teatral. “Aproveitaremos para comemorar, por lá, os 12 anos do espetáculo, completados em 27 de março passado”. Apesar de baseado no rico e inventivo universo de Guimarães Rosa, o enredo da peça é bem simples: no sertão mineiro, numa região tomada pela maleita, vivem os primos Ribeiro e Argemiro. Com eles, o cachorro Jiló e a negra Ceição, que cuida da casa. A monotonia desse mundo é quebrada, quando Argemiro confessa a Ribeiro que decidira trabalhar na propriedade do primo por alimentar um amor platônico por Luiza, esposa do último, que teria fugido com outro homem. Desde então, os dois vivem os dias sem jamais tocar no nome da “traidora”. Além de Nanego Lira (Primo Ribeiro) e Soia Lira, a peça tem as participações de Servílio Gomes (Jiló) e Everaldo Pontes (Primo Argemiro) e sonoplastia do músico Escurinho. Há 12 anos nos palcos de todo o mundo, pode parecer que seja difícil encontrar motivação para encenar Vau da Sarapalha. Não é isso o que pensam os inteContinente agosto 2004


»

60 TEATRO

grantes da montagem. Soia Lira, por exemplo, diz que cada apresentação é como se fosse a mesma emoção da estréia. “Vejo como um fato muito raro, essa emoção, ao encenar uma peça que já está há 12 anos na estrada”, afirma ela, que tinha 27 anos quando subiu ao palco pela primeira vez, interpretando a negra Ceição. Soia, que recentemente ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cinema do Ceará, pela participação no filme O Quinze, acredita que essa emoção renovada se deva, principalmente, ao rico universo de Guimarães Rosa. Ela confessa que muitas pessoas se surpreendem, quando são informadas de que, apesar de 12 anos de estrada, o elenco de Vau da Sarapalha ainda ensaia bastante antes de entrar em cena. Nanego Lira também entende que talvez esteja nesta seriedade o segredo do grande sucesso da peça. Ele reconhece que nos primeiros anos a emoção se renovava a cada apresentação. Hoje, as coisas já são diferentes. Há, digamos, uma cristalização nos sentimentos da equipe como um todo. Afinal, não é brincadeira contar a mesma história no palco em mais de 1.000 apresentações e continuar transmitindo emoção ao público, que, afinal, é o que importa como resultado final do trabalho. Nanego diz que só tem uma saída para que essa catarse entre público, direção e elenco sempre se repita: trabalho, muito trabalho. Daí a importância dos ensaios a cada nova apresentação. “A gente sempre busca trabalhar muito, fazendo até algumas pequenas modificações no ritmo do espetáculo que nem sempre o público percebe”. O ritmo, aliás, é quase tudo em Vau da Sarapalha, segundo Nanego. “É um espetáculo com muita musicalidade. O público pode até não perceber, mas os personagens andam em cena no ritmo dessa musicalidade”. De fato. No palco, gravetos, fogos e sons de pássaros ecoam durante a encenação da peça. Construir essa riquíssima sonoridade em Vau da Sarapalha, sem apelar para o recurso do play-back, foi uma opção que remonta ao início do Grupo Piollin. Luiz Carlos Vasconcelos vê a bipolaridade entre a emoção e tensão na encenação da peça. “Se há o prazer e a emoção em continuar mostrando um espetáculo por tanto tempo, para tantas pessoas e por tantos lugares, há também, e numa mesma proporção, preocupação e tensão nisso. Temos descoberto ao longo destes anos que não é fácil manter um espetáculo vivo, orgânico, pulsante, depois de tantos anos de sua estréia. Os atores mecanizam as ações, as emoções se aquietam, as dificuldades geradoras de atenção desaparecem e, conseqüentemente, o espetáculo esfria, adormece. Este tem sido o desafio, voltar a trabalhar sempre, descobrir novas motivações, alterar pequenas ações, criar novas difiContinente agosto 2004

culdades, como forma de enfrentar a acomodação. Se isto é instigante por um lado, é difícil por outro. Mas tem valido a pena”, analisa. Nanego Lira lembra que, já há algum tempo, o Piollin, com a coordenação de Luiz Carlos Vasconcelos, buscava um teatro onde toda a cena emanasse do ator. “Na década de 80, fizemos várias intervenções no cotidiano da cidade de João Pessoa. Esse trabalho era o inicio dessa nossa procura por um teatro essencialmente ‘atoral’. Chamamos na época de “experimentos teatrais”. Nós discutíamos um tema na sala de ensaio ou uma idéia qualquer, que nós queríamos discutir, e saíamos para ruas, praças, sinais de trânsito, para jogar com o público e experimentar a repercussão, as várias vertentes em que aquele tema se transformaria. Mas, o mais importante para nós, atores, era estar cara a cara com o público, sem nenhuma ‘segurança’, os aparatos técnicos que os teatros oferecem. Nós nos confundíamos com a realidade, não éramos mais atores, fazíamos parte daquelas vidas com as quais estávamos nos relacionando”. Simplicidade. Talvez esteja nesta palavra outra explicação para o sucesso de Vau da Sarapalha. A idéia de encenar

O elenco reensaia a peça a cada nova apresentação


TEATRO 61 » nados no texto original de Guimarães Rosa –, deixam de ser meros coadjuvantes para se transformarem em personagens importantes, com várias intervenções na trama. Everaldo Pontes observa que, do ponto de vista cênico, apenas os dois primos, sentados no tronco, contando a história, seria cansativo. A transformação da velha Ceição e do perdigueiro Jiló foi exatamente para dinamizar a cena. A velha anda em círculos, vai para mata, volta, interfere, chora, divide a ação com os homens e o cão, dramaticamente, tem uma grande importância devido a sua transformação, quando os homens se separam. Simplicidade, inventividade, seriedade, emoção. Quatro elementos que entram em cena sempre que o Grupo Piollin sobe ao palco para encenar Vau da Sarapalha. Elementos que mantêm o espetáculo contemporâneo, mesmo tendo estreado há 12 anos. Um filme, por exemplo, se for assistido pela mesma pessoa, mais de uma vez, perde o impacto e a magia. Não é o que acontece com Vau da Sarapalha. Nanego Lira tem de memória vários depoimentos de espectadores que já foram há mais de uma apresentação e sempre se emocionam, como se fosse a primeira vez. Logo nos primeiros anos de apresentação do espetáculo, Rubens Correia assistiu à peça, em Curitiba, e previu que ela seria encenada ainda por cinco anos. Na época, o elenco da peça adorou a previsão. Afinal, ficar cinco anos em cartaz seria um grande feito. Hoje, a peça comemora 12 anos de estrada e não tem qualquer previsão de quando vai parar. Claro que existem outros projetos do Grupo Piollin. Há, inclusive, a perspectiva de que Luiz Carlos Vasconcelos passe a residir por uns tempos em João Pessoa (ele mora atualmente no Rio de Janeiro), para que possa encampar com mais afinco alguns projetos do grupo, como a criação de um site, a edição de um CD Rom com a história do Piollin e a realização de um festival de teatro com a participação de grupos de todo o Brasil. Mas mesmo que todos esses projetos dêem certo, não há qualquer possibilidade, por enquanto, de se abandonar a magia de Vau da Sarapalha. “Não somos muito profissionais em relação à peça. Nunca houve grandes produções em relação ao espetáculo, que se vende por ele mesmo e por sua riqueza cênica”, constata Nanego Lira. Talvez seja este mais um segredo a explicar o sucesso da peça. • Márcia Foletto/Agência Globo

o espetáculo era antiga. O grupo Piollin passou 10 anos amadurecendo esse objetivo. O diretor da peça, Luiz Carlos Vasconcelos, inclusive, chegou a chorar quando leu o texto pela primeira vez. A idéia foi do próprio Luiz Carlos. Segundo ele, desde os anos 80, quando fazia o curso de Letras na Universidade Federal da Paraíba. Conheceu o conto e não parou mais de lê-lo e de pensar em levá-lo para o palco. “Essa idéia o acompanhou por 10 anos, até 92, quando decidimos experimentar”, conta Everaldo Pontes, o Primo Argemiro da trama. Adaptar Guimarães Rosa para o teatro foi uma fase muita rica para a inventividade do grupo, apesar dos problemas de direitos autorais com a família do escritor. “A prosa carregada de informação, sentimentos e música de Guimarães nos ajudou muito no universo dos personagens e no clima das ações. Ele propõe tudo nas suas pausas e silêncio, como também na sua jorrada de sincopados neologismos”, avalia Everaldo. A inventividade do Piollin foi tanta, na adaptação feita, que, no conto Sarapalha, ao lado dos dois primos que vivem no sertão mineiro, dominado pela maleita, os personagens cachorro Jiló e a nega Ceição – que são levemente mencio-

Continente agosto 2004


Bertrand Lira/Divulgação

O fogo e o silêncio das palavras Nesse espetáculo paraibano, tem-se o Teatro em sua plenitude: com imagens que valem por mil palavras e com palavras que valem por mil imagens Luís Augusto Reis

E

m seu instigante ensaio A Exibição das Palavras, recentemente lançado no Brasil, Denis Guénoun, professor de Literatura e dramaturgo francês, afirma: “O que o Teatro quer, o que ele produz, aquilo sobre o que trabalha é o colocar à vista, é o ato de mostrar as palavras – que estão, por natureza, no elemento do invisível. O Teatro quer exibir o invisível, dá-lo a ver”. Há mais de uma década, o espetáculo Vau da Sarapalha do Grupo Piollin encanta as mais distintas platéias, dentro e fora do país, justamente por conseguir exibir algo do invisível que habita a prosa de Guimarães Rosa. Em menos de uma hora de apresentação, silenciosamente, as palavras sobem ao palco, apropriam-se dos corpos desses extraordinários atores, espalham-se pelo ar como as fagulhas do fogão à lenha posto em cena, e colocam o espectador diante desse imenso Sertão que é o próprio viver. Por meio de elementos cênicos que transparecem simplicidade, embora sejam requintados, o filete de fábula que conduz os personagens vai ganhando densidade a cada gesto e a cada pausa, a cada som e a cada silêncio. A eficácia discreta da iluminação, da cenografia e da sonoplastia integra-se ao desempenho inteligente do elenco, formando um todo coeso em permanente comunicação poética com o público. Quase não há ação; mas não falta tensão. É o peso de um segredo de vida diante da iminência da morte. É a impossibilidade de falar e a impossibilidade de calar. Algo de beckettiano, como bem percebeu um crítico inglês, Continente agosto 2004

em abril de 2003, quando a peça cumpria temporada em Londres. No início dos anos 90, na época em que Luiz Carlos Vasconcelos e seus companheiros de grupo concebiam essa montagem, a cena teatral brasileira discutia acaloradamente a suposta crise do teatro de palavras diante das “novas” possibilidades do teatro dito de imagens. Decerto, o impacto causado por esse trabalho muito contribuiu para que se expusesse a esterilidade dessa polêmica, hoje aparentemente superada. Poucas peças da história recente do teatro nacional exemplificaram de forma tão precisa que a Literatura em nada se opõe à liberdade da encenação. Trabalhando a partir da escrita canônica de Guimarães Rosa, o sucesso de Vau da Sarapalha demonstra que no Teatro o essencial é permitir que as palavras produzam uma materialidade visível capaz de surpreender, inclusive, e sobretudo, aquele espectador que já conhece o texto escrito que deflagrou a cena. Não se trata, portanto, da vã tentativa de reproduzir no palco os procedimentos literários de Guimarães, ou de qualquer outro grande autor – afinal, quantas montagens já fracassaram exatamente por esse motivo? O que importa é construir uma obra de arte repleta de sentido em si mesma e cuja originalidade possa lhe garantir uma leitura de interesse universal. Quando isso acontece, como nesse espetáculo paraibano, tem-se o Teatro em sua plenitude: com imagens que valem por mil palavras e com palavras que valem por mil imagens. •


Fotos: Elpídio Suassuna/Acervo do historiador José Antonio Gonsalves de Mello

REGISTRO 63 »

A arte do mobiliário A evolução dos móveis, através da História, traz revelações insuspeitadas sobre as características das culturas nos mais diversos lugares Diva Maria Gonsalves de Melo e Maria Filonila dos Santos Dias Regueira

Candeeiro belga com acabamento em bronze

O mobiliário, além de trazer conforto e facilidade ao cotidiano do homem, constitui-se numa expressão artística de muito significado. Pode não passar essa idéia para o grande público, que vê esse tipo de trabalho como resultante de tarefas apenas manuais. Não é verdade, já que na produção do mobiliário os artesãos utilizavam todo um lado de abstração artística na reprodução da natureza, segundo a maneira que a percebiam. Por essa razão, muitos artesãos, como grande parte dos projetistas, eram considerados artistas, tão famosos como os pintores e escultores. Peças mobiliárias, inúmeras delas pertencentes a alguns museus, são, na verdade, tidas como obras de arte da maior importância. Sua beleza é incontestável. Deve-se considerar que eram esculpidas por artistas (artesãos), que trabalhavam não apenas com as mãos, mas, como todo o artista, com a alma. Possuíam nessas mãos a mesma leveza com que os pintores manuseavam o pincel ou os escultores a argila. No decorrer da História do Mobiliário destacaram-se vários estilos. Alguns desses estilos se mantiveram, perpetuando-se através dos tempos. Outros saíram de uso. E outros foram resgatados, recebendo a influência da época. Essa influência é que determinava a nomenclatura de muitos dos estilos. Tal nomenclatura recebia, freqüentemente, nome de pessoas ou de períodos históricos. O mobiliário, como arte, surgiu para atender às necessidades das elites. Essas elites, por natureza, eram muito mais sensíveis à estética do que à funcionalidade. Ao contrário do que ocorria com as classes mais diferenciadas, os menos afortunados priorizavam muito mais a praticidade e o bem estar que lhes proporcionavam os objetos, de uma maneira geral. No século 16, com o surgimento e cresContinente agosto 2004


»

64 REGISTRO

cimento da classe média européia ocidental, ficou muito evidente que, para esse novo segmento, a funcionalidade do mobiliário era bastante importante, embora não desprezasse totalmente a estética. Os primeiros móveis de qualidade apareceram há três mil anos antes de Cristo no antigo Egito. Destacavam-se as camas, com patas de animais, sendo consideradas as melhores obras desse período. Das camas derivaram-se os divãs. Talvez, de todas as “invenções egípicias” a mais significativa tenha sido a cadeira de braço, que se mantém, até hoje, quase que irretocável. Influenciados pela escola egípcia, mas preservando suas particularidades, gregos e romanos tiveram uma produção restrita e inexpressiva. A contribuição mais importante, no que se refere aos gregos, foram os tronos. A outra contribuição de relevo dos gregos foram as mesas com apenas três pés. Antes de produzirem esses tipos de mesas, usavam as camas para refeições. As camas, assim, tinham dupla função: local para dormir e fazer as refeições.

mento foi um grande passo, pois representou o início de uma forte preocupação com o conforto que o mobiliário poderia oferecer às pessoas. Na Idade Média, o esmero na produção dos móveis foi sendo relegado, porque, nessa época, as viagens dos proprietários de terra e religiosos, aqueles que comandavam a sociedade, eram muito freqüentes. Em conseqüência, criaram-se outros tipos de móveis em relação aos da Antiguidade, pois agora o mobiliário teria de ser facilmente transportável. Teria, pois, de ser portátil e desmontável. Os móveis eram mal-acabados. Para disfarçar esse desleixo, houve um grande uso do dourado, sendo essa a maneira de camuflar a falta de cuidado mais aprimorado dos artesãos. Nesses tempos as arcas eram muito usadas, pois atendiam a duas necessidades: guardar objetos e servir como assento. No Oriente, os países que mais se destacaram na produção do mobiliário foram a China, o Japão e a Índia. Os chineses não usavam pregos, nem cola para juntar as partes das peças. Tudo era encaixado, através de uma perfeita habilidade manual. Disso resultava um tipo de móvel muito gracioso, devido à sintonia com que ocorriam esses encaixes. Já no Japão, pela freqüência dos terremotos, os móveis

Na Idade Média, os móveis eram mal-acabados. Para disfarçar esse desleixo houve um grande uso do dourado, sendo essa a maneira de camuflar a falta de cuidado mais aprimorado dos artesãos Dunquerque em jacarandá, com tampo de mármore de Carrara

Os romanos, como não poderia deixar de ser, sofreram influência dos gregos, também no campo do mobiliário. Mas tiveram, por outro lado, características muito próprias. Uma grande contribuição específica dos romanos foi produzir um tipo de mesa constituída por uma imensa laje de mármore ou tábua colocada sobre duas pilastras de mármore. Essas pilastras eram artesanalmente esculpidas, com grande perfeição. Outra experiência específica dos romanos foi a alteração de um tipo de cadeira grega chamada “klismos”, tornando-a maior, mais pesada e estofada. O estofaContinente agosto 2004

Genuflexório de meados do século 19, a exemplo das demais peças que ilustram este artigo


65

Canapé (marquesão) Béranger para até quatro pessoas

No Brasil foi acolhido com muita força o estilo barroco, oriundo da Europa, mas que absorveu características bastante nacionais. Talvez esse estilo tenha sido muito aceito na Colônia pelos seus traços dramáticos e rebuscados

eram pequenos e leves. Seus habitantes não costumavam usar traços dramáticos e rebuscados. Isso combinava com o temcadeira nem cama. Dormiam sobre esteiras e sentavam no peramento do povo brasileiro e sua religiosidade. A grande chão. Na Índia, as peças mais importantes eram as cadeiras quantidade de madeira, pedras preciosas e pedra-sabão, aqui usadas pela nobreza. Eram verdadeiros tronos, onde as pes- existentes, facilitou, ainda mais, o uso desse estilo na nossa tersoas sentavam com as pernas cruzadas. Nesse país se cultiva- ra. O estilo barroco mais representativo, existente no Brasil, va muito o glamour, o luxo explícito, o que se refletia na utili- encontra-se em Minas Gerais. Talvez pela grande quantidade zação de grandes almofadas, travesseiros e colchões bas- de matéria-prima adequada a esse estilo: o ouro, pedras preciosas e a pedra-sabão. tante exóticos. A partir do século 18, os móveis que eram produzidos em Com o transcorrer do tempo, em todas as regiões do mundo, a produção de móveis teve uma evolução muito quase todo o mundo passaram a ser construídos em função de grande. Criaram-se estilos que até os dias de hoje servem de um conjunto, pois pertenciam a um ambiente, que teria de ser referência tanto quanto à beleza como referência de épocas. harmonioso, de acordo com as idéias predominantes dos proDentre os vários estilos destacam-se o Gótico, o Luís XIV, o jetistas e artistas daquela época. Esses últimos já se enconColonial e muitos outros, como o Art Nouveau e o Rococó. travam completamente “comprometidos” com a referida esÉ natural que as influências mais profundas, sofridas tética de conjunto e ambientação. É muito importante consipelo mobiliário produzido no Brasil, sejam portuguesas. derar que a falta dessa visão de conjunto que se tinha, antes do Foram quase quatro século de colonialismo. Por sua vez, a século 18, fez com que os artistas tivessem, naquela época, produção de móveis, em Portugal, refletia estilos vindos, so- mais liberdade e mais originalidade para criar suas peças. bretudo, da Europa Ocidental e Países Baixos. Alguns dos “Cada espécie mantinha suas regras de construção ou seus padrões próprios. Sua evolução foi de per se e lentamenestilos que migraram da Metrópole para a Colônia, te”. O Brasil, a partir do século 18, quando a proquando aqui chegavam, sofriam adaptações dução mobiliária sofreu, realmente, um enorme locais. Claro, porque aqui se tinha outro povo, acréscimo, teve a mesma determinada pela preoum povo mesclado, outras matérias-primas cupação com a ambientação que prevalecia nos (madeiras diferentes), outras vegetações e grandes centro culturais de todo o mundo. faunas que serviam como inspiração para a Não se pode negar que essa dependência do criação de novos estilos artísticos. A pro“modismo ambientalista” (no que diz respeidução mobiliária não poderia deixar de to ao mobiliário) criou amarras à capacisofrer essas influências. dade criativa do artista, pois estabeleceu liNo Brasil, foi acolhido, com muita mites para essa capacidade. Agora, ele não força, o estilo barroco, oriundo da Europodia se guiar apenas por seus sentimentos, pa, mas que absorveu características basestando submetido a uma série de regras tante nacionais. Talvez esse estilo tenha Cadeira de secretária, em pré-estabelecidas. sido muito aceito na Colônia pelos seus • jacarandá Continente agosto 2004


Anúncio


Anúncio


Âť

68 ESPECIAL

PolĂŞmica mina de ouro Ao comprar os direitos de imagem da Mona Lisa, de Da Vinci, a Corbis, banco de imagem de propriedade de Bill Gates, provocou protestos e questionamentos Paulo Polzonoff Jr.

Continente agosto 2004


Imagens: Reprodução

ESPECIAL 69 »

Lado a lado, as imagens da Mona Lisa da Corbis e da Getty Images. Diferença só na marca d’água

Q

uando Bill Gates, um dos homens mais ricos do mundo e dono da Microsoft, adquiriu, por meio da sua subsidiária Corbis, os direitos de reprodução de obras de suma importância na história da humanidade, houve certo rebuliço. E não poderia ser diferente. Afinal, para quem desconhece as prerrogativas da lei de direito autoral, parece um acinte que um homem possa ser dono de uma imagem concebida no século 16 por Leonardo Da Vinci e já entranhada na cultura ocidental. Discretamente, houve protestos. Mas o que à primeira vista parecia um abuso de poder econômico de um dos personagens mais marcantes do capitalismo moderno, mostrou-se uma mina de ouro pouco explorada pelos brasileiros – infelizmente. A Corbis Inc. é apenas um ramo das empresas de Gates. Trata-se de um banco de imagens disponíveis para download na Internet. Por preços que variam de algumas centenas até muitos milhares de dólares, o interessado pode comprar não só a Mona Lisa, de Da Vinci, como também a célebre foto de Einstein mostrando a língua ou ainda uma série de imagens do homem pisando na Lua. São imagens de alto interesse didático, jornalístico e, sobretudo, publicitário. Na verdade, é neste último grupo que a Corbis está interessada. Continente agosto 2004


»

70 ESPECIAL

O caso da Mona Lisa merece uma atenção especial. Afinal, foi sobre ela que recaíram as dúvidas quanto à lisura do negócio de Gates. Não que houvesse impedimento legal desde o início. A banca de advogados da Microsoft jamais cometeria erro tão grosseiro. Surgiram, isto sim, dúvidas quanto à ética, por assim dizer, do negócio. Neste caso específico, certa confusão é permitida. A Mona Lisa é uma criação genial de Leonardo Da Vinci. Sobre a figura de 500 anos, contudo, não existe nenhum direito intelectual. O mesmo não se pode dizer sobre a reprodução fotográfica do quadro, cujos direitos são de propriedade de Bill Gates, por meio da Corbis. O advogado Antônio Murta, especialista em direito autoral num dos mais conceituados escritórios do Brasil, o Veirano & Advogados Associados, explica: “Sobre uma obra intelectual ou artística, qualquer que seja, o direito autoral, no Brasil, prescreve em 70 anos a partir da morte do titular”. Isto é, quem quiser utilizar comercialmente uma pintura de Portinari, por exemplo, tem de pagar ao espólio do pintor para isso, já que Portinari morreu em 1962. Todas as suas obras, portanto, estão sob proteção até 2033. A partir desta data, caem no que se chama “domínio público”. O mesmo não se pode dizer da imagem de Cândido Portinari, o pintor. “A imagem de um indivíduo é um direito perpétuo”, explica Murta. “Mas, depois disso, os familiares podem requerer o direito sobre a imagem do parente ilustre”, acrescenta. É este tipo de dispositivo que permitiu que Expedita Ferreira Messias, filha de Lampião e Maria Bonita, ficasse milionária depois de um processo contra um banco que utilizou a imagem do cangaceiro sem o consentimento dela. O prazo para a validade do direito autoral pode variar, mas na maior parte do mundo é de 70 anos. Jamais chegaria aos cinco séculos de idade da Mona Lisa. Ela é, portanto, uma imagem de domínio público. Se eu quiser, posso ir até o Museu do Louvre, enfrentar a multidão de turistas japoneses que se acotovelam em frente à redoma de vidro que a protege, tirar uma fotografia e utilizar onde bem entender.

Quem quiser fazer uso comercial de uma das imagens da Galleria degli Uffizi, tem de pagar royalties ao governo italiano, mesmo sobre imagens que tenham caído em domínio público há mais de 200 anos

Continente agosto 2004


ESPECIAL 71 » Por que, então, é um bom negócio para Gates vender uma imagem que está acessível a todos? A resposta reside numa questão técnica. Poucos foram os homens que conseguiram reproduzir fotograficamente, com qualidade, a Mona Lisa. É preciso todo um aparato técnico para tanto. Sobretudo quando se utiliza a imagem para fins publicitários, a fotografia do amigo do vizinho que viajou em excursão à França não presta. Portanto, quem compra a Mona Lisa da Corbis (US$ 220 por cinco anos, em casos em que o interesse didático prevalece) está, na verdade, comprando o trabalho do fotógrafo que a reproduziu, e não o trabalho de Da Vinci. No caso, o trabalho do fotógrafo Gianni Dagli Orti. A reprodução disponível no Getty Images, o maior banco de imagens do mundo, pertence à The Bridgeman Art Library. Interesse da coletividade – “No caso da Mona Lisa, ainda, existe um dispositivo na lei que impede que a imagem seja de um dono só. É o ‘interesse da coletividade’, explica Murta. “Trata-se de uma exceção à regra do direito autoral. Em nome do interesse da coletividade, algumas imagens estão livres do pagamento de royalties. É o caso de reproduções em matérias jornalísticas ou até mesmo como provas em processos”. Nestes casos, nem mesmo Bill Gates é capaz de faturar algum dinheiro. Quando se trata do coletivo, porém, há interesses e interesses. Foi também em nome do interesse da coletividade que a Itália arranjou um modo de ganhar algum dinheiro com seu vastíssimo patrimônio cultural. Por lá, quem quiser fazer uso comercial de uma das imagens da Galleria degli Uffizi, por exemplo, tem, sim, de pagar royalties ao governo italiano, mesmo que as imagens tenham caído em domínio público há mais de duzentos anos. Trata-se de uma “taxa de domínio público”. Isso serve não só para fazer caixa, como também para evitar a deturpação do patrimônio. A Itália é um dos países que mais protege seu patrimônio artístico de usos indevidos. Reprodução

O Nascimento de Vênus, de Botticelli, imagem sob controle do governo italiano

Continente agosto 2004


Divulgação/Nasa

Foto do primeiro astronauta que pisou na Lua. A imagem é de autoria da Nasa, mas também têm direitos sobre ela Neil Armstrong e Edwin Aldrin

É o interesse da coletividade, arbitrado por um juiz, que garante também que uma fotografia importante, sobre a qual incidam ainda royalties, não seja superfaturada, por assim dizer, o que impediria sua disseminação. É um perigo, afinal o detentor da imagem (própria ou alheia) pode simplesmente conceder ou não que esta ou aquela fotografia sejam usadas – e a que custo. Um exemplo desta relação complicada entre o que é de interesse público e o que é ganância pura e simples está na fotografia dos primeiros astronautas que pisaram na Lua. A imagem é de autoria da Nasa (assim como a maior parte das fotografias do planeta Terra), mas também têm direitos sobre ela os “personagens” Neil Armstrong e Edwin Aldrin. Para fins comerciais, a fotografia é vendida por até US$ 180 mil. É, no entanto, para garantir que as geração futuras vejam o grande feito do homem, sem ter de pagar este absurdo, que existe o conceito de interesse da coletividade. A Corbis, bem como outro milionário banco de imagens, o Getty Images, tem uma política clara a respeito do interesse da coletividade. “Damos todo o apoio a editoras de material didático que precisem de nossas imagens”, diz Ana Rita Whately, gerente geral da Corbis no Brasil. “Nosso interesse não é reter conhecimento”, acrescenta. Enquanto isso, no Brasil... – O grande negócio da Corbis é também um grande negócio para o Museu do Louvre, que disponibilizou seu acervo no site. É evidente que o museu ganha uma porcentagem a cada imagem comprada. Além disso, ao disponibilizar reproduções de alta qualidade, o museu acaba com a necessidade de se conceder autorizações para estes fins. Toda uma máquina burocrática é enxugada e, de quebra, as imagens são protegidas de efeitos nocivos das luzes dos poderosos spots dos fotógrafos especializados em reprodução de quadros. No Brasil, dois dos mais importantes museus brasileiros se mostraram insensíveis à iniciativa do Louvre, em parceria com a Corbis de Gates. No Masp há apenas uma funcionária responsável pelo licenciamento do acervo, tanto para material didático quanto para o mercado publicitário. Como ela está de férias, qualquer empresa que queira pagar pela reprodução de um Poussin, por exemplo, tem de

Continente agosto 2004


ESPECIAL 73 » esperar por uma concessão que só é dada pela funcionária. Que a esta hora passeia por uma cidade italiana qualquer, talvez Florença, onde se cobra até mesmo uma taxa pela utilização do patrimônio cultural, como já vimos. No Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, a história não é diferente. É apenas um pouco mais complicada. O MNBA tem em seu acervo obras importantes da iconografia brasileira, como O Grito do Ipiranga, de Pedro Américo, além de retratos de figuras da Corte, entre outras. Mônica Xexéu, diretora da divisão de acervo do museu, simplesmente não soube informar nada a respeito do licenciamento das imagens para o mercado publicitário. É algo que poderia, inclusive, ajudar na manutenção do museu, sempre à míngua por causa das verbas escassas do Ministério da Cultura. Artistas brasileiros, mesmo os de renome, vivos ou mortos, tampouco estão a par da dinâmica deste mercado. Em vez disso, preferem disponibilizar seus direitos por meio de burocráticas administradoras, que fazem a intermediação entre o artista e o cliente. Para se ter uma idéia, tentei entrar em contato com a MBA – Marcas Brasileiras Administradas, que representa a família de Tarsila do Amaral, autora do famoso Abaporu. A empresa é tão obscura que não tem um telefone disponível nem mesmo na Internet, lista telefônica ou junto ao INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual). Reprodução

Abaporu, de Tarsila do Amaral – intermediação obscura

Continente agosto 2004


»

74 ESPECIAL

Os trabalhos dos índios do Brasil têm assegurados direitos autorais sobre todas as suas manifestações, desde o artesanato até as lendas

Continente agosto 2004


ESPECIAL 75 » Vládia Lima

A Internet tem um papel fundamental no mercado do direito de imagem, tanto para o bem quanto para o mal. Para o bem porque é com ela que as transações modernas são feitas, sem muita burocracia

Internet & pirataria – A Internet tem um papel fundamental no mercado do direito de imagem, tanto para o bem quanto para o mal. Para o bem porque é com a Internet que as transações modernas são feitas, sem muita burocracia, apenas com um número de cartão de crédito. É uma pequena revolução, porque elimina inúmeras barreiras burocráticas, sobretudo para consumidores de menor porte. Além disso, bancos de imagens como a Corbis e o Getty Images permitem que o usuário encontre a imagem ideal em pouquíssimo tempo. Mas, quando o assunto é Internet, sempre tem um mas. A pirataria também é palavra-chave para se compreender a rede. A indústria fonográfica, neste ponto, é a principal vítima. E também parece ser a única preocupada com o que se chama pirataria doméstica. Os estúdios de Hollywood só agora estão começando a se preocupar também com cópias feitas em casa dos filmes multimilionários. Isso não acontece com as imagens. “As grandes empresas, entre elas a Microsoft, não estão muito preocupadas com a pirataria doméstica. Simplesmente porque o usuário não está ganhando nada com isso”, acredita Alexandre Cruz Almeida, consultor para assuntos de Internet. Para ele, a preocupação maior destas empresas é com usos comerciais. “Quem quiser fazer um site pessoal e usar uma imagem da Mona Lisa fotografada por fotógrafo Gianni Dagli Orti, dificilmente terá problemas”, acredita Cruz Almeida. “Agora, se uma agência de publicidade fizer a mesma coisa, pode se preparar...”, brinca. O curioso caso dos índios do Brasil – Em questões de direito de imagem, dois países se destacam no cenário mundial. O primeiro deles já foi citado aqui: a Itália, por sua cobrança de utilização de imagens que pertencem ao “domínio público italiano”. O outro é o Brasil. Por três motivos. Primeiro pela completa desorganização no que diz respeito à arrecadação de direito autoral de imagens. Não há uma agência arrecadadora, como o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), que controla a execução de músicas no país inteiro e repassa os direitos devidos aos artistas. Segundo porque nossas imagens mais importantes podem ser vítimas de deturpações, sem que o governo brasileiro se manifeste. “Na maioria dos países o governo intervém quando o patrimônio iconográfico é deturpado. Aqui, isso não acontece”, diz Antônio Murta. Isso porque o Conselho Nacional de Direito Autoral simplesmente deixou de existir durante o governo Collor – e desde então jamais foi reestruturado. O Brasil ainda merece destaque pelo tratamento especial concedido à produção cultural indígena. Os trabalhos dos índios do Brasil têm assegurados direitos autorais sobre todas as suas manifestações, que vão desde o artesanato até as lendas. Na prática, isso significa que, toda vez que alguém contar uma lenda indígena, deve pagar royalties por isso. Mesmo que a lenda seja uma tradição oral, que não carece de registro na Biblioteca Nacional. Esta idéia, contudo, só existe no papel, porque falta regulamentação. •

Continente agosto 2004


»

76

ESPECIAL

O modelo do software livre estabeleceu um novo paradigma de produção, sem precedentes na história Ronaldo Lemos

Além do software livre

A

República Federativa do Brasil é, de longe, o maior e mais populoso país da América do Sul. Seu vasto território encontra-se entre os Andes e o Oceano Atlântico, fazendo fronteira com Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e a Guiana Francesa. Batizado Brasil por causa do Pau-Brasil, uma árvore local, o Brasil possui extensas áreas agrícolas e florestas equatoriais. O trecho acima não é meu. Ele consta no verbete Brazil, da enciclopédia Wikipedia. Se você achou que o texto acima não descreve adequadamente o que é o Brasil, não se acanhe. Você pode modificá-lo imediatamente. Basta ir ao site da Wikipedia, clicar na opção “editar página” e fazer as alterações que quiser. Estas modificações serão postadas automaticamente e a próxima pessoa que acessar a página já terá acesso ao novo conteúdo criado por você. A Wikipedia, uma enciclopédia on line, tem hoje aproximadamente 170.000 verbetes. A diferença entre a Wikipedia e a Enciclopédia Britânica é que esta última possui um conselho editorial e investe

Continente agosto 2004


ESPECIAL 77

maciçamente em autores e revisores, que produzem seu conteúdo. A Wikipedia, por sua vez, é feita integralmente a partir da colaboração de pessoas do mundo todo, que livremente criam novos verbetes e alteram os antigos, sem qualquer intervenção “editorial” prévia. Há, inclusive, planos para lançamento de uma versão impressa da Wikipedia, que como a Enciclopédia Britânica, será vendida. Quem a comprar, entretanto, terá a liberdade para estudar, redistribuir e alterar a mesma. Isto lembra alguma coisa? Se você disser que lembra o modelo do software livre, acertou. O modelo do software livre, iniciado por Richard Stallman e popularizado por Linus Torvalds, estabeleceu um novo paradigma de produção, sem precedentes na história. Trata-se de formas de produção colaborativas, que rompem com as idéias de empresa e mercado. O principal exemplo é o Linux, um software criado a partir da colaboração de programadores de todo o mundo, que não trabalham nem para uma empresa nem para o mercado, fazendo isto por “mera diversão”, como alega o próprio Torvalds. O mesmo se aplica à Wikipedia. Por que alguém devotaria uma parte de seu tempo para redigir ou aprimorar um verbete? A resposta é simples: porque é divertido e porque faz com que você se sinta parte de uma iniciativa global, que irá beneficiar diretamente centenas de milhares de pessoas, se não a humanidade como todo. Foi a partir deste impulso que surgiram os mais de 170.000 verbetes, ameaçando trabalhos centenários como o da Enciclopédia Britânica e realizando o ideal iluminista de Enciclopédia de maneira jamais imaginada. Além da Wikipedia, há vários outros projetos colaborativos em curso hoje. Como exemplo, a catalogação das crateras do planeta Marte, mantida pela Nasa, a partir das fotos enviadas pela sonda Viking, feita exclusivamente por internautas. O projeto já catalogou mais de 1 milhão de crateras até o momento e continua aberto para quem quiser participar. Outro é o projeto Kuro5hin, uma revista de tecnologia e cultura sem “autores”, no sentido tradicional, em que cada artigo é gerado e revisto através de um sofisticado sistema de trabalho cooperativo. Assim, tudo indica que o modelo do software livre não

mudou apenas a história do software, mas também criou uma nova forma de organização econômica, com impacto profundo nas formas de produção e organização globais como um todo. E qual é o estatuto jurídico desta nova forma de produção? Uma das respostas a esta questão é a criação do modelo Creative Commons, uma iniciativa concebida pelo professor Lawrence Lessig da Universidade de Stanford, que tem por objetivo desenvolver licenças jurídicas que possam ser utilizadas por qualquer indivíduo ou entidade para divulgar seus trabalhos de modo mais amplo. Um dos principais problemas de direito autoral “clássico” é que ele funciona como um grande “NÃO!”. Isto quer dizer que, para utilizar qualquer obra, é necessário pedir permissão ao autor ou detentor de direitos sobre ela. Na estrutura atual, se eu faço rabiscos em um guardanapo, aqueles rabiscos já nascem protegidos pelo direito autoral, e se alguém quer utilizá-los, tem de pedir autorização para o autor. Entretanto, para um grande número de autores e criadores, não importa que outras pessoas tenham acesso às suas obras, ao contrário. Eu posso ser um músico, um videomaker ou um escritor que deseja exatamente o oposto: quero que as pessoas tenham acesso aos meus trabalhos, ou, eventualmente, que outras pessoas continuem o meu trabalho, seja reinterpretando-o, seja reconstruindo-o ou recriando. A missão do Creative Commons é gerar instrumentos jurídicos para que um autor, criador ou entidade possa dizer para o mundo que ele não se importa que uma determinada obra sua seja livre para a distribuição, cópia, utilização ou outros tipos de uso. Rompe-se assim com os 100% de “NÃO!” contidos no direito autoral. Um determinado autor que quer divulgar seu trabalho vai até o website do Creative Commons e escolhe a licença pela qual quer fazer isto, se mais ampla ou mais restritiva. Apesar de ser uma iniciativa surgida nos Estados Unidos, o Creative Commons tem caráter global. O Brasil foi o terceiro país a se integrar à iniciativa, logo após a Finlândia e o Japão. No Brasil, o Creative Commons funciona em parceria com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, que traduz e adapta ao ordenamento jurídico brasileiro as licenças, com o apoio do Ministério da Cultura. • Continente agosto 2004


»

78 ESPORTES

Há quase 70 anos, militantes de esquerda de praticamente todo o mundo organizaram em Barcelona, Espanha, uma Olimpíada Popular, em protesto contra os Jogos Olímpicos de 1936, de Berlim, usados para glorificar o regime nazista Sérgio Luz

Olímpico protesto

Continente agosto 2004

Jovem ariano segura a Chama no monumental Estádio Olímpico de Berlim, 1936


Reproduções: Arquivo Federal Alemão

ESPORTES 79 »

D

eu no New York Times: “Os atletas americanos apoiaram o governo catalão na luta contra os militares rebeldes. O time americano (...) retornou a Nova York após participação ativa na rebelião”. O despacho (como se dizia na época) do repórter do, já então, poderoso jornal americano, era para ter sido sobre um acontecimento esportivo. Mas a política entrou duro no esporte e só permitiu a festa de abertura dos Primeiros (e únicos) Jogos Olímpicos Populares da História. A Olimpíada de Barcelona começa no dia 19 de julho e termina – sem a realização de qualquer prova – no dia seguinte. Tudo por causa de um acontecimento que, hoje, faz parte da História: a Guerra Civil Espanhola, há quase 70 anos. As competições em Barcelona são uma resposta à realização dos Jogos Olímpicos oficiais de 1936, em Berlim. Temia-se que o nazismo, no poder há três anos, usasse os Jogos Olímpicos para fazer propaganda. Além disso, o regime hitlerista já havia mostrado a sua face violenta: perseguição de judeus, liquidação física dos adversários do Führer e os campos de concentração para os inimigos do 3º Reich. Um movimento mundial tentou, primeiro, tirar os jogos de Berlim; depois, defendeu um boicote internacional aos Jogos. O fracasso do boicote acabou fazendo de 1936 um ano atípico, do ponto de vista esportivo. Porque houve, a rigor, três Olimpíadas. A oficial, em Berlim; a Popular (e antinazista), em Barcelona; e uma em Nova York, realizada tam-

bém como um protesto – embora bem mais suave – contra a de Berlim. A Olimpíada de Barcelona é aberta com um desfile das delegações presentes. No dia seguinte, 20 de julho, começa a Guerra Civil, com o levante, comandado pelo generalíssimo Francisco Franco, das guarnições no Marrocos espanhol. Os militares fascistas de Madri também se rebelam. E é contra essas tropas que os atletas de Barcelona, em vez de irem para as pistas, pegam em armas – e vão à guerra, literalmente. Uma guerra, por sinal, que teve o apoio explícito (e bélico) de dois ditadores: Adolf Hitler, que enviou duas divisões completas de tanques Panzer (na época uma novidade) e a célebre Legião Condor, da Luftwaffe, a Força Aérea criada pelos nazistas; e Benito Mussolini, que enviou soldados italianos para defender os franquistas contra a República espanhola, eleita democraticamente. Berlim, o triunfo da propaganda – A então capital alemã, Berlim, é escolhida sede dos Jogos numa reunião do COI – ironicamente – em Barcelona, em 31 de maio de 1931, quando era inimaginável que, em 1936, o Partido Nazista estaria no poder. Na época da escolha, o Partido Nazista tinha no Reichstag (o Parlamento alemão) apenas 107 cadeiras, de um total de mais de 500. Mas mesmo fora do poder, os nazistas já haviam mostrado a sua face violenta, principalmente pela atuação das SA, as Tropas de Assalto, um exército de arruaceiros encarregados de espancar os Continente agosto 2004


80 ESPORTES

Reprodução

»

No dia 20, domingo, quando deveriam começar as provas, há disparos de metralhadora em vários pontos da cidade. Atletas se envolvem na luta.

adversários (principalmente os comunistas) e perseguir os judeus. Quando Hitler torna-se chanceler (primeiroministro), em janeiro de 1933, a Alemanha começa a mudar e, em 1936, é um país totalmente diferente – para bem pior. Os nazistas já haviam mostrado o seu jeito de governar: judeus são assassinados, têm seus bens confiscados e são amontoados em campos de concentração. A Gestapo (polícia política do Partido Nazista, incorporada após 1933 ao aparelho estatal) está em pleno funcionamento. Os adversários políticos ou estão presos ou mortos. Enfim: o nazismo já domina com plenos poderes a Alemanha, e se prepara para a guerra (a Luftwaffe, por exemplo, começou a ser criada em 1935). O casamento do nazismo com os Jogos Olímpicos acontece 45 dias depois de Hitler assumir o poder. Em março, dia 16, o Führer recebe os dirigentes do Comitê Organizador em audiência na Chancelaria. E se revela entusiasmado com a realização dos Jogos em Berlim. Doze dias depois, entra em campo o ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, que organiza uma comissão especial para tratar exclusivamente da propaganda. Em outubro, Hitler visita o Grünewald Stadium, que estava sendo reformado. O chanceler acha pouco e determina que um “novo estádio deve ser erigido pelo Reich: será tarefa da nação”. “Se a Alemanha vai hospedar o mundo inteiro” – afirma Hitler –, “deve fazê-lo de forma adequada e magnífica. A parte externa do estádio não deve ser de concreto, mas de pedra nacional. Quando uma nação tem quatro milhões de desempregados, deve arranjar caminhos e meios para lhes providenciar trabalho”. Hitler tinha dois interesses em que a Olimpíada de Berlim desse certo. Primeiro, porque serviria para acalmar a comunidade internacional quanto aos planos de guerra, já em andamento, mas enfaticamente negados pelo governo nazista. O Führer já havia decidido guerrear desde que assumiu o poder, conforme ele registrou em seu testamento político, Continente agosto 2004

Barcelona, julho de 1936: milícias republicanas foram engrossadas por atletas da Olimpíada Popular

ditado em 1945 a Martin Bormann, no bunker construído embaixo do prédio da Chancelaria, quando a vanguarda do exército soviético já bombardeava Berlim. Durante os Jogos, os cartazes antijudeus foram retirados das ruas, para maquiar a situação de intolerância racial. E o segundo interesse era que as competições – na ótica do 3º Reich – mostrassem a eficiência da juventude alemã, considerada pelos nazistas uma raça superior, pura. Campanha pró-boicote – Por causa da interferência do governo nazista na organização dos Jogos, surgem movimentos de contestação em vários países. Primeiro, para retirar a competição de Berlim. Depois, pregando um boicote internacional. A reação parte, principalmente, de organizações judaicas. São planejados vários jogos alternativos – também chamados de antijogos. Entre eles, uma Olimpíada dos Trabalhadores em Praga (Tchecoslováquia), em 1937 – que não chegou a ser realizada – e a Olimpíada Popular em Barcelona, em 1936. Na Inglaterra, França, Bélgica, Holanda, Espanha, Canadá, Iugoslávia, Tcheco-Eslováquia, Suécia, Suíça, Áustria e em vários países sul-americanos, há protesto e ameaça de não ir a Berlim. Mas, no fim das contas, poucas ameaças são cumpridas.


ESPORTES 81 »

Reprodução: Arquivo Federal Alemão

Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda do 3º Reich

Uma das razões para o fracasso do boicote é a postura ingênua da maior parte dos dirigentes esportivos mundiais. Eles resolvem não boicotar os jogos de Berlim, alegando, justamente, que não se deveria misturar esporte com política. Isso, apesar da advertência de vários setores, inclusive da imprensa conservadora. O jornal The Times, de Londres (na época, o mais importante da Europa), por exemplo, considera os Jogos de 1936 “uma tentativa de misturar o ideal das Olimpíadas com o passo-de-ganso nazista”. Nos EUA, o boicote também tem defensores de peso. Entre eles, o legendário prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia, a Liga dos Escritores Americanos, muitas universidades importantes e a maior parte da imprensa. Principalmente The New York Times, que denuncia, em editorial, que os cartazes antijudeus estavam sendo retirados das ruas de Berlim, por decisão do Ministério da Propaganda de Goebbels, para fingir que os nazistas não perseguem judeus. Mas, como no resto do mundo, prevalece nos círculos oficiais americanos a decisão de competir em Berlim, em grande parte por causa da atuação do presidente do Comitê Olímpico Americano (COA), Avery Brundage. Este cartola olímpico era sócio de um clube em Nova York que tinha, na entrada, uma placa de advertência: “Proibida a entrada de cachorros e judeus.” Nos EUA, o boicote vem principalmente das universidades (que sempre foram a base do time americano em Olimpíada) e por vários atletas, individualmente. Essa postura se reflete na formação do time olímpico. O que vai a

Berlim não reúne o que os EUA têm de melhor no esporte. Os atletas dissidentes dividem-se entre a Olimpíada de Barcelona (os mais politizados) e as provas em Nova York. Quem foi para a Espanha, acabou indo à luta – literalmente. Dos EUA, nove atletas vão para a Olimpíada Popular de Barcelona, embarcando no dia 4 de julho, no navio S.S. Transylvania, com o patrocínio de um Committee For Flair Play in Sports. Da Grã-Bretanha, seguem 41 competidores, que levam na delegação quatro tocadores de gaita-de-foles escoceses. No dia 18, os atletas inscritos nas competições se reúnem em Barcelona. A Olimpíada Popular começa no sábado 19, com a abertura festiva, e termina no domingo, antes da realização das provas. Na edição do dia 22 de julho, o jornal do Partido Comunista da Inglaterra, Daily Worker, informa o que aconteceu no dia previsto para o início das provas: “Depois das cerimônias de abertura, o início das provas esportivas foi adiado, devido às condições resultantes da tentativa fascista de rebelião.(...) Alguns (atletas) embarcaram imediatamente para Marselha (França), planejando realizar os Jogos em Paris, ainda que sem o apoio da maioria dos que se encontram na Catalunha.” Mas não há disputa esportiva – nem em Paris nem em Barcelona. Tropas fascistas rebeldes tentam derrubar o governo da Catalunha. No dia 20, domingo, quando deveriam começar as provas, há disparos de metralhadora em vários pontos da cidade. Atletas se envolvem na luta. The New York Times informa que os americanos haviam sido atacados, ajudaram a construir barricadas e foram obrigados a fazer saques no comércio para arranjar comida. Os atletas que se engajaram na luta foram nomeados conselheiros do governo catalão. Os atletas alemães e italianos (que haviam chegado a Barcelona, vindos de Moscou, onde viviam asilados) adeContinente agosto 2004


»

82

ESPORTES (WLAC), durante o qual evita-se qualquer referência aos Jogos de Berlim. Os organizadores do Carnival explicam o objetivo do WLAC: “Estimular o atletismo amador, como meio vantajoso de se utilizar o tempo de lazer dos trabalhadores”. O Carnaval esportivo americano é marcado para os dias 15 e 16 de agosto, para coincidir com os dois últimos dias da Olimpíada de Berlim. As provas são realizadas em Randalls Island, com a participação de atletas do Canadá e de 15 Estados americanos (representando 22 universidades e 30 clubes). Quem apostou que os Jogos de Berlim de 1936 seriam manipulados politicamente, acertou na mosca: tudo foi feito, mesmo, para glorificar o nazismo. A começar pela abertura, no dia 1º de agosto, planejada pessoalmente pelo ministro da Propaganda de Hitler, o Dr. Joseph Goebbels. Uma das inovações da Olimpíada berlinense é a tocha olímpica, uma cerimônia das Olimpíadas da Antiguidade, ressuscitada em Berlim e que o Comitê Olímpico Internacional (COI) mantém até hoje. Hitler entra no Estádio Olímpico ao som da “Marcha das Homenagens”, de Wagner, o Reprodução: Arquivo Federal Alemão seu compositor preferido. Uma menina de cinco anos dá ao Führer um buquê de flores, recebe um afago no rosto e faz a saudação nazista: Heil, mein Führer. Depois, a multidão canta hinos alemães e do Partido Nazista, com destaque para “Horts Wessel Lied” (“Canção de Worst Wessel”). Wessel foi um ex-integrante das SA de Munique que virou gigolô e foi morto num bordel, numa briga com um outro gigolô, na disputa por uma prostituta, e que a propaganda de Goebbels transformou num dos maiores heróis-mártires da Alemanha nos 12 anos do período hitlerista). Mas o Estádio Olímpico não é palco apenas para momentos felizes de Hitler. No decorrer das competições, por duas vezes, ele se retira do seu camarote, A bandeira com a suástica nazista domina o Estádio para não ter que cumprimentar Olímpico de Berlim, 1936

rem à Centúria Thaelmann e ao Batalhão Gastone-Sozzi, da Brigada Internacional, formada por combatentes de praticamente todo o mundo para lutar contra o (então) candidato a ditador, o generalíssimo Franco. Entre os combatentes, estavam dois militares brasileiros: Apolônio de Carvalho e Salomão Malina, militantes do então Partido Comunista do Brasil (PCB) e que lutaram também na 2ª Guerra Mundial – Apolônio, na Resistência Francesa e Malina, como pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália. E os atletas-combatentes alemães e italianos podem até ter enfrentado, na guerra, seus compatriotas. Os alemães, os aviões da Legião Condor e os tanques de uma Divisão Panzer; os italianos, os inúmeros batalhões enviados em auxílio de Franco pelo ditador Benito Mussolini. A atuação da Legião Condor na Espanha está imortalizada no que é, certamente, o quadro mais famoso de Picasso: Guernica, pintado em homenagem a uma cidade, Guernica, arrasada pela Luftwaffe (Durante a ocupação da França, Picasso recebeu em seu ateliê, em Paris, um grupo de oficiais nazistas. Um general apontou para o Guernica e perguntou se fora ele, Picasso, quem fizera o quadro. A resposta do pintor catalão entrou para a História: – Não. Foram vocês!). A Olimpíada Popular de Barcelona, se tirou 10 em militância, levou zero em esporte. Em termos esportivos, os jogos alternativos às Olimpíadas de Berlim que têm algum destaque são os de Nova York, um protesto comportado, sem forçar muito a barra e – lógico – longe de qualquer militância ativa contra os Jogos de Hitler. Muito pelo contrário. (O drama dos participantes da Olimpíada Popular é relatada num livro esgotado, editado no Brasil há mais de três décadas, pela Editora Renes – Rio de Janeiro, 1972: Olimpíada 1936 glória do Reich de Hitler.) Nova Iorque x Berlim – As autoridades esportivas dos EUA dão tão pouca atenção aos Jogos de Nova York que eles são chamados de Carnaval – Worlds Labor Athetic Carnival Continente agosto 2004


Jesse Owens quebra recorde de velocidade e abala mito da superioridade racial germânica

atletas negros dos EUA. Cornelius Johnson (da Califórnia) vence no salto em altura, e Jesse Owens (de Cleveland) nos 200 metros rasos, batendo recorde olímpico e mundial com 20s7d. Os dois derrotam atletas “arianos raça pura”, de que falava a propaganda nazista. Propaganda que determinava, até, que os jornais alemães identificassem os atletas negros do time americano de “auxiliares negros”. Já no desfile inaugural dos Jogos de Berlim, o esporte e a política se misturam. A delegação francesa, diante do palanque, faz a saudação olímpica, mesmo sabendo que o gesto seria confundido com a saudação nazista (na saudação olímpica, o braço é estendido para cima e para a direita; na nazista, para a frente e para cima). Os franceses são ovacionados. Os ingleses, que foram mal recebidos nas Olimpíadas de Inverno, em Garmisch-Partenkirchen, preferem um “olhar à direita”. Várias delegações não fazem nenhuma saudação, nem a olímpica: Austrália, Argentina, Egito, Dinamarca, Finlândia e Japão. O único atleta da Costa Rica no desfile, em sinal de protesto, baixa a bandeira até quase o chão.

Reprodução/ AE

O time americano desfila com os chapéus sobre o coração e a platéia reage com assovios. Esse gesto provoca polêmica. Na Europa, assoviar é sinal de desaprovação; nos EUA, de elogio. Um repórter estrangeiro diz ter visto, na arquibancada, um grupo de membros uniformizados das SA (a tropa de baderneiros do Partido Nazista) puxando os assovios. O final da festa de abertura é sintomático. Depois que Hitler faz a declaração oficial de abertura, há uma salva de... artilharia! Os mesmos canhões seriam usados, pouco mais de três anos depois, com bala de verdade na invasão da Polônia (1º de setembro de 1939), marcando o início da 2ª Guerra Mundial. E para coroar o uso político da Olimpíada de 1936, o próprio Hitler encomendou a sua cineasta preferida, Leni Riefenstahl (morta em setembro de 2003, aos 101 anos), o documentário Olympia, atualmente considerado revolucionário por causa das inovações que lançou. Duas delas são copiadas até hoje: a filmagem embaixo d’água e a instalação de trilhos ao lado das pistas, para a câmera acompanhar os atletas. • Continente agosto 2004


»

84 TRADIÇÕES

A peleja lendária O célebre desafio de cantoria entre Inácio da Catingueira e Romano da Mãe d’Água, em 1870, ainda habita o imaginário popular do Nordeste, mas alguns mitos em torno dele não resistem a uma análise mais acurada Ésio Rafael

A

histórica peleja entre Inácio da Catingueira e Romano da Mãe d’Água, ocorrida em 1870, em Patos-PB, foi amplamente divulgada, não só por especialistas no assunto, mas por intelectuais da estirpe do escritor Orígenes Lessa (Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio, 1982) e do padre Manoel Otaviano, escritor, pesquisador, pertencente à Academia Paraibana de Letras, reputado como o mais fiel pesquisador da famosa dupla de repentistas. Essa cantoria ainda não se encerrou, como da Mãe d’Água e Inácio da Catingueira na versão ainda não se encerraram as especulações sobre Romano do poeta e xilogravurista José Costa Leite a origem genética da dupla, como veremos mais adiante. A propalada peleja, ocorrida num Estava pronto o material que seria refinado pelas mercado público, teria durado oito dias, segundo informações tidas como fiéis, de pesquisadores como Leonardo mãos do padre Manoel Otaviano. Rodrigues de CarvaMota e Francisco Coutinho. Mas, há quem diga que a lho, autor do livro Cancioneiro do Norte (Fortaleza, 1903), cantoria realmente teria acontecido na casa de um coronel, chegou a se chocar com a notícia, repassada por um amicom a duração de apenas um dia. De fato, havia, na época, go seu, de que essa peleja jamais existira de fato. Rodriuma preocupação dos estudiosos no sentido de preservar a gues não levou muito a sério a notícia e foi colher mais cantoria para que no futuro as coisas não se distorcessem. informações com o paraibano Romeu Mariz, um nome, Daí a necessidade de uma pesquisa de campo. Foi o que fi- até então, abalizado na região. Leonardo Mota, poeta, zeram. Os pesquisadores realizaram longas viagens à cata escritor, funcionário público, nascido em Pedra Branca, de informações dignas de confiança. Nada melhor do que Ceará, em maio de 1891, morreu em 1948, deixando uma ouvir nomes, como Ugulino Nunes da Costa, José Porfírio, obra considerável, sendo Violeiros do Norte (1926) a mais Silvino Pirauá Lima (autor da sextilha), Manoel Carneiro e famosa, publicada pela Editora Monteiro Lobato, São Germano da Lagoa, celebrado em uma música de Alceu Paulo. Francisco Coutinho é autor do hoje clássico Violas Valença. Esse grupo de poetas populares, amigos e discípu- e Repentes (Recife, 1953). Tanto Leonardo quanto Coutinho los da dupla, é o responsável, definitivamente, pela imortali- escreveram sobre a cantoria, levada a termo acompanhada de zação de ambos, até então maiores nomes do repente nor- pandeiro, como assim eram realizados os desafios. O vai-e-vem de informações fez com que outros eledestino. Os pesquisados nasceram e viveram em localidades mentos fossem incorporados na história contada pelos admipróximas das origens de Inácio e de Romano. Continente agosto 2004


radores de Romano e por aqueles que engrossavam o cordão de fãs de Inácio. Silvino Pirauá deixou cópia de Cantadores e Poetas Populares, caída nas mãos de Chagas Batista que cuidou de transcrever e publicar em 1929. Pirauá, discípulo de Romano, chamou a responsabilidade para si, atribuindo a Romano do Teixeira a vitória da peleja. O escritor teria propositadamente escolhido aqueles versos que dariam a vitória ao poeta da “Mãe d’Água”: “Meu Deus que tem esse negro Que no canto se maltrata Agora Romano velho Canta um ano e não se mata Quanto mais canta mais sabe É nó que dá ninguém desata” Francisco Coutinho fora mais criterioso em torno do assunto, ao realizar pesquisa entre os anos de 1941 e 1943, e, para que a importante peleja não tomasse rumo diferente, confrontou todas as versões captadas por ele, nos locais onde os poetas viveram, deixando o leitor à vontade para que eles pudessem tirar as suas próprias conclusões. A questão da raça – Tudo é possível no planeta azul. Mais difícil era o mapeamento do genoma. Elefante ser parente do sapo, quem diria? Romano, que durante a cantoria evocou tanto a origem negra de Inácio, chamando-o de “negro cativo”, não tinha lá sua pele tão branca e seu cabelo era “ruim”. Inácio guardou a “carta na manga da camisa” para o momento exato do bote. O momento veio à tona depois que Romano tentou decidir a parada: “Inácio eu estou ciente Que tu és um negro ativo Mas não estou satisfeito Devo te ser positivo Me abate em cantar Com um negro que é cativo” Inácio revidou: “Na verdade seu Romano Eu sou negro confiado Eu negro e o senhor branco Da cor de café torrado Seu avô veio ao Brasil Para ser negociado” A história pende para o lado de Inácio, como vencedor do desafio, ao som dos pandeiros. Deve-se ressaltar que Romano Caluête gozava do maior prestígio e estima de todos, e não fora gratuito o posto que lhe deram de mestre dos vio-

Reprodução/Acervo Ésio Rafael

TRADIÇÕES 85

Francisco Coutinho, Pinto do Monteiro e José Soares. Foto extraída do livro Violas e Repentes, de Francisco Coutinho, Recife, 1953

leiros. Romano não foi rico como se insinuou. Ele possuía um pedacinho de terra, assim mesmo, deixada por herança. Aliás, Romano era senhor de um só escravo e o seu avô era negro. Tinha um bom conhecimento de História e Geografia, além de falar um razoável português. Sobre cor e paternidade – Francisco Coutinho deu uma vasculhada na vida dos dois poetas. Como funcionário do Ministério da Fazenda, ele percorreu todo o Estado da Paraíba. Visitou o Saco da Mãe d’Água, município paraibano do Teixeira, onde nasceu Romano da Mãe d’Água, Romano do Teixeira ou, ainda, Romano Caluête, em 1840. O poeta faleceu em 1891, tendo sido a sua morte diagnosticada como morte súbita (de repente). Na pauta, outra visita à propriedade – Marrecas –, onde nascera Inácio da Catingueira, no município paraibano de Piancó. Francisco procurou entrar na intimidade dos habitantes de Marrecas, especulando a vida de Inácio. Descobriu que o escravo de Manoel Luís morrera de pneumonia em 1881, aos 36 anos de idade, em conseqüência de trabalho duro no campo (queimando broca). Catingueira se localiza entre as cidades de Patos e Piancó. Diz-se que Inácio tinha mais quatro irmãos e era filho de uma negra africana chamada Catarina. Na comunidade, corriam informações dando conta de que um branco da localidade teria tido um caso com Catarina que levou o “segredo” à sepultura. Vejamos o que disse o padre Otaviano: “O nosso repentista não era negro propriamente, e, sim, mestiço de cor escura, mas de pele fina, cabelos corridos, conservando um cavanhaque preto como o cabelo e um bigodinho acamado”. Além destas características, Inácio chamava a atenção pela sua desenvoltura. Simpático e sedutor, estatura regular, olhos pretos. João do Curtume, contemporâneo de Inácio, de cor negra, deu o seu depoimento: “O negro era uma tentação de faceiro”. • Continente agosto 2004


»

86 ENTREMEZ

‘ Ronaldo Correia de Brito

Reflexões sobre o nosso tempo II - Bandidos espartanos Na cidade grega, era a nobreza quem partia para o roubo e o assassinato, a serviço do terror do Estado e do controle da população de escravos

N

um filme que fez sucesso nos anos 70, Pequeno Grande Homem, do diretor Arthur Penn, o chefe cheyenne, Velha Pele Curtida, decide morrer, sobe uma colina e se deita no chão, esperando a morte. Mas, ela não vem e o índio retorna à sua tribo. O velho Pele não agüentava mais o genocídio do seu povo, praticado pelo exército comandado pelo general George Armstrong Custer, felizmente morto na batalha conhecida por Little Big Horn. Eu lembrei o filme, em que não falta o humor histriônico e canastrão

Continente agosto 2004

de todo cinema americano, porque também desejei morrer, deitei-me três dias num sofá, mas, como a morte não veio, retomei a vida e os afazeres. Meu desgosto também foi causado pela sensação de extermínio que estamos sofrendo, só que no Brasil ainda é um tanto complexo definir que grupo social está sendo exterminado, e por quem. Às vésperas do São João, ouvi uns estampidos, próximos à minha casa, e imaginei que fossem fogos. Depois de um tempo escutei gritos. Mesmo associando São João a Dioniso, supus que nenhum


ENTREMEZ 87

cortejo báquico emitiria aqueles sons desesperados. Temeroso, olhei pelo portão e avistei um menino franzino de uns 14 anos, sendo massacrado por alguns homens com murros, chutes e pauladas. O garoto, ajudado por outro mais velho, assaltara o motorista de uma escola, carregando sua bolsa com duzentos reais. O mais velho desapareceu da cena com o dinheiro, e o guri fugiu numa bicicleta. Dado o alarme, um vigilante da rua correu atrás para pegá-lo. Quando se sentiu acossado, o menino sacou um revólver e disparou cinco vezes, sem acertar o perseguidor. Derrubado da bicicleta, começou o massacre. O vigilante quebrava o menino no chute, aos gritos de “você ia tirar minha vida, cara!”, e outros palavrões que sujariam esta coluna. Chegaram o motorista e o porteiro da escola, os desocupados da rua, gente que passava de carro. Procuravam objetos com que bater, esmurravam, sacudiam, pisavam o corpo mirrado do menino, num frenesi de possessos. Parti em defesa da vítima. Falei que não podiam fazer justiça daquela maneira, ordenei que parassem de massacrar o infeliz. Ameaçaram-me. Que eu ficasse longe, se tinha amor à vida. Investi novamente, gritando mais alto que eles para intimidar. Senti que vinham em cima de mim e recuei. Tive medo das figuras embrutecidas, dos olhos desvairados. O menino tentava se levantar e eles o derrubavam. Percebi que todos deliravam. Senti-me impotente e voltei para casa. Mais tarde vi a poça de sangue e soube que obrigaram o proprietário de um carro a levar o menino quase morto para o Hospital da Restauração. Ainda hoje não compreendi essa lógica perversa. Eu sou médico, e durante muitos anos trabalhei em emergências médicas. Quando tentei evitar a matança, fui rechaçado. Depois, mandaram a vítima agonizante para ser salva pelos médicos. A visão de um linchamento é a mais terrível das experiências. O impulso de agir em defesa do que achamos justo, colocando nossa vida em risco, choca-se com o nosso instinto de sobrevivência. Olhamos um menino sendo morto porque roubou duzentos reais e tentou matar seu perseguidor. Enxergamos apenas que se trata de um menino, que merece proteção e cuidado. Investimos de en-

contro à turba e no primeiro embate compreendemos que também corremos o risco de ser massacrados ou mortos. Ninguém reconhece ninguém naquele transe, até os amigos se estranham, há uma única força de destruição movendo todos. Se a razão prevalece sobre o impulso humanitário, o herói recua, “fechando a abertura para a consciência metafísica de que você e o outro são um, de que você é dois aspectos de uma só vida”, como afirma Schopenhauer. Mesmo que esta vida seja a de um menino bandido. Deprimi-me e desejei morrer como o chefe cheyenne. Busquei a compreensão desse mundo em que vivo, bem longe na história. Na Esparta do século 7 existia uma organização política e um sistema de educação baseados no terror e no controle absoluto do Estado sobre a população. Quando os meninos completavam 12 anos, eram enviados para o campo, onde deviam sustentar-se por conta própria e roubar parte de seus alimentos. “Caso fossem apanhados nesse ato, eram severamente castigados, não pelo roubo, mas pela demonstração de inabilidade.” Aos 17 anos deviam passar por outra prova: “de dia espalhavam-se pelos campos, munidos de punhais, e à noite deviam degolar quantos escravos fossem capazes.” Na cidade grega, era a nobreza quem partia para o roubo e o assassinato, a serviço do terror do Estado e do controle da população de escravos. Aqui, os jovens pobres assaltam e matam a classe privilegiada, mantida sob terror. Quando falham, são trucidados ou mortos. Em Esparta, os papéis sociais eram claramente definidos, constituindo-se verdadeiras castas, sem perspectivas de mobilidade. No Brasil, há mobilidade social. Mas, a nossa democracia de origem ateniense não encontrou saída para as desigualdades que geram a fome, a miséria, o desemprego e a violência. Os adolescentes que roubam e matam não o fazem por um modelo de educação, como em Esparta. Agem pela falta de perspectivas na vida, por serem desagregados sociais sem família, sem religião e sem Estado. Roubam, matam e morrem sem sentido. E quase ninguém os lamenta. A não ser os que ainda sonham com um mundo mais justo e igual. • Continente agosto 2004


AGENDA

»

88

ARTES PLÁSTICAS Imagens: Divulgação

Gravando no escuro Desde que foi morar no Rio, no ano de 1958, em busca de aperfeiçoamento para sua arte, o pernambucano Gilvan Samico ouvia o mestre Goeldi dizer: “Samico, por que você está gravando no escuro?”, referindo-se à sua extrema timidez e ao clima noturno predominante em seu trabalho. De lá para cá, o xilogravurista, considerado o melhor do Brasil, descobriu o claro e as cores com o cordel – segundo ele, “como se fosse um coice de mula” – e passou a usálos, mas ainda assim de forma discreta, menos como enfeite do que como delimitação de espaços, definição de planos. Fez mais de 70 exposições, recebeu cerca de 16 prêmios nacionais e internacionais e está ganhando, pela primeira vez, uma

Inéditos no MAMAM

exposição na Pinacoteca de São Paulo, que não se pretende cronológica nem retrospectiva, mas apresenta os desenhos pensados como tal, feitos no início da carreira, em São Paulo, todos inéditos, e aqueles cujo objetivo é precipitar a gravura. A mostra conta com mais de 200 obras e, segundo seu idealizador, Marcelo Araújo, diretor da Pinacoteca, pretende saldar uma dívida da cidade com o artista. Samico: do Desenho à Gravura. Pinacoteca de São Paulo (Praça da Luz, nº 2, São Paulo-SP. Fone 11.2299844). Visitação de terça a domingo, das 10h à 18h, de 7 de agosto até 3 de outubro. Entrada: R$ 4,00 e 2,00 (gratuita aos sábados).

Espelhos da memória

Os artistas plásticos Marcelo Silveira e Emmanuel Nassar estão expondo, individual e simultaneamente, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). Silveira apresenta trabalhos inéditos no Recife, que inclui esculturas feitas com pedaços articulados de madeira, peças em alumínio fundido e duas instalações: Roupas de Casa (2003) e Armazém (2004), obras que reunidas demonstram suas idéias de deslocamento. O paraense Nassar, que faz sua primeira individual no Nordeste, exibe um conjunto de pinturas, fotografias e a instalação Bandeiras (composta pelos símbolos dos municípios paraenses).

A memória, seja individual ou coletiva, está em exposição na Galeria Dumaresq: o artista plástico português Francisco Laranjo, que já expôs no MAMAM, fala das suas memórias na exposição Espelhos e Outros Lugares, na qual apresenta desenhos de 1,50x5,50, em nanquim sobre papel, e peças de nanquim sobre tela e aquarelas sobre papel. Já Beatriz Luz, artista que há anos recolhe símbolos e imagens dos lugares por onde vai, organizados nas mostras Nós e Errância, instiga o observador a refletir sobre a amnésia cultural e social instalada no Brasil.

Individuais de Marcelo Silveira e Emmanuel Nassar. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife. Fone 81.34232761). Visitação de terça a domingo, das 12h às 18h, até 29 de agosto. Entrada: R$ 1,00.

Exposições de Francisco Laranjo e Beatriz Luz. Galeria Dumaresq (Rua Prof. Augusto Lins e Silva, 1033, Boa Viagem, Recife. Fone 81. 33410129). Visitação a partir de 11 de agosto, de segunda a sexta, das 09 às 18h, e sábados, das 09 às 13h. Entrada gratuita.

Continente agosto 2004

Pela primeira vez, Gilvan Samico expõe desenhos inéditos do início da sua carreira

Lugar de (des)apego A Fundação Joaquim Nabuco apresenta a mostra Trajetórias 2004, com três exposições individuais simultâneas. Em sua primeira exposição, Edson Lucena (PE) mostra “...para uma casa vazia, imagem”, em que a casa é apenas sugerida. Marta Penner (DF) trabalha o conceito de não-lugar com a série Um Quarto Para o Presidente, conjunto de fotografias que registram suítes em hotéis de Brasília. Fernando Augusto (PE) apresenta seu Território Expandido, releitura de uma favela, que pretende discutir a luta universal pela propriedade. Trajetórias 2004. Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj (Av. 17 de Agosto, 2187, Casa Forte, Recife. Fone: 81.34213266). Visitação de terça a domingo, das 9h às 12h e das 14h às 18h, até 29 de agosto. Entrada gratuita.


Anne Frank revisitada Grupo Teatro Rasgado monta peça baseada nos escritos da jovem judia

As atrocidades do nazismo chegam aos palcos pernambucanos, este mês, no espetáculo Annexo Secreto (texto de Luciana Lyra e direção de Fátima Aguiar), baseado nos famosos escritos da menina judia Anne Frank. A montagem do Grupo Teatro Rasgado é um reencontro com a obra

ARTES CÊNICAS

89 »

O Diário de Anne Frank, publicada em 1947, pelo pai da garota, morta num campo de concentração. Enclausurada junto à família, num anexo de um estabelecimento comercial de Amsterdã, fugindo do nazismo, Anne Frank encontrou no seu diário, chamado por ela de Kitty, um refúgio. No palco, só existem duas personagens: Anne e Kitty (Milena Lago e Iracema Soraya, respectivamente). Entre elas, é estabelecido um diálogo revelador de uma garota que passa por um surpreendente amadurecimento. A adaptação apresenta os anseios dos jovens de forma atemporal, mostrando que, além das dificuldades causadas por sua condição durante a guerra, Anne também esboçava as dúvidas típicas da adolescência. Annexo Secreto, de Luciana Lyra. De 21/08 até 19/09, no Teatro do Armazém 14 (Cais do Apolo – Bairro do Recife. Fone: 34245613), sábados e domingos às 20h. Ingressos: R$ 10,00 (inteira) R$ 5,00 (meia).

Novos “Otelos”

Piano no palco

A Escambo Companhia de Criação é o único grupo pernambucano classificado para a próxima fase do projeto Criação Teatral Volkswagen, com apresentação marcada para o dia 9 deste mês. Junto aos pernambucanos, disputando uma vaga na final, também vão se apresentar participantes do Piauí, Distrito Federal, Goiás, Bahia e Mato Grosso. A peça encenada por todos os grupos será Otelo Para Todos os Brasileiros, adaptação de Antônio Abujamra da peça O Novo Otelo, de Joaquim Manuel de Macedo. O grupo vencedor do concurso vai receber R$ 50 mil para montar um espetáculo. A Escambo Companhia de Criação, formada pelos atores Andreza Maurício, Carlos Ferreira, Valéria Vicente e Calixto Neto, foi criada em 2001 e já tem duas montagens no seu currículo: História do Zoológico e Noturno (foto).

A partir do dia 12 de agosto, entra em cartaz, no teatro Arraial, a peça Nero, do grupo Engenho de Teatro. O texto de Alexsandro Souto Maior conta a história do imperador romano, enfatizando a ingovernabilidade protagonizada por ele. O Nero apresentado subverte as leis da sua época e se entrega aos prazeres efêmeros. O ator Eron Villar protagoniza o espetáculo, que também traz os atores Andréa Araújo, Lane Cardoso e Vanessa Lins, alternando-se em vários papéis. A encenação, bastante intimista, recebe influência dos jogos de azar, destacando o espírito enigmático dos personagens. O grupo foi criado em 1999, com os estudos que deram origem ao espetáculo O Terceiro Dia (2002).

O espetáculo Um Piano à Luz da Lua volta aos teatros recifenses, depois de cumprir temporada no final do ano passado e participar do Janeiro de Grandes Espetáculos. De 27 a 29 de agosto, no Teatro Hermilo Borba Filho, e nos dias 12, 19 e 26 de setembro, no Teatro de Santa Isabel, o público poderá conferir a montagem da Teodora Lins e Silva Companhia de Teatro, com texto do carioca Paulo César Coutinho e direção de Roberto Lúcio (da peça Agnes de Deus). Um Piano à Luz da Lua se passa no final dos anos 50 e revela a fragilidade de uma família comum da classe média brasileira, destacando o conflito de relações entre pais e filhos e os modos diferentes escolhidos por cada um para viver a sua vida.

Otelo Para Todos os Brasileiros, adaptação de Antônio Abujamra. Dia 9 de agosto, no Teatro Apolo (Rua do Apolo, s/n, Bairro do Recife. Fone: 81.3224 1114), às 20h.

Nero, de Alexsandro Souto Maior. A partir de 12 de agosto, de quinta a sábado, às 20h, no Teatro Arraial (Rua da Aurora, 457, Boa Vista, Recife. Fone: 3134.3012). Ingressos: R$ 5,00.

Nero no Arraial

Um Piano à Luz da Lua, de Paulo César Coutinho. De 27 a 29 de agosto, no Teatro Hermilo Borba Filho (Fone: 3224.1114) e nos dias 12, 19 e 26 de setembro, no Teatro de Santa Isabel (Fone: 32241020), às 20h. Ingressos R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (meia).

AGENDA

Fotos: Divulgação


AGENDA

» 90 MÚSICA Fotos: Divulgação/ICE

Inna-Esther e Mark Kosower

Encontro para violoncelos O10º International Cello Encounter traz músicos internacionais para concertos gratuitos, durante15 dias Em sua 10ª edição, o Festival Internacional de Violoncelos (Cello Encounter), criado por David Chew, o mais brasileiro dos violoncelistas ingleses, é hoje um evento repleto de grandes números: 35 músicos estrangeiros, 450 brasileiros, oito orquestras, sendo três sinfônicas, e um total de 62 concertos, em 25 espaços culturais, com entrada franca para um público estimado de 13.000 pessoas. O concerto de abertura, que acontece no Theatro Municipal do Rio de Janeiro com obras de Tchaikovski, De Falla e Dvorak, reúne a Orquestra Petrobras Pro Música e a violoncelista israelense Inna-Esther Joost, regidos pelo mexicano José Guadalupe Flores. Como o próprio nome indica, o festival dedica seus arranjos ao violoncelo, mas ano a ano abraça o som

de outras cordas, como viola, harpa, violão, contrabaixo e violino, e de instrumentos como clarinete, flauta, trompa, fagote, cravo e piano. A 10ª edição traz importantes artistas do cenário da música de câmara. Como destaques, Krosnick, do Julliard String Quartet; Judy Glyde, dos EUA; Mark Kosower, o mais promissor jovem mestre de violoncelo da atualidade nos EUA; Armin Ksajikian, violoncelista de origem Armênia, spalla das Orquestras do Hollywood Bowl e da Filarmônica de Los Angeles e especialista em trilhas de cinema, entre outros instrumentistas que executam obras de grandes mestres, como Brahms, Schubert, Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Tom Jobim, Piazzolla, Beethoven, Mendelssohn, Bach e Vivaldi. O evento promove ainda master classes de violoncelo, piano e flauta.

10º International Cello Encounter. O evento acontece de 1º a 15 de agosto, em vários horários e espaços culturais do Rio de Janeiro. Programação completa no www.ice2004.com.br

Continente agosto 2004

Ópera em São Paulo A cantora italiana Luisa Castellani é uma das principais atrações da 39º edição do Festival Música Nova, que acontece entre 06 e 20 de agosto, nas cidades de São Paulo e Santos. Reconhecida por sua versatilidade, Luisa Castellani gravou compositores não apenas tradicionais, como Mozart e Debussy, mas é também uma das intérpretes favoritas dos compositores de música contemporânea. Além de interpretar autores históricos do século 20, como Bartók, Stravinsky, Schoenberg, Dallapiccola e Webern, Castellani foi a primeira a gravar trabalhos de Berio, Cage, Ferneyhough e Kurtag, entre outros. Em 1991, ganhou o Prêmio Gino Tani de ópera. A atual edição conta com a presença de outros artistas internacionais, como o percussionista francês Thierry Miroglio, o compositor norte-americano Jack Fortner, o acordeonista finlandês Timo, além de artistas e grupos brasileiros como as orquestras Sinfonia Cultura e Sinfônica de Santos. Fundado em 1962 pelo compositor Gilberto Mendes, o FMN é o mais antigo do gênero nas Américas. Divulgação/FMN

Festival Música Nova. Theatro São Pedro, Centro Cultural São Paulo, SESC – Consolação, Aliança Francesa e MASP (São Paulo) e no Teatro Municipal Brás Cubas (Santos), de 6 a 20 de agosto. Programação completa no www.festivalmusicanova.com.br


Estréia segura

Parceria antológica

Segura o Cordão é o primeiro CD do novato Tiné, mas certamente uma obra que marca o início de uma trajetória brilhante. No álbum, ele revisita suas raízes em Arcoverde, porém, não segue modismos; apenas é fiel aos aboios, rojões, torés, emboladas, toadas, sambas de coco, novenas, baiões e xotes que cresceu ouvindo. Também traz o samba “O Pato”, de Neuza Teixeira e Jaime Silva, conhecido na voz de João Gilberto. A poesia de Tiné projeta imagens insólitas, como em “Lavandera”: “Eu vou cantar com a voz da lavandera/ Eu vou lavar a roupa suja/ Roupa suja se lava em casa/ Onde eu moro lava no rio/ No rio se lava a vida toda/ No rio onde eu lavei meus pés”, ou em “Cobrinha”: “A cobra que não morde desalinha, sim/ A cobra que te morde é cascavel/ A que não morde, dá um nó cego/ Daqueles que quem dá é só minha cumadre Fulô/. Segura o Cordão reúne grandes nomes da música pernambucana: Caçapa, que também assina os arranjos, Siba, Maíra e Moema Macedo, Sérgio Campelo e Samba de Coco Raízes de Arcoverde. O CD só deixa a desejar pela gravação, que abafou o som, impedindo a audição de algumas letras, que também não constam no encarte.

O selo carioca Dubas vem se empenhando em reapresentar ao Brasil grandes nomes da sua música, ora resgatando-os do esquecimento, ora retirando LPs do limbo. Foi assim com Edu Lobo e Tenório Jr. Agora é a vez do “incompreendido” João Donato, com o relançamento de Lugar Comum, de 1975, CD que, junto com o novo gravado em parceria com Wanda Sá, aguardando lançamento no Brasil pela Trama, tira do desarrimo um dos marcos musicais daquela década e assinala o mitológico encontro entre o bossa-novista e o tropicalista Gilberto Gil, co-autor de oito das 12 faixas. De Lugar Comum brota o cantor solista de emissão íntima e suingue intenso, aplicados tanto a músicas ponteadas pelo candomblé, como “Ê, Menina”, “Emoriô”, “Xangô é de Baê”, pelos ritmos afro-cubanos, em “Tudo Tem”, ou mesmo a “Lugar Comum”, faixa-título que já foi “Índio Perdido” e teve seu fio melódico capturado por Donato de um pescador à beira do Rio Acre. Uma obra que parece ter sido gravada hoje, dada a sua nova bossa que embute a atemporalidade dos grandes músicos, mas que, estranhamente, teve a capa original adulterada, ganhando uma versão subjetiva, porém desnecessária.

Segura o Cordão, de Tiné. Independente, preço médio R$ 10,00. Contato: viola_cacapa@hotmail.com

Lugar Comum, de João Donato. Dubas Música, preço médio R$ 30,00.

Música urgente

Carmin

Sotaque recifense

Michel Legrand Luiz Eça é um belíssimo e histórico CD-homenagem. Um raro momento da discografia brasileira em que Luiz Eça – gênio da MPB, criador do Tamba Trio, professor, compositor e arranjador – é reverenciado por músicos não menos talentosos, como Francis Hime, Jacques Morenlebaum, Ivan Lins e o pianista francês Michel Legrand, que capitaneia a obra. O álbum inclui duas partituras inéditas, parcialmente apagadas pelo tempo e recuperadas de forma quase arqueológica: a impressionista “Valsinha Urgente para um Cidadão Passageiramente Triste” e “Febrônio”. Um disco obrigatório para os apreciadores da boa música.

Bïa Krieger é uma cantora brasileira que tem a memória musical povoada pelas tradições de outros países. Filha de pais comunistas, cresceu no exílio, incorporando às suas origens as culturas do Chile, Peru, Portugal e França, este último voluntário, para iniciar carreira. Premiada no exterior pelo Le Monde e pela Academie Charles Cros, a cantora começa a se lançar no Brasil. Em Carmin, seu terceiro álbum (primeiro no país), Bïa canta xotes, baiões, sambas, bossa-nova, fados e música pop. Também assina várias composições, inclusive uma versão em francês para “Terezinha”, de Chico Buarque, “Dans Mon Coeur”.

Sotaque é o primeiro disco da dupla Luciano Magno e Fábio Valois, instrumentistas que individualmente têm trajetórias sólidas no Recife e no país – já tocaram com Paulo Moura, Hermeto Pascoal, Sivuca, entre outros bambas. Neste álbum, Valois, o pianista, e Magno, o guitarrista, tocam (assinam todas composições) essencialmente jazz, ora com matizes chorísticos ou bossa-novistas, ora com a cadência do frevo, do baião de viola, do xote, do maxixe (“Maxixe na Hora H” é uma das faixas mais saborosas) e do rock; um repertório sem muitas inovações, mas de bom gosto e impregnado do Recife.

Michel Legrand Luiz Eça. Biscoito Fino, preço médio R$ 20,00.

Carmin, de Bïa Krieger. Saravah, preço médio R$ 40,00.

Sotaque, de Luciano Magno e Fábio Valois. Independente, preço médio R$ 15,00. Continente agosto 2004

AGENDA

MÚSICA 91 »


E o Kikito vai para ... O 32º Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino realiza mais uma edição, consagrandose como a maior vitrine do cinema nacional Começa, no próximo dia 16, o maior e mais renomado festival de cinema do país, na cidade de Gramado, na Serra Gaúcha. O 32º Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino vai apresentar um apanhado de longas, médias e curtas-metragens (ficção e documentário) brasileiros e, em algumas categorias, latinos, durante cinco dias. A programação conta ainda com a Mostra Gaúcha, que visa chamar a atenção para a produção do Estado. Dos 47 filmes inscritos na categoria Longa-metragem Ficção Brasileiro, apenas cinco – O Quinze, de Jurandir Oliveira; As Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo; Vida de Menina, de Helena Solberg; Araguaya, Conspiração do Silêncio, de Ronaldo Duque e Procuradas, de Zeca Pires e José Frazão – foram selecionados para concorrer ao Kikito. As produções Mensageiros da Luz – Parteiras da Amazônia, de Evaldo Mocarzel, e Cárcere, de

Liliana Sulzbach, vão competir na categoria Documentário. Serão exibidos 25 curtas e médias-metragens dos 123 inscritos. O filme Olga, de Jayme Monjardim, com lançamento programado para o dia 20 de agosto, será o hors concours do festival, com exibição marcada para o dia 16. O evento vai prestar uma homenagem ao ator Lima Duarte, que receberá o Troféu Oscarito, e à cineasta Tizuka Yamasaki, que levará o troféu Eduardo Abelin. A organização pretende fazer desta edição uma das maiores que a cidade já viu, marcando o ano em que se comemoram os 50 anos de emancipação de Gramado. Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino De 16 a 21 de agosto. www.festcinegramado.com.br festcinegramado@gramadosite.com.br

Curtas na tela

A volta da Volta

Com o foco dedicado às megacidades, integrando-se às comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo, o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo comemorará seu 15o aniversário, entre os dias 26 de agosto e 4 de setembro, seguindo para o Recife, nos dias 5, 6 e 7 de setembro. Na última edição do festival, foram exibidos 380 filmes (144 Cena do filme (A)torjiza, de Stefan Arsenijevic brasileiros), em 11 salas de São Paulo, para cerca de 30 mil espectadores. Entre os destaques internacionais, estão Le Lion Volatil, dirigido pela cineasta francesa Agnès Varda, uma das precursoras da Nouvelle Vague, o filme esloveno (A)torjiza, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, dirigido por Stefan Arsenijevic, e Two Cars, One Night, da Nova Zelândia, agraciado com o prêmio de melhor curta no mesmo festival. O curta-metragem de animação ganhador do Oscar 2004, o australiano Harvie Krumpet, também integra a Mostra Internacional. Este será o segundo ano do evento no Recife. Serão exibidos cerca de 35 curtas, incluindo os destaques internacionais da programação paulista. O festival também vai passar pelo Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Carlos.

A Warner Bros lança em DVD duplo o clássico, vencedor de cinco Oscar, A Volta ao Mundo em 80 Dias, dirigido por Michael Anderson e produzido por Michael Todd, filme que levou às telas o livro de Júlio Verne. Uma esplendorosa mostra de maravilhas: David Niven, Cantiflas, Robert Newton e Shirley MacLaine, em edição restaurada digitalmente, com extraordinária qualidade de cor e som, além de extras, como a introdução de Robert Osbourne, relacionando esta obra e Da Terra à Lua, obra também de Júlio Verne, transformada em filme por Georges Méliès, comentários de Brian Sibley, da BBC de Londres, e cenas da entrega dos prêmios da Academia.

15º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. De 26 de agosto a 4 de setembro/www.kinoforum.org 2º Festival Internacional de Curtas do Recife. De 5 a 7 de setembro, no Cine-Teatro Apolo (Rua do Apolo, s/n, Bairro do Recife. Fone: 81. 3224.1114). Entrada gratuita.

Continente agosto 2004

A Volta ao Mundo em 80 Dias. Warner Bros, preço médio R$ 39,90.

Fotos/Divulgação

AGENDA

Ludmila Dayer em Vida de Menina, de Helena Solberg

» 92 CINEMA


93 »

A letra e a voz do Recife

Entre os dias 16 e 22 de agosto, o Recife vai sediar, pela segunda vez, o Festival Recifense de Literatura – A Letra e a Voz. Criado como forma de celebrar o dia do poeta recifense (16 de agosto – homenagem ao dia do nascimento do poeta Mauro Mota), o evento tenta preencher uma lacuna, democratizando o acesso da população à literatura. A abertura do festival será marcada pelo lançamento das coletâneas Marginal Recife 3, Estação Recife 2 e Invenção Recife 1. A literatura contemporânea em línguas latinas terá destaque no seminário “Duas Línguas, Muitas Culturas” (de 17 a 19), no qual opinarão Luzilá Gonçalves, Everardo Norões, Magdelaine Ribeiro e Maria Aparecida Ribeiro. A partir do dia 19, o Armazém 12 vai ser transformado numa grande feira de livros, com cerca de 50 estandes de editoras consagradas, mas também de editores, livreiros, poetas e artistas independentes. O público infantil será lembrado com sessões de contação de histórias e rodas de leitura. O Mapa das Letras do Recife, contendo indicações dos lugares relacionados à literatura na cidade, também será lançado. No encerramento do festival, o grande destaque será o grupo francês Femmouzes T, composto por uma brasileira de Salvador (Rita Macedo) e uma francesa de Toulouse (Françoise Chapuis). A música produzida por elas tem um sotaque provençal (francês e brasileiro), misturando o acordeom e o pandeiro com as batidas da música eletrônica.

Imagens/Divulgação

O II Festival Recifense de Literatura tenta democratizar o acesso aos livros

II Festival Recifense de Literatura. De 16 a 22 de agosto, no Armazém 12. Informações: 81.3224.3196

Travessia literária

Os Sertões no CCBB

Com o tema “Da Ibéria à América: Travessias Literárias”, tem início no dia 26 de agosto, seguindo até o dia 7 de setembro, a 6a Bienal Internacional do Livro do Ceará. O foco das discussões será a troca cultural entre o Brasil e os países ibéricos. O escritor gaúcho Moacyr Scliar Espera-se que cerca de 300 mil pessoas visitem a feira, instalada no Centro de Convenções de Fortaleza, e confiram os 78 mil títulos disponíveis de expositores do Brasil e de vários outros países. Nomes nacionais de peso, como Moacyr Scliar, Affonso Romano de Sant’Anna, Carlos Heitor Cony e Nélida Piñon já confirmaram presença. Antonio Carlos Nóbrega vai abrir a Bienal com um espetáculo e participar da conferência sobre os romanceiros ibéricos e brasileiros. Os nomes internacionais também são fortes, a começar pela grande homenageada do evento, a escritora portuguesa Augustina Bessa-Luís. Outro nome de destaque é o do escritor moçambicano Mia Couto. O chileno Antonio Skármeta vai participar da celebração ao centenário do poeta Pablo Neruda, apresentando a palestra Neruda por Skármeta.

A obra seminal de Euclides da Cunha será mais uma vez discutida, entre os dias 11 de agosto e 15 de setembro, no ciclo de palestras sobre Os Sertões, que acontece no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, com a participação do professor Maurício Gomes de Almeida – pesquisador e professor adjunto da Faculdade de Letras da UFRJ. A proposta é transportar os alunos para o palco dos acontecimentos tratados no livro. O curso oferece duas opções de preço: R$ 15,00 ou R$ 35,00 (que inclui o livro Os Sertões – Campanha de Canudos, que traz o texto integral de Euclides da Cunha comentado).

6ª Bienal Internacional do Livro do Ceará. De 26 de agosto a 7 de setembro, no Centro de Convenções de Fortaleza. www.secult.ce.gov.br

Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro. Fone: 21. 3808.2020 www.cultura-e.com.br

Continente agosto 2004

AGENDA

LITERATURA


Fotos: Divulgação

AGENDA

» 94 LIVROS

A Revolução dos Cavalgados Publicado em 1967, clássico de Amaro Quintas sobre a Revolução Praieira de 1848 é relançado por editora carioca

“A Praia foi um dos raros movimentos de massa em nossa História política”. Assim, o historiador Amaro Quintas (1911-1998) definiu a insurreição que abalou Pernambuco em 1848. Com efeito, a Revolução Praieira foi muito além da dicotômica rivalidade entre liberais e conservadores do Império. Agregou, de forma sem precedentes, não apenas os proletários da cidade e dos campos, brancos pobres, negros e índios, mas a intelectualidade pernambucana afinada com os ideais republicanos e até, em sua facção “jacobina”, francos simpatizantes do socialismo, como os advogados-jornalistas Antônio Pedro de Figueiredo e Borges da Fonseca e o “general das massas” Abreu e Lima. Não à toa, os conservadores classificaram os revolucionários de “esfarrapados” e “clube dos mulambos”. Quintas, como o professor Nelson Saldanha observa no prefácio, era um autor preocupado com a “interpretação” da História. Adota uma perspectiva próxima da análise marxista, da qual se diferencia explicitamente ao negar a predominância absoluta dos fatores econômicos no fato histórico. Entretanto, sem prejuízo do embasamento em fontes plurais, engaja-se claramente ao lado dos oprimidos, denunciando “o caráter patriarcal da nossa vida social, dominada, ainda, pelos ‘terratenientes’ dos nossos engenhos”. A Revolução Praieira, como demonstra Quintas, sofreu reflexos do 1848 na França e mobilizou amplas massas em torno da luta contra a estrutura social vigente em Pernambuco e tão bem resumida na célebre quadra de Jerônimo Vilela de Castro Tavares: “Quem viver em Pernambuco / deve estar desenganado / ou há de ser Cavalcanti / ou há de ser cavalgado”. (Homero Fonseca) O Sentido Social da Revolução Praieira, Amaro Quintas, Editora Atlântica, 168 páginas, R$ 32,00.

Continente agosto 2004

Fábio Campana

Peregrino do tempo Em Todo o Sangue, o novo livro de Fábio Campana, o leitor reencontra o guardador de memórias, o colecionador de histórias e personagens de um rebanho que percorre as vias do quase impossível, entre a ficção e a realidade, entre o lirismo e a estranheza do mundo. Estrangeiro de si mesmo, Campana anuncia o apocalipse, revela e peregrina pelo tempo, para ele, pátria sem limite, entre a dor da existência humana e a dança de um último tango em Curitiba, cidade em que vive desde a adolescência e lugar onde construiu seu olhar para o mundo – lugar muitas vezes dilacerado por indagações que assumem intensidades proféticas – território atemporal, fábula e espelho, onde ora se vê menino na descoberta do mundo, ou onde surge transfigurado guerreiro de impérios milenares e soterrados, entre ruínas de sangue e ferrugem, algemas e gritos. Campana divide o livro em três partes e orienta o leitor numa viagem inversa, não linear, da morte à vida, da escuridão à luz. Provocador, perturba os sentidos do leitor, insinuando uma narrativa com profusão de “eus” que dialogam entre si e um possível “outro” imaginário, que sente e se vê ao mesmo tempo: revela-se seu próprio daimon. Quando afirma, por exemplo, “ergo a espada para decapitar sonhos”, exorciza-se em seu pesadelo e condena-se a uma loucura eterna, onde se anuncia anjo negro e salvação. (Jussara Salazar) Todo o Sangue, Fábio Campana, Travessa dos Editores, 150 páginas, R$ 20,00.


Para adulto e criança

Retrato americano

Clássico e mítico

Este livro é resultado da união de três poetas, de três nacionalidades diferentes. O francês Jacques Prévert, autor dos belos poemas; o holandês Wim Hofman, também artista plástico, que fez a seleção e as excelentes ilustrações dos textos; e o brasileiro Carlito Azevedo, responsável pela ótima tradução. O resultado é um misto de alta poesia, delicadeza e uma pitada de crueldade, típica dos antigos contos para crianças e que também é característica do universo infantil. Em capa dura e edição irretocável, é livro de fácil recepção, e que tanto pode proporcionar deleite ao adulto quanto aos infantes.

Em A América e os Americanos, o escritor John Steinbeck traça um grande painel da América, com uma visão apaixonada e compassiva, bastante crítica no início e bem mais conformista ao final. São ensaios curtos, publicados na imprensa entre 1936 e 1966, contendo desde denúncias vigorosas das questões sociais dos EUA nas décadas de 30 e 40 até a defesa dos american way of life a partir dos anos 50. Sempre numa linguagem fluente e apresentando perspectivas surpreendentes, Steinbeck não apenas revela o caráter grandioso e contraditório da América como entrelaça a narrativa com pinceladas autobiográficas. Uma falha do livro é a falta de datas para contextualizar os fatos.

Publicado pela primeira vez, em 1965, um ano após a morte do autor, o romance João Ternura tornouse mítico muito tempo antes. Não se sabe ao certo quando começou a escrevê-lo, mas, ao longo de décadas, foi sucessivamente abandonado e reescrito pelo mineiro Aníbal Fernandes. O personagem que dá nome ao livro é uma espécie de representação do povo brasileiro, nos seus esforços de crescer não apenas materialmente e em termos pessoais, como também em busca de justiça, liberdade e afirmação cultural. Apesar do título singelo, é romance fragmentário e, em seu último capítulo, experimental, à maneira de Joyce. Por sua obra, que engloba contos primorosos, seu autor é um clássico da literatura brasileira.

Dia de Folga, Jacques Prévert, Cosac & Naify, 48 páginas, R$ 25,50.

A América e os Americanos, John Steinbeck, Editora Record, 490 páginas R$ 59,00.

João Ternura, Aníbal Machado, José Olympio Editora, 304 páginas, R$ 35,00.

Razão e sentimento

Recordelizando

Amores frágeis

Ensaísta, poeta, contista, romancista e crítico literário, Ricardo Daunt analisa as relações de Eliot e Pessoa com a necessidade de partir de uma tradição viva para, através de sua individualidade artística, chegar a uma poética original. Classifica o autor português como integrante da poesia metafísica perseguida por seu colega americano-inglês, e estabelece com clareza o que significa a expressão, rastreando seus seguidores, a partir de Dante e Guido Cavalcanti, e continuando com John Donne, Walt Whitman, Jules Laforgue e Tristan Corbière. Poesia metafísica, ensina Daunt, não é propriamente poesia filosófica, mas aquela que faz a razão sentir e o sentimento pensar, colocando em diálogo, no mesmo plano, o espiritual e a carne.

O poeta cearense Virgílio Maia pegou textos de autores de lugares e épocas diversos – Jorge Luis Borges (A Intrusa), Maria de França, poetisa provençal do século 12; Guilherme de Aquitânia (1071-1127), considerado o primeiro trovador; Luís da Câmara Cascudo e Gonçalo Trancoso (1515?-1596?) – e reelaborou-os em formato de folheto popular ou literatura de cordel. Em comum, as narrativas referem-se a um mundo épico e mágico de onde provieram as raízes da literatura sertaneja. Trata-se não de simples transposição de temas para uma determinada linguagem, mas de adaptação em que Maia torna-se co-autor dos originais.

A fragilidade dos laços humanos no mundo contemporâneo, em que a instabilidade, a fugacidade, o veloz e o imprevisível moldam as nossas relações, é o tema deste ensaio do sociólogo polonês-americano Zygmunt Bauman, sempre voltado para questões da mais pertinaz atualidade. Das dificuldades nos relacionamentos amorosos, afetados pela liquefação dos sentimentos, ao estranhamento do Outro que leva ao recrudescimento da xenofobia na Europa, tudo que é humanamente atingido pela Era Virtual interessa ao olhar atento e solidário de Bauman, que não se limita ao diagnóstico, alertando para os danos da crescente incapacidade de amar.

T. S. Eliot e Fernando Pessoa, Ricardo Daunt, Landy Editora, 223 páginas, R$ 40,00.

Recordel, Virgílio Maia, Ateliê Editorial, 144 páginas, R$ 30,00.

Amor Líquido, Zygmunt Bauman, Jorge Zahar Editor, 192 páginas., R$ 32,00. Continente agosto 2004

AGENDA

LIVROS 95


»

96

ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Uma guerra olímpica

O

mundo está festeiro neste mês de agosto – sem nenhum desgosto. Milhares de deuses ocupam majestosos partenons para a abertura das Olimpíadas de Atenas num brinde especial com Pierre de Fredy, o barão de Coubertin, estalando cristais de glórias ao sucesso de tantos anos de apoio aos esportes. Uma parceria para lá de secular, nunca esquecida e que jamais será perdida nos noticiários do infinito ou na imortalidade de nenhum espírito com mens sana. Se “o importante não é vencer, é competir”, logo é chamado pelos potentes e “oficiais” ecos galácticos, um aureolado bispo de Londres, verdadeiro autor desta frase (pois todos pensam ser do barão), pronunciada durante ato religioso antes dos Jogos Olímpicos de 1908, realizados no seu país, e que viria a sintetizar a paz entre todos os povos através daquelas disputas desportivas da era moderna, já iniciadas a partir de 1896. Tudo começou a partir de uma guerra em 490 a.C., quando gregos e persas se escarafuncharam em batalha desenrolada entre a cidade de Maratona e o mar Egeu. A luta estava crucialmente difícil para os gregos, comandados por Milcíades. Com muitas baixas e sentindo o avanço das tropas persas, capitaneadas por Dario, em direção a Maratona, resolve pedir reforço. Escolhe Fidípides, um de seus valentes subalternos, e o manda levar o apelo a todas as cidades, até Atenas, 40 km distante. Eficiente corredor, logo retorna acompanhado de 10 mil soldados, e os gregos derrotam o exército inimigo. Vibrando entusiasticamente com a vitória, Milcíades volta a convocar seu militar velocista e ordena que o mesmo vá de novo a Atenas correndo, sem parar, para informar que tinham vencido a batalha. Em lá chegando, Fidípides só teve forças para dizer uma palavra: “Vencemos!” – e caiu morto. Daí a idéia da prova maratonista, procedência dos Jogos. Assim, originaram-se importantes flagrantes de finais de maratonas: desde a de Londres, em 1908, quando o italiano

Continente agosto 2004

O esporte é o meio mais forte de aproximar polêmicos e acirrados confrontos ideológicos e partidários entre raças e credos Dorando Pietri se aproximou, cambaleante, do final da prova, cruzando a linha de chegada, amparado por um fiscal, por isso desclassificado pela ajuda recebida (possível mote para o bispo dizer a importância de competir), à outra, semelhante, acontecida em Los Angeles, 1984, cuja protagonista, a suíça Gabriele Andersen, transformou sua chegada, em 37º lugar, num espetáculo dramático, ao exibir, lentamente, todo o esgotamento físico que acomete um ser humano. Em palanflórios dignos daquele brinde, anunciados pelas trombetas prateadas de Olímpia, eis que o barão faz surgir um tribunal ficcional, que não absolveria os pecados nem tanto originais dos países em guerra, não fosse o esporte o meio mais forte de aproximar polêmicos e acirrados confrontos ideológicos e partidários entre raças e credos. Apaixonante é o esporte – degradante é a guerra. Façanhas como a de Jonnie Weissmuller ao quebrar o recorde dos 100m em nado livre, de 1924 a 1928, atestando a nova marca abaixo de um minuto; em Berlim, 1936, a superior raça ariana, pregada pelo horripilante Hitler, caía na raia de atletismo diante Jesse Owens, neto de escravos negros americanos; por oportuno, sobressaindo-se a brasileira Maria Lenk, criando o nado borboleta; a imagem emocionante da dinamarquesa Lis Hartel, semiparalítica, recebendo sua medalha no hipismo em Helsinque, 1952; esses sim, benditos e ecumênicos registros de ontem, que não devem passar despercebidos pelo sentimento humano, a cada dia incentivando a prática de quaisquer esportes, livrando a mocidade do caminho escuro das drogas e da guerra – o aprendizado do bem comum à cultura física e à qualificação da arte esportiva amadora. Uma nova história vai começar e, convictamente, entre as colinas de Atenas os jovens ousarão repetir Fidípides: “Vencemos!” – mas com o romantismo das belas histórias da guerra olímpica do congraçamento de diferentes civilizações, que certamente darão notícias através de manchetes e brindes desportivos. •




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.