Continente #050 - Macunaíma

Page 1



EDITORIAL

1ª edição de Macunaíma, 1928

Mário presente Glória Horta

O caráter macunaímico do brasileiro ainda gera discussões

M

ário Raul de Morais Andrade (1893-1945) é um desses intelectuais cuja participação no ambiente cultural de um país extrapola, em muito, sua passagem terrena. Poeta, romancista, músico, pesquisador da arte popular, agitador cultural, teórico e pensador, Mário de Andrade, para além da vasta obra nesses campos, deixou a marca de haver contribuído poderosamente para a própria percepção da identidade brasileira. Sua obra mais famosa – e talvez a não mais lida, o romance ou rapsódia Macunaíma – o Herói sem Nenhum Caráter – criou um personagem, a partir de lenda amazônica recolhida pelo antropólogo alemão Koch-Grünberg, que se transformou, em sua ambigüidade entre a malandragem e a inocência, num símbolo do caráter do brasileiro, não obstante a ambição do escritor em construir um ícone do homem universal. Seu legado engloba, ainda, a liderança, ao lado de outros companheiros de geração, como Oswald de Andrade, Menotti Del Pichia e Tarsila do Amaral, do Movimento Modernista brasileiro e a renovação, em prosa e verso, da linguagem culta brasileira, incorporando elementos indígenas e da fala cotidiana do povo. Ao se completar, este mês, 60 anos de sua morte, a presença de Mário ainda é intensa, especialmente nas discussões sobre o caráter nacional, vez que as inovações estéticas proclamadas com estardalhaço na célebre Semana de 1922 encontraram-se, em grande parte, absorvidas pela produção cultural brasileira, como sói acontecer. Verbete da Enciclopédia Britânica e cadeira específica na disciplina Cultura Brasileira da Universidade de Berkeley, desde 2002, Mário de Andrade é o tema principal deste número da Continente, que traz, ainda, as agudas análises do psicanalista Jurandir Freire Costa sobre a nossa tragédia cotidiana e surpreendentes ligações entre o frevo e o fado e as não tão surpreendentes, mas instigantes, relações entre o ritmo pernambucano e a Bahia. • Continente fevereiro 2005

1


Hans Manteuffel

2

CONTEÚDO Reprodução

12 Macunaíma (Grande Otelo), o herói sem caráter

42 A presença do fado no

carnaval pernambucano

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CAPA

08 Mário de Andrade, criador e agitador cultural 12 Macunaíma e as não-qualidades do povo brasileiro 16 O legado poético de Mário de Andrade 18 O pesquisador da cultura popular do Nordeste

CONTEMPORANEIDADE

21 Jurandir Freire fala da crise da ética no Brasil

LITERATURA

30 Escritor luso-brasileiro faz romance caleidoscópico 34 Traduzindo os sonetos de Shakespeare 37 A poesia requintada de Lau Siqueira 38 A prosa densa de Márcia Denser 40 Agenda/Livros CARNAVAL 42 A surpreendente relação entre o frevo e o fado 46 O dia em que o frevo tomou conta de Salvador COMPORTAMENTO 50 Jornalista americano elogia a sabedoria das massas

Continente fevereiro 2005

ARTES 58 Salão de Artes de Pernambuco desafia o público ARQUITETURA 64 Guia analisa a paisagem urbana do Recife MÚSICA 74 O canto, à moda antiga, de Geraldo Maia 76 Letrista Fausto Nilo assume seu lado de cantor 79 Agenda/Música CINEMA 80 O cineasta e carnavalesco Caselli HISTÓRIA 84 A cultura da cana-de-açúcar no Atlântico Sul TRADIÇÕES 90 Entra em vigor a lei que protege o patrimônio vivo 94 Folk-lore Pernambucano, de Pereira da Costa, é relançado


CONTEÚDO Flávio Lamenha

58 Salão de Pernambuco privilegia arte contemporânea

3

Reprodução

84

Corte de cana na Ilha da Madeira

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Utopia socialista versus pragmatismo capitalista

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 28 A novíssima poesia feita em Pernambuco

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 A ruptura com as linguagens artísticas existentes

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 68 A manga já foi privilégio só dos deuses

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 71 Itália renascida, poderosa e bela

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Os deuses antigos ainda se manifestam

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Que pena carregarmos um feixe tão pesado de complexos de identidades Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente fevereiro 2005


4

CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta e Daniel Sigal Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente fevereiro 2005

Fevereiro Ano 05 | 2005 Foto: Lucca Barreto

Colaboradores desta edição: ANTONIO

DE

CAMPOS é poeta, autor de Palavra de Ordem.

DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Perfis & Entrevistas, entre outros. DENIS BERNARDES é historiador e professor do Departamento de Serviço Social da UFPE. DIANA MOURA BARBOSA é jornalista. CARLOS SANDRONI é doutor em Musicologia pela Université de Tours e antropólogo. Publicou, entre outros, Feitiço Decente (Zahar/UFRJ). FÁBIO ARAÚJO é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e Armada América, entre outros, e cineasta. JOSÉ TELES é jornalista, escritor, crítico de música e autor do livro Do Frevo ao Manguebeat, Editora 34. LAU SIQUEIRA é poeta, autor de O Guardador de Sorrisos, entre outros, e é vicepresidente da Fundação de Cultura de João Pessoa. LEONARDO DANTAS é jornalista e pesquisador. LUCIANO TRIGO é jornalista e escritor. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Poemas e Vigílias. MARIA ALICE AMORIM é jornalista, pesquisadora e autora de Carnaval – Cortejos e Improvisos. MARCIA DENSER, escritora paulista, é autora de Toda Prosa e Tango Fantasma. MILTON LINS é escritor e tradutor, membro da Academia Pernambucana de Letras. PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. Trabalhou nos jornais Rascunho e Jornal do Estado, ambos de Curitiba. RENATO LIMA é jornalista e um dos editores do programa de livros e idéias Café Colombo, na Rádio Universitária do Recife. RITA DE CÁSSIA BARBOSA DE ARAÚJO é antropóloga e diretora da Diretoria de Documentação da Fundaj. SÔNIA VAN DIJCK é escritora e doutora em Literatura Brasileira.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.


CARTAS Toda a Arte de Olinda Cumprimento-os pela excelente Revista Continente Documento “Toda a Arte de Olinda”. A abordagem abrangente dos diversos aspectos que envolvem o Arte em Toda Parte – evento realizado conjuntamente por esta prefeitura e o Instituto Mobiliza/Educação, contextualizando corretamente a dinâmica artísticocultural de Olinda, inclusive com as justas referências aos artistas populares e à nova safra de artistas, assim como, também, aos destaques dados à já consagrada gastronomia de nossa cidade e aos cada vez mais famosos ateliês de moda aqui presentes, foi consumada com uma louvável competência. Além disso, desejo fazer menção à excelente qualidade da produção e acabamento e registrar, em especial, a emoção que senti, logo nas primeiras páginas, ao deparar-me com a foto noturna do início da Rua de São Bento. Sem sombra de dúvidas, a Revista Continente Multicultural contribui, mais uma vez, com a cultura do nosso Estado. Luciana Santos, Prefeita de Olinda – PE Macujê Espanta-me uma matéria como esta, em que o autor com tamanha desenvoltura na fala e na escrita discorre sobre uma realidade que não diz respeito apenas ao distrito de Macujê (coluna “Entremez”/ Nº 48). Apesar das verdades apresentadas no texto, fica evidente a ausência, por parte do autor, de uma leitura mais ampla dos problemas conjunturais e estruturais que perpassam aquela comunidade. Para um leitor desavisado, é difícil compreender que essa realidade é permeada pela negação de direitos básicos ao cidadão (ausência de saneamento básico, de infra-estrutura nas áreas de saúde, educação, cultura, lazer, entre outras), e que se pode contar apenas com a boa vontade da população que sofre, sim, com a “arrogância” dos que vêm de fora. É importante destacar ainda, que quando se propõe a desenvolver um trabalho comunitário numa realidade como a descrita pelo autor, faz-se necessário, antes de tudo, estar disposto a utilizar-se dos recursos disponíveis na comunidade, propondo-se a realizar um trabalho de qualidade, apesar das adversidades. Renata Severo, Recife – PE Leão do Norte Sou assinante da Continente e quero registrar meu contentamento com a assinatura. Parabéns pelo trabalho. Ele coloca Pernambuco num lugar de respeitabilidade. O “Leão do Norte” continua vivo, e muito forte. As matérias veiculadas por vocês são de extrema importância para provar isso. Maria da Conceição Gomes , Recife – PE

Feminismo 1 Parabéns pela Revista de dezembro (Nº 48). Dei uma conferida na matéria de Isabelle Câmara, que fala sobre coleções. Eu, como colecionador compulsivo, reverencio as palavras de Benjamim: estamos vivos dentro das coisas que colecionamos. Parabéns, também, pela matéria sobre Marlene Dietrich e perfil do feminismo, pelo Daniel Piza. Essa revista não existe. O melhor é que existe! Julio Moura, Rio de Janeiro – RJ

Feminismo 2 Parabéns pela revista de dezembro (Nº 48). Os excelentes artigos sobre a participação (ingresso) das mulheres nas artes, na economia e política (Luzilá Gonçalves Ferreira, Mauro Rosso, Weydson Barros Leal, Fernando Monteiro e Eduardo Graça – sobre as colocações de Gail Collins) são enriquecedores. A coluna “Contraponto”, abordando, de forma clara e incisiva, a insegurança que nos ronda e aterroriza, é um valioso alerta para os que têm poder de decisão. No nosso dia-a-dia, na porta de casa, somos observadores e, muitas vezes, vítimas do terror da ausência do Estado, usando a sua tão apropriada colocação: “Uma nova modalidade de terror: do terror sem Estado”. Frederica e Gabriel Cavalcanti, Recife – PE Odisséia no Sertão Em minha ótica, faço a história humana iniciar-se no domínio da palavra – que, no uso dessa oralidade, a troca de si no outro projeta a luz que universaliza tais corpos profusos de prospecções. Quem fala, conta história, e nesse time coloco certas aves que, ao voltarem de tardezinha, antes de adormecerem, botam em dia tudo o que lhes aconteceu. Conversa de passarinhos... Marco di Aurélio, João Pessoa – PB. Literatura brasileira Parabenizo a Revista Continente pelos autores já abordados e sugiro o nome da escritora Rachel Jardim. Renato Bonzi, Rio de Janeiro – RJ

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

hip-hop Acho extremamente infeliz a postura da Continente, que tanto admiro e uso, como fonte confiável de informação e formação cultural, publicar uma coluna preconceituosa e xenofóbica como a coluna sobre o hip-hop brasileiro (coluna “Marco Zero”/ Nº 49). Os militantes desse movimento não precisam ser reconhecidos como coitadinhos, mas merecem ser reconhecidos como agitadores culturais, tanto quanto uma edição de uma revista como a Continente. Sou paraibana e sempre residi no meu Estado. Acompanho o movimento cultural hip-hop local e a contribuição para a cena cultural da capital paraibana, que vem recebendo grandes parceiros. Financiados por uma lei de incentivo à cultura, o movimento hip-hop está sendo responsável pela formação cidadã e cultural de indivíduos que moram na periferia da cidade. Senhor Alberto da Cunha Melo, que também se diz poeta, fique sabendo que a poesia é um dos principais elementos culturais repassados através do hip-hop, até porque, para quem não tem dinheiro nem para pagar uma passagem de ônibus para chegar a uma biblioteca pública e descobrir os grandes poetas brasileiros, a rima do hip-hop se torna a porta de entrada para outras opções culturais. O Brasil é um país de diversidade cultural, racial e sexual incrível; até o Governo Federal se sentiu na obrigação de reconhecer o papel formador do hip-hop, e de dar uma olhada nas ações de incentivo à leitura voltadas especificamente para este público, Programa Fome de Livro na Quebrada, repleto de “cão chupando manga”, “um endiabrado em cima do vinil”, como você infelizmente denomina. Tenho medo do que o poeta acha da cultura marginal. Que se cuidem os Laus Siqueiras da vida! Calina Bispo, João Pessoa – PB. Transdisciplinar Através da Revista Continente é possível realizar um trabalho transdisciplinar, pois a mesma tem conteúdos importantes e bem discutidos, servindo de subsídio no trabalho pedagógico. Bernadete Sotero, Recife – PE

Continente fevereiro 2005

5



CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes

Keynes e Adam Smith vivem Atropelada pelo pragmatismo capitalista a utopia socialista caiu por terra

C

Zenival

hico Buarque afirmou recentemente que “Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar. A sociedade está sendo levada, pelo conformismo, para o cinismo”. O que se conclui da lúcida afirmação do Chico não é nada mais do que a incompatibilidade do discurso histórico das esquerdas com a realidade factual do mundo liberal e conservador. Atropelada pelo pragmatismo capitalista, a utopia socialista caiu por terra. Pouco sobrou da estrutura de aspirações que dava suporte ao castelo de sonhos, onde o Estado seria o provedor de todas as carências sociais e humanas. O muro ruiu. Marx errou. Está aberto o caminho para o discurso neoliberal de uma sociedade centrada no mercado como nova solução para a felicidade humana. Adam Smith vive. Nesse novo trilho, a locomotiva do progresso chega a todos os países afluentes carregada de instruções do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. No seu caminho recebe como passageiros Fernando Collor, Fernando Henrique e, pelas coincidências do destino, o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Em meio a perplexidades, este último emplaca, com mérito, quase todas as reformas liberais gestadas nos governos anteriores, culminando com a aprovação do projeto das Parcerias Público-Privadas – PPPs. Exemplo de flexibilização de dogmas a respeito do papel do Estado, esse projeto representa um avanço nas relações governo/setor privado, mas não se sabe se isso se refletirá no relacionamento Estado/sociedade. Ao utilizar a economia como centro de todas as suas ações, o governo adota, sem restrições, a estratégia neoliberal recomendada por todas as instâncias de dominação do mundo globalizado. Com efeito, como foi identificado por Chico Buarque, o antigo discurso se contrapõe à atual sintonia das ações do governo no tempo e no espaço. Contraditoriamente, este é o grande mérito do Governo Lula que, para perplexidade até dos seus, vem cumprindo à risca o discurso que escrevera para ganhar a eleição. Salve os mandarins da propaganda!

Com o senso de oportunidade decantado, Lula não esqueceu que a democracia, quando submetida à influência do poder econômico e das grandes empresas, tem suas limitações, mas ainda é a melhor dentre as alternativas. Não esqueceu também que a economia moderna cria corporações poderosas que usam de métodos estratégicos para influenciar políticas e governos, com vistas aos seus interesses privados; e ademais, como campo de conhecimento, a economia ainda carrega sua deformação ancestral de brigar com a realidade social, além de servir a interesses influentes e articulados. Por tudo isso, a cautela é absolutamente necessária, pois a História recente tem mostrado que as disfunções que podem ser atribuídas à economia moderna estão na sua tendência de favorecer a concentração de poder e solapar a lógica da distribuição de autoridade política por meios democráticos. Nos Estados Unidos, segundo afirmação de John Kenneth Galbraith, “a guerra do Iraque é um exemplo de que a intromissão do setor privado no chamado setor público é ostensiva e crescente, e negá-la é uma fraude – nada inocente.” Se nos Estados Unidos empresas privadas têm hoje decisiva influência no governo, no Brasil não é diferente. O poder econômico também está presente em todas as instâncias políticas e muitas empresas privadas têm garantida sua fatia de poder sobre o setor público. É a força do poder global sobre a ordem tribal. Caro Chico, não são somente os discursos que nos fazem burgueses e cínicos: é o modus vivendi da sobrevivência pessoal e política. A questão do governo não é de conformismo, mas de conformidade – adaptação à realidade. A despeito do novo fundamentalismo neoliberal, que lhe sirva de conforto a lucidez de Galbraith – quando defende que a economia, além da mão invisível de regulação dos mercados de Adam Smith, requer a ação estabilizadora do Estado defendida por Keynes, pois ainda vivemos numa era em que ambos têm influência garantida. • Continente fevereiro 2005

7


CAPA

Fotos: Reprodução

8

Mário de Andrade, intelectual

de caráter

Falecido há 60 anos, o escritor e teórico paulista, autor de uma obra definidora

D Daniel Piza

De Mário de Andrade (1893-1945) a posteridade guarda duas imagens à frente das outras: a do teórico do Modernismo nacional, movimento que começou com a Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo, adaptando inovações do Surrealismo e do Futurismo europeus na pintura e na poesia locais; e a do estudioso e agitador do Brasil, defensor da “brasilidade”, que viajou pelas cidades históricas e exaltou Aleijadinho, que peregrinou pelo Nordeste e coletou folclores. Essas imagens têm um ponto de encontro central: o romance Macunaíma – o Herói sem Nenhum Caráter (1928), que, por seu caráter tópico, emblemático, é daqueles que são mais citados do que realmente lidos. Em conseqüência, Mário ainda continua a dividir opiniões. Para muitos, ele é o antípoda de seu parceiro de movimento, Oswald de Andrade (sem parentesco): Oswald seria o inventivo, o irreverente, o irresponsável; Mário, o compreensivo, o metódico, o responsável. Para os seguidores de Oswald, como os poetas concretistas, falta a Mário um toque de originalidade. Para os de Mário, como os literatos da USP, falta a Oswald a virtude da consistência. No entanto, Oswald disse ao crítico Antonio Candido, no final da vida, que Macunaíma foi a realização mais perfeita dos ideais estéticos dele, Oswald, resumidos por exemplo no Manifesto Antropófago de 1927 – a idéia de uma arte cinemática, matriarcal, híbrida, carnavalizante. Mário, por Victor É verdade que, em 1929, ambos romperam. Mário de fato Morel, 1927 era mais nacionalista, e a partir dos anos 30 mergulhou a fundo na empreitada de valorizar a cultura local. Pouco a pouco se afastou do projeto da Semana, que chegou a definir como gesto de “playboys intelectualizados”.

Continente fevereiro 2005


e civilizatória, deixou uma herança valiosa que repercute até os dias de hoje

Mário de Andrade pesquisando em sua biblioteca particular


CAPA

10

O grupo da Semana de 22: Manuel Bandeira é o primeiro à esquerda, Mário, o segundo; Oswald é o sentado no chão

A ausência de caráter de Macunaíma significa ser o brasileiro uma fusão

E tinha um temperamento mais fechado, de um homossexualismo reservado. Era o ídolo intelectual dos jovens da revista Clima (Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Ruy Coelho), que uniram o gosto pela crítica ao rigor da pesquisa e, por isso, mereceram o apelido que Oswald lhes deu: “chato-boys”. Oswald, claro, era um “ponta-de-lança”, como ele próprio se dizia, e tinha uma personalidade transbordante, oscilante, além de “monogâmico em série”. As crises pós29 o fizeram aderir ao marxismo, o que transformou bastante sua literatura, do humor metonímico de Miramar e Serafim para o realismo social de Marco Zero. Mas é irônico que Macunaíma tenha características pelas quais a prosa e a poesia de Oswald são conhecidas: Continente fevereiro 2005

sátira, colagem, movimento. Não por acaso rendeu filme muito melhor (de Joaquim Pedro de Andrade) do que os romances de Oswald. A diferença é que, embora sem o mesmo colorido verbal, Mário tinha um ponto de vista mais claro e coeso sobre o Brasil: a ausência de caráter mencionada na alcunha de seu protagonista não significa que ele considere o brasileiro um imoral, mas que o vê como uma fusão de raças, cuja identidade é não ter uma identidade nítida. Daí Macunaíma ser um livro obrigatório nos vestibulares; tem um conceito nacional que não se depreende da ficção de Oswald. Mesmo assim, é um texto muito telegráfico, em que a mistura de histórias não pega ritmo de lundu, e os personagens estão mais a serviço do lendário do que de uma identificação com o leitor.


CAPA

Além disso, havia mais em comum entre Oswald e Mário do que supõem as classificações fáceis. Cada um à sua maneira, afinal, ambos “desistiram” das intenções da Semana de 22 decorridos apenas alguns anos. Mário chegou a afirmar em carta no final da década que “Picasso estava voltando ao clássico”, rejeitando com isso os excessos vanguardistas da juventude e voltando as costas para as influências estrangeiras que foram tão criticadas por conservadores e parnasianos no movimento modernista. Oswald, com Marco Zero, fez o mesmo. E ambos não sabiam direito o que pôr no lugar. Mário, em especial, passou a escrever contos numa linguagem mais e mais previsível, tradicionalista. Ali despontou, por outro lado, o Mário cronista, crítico de arte, literatura e música, ativista político-cultural, ideólogo das “raízes nacionais”. Em sintonia com os anos getulistas e cada vez mais próximo das teses de Gilberto Freyre, que havia criticado o internacionalismo da Semana, Mário se torna diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo (um secretário da Cultura), funda a Sociedade de Etnografia e Folclore, coleta modinhas, serestas e outras manifestações musicais regionais. No Rio, a partir de 1938, professor de História da Filosofia da Arte, organiza o Serviço do Patrimônio Histórico (três anos antes publicara o ensaio sobre Aleijadinho) e planeja uma Enciclopédia Brasileira, além de defender uma reforma ortográfica que distinguisse a língua portuguesa usada no Brasil (e, entre outras coisas, adotava o “si” como condicional, para diferenciar do pronome “se”). Cerca de 20 anos depois de polemizar com Monteiro Lobato por este ter atacado o Expressionismo de Anita Malfatti, Mário ficou mais parecido com Lobato do que nenhum outro. Sua poesia, que lançara dicção inédita num livro como Paulicéia Desvairada (1922), voltou aos versos metrificados e solenes na coletânea Poesias (1941). Aquilo que o Modernismo mais buscava, uma lingua-

Mário, por Anita Malfatti, 1922

de raças, cuja identidade é não ter uma identidade gem dos tempos industriais adaptada à cor local e preocupada com as questões brasileiras, passou a ser uma síntese impossível, tal como Macunaíma. Mas sem preguiça nenhuma: a inquietude intelectual de Mário o acompanhou até o resto da vida, e ele era muito menos “nativista” do que acreditam seus idólatras; há cartas, por exemplo, em que ele diz que os brasileiros são “europeus”, ou seja, pertencem à civilização ocidental, com a contribuição rica, mas não definidora, das culturas índia e africana. A herança de Mário é valiosa, porém mais pelo que inspirou do que pelo realizou. Seu pioneirismo e sua erudição são inegáveis, assim como sua fertilidade (publicou 44 livros em 28 anos), e o melhor da literatura moderna brasileira – a poesia de Drummond e Cabral, a prosa de Graciliano e Rosa, a crítica jornalística, a pesquisa acadêmica – deve muito a Mário; no entanto, apesar da propaganda paulista, não foi ele quem fez as obras-primas nacionais. Seus livros não estão à altura de livros anteriores, como Os Sertões e Policarpo Quaresma (para não mencionar Machado de Assis, que ele chamou de “colonizado”, ignorando o leitor da alma brasileira que foi nosso maior escritor), ou posteriores, como A Rosa do Povo ou Grande Sertão: Veredas. Mas enfrentou o Brasil e o civilizou o quanto pôde. É um legado de caráter. •

Mário, por Flávio Carvalho, 1929

Mário, por Cândido Portinari, 1935

Continente fevereiro 2005

11


12

CAPA

Personagem de Mário de Andrade, moldado como símbolo do caráter nacional, ainda referencia discussões

180 macunaímas

sobre a identidade brasileira Paulo Polzonoff Jr.

milhões de

E

Em 1928, Mário de Andrade se deitou preguiçosamente numa rede, na varanda de uma chácara nos arredores da bucólica São Paulo, e escreveu, em apenas um mês, seu Macunaíma – o Herói Sem Nenhum Caráter. Na época, o romancista não encontrou editor. Por isso, mandou ele mesmo imprimir 800 exemplares da sua obra. Os funcionários da gráfica acharam que o que saía do prelo rudimentar era apenas mais um romance, quando, na verdade, estavam era imprimindo um paradigma. Macunaíma é um marco não só do Movimento Modernista brasileiro, como também do movimento Tropicalista, turbilhão ocorrido 50 anos mais tarde. Mais do que um romance, onde prevalece certa estética surrealista, Macunaíma é apontado como uma tentativa radical de se entender o povo brasileiro pelas suas não-qualidades, por aquilo que lhe falta para ser caracterizado como um povo. Deste modo, Macunaíma seria uma reação – um tanto quanto atrasada, é verdade – à busca romântica pelo brasileiro perfeito, desde que coubesse em moldes europeus, empreendida em romances como O Gaúcho, O Sertanejo e O Guarani, de José de Alencar. Assim como o Tropicalismo poderia ser entendido como uma tentativa – tardia – de criar uma comunicação universal a partir do que se convencionou chamar de brasilidade em sua manifestação mais primitiva: a antropofagia. Tudo isso, claro, são conceitos e teorias forjados nas universidades. Nas faculdades de letras de todo o Brasil, gerações de estudiosos se debruçaram sobre Macunaíma, a fim de entender não só o Brasil daquela turbulenta década de 20, mas também o Brasil de todos os tempos posteriores. Teses e teses foram escritas. Ainda hoje deve haver algum acadêmico debruçado sobre a obra-prima de Mário de Andrade, na busca deste que parece ser o Graal tupiniquim. Mas teria Mário de Andrade alicerçado as teorias que dariam forma a uma espécie de Homo brasilis, tão genuíno e identificável na multidão quanto um eslavo ou chinês ou até mesmo um norte-americano? Não teriam as teorias sociológicas de Mário de Andrade, um tanto moleque, como o próprio Macunaíma, sucumbido ao rigor de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda? Em um prefácio não publicado à época do lançamento de Macunaíma, o próprio Mário de Andrade esclareceu a gênese de sua obra. O herói sem caráter é uma figura que aparece nos trabalhos do etnólogo alemão Koch-Grünsberg. Ao escritor coube adaptar aquele estudo erudito

Continente fevereiro 2005


CAPA

O ator Grande Otelo como Macunaíma, no filme de Joaquim Pedro de Andrade

Arte: Zenival

a uma tese personalíssima: a de que o povo brasileiro ainda não tinha formado seu caráter nacional – até então uma novidade. Nascia Macunaíma, mais para confundir do que para explicar. Passados 60 anos da morte de Mário de Andrade, Macunaíma ainda persiste como uma fonte de dúvidas e debates acalorados. O personagem malandro, vagabundo, erótico, infantil e ingênuo parece ser a pintura mais bem acabada do brasileiro mítico. É o que o poeta Affonso Romano de Sant´Anna chama de hipodigma, tomando o termo emprestado de outro estudioso do fenômeno modernista, Cavalcanti Proença. O hipodigma “é um tipo imaginário, no qual estão contidos todos os caracteres encontrados nos indivíduos até então conhecidos da espécie”. Não que isto seja um elogio. Ao menos nem sempre é um elogio. A historiadora da arte Ana Lúcia Araújo acha que Macunaíma acabou virando um estereótipo do brasileiro mestiço, preguiçoso e malandro. “Considerando que o estereótipo é uma visão simplificada e redutora do brasileiro”, ressalva ela. Já para o professor de filosofia Carlos Ramalhete, Macunaíma representa o brasileiro tanto quanto o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. “Monteiro Lobato e Mário de Andrade aceitavam os pressupostos básicos do Iluminismo e tendiam a ver os seres humanos mais como ‘indivíduos’ do que como ‘pessoas’, para usar a terminologia do Roberto DaMatta. Ou seja, o ‘indivíduo’ é o ‘cidadão’, impessoal, sujeito à lei; a ‘pessoa’ é o homem social, que confia e depende mais de sua rede de contatos e de sua ‘simpatia’. Tanto Macunaíma quanto Jeca Tatu representam o brasileiro não moderno, que é visto como algo negativo”, explica. A diferença entre os dois escritores e, por conseqüência, entre os dois personagens, seria uma questão de temperamento. Monteiro Lobato, homem dado à sisudez, queria fazer do brasileiro um americano, produtivo, empreendedor, sério e... moderno. Enquanto Mário de Andrade tinha uma capacidade maior de rir de si mesmo. “O Macunaíma é péssimo, mas é um péssimo divertido, um olhar irônico sobre o brasileiro não moderno, que é, em última instância, visto como tão fundamentalmente mau quanto por Monteiro Lobato.”, acrescenta Ramalhete. O personagem está longe de ser uma unanimidade – ainda bem. Para o crítico Miguel Sanches Neto, Macunaíma está ligado a um desejo de crítica amorosa ao brasileiro. “Até o Modernismo, havia sempre um desejo de negar os elementos nacionais que não faziam parte de uma ética européia. Com os movimentos de vanguarda, começou a ser valorizado o primitivismo, o que permitiu ao nosso romancista pesquisar algumas características comportamentais e lingüísticas do homem nacional e fazer uma positivação delas, suspendendo o julgamento moral”. Ainda que pareça despretensioso, já que Mário de Andrade afirmou ter escrito Macunaíma em apenas um mês, o personagem, com o passar dos anos, ganhou contornos cada vez mais complexos. Miguel Sanches percebe em Mário de Andrade, com seu herói sem

13


CAPA caráter, “uma tentativa de cifrar a multiplicidade do ser nacional num personagem que é como um boneco de retalhos, costurado com pontos largos”. Para ele, Macunaíma é a personificação da nossa falta de uma identidade, porque temos todas. Já o poeta Affonso Romano de Sant’Anna discorda de quem chama Macunaíma de anti-hherói. “Ele [Mário de Andrade] queria, usando suas próprias palavras, criar um herói-ssíntese, que ele assim define: ‘os heróis-ssínteses, à antiga, só escapam da fraqueza criadora e da pobreza da análise, quando assumem um vigoroso sentido de crítica humana, de alguma forma moralista’”. Neste quesito, Ana Lúcia Araújo é mais condescendente. Para ela, Mário de Andrade quis criar um

Com o passar dos anos, o personagem sem nenhum caráter ganhou personagem que reunisse todas as supostas qualidades atribuídas aos brasileiros vindos de três origens diferentes: o negro, o índio e o branco. “Ele quis mostrar que o brasileiro tem como característica a maleabilidade, a capacidade de se adaptar às situações mais diversas, que de uma certa forma não tem memória, que o brasileiro se apropria ao seu bel-pprazer da cultura do outro, sem nenhuma dificuldade”. Macunaíma está longe de ser um romance popular. Nunca foi um bestseller, a não ser entre os acadêmicos. Mas, de algum modo, ele se incorporou à tipologia brasileira. Talvez a cara que Grande Otelo deu ao personagem no filme homônimo de 1969 tenha ajudado. Hoje, macunaíma, assim, em minúsculas, é um adjetivo de troça, apenas não consagrado ainda pelos dicionaristas. Alguns, no entanto, acham que o termo está mais para ofensa. Continente fevereiro 2005

Glória Horta

14


CAPA

15

Paula Foschia

Para o bem ou para o mal, ninguém duvide de que somos, sim, uns macunaímas. “O macunaíma é o brasileiro visto por um prisma moderno, querendo se levantar contra os padrões da modernidade sem chegar a fazê-lo de fato. É uma “declaração de amor” (com muitas aspas, por favor) feita a partir dos padrões modernos”. É aqui que, para Carlos Ramalhete, o termo passa a ser nada lisonjeiro. “Ser um macunaíma é ser visto como analfabeto, primitivo e preguiçoso, por preferir um fio de bigode (que simboliza a maturidade e a respeitabilidade da palavra de alguém que faz um trato apertando a mão) a um contrato assinado”, diz. Muito mais carnavalesca é a visão de Ana Lúcia Araújo sobre o assunto. Para ela, ser um macunaíma “é ter uma experiência comum de ser brasileiro, de ter que se virar no dia-a-dia, de ter um passado muitas vezes nebuloso, onde a tradição não é importante; é ter incorporado (naturalmente ou artificialmente) elementos vindos da cultura européia e africana.” Para Miguel Sanches Neto, não há dúvidas quanto à presença do macunaíma em nossa cultura. “Há na cultura brasileira um princípio macunaímico que estaria mais nesta propensão para a mudança, uma certa falta de firmeza em nossas convicções, em nossas posturas. Deixamo-nos levar pelas circunstâncias, não fincamos pé em nada. Na política, isto é evidente. Enquanto em outros países uma sigla partidária conta com uma tradição, com um ideário estável, nós temos uma variação tão grande, partidos sendo fundados sempre por conveniência. Dentro da proposta modernista, Macunaíma era a conquista de uma consciência alegre de nossa instabilidade de identidade, mas a partir dos anos

Affonso Romando de Sant’Ana: hipodigma brasileiro Reprodução

contornos cada vez mais complexos 40 esta alegria e esta positivação da malandragem foram questionadas, e acabaram se tornando o retrato do homem movido pelo desejo de vantagem a qualquer custo. Macunaíma perdeu seu charme, virou um emblema negativo”, afirma. Hoje, quase 80 anos depois daquela primeira tiragem, Macunaíma virou um emblema e um motivo de reflexão da atualidade. Affonso Romano de Sant´Anna, por exemplo, faz menção em uma antiga crônica sobre o fato de Macunaíma ter deixado a sua consciência na ilha de Marapatá, antes de partir para suas aventuras, igualzinho aos exploradores de borracha que deixavam a consciência antes de se meterem na mata. “Tem muita gente que deixa a consciência nessa ilha para não se atormentar”, reflete. Mais radical, Carlos Ramalhete diz que Macunaíma faz mais sentido, hoje, como arqueologia do pensamento do que como obra de arte. “O pensamento que orientou aquela visão do brasileiro já está despencando ladeira abaixo, graças a Deus; as críticas, os parâmetros de descrição já estão todos tão defasados que é difícil percebê-los sem um certo estudo. Nem o menino da cidade nem o moleque da roça conseguem entender de que ponto o Mário de Andrade se colocou para escrever o Macunaíma, que parece mais nonsense que sátira”. Para o crítico Miguel Sanches Neto, Macunaíma é utilíssimo para se pensar o século 21. “Somos um povo macunaímico, com um pé na selva e outro na alta tecnologia. Mas o que mudou, principalmente, é que isso hoje não é visto com a alegria e com o entusiasmo do fim dos anos 20, quando nossa falta de caráter era um elemento que nos distinguia no panorama internacional. O princípio macunaímico é hoje uma de nossas mazelas, atinge todos as esferas sociais e é um entrave para a construção do país civilizado”, conclui. •

Ana Lúcia Araújo: estereótipo do mestiço malandro Reprodução

Miguel Sanches: um pé na selva e outro na alta tecnologia

Continente fevereiro 2005


16

Grupo dos Cinco, de Anita Mafaltti, 1922: Tarsila do Amaral, Mário e Anita (ao piano), Oswald de Andrade e Menotti Del Pichia

Poesia-manifesto

em busca do novo

M

Mário de Andrade soube reconhecer o momento exato para a divulgação do seu livro Paulicéia Desvairada, escrito em fins de 1920, mas somente publicado em 1922. Este livro deixava para trás o poeta “imaturo” Mário Sobral, autor de Há uma Gota de Sangue em Cada Poema (1917), onde a lamentação pelo sangue derramado na 1ª Guerra Mundial era feita com tinta parnasiana. Com o engajamento na Semana de Arte Moderna, o seu destino intelectual sofreria uma reviravolta incomum, quando passaria a atuar em vários campos de ação da literatura e da arte e se transformaria numa das figuras mais importantes do cenário cultural brasileiro até 1945, quando morreu. Paulicéia Desvairada é o primeiro registro documental do movimento de 22, levado a conhecimento, ainda na condição de inédito, aos jovens aspirantes a modernistas ligados a Mário de Andrade. O “Prefácio Interessantíssimo”, ensaio-manifesto erudito em prosa e contendo também versos, chegava explodindo parte de uma concepção anterior de poesia, introduzindo a literatura brasileira na modernidade. O poeta contribuiu efetivamente para a renovação poética com a utilização desabrida do verso livre, em contraposição aos usos já tornados excessivos de métrica e rima pelos parnasianos, simbolistas e poetas da transição pré-modernista. São Paulo era a cidade cosmopolita por

Continente fevereiro 2005

À parte o pitoresco e o piadismo, Mário de Andrade continua sendo um poeta em permanente estágio de busca de uma expressão nova, de identidade própria, da palavra “exata” e centrada na modernidade Luiz Carlos Monteiro


CAPA excelência do Brasil, da industrialização nascente e das importações de costumes e objetos franceses, de “luz e bruma”, “forno e inverno morno”. Os dois últimos versos do poema “Inspiração” refletem bem o seu estado emocional e intelectual, dividido entre o lirismo neo-romântico e a constatação do macaqueamento e, grosso modo, mimetização de nossa cultura em comparação com a européia: “São Paulo! Comoção de minha vida.../ Galicismo a berrar nos desertos da América!”. Mesmo com o conhecimento “técnico” das formas poéticas antigas e em voga, o poeta de Clã do Jaboti não se livraria de um certo derramamento, de um certo falar elastecido, onde às vezes exagera na altura e no tom. Num ensaio de Antonio Candido, logo após a publicação de Poesias (1941), a empatia do crítico em relação ao poeta não impede que aquele deixe de apontar, com sinceridade, que “Mário de Andrade é um poeta que gosta sempre de impor sua presença; de falar alto através dos seus modismos de expressão e de ser”. Esse era o Mário de Andrade que julgava severamente outros poetas e escritores, tanto aconselhando quanto fustigando novos, canônicos ou experimentados, tendo, por exemplo, retirado a aura de gênio conferida a Castro Alves e abafado a vocação poética de Luís Aranha, a quem classificou como poeta “ginasial” e “preparatoriano”. No segundo livro, Losango Cáqui (1926), predomina o que o crítico João Luiz Lafetá chamou de “nacionalismo estético”. Tendência que redundará, futuramente, no apoio político ao tenentismo de 30 e ao constitucionalismo de 32. Aqui, uma amostra de poema antológico e bem-realizado é “Cabo Machado”, onde o poeta parece ir marchando atrás de seu personagem desconcertante, militar e delicado, lutador de rua e dançarino, que prefere a pasmaceira nacional do “arbitramento” à entrada na guerra: “Mas traz unhas bem tratadas/ Mãos transparentes frias,/ Não rejeita o bon-ton do pó-de-arroz./ Se vê bem que prefere o arbitramento./ E tudo acaba em dança!/ Por isso Cabo Machado anda maxixe./ Cabo Machado... bandeira nacional!”. Neste poema, já diminui sensivelmente o emprego dos exclamativos e reticências, podendo-se notar ainda a semelhança da expressão “E tudo

17

acaba em dança!” com a atualíssima “E tudo acaba em pizza!”, popularizada pelo inconsciente coletivo, demonstrando a grande preocupação do poeta em registrar a fala originariamente popular e cotidiana. Faz parte de Remate de Males (1930) “Eu sou trezentos”, onde ele continua a desenvolver a multiplicidade diccional que vinha caracterizando sua poesia, e que somente cessará com os livros políticos finais: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,/ Mas um dia afinal eu toparei comigo.../ Tenhamos paciência, andorinhas curtas,/ Só o esquecimento é que condensa,/ E então minha alma servirá de abrigo”. Sem esquecer da qualidade estética de muitos poemas seus, quando desvestidos do pitoresco e do piadismo, Mário continua sendo um poeta em permanente estágio de busca de uma expressão nova, de identidade própria, da palavra “exata” e centrada na modernidade. Em “Canção”, de A Costela No poema “Eu sou do Grão Cão (putrezentos", ele continua a blicado em Poedesenvolver a multiplicidade sias, 1941), o fôlego extensivo e diccional que vinha desmedido em caracterizando sua poesia, conjunto com o encadeamento e a e que somente cessará com simultaneidade se salientam na prios livros políticos finais meira estrofe, com o primeiro verso prolongando o título: “...de árvores indevassáveis/ De alma escusa sem pássaros/ Sem fonte matutina/ Chão tramado de saudades/ À eterna espera da brisa,/ Sem carinhos... Como me alegrarei?”. A recuperação do lirismo e da versificação neo-romântica se processa no refrão, que evolui de dois, três até os quatro versos finais do poema: “Na solidão solitude,/ Na solidão entrei,/ Na solidão perdi-me/ Nunca me alegrarei”. Escrito poucos dias antes de sua morte, o longo poema “A Meditação sobre o Tietê”, do póstumo Lira Paulistana (1947), faz um balanço do percurso poético e do empenho político mário-andradino. À vontade de libertação política do sujeito se mescla uma grande consciência social e artística que o aflige. A “Meditação” se apresenta como um testemunho definidor de sua vida em termos da angústia e perplexidade individuais, a que se somam o ceticismo e a impotência para interferir diretamente nos rumos do país, acossado ainda pela presença inesquivável, destrutiva e demasiado próxima da guerra e da morte. • Continente fevereiro 2005


CAPA

Fotos: Lucca Barreto

18

Coco caiana de crioula, PE

Mário de Andrade

e a música do Nordeste

A ligação vital de Mário com a música do Nordeste se deve a uma empatia

O Carlos Sandroni

O interesse pela cultura popular – e em particular pela música – da região Nordeste do Brasil foi um traço marcante da vida de Mário de Andrade. Começou a se manifestar, que se saiba, lá pelo meio da década de 1920, quando ele lecionava piano no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e pedia a seus alunos, oriundos da região, que lhe cantassem cocos e outras músicas típicas, devidamente anotadas e guardadas em seus arquivos. Este interesse foi mais longe em dois momentos: o primeiro, as viagens de 1927/1929; o segundo, a Missão de 1938.

Continente fevereiro 2005

Entre 1927 e 1929, Mário de Andrade fez duas viagens ao Norte/Nordeste, relatadas no livro O Turista Aprendiz. Duraram cerca de três meses cada uma: a primeira, sobretudo pelo Norte, de maio a agosto de 1927; a segunda, só ao Nordeste, de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. A primeira viagem parece ter sido concebida como uma viagem coletiva dos modernistas paulistanos, à maneira da que fizeram pelas cidades históricas de Minas em 1924, mas que acabou malograda. Mário conta que se previa a ida de vários de seus companheiros literários, mas quando se viu a bordo do navio, no porto


CAPA

Banda cabaçal “Os Pereiras” de Triunfo, município do sertão paraibano

do Rio de Janeiro, percebeu que só estavam, além dele, Dona Olívia Guedes Penteado (aristocrata que presidiu o mais importante salão modernista) e suas duas sobrinhas. Conta Mário: “Dona Olívia, com aquele sorrizinho dela, me fala: ‘Você deve estar bem descontente de ser o único homem da expedição...’ ‘Se eu soubesse que era assim, não vinha, Dona Olívia’.” O escritor se viu obrigado a como que escoltar suas companheiras de viagem, entre outras coisas comparecendo a cerimônias

arte Antônio Bento de Araújo Lima, que lhe facilitam os contatos com os cantadores, Mário vai dedicar a maior parte de seu tempo ao trabalho de pesquisa e transcrição em partitura da música tradicional do Nordeste. Disso resultará uma enorme coleção musical, a maior já feita no Brasil por um pesquisador individual sem auxílio de meios mecânicos. O trabalho é realizado em Pernambuco, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, mas é neste último Estado que Mário passa mais tempo. Depois da

emocional e artística e à maneira como ele pensava o Brasil oficiais que eram oferecidas a Dona Olívia por autoridades de lugares por onde passavam. A desistência dos companheiros literários de participar da “expedição” diz muito do papel singular desempenhado pelo autor de Macunaíma na vida cultural brasileira. A segunda viagem foi mais importante. Desta vez não havia nenhum projeto coletivo: Mário sabe desde o início que vai sozinho e que vai poder organizar o seu tempo em função dos objetivos a que se propõe. O subtítulo que está no manuscrito dos diários de 1928-229 já diz tudo: “O turista aprendiz: viagem etnográfica”. Com a ajuda de amigos, como o poeta Ascenso Ferreira, o futuro folclorista Luís da Câmara Cascudo, o crítico de

sua morte, a discípula Oneyda Alvarenga vai organizar os manuscritos – que o autor sonhara em transformar num único livro, que se chamaria Na Pancada do Ganzá – numa série de publicações independentes, incluindo os três volumes das Danças Dramáticas do Brasil, o Música de Feitiçaria no Brasil, Os Cocos, e finalmente As Melodias do Boi e Outras Peças. A terceira viagem de Mário não foi feita em carne e osso. Em 1936, ele fora nomeado pelo prefeito de São Paulo chefe do Departamento de Cultura da Cidade. Isto possibilita que ele conceba, organize e dirija uma viagem feita agora em outros moldes: uma equipe de quatro pessoas, munida dos mais modernos aparelhos para Continente fevereiro 2005

19


20

CAPA

Pífanos de Triunfo, PB

registro de som e imagem, que vai passar cinco meses no Nordeste e no Norte do país, gravando, fotografando e filmando manifestações da cultura popular. Mas o próprio Mário não faz parte da equipe, por demasiadamente ocupado com as tarefas de direção do Departamento. Pesquisas são feitas em Pernambuco, Paraíba, São Luís do Maranhão e Belém do Pará (anotações serão feitas também, de passagem, no Ceará e no Piauí). Desta vez, é a Paraíba que recebe a maior cota de pesquisas: a capital, o litoral norte, o Brejo e o Sertão serão visitados, totalizando mais de 15 localidades, enquanto em Pernambuco só se fazem gravações no Recife, Arcoverde e Tacaratu, e nos outros Estados, só em suas capitais. A enorme coleção resultante, incluindo discos, fotos, filmes, objetos e documentos diversos, será guardada na Discoteca Pública da cidade de São Paulo, hoje Discoteca Oneyda Alvarenga, integrada desde os anos 1980 ao Centro Cultural São Paulo. A ligação vital de Mário com a música do Nordeste se deve, sem dúvida, a uma empatia emocioContinente fevereiro 2005

nal e artística, cuja apoteose está possivelmente em seu encontro, ocorrido em 1929, com o cantador de cocos potiguar Francisco Antônio Moreira, o Chico Antônio. Mas ela se relaciona também à maneira como ele pensava o Brasil, terra do herói-sem-nenhum-caráter, Macunaíma. A música do Nordeste é vista como uma espécie de muiraquitã, a pedra mágica que no romance-rapsódia guarda o segredo da identidade. Para Mário, a música é a “mais unanimizadora das artes”, a forma de expressão socializadora e dinamogênica por excelência; e o Nordeste, uma parte do Brasil mais imune ao que seriam as influências negativas do urbanismo e do cosmopolitismo. Suas viagens se inserem assim em um projeto político-social no sentido lato, o de construir um caráter brasileiro a partir da cultura popular. Seja como for, o fato é que os resultados das “três viagens” de Mário de Andrade pela música nordestina, tanto no que se refere aos acervos, como aos estudos que pôde fazer, permanecem hoje como uma referência única e primordial para a etnomusicologia e para a cultura brasileira. •


Hans Manteuffel

CONTEMPORANEIDADE

A utopia mora ao lado

Jurandir Freire Costa reflete sobre o culto ao corpo, a moral do espetáculo e outras decorrências da crise ética que nos afeta Luciano Trigo

Interesse corpocêntrico: abandono do cuidado com o mundo de todos

21


22

CONTEMPORANEIDADE

D

ois objetivos têm movido o trabalho de Jurandir Freire Costa nos últimos anos: interpretar os desvios da sociedade contemporânea e apontar saídas para seus problemas mais crônicos, a partir de uma reflexão sobre a cultura e a formação das identidades pessoais. Em O Vestígio e a Aura, recém-lançado pela editora Garamond, o psicanalista pernambucano radicado no Rio de Janeiro chama a atenção para o modo como a ética tem sido negligenciada pela sociedade brasileira. Jurandir critica sobretudo o que chama de “moral do espetáculo”, ou seja, a moral da vida como entretenimento e a conversão geral ao ideal da felicidade das sensações. A mídia, é claro, tem seu papel nessa crise, pelo seu absoluto descompromisso com a ética. Jurandir não hesita em afirmar que as elites são responsáveis O Vestígio e a Aura, pelas mazelas sociais do país, como a criminalidade, num compor- Jurandir Freire Costa, Editora Garamond, 243 páginas, tamento que é, em última análise, suicida. Ele não se refere apenas R$ 30,00. às elites econômicas, mas ao grupo formado pelos que têm poder político, artístico, intelectual e mesmo científico e espiritual. Não se trata, portanto, de acusar “os ricos” pela perpetuação da injustiça sócioeconômica ou da irresponsabilidade cultural. Na verdade, a sua crítica às elites está associada a uma reflexão sobre a moral do espetáculo que está prevalecendo em nossa sociedade: o entretenimento e a felicidade sensorial estão se tornando os ideais de vida das pessoas. “Mudou o ideal de felicidade, que hoje é o bem-estar corporal, o prazer físico”, afirma Jurandir. “Além desse ideal de felicidade sensorial, há uma idéia da vida como entretenimento. Ou seja, a pessoa deixa de pensar nas conseqüências morais do que faz. Quem compra droga simplesmente desliga o botão que avisa qual será a conseqüência disso. Parece que tudo é uma brincadeira. Multidões de pessoas que deveriam ter responsabilidade agem dessa forma. Na moral do espetáculo, o outro é sempre o responsável pelas mazelas, e não eu. Eu estou corrompendo, sou venal, sou leviano, mas o que eu faço não tem nenhuma conseqüência. O que o vizinho faz com certeza terá. É uma posição típica dessa falta de compromisso. O viciado em cocaína, por exemplo, passa a não sentir prazer com mais nada. Vive da angústia da próxima dose. Já o usuário social, ao colaborar com o comércio ilegal de drogas e com a marginalidade urbana, paga um preço muito caro: não pode andar com liberdade, tem de gastar mais com mecanismos que assegurem sua vida ou sua propriedade. Passa a viver numa sociedade sitiada, situação que o dinheiro financia.” A subordinação à moral do entretenimento levou a elite a descartar valores tradicionais, a cultivar a obsessão com o corpo, a consumir drogas sem limites. A crise moral fez com que a autoridade fosse substituída pela celebridade. Na tela da TV e nas colunas sociais desfilam personagens que são vistos com inveja, mas não com respeito, já que muitas vezes são reconhecidamente levianos e corruptos. Nem a autoridade dos pais se manteve, já que estes se recusam a ser vistos como portadores de tradições. Eles querem ser juvenis a todo custo e ocupar o mesmo espaço dos filhos, que acabam por perder referências fundamentais.

Continente fevereiro 2005


Wilton Junior / AE

Jurandir Freire: “É preciso reviver a crença no ideário ético que é o nosso – lutar contra injustiças e desigualdades; criar oportunidades de exercício da solidariedade”

“Esta é a mais nefasta seqüela da moral do espetáculo: fazer-nos crer que nossas vidas cotidianas, nossas obrigações cotidianas, nossas aspirações cotidianas, nossas crenças morais cotidianas são irrisórias se comparadas à tolice colorida do entretenimento. Isto é fatal. Ou respeitamos nossas escolhas, ou dignificamos nossos esforços, ou reaprendemos a admirar e a tomar como modelo os que fazem, no dia-a-dia, esta comunidade e esta nação, ou nos tornamos fantoches supérfluos, espectadores passivos da vida-espetáculo,” raciocina Jurandir. A cultura da busca do prazer explicaria em parte o fenômeno das drogas e da vulgarização do sexo? Jurandir é reticente: “Reluto bastante em afirmar que vivemos em uma cultura do prazer. O que digo é que vivemos na era da aspiração à felicidade sensorial. Uma coisa é imaginar um ideal de felicidade que dependa do desempenho do corpo físico; outra coisa é afirmar que este ideal traz prazer. Poucas vezes, na história deste país, vimos tantas pessoas se privarem espontaneamente de tanto prazer disponível, do sexo à comida, em nome da performance física: saúde, longevidade, juvenilidade, boa forma... Da mesma forma, o fenômeno da promiscuidade é mais um dos

mitos urbanos incentivados pelos meios de comunicação de massa. As pessoas ganharam mais liberdade sexual, mas esta liberdade não redundou em promiscuidade. A maioria dos indivíduos continua possuindo critérios para distinguir entre um comportamento liberal e um comportamento promíscuo.” Jurandir rejeita as teses moralistas de quem quer o retorno a um passado repressor. Ele defende a busca do prazer, desde que isso não represente a ruptura do compromisso social, nem o colapso da autoridade, sobretudo da autoridade familiar. Para Jurandir, a questão das drogas está virando a nossa cultura de cabeça para baixo: “Antes, quem tinha autoridade e poder não pedia a outro um meio que o tornasse feliz, como acontece agora. É uma ruptura completa. Os líderes políticos, espirituais, científicos eram fontes autônomas de satisfação. Eles detinham a chave do que as pessoas queriam. Não se pode inverter essa relação e achar que a cultura ficará em ordem. Quem sabe que monopoliza sua felicidade dá as cartas e não o respeita. Chega ao ponto de não respeitar a vida. Nos assaltos em que as pessoas são mortas, nota-se que a vida do outro é irrelevante. Que valor aquela pesContinente fevereiro 2005


24

CONTEMPORANEIDADE soa tem para quem está com a arma na mão, a não ser o dinheiro? Nenhum. É vista como integrante de uma elite que não se respeita, que diz o tempo todo que depende daquele miserável. É encarada como alguém que vive da superexploração dos miseráveis. Essa distorção não começou com o miserável que porta a arma, mas, sim, com a elite que deu a norma da destruição. Não há um grupo para orientar a sociedade, buscar uma trégua. O grupo dos miseráveis e o grupo da elite querem a mesma coisa. Os dois buscam ser irresponsáveis diante da vida, gozar o quanto puderem. Não têm compromisso com os filhos e ironizam todo tipo de preocupação com o outro. Não existe guerra civil, mas acordo de matança mútua”. Para o autor de O Vestígio e a Aura, a chamada corpolatria é um fato cultural com uma face voltada para o cuidado irresponsável do corpo e outra para a moral do governo autônomo de si. Jurandir evita, tanto quanto possível, o clichê acusatório dos que vêem em qualquer preocupação com o corpo físico um sinal de narcisismo, hedo-

nismo, egoísmo ou coisa parecida. Ou seja, ele reconhece que o crescente interesse pelo corpo pode ser fonte de liberdade, de inovação de ideais de felicidade, de curiosidade científica ou mesmo de aperfeiçoamento espiritual. “É preciso mostrar que existem elites responsáveis pelo destino das comunidades às quais pertencem e aquelas que se demitem desta responsabilidade, de forma inconseqüente e leviana. Ao difundirem a moral do espetáculo, da celebridade, do entretenimento e da felicidade das sensações, elas reforçaram uma visão de mundo na qual os objetivos da criminalidade urbana se tornam inteligíveis. Não pretendi esgotar o sentido de um fato social tão grave quanto a violência urbana. Pretendi, apenas, contribuir para o entendimento do que motiva alguém, como um delinqüente das cidades, a demonstrar tanto desprezo pela vida de suas vítimas.” O fato é que vivemos hoje no Brasil uma dissociação inédita entre poder e autoridade, que pode ter conseqüências sombrias para a humanidade – tema que Ju-

Miriam Fichtner / TYBA

“O grupo dos miseráveis e o grupo da elite querem a mesma coisa. Os dois buscam ser irresponsáveis diante da vida, gozar o quanto puderem. Não têm compromisso com os filhos e ironizam todo tipo de preocupação com o outro. Não existe guerra civil, mas acordo de matança mútua” “”

Continente fevereiro 2005


randir já abordou em outro livro, Violência e Psicanálise: “A dissociação entre poder e autoridade foi uma experiência de ditaduras, totalitarismos e Estados teológicos. Democracias com poder sem autoridade é uma coisa nova, que começamos a presenciar neste momento. Tentei mostrar quais os efeitos psicológicos da dissociação entre reconhecimento social e reconhecimento moral, ou entre moral da autoridade e moral da celebridade. As conseqüências são nocivas, em especial para as crianças e os mais jovens, que perdem a noção do que devem ter como exemplo de conduta para conciliar admiração social e moral. Quem está embaixo não respeita mais quem está em cima, e não é somente pelo consumo de drogas. Antes, a autoridade vinha de pessoas ou instituições com poder político, econômico ou social que se conduziam de forma a merecer o respeito e a admiração. Hoje, quem está no topo do poder não tem mais a admiração moral. Acredita-se que essas pessoas estão lá porque são levianas, venais, em alguns casos corruptas. É a fratura entre a base da ascensão social e a base de valores. Essas figuras inspiram ao mesmo tempo inveja e desprezo. Inveja pelas posses materiais e pelo poder social. Desprezo porque todos sabem que aquelas pessoas não têm mérito. Para chegar até lá, sobem de qualquer jeito. A cultura do espetáculo pede a exposição: aparecer independentemente do talento, do esforço e da disciplina. Essas celebridades não podem servir de exemplo moral e social, muito menos para crianças. Cada vez que os pais oferecem aos filhos essas celebridades como modelo, perdem a própria autoridade. A criança sabe que os pais não são um milésimo daquele charme e daquela vida glamorosa e perdem o respeito por eles.”

Renata Mello / TYBA

“Esta é a mais nefasta seqüela da moral do espetáculo: fazer-nos crer que nossas vidas cotidianas, nossas obrigações cotidianas, nossas aspirações cotidianas, nossas crenças morais cotidianas são irrisórias, se comparadas à tolice colorida do entretenimento”

“Quem compra drogas simplesmente desliga o botão que avisa qual será a conseqüência disso”

Continente agosto 2003


26

CONTEMPORANEIDADE

Divulgação / TV Globo

A arte imita a vida: Juliana Paes interpreta Jaqueline Joy, celebridade instantânea da telenovela Celebridade, que tinha o “aparecer” como ideal, independentemente do talento e do esforço

Apesar do cenário sombrio, Jurandir é otimista. Ele acha que devemos lutar, por exemplo, contra a idéia de que a História chegou ao fim, e redefinir o que até 30 anos atrás chamávamos de utopia: “As utopias salvacionistas, com certeza, estão com os dias contados. A utopia, a meu ver, consiste na dificílima tarefa de fazer os indivíduos acreditarem que aquilo que eles fazem, vivem e pensam é tão importante quanto a vida e os modos de viver dos que são apresentados como modelos de sucesso. Concretamente, é preciso reviver a crença no ideário ético que é o nosso: lutar contra injustiças e desigualdades; lutar contra atentados ao direito de felicidade individual; criar, em qualquer lugar de convívio social, oportunidades de exercício de solidariedade. Em suma, a utopia mora ao lado!”

Continente fevereiro 2005

Mas qual seria o caminho para a sociedade brasileira sair desses impasses? “O critério é um só: o que faço por mim me impede de me preocupar com aqueles que virão depois de mim? Minha felicidade compromete a felicidade das novas gerações? Meu interesse corpocêntrico me leva a abandonar o cuidado com o mundo de todos? Esse é o ideal regulador, o princípio ético de ordem superior, ao qual todos os outros devem se subordinar. Nenhuma felicidade é boa, reta ou justa se resulta no alheamento em relação ao mundo de todos. Há figuras públicas que mantêm esses valores. Há também o pai que batalha e tem coragem de se impor ao filho, para que depois o filho agradeça. Essa resistência cotidiana é importante.” •



28

MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Poetas jovens conquistam a bela bastarda "Subtraindo o verso, o que resta da poesia?" (Tzvetan Todorov)

–A

ssim, você vai cansar seus milhões de leitores. Está levando muito a sério a sua pauta (política cultural) – diz-me um velho amigo e sugere: – Por que não fala sobre a sua poesia, que você vem escrevendo a vida toda? – E, diante de minha veemente recusa, ele me dá um livro e desafia: – Então, fale sobre este livro – e me entrega um volume graficamente refinado (parece até filhote desta revista), intitulado Invenção do Recife, edição da Fundação de Cultura do Recife, expondo à visitação pública dez novos poetas pernambucanos: Bruno Monteiro, Delmo Montenegro, Fabiano Calixto, Fábio Andrade, Jacineide Travassos, Jussara Salazar, Lirinha, Marcelo Pereira, Micheliny Verunschk e Weydson Barros Leal. Pietro Wagner e Delmo Montenegro foram mais que merecidamente escolhidos para dirigir a coleção, da qual o referido livro é o primeiro volume. No mesmo instante, emburaquei em dois dilemas, o de privilegiar apenas um entre 27 Estados brasileiros e um Distrito Federal. Mas, acalmei-me depois de ler a coletânea e verificar ali a presença de poetas que poderão se tornar conhecidos nacionalmente. Ainda por cima há aquela semidifundida opinião de que este Estado, Paranãpuka, para os caetés significando “abertura feita pelas águas nos arrecifes” ou, menos retoricamente, “água mole em pedra dura...” e o de Minas Gerais eram os mais poéticos do país – não sei se quantitativa ou qualitativamente. Continente fevereiro 2005

O segundo dilema tem tudo a ver com o que já disse nesse espaço em tempos remotos: não se deve confessar gratuitamente uma ignorância. É como presentear um saco de pólvora ao inimigo. Mas, encurralado, o jeito é dizer que não sou crítico literário ou teórico da literatura. Escrevo a duras penas os meus poemas. Para outras coisas, uso a desfaçatez do meu lado jornalista, que “não sabe de nada e escreve sobre tudo”. Vou tentar falar sobre a bela bastarda, a Poesia. Quem não gostar dela mude de página ou vá assistir ao requintado kitsch da rede Globo. Os poetas de Invenção do Recife (senti a falta, neste vol. 1, de Mário Hélio, Pietro Wagner e Cícero de Melo) pertencem a uma geração cujos componentes apareceram paralela ou posteriormente aos do Movimento de Escritores Independentes, nossa geração Marginal, que deu certa continuidade à postura informal dos marginais do Rio e de São Paulo, quando estes calavam parcialmente o seu barulho, na década de 80. Sem entrar especialmente no mérito estético dos dois grupos de poetas, a leitura das composições dos antologiados revela autores mais eruditos e mais comprometidos com o objeto formal da Poesia, com a sua estrutura. Diferentemente de mim, fogem de João Cabral como o diabo da cruz, mas sua poética afina-se com a definição do velho poeta, quando ele diz que “a poesia é a exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de organização de estruturas verbais”. Cabral sempre utilizou algum


MARCO ZERO

tipo de metrificação, conforme confessou. Mesmo num livro como Educação pela Pedra, que a princípio pensei estar diante da única tentativa bem-sucedida de aplicar à poesia moderna a métrica greco-latina, que privilegia a duração das sílabas, mas estava enganado e, até hoje, saber o que é ritmo em poesia virou minha obsessão. É possível que as pesquisas sobre ele estejam marcando passo. Os poetas discursivos de Invenção do Recife optaram pelo verso livre que, para mim, sendo livre, não é verso, principalmente quando abusa de tal liberdade e desembarca nas praias da prosa. Para o poeta Eno Teodoro Wanke, do Paraná, “alguns dos versos livres que andam por aí deviam estar é presos”. Já tive uma longa fase de verso livre, mas domesticado por algo como uma contenção rítmica (ou seja lá o que for). Mário Hélio a chama de liberdade condicional, ou vigiada. Os poetas da antologia certamente aplicaram um princípio parecido. Eles não têm versos pernetas junto a outros “com mais pés do que uma centopéia”, como alfinetou o insuperável Agripino Grieco. À falta de uma teoria do verso livre, todos os esboços que li são puro lixo. Considero aquele seu tipo domesticado uma estrutura polimétrica submetida a uma espécie de “banda” métrica (lembram-se da banda cambial?), com o estabelecimento de um mínimo e um máximo de sílabas por verso, criando uma sutil reiteração ou uma regularidade. Isso pode ser feito, claro, sem réguas e transferidores,

apenas com uma leve atenção auditiva, tornando-se um hábito, com o tempo. Mas, esqueçam o que eu disse e, se for poeta, faça como quiser o seu poema. Os dois poetas que iniciam a coletânea, se já ouviram falar de mim, sabem que considero a poesia uma linguagem simbólico-verbal, uma arte que atua essencialmente no tempo e usa o suporte espacial da página, secundariamente, para registro (verbal). Sabendo disso, creio que não os magoa o meu quadradismo, o meu não gostar de suas composições que utilizam os signos não verbais, próximos do Poema Processo, cujos próceres (tenho os recortes) julgam-no hoje apenas uma experiência juvenil válida. Experiência não é realização. A poesia concreta e a instauração práxis usam o signo verbal, e alguns de seus frutos considerei palatáveis, mas isso não significa nada, pois o meu prato favorito é feijão com charque. Gostei de Fabiano Calixto (“Isadora adeus-se”), de Fábio Andrade, que nos considera, com razão, “pó em movimento”, de Jacineide Travassos, para quem o amor é “chuva dos olhos em ilhas”, de Lirinha e seu caloroso “beijo de cera quente”, de Micheliny Verunchk, que desde menina parece contemplar uma “bicicleta (que) brilhava no deserto’, e do jovem mestre e amigo Weydson Barros Leal, que me confessa, entre corredores cibernéticos: “coração/este lugar em que quero estar.” Que a bela bastarda lhes seja a última volúpia. • Continente fevereiro 2005

29


LITERATURA

Ilustração: Lin

30

Caleidoscópio e hipertexto Novo livro do romancista luso-brasileiro Cunha de Leiradella contempla a relação escritura-leitura e o fazer literário, sob o signo da metalinguagem Sônia van Dijck

Continente fevereiro 2005


LITERATURA

C

unha de Leiradella nasceu em Portugal, viveu no Brasil durante mais de 40 anos e aqui ambientou a maior parte de sua obra. Integra a literatura brasileira e a portuguesa como dramaturgo, romancista, contista, roteirista, tendo recebido vários prêmios, como por exemplo: Fernando Chinaglia – contos, 1981; Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte – teatro, 1984; Cruz e Souza – contos, 1995 (Brasil); Plural – contos, 1990 (México); Caminho da Literatura Policial – romance, 1999 (Portugal). O personagem Eduardo da Cunha Júnior nasceu em 1987, em O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior, e tem certa responsabilidade pelo sucesso de crítica que seu criador alcançou, sempre festejado a cada nova obra que oferece ao leitor, ainda que o autor, àquela altura, não fosse um estreante nas Letras. Difícil é decidir em que consiste o principal interesse do novo livro de Leiradella, Os Espelhos de Lacan, em que reaparece o personagem Eduardo da Cunha Júnior. Sob o signo da metaliguagem, desde as primeiras páginas, contempla a relação escritura-leitura e o fazer literário. Mas, logo, nossa atenção se prende ao “enigma”: Eduardo da Cunha Júnior morreu no Caraça? Mas, por que essa galeria de homens e mulheres em demanda não se sabe bem de quê ou, talvez, de tanta coisa, que só a liberdade e a felicidade podem traduzir? Prestando bastante atenção, pode ser que o interesse do livro esteja em nos revelar a teia de incomunicabilidade que prende cada um desses homens e dessas mulheres, que, apesar disso, falam do passado, discordam uns dos outros, armam intrigas e falam de Eduardo da Cunha Júnior. Considerando que Dagoberto Palomar, na abertura da obra, informa que Os Espelhos de Lacan é “uma narra-

tiva linear, e sempre conduzida pela vontade do autor”, o melhor é começarmos a penetrar nesse livro a partir do título, que, aliás, é visto pelo mesmo Palomar como anúncio de narrativa “confusa e impenetrável a uma leitura comum”. Vejamos. Rica de significados simbólicos, a palavra “espelho” nomeia um dos objetos mais antigos. Sua presença em culturas milenares, tanto remete à observação dos corpos estelares (speculum – especulação), como lembra a verdade, a sinceridade, a pureza, o conteúdo do coração e da consciência. Como instrumento de iluminação, é símbolo da sabedoria e do conhecimento. Tanto pode ser símbolo solar, como lunar, na medida em que a Lua reflete a luz do Sol. Uno e múltiplo, entre os Vedas, fala da sucessão de formas, da duração limitada e sempre mutável dos seres, enquanto que, na literatura islâmica, permite ler passado, presente e futuro. Mas, todos sabemos que o espelho oferece a imagem invertida da realidade, ou seja: a identidade e a diferença, e, ao mesmo tempo, o mundo nele refletido não é senão um aspecto do vácuo. Como não poderia deixar de ser, o simbolismo do espelho liga-se ao da água, o que faz lembrar movimento, nascimento e renascimento, envolvimento dos corpos que dele/dela se aproximam e, evidentemente, Narciso. Sem pretensões de ser exaustiva, lembro ainda que, para o taoísmo, o homem se utiliza do homem como espelho. Não podemos ter certeza de que esteja esclarecido o sentido desse livro, a partir dessas rápidas considerações sobre os significados de “espelho”. Cunha de Leiradella usa “espelhos”, portanto é capaz de ter potencializado todos esses sentidos ao escolher o plural. Além do mais, trata-se de espelhos de Lacan. Em sua teorização, Lacan usa o espelho para descrever a formação desta ilusão que pode ser chamada de self, isto é, Continente fevereiro 2005

31


LITERATURA

Divulgação

32

Assumindo propositalmente uma atitude inovadora, já construída em obras anteriores, Leiradella oferece um livro em papel que pode e deve ser lido como hipertexto

Cunha de Leiradella: exercício de metalinguagem

como a criança dá forma a um ego, um self consciente, unificado e identificado pela palavra Eu. Portanto, muitos dos significados acima mencionados informam essa construção. Para epígrafes, Leiradella escolheu Protágoras, Samuel Joseph Agnon e, é claro, Eduardo da Cunha Júnior (com duas citações). No conjunto, esses paratextos anunciam o homem como centro da aventura a ser lida, a impossibilidade de comunicação, a relatividade da liberdade, da verdade e o caráter inatingível do Absoluto, como se Eduardo estivesse diante de espelhos, que, apesar de refletirem sua imagem, oferecem o vácuo ou um mundo aos avessos e no qual ele não consegue penetrar, por mais que o vislumbre. Mas, a aventura tarda ainda. Obedecendo ao comando da linearidade, não podemos evitar o texto de Palomar, convencionalmente publicado no jornal Novo Horizonte, de 14 a 20 maio 1994. Palomar instaura-se como primeiro crítico de Os Espelhos de Lacan, e, com esse recurso, Leiradella estabelece o tempo dos depoimentos que serão conhecidos nas páginas seguintes. Vale salientar que Palomar discute a relação escritura-leitura e festeja a chegada da “Era do Botão”, graças à qual o leitor não precisa mais seguir uma leitura linear, pois está chegada a idade do hipertexto. O artigo de Palomar impõese mesmo como hipertexto: está no pórtico e no encerramento do livro, cabendo ao leitor escolher se quer ler seu arrazoado de uma só vez ou se vai seguir a linearidade Continente fevereiro 2005

que ele mesmo sugere, e deixar para ler a continuação quando chegar à página 109, que antes foi anunciada como página 105, na rubrica que informa a continuação – o texto está em papel; por favor, relevem a falha dos instrumentos de busca, embora não falte o “botão” Fim (p. 111), que reafirma a comunicação “internética” na página 112, encimada por @. Não vou apontar o gosto surrealista de Os Espelhos de Lacan, para não repetir que o Surrealismo está na base da formação de Leiradella, coisa que ele mesmo já declarou sobejamente. Prefiro, por enquanto, ficar com a idéia de hipertexto, levantada por Palomar e sugerir que se leia, conforme a ordem que se escolha, os muitos depoimentos de Lúcia, Maurício, Marta, Jussara, Eduardo da Cunha Júnior e outros que habitam as páginas desse livro. O leitor vai encontrar Eduardo refletido em cada depoente, e cada depoente invertido no outro, pois cada um viu e conviveu com um Eduardo, do qual reconhece uma identidade e no qual encontra uma diferença, que talvez nem seja dele propriamente, mas resultante de se mirar no espelho que é o outro. E Eduardo? Vê a si mesmo, vê-se com e nos outros, em um jogo de reflexos, que tanto permite a identidade quanto favorecem a diversidade. Afinal, um homem nunca é nada ele sozinho, como assegura o próprio Eduardo em uma das epígrafes. As personagens são donas da voz narrativa, pois o livro está organizado como fragmentos de discursos de


Reprodução/AE

Jacques Lacan: espelho formando o ego

cada uma delas. Ainda que falem de seus passados, todas se encontram no presente da narrativa graças à figura de Eduardo da Cunha Júnior. Eis o elo do fio narrativo: todas conviveram com Eduardo, todas se perdem ou começam nova demanda da liberdade e da felicidade a partir de Eduardo. Mas, Eduardo, ainda que não negue os tantos depoimentos, vê a sim mesmo, a partir de si (seu passado, sua visão de mundo, seu balanço das relações com o outro), ao mesmo tempo refletido nessas tantas vozes – e isso lhe apraz. Organizado como um caleidoscópio, Os Espelhos de Lacan faz de conta que responde à pergunta que desencadeia a narrativa ou as narrativas: Eduardo da Cunha Júnior morreu, num domingo de dezembro, no Caraça? Para construir tal caleidoscópio, Leiradella reuniu um breve recorte da humanidade: médica, doutora em Letras, jornalista, putas e

LITERATURA mais alguns exemplares da raça humana, que amam, odeiam, intrigam, querem a liberdade e a felicidade e são fortemente orientados pelo erotismo. Acima de todos, eis Eduardo da Cunha Júnior, jornalista e escritor, que amou, trabalhou, fez sexo e busca a liberdade e a felicidade e detém o segredo do barracão do quintal. Se ele morreu ou não no Caraça é o que menos importa. Importa saber que ele buscou e que esteve com tantos outros que estavam em demanda. Leiradella, além de fazer da aventura de Eduardo da Cunha Júnior um caleidoscópio, constrói Os Espelhos como fragmentos reunidos de sua própria obra, e, com isso, reafirma o caleidoscópio. Traz, para o livro novo, trechos de obras anteriores, retira as epígrafes de autoria de Eduardo de suas falas (que já estão em O Longo Dia de Eduardo da Cunha Júnior) e retoma a dúvida desencadeadora da obra de nascimento de sua personagem: Eduardo está ou não está morto? Para isso, combina o coloquial com o palavrão e o calão, citações em latim com a mais notória obviedade do lugar-comum, e faz Palomar ser o primeiro crítico deste livro, para que o leitor reencontre essa personagem tão dedicada à obra leiradelliana desde livros anteriores. Pintando uma atmosfera surreal, Leiradella oferece situações exemplares do homem em busca da felicidade, e, como ainda não a encontrou, Eduardo da Cunha Júnior não pode ter morrido no Caraça. Assumindo propositalmente uma atitude inovadora, já construída em obras anteriores, Leiradella oferece um livro em papel que pode e deve ser lido como hipertexto – no caso, cabendo ao leitor a escolha das páginas, para continuar a leitura. Apesar do tom blaguer, Leiradella confirma suas temáticas escolhidas: a liberdade e a busca da felicidade, na construção do self nos espelhos de Lacan. Enquanto speculum, este livro nos permite contemplar exemplares da raça humana, em suas contingências; só nos colocamos como se fóssemos o Hubble, se quisermos estabelecer anos-luz para alcançarmos a liberdade e a felicidade, esteja ou não vivo Eduardo da Cunha Júnior. Enquanto isso, no passado, no presente, no futuro, Eduardo da Cunha Júnior vive, na literatura de Leiradella, para nos lembrar que a sabedoria consiste em saber que minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro, como ensina uma das reflexões eduardianas. • Os Espelhos de Lacan, Cunha de Leiradella, Editora Ciência Moderna, 111 págs., R$ 19,00.

Continente fevereiro 2005

33


34

LITERATURA Ilustração: Zenival

Anotações de um tradutor Sonetos de Shakespeare, dedicados a Henry Whiothesley e Emília Lanier, incorporam extravagâncias comuns à sua época, como gracejos grosseiros e metáforas incoerentes, e também jogos audaciosos de palavras e passagens líricas incomparáveis Milton Lins

O

s sonetos de Shakespeare foram escritos, provavelmente, entre 1592 e 1606. São dedicados a duas personalidades muito diferentes: Henry Whiothesley, conde de Southampton, nobre da corte elisabetana, e Emília Lanier, cortesã formosa e famosa pela relação de amor com o grande poeta, que teve inúmeros amantes no ambiente londrino em que viveu e brilhou aquele gênio inglês. Emília era filha de Baptist Bassano, músico da rainha, de naturalidade italiana. Ela própria, uma enamorada da música, tocava espineta, instrumento musical de teclas e cordas, precursor do cravo e semelhante ao virginal. Muito jovem, era de extrema beleza, e sua origem meridional, morena, chamava a atenção pelo tom pouco comum da

Continente fevereiro 2005

pele e perfeição das linhas corporais. Seus cabelos escuros contrastavam com as cabeleiras louras, e seus olhos olivados se opunham aos olhares azuis das mulheres inglesas. Teve múltiplas experiências amorosas. Embora não se constituísse uma prostituta, era uma aventureira disputada. Muito precocemente ficou grávida do Lorde Chanceler e conseguiu um casamento de acomodação, aos 23 anos, com o também músico William Lanier. Emília Lanier ficou conhecida como a Dama Morena pela morenidade de sua pele oriunda do meio-dia europeu. Está explícito que o interesse de Shakespeare pelo jovem mecenas, conde de Southampton, era compartilhado igualmente por Christopher Marlowe e por Barnabé Barnes, todos moços de talento extraordiná-


LITERATURA

rio. Os três se inclinavam não só perante a beleza chamativa do conde, mas à sua riqueza, seu prestígio, sua influência social e política, sua proteção, e a convivência com seus amigos. Mais adiante da relação estabelecida, a Dama Morena entrou em dupla e em receptivo triunvirato com o conde e com William, caracterizando o que os franceses chamam um ménage à trois, com ciúmes recíprocos. O fato é que os sonetos, do número 1 ao número 126, têm o conde de Southampton como alvo principal, e, do 127 ao 154, a musa passa a ser the dark lady. E o mais importante é que essa poesia encomendada ou “de circunstância” tenha chegado ao nosso tempo, encantando-nos pela beleza e fascínio exercidos ao primeiro contato. São sonetos clássicos, adornados pelo conteúdo e pela forma personalíssima e inovadora dos três quartetos com dístico final, caracterizadores da forma fixa shakespeariana. Nas traduções, tivemos que nos habituar com a troca e o jogo constantes de palavras, as repetições intencionais, as assonâncias que muitas vezes emprestam, ao nosso gosto, o encanto próprio do verso shakespeariano, procurando traduzi-lo no alexandrino ou no verso de 10 sílabas. Na verdade, os decassílabos e os dodecassílabos são metros utilizados nos mais belos sonetos em todas as línguas ocidentais. Apresentamos, assim, indiferentemente, as duas metrificações para traduzir estes sonetos. Em ambas logramos incorporar ou perder palavras dos originais. Soberanos devem ser o sentido, a compleição das imagens do autor e sua conseqüente exibição da melhor maneira conseguida por quem se propôs a interpretá-lo, seja com 10 sílabas, seja com 12. Ao longo dos escritos há uma onda de modificações de temas ou de enfoques, como a insistência no aconselhamento ao conde de sua perpetuação com um filho que continuaria a sua beleza e o seu talento; a abordagem das frustrações, quando Whiothesley partiu em vilegiatura com a amada dele, Shakespeare, que a imortalizou como a “Dark Lady”, a “Dama Morena”; a aparente recuperação do amor e da atenção daquela descendente de italianos; a real admiração que demonstra sentir pelo talento de pintor do ídolo masculino, que a posteridade não reconheceu e que se perpetuou somente nestes poemas, como musa inspiradora e suporte financeiro e social do poeta; a

saudade, acentuada nos versos – mais ao amigo do que à amiga –, parecendo que o amor do conde era o seu grande orgulho de cidadão e homem cerebral, amor paterno-filial, o da ambígua dama, amor carnalmaterial, e seu grande prazer de homem-libido. Em alguns sonetos pode-se vislumbrar, no presente, uma conotação de homossexualidade. Aliás, quem se propuser a procurar ou acentuar esses indícios irá encontrá-los, se levar em conta, por exemplo, o emprego do substantivo amor ou do verbo amar em relação ao conde. Na leitura, muitas vezes identificamos conclusões incongruentes ou sem sentido; no entanto, mais à frente, nos deleitamos com imagens inusitadas para o ouvido e a sensibilidade, e conclusões inteligentes que nos encantam o raciocínio. Percebe-se igualmente o enorme valor que o poeta dava às estações do ano, relacionandoas com as atitudes tomadas e os sentimentos. Não conseguia disfarçar o horror que lhe causava o inverno, a pouca significação dada à primavera, a visão desconfiada do outono, simples preparador para a volta ao odiado tempo frio. Sua aversão era tamanha que jamais citou o tombo ou o acúmulo de neves nas ruas e caminhos. O verão era a sua alegria, seu modus vivendi; o verão poderoso lhe transmitia vida e entusiasmo. O apelo à sua Musa especial, que nomeia Décima, a mais importante, que nem chega a identificar (e era o conde!), deixa as outras Nove em fila indiana. Eram Erasto, (do Amor), Clio (História), Euterpe (Música), Tália (Comédia), Melpômene (Tragédia), Terpsícore (Dança), Polímnia (Poesia lírica), Urano (Astronomia) e Calíope (Eloqüência). No estilo de William Shakespeare existem extravagâncias comuns à sua época. Pouca clareza. Gracejos grosseiros, metáforas incoerentes, afetação, mau gosto, inclusive em alguns sonetos, elaborados com cuidado para agradar ao conde de Southampton, seu mecenas. Há ligações e jogos audaciosos de palavras. E há também passagens líricas incomparáveis, com análise da Natureza e do Tempo. O Tempo, com T maiúsculo, era o grande inimigo que identificava com o envelhecimento temido e com a Morte. “Impulsivo e imprevisível como Hamlet, Shakespeare é quase tão louco quanto Ofélia.” Não obstante, ninguém o ultrapassou, até hoje, no cotejo entre o sonho e a realidade. Continente fevereiro 2005

35


36

LITERATURA

SONNET XXXVIII

SONNET CXLV.

How can my muse want subject to invent, While thou dost breathe, that pour´st into my verse Thine own sweet argument, too excellent For every vulgar paper to rehearse?

Those lips that Love´s own hand did make Breath´d forth the sound that said, ‘I hate’, To me that languish´d for her sake: But When she saw my woeful state,

Como é que a musa quer-sse sujeitar ao invento, Enquanto, ao respirar, derramas no meu verso, Com rara perfeição, o teu próprio argumento, Só para recitar vulgar papel adverso?

Aqueles lábios são ações do Amor Sopradas pelo som que diz: ‘detesto’, Para mim que chorei com todo ardor, Quando ela viu o meu lamento presto.

O, give thyself the thanks, if aught in me Worthy perusal stand against thy sight; For who´s so dumb that cannot write to thee, When thou thyself dost give invention light?

Straight in her heart did mercy come, Chiding that tongue, that ever sweet Was used in giving gentle doom; And taught it thus anew to greet:

Agradece a ti mesmo, a mim deixa fazer Leitura de valor, oposta na visão; Para quem tolo for, nem te logre escrever, Quando tu queres dar à luz tua invenção?

Bem do seu coração parte o bom tino, Ralhando com a língua, a luminar Usada para dar doce destino, E instruída outra vez para saudar:

Be thou the tenth muse, tem times more in worth Than those old nine which rhymers invocate; And he that calls on thee, let him bring forth Eternal numbers to outlive long date.

‘I hate’ she alter´d with an end, That follow´d it as gentle day Doth follow night, who like a fiend From heaven to hell is flown away.

Sejas a musa dez, dez vezes mor valor Que as outras nove mais invocam-nnas os bardos, (E aquela que te chama, afasta-aa por favor), Para sobreviver, são só eternos fardos.

‘Detesto’, ela explodiu com expressão, E o que se viu foi um clarão de aurora Seguir a noite; quem prefere o cão, Do céu para o inferno – vai embora.

If my slight muse do please these curious days, The pain be mine, but thine shall be the praise.

‘I hate’ from hate away she threw, And sav´d my life, saying – ‘not you’.

Se à minha musa leve agrada tal ardor, A minha dor é minha, a tua é meu louvor.

“Detesto” – e seu desgosto asseverou: “Só gosto de você” – e me salvou. •

(Excerto de conferência do autor na Academia Pernambucana de Letras, em março de 2004).

Continente fevereiro 2005


POESIA

Poemas de Lau Siqueira figos maduros

circunstância

poeta interino

ai de mim com essa figueira crescendo dentro sem saber direito o momento da poda ou da colheita

o poema é sempre um espetáculo um pouco mais denso

todo dia substituo um cidadão de jeans san dálias e cabelos gris por um martelo e prego sílabas no branco da folha branca

ai de mim que não entendo de árvores que não com preendo direito o que elas dizem o que fa zem como agem na hora do corte e depois na transcendência das figueiras nem sei se a casca grossa no caule leitoso com o tempo terá uma fibra impermeável ai de mim que percorro a mansidão invisível como um galo cumprindo o ofício das manhãs áries nos sulcos da manhã que me veste vou comungando com as folhas das árvores respirando cada orvalho no sumidouro da mata vou pelos atalhos mais seguros vou mitigando entre pedras trôpego às vezes mas sem medo da decência da expressão e da alegria de amar nos sulcos da manhã que me veste vou comungando com as folhas das árvores, respirando cada orvalho no sumidouro da mata

vem de um tempo longino onde a memória perdia o nome das coisas e as pessoas eram montarias do futuro fotografia antiga aprendi com os olhos do meu pai que a morte é antes que chega e a vida o esmeril a transformá-la em restos de limalha

cada pan cada uma plêiade de me mória e lixo todo dia revelo o bêbado ocioso que nada nada nada e sempre é um rosto e um nome ensacado em minha pele tese o sólido flutua

confete búzio ou mortalha las manos entre as aves escancaradas das tuas coxas meu vôo é sulco de indecências

impoluta a lua trafega ilumi nada pelo invisível sol o silêncio é um relógio martelando o tempo

fome de qualquer leveza minhas manos em tua sina absoluto segredo agora ex posto Continente fevereiro 2005

37


38

PROSA

As ladeiras da Aclimação (Quelquepart Island) Marcia Denser

N

ovamente me fisgo pensando na Aclimação, esse bairro tão próximo e ao mesmo tempo distante de tudo: Quelquepart Island, ilha fora do tempo da Cidade, em meio a ladeiras intransponíveis. Na Aclimação ou no que restou dela para além dos conjuntos habitacionais revestidos de pastilhas azuis, lembrando monstruosos banheiros virados do avesso onde as pessoas não habitam, se debatem. Surdamente. Para além da Japantown com suas lanternas e cortiços, a viscosa feira vermelha, sua promiscuidade por

Continente fevereiro 2005

detrás de cortinas de bambu, tanto saquê e sorrisos untuosos e pequenos assassinatos, sua máfia de olhos de arroz (os tentáculos globalizados da Iakuza?); em todo caso, para além da poluição que não se sabe exatamente a que atribuir, se aos automóveis, à proliferação de tinturarias, às frituras dos restaurantes ou aos coreanos clandestinos desembarcados em Santos, para além de 15, 20 anos atrás quando a Aclimação era absurdamente (no sentido borgiano, se é que me entendem) uma ilha inviolada no interior da cidade. Penso nas mansões decadentes cobertas de hera se-


PROSA

guindo por ruas chamadas Esmeralda ou Safira ou Topázio ou Turmalina desembocando inesperadamente em secretas pracinhas improváveis (Brás Cubas? Polidoro?) com um tanque de pedra com seu jovem semideus adormecido coberto de limo emergindo por entre gerações de folhas mortas esmagadas por bicicletas fantasmagóricas jamais vistas, mas intuídas em seu sinuoso serpentear através de alamedas sombreadas por velhas árvores silenciosas e sempre às cinco da tarde ou da manhã, porque o lusco-fusco é a atmosfera permanente desse bairro labiríntico fora do tempo, que parece recolher-se mais e mais para dentro do Parque providencialmente gradeado pela municipalidade para consternação dos traficantes e respectivos clientes e gáudio de tantas babás e bebês e hordas de histéricos executivos fazendo jogging já a partir das seis da manhã. Mas isso talvez fosse literatura. Porque se minha juventude existiu nalgum momento entre 15 e 20 anos, foi lá, só pode ter ocorrido lá e digo pode porque não sei, daí procuro no Aurélio “aclimação”: adaptação, ajustamento, aclimatação. Estranho nome para um bairro (ou esse estado de espírito que chamo juventude, essa passagem) que foi se isolando mais e mais da Cidade. Mas naquela época eu me obstinava, QUERIA as minhas ladeiras, o antigo sobrado em cujo terraço traseiro tomava-se sol o ano inteiro, os quartos que se abriam para a extensa varanda gradeada onde me debruçava a ouvir o seco crepitar das copas das árvores, um automóvel a cada dez minutos, o mundo turbulando nalguma parte, mas bem longe, Debussy vazando o Aprés midi d’un faune pela sacada aberta para o silêncio perfeito das eternas cinco horas do entardecer ou amanhecer da Aclimação, onde o semideus crepuscular cuja face de Janus/Mercúrio simultaneamente espreita passado e futu-

ro nesse entrelugar Trimegisto chamado juventude, que é só desejo, que é só promessa perpetuamente a ocultar o instante que passa pisoteando gerações de folhas mortas naquelas ruas, naquelas alamedas estáticas sob um meio-dia de dezembro ou janeiro, a menos que alguma bicicleta, um rolar de patins, uma buzina ao longe, fosse a nota falsa raspando o perfeito azul, uma derradeira primavera de barquinhos, a falsa paz. Mas não será preciso fazer literatura. Se minha juventude existiu deve ter ocorrido em algum momento na Aclimação. Há um vácuo de 10 anos imprecisos de dor que obstinadamente tento esquecer ou não dar importância ou querendo dizer: se a juventude foi só isso então não valeu a pena, mas algo ainda enrijece na treva e obstinadamente (sim, obstinadamente) se recusa a dizer que sim, que talvez fosse possível, que todos aqueles anos que vivi, que vivemos, porque então era o plural, quando éramos quatro os que vivemos com aquilo que podíamos chamar uma família, claro que podíamos, porque foi lá que começou a se esmigalhar, miudamente, inevitavelmente carunchado por dentro, o edifício do tempo começou a ruir, os pilares do altar onde eles juraram atar sagrados laços eternos se afrouxaram naquele sobrado da Aclimação, assombrado já por outras vozes, outros pavimentos (may I, Truman Capote?), na mão que já não se completa em carícia, no abraço que se esquece pendente do corpo, no passo que se afasta e se aproxima, que se afasta e se reaproxima, que se afasta e desce as escadas e sai batendo a porta; no soluço enrodilhado no patamar, no tango em diagonal, em Aníbal Troillo amordaçado na vitrola, no verde que te quis Corrientes, num gato que porcelana, e no telefone tocando, ainda e inutilmente, num sobrado da Aclimação. Como se todos estivessem mortos. • Continente fevereiro 2005

39


AGENDA

40 LIVROS

Sobre a decrepitude Poder e amor Novela de Kawabata é delicado ensaio sobre sexo, velhice e morte

Relações insuspeitas entre o público e o privado em Guimarães Rosa

Yasunari Kawabata, Prêmio Nobel de 1968, é um dos representantes máximos da literatura japonesa (universal) do século 20. Sua obra deixa transparecer uma obsessão pela sexualidade e pela morte como está magnificamente condensado no romance A Casa das Belas Adormecidas, de 1960, recentemente lançado em tradução diretamente do japonês. Em linguagem extraordinariamente enxuta, em tom de meditação, narra a experiência abissal de um homem de 67 anos em visitas a um prostíbulo onde pode passar a noite ao lado de adolescentes drogadas, comparadas a brinquedos vivos, numa aventura de remorso e vergonha em que aflora lancinante a consciência de sua própria decrepitude. O romance teria sido a inspiração do mais novo livro do também Nobel Gabriel García Márquez, Memórias de Mis Putas Tristes, ainda não lançado no Brasil. (HF)

Guimarães Rosa continua a provocar exegeses as mais diversas de sua obra. A última, e das mais instigantes, vem a ser produzida pelo crítico e escritor Luiz Roncari, em O Brasil de Rosa - O Amor e o Poder. Utilizando uma metodologia em que forma e conteúdo estão indissociáveis, o autor analisa os três primeiros livros do grande escritor mineiro, para detectar uma nova dimensão na obra ficcional: aquela em que se realiza uma representação do país. Dissecando o texto de três livros (Sagarana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas), o crítico encontra uma correlação entre as esferas pública e privada nas vertentes épica e romanesca da obra rosiana, alçando-o, além das características estilísticas já tão apreendidas pela crítica, à condição de intérprete do Brasil. Uma abordagem bastante original em se tratando de Rosa, aqui visto no meio do redemoinho chamado Brasil.

A Casa das Belas Adormecidas, Yasunari Kawabata, Estação Liberdade, 124 páginas, R$ 27,00

O Brasil de Rosa - O Amor e o Poder, Luiz Roncari, Unesp, 348 páginas, R$ 45,00.

Grande reportagem

Canto sedutor

Preto no branco

Por motivos diversos e complexos, a grande reportagem é peça cada vez mais rara no jornalismo brasileiro de hoje, tendo migrado para os livros, como são exemplos as obras de Fernando Moraes, Rui Castro, Caco Barcelos e Júlio Ludemir, entre outros. Na contramão desta tendência empobrecedora, este Francisco Julião... saiu em jornal e agora em livro. Inicialmente compôs um caderno especial do Diario de Pernambuco, focalizando o movimento camponês que agitou o Nordeste na década de 60, sendo abortado pelo golpe militar de 64. Vandeck é um remanescente da velha cepa dos bons repórteres.

Chico Antônio foi um cantador de cocos descoberto nos grotões do Rio Grande do Norte por Mário de Andrade em fins dos anos 20 do século passado e que é estátua na Praça dos Trovadores em Toulouse, França. Neste livro, a pesquisadora Gilmara Benevides mergulha no universo do embolador potiguar, num aprofundado estudo biográfico que revela um artista iluminado que, com seu canto singelo, seduziu inteligências do porte das de Antônio Bento, Câmara Cascudo, Oneyda Alvarenga, Telê Porto Ancona, Eduardo Escorel, Aloísio Magalhães e Diógenes da Cunha Lima, entre outros. Gilmara percorreu e até morou em lugares onde viveu o mítico cantador.

Tese de doutorado premiada, Razão, “Cor” e Desejo empreende uma análise das razões sociais, afetivas e sexuais que norteiam os relacionamentos afetivos-sexuais entre “negros” e “brancos” no Brasil, confrontando-os com a realidade histórica da África do Sul. Pesquisa original, debruça-se sobre o processo de produção da mestiçagem entre nós, alcançando a atual situação de relações inter-raciais ou heterocrômicas, na definição do antropólogo Tales de Azevedo. E chega a algumas constatações surpreendentes, como a de que hoje no Brasil o número de uniões entre homens “mais escuros” e mulheres “mais claras” é maior que o inverso.

Francisco Julião, as Ligas e o Golpe Militar de 64, Vandeck Santiago, Comunigraf, 215 pág., R$ 30,00.

O Canto Sedutor de Chico Antônio, Gilmara Benevides Costa, EdUFRN, 142 pág., R$ 16,00.

Razão, “Cor” e Desejo, Laura Moutinho, Unesp, 450 páginas, R$ 48,00.

Continente fevereiro 2005


41

Beleza de Portugal

Educação e estética

A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) deixou um legado límpido e impecável. É o que se pode concluir ao ler esta seleção de poemas organizada por Vilma Arêas. Todos os livros da autora foram contemplados, do primeiro, Poesia (1944), ao último, Dual (1994). Poeta essencialmente lírica, mas capaz de explícita crítica político-social, Andresen construiu uma obra calcada na concretude das palavras como fundação da concretude das coisas. Para ela, a realidade se faz quando nomeada, como no princípio o verbo criou a luz. Também dialoga intensamente com a tradição, seja através de portugueses, como Cesário Verde e Fernando Pessoa, seja de brasileiros, como Manuel Bandeira e Murilo Mendes, sem esquecer outros “estrangeiros”, como Rimbaud ou Lorca. Livro para se ler e reler, deixa uma forte vontade de se conhecer a obra completa da autora. Destaque para a capa de Moema Cavalcanti, com foto de uma janela que se abre para o sol e, certamente, para o mar, tema recorrente de Andresen. (Marco Polo)

Mais conhecido e reconhecido como poeta, Ângelo Monteiro é também professor de Estética e Filosofia da Arte na Universidade Federal de Pernambuco, tendo publicado textos de reflexão como Tratado de Lavação da Burra ou Introdução à Transcendência Brasileira (“redigido entre o surrealista e o irônico”, como aponta Nelson Saldanha), em que analisa a tendência do brasileiro para querer levar vantagem em tudo, e que abre esta compilação de sua obra ensaística. Da análise do caráter do brasileiro às funções da arte, da poesia como recriação do homem ao mundo como campo de batalha, Ângelo Monteiro brande a lâmina de um raciocínio ágil, quase impaciente, que dá tensão e tesão à sua prosa. Sua erudição revela-se nas numerosas citações, utilizadas não por exibicionismo, mas, sim, funcionalmente, a fim de realçar e reafirmar uma posição pessoal e independente. O poetapensador toma o partido da arte e da ética como a melhor instrumentalização para bem se conduzir no trabalho e na vida, perante este cenário pós-moderno. (MP)

Poemas Escolhidos, Sophia de Mello Breyner Andresen, Cia.das Letras, 288 págs., R$ 39,00.

Escolha e Sobrevivência, Ângelo Monteiro, É Realizações Ltda., 280 páginas, R$ 50,00.

Poço de memória

Alexandre, o mito

Foco na província

Tomando como fio condutor o poeta Olegário Mariano, quando ainda menino, a escritora Elita Ferreira e a artista plástica Auxiliadora Menezes contam a história do Poço da Panela, bairro que começou como uma vila bucólica, com arquitetura de casario, recantos pitorescos e foco de resistência durante a luta abolicionista. Aliás, é neste contexto libertário que surge o menino Mariano que, junto com o líder dos moradores, “Seu” Sebastião, se envolve em aventuras para salvar os escravos. Em linguagem simples, mas que não menospreza a inteligência infantil, é livro envolvente, didático sem ser entediante.

O grande mérito desta biografia, escrita pela helenista francesa Claude Mossé, é levar em conta o imaginário na formação de um mito. Sem descurar das fontes históricas fidedignas, embora às vezes contraditórias, a autora analisa também como a figura de Alexandre foi sendo vista e mitificada através dos tempos, servindo de exemplo para grandes homens. A obra também contextualiza fartamente toda a trajetória do grande conquistador e tenta traçar um perfil isento de sua personalidade complexa, que se manifesta tanto em gestos de grande generosidade e sabedoria quanto em momentos de irreflexão e violenta crueldade.

O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello tem se destacado por sua particular predileção no estudo da história do Nordeste açucareiro. Neste seu novo livro, ele reconstitui o processo de emancipação na província, traçando as relações entre eventos locais e de Lisboa ao longo dos sete anos que se sucederam à Revolução de 1817, do movimento de Goiana (1821) à Confederação do Equador (1824). Estes fatos históricos foram minimizados, desprezados ou até mesmo distorcidos pela história da fundação do Império, sempre contada do ponto de vista da Corte, ou seja, o Rio de Janeiro.

História do Poço da Panela, Elita Ferreira/ Auxiliadora Menezes, Bagaço, 28 págs., R$ 15,00.

Alexandre – O Grande, Claude Mossé, Estação Liberdade, 248 págs., R$ 43,00.

A Outra Independência, Evaldo Cabral de Mello, Editora 34, 264 págs., R$42,00.

Continente fevereiro 2005

AGENDA

LIVROS


CARNAVAL

A

quase totalidade dos lingüistas atesta que a palavra Saudade vem de solitate, soledade em latim. Se solitate for sua fonte, implica na perda de algo que se deu necessariamente no passado. Sempre me pareceu estranho e identicamente maravilhoso que a Língua da Luz, a língua lusitana, haja sido a única, dentre tantas brotadas do latim, a conseguir, num lingüístico passe de mágica, transformar “soledade”– lugar ermo ou tristeza de quem está só ou abandonado –, em Saudade, ou seja, num estado de espírito, nostálgico, provocado pela lembrança de pessoa ou coisa extintas ou distantes, acompanhado do desejo de tornar a vê-llas ou possuí-llas. Muito se discute se a Saudade pode ser ou não expressa em outras línguas além do português. Segundo Teixeira de Pascoaes, pai do

Mihai Barbu/Corbis

42

Fado e frevo

Uma saudade só O carnaval de Pernambuco começa com Portugal: a primeira associação carnavalesca, Os Caiadores, criada em 1887, no Recife, tinha como um dos seus fundadores o português António Valente Antonio de Campos

A cantora de fado Mísia


CARNAVAL Saudosismo, no artigo “Cartas de Portugal – Saudade e Quijotismo”, publicado em Barcelona, no jornal La Vanguardia, em 13 de julho de 1920, “a Saudade é portuguesa como é galega e catalã”. Desconheço o contexto em que Pascoaes propôs sua tese. Seja qual for, a Saudade não é só portuguesa, galega e catalã. Em castelhano arcaico também há Saudade, definida como tristeza nostálgica. Sendo humana, a Saudade é universal. A Saudade pode ser dita em qualquer língua. Não consegue é ser expressa com a mesma intensidade com que se diz em português. Em nenhuma outra língua alguém “está com saudade de” alguém. Esta construção, sim, é que nos é orgulhosamente própria, indizível nas línguas estranhas do Pentecostes das Nações. Em outras línguas, “estar com saudade” não vai além de sentir uma tristeza, uma sensação de perda, de ausência, de falta, um desejo frustrado: esqueletos de mal traduzidos sentimentos. Os portugueses somos especialistas em Saudade. A nós, ninguém a ensina. Saudade não se aprende, canta-se. E para cantar é preciso sofrer. Lição sobre sofrimento, que nos dá Raul Moraes em seu frevode-bloco “Despedida”, quando canta “a dor ferina que nos ensina a sorrir e amar”. “Só na dor se aprende a crer e amar”, o mesmo verso o disse Américo Durão, para quem o fado representava a identidade do povo português. A pedagogia da dor, em Américo, ensina a crer e amar, em Raul a sorrir e amar. Crer e sorrir são momentos da mesma essência: nada mais próprio da verdadeira crença do que a pureza do riso. E só se sofre de ausência, mãe da dor e da Saudade. Mãe de tudo e de todos. E exatamente desse sofrimento provocado pela Saudade, filha da ausência, é que o frevo-debloco vem à luz em Pernambuco, para onde a ave do fado migrou. O carnaval de Pernambuco começa com Portugal. E aqui começo minha tese. A primeira associação carnavalesca – Os Caiadores – criada em 1887, no Recife, tinha como um dos seus fundadores um português: António Valente. Já em 1888, a festa de Momo foi comemorada com a presença do Clube Carnavalesco Canna Verde, dança folclórica do Minho, donde boa parte da colônia portuguesa procedia. Exatamente do mesmo Minho, onde Teixeira de Pascoaes julgava ver sim-

43

Mariana Guerra/JC Imagem

O pernambucano Bloco da Saudade Hans Manteuffel

O frevo-de-bloco é uma mistura de alegria e tristeza

bolizada a psique portuguesa: “misto de alegria e tristeza”, como está no prefácio de Jacinto do Prado Coelho ao livro Obras Completas de Teixeira de Pascoaes. Exatamente como por coincidência – e coincidências não são apenas meras coincidências – o frevo-de-bloco é definido na apresentação do CD Carnaval Divinal, de 1996, do Bloco da Saudade: “mistura de alegria e tristeza, dança e choro.” O Canna Verde, o mais antigo ancestral do bloco carnavalesco misto, desfilava com fantasias de estampas coloridas. Além do forte colorido nas fantasias, os homens usavam chapéus de abas largas, as mulheres lenços estampados de seda, colares e medalhas: trajes típicos dos ranchos do MiContinente fevereiro 2005


Músicos tocam o fado num bar de Lisboa

Certamente a imensa poesia do fado contaminou e influenciou a visão de mundo da poesia do frevo-de-bloco Wolfgang Kaeher/Corbis

nho e do Alentejo, bem como vestiam trajes característicos dos grupos de desfilantes das marchas populares que acontecem nas festas dos santos celebrados em junho, em Lisboa. Esta tradição foi retomada pelo Bloco da Saudade. Para tanto, que se analise a foto da capa do CD Saudade Vai Passar, de 1995, em que seus participantes se trajam com fantasias coloridas, cujos modelos se assemelham aos dos ranchos portugueses. A música entoada pelo Canna Verde era o fado, como documentado no jornal carnavalesco O Ilhéu, de 17 de fevereiro de 1901, publicação do Canna Verde, por uma quadra extraída dum longo poema: “Além um clube se avista imenso,/ é o Canna Verde que vai passar/ cantando um fado lá da terrinha,/ um desses fados de arrebatar”. Certamente a imensa poesia do fado contaminou e influenciou a visão de mundo da poesia do frevo-de-bloco. De que outro modo, então, se explicaria tanta Saudade contida num gênero musical que é matéria-prima do seu mais representativo bloco, nada mais do que o da Saudade, reverenciado como síntese da nostalgia carnavalesca na letra do antológico frevo-de-bloco “Valores Continente fevereiro 2005

do Passado”, de Edgard Moraes, no qual evoca os nomes dos principais blocos: “Bloco das Flores, Andaluzas, Cartomantes, Lira da Noite, Corações Futuristas, Flor da Magnólia, Madeira da Fé, Lira do Charmion... e o Bloco da Saudade assim recorda tudo o que passou.” Claras evidências prescindem de provas. O sol é redondo, sem atestado, como a Saudade amamentou o frevode-bloco quando pelas ruas engatinhava. Ainda na mesma edição do Ilhéu se encontram estas quadras dum poeta de Coimbra: “Cheguei muito pesaroso,/ – saudades do Portugal,/ mas ora lá! Quão jeitoso/ vejo aqui o Carnaval.// Meti-me no Canna Verde/ e munido dum pandeiro/ minha tristeza se perde,/ sinto um prazer verdadeiro”. Em fevereiro de 1906, A Caneca, jornal carnavalesco do Clube Misto Canequinha, publica um poema, “Fado Corrido”, cujos primeiros versos definem o seu autor: “Eu sou o amante do fado,/ eu sou o fado tão ferido,/ eu sou o fado das salas,/ eu sou o fado corrido”. O Canna Verde foi o mais famoso clube formado pela comunidade portuguesa. Porém, existiam outros com semelhantes características: Os Fadistas, Imigrantes Portugueses, Bairrinos Portugueses etc., e o Canna Roxa, com sabor brasileiro, já que sua nominação refere-se a um tipo de cana-de-açúcar da qual também se extrai o mais popular combustível do Carnaval – a cachaça –, bem como a uma erva com propriedades diuréticas, salutar nos dias dedicados a Momo: a cana que derruba é a mesma que levanta. Esses dois Cannas – o Verde e o Roxa – desfilavam cantando fados ao som duma orquestra de pau-e-corda, numa estrutura semelhante à dos blocos de 1920,


CARNAVAL quando foi formalmente organizado o primeiro bloco do Recife: o Batutas da Boa Vista. Porém, difere o fado cantado em Portugal do fado cantado em Pernambuco: em Pernambuco o fado deixou de ser intimista, foi cantado a céu aberto em plena folia carnavalesca. Nada mais surrealista. O Carnaval luso-pernambucano antecipa o Surrealismo em mais de duas décadas. O Surrealismo acabou-se, o carnaval surreal permanece. Pernambuco trouxe o fado à praça. No Recife, o fado saiu às ruas e a Saudade ficou morena. Com toda essa efervescência do começo do século, com “fados de arrebatar” cantados por portugueses acompanhados por crioulas orquestras de pau-e-corda; Saudade de Portugal em Pernambu-

co anulada de pandeiro na mão; jornais carnavalescos publicando poemas onde o eu lírico do poeta se confunde com o fado e clubes desfilando em pleno centro do Recife vestidos à moda dos ranchos portugueses e dos grupos de desfilantes das juninas marchas populares lisboetas, nada seria mais justo do que admitir que tal burburinho de vida deitou raízes e frutos, deixou no modo de trajar dos blocos de Carnaval de Pernambuco e, fundamentalmente, no modo próprio de se compor frevos para aqueles blocos – uma Saudade sabendo a Portugal. Agora já não digo: “Cante-me um frevo-de-bloco”, mas, sim, “Cante-me uma marcha-saudade, uma saudade-debloco.” Ou simplesmente “Cante-me uma saudade.” • Para José Ataíde, músico, folclorista e carnavalesco.

Hans Manteuffel

Pernambuco trouxe o fado à praça em pleno Carnaval

Continente fevereiro 2005

45


CARNAVAL

Alexandre Berzin/Acervo MUHNE/Reprodução

46

O dia em que o frevo tomou conta de Salvador Ao ingressar na Avenida Sete, ao som do “Frevo dos Vassourinhas”, a turba que acompanhava o clube tomouse de delírio Leonardo Dantas Silva

Continente fevereiro 2005

S

urgido nas ruas centrais do Recife, originário do repertório das bandas militares da segunda metade do século 19, o frevo pernambucano passou a ser uma constante nos repertórios das mais diferentes bandas de música e conjuntos de metais do Nordeste, conquistando, assim, simpatizantes em todo território nacional. Em 1951, atendendo a um convite do seu congênere do Rio de Janeiro, o Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas saiu do Recife e, a bordo de um navio do Lóide, iniciou uma viagem que veio mudar a história do frevo instrumental. Levava consigo “uma fração da Banda da Polícia Militar de Pernambuco composta de 65 músicos sob a regência do tenente João Cícero”, um novo estandarte doado pelo Governo do Estado, confeccionado em veludo, bordado com fios de ouro e pedrarias importadas, e um grande número de associados que deveriam apresentar-se nos seus cordões e com fantasias de destaque. Completo, o clube saiu de sua sede social no bairro de São José, formando na Rua das Calçadas, como se fora fazer o seu “passeio” pelas ruas do Recife, com João de Emília, o seu primeiro portaestandarte, envergando rica fantasia à Luís XV e, ao som de sua “Marcha n.º 1”, embarcando no cais do porto com destino à Cidade Maravilhosa, onde se apresentaria no carnaval daquele ano. Aportando o navio em Salvador, cidade bucólica que ainda via os carnavais com as famílias povoando de cadeiras as calçadas da Avenida Sete de Setembro, o Clube Vassourinhas foi convidado a


CARNAVAL fazer uma rápida apresentação. Os integrantes do clube cruzaram o portaló, desceram as escadas que levavam ao cais, onde organizaram a formação do préstito. Com o seu rico estandarte alçado ao vento, “morcegos” abrindo alas na multidão, formando círculo em torno dos portaestandartes, balizas puxando os cordões, damas de frente e fantasias de destaque, diretoria vestida a rigor, tudo acompanhado por aquela fanfarra de 65 músicos; o maior conjunto de metais já presenciado em terras da Cidade do São Salvador. Com seus metais em brasa, a Banda Militar que por tantas noites ensaiara sob a batuta de João Cícero, em pleno leito da Rua das Calçadas no bairro recifense de São José, estava ali pondo fogo nas ruas da capital baiana e fazendo a história da música popular brasileira. Ao ingressar na Avenida Sete, ao som de sua “Marcha nº1”, composta em 1909 por Joana Batista e Matias da Rocha e conhecida nacionalmente como o “Frevo dos Vassourinhas”, a turba que acompanhava o clube tomouse de delírio. No repertório outros frevos instrumentais se seguiram, alguns especialmente compostos para aquela primeira excursão fora do Recife: “Vassourinhas no Rio”, de Carnera (Felinto Nunes de Alencar); Vassourinhas está no Rio, de Levino Ferreira, e “Um pernambucano no Rio”, de Capiba. Com o “Vassourinhas” nas ruas, os diabos tomaram conta de Salvador e o baiano, que não conhecia o frevo ao vivo, executado por uma fanfarra de 65 músicos pernam-

47

bucanos, enlouqueceu ao aderir à “onda” e aos pulos, pois nunca conseguiu aprender os verdadeiros passos do frevo, veio a atropelar tudo que encontrava em sua frente. Após alguns quilômetros de itinerário, percorrendo toda Avenida Sete de Setembro, com a multidão no seu rastro, a turba baiana, não acostumada ao acompanhamento de um clube de frevo, onde a orquestra é intocável, colidira com os músicos, provocando com isso vários acidentes pelos encontrões com os mais exaltados. Já apresentando desfalques em sua orquestra, com alguns músicos com os lábios feridos pelo impacto com os foliões, o Clube Vassourinhas foi buscar refúgio no Palácio do Governo, encerrando, assim, a sua primeira incursão nas ruas de Salvador. Aquele único desfile pelas ruas da capital baiana transformou-se em grande revolução nos meios musicais do país: no mesmo carnaval de 1951, Dodô e Osmar, que no carnaval de 1950 já haviam saído com serviço de amplificação de um pequenino conjunto de cordas e percussão, montado na carroceria de um velho Ford 29, voltaram às ruas de Salvador, executando o repertório de frevos do Clube Vassourinhas do Recife. Inicialmente, com apenas dois instrumentos, a guitarra baiana e o violão elétrico. No carnaval seguinte, o conjunto se apresentava com três instrumentos, com a inclusão do violão tenor, o triolim, surgindo assim o trio elétrico que veio a se tornar uma verdadeira revolução no carnaval brasileiro. Ou como melhor explicou Morais Moreira, no carnaval de 1980, nas

Paulo Liebert/AE

Após o primeiro desfile de uma orquestra de frevo em Salvador, Dodô e Osmar criaram o trio elétrico. Na página anterior, passistas de frevo na década de 50


CARNAVAL Arquivo Última Hora/Reprodução

Moraes Moreira (com o violão) contou a história no seu frevo “Vassourinha Elétrica”

Eduardo Queiroga/Lumiar

48

A Frevioca é a contrapartida pernambucana para os trios elétricos

Com o Vassourinhas nas ruas, os diabos tomaram conta de Salvador e o baiano, que não conhecia o frevo ao vivo, executado por uma fanfarra de 65 músicos pernambucanos, enlouqueceu e saiu aos pulos, pois nunca conseguiu aprender os verdadeiros passos do frevo

estrofes do seu “Vassourinha Elétrica”( carnaval de 1980, Trio Elétrico, disco WEA, BR 82001 - B ): “Varre, varre, varre Vassourinhas/ Varreu um dia as ruas da Bahia/ Frevo, chuva de frevo e sombrinhas/Metais, em brasa, brasa, brasa que ardia/ Varre, varre, varre Vassourinhas/ Varreu um dia as ruas da Bahia/ Abriu alas e caminhos pra depois passar/ O trio de Armandinho, Dodô e Osmar.../ E o frevo que é pernambucano, ui, ui, ui, ui/ Sofreu ao chegar na Bahia, ai, ai, ai, ai/ Um toque, um sotaque baiano, ui, ui, ui, ui/ Pintou uma nova energia, ai, ai, ai, ai/ Desde o tempo da velha fubica, ah, ah, ah, ah.../ Continente fevereiro 2005

Parado é que ninguém mais fica/ É o frevo, é o trio, é o povo/ É o povo, é o frevo, é o trio/ Sempre juntos fazendo o mais novo/ Carnaval do Brasil”. A partir de 1952, o trio de Dodô (Adolfo Nascimento) e Osmar (Osmar Macedo) passou a sair num caminhão iluminado de lâmpadas fluorescentes, dois geradores, oito alto falantes, sob o patrocínio da fábrica de refrigerantes Fratelli Vita, de propriedade do industrial pernambucano Miguel Vita. A presença de Armandinho só vem a acontecer no final do ano de 1974. No rastro da novidade de Dodô e Osmar foram surgin-


do, no carnaval da Bahia, outros trios – Tapajós, Marajós, Tabajara –, com as suas formações já modificadas pela inclusão de mais uma guitarra, um contrabaixo elétrico, quatro surdos, quatro bombos menores, quatro caixas, pratos, bateria e, nos dias atuais, os “indispensáveis” teclados. O contrato com a Fratelli Vita terminou em 1957 e, dois anos depois, o Trio Elétrico de Dodô e Osmar foi contratado pela Coca-Cola para o Carnaval do Recife, coincidindo, assim, com o “Carnaval da Vitória” de Cid Sampaio, que havia tomado posse no Governo de Pernambuco em 31 de janeiro de 1959. O sucesso da época

era um frevo-de-bloco de Nelson Ferreira, que utilizou o refrão da campanha, então na boca de toda gente – “O povo é que diz Cid” –, e logo se tornou o preferido do repertório dos baianos: “O Bloco da Vitória está na rua/ desde que o dia raiou.../ Venha, minha gente, pro nosso cordão,/ que a hora da virada chegou!/ Quando o povo diz Cid/ cair na frevança não há quem dê jeito.../ Agüenta o rojão, ficar sem comer/ mas no fim, hei!/ Tá tudo okei!/ Neste Carnaval/ qua! qua! qua! qua!/ o prazer é gargalhar .../ E com bate-bate de maracajá/ a nossa vitória/ vamos festejar”. • Continente fevereiro 2005


Rogério Reis/Tyba

A inteligência das massas Remando contra a tradição de pensadores para quem as multidões são irracionais, jornalista americano faz o elogio da sabedoria das massas Renato Lima

Continente fevereiro 2005


COMPORTAMENTO

P

ara obter a melhor resposta, é melhor perguntar às massas do que depender da opinião de um especialista. Pelo menos essa é a tese do livro A Sabedoria das Massas (The Wisdom of Crowds), do colunista do The New Yorker James Surowiecki, que está na lista dos livros mais recomendados dos Estados Unidos e leva a uma dimensão científica o que normalmente se conhece como “sabedoria popular”. O livro chama a atenção por remar contra uma longa tradição de pensadores que viam nas massas apenas ignorância, irracionalidade e imitação. Tradição essa que teve como expoentes o jornalista escocês Charles Mackay, que em 1841 escreveu Ilusões Populares e a Loucura das Massas (com edição brasileira pela Ediouro) e o mais severo crítico da estupidez dos grupos, o francês Gustave Le Bon com os seus estudos sobre psicologia das massas. Também em Henry David Thoreu, Friedrich Nietzsche ou no historiador britânico Thomas Carlyle há apreciações negativas em relação às massas. “Não acredito na inteligência coletiva da ignorância individual”, setenciava Carlyle. Para Le Bon, uma massa não era apenas a soma dos seus membros, mas um organismo independente. Quando ela age, é sempre de maneira estúpida e intelectualmente inferior aos indivíduos isolados. Surowiecki desafia essa “massa” de intelectuais e sustenta posição contrária. E vem fazendo sucesso. A obra entrou na lista dos livros de negócios mais recomendados nos Estados Unidos, mas o seu alcance permeia vários campos do conhecimento, como psicologia, ciência política, segurança e informática. Para isso, lança mão de casos tão diversos como a organização do tráfego em vias expressas e nos engarrafamentos do centro da cidade, o funcionamento do site de busca na Internet Google e do sistema operacional gratuito e descentralizado Linux. Para o autor, a inteligência das massas é superior ao julgamento individual, pois cada pessoa é portadora de uma informação que pode ajudar ao grupo. Quanto mais diverso é o grupo, mais preciso é o julgamento, uma vez que menor é a influência individual. Mas para que as massas ofereçam respostas adequadas, é preciso cumprir os seguintes pré-requisitos: diversidade, independência e cooperação. Um grupo homogêneo não oferece respostas diferentes e é preciso ser independente para que as respostas reflitam os juízos individuais. E a cooperação é vital para a vida em sociedade, como no pagamento de impostos e para fazer negócios com desconhecidos. “Uma das coisas que chamam a atenção sobre a inteligência das massas é que apesar dos seus efeitos estarem nos rodeando, é muito fácil não percebê-los, e, mesmo quando o fazemos, é difícil aceitá-los. A maioria de nós acredita que o conhecimento de valor está concentrado em poucas mãos. Nós acreditamos que a chave para resolver os problemas é achar a pessoa certa, que vai ter a resposta”, diz o autor. “O argumento desse livro é que procurar o especialista é um erro, e às vezes muito caro. Em vez disso, nós devemos parar e perguntar às massas (que incluem os gênios assim como todos os outros)”, defende. O Google (www.google.com) é um desses exemplos. O mais popular mecanismo de busca baseia-se num algoritmo que calcula qual a página mais relevante com base em votos virtuais, ou seja, os links, que na prática são sugestões de visitas. O Google interpreta um link da página A para a B como um voto, e

51

Divulgação

Para que as massas ofereçam respostas adequadas, é preciso cumprir os seguintes pré-requisitos: diversidade, independência e cooperação

Continente fevereiro 2005


52

COMPORTAMENTO

“O argumento desse livro é que procurar o especialista é um erro, e às vezes muito caro. Em vez disso, nós devemos parar e perguntar às massas (que incluem os gênios assim como todos os outros)”

Continente fevereiro 2005

quanto mais votos a página B recebe, maior é o peso de um link da página B para C. Por exemplo, um link de uma página sozinha, desconhecida, vale apenas um voto, mas um link de grandes portais, como UOL ou Globo, valem os votos deles mais a soma dos votos que os portais receberam. Nesse sistema, todo mundo vota, mas quem recebe mais votos influencia mais. Dessa forma, retiram-se as páginas sem relevância e aumenta a eficácia da busca. A inteligência do sistema é calcular o que as milhares de páginas da Web elegeram como mais significativa. Outro exemplo dessa inteligência dispersa são os sistemas de computadores de código aberto que qualquer programador pode modificar e aos quais pode ter acesso. Esse modelo de programa enfrentou no começo o desdém das grandes empresas, como a Microsoft. “Como é possível um sistema descentralizado dar certo? Quem vai prover o suporte técnico?”, eram algumas das perguntas que se faziam, desafiando a viabilidade da idéia. O Linux, o mais famoso sistema de código aberto, cresceu a partir das contribuições de milhares de programadores do mundo todo, que desenvolveram melhorias e correções e colocam na Internet esses pacotes. No Linux, não há um chefe dando ordens para o que deve ser feito, que programa vai ser desenvolvido ou que estrutura a organização deve tomar. E é esse sistema, descentralizado e aberto, o maior rival do Windows. O funcionamento do Linux não é muito diferente do livre mercado. Numa economia de livre iniciativa, os agentes econômicos têm a liberdade de tomarem as suas decisões, baseadas em informações locais, sem depender de um direcionamento específico (como ordens do Governo, por exemplo). Para os socialistas, esse modelo gerava uma perda de recursos, uma vez que o modelo de competição fazia com que uns fossem a falência. Mas essa é justamente uma das forças do sistema capitalista, de reagir rapidamente, de forma descentralizada e premiando as melhores soluções. Capitalismo sem falência não funciona, assim como se fez no Brasil com os bancos públicos servindo como hospital de empresas, salvando os empresários, mesmo quando a massa, os consumidores, rejeitaram. A descentralização é boa, mas sozinha não é garantia de sucesso. Ela só funciona quando há um meio de agregar as informações. No caso da economia é o sistema de preço que reflete a oferta e a demanda de produtos. Se uma bolsa de valores serve para indicar os preços das empresas, não seria possível receitar o seu funcionamento para outras aplicações? Sim, defende o colunista do The New Yorker, para quem até mesmo a segurança dos Estados Unidos contra o terrorismo poderia se beneficiar da inteligência das massas. Na análise feita pelo Congresso dos Estados Unidos sobre as falhas na segurança interna que permitiram os atentados de 11 de setembro, uma das questões levantadas foi que as agências de segurança não se comunicavam entre si. CIA, FBI, Agência Nacional de Segurança (NSA) e Pentágono trabalhavam de forma descentralizada, mas não trocavam informações. O que para uma agência poderia ser apenas um rumor sem sentido, como um boato sobre ataques aéreos no centro de Manhattan, para outra poderia ser a peça que faltava para fechar um quebra-cabeça. Houve até quem desenhasse um projeto criando um mercado, uma espécie de bolsa de apostas do terroris-


Marco Antônio Cavalcanti/O Globo

COMPORTAMENTO

“As decisões que as democracias fazem podem não demonstrar a sabedoria das massas. Mas a decisão de fazê-la de forma democrática, sim.”

mo, em que o público apostaria onde seria mais provável acontecer um atentado terrorista. A bolsa, chamada de Policy Analysis Market (PAM), foi bombardeada por políticos americanos como ofensiva, mas conta com a simpatia do autor. “Isso é o que os mercados fazem: aproveitam a amoralidade para melhorar o bem coletivo”, defende. Mas as massas também erram – e muito! –, quando não contam com independência, diversidade e cooperação. A bolha do mercado acionário, como a das ações de empresas de Internet, foi guiada pela crença em uma nova economia, em que idéias se transformavam virtualmente em dinheiro. E no início de um processo de bolha, a rápida aceleração dos preços faz com que os crentes se tornem ainda mais confiantes e os céticos sejam tratados como “ultrapassados”. Ao invés de manter a diversidade, o mercado converge para apenas uma expectativa. “Durante épocas de boom, é raro ver vozes discordantes sugerindo que o desastre está perto, assim como quando as coisas vão mal, é difícil ver alguém sugerindo que entrar em pânico é um erro”, analisa o autor. O que faz lembrar Nelson Rodrigues, para quem toda unanimidade é burra. As aplicações do conceito de sabedoria das massas para a política não são simples. O processo político é mais complexo do que outros. Ao contrário de respostas objetivas – como o valor correto de uma ação ou se o Google conseguiu achar a página correta – não é possível dizer o mesmo sobre se o candidato escolhido foi o certo. Além disso, as pessoas votam em candidatos iguais com expectativas diferentes. Mas outros sistemas políticos, como a aristocracia, tirania ou comunismo, podem errar mais, por possuir decisões mais centralizadas. “As decisões que as democracias fazem podem não demonstrar a sabedoria das massas. Mas a decisão de fazê-la de forma democrática, sim.” A gama de aplicações do conceito de Surowiecki é enorme e é justamente essa a mensagem que ele quer passar no livro: a sociedade deve ouvir as massas em vez de depender de especialistas. A Doubleday, editora do livro, já negociou os direitos da edição brasileira com a Record, que estará lançando uma versão traduzida em breve. A Sabedoria das Massas é uma dessas leituras de que você pode discordar, mas que não passa incólume. • Continente fevereiro 2005

53




56

TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

A arte em busca do começo O preço para recuperar a experiência natural primeira é a desintegração progressiva de toda e qualquer linguagem existente

N

estes artigos que aqui publico, tenho tentado refletir sobre as diferentes questões envolvidas no processo da arte contemporânea. Posso às vezes parecer repetitivo, mas, de fato, se recoloco problemas e retomo argumentos já expostos em artigos anteriores, pretendo, na verdade, aprofundar-lhes a compreensão e tirar deles novas conclusões. Isto significa que não tenho respostas prontas para as referidas questões nem juízos definitivos. Dentro desta perspectiva, abordo de um outro ângulo o processo que conduziu à situação atual da arte. Trata-se de uma tendência que, no Brasil, atingiu um grau de radicalidade jamais experimentado antes, com o movimento neoconcreto, principalmente nas obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica. Falo do abandono da linguagem e das técnicas pictóricas em função de uma nova linguagem a ser inventada. A ruptura se dá quando Lygia Clark deixa de pintar na tela para, em vez disso, agir sobre ela, cortá-la, estufá-la, substituí-la por estruturas metálicas manuseáveis. O ponto que pretendo examinar é o seguinte: a ruptura com as linguagens artísticas existentes, levada às últimas conseqüências, aponta para o abandono do universo semântico e o inevitável retorno ao “mundo natural”, que é o oposto do universo da arte. Esta tendência estava implícita de modo geral em quase todos os movimentos de vanguarda do início do século 20, mas, pelo fato mesmo de que implicava, em última instância, o fim da arte, todos eles se detiveram antes de dar o passo decisivo. Tomemos o exemplo de Kasimir Malevitch com seu Suprematismo, que o levou a pintar um quadro que consiste num quadrado branco sobre um fundo branco: depois disso, seria a tela totalmente em branco, ou seja, o fim ou o recomeço da pintura.

Continente fevereiro 2005

O passo adiante – à parte qualquer juízo de valor – foi dado pelo Neoconcretismo, talvez mesmo porque este movimento tenha surgido décadas depois de Malevitch, quando o processo artístico já exigia que esse passo fosse dado. Mas esta hipótese não se coaduna com a tese – que defendo – de que a arte não evolui. De fato, esse passo adiante era uma possibilidade efetiva do curso tomado pela arte moderna e poderia ser dado a qualquer momento ou não. No Brasil do final da década de 1950, começo da de 60, a conjunção de uma série de fatores o tornaram impositivo. Alexandre Campbell/Folha Imagem

Os Bichos, escultura móvel de Lygia Clark


TRADUZIR-SE

Mas é possível ao artista atravessar a fronteira entre a arte e o “mundo natural”, livrar-se da cultura e recuperar a vivência sensorial virgem, limpa de toda a experiência passada? Evidentemente, não, mesmo porque o único caminho possível para essa passagem para fora da arte é a própria arte; noutras palavras, não é possível de fato efetivá-la, uma vez que toda e qualquer expressão, seja artística ou não, ainda é cultura, isto é, o contrário da natureza. Donde a conclusão inevitável de que o preço para recuperar a experiência natural, primeira, é a desintegração progressiva de toda e qualquer linguagem existente. E aí, defronta-se o artista com um novo impasse: se cria um linguagem nova, volta a afastar-se da experiência “natural”; se não a cria, não faz arte. Este impasse com que se defrontaram tanto Lygia Clark quanto Hélio Oiticica, ao final de sua aventura artística, repetiu o impasse a que chegou a pintura após eliminar do quadro a figura e recuperar a tela em branco: se pintasse, ainda que fosse uma forma abstrata, recomeçaria a pintura; se não pintasse, desistiria dela, como ocorreu com Malevitch que, como mais tarde fariam os neoconcretos, também saiu para o espaço tridimensional, com suas “construções no espaço”, constituídas de placas coloridas semelhantes a maquetes arquitetônicas. A solução adotada pela artista brasileira foi mais radical e creio que mais conseqüente, mais orgânica, por assim dizer. Ao contrário do pintor russo, que simplesmente abandonou o espaço virtual da tela e optou pela construção no espaço real, Lygia, em face da tela em branco, decidiu trocar a ação metafórica do pintor no espaço fictício do quadro pela ação real sobre a tela cortando-a, estufando-a, desarticulandoa, até transformá-la numa estrutura de placas metálicas no espaço tridimensional. O caminho seguido por Hélio Oiticica é, no início, semelhante, mas menos elaborado e complexo que o de Lygia, pois, como Malevitch, passa para o espaço tridimensional sem antes exercer a ação real sobre a tela mudada em objeto natural anterior à cultura. Explicome: no momento em que Lygia desiste de pintar sobre a

tela para, em vez disso, cortá-la e estufá-la, esta deixa de ser suporte da linguagem pictórica (cultural) para se tornar quase apenas um objeto material; digo “quase”porque, sendo tela, ainda que em branco, era de qualquer modo o lugar onde esteve a pintura e, por isso mesmo, cortá-la e estufá-la são ações que ainda pertencem ao universo semântico da arte, que ela assim violenta, desmonta, destrói. Deste modo, os seus Bichos são seres nascidos desta operação no limite do universo pictórico, ao avesso dele; por isso, sempre afirmei que essas obras de Lygia – que parecem esculturas – são de fato filhos da pintura, que pariu os seus contrários. Oiticica não realiza essa complexa transição e, por isso mesmo, os seus “relevos” espaciais suspensos são objetos intermédios entre a pintura e a escultura, guardando daquela a cor tornada estrutura desdobrada (ou dobrada) no espaço. Diferentes dos quadros por não terem avesso e estarem pendurados do teto, estão no entanto mais perto das construções malevitchianas que dos “bichos” de Lygia Clark. A experiência de Oiticica só alcança a radicalidade da não-arte em seus Bólides, quando ele convida o espectador a manusear caixas inseridas em caixas e descobrir dentro delas panos sujos, serragens, enfim, matéria “natural” que lhe possibilitam uma experiência sensorial bruta, fora do universo estético. Lygia, por sua vez, radicaliza a experiência fora da cultura quando elimina de seu trabalho o resto de expressão visual (que ainda persiste nos Bichos) e busca passar ao outro – que já nada tem de espectador – dados meramente sensoriais; sacos de plásticos cheios d’água para pôr sobre o corpo ou novelos de fios plásticos postos na boca e de lá puxados pelo próprio “paciente”. Tais experiências situam-se anteriormente a toda linguagem e mesmo se negam a chegar a ela, como a afirmar que só é verdadeiro o que se apreende sensorialmente. Trata-se de uma atitude anticultural e de certo modo niilista, pois, a manter-se no nível da mera sensação, o indivíduo abre mão da própria consciência, que o distingue dos outros animais e o torna capaz de criar a arte, a ciência, a filosofia, a religião e todos os valores que fazem dele um ser mais cultural que natural. • Continente fevereiro 2005

57


ARTES

Fotos: Flávio Lamenha

58

Para participar e pensar 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco expõe obras que, para existirem, pedem a ação do público e a sua reflexão Diana Moura Barbosa

Constelações, do grupo Re-Combo (sala escura com tela onde aparecem mensagens enviadas por telefone celular)


ARTES

Fantasia de Compensação, de Rodrigo Braga (foto digitalizada)

O

46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco adverte: não pensar faz mal à saúde. Mas a verdade seja dita, Fernando Pessoa havia anunciado antes. “Pensar é estar doente dos olhos”. É sobre esses dois eixos que pode ser avaliada a atual mostra, que tenta retomar o seu fôlego na segunda edição seguida – depois de vários anos fora do calendário de eventos do Estado. Esta edição tem curadoria de Cristiana Tejo, coordenadora de Artes Plásticas do Instituto de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco, e que tem conseguido imprimir uma linha sólida e autoral para os projetos da instituição. Como teve menos de seis meses para organizar o salão, Cristiana afirma que, de forma sucinta, elegeu dois elementos distintos, mas complementares, como ponto de partida. O primeiro objetivo era diferenciar-se e manter distância do último Salão, apresentado em dezembro de 2002, e que teve como convidados apenas artistas pernambucanos. O segundo balizador foi o trabalho do artista plástico Paulo Bruscky, um nome pernambucano que transitou como poucos pelas tendências nacionais e internacionais da arte, deixando se influenciar por diversos padrões estéticos. “É interessante que este 46º Salão possa se referir a Paulo Bruscky, porque ele é um exemplo de que a arte pernambucana tem condições de se abrir para se relacionar com tendências de todo o mundo. Por causa dessa habilidade, Bruscky tem recebido um olhar especial de críticos e instituições de todo o país”, explica Tejo. Desta forma, a curadora explicita a sua intenção de promover uma transição entre a edição de 2002/2003 e os salões vindouros. Uma questão, entretanto, paira no ar. Sendo Paulo Bruscky o curador do 45º Salão de Artes, por que não abriu, ele mesmo, as portas de Pernambuco para a arte do mundo? Por que a penúltima edição do salão foi tão acanhada diante da produção nacional e das tendências contemporâneas da arte? Quem responde são os jornalistas Adriana Dória e Marco Polo, coordenadores do catálogo conjunto das duas edições do Salão, a ser lançado em março. “A 45ª foi uma edição comemorativa de um evento institucional pernambucano. Por isso, fez-se uma retrospectiva de 100 anos das artes plásticas no Estado e mostrou-se um painel do que se faz atualmente aqui, da tradicional pintura sobre tela ao videoarte”, diz Marco Polo. “Feito o registro, através das bolsas lançou-se a ponte que criou o perfil do Salão atual, cosmopolita e todo voltado para a arte contemporânea”, complementa.

Continente fevereiro 2005

59


Mapa do Ácaro, de Lourival Batista (fotos microscópicas ampliadas e montadas)

Continente fevereiro 2005

O 46º Salão de Artes de Pernambuco não tem as mesmas dimensões grandiosas do evento de 2002, realizado na Fábrica Tacaruna. Em compensação, foi dividido em três mostras, várias palestras e oficinas. Duas das exposições propostas ganham corpo no Museu de Arte Contemporânea (MAC), de Olinda. Elas apresentam as obras realizadas pelos artistas que receberam as bolsas de estímulo à produção – dinheiro que substituiu a premiação antes oferecida pelo evento. Satisfeito com o resultado, o diretor de Museus da Fundarpe, José Carlos Viana, decidiu não só manter, mas ampliar o sistema de bolsas para a próxima edição. Com esse modelo, o Governo do Estado resolveu dois problemas de uma só vez: atualizou o formato anacrônico de distribuição de prêmios pelos salões e proporcionou mais apoio para a pesquisa plástica em Pernambuco, incentivando a criação de obras experimentais. O resultado não poderia ser melhor. A primeira exposição do MAC, Resultado Um, que ficou em cartaz até 20 de janeiro, foi um marco de vitalidade. As obras carregando grande força poética, passearam ora por caminhos mais conceituais, ora por linhas mais visuais (materiais), mas nunca pareceram perdidas em seu percurso. Os trabalhos dos artistas convidados para o 46º Salão, entretanto, não apresentam a mesma desenvoltura. Primeiro, porque (o trabalho de) Bruscky é um interlocutor difícil. Suas obras exigem atenção e, em alguns momentos, compreensão do seu percurso, da sua inserção quase anárquica na história da arte brasileira. Às vezes, uma criação de Bruscky pode se resumir a uma ironia. Mas ironias nem sempre são fáceis de compreender. E é com muito mais esforço que artistas conseguem reprocessá-las para transmiti-las a seu público. Na atual edição do Salão, esse engasgo fica claro nas obras apresentadas pelo artista plástico pernambucano Bruno Vieira. Interessado em discutir a utilização do espaço institucional (no caso, o Museu de Estado de Pernambuco) pela arte, Vieira elaborou uma série de obras que trafegam sobre si próprias. Com os sugestivos títulos Não Toque na Obra (uma parede em branco), O


ARTES

61

Prêmio (concede prêmio para a pessoa que mais vezes visitar a exposição) e Uma Obra Iluminada (um feixe de luz “iluminando a si próprio”), seus trabalhos não deixam de remeter ao Bruscky irônico e polêmico dos anos 70, mas têm o seu sentido esvaziado na contemporaneidade. Não é o caso de se impedir que questões levantadas há 30 anos sejam atualizadas. Mas é preciso revesti-las de um novo olhar, para que elas possam, pelo menos, renovar nas gerações atuais o incômodo causado em décadas anteriores. O trabalho de Viera, infelizmente, não chega a tanto. Outras obras também expressam a mesma noção de esvaziamento, como o Karaokê do Hélio, de Alexandre Vogler. O trabalho é o registro em vídeo de diversas pessoas lendo um texto de Hélio Oiticica depois de aspirarem uma lufada de gás hélio – ação realizada e gravada durante o próprio Salão. Até aí, Vogler fez uma brincadeira curiosa. Não tem graça, entretanto, induzir o público a acreditar que isso é uma crítica à banalização do pensamento de Oiticica. O que Vogler fez, foi, no máximo, acrescentar mais lenha na fogueira onde queimam as idéias potencialmente transgressoras de Hélio Oiticica, realizando um projeto acomodado pelo tempo. Acontece que, como fez ver a curadora Cristiana Tejo, a transgressão – que era obrigatória até a década de 70 – se tornou impossível neste começo de século 21. Hoje, como já alertou o escritor Raimundo Carrero, transgredir é ir à missa e comungar. Todo o resto é aceito com ar blasé e naturalidade. “Eu tenho notado uma certa impaciência dos críticos com os artistas da geração atual. Innerensteren, de Juliana Notari (foto de bonecos tatuados)


62

ARTES Como se tudo já tivesse sido visto. Eles têm uma sensação de déjà vu. Queixam-se de que a produção nova é cópia do passado, mas sem a mesma profundidade presente nos questionamentos das gerações anteriores. Eles não levam em conta o fato de que o mundo, hoje, não está mais sob o impacto dos acontecimentos políticos e sociais que pautaram a maior parte do século 20. Atualmente, os artistas não têm mais a ilusão de que vão mudar o mundo, de que vão mudar o sistema de arte, abalar as instituições. No máximo, eles sabem que vão cometer pequenos gestos de transgressão, que vão construir minicríticas, que durante algum tempo vão fazer alguém pensar de modo diferente uma determinada questão. E isso muda todo o foco de sua produção”, contextualiza a curadora. Se os artistas da nova geração não se pautam mais pelos grandes temas que abalaram o século 20, há de se considerar ainda que o público também não se move mais pelos mesmos critérios do passado. Hoje, é preciso um bom motivo para convencer alguém a deixar o seu sofá e partir em busca das emoções de uma sessão de arte contemporânea. Consciente dessa dificuldade, Tejo elaborou uma arriscada – e porque não dizer, ousada – estratégia de troca com os observadores do 46º Salão. Por um lado, ela ofereceu a eles um miniparque de diversões. A exposição do Museu do Estado é um jogo lúdico e interativo, que só se completa pela ação dele, o público, esse soberano. Por outro lado, ela retirou deles o espetáculo.

Há paredes e pétalas para serem riscadas, perguntas esperando respostas em um site, cupom de freqüência para depositar na urna, câmeras de mentira para (não) lhe filmar e mais um monte de obras com as quais se é impelido a interagir

Projeto Pega-V Varetas, de Paulo Bruscky (xerox colorida)


ARTES Na contramão da novela das oito, Cristiana Tejo construiu um evento de artes plásticas onde muito pouco há para ser visto. A palavra do momento é experimentar. Há paredes e pétalas para serem riscadas, perguntas esperando respostas em um site, cupom de freqüência para depositar na urna, câmeras de mentira para (não) lhe filmar e mais um monte de obras com as quais se é impelido a interagir. Os autores dos trabalhos parecem dispostos a acordar o público – aquele mesmo que, assim como os artistas, anda indiferente ao mundo e, por tabela, à arte. Os trabalhos apresentados tentam, a todo custo, arrancar as pessoas do estado de letargia, com projetos que, mais que interativos, só se completam pela ação do outro, do observador. Não cabe mais contemplar passivamente, nem fechar as obras “mentalmente”, é preciso concluí-las de fato, na prática. Tejo teve a coragem e o mérito de elaborar um evento que é avesso ao espetáculo. As obras que selecionou carregam pouco – ou nenhum – apelo visual, com exceção do trabalho assinado pelo coletivo Re: Combo (Constelações) e da excelente instalação de Chiara Banfi (Raiz de Cajueiro, que, com grafismos à Miró, dá visibilidade a áreas geralmente despercebidas nos museus e galerias de arte). Em contrapartida, pede às pessoas que pensem um pouco. E ajam, se forem capazes. Mas, depois de tanto esforço, bem que elas mereciam um colírio. Algo para aliviar essa doença dos olhos que parece infiltrada numa face da arte contemporânea. •

Cidade e Palavras, de Maria Eulália e Rosinha (blocos de concreto)

63


Praça Barão do Rio Branco, com o Marco Zero ao centro, e os prédios de concepção eclética do Bairro do Recife, ao fundo

Estilos e fases de uma cidade Guia arquitetônico e paisagístico do Recife complementa a visão poética e sentimental de Gilberto Freyre 70 anos atrás Fábio Araújo

F

ins do século 16. Os navegadores que se aproximavam daquela pequena povoação, a 8º 3’ de latitude e 35º de longitude, costeavam os arrecifes, entravam na barra em direção ao Sul e singravam as águas protegidas pela restinga até chegarem a um modesto arruado, onde se destacavam a Capela do Santelmo e a Ermida do Corpo Santo. Quatro décadas depois, em 1630, a povoação que acaba de ser conquistada pelos holandeses já atinge a pequena aglomeração em torno do porto, a ilha de Antônio Vaz e engenhos no continente. O tempo passa e, no início do século 19, o Recife torna-se a capital oficial da província, enquanto abriga os movimentos libertários de 1817 e

Continente fevereiro 2005

1824. A proximidade com a Europa a faz uma das bases do comércio exterior brasileiro. Estilos como classicismo, ecletismo e art-déco já haviam deixado sua marca na paisagem urbana do Recife, quando, em 1938, começam as obras da avenida Dez de Novembro (futura Guararapes) e da Praça da Independência. A rua da Aurora é alargada, a avenida Boa Viagem embelezada, a iluminação a gás dá lugar à elétrica, surge o Parque Treze de Maio. Já na segunda metade do século, Borsoi e Amorim difundem, com seus projetos e aulas, a arquitetura moderna no Recife. A cidade cresce para o Sul e para o alto, surgem grandes equipamentos comunitários como os shoppings e o Centro de Conven-


ARQUITETURA

Fotos: Roberta Guimarães/Imago/Divulgação

Praça do Entroncamento, inaugurada em 1925 e reformada por Burle Marx em 1935

ções, o Bairro do Recife é revitalizado. Aproximadamente 470 anos de história e evolução urbanas, retratadas no Guia do Recife – Arquitetura e Paisagismo, organizado pela arquiteta Edileusa da Rocha e lançado em dezembro do ano passado. A publicação, voltada para a paisagem e a arquitetura, é dividida em sete capítulos nomeados a partir dos estilos predominantes em cada época, descrevendo o contexto histórico, além de 11 roteiros de visitação. Tudo começa com “A Paisagem Natural e o Paisagismo”, escrito pela arquiteta Edileusa da Rocha. Após descrever a geografia e biologia da área sobre a qual o Recife nasceu, passa a abordar os três períodos áureos do paisagismo na cidade: a ocupação holandesa no século 17; o impulso urbanizador comandado no século 19 por Francisco do Rego Barros, futuro conde da Boa Vista; e as duas primeiras décadas de 1900, marcadas pela construção de praças vizinhas a edifícios ecléticos. Claro que a obra de Roberto Burle Marx não poderia ser esquecida. “Entre 1934 e 1937, Burle Marx formulou e aplicou os princípios do paisagismo brasileiro no Recife – o emprego da flora autóctone, o respeito aos componentes ambientais e à cultura local”, afirma Edileusa. O historiador e professor Denis Bernardes apontou, em texto apresentado no lançamento do Guia, que cada edifício preserva a história viva da cidade, com a dinâmica das classes sociais e as transformações das forças produtivas e das relações sociais. “Pois o que é o esplendor do barroco recifense, senão a afirmação, dentro dos padrões do Antigo Regime e de uma sociedade colonial, de uma camada de comerciantes que havia conquistado a criação da vila do Recife, contra a oposição dos senhores de Olinda e desde então, pedra sobre pedra, vinha mostrando sua opulência, seu poder, seu orgulho, através de intervenções as mais diversas no espaço urbano, das quais as mais expressivas tinham de ser as de caráter religioso?” Bernardes continua: “O que é o neoclassicismo imperial senão a expressão do senhoriato que está construindo um Estado nacional, saído da situação colonial, após a liquidação do Antigo Regime?” Ele observa que, após a Independência, os novos edifícios de uso público construídos deixam de ser as igrejas e passam a obras de uso civil: o Teatro de Santa Isabel, o Hospital Pedro II, o Liceu de Artes e Ofícios, o Ginásio Pernambucano, a Assembléia Estadual, o Palácio do Governo, a Casa de Continente fevereiro 2005

65


66

ARQUITETURA

Fred Jordão/Imago/Divulgação

Fotos: Roberta Guimarães/Imago/Divulgação

Fachada do Mercado de Casa Amarela, em ferro pré-fabricado

Prédio da Academia Pernambucana de Letras, exemplo do classicismo imperial

Ponte Maurício de Nassau – onde o governo holandês ergueu a primeira ponte do Brasil

Detenção. E o Cemitério de Santo Amaro, que retira da Igreja Católica o poder sobre o destino final dos corpos, exercido durante o Antigo Regime. Abordando a Arquitetura Moderna, Sônia Marques e Guilah Naslavsky destacam profissionais que marcaram a cidade no século 20. Luiz Nunes, para alguns o criador de uma “Escola do Recife”, chegou à capital em 1934 e trabalhou com notáveis como Burle Marx e o engenheiro Joaquim Cardozo. Junto a outros nomes de destaque, projetou várias obras sob a influência de Le Corbusier: a caixa d’água de Olinda, a Escola Rural Alberto Torres, o Hospital da Brigada Militar. A Secretaria da Fazenda, projetada por integrantes de sua equipe, seguiu o mesmo padrão. Marques e Naslavsky apontam o carioca Acácio Gil Borsoi e o português Delfim Fernandes Amorim como decisivos para a formação de uma nova geração de arquitetos modernos. Borsoi difundiu a linha de Oscar Niemeyer, trazendo inovações estilísticas e programáticas, presentes em edifícios como o Califórnia, Caetés e União. Já Amorim, além da marcante atividade docente, buscava

soluções adequadas aos meios construtivos e ao clima local. São dele os edifícios Pirapama e Santa Rita.

Continente fevereiro 2005

Lirismo e história – Como apontou o professor Denis Bernardes, o Guia do Recife – Arquitetura e Paisagismo é publicado no momento em se comemoram os70 anos do Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife, de Gilberto Freyre. Lançada em 1934 com apenas 105 exemplares, ilustrados à mão por Luis Jardim, a obra é um longo poema em prosa, intercalando trechos líricos e impressionistas com informações históricas e práticas. Trata-se do segundo livro publicado pelo sociólogo (sem contar uma coletânea de artigos anteriores), um ano depois de CasaGrande & Senzala. As quatro edições estão disponíveis para consulta, mediante agendamento prévio, na Fundação Gilberto Freyre, Apipucos. A primeira delas, raríssima, traz inclusive uma dedicatória escrita de próprio punho pelo autor, endereçado a um certo “monsieur Joseph Ottavi”, em janeiro de 1935. O texto, ao mesmo tempo artístico e científico, aborda


ARQUITETURA os traços psicológicos e o caráter do Recife, como se nota logo nas primeiras linhas do primeiro capítulo, na grafia já atualizada da quarta edição (1968): “O viajante que chega ao Recife por mar, ou de trem, não é recebido por uma cidade escancarada à sua admiração, à espera dos primeiros olhos gulosos de pitoresco ou de cor. Nenhum porto de mar do Brasil se oferece menos ao turista. Quem vem do Rio ou da Bahia, cidades francas, cenográficas, fotogênicas, um ar sempre de dia de festa, as igrejas mais gordas que as recifenses, casas trepadas umas por cima das outras como grupos de gente se espremendo pra sair num retrato de revista, uma hospitalidade fácil, derramada – talvez fique a princípio desapontado com o Recife. Com o recato quase mourisco do Recife, cidade acanhada, escondendo-se por trás dos coqueiros; e angulosa, as igrejas magras, os sobrados estreitos, alguns, ainda hoje, com quartinhas às janelas, com gaiolas de passarinhos, de papagaios e até de araras, junto às varandas de ferro rendilhado (...). Outra impressão, bem mais alegre, é a do viajante que chega de avião e a quem o Recife se oferece um pouco mais. Só as grandes manchas de água verde e azul dão para alegrar a vista. A nenhum, porém, a cidade se entrega imediatamente: seu melhor encanto consiste mesmo em deixar-se conquistar aos poucos. É uma cidade que prefere namorados sentimentais a admiradores imediatos. De muito oferecido ou saliente, ela só

tem o farol. Ou as torres das igrejas como a do Espírito Santo, outrora célebre pelas cores vivas que anunciavam aos recifenses navios à vista, vapores a chegar: da Europa, do Sul, da África e de outras Américas”. Freyre apresenta e disseca sua amada cidade com todos seus valores plásticos, humanos e sociais, vistos a partir das ruas, casas, tipos populares, tradições, ventos, lendas e águas. Entre outras curiosidades, o leitor aprende que em 1934 o Recife registrava 313.150 habitantes, sendo 144.513 homens e 168.737 mulheres; 1.822 lojas e armazéns, 390 oficinas, oito fábricas e usinas, 112 hotéis e restaurantes, 342 escritórios, quatro mercados, oito jornais, 18 cinemas; 54 igrejas católicas, 18 casas de oração evangélicas, 33 centros espíritas, uma sinagoga e 14 sedes de seitas africanas; 64 farmácias, 59 padarias e 60 açougues. Em 1939, o autor deu continuidade ao trabalho com Olinda, 2º Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade Brasileira. Épocas distintas, estilos e objetivos complementares. Escrito e idealizado por arquitetos, o Guia do Recife – Arquitetura e Paisagismo volta-se fortemente para a arquitetura, que define a estrutura do livro, e com menos ênfase para o paisagismo. Através dos 11 roteiros apresentados, busca também estimular a visitação dos bens patrimoniais em questão. Já Gilberto Freyre escreve de forma bem mais solta, buscando apresentar, além dos monumentos, sua visão peculiar sobre a alma do Recife. • Aurelina Duarte/Divulgação

Capa do Guia de Gilberto Freyre, na primeira edição de 1934 Ao lado, Escola Rural Alberto Torres, exemplo de arquitetura moderna recifense

Continente fevereiro 2005

67


68

SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Marcelo Sayão/O Globo

O deleite infantil da manga "Da manga rosa quero o gosto e o sumo Melão maduro, sapoti, juá. Jabuticaba teu olhar noturno, beijo travoso de umbu-cajá..." “Tropicana” – Alceu Valença

C

orria o ano de 1830. A Colômbia ardia. O general Simon Bolívar, libertador das Américas, passava por Santa Cruz de Mompox. Descansou no Colégio de São Pedro Apóstolo, que “tinha nos fundos um pomar luminoso”. E cedeu à tentação de “chupar mangas com deleite infantil”. Palavras de Gabriel Garcia Márquez, na primeira versão de seu O General em seu Labirinto. Mas a cena jamais poderia ter acontecido assim, “pela simples razão de que faltavam vários anos para a manga chegar naquelas terras” – corrigiu o historiador boliviano Vinícios Romero Martinez. As primeiras mangueiras foram plantadas, ali, apenas em fins do séc. 19. García Márquez refez o seu texto. E o velho General aparece no livro comendo ... goiabas, com deleite infantil. Manga, no começo dos tempos, era privilégio destinado só aos deuses. E mangueira era árvore sagrada. Veio da ÍnContinente fevereiro 2005

dia e viajou pelo mundo com os portugueses, ao tempo das grandes navegações. Primeiro chegou na África. Depois no Brasil. As primeiras mudas desembarcaram na Bahia por volta de 1700. Foi “a árvore asiática que melhor se adaptou ao clima brasileiro, tornando-se quase obrigatória na paisagem do Norte e Nordeste do país”, observou Pio Corrêa (Dicionário das Plantas Úteis do Brasil). Daqui foram levadas para toda a América. Inclusive Caracas, onde nasceu Bolívar. Mas então o Libertador não era mais capaz de ter “deleites infantis”. Porque já havia morrido – triste, amargurado, abandonado, só. Mangueira (mangifera, indica Linn) é árvore grande e frondosa. Cresce até 30 metros de altura. São longevas. O agrônomo inglês Charles Maries estudou algumas, na Índia, plantadas pelo imperador Akbar Mogul, há mais de três séculos, ainda apresentando surpreendentes beleza e viço.


SABORES PERNAMBUCANOS

Não são exigentes quanto ao solo. Preferem regiões de clima quente e chuvoso. O período ideal para o plantio é a estação das chuvas. Mudas são feitas por sementes, enxertos ou alporques (processo de reprodução que consiste em enterrar um ramo, no primeiro momento, sem destacar do galho, para que crie raízes). E tempo das mangas, sempre bom lembrar, vai de setembro a janeiro. Assim como mudam os homens, nesse vasto e insensato mundo, também as folhas mudam com o tempo. Primeiro são avermelhadas, ainda jovens; e depois vão escurecendo, até chegar ao verde-escuro na maturidade. Flores pequenas – alvas, róseas ou esverdeadas. A fruta é carnuda, suculenta, fibrosa, perfumada e muito saborosa. Protegidas por grossa casca – razão pela qual são das frutas que menos têm bichos em seu interior. Esses bichos nascem nas próprias frutas – quando “moscasdas-frutas” fêmeas perfuram suas cascas maduras para depositar ovos que se convertem em larvas. A polpa é amarelo-vivo. “Amarelo-manga”, diz-se, como no belo filme do pernambucano Cláudio Assis. No início se conheciam umas poucas variedades – espada, rosa, manguito, de Itamaracá (a mais gostosa) e Carlota. Só não se sabe exatamente quem foi essa Carlota, em cuja homenagem se batizou a fruta. Segundo versão popular, seria a Rainha Carlota Joaquina – esposa de D. João VI. Mas não há prova documental disso. Sendo mais razoável que a homenagem se destine a alguma senhora bonita, meiga, doce e delicada – tudo que aquela rainha não era. Hoje, são mais de 500 tipos, entre elas Alphonso, Atkins, Coração-de-boi, Bourbon, Haden, Golden Nuggets, Keitt, Kent, Rubi, Sensation, Tommy. Além da Amélia – sendo irresistível a tentação de dizer que essa Amélia é que seria a manga de verdade. Mas nem sempre a vida imita a arte. Essas mangas são, todas, diferentes entre si – no sabor, no tamanho e na coloração. Enxertos e cruzamentos acabaram deixando-as menos fibrosas, maiores e mais bonitas, conseqüência inevitável de uma globalização que invade nossos quintais. Só não se conseguiu, nessa alucinação mercadológica, foi tornar ditas mangas mais saborosas que as originais. Missão impossível. Elas já eram perfeitas. A Índia continua sendo o maior produtor mundial, seguida por México. No Brasil temos São Paulo, Minas Gerais e Estados do Nordeste – Bahia, Pernambuco, Piauí, Ceará. Crescendo a cultura sobretudo no Vale do São Francisco.

Da Índia veio também o próprio nome “manga”. Mas não copiamos deles os jeitos de preparar essa manga. Que por lá é usada, indistintamente, como fruta ou legume. Verde ou madura. Em pratos salgados ou doces. Como ingrediente principal ou condimento (pó de manga). “Em conserva de açúcares, em conserva de vinagre, em azeite e sal; recheadas dentro com gengibre verde e alhos; salgadas, cozidas; e de todas estas maneiras as vistes já, e provastes nesta casa”, como consta no capítulo “Das Mangas”, no famoso livro de Garcia da Orta Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia (1537). Dos muitos pratos de prestígio, a partir dessa fruta, merecem destaque o Aamchur, o creme de manga com amêndoas picadas e o chanti – compota agridoce, muito apreciada pelos ingleses (mango chutney), para acompanhamento de carnes e grelhados. Por aqui é comum usar essa manga em suco, sorvete, gelatina, mousse, compota, doce ou como ingrediente obrigatório nas saladas de frutas. Recentemente começou a ser usada nas saladas de folhas. E também grelhadas – acompanhando filé, peru, presunto. Sempre com muito sucesso. Mas nada se compara ao seu sabor natural. Devendo ser consumida sempre madura, claro. De preferência à beira-mar, sem medo de lambuzar boca, rosto e mãos. A manga é, hoje, parte de nossa cultura. Dizem que é veneno, quando misturada com leite ou cachaça. “Cuidado com a manga”, lembra o ditado popular. Mas podem ficar descansados os que se dispuserem a enfrentar essa mistura, por não haver nenhuma evidência científica nessa crendice. Também pode causar erupção na pele, se diz. Mas “as borbulhas desse tempo são pela quentura demasiada que há por aqui. As mangas não são causa das borbulhas”, segundo Garcia da Orta (“Colóquio XXXIV”). Muitos remédios vêm da mangueira. A resina, extraída de caule e galhos, é eficiente no tratamento da diarréia crônica e no combate de vermes. Chá das folhas alivia sintomas da asma. Chá da casca do fruto combate hemorragia uterina. Com o tempo, passando essa fruta a também estar presente em nossa língua portuguesa. É “parte do vestuário onde se enfia o braço”, define mestre Mario Souto Maior (Alimentação e Folclore). É peça dos candeeiros. Ter cor de manga-rosa é ser corado. Botar as mangas de fora é mostrar seu verdadeiro rosto. Mangar de alguém é zombar. Arregaçar mangas é ter disposição paro o trabalho. “Manga-rosa”, assim dizem os Continente fevereiro 2005

69


AE

70

RECEITAS: Mango Chutney INGREDIENTES: 5 mangas grandes cortadas em cubo, 1 xícara de vinagre de vinho branco, 3 colheres de sopa de suco de limão, ½ xícara de água, 1 xícara de açúcar mascavo, 2 colheres de chá de sal, 3 paus de canela, 1 colher de chá de mostarda, ½ xícara de passas, 3 pimentas dedo-de moça picadas, 1 colher de sopa de gengibre ralado. PREPARO: Coloque todos os ingredientes no fogo – com exceção da manga e da mostarda. Quando ferver, junte a manga. E deixe no fogo por 30 minutos. No fim, coloque a mostarda.

apreciadores da maconha de boa qualidade. E até raça de cavalo é - pequeno e de passo macio, o manga-larga. Como se tudo isso não bastasse, Mangueira é também nome de bairro, de estação de trem e da mais importante escola de samba do Rio de Janeiro – a “verde e rosa”, Estação Primeira de Mangueira. Escola de Cartola, Dona Zica, Dona Neuma, Jamelão, Beth Carvalho e tantos mais da velha guarda. Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito homenagearam para sempre a árvore que inundava o bairro com suas sombras, seu perfume e suas folhas secas – “Quando piso em folhas seContinente fevereiro 2005

Mousse de Manga INGREDIENTES: doce de 6 mangas (ou 2 latas de compota de manga), 10 folhas de gelatina branca, 6 claras batidas em neve, 6 colheres de sopa de açúcar. PREPARO: Passe a compota de manga no liquidificador junto com a sua calda. Reserve. Dissolva a gelatina em bem pouca água. Bata as claras em neve, bem firme. Junte, às claras, açúcar, gelatina e metade da compota de manga passada no liquidificador. Coloque em forma de canudo molhada. Leve à geladeira por, no mínimo, 12 horas. Na hora de servir, desenforme e cubra com o restante da compota de manga.

cas/ Caídas de uma mangueira/ Penso na minha escola/ E nos poetas da minha Estação Primeira”. Seguindo-se a vida “ao lado do meu violão/ Da minha mocidade”. Até quando tudo acaba, os deleites infantis do General Bolívar e os sonhos nossos de cada dia. E vem a “indesejada das gentes”, segundo o poeta Manuel Bandeira. A “grande rival” de Umbelina, segundo o escritor Cícero Belmar. Qualquer que seja o seu nome, ela vem. E morremos todos. Dizendo então, os sambistas: “Não sei quantas vezes/ Subi o morro cantando/ Sempre o sol me queimando/ E assim vou me acabando”. •


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

“Itália, eu te vi prostrada, faminta e andrajosa” (Faz 60 anos agora)

E

então o velho toscano pousou lentamente o copo de vinho sobre a mesa e, numa voz que era quase um sussurro, disse: – A Itália está morta. Era esta a impressão diária que eu também tinha, naqueles terríveis meses de fins de 1944 e começo de 1945, quando, no meu jipe de correspondente de guerra, corria pelos devastados caminhos da Itália – de Nápoles aos Apeninos. “Tão cedo este país não ressuscitará de suas ruínas”, eu me dizia, os olhos postos na devastação que se alastrava por toda a península, reduzidas pelas cruentas e muitas vezes injustas batalhas a uma única e enorme chaga. “Levará tempo para que a Itália ressurja de suas ruínas”, eu me dizia. “Talvez 30 ou 40 anos, não menos. A não ser que aconteça um milagre”.

Oito anos depois, quando lá retornei, o milagre havia acontecido. Como se dera? Com a tranqüila força com que, todos os anos, desde que a Itália existe, a primavera, lá, brota, florida, alegre e pródiga, indiferente às paixões humanas, às disputas, aos egoísmos, ódios e intolerâncias do bicho chamado homem. Tudo se recompusera, tudo voltara ao seu lugar certo, tudo novamente já se colocara dentro da prodigiosa moldura da Itália imortal. Itália, Itália! Sei perfeitamente como és – e o porquê da tua imortalidade. Porque te vi prostrada, faminta e andrajosa e te vejo agora, gloriosa como te fizeram teus poetas, pintores, escultores, todos os teus artistas: poderosa como te fez o teu próprio povo, que nunca se rende. •

Continente fevereiro 2005

71




MÚSICA

Teresa Maia/Divulgação

74

“É samba que eles querem? Eu canto.” Geraldo Maia reafirma seu talento para o canto em Samba do Mar Quebrado, disco de samba à moda antiga José Teles

N

uma época em que a tecnologia de ponta é utilizada à exaustão nos estúdios, aprumando vozes semitonadas, turbinando arranjos com samplers, e adotando a última tendência das pistas de Londres, seja o já meio exaurido drum’n’bass, ou a bossa-nova recauchutada, Geraldo Maia ousa iniciar seu novo disco, Samba do Mar Quebrado, com “Tenho onde morar”, um obscuro samba de Luiz Gonzaga e Dario de Souza, com chiados de 78rpm arranhado na introdução, e impostação de cantor de rádio pré-bossa-nova (no disco canta outro samba pouco conhecido de Gonzagão, “Feijão com couve”). Lançado no final de 2004, Samba do Mar Quebrado soa estranho, não apenas por ser um disco quase inteiramente de canções à moda antiga (a exceção é “Um samba”, de Henrique Macedo e Paulo Marcondes, com programações, samba-rap, mais no estilo do Jair Rodrigues de “Deixa isso pra lá”), mas por ser também um trabalho de um cantor que não compõe, seguidor de uma tradição que remonta a Mário Reis, Orlando Silva, João Gilberto: “Comigo tem sempre essa cobrança – que considero despropositada – por que não componho? Ora, respondo, porque não sou compositor, como não toco flauta por não saber tocar flauta”.

Continente fevereiro 2005

E soa ainda mais diferente por se tratar de um disco gravado no Recife, onde cantor é avis rara, espécimes que se contam nos dedos (Aristides Guimarães, Gonzaga Leal), e o que impera são os funcionais vocalistas de bandas, MPB – apenas o que é cult –, e samba só na linha neomórbida romântica iniciada pelos Los Hermanos. O CD de Geraldo Maia, aliás, era para ser intitulado A Ordem É Samba. Foi mudado quando o álbum estava sendo terminado: “Estou em casa e vejo na televisão Ney Matogrosso cantando esta música, que ele gravou com Pedro Luís e a Parede”. Maia mudou o nome do disco, mas não deixou de gravar o sambamanifesto de Jackson do Pandeiro (com Severino Ramos), feito numa época em que a Jovem Guarda ameaçava mandar para escanteio tudo que veio antes dela. Um sentimento que Geraldo Maia confessa ter sentido, quando voltou para o Recife, depois de nove anos cantando em Portugal. A cidade que ele deixou, em 1989, por achar que não estava indo a lugar algum com sua música, estava radicalmente diferente. O manguebeat consolidara-se, finalmente os artistas locais passaram a ser valorizados em sua própria terra: “Não digo que foi um choque, porque em Portugal acompanhava tudo que acontecia aqui, escutava os discos, mas quando firmei os pés no chão, vi que aqueles nove anos fora cria-


MÚSICA

ram um hiato entre o que eu fazia e o que estava sendo feito na cidade”, confessa. Mesmo não tendo sido hostilizado pela nova ordem musical, Maia critica a forma como se ergueu uma barreira entre essa nova geração e a maioria dos músicos das gerações anteriores: “Em certos momentos, foi uma posição meio burra. Não é preciso negar o velho para afirmar o novo. Alceu Valença, por exemplo, foi um líder, um artista que fez músicas admiráveis, e que admiro muito”, aponta. O primeiro CD que gravou depois da volta, em 2000, chegava a ser provocativo em relação ao som que ecoava há cinco anos no Recife. O título, Verd’Água, vinha de um poema de Carlos Pena Filho, musicado por Zoca Madureira. O trabalho não apenas era acústico, como ainda sabia à seresta. No álbum seguinte, Astrolábio, Geraldo Maia já reenturmado com a cena musical do Recife, contou com participação de

coisas. Participei, por exemplo, de um festival no aterro do Flamengo, um evento muito grande, teve até Joan Baez, que foi proibida de cantar ”. Afligiam-lhe a desobediência ao pai, que o queria doutor, e o conflito para lidar com a homossexualidade, problemas que o preocupavam desde os 13 anos. Hoje Geraldo Maia é uma pessoa em paz consigo mesma. Não se irrita nem quando lhe repetem pela enésima vez que canta parecido com Caetano Veloso: “Reconheço muito mais a influência de Bethânia na minha voz. Quando morava em Portugal, nove em cada dez portugueses viam semelhanças entre minha voz e a de Ney Matogrosso, o que sempre considerei implausível”, comenta, sereno. Serenidade, aliás, é a tônica de Samba do Mar Quebrado, um disco que lembra no conceito o antológico Estudando o

Serenidade é a tônica de Samba do Mar Quebrado, um disco que lembra no conceito o antológico Estudando o Samba, de Tom Zé, tamanha a variedade de sambas. Vai do samba-enredo ao samba de latada nordestino, o samba-embolada e a um samba com tempero de fado, ainda prestando reverência aos antigos.

alguns dos mangueboys, entre eles Pupilo e Lúcio Maia, da Nação Zumbi, e DJ Dolores. No repertório, no entanto, continuou fiel a si mesmo: cantou Antônio Nóbrega e Wilson Freire (“Mestiçagem”), João e Adriana Falcão (“Sem-Vergonha”), Aristides Guimarães e Joaquim Cardozo (“Canto Final”), Lenine e Dudu Falcão (“Tudo por Acaso”), e Lula Queiroga e Felipe Falcão (“Megazen”); da geração mangue, somente Alex S (hoje Alex Mono). Quase todos os autores desse disco pertencem à mesma geração de Maia. Faziam música no Recife no tempo em que artista local era um termo pejorativo, tempo de shows feitos na marra, raros discos (Geraldo Maia dividiu o primeiro, Cena de Ciúme, com o amigo Henrique Macedo, em 1988). Resultado: todos emigraram para o Rio de Janeiro. Lenine, por exemplo, já conta com mais anos no Rio do que os que viveu no Recife. Geraldo Maia passou apenas dois anos no Rio. Admite que não se deu bem por culpa dele mesmo: “Eu estava desorientado. Vivia ligado em maconha e bebendo muito. Mas não foi tudo perdido, fiz algumas

Samba, de Tom Zé, tamanha a variedade de sambas. Vai do samba-enredo, na música-título (de Carlos Mascarenhas), que falava do Pernambuco holandês, ao samba de latada nordestino, “O sonho não acabou”, de Maciel Melo (que participa desta faixa), o samba-embolada que canta com Silvério Pessoa, “Feijão com Couve” (Luiz Gonzaga/J. Portela), e um samba com tempero de fado, “Passageiro do sol” (Aristides Guimarães), e termina prestando reverência aos antigos. A Ataulfo Alves (“Infidelidade”, parceria com A. Seixas), e Sinhô (“Confissões de amor”), e a Elizeth Cardoso, de quem adota trejeitos e inflexões, ao cantar “Infidelidade”. A explicação, se é que esta é necessária, deste disco está mesmo no samba de Jackson do Pandeiro: “É samba que eles querem, eu tenho/É samba que eles querem, lá vai/É samba que eles querem, eu canto”. •

Samba do Mar Quebrado. Independente, R$ 15,00. Contatos: holtmaia@truenet.com.br

Continente fevereiro 2005

75


76

MÚSICA

A voz da letra O letrista Fausto Nilo, que sempre ficou nos bastidores musicais, começa a cantar suas próprias composições, dando nova identidade a canções marcadas no imaginário popular Isabelle Câmara

C

ertamente você conhece os versos da música “Vendo a lua dizendo pro sol/ eu sou tua namorada/ em meu quarto crescente é você/ quem brilha e me reluz/ se você vai iluminar o Japão/ eu fico abandonada/ num pedaço qualquer de canção/ na voz dessa mulher”, e sabe que ela é de Nara Leão, certo? Já a alegre “Pra libertar meu coração/ Eu quero muito mais que o som da marcha lenta/ Eu quero um novo balancê / O bloco do prazer que a multidão comenta/ Não quero oito nem oitenta/ Eu quero o bloco do prazer/ E quem não vai querer?” é de Moraes Moreira, mas já foi gravada por Gal Costa, não é isso? Também tem a melancólica “Quando fevereiro chegar/ Continente fevereiro 2005

Saudade já não mata a gente/ A chama continua/ No ar/ O fogo vai deixar semente/ A gente ri a gente chora/ Ai, ai/ A gente chora/ Fazendo a noite parecer um dia/ Faz mais/ Depois faz acordar cantando/ Pra fazer e acontecer verdades e mentiras” de Geraldo Azevedo. Não? Acertou quem respondeu não (ou mais ou menos) em todas as opções. É muito comum que as músicas feitas no Brasil, sejam letras ou melodias, assumam mais a identidade de quem as grava do que a de quem as compõe. “Amor nas Estrelas” tem melodia de Roberto de Carvalho e letra de Fausto Nilo; “Bloco do Prazer” é de Moraes Moreira e Fausto Nilo; e “Chorando e Cantando” é de Geraldo Azevedo e Fausto Nilo. Estas são as respostas corretas.


MÚSICA Fotos: Gentil Barreira/Divulgação

Revitalização da Praça do Ferreira (esq.) e Centro Dragão do Mar (acima), projetos de Fausto Nilo

Letrista cearense da geração de Belchior e Ednardo, Fausto Nilo é parceiro de músicos como Zeca Baleiro, Gal Costa, Ney Matogrosso, Lulu Santos, Caetano Veloso, Fagner, Dominguinhos e já compôs quase 400 canções, entre elas os sucessos “Dona da minha cabeça”, “Elefante”, “Eu também quero beijar”, “Meninas do Brasil”, “Pedras que Cantam” e “Retrato Marrom”. A novidade é que ele decidiu gravar suas letras; conferindo a sua própria identidade ao que sempre foi seu. Não que com isso ele queira assumir o lugar de quem o interpreta, pelo contrário; elogia e admira quem grava suas composições. “Eu não seria letrista sem meus intérpretes. Eles que deram vida às minhas poesias e me apresentaram uns aos outros”. Fausto Nilo tem 60 anos de vida e 33 como letrista. E a decisão de gravar suas letras faz parte desta comemoração. Mas também vem na tentativa de reparar um erro hoje cometido por algumas gravadoras e rádios brasileiras – não dar o devido crédito aos compositores. Para quem ouvia rádio nos anos de 1950 e 1960 e fez desta audição um aprendizado (ouvia muitas rádios da Bahia e de Pernambuco, como Rádio Nacional, Rádio Tamandaré, Jornal do Commercio e Rádio Sociedade da Bahia, que eram melhor sintonizadas

em Quixeramobim, município cearense onde nasceu e cresceu, do que as de Fortaleza), a programação atual deixa a desejar. “O rádio ficou excessivamente com a cara dos negócios musicais. Isso tira da população a oportunidade da diversidade. Existe uma repetição maçante de fórmulas, uma criação forçada de desejos irreais”, critica. Arquiteto de formação, consegue equacionar duas atividades profissionais criativas e, aparentemente, divergentes. O arquiteto Fausto Nilo tem intervenções marcantes na cidade de Fortaleza, como o Centro Cultural Dragão do Mar, a revitalização da Praça do Ferreira e a Ponte Metálica, na Praia de Iracema. “A minha poesia se enriqueceu com a minha prática arquitetônica, principalmente com o urbanismo, através do qual aprendi e compreendi a formação das comunidades, a vida coletiva; ela tem muito desse filme da vida compartilhada, desse romance urbano”. Como letrista, sua formação começou com o antigo trem da Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA) que levava filmes, revistas e discos para Quixeramobim, e com Fenelon, dono da “radiadora” Cristal, que tinha quatro alto-falantes, com quatro programas durante o dia, e Continente fevereiro 2005

77


78

MÚSICA

Fagner, Zeca Baleiro e Ney Matogrosso: parceiros

milhares de discos de cera. Fenelon o ensinou a apreciar música erudita e os bons exemplares da música popular brasileira. “Quando anunciava a morte de alguém, a Cristal tocava a “Ária na Quinta Corda”, de Bach. Quando anunciava enterro, usava o “Largo”, de Häendel ou “Thaís”, de Massenet. Também escutava Lupicínio Rodrigues e Adelino Moreira. Aprendi com a genialidade do Noel. A lista inclui Miltinho, Orestes Barbosa, Chico Buarque, Caetano Veloso. De uma outra maneira, Jorge Ben, Luís Melodia. Também tenho influência da música estrangeira, não somente pelo conteúdo e, embora sendo em outra língua, pelas boas soluções de sonoridade das palavras sobre a melodia. Assim eu aprendo com Cole Porter, Jacques Brel, Bob Dylan e Leonard Cohen. Tudo isso junto com Adelino e Lupicínio fica ótimo”. Fausto ganhou dois Prêmios Sharp, na categoria Melhor Música Popular, em 1987 e 1995. E concorda com a opinião corrente de que suas letras são fáceis, afirmando que “não pretende levantar teses com suas composições”. São letras simples, que têm o amor, a busca da felicidade e a cor azul como temas freqüentes. Já como cantor, está longe de ser um intérprete de apelo popular: tem uma emissão íntima, quase descansada da voz; mais fala do que canta suas letras e sentimentos, estabelecendo divisões, vibratos e jeito de sublinhar certas palavras bem próprios. “Gosto de ser o poeta que canta, isto me satisfaz plenamente. E gosto da comodidade de ser um cantor local, afirmar minhas diferenças, mesmo com conexões planetárias. NesContinente fevereiro 2005

te novo momento, descobri que existe muita gente interessada em ouvir um letrista cantar suas próprias canções”. E existe mesmo. Num show bem intimista realizado no último Festival de Música na Ibiapaba, em Viçosa do Ceará, a platéia, sentada e silenciosa, apenas fazia coro com os refrões das músicas, manifestando reações que oscilavam entre a surpresa e o encantamento. E era comum ouvir sempre o mesmo questionamento, com um misto de espanto: “Esta música é dele? Eu não sabia...”. E ele se apresenta com a tranqüila superioridade de quem canta sucessos sem a preocupação de mostrar volteios com a voz; apenas em se devolver o que sempre foi seu. Se antes Fausto era conhecido por Geraldo Azevedo, Fagner, Moraes Moreira, Dominguinhos e outros, agora ele decidiu deixar de ser muitos e tornar-se um só, ele mesmo. Músico inteiro. •

O Verso e a Voz. Independente, R$ 25,00. Contatos: fnilo@secrel.com.br


79

Heróis da cultura Governo do Estado lança livro em homenagem a Capiba e Edgard Moraes, contendo partituras de 30 canções dos dois compositores Os memoráveis frevos dos compositores múltiplos Capiba e Edgard Moraes, expoentes da cultura pernambucana, principalmente quando se pensa em Carnaval, estão agora encadernados no livro Capiba e Edgard Moraes – 100 anos de Frevo, lançado pela Fundarpe / Governo do Estado de Pernambuco. O livro contém 30 partituras, com arranjos dos maestros Duda, Spok e José Menezes, prestando uma justa homenagem a estes

dois artistas que, como afirma o Governador Jarbas Vasconcelos no texto de apresentação, “com suas maravilhosas criações, inventaram a trilha sonora da alegria de tantos foliões”. Além de representar um importante registro de um bem cultural, a obra é uma fonte de excelente repertório para todas as orquestras de frevo do Estado. Parafraseando Capiba, se aqui estamos, registrando esta canção, vimos preservar a nossa tradição.

Sabor de frevo

Namorando Rosinha

O selo “LG”, do produtor musical e compositor Luiz Guimarães, está completando 10 anos de existência. Para o compositor, a nova idade é comemorada com o lançamento do CD Do Frevo ao Jazz, álbum que remonta à história de Guimarães e faz mesmo a viagem sonora sugerida pelo título, indo dos frevos de rua e de bloco, aos choros, sambas-choro, baiões (“Flor do Araçá”, interpretada pelo Sa Grama, traz a erudição do armorial e a alegria do xote) e ao jazz. Para o produtor, o festejo fica por conta da edição, ainda este ano, de CDs de samba tradicional, maracatu, pífanos, de Nelson da Rabeca e dois volumes em homenagem a Edgard Moraes. Para quem, sozinho, já lançou 40 títulos e vem impulsionando a música pernambucana, esta missão tem “sabor de frevo”.

Namorando a Rosa, álbum do selo Quitanda (Biscoito Fino), de Maria Bethânia, tem um ar de paquera, de sedução em torno de Rosinha de Valença, compositora e violonista da bossa-nova, mas que na intimidade ouvia moda de viola e assumia o seu lado sertanejo. Numa justa homenagem, o selo reuniu, entre outros, D. Ivone Lara, Hermeto Pascoal, Turíbio Santos, Yamandú Costa, Victor Biglione, Alcione, Caetano Veloso, Chico Buarque e Miúcha para nos trazer o verde e o cheiro de terra molhada através de músicas como “Os grilos são astros”, “Interior” (numa bela interpretação de Alcione), “Pescaria” e “Madrinha Lua”, canções que conseguem transportar o ouvinte Brasil adentro, onde o ritmo é sereno e quieto.

Do Frevo ao Jazz. Independente, R$ 13,00. Contatos: lgprojet@lgprojet.com.br

Namorando a Rosa. Quitanda/Biscoito Fino, preço médio R$ 22,00.

Capiba e Edgard Moraes – 100 anos de Frevo. Fundarpe/Governo do Estado de Pernambuco. Distribuição dirigida. Informações: (81) 3134.3075

Jornal musicado Adaptando-se à filosofia do teatrojornal, de Augusto Boal, digamos que Erasto Vasconcelos fez um disco-jornal, onde todas as letras, exceto “Forró das Meninas”, feita em parceria com os músicos Guga Santos e Murilo, fazem parte de um conjunto de manuscritos que retratam suas observações sobre as paisagens humanas e geográficas de Pernambuco. Com letras singelas e pacificadoras, às vezes ingênuas – ora cantadas, ora recitadas –, Jornal da Palmeira é o primeiro CD do multiinstrumentista e tem frevos, ciranda, samba de gafieira, caboclinhos e forró. Também tem a voz de Erasto. E tem viola, guitarra, cavaquinho, sax, pífano, orquestra de sopros; todos tocados por músicos pernambucanos. Um disco para se ouvir, ler e sentir. Jornal da Palmeira. Candeeiro Records, preço médio R$ 15,00. Continente fevereiro 2005

AGENDA

MÚSICA


80

CINEMA

Caselli, cineasta do terror suburbano

Continente fevereiro 2005


CINEMA

Técnico de TV e cineasta nas horas vagas, Caselli, mesmo não sendo citado nos livros sobre o cinema pernambucano, fez vários filmes nos idos de 1960 Fernando Monteiro

E

stava eu às voltas com os originais de um livro sobre a magia do cinema, quando me lembrei de Caselli. José Caselli? João Caselli? Não me lembro mais do primeiro nome (talvez nunca soube) e Caselli nenhum é mencionado nos livros sobre o cinema pernambucano que se tornaram fontes de consulta a respeito da “sétima arte” aqui no Estado dos celebrados pioneiros do Ciclo do Recife. Em tempo: neste ano de 2005, impõe-se a comemoração dos 80 anos do cinema local – se tomarmos o ano de 1925 como a partida dos longas produzidos entre 1923 e 1931, no Recife. Retribuição, Um Ato de Humanidade, Jurando Vingar, Filho sem Mãe e Aitaré da Praia são desse ano. Mas, vamos a Caselli. Aviso logo que não estou inventando: por trás desse nome de origem italiana, jaz – e não sei se jaz mesmo, isto é, se já morreu ou ainda vive – um cineasta e carnavalesco, figura muito conhecida no bairro de Afogados dos idos de 60. Quem viveu lá ou por lá passou (como o poeta Almir de Castro Barros) em busca da Biblioteca Popular ali inagurada no final da década de 50, sabe de quem estou falando: “Caselli, técnico de televisão”, um homem alto e magro, de nariz aquilino e fala agitada, louco por carnaval e cinema. Caselli era “técnico de TV”, profissional importantíssimo naqueles anos, quando a recéminaugurada TV Jornal competia com a TV Rádio Clube – “a pioneira” – e todo mundo se recolhia, no início da noite, para assistir os sketchs cômicos de Pagano Sobrinho, Aguinaldo Batista e outros, antes de se perder na admiração das séries americanas Aventuras Submarinas, Bat Masterson, Cidade Nua, O Homem do Rifle, Além da Imaginação, Bonanza, Rota 66 e outros sucessos ingênuos de um mundo ainda em preto-e-branco e isento da dureza cínica dos anos 70 já à vista (com hippies, drogas e a “contracultura” de Herbert Marcuse). Ignorado, mesmo naquela época, Caselli possuía uma oficina de consertos daqueles aparelhos de televisão enormes, de madeira envernizada e imagens de grossas linhas nos receptores de 23 polegadas, sujeitos a defeitos de “vertical” e “horizontal” (se não outros, mais sérios), os quais levavam o nosso Caselli a muitas casas desesperadas. Na sala, ele dava início aos consertos complicados – muitas vezes terminando por levar o aparelho para decifração mais meticulosa da avaria, na sua louca oficina localizada na rua que

Continente fevereiro 2005

81


82

CINEMA

ainda hoje dá acesso à Imbiribeira, através da ponte Motocolombó (não sei se a ponte ainda conserva esse nome, ou se venceu o batismo em homenagem a algum “presidente” da República da ditadura, cujo nome de generalíssimo foi sapecado na ponte velha, porém decente). A oficina era um ambiente caótico de fotos de astros e estrelas e do cinema nas paredes, válvulas descartadas e receptores desmontados, uma cabeça de “La Ursa” num canto e mais o técnico sem camisa, entregue às soldas etc., de rádio ligado e janelas abertas. Os meninos, como eu, costumavam cercar Caselli nas suas visitas de técnico-bruxo-exexpedicionário-carnavalesco, o diabo: um exorcista dos defeitos televisivos, mestre suburbano do ocultismo da eletrônica da época. Um danado. E um danado falante como o capeta, nas salas onde entronizava os televisores em cima de mesas forradas com toalha protetora. O primeiro dia em que Caselli veio à nossa casa consertar o famigerado Philco dos problemas-exatamente-nas-quartas-feiras-dos-Intocáveis-de-Elliot-Ness (vivido pelo mauhumorado Robert Stack), o homem não prometeu o conserto imediato de imagem nenhuma – a tela cega e cinzenta, prenunciando uma parte da noite na casa do vizinho, para ver Ness e seus caçadores de gangsters (eu na torcida sempre por Capone, o Scarface, confesso). Não me lembro mais se Caselli, naquela tarde mesmo, fez retornar a imagem – mágica pura – ao Philco novo, mas cheio de perfídias e negaças justamente nos dias das séries mais aguardadas. Só me lembro da longa conversa do técnico, diante da caixa do aparelho desventrado, sobre a toalha manchada do cafezinho para “seu” Caselli. E da sua conversa sobre carnaval e cinema, filmes de ação e blocos de rua do Formigão da Mustardinha, as “fitas” da sua lavra própria e o Baile dos Casados do Atlético Clube. Ninguém sabe dos filmes de Caselli? Pior para o cinema pernambucano – que faz uma grande injustiça ao ex-combatente, talvez meio lelé das bombas explodidas lá na Itália, bem perto dele, segundo o “Zé do Caixão” antecipado. Porque sua paixão, no cinema, era por filmes de guerra e de terror, que tentava imitar à sua maneira. Aparelhado com uma velha câmera Bell & Hall 16mm, de

Em retrospectiva, chego a aventurar se não foi ele o criador – ainda que involuntário – do gênero brasileiro Terrir, com seus precários filmes “sem som algum”. Sonorizar era muito caro, e o técnico tinha uma solução radical para a banda sonora: fazia os ruídos ao vivo

Continente fevereiro 2005


CINEMA

Ninguém sabe dos filmes de Caselli? Pior para o cinema pernambucano – que faz uma grande injustiça ao ex-combatente, talvez meio lelé das bombas explodidas lá na Itália, bem perto dele, segundo o “Zé do Caixão” antecipado

corda, Caselli rodava seus filmes nas cercanias, de preferência com a molecada de Afogados em volta e, às vezes, participando com todo o entusiasmo da idade disponível para todas as surpresas da tarde. Em retrospectiva, chego a aventurar se não foi ele o criador – ainda que involuntário – do gênero brasileiro Terrir, com seus precários filmes “sem som algum”, conforme avisava. Sonorizar era muito caro, e o técnico tinha uma solução radical, de sonoplasta amador, para a banda sonora: fazia os ruídos ao vivo, ao projetá-los para as platéias de vizinhos e meninos, apontando-se na tela, enrolados num lençol manchado de tinta vermelha, com uma máscara carnavalesca menos feia dos que as caretas... Naquele dia do conserto da nossa TV, Caselli estava terminando de filmar O Papa-Figo do Caçote, obra cujo título me ficou como um mantra na cabeça – e que, hoje, eu gostaria de ver mais do que o misterioso Greed, de Erich von Stroheim. Seria um curta, um média, um avião? Não sei, e acho que não importa muito o que seja, mudo, semi-sonoro, perdido num desvão do tempo, directed by Caselli. Pelo que seu diretor dizia, suponho que se trata – sem que ele soubesse, claro – de algum “corte transversal” no imaginário das almas penadas brasileiras e dos vampiros estrangeiros, entre lobisomens famintos e assombrações irredimidas, no melhor estilo do livro de Almirante (Fantástico!, Incrível!, Extraordinário!) que assustava todo mundo no Brasil do rádio-teatro e dos gibis antigos. Onde estão os filmes caseiros do impagável Caselli? Onde as bobinas e os carretéis enferrujados que talvez guardem, ainda, as imagens obtidas nos bairros bucólicos, entre casas de combogós e cachorros arrebanhados para as filmagens do “cineasta” desaparecido na espuma do nada dos subúrbios? Cadê Caselli ou, pelo menos, O Papa-Figo do Caçote? Em tempo: além dos filmes do homem de Afogados, valeria prospectar um western (isso mesmo) que teria sido realizado por Alcides Teixeira – o “vereador das vovozinhas” – também na década de 60. A informação me foi passada pelo radialista e pesquisador Hugo Martins, que chegou a ver o filme e garante que era de matar de rir. Ele descreve cowboys de óculos e relógio, montados em pangarés que Alcides tangia do Arruda para as locações naturais de lixões e outras improvisações de cenários etc. Existe, quiçá, um cinema pernambucano subterrâneo debaixo da Pompéia de todos os nossos filmes “inacabados”... •

Continente fevereiro 2005

83


HISTÓRIA

Imagens: Reprodução

84

Canaviais, açúcar e aguardente na Madeira Livro apresenta o trajeto da cultura da cana-de-açúcar e seus impactos sobre os mais diversos aspectos da existência humana, destacando seu cultivo na Ilha da Madeira, ponto de partida da cana-de-açúcar para o Novo Mundo Denis Bernardes e Rita de Cássia Barbosa de Araújo

A

expansão européia dos séculos 15 e 16, na qual Portugal e Espanha tiveram papel de primeiro plano, teve como uma de suas conseqüências principais e mais duradouras o alargamento das rotas de comércio e a criação de uma economia denominada de economia mundo. Parte fundamental desta expansão, com conseqüências nos mais variados aspectos das estruturas políticas, mentais, econômicas, religiosas, foi a incorporação do Novo Mundo, ou seja, das Américas, à história do Ocidente europeu, através da colonização. O impacto desta incorporação foi imenso, em ambos os continentes, e seus efeitos ainda persistem, especialmente nas transformações dos espaços e das paisagens, na continuidade de algumas atividades econômicas, em duradouras imagens mentais e em relações sociais não de todo extintas por mudanças de ordem política ou tecnológica.

Continente fevereiro 2005

Acima, capa do livro do historiador madeirense Alberto Vieira. Ao lado, Olinda por Luís Teixeira, final do século 16


HISTÓRIA

Um aspecto da montagem desta economia mundo tem, nos últimos tempos, suscitado novos estudos, dos quais se destacam os que situam a expansão européia em um amplo quadro de transformações culturais e ecológicas. Assim, tem sido posto em relevo toda uma nova geografia da flora e da fauna, geografia que mundializou determinadas culturas, fez desaparecer determinadas espécies de plantas ou de animais e que, em suma, transformou profundamente parte considerável do ecossistema mundial. No Brasil, para extensas e diversas áreas do seu território, desde o início da colonização e, até mesmo, como condição de seu êxito mercantil, uma cultura vegetal e um produto dela derivada exigiram e provocaram uma profunda transformação paisagística, ao mesmo tempo em que criaram uma nova sociedade. Esta cultura foi a da cana e este produto foi o açúcar. Desde as primeiras décadas da efetiva tomada de posse das novas terras, com o apoio dos sucessivos monarcas, foi sendo montada uma complexa estrutura produtiva, apoiada em importante base tecnológica, em uma rede de financiamento e de dis-

tribuição que incluía diversos países europeus e, não menos importante, em uma maciça transferência de mãode-obra escrava, unindo assim Europa, América e África na viabilização de uma nova etapa da história mundial. Mas, como se chegou a este resultado, ou melhor, como este projeto foi possível e sobre quais experiências anteriores o mesmo pôde ser assentado? De fato, antes de que nas terras do Novo Mundo e, particularmente na área que viria a ser o Nordeste, os portugueses implantassem esta inovadora unidade produtiva que era o engenho de fazer açúcar, acompanhado dos indispensáveis canaviais, uma longa história marcava o trajeto da cana-de-açúcar, desde sua primitiva domesticação, entre 9000 a 8000 anos, a.C., na Papua Nova Guiné. Um longo trajeto no tempo e no espaço, que inclui lugares, povos, culturas as mais diversas e que teve uma etapa particularmente importante antes de sua chegada ao Brasil. Esta etapa foi a da plantação de canaviais e a da construção de engenhos na Ilha da Madeira, de onde, finalmente, mudas de cana e técnicos vieram para o Brasil. Continente fevereiro 2005

85


86

HISTÓRIA É este longo trajeto, com ênfase para a economia canavieira na Ilha da Madeira, que está amplamente estudado pelo historiador madeirense Alberto Vieira, em um livro que constitui já uma referência obrigatória na melhor bibliografia internacional sobre a cana-de-açúcar, seus derivados e seus impactos sobre os mais diversos aspectos da existência humana. Nas palavras do autor: “Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar para o Novo Mundo. O solo madeirense confirmou a possibilidade de rentabilização da cultura através de uma exploração intensiva e de abertura de novo mercado para o açúcar. (...) Enquanto isto se passava, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no arroteamento das terras brasileiras. (...) O movimento de migração de mão-de-obra especializada do engenho acentuou-se na segunda metade do século 16, por força das dificuldades da cultura em solo madeirense. O Brasil, nomeadamente Pernambuco, continuará a ser a terra de promissão para muitos. (...) Em Pernambuco e na Bahia, entre os oficiais e proprietários de engenho, pressente-se a forte presença madeirense. Alguns destes madeirenses se tornaram importantes proprietários de engenho como foi o caso de Mem de Sá e João Fernandes Vieira, o libertador de Pernambuco”. A importância da Madeira nas rotas atlânticas e na expansão européia pode ser ressaltada com o registro das ligações de Cristóvão Colombo com o comércio do açúcar da ilha e a probabilidade de haver levado consigo, quando de sua terceira viagem ao Novo Mundo, socas de cana ali recolhidas. O interesse deste livro para o leitor brasileiro não reside apenas – e já seria muito – no exame feito do prolongamento da Madeira no Brasil, mas também na perspectiva que adota para o estudo de seu tema. Uma perspectiva que busca examinar a economia açucareira em seus mais variados aspectos: técnicos, culturais, econômicos, fiscais, as formas de propriedade da terra, as relações de produção, as rotas de migração de homens, plantas, mercadorias, as conservas e as doçarias, as danças e folguedos das gentes ocupadas com o trato dos canaviais e o fabrico do açúcar, os


HISTÓRIA circuitos internacionais de distribuição do açúcar, que incluíam comunidades como as dos mercadores italianos e as de judeus sefarditas, entre outras. Além disso, talvez por situar-se na perspectiva atlântica, que é a da própria ilha da Madeira, Alberto Vieira fornece ao leitor um quadro histórico mundial, indo e vindo em rotas oceânicas e em espaços que incluem as Canárias, os Açores, Cabo Verde, as ilhas do Caribe e o Brasil. Por situarse em uma perspectiva mundial, não deixou de examinar, além do importante processo de inovações tecnológicas que sempre acompanhou a história da produção açucareira, o que significou a concorrência do fabrico do açúcar de beterraba para o açúcar originário da cana sacarina. Também, por sua perspectiva mundial, seu trabalho revela um imenso domínio da bibliografia internacional do açúcar, tanto daquela já consagrada pelo tempo, como das novas contribuições e pesquisas que por todo o mundo continuam a ser feitas sobre a história do açúcar. Seu livro, que é também um regalo para os olhos pela riqueza e diversidade de sua iconografia, fornece um precioso roteiro bibliográfico e documental e testemunha do magnífico trabalho feito pelo Centro de Estudos de História do Atlântico, que o autor ajudou a implantar e que, com o apoio da Região Autônoma da Madeira, tem hoje reconhecimento internacional, reunindo diversas instituições dos Açores-Madeira-Canárias, e, no Brasil, da Fundação Joaquim Nabuco e da Cátedra Jaime Cortesão da Universidade de São Paulo. Ao Centro de Estudos de História do Atlântico devemos acrescentar a menção à Associação Internacional de História e Civilização do Açúcar, a qual foi criada por iniciativa de Alberto Vieira e que tem reunido estudiosos de várias partes do mundo, inclusive do Brasil, em colóquios multidisciplinares cujos resultados já começam a ser publicados em livros que são referência mundial. Livros que, em Pernambuco, pode o leitor interessado consultar na Biblioteca Central Blanche Knopf, da Fundação Joaquim Nabuco. •

Apanhadores de cana, na Ilha da Madeira

87


88

ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Tsunami e Pã Ninguém mais escuta com a alma as vozes que emanam da terra, do céu e dos mares

Q

uando parecia contida pela Ciência do homem, a Terra estremeceu. O Oceano agitou-se enfurecido, vomitando ondas gigantes em várias direções da Ásia e da África, causando mortes e destruição. – Tsunami! – bradaram. Tsunami, palavra de sonoridade feminina, sopro de flauta de bambu arrastado pelo vento da tarde. Tsunami, quando sussurrado ao ouvido, nunca faria pensar em onda gigante, maremoto. Não é possível imaginá-lo como o deus grego Poseidon, dos terremotos e vendavais, violento e genioso. Os nomes guardam armadilhas na música dos seus fonemas. Tsunami é cheio de mistérios, inesperado e imprevisível, torvelinho de águas que não cessa de atrair os homens, um convite para que eles entrem em seus domínios e ali se percam para sempre. O deus Pã, a quem Tsunami se assemelha na ambigüidade, era a expressão da própria Terra, encarnação da Natureza. Mas, embora fosse o senhor da música e do riso, Pã não significava apenas alegria. Também adquiria a forma do terror, uma força a que ninguém podia resistir. Será que as velhas entidades divinas, banidas há muito de nossas vidas, quiseram falar-nos? Imaginem Gaia, a mãe Terra, Urano, o pai primeiro, e Poseidon, o senhor dos mares, proclamando através de Tsunami: – Ainda estamos vivos e podemos mais que vocês, Continente fevereiro 2005

seres de nada, presunçosos e arrogantes, que se proclamam imagem e semelhança de Deus! Ninguém mais escuta com a alma as vozes que emanam da terra, do céu e dos mares. Para isto, carecemos dos instrumentos da Ciência. Desacreditamos no poder do Cosmo, perdemos a relação com o sagrado. Quando fenômenos naturais se manifestam com a energia de um milhão de bombas atômicas, como nos relatos indianos dos Vedas, sentimos perplexidade e terror. Por algum tempo, meditamos sobre a nossa fragilidade, supomos existirem forças maiores que a nossa. Assustados, enxergamos apenas o lado sombrio da Natureza, aquilo que nos ameaça. Deixamos de comungar com a sua plenitude, “que é a vestimenta temporal de Deus, revelando-se aos sábios e ocultandose dos tolos”.*¹ Um deus antigo ordenou na gênese de nossa história: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”.*² O oprimido rebela-se contra o opressor e mostra sua ira. Os sobreviventes de Tsunami contaram os mortos, calcularam os prejuízos, proclamaram números e cifras. Os cientistas afirmaram que as ondas gigantes poderiam ser previstas por meio de sondas e satélites. Poucos lembraram as mitologias diluvianas da Bíblia e da Epopéia de Guilgamesh. Esses relatos parecem estranhos à nossa cultura. Perdemos a perspectiva histórica e mítica.


ENTREMEZ

Como as ondas, volumosas a princípio e em seguida amenas, a televisão e os jornais nos afogaram na dor das pessoas anônimas, para silenciarem aos poucos. O mundo pareceu pequeno, a desgraça bem próxima de nós. Sempre nos comovemos com as catástrofes, os dramas coletivos. Nossa humanidade se manifesta em gestos heróicos, compaixão e solidariedade. Também apreciamos os números avultados: 200 mil vítimas do maremoto; seis milhões de judeus exterminados nos campos de concentração; cinco milhões de russos mortos pelo stalinismo. E choramos com as cifras menores, os relatos pungentes: o bebê que sobreviveu oito dias, boiando num colchão; a mãe, que antes de ser arrastada pelas ondas, conseguiu colocar o filho em braços salvadores. Os poderosos enxergam a miséria de outra gente que não a sua, e chega-se a imaginar uma nova ordem de igualdade para o mundo. Tsunami transforma as praias em desertos e os corações em terreno fértil? Buscamos consolo na Ciência, da mesma maneira que os gregos sacrificavam touros a Poseidon, implorando piedade, e os romanos faziam holocaustos a Netuno. Os vikings, diante do incompreensível Tsunami,

invocariam Odin. Os indianos lembrariam o deus Shiva, o destruidor. Os deuses antigos e a Natureza morreram? Volto a perguntar. Talvez. Ou será que vez por outra eles ainda se manifestam de maneira brutal para serem lembrados? “Pã morreu, e com ele morreram todos os deuses. Deuses! Em vão vos exortamos, Nada dizeis nem com vozes nem sinais! De seus devotos ninguém vos consagrou Um túmulo que fosse a vossas Divindades, Uma só lápide que vos rememorasse: ‘aqui os sagrados deuses repousam’. Pã, Pã está morto.”*³ Tsunami vive e destrói. •

*¹ Carlyle *² Bíblia - Gênesis *³ E. B. Browning Continente fevereiro 2005

89


90

TRADIÇÕES

Os tesouros vivos de Pernambuco Entra em vigor legislação que protege o patrimônio vivo do Estado, representado pelos mestres da cultura popular Maria Alice Amorim

Q

uando a paisagem do São Francisco era povoada de remeiros e a travessia fluvial para a cidade baiana de Juazeiro era feita em paquete a vela, as lavadeiras do Angari ocupavam as mãos com a roupa, a boca com cantos de trabalho, e uma criança inquieta corria para ver na praça Dom Malan o que se desenrolava no lado de dentro daquele círculo tão apertado. E o medo era grande, e o fascínio ainda maior quando o boi começava a ressuscitar, dando marradas no meio do povo. Era o período natalino, e daquela festa toda sempre ficava a lembrança de um boi afoito na praça da catedral. Na calçada do Ponto Chic, nos anos 70, revigorava a elegância art-ddéco do prédio, a cantiga dolente, voz limpa, do cego Zé Vicente, que, com uma cuia de queijo do reino, fazia percutir as moedas recebidas, enquanto rememorava velhas cantigas de pedir esmola, de longa tradição, talvez milenar. A imagem, nítida na memória, pode ser reavivada na voz do próprio Vicente, marido da artista popular Ana das Carrancas, ambos habitantes de Petrolina há pelo menos quatro décadas e facilmente encontráveis no centro de cultura que leva o nome da escultora, onde moram. No bairro de Piranga, em Juazeiro, disfarçadamente passavam os penitentes pelas cercas de avelós nos dias de Quaresma e Semana Santa em busca de água corrente para limpar as mazelas do autoflagelo: de praxe, não se devia permitir ser visto por ninguém, muito menos por crianças, que se deixavam instigar pelo som da matraca, pelo canto monocórdio dos benditos, pela repugnância da cena de sangue. Mais do que apenas atiçar as curiosidades de menina, as cenas que povoam as memórias de infância foram convergindo para o campo magnético das afinidades culturais

quanto ao saber tradicional, saber popular. Também por isso – e muito mais pela força das tradições – não foi difícil descobrir que a vigorosa diversidade cultural, em Pernambuco, traz à tona a negritude, as raízes indígenas e ibéricas, as peculiaridades de uma fisionomia construída durante quase meio milênio. Os maracatus – de baque solto e virado – testemunham o magnetismo desse processo de conquista da identidade. Os mestres improvisadores de maracatu rural, ou de baque solto, são fiéis depositários de uma poesia tradicional, feita de improviso, fórmulas e formas fixas. Os batuqueiros e mestres de maracatu nação vivenciam no grupo, de modo reservado, rituais de candomblé, religião da qual participam. As pretinhas do congo, em Goiana, as cambindas de Pesqueira e Ribeirão são brincadeiras de carnaval que sinalizam a própria relação com maracatus e antigas festas de coroação de reis negros. No período junino, a dança das quadrilhas, os ritmos musicais – coco, ciranda, forró, xote, baião –, a culinária à base de milho, os bacamarteiros, os banhos, os fogos, as adivinhas delineiam uma fisionomia cultural e apontam para rituais pré-ccristãos na base das comemorações católicas em honra dos três santos de Junho. Os papangus, os caretas de carnaval e semana santa, as taboquinhas, a poesia de cordel e dos violeiros, os contos, as lendas, os romances e as xácaras, o cavalo-m marinho, o reisado, o samba de véio, o mamulengo, os pastoris testemunham a construção de identidade alicerçada na mistura de etnias e práticas ancestrais. É importante lembrar que o significado dessas manifestações sempre refletirá os valores e as crenças de certa comunidade ou grupo humano. No repertório da herança cultural da humanidade, o patrimônio imaterial é consti-


91

Chico Porto/JC Imagem

TRADIÇÕES

Os bacamarteiros delineiam uma fisionomia cultural durante o ciclo junino


92

TRADIÇÕES tuído pelas manifestações tradicionais de canto e dança, ritos, costumes, festas, literatura, medicina tradicional, artesanato, culinária, mitologia, arquitetura, idiomas, brincadeiras, práticas da vida social, usos, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, dentre tantos outros saberes detidos pelas coletividades, transmitidos oral e gestualmente, de geração a geração, de forma espontânea, num contexto social, cultural e intelectual de determinada cultura viva e em evolução. Segundo Ecléa Bosi, “sábia é a comunidade que confia à memória dos velhos a conservação do passado e sua articulação com o presente”. Considerando esta sábia atitude, e que a memória humana é um cabedal infinito do qual só conseguimos registrar fragmentos, justamente esses fragmentos de memória, reunidos, é que vão garantir a continuidade da identidade de grupo, proporcionada por pessoas e coletividades detentoras de saberes e técnicas, de tradições e rituais. Tesouros vivos – Não custa repetir que, em Pernambuco, a diversidade cultural é um fato. E para que essa diversidade humana seja cultivada, é necessário oferecer as condições materiais aos portadores da cultura tradicional, a esses tesouros humanos vivos. Na linha de ação da Unesco, há o propósito de “estimular os países a criarem

um sistema permanente de identificação de pessoas (artistas, artesãos etc.) que encarnam, no grau máximo, as habilidades e técnicas necessárias para a manifestação de certos aspectos da vida cultural de um povo e a manutenção de seu patrimônio cultural material”. Considerando sempre as particularidades de cada comunidade humana, a lista de tesouros vivos sempre será quase interminável. Em Pernambuco, o ideal seria poder inventariar minuciosamente as manifestações tradicionais de cada recanto, de cada cidade e povoado do Sertão, Agreste, Mata e Litoral, para conseguir chegar a uma idéia aproximada do que temos a defender. Interessante seria estar sempre entrevistando as pessoas envolvidas com o saber tradicional, registrando, catalogando, e, assim, deixar para a posteridade o testemunho desses saberes. Tudo isso sem negligenciar a tarefa de facilitar, no dia-a-dia, a transmissão às novas gerações, por meios tradicionais, desse repertório cultural. Na tentativa de contemplar este impulso do mundo contemporâneo em defender a riqueza cultural, num contexto de acelerada mundialização da cultura, e seguindo as diretrizes lançadas pela Unesco em 2001, quando promoveu, pela primeira vez, a Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade, o governador do Estado, Jarbas Vasconcelos, acaba

Leo Caldas/AE

O Bumba-meu-boi é um dos autos mais importantes da dramaturgia popular


Acervo Muhne

A literatura de cordel é produzida por poetas que interpretam a alma do povo

de publicar um decreto regulamentando a Lei Estadual nº 12.196, de 2 de maio de 2002, para estabelecer e fazer vigorar o Registro do Patrimônio Vivo de Pernambuco (RPV-PE). O objetivo é beneficiar, com uma bolsa vitalícia, os artistas e mestres da cultura popular e tradicional, a fim de possibilitar a preservação de manifestações culturais, a transmissão desses saberes às novas gerações e o reconhecimento aos artistas ainda em vida. A lei prevê uma bolsa no valor de R$750,00 mensais para pessoa física e de R$1.500,00 mensais para grupos culturais, desde que, há mais de vinte anos, participem de atividades culturais e residam em Pernambuco. As partes consideradas legítimas para propor candidatura ao registro são o secretário de Educação e Cultura, o Conselho Estadual de Cultura (CEC), a Assembléia Legislativa, os municípios pernambucanos, as entidades sem fins lucrativos cuja finalidade seja, dentre outras, a proteção do patrimônio cultural ou artístico do Estado. Cada parte legítima só pode apresentar uma candidatura por ano e, dos nomes e grupos propostos, serão anualmente escolhidos três, a partir da seleção feita por uma comissão designada

TRADIÇÕES

para este fim, cabendo ao Conselho de Cultura a deliberação e resolução final. Como o decreto é de 27 de dezembro, e o governo tem 90 dias para publicar o edital, mais 45 dias para selecionar grupos e pessoas, certamente entre julho e agosto já saberemos quais foram os escolhidos do ano para receber a bolsa, conforme o coordenador do RPV-PE, José Mário Austregésilo. É difícil e, seguramente, injusto apontar alguns dos ícones da nossa cultura popular, porque, na realidade, são muitos os que merecem a classificação de “tesouro humano vivo”. Mas, não custa nada lembrar que, no mundo da xilogravura, por exemplo, Dila, em Caruaru, e José Costa Leite, em Condado, são dois sábios senhores que retratam há décadas, de modo singular, o universo mítico nordestino em primorosa crônica visual. Da literatura de cordel, Francisco Sales Arêda criou alguns clássicos, como O homem da vaca e o poder da fortuna, e hoje vive completamente esquecido, até pelos padrinhos aristocratas, quando poderia estar ainda publicando os inéditos e republicando os títulos consagrados, que não são poucos. A cirandeira Lia de Itamaracá, o Velho Consolo de pastoril profano de Goiana e que também sai no carnaval de morto-carregando-o-vivo, os mamulengueiros Zé de Vina e José Lopes, a santeira Maria Amélia (Tracunhaém), o ceramista Manuel Eudóxio (Caruaru) são alguns dos nomes de referência quando falamos de cultura popular. O mestre de maracatu rural João Júlio, um dos mais antigos em atividade, é um representante da poesia genuinamente oral e improvisada: não sabe ler, nem escrever, e os belos versos que cria são resultado da tradição de oralidade na qual vive imerso. Zé Neguinho é da velha guarda do coco, tem magnetismo no canto e bom samba de pandeiro, sabe histórias incríveis do tempo em que roda de coquistas no Morro da Conceição varava as noites do sábado. Os artistas mencionados apenas exemplificam, neste texto, o vasto e rico universo da cultura popular em Pernambuco. Os dois citados por último – João Júlio e Zé Neguinho – vivem em situação econômica precaríssima. O que não é raro encontrar no meio dos artistas populares e, por isso, o Estado tem, sim, obrigação de oferecer condições materiais para que eles possam continuar representando, com dignidade, a nossa cultura. • Continente fevereiro 2005

93


94

TRADIÇÕES

Imagens: Reprodução

Registro da alma do povo Obra esgotada do historiador Pereira da Costa é relançada pela CEPE em edição primorosa Homero Fonseca

F

rancisco Augusto Pereira da Costa (1851- “é a própria região que se deixou prender, nos cantos, 1923) dedicou toda a sua vida ao estudo da nos contos, nas lendas, na alegria e no sonho, em história e da gente pernambucana. Em sua todas as modalidades da existência normal, trabalhaobra avultam o monuda e sincera no trágico cotidiano”. mental Anais Pernambucanos (10 voSuas 750 páginas, em que se inlumes) e o alentado Folk-lore Percluem um índice remissivo, estão nambucano, que vem a ser reeditado divididas em oito capítulos: “Superstiagora pela CEPE – Companhia ções Populares”, “Poesia Popular”, Editora de Pernambuco. Trata-se da “Romanceiro”, “Cancioneiro”, “Pasto2ª edição autônoma (foi publicado ris”, “Parlendas e Brinquedos Infaninicialmente, em 1908, como sepatis”, “Miscelânea” e “Quadras Porata da Revista do Instituto Histórico e pulares”. Geográfico Brasileiro; a 1ª edição Como explica Mário Hélio na inautônoma surgiu em 1974, edição trodução, “embora sendo mais coletado Arquivo Público do Estado), codor – bem no rastro de Sílvio Romero ordenada pelo jornalista e histo– e não um exegeta como João Ribeiro riador Mário Hélio, com ilustrações ou Lindolfo Gomes, é muito relevante do xilogravurista Dila, de Caruaru; Folk-lore Pernambuco – Subsídios para a sua contribuição”, na qual realiza “o artigo introdutório de Câmara Cas- uma história da poesia popular em cruzamento interdisciplinar entre o cudo, e trazendo, ainda, um CD- Pernambuco, F. A. Pereira da Costa, folclore e a História”. 2ª edição autônoma, CEPE, 750 Rom contendo, na íntegra, os Anais páginas com CD-Rom contendo, Trabalho, portanto, paciente e perPernambucanos, Vocabulário Pernam- na íntegra, os Anais Pernambucanos, sistente, de verdadeiro garimpeiro da bucano e Dicionário Biográfico de Per- Vocabulário Pernambucano e Dicioná- história, a registrar, por anos a fio, com rio Biográfico de Pernambucanos nambucanos Célebres. minúcia e paixão, costumes, lendas, miCélebres. R$ 70,00. Apesar do título, o Folk-lore Pertos, canções, poemas, danças, histórias, nambucano de Pereira da Costa não se limita às mani- crendices do povo, servindo de material imprescindível festações da alma popular de Pernambuco, mas de to- para o estudo e a compreensão da alma do povo, em da a região Nordeste. No dizer de Câmara Cascudo, especial pelas gerações futuras. Continente fevereiro 2005


TRADIÇÕES

Pérolas recolhidas – Entre as peças recolhidas por Pereira da Costa, em suas pesquisas em arquivos e jornais e andanças no meio do povo, estão, por exemplo, estes versos, constantes no item sobre os mistérios e terrores do mar em que, como em outros verbetes, ele analisa o substrato profundo e histórico das crenças populares: “Afirma por coisa certa E não duvida jurar, Que já viu estando alerta As nuvens co’a boca aberta Bebendo as águas do mar”. Entre as superstições populares, ele registrou uma lista de “O que faz mal”, de que ainda hoje existem sobrevivências nos meios populares, especialmente nas zonas rurais: Dormir em cima de mesa; Deixar os chinelos virados; Cuspir no fogo; Deitar pão fora; Abrir guarda-chuva em casa; Dormir com os pés para a rua; Contar histórias durante o dia, porque faz criar rabo; Comer às escuras, de chapéu na cabeça, em mesa sem toalha e com 13 pessoas à mesma”. No capítulo “Miscelânea”, há o registro de um desafio, em que a tensão racial é manifesta no duelo de improviso entre um branco e um negro: Há muito negro insolente, Com eles não quero engano; Veja lá que nós não somos Fazenda do mesmo pano, Disso só foram culpados Nabuco e Zé Mariano. Sou negro, mas sou cheiroso, Você é branco foveiro, Se quiser cantar comigo, Vá tomar banho primeiro; Eu tive um cavalo branco: Que era pior que um sendeiro. Pereira da Costa não se revelou um bom profeta: no verbete Maracatu, previu o fim desta manifestação artístico-religiosa, com base na conjuntura de decadência numa determinada época. Mas, como estudioso devotado das coisas do povo, produziu uma obra valiosíssima e deixou a imagem de autêntico missionário da pesquisa. • O lançamento do livro será no dia 10 de março, a partir das 17h, no Museu do Homem do Nordeste.

Continente fevereiro 2005

95


96

ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

Cultos inúteis Ou de quando algum imbecil chama qualquer um de “um dos melhores do Brasil” ou “do mundo”, no que faz

O

Brasil e suas patentes criadas sob o manto do ridículo e da hipocrisia. Aqui se criam tantos heróis, estadistas, intelectuais, reis, donos de qualquer coisa, mitos de todas as espécies, autoridades até de seguranças de bordéis, sempre forjados por abilolamentos de puxasacos de ocasião. Isso não é de agora há pouco, num instantinho de nada, não. Faz muito tempo. Verdadeiros cultos inúteis, ou de quando algum apresentador qualquer de televisão brada nas telinhas de nossas casas que seu convidado é sempre um dos melhores disso ou daquilo do Brasil ou do mundo. Que pena carregarmos um feixe tão pesado de complexos de identidades! E nesse espicha e encolhe, quixotescamente tudo vai sendo levado adiante, confundindo desde a maioria dos escolares de maternais às centenas de empertigados universitários sem preparo, saídos de um sem-número de novos colégios, cursinhos e faculdades particulares fundados, afundando de dinheiro os cofrinhos de seus respectivos empresários do ensino. De heróis não se tem conta. Para se ter um exemplo, um jogador de futebol que faz um gol nos minutos finais – e o seu time empata ou ganha uma partida – vai ter a glória do fim de semana, mas será constantemente lembrado até quando outro repetir a mesma façanha. São heróis de toda qualidade. Foi Caramuru e Cia., Zumbi, Lampião, Anita Garibaldi, Almirante Tamandaré, general Mourão, o bispo Sardinha, João Pessoa, Mascarenhas de Morais, Luís Carlos Prestes, Marighela, Antonio Conselheiro e uma porção de outros. Estadistas – desses nem é bom falar – têm um ruma num rol de rolar máquina de calcular. Já me falaram de 148 – o 149º provavelmente vai ser o nosso Lula lá, de cá – grandões, principalmente quando morrem. Estando vivo, todo político se embasbaca todinho quando algum colega, correligionário, parceiro, áulico ou Continente fevereiro 2005

jornalista anuncia que o dito é “um verdadeiro estadista”. Não há quem agüente tanto chaleirismo. Para não deixar de citar nomes, ouvi falar em Pinheiro Machado, Borges de Medeiros, Floriano Peixoto, Agamenon Magalhães, o governador Valadares, Otávio Mangabeira, Castelo Branco, Sarney, ACM, até o Paes de Andrade, Fernando Collor e FHC – para ficar por aqui, pois o Barão de Rio Branco, Getúlio Vargas e Juscelino, que poucos mencionam, talvez fossem os únicos que realmente merecessem o título. Intelectuais – aí é briga de foices e vaidades familiares. Todo mundo quer ser ou apenas chamado de intelectual e, quando isso ocorre, o escolhido arfa o peito, empina o nariz, desarruma os cabelos, excêntrico, confeita a boca e se dana a citar obras de autores famosos. Ninguém, porém, se lembra de que são contados nos dedos – se brincar, de uma só mão – os brilhantes literatos de elevado grau de qualidade cultural, capitaneados por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Os reis, então, com toda vênia, são excelências de majestades em todos os segmentos nacionais – viraram produtos. É rei ou rainha do brega, do futebol, do rock, do boxe e do mangue, dos baixinhos, do rap, do baião, do rebolado e do bumbum, da televisão, da jovem-guarda, dos golpes etc. Somente o rei Momo, na realidade, é que vale. Quanto aos mitos – uns políticos, é claro, que adoram constantemente aparecer em todas as listas de famosos – geralmente apenas fizeram ou fazem o tipo, lá se vem o Padre Cícero, Chiquinha Gonzaga, Miguel Arraes, Carmem Miranda, Gregório Bezerra, Frei Damião, Luz Del Fuego, dom Helder Câmara, Tenório Cavalcanti e Madame Satã entre outros. Agora, o pior dos cultos vem do quesito donos. Aí, sim, é a belezura da “elite” que elege – são gordos e sacanas. E no item de autoridades, paciência, não há um só nome. Também, pudera, há anos estamos carentes desse tipo.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.