Continente #049 - Dom Quixote

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EDITORIAL Acervo do Projeto Portinari

Dom Quixote e Sancho Pança por Cândido Portinari – da série de 21 desenhos produzida em 1956

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Vida e Literatura

esocupado leitor: com certeza sabeis que nos primeiros dias do ano de 1605 – há, portanto, 400 anos –, das oficinas do impressor madrileno Juan de la Cuesta, saiu a primeira parte do romance O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra (1547 – 1616). O sucesso do livro foi imediato. Cervantes, entretanto, não o considerava sua obra maior, apostando suas fichas em Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda, publicado postumamente. A segunda parte do romance foi escrita e publicada, às pressas, em 1615, no rastro da edição de uma continuação apócrifa, assinada por um fictício Alonso Fernández de Avellaneda. Quatro séculos depois, uma pesquisa entre escritores de 54 países, divulgada pelo Instituto Nobel, aponta a obra como o melhor livro de todos os tempos. A Espanha comemora o quarto centenário da obra, durante o transcorrer de 2005. Já no ano passado, o astronauta espanhol Pedro Duque levara um exemplar do livro em CDROM até a Estação Espacial Internacional. O que explica essa permanência? Ou, em outras palavras, o que faz de um clássico um clássico? Muitas podem ser as definições, dependendo da abordagem. Mas o que caracteriza obra assim aclamada é sua perenidade, sua capacidade de transcender ao tempo, de permanecer viva após a morte do seu autor. A consagração desse tipo de obra – como as de Homero, de Dante, de Shakespeare –

joga para o anonimato o próprio autor: Quixote ofusca Cervantes. Os livros tornam-se mais citados do que lidos. Seus personagens convivem com os leitores contemporâneos como figuras presentes, até íntimas. Muitos que não leram Shakespeare sabem a história de Romeu e Julieta. Assim como o termo quixotesco está incorporado à linguagem comum; no Dicionário Houaiss, registramse seis verbetes derivados do personagem. Literariamente, Dom Quixote é uma obra de tramas superpostas, em que o foco narrativo varia da voz do verdadeiro autor (Cervantes) para um autor fictício (Cide Hamete Benengeli), absorvendo, até, personagem do romance oportunista do suposto Avellaneda. Sátira às novelas de cavalaria e às instituições da época, perfil de dois personagens memoráveis, comédia de costumes, romance realista e psicológico, barroco e arcádico, Dom Quixote é assinalado como o fundador da narrativa moderna. Lido de maneiras diversas ao longo do tempo, permanece como uma obra aberta a inúmeras releituras, tendo influenciado gerações de grandes escritores, de Kafka a Machado de Assis, de Joyce a Guimarães Rosa, de Dostoievski a Ariano Suassuna. É um meta-romance, um discurso sobre a relação entre a Literatura e a Vida, um apanhado colossal das grandezas e misérias humanas. Exige, pois, leitor caríssimo, uma certa base para ser lido, mas, para os que são picados pela “tentação do impossível”, é leitura indispensável. Vale. • Continente janeiro 2005

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CONTEÚDO

Flávio Lamenha

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Bettmann/Corbis

12 Peter O’Toole interpretou um inesquecível Quixote

40 Parque de Esculturas no Shopping Recife

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CONVERSA

08 Antonio Maura: “A linguagem é a mais importante peculiaridade da escrita brasileira”

CAPA

12 Os 400 anos de Dom Quixote, início do romance moderno 16 Cervantes e o fazer literário, na visão de Vargas Llosa 20 A obra de Cervantes e seus reflexos na pós-modernidade 24 Espanha festeja aniversário da obra 25 Personagens de poema de Marcus Accioly

LITERATURA

26 O Enigma de Qaf associa erudição ao pitoresco 28 O Silêncio do Delator fotografa uma geração 31 Prosa: os sutis Aforismos de Cândido Rolim 32 Poesia: indagação do poeta João Esteves Pinto 33 Agenda/Livros HUMOR 38 As críticas corrosivas de Robert Crumb a uma Amerika de pesadelo ARTES 40 Shopping Center, uma galeria ao ar livre 44 A obra de significados do Mestre Didi, da Bahia 47 Agenda/Artes Continente janeiro 2005

CINEMA 50 A ideologia de Hollywood, do beijo proibido ao presidente negro CÊNICAS 60 Assombrações do Recife Velho chega aos palcos 64 Agenda/Cênicas ESPECIAL 66 Narcisismo: a sociedade debruçada sobre o lago 72 Narcisismo contemporâneo, discurso e desejo MÚSICA 78 Conservatório leva a boa música para todos 82 Jovem banda Mombojó arrebata prêmio paulista 85 Agenda/Música TRADIÇÕES 86 Os poemas homéricos e a poesia popular nordestina SOCIOLOGIA 90 O mais abrangente estudo do cangaço é reeditado HISTÓRIA 92 O revolucionário Frei Caneca, um antecipador


CONTEÚDO

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Reprodução Hans Manteuffel

66 O mito de Narciso na sociedade pós-moderna

78

Conservatório: boa música ao alcance de todos

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Lembrando os limites da racionalidade

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 Hip-hop nas escolas – engano esconde outro engano

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 48 Bienal de São Paulo: boas intenções, pífios resultados

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 56 Os hábitos alimentares através dos tempos

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 59 O jornalismo na visão ácida de Graciliano

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 94 Samico e a vertigem do detalhe do detalhe

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente janeiro 2005


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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Janeiro Ano 05 | 2005 Ilustração: Cárcamo

Colaboradores desta edição: ADRIANA DÓRIA MATOS é jornalista. ALDUÍSIO M.

DE

SOUZA é psicanalista e escritor.

ALFREDO CORDIVIOLA é doutor em Estudos Hispânicos e Latino-Americanos pela Universidade de Nottingham, Inglaterra, e professor do Dpto. de Letras da UFPE. CLÁUDIA CORDEIRO REIS é estudiosa da Literatura Brasileira e coordena o site Plataforma para a Poesia. CÂNDIDO ROLIM é escritor. DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Perfis & Entrevistas, entre outros. EVERARDO NORÕES é poeta e escritor. FÁBIO ARAÚJO é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é escritor e cineasta. HIRAM FERNANDES

DE

LIMA é advogado.

JOÃO ESTEVES PINTO é poeta. JÚLIO LUDEMIR é jornalista e escritor. LAILSON

DE

HOLANDA CAVALCANTI é chargista e jornalista.

LEIDSON FERRAZ é jornalista e ator. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Poemas e Vigílias. MARCUS ACCIOLY é poeta, presidente do Conselho Estadual de Cultura e autor de Latinomérica, entre outros. PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. Trabalhou nos jornais Rascunho e Jornal do Estado, ambos de Curitiba. RENATO LIMA é jornalista e um dos editores do programa Café Colombo, na Rádio Universitária do Recife. WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de artes plásticas.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.

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CARTAS Arquitetura Venho cumprimentar Guilherme Aquino pela matéria “Arquitetura em Metamorfose”, que divulga a Bienal de Veneza, um raro momento de reflexão da Arquitetura mundial. Arquiteto Ângelo Marcos Arruda, Presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas Campo Grande – MS Inteligente 1 A Revista é maravilhosa. Sou orgulhoso de ser pernambucano, nordestino e de ler uma revista tão inteligente e de tão bom gosto quanto a Multicultural. Continuem assim. Parabéns!!! Alexandre Henrique, Recife – PE

Vida longa à Continente! Quem diria, hein? Quando lançada, rumores de que se acabaria em um ano. Feito o primeiro aniversário, de que seria extinta. E vocês continuam aí, quatro anos depois, firmes, inteligentes e fortes, provando que não existe “olho gordo”, inveja, capaz de minar um trabalho feito com dedicação e cuidado. Muito pelo contrário, a Continente está cada vez melhor. Vida longa à Continente! Regina Célia, Recife – PE

Inteligente 2 Sempre desejei uma publicação como esta e fiquei muito feliz de ter conseguido fazer uma assinatura. Comecei a ser uma das divulgadoras desta revista inteligente. Parabéns! Sugiro uma reportagem sobre Josué de Castro ou sobre os grandes poetas nordestinos, como Patativa do Assaré. Marcela B. Santos, Recife – PE Exemplo Achei muito boa a matéria com Wangari Maahtai, a primeira mulher africana a receber o Prêmio Nobel da Paz. A sua luta pelo meio ambiente e por melhores condições de vida num país como o Quênia, onde há uma das populações mais carentes do mundo, mostra que sempre, mesmo nas condições mais adversas, é possível lutar por um planeta mais feliz. Um exemplo a ser seguido por pessoas que só sabem se queixar ou reclamar, incapazes de tomar uma atitude positiva. Viva Wangari! Alexandre Ramos, Salvador – BA Psicologia e sociedade Muito boa a entrevista com Maria Rita Kehl. A sua minuciosa análise psicológica da sociedade brasileira é bastante pertinente, principalmente quando afirma que hoje em dia as pessoas só acreditam e aceitam suas próprias existências, se aparecerem na mídia. E onde ficam os princípios e valores individuais? É uma pena que tenhamos chegado ao nível de viver Big Brothers diários e globalizados. Alexandre Bento, Brasília – DF Parabéns Parabéns pelos quatro anos da Revista Continente! É um privilégio para o leitor ver uma revista de alta qualidade, feita em Pernambuco, completar quatro anos. Belíssima a edição de dezembro dedicada às mulheres. Destaque para a ótima entrevista com Maria Rita Kehl e para a matéria de capa sobre o feminismo. Renata Rocha, Recife – PE

Mulheres A edição de dezembro da Continente merece aplausos. Não só por ser uma edição comemorativa, mas, principalmente, por ser temática e dedicada às mulheres – uma linda idéia. Como mulher, sentia falta de matérias dedicadas ao nosso gênero, mas em dezembro vocês arrasaram: Maria Rita Kehl, Marlene Dietrich, Camille Claudel, Geninha da Rosa Borges, Elis Regina, Virgínia Woolf, Nísia Floresta (a quem admiro e respeito profundamente). Mulheres que fizeram e fazem a história mundial, imprimindo delicadeza e beleza ao que realizam. Como vocês afirmam no Editorial, a Revista “realça a sua contribuição, em todas as manifestações da arte e da cultura, para a elevação não do seu gênero, mas da espécie humana”. Parabéns também a Rebecca, a garota que escreveu a carta que deu mote à edição. Isabel Fernandes, Rio de Janeiro – RJ

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Camille Ótima a matéria sobre a escultura Camille Claudel. Numa revista dedicada às mulheres, nada mais justo que apresentar a genialidade dessa grande artista que, quase sempre, é vista apenas como uma discípula de Rodin. A vida de Camille e sua paixão pelo escultor compõem umas das mais trágicas histórias de amor do mundo das artes. Parabéns! Bela diagramação, aproveitando as lindas esculturas da artista e seu rosto expressivo. Espera-se que o público pernambucano tenha chance de ver de perto as obras de Camille Claudel, como aconteceu com as obras de Rodin. Quatro anos de sucesso! Continuem assim. Maria Clara Mendonça, Recife – PE

Sugestão Foi uma grata surpresa encontrar, na edição de novembro, o belo ensaio sobre a Índia, do fotógrafo Marcelo Buainain. Publiquem mais ensaios. Ridoval Veras, Recife – PE

Realismo Esta semana, a revista publicada nos Estados Unidos American Artist (edição de janeiro de 2005) e uma outra, Art News, deste mês de dezembro, referemse ao Realismo como sendo a nova tendência da arte mundial. A revista Art News elenca nomes de artistas abstratos que agora se dedicam ao Realismo. Reporto-me à excelente matéria publicada nesta revista “A Re-volta do Realismo”. Igualmente bom é o Manifesto do Realismo Contemporâneo, publicado junto à matéria. A referida matéria saiu na edição de junho deste ano e é, portanto, bastante inédita. No Brasil, alguns críticos dão por encerrada a questão abstracionista, mas não apontam o novo caminho. Parabéns à Revista Continente. Ana Carolina Marcondes, Ponta Grossa – PR

Nível Os assuntos selecionados pela Revista vêm atingindo um nível excelente. Continuem com os aspectos culturais sobre pintores e artistas de modo geral. Maria Lúcia de Pontes Galvão, Recife – PE

Continente Documento Gostaria de ler mais artigos sobre História. Depois da Continente Documento, este assunto foi quase esquecido pela Multicultural. Alexandre Lima, Recife – PE

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CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes

A racionalidade limitada O céu é testemunha de que a vida não é construída por fenômenos racionais

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uito antes de Max Weber apresentar seus conceitos sobre racionalidade limitada, Miguel de Cervantes mostra, através de Dom Quixote, que não há separação nítida entre o racional e o irracional. Entre razão e emoção. Cervantes demonstra dialeticamente que esses conceitos se confundem e se complementam. São essenciais à teia da vida e se incorporam naturalmente aos nossos caminhos e aos nossos destinos. Diz-se que a racionalidade pode ser compreendida pela escolha dos meios adequados para o alcance de determinados fins. Racionalizar a ação dos homens, jogar por terra a tradição e a magia e explicar os fenômenos humanos na perspectiva da ciência era o grande sonho dos iluministas. Nessa perspectiva científica, Herbert Simon, um racionalista moderado, defende o conceito de racionalidade limitada, justificando que as pessoas se comportam racionalmente apenas em função daqueles aspectos de situação que conseguem perceber e interpretar. Daí, a “razão” para as loucuras do mundo. Para a guerra em nome da paz. Para a morte em nome da vida. Salve D. Quixote! Nesse sentido, não se pode esperar, no mundo real, resultados perfeitos, pois além das limitações individuais, as pessoas não têm o controle e o domínio total das informações envolvidas nas suas ações e decisões. Além disso, o céu é testemunha de que a vida não é construída por fenômenos racionais. A visão sistêmica da vida não é linear nem cartesiana. É fenomenológica – dinâmica, e não linear. Para Fritjof Capra, é essa complexidade que torpedeia, na sociedade do conhecimento, o paradigma racionalista da busca do único e melhor caminho, defendido pelos racionalistas clássicos. O ideal é o possível. O modelo sistêmico de solução de problemas e a própria física quântica estão aí para comprovar a inviabilidade das soluções ótimas. Os sistemas funcionam no limite entre a ordem e o caos. Assim, dentro de uma realidade complexa de relações e de interesses, o satisfatório já é um grande resultado. Viva Sancho Pança! De outra parte, no mundo atual, as decisões que afetam a vida das pessoas, além das limitações relacionadas ao contexto social, cultural, político e econômico, incorporam um cipoal de interesses sociais ou corporativos, cuja racionalidade é tipicamente unilateral.

Nesse contexto, limitadas as circunstâncias do tempo e do espaço, tal como ocorre na ficção de Cervantes, o importante a preservar é a afirmação do indivíduo com todas as suas contradições. Afinal, o mundo não é feito à medida do nosso ideal. Mesmo porque os erros do mundo não podem ser contidos, pois têm uma lógica própria. Destarte, pode considerar legítimos os seus próprios interesses, mesmo que muitas vezes eles sejam conflitantes com os objetivos de suas vidas ou de suas organizações. Assim, quando a racionalidade de suas ações forem questionadas, não se iniba em atribuir culpa às limitações da própria racionalidade. O decálogo, a seguir, ilustra algumas das restrições que afetam a “razão” de nossas ações: 1. A racionalidade é limitada pelas limitações do próprio conhecimento; 2. A racionalidade é limitada pelos valores sociais e éticos e pelas realidades ilimitadas de cada contexto; 3. A racionalidade é limitada pelos conflitos de interesses pessoais, sociais e organizacionais; 4. A racionalidade é limitada quando você pensa ser o único a conviver com suas certezas; 5. A racionalidade é limitada porque nem os inquisidores da Santa Inquisição acreditavam em bruxas; 6.A racionalidade é limitada porque a beleza ofusca e a feiúra cria idiossincrasias; 7. A racionalidade é limitada porque se o universo tem forma circular (segundo A. Einstein) as retas são curvas; 8. A racionalidade é limitada porque você, sem ligar para a geografia, acredita ser o centro do universo; 9. A racionalidade é limitada porque em relação ao universo a vida pode ser uma fantasia sem conseqüências; 10. A racionalidade é limitada simplesmente porque os limites existem. Essas observações e a dialética imaginária da trama de Cervantes nos fazem crer que a compreensão da vida, inspirada nos conceitos da dinâmica não linear, representa um divisor de águas conceitual que nos permite entender a complexidade das contradições que enfrentamos no dia a dia. Nessa teia de relações complexas que instrumentaliza o nosso mundo real e imaginário, a racionalidade é limitada até porque eu só tenho uma página para escrever sobre ela. • Continente janeiro 2005

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Divulgação

ANTONIO MAURA

Embaixador da cultura e literatura brasileiras O escritor espanhol fala da sua aproximação com a literatura brasileira e do seu trabalho para divulgá-la na Espanha e na Europa Júlio Ludemir

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ntonio Maura Barandiaran, um espanhol nascido em Bilbao, em 1953, é um importante escritor de sua geração, com cinco livros publicados, um dos quais ganhador do Prêmio Castilla-La Mancha. Além do seu trabalho como ficcionista, coordena os Prêmios Villa de Madrid, o que faz dele o mais amado (por quem ganha) e o mais odiado (por todos os que perdem) intelectual espanhol, como gosta de dizer brincando. Mas nada disso importa para nós, brasileiros. O trabalho que fez divulgando a arte e a literatura brasileiras valeu-lhe a medalha Ordem do Rio Branco (1997) e os prêmios Os Melhores de 1996 (Associação de Críticos de Arte de São Paulo) e Machado de Assis (1993). Um convênio entre a Universidade Complutense de Madri e a Biblioteca Nacional, que só depende da


CONVERSA

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Reprodução

assinatura do presidente da instituição brasileira para ser colocado em prática, vai devolver-lhe o título de embaixador da literatura brasileira. Veja por que nesta entrevista. De onde veio o seu interesse pela literatura brasileira? Da época em que morei em Fortaleza, onde dei aulas de literatura espanhola para a Universidade Federal do Ceará e coordenei a Casa de Cultura Hispânica. O trabalho que fazia na ocasião me permitiu entrar em contato com pessoas como o escritor Carlos Emílio Menezes Corrêa e outros poetas jovens e boêmios, com os quais passei mais de uma noite de “bebedeira” de frente para o mar. Devo a eles o conhecimento que tenho do seu país e da sua cultura. A eles e aos visitantes que iam chegando de outras partes do Brasil, como Eduardo Portella, então ministro da Educação, Jorge Amado, de quem me tornei amigo e com quem me correspondi até pouco antes de sua morte, Nélida Piñon, outra grande amiga brasileira, Ignácio de Loyola Brandão, que acabei de rever em São Paulo, e um longo etcétera. Graças a eles, conheci um Brasil mágico e real, terrível e charmoso, cruel e cordial que hoje é também, um pouco, meu próprio país. O que norteou a produção das revistas que o senhor editou, tendo como tema a literatura e a arte brasileiras, como El Paseante e El Urogallo? Quando voltei daquela primeira visita ao Brasil, que durou três anos, traduzi alguns textos brasileiros para editoras e revistas. Posteriormente, como a cultura brasileira não era conhecida na Espanha, dediquei-me à crítica e isso me levou à coordenação das revistas a que aludes, El Paseante e El Urogallo. A primeira nasceu do interesse de seu diretor e editor, Jacobo Siruela, pelo Brasil. Viajamos ele e eu e, graças à colaboração de alguns brasileiros, dentre os quais destaco Carlos Emílio, organizamos um número que serviu de cartão-de-visitas para que muitos espanhóis conhecessem a cultura brasileira. Hoje está completamente esgotado, mas ainda é um ponto de referência da divulgação da cultura brasileira no exterior, como observaram na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em minha última e recente passagem pelo Brasil. A revista El Urogallo, feita em parceria com a Embaixada brasileira em Madri, tinha o objetivo de divulgar um Brasil diferente daquele que se conhecia na Espanha. Nela, havia textos e entrevistas de criadoras brasileiras de nível internacional, como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Marly de Oliveira, Adélia Prado, Rachel de Queiroz, Lygia Clark, Tomie Ohtake e Fayga Ostrower, entre outras. Se me sinto orgulhoso dessas revistas é porque, graças a elas, não apenas ajudamos a divulgar alguns artistas brasileiros na Espanha, como também conseguimos que alguns deles fossem conhecidos em seu próprio país. No rastro dessas publicações, foram publicados livros no Brasil com a obra de Manoel de Barros, e Rosângela Rennó encontrou um espaço para expor tanto na Espanha como no Brasil.

A influência hebraica na obra de Clarice Lispector foi tema do doutorado do escritor

O senhor ainda trabalha pela literatura brasileira, aí em Madri? Depois da publicação dessas revistas, participei de diversos seminários sobre a cultura brasileira na Espanha e no Brasil. Nesses encontros, pude conhecer intelectuais espanhóis e estrangeiros que trabalham em diversas áreas da cultura brasileira ou personalidades da cultura brasileira. Com o tempo, decidi doutorar-me com uma tese sobre a influência hebraica na obra de Clarice Lispector que foi, curiosamente, a primeira tese sobre um autor brasileiro produzida na Espanha. Acabaram de me Continente janeiro 2005


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CONVERSA

Imagens: Divulgação

El Paseante e El Urogallo: revistas que tratavam da arte e da literatura brasileiras

propor a coordenação de uma cátedra de Cultura e Literatura Brasileiras na Universidade Complutense de Madri. Caso isso se confirme, promoverá uma maior difusão da sua cultura na Espanha e também na Europa, já que a Espanha é a porta da Europa para muitos países latino-americanos. Existe alguma peculiaridade que identifique a literatura brasileira? A mais importante peculiaridade da literatura brasileira é, sem dúvida, a linguagem. “Minha pátria é minha língua”, diz Caetano. As peculiaridades do português falado no Brasil, os vocábulos de origem tupi ou africana, o sabor coloquial, a riqueza de povos e gentes, a extensão – zonas praticamente despovoadas e concentrações de cerca de 20 milhões de habitantes em megalópoles como São Paulo – fazem do Brasil uma síntese de diferentes histórias planetárias que falam todas, curiosamente, um mesmo idioma. Este Mundo que abarca mundos, sem dúvida, afetou sua literatura, porque literatura são também as histórias e anedotas da gente, as “estórias”, como diria Guimarães Rosa.

peculiaridade brasileira, ao meu ver, é justamente seu caráter universal, o qual se deve ao fato de ela ter sido escrita com base na universalidade, já que negros, amarelos e brancos – se nos referimos a raças – ou europeus, asiáticos, africanos e americanos – se falamos de continentes – o povoam e falam sempre em nome do Brasil com um espírito de igualdade, apesar de suas diferenças. Quais são os autores brasileiros pelos quais o senhor se interessa? Tenho estudos sobre Jorge Amado, Euclides da Cunha, Machado de Assis, João Ubaldo Ribeiro e Clarice Lispector, entre outros clássicos brasileiros. Mas também apresentei outros autores publicados na Espanha, além de ter feito críticas dos livros brasileiros que foram publicados em espanhol. Evidentemente, entendo a cultura como algo que não tem um limite no tempo nem na matéria.

O senhor conhece a nova produção literária brasileira? Pouco, porque chega muito pouco ao meu país. Recentemente, foram publicados os seguintes autores: Qual a importância que a literatura brasileira tem Rubem Fonseca, Paulo Coelho, Clarice Lispector, em relação ao mundo em geral e em relação à Espa- Paulo Lins, Patrícia Melo. Há pouco tempo, aprenha, em particular? sentei em Madri dois romances, um de Antônio TorPouco posso dizer sobre a importância da literatura res e outro de Miguel Sanches Neto, que teve muito brasileira em um Mundo globalizado. No entanto, a pouca repercussão na mídia. Mas isso não me surContinente janeiro 2005


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preende, pois há a necessidade de uma boa e rigorosa informação sobre o que acontece no Brasil. O brasileiro é um povo com uma complicada autoestima. Certas horas, ele se sente o povo mais criativo e interessante do mundo. Logo depois, ele se acha o povo menos interessante do mundo, ao qual só é dado copiar modelos produzidos por outros países. Para o senhor, em que ponto nos encontramos entre esses extremos? Creio que os povos, dentre os quais se inclui o espanhol, variam em suas percepções de si mesmos dependendo do momento histórico. Não acontece o mesmo conosco, como indivíduos? Para nós, europeus, o Brasil é um foco de atenção político e humano. O governo de Lula, o primeiro governo sério de centroesquerda de um país latino-americano que saiu de uma ditadura, é uma esperança e uma expectativa não apenas sobre o futuro de seu país, como também sobre o de toda a América Latina. A Espanha viveu um longo período de autoritarismo e, desde a morte de Franco, na década de 1970, iniciou um processo de abertura política que serviu de norte para o processo de redemocratização brasileiro. De que forma a

experiência autoritária comprometeu a produção artística espanhola e de que forma a reconquista da cidadania plena favoreceu a produção artística do país? A Espanha viveu uma experiência que atualmente é a do Brasil: a passagem de uma ditadura de direita para uma socialdemocracia. Esses períodos começam a ser vistos do ponto de vista cultural e artístico de uma perspectiva que, lamentavelmente, ainda nos falta. Há romances e filmes tratando deste tema. O cinema de Almódovar, por exemplo, é uma maneira de mostrar essa liberdade. De qualquer modo, a obra dos artistas só em certa medida depende de seu momento histórico. Normalmente, eles trabalham com o sentimento e a imaginação, e o político e o histórico afetam de um modo atmosférico e/ou temático. “Do povo vens e o povo é a tua raiz. Portanto, não menosprezes o povo”, escrevia um poeta espanhol. Se sou homem, tudo o que faça será humano, seria minha tradução para este lema. A liberdade é necessária como o é poder comer e como o é poder se formar. A criação pressupõe liberdade, capacidade de sobrevivência e formação intelectual. Tudo isso faz parte do programa político atualmente desenvolvido pelo Brasil. Como não terá repercussões em sua cultura? •

Cena do filme Fale com Ela, de Pedro Almodóvar: liberdade artística na Espanha pós-Franco Continente janeiro 2005

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Gustave Doré/Divulgação Editora 34

CAPA

QUIXOTE

ou as virtudes da ambigüidade Apreciam-se no Quixote não apenas a divertida sucessão de aventuras, a satírica invectiva contra os livros de cavalaria e a memorável caracterização dos personagens, mas também toda uma série de questionamentos relativos à arte de narrar Alfredo Cordiviola

Numa rua de mercadores de Toledo, um jovem vende cartapácios e velhos papéis escritos em árabe. Um desses folhetos narra a história de uma tal Dulcinéia del Toboso (também, conhecida como Aldonça Lourenço), mulher que tinha uma especial habilidade para salgar a carne dos porcos; era a Historia de don Quijote de la Mancha, escrita por um historiador arábico chamado Cide Hamete Benengeli. Não foi difícil achar no mercado algum mouro versado em línguas que pudesse traduzir a história ao castelhano. O trabalho, feito em troca de passas e trigo, demandou um mês e meio, e tinha sido encomendado por Miguel de Cervantes Saavedra. Este episódio é narrado no capítulo 9 de El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, escrito em 1605 por Miguel de Cervantes Saavedra. No capítulo 6 dessa mesma obra, um padre e um barbeiro examinam a biblioteca de Don Quijote (também conhecido como Alonso Quijano), em procura das obras que teriam provocado a loucura do ingenioso hidalgo, leitor de abstrusos romances de cavalaria. Na biblioteca encontram as causas do desvario: Amadis de Gaula, Sergas de Esplandián, Florismarte de Hircania, El Caballero Platir,

Palmerín de Inglaterra, Don Belianís, entre outros títulos que, por prudência e para que não provoquem males maiores, recomendam queimar. Encontram também outras obras, que preferem salvar do fogo, e para as quais reservam, porém, sólidas frases de ironia e escárnio. Uma dessas obras é La Galatea, de Miguel de Cervantes, más versado en desdichas que en versos, segundo a definição do padre. Este, que diz ser muito amigo do autor, afirma que “o livro tem algo de boa invenção; propõe algo, e não conclui nada” e finalmente recomenda guardá-lo, à espera de uma segunda parte anunciada pelo autor, que quiçá possa ser recebida com alguma misericórdia. No capítulo 2 da segunda parte, escrita às pressas por Cervantes em 1615, um ano depois da publicação em Tarragona do Quixote apócrifo do suposto licenciado Alonso de Avellaneda, Don Quixote e Sancho Panza descobrem por intermédio do bacharel Carrasco que a fama das suas vidas e aventuras já corria pelo mundo, divulgada no romance El Ingenioso Hidalgo don Quijote de la Mancha, escrito por Cide Hamete. Depois descobrirão também que existia um outro romance, o de Avellaneda, que continha no prólogo palavras que era melhor esquecer, e incluía dados errôneos e casos falazes. Assim, nessa trama de ficções superpostas, Cervantes, Continente janeiro 2005

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CAPA

Acervo Instituto Cervantes

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Dom Quixote pode ser lido como uma experiência de leitura, como melancólico desengano do mundo, como fábula sobre o ocaso do Império, como canto final do magnífico Século de Ouro das letras espanholas. Pode ser visto também como o fundador do romance moderno e como um importante elemento na conformação da identidade hispânica

o autor, é mais um personagem, Cide Hamete, um sonho de Cervantes, é o “verdadeiro” autor, e os dois personagens principais lêem suas próprias aventuras em romances apócrifos ou imaginários. Se o ato da leitura postula a relação entre um mundo que está dentro do livro, com suas peripécias e invenções, e outro mundo que está fora (aquele que espreita e ressurge quando o livro é fechado), o Quixote nos lembra permanentemente que entre o mundo do leitor e o mundo do livro há uma continuidade estranha, perturbadora. Como no breve relato de Júlio Cortázar, “Continuidad de los Parques”, em que o leitor se transforma em vítima da história que estava lendo, Cervantes parece querer dizer que em cada livro, como nisso que chamamos o real, há muitos mundos, nem todos reais, nem todos imaginários. Em “Magias Parciais do Quixote”, Jorge Luis Borges se pergunta por que é inquietante que Dom Quixote seja leitor do Quixote (ou Hamlet espectador de Hamlet), e responde com um argumento que poderia ter sido subscrito por Cervantes: “tais inversões sugerem que se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios”. Talvez tenha sido essa inquietação um dos motivos que provocaram o sucesso imediato do romance e a sua perduração na fervorosa categoria dos clássicos universais. O Dom Quixote pode ser lido como uma experiência de leituContinente janeiro 2005

ra (Quixote como leitor que substitui a realidade pela Literatura, ou para quem a Literatura é a realidade), como melancólico desengano do mundo, como fábula sobre o ocaso do Império, como canto final do magnífico Século de Ouro das letras espanholas. Pode ser visto também como o fundador de um gênero (o romance moderno) e como um importante elemento na conformação dos discursos de identidade hispânica. Como Shakespeare, como Dante, Cervantes e seu Quixote tiveram a boa ou má sorte de ser considerados fundadores de uma tradição nacional, e ao mesmo tempo, emblemas de universalismo. Leitores situados em épocas e contextos muito diferentes souberam apreciar no Quixote não apenas a divertida sucessão de aventuras, a satírica invectiva contra os livros de cavalaria e a memorável caracterização dos personagens, mas também toda uma série de questionamentos relativos à arte de narrar e aos modos em que a Literatura processa e transgride os estatutos do real. Leitores como Sterne, Diderot e Machado de Assis, que recuperam a lição cervantina de privilegiar o sonho e as ambigüidades da paródia e da imaginação. O ácido humor e a celebração e a crítica da ficção desenham uma peculiar linhagem que deliberadamente une o Quixote, Tristran Shandy, Jacques o Fatalista e Brás Cubas, em textos que postulam suas gêneses fictícias e proclamam o império da linguagem e do riso implacável. No século 19, em que os romancistas de língua


CAPA espanhola não conseguem se livrar dos efeitos tantalizantes das convenções realistas e naturalistas, Machado de Assis revive e prolonga uma tradição que transforma o romance em espaço privilegiado para encenar as tensões entre ilusão e realidade, arte e vida, verdade e ficção. De Memórias Póstumas (1881) a O Alienista (1882) e Quincas Borba (1891), essa tradição, esquecida pelas letras latino-americanas, ressurge de maneira excepcional no melancólico destino das personagens machadianas. A fama do Quixote, porém, transcende a leitura pontual, a invenção literária e a exegese apaixonada; mesmo quem nunca leu o romance é capaz de reconhecer toda uma série de significações associadas com a errância do Cavaleiro da Triste Figura e com o conjunto de oposições que o une a seu escudeiro Sancho Pança. Um adjetivo como “quixotesco”, que surge como conseqüência do romance, mas excede suas páginas, torna-se com o tempo uma palavra comum para designar projetos utópicos ou imaginários que interpelam e entram em direto conflito com as postulações do real. No pensamento ibero-americano, e particularmente a partir do século 19, há toda uma tradição que vindica o sentido político desse adjetivo. Influenciados pelas interpretações de Miguel de Unamuno, que resgatam o modelo do Quixote como emblema de crítica e transformação social, muitos publicistas e ideólogos espanhóis e latino-americanos fundam revistas que desconfiam dos dogmas e aspiram, através de sátira político-social, a mudar a sociedade. Periódicos como Sancho Panza (Madrid, 1863), Don Quijote (La Habana, 1864), Don Quijote (México, 1919) se multiplicam como instrumentos para discutir ideais nacionalistas e reformistas. Nessa linha se inscrevem também duas publicações criadas no Rio de Janeiro, Don Quixote, revista ilustrada fundada por Ângelo Agostini (1895-1903), e sua homônima, dirigida por Bastos Tigre (1917-1927), que utilizam o mito quixotesco para questionar as contradições e promessas da nascente República. Para o Quixote de Agostini, a Dulcinéia é a pátria brazileira, tão bella e tão forte, pela qual está disposto a lutar contra todos os inimigos em prol do ideal de “mais civilização, mais progresso, mais humanidade”. Mas sabe que no seu caminho há, como em La Mancha, penúrias e desilusões, sintomas de uma época de expectativas frustradas, que dão lugar a um hiato cada vez maior entre as aspirações de transformação e as limitações da precária ordem republicana. Um hiato que encontrará sua máxima expressão em duas grandes epopéias da tristeza: em Lima Barreto, no penoso fim das inúteis iniciativas do funcionário público Policarpo Quaresma (1915), e no José Lins do Rego de Fogo Morto (1943), na sombra do Capitão

Vitorino, que cavalga solitário, falando com ninguém, pelas imediações do engenho de Santa Fé. Esse Quixote, que com desvairada obstinação combate inimigos reais e imaginários, todos impossíveis de vencer, perdura na memória popular, como lembra Câmara Cascudo ao estudar as influências hispânicas no Nordeste, através da tradição impressa ou oral de narrativas familiares, provérbios e refrões. Como o pícaro ibérico, que luta pela sua sobrevivência em condições sempre adversas, e o gracioso do teatro barroco espanhol, que ironiza valores e usos com o instrumento da sua lúcida loucura, o escudeiro tosco e prático e o cavaleiro andante e insensato são figuras permanentemente parafraseadas nos folhetos de cordel, nos desafios dos cantadores e nos autos populares. São tipos heróicos e cômicos, provenientes desse mundo ibérico e mediterrâneo que oferecem o substrato e as mitologias que conformam o projeto estético de Ariano Suassuna. O Quixote e Sancho são também tipos melancólicos, como aparecem nos lânguidos desenhos de Portinari comentados pelos versos de Drummond; melancólicos porque sabem que o único recurso possível é continuar andando, mesmo quando parece não haver sentido nem ocasião. São tipos que fracassam, como Pierre Menárd, o inverossímil escritor simbolista francês sonhado por Borges, que pretendia escrever o Quixote para criar não apenas uma cópia, mas algo “infinitamente mais rico”, e mais ambíguo (porque a ambigüidade é uma riqueza, como ensina o próprio Cervantes). Ou como Macedonio Fernández, o escritor argentino que escreve um romance que consta de infinitos prólogos e nunca começa (Museo de la Novela de la Eterna, 1967). Fracassam, mas sabem fazer desse fracasso uma espécie de vitória que é mais duradoura e real que as agruras de vida. Talvez a grande presença de Cervantes na literatura latino-americana esteja justamente aí, nos vitoriosos fracassos que se revelam nas páginas de um Machado, um Lima Barreto, um Borges, um Macedonio, entre tantos outros. Filhos de La Mancha, segundo afirma Carlos Fuentes em “O Milagre de Machado de Assis”, “filhos de um mundo manchado, impuro, sincrético, barroco, corrupto, animados pelo desejo de manchar sob a condição de ser, de contagiar sob a condição de assimilar, de que as aparências se multipliquem a fim de multiplicar o sentido das coisas, contra a falsa consolidação de uma leitura única, dogmática, do mundo”. Autores que escrevem com a missão de dilatar os espaços da imaginação, a nossa, individual e coletiva imaginação que, às vezes, em épocas incertas como esta e como todas na América Latina, parece ser a única coisa que ainda nos resta. • Continente janeiro 2005

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CAPA

Dom Quixote por Vargas Llosa No discurso pronunciado ao receber o Prêmio Cervantes, em abril de 1995, o romancista Vargas Llosa analisa o romance cervantino à luz da própria definição de Literatura

SOBRE CERVANTES A vertiginosa bibliografia e o culto oficial de que é objeto petrificaram-no, de certa forma, como a Homero, Dante ou Shakespeare, esses autores que com ele passaram a ser símbolos de uma língua e de uma cultura, fazendo-nos esquecer, com freqüência, que o ícone semi-divinizado pelo respeito e as vênias das gerações foi uma criatura de carne e osso confrontada, como as demais, às emboscadas de um destino incerto e que sua obra não resultou do milagre nem da sorte, senão da vontade, do trabalho, da carpintaria e da paciência. Em nenhum outro desses criadores é tão visível este alento de humanidade identificável pelo homem comum, como na vida acidentada que se iniciou nesta cidade, algum dia do outono de 1547, de Miguel, o filho de Rodrigo Cervantes, barbeiro e cirurgião modesto, que viveu acossado por litígios e fugindo da má sorte. Esta foi a única herança que legou a seu filho, ao que parece: os infortúnios – julgamentos, excomunhões, fugas, insucessos – de uma existência que, apesar do assédio dos historiadores, conserva grandes zonas de sombra e, como a de Shakespeare, temos em boa parte que adivinhar. Porém, sabemos com certeza que a vida de Cervantes foi a de um cidadão sem títulos nem fortuna, que viveu na mediania, embora os dois tiros de arcabuz que recebeu em Lepanto e a mão esquerda que lhe ficou anquilosada hajam induzido os hagió-

grafos a içá-lo ao pedestal dos heróis. Não o foi, pelo menos no sentido épico da expressão, somente nesse outro, discreto, que é o heroísmo das gentes anônimas, por haver resistido sem desfalecer a tantos revezes e embates. SOBRE A FICÇÃO Uma ficção é um entretenimento somente em segunda ou terceira instância, embora, com certeza, se também não o é, ela não é nada. Uma ficção é, primeiro, um ato de rebeldia contra a vida real e, segundo, um desagravo a quem o viver na prisão de um único destino desassossega, aqueles a quem espicaça essa “tentação do impossível” que, segundo Lamartine, fez possível a criação de Os Miseráveis de Victor Hugo, e que querem sair de suas vidas e protagonizar outras, mais ricas ou mais sórdidas, mais puras ou mais terríveis, que as que lhes tocou. Esta maneira de explicar a ficção pode parecer truculenta, tratando-se do que à primeira vista não é mais que o benigno passatempo de um senhor que, à noite, antes que lhes venham os bocejos, perpetra o crime de Raskolnikov e adormece, ou da virtuosa senhora que toma o chá das cinco cometendo as travessuras das damas de Bocaccio, sem que seu marido saiba. Porém, mostra-nos Alonso Quijano, a ficção é algo mais complexo que uma maneira de não entediar-se: o transitório alívio de uma insatisfação existencial, um sucedâneo para essa fome de algo distinto ao que já somos ou já temos, que, paradoxalmente, a ficção aplaca ao mesmo Continente janeiro 2005

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CAPA tempo em que exacerba. Porque essas vidas emprestadas que são nossas graças à ficção, em vez de curar-nos dos nossos desejos, aumentam-nos e nos fazem mais conscientes do pouco que somos, comparados com esses seres extraordinários maquinados pelo fantasiador escondido em nosso ser.

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Miguel de Cervantes Saavedra

SOBRE D. QUIXOTE Combater a realidade com a fantasia, que é o que fazemos todos, quando contamos ou fabricamos histórias, é um jogo jogado enquanto nos mantemos lúcidos sobre as fronteiras inquebrantáveis entre ficção e realidade. Quando essa fronteira se eclipsa e ambas as ordens se confundem, como ocorre na mente de Dom Quixote, o jogo cede o lugar à loucura e pode tornar-se tragédia. Embora seja evidente que o temerário manchego comete uma infinidade de disparates, pois atua com uma percepção do real essencialmente falsa, ou melhor, falseada pela ficção cavaleiresca, suas excentricidades não merecem nunca o desprezo dos leitores. Pelo contrário, inclusive para seus contemporâneos, que leram esse livro rindo às gargalhadas, e viram nele apenas uma novela engraçada, o mirrado manchego que arremete contra moinhos de vento, crendo-os gigantes, toma a bacia de um barbeiro pelo elmo de Mambrino e vê castelos e palácios nas vendas do caminho, apareceu como um ser moralmente superior, empenhado em uma aventura nobre e idealista, embora, por causa de sua desbocada fantasia que enevoa a razão, tudo lhe saia ao revés. Desde o princípio, os leitores se identificam com Dom Quixote, que sucumbiu à tentação do impossível tratando de viver a ficção, e tomam uma distância complacente do bom Sancho Pança, a quem, por seu senso comum, por viver enclausurado dentro do possível, se converteu na encarnação de uma desprezível forma de humanidade, a do homem em que a matéria sufoca o espírito e cujo horizonte vital é mesquinho de tanto pragmatismo. SOBRE SANCHO Julgando, friamente, há uma grande injustiça nessa desigual valoração da célebre dupla, ao menos se a perspectiva do julgamento se desloca do individual para o social. Pois, o certo é que a rejeição do mundo, tal como é, por Dom Quixote, provoca múltiplas loucuras, tropelias e até catástrofes: destrói bens alheios, põe em liberdade perigosos criminosos, dizima rebanhos, aterroriza ou açoita humildes aldeãos. As empreitadas de Dom Quixote só são simpáticas aos seus leitores, de maneira alguma a esses pobres diabos que sua fantasia converte em encantadores, encantados ou cavaleiros andantes a quem, com freqüência, trata de varar com sua lança. Se houvesse prevalecido o pragmatismo de Sancho, sua compreensão cabal das coisas deste mundo, Dom Quixote teria, ao final da história, o lombo menos surrado e sua boca, mais dentes. Mas, então, não haveria romance – ou ele seria tediosíssimo – e a língua e a literatura espanholas seriam menos fecundas que são. O que quer dizer, pelo menos, duas coisas.

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CAPA A razão de ser da ficção não é representar a realidade, mas negá-la, metamorfoseando-a em uma irrealidade que, quando o romancista domina a arte da prestidigitação verbal como Cervantes, parece-nos como a realidade autêntica, quando em verdade é sua antítese

A primeira, que no Quixote não admiramos a um personagem real, mas um fantasma, um ser de ficção, e que o que nos distancia de Sancho é que, diferentemente de seu amo, não se diferencia demasiadamente de nós próprios, e por isso sua maneira de atuar e ver as coisas não nos parece a de um ser novelesco, mas sim de um mero mortal. E isso me leva à segunda conclusão: que a razão de ser da ficção não é representar a realidade, mas negá-la, metamorfoseando-a em uma irrealidade que, quando o romancista domina a arte da prestidigitação verbal como Cervantes, parece-nos a realidade autêntica, quando em verdade é sua antítese. QUESTÃO INSOLÚVEL É verdade que a empresa quixotesca – sair da realidade própria para viver a fantasia – tem dado tipos humanos excepcionais, cujas temeridades fizeram o mundo progredir no domínio do conhecimento e que sem eles a vida seria muito mais cinza do que é. O progresso científico, social, econômico, cultural, se deve a sonhadores assim: sem eles não se teria descoberto ainda a América, nem a imprensa, nem os direitos humanos e seguiríamos sapateando na terra para que caísse a chuva sobre as lavouras. Porém, também é certo que o chamado do irreal, ao aguilhoar nos homens e mulheres o apetite pelo que não têm nem terão, tem aumentado, consideravelmente, sua infelicidade. Trata-se de um problema insolúvel, pois não há uma maneira realista de que aquilo que intenta o Quixote seja possível e cheguemos a viver, simultaneamente, na vida objetiva da História e na subjetiva da ficção.

JOGO DA MENTIRA Porém, sim, há uma maneira figurada, e é a que pactuam Cervantes e seus leitores. Desse contrato subconsciente que firmam o romancista e seu público para fazer o jogo da mentira, depende o romance, gênero nascido para completar as incompletas vidas dos mortais com aquelas rações de heroísmo ou de paixão, de inteligência ou de terror, que as anseiam porque ou não as têm – ou não as têm nas doses que exige sua imaginação, esse combustível da dissidência vital. É verdade que a ficção é um paliativo fugaz para o desassossego que surge da consciência de nosso limite, a impossibilidade em que nos achamos de ser ou fazer tudo o que nossa fantasia reclama. Porém, ainda assim, graças a ela nossas vidas se multiplicam em um universo de sombras que, embora frágeis e amalgamadas de uma leve matéria, se incorporam a nossas vidas, influem em nossos destinos e nos ajudam a solucionar o conflito que resulta dessa estranha condição nossa de ter um corpo condenado a uma só vida e uns apetites que nos exigem outras mil. A maneira como a Literatura influi na vida é misteriosa e tudo o que se diga a respeito deve tomar-se com cautela. Fez a ficção mais desditado ou mais feliz a dom Alonso Quijano? De um lado, colocou-o em contradição com o mundo, fê-lo despedaçar-se contra a dura realidade e perder todas as batalhas. De outro, não viveu assim mais plenamente que os demais? •

(Excerto do discurso de Mario Vargas Llosa – Tradução de Homero Fonseca)

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Duas falantes figuras

Dom Quixote tem uma conexão clara com a chamada literatura “pós-moderna”, que nada mais é do que o braço mais barroco desse grande corpo conhecido como arte moderna Daniel Piza

O clássico Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, não é prazer garantido para qualquer jovem iniciante. É um livro extenso, com grandes e numerosos diálogos, e a segunda parte é uma peroração sobre o próprio romance. Assim, não põe fogo fácil na sensibilidade inquieta do adolescente, não tendo tantos trechos para decorar como em Shakespeare ou Machado, e não turbina nosso senso moral, como as primeiras 200 páginas de Crime e Castigo, de Dostoiévski, ou os slogans inconformistas de Sartre ou Wilde. Parece um tanto artificial, remoto. Mas depois de ler muitos outros livros, em especial os influenciados por ele, a leitura ou releitura de Dom Quixote é um prazer infinito, que justamente não queremos que acabe. Afinal, quem não foi influenciado por Cervantes? Os citados Machado e Dostoiévski foram. Lima Barreto e Guimarães Rosa foram. Proust, Mann, Kafka e Joyce, o quarteto do grão-modernismo, também. E Stendhal, Sterne, Tolstói e muitos, muitos mais. Não que todos precisem ser lidos antes; apenas alguns autores, como Henry James ou os próprios Joyce e Proust, pedem mais cultura e maturidade para que sua grandeza seja vista. E o fato de que nenhum deles escapou à influência de Cervantes é um poderoso sinal de vida. Apenas Shakespeare, seu contemporâneo, foi tão determinante, como notou Harold Bloom, que considera Dom Quixote o maior romance de todos os tempos. Mas em Shakespeare os personagens fremem com suas paixões, mudam de comportamento em curto espaço de tempo, monologam frases inesquecíveis. Em Dom Quixote, isso não acontece; ou melhor, acontece de forma diferente. Partindo de uma estrutura esquemática – as peripécias de uma dupla mais ou menos oposta em temperamento e

pensamento, Quixote e Sancho Pança –, o romance vai sutilmente mostrando as transformações de um e outro, por influência mútua e dos fatos, e é isso que vai dando a eles a dimensão de grandes personagens com os quais nos identificamos. Ao cabo, não passa da diferença entre teatro poético e prosa narrativa. O que é voz interior, em Shakespeare, soa exterior, em Cervantes – e a grande conversa do cavalheiro e seu escudeiro em face de um mundo novo é o que vale. (Não por acaso, Joyce tentaria unir Shakespeare e Cervantes em Ulisses.) Mario Vargas Llosa, outro que confessou ter fracassado na primeira leitura de Dom Quixote por sua “retórica”, observou ainda que o romance não é um retrato da Espanha que os espanhóis reconheçam, como se diz tão freqüentemente. Talvez seja pelo motivo anotado por H.L. Mencken: “Todo grande escritor é contra seu país” – como Dante se despedindo de sua Florença, Shakespeare situando tramas em Verona, Machado rindo da credulidade brasileira etc. E é justamente sendo contra o seu país que o grande escritor o revela com uma profundidade que os outros não atingem; todo gênio, afinal, é exceção e produto de sua época, ao mesmo tempo. Cervantes, que foi prisioneiro dos mouros e dos próprios espanhóis, deplorou o medievalismo de seu país, sempre oscilando da violência para a religiosidade, enquanto outros da Europa avançavam para o Iluminismo. E era ele mesmo um produto disso, o que a comparação com Shakespeare – homem de espírito mais “moderno” – ajuda a esclarecer. O contraste entre Quixote e Sancho é conhecido: um é sonhador, libertário, sofredor, instável; o outro é sensato, compreensivo, alegre, vital. Dom Quixote diz ao amigo a certa altura, diante de seu apetite: “Eu, Sancho, nasci para viver morrendo e tu para morrer comendo”. É desse jogo entre contrários, enfim, que a narrativa ganha movimento, sentidos, comContinente janeiro 2005

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plexidade. Quixote seduz Sancho por sua obstinação. Mas repare como Quixote apanha em suas aventuras. Com o passar do tempo, aprende com Sancho, assim como Sancho aprende com ele. Cada um se modifica na direção do outro, mas sem perder suas características. A isso os filósofos chamam de dialética, mas Cervantes, num lance que distingue os gênios, é tão atual – “uma notícia que permanece notícia”, como diria Ezra Pound sobre os clássicos – que não via sínteses na história, não via um processo linear na realidade externa ou interna. Tal como em sua viagem, o destino é o de menos. E o que importa na viagem? É a afirmação do indivíduo, com todas as suas contradições, em face de uma sociedade regida por dogmas e heranças. Llosa citou diversos episódios em que o cavaleiro da Triste Figura enfrenta leis e costumes vigentes, desafiando as autoridades – os ricos, os políticos, os clérigos – e lutando pela justiça e pela paz. O fato de que fracasse tanto, em seu astigmatismo idealista, não significa que não esteja do lado certo. Brás Cubas, por exemplo, também quer remediar todos os males, Continente janeiro 2005

Cartaz do filme Dom Quixote, do diretor austríaco Georg Pabst, 1933


CAPA Partindo de uma estrutura esquemática, o romance vai sutilmente mostrando as transformações de Quixote e Sancho, por influência mútua e dos fatos, e é isso que vai dando a eles a dimensão de grandes personagens

mas não pela ação engenhosa, e sim por um emplastro cuja química nem sequer domina. Dom Quixote, com o contraponto de Sancho Pança, pode não triunfar como deseja; de qualquer forma, perde a guerra, mas ganha batalhas. “Pela liberdade, assim como pela honra, se pode e se deve arriscar a vida”, diz ele a Sancho. Seu conceito de honra, para nós, é dúbio; o de liberdade, não. Daqui vem a energia do livro, a qual permanece até hoje. Outra comprovação da força de Dom Quixote é a quantidade de ilustrações que o romance causou. Das gravuras magistrais de Gustave Doré às histórias em quadrinhos como a de Ivo Milazzo, passando por muitos outros, inclusive o brasileiro Candido Portinari (que fez belos desenhos para a editora francesa Gallimard), o livro deve ser o mais ilustrado de todos os tempos. A riqueza de imagens espanta, no entanto, por nunca ter sido devidamente adaptada para o cinema – ou exatamente por isso, já que, como as Metamorfoses de Ovídio, a pletora visual se torna obstáculo em vez de trunfo, como numa empreitada quixotesca. Há, assim, uma conexão clara entre Cervantes e a chamada literatura “pós-moderna”, que nada mais é do que o braço mais barroco desse grande corpo conhecido como arte moderna. O artifício narrativo de Cervantes é claro em Borges, Calvino, Perec. O teatro de ilusões que a arte barroca monta, não para disfarçar as realidades, mas para penetrar melhor em suas sombras, foi retomado por escritores do século 20 que vieram depois da grande narrativa social do século 19 e das grandes guerras modernas – embora com caráter mais fragmentário e irônico, mais digressivo e desconfiado. Não por acaso Kafka retomou a falsa dicotomia entre Quixote e Sancho numa pequena grande história, A Verdade Sobre Sancho Pança:

“Sancho Pança, que por sinal nunca se vangloriou disso, no curso dos anos conseguiu, oferecendo-lhe inúmeros romances de cavalaria e de salteadores nas horas do anoitecer e da noite, afastar de si o seu demônio – a quem mais tarde deu o nome de D. Quixote – de tal maneira que este, fora de controle, realizou os atos mais loucos, os quais, no entanto, por falta de um objeto predeterminado – que deveria ser precisamente Sancho Pança –, não prejudicaram ninguém. Sancho Pança, um homem livre, acompanhou imperturbável, talvez por um certo senso de responsabilidade, D. Quixote nas suas sortidas, retirando delas um grande e proveitoso divertimento até o fim de seus dias.” (Tradução de Modesto Carone, Narrativas do Espólio.) Kafka rompe com a separação entre racional (Sancho Pança, imperturbável e modesto) e irracional (Dom Quixote, descontrolado e aventureiro) – que muitos vêem na obra de Cervantes – ao mostrar uma razão que alimenta, com certo interesse, a excitação sentimental, enquanto a paixão, ignorando quem a demoniza, mostra seu valor biológico. Razão e coração, ação e afeto, não se opõem; antes, precisam um do outro, como Quixote precisa de Sancho e Sancho de Quixote a cada novo passo de suas peripécias. O racional perde o contato direto com a experiência, o passional não encontra seu eixo – e isso porque ambos se nutrem e se confundem. Não há consolo final, não há transcendência consistente. Quixote e Pança estão dentro de nós, leitores, que podemos ser responsáveis e nos divertir como tais. Eles sempre fazem as pazes, no livro, não porque exista repouso antes da morte – mas porque sabem, tacitamente, que um não existe sem o outro, como corpo e espírito. • Continente janeiro 2005

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Espanha festeja 400 anos do livro Governo, universidades e instituições culturais comemoram, incentivando leitura da obra em todos os níveis Renato Lima, de Madri

Renato Lima

A Espanha está comemorando intensamente os 400 anos de publicação do Dom Quixote, com uma programação que se estenderá por todo o ano de 2005. Já foram lançadas quatro edições comemorativas e outras estão sendo preparadas por diversos grupos editoriais e pelos próprios jornais. Também haverá uma ilustrada com os desenhos de Salvador Dalí. A Comunidade de Madri vai preparar peças de teatro com o mais importante grupo espanhol independente, chamado Els Joglars, curtas-metragens, programas de televisão sobre cavalaria, atividades intensas em escolas e congressos internacionais sobre o assunto. Em novembro e dezembro de 2005 vai ser realizada uma exposição sobre as universidades e as ciências na época de Cervantes, promovida pela Comunidade de Madri e Universidade de Alcalá de Henares. Para Jon Juaristi, exdiretor do Instituto Cervantes e atualmente comissário para a comemoração do 4º Centenário de Quixote Livraria das lojas El Corte Inglés, em Madri, em Madri, as comemodestaca edições do Dom Quixote rações servirão para promover o fomento da leitura das obras de Cervantes, “um autor muito citado e pouco lido, até mesmo na Espanha”. “O fundamental – disse ele – é que o Quixote seja lido. Não como uma novela para se ler de uma vez inteira, mas como Cervantes queria que fosse lido, como um conjunto de histórias e episódios que poderiam ser lidos como se liam as novelas de cavalaria ou, muito antes, como As Mil e Uma Noites.” Ele exemplifica o tipo de esforço a ser feito: “Uma criança que lê Harry Potter pode ler Dom Quixote. Para uma criança de 12 anos, não se colocaria a leitura inteira de Dom Quixote, mas, sim, pode-se dar a ela alguns episódios, como o dos Moinhos de Vento.” • Continente janeiro 2005

Para ler e desfrutar Existem no Brasil várias edições do Dom Quixote, em português ou espanhol, inclusive muitas versões reduzidas e simplificadas para crianças e adolescentes. Eis algumas delas: O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha – Volume 1 (Primeira Parte) – Miguel de Cervantes Saavedra, tradução de Sérgio Molina, edição bilíngüe, ilustrações de Gustave Doré, Editora 34, 736 páginas, R$ 59,00. Dom Quixote de la Mancha – Miguel de Cervantes, em 3 volumes, Editora Ediouro, introdução de Brito Broca, total de 1.412 páginas, R$ 145,00. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, Editora Nova Aguilar, 1.150 páginas, R$ 140,00. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, Editora Europa-América, 4 volumes, preços variados. Dom Quixote de la Mancha – de Miguel Cervantes, tradução e adaptação de Ferreira Gullar, Editora Revan, infanto-juvenil, 222 páginas, R$ 38,00. Dom Quixote das Crianças – Adaptação de Monteiro Lobato, Editora Brasiliense, infanto-juvenil, 96 páginas, R$ 31,60 Dom Quixote – Adaptação de Walcyr Carrasco, Editora FTD, infanto-juvenil, 144 páginas, R$ 17,20. Para se informar sobre todas as comemorações na Espanha, acesse na Internet o Instituto Cervantes, no endereço: www.cervantes.es


CAPA

Dois poemas de Marcus Accioly Um dia eu encontrei o alguém esguio da gravura de um livro (o Dom Quixote de la Mancha) as esporas no vazio do pangaré sangravam (fez um pote do chapéu e levou o próprio rio para ele e o cavalo) “que se esgote a nossa sede”(disse ao Rocinante e soprou na porteira o seu berrante)

Dom Quixote

2 um dia “Sancho” veio (era um barril com cabeça e com mãos e pés) “que gordo!” (alguém mangou) “aquele pesa mil Sancho arrobas (tem gordura feito um porco) Pança cabe no mar daquele corpanzil a baleia com Jonas no seu oco” (todos riram da banha em sua dança menos eu que esperava “Sancho Pança”)

“é um doido” (eu me falei vendo a figura triste e cismei tal qual no carnaval quando vi a La Ursa) “que secura na goela e que secura no embornal” (ele disse ao cavalo) “a rapadura acabou” (e lambeu no beiço o sal do suor que pingava) “eu vou a pé” (disse e amarrou na cerca o pangaré)

sentou seu tronco à sombra de um pau-d'arco qual sob um guarda-sol (falou um outro) “quando afundou no seco o inchado barco o ipê (que era amarelo) ficou roxo” (disse um terceiro) “juro que tal sapo é um príncipe que dorme e ronca um pouco” (todos riram do sono tão sem fim menos eu que esperava um sonho assim)

foi falando sozinho ou resmungando até a casa-grande (o velho engenho moía e ele voltou dizendo) “eu ando agora mais cem léguas com o que tenho” (o cavalo escutou e o viu mamando na boca da garrafa) “já me embrenho de novo pelo mundo” (ele falava e o cavalo decerto concordava)

“não veio no seu burro?” (quase à-toa indaguei) “veio a pé ou de elefante” (respondeu um daqueles) “essa é boa” (alguém ironizou e nesse instante deixei de ser menino) “vê se assoa a graxa do nariz (rinoceronte que fala de hipopótamo) pediram em que circo um palhaço?” (e todos riram)

penso que ele me viu (sei não) tampouco sei por que não corri desembestado como fiz com a La Ursa (aquele louco faria alguém cruzar o rio a nado) “eles me deram tudo e mais um troco para seguir” (falava com o cavalo ou falava comigo?) ah saí ancho de encontrar “Dom Quixote” e esperei “Sancho”

dirigi os meus passos até “Sancho” (ele acordou falando) “onde é o rio?” (apontei) “eu careço há muito um banho (mas em bica escorrego) um banho frio (chuveiro não me cabe) um só por ano é bastante” (e falei) “o mais esguio tomou da outra água” (ele me olhou e fingindo entender disse) “o calor”.

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Nas trilhas das Mil e Uma Noites Romance de Alberto Mussa, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Artes, se desenrola numa atmosfera pitoresca associada à erudição

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Enigma de Qaf, romance de Alberto Mussa, escrito num estilo sugestivamente borgiano, é um mergulho culto na tradição árabe. Nesse livro, Mussa assume duplo papel, o de autor e também o de personagem: um brasileiro de origem árabe, arabista, tentando provar a autenticidade do poema “Qafiya al-Qaf ” como “oitava” ode das Mu’allaqat. As Mu’allaqat, cuja tradução é “As suspensas”, são as 7 odes (qasidah) da poesia pré-islâmica que, segundo reza a tradição, foram dependuradas na Caaba, a pedra negra de Meca, cidade santa dos muçulmanos. Diz-se época pré-islâmica – conhecida também como a Idade da Ignorância – aquela antes do advento da religião muçulmana, quando os árabes ainda não dispunham de escrita e a poesia era transmitida oralmente por um rawi. Esse período é o pano de fundo no qual se desenvolve a trama que Alberto Mussa maneja com engenho. O principal personagem do livro, Al Gatash, um poeta e guerreiro, é o suposto autor de “Qafiya al-Qaf ” (“poema cuja rima é a letra qaf”). A narrativa divide-se em dois planos: enquanto Al Gatash empreende uma jornada impregnada de peripécias, na dupla tentativa de desvendar o enigma do Qaf e de desvelar o rosto de Layla – nome da mulher por quem se apaixonara e que em árabe significa “noite” –, em outro plano, o próprio autor, Alberto Mussa, tenta comprovar a origem do poema. O véu que encobre o rosto de Layla e o poema que serve como metáfora são os elementos em torno

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Fotos: Reprodução

Everardo Norões

A Casa da Sabedoria, Badgá, século 13

dos quais o livro se articula em capítulos adornados pela caligrafia árabe, que se esgueiram do alif ao ghayn. Os 28 capítulos – cujos títulos são as 28 letras do alfabeto árabe – estão entremeados daquilo que o autor chama de “parâmetros” e de “excursos”. Nos “parâmetros” (paradigmas de comparação entre Al Gatash e outros heróis e poetas citados no livro) Mussa faz referências aos autores das odes que compõem as Mu’allaqat. O “parâmetro” intitulado Imru al-Qays, por exemplo, é o próprio nome de um desses autores. Nos “excursos” (espécie de anotações fora do texto contendo pequenas histórias e lendas), o leitor encontrará alusões a várias histórias compostas em torno de narrativas tradicionais, algumas extraídas de episódios de As Mil e Uma Noites (Sinbad, Allahdin, Ali Babá). Se, por um lado, esses “artifícios” enriquecem a trama do romance, por outro, acabam por prejudicar a própria fluência narrativa Espelho da duplicidade, desdobramento narrativo, independência textual, o romance de Alberto Mussa é concebido para conquistar um segmento de leitores que aprecia os romances que se desenrolam numa atmosfera pitoresca associada à erudição. Os artifícios literários de que lança mão permitem incluir O Enigma do Qaf no rol dos romances à tiroirs, fórmula recorrente em diversos autores de livros que têm como tema elementos da cultura árabe. A expressão francesa romance à tiroirs significa, literalmente, um romance


LITERATURA

Pregação aos Peregrinos, Bagdá, século 13

“com gavetas”, no qual uma história desencadeia outras histórias, em recomposições caleidoscópicas. Um bom exemplar desse arquétipo é O Manuscrito Encontrado em Saragossa, do polonês Jan Potocki, escrito em 1797. Esse livro, aliás, deu origem ao filme cult do diretor polonês Wojciech Hás, em

1965. Por injunções comerciais, o filme foi divulgado numa versão com tempo reduzido; porém, em 1997, foi restaurado, na íntegra, sob os auspícios de Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. O romance de Alberto Mussa não escapa aos paradigmas desse gênero de ficção – com seguidores importantes na literatura ocidental – cujo fascínio foi projetado sobre nosso inconsciente através das fabulosas histórias das Mil e Uma Noites, que tiveram várias traduções e foram objeto de um ensaio clássico de Jorge Luís Borges, no seu O Livro de Areia. O Enigma do Qaf pode ser considerado uma espécie de narrativa iniciática, na qual o herói é submetido a um emaranhado de circunstâncias singulares susceptíveis de deixar o leitor ávido para re-gressar ao ponto de partida, seja pelo prazer da releitura, seja porque o universo de possibilidades com que se defronta o transporta pelos caminhos da espiral eterna. Especializado em literatura árabe pré-islâmica, Alberto Mussa – que também é autor de Elagbara e O Trono da Rainha Jinga, respectivamente de 1997 e 1999 – traduziu recentemente as Mu’allaqat, cuja publicação deverá ser um acontecimento importante para aqueles que apreciam a riquíssima cultura árabe, pouco conhecida no Brasil, embora dela sejamos tributários em tantos aspectos de nossas vidas, inclusive na nossa própria língua. •

Página do Alcorão, Mesopotâmia, século 8

O Enigma de Qaf, Alberto Mussa, Record, 268 páginas, R$ 29,90.

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Montagem que remete à capa do disco Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, ícone dos anos 60

O corpo do silêncio delator

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omos educados na Guerra Fria. Fomos rebelados contra a autoridade, libertados dos confessionários e escravizados pelas psicoterapias. Indignados com as injustiças sociais e vacilantes entre o capital, o fascínio de Che Guevara e as Encíclicas de João XXIII. Apaixonados pelo romantismo dos Beatles e atraídos pela Chinesa de Godard ou, mais ainda, pela Chinesa de Mao Tse Tung. Éramos pluralistas, embora quase que ortodoxos na nossa crença de democracia.” (Roberto Aguiar). Iniciamos estas notas sobre O Silêncio do Delator, o nono livro de José Nêumanne, com um trecho do depoimento de Roberto Aguiar sobre a Geração 65, não só pela pertinência com o tema da obra aqui abordada, mas também para registrar que a senda memorialista traçada por Nêumanne, sem geografias definidas, instiga-nos a acender inúmeros flashs recorrentes, uma espécie de filme paralelo, de nossas vivências, embora esfacelado, uma vez que destituído dos recursos que magistralmente Nêumanne utiliza, para a colagem dos fotogramas do ruidoso si-

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lêncio do seu romance. O Silêncio do Delator parece fazer convergir esses fragmentos avaliativos, formando um “inventário moral, estético, político-ideológico, espiritual”, como registra Ruy Fabiano, e Affonso Romano de Sant’Anna, ao concluir que o livro de Nêumanne “realizou, de modo original, aquilo que tantos tentaram – ‘o romance de minha geração’”. Nessa tarefa, Nêumanne enveredou refratário a técnicas narrativas consagradas, imprimindo à obra uma coerência singular com a sua temática, uma rebelada inovação. Sobre esse aspecto, ressalta-se o ritmo imposto à narrativa. Deonísio da Silva refere-se coerentemente a um “romance com trilha sonora”, mas, acreditamos, não só porque os títulos dos capítulos se referem às faixas dos discos Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e Bringing it all Back Home, de Bob Dylan, mas também por incorporar à linguagem ágil e avessa a malabarismos verbais o som da guitarra de um Hendrix, ou o ganir de Joplin, numa “articulação vigorosa entre ritmo e melodia predominando sobre a harmonia”, definição do


LITERATURA rock que Daniel Piza descreve, mas já com as características do “encantar agredindo ou agredir encantando”, expressão também dele, referindo-se à ascensão da guitarra enquanto instrumento mais que adequado a esse contexto histórico-musical. Nêumanne encanta e prende o leitor, dando à narrativa esse vigor e quando nela o folk americano, à Bob Dylan, parece esvair-se, paralisando as letras, especialmente no romance de tese paralelo incrustado pertinentemente na obra, pondo freios aos precipícios da metamorfose da verdadeira protagonista do romance, a Patota dos Socavões Solitários — , “uma tradução meio gozativa de Sargeant Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, como informa José

fabulação ao defunto. Há momentos esclarecedores, como na página 34: ele “apenas age como se narrador fosse”. Embora impiedosamente retire o narrador-autor do conforto da terceira pessoa e das suas onisciência e onipresença, para inseri-lo numa trama paralela de avaliação constante da própria construção da obra. É possível entender a personagem João Miguel como uma espécie de corifeu das sete “vozes” que se revezam nos capítulos, conforme o samba de Caetano Veloso: “A Voz do Morto”, “Pés do Torto” (as transgressões, como drogas), “Cais do Porto” (parentes, ancestrais e descendentes do grupo), “Vez do Louco” (as iniciações promovidas pelo personagem Coelho), “A Paz do Mundo” (po-

Novo livro de José Nêumanne é como a hipérbole de uma alma barroca em linguagem moderna, a descascar a aura da pretensa revolução social e de costumes da geração 60 Cláudia Cordeiro Reis

Nêumanne em entrevista a Astier Basílio — um pseudonarrador-defunto, espécie de versão rascante e alucinada de Brás Cubas, tira-nos da letargia das letras, esfriando na página para expressões como: “Peidaram no velório”. É assim, com um humor sarcástico, impiedoso, e uma irreverência agressiva, levada às últimas conseqüências, até à morte, que João Miguel consegue arrebatar-nos de qualquer possibilidade de tédio durante a leitura das 544 páginas. Aético, mulherengo, escritor frustrado, o professor universitário João Miguel, em sua condição de morto, testemunha do seu próprio velório, é apenas um simulacro do narrador-autor Brás Cubas: “agora que sou pó, que voltei à cinza [...] me disponho a abrir o jogo, a mostrar as cartas, a peruar o baralho alheio. [...] Nada nem ninguém me calará, nem você que fui eu quando corpo. [...] A este velório comparecerão muitos amigos. Na certa, também muitos inimigos. E não adianta você, seu escribazinho de merda, ficar tolhendo minha linguagem...”. Percebe-se então, ao contrário de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que o narrador-autor não cede as rédeas da

lítica), “Atrás do Muro” (as cenas de sexo) e “Na Glória” (cenas do próprio velório). Essas vozes, assim nomeadas, podem, inclusive, configurar as rubricas de um texto teatral, conotando as anotações do narrador-autor para uma espécie de prévia da encenação, portanto é questionável atribuir ao “morto” essa regência das vozes. Assim, João Miguel se nos apresenta mais adequadamente como uma espécie de sujeito da enunciação, ou seja, uma espécie de locutor particular que atualiza as frases de um enunciado e ainda o elemento impiedoso da avaliação, entendida aqui como parte essencial da narrativa de acordo com Labov Waletzky. E se configura um delator delatado, mais do que os que se propunha delatar. Toda a sua ousadia, toda a sua irreverência, que lhe permite o mito do “morto” é inútil, porque a voz do morto é o silêncio. No entanto, é ele que nos permite ousar dizer que a verdadeira protagonista dessa obra é a própria geração 60 “[...] Este não é o velório de um homem só. Mas o velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta turma Continente janeiro 2005

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LITERATURA de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das próprias intenções, por melhores que elas fossem”. Conforme o próprio autor: “No fundo, o leit motiv do romance é o conflito entre João Miguel e Penélope. Ele acha que a geração deles é a maior, trouxe uma imensa contribuição para a humanidade, citando Heráclito de Éfeso, para quem nunca ninguém se banha nas mesmas águas quando vai a um rio. Ela cita Hegel, segundo quem a história sempre se repete, é cíclica. Ou seja, o que a geração dos 60 fez foi repetir o que vem sendo feito desde Adão e Eva. O livro trata do fracasso da revolução política, que deu nas ditaduras comunistas; do fiasco da revolução dos costumes, que pregou o amor livre e terminou na ‘galinhagem’; do malogro das drogas que prometiam o céu químico e trouxeram o inferno da doença e da competitividade exacerbada; e, também, do sucesso da mulher, que liberou o corpo e dá uma aula de ética aos homens.” Diante de tal esclarecimento, mais importante que tentar fundar uma teoria sobre essa obra, é lê-la, e tentar percebê-la como uma grande hipérbole de uma alma barroca em linguagem moderna, a descascar a aura de todo o romantismo e de todo o idealismo da pretensa revolução

social e de costumes promulgada pela geração dos anos 60. O desmonte do mito dentro do rito – o velório –: a impiedade até a morte, e a ousadia, a única aventura que tenta pateticamente sobreviver até a última cena, tão surpreendente quanto tola, como assim parece ser todo o exposto submetido à avaliação da impiedade e da insubmissão. “Caía aquele último dia, virando noite, mas todos os presentes puderam ver muito bem o fulgor boreal da pele branca da moça, que se despiu rapidamente, jogando a blusa, a saia, os sapatos e as meias na grama. Quando ela tirou a calcinha preta e a atirou sobre o caixão já meio coberto de terra, seus pêlos púbicos refletiram os últimos raios do sol, o fulgor rubro do dia extinto. Fazia-se tarde. Era apenas o fim.” Ousar expor e expor o que ousa, ousando. Eis a fórmula que José Nêumanne utilizou para escalpelar a euforia dos anos 60, numa exasperante e paradoxalmente comovente narrativa, desesperada e terna. A obra convida a um velório que ressuscita carinhosamente, mesmo com todo ceticismo, o sonho. É corpo de um silêncio acordado que parece não tão cedo parar de ganir, de gritar, até que se decida: Valeu a pena? Quem ou o que decidirá? • Imagens: Divulgação

O Silêncio do Delator, José Nêumanne, A Girafa Editora, 544 páginas, R$51,00.

Ousar expor e expor o que ousa, ousando. Eis a fórmula que José Nêumanne utilizou para escalpelar a euforia dos anos 60, numa exasperante e paradoxalmente comovente narrativa

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PROSA

Fragma Cândido Rolim

Há formas que tiranizam a percepção. desconfiar das escolhas do olho. O mínimo de duração já dissipa uma origem. Se o espírito quer ser único, por que não prescinde da espacialidade do corpo? Um severo escrutínio não permite dar sequer o primeiro passo. este excesso de eleição e pesagem dos atos leva ao desconforto de se amar só o que o acaso reúne. Entes velozes. mal entram no caixão e estão à direita de deus. Antes de serem esquecidas, as coisas procuram o auxílio do presságio. Não é que a morte chega. ela volta.

Homem de bem = homem de bens. o que não faz um plural!

"Quem vê deus morre" (Juízes, XIII, 22) bem Pobres pertinências que enfeitam o bazar da diferente de quem morre vê deus. lógica. Não deveria acordar. mas as pálpebras já estão Erguer as têmporas. mover um músculo. escolher um pensamento. suspender o fôlego. tocar as abertas e os eventos entram por elas com pálpebras. ver a sombra. contornar as veias do sexo, estardalhaço. mastigar piolho. quem sobrevive sem seqüelas a essas Homens que definham quando não submetidos a tarefas próprias dos seres submetidos a longos um alarido. confinamentos? Para algumas coisas não existimos. para outras Não há sítio lógico onde a imaginação não vá de somos muito apropriados. olhos fechados. O chão vacila quando o olho não faz seu escrutínio a tempo. O homem continua extraindo leis do que se repete. e se a maçã de Newton caísse uma só vez?

O maravilhoso só ocorre à consciência insatisfeita e desacostumada, que não permite aos fenômenos recordarem ao sujeito sua quota de domesticidade. O homem também cria coisas que ainda vão ser.

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POESIA

Que sei eu?... João Esteves Pinto

Eu sei Que de tudo isto É inteligente Colher (apenas) a linha geral Aquela Por onde se movem no espírito Os conceitos Aquela Onde o fumo de um cigarro Seduz o mais alto vôo E se suspende

Nem fulgor mental Para que brilhem. Fiquei com as mãos sangradas Na gravilha E com um olhar de espanto Por companhia. Rasguei estas mãos Onde pisam os pés Os cascos As coisas duras Os parias, sim –Alguém duvida?!...

Eu sei Mas quando caí ao chão Foi a terra Que me marcou nas mãos A gravura incisa E não se desce Abaixo do chão E dos limites Eu sei Já não quero mais palavras Nem gestos

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Sob o fumo lento De um cigarro aceso E de conceitos Que se extinguem No seu brilho Que sei eu? Que sei eu Além da condição indigna?! • João Esteves Pinto nasceu em Sabugal, Beira Alta, Portugal. Administra a INCM Imprensa Nacional - Casa da Moeda S.A.


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Poeta maior

Painel variado Fabrício Marques acaba de lançar um livro de entrevistas com o subtítulo “Diálogos com poetas contemporâneos”. Afonso Ávila, Antônio Risério, Armando Freitas Filho, Chacal, Edimilson de Almeida Pereira, Maria do Carmo Ferreira, Millôr Fernandes, Ricardo Aleixo, Sebastião Nunes e Sebastião Uchoa Leite são os autores que respondem às instigantes e muito bem fundamentadas perguntas de Fabrício, explicando sua produção, suas admirações, sua concepção de poesia e de vida, num painel tão variado quanto interessante. Alguns entrevistados, entretanto, se destacam por questões que levantam, como, por exemplo, Antônio Risério, que tem uma percepção muito boa do que é fazer poesia nos tempos atuais; ou Armando Freitas Filho, pelo testemunho de uma vida dedicada à poesia; ou, ainda, Sebastião Uchoa Leite, ao sustentar como lei inexorável que o poeta (ou o artista de um modo geral) não pode baixar a guarda crítica. Um destaque especial fica para Millôr Fernandes que, aos 80 anos, mantém uma mente agilíssima, com respostas tão inteligentes quanto saborosas, demonstrando uma visão de mundo ao mesmo tempo realista, irônica e, apesar de tudo, com uma forte empatia pelo que é humano. (Marco Polo)

Um dos maiores poetas brasileiros vivos, Gilberto Mendonça Teles, tem sua obra completa lançada em volume de 1116 páginas, com capa dura, pela Editora Vozes. Sob o título de Hora Aberta – Poemas Reunidos, contém os livros Alvorada (1955), Estrela D’Alva (1956), Planície (1958), Fábula de Fogo (1961), Pássaro de Pedra (1962), Sonetos do Azul sem Tempo (1964-76), Sintaxe Invisível (1967), A Raiz da Fala (1972), Arte de Amar (l977), Sociologia Goiana (1982), Plural de Nuvens (1984), Cone de Sombras (1995) e Álibis (2000), além dos inéditos Improvisuais e Arabiscos. O volume traz ainda uma seção de poemas antes dispersos em jornais e revistas, intitulados Poemas Avulsos (1950-57) e poemas de circunstância na seção Caixa de Fósforos (1955-2002). Também um ótimo crítico de poesia, Gilberto Mendonça Teles tem mantido ao longo da vida um “inconformismo com a sua própria criação, procurando sempre formas novas, novos ritmos, novas maneiras de expressar a sua realidade”, conforme aponta o catedrático da área de Filologia Galega e Portuguesa da Universidade de Salamanca, Espanha, Ángel Marcos de Dios. (MP)

Dez Conversas, Fabrício Marques, Gutemberg Editora, 191 páginas, R$ 28,50.

Hora Aberta, Gilberto Mendonça Teles, Editora Vozes, 1116 páginas, R$ 89,00.

Voz lúcida

Teatro índio

Mentiras reais

O filósofo húngaro István Mészáros revela-se uma das poucas vozes lúcidas na análise da política internacional contemporânea. Ele se empenha em atualizar a visão crítica de Marx como a melhor solução para a situação atual, em que o desemprego e a miséria dominam. Ao mesmo tempo, combate, com raciocínio agudo e claro, e instrumentalizado por uma erudição funcional, a insistência dos teóricos do neo-capitalismo, que querem fazer com que o atual estado de coisas seja visto como “natural” e não passível de mudança. Ou seja, os que sustentam que não há mais espaço para as ideologias ao mesmo tempo em que pregam a falácia de que fora do capitalismo não há alternativas viáveis.

Em convênio com a Academia Brasileira de Letras, a Nova Fronteira está lançando toda a obra teatral de Antonio Callado. Autor de fortes preocupações sociais, Callado tem um ciclo de peças chamado “teatro negro”, baseado em elementos da cultura afro-brasileira. A questão do índio, entretanto, também o preocupou. Não é por menos que seu romance mais conhecido, Quarup, trata do assunto. A peça Frankel também. Um grupo é levado a discutir questões éticas, como a irresponsabilidade dos cientistas que abstraem a realidade como justificativa para levar avante seus experimentos, bem como a arrogância dos civilizados perante o indígena.

O terceiro romancereportagem de Julio Ludemir – Lembrancinha do Adeus –, como os demais, joga na face do leitor urbano, de classe média, a realidade dramática das favelas cariocas. Realidade, aqui, temperada pelas tintas da ficção, ao incorporar as histórias lendárias de um bandido cansado de guerra, contadas a um menino órfão cujo sonho é tornar-se bandido, à narrativa propriamente dita. Lambreta e Lembracinha, escondidos numa cisterna no Morro do Adeus, esperam ser executados e conversam sem parar, alternando a experiência de um e os desejos do outro, construindo um discurso onde a imaginação (e, portanto, a mentira) é tanto uma metáfora quanto uma necessidade.

O Poder da Ideologia, István Mészáros, Boitempo Editorial, 568 páginas, R$ 68,00.

Frankel, Antonio Callado, ABL/Nova Fronteira, 128 páginas, R$ 24,00.

Lembrancinha do Adeus, Julio Ludemir, Editora Planeta, 240 pág., R$ 39,90

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AGENDA

LIVROS


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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Quem nasceu pra Jobim nunca chega a hip-hop "A música é a alma da Geometria." Paul Claudel (1868-1953)

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e vez em quando me dá uma vontade danada de me imiscuir em algo que não entendo. Deste mesmo púlpito já mandei para os infernos malufentos a tal de Pós-modernidade, e agora resolvi implicar com a sub-cultura do tal hip-hop, termo norte-americano que significa, aproximadamente, pular remexendo os quadris. Seus adeptos o chamam de cultura. É, no entanto, um segmento da cultura urbana, uma subcultura, portanto, mas de tal apelo juvenil que vai assaltando mercados com aquela inocência de um bispo Macedo ou de uma tal de Coca-Cola. Se, por falta do que fazer, algum jovem na sala de espera de um consultório leu por acaso as linhas acima, deve ter suspendido a leitura, enjoado com o autor careta. Ele nem sabe que escutou vozes do Além, pois sempre me considerei um sujeito do século 19 que, ao invés de ir balançar a bunda em algum baile funk, ia escutar alguém tocando o “Noturno” de Chopin, levado por meu pai, quando adolescente. Quando morri, meu espírito bisbilhoteiro ainda ficou campanando a Terra, no século seguinte, brechando no próprio Brasil, e com deleite, alguns sambas de morro: Pixinguinha, Ataulfo Alves, Noel Rosa e parando em Jobim, todo o Chico e nas canções “Clara” e “Clarice”, de Caetano Veloso. Foi quando abriu uma vaga no Purgatório, onde estou, até hoje, sem dormir direito com os infernais barulhos da mídia, que chegam até nós. Embora não entenda bulhufas de hip-hop, informações superficiais sobre ele abundam (verbo mais que preciso), penetram ouvidos a dentro como muriçocas eletrônicas, mas felizmente não têm influência cinética sobre Continente janeiro 2005

espíritos artríticos como o meu. Sabe-se, por exemplo, que o hip-hop nasceu ainda sem aquele nome e a alegada estrutura que lhe deu Nova York, no início da década de 60, na Jamaica. Trata-se de um país caribenho, cuja área é a metade da de Sergipe, com população similar à do Estado do Rio Grande do Norte e, o que é importante para a difusão cultural, tem o inglês como idioma. Essa difusão eclodiu, quando o ritmo foi assimilado pelos guetos negros e latinos de Nova York, desbancando outro ritmo jamaicano, mais sofisticado e verdadeiramente artístico, o reggae, que representa uma feliz fusão entre elementos afro-jamaicanos (o país é 80% de negros) e sonoridades do blues e do soul. Prestígio em Jamaica é prestígio em Jamaica, mas prestígio nos EUA é prestígio no mundo. Eis o passaporte universal do novo ritmo. Ele já chegou à reumática Europa e, aos poucos, dobrará a espinha da orgulhosa França que, adorando Paulo Coelho, já não tem tantos escrúpulos. No Brasil, que tem worship (êpa!) por tudo que faz parte da gringolândia, o hip-hop chegou no começo da década de 80. Sua grande largada foi no governo municipal de São Paulo, de Luísa Erundina (1997-2000), quando se tornou elemento de aprendizagem escolar. Pelos ruídos que circundam aquele ritmo, tudo nos diz que ele camaleonicamente assume as cores e os coros do país hospedeiro, mas há uma predominante incidência da crítica social, ora mesclada com um certo machismo, ora com engajamento político, nas letras do rap. Isso em virtude de sempre surgir nas periferias, onde o desemprego e o sadismo policial fazem parte do quotidiano.


MARCO ZERO

Mas o hip-hop, ao ser cooptado pelo sistema escolar, para servir de atrativo à freqüência do aluno, em virtude, como já disseram, de que as letras do rap já estariam penetrando nas redações estudantis, parece-me um engano querendo esconder outro engano. Os alunos, que aumentam a sua freqüência por causa de hip-hop, continuarão indiferentes à Química, à Física, em suma, a todas as matérias. Não é reduzindo dessa forma o absenteísmo escolar, para camuflar as estatísticas, que se tira o país do último lugar em aprendizagem de Matemática, entre quarenta nações pobres, ricas e remediadas, conforme o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa-2003). Mas devo logo “ficar peixe”, como na gíria jovem dos anos 80, porque é começo de ano, tempo bom para falar de amenidades. Creio que meus milhões de leitores concordam comigo. Eles que suportam com paciência meu enxerimento de velho e meu mau humor de sujeito liso. De acordo com uma cola que fiz recentemente, a subcultura do hip-hop compõe-se de quatro elementos: O B. Boy (break-boy), o grafiteiro, o MC (mestre de cerimônias, que gagueja o rap) e o DJ (disk-jockey), este, o cão-chupando-manga, um endiabrado em cima do vinil, fazendo misérias com ele (hoje o CD). Multiplicados em projeção geométrica pela mídia, há milhões de ouvintes passivos do rap, da música “sertaneja”, do brega romântico, do pagode, do axé e de quanta poluição sonora vive a perturbar os vivos,

ou os mortos, como eu. O que fazer? Bem, terminei desviando-me das amenidades a que me propus. Ativistas e adeptos do novo ritmo, que não concordam com que o rap se preocupe apenas em tematizar em termos de “armas, miséria, sangue e drogas”, procuram defender uma postura diferente, que seria uma espécie de adoção da “arte-cidadania”. É uma outra postura ideológica. Mas sejam quais forem as defesas dos devotos desse culto de massa, todas elas o colocam mais para Platão do que para Aristóteles. Optam pelo “ensinar deleitando” platônicohoraciano, ao invés de verem a arte como dotada de “uma função estética e não didática”, como insistia em nos lembrar Afrânio Coutinho. Aqui, no Purgatório em que vivo, o hip-hop não é arte coisa nenhuma, tanto faz querer ele ser político, ético, didático, ou estético. Para terminar, conto-lhes que tive uma grande satisfação um dia desses. Foi quando uma rede de TV promoveu um desafio entre um rapper e um violeiro, em São Paulo, com votação à distância. Ganhou com mais de 60%, contra pouco mais de 20%, o violeirorepentista. E olhem que ele não era um dos “faraós” do “gênero”, como Ivanildo Vila Nova, Oliveira de Panelas e João Furiba, por exemplo. Mas o rap, com sua prosa rimada, igual ao Alcorão, não deixa de ser atual nesta época de tanto anti-islamismo. Está na onda, como as enchentes de São Paulo. •

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HUMOR

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A Amerika de Crumb

Ima gen s: R epr o

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Coletânea apresenta trabalhos de Robert Crumb, trazendo simples desabafos diante do inexorável avanço dos valores materiais na sociedade norte-americana e críticas corrosivas ao sistema Lailson de Holanda Cavalcanti

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ara quem viveu a contracultura do final dos anos 60 do século 20, Robert Crumb é um nome tão familiar quanto Jean Paul Sartre ou Baudelaire para os contestadores de outras épocas. Junto com Gilbert Shelton, Victor Moscoso e Spain Rodriguez, Crumb traduziu em traços fortemente influenciados por Elsie Segar (autor de Popeye) as mudanças dos Estados Unidos – e da juventude mundial, como um todo – nos anos do pós-guerra e da Guerra Fria, refletindo a ansiedade e os medos da sua geração. Nesta coletânea lançada pela Conrad (América – Robert Crumb, 104 páginas) são apresentados trabalhos do artista, realizados em diferentes épocas, desde simples desabafos diante do inexorável avanço dos valores materiais na sociedade norteamericana até o registro magistral de cenas do cotidiano, onde o autor de ficção transforma-se num retratista de cenas da vida americana, como se fosse um Norman Rockwell linear, distorcido e em preto e branco. O fascínio pela cultura afro-americana é uma constante nas obras de Crumb, tanto na música quanto no comportamento sem repressões. Ao mesmo tempo, o autor sabe que também não pertence àquele universo. Na verdade, Crumb não pertence a nenhum universo pré-estabelecido e por isso ele recria o cotidiano para que, através da sua ótica pessoal, este possa fazer algum sentido.

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HUMOR

As críticas corrosivas do autor ao sistema, através de personagens como Whitman, com suas neuroses decorrentes da sua origem anglo-saxônica em contraste com uma cultura que cada vez mais se torna multirracial, ou as sátiras que o artista cria de realidades alternativas, onde os negros ou os judeus tomaram o poder, refletem não apenas as idiossincrasias da civilização norteamericana, mas também as próprias fobias de Crumb, traçando retratos paranóicos, onde ele destila seus próprios preconceitos e reflete os medos da monolítica sociedade conservadora dos Estados Unidos. Esta sociedade – chamada então pela contracultura de “Amerika”, numa alusão à tendência de extrema direita contida nela – que teme toda e qualquer atitude liberal, é a que hoje domina o país que dispõe do maior arsenal e do maior controle econômico do planeta, como se fosse um pesadelo criado pelos traços deste artista. Quando Crumb cria reuniões imaginárias dos homens que controlam os negócios do mundo, ele está falando, 20 ou 30 anos atrás, do que hoje vemos acontecer, quando gigantescas corporações empreendem suas ações empresariais-militaristas, como na recente invasão do Iraque. As duas obras que abrem e fecham esta coletânea (Harlem e Uma Breve História da América) sintetizam bem o pensamento de Crumb. Na primeira, ele apenas registra com seu traço nervoso – porém firme – as cenas do bairro novaiorquino com uma agilidade que pressupõe o desenho feito direto na tinta, sem apontamentos a lápis; na segunda, ele desenha como o seu sonho de uma América idílica pode ser transformado numa sociedade suja e decadente. Crumb é um saudosista que busca representar uma inocência perdida da América através dos seus traços fortes que distorcem a realidade como num espelho de parque de diversões. Curiosamente, o reflexo distorcido criado por ele, há mais de três décadas, é uma das imagens mais realistas e coerentes com o que a América atual se transformou. •

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América, Conrad do Brasil, Robert Crumb, 104 páginas, R$25,00.

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ARTES

Fotos: Flávio Lamenha

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Arte no paraíso do consumo O projeto do Parque de Esculturas do Shopping Center Recife, com 19 mil metros quadrados, conta com 36 esculturas, de médio e grande porte, assinadas por 30 artistas Weydson Barros Leal


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o ano de 1961, o escultor Abelardo da Hora redigiu, a pedido do presidente da Câmara do Recife, um projeto de lei municipal que obrigava toda edificação com mais de mil metros quadrados, construída na cidade, a ter uma obra de arte como parte integrante. O texto, tal como foi escrito, foi votado e aprovado na íntegra e por unanimidade, e até hoje faz parte do Código de Obras do município. Ao longo dos últimos 44 anos, o Recife foi se tornando, com o surgimento de esculturas, painéis e pinturas incorporadas às suas construções, “uma espécie de galeria de arte a céu aberto”, como diz o próprio Abelardo. Ao se buscar essas obras, percebe-se que a grande maioria encontra-se nos recintos internos de edifícios públicos e particulares, fazendo parte de jardins e salas de entrada, ainda que possam ser vistas dos passeios e calçadas. O acesso à imaginada “galeria”, por isso, obriga os visitantes a autorizações para visitas que nem sempre compensam a tentativa. Nas duas últimas décadas, algumas dessas construções – principalmente os edifícios residenciais de menor valor agregado – passaram a considerar como obras de arte peças de valor duvidoso, com invenções estéticas sem origem ou assinatura. Na Figura Sentada, Corbiniano Lins

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grande maioria, porém, o resultado é enriquecedor para o acervo da cidade, e grandes artistas fazem parte desse pontilhado de arte que embeleza suas construções. Foi em 1996, no entanto, que a administração do Shopping Center Recife deu início a um projeto de valorização da arte pernambucana, sem precedente na cidade: a criação de um Parque de Esculturas a céu aberto, reunindo 30 artistas de reconhecido valor. Até hoje, este é o maior parque do gênero no Nordeste do país. O Parque foi inaugurado em 1998, fica localizado num dos jardins laterais do shopping, com 19 mil metros quadrados, e conta com 36 esculturas de médio e grande porte. Entre os artistas ali reunidos estão Abelardo da Hora, com as esculturas A Mulher Reclinada e A Mulher Reclinada Ajeitando o Cabelo; Cavani Rosas, com o Caboclo de Lança; Corbiniano Lins, com A Ginasta, toda em alumínio; além de grandes artistas como Thina Cunha, Jobson Figuei-

A Pedra, Demetrio Albuquerque

O projeto do Parque de Esculturas do Shopping Center Recife tem a assinatura dos arquitetos Moisés Andrade, Mônica Raposo e do escritório Andréa Câmara e Paulo Raposo Associados

Este Parque, até aqui, é a iniciativa particular mais bem-sucedida no quesito valorização da arte em espaço público do Recife


redo, Roberto Lúcio e outros. Alguns escultores não residentes no Recife também foram convidados, como Ivson Monteiro, de Alagoas; Evandro Carneiro, do Rio de Janeiro; e Mazeredo, também do Rio. O projeto do Parque de Esculturas do Shopping Center Recife tem a assinatura dos arquitetos Moisés Andrade, Mônica Raposo e do escritório Andréa Câmara e Paulo Raposo Associados. A iluminação é de Peter Gasper e da Via Arquitetura Iluminação e a curadoria foi de Rogélia Peres. Este Parque, até aqui, é a iniciativa particular mais bem-sucedida no quesito valorização da arte em espaço público do Recife, e seu valor como projeto e realização equivale à qualidade das obras ali apresentadas. • Leda e o Cisne, Francisco Brennand

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Suas majestosas e coloridas esculturas trazem a beleza em si, mas também estão carregadas de significados ligados à religião afro-brasileira Adriana Dória Matos

Fotos: Divulgação

Mestre Didi Interlocutor de realidades


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oca o telefone na casa de Mestre Didi, em Salvador, capital baiana. Ele atende, a voz ressoando seus 87 anos. Ao saber que se trata de uma jornalista, o artista diz não dar entrevistas. Isso já era sabido, mas nunca custa tentar. Sua mensageira para assuntos de Imprensa é a antropóloga argentina Juana Elbein dos Santos, com quem é casado. Mas a própria Juana é uma interlocutora difícil. Adia os contatos para falar sobre o marido, despista, foge. Para construir um breve perfil dele restam, portanto, as referências de outros conhecedores de sua trajetória. Registros da obra deste artista que nasceu na Ilha de Itaparica, em 1917, de nome Deoscóredes Maximiliano dos Santos, tornado o Mestre Didi, ilustre representante da cultura afro-brasileira. Didi se reserva no silêncio porque, além de artista, é sacerdote do culto aos ancestrais, chamados e’gun ou egungun. O silêncio está entre os compromissos firmados pelos iniciados nos rituais do candomblé e, sendo Didi um sacerdote da mais alta hierarquia, seu silêncio é lei. Sobre esse aspecto, presente em muitas religiões e preservado de forma peculiar na africana, há o depoimento eloqüente do filósofo Muniz Sodré: “Na atitude africana, o silêncio não é um simples ato deliberado, a decisão voluntária de uma consciência, mas uma espécie de pudor ontológico de um tipo de homem que, ciente da insuficiência da fala ou dos limites da comunicação discursiva, dá lugar a outra realidade, a do corpo”.

Sasara Ibiri Ati Ejo Kan Cetro do Panteão da (C Terra), 1998, nervura de palmeira, couro, búzios, 65 cm (altura)

Não é necessário conhecer o sistema religioso ao qual Mestre Didi é filiado, para apreciar suas majestosas e coloridas esculturas. Elas trazem a beleza em si. Mas sua obra evidencia de tal forma os códigos simbólicos da cultura a que pertence, que, diante dela, se é estimulado à investigação de procedência. O apreciador intui que nada ali criado é gratuito ou mero exercício de composição. A obra quer representar algo e sua presença exige resposta. Aproximar-se das simbologias expressas leva não apenas à mera tradução, à satisfação de uma curiosidade desperta, mas à enriquecedora aproximação com um universo tão arraigado quanto estranho ao complexo amálgama da cultura brasileira. É como se Mestre Didi fosse um poderoso interlocutor de realidades coexistentes e alheias. A ausência de comunicação entre o que se convencionou chamar de arte brasileira e uma especificidade sua – a arte afro-brasileira – tem raízes em preconceitos antigos, na sistemática marginalização de agentes representantes da cultura negra ou de origem africana no país, como se esta desmerecesse figurar entre os melhores Mestre Didi Serpente Na página anterior, Ejo Ibo (S do Mato – União da Terra com o Além), 1999, nervura de palmeira, couro, búzios, 66 cm (altura) Continente janeiro 2005

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Sasara Ibiri Ati Ejo Meji Xaxará Ibiri com Duas (X Serpentes), 1999, nervura de palmeira, couro, búzios, 57 cm (altura)

exemplares da produção nacional. Ainda que a hegemônica estrutura nacional de artes plásticas mantenha à margem esses artistas, classificando-os de populares ou primitivistas, há uma contrapartida de reconhecimento de suas representatividades em alguns setores, sobretudo no contexto internacional. O “caso” Mestre Didi é exemplar no que se refere à respeitabilidade que conquistaram poucos dos artistas afro-brasileiros, mais significativamente dos anos 60 para cá. Filho de um alfaiate e de Maria Bibiana do Espírito Santo, a Mãe Senhora, desde os oito anos de idade Didi executa objetos rituais. Ainda na década de 20 do século passado, ele foi iniciado no culto do orixá Obaluaiê pela ialorixá Mãe Aninha, sua guia espiritual. De nobre ascendência, descendente de caçadores e exploradores das nações de Oyo e Ketu, Didi foi incumbido da tarefa de reverenciar os ancestrais e’gun, preservar e inovar o panteão nagô, também chamado iorubá. Portanto, a senha para avançar até a contemplação simplesmente estética da obra de Mestre Didi é saber que ela está assentada na reinterpretação de emblemas rituais ligados ao culto dos orixás da Terra: o já citado orixá Obaluaiê, também chamado Omolu, além de Nanã e Oxumarê. Mais dois orixás lhe servem de inspiração artística, ambos por relações míticas: Exu, princípio dinâmico que acompanha tudo que existe, segundo o candomblé, e Ossain, o que guarda os segredos das ervas. O corpo telúrico está formado. Continente janeiro 2005

Os materiais utilizados por Mestre Didi (búzios, couro, palha da costa, nervuras de palmas de palmeiras, contas, cabaças e tecidos), as cores, os títulos (todos em iorubá), as formas; cada um dos elementos esculturais trazem significações simbólicas. É na cabaça, por exemplo, que Exu guarda seu axé (poder). Os pássaros são símbolos de Ossain. As variadas e sinuosas serpentes são testemunho de Oxumarê. O xaxará (espécie de bastonete) é um emblema de Obaluaiê. O ibiri é o cetro de Nanã. Búzios são atributos de abundância e riqueza, o próprio princípio da Terra, assim como às cores estampadas nos tecidos e nos couros são atribuídos poderes. De posse desses elementos, Mestre Didi elabora e reelabora esculturas que são iguais na motivação, sendo diferentes na forma. O reconhecimento do trabalho escultórico de Didi – que teve sala especial na 23ª Bienal Internacional de São Paulo (1996) e destaque em diferentes curadorias da Mostra do Redescobrimento, em São Paulo, em 2000, tendo obras suas nos segmentos Arte Afro-Brasileira e Negro de Corpo e Alma – sucede aquele conquistado pelo artista como divulgador da cultura tradicional iorubá transposta para o Brasil. Em 1946, Didi havia publicado o dicionário Yorubá Tal Qual se Fala e, entre 1961 e 1963, publicou, sucessivamente, os livros Contos Negros da Bahia, Axé Opó Afonjá (sobre famoso terreiro da Bahia, fundado por Mãe Aninha) e Contos de Nagô. •

Opá Ossanyin Nlá Grande Cetro da (G Natureza), nervura de palmeira, couro, búzios, 65 cm (altura)


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Trajetória sinestésica Somente agora os irmãos Aprígio e Frederico Fonseca lançam o catálogo da exposição Percurso Tátil, realizada em abril de 2003. O catálogo, assim como a exposição, é uma comemoração aos 25 anos de produção em conjunto, bem como uma retrospectiva desta trajetória. Mesmo sem a emoção despertada diante dos quadros ou objetos, o catálogo guarda a memória das imagens íntimas e coletivas do mundo tangível, decodificado em metáforas concretas.

Fotos:

Os artistas irmãos Aprígio e Frederico Fonseca lançam o catálogo Percurso Tátil Para Weydson Barros Leal, poeta, autor do texto “Os idiomas do encontro”, apresentação do catálogo, o conjunto da obra de Aprígio e Frederico é “(...) a representação de algo cognoscível, mas único; original, mas reconhecido. Isto traduz a emoção adocicada diante dos quadros em que quase sentimos o cheiro do açúcar, o gosto dos doces, a presença das casas nordestinas vistas ou inventadas, o chão dos pátios da infância, onde a areia e o barro inventam as cores da terra”.

Lançamento do catálogo Percurso Tátil. Livraria Cultura (R. Madre de Deus, s/n.Tel: 81. 2102-4033), 12/1, às 19h.

Maracatu, Maracatus A profusão de cores, sons, ritmos e movimentos das danças alegres e vigorosas do maracatu, folguedo de presença marcante que reproduz a tradição das antigas festas coloniais, com coroações de reis negros, é o tema da exposição Maracatu Mais, conjunto de golas, fotografias e telas – idealizadas por artistas como Ariano Suassuna, José Cláudio, Margot Monteiro, Tereza Costa

Rego, e produzidas por artesãos como Mestre Barachinha, do Maracatu Estrela Brilhante, e Dona Lucinha, do Maracatu Cambinda Brasileira – que narram a beleza, a força e o sentimento em torno desta manifestação folclórica. Maracatu Mais. Museu do Homem do Nordeste (Av. 17 de Agosto, 2187 – Casa Forte, Recife / PE. Tel: (81) 3441.5500 Visitação de segunda à sexta, das 8h às 17h, e sábados, das 13h às 17h. Até 20/02/2005. Continente janeiro 2005

AGENDA

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

A Bienal fora do eixo Com o tema Arte Como Território Livre, a 26ª Bienal de São Paulo reuniu artistas da “periferia”, que estão fora do eixo Nova York – Londres

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e a 26ª Bienal de São Paulo não se destacou pela qualidade das obras expostas, teve sem dúvida o mérito de tentar escapar da mesmice decorrente da hegemonia, no movimento artístico atual, do eixo Nova York – Londres e abrir-se a manifestações de artistas oriundos do que se considera formalmente como “periferia”. Alfons Hug, curador dessa Bienal – que teve por tema Arte Como Território Livre – tomou a decisão de convidar artistas fora desse eixo, os quais, na sua opinião, teriam tanto valor quanto os que gozam de fama internacional. E afirmou que tal opção se ajusta à história da Bienal, cuja vocação foi sempre a de buscar novos talentos na chamada periferia. A tese é só parcialmente aceitável, porque, se há uma coisa que caracterizou a Bienal de São Paulo em sua origem, foi buscar inserir o Brasil, país periférico, no circuito internacional da arte, cujo centro hegemônico estava ainda na Europa continental. A Segunda Guerra Mundial, deflagrada em 1939, havia interrompido o intercâmbio artístico, no momento mesmo em que o Brasil começava a assimilar a verdadeira problemática inerente às vanguardas históricas que nossos modernistas haviam deglutido sem mastigar. Por isso mesmo, as primeiras Bienais serviram como instrumento, a um só tempo, de assimilação, por nós, das vanguardas históricas e de atualização quanto ao que se fazia de novo lá fora. Este duplo papel desempenhado pelas primeiras Bienais paulistas foi decisivo para o surgimento no Brasil do movimento concretista, que implicou uma ruptura radical com a herança modernista, até então predominante no país. A arte concreta trouxe ao debate, pela primeira vez entre nós, as questões fundamentais da arte contemporânea, que em Continente janeiro 2005

seguida foram aprofundadas e radicalizadas pelo movimento neoconcreto. No entanto, esse broto autônomo foi de imeditado submergido pela onda tachista que, em 1959, tomou conta da 5ª Bienal de São Paulo. Deste modo, a mostra internacional paulista inseria-se definitivamente no processo artístico-mercadológico da internacionalização da arte contemporânea: já não se podia mais falar em periferia, uma vez que os artistas de todos os países praticavam o mesmo tipo de arte, o que perdura até hoje, se bem que com relativa autonomia, devido ao abandono de todo e qualquer conceito ou princípio estético. E aqui nos reencontramos com a proposta do curador da 26ª Bienal que, de fato, se não estou equivocado, pretende valorizar essa autonomia, ou melhor, essa diversidade que hoje caracteriza a arte em termos internacionais, ainda que os grandes centros continuem impondo as tendências predominantes. Hug afirma em artigo publicado no Jornal da ABCA: “Embora os centros do comércio e da atividade colecionadora de arte continuem localizados nos países industrializados do Hemisfério Norte, a arte contemporânea estabeleceu-se definitivamente como linguagem universal”. Acrescenta que essa difusão da arte contemporânea pelo mundo produziu “dialetos” visuais e variantes formais que se distinguem regionalmente e permitem correlacionar certas obras com uma determinada região cultural. A partir desse diagnóstico, a 26ª Bienal de São Paulo procurou reunir artistas dos mais diversos países e regiões com o propósito de mostrar a riqueza e diversidade de expressões artísticas de hoje, ao invés de insistir na exibição de obras mais representativas, produzidas naqueles centros hegemônicos. Mas esta opção tem um propósito mais amplo:


Divulgação/Bienal de São Paulo

TRADUZIR-SE

É ao mesmo tempo auso de afirmar os valores picioso ver que começa a estéticos em face de surgir, no âmago mesmo da uma tendência – que se chamada arte contemporâverifica nas tantas outras nea, uma visão autocrítica mostras internacionais – que procura distinguir ende privilegiar o docutre pseudodenúncias ou mentário, o jornalístico, contestações genéricas e a o político, em detrimenexpressão estética propriato do estético. E daí o mente dita. Certamente, tema “território livre”, tudo pode servir de matéria uma vez que, conforme para o trabalho do artista, afirma em seu artigo, mas nem tudo o que é exesta expressão “designa Le 11 juin 2002 cauchemar de George V, 2002, instalação, pressão, é arte. Não me aquele espaço em que 3,6x1,6x4,2m, Art Unlimited, Basel considero capaz de definir realidade e imaginação entram em conflito”, porque “os artistas são guardas de o que é arte mas, quando vejo uma obra de Morandi, de fronteira de um reino que está além do “mundo admi- Chagall ou Calder, sei que estou diante de uma obra de nistrado”, e aonde não chega a competência administrativa arte. Não existem regras ou princípios de que o artista se valha para produzir obras de arte, mesmo porque a arte é da política e da economia”. Por essa razão – afirma o curador – seu interesse, no reinventada a cada obra por ele. Mas essa reinvenção só se contexto da Bienal, é saber como se refletem na arte as torna possível porque ele trabalha sobre uma linguagem “devastações do mundo real e das relações interpessoais”, já que é, por definição, social que ele subverte ou transfigura, que as obras de arte são mais que meros fatos e por isso têm para nela imprimir sua voz própria. Fora daí, é como mais densidade que uma reportagem, ainda quando o apostar na sorte, mesmo porque, quando o artista não se artista se vale de meios como a fotografia ou o vídeo. Essa impõe limites, também não pode avaliar o que faz. Esse proximidade com o real não significa que seu objetivo seja vale-tudo passou a imperar no que se chama hoje de arte “duplicar o mundo” e, sim, transportar “a matéria-prima contemporânea, em acordo com a tola tese de Beyus de que terrestre, mediante metáforas e símbolos, para um novo “todo mundo é artista”. Claro, se o que se aceita como arte estado perceptível pelos sentidos”. O curador afirma que o não exige nem talento nem domínio técnico – como, por caráter documentário das obras expostas, no últimos anos, exemplo, prender um pedaço de trilho numa placa de em grandes exposições internacionais parece indicar que “a madeira – qualquer um é artista; a coisa muda de figura quando se trata de pintar uma Guernica ou compor uma confiança no poder da estética está minguando”. Essas afirmações de Alfons Hug têm certo grau de Bachiana nº 2 verdade e até mesmo de surpreendente, por se tratar do As teses defendidas por Alfons Hug são de modo geral curador de uma mostra internacional que, como as demais, corretas. Pena é que as obras expostas na 26ª Bienal, com aladeriu, há muito, às tendências que ele critica em seu artigo. gumas poucas exceções, não tenham correspondido a elas. • Continente janeiro 2005

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Divulgação

O código de Hollywood Antes de Hally Berry conquistar o Oscar, os filmes hollywoodianos eram censurados por um Código de conduta cinematográfica que criou tabus em torno de temas raciais e sexuais Fernando Monteiro

Hally Berry, em cena de MulherGato: primeira atriz negra a receber o Oscar


CINEMA Arquivo pessoal de Ernesto Barros

Uma Rua Chamada Pecado, com Marlon Brando, ainda foi censurado pelo Código Hays

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m cinéfilo amigo – que costuma anotar as mesmices de Hollywood – teve a pachorra de contar em quantos filmes viu motoristas sempre encontrarem vagas, sem problema, para seus carros, e detetives solitários abrirem geladeiras geralmente em ambientes de penumbra, demitidos (ou não) por chefes de polícia quase sempre negros etc. Cinéfilo novo, ele não sabe que algumas dessas “mesmices” já foram, um dia, novidade absoluta, ou foram sendo conquistadas palmo a palmo – do quadrilátero das mansões (ou conduzindo algum velho Packard para alguma velha Miss Dayse), no caso de jardineiros e motoristas “promovidos” a chefes de cor parda, bem vestidos e autoritários. Tanto quanto da fantasia, pode se dizer que Hollywood foi também a terra dos preconceitos – e da quebra deles, paradoxalmente. Raciais, morais ou sexuais, tanto vigoraram lá como foram afrontados num certo e dado momento: de Al Jolson – branco pintado de negro, no primeiro filme falado do cinema – a Hedy Lamarr se banhando, completamente nua, em Êxtase (1933), muita água rolou até vermos sexo quase explícito em A Última Ceia, de Marc Forster, ou termos a entrada triunfal do mestre negro convidado, com carinho, para jantar à mesa das toalhas imaculadas de quadradinhos, tortas de maçãs e a conversinha wasp sobre a arrecadação da última quermesse. Se alguém está esquecido da força do preconceito na “usina de sonhos”, basta lembrar que os atores negros de E o Vento Levou, com atuações memoráveis na grandiosa produção de Selznick, viajaram para Atlanta, cidade de estréia do clássico de 1939, porém não puderam comparecer à noite de gala, pisando no mesmo tapete vermelho estendido para as estrelas e os astros brancos do primeiro arrasa-qquarteirão do cinema. Trancados no hotel, ficaram ouvindo pelo rádio as entrevistas, o rumor dos aplausos e os gritos por autógrafos de Clark Gable ou Vivien Leigh. Desde essa senzala artística de Atlanta – vergonhosa para Hollywood e a América da “Cabana do Pai Tomás” –, o que aconteceu de tão forte que os chefes de polícia negros já aparecem, hoje, como presidentes da república, bem instalados na Casa Branquísssima? Terá sido preciso, apenas, que Sidney Poitier vestisse um dinner (emprestado?), em Adivinhe Quem Vem Para Jantar, para que se abrisse o caminho da glória aos ternos Armani de Denzel Washington, aos sobretudos impecáveis de Morgan Freeman e ao talento nu de Hally Berry? Os quatro já foram oscarizados – e, no ano do Continente janeiro 2005

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Arquivo pessoal de Ernesto Barros

Alfred Hitchcock teve que transformar Ingrid Bergman, no filme Interlúdio, em uma "mulher menos imoral" e negociar tempo para uma cena de beijo

prêmio da bela Hally, Poitier também subiu ao palco, para receber a ovação da platéia mais do que politicamente correta, que até ensaiou vaiar o gênio de Elia Kazan (por outros motivos que não vêm ao caso)... Hollywood foi mudando no cochicho ou no tapa, ao sabor das peças de Lilian Hellman? Os temas raciais e/ou sexuais têm uma longa história de tabus na meca do cinema, desde quando os estúdios californianos resolveram adotar um código de conduta cinematográfica, na esteira de alguns escândalos envolvendo principalmente sexo, tóxicos e adultério. O ano é 1929, e a administração de novas normas de produção – chamadas “Código Hays” – era confiada a um sujeito chamado Will H. Hays, “um homem de irrepreensíveis credenciais religiosas e políticas”, segundo Gerald Gardner em The Censorship Papers – Movie Censorship Letters from the Hays Office, 1934 a 1968 (Os Documentos da Censura – Cartas da Censura Cinematográfica do Hays Office, de 1934 a 1968), ainda inédito no Brasil. Continente janeiro 2005

Bem, Hays podia ser um bom crente e um americano honesto, dentro das suas limitações (e bote limitações nisso!), mas o fato é que os filmes passavam a ser julgados por alguém que fora apenas chefe dos correios no governo do presidente Warren G. Harding, morto em 1923, antes de chegar ao fim de uma administração tida como a mais corrupta da história americana. E a chafurdação nos papéis do Hays Office já rendeu pelo menos uma “descoberta” totalmente inesperada: o nome do trenó do menino Charles Foster Kane, aquela palavra que o já ancião pronuncia às portas da morte, com voz tétrica (“Roooseebud...”), foi a melhor das piadas secretas dos autores do roteiro, Orson Welles e Herman Mankiewicz. O nome foi escolhido porque era assim que William Randolph Hearst – o magnata da imprensa biografado sob o nome do Cidadão Kane – chamava as partes pudendas da atriz Marion Davies, sua amante notória. Quem redigiu o “Código” confiado às mãos – e ao olhar míope – de Will Hays? Se ainda tivesse sido


CINEMA Arquivo de Fernando Monteiro/Reprodução

Will Hays (E): o carteiro com mãos de tesoura

De acordo com o Código, Deborah Kerr e Burt Lancaster deveriam fazer a cena de amor de A Um Passo da Eternidade, trajando roupões Arquivo pessoal de Ernesto Barros

G. B. Shaw ou Eugene O’Neill, comenta Gardner, talvez até desse para agüentar, porém foram convocados um padre jesuíta chamado Daniel Lord e um editor católico leigo que atendia pelo nome de Martin Quigley. Embora ninguém mais se lembre deles, a coisa toda foi mais séria do que hoje pode parecer, à distância. Criado o mecanismo de autocensura, a Hollywood conservadora decidiu estabelecer uma Administração do Código de Produção (PCA), em junho de 1934, para agradar à Legião da Decência, criada pela Igreja católica americana, alguns meses antes. O órgão foi confiado ao jornalista Joseph Breen, católico fervoroso, cuja primeira medida foi determinar que todos os filmes deveriam ter o selo de aprovação da entidade, para chegar às salas de cinema. Um detalhe: as maiores cadeias de cinema pertenciam aos grandes estúdios, naquela época, de modo que uma película “censurada” era, diz Gardner, “uma criança natimorta”. Para respirar, a criança de celulóide deveria obedecer a três princípios rígidamente aplicados, a saber: 1) Não será produzido qualquer filme que possa abaixar os padrões morais de seus espectadores. Portanto, a simpatia do público jamais deverá ser atraída para o lado do crime, do mal ou do pecado; 2) Apenas padrões de vida corretos, sujeitos tão somente às exigências do drama e do entretenimento, serão apresentados; 3) A lei – divina, natural ou humana – não deverá ser ridicularizada nem se despertará simpatia pela sua violação. Onze artigos, na sequência, eram assim intitulados: Crime, Brutalidade, Sexo, Vulgaridade, Blasfêmia ou Profanidade, Vestes, Religião, Temas Especiais, Sentimentos Nacionais, Títulos e Crueldade Contra Animais. Beijos de língua, execuções e homicídios brutais estavam proibidos no país em que os gângsters matavam à luz do dia e... bem, tudo isso podia ser visto (pelas crianças, inclusive) em qualquer pé-de-escada livre de códigos, regulamentos e vigilâncias de padres, pastores e comadres virgens empedernidas. Pode parecer piada, hoje, mas os censores estabeleceram até o tempo “certo” de um beijo cinematográfico na boca: 30 segundos. Depois disso, os beijos passavam de românticos a obscenos, para os censores de Hollywood. Alfred Hitchcock contava que tinha sido obrigado a tornar a personagem de Ingrid Bergman, em Interlúdio (1946), uma mulher “menos imoral” – aos olhos do código –, enquanto negociava um tempo maior para o beijo de dois minutos que a atriz troca com Cary Grant, no filme que foi o segundo do mestre de suspense a ter problemas com o código (Rebeca, de 1940, fora o primeiro). “Hitch” passou a ser visado pelos censores, que implicaram com o “tratamento inaceitavelmente

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CINEMA Arquivo pessoal de Ernesto Barros

Em E o Vento Levou... os atores negros, que fazem atuações memoráveis, foram proibidos de comparecer à noite de gala

De Nova York, vinha gente como Martin Ritt e John Cassavetes, diretores egressos da TV, para injetar o sangue novo da produção independente, num cinema menos hipócrita, onde os “chefes de polícia negros” já podiam começar sua escalada pelo Salão Oval

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frívolo dado ao matrimônio” em Pacto Sinistro (1951), mas não se preocuparam com o caráter amoral e anormal de “Bruno”, interpretado pelo então jovem Robert Walker, com aquela cara de perverso de carteirinha. Por incrível que pareça, a turma da tesoura do Hays recomendou que as peças íntimas que James Stewart avista, pelo binóculo, através de sua Janela Indiscreta – outro grande sucesso de AH – fossem evitadas, mesmo que apenas penduradas nos outros apartamentos (num dos quais o esquartejamento de uma vítima de uxoricídio não incomodou em nada os vigilantes da moral reunidos nas salinhas, onde viam, em primeira mão, filmes de Billy Wilder, Fred Zinnemann, John Huston, Joseph Mankiewicz e outros criadores). Que os grandes diretores tenham conseguido produzir não poucas obrasprimas naquela Hollywood conservadora e disposta a seguir a cartilha dos típicos preconceitos midwest, pode ser considerado um milagre artístico. Enquanto os negros reluziam como engraxates e “pais Tomás” inofensivos nas suas cabanas, as negociações entre os produtores e o Hays Office prosseguiam por carta, geralmente. Gerald Gardner revela, no seu livro, a correspondência referente a 67 filmes divididos entre as categorias de Aventuras, Musicais, Westerns, Crime, Guerra. Monstros, Amor, Comédias e Épicos. Este último gênero gozava, comicamente, de inesperadas permissões – as quais não escaparam ao olho do veterano Cecil B. De Mille. O produtor e diretor de Os Dez


CINEMA Mandamentos descobriu um dos modos de contornar a censura: fazer filmes bíblicos. “A mais piedosa assistência de censores – zombou ele, na sua autobiografia –, clubes femininos, parlamentares, clérigos e editorialistas podia ser desarmada pelo pecado e pelo escândalo, quando traziam o imprimatur da Bíblia. Um público de beatos se permitia o prazer de ter estimuladas as suas libidos, contanto que os pecadores fossem punidos no fim pela ira de Deus...” Como não se passava às margens do Mar Vermelho, há pelo menos 3.000 anos, a tórrida cena de amor entre Deborah Kerr e Burt Lancaster, deitados na praia de A Um Passo da Eternidade (1953), em trajes de banho, sofreu a investida de Joseph Breen. Ele queria que o casal adúltero do belo filme de Zinnemann vestisse nada menos que “um roupão de praia ou outra espécie qualquer de roupa, antes de se abraçarem. Até porque o corpo bronzeado de Warden (Lancaster) lembrava o corpo de um homem de cor” etc. A cena ficou como estava somente porque, dessa vez, os protestos do produtor Harry Cohn, na troca de cartas, foram mais veementes do que o normal. Ainda assim, a legião de decência deu – talvez ressentidamente – a cotação B ao filme (o que significava “produção moralmente repreensível”).

Essa e as demais outras “cotações” valeram até 1968, bendito ano em que o Hays Office encerrou as suas atividades contra obras, como Relíquia Macabra, O Proscrito, Pacto de Sangue, Uma Aventura na África, O Homem do Braço de Ouro, Uma Rua Chamada Pecado e centenas de outras. Em boa hora, com a Europa agitada pelos estudantes da Sorbonne e os direitos civis para os negros reclamados, cada vez mais, por marchas espetaculares sobre Washington, os censores desapareceram de cena, para dar lugar ao vigor de obras como O Sol é Para Todos e Clamor do Sexo. Ao mesmo tempo, de Nova York vinha gente como Martin Ritt, John Cassavetes e outros diretores egressos da TV – para injetar o sangue novo da produção independente, num cinema menos hipócrita, onde os “chefes de polícia negros” já podiam começar sua escalada até o Salão Oval (onde ainda esperamos, deles, mais dignidade do que da senhora Condoleeza puxando os roxos do reeleito George Walter Bush). Foi assim que Hollywood mudou da água para o vinho, e de Hays para Hally – a primeira atriz negra a conquistar o Oscar. E a Academia sabe que nunca mais aceitará código nenhum, de qualquer novo carteiro com mãos de tesoura. •

Arquivo pessoal de Ernesto Barros

Sidney Poitier, em Adivinhe Quem Vem Para o Jantar, abriu o caminho da glória para atores como Denzel Washington, Morgan Freeman e Hally Berry

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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Nos tempos em que almoço era café e jantar “Hora de comer – comer! Hora de dormir – dormir! Hora de vadiar – vadiar! Hora de trabalhar? – Pernas pro ar que ninguém é de ferro!” Ascenso Ferreira (“Filosofia”)

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s primeiros homens comiam raízes, frutas, folhas e grãos. Aos poucos, também carnes cruas. Mas só quando tinham fome. Que ainda não havia neles o hábito de fazer refeições regulares. Assim foi até quando ocorreram duas grandes transformações: as técnicas de fazer fogo e as técnicas de criar e plantar. A primeira, quando se percebeu que as carnes de animais mortos, encontradas depois de incêndios, eram mais fáceis de mastigar e bem mais saborosas. O homem passou a querer fazer, ele mesmo, esse fogo. A segunda, porque nem sempre aqueles alimentos estavam disponíveis. Começando então a nascer, nos homens, o desejo de poder tê-los a qualquer tempo. Só a partir daí veio o hábito de fazer três refeições diárias – antes de ir trabalhar, no campo; antes do descanso, ao meio do dia; e antes de dormir. É assim até hoje. Continente janeiro 2005

Na Roma antiga já ninguém saía de casa em jejum. De manhã era o jentaculum – pão, queijo, frutas secas (passas e tâmaras), mel, biscoito. Além de uma muito apreciada epityra: azeitonas picadas e marinadas em óleo, vinagre, cominho, hortelã, coentro e alho-poró, servidos sobre fatias de queijo – segundo receita do político, escritor e glutão M. Porcius Cato (De Agri Cultura, 160 a.C.). Ao meio do dia o prandium – algo bem leve, quase sempre cevada, ovo, peixe. Com freqüência, também fatias de carne fria. De preferência porco – a carne favorita dos romanos, segundo Apicius. Tudo acompanhado por bebida que misturava vinho e mel. E, antes de dormir, a coena – literalmente, “comer junto”. Era a refeição de mais sustança – porque, segundo se acreditava, “com o sono e o corpo quieto, a digestão seria mais fácil e o aproveitamento do alimento melhor”, palavras de Hipócrates. Começava por um gustasio – aperitivo para abrir o apetite à base de ovo, ostra, crustáceo, aspargo. Seguido da coena propriamente dita – à base de arroz, verdura, peixe, carne, galinha, porco, carneiro. Terminando com a secundae mesa – quase sempre composta de doces e frutas (frescas ou secas). Com toda a família em volta dos pratos. Nessas ceias ocorriam todos os banquetes do Império Romano.


SABORES PERNAMBUCANOS

Orgias também. No inicio, como invocação à proteção dos deuses. Depois, sendo fraca a carne e grandes as tentações terrenas, apenas pelo prazer de celebrar a vida. Palácios tinham até lugar especial para isso – a coenatio. O que acabou inspirando a aristocracia francesa da época de Luis XV. Tanta era a importância dessa última refeição que o lugar acabou conhecido como “sala de jantar”. Escreveu Raul Lino – “Como V. Exmas. sabem, o uso de salas destinadas exclusivamente a refeições data só do século 18. Até aí serviam-se as comidas em qualquer gabinete ou câmera; os banquetes eram dados nas grandes salas de honra ou nos átrios dos palácios” (Alviverde Jornada, 1937). Aos nobres era ainda permitido comer, entre as refeições, um caldo engrossado com farinha ou bolo conhecido como “merenda”. Virou costume. Mudando, com o tempo, apenas o conteúdo dessa merenda. As refeições acabaram, aos poucos, recebendo novas denominações. “Almoço” vem do latim ad-mordere (morder de leve). Era a primeira refeição. Com o vinho que acompanhava pão e sopa sendo pouco a pouco substituído por chá, café ou chocolate. “Jantar” era a segunda refeição, sempre a oras de meio dia, quando yantava la gente – nas palavras de Juan Ruiz Arcipreste de Hita (Livro de Buen Amor, séc 13). Em alguns lugares a denominação permanece até hoje. Na Suíça, por exemplo, almoço continua dîner. Ao anoitecer vinha a “ceia”. Louis de Rouvrox, Duc de Saint-Simon (1675 – 1755), no livro em que narra episódios da vida da corte (Memórias, 1740), dá receita de uma dessas ceias – “rins de javali em marinada, ostras com natas, seguindo-se bolos, tortas, saladas, pé de porco, ervilhas com ovos escalfados, maças, reinetas à chinesa; tudo preparado em local expressamente reservado para este fim, em que todos os utensílios eram de prata”. Mas não só nobres tinham ceia farta. Francisco da Fonseca Henriques, médico da corte de D. João V, escreveu – “a maior parte dos homens come ao jantar e à ceia, e é o que basta para a conservação da natureza e a conservação do corpo” (Âncora Medicinal para Conservar a Vida com Saúde, 1731). Conselho similar foi dado por Henrique IV, da França, lever à six, dîner à dix;/ souper à six, coucher à dix/ fait vivre l’homme dix fois dix (levantar às seis, jantar às dez/ cear às seis, deitar às dez/ faz o homem viver dez vezes dez). Assim foi até a Revolução Francesa, em 1789. Quan-

do grandes alterações ocorreram no horário (e no conteúdo) das refeições parisienses. Deputados, intelectuais e todos os que estavam comprometidos com as transformações nacionais então em curso, começaram a ter novos hábitos alimentares. Por conta da Assembléia Nacional Constituinte, o parlamento funcionava de meio-dia às 6 da tarde. A prática continuou em 1802, quando Napoleão foi feito cônsul e tiveram início os debates do que viria a ser o Código Civil de 1804. Certo é que, por esse tempo, dormia-se mais tarde e acordava-se mais tarde. Passando muitos a preferir um almoço reforçado, no fim da manhã, antes dos trabalhos parlamentares. Jantar só na volta, à noitinha. Saiam para confraternizar, quase todas as noites. E ceavam só na volta para casa. O mesmo Dr. Francisco da Fonseca Henriques anotou essas mudanças – “os cavaleiros a quem sempre amanhece mais tarde almoçam pelas onze horas, jantam pelas 7 e vêm a cear pela meia-noite”. Trabalhadores e outros pobres mortais, a quem não era dado trocar o dia pela noite, viviam em um universo dife rente. Mas esses horários tão diferentes de refeições, entre elite e povão, aos poucos, acabaram padronizados. Quando o colonizador português chegou por aqui, nossos índios também só se alimentavam quando tinham fome – “índios não têm horas certas para comer; e não se incomodam em fazê-lo a qualquer hora, do dia ou da noite; mas não comem sem ter fome”, observou o capuchinho francês Claude d’Abbeville (Histoire de la Mission de Pères Capucins em l’Isle de Maragnan et Terres Circonvoisins, 1612). Acabamos herdando, da corte, esse hábito das três refeições. Com nomes ainda não consolidados, é certo. O conde de Gobineau, por exemplo, escreveu (1869) que D. João VI, jantava às 4 – “Il dine à 4 avec l’Imperatrice”. A regra valia também para os escravos. “O preto trabalhador de roça deve comer três refeições ao dia, ao almoçar às oito horas, jantar à uma hora e cear às sete horas. Sua comida deve ser simples e sadia. Em serra acima, em geral, não se lhe dá carne, come feijão temperado com sal e gordura, e angu de milho, que é comida substancial”, escreveu Francisco Peixoto de Lacerda, o Barão de Paty (no famoso Manual aos Produtores de Café). O país começava a se tornar grande produtor de café. E isso mudou nossos hábitos. Pouco a pouco passamos a chamar o “pequeno almoço” do colonizador de “café da manhã”. Ou simplesmente “café”. Depois vinha Continente janeiro 2005

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Leo Caldas/Titular/Cortesia Casa de Chá Chacon

o almoço (às 9), o jantar (às 15) e finalmente a ceia (às 18 horas, no cair da noite). Esse hábito de quatro refeições ainda hoje permanece em muitas casas do Sertão. Faltando só dizer que sesta, aquela dormidinha reparadora de depois do almoço, também veio importada de Portugal – correspondendo, na etimologia, à “sexta” das horas canônicas, (meridie). A maneira de servir foi também se sofisticando. No início, todos os pratos eram colocados à mesa de uma só vez. Assim o português nos ensinou. Sendo a refeição anunciada pela voz cantada de mucamas pretas – “o de comer está na mesa”. “Está na mesa”, assim continuamos a dizer. Do século 18 nos veio, ainda, o “serviço à francesa”, dando uma ordem seqüencial dos alimentos na mesa. Primeiro serviço – sopas, entradas e caldos. Segundo serviço – pratos principais e acompanhamentos. Depois se retirava a toalha. E vinha, então, o terceiro serviço – frutas e doces, colocados diretamente sobre a mesa. Daí vindo o próprio nome “sobremesa”. Hoje tudo está mudando. Com freqüência come-se pela manhã algo ligeiro, logo ao sair da cama. De preferência o que estiver na geladeira, já pronto. Todos têm pressa. Ao meio-dia, para ganhar tempo, fast food. À noite, janta-se no horário em que permitir a novela das 8. Para muitos de nós a rotina é essa. O romantismo à mesa está acabando. Por falar em romantismo, e para terminar, não custa lembrar lamentável descoberta feita pelo nobre Gonçalo de Souza – que teve a honra de hospedar, em Continente janeiro 2005

sua casa lusitana, Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Era hora de refeição. E, como dono da casa, cumpria-lhe a honra de dar ciência do fato ao Imperador. Não se sabia onde estava. Procurou em salas, terraços e quartos. Até que o encontrou, despido dos trajes da realeza, em sua própria cama. Fazendo companhia a sua mulher (dele, Dom Gonçalo). Então, com toda pompa e elegância que cumpria à aristocracia, limitou-se a anunciar: “Senhor, levantai-vos que o comer está na mesa”. O rei nem pediu desculpas. Depois dos prazeres da cama, os prazeres da mesa. Levantou-se, vestiu calças, e foi jantar. Os tempos estão mesmo mudando. •

RECEITA: BOLO INGLÊS (à moda de Pernambuco) INGREDIENTES: 450 g de manteiga, 450 g de açúcar, 450 g de farinha de trigo, 12 gemas, 6 claras, 1 cálice de vinho do Porto, passas. PREPARO: Bata bem açúcar e manteiga. Junte gemas, uma a uma, sem parar de bater. Acrescente vinho do Porto, farinha de trigo e passas. Por fim, junte as claras batidas em neve. Misture levemente. Coloque em forma untada e leve ao forno.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

O desabafo de Graciliano

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encadernador me entrega os livros de Gracialiano Ramos, que mandei vestir de roupa nova, mas não tão cara como eles merecem. A maioria traz dedicatória, naquela letra de um desenho seco. Agressivo e duro, Graciliano negava-se a ver o lado bom do mundo, suas possíveis venturas e alegrias. Era um amargurado que se alimentava da própria amargura – e levou para os seus livros esse travo de fruta verde que era o gosto que ele sentia da vida. Mas também era – e principalmente é o que ele era – um homem de bem. Dificuldades, glórias e tormentos nunca o torceram. Insatisfeito com o mundo inteiro, talvez, mais insatisfeito ainda se mostrava com ele próprio, particularmente com a sua literatura. Aos magníficos romances que escreveu,chamava de livrecos. Certo dia, quando eu tentava lhe arrancar uma entrevista para o meu jornal, Graciliano me recebeu ríspido e, num tom de reprimenda, me disse que não sabia de “profissão mais idiota do que essa de vocês, jornalistas, que vivem a recolher bobagens de pessoas sem importância”. •

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No silêncio das horas mortas Assombrações do Recife Velho, livro de Gilberto Freyre, vira peça teatral nas mãos do dramaturgo pernambucano Newton Moreno Leidson Ferraz

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Fotos: Divulgação

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Ilustrações: Miguel

ecife, noite de 1929. O escritor e sociólogo Gilberto Freyre, então diretor do jornal A Província, é procurado por um sisudo morador de um velho sobrado do bairro de São José que lhe faz uma solicitação estranha: desejava que ele conseguisse do chefe de polícia que acabasse com as assombrações da sua casa. Ora, o honrado cidadão tanto estava certo de que eram espíritos maus a atazanar sua residência quanto ao poder da polícia de conter, expulsar, talvez liquidar, a facão, com eles. Foi a partir desse pedido que o diretor d’A Província encarregou um repórter de vasculhar nos arquivos policiais o que houvesse de mais interessante sobre casas malassombradas e casos de assombração. O resultado foi uma série de artigos publicados no jornal. Parte dessas histórias está no livro Assombrações do Recife Velho – Algumas Notas Históricas e Outras Tantas Folclóricas em Torno do Sobrenatural no Passado Recifense, lançado por Freyre em 1951. A obra ganha agora, pela primeira vez, uma adaptação teatral, com estréia prevista para março, em São Paulo, com a Cia. Os Fofos Encenam. Mas a montagem não é de todo paulista. Não só pela presença de três atores recifenses no elenco de dez intérpretes, Carlos Ataíde, Paulo de Pontes e Luciana Lyra, mas, principalmente, pelo diretor e adaptador do texto, o pernambucano Newton Moreno – recentemente premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte pelo texto do espetáculo Agreste –, que parece, assim, expurgar saudades da sua capital, uma cidade que ainda traz consigo. “O elemento do fantástico é muito forte no Recife. O que proponho é, de fato, um resgate dessa memória, desse imaginário que contribuiu para a formação da nossa cultura, da nossa identidade”, confessa. Em Assombrações do Recife Velho, como um narrador encantatório, Gilberto Freyre nos conta o que ouviu dizer; mas não o que viu. Tudo baseado em depoimentos de amigos psicólogos, cronistas, folcloristas, historiadores e, principalmente, “gente de mocambo e de casa de barro”, o que para Newton é revelador. “Quando um cientista, um intelectual como ele, lida com o imaginário de gente simples, publicando suas histórias de assombração, ele tenta, de certa forma, entender o começo do país, que povo é esse e até ele próprio. Por isso a convivência entre vivos e mortos é uma constante no repertório freyriano.” Mas o escritor, para quem o velho Recife sempre foi uma cidade psíquica, não se limitou apenas a relatar Continente janeiro 2005


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CÊNICAS

“Deparar-se com uma assombração é um privilégio, já que ela não aparece para todo mundo. E quando vem, sensibiliza-te para a convivência com outros planos”

fatos quase todos recolhidos diretamente de boas fontes orais. Ao abordar mitos de um Recife que já foi, como as demais cidades do Brasil colonial, com casas iluminadas a azeite ou vela, ele fez associações com obras publicadas por pesquisadores do sobrenatural em outras partes do mundo; traçou paralelos com aparições das tradições inglesas; buscou referências em estudos de fenômenos psíquicos; citou matérias de jornal. Uniu Sociologia e História em sua escrita. Talvez tentando ver aos mais céticos que o assombroso merece atenção. “Deparar-se com uma assombração é um privilégio, já que ela não aparece para todo mundo. E quando vem, sensibiliza-te para a convivência com outros planos”, complementa Moreno. Medos – Desde pequeno Newton ouvia casos de arrepiar, principalmente durante as férias em Limoeiro e Catende, cidades do interior pernambucano, terra dos seus pais. Nos tempos de colégio, uma das almas penadas a lhe apavorar era a Menina do Algodão, que visitava banheiros escolares. Seu pavor era tanto que certa vez ele sujou as calças em plena sala de aula para não ter que ir ao sanitário. Esta é uma das tramas a compor sua encenação, calcada no ator narrador e em uma dramaturgia quase toda narrativa. A peça vai ocupar um antigo casarão no Bairro do Bexiga, o Casarão Belvedere (Rua Pedroso, 267. Tel. 11 3266 5272), onde o público – entre 30 e 40 espectadores - é convidado a percorrer cada cômodo na penumbra. Sustos não vão faltar. A montagem só foi possível graças ao apoio da Fundação Gilberto Freyre, da Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo e da Bolsa Vitae de Artes 2003, que permitiu uma pesquisa do autor e também de toda a equipe no próprio Recife. “Viemos conferir in loco tudo que possibilitou a criação desse livro, selecionando e captando nas ruas – o que sobrou da cidade daqueles tempos – várias outras histórias”, diz o diretor. A adaptação chega a aproveitar trechos do livro na íntegra, apresentando algumas das assombrações mais características, como cabra cabriola, lobisomem, bode vermelho, papa-figo, boca-de-ouro e mula-sem-cabeça. Segundo Freyre, assombros nascidos, criados e crescidos no Recife, principalmente de bairros como São José e Casa Forte. Visões a aparecer para pretos, mestiços e brancos, Continente janeiro 2005


CÊNICAS

A encenação incorpora histórias não descritas no livro, como a da Viúva e do Morto

sem distinção e, preferencialmente, na solidão das horas mortas. Almas-do-outro-mundo, algumas violentas ou zombeteiras, outras angelicais e até mesmo celestiais. Na peça também são denunciados velhos sobrados com toda uma orquestra de ruídos esquisitos, casas e casarões assombrados o bastante para o papel de “aluga-se” amarelecer, muitos deles com dinheiro das almas enterrado em alguma parte. Mas além das personagens descritas no livro, que estarão reveladas ou apenas sugeridas na encenação, muitas outras surgiram no roteiro teatral, como a Menina do Algodão, Bem-Vinda, a mulher que a Morte não quis e até mesmo o norte-americano Jason, do filme Sexta-Feira 13, capturado de um cordel popular, onde trava um duelo com a Perna Cabeluda, outro monstro temido e que engravidou muitas mulheres no Recife dos anos 70. Tempo das fardas e do sumiço de vários filhos revolucionários. “Ouvimos essas histórias de pessoas como um pescador de rio do Poço da Panela, contando com uma convicção impressionante”, lembra Newton. A mesma gente que Gilberto Freyre diz ter ouvido. Talvez por isso ele registre no final do seu livro: “Os casos aqui recordados de assombração e as casas destacadas entre as várias malassombradas do Recife, são apenas exemplos retirados de um vasto conjunto de histórias sobrenaturais rejeitadas como sujo monturo de crendice, superstição pelos rígidos naturalistas da História escrita com “H” maiúsculo. Mas não pelos que humildemente acreditam em mistérios que ciência nenhuma explica e nenhuma seita espiritualista banaliza.” Pelo jeito, nem adianta fazer o “pelo sinal” nem mandar rezar missa. Fantasmas existem e estão por aí. Quem há de duvidar? • Continente janeiro 2005

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Andréa Vianna/Divulgação

Marcelo Lyra/Divulgação

AGENDA

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Baile do Menino Deus

Samba do Crioulo Doido

Temporada teatral Janeiro de Grandes Espetáculos faz justa homenagem a Marco Camarotti, dramaturgo pernambucano falecido em outubro passado Em sua 11º edição, o Janeiro de Grandes Espetáculos, maior projeto de Artes Cênicas do Estado de Pernambuco, vai reunir no Recife, no período de 12 a 30 de janeiro, 45 espetáculos de dança, teatro adulto e para crianças. A programação, com destaque para montagens que cumpriram temporada em 2004, além de convidados de outros Estados (Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Rio de Janeiro e São Paulo), estará distribuída pelos Teatros de Santa Isabel, do Parque, Hermilo Borba Filho e Armazém, com ingressos a preços populares. O evento promove ainda apresentações nas ruas, uma série de discussões culturais, debates críticos sobre os espetáculos, mostra paralela e oficinas, como A Linguagem Cênica do Contador de Histórias, Iniciação à Interpretação, com José Pimentel e Workshop de Formatação de Projetos e Captação de

Programação Teatro de Santa Isabel – Sempre às 20h Dias 12 e 13/1 - Baile do Menino Deus (PE) Dia 14 - Lesados (CE) Dia 15 - Muito Barulho Por Quase Nada (RN) Dia 16 - Angu de Sangue (PE) Dia 20 - Caetana (PE) Dia 21 - O Samba do Crioulo Doido - Ateliê de Coreógrafos (BA/SP) Dia 22 - Guiomar, a Filha da Mãe (PE) Dia 23 - Rua do Lixo, 24 (PE) Dia 27 - Labirindo (PE) Dia 28 - Samba no Canavial (PE) Dia 29 - Postais do Recife (PE) Dia 30 - Projeto Circuladança Luz/Festejos (PB) Teatro Armazém – 20h Dia 13 - Disso que Chamam Bom Senso Escambo Cia. de Criação Dia 14 - Contrastes - Compassos Cia. de Danças Dia 15 - Espiral Brinquedo Meu (PE) Dia 16 - Cercados Continente janeiro 2005

Recursos. Também serão apresentadas três leituras dramatizadas no Teatro Arraial, ao preço de R$ 1,00, com textos inéditos do dramaturgo, pesquisador e arte-educador Marco Camarotti, falecido em outubro do ano passado. O Janeiro de Grandes Espetáculos é uma realização da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco – APACEPE, numa parceria entre os produtores Paulo de Castro, Paula de Renor e Carla Valença. Janeiro de Grandes Espetáculos. Teatros de Santa Isabel, do Parque, Hermilo Borba Filho, Arraial e Armazém, de 12 a 30/1. Ingressos: R$ 10,00 e R$ 5,00 (artistas, estudantes e idosos). Informações: 81.34218456 / 34233186 ou apacepe@bol.com.br

Dia 20 - Vermelho - Ateliê de Coreógrafos (BA/PE) Dia 21 - Um Morto Que Viveu - Cia. Os Fora da Casinha Dia 22 - Paixões da Alma (SP) Dia 23 - Paixões da Alma (SP) Dia 27 - Annexo Secreto - Cia. do Teatro Rasgado Dia 28 - Chá de Cogumelo (BA) Dia 29 - A Novela do Murro (BA) Dia 30 - Nero (PE) Teatro do Parque – 20h Dia 15 - Balé Popular Nação Pernambuco Dia 16 - Nordeste, a Dança do Brasil - Balé Popular do Recife Dia 21 - As Três Porquinhas Dia 22 - Dança em homenagem a Shiro Dia 23 - Nordeste, a Dança do Brasil Dia 28 - Vida Privada (PE) Dia 29 - Velório à Brasileira (PE) Dia 30 -Nordeste, a Dança do Brasil

Dia 21 - Frei Molambo - Grupo Cínicos de Cênicas (PE) Dia 22 - Vozes do Recife (PE) Dia 23 - Urbano - Laboratório Dia 28 - Ofendi? (PE) Dia 29 - O Alienista (PE) Dia 30 - Diante da Lei (PE) Programação Infantil – Teatro do Parque Dia 16, às 10h - Sonho de Primavera Chocolate Produções Dias 23 e 30, às 10h - A Bela Adormecida (PE) Dia 15, às 16h30 - Um Livro de Fábulas (PE) Dia 16, às 16h30 - O Circo de Seu Bolacha Dia 22, às 16h30 - Espelho, Espelho Meu... (PB)

Teatro Hermilo Borba Filho – 18h30 Dia 14 - A Cantora Careca - Grupo Teatral Arte em Foco Dia 15 - Atravessando o Tempo - Totem Dia 16 - O Noviço (PE)

Dia 23, às 16h30 - Grande Circo em Presente de Palhaço (PE) Dia 29, às 16h30 - Um Brasil de Histórias (RJ) Dia 30, às 16h30 - Uma Pequena Sereia



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Narciso no espelho do consumismo A palavra-chave para entender o desenfreado culto ao corpo, sem nenhum cuidado com a mente, é “velocidade”. Numa sociedade em que tudo é efêmero, o meio mais fácil de se comunicar com o outro é pela embalagem em detrimento do conteúdo Paulo Polzonoff Jr.

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Thomas Röpke/corbis

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omingo, nove horas da noite. Vanessa Lampert, Ivanise Gomes e Paula Foschia, como tantas outras mulheres, se ajeitam em frente à televisão. Está para começar o programa Extreme Makeover, no canal a cabo Sony. Durante uma hora, essas três mulheres verão americanos se submeterem a uma série de cirurgias plásticas, com um único propósito: tornarem-sse belos espécimes humanos. Alguns têm deformidades e realmente precisam de um uma cirurgia corretiva. Na maioria dos casos, contudo, a insatisfação com o corpo não passa de uma vaidade. O suplício dos “felizardos” americanos que se submetem a cirurgias de até oito horas, às vezes, rende lágrimas nas telespectadoras. Outras vezes, rende uma depressão domingueira: elas se confessam frustradas com algum detalhe do corpo. Talvez pudessem arrumar o nariz, o abdômen, a planta do pé. A desculpa, nestes casos, é sempre a mesma: auto-eestima. O programa Extreme Makeover é um prato cheio para os psicanalistas, historiadores e sociólogos que estudam um fenômeno devastador da sociedade pós-m moderna: o narcisismo. Nunca na história da Humanidade as pessoas se preocuparam tanto com a imagem como agora. Causar uma boa impressão imediata é uma necessidade vital. Afinal, ninguém quer perder uma boa oportunidade de qualquer coisa só porque está malvestido ou com uns quilinhos a mais.

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ESPECIAL

Historicamente, o culto ao corpo tem um parente nobre. Os gregos, sobretudo os de Esparta, davam imenso valor ao corpo. Não é à toa que todo o nosso conceito de beleza, ainda hoje, deriva dos modelos gregos. Havia, porém, um propósito claro nesta obsessão física: Esparta era uma cidade-estado de guerreiros. E, na guerra, vencem os mais bem preparados fisicamente. Em Atenas o corpo também era cultuado, mas com uma grande diferença: além de um abdômen bem definido era exigido dos homens cultura. Um belo corpo não dava ao ateniense qualquer status. Era preciso uma compreensão da filosofia, do teatro, da poesia. Vale lembrar ainda que o culto ao corpo era restrito aos homens. O historiador Paulo Debom nos dá uma idéia de como os gregos davam importância ao corpo em perfeita comunhão com a mente: “Nos discursos públicos era comum que a platéia, em êxtase, pedisse que o orador tirasse a roupa, para mostrar o belo corpo”. Grosso modo, houve um hiato de dois mil anos. O corpo caiu em desuso, por assim dizer. Ainda que guerras tenham sido deflagradas por homens mais ou menos preparados, a medida dos bíceps já não era decisiva socialmente. Também o cristianismo tornou o corpo algo desprezível, apenas um meio para se alcançar o Paraíso por meio do sofrimento. No Renascimento, o corpo só era belo nas telas e esculturas. Do artista não era exigido nada mais do que o talento. “Foi a Revolução Industrial a principal responsável pela volta do culto ao corpo”, afirma Debom. A grande virada se deu no final do século 19 e início do século 20, com a descoberta, pelas indústrias, de que a vaidade feminina era um mercado praticamente inexplorado. De lá para cá, o século 20 foi marcado por uma busca incessante das mulheres pela beleza perfeita, dos homens pela mulher perfeita e das indústria pelo consumidor em potencial da idéia, sempre mutável, de perfeição. Parece óbvio que a busca pela beleza perfeita é um grande produto. Só para se ter uma idéia, a indústria do botox, toxina amplamente usada no tratamento de rugas, movimenta R$ 100 milhões por ano no Brasil. Estima-se que o setor de perfumaria movimente algo em torno de R$ 1,5 bilhão por ano. E isso num país subdesenvolvido. Hoje o Brasil é o segundo país do mundo em cirurgias plásticas, perdendo apenas para os Estados Unidos. Mas o narcisismo contemporâneo não deriva essencialmente do cuidado com o corpo. Afinal, há também uma proposta de saúde nos exercícios físicos. Ele nasce de uma lacuna que, aparentemente, não interessa à indústria preencher. Se os gregos valorizavam em partes iguais mente e corpo, hoje a mente já não interessa tanto. Enfim, o que tem a nos dizer um belo par de pernas numa revista masculina? Para o psicanalista Adalberto Goulart a palavra-chave para entender este desenfreado culto ao corpo, sem que haja nenhum cuidado com a mente, é “velocidade”. Numa sociedade na qual tudo é efêmero, o meio mais fácil de se comunicar com o outro é pelo corpo, pela embalagem em detrimento do conteúdo. É significativo que o corpo, efêmero e perecível, seja escolhido como veículo principal de uma sociedade cada vez mais efêmera e perecível. O culto exacerbado ao corpo perfeito é a face mais visível de uma doença. “Hoje, a maior parte dos casos em consultório são de Transtornos Narcísicos de Personalidade (TNP).” Se Freud pudesse

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Em Atenas, na Grécia antiga, o corpo era cultuado, mas com uma grande diferença: era também exigido dos homens, cultura

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ESPECIAL Jim Ruymen/Reuters

Cena do programa Extreme Makeover, no canal a cabo Sony, no qual norte-americanos se submetem a uma série de cirurgias plásticas, com o único propósito de se tornarem belos

prever, certamente teria perdido mais tempo escrevendo sobre o problema. O pai da psicanálise publicou apenas um estudo sobre o assunto, Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914). Nele, Freud dá atenção especial ao narcisismo como fase necessária na formação do indivíduo, e não como um problema de saúde pública. Segundo Adalberto Goulart, todas as crianças, em determinada fase da vida, são narcisistas. “É natural que a primeira infância seja assim. A criança se vê como o centro do universo. Até o momento em que ela percebe que depende de outras pessoas. E começa a se relacionar afetivamente”, explica. É justamente neste ponto de ruptura que a sociedade de consumo age, amenizando ou retardando um processo natural. “Hoje as crianças têm pouca atenção dos pais, que estão ocupados com outras coisas, e por isso nascem sem a troca necessária de afeto. Amadurecem por si mesmos ou com a ajuda de máquinas, como a TV, o videogame e o computador”, diz o psicanalista. O resultado é um adulto que tampouco consegue se relacionar com os seus semelhantes. Ele vive num mundo só seu, onde a figura mais importante é ele mesmo, claro. Ensimesmado, o indivíduo se torna um “deficiente do afeto”. Exatamente como o Narciso do mito, que é incapaz de se relacionar, por se sentir superior ou mais importante do que os outros, assim são os indivíduos da sociedade pós-moderna. Os valores de auto-adulação derivam de uma necessidade criada pelo capitalismo, como explica o sociólogo francês Gilles Lipovetsky: “Na idade do narcisismo, homens solitários consomem mais para serem felizes; como não conseguem se relacionar e são infelizes, no entanto, continuam consumindo, num círculo vicioso infinito”. As doenças resultantes do TNP são várias. Entre elas estão a Síndrome do Pânico, as doenças psicossomáticas e os casos borderline, já à beira da psicose. O curioso é perceber que o narcisismo é apontado como cura para o próprio narcisismo, numa lógica que prima pelo absurdo. Isto acontece quando se apela para a valorização da auto-estima pelo consumo, como no caso clássico da mulher que se diz deprimida, vai ao shopping fazer compras e se diz curada em meio a uma dezena de sacolas. A mídia, claro, é componente essencial para a manutenção de uma cultura narcisista e é parte essencial para se compreender o Império do Efêmero. Ela estimula nas pessoas a crença na Continente janeiro 2005

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O pintor italiano Caravaggio retratou o mito de Narciso, que se apaixona por sua própria imagem, atualizando-o para o Renascimento, sua época

perenidade da imagem, por meio de ícones de beleza inesgotável, ao mesmo tempo em que os descarta facilmente, numa renovação cruel. O famoso de hoje é o anônimo de amanhã, como preconiza Ignácio de Loyola Brandão em seu romance O Anônimo Célebre, uma investigação bem-humorada (e efêmera e superficial) sobre o mundo falso das celebridades. Mas nenhum outro recurso é tão drástico para se dar vazão ao narcisismo do que a cirurgia plástica. Isto não quer dizer que a cirurgia plástica, em si, seja um mal da sociedade contemporânea. Há demônios demais para se criar mais um. Programas como o Extreme Makeover, contudo, criam no espectador, mesmo o mais esclarecido, a ilusão de que é na intervenção cirúrgica que está a solução para seus problemas. Quaisquer que existam e até mesmo os imaginários. Em todos os programas da série, os produtores buscam enfatizar a palavra auto-estima como justificativa para uma mudança extrema. A edição é prodigiosa em nos dar esta idéia. Alguns até choram ao ver pessoas cabisbaixas reluzirem num sorriso falso (jaquetas de porcelana ao custo estimado de US$ 20 mil) depois da experiência. Corpos que jamais seriam consertados em academias, pessoas que parecem incapazes de se admirar mesmo depois de muitas sessões de psicanálise surgem frente às câmeras subitamente “curadas”. Arranjam namorados, mudam de emprego e, sobretudo, aprendem a comprar produtos que as manterão sempre belas. Para o psicanalista Adalberto Goulart, cirurgia plástica e auto-estima não são fato e conseqüência. “Trata-se de uma estima falsa, porque por dentro a pessoa continua a mesma”, diz. Continente janeiro 2005


ESPECIAL

Toda criança, em determinada fase, é narcisista. Ela se vê como o centro do universo, até perceber que depende de outras pessoas e começar a se relacionar afetivamente. É neste ponto de ruptura que a sociedade de consumo age, amenizando ou retardando um processo natural

“Além disso, se beleza fosse garantia de auto-estima, não haveria tantas pessoas belas, atrizes de cinema, por exemplo, com depressão”, argumenta. A cirurgiã plástica Ana Zulmira Diniz Badin discorda. Ela opera semanalmente e garante que, em muitos casos, a cirurgia plástica faz a pessoa desabrochar. “Alguns pessoas ficam até mais sociáveis”, garante. Ela afirma ainda que tem pacientes que são encaminhados ao seu consultório justamente depois de freqüentar divãs na tentativa de ter resgatada a tal da auto-estima. Eu confesso: submeti-me a uma cirurgia plástica sob o pretexto de melhorar a auto-estima. Escutei isso durante várias sessões com uma psicóloga velhinha, coitada, que via em minhas orelhasde-abano a raiz de todos os meus problemas. No dia anterior à cirurgia, eu estava eufórico, porque achava que minha vida mudaria completamente. Não mudou. Ou, por outra, mudou, que vida nenhuma que se preze é retilínea, mas não por causa das orelhas devidamente costuradas. Ambos, psicanalista e cirurgiã plástica, contudo, parecem entrar em acordo quando o assunto é exagero. E há muitas pessoas com corpos já perfeitos que se tornam obsessivos com qualquer, digamos, detalhe heterodoxo. A doutora Ana Zulmira garante que analisa caso a caso. E conta: “Uma vez fiz uma lipoaspiração numa menina de 17 anos. Um ano mais tarde, ela voltou ao consultório. Tinha engordado 10 quilos e queria fazer outra lipo. Recusei-me.” Por outro lado, ela já fez uma lipoaspiração para tirar apenas 200 gramas de gordura da cintura de uma candidata à miss. Cirurgias radicais, como as do programa americano, revoltam a médica: “Acho um absurdo, porque isso mexe até mesmo com a identidade da pessoa”. Se os valores estão desvirtuados, se hoje o narcisismo impera e as clínicas estéticas são as novas catedrais, onde se busca chegar ao Paraíso, que tipo de futuro estamos construindo? Para o historiador Paulo Debom, o narcisismo já dá sinais de cansaço. Ele vê uma tendência na sociedade contemporânea de olhar também para o espírito. “A história do mundo não é uma constante. O culto ao corpo parece ser um momento determinado do século 20”, diz, esperançoso. Alguns sociólogos mais progressistas, como Lipovestsky, consideram o narcisismo o símbolo de uma era passada. Para ele, o Narciso do século 21 é diferente, mais maduro, eficiente e gestor, mais informado e mais estruturado, menos consumidor de antidepressivos. Um paradoxo, já que a própria idéia do sujeito narcisista pressupõe uma desestrutura emocional. Já o psicanalista Adalberto Gourlat não parece muito empolgado com a idéia de uma sociedade livre do narcisismo exacerbado. Enquanto o homem estiver agindo como máquina de consumo, preenchendo com notas fiscais um vazio que é emocional e intelectual, a tendência é que ele se torne ainda menos capaz de trocar afetos. A sociedade pós-moderna cada dia olha com mais entusiasmo para a própria imagem refletida num lago. O final desta história é conhecido há mais de dois mil anos. • Continente janeiro 2005

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H. Scheibe/Corbis

Qual é o espaço de nosso corpo? Temos de reconstruí-lo como outro, mascarando-o, esvaziando-o, preenchendo-o, tatuando-o, trespassando-o


Corbis/Stock Photos

ESPECIAL

O narcisismo contemporâneo O conceito do belo foi travestido como a resposta imediata aos horrores a que estamos submetidos, como um véu protetor para que o visto, seja na mídia, seja na imagem que vemos no espelho de nosso cotidiano, jamais possa ser o que será visto no nosso próprio corpo Alduísio M. de Souza

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omo falar de um narcisismo contemporâneo sem situá-lo no que a ilusão do discurso científico produz, a mídia prega e divulga, e no que o desejo de satisfação do gozo egóico do sujeito não somente acata, mas busca incorporar por meios os mais diversificados? A estética pós-segunda guerra mundial nos impõe uma representação do corpo que, na menor das medidas, oscila entre sua integridade e sua decomposição. Queiramos ou não, os campos de concentração nos deram uma medida da degradação, em vida, do corpo, de milhões de judeus, ciganos e outros, no limite da permanência da vida, no que resta de seu suporte orgânico. Em contrapartida, a era nuclear, com as bombas de Hiroshima e Nagasaki, oferece a solução científica: a desintegração do corpo. Se antes temíamos a corrupção natural, o que deformava, amputava, levava o corpo a seu limite funcional e estético, a ciência nos aliviou tragicamente: desintegração e desaparecimento, como se nos poupasse da imagem da corrupção corporal, oferecendo-nos uma proximidade entre a existência e a sua negação, de forma que, diante dessa possibilidade, o corpo vem ocupar um lugar nunca antes ocupado na cultura. O conceito do belo foi travestido como a resposta imediata aos horrores a que estamos submetidos como humanos, como um véu protetor para que o visto, seja na mídia, seja na imagem que vemos no espelho de nosso cotidiano, jamais possa ser o que será visto no nosso próprio corpo. O horror da imagem, tanto na sua fealdade quanto na sua beldade, será exterior, sempre exterior e a refletiremos ilusoriamente, sem, entretanto, fazê-la nossa. Vejamos, para situarmos o paradoxo, as meninas que deixam de comer, no limite da anorexia, e que se vêem sempre de forma insatisfatória. O que será que buscam? Qual é o imperativo? Qual a injunção?

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ESPECIAL A esse respeito, Oliviero Toscani, associando o horror, a morte à venda de produtos de moda, inaugurou a época do cinismo nas imagens levado ao limite do imponderável, onde o corpo deixa seu arrimo humano e advém como coisa. E o sucesso midiático foi garantido. E como! Como então suportar essas representações antinômicas? Como criar, dar suporte, cultuar e assegurar nosso próprio corpo? Como então buscar a permanência de um corpo, idealizado, julgado como belo, como quase perfeito? Mas, será que a subjetividade não segue os passos dessas representações? O que fazemos com nosso corpo em busca de um equilíbrio que siga a ciência, a mídia e o gozo corporal? Oscilamos entre o desprezo e o culto. E essa oscilação está em estrita dependência do olhar que construímos e que, depois, nos constrói. Somos, por fator constitucional, seres limitados a duas dimensões. Isso nos deixa, na maioria das vezes, expostos à função ver/ser visto. O que vemos dos outros? Seus contornos, o espetáculo de suas imagens mas... uma imagem que oscila entre o desprezo e o culto. De que forma? Pela violência, pela deformação e pelos conceitos de beleza veiculados na cultura, seja pela mídia, seja por mostras que vemos em nosso cotidiano, nas figuras que vemos em outdoors, em propaganda de adereços e soluções que nos obriga. Obriga-nos, por quê? Porque pensamos que vemos, que lemos o que faz o espetáculo. Não, ao contrário, é o espetáculo que nos olha, faz-nos, interroga, obriga: “Vê como deverias ser! Como podes ser!” Ou seja, o que vemos nos olha, propondo-nos e exigindo de nós que possamos/devamos ser assim! Como? Como o ideal de um corpo sarado, malhado, bem talhado, inatingível, pois será sempre um outro corpo, o que na verdade desumaniza o nosso e faz dele uma coisa. Coisa sutil a ser modelada, retalhada, esvaziada, preenchida. Haveria violência maior que essa? Mas as condições, para que esse processo se consuma, não são porque na sua base está a própria imagem do horror, que não queremos jamais que seja vista e nem associada ao nosso próprio corpo? Será que a violência dos corpos em pele e ossos dos “habitantes” de um campo de concentração, ou dos corpos que se decompõem pelos efeitos das “guerras cirúrgicas, químicas, atômicas ou bacteriológicas” seria diferente? Onde estaria a diferença? Qual a maneira de suportar nossa

O publicitário Oliviero Toscani associou o horror e a morte à venda de produtos de moda, inaugurando a época do cinismo nas imagens, onde o corpo deixa seu arrimo humano e advém como coisa Continente janeiro 2005

Imagens: Reprodução

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ESPECIAL

A estética pós-segunda guerra mundial nos impõe uma representação do corpo que, na menor das medidas, oscila entre a sua integridade e sua decomposição

À questão de tratar, abordar o narcisismo contemporâneo, talvez se imponha a de nos interrogar: o que ou quem hoje pode ser “outro” para cada um de nós? O culto à morte, à violência, e a aposta numa beleza que podemos controlar parecem andar em par

mortalidade, nossa finitude? Fazendo da morte, do mal, do horror, um espetáculo: “Você viu o bombardeio de ontem?” À questão de tratar, abordar o narcisismo contemporâneo, talvez se imponha a de nos interrogar: o que ou quem hoje pode ser outro para cada um de nós? O culto à morte, à violência, e a aposta numa beleza que podemos controlar parecem andar em par. Os homens se apaixonam pela morte: guerra, drogas, violência cotidiana e, ao mesmo tempo, elegem o próprio corpo como lugar de um arrimo desesperado para que possam suportar aquilo pelo que, enquanto humanos, somos tão responsáveis como um qualquer de nossa comunidade: a vulgaridade da violência, a banalidade da morte e do mal. Com o fim dos modelos tradicionais, religiosos, filosóficos e políticos, e na impossibilidade de se construir uma utopia num tempo e espaço que não mais podemos controlá-los, o que nos resta? Recolher escombros, ou talvez perpetrar em nosso corpo a violência que o transforma, o modifica, o faz suportável e mesmo um emblema a ser exibido. Aos cadáveres indigentes, o formol; aos vivos que dispõem de meios, o formal da imagem, de modelos que nos olham, interrogam-nos e nos obrigam a responder com nossa presença, presença cuidada, retalhada, esvaziada e preenchida, que exibe nossa solidão incomensurável, pois o outro para nós deixou de existir – a não ser como modelo abstrato da imagem; esse, de nosso convívio, é um outro a ser batido, superado, suportado e que, obrigatoriamente, para que o aceitemos, tem de ser suporte de nossa própria imagem. O narcisismo contemporâneo está associado ao cinismo: impudência, desfaçatez, obscenidade. “Sorria, pois está sendo filmado.” E nós sorrimos. O chamado, o alerta, o olhar ancorado na câmara deixa de ser intrusivo, pois somos nós mesmos que somos veiculados por ele. Naturalmente. Eis aí o emblema do narcisismo contemporâneo, associado ao cinismo. Qual é o espaço de nosso corpo? Temos de reconstruí-lo como outro, mascarando-o, esvaziando-o, preenchendo-o, tatuando-o, trespassando-o e fazendo-o, enfim, ob-sceno e ex-ótico. E nós sorrimos... pois o espetáculo deve continuar. • Continente janeiro 2005

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Hans Manteuffel

Grupo Allegretto: sons barrocos e renascentistas


MÚSICA

Na pauta, inclusão social Às vésperas de fazer 75 anos de existência, o Conservatório Pernambucano de Música comemora a democratização da música de qualidade Fábio Araújo

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padre espanhol Juan de Tapia fundou, no ano de 1537, o Conservatorio Della Madonna de Loreta, em Nápoles, para recolher crianças abandonadas e educá-las através da música. É a origem do termo “conservatório” enquanto denominação de escolas tradicionais de música. Atualmente, essas instituições existem em inúmeras cidades do mundo, formando uma rede de ensino e difusão da música erudita. O Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris é considerado referência mundial na área, trabalhando inclusive com as novas tecnologias do som. O CNSMDP foi criado por lei em 3 de agosto de 1795, ou 16 thermidor, ano 3, no calendário da Revolução Francesa vigente à época, e começou a funcionar no ano seguinte. A “novidade” demorou quatro séculos para chegar a Pernambuco. Até as primeiras décadas do século passado, a falta de uma escola de música no Estado limitava o ensino da disciplina a aulas particulares ou, no máximo, matérias isoladas em escolas oficiais. O incremento à produção artístico-cultural, trazida pela Semana de Arte Moderna (1922), assumiu grandes proporções no campo da música, estimulado pelas novas tecnologias de gravação. Foi neste contexto que o professor e maestro Ernani Braga liderou um time de ilustres músicos para defender a criação do Conservatório Pernambucano de Música, finalmente fundado em 17 de julho de 1930, a partir de projeto do deputado Arruda Falcão. Já no primeiro Estatuto, constava o objetivo de difundir o ensino teórico e prático da música, de forma acessível a todas as classes sociais. Apesar de realmente proporcionar acesso mais amplo a uma arte até então vista como privilégio da burguesia, nos primeiros anos o Conservatório mantinha um certo ranço elitista: as audições dos alunos eram realizadas sempre no Teatro de Santa Isabel, fechado ao grande público. Hoje em dia, no momento em que preparam as comemorações do 75º aniversário, a Instituição pode se orgulhar de ter contribuído para democratizar a música de qualidade. Projetos como Quartas Musicais e Música aos Domingos realizam espetáculos gratuitos, que têm despertado o interesse de um público cada vez maior. Continente janeiro 2005

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MÚSICA Helder Ferrer/Divulgação

Sa Grama: cultura popular numa linguagem erudita

Além disso, o CPM vem desenvolvendo trabalhos voltados à inclusão social. Exemplo maior é a Orquestra Suzuki, criada pelo maestro Cussy de Almeida, que proporciona formação em instrumentos de cordas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo acústico) para 32 crianças e jovens da comunidade do Alto do Céu, no Recife. A maioria encontra-se em fase de conclusão do nível técnico, mas dois deles já estão matriculados no curso superior de Música da UFPE. O grupo foi batizado a partir de um violinista japonês, que criou uma mundialmente consagrada metodologia de ensino do violino. Há também o projeto Música é Vida, no qual grupos musicais do Conservatório e artistas convidados percorrem semanalmente hospitais do SUS, levando música de vários gêneros aos pacientes. O Programa de Bolsas de Estudo beneficia cerca de 200 estudantes, isentando os comprovadamente carentes (90% dos atendidos) de pagar as mensalidades e premiando os estudantes que se destacam. Uma meta importante para 2005 é o início do processo de interiorização, que deverá ser realizado em parceria com as prefeituras de cidades como Caruaru e Garanhuns. A idéia é levar o corpo técnico do CPM para capacitar músicos já atuantes Continente janeiro 2005

e, numa perspectiva mais ambiciosa, atender também àqueles que desejem se iniciar na profissão. Hoje em dia, o Conservatório já recebe alunos de municípios mais próximos ao Recife, como Vitória de Santo Antão, Moreno e Paudalho. Público fiel – A reforma do auditório do CPM, já concluída, fez com que a programação pedagógicoartística fosse transferida para locais como a Academia Pernambucana de Letras, igrejas e mosteiros. De acordo com a gestora-geral do Conservatório, Jussiara Albuquerque Corrêa de Oliveira, o público mais do que duplicou nos últimos dois anos. “Nosso auditório comporta 100 pessoas. Na Academia, houve apresentações com 280 pessoas”, comemora. O interesse do público é tanto que, mesmo com a reinauguração do auditório, determinados recitais continuarão a acontecer na APL, onde a maior capacidade compensa determinadas deficiências técnicas. O projeto Música aos Domingos tem perfil mais popular e eclético, levando aos palcos duos, trios, quartetos, coros e orquestras de vários locais, enquanto o Quartas Musicais é voltado para estilos mais eruditos. O público vem prestigian-


MÚSICA do a arte de grupos formados no próprio Conservatório, como o Sa Grama (que fez o concerto de abertura do Música aos Domingos, em maio de 2003), Trio Sonata e Allegretto. E também tem apreciado o talento de mestres estrangeiros, numa lista enorme que inclui nomes como a violinista Christa Ruppert, os grupos Trio Opus 8 e Saxophonisches Ensemble B (Alemanha); os pianistas Arthur Moreira Lima, Josefina Aguiar, Alberta Alexandrescu, Ulrich Murtfeld e Gilberto Tinetti; os violoncelistas Walter-Michael Voolhard e Romain Garioud; grupos como Oscar Herrero Trio (música flamenca), Douce Mémoire (música renascentista) e o coro da Universidade de Bonn. Em 2005, todos os eventos terão como mote as comemorações dos 75 anos do CPM. “Vamos elaborar uma programação ainda mais caprichada, com maior número de concertos e aberta a todas as músicas”, define Jussiara. Tudo começa a partir de março, após as férias coletivas dos 95 professores. Hoje, o Conservatório conta com cerca de 1,2 mil alunos, que têm acesso a cursos nas áreas de cordas, percussão, sopro, teclado e canto. A formação completa inclui quatro anos de iniciação musical, três anos de preparatório e quatro anos do curso médio.

Grupos – A contribuição do CPM vem também através da formação e desenvolvimento de grupos musicais entre seus alunos e professores. O Sa Grama, formado em 1995, trabalha a música de Pernambuco com base nas manifestações da cultura popular, numa linguagem mais erudita, que funde sopros, cordas dedilhadas e percussão. Filho dos armoriais, o Sa Grama tornou-se conhecido nacionalmente ao criar a trilha sonora da minissérie O Auto da Compadecida, exibido pela Rede Globo e grande sucesso de público na versão cinematográfica. O Grupo Allegretto, surgido em 1996 das aulas de flauta doce, volta-se para os sons barrocos e renascentistas. Inicialmente constituído apenas das referidas flautas e de percussão, o conjunto hoje reúne maior diversidade de timbres, com violão, cello, violino, flauta transversal barroca, oboé barroco e cravo. O Allegretto compôs a trilha sonora da peça Abelardo e Heloísa e participou da Paixão de Cristo do Recife. Já o Trio Sonata destaca-se em concertos e recitais de música de câmera, dedicando-se a estudar e interpretar músicas do período barroco. Finalmente, há também a Orquestra Sinfônica de Alunos do CPM, criada em 2000. •

Divulgação

A inclusão social está na pauta do Conservatório Pernambucano Continente janeiro 2005

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MÚSICA Luiz Santos/Divulgação

Mombojó: tudo de novo Banda pernambucana coleciona êxitos: foi premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte e terá o primeiro DVD lançado ainda no início deste ano

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monopólio das grandes gravadoras está sendo substituído, aos poucos, por um outro modelo de mercado. Artistas têm na Internet um poderoso aliado na divulgação de seu trabalho, que assim pode chegar aos quatro cantos do mundo a custo relativamente baixo. Conceitos que vêm se tornando realidade e alavancando a carreira de bandas como a recifense Mombojó, formada em 2001, adepta confessa e orgulhosa do modo independente de buscar o sucesso. Sem recorrer aos esquemas tradicionais, o grupo coleciona êxitos e pavimenta seu futuro: lançou o CD Nadadenovo há cerca de um ano, acaba de ser premiado na categoria Revelação pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e terá o primeiro DVD lançado no início de 2005, num projeto do Itaú Cultural.


MÚSICA

Desde o início, os sete músicos da Mombojó (rapazes na faixa dos 20 anos) decidiram caminhar com os próprios pés. Após o show de estréia em outubro de 2001, abrindo para a consagrada Nação Zumbi, a banda gravou um CD-demo com três canções e enviou cópias para as pessoas certas. O resultado foi o convite para tocar no festival Abril Pro Rock de 2002, em que foi considerada a principal revelação por importantes jornais nacionais. No ano seguinte, recursos do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC) do Recife garantiram a gravação de Nadadenovo, CD de estréia com 15 faixas, e a criação do site da banda, onde todas as músicas foram disponibilizadas livremente em formato MP3. As duas mil cópias do CD, bem como a divulgação via Internet, geraram boa repercussão nacional e possibilitaram mais um passo adiante na carreira da Mombojó: a distribuição do disco encartado na revista Outra Coisa, do cantor e compositor Lobão, que levou mais 20 mil unidades a bancas de revista de todo o país. “Não somos contra as gravadoras, mas elas precisam se adaptar a um novo modelo. Se alguma delas nos fizer uma proposta, só vamos aceitar se for realmente vantajosa”, afirma o tecladista Chiquinho. Pelo novo paradigma que se tenta estabelecer no mercado musical, bandas independentes podem fazer seu marketing via Internet e faturar com os shows. Em 2004, a banda já foi a atração principal do palco secundário do Abril Pro Rock.

Conquistando o prêmio da APCA, a Mombojó deu seqüência a uma série recente de vitórias pernambucanas, que consagrou Lula Queiroga, Cordel do Fogo Encantado, Otto (2001) e Textículos de Mary (2002). O passo seguinte é o DVD, que registra dois shows da banda em São Paulo e mostra basicamente o repertório de Nadadenovo, acrescido de covers de “Amor de Muito” (Chico Science & Nação Zumbi), “Juízo Final” (Nelson Cavaquinho) e “Anarquia”, que os rapazes conheceram na voz de Ronnie Von. Canções inéditas da banda, como “Ser Você” e “Singular”, serão apresentadas. O produto integrará, também, uma caixa com 10 DVDs de diversos artistas, a ser distribuída em centros culturais pelo Itaú. Para 2005, a Mombojó pretende viabilizar a primeira viagem para o exterior e lançar - talvez apenas na Internet - algumas músicas não incluídas no primeiro CD. É claro que a opção pela independência tem suas limitações. Os rapazes continuam morando com os pais, mas não têm pressa. O dinheiro que ganham com os shows, inclusive de diversos projetos paralelos, é suficiente para financiar a estrutura da banda. “Na mão de uma grande gravadora, Mombojó seria vendido como um novo Los Hermanos”, atestou o crítico musical Lauro Lisboa Garcia, ao escrever sobre o primeiro show do grupo em São Paulo, em maio do ano passado. Lauro integrou o júri da APCA e não mede elogios à banda, considerada por ele a grande

Desde o início, os sete músicos da Mombojó decidiram caminhar com os próprios pés. Após o show de estréia em outubro de 2001, a banda gravou um CD-demo com três canções e enviou cópias para as pessoas certas

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MÚSICA

Pio Figuerôa/Divulgação

Mesmo reverenciando o manguebeat, a Mombojó faz música com características próprias

“A bossa comparece, de várias maneiras, seja na batida do violão, seja na mistura com drum’n’bass, seja na voz minúscula à moda de João, ou na guitarra no ritmo suingado do Jorge Ben dos anos 60”

revelação de 2004. “Há discos em que se pode apontar uma surpresa a cada faixa. Nadadenovo tem várias dentro de uma música só”, continua Lauro, detectando elementos de surf music, teclados anos 60, rock, bossanova, jovem guarda, jazz e samba. Mesmo inserida num contexto mais amplo de manguebeat, e reverenciando o movimento como fundamental para a existência da banda, a Mombojó faz música com características bem próprias. Cada integrante tem suas influências e, depois de muito debate, consegue-se eleger Stereolab, Nação Zumbi e Tom Jobim como as fontes de inspiração comuns a todos. “Quem trabalha com música chegará, inevitavelmente, a Tom Jobim. Ele está presente em nosso trabalho com o cool jazz, a ambientação, o tocar leve, minimalista”, explica Marcelo Campello, violonista da banda. Lauro Lisboa Garcia acrescenta: Continente janeiro 2005

“A bossa comparece, de várias maneiras, seja na batida do violão, seja na mistura com drum’n’bass, seja na voz minúscula à moda de João, ou na guitarra no ritmo suingado do Jorge Ben dos anos 60”. A banda pernambucana impressionou também o jornalista Arthur Dapieve, crítico musical do site No Mínimo. “A Mombojó é comum – no sentido de despretensiosa – em sua postura, mas incomum – no sentido de criativa – em seu trabalho”, escreveu, destacando a “incrível quantidade de referências musicais”, inversamente proporcional à idade média dos rapazes. “A Mombojó representa o melhor de vários mundos. Nutre-se da renovada vitalidade da cena de Recife, exposta ao resto do Brasil e do mundo – onde goza de grande prestígio – desde Da Lama ao Caos, o álbum de 1994 de Chico Science e de sua Nação Zumbi”. (F.A.) •


Carnaval jazzístico

Porto Musical Nuno Mindelis

Festival de Jazz & Blues dá o tom do Carnaval de Guaramiranga, no Ceará, e homenageia Tom Jobim Em tempos de folia, quem dá o tom em Guaramiranga, região montanhosa no interior do Ceará, são o jazz e o blues, ritmos que vão na contramão dos apelos momescos. A sexta edição do Festival de Jazz & Blues terá shows de Nuno Mindelis, Big Joe Manfra, Jorge Helder, Victor Biglione & Ithamara Koorax e do guitarrista americano Stanley Jordan, além de uma homenagem a Tom Jobim, da qual participam músicos como Pedro Aznar, Egberto Gismonti, Paulo Jobim, Lancaster, Naná Vasconcelos e Hélio Delmiro, com shows no Teatro Municipal Rachel de Queiroz, no Centro de Guaramiranga. O evento acontece de 5 a 8 de fevereiro, em Guaramiranga, dá uma pausa na quarta-feira de Cinzas e retoma suas atividades na quinta, dia 10, no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, para mais quatro dias de shows. O Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga é uma mostra de que a grandeza do país vai além de sua extensão e tradições regionais, oferecendo ao nativo ou ao visitante a possibilidade de estar no país do Carnaval desfrutando da riqueza melódica, rítmica e harmônica do jazz, do blues e da música instrumental universal.

Profissionais das áreas de música e tecnologia aportarão no Recife para a realização do Porto Musical, evento que discutirá a transformação causada pela tecnologia no mercado da música. O evento é uma iniciativa da WOMEX, uma das maiores convenções internacionais de tendências musicais – que faz sua primeira incursão fora da Europa –, com apoio do Governo do Estado de Pernambuco, Porto Digital e Sebrae. As inscrições podem ser feitas no site até o dia 23/1. Depois desta data, os interessados deverão comparecer à Torre Malakoff.

Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga – De 5 a 8/2, em Guaramiranga, e de 10 a 13/2 no Centro Dragão do Mar, Fortaleza (CE). Informações: www.jazzeblues.com.br

Porto Musical. Torre Malakoff, Teatro Apolo e Porto Digital (Bairro do Recife, Recife Antigo/PE), de 30/1 a 2/2. Informações: www.portomusical.com.br

Simplesmente Tom

Toda canção

Deusa do jazz

“Não sou muito de fazer show. Quem me levou pra este negócio foi o Vinicius, o Toquinho, a Miúcha”. Assim Tom Jobim começa a apresentação realizada “nas águas de março” de 1981, em Belo Horizonte. E prossegue dizendo que é fácil fazer show escorado em parceiros, afirmando que prefere uma coisa mais íntima. Só, e ao piano, ele toca, conversa e canta, soberano de si e da sua música, algumas canções próprias, outras feitas com Newton Mendonça, Vinicius, Dolores Duran, Aloysio de Oliveira e Chico Buarque. É um álbum precioso, feito para todos os sentidos. Com ele, a Biscoito Fino lança o selo Jobim Biscoito Fino, que pretende dar a público material inédito de Tom e difundir sua importante discografia.

Qualquer Canção é um álbum requintado, à moda voz e violão. Os diálogos são feitos pela voz ondulante e encorpada de Carlos Fernando (ele mesmo, ex-Nouvelle Cuisine) e pela guitarra dedilhada de Toninho Horta. No repertório, Chico Buarque, que comparece com 12 músicas memoráveis, entre elas “Tatuagem”, “Carolina”, “Brejo da Cruz” e “As Vitrines” (nesta versão, Carlos ainda canta à Cauby Peixoto), que ganham um clima cool nas releituras de Fernando. Qualquer Canção é um relançamento da Dubas, que, então inaugurando seus trabalhos (há exatos 10 anos), fez deste seu primeiro manifesto de intenções estéticas. Uma bela comemoração.

Antônio Carlos Jobim em Minas ao vivo. Biscoito Fino, preço médio R$ 22,00.

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Qualquer Canção. Dubas Música, preço médio R$ 30,00.

Habituada à noite, onde se acostumou a cantar o melhor da música americana, que conheceu ainda criança na discoteca do pai, fã de jazz, e criada no Brasil das grandes canções, Leila Maria estréia como diva do jazz. Dona de uma voz poderosa, de timbre grave e quente, Leila passeia com desenvoltura pelas culturas americana e brasileira ao gravar músicas como “Desafinado”, “Dindi”, “É Preciso Dizer Adeus” em versões em inglês, bem ao estilo do casamento feito, a partir do concerto no Carneggie Hall, em 1962, entre os dois estilos; unindo um repertório primoroso e intimidade com o samba a um indisfarçável sotaque jazzístico na sua interpretação. Off Key, de Leila Maria. Rob Digital, preço médio R$ 28,00. Continente janeiro 2005

AGENDA

Imagens: Divulgação

MÚSICA


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TRADIÇÕES

Odisséia no Sertão Elementos da cultura grega antiga podem ser encontrados na Literatura Popular e no folclore do Nordeste Homero Fonseca Continente janeiro 2005


TRADIÇÕES

O folheto Helena, a Deusa de Tróia, de Caetano Cosme da Silva: final alterado

História de Helena de Tróia e o Cavalo Misterioso, de Klévisson Viana: masmorra inventada

É

abundante a literatura sobre a poesia popular nordestina, em suas duas vertentes – a oral (cantoria de viola) e a escrita (folheto de feira ou de cordel). Diversos autores debruçaram-se sobre suas origens, que estão na Pensínsula Ibérica do século 17: as folhas volantes de Portugal, os pliegos sueltos de Espanha, recuando até a chamada litteràture de colportage, na França. Antecedentes são apontados na Holanda (século 16) e Alemanha (século 15). Estudiosos já demonstraram também a influência árabe, decorrente da ocupação de quase oito séculos de parte de Espanha e Portugal pelos mouros, especialmente nos desafios de viola. Uma linha que merece investigação, entretanto, seria a presença de elementos da literatura e da mitologia da Grécia antiga, incluindo as epopéias homéricas, na poética popular nordestina. Para começo de conversa, atente-se para a construção das próprias epopéias, incorporando histórias, lendas, tradições populares. Os poemas de Homero eram transmitidos oralmente desde o século 8 a.C. e a mais antiga edição escrita das duas obras de que se tem notícia é do século 6 a.C., patrocinada pelo tirano Pisístrato. A versão que conhecemos, entretanto, traduzida para vários idiomas, vem dos séculos 3 e 2 a.C. e foi produzida por eruditos de Alexandria, no Egito. Ambos os poemas lançam mão de recursos típicos da poesia oral, como as repetições, a rítmica, a musicalidade, traços que vamos encontrar em nossa poética popular. Num certo sentido, são magnífica literatura de cordel. Como assinala Jaime Bruna, tradutor da Odisséia: “Nossos cantores populares, principalmente os cultivadores do gênero desafio, têm à mão a sua coleção de rimas e de versos já prontos, que muito ajudam a improvisação. O mesmo se passava nos poemas homéricos”... A propósito dessa simbiose clássico-popular, afirma ainda Ariano Suassuna em A Compadecida e o Romanceiro Nordestino (1970), expondo o processo em que um autor se apropria da criação coletiva para produzir uma obra singular: “Não era assim que procediam Molière, Shakespeare, Homero e Cervantes? Os cantadores procedem do mesmo jeito. Há, mesmo, uma palavra que, entre eles, indica o fato, o verbo versar que significa colocar em verso a história em prosa de outro. Quando Shakespeare escreveu Romeu e Julieta, não fez mais do que versar as crônicas italianas de Luigi da Porto e Bandello”. Continente janeiro 2005

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TRADIÇÕES

Tanto a Ilíada quanto a Odisséia lançam mão de recursos típicos da poesia oral, como as repetições, a rítmica, a musicalidade, traços que vamos encontrar em nossa poética popular. Num certo sentido, são magistral literatura de cordel

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Presença de Homero – Na Literatura Popular Nordestina em verso a presença de Homero e da Grécia antiga pulula em citações, temas, processos. A invocação, inerente às aberturas das epopéias, está presente amiúde em folhetos e cantorias, em que não falta sequer a alusão explícita às entidades inspiradoras: “Ó Musa filha do céu / Vem ofertar um abraço / E mover meus pensamentos / Enquanto eu copio e traço / Um drama de amor e ódio / Neste romance que traço”. (Joaquim Batista de Sena, Napoleão e Elvira – A Triste Sorte de uma Meretriz). Agora, um exemplo na cantoria: “Longe do mar de Netuno / O cocheiro Faetonte / Percorria o horizonte / No seu coche de tribuno / De Anfitrite e de Juno / Tinha ele a proteção. / Apolo tendo na mão / Um livro de poesia / Me ensinou com galhardia / Cantar 10 pés em quadrão”. (Antônio Batista Guedes, violeiro potiguar, sobrinho do famoso Ugolino do Sabugi.) Tantas alusões à mitologia grega não devem surpreender. O tema chegou a ser o mote de um desafio entre o cantador paraibano Antônio Cruz e o pernambucano Joaquim de Santana (sem registro de data, como é comum). Antônio improvisou: “Mitologia é ciência dos antigos / Religião inventada pelos gregos. / Os africanos, asiáticos e os galegos / Combinavam bastante os seus artigos. (...) Já diziam os gregos: são os meus! / Porque tinham maior imaginação / Principiaram fazer invocação / E para os gregos Júpiter era o seu deus”. Ao que replicou Joaquim: “Tinham-no como pai e como rei / Invocavam nas suas orações / Atribuíram-lhe moral (sic) limitações / E com Júpiter criaram sua lei. / Sendo ele seu rei, assim direi / Como consta na tal mitologia / Pois os gregos fizeram uma folia / E reunindo-se assim, por muitas vezes / Criando seus deuses e semideuses / Com a fábula da grande fantasia”. Outros aspectos merecem ser abordados. Seria Ulisses o pai de João Grilo, Pedro Malasartes (que no mundo hispano-americano é conhecido por Pedro Urdimales), Cancão de Fogo e toda uma progênie de filhos e netos? Vejam a caracterização do personagem de Homero por alguns tradutores brasileiros: “Herói engenhoso”, “solerte”, “astuciosa pessoa”, “astucioso e dissimulado” “vagamundo”, que “com sua esperteza”, a que “não faltam manhas”, “tramava todos os enganos e ardis”. (Jaime Bruna, Cultrix.) “Varão industrioso”, “ardiloso”, “que a todos os mortais supera em inteligência”, “urdindo toda sorte de manhas e cálculos”. (Antônio Pinto de Carvalho, Nova Cultural). “Varão astucioso”, “errante”, “engenhoso”, “manhoso”, “astuto”. (Manuel Odorico Mendes, Edusp.) “Herói astucioso”, “astuto”, “guerreiro solerte”, “engenhoso Odisseu”, “de grande inventiva”. (Carlos Alberto Nunes, Ediouro.) Abstraindo o componente épico do herói (componente encontrável em outras obras de cordel, como em Juvenal e o Dragão, do grande Leandro Gomes de Barros, além disso imersa num universo mágico), aquelas características descreveriam perfeitamente João Grilo (e seus companheiros), como protótipo do herói esperto, o “quengo fino” do linguajar sertanejo, que vence toda sorte de competição pelos ardis da inteligência.


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Até um dos personagens mais memorizados da saga de Ulisses (o ciclope do Canto 9) tem uma versão no folclore cearense e amazônico, o Gorjala, assim definido por Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro (1954): “É um gigante preto e feio, que habita as serras penhascosas. Sua ferocidade lembra a de Polifemo, de Homero, do qual é um descendente criado na imaginação sertaneja. Quando encontra um indivíduo qualquer, mete-o debaixo do braço e vai comendo-o às dentadas”. Licença poética em Tróia – Também da Ilíada encontramos referências explícitas, tanto na cantoria quanto nos folhetos, inclusive com verdadeiras apropriações da história, transcriada para o linguajar e a mentalidade do público. O poeta Caetano Cosme da Silva, pernambucano radicado por muitos anos em Campina Grande, versou as peripécias da guerra, no folheto Helena, a Deusa de Tróia, alterando o final da história: “Páris pegou Minelau (sic) / Com dois quentes e um fervendo / E deu-lhe um golpe certeiro / Com um furor estupendo / Sufocado em véo (sic) de sangue / Minelau caiu morrendo. // Ninguém contava os defuntos / Que haviam nessa hora / E os gregos que restavam / Num navio foram embora / Páris ficou com Helena / Tão linda quanto a aurora”. Já um poeta jovem e urbano, Antônio Klévisson Viana, de Fortaleza, escreveu recentemente História de Helena de Tróia e o Cavalo Misterioso, em que se mantém, grosso modo, fiel ao enredo original, inventando apenas que Helena foi encontrada numa masmorra troiana e voltou com Menelau, com teve muitos filhos. Interessantes são os versos de Otacílio Batista (o qual, com os irmãos Lourival e Dimas, formou a famosa tríade de São José do Egito) que, glosando um mote que se tornaria famoso, misturou heroísmo e erotismo (aliás bastante presente, sobretudo na Odisséia, mas isso é outra história), em versos inesquecíveis: “Numa luta de gregos e troianos / Por Helena, mulher de Menelau, / Diz a história que um cavalo de pau / Acabava uma guerra de 10 anos. / Menelau, o maior dos espartanos, / Venceu Páris, o grande sedutor / E humilhou a família de Heitor / Em defesa da honra caprichosa. / Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem sentir dor”. Não está aí um tema interessante para uma bela pesquisa acadêmica? Afinal, o rapaz inteligente (Odisseu) e o monstro devorador de homens (Polifemo) parecem ter sido transcriados em personagens como o João Grilo, dos nossos folhetos, ou o Gorjala, do folclore cearense. Luís da Câmara Cascudo produziu um curioso estudo etnográfico relacionando superstições, usos, comportamentos e expressões do interior do Nordeste a nada mais nada menos do que a Divina Comédia (Dante Alighieri e a Tradição Popular no Brasil, 1963). Em boa hora, nossos estudiosos poderiam aprofundar essas relações sobre as quais apresentamos essas pistas. Mãos à obra, senhores. •

Seria Ulisses o pai de João Grilo, Pedro Malasartes (que no mundo hispanoamericano é conhecido por Pedro Urdimales), Cancão de Fogo e toda uma progênie de filhos e netos?

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SOCIOLOGIA Aba Film/ Família B. Abraão/ Família Ferreira Nunes

Análise abrangente do cangaço

Fração do bando de Lampião na Ribeira do Capiá, Alagoas, em 1936, vendo-se o chefe na extrema esquerda

O relançamento de Guerreiros do Sol – Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, quase 20 anos depois da primeira publicação, revela a atualidade de seu conteúdo e a inteireza de seus propósitos Luiz Carlos Monteiro Continente janeiro 2005

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fenômeno do cangaceirismo no Nordeste brasileiro já rendeu textos e estudos de variada espécie, produzidos e contextualizados nos moldes das ciências humanas e da literatura propriamente dita. Do século 19 para cá, debruçaram-se sobre o tema poetas populares, biógrafos amadores, romancistas consagrados, historiadores, sociólogos e antropólogos de orientação diversificada. No entanto, o estudo de maior completude e abrangência até agora, é o livro de Frederico Pernambucano de Mello, Guerreiros do Sol – Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, relançado recentemente numa publicação conjunta das editoras Girafa (SP) e Massangana (PE). O autor parte da circunstância do isolamento da terra e da população sertaneja com relação principalmente ao litoral, para descrever e explicar todo o complexo de violência que se abateu sobre a região nordestina desde a colonização. Os ataques do colonizador aos habitantes nativos, as reações sanguinárias destes, a própria ferocidade do homem do ciclo do gado, os prejuízos causados pelas grandes secas, tudo isso sedimentado num meio inóspito e hostil, representam motivações seguras para o aparecimento do banditismo e se processam na temporalidade vagarosa ou precipitadora dos sucessos dessa violência. O homem rural nordestino, místico e fatalista, é um homem, na visão de Frederico Pernambucano, com “arquétipo mental”


SOCIOLOGIA

caracterizado pelo “individualismo arrogante, aventureiro e épico, plantado ali nos primeiros momentos da colonização e conservado sem contraste, ao longo de séculos, pela ausência de contaminação externa que o isolamento sertanejo proporcionou”. Com seu gosto pelas classificações, Frederico Pernambucano sugere, nesse contexto, uma tipologia humana de homens destemidos e corajosos, matadores covardes e traiçoeiros às vezes, que se inicia com o “valentão”, passa pelo “cabra” e o “pistoleiro”, até chegar ao “cangaceiro”, que não admite patrão como os outros. O pesquisador vai desvendando as diferenças e semelhanças grosseiras ou sutis entre eles, seus comportamentos psicossociais e modos de atuação. Pernambucano vai mais longe ao redefinir os tipos de cangaço que assolavam o sertão à época e as peculiaridades inerentes a cada um deles, que apareciam isolados ou em bloco, excluindo-se ou interpenetrando: o cangaço-refúgio, para quem estava a se esconder por crimes cometidos, o cangaço de vingança, para quem deveria lavar honra familiar ou individual com sangue, e o cangaçomeio de vida, para aqueles que não tinham outras opções de trabalho. Frederico Pernambucano ensaia uma definição para o que denomina de “escudo ético”, que representava uma justificativa para se continuar no cangaço, “instrumento capaz de convencer a quem o utilizava, e à sociedade, da nobreza da vida putativamente vingadora dos bandidos, mas que não passava de um bovarismo épico facilmente aceito como real por uma cultura carente de símbolos desse gênero”. O autor polemiza também em cima do que escreveram outros estudiosos do cangaço como Rui Facó, Cristina Mata Machado e José Honório Rodrigues, que fizeram interpretações ideológicas e econômicas simplistas e reducionistas. No caso de Cristina Mata, que colocava em lados opostos o cangaceiro e o coronel, Pernambucano argumenta que as relações entre ambos se davam bem mais no plano da convergência e da colaboração do que no da disputa. O auge do cangaço e sua repercussão no país, preocupando autoridades estaduais e federais se verifica em 1926, representando “a imagem de um cangaço gigante, cangaço do mosquetão, do parabelo, da bala de aço furando pé-depau e exigindo trincheira de pedra, do bando de cento e cinqüenta homens, do ataque à cidade de luz elétrica, das primeiras páginas quase diárias dos jornais, da orgia – até financeira – dos trovadores populares, da freqüência às conversas do Catete e do Monroe, dos três, dos cinco, dos sete Estados da Federação”. A essa altura, Lampião que tinha se iniciado no cangaço para vingar a morte do pai, terminou por transformar a atividade em “meio de vida”, amenizando e esquecendo a vingança para enriquecer e conquistar fama, conviver com coronéis e ter dezenas de bandoleiros à disposição a qualquer momento para a luta. Num artigo sobre o romance Cangaceiros de José Lins do Rego, o antropólogo e folclorista Manoel Diégues Júnior reclamava, há meio século, da falta de um estudo substancial sobre o cangaço e suas conseqüências para a região nordestina. Este trabalho, Guerreiros do Sol, que tem como método geral classificar os eventos mais importantes “por predominância de recorrências”, na expressão de Gilberto Freyre, somente apareceria no Recife duas décadas depois, em 1985. E esta nova edição enseja revelar apenas a atualidade de seu conteúdo e a inteireza de seus propósitos num Brasil que padece de violência e banditismo extremados, notadamente nas áreas urbanas periféricas e perigosas, sem minimizar seus efeitos no campo com a prática da pistolagem e os conflitos gerados pelas invasões de terras. •

Guerreiros do Sol – Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, Editoras Girafa/Massangana Frederico Pernambucano de Mello, 458 páginas, R$ 55,00.

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HISTÓRIA

Foto: Elpídio Suassuna

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O eterno libertário Frei Caneca Diferentemente dos inconfidentes mineiros, homens inscritos no seu tempo, Joaquim do Amor Divino Rabelo teve visão de estadista e, de certa forma, antecipou a discussão dos direitos humanos Hiram Fernandes de Lima

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homem Joaquim do Amor Divino Rabelo, Frei Caneca, figura ímpar de estadista, sobressai-se com a Confederação do Equador, nas vertentes federalista e nacionalista. Na primeira, resultante da pregação da autonomia regional, como um recurso para evitar o conflito de interesses, na segunda, traduzida na preocupação de quebrar todos os vínculos, que concorressem para a continuidade do domínio português ou que pudessem valer para o retorno do colonialismo, de que Pernambuco se libertaria, durante 72 dias, sem a existência de escravidão e escravos, enfim, uma pátria de homens livres. Daí, diferentemente do pensamento dos inconfidentes, a motivação libertária do Estado fomentou a contra-revolução. Não obstante a versão da história dominante no senso comum o tenha como o maior herói de nossa nacionalidade, protomártir da liberdade e da democracia, o alferes Joaquim José (Tiradentes), na verdade, estava mais próximo das crenças e instituições do Antigo Regime português, do que da então popular doutrina liberal que afirmava, à moda de John Locke, a centralidade do trabalho livre como valor instituidor de práticas políticas e sociais. É preciso Continente janeiro 2005

O Martírio de Frei Caneca, Murilo LaGreca, acervo do Museu do Estado/PE – Recife


HISTÓRIA

destacar que ficou acordado, na última reunião entre de ação, sua figura se eleva como pensador e pesquiinconfidentes, que não se tocaria de imediato no problema sador, como político e literato, com obras traduzidas em da escravidão, sob pena de desestabilizar todo o sistema francês e inglês, sem olvidar sua marcante atuação no social da capitania, convicção partilhada decisivamente pe- campo jornalístico com o Typhis Pernambucano, o comlo alferes, o que se constitui em notável exemplo dos limites bativo semanário que fundou, redigiu e dirigiu para relativos à natureza da rebelião proposta. sustentar a luta da província contra as pretensões do Não é fortuito, em nosso entendimento, o fato de que absolutismo imperial. Creio que, é uma opinião meramente pessoal, se Frei alguns dos principais expoentes do movimento da Inconfidência Mineira fossem senhores de escravos e Caneca tivesse se dedicado à vida sacerdotal, o revomineradores. Também não é fortuito que seja conhecida lucionário e patriota seriam sufocados, presos por um apenas uma vaga defesa da abolição – em uma suposta sistema religioso tradicionalista e vinculado ao Estado mofala de Alvarenga Peixoto e do padre Carlos Correia de nárquico – agir diferente é uma demonstração inequívoca Toledo e Melo, ambos se expressam por posições e mo- de sua independência, doutrinando todos no ideal da litivação meramente estratégicas. Cláudio Manoel da berdade, da justiça e de todos os deveres do homem e do Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Inácio José de Alva- cidadão. É a visão do estadista e pensador, antecipando-se renga Peixoto foram, além de poetas, bacharéis em Di- no tempo, na Declaração Universal dos Direitos do Horeito e gestores efetivos de um poder organizado em ba- mem de 1948. Em sua análise da Inconfidência Mineira, sob o ses elitistas e estamentais até, praticamente, às vésperas manto do esquecimento, ditado pela do levante. O padre Carlos Correia Figuras hoje populares Casa Real portuguesa, Frei Caneca de Toledo e Melo, o cônego Luiz superou as dificuldades de seu temVieira da Silva e o padre Manuel Roe profundamente po, como jornalista e escritor, estudou drigues da Costa, ao lado dos estudos arraigadas no imaginário as causas com base em pólos como e das atividades intelectuais laicas nacional, elite versus povo, revolução versus pelas quais foram notabilizados, não os inconfidentes de Minas reforma, interesses públicos versus inse eximiram de propagar e defender foram,antes de sua teresses privados – sempre referidos aspectos obscurantistas e preconceiconversão em mitos, homens ao movimento como um todo. Em tuosos da doutrina religiosa então em inscritos em seu tempo seu drama, sofreu, pior que fuzilavigor. O alferes Tiradentes, militante da tropa regular, tampouco se eximiu de exercer com zelo as atividades de controle da população, incluindo a repressão aos negros e índios que insistiam em não reconhecer em sua plenitude da “louca”, porém augusta soberana D. Maria I sobre Minas Gerais. Figuras hoje populares e profundamente arraigadas no imaginário nacional, os inconfidentes de Minas foram, antes de sua conversão em mitos, homens inscritos em seu tempo. Frei Caneca foi um pernambucano autêntico, sempre coerente com o seu ideal cívico republicano e nacionalista, pela fidelidade à causa abraçada e pela soberana altivez diante da derrocada da revolução esmagada e cruelmente punida. É na derrota quando sua figura eleva-se às culminâncias do heroísmo, só não sendo fixado na história brasileira dos patriotas maiores, por interesse e má vontade da historiografia tradicional. Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, não pode ser analisado unicamente como um homem

mento, o sacrifício da degradação eclesiástica, punição que expressa o sentimento da vingança e baixezas de bajulação ou de submissão, na preocupação de atender ao imperador, ferido na onipotência de seu absolutismo. A comissão militar, num regime de igreja oficial, tomava a iniciativa de condenálo à degradação, incluída entre as "penas vindicativas do Direito Canônico", como se o crime de lesa-majestade se transformasse em sacrilégio, em face de um sacerdote, que era professor conspícuo do Seminário de Olinda. Na degradação, injusta, ilegal e desumana, foi que Joaquim Caneca revelou a grandeza de sua alma. Frei Caneca foi a razão e a melhor opção. É, inquestionavelmente, um homem acima de seu tempo, o estadista e o herói, o precursor da lutas libertárias brasileiras, que precisa ser redescoberto em nome da verdade e da História. • Excerto de discurso em comemoração ao transcurso do 170 aniversário da fundação do Rotary Club do Recife – Frei Caneca. Continente janeiro 2005

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

A angustiante busca da perfeição Os que acompanham Samico conhecem os seus dias de angústia e sofrimento, antes de chegar ao último dos estudos

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terceira das Seis propostas para o próximo milênio, de Ítalo Calvino, é a exatidão. Para ele, exatidão quer dizer: um projeto de obra bem definido e calculado; a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas e memoráveis; e uma linguagem precisa, capaz de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. Calvino, obviamente, refere-se à literatura. No mesmo ensaio ele confessa: “... procuro falar o mínimo possível, e se procuro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta.” Avesso à fala, igualmente obcecado pela exatidão, Gilvan Samico não costuma dissertar sobre seu processo criativo e os resultados alcançados. Ele deixa que os apreciadores da sua gravura percam-se em análises, refiram semelhanças e arquétipos. Ao fim dos comentários, quase sempre questiona as leituras e achados. Parece ser o único a conhecer o rigor da criação em que se move, silencioso e solitário. Samico começou pelo desenho, praticado no Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife, dirigido por Abelardo da Hora, e depois em São Paulo, na Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna, quando estudou com Lívio Abramo. Mas a gravura terminou sendo uma escolha na sua vida, “caminho difícil, Continente janeiro 2005

quase ascético” como afirma, no catálogo da exposição Grandes Desenhistas e Gravadores, Giuseppe Baccaro, que considera os gravadores tipos esquivos, modestos, sem efeitos especiais, nem na vida nem na arte. Com isso Baccaro nos convida a refletir sobre os traços em comum de figuras como Goeldi, Abramo, Grassmann, Gruber, Newton Cavalcanti, Babinski, Roberto Magalhães e Gilvan Samico, todos amantes da pesquisa paciente, às vezes artesãos, mestres na arrumação cuidadosa de espaços discretos. Há semelhanças entre o desenho – às vezes expressionista, quase sempre retratando figuras misteriosas e sombrias – e a xilogravura que Samico executa até o final da década de 1950. Em ambos predomina o preto. O corte da madeira, deixando restos que lembram os riscos do lápis, ainda não possui o rigor que irá caracterizar a sua obra futura. Embora tenha escapado às marcas de Goeldi e Lívio Abramo, é possível identificar a influência dos dois mestres na produção dessa época. O clareamento progressivo da gravura, a simetria a partir de um eixo central, o contorno, a supressão de qualquer imagem que lembre um espaço naturalista, e a perda do sentido de profundidade e perspectiva começam a se definir, no início da década de 1960. O gravador não estava satisfeito com o resultado do seu trabalho, que não lhe parecia suficientemente brasileiro, e desejava alcançar esse fim. O providencial encontro com o amigo e escritor Ariano Suassuna, que sugeriu um mergulho no universo do


Reprodução

ENTREMEZ

A idéia de criação cordel, precipita o que já infinitamente vasta se deveria ser busca e prestransforma na versentimento. tigem do detalhe do Em seis anos, tomandetalhe do detalhe, e o do como marco inauguSuzana no Banho, Gilvan Samico, xilogravura, 1966 artista se vê tragado ral Suzana no Banho, de 1966, Samico chega aos fundamentos da gravura que pelo infinitamente mínimo, como escreve Calvino. Os pratica até hoje. Bem de antes, desde Mulher com Luva, estudos pendurados nas paredes do ateliê sugerem um de 1959, já experimentava a cor, de forma discreta, labirinto de possibilidades. A gravura tão meticulosa e menos como enfeite do que como delimitação de precisa, com geometrias, simetrias e séries, parece espaços, definição de planos. Como costuma dizer, a cor enclausurada. Mas, aparentemente contidas num na gravura representa a compensação de não ser retângulo, espirais, serpentes, anjos em queda, pássaros reconhecido como pintor, embora também se dedique ao e dragões alados também são manifestações de movimentos que se prolongam ao infinito, rompendo a ofício. Depois do êxito alcançado na Pinacoteca do Estado perfeita exatidão que o artista tanto persegue, a idéia de de São Paulo, com uma exposição de agosto a outubro de limite e medida. Os desenhos para estudo permitem visualizar as várias 2004, Samico segue para uma mostra no museu Oscar Niemayer de Curitiba, no primeiro trimestre deste ano. possibilidades da gravura, “o caminho que teimosamente Segundo Giuseppe Baccaro “fazer uma exposição de se bifurca em outro, que obstinadamente se bifurca em desenhos e gravuras é como passar um grande pedaço da outro”, e que parece nunca ter fim, como no poema de arte brasileira ao raio x; descer abaixo de peles e gorduras Jorge Luis Borges. Percurso entre labirintos e espelhos. e esbarrar no sistema ósseo, nas estruturas. Ali, sumiram Não sabemos que centelha precipita a escolha, nem o as cores de superfície e quem domina é a verdade nua e instante em que isso acontece. Parece arbitrária a eleição da crua do branco e do preto (entre os quais, nestas alturas, imagem que finalmente será transposta do papel para a estão presentes todas as cores) ou a extrema economia madeira, ali fixada, e novamente impressa no papel. A cada impressão, a gravura possibilita o milagre de ver ados pigmentos.” Os que acompanham Samico conhecem os seus dias cordar do sono da madeira a criatura adormecida. E o de angústia e sofrimento, antes de chegar ao último dos olhar complacente do criador nunca deixa de enxergar o estudos, quando inicia o trabalho de artesão entalhador. que antes de ser gravura palpitou como desenho. • Continente janeiro 2005

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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

Ano-Novo, tira-prosa Para uma boa entrada de Ano-Novo, não é só vida nova, é tirar prosa

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prosa virou moda, mesmo das antigas, quando em festas de mocidade, brinquedos armados em ruas e praças levavam crianças e adultos para rodas-gigantes, cavalinhos de carrossel e também de tira-prosas – este revirando a cabeça da gente, subindo e descendo até dar vertigens. Namoricos e conversa fiada, nem pensar. Não dava tempo. Era muita emoção no vai-e-vem do barco no ar. Portanto, sem ser tira-prova, a prosa virou moda, que desmunheca para a lorota, por tudo que é grota patriótica em glosa cautelosa, testemunhando o que está em voga por esse mundo afora, de galhofas. A onda agora é tirar prosa. Os grandões da Europa que condenaram a guerra dos maiorais da arrogância e do poder bélico contra o Iraque, e a intifada na Palestina provocada pelo zarolho do Ariel, já estão com outra conversa – Bush foi reeleito e Arafat foi se encontrar com Alá. Quem pensa que sabe alguma coisa do plano do cientificismo político, estratégico-militar, religioso, filosófico, antropológico, está aparecendo mais do que se estivesse com um jerimum pendurado no pescoço. Nas telinhas televisivas, doutores PHDs, professores eméritos das maiores universidades brasileiras e do mundo, deitam e rolam besteirol e prolixidades sobre táticas de guerra, posicionamento das tropas libertadoras do povo de Saddam, quem ganha com eleições livres naquele país, a economia, para onde vai o petróleo, prisioneiros, quem chega primeiro agora até Bin Laden, quando o rei mandar dizer. Pelas folhas dos jornais, articulistas especializados em economia de mercado, sociologia, desarticulam fundamentalismo com neoliberalismo religioso, confundem xiitas com sunitas, Sharon com shalom, talibãs com curdos... Apaches com cobras, scuds com patriots, precisão de bombas computadorizadas com fogo amigo. Enfim, vê-se de tudo. Continente janeiro 2005

Só não vêem as vítimas civis – crianças feridas e mortas, sem medicamentos, água e comida – traumatizadas para sempre pelos horrores de bombardeios, pelos sustos de soluços e desguarnecidas de amor, de uma mão amiga, do consolo fraternal, da palavra de Deus, Alá, ali bem pertinho de cada uma delas. Que mundo vai ser esse por aquelas bandas dos califas e lawrences das arábias neste 2005 que se inicia, repleto de esperança, como sempre acontece a cada ano novo? Como a prosa de que eu gosto é outra bem diferente da lorota, mesmo que seja uma lorota boa, mas uma prosa que faz verso, que ama, protesta, e o reverso nos faz ainda mais felizes – prefiro deixar este assunto de guerra, ambição e desamor além-mar, já bastante cansativo e sofrido, de dar enfado, de lado. Então, esperemos um pouco mais do nosso Brasil. Os políticos já brincaram demais de poder. Está na hora de o povo fazer alvoroço, de entrar nessa brincadeira. De “marré, marré”, mesmo. De “chicote queimado”, e do “coelho sai... não sai”, dos nossos ancestrais. De “garrafão”, de “pega”, nunca de “se esconder”. Aí sim, o povão volta a esquecer das agruras. Feito menino de calça furada, da dos pinhéns de Guimarães Rosa – em calça furada entra formiga. Afinal, na realidade, neste ano que começa vai continuar tudo em dó maior. Para que sonorizar em mi bemol, lá menor ou em notas dissonantes nossas dificuldades sociais e econômicas? Ler partituras de carreirinha é coisa das elites malditas que sabem como nunca solfejar as notas frias do egocentrismo próprio dos abastados – bastardos carrascos da gigantesca gama de excluídos. O melhor negócio é se tirar prosa em dó maior. E viva 2005! •




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