Continente #051 - Teatro no sangue e na alma

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Valeria Goncalvez/AE

EDITORIAL

O diretor teatral Antunes Filho

O nome de um estilo

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o Sudeste, é comum que as pessoas, principalmente do meio artístico, digam: “Vou ver a nova peça do Antunes”, referindo-se à nova encenação do diretor Antunes Filho. Ninguém diz: “Vou ver a peça de fulano”, referindo-se ao autor do texto, nem “Vou ver a peça de sicrano”, numa referência ao ator principal, por mais famosos que sejam. A presença de Antunes Filho na direção é um fato tão forte que o espetáculo fica indissoluvelmente ligado ao seu nome, ao seu estilo, à sua marca, à sua “autoria”. Este paulista do Bexiga, nascido em 12 de dezembro de 1929, passou por múltiplas experiências, da teledramaturgia ao “distanciamento” de Brecht, e do Teatro Brasileiro de Comédia às encenações comerciais, antes de romper com tudo e encenar Macunaíma, em 1978, após um ano de ensaios intensos com atores desconhecidos. De lá para cá, Antunes Filho criou um método em que corpo e voz formam uma unidade chamada ator, ao mesmo tempo em que instituiu uma nova estética teatral, a partir de inquietações sociais, éticas e metafísicas. Depois de quase meio século de atividades, Antunes Filho, que hoje está à frente do Centro de Pesquisa Teatral, é um nome inseparável da evolução

do teatro brasileiro e uma referência internacional. Em entrevista exclusiva à Continente, o encenador fala do seu método revolucionário, da importância da formação de atores competentes para que exista um teatro brasileiro de qualidade, defende novas formas de apoio financeiro do Estado à atividade teatral e anuncia que um de seus próximos projetos é encenar um texto de Ariano Suassuna. O professor de Semiótica e escritor italiano Umberto Eco realizou um grande levantamento de textos e imagens que revelam as mudanças por que passou o conceito de beleza no Ocidente, do ideal estético na Grécia Antiga à beleza de consumo dos tempos atuais. Este trabalho, transformado em livro, é analisado pelo jornalista e escritor Luciano Trigo, nesta edição, num artigo em que o classifica como uma síntese inédita e multidisciplinar que inclui não só as artes visuais, a arquitetura e o design, mas também a música, a literatura e a dança. Continente traz ainda comentários sobre o curioso filme Mondovino que, mais do que um simples documentário sobre vinho, abrange outros temas, como globalização, identidade cultural, costumes, transmissão de valores e política. • Continente março 2005

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CONTEÚDO

Ilustração: Murilo

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Divulgação

22 08

O Canto de Gregório, nova encenação de Antunes Filho

A volta do cavaleiro de Ariano Suassuna

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CAPA

08 Dramaturgo, diretor, ator e professor, Antunes Filho personifica o teatro brasileiro

LITERATURA

MÚSICA 57 Quinteto Violado registra vozes de artistas populares do Semi-árido 61 Agenda/Música

18 Braulio Tavares, escritor, roteirista e cantador,

ESPECIAL

reafirma amor à palavra 22 Epopéia sertaneja de Ariano Suassuna na visão de um sulista urbano 26 Em Samuel Beckett, a obra construída a partir de sua irrealizabilidade 29 A luta de Pedro Américo de Farias com a palavra poética 30 O erotismo elegante da contista Olga Savary 32 Agenda/Livros

68 O ideal estético ao longo da História, por Umberto Eco 74 O Nominalismo no romance O Nome da Rosa

CINEMA

MEMÓRIA

44 Walter Carvalho se confessa um aprendiz ainda hoje

90 Centenário de morte lembra importância de Júlio Verne

38 Globalização e identidade cultural através do vinho

ARTES 50 Relações tortuosas de Goya com a Inquisição 56 Agenda/Artes

Continente março 2005

ARQUITETURA 78 A reforma radical do Scala, de Milão

PERFIL 84 É lançada a obra completa de Torquato Neto


Imagens: Reprodução

CONTEÚDO 78

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Monica Bellucci: a beleza na época atual

50 Os embates entre Goya e a Inquisição

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Distribuição de cargos para consolidar poder já vem de Carlos Magno

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 Se índice de leitura é traço de civilização, somos uns bárbaros

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 48 Jesús Soto e suas "aparições geométricas" no Rio

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 Filme sobre Vatel é epifania da mesa como uma arte superior

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 65 Um texto do cronista Antonio Maria sobre trabalho e Paris

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Os critérios de verdade, beleza e ética foram deformados

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Com Oscar ou não, a vida da sétima arte é bela Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente março 2005


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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Março Ano 05 | 2005

Continente

Capa: cena da peça O Canto de Gregório, dirigida por Antunes Filho, tendo à frente a atriz Arieta Corrêa

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta e Daniel Sigal Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Anna Karolina Pereira de Melo Reanata Melo Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente março 2005

Foto: Divulgação

Colaboradores desta edição: ARTHUR AGUIAR é jornalista. ASTIER BASÍLIO é jornalista e cantador de viola. BRENNO KENJI KANEYASU MARANHÃO é professor de Inglês e Literatura Inglesa. CARLOS ANDRÉ M. CAVALCANTI é doutor em História pela UFPE. Leciona História Moderna e História das Corporações Empresariais na UFPB. É diretor de Publicações do Instituto da Gestão – INTG. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. EMILIE LESCLAUX é formada em Ciência Política, com especialização em Desenvolvimento. FÁBIO ARAÚJO é jornalista. FELIPE PORCIÚNCULA é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é poeta, escritor e autor de Armada América, entre outros. GUILHERME AQUINO é jornalista. KLEBER MENDONÇA FILHO é cineasta e crítico de cinema. JULIO LUDEMIR é jornalista, escritor e autor de Lembrancinha do Adeus, entre outros. JULIO MOURA é jornalista e compositor. LUCIANO TRIGO é jornalista, escritor e autor de Engenho e Memória, Todas as Histórias de Amor Terminam Mal, O Globo/ Grandes Entrevistas – Os Escritores, O Viajante Imóvel, entre outros. MACKSEN LUIZ é crítico de teatro do Jornal do Brasil. OLGA SAVARY é escritora, tradutora, jornalista e autora de 17 livros pessoais, entre os quais Repertório Selvagem: Obra Reunida; ganhadora de vários prêmios literários, entre eles o Jabuti. Integra Os Cem Melhores Contos do Século e Os Cem Melhores Poemas do Século, pela Editora Objetiva. PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. PEDRO AMÉRICO é poeta e publicou, sempre em edições de autor, os livros: Inominado (1972), Conversas de Pedra (1981) e Picardia (1994).

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.


CARTAS O melhor da cultura impressa Quem escreve é Rebecca Carvalho – mais uma vez e, quem sabe, sempre –, não mais para, como de praxe, parabenizálos ou coisa parecida (até porque isso é o que todos fazem diante de tamanha excepcionalidade), mas sim para agradecê-los “do fundo do coração” por ceder espaço às palavras desta jovem leitora, e mais ainda, por atenderem ao meu pedido com a não menos excelente revista do mês de dezembro, com a capa “Feminismo” e as melhores reportagens sobre mulheres. Ou estaria eu apenas sonhando? Afinal, numa sociedade onde grande parte das mulheres nada mais é que sombras masculinas, discípulas ocasionais de um retrógrado sistema machista, chega-se a duvidar da existência feminina, ou de uma real contribuição por parte das mulheres à evolução humana. O que vocês fizeram foi, no mínimo, instigante a manifestações femininas (e/ou feministas, por que não?) na arte, em sua mais ampla contingência (quer seja brasileira ou universal). Falar sobre a Camille Claudel, Virginia Woolf e Nísia Floresta foi demais; o suficiente para me fazer ganhar o dia! São essas e outras surpresas (agradabilíssimas, diga-se) que me fazem ir até a banca de revistas e de lá sair com total convicção de estar levando para casa algo com conteúdo. Deixo, desde já, meus sinceros votos de felicidade a todos que fazem deste “o melhor exemplar de cultura impressa”, e, claro, votos de prosperidade à Revista nesse ano que se inicia. Rebecca Carvalho, Recife - PE Devolução pesarosa Li, pela primeira vez, a Revista Continente em janeiro de 2005 e fiquei encantada. Não só pelo fato de ser comemorativa aos 400 anos de Dom Quixote, mas porque é uma revista adorável, de qualidade gráfica inquestionável e, sobretudo, de conteúdo relevante. Li praticamente a revista inteira e, ao final, foi com pesar que eu a devolvi ao seu verdadeiro dono – era um exemplar emprestado. Naquele momento eu entendi, pela enésima vez, por que as pessoas “se esquecem” de devolver livros, revistas e CD’s emprestados. Mas eu tinha que devolver. Agora serei assinante, assim como leitora assídua. Que bom, termos uma publicação com tanta qualidade! Anna Cristina de Araújo, Brasília - DF Tesouros de Pernambuco Pernambuco vem dando, já há algum tempo, mostras de sua consciência acerca da importância do patrimônio cultural imaterial. Seja com publicações como a Continente Multicultural, seja com o projeto Pernambuco em Concerto, seja com várias outras iniciativas do gênero. Parabéns a Pernambuco, aos seus artistas e

aos articuladores políticos que obtiveram esta importante vitória na preservação das nossas manifestações culturais (matéria “Os tesouros vivos de Pernambuco”, edição nº 50). Rita Gusmão, Belo Horizonte - MG Odisséia no Sertão Sensacional o texto de Homero Fonseca sobre a cultura grega no cordel (edição nº 49). Não se chamasse ele Homero. Foi um orgulho ver o excepcional ensaio da Cláudia Cordeiro no mesmo exemplar. José Nêumanne, Rio de Janeiro - RJ

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

A racionalidade limitada Parabéns pelo excelente “A racionalidade limitada”. Lembrou-me Simon Wiesenthal, o “Caçador de Nazistas”, quando disse: “Acredito em milagres, porque sou realista.” Que D. Quixote e Sancho Pança nos acompanhem. Jacques Ribemboim, Recife - PE

Países Lusófonos 1 Gostaria de parabenizá-los pela excelente edição de janeiro da Continente Documento. O passeio pela língua portuguesa me fez enxergar melhor a singularidade de cada povo que fala esta língua, sua cultura diversa, entre outros fatores. A arte da Revista também contribuiu para esse esclarecimento. Parabéns! Walleska Rodrigues, via e-mail Países Lusófonos 2 Muito interessante a edição nº 29 da Continente Documento. Estamos em falta, no entanto, com uma comunidade lusófona importante – até por razão histórica – que é a pequena comunidade galega... Os galegos sentem orgulho de terem originado a nação portuguesa, mas vivendo sob domínio espanhol, desde o século 15, lutam pela afirmação de seus valores históricos e culturais, usando como arma sobretudo o seu idioma galego-português! João Liberato, Recife - PE Qualidade Impressionante a qualidade da Continente. Não temos isto por aqui. A Aplauso está na mesma linha, mas... coitada dela se formos fazer comparações. A revista é boa, o pessoal que escreve é ótimo, só que é muito provinciana. Milton Ribeiro, Porto Alegre - RS

Fidelidade Parabéns a todos que fazem a Continente. Li a Revista durante uma viagem que fiz ao Recife e me apaixonei. Mostrei-a a alguns amigos e todos gostaram de tudo: reportagens, temas abordados, linguagem, qualidade do papel e, principalmente, a essência cultural e fidelidade ao nome da Revista – prezando pela cultura, arte, música, entre outras formas de entretenimento e conhecimento. Ainda não a assinei, mas assim que possível irei assiná-la. Procurei muito por ela aqui na cidade onde resido e em João Pessoa, mas não a encontrei. Joarlan de Sousa, Campina Grande-PB Narcisismo Bastante pertinentes as matérias sobre narcisismo, publicadas na edição de janeiro. Neste nosso tempo pós-moderno, no qual tudo é efêmero, o corpo é cultuado, enquanto o intelecto é esquecido. A ótima matéria de Paulo Polzonoff Jr. mostra o importante papel dos meios de comunicação na celebração da embalagem. Imagem é tudo e o programa Extreme Makeover é a prova disso. Minha filha que, vez por outra, preocupa-se demais com a balança, terminou lendo e refletindo bastante sobre o tema. Obrigado. Vocês estão sempre despertando reflexões importantes e profundas. José Novaes, Rio de Janeiro – RJ Errata 1 As fotos publicadas na página 78 da edição nº 50 são da Agência Estado, e não de Gentil Barreira. Errata 2 A foto publicada na página 69 da edição nº 49 não é do Extreme Makeover, e sim de participantes do programa em debate na TV americana. Continente março 2005

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CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes

Feudalismo moderno A presença de Carlos Martel na História faz o martelo continuar a bater na cabeça do povo

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Zenival

o ano de 496, o Reino dos Francos racionaliza, cortando a própria carne, quando o rei Clodovico, num ato de extremismo político, assassina todos os seus parentes e unifica o reino com a fusão da população romana com a germânica e adota a fé católica. Os reis que se seguiram a Clodovico, por serem exemplos de reis vitimados pela inércia, admitiam que, no caso de incompetência de um superior, quem mandava era o Secretário de Estado ou Chefe do Palácio, como foi o caso de um mordomo chamado Carlos Martel. Este, que funcionava como um chefe de governo, era habilidoso e cultivador do poder. Por sua competência, foi chamado para organizar o exército no sentido de conter o avanço dos árabes. Para tal empreitada teve uma idéia brilhante e inovadora. Combinou o princípio da lealdade germânica com a concessão de bens eclesiásticos. Quem se empenhava militarmente com os seus vassalos, recebia terras para uso próprio, que, em parte, podia conceder aos seus súditos. Deste modo, Carlos Martel, que ganhou o apelido de “martelo”, comandou a primeira vitória dos francos, impedindo o avanço dos árabes na Europa. Com essa ação engenhosa e vigorosa propaganda, o princípio da sua organização militar cresceu e acabou por determinar a organização da sociedade da época: a combinação entre vassalagem e a concessão de feudos. Assim, o Estado territorial romano converteu-se num Estado baseado em vínculos pessoais. Estava consolidado um novo princípio de organização social: o feudalismo. E uma nova forma de relações institucionais: o clientelismo. O ambiente feudal era propício ao clientelismo clerical. Se quisermos entender como esse sistema funcionava do ponto de vista político, não custa ao leitor observar como tem funcionado a história dos partidos e dos governos no Brasil. Na Idade Média, o chefe do partido negociava com o governante e com os chefes de partidos aliados a ocupação dos cargos estratégicos, das chefias nacionais regionais e locais. Seriam os duques, os condes e tempos depois, os cavaleiros. Dessas posições dependia uma rede de funções que os detentores dos cargos estratégicos usavam para distribuir

com seus séqüitos. Estes apoiavam o governante, porque sempre esperavam em troca uma rica quantidade de cargos e de benesses. Entre esses, existia aquele que, pela sua capacidade e pelo seu prestígio pessoal junto ao governante ou por ser da família, podia receber e distribuir cargos, incorporando ao governo um maior número de vassalos. Eram os hábeis e competentes. Esta teia de relações formava um circuito fechado de súditos leais. Quem tinha feudos a conceder, tinha vassalos. Quem tinha vassalos, tinha acesso a cargos, privilégios e benesses. Essa foi uma das fórmulas adotadas por Carlos Magno, neto de Carlos Martel, para consolidar o feudalismo e ampliar suas conquistas. No entanto, o mesmo circuito fechado pode atuar ao contrário, quando a sorte trai o homem que lidera. Se cometer erros em demasia, a sorte o abandona. Os seus seguidores também. Era precisamente por isso que na Idade Média se apelava tanto para a fidelidade e gratidão. Isso fez da Idade Média a época das querelas partidárias. A concorrência entre os legítimos e os hábeis era uma constante. O programa do partido reduzia-se invariavelmente ao líder. Ao chefe de uma rede de influências. Naquela época, o mote político se confundia com o clã familiar: Capuleto, Montéquio, York ou Lencastre. A história está aí para se entender melhor as raízes dos princípios que sobrevivem e dão sustentação ao nosso sistema político e a sua luta dialética para se mostrar novo e moderno. Os ensinamentos de Carlos Martel continuam sendo aplicados pelos governantes e por seus prepostos. A sua presença na história faz o “martelo” continuar a bater na cabeça do povo. A realidade sofre suas mutações de contexto, mas o homem se mantém o mesmo. Os interesses pessoais continuam se sobrepondo aos interesses sociais, independentemente de virtuais ideologias e de siglas partidárias. As elites políticas fazem jus à história e continuam presas aos seus círculos de importância e interesse. O mote político de hoje ainda se confunde com Sarney, ACM, Quércia, Maluf, Lula e, agora, sem máscara, com Severino. • Continente março 2005

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CAPA

Corbis

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Um homem chamado

TEATRO Aos 75 anos, com quase meio século de carreira, Antunes Filho já dirigiu mais de 40 peças Arthur Aguiar

A

palavra Teatro poderia ser incorporada ao nome de Antunes Filho, tão forte sua relação com a expressão artística e a marca que deixou na história das encenações do país nas últimas cinco décadas. Dramaturgo, diretor, encenador, montador, ator e professor, aos 75 anos, Antunes Filho já trabalhou em mais de 40 peças, tornando-se essa personificação do teatro brasileiro. Marco dessa trajetória, Macunaíma, montagem sua do livro de Mário de Andrade que levou mais de um ano para ficar pronta e estreou em 1978, normalmente é considerado seu principal trabalho. Para Antunes Filho, a peça foi apenas uma das mais importantes, mas foi, sem dúvida, um ponto de ruptura para a dramaturgia nacional, mudando a forma de ver e fazer teatro. Antunes Filho é atualmente o coordenador do Centro de Pesquisa Teatral, um dos mais importantes centros de produção cultural em teatro da atualidade, vinculado ao Sesc São Paulo. Criado em 1982, o CPT promove pesquisas estéticas e realiza uma ativi- dade intensa no campo da formação de atores, de técnicos e de outros criadores cênicos. Segundo Antunes Filho, o Centro fornece as ferramentas para que o ator trabalhe todas as habilidades teatrais, improvisando e preparando do texto à direção.


Valeria Goncalvez/AE/Divulgação

O encenador é, atualmente, o coordenador do Centro de Pesquisa Teatral, um dos mais importantes centros de produção cultural em teatro da atualidade


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CAPA Além disso, o CPT cria produções próprias – está em cartaz atualmente com a peça O Canto do Gregório – , entre as quais se destaca o Prêt-à-Porter, espetáculo criado pelos próprios atores do CPT, a partir do improviso, passando por todas as fases da produção e encenação e que já teve cinco edições. Segundo Antunes Filho, ele permite que os atores também “se tornem” teatro. Para ele, o Teatro deve ser o mais realista possível, captando pequenas nuanças da atuação do ator, expondo os sentimentos dele sem os tradicionais gestos amplos e fala alta a que se associa a interpretação em palcos. Para Antunes Filho, o ator deve sussurrar, se a cena pedir isso, por mais que possa dificultar a audição de pessoas da platéia. Ele deve se preocupar com uma atuação o mais natural possível, aproximando-se da realidade. Suas produções são marcadas por uma linguagem natural, fugindo de estereótipos. um expressionismo em busca do real e começando sempre pelo improviso de cenas com atores.

Em entrevista à Continente Multicultural, Antunes Filho falou sobre a importância da formação de atores competentes para que exista um teatro brasileiro de qualidade. Para ele, a atuação chega a ser até mesmo mais importante que a criação do texto, uma vez que o bom ator pode transformar um texto fraco em uma grande apresentação, enquanto um ator ruim consegue acabar com a dramaticidade do melhor dos textos. Ele defende novas formas de apoio financeiro do Estado ao Teatro, cobra um nivelamento pela alta qualidade e diz que quem trabalha com o Teatro tem que investir em formação, se dedicando, esforçando e se tornando artista, e não se acomodando como se fosse funcionário público. Depois de quase 50 anos dedicados ao Teatro, Antunes Filho revela que o trabalho que sente não poder incluir no seu currículo até agora ainda vai ser realizado: trata-se de uma obra de Ariano Suassuna. Ele só não revela qual. Nelson 2 Rodrigues, de Nelson Rodrigues, em montagem do CPT

Continente março 2005


CAPA

Sempre se diz que Antunes Filho é defensor da existência de um “teatro brasileiro”. O que é este teatro? É o que vai existir quando o homem brasileiro tiver uma escolaridade perfeita, uma cultura suficiente e apoio do governo para poder fazer um teatro de qualidade. Vivemos sempre de chapéu na mão e fazemos teatro com uma precariedade de ator muito grande – não uma precariedade de palco, mas de técnica do ator. O teatro brasileiro não poderá crescer, se não tivermos grandes atores, e para termos grandes atores – e não gritadores de cena, ou fazedores de gestos em cena, mas atores de fato –, no dia em que tivermos isso, eu tenho certeza que o autor brasileiro vai crescer, vai aparecer muito mais. A técnica do ator delimita a criação da autoria do texto. Simplesmente ter algum talento e ímpeto de palco não faz da pessoa um ator. Ímpeto de palco e intuição são muito bons desde que trabalhados. Não trabalhados, tanto faz como tanto fez. Não dá em nada. Então o “teatro brasileiro” é uma questão mais de técnica de que de estética? Não estou falando de estética, mas sim de técnica de ator. Corpo e voz, estou falando disso. Enquanto não tivermos essa preparação cultural, continuaremos a gritar em cena, a nos jogar no chão, de maneira e inútil. Tentando fazer com isso um teatro que está mais no campo da acrobacia e do circo, quando deveria ser do ator, de uma vida espiritual muito grande e transformando aquilo que o autor escreveu em poesia. Quer dizer que o ator pode vir a ser mais importante que o próprio autor? Sim. Neste sentido que eu estou falando. Às vezes se pega um texto ruim e se encontra um grande ator que é capaz de transformar aquilo numa coisa maravilhosa. O ator transforma. E às vezes você pega grandes textos, e

um ator ruim prejudica tudo e o autor fica uma porcaria, porque o ator não sabe fazer. Nesse contexto, qual a importância do trabalho do CPT na formação do teatro brasileiro? O CPT tem uma importância reconhecida em toda a América Latina. O CPT não faz você ator, mas dá a semente, a indicação, a orientação para um dia a pessoa se tornar ator. Com o conhecimento técnico e cultural que se adquire aqui, a pessoa pode se desenvolver com o tempo e se tornar um grande ator. Isso se o lado Macunaíma, da preguiça, não o atacar. Quando vemos grandes atores trabalhando, tem gente que fala: “Isso é na Alemanha”, “na Rússia”, “na Suécia”. Não, porra, é no mundo! O cara que trabalha aqui tem que ser melhor que o ator russo. O ator brasileiro tem que ser melhor que o ator americano, esses babacas que trabalham em cinema. Vivemos sempre de chapéu na mão correndo atrás deles... “Aquilo é distante”, dizem. É distante para ser superado rapidamente. O ator brasileiro que eu quero é um ator que faz muito melhor de que qualquer um desses caras. Eu quero que o brasileiro estoure, que seja mais, e o CPT dá conhecimento para isso. Agora, se o cara leva o bastão até lá eu não sei, isso depende de cada um. Nesse tempo passado desde a criação do CPT, qual o sr. acha que foi a maior conquista alcançada? Aqui, no Sudeste, o Teatro já é mais contido, não se fazem tantos gestos, já não se grita mais, não se é mais estabanado. Nós também demos uma leitura estética nova e interessante a Nelson Rodrigues, em Nelson 2 Rodrigues, O Eterno Retorno, a Macunaíma e ao teatro brasileiro, de uma forma geral, que começou a deslanchar. É a busca de uma técnica e estética. São obras significativas e importantes para a cultura brasileira como um todo. Continente março 2005

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Emidio Luisi/Fotograma/Divulgação

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CAPA

E quais as perspectivas do CPT? Eu parei meu trabalho por oito anos, para poder aprender tudo o que se podia saber sobre voz. Passei essa época, atuando como o que mais detesto: pedagogo, mestre. Estamos criando um padrão de voz para o teatro brasileiro. Mas a voz não pode se separar do corpo. Essas duas coisas físicas, a voz e o corpo, são uma coisa só, na realidade. E quando se faz a voz separada do corpo, dá errado. Depois desses oito anos, passamos a fazer um teatro mais experimental, artístico. Ali eu não era só diretor, era também encenador de teatro, o que eu havia deixado de lado antes para ser diretor e professor, mas continuando a trabalhar na formação dos atores. Se você não tiver um ator preparado, com cultura e técnica suficientes, não adianta de nada, sai sempre aquela gritaria, as pessoas pensam que “uêuêuê” (gesticula fortemente e grita) é teatro. Joga-se no chão, rola. Isso impressiona, é claro, a platéia aplaude, mas não é teatro em prosa, é um teatro diferente, que eu nem sei como chamar. Como é possível manter o profissionalismo no Brasil, se a situação financeira, como o sr. disse, faz com que quem trabalha no Teatro esteja sempre “de chapéu na mão”? Eis um problema muito grave. Eu sou completamente a favor da lei de fomento à cultura. O que eu discuto são os critérios. Eu acho que algumas pessoas não podem ser eternamente contempladas, enquanto outras ficam à margem. O que eu quero é que a comissão que analisa os projetos possa selecionar um terço dos beneficiados – claro que nomes como o de José Celso Martinez Corrêa têm que ser sempre apoiados pelo Estado –, mas os outros dois terços deveriam ser escolhidos por sorteio. E quem ganhar uma vez, não pode concorrer na vez seguinte, só depois. Há algum processo mais democrático de que esse? Eu quero a democracia. Não quero que nenhuma comissão possa escolher todos os beneficiados, porque isso cai numa análise pessoal e pode ser feita até uma escolha ideológica. E como fica a situação do ator, especialmente o que está começando, sem retorno financeiro de seu trabalho? Eu comecei minha carreira profissional trabalhando no Teatro Brasileiro de Comédia. Trabalhei durante um ano e meio, esperando salário, e não ganhei um tostão, mas eu aceitava porque estava investindo em mim. O ator tem que investir nele. Se for um grande ator ou


CAPA Cena de Macunaíma, espetáculo marcante na carreira de Antunes e na história do teatro brasileiro

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CAPA diretor vai ter emprego sempre. Aí é que está, você quer ator funcionário público ou quer ator ator. Se o cara se aplicar e se tornar um grande ator, ele tem emprego em qualquer lugar do Brasil. Mas se o cara quer fazer teatro e quer ter a profissão de ator, não pode. Não existe a profissão de ator, existe o artista, o homem dedicado à arte. É isso que eu defendo, um nivelamento por cima. Só nivelando por cima é que o Brasil vai conseguir abrir espaço e se tornar uma grande nação, desenvolvida. Sempre somos subdesenvolvidos, miseráveis, achando bom tudo o que vem de fora. Não! Nós temos que ser melhores que todos os que vêm de fora.

Lenise Pinheiro/Divulgação

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Aqui em São Paulo e no Rio há grandes produções de teatro, permanentemente, com espaço para o trabalho artístico. Mas como ficam os Estados fora desse eixo? Aí é um problema dos municípios, dos governadores e do presidente. O incentivo do Estado tem que ser dado após uma análise profunda. O que sempre acontece é que o dinheiro é dado, apenas, para calar a boca de quem cobra, e não para desenvolver a cultura. Essas pessoas que distribuem dinheiro nos Estados querem apenas que fique tudo tranqüilo, não oferecem uma assessoria de técnica cultural de qualidade, que ajude a desenvolver. Só dar dinheiro é assistencialismo, que é a pior forma de paternalismo que existe. Se se é paternalista com alguém, esse alguém não se desenvolve, não evolui. O importante é dar uma assistência em técnica cultural e algum dinheiro para a coisa funcionar. Senão o cara pega o dinheiro para fazer um espetáculo por um ano e, depois disso, o cara está de volta na esquina, vendendo pipoca. Não! Nesse tempo a pessoa tem que trabalhar duro, tem que se dedicar, desenvolver-se e não ficar em botequim. Geralmente, as pessoas envolvidas com o Teatro se acham estrelas... Vai trabalhar! O sr. consegue ver trabalhos de qualidade sendo desenvolvidos fora do Sudeste? Costumava ver antigamente, quando o teatro de todo o Brasil vinha para São Paulo, mas sempre eram expressões mais ligadas à cultura e folclore locais, da origem de cada espetáculo. É importante que haja essa força da terra e do folclore brasileiro, mas isso deve ser apenas a inspiração, a matéria-prima para que as pessoas que trabalham teatro em outros Estados trabalhem e transformem em grandes obras. Simplesmente fazer folclore não leva a canto nenhum. É importante mantê-lo vivo, para poder extrair coisas para investir no futuro, já que essa é a matéria-prima, a raiz, e é fundamental, mas precisa desenvolver o tronco, os galhos, as folhas e as flores. Nós temos um ótima raiz, um puta folclore, mas não é para ficar adorando isso, é para pegar e transformar em grandes obras, sem contaminá-la. Há espaço, mesmo em São Paulo, para o teatro de arte, ou o lado comercial domina todo o país? Pouco. Eu tenho um público garantido, o Zé Celso tem um público. Sempre que há um trabalho bom, o disse-que-disse – e não a crítica – Continente março 2005

José Celso Martinez, na peça Ela, de Jean Genet: homem de teatro respeitado por Antunes


CAPA “Estamos criando um padrão de voz para o teatro brasileiro. Mas a voz não pode se separar do corpo. Essas duas coisas físicas, a voz e o corpo, são uma coisa só, na realidade”

faz do espetáculo um sucesso. A crítica aqui, em São Paulo, é paternalista e elogia quase sempre, querendo ajudar as pessoas, mas não sabem que dessa maneira estão prejudicando os artistas. Quando a crítica for dura, o artista vai crescer. Quando ele só recebe elogios, isso acaba sendo corrosivo, pode até eliminar o artista. É possível fazer sucesso de uma crítica verdadeira e de público ao mesmo tempo? É difícil, mas é possível, às vezes acontece. Às vezes o crítico quer ser mais artista que o artista, quer inventar, mostrar que sabe... Mas para ser crítico de teatro, é preciso ter uma preparação, uma certa idade, experiência. Aí o cara sai de uma escola de teatro e quer fazer crítica? Só vai falar bobagem. Vai falar em Adorno, em Stanislavsky, umas bobagens velhas, e não sai daí. Eu quero ver o cara que viveu, que conhece culturas, já viajou, que pode comparar, porque a crítica é uma coisa comparativa, antropológica. Falando um pouco de seu método de trabalho, sempre se citam três características bem específicas de seu trabalho: o improviso, a linguagem e a ligação com o expressionismo. O que essas três especificidades representam para o sr.? A gente começa a fazer improvisos para que as pessoas aprendam. O ator, às vezes, chega aqui, fazendo assim (faz gestos largos e bruscos), mas aí ensinamos a condição da simplicidade humana de agir, de andar, sem entrar na teatralidade babaca. O ator tem que me convencer, como se fosse um quadro da vida real. É um naturalismo quase rasteiro, mas é por aí que começa. Daí vai se desenvolvendo com jogo de corpo e de voz até que vai sair do naturalismo e vai cair no realismo. São coisas significativas do naturalismo selecionadas e extraídas para o nosso trabalho. Nesse sentido, é que fazemos o Prêt-à-Porter, que eu acho fundamental porque o ator cria, imagina, faz a dramaturgia, atua e dirige, tudo ao mesmo tempo. Isso dá um cabedal extraordinário, para que os atores possam trabalhar no futuro. Ele deixa de ser ator e passa a ser tudo. Ele é teatro. Há exercício melhor do que o ator chegar aqui, imaginar uma cena, escrever essa cena, dirigir essa cena e atuar nessa cena? A pessoa, se for inteligente, consegue arrancar o máximo disso em sua formação. Quanto ao expressionismo, é uma coisa própria do Teatro como um todo. Colocar pessoas em cena já é uma expressão, aquela coisa dramática, mas nós não fazemos o dramático de ansiedade no palco. O grito é um expressionismo burro. O expressionismo é uma coisa dramática, interior, forte, que se desenha de forma expressiva. O Teatro em si é expressionista, mas não precisa ter um estilo expressionista, eu uso esse estilo porque é um estilo mais teatral que os outros. Eu gosto muito do expressionismo. Não é aquele sentimento de ansiedade, gesticulado e gritado, esse é um mau expressionismo, é uma bobagem, é contorcionismo... Eu sou contra a linguagem estereotipada, que é babaca. Gosto de chegar ao realismo – que permite que se trabalhe qualquer estilo, desde Continente março 2005

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CAPA za de que daqui a 15 ou 20 anos, mesmo depois que eu não estiver mais vivo, essas coisas vão dar certo. É isso que eu estou tentando: dar uma consciência, conhecimento, técnica às pessoas. Discute-se muito, aqui no CPT, oferecemos referência através de cinema e gravações internacionais para que os atores possam medir como se deve agir, ter uma referência. Eu não vou ter a Globo como referência, não quero me espelhar em atores de novelas. Mostro grandes atores e grandes trabalhos, não para imitá-los, mas para desenvolver uma consciência e permitir o aprimoramento da técnica própria, brasileira. Você tem que saber de Stanislavsky e companhia, e não saber quem trabalha na novela da Globo. Eu quero grandes artistas do meu lado, para discutir com eles, e não para ficar de chapéu na mão pedindo ajuda, mas enfrentando de igual para igual. O ator brasileiro tem maO que mudou no Antunes Filho depois de 50 anos nia de ficar cabisbaixo frente a tudo o que vem de fora. de carreira? NÃO (grita e bate com a mão na mesa)! Vá tomar baNada. É o mesmo, só que processado, é um processo. nho, levanta a cabeça, aprende... Mas para isso é preciso Eu era jovem e processei tudo. Aquilo que se planta se estar munido de cultura e de técnica. colhe adiante, eu estou colhendo o que plantei desde o Normalmente se fala em Macunaíma como seu trabaprimeiro dia, quando trabalhei um ano e meio sem salário. Agora estou colhendo e ainda continuo plantando. lho mais importante. O sr. concorda? Foi um dos mais importantes, mas acho que fiz muita E está satisfeito com a “colheita” até agora? coisa de mérito, mesmo antes de Macunaíma. Fiz Peer Sim. Me dá muita alegria saber que as pessoas estão Gynt (de 1971), que foi muito importante, assim como crescendo por si, sem assistencialismo. A gente começa a Vereda da Salvação (de 1993), Nelson Rodrigues... perceber que o homem brasileiro tem pérolas dentro de Quando comecei a trabalhar, Nelson Rodrigues, ideolosi, o que é maravilhoso. Estou vendo que pouco a pouco gicamente ainda não se podia montar, era proibido tanto estou conseguindo desabrochar essas flores. Tenho certe- pela direita quanto pela esquerda política da época. Eu peguei e dei uma dimensão poética a Nelson Rodrigues, o que não tinha sido feito até então, criou-se um padrão a partir daí.

Divulgação

uma comédia de costumes, um bulevar, um vaudeville, uma tragédia, um drama –, o ator realista é capaz de trabalhar qualquer estilo através dele, através do naturalismo. A idéia é fazer do ator senhor de seu corpo e de sua voz em busca da expressão. O homem é sua expressão, então o ator é a sua expressão, mas as pessoas pensam que o ator é só batalha interna. Não, o que interessa é aquilo que ele sabe expressar. Se o ator não consegue expressar, de boas intenções o inferno está cheio. Se o ator sente o drama e não consegue expressar, tchau... É isso que o CPT tenta ensinar. O artista, o ator é sua expressão. Todo homem, todo cidadão é sua expressão. Não adianta ser dramático: se não tem expressão, pegue esse drama e jogue na fossa.

E qual sua perspectiva de trabalho daqui para a frente? Continuar com o Prêt-à-Porter, que é essencial para os atores, as montagens do nosso centro de dramaturgia, vamos publicar um livro com os dramaturgos do CPT. Vamos montar Antígona, um espetáculo de dança de Carmem Miranda... Há algum projeto que o sr. sempre quis fazer, mas até hoje não pôs em prática? Eu vou fazer: Suassuna. Cena de O Canto de Gregório, mais recente trabalho de Antunes Filho

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Que trabalho dele? Por enquanto isso é tudo o que eu digo: Suassuna. •


Pura emoção teatral

Heloísa Greco Bortz/CCSP/Reprodução

Luís Melo à frente do elenco em Vereda da Salvação, de Jorge de Andrade, montada por Antunes Filho, com o Centro de Pesquisa Teatral/SESC

Para Antunes Filho, cada encenação é um tratado de investigação da cena como totalidade, como algo essencial Macksen Luiz (1978) foi o ponto de inflexão da carreira M acunaíma do diretor paulista Antunes Filho. Antes, desde o

início da década de 50, Antunes percorreu a trajetória de formação de um encenador num país em que o Teatro parece ser uma arte decorativa, investindo em suas descobertas através da prática de observação e de estudos. Diretor assistente no então todo-poderoso Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), foi lá que, servindo cafezinho e devorando o que via, compartilhou da técnica de Adolfo Celi, da carga teórica de Ruggero Jacobi e da convivência com atores (Cacilda Becker, Paulo Autran, Fernanda Montenegro) de uma geração basilar da cena nacional. Paralelo à experiência tebeciana, Antunes Filho buscava seus caminhos em outros palcos, dirigindo teleteatro na TV Cultura, encenando, com surpreendente segurança, uma série de textos de origem anglo-saxã (O Diário de Anne Frank, Plantão 21, Week-end, As Bruxas de Salém), com fugidas à Europa, contemplado com bolsas de estudos e impelido pela necessidade de “ver teatro”. O seu papel no TBC, no entanto, cresceria como a ascensão de diretores brasileiros na direção artística da Casa. Yerma e Vereda da Salvação marcariam a passagem de Antunes pelo teatro da Rua Major Diogo, e encerrariam também as atividades do grupo fundado por Franco Zampari. Livre e ao sabor de uma carreira, mais ou menos comercial, ainda que pautada por inquietação permanente, Antunes enfrentaria o desafio de montar textos de carpintaria tradicional (A Cozinha, Blackout, A Grande

Chantagem), além de clássicos (A Megera Domada e Peer Gynt) com a apetência pelo espetáculo bem acabado, mas nada perturbador. Incomodado com essa trajetória, decide romper com esse fluxo do bem-feito com Macunaíma, revisão cênica do romance de Mário de Andrade, em que o caráter brasileiro do seu teatro se universaliza em imagens que remetem a outra forma de apreensão da experiência teatral. Macunaíma provoca esse renascimento cênico, que se tornaria um meio de estar no Teatro e um método de refazê-lo, que a criação do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) consolidaria. De Nelson Rodrigues a Shakespeare, de cânticos ancestrais à versão fonética da fábula do Chapeuzinho Vermelho, de tragédias gregas a Guimarães Rosa, Antunes experimenta no CPT algumas de suas obsessões teatrais, que deságuam nas atuais montagens em cena na sede do grupo, em São Paulo. Tanto O Canto de Gregório quanto Prêt-à-Porter se constituem em demonstrações de que cada encenação é, para Antunes, um tratado de investigação da cena como totalidade, como algo essencial. Os dois espetáculos se complementam na tentativa de descobrir “a emoção teatral pura”, que o onipresente mago do CPT persegue e depura a cada montagem, convergindo para as suas teorias baseadas na preparação do ator mais integrado em cena, criador de “jogos infinitos”, intérprete de uma dramaturgia que reflita “um avanço no campo do conhecimento para, através dele, encontrar saídas para o caos que está aí”. • Continente março 2005

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O escritor e cantador paraibano revela que foi através da palavra escrita que se tornou letrista, dramaturgo, jornalista e roteirista

A polivalência de Bráulio Tavares

Reprodução /AE

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Julio Ludemir

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escritor paraibano Bráulio Tavares vive em mundos simultâneos, como se fosse um dos personagens da ficção científica de que tanto gosta e da qual é um dos maiores especialistas no Brasil. O link que o transporta para universos aparentemente antagônicos, como a literatura de cordel nordestina e o cinema surrealista de Luis Buñuel, é a palavra que aprendeu a amar e a manejar nos livros da vasta biblioteca do pai, o jornalista Nilo Tavares. Foi com ela que se tornou parceiro de Lenine em algumas pérolas da música popular brasileira, ajudou a dar projeção internacional ao artista multimídia Antônio Nóbrega e vendeu mais de 50 mil

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exemplares com as piadas que rechearam Como Enlouquecer um Homem. “Para mim, tudo isso é literatura”, simplifica. Um poderoso Hubble para radiografar os mundos de Bráulio Tavares é o livro 243, no qual reúne todos os artigos que publicou entre os dias 26 de março e 31 de dezembro de 2003, no Jornal da Paraíba. Essa obra só obedeceu a um critério de seleção: os artigos seguem uma ordem cronológica. Mas se o objetivo dessa publicação é pretensioso (“quero facilitar as futuras pesquisas dos estudiosos da minha obra”), a sua concepção se dá por intermédio de uma maneira toda própria de pensar, onde a capacidade de associar idéias é muito mais forte do que a capacidade de criar


LITERATURA

Antonio Bandeira/AE

conceitos abstratos generalizantes. “Gosto de pegar duas coisas e mostrar o que elas têm de parecido e de diferente”, explica. É assim que consegue enxergar a cadeia de relações que une o folclore e a cultura digital, título de uma coluna que publicou em junho de 2004, que fará parte da coletânea 314, cujo lançamento está previsto para 2005. O bom humor, tão presente em sua vida quanto a sua polivalência, dá a falsa impressão de que Bráulio Tavares é uma espécie de Dorival Caymmi da literatura. Redondo engano, como se pode constatar com a aterrissagem de dois outros recentes títulos de sua autoria nas livrarias. Um deles é A Tradição do Romanceiro (o título ainda não havia sido definido pela Editora 34 até o fechamento desta edição), livro resultante de um curso que ministrou para professores da rede pública de São Paulo, em uma de suas muitas parcerias com Antônio Nóbrega. O outro é Os Martelos de Trupizupe, uma coletânea dos martelos agalopados que escreveu nos últimos 30 anos. Bráulio Tavares também está envolvido na criação de pelo menos três roteiros cinematográficos, dentre os quais está a adaptação do livro Faca, do cearense radicado em PE, Ronaldo Correia de Brito. Homem de trato afável, ele tornou-se um mestre na criação de parcerias artísticas, dentre as quais a mais longa e mais importante talvez tenha sido a que fez no final da década de 1970 com a conterrânea Elba Ramalho. Foi graças a ela que abandonou as noites olindenses, onde, no improvisado palco do Centro Cultural Luiz

Freire, fez o primeiro show de sua vida ao lado de Zé Rocha, o Batida de Madrugada. O sucesso da gravação de “Caldeirão dos mitos” levou-o ao Rio de Janeiro num semileito da Itapemirim, sonhando com uma carreira de letrista nos moldes da de Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro e Ronaldo Bastos. Mas o apadrinhamento de Elba Ramalho, para quem escreveu o roteiro do show Coração Brasileiro, em 1983, não foi o bastante para que se afirmasse nesse mercado de cartas marcadas. “Só voltei a ser gravado na década de 1990, quando o MPB4 se interessou por uma de minhas parcerias com Lenine, a ‘Virou areia’”. Depois de uma breve passagem como redator de Os Trapalhões, começou a percorrer o então efervescente circuito de bares cariocas, dentre os quais pontificava O Violeiro, para manter em dia o aluguel do apartamento. “A luz no fim do túnel só apareceu depois da metade da década, quando comecei a traduzir histórias de amor para a Rio Gráfica, que mais tarde virou Editora Globo.” Era a sonhada entrada no mercado editorial, no qual se sentia muito mais seguro do que com um violão que nunca teve paciência de afinar e a sua inconfundível voz rouca. “O livro sempre foi o meu aquário, nele eu nado como peixe.” As conquistas foram surgindo naturalmente, como o ensaio O que é ficção científica, que publicou pela então prestigiada coleção Primeiros Passos, da saudosa Brasiliense. Depois veio o Prêmio Caminho de Ficção Científica de 1989, com o livro A Espinha Dorsal da

“Gosto de pegar duas coisas e mostrar o que elas têm de parecido e de diferente”

A peça Brincantes: trabalho conjunto com o artista multimídia Antônio Nóbrega

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LITERATURA Memória. “O prêmio, concedido por uma importante editora portuguesa, me dá mídia até hoje”, afirma. Além de garantir o aluguel, o circuito de bares lhe abriu algumas portas importantes no show business carioca. Uma delas foi a do diretor de cinema e televisão Luiz Fernando Carvalho, que viu uma de suas apresentações no Rio Jazz Club, e fez o convite para que trabalhasse no especial Auto de Nossa Senhora da Luz, exibido pela Rede Globo. Bráulio escreveu os versos cantados com emoção por Antônio Nóbrega, que interpretou o narrador da história. Essa parceria também resultou na antológica adaptação da peça A Farsa da Boa Preguiça, de Ariano Suassuna, para a televisão. Bráulio Tavares desconfia das pessoas que apresentam suas vidas de modo linear e seqüencial, principalmente quando estão falando das influências que vão determinar a sua produção artística. E exemplifica: “Conheci e curti o rock, o cinema de vanguarda e o jornalismo ao mesmo tempo, quando tinha 15 anos e não perdia um jogo do Treze de

Campina Grande.” Mas não é à toa que, em apenas duas horas de conversa, faz duas referências ao tsunami de modernização que o então reitor Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque promoveu na vida cultural da Paraíba, quando contratou uma série de jovens, em sua maioria cariocas e paulistas recém-formados. Foi nessa mesma onda que se transferiram para Campina Grande quatro integrantes do Quinteto Armorial (Antônio José Madureira, Fernando Farias, Fernando Barbosa e Edilson Eulálio). “Eles se tornaram meus companheiros de farra”, lembra. Embriagouse, então, de cerveja e da cultura popular nordestina, redescoberta pela juventude depois da publicação de A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Aquele era um momento difícil para Bráulio Tavares, que acabara de chegar de uma temporada de dois anos em Belo Horizonte, onde havia estudado cinema. “Podia ter ido tentar uma vida de roteirista no Rio de Janeiro, como fez a maioria dos meus amigos”. Tinha consciência do

O marco do martelo Livro de Bráulio Tavares, lançado em 2004, traz poemas pautados pelo mais difícil dos estilos da cantoria de improviso Astier Basílio

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livro Os Martelos de Trupizupe (Engenho de Arte, Natal, 2004), do escritor Bráulio Tavares, é a prova cabal da riqueza do universo estético do cancioneiro popular nordestino e da sua possibilidade de aproveitamento e recriação estilísticos, sem os purismos obscurantistas que os clicheriza. Bráulio Tavares, num estilo bastante pessoal, oferece ao público leitor poemas pautados pelo mais difícil dos estilos da cantoria de improviso, que é o martelo. São ao todo 26 poemas, todos antecedidos por uma espécie de nota introdutória cujo objetivo é permitir uma imersão no universo da época em que as glosas ou estrofes foram feitas, iluminando os significados da leitura. Do intenso convívio com os violeiros, Braulio adquiriu uma extraordinária capacidade, quase mimética, de reproduzir os truques e recursos retóricos, temáticos e

rítmicos, muitos dos quais ainda em voga no universo da poesia oral. É o que podemos ler na estrofe do poema “Nem de menos nem de mais”. “Eu não quero a vitória sem ter feito/ um esforço pra ser digno dela,/ nem aceito a derrota, quando ela/ é injusta, e eu fiz tudo direito;/ qualquer homem no mundo está sujeito/ a querer enganar os seus rivais/ mas as ordens que vêm de Satanás/ eu não ouço, e se ouvir desobedeço;/ eu só quero na vida o que mereço/ não aceito de menos nem demais”. Boa parte dos poemas data do final dos anos 70, início dos 80 do século passado, período em que o escritor participava ativamente da organização do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina Grande, por trabalhar no Museu de Artes da Furne, e privava da amizade cotidiana de repentistas como Ivanildo Vila Nova, Geraldo


LITERATURA momento político do país e sabia que, com sua mente libertária, se sentiria frustrado, escrevendo roteiros para uma indústria então dominada pelas pornochanchadas. Preferiu mergulhar no mundo dos repentistas, que lhe deu a régua e o compasso para compor com precisão a maioria dos versos que escreveu tanto para os seus três livros de poesia como para as suas inúmeras letras de música e, é óbvio, os seus cordéis. A convivência com os cantadores também vai influenciar os seus textos teatrais, que começou a escrever muito mais por causa do amor pela atriz Arly Arnaud, sua primeira mulher e mãe de sua filha Maria, do que por afinidade com esse tipo de narrativa. “Ela foi estudar na Universidade Federal da Bahia e eu fui junto”, confessa. Começa então a fase de “subempregos eventuais na área artística”, como explica com seu característico humor no texto “As profissões do poeta”, publicado em Os Martelos de Trupizupe. Fez muito sucesso como cantador do espetáculo Oxente, Gente, Cordel, com o

qual fez temporadas, sempre com casa cheia, em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Nessa mesma época, escreve Quinze Anos Depois e O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei, ambas escrachadas comédias populares, que iriam antecipar a estética que consagrou em Brincante e Segundas histórias, feitas em parceria com Antonio Nóbrega na década de 1990. Para ele, porém, o verdadeiro ponto de contato entre esses dois momentos é o mesmo que une todas as suas facetas: a palavra escrita. “Foi com ela que me tornei letrista, dramaturgo, jornalista e roteirista.” Algumas pessoas o criticam por fazer várias coisas ao mesmo tempo, ora chamando-o de pretensioso, ora chamando-o de superficial. Para enxergar as invisíveis conexões entre uma cantoria de viola e a escrita automática de Breton, basta ler Bráulio Tavares. Ainda que você só possa fazer isso vendo o cantador de Parahyba, Mulher Macho, filme de Tizuka Yamazaki sobre a vida de Anayde Beiriz, onde o escritor Bráulio Tavares mais uma vez rouba a cena. •

Amâncio, entre outros. Alguns trabalhos foram gravados em disco, como é o caso de “Marco Marciano”, por Lenine, “O Poder da Natureza”, por Zé Ramalho e “Nordeste Independente”, por Elba Ramalho, cuja letra aqui aparece na versão original do autor com todas as glosas, inclusive as que não foram incluídas na gravação da cantora. Elba, na gravação, escolheu quatro glosas de Ivanildo Vila Nova e duas de Braulio Tavares. Um pequeno detalhe: Ivanildo Vila Nova, no disco Nordeste Independente não gravou nenhuma estrofe de Bráulio Tavares. Para além disso tudo, a assimilação do martelo comparece em temas não muito usuais ao universo da cultura popular e em alguns momentos até em formas diferentes, experimentais até, com utilização de rimas toantes, esquema rimático diferente. Como pode ser lido nos poemas “Mon Vieux Français”, “Inner Space” e “Um ano, um Mês e um Dia”. Nestes instantes, vê-se o escritor que lê Asimov, o cinéfilo que assiste a um Bergman, um ator que estuda Peter Brook, o músico que ouve Bob Dylan, que escreve os seus martelos valendo-se de todo o referencial de leitura e visão de mundo. Da mesma forma como o repentista, no calor do desafio, quando canta “ciência”, procura avantajar-se do colega de cantoria, demonstrando conhecimento. “Comecei aprendendo com Drummond/ traduzi os poemas de Ezra Pound/ as baladas de Dylan, o underground,/ e a escrita automática de Breton;/ Maiakovski foi quem me

deu o tom/ João Cabral me ensinou o ponteado/ com Rimbaud aprendi ser afinado/ pra cantar o oceano com Neruda/ treme o sol, treme a terra, o vento muda/ quando eu canto um martelo agalopado". São dedicados três capítulos da experiência de ator e co-autor, quando da montagem do espetáculo Oxente Gente, Cordel, de João Augusto, encenado em 1977 e 1978, quando Braulio Tavares residiu na cidade de Salvador. Junto do ator Zelito Miranda, o escritor interpretava um repentista. Ambos cantavam martelos escritos por Bráulio. O interessante é que até o cacoete de ofício dos cantadores que cantam de improviso, o da supressão ou distensão de uma sílaba, na linha de um verso, aqui também pode ser visto. Um “olhar de lupa” diria se tratar de um erro. Ao meu ver, os pequenos tropeços neste caso, dão ainda mais um sabor de verdade, de verso feito na hora, e isso deve ter amplificado o efeito de verossimilhança da atuação. Ao teorizar sobre o esqueleto temático do martelo, e mais do que isso, ao praticá-lo com aptidão admirável e estabelecer subcategorias temáticas para os assuntos recorrentes no metiê da cantoria, Bráulio Tavares deixa na boca dos leitores que admiram o repente o gostinho de como será valioso um livro seu dedicado à arte e ciência do improviso. • Os Martelos de Trupizupe. Editora Engenho de Arte, 120 páginas, R$ 22,00.

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LITERATURA

Ilustrações: Murilo

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A peleja de Quaderna contra o urbanita Paulo Polzonoff Jr.

Obra-prima de Ariana Suassuna, que narra uma epopéia sertaneja, A Pedra do Reino é analisada por um jornalista e crítico literário curitibano

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inha relação com a obra de Ariano Suassuna está intimamente ligada à infância. Ainda menino descobri o humor de João Grilo e Chicó, personagens de sua peça O Auto da Compadecida. Naquela época de inocência, porém, não havia o dramaturgo; apenas a história, os personagens, os causos e o Mussum como Cristo importavam. Depois, mais velho, recorri novamente ao Auto para descobrir ali talvez a melhor peça de teatro já escrita neste país. Há humor, carisma, crítica, drama e simbologia de sobra para cativar gerações. Talvez por ter estabelecido uma relação tão próxima com a peça, jamais me arrisquei a ler o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Não era má-vontade, e, sim, medo de me decepcionar. Mais de uma vez levei o calhamaço para casa, depois de horas perdido na Biblioteca Pública do Paraná. Não me atrevi a lê-lo, porém. Continente março 2005

Eis que agora a editora José Olympio relança o livro, fora de catálogo havia 20 anos. Olho para o livro, o livro olha para mim. Escuto Millôr Fernandes no meu ombro direito dizendo que é o melhor livro já escrito no Brasil. Sinto um frio percorrendo minha espinha. A opinião de Millôr Fenandes é importante. O medo antigo de me decepcionar desaparece. Mas já então percebo que minha capacidade de ler está completamente comprometida, porque perdi a inocência. O homem que encantou minha infância com seu Auto da Compadecida já não era só um nome. Havia ganhado um rosto, uma voz e opiniões não raro diferentes da minha. Ora, se eu queria ler A Pedra do Reino e sobre ele opinar com honestidade, precisava me desvencilhar deste encosto que é, para a obra, o seu próprio escritor. Não foi tão difícil. Descobri que minha leitura poderia ser muito mais límpida do que se imaginava. Até porque a imagem que eu tinha do autor estava


LITERATURA

apagada, sedimentada sob alguns bons anos de leituras e também algumas reviravoltas pessoais. Se, no auge do meu apego ao romance urbano, este livro me tivesse caído em mãos, não resistiria; depois, se eu o tivesse lido, quando tudo o que queria eram aristocratas ingleses, não teria um destino melhor do que a poeira da estante. Se agora o leio é porque me sinto afastado das impurezas da vida literária. No entanto, é preciso alertar: acredito que ler é, em essência, uma experiência individual. Se um homem se dispõe a falar sobre um livro que leu não é para impor sua opinião sobre os demais. Nem para demonstrar superioridade intelectual. Por algum motivo, estabeleceu-se no Brasil, entre público e crítica, uma relação de mestre, na qual sobra autoritarismo de um lado e rebeldia de outro. Eu prefiro acreditar na crítica como um diálogo entre iguais. O quanto isto é utopia, é outra história. Ao livro, pois. Romance d’A Pedra do Reino levou 12 anos para ser escrito e parte de um acontecimento histórico: um levante de cunho sebastianista no interior de

Pernambuco, no longínquo ano de 1838. Mas Suassuna não se prende ao evento histórico para compor o seu romance. Ele é apenas o ponto de partida, a teoria na qual se apóia a loucura de Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, o narrador que se considera o herdeiro legítimo do trono do Brasil, em oposição à “farsa dos Bragança”. Parece claro, ao menos para mim, que sebastianismo é o conceito que norteia toda a saga d’A Pedra do Reino. É o pilar desta epopéia sertaneja e também a lente pela qual se pode perceber melhor a riqueza deste mundo imaginário. O sebastianismo é a crença na volta do rei Sebastião, morto numa batalha contra os mouros, no norte da África. A lenda é ibérica, mas veio para o Brasil junto com os portugueses e aqui criou raízes. Justamente porque mistura messianismo com uma dose farta de marxismo, antes mesmo de o termo existir. Uma das premissas da volta do D. Sebastião é a de que ele fará dos pobres ricos e dos ricos pobres. É, portanto, o anuncia-

Escuto Millôr Fernandes no meu ombro direito dizendo que é o melhor livro já escrito no Brasil

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LITERATURA dor de uma nova Revolução, uma inversão de valores que há de redimir os homens de tanto sofrimento, ao mesmo tempo em que punirá alguns por tanto abuso. Em A Pedra do Reino, porém, o sebastianismo, como tudo o mais, é visto com profundo humor. E uma pitada de alucinação. D. Pedro IV, o Decifrador, é o Salvador da Pátria da vez. Para assumir o trono e colocar sua coroa de couro e metal vagabundo, precisa reconquistar o território da Pedra do Reino. A saga de Quaderna em muito lembra a de Quixote – e não me parece que tal aproximação seja casual. O romance é uma apropriação dos mitos ibéricos e, sobretudo na primeira parte, sobram referências aos romances de cavalaria. Mas tudo no Romance d’A Pedra do Reino suscita dúvidas. Lê-se uma troça numa página, para duvidar dela na seguinte. A ambigüidade reside na força e na tortuosidade das opiniões de Ferreira-Quaderna. É de deixar qualquer um louco. Eu, ao menos, fiquei. Terminei o livro sem ter uma imagem muito clara do que pensa o rei-sertanejo. Há nele algo de fidalgo, sim; um tantinho de lunático também; e há muito de popular, o que me parece um paradoxo. Poderia dizer que o Romance d’A Pedra do Reino é uma divertida subversão de valores milenares na medida em que faz do homem rude um rei. Deste modo, Quaderna se insere dentro de uma tradição na qual os reis eram homens escolhidos por Deus, donos dos destinos dos homens comuns e imensamente superiores em sua razão. Só que Quaderna é povo e é plebeu. Toda aristocracia que se preze também tem uma arte aristocrática e Continente março 2005

O que o Romance d’A Pedra do Reino tem de mais importante é o apego à simbologia. Não é à toa que Quaderna carrega o epíteto de Decifrador. A ele cabe fazer uma ligação entre os símbolos que marcam mitologia ibérica e suas mutações sertanejas

um academia para legitimar cada passo do rei. No caso do Romance d’A Pedra do Reino, a literatura é a de cordel, que Quaderna chama de folheto. O sonho monarquista do personagem só existe, na verdade, porque há extensa bibliografia informal sobre o assunto que, de certa forma, o legitima como herdeiro do trono e o faz sonhar não só com genealogias sagradas como também com símbolos que criam uma fértil iconografia real. Tudo devidamente adaptado à fauna e flora nordestinas, como é conveniente. Curioso é perceber como Quaderna é um rei submisso à palavra dos intelectuais. É em crônicas supostamente eruditas que se sustenta o improvável reinado de D. Pedro IV, o Decifrador. Para dar mais credibilidade a estas fontes, o narrador não poupa adjetivos escandalosos. Todos os homens de letras que algum dia escreveram qualquer coisa sobre o reino são geniais, admiráveis, fantásticos, excelentes, magistrais. Por coincidência, são todos acadêmicos, no pior sentido da palavra. Quaderna se sente ine-gavelmente atraído por este saber todo cheio de pompa. Como convém, aliás, a um monarca, mesmo que ele use sandálias e chapéu de couro. Mas o que o Romance d’A Pedra do Reino tem de mais importante é mesmo o apego à simbologia. Não é à toa que Quaderna carrega o epíteto de Decifrador. A ele, como narrador da epopéia, cabe fazer uma ligação entre os símbolos que marcam a mitologia ibérica e suas mutações sertanejas. É um trabalho grandioso. E também uma floresta bastante densa para o leitor penetrar. Uma simples caçada no romance contém vários elementos da tradição européia. Muito útil, neste sentido,


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é o uso de alguma iconografia no livro. Mais do que meras ilustrações, elas são a apropriação de um código que norteia todas as dinastias européias. A riqueza do Romance d’A Pedra do Reino traz um pouco de luz para quem vê no folclore sertanejo apenas manifestações de alguma primitividade. Já Paulo Francis disse que o nordeste vive no século 16. Suassuna, de certo modo, diz a mesma coisa, mas enquanto o falecido jornalista queria era insultar, o romancista procura engrandecer este caráter conservador do sertanejo. O que para alguns é sintoma da miséria, para outros é a revelação de uma riqueza mística que vai muito além da interpretação puramente política do sebastianismo e suas conseqüências. O senão do Romance d’A Pedra do Reino fica por conta da sua poesia. Ou falta dela. É interessante, como um livro que se apega tanto às rimas dos cordéis pode deixar despercebida a poesia neles contida. Não que Suassuna desdenhe da beleza, mas a mim parece que lhe faltou o toque que transforma determinado acontecimento mágico, em sua concepção, na beleza mais pura – ainda que incompreensível. Talvez – e aqui já tergiverso – haja nesta aridez do texto algum sentido mais óbvio e a mim, homem do sul, caro. Cheguei a pensar numa aproximação entre a aspereza da prosa do romance e a rudeza do sertão nordestino, mas me contive numa necessária autocrítica. Às vezes a prosa tem que ser o que é, sem desculpas. E o Romance d’A Pedra do Reino é árido a ponto de fazer os menos persistentes desistirem.

Uma geração toda de leitores ficou afastada do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. São leitores urbanos como eu, de certo modo acostumados mais à prosa moderna, ágil e violenta dos escritores das grandes cidades. Não é o mal de uma geração, mas quase. Quase todos vimos os romances do semi-árido serem reduzidos a uma prosa regionalista, para a qual os críticos de agora torcem o nariz com cara de nojo. Vencer este abismo é, também, tarefa do leitor. E o Romance d’A Pedra do Reino é um livro a ser conquistado. Afinal, por sob a aspereza de uma prosa densa se esconde um reino onde tudo é possível, porque Quaderna manda, Quaderna quer, Quaderna enxerga. E a nós cabe a obediência ao homem que voltou para redimir-nos – e que não é o Homem. •

Romance d’A Pedra do Reino, Ariano Suassuna, Editora José Olympio, 756 páginas, R$ 69,00.

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LITERATURA

A palavra inominável

Reprodução

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Samuel Beckett buscou uma arte que almejasse significar sua incapacidade para qualquer significado Brenno Kenji Kaneyasu Maranhão

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egundo Beckett: “Não há nada para expressar, nada com o que expressar, nada de que expressar, força alguma para expressar, vontade alguma de expressar, juntamente com a obrigação de expressar.” Com essas palavras, Samuel Beckett definiu sua poética. Nessa busca em que o absurdo é matiz e matéria, nunca o trabalho com as palavras foi mais luta – e mais vão. No entanto, o irlandês autor dos memoráveis Esperando Godot, Watt e Fim de Partida extraiu desse absurdo, com rigor e empenho talvez inéditos, sua mais profunda coerência. Toda sua vasta obra, em particular sua prosa narrativa e dramática, tem como fio condutor a constatação de sua própria irrealizabilidade; aquilo que a outros seria impasse, à sua arte é impulso – uma arte, como ele mesmo dirá, cansada de seus débeis Continente março 2005

feitos, exausta de se fingir capaz, de realizar os velhos truques de sempre, de avançar uns poucos passos ao longo de uma estrada já gasta por tantos outros. A semelhança com o labor de Sísifo, contudo, não se resume à sua proposta. Seus personagens, em meio ao absurdo em que são postos, têm plena consciência da vanidade da situação, e no entanto a ela permanecem fiéis, vítimas de um esvaziamento caricatural e deliberado da significação de seus atos, quedando apenas com a forma vazia da ação pura e simples. Esperando Godot, por exemplo, tem sua ação, como o próprio título sugere, em uma espera. Mas Beckett vai além em sua busca por uma arte que almeja significar sua incapacidade para qualquer significado: toda a peça versa, em verdade, sobre a ausência de uma peça. Os personagens, como a platéia, aguardam


Robbie Jack/CORBIS

LITERATURA

Encenação da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett

a vinda de alguém que nunca chega. Enquanto isso, passam o tempo e, muitas vezes, como se não houvessem aprendido propriamente seus papéis e tivessem de improvisar, deixam transparecer não terem muita idéia de como fazê-lo: VLADIMIR: O que fazemos agora? ESTRAGON: Esperamos. VLADIMIR: Sim, mas enquanto esperamos. ESTRAGON: Que tal nos enforcarmos? Todavia, a poética beckettiana encontra sua inspiração, se assim for legítimo exprimir-se, em uma época mais distante, remontando aos pitagóricos da antigüidade grega. É sabido que eles acreditaram ser possível a representação do universo pelos números – estes, limitados, até então, ao conjunto dos racionais. Movidos por essa crença, os pitagóricos realizaram cálculos cada vez mais complexos na tentativa de explicar um conjunto de dados de complexidade também crescente. Seu progresso foi sem dúvida notável, mas somente até descobrirem algo que não haviam absolutamente previsto: os números irracionais. Essa descoberta suscitou neles o que o próprio Beckett chamou de “terror pitagórico”. Números imensuráveis como pi logo passaram a ser objetos de culto secreto, em que os iniciados deveriam jurar jamais

divulgar sua existência às pessoas. Tais números foram chamados de Alogon (Inomináveis), e não é por acaso que o último romance da trilogia beckettiana, sem dúvida sua mais ousada realização artística, tem como título O Inominável. Atente-se, ainda, para a etimologia da palavra absurdo: do latim ab + surdus (oculto ou secreto). É bastante sugestivo o fato de que já no primeiro de seus romances, Murphy, Beckett chama seu protagonista de surd, vocábulo inglês que como adjetivo significa irracional e como substantivo designa justamente os números irracionais. Com efeito, a relação é ainda mais profunda: ao se negar a trilhar o caminho já traçado por tantos outros artistas, ao abrir mão das técnicas disponíveis e já prontas, ao optar, enfim, por exprimir aquilo que crê desde o início inexprimível, numa tarefa fadada ao insucesso (mas não por isso menos tarefa), utilizando-se para tanto, escritor que é, das palavras, Beckett se coloca em uma situação análoga à dos pitagóricos, aterrorizados diante do desconcertante oxímoro dos números incomensuráveis. “Terror”, porém, está longe de ser a palavra apropriada ao escritor irlandês e seus personagens. Há neles, antes, uma espécie de desesperada resignação (o oxímoro, mais uma vez, é apenas aparente), tal como expressa nas últimas sentenças de O Inominável, no qual seu protagonista, ser Continente março 2005

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LITERATURA

sendo possível, inclusive, a constatação, na composição de seu conjunto, de um cartesianismo às avessas: no primeiro dos romances que a compõem, Molloy, seus protagonistas são sujeitos de uma jornada que aos poucos os vai degradando; no segundo, Malone Morre, o “Beckett era dado a protagonista se vê enfurnado em um quarto, e toda a história é oriunda de silêncios, e Joyce seu solilóquio e de narrativas paratambém; ambos lelas por ele inventadas; no terceiro e engajavam-se num último, O Inominável, o protagonista diálogo que muitas carece de um corpo, sendo, ao que tuvezes consistia só de do indica, apenas uma voz (mesmo essilêncios dirigidos sa hipótese é também questionada), e um ao outro, ambos toda a narrativa pode ser entendida coinundados de tristeza, mo o processo mental desse ser imaa de Beckett em geral terial que, como ele mesmo conjetura, talvez nem chegue a ser. Ruma-se, porpelo mundo, a de tanto, de um palpável e perecível sum a Joyce por si mesmo” um puro cogito. De fato, “lutar com as palavras é a luta mais vã”. Beckett certamente concordaria com o verso drummondiano e, em especial, com sua continuação. Sua busca poética, perfeitamente coerente em meio ao absurdo que lhe serve de substância, foi o desdobramento de uma personalidade soturna e solitária, o ceticismo melancólico (porque, em mais um oxímoro, esperançoso) indefinido e indefinível, se vê obrigado a falar inter- diante do mundo e da arte – esses dois mundos – caminavelmente, sem jamais saber o quê, para quê, convicto nalizado para o seu próprio fazer artístico. Richard a todo instante de que não tem nada a dizer: “Devemos Ellmann, em sua biografia de James Joyce, ao descrever prosseguir, não posso prosseguir, devemos prosseguir, os encontros entre os dois, nos mostra esse seu lado, já prosseguirei, devemos dizer palavras, enquanto elas então presente no jovem Samuel: “Beckett era dado a existirem... será o silêncio, onde estou, não sei, nunca silêncios, e Joyce também; ambos engajavam-se num disaberei, no silêncio não se sabe, devemos prosseguir, álogo que muitas vezes consistia só de silêncios dirigidos não posso prosseguir, prosseguirei.” um ao outro, ambos inundados de tristeza, a de Beckett Outra presença constante na obra de Beckett é o em geral pelo mundo, a de Joyce por si mesmo.” pensamento do filósofo francês René Descartes. Uma Podemos talvez sintetizar a realização ímpar desse irdas origens do sentimento do absurdo, teorizado por landês – vasta obra que compreende romances, fragpensadores como Albert Camus e Jean-Paul Sartre, e mentos em prosa, um ensaio, poemas e peças – e a busca que viria a caracterizar o movimento dramático dos à qual se manteve fiel por toda a vida nas palavras finais anos 50 a que se deu o nome de “teatro do absurdo”, de um dos seus personagens: “Mas ao fim eu compreestá na dualidade cartesiana entre sujeito e objeto: este endi sua linguagem. Eu a compreendi, a compreendi, como res extensa (substância extensa), aquele como res talvez de forma completamente errada. Isso não é o que cogitans (substância pensante), essencialmente incompa- importa. Disseram-me para escrever o relatório. Isso tíveis. É ela a causa da insuperável nostalgia do homem, significa que sou agora mais livre do que era? Eu não sei. em busca de uma unidade inexistente em um mundo Saberei. Então retornei à casa e escrevi, É meia-noite. que se lhe recusa à apreensão. Na própria trilogia A chuva bate nas janelas. Não era meia-noite. Não beckettiana, a presença das idéias cartesianas é inegável, estava chovendo.” •

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POESIA

Luta mais vã d'après Drummond Pedro Américo de Farias

O poeta toma café, tenta escrever a palavra, em greve, cruza os braços e lhe mostra a língua O poeta, vexado, oferece um café seduz a palavra, afaga-lhe o ego conhece-lhe um parente chama-se cognato gente do peito O poeta dá duro, mal rompe a manhã a palavra não dá a mínima rainha de si, sem dicionário nem sinônimo O poeta proclama, em guerra santa procura-se, viva ou morta, a palavra gratifica-se O poeta dorme, sonha palavras disfarçadas ovelhas nuvens de fonemas derretem chovem versos, poemas inteiros o poeta delira A palavra responde: boa-noite estou de passagem, mas se te interessa trocamos idéias, metáforas ou bebemos um trago de frivolidades Ou por outra, emendamos bigodes em beijo de línguas, derivamos fagueiros

caminho da fonte de sua excelência etimologia Palavra e poeta, entre tapas e beijos jogam-se rasteiras, íntimos toques velhos amigos, distanciados reaproximam-se passada a guerra Em lua-de-mel, o poeta excede ingere, ansioso, sopa de advérbios e outros acessórios corrige a tempo: chá de boldo com leite de cabra Passada a borrasca, dorme, sonha, vê sentadas, conversam quatro palavras duas em G: Graciliano e Guimarães duas em R: Ramos e Rosa recebem convidados Diadorim, Riobaldo Sinhá Vitória, Fabiano noventa minutos de sonho e conversa O poeta acorda, feliz, saciado estica-se, passa a mão, encontra nonada Palavra, gato noturno escapuliu, sem rastro nem rosto •

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PROSA

O Rei dos lençóis Olga Savary

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lhar, olhava-o há anos. Vê-lo era ver veludo, que assim o chamavam. Veludo. Veludo Negro – ela repetia, incansável. Diziam-no sem vez na terra. Como, se era o Rei dos Lençóis? Era assim: dizque, sofisticado, deitava em lençóis negros com mulheres brancas, em brancos com mulheres negras. Desejoso de contrastes aquele altivo talo de palmeira alta, os bagos vermelho-escuros explodindo na boca o vinho dos frutos do açaizeiro, a boca arroxeando, era puramente roxa, quase negra. Negra como a pele macia e negra de Veludo.

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PROSA

– Que sucesso o de Veludo com as mulheres! – diziam, com inveja. – E olha que nem de raça pura ele é... – Raça pura é para animal. Ser humano é miscigenado – respondia rindo, sábio e zombeteiro, na ironia de sua majestade, todo votado à alegria. Quanto a ela, observava, quieta, sem falar nada. Olhava só – e já era muito. Mirava aquele andar com movimento de água, várzea já desalagada mas ainda toda úmida, promessa de vastas águas represadas sempre a vir, prestes a explodir de novo. A qualquer hora, pretexto ou sortilégio. Desejava o júbilo de Veludo encalhar nela. Porém ela era um barco sempre a seguir, seguindo sempre. Mesmo sem sair do lugar. E onde iria fazer água, era ele que ia escolher. Outras vezes parecia percorrer braviamente campos indomáveis, sem fim, montado em búfalo, cavalo de seu próprio corpo. Os descampados o atraíam, só para ele demonstrar a força libertária, qual Zumbi dos Palmares. Liberdade, teu nome? Veludo. Veludo ao vento, à mercê das chuvas compactas, chuvas amazônicas a mais não poder, vindas das 42 ilhas a rodear a cidade, usinando mais chuvas, coriscos, clarões, raios, trovões, tempestades, ventanias, vendavais. E ele ali firme, estático se movendo, tranqüilo-intranqüilo, dono da terra, senhor da água, olhos puxados e carapinha. Andar, andava. Nadar, nadava. Em chão batido de terra e areia de interior, dos cafundós do mato ou chão citadino de pedrinhas portuguesas, de ardósia ou pedra de lioz, íntimo de águas ribeirinhas ou profundas, cristalinas ou barrentas, enovelando-se ou liberto das vegetações desapegadas, soltas das terras caídas das margens e revolvidas lá do fundo. Olhar, olhava-o há anos. Logo ele, que não a vê. Verá, virá? Fica ela à espreita, esperando, lutadora que nem peixe das piracemas, nadando contra a corrente, a favor da vida, barro e peixe ávido, beira e profundezas de rio, igarapé e igapó, vazante e cheia de riacho, enchente, torvelinho, chuva torrencial. Logo ela, que nunca levou nada a sério, sempre levando a vida na brincadeira, querendo só brincar de casinha, olhando a vida como mentirinha de teatro, ela – que nada sabe – franqueará o caminho ao senhor da vida, quando ele quiser fazê-la rainha dos lençóis brancos e dos lençóis negros. •

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AGENDA

32 LIVROS

Terror antecipado

Teoria do conto

Livro aponta jovens que se acham no direito de decidir pela força o que é melhor para o povo

Escritor gaúcho mostra como os contistas se lêem entre si, num diálogo crítico e criativo

Algumas obsessões de Dostoievski, como as discussões sobre filosofia, religião, moral, psicologia, política e, por último, mas não menos importante, sobre a real identidade do povo russo, voltam neste livro que, publicado em 1871, antecipa o fanatismo e o conseqüente terrorismo que assolou o mundo no século passado, continuando por este adentro. Nele se sobressai, entretanto, um aspecto pouco comentado do escritor: sua capacidade de sátira, escárnio e humor, a ponto de criar personagens até fisicamente caricaturais. Um dos quatro livros básicos do autor (ao lado de Os Irmãos Karamázov, Crime e Castigo e O Idiota – se é que, em se falando de Dostoievski, possamos esquecer títulos como Recordações da Casa dos Mortos ou Humilhados e Ofendidos), este é, talvez, um dos mais fáceis de ler: afinal, não há a insistência contínua em ambientes opressivos, angústias devoradoras e ambivalências paralisantes. Pelo contrário, boa parte da narrativa se passa “em sociedade”, entre tipos psicologicamente bem definidos, embora nunca simplificados.

As origens do conto perdem-se no tempo, principalmente se o relacionamos com as narrativas míticas. Como texto assinado por um escritor, pode ter como um dos precursores o italiano Giovanni Boccacio, autor do Decameron, escrito entre 1349 e 1351. Tornou-se um gênero literário tão autônomo que alguns escritores ganharam merecido reconhecimento por tê-lo preferido exclusiva ou preferencialmente. Mestres do conto como Anton Thecov, Katherine Mansfield, Jorge Luis Borges e Edgar Alan Poe são alguns destes autores que reafirmam sua importância. Foi a partir da obra dos dois últimos, mais Julio Cortázar e Nathanael Hawthorne, que o gaúcho, também contista, Charles Kiefer elaborou uma poética do conto. Além de sua elaboração teórica, Kiefer também aborda as interpretações que os autores fizeram entre si e as influências que receberam. Poe critica a obra de Hawthorne, Cortázar analisa Poe e Borges escreve sobre Poe e Hawthorne. Nos anexos, o autor acrescenta a tradução de resenhas assinadas por Poe e o resumo de contos de Hawthorne, que ainda não tinham versão em português.

Os Demônios, Fiódor Dostoiévski, Editora 34, 704 páginas, R$ 65,00.

A Poética do Conto, Charles Kiefer, Nova Prova, 225 páginas, R$ 26,00.

Boa entrevista

Caleidoscópio

Desmascaramento

Há dois tipos de entrevistadores equivocados. O primeiro é o que não conhece direito o trabalho do entrevistado e não consegue formular perguntas inteligentes. O segundo é aquele que faz perguntas quilométricas como se quisesse saber mais e aparecer mais do que o entrevistado. Daniel Piza foge às duas categorias. Ao entrevistar escritores, artistas e cientistas, revela não só um perfeito conhecimento dos assuntos em pauta, como procura extrair respostas diferenciadas ao escolher angulações originais. Seu livro se completa com os diálogos com Oscar Wilde e Fernando Pessoa, a partir de trechos de obras e declarações dos escritores.

O escritor português Dinis Machado escreveu três livros policiais sob o pseudônimo de Dennis McShade, uma divertida americanização do seu nome real. Mas ficou, de fato, conhecido pela autoria do romance O Que Diz Molero. Nele, dois personagens, Austin e Mister DeLuxe lêem e comentam um relatório de um tal de Molero, sobre a vida de um rapaz cujo nome nunca é citado. Não se sabe também qual a finalidade do relatório que é, na verdade, um autêntico caleidoscópio de cenas da vida portuguesa, numa linguagem intensamente poética e criativa, opulenta e delirante. Uma pequena obra-prima da literatura portuguesa.

Não só para quem se interessa por Semiologia o nome de Roland Barthes dispensa apresentações. Grande teórico da literatura, é autor de livros os mais diversos, em que analisa as ideologias das linguagens da cultura de massa, praticando a desmontagem semiológica dessas linguagens. Neste livro, o autor francês desmistifica os mitos de uma realidade mascarada pela Imprensa, pelo Cinema, pelas artes e pelos veículos de comunicação em geral. Entremeando objetividade e subjetividade, ele revela as intenções subjacentes em diversos aspectos da vida contemporânea, dos preconceitos à propaganda.

Perfis & Entrevistas, Daniel Piza, Editora Contexto, 160 páginas, R$ 29,90.

O Que Diz Molero, Dinis Machado, José Olympio, 206 páginas, R$ 24,00.

Mitologias, Roland Barthes, Difel, 256 páginas, R$ 28,00.

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Noir onírico

Poesia e música

A primeira parte deste estranho texto é a narrativa meio onírica (na clave noir do pesadelo) das aventuras eróticas de um casal de jovens. Perversão e crueldade entremeiam a história, que é pontuada por imagens similares ao olho – objetos esféricos e de cor clara como o ovo, os testículos de um touro, as nádegas, o sol –, e também pela recorrência de líquidos como urina, esperma, água, sangue etc. Ao lado de erotismo sádico, a narrativa provoca uma sensação de estranhamento que se intensifica com a segunda parte, em que o autor conta que escreveu tudo aquilo para se livrar das imagens obsessivas de seu pai, cego e consumido pela sífilis, quando revirava os olhos ao se urinar na cadeira à qual estava preso. O volume é completado por curtos ensaios de Michel Leiris (a estranheza da narrativa pelo entrelaçamento de coisas elevadas e imundas), de Roland Barthes (a necessidade de uma ficção incomum para narrar a história de um objeto), e de Julio Cortázar (a perturbadora cena de uma adolescente se masturbando no selim de uma bicicleta).

Desde que um poeta como Vinicius de Moraes tornou-se letrista de música, e que letristas de grande talento como Caetano Veloso e Chico Buarque alcançaram momentos poéticos em suas composições, criou-se no Brasil o hábito de misturar poetas e letristas num mesmo balaio. A mesma coisa faz o professor norte-americano Wallace Fowlie, ao relacionar o poeta francês Arthur Rimbaud com o compositor/cantor americano Jim Morrison, fundador da famosa banda de rock The Doors. O autor parte de uma carta escrita a ele pelo próprio Morrison, em que o jovem vocalista lhe agradece por ter vertido para o inglês os poemas de Rimbaud, que ele tanto admirava. Após a morte de Morrison, Fowlie descobriu que o francês e o americano tinham muita coisa em comum, além da juventude e da rebeldia contra o pacato e medíocre mundo burguês. Ao ouvir as composições de Morrison, Fowlie detectou a influência inconteste de Rimbaud. Os dois também tinham em comum a disposição de “mudar a vida”. Também o desregramento dos sentidos, pregado pelo francês, é seguido pelo americano num mergulho de cabeça no mundo das drogas e do álcool.

História do Olho, Georges Bataille, Cosacnaify, 135 páginas, R$ 39,00.

Rimbaud e Jim Morrison: Os Poetas Rebeldes, Wallace Fowlie, Editora Campus, 177 páginas, R$ 29,90.

Definições

Força poética

Arame esticado

A Filosofia tem um vocabulário particular. Algumas palavras só a ela pertencem (o famoso jargão) e outras ela toma emprestado da linguagem corrente, mas dando-lhes significações mais precisas e particulares, além de mais profundas. Ao longo dos séculos, diversos filósofos e estudiosos da matéria têm elaborado dicionários do palavreado filosófico, ora dando-lhes interpretações próprias, ora realçando seu significado corrente nas esferas filosóficas. Este dicionário é assinado por um filósofo francês contemporâneo, que tem feito um trabalho de popularização do pensamento sofisticado de seus pares em 1.200 definições.

Tida como uma das vozes mais originais da poesia feminina do Brasil, a gaúcha Maria Capri recebeu de Thiago de Melo o seguinte comentário: “Todas as suas palavras unem-se umas às outras por atração mágica inexorável. Todas têm boca, densa música”. O livro é dividido em três partes: “Do amado e do não amado”, “A vertigem sem abismo” e “Elegias à vastidão de um epílogo”. Poeta de palavra clara e intensa, Maria Capri faz poemas de primeira linha, como este, que dá título ao livro: “Amor, essa força de não/ ter força; essa paz não/ dando a paz; este rosto/ incandescente, nunca/ lido, que se sobrepõe/ aos demais...”

Um dos mais originais e criativos escritores brasileiros contemporâneos, Nelson de Oliveira tem seus melhores contos reunidos neste livro. Bichos, solidão, inocência perdida e infância são alguns dos temas que perpassam esses textos em que, da primeira à última linha, há uma tensão de arame farpado esticado ao máximo. Genésio, o gordo que vende churrasco num boteco da rua Aurora, o síndico Herculano, em cuja boca há um dente apodrecido e Dona Sônia, que foi prostituta e hoje vende pastéis de palmito em frente a uma igreja evangélica, são alguns dos personagens que habitam a galeria do autor, de tipos marcantes, e marcados.

Dicionário Filosófico,André Comte-Spoville, Martins Fontes, 658 páginas, R$ 67,50.

A Força de Não Ter Força, Maria Carpi, Escrituras, 110 páginas, 20,00.

Pequeno Dicionário de Percevejos, Nelson de Oliveira, Lamparina, 198 páginas, R$ 28,00.

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AGENDA

LIVROS


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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Na casa mágica da leitura "A cultura ganhou mais pelos livros nos quais os impressores perderam dinheiro." (Thomas Fuller – 16/08/1661)

O

físico anglo-americano Freeman Dyson, que foi consultor da NASA e do Departamento de Defesa dos EUA, relatou em seu livro, Perturbando o Universo, a inesquecível experiência de ler, aos oito anos, o livro de Edith Nesbit, A Cidade Mágica. É a história de um menino que, deixado sozinho numa mansão, constrói uma casa de brinquedo e, de repente, ela cresce, e com ela toda uma estranha cidade em sua volta. O canadense Marshal McLuhan não deve ter lido, quando criança, aquela historinha, pois se o tivesse feito não declararia a sua Guerra nas Estrelas contra a Galáxia de Gutemberg. Quem esperou que depois do ataque da TV ela seria exterminada pela Internet, bateu com os chifres n’água. Não foi assistindo aos Flinstones que as nações e as cuecas de McLuhan foram fabricadas. Hoje, a Internet é uma livraria planetária. Toda essa conversa mole, perdoem-me meus milhões de leitores, foi só pretexto para falar em hábito de leitura, um virtuoso vício que a maioria dos alfabetizados do Brasil e de outros países irmãos “no pendura” preferem substituir por tragos no botequim ou dominó na calçada. Quanto ao primeiro vício, não posso jogar a primeira pedra: sempre bebi com um livro debaixo do braço. Mas, fora de brincadeira, se a TV e a Internet não foram o Apocalipse que os sete anjos anunciaram, o certo é que não tem havido avanços percentuais no número de leitores, a exemplo dos países latino-americanos. Fatores Continente março 2005

como o analfabetismo e a baixíssima renda da população têm sido apontados como os principais obstáculos. É comum a seguinte situação: o alfabetizado quer ler, e não tem dinheiro para comprar o livro. O início de meus descaminhos na literatura limitou-se aos acervos dos sebos e das bibliotecas públicas do Recife. Creio que nunca comprei um livro em livraria, antes dos vinte anos. Para o pobre, o vício de ler é mais caro do que o de beber. Não uísque doze anos, é claro, mas aguardente 40º. O fato de ser um leitor onívoro, que lê até obra de Paulo Coelho, fez-me devorar um pedaço de pesquisa, que achei não sei onde e realizada por não sei quem. Ela informa que “apenas” 17 milhões de brasileiros acima de 14 anos compraram ao menos um livro no ano passado. Isso representava a ninharia de 10% de uma população de 170 milhões. Outros dados, desta vez comparativos: enquanto no Brasil a média de livros lidos por hab./ano é de 1,8, na França é de 7, nos EUA é de 5,1 e, o que me surpreendeu, na Inglaterra é de 4,9 (esperava que superasse os States). Se o índice de leitura é traço de civilização, ainda estamos longe de ser civilizados. O governo federal realizou, recentemente, durante uns poucos meses, uma campanha pelos meios eletrônicos, visando a estimular o hábito de leitura no país. Sabese que no meio dos alfabetizados de baixa renda existem milhões de pessoas que não têm o costume de ler, ou porque não foram motivadas na infância ou porque mergulharam num mundo profissional onde se supõe que o


MARCO ZERO

livro é dispensável. É para estes e para as crianças que, certamente, a campanha do governo se dirigia. Eu sou contra a maioria das campanhas e das chamadas operações, quando se trata de problemas permanentes. A cólera voltou a aparecer na cidade pernambucana de São Bento do Una, não só porque a campanha de higiene contra ela deixou de ser veiculada, mas, e principalmente, porque faltou à Prefeitura uma ação educativa contínua. Não pode haver descuido, porque, como diz Camus, em A Peste, “virá talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará os seus ratos e os mandará morrer numa cidade feliz”. Assim como existe o costume de ler, existe o de não ler. Mudanças nos costumes são mais difíceis de atingir do que as tecnológicas, dizem os sociólogos. As primeiras só podem ser alcançadas com ação educativa duradoura, muito duradoura.

Fiz essa longa e chata digressão apenas para saudar o ano Ibero-Americano da Leitura e suas perspectivas para o Brasil, neste 2005. Seu universo é de 21 países da Europa e das Américas, estes ainda nas garras, bem cravadas, do analfabetismo e da baixa renda. No Brasil, a batata quente ficará nas mãos de dois ministérios, o da

Educação e o da Cultura – este descontemplado com a menor dotação orçamentária do corpo ministerial – e de uma tal de Assessoria Especial da Presidência da República, que deverão mobilizar (com dinheiro ou sem dinheiro?) governos estaduais, prefeituras e toda a sociedade civil, organizada ou não, mas ligada, direta ou indiretamente, ao livro, para eclodir o Vivaleitura, nome do programa em nosso país. O governo pretende que o Vivaleitura seja “um marco (...) para que o Brasil implemente uma Política Nacional do Livro, Leitura e Bibliotecas”. Foi talvez essa a maneira de os planejadores do Planalto realizarem o objetivo maior do Ano Ibero-Americano da Leitura, que é o de “empreender ações imediatas e de longo prazo em favor da leitura”. Em outras palavras, 2005 seria um ano de muito estímulo barulhento ao hábito de leitura, com altos e óbvios dividendos políticos, enquanto a implementação de uma Política Nacional do Livro, Leitura e Bibliotecas, pela sua natureza de ação permanente, contribuirá, sim, e muito, para incutir o gosto, o vício da leitura. É bastante oportuna a implantação de um programa com tal envergadura, justamente este ano, quando começa a vigir uma lei, assinada pelo presidente Lula, no final do ano passado, que isenta a produção de livros das contribuições do PIS/Pasep e Cofins, o que barateará o preço de capa. Curioso com a origem da lei, procurei a Constituição de 1988 e lá estava o Art. 150, vedando “instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e papel destinado a sua impressão.” Não foi, portanto, a pressão dos editores que gerou aquela Lei, mas o respeito do presidente à Constituição, que bastaria ser cumprida integralmente para levantar o Brasil, esplendidamente, de seu malfadado berço. • Continente março 2005

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Imagens: Divulgação


CINEMA

A saga do vinho No documentário Mondovino, as duas concepções que se confrontam hoje – os vinhos de terroir, oriundos da tradição e do amor pelo ofício e da terra, e os vinhos da moda produzidos no Novo Mundo – ganham as telas Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux

E

m Mondovino, exibido na competição do Festival de Cannes 2004, e com estréia brasileira prevista para abril, o diretor Jonathan Nossiter conduz uma investigação fascinante sobre o tema da globalização, tendo como principal personagem a garrafa de vinho. Antigo sommelier de origem francesa, Jonathan Nossiter encena a guerra do mundo vinícola, que vive momentos críticos de mutação do mercado mundial dominado, até recentemente, pelo Velho Continente, particularmente pela França. Logo no início do filme, vemos Nossiter, no litoral de Pernambuco, perguntando a dois homens se é possível fazer vinho a partir da água de côco. Já na última parte, o documentário volta ao Brasil para entrevistar dois vinicultores do vale do São Francisco (Isanette Bianchetti e Inaldo Tedesco), onde o clima particular permite duas safras por ano, ilustrando como o cultivo da uva vai se espalhando pelo mundo. Durante três anos, Nossiter percorreu o planeta com sua pequena câmera digital, da Europa à Califórnia, passando pela Argentina e pelo Nordeste brasileiro, com o objetivo de apresentar o vinho num novo mundo. Rapidamente, entendemos que se trata de mais que um simples documentário sobre vinho, e que esse filme, visto pelo prisma da globalização, abrange outros temas, como identidade cultural, costumes, transmissão de valores e política. Um filme sobre as paixões e as lutas que cercam uma criação cultural tão antiga quanto a nossa civilização e espelho de sociedade. Vendo Mondovino, deixamo-nos inebriar alegremente por essa saga planetária que, via seleta galeria de personagens, contrapõe os bons e os malvados, encarnados por figuras bem escolhidas, não sem deixar, freqüentemente, sensação de maniqueísmo.

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CINEMA Nossiter apresenta justamente duas concepções que se confrontam hoje: os vinhos de terroir, oriundos da tradição e do amor pelo ofício e da terra, e os vinhos da moda produzidos no Novo Mundo, resultado da alta tecnologia e de legislações mais flexíveis que as francesas. A verdade desse face a face é cruel: todo-poderosos, comercialmente, os norte-americanos conseguiram impor um padrão mundial para um novo sabor. Sem dúvida, e para o nosso grande prazer, o documentário cede à caricatura. Nossiter sugere claramente que existe uma conivência entre industriais do vinho, enólogos e críticos. A ofensiva norte-americana na Europa toma os traços de “traidores” como Michel Rolland, o enólogo-consultor mais requisitado hoje, responsável por aplicar normas padronizadas a centenas de châteaux no mercado internacional. Rolland é apresentado como um businessman que despreza os vinicultores “pé-rapados” (tradição é ruim, progresso importante), ri diabolicamente e fala sempre de “microoxigenação do vinho”. Os Americanos do Na-

As exportações francesas caíram 12% entre 1998 e 2003

pa Valley, na Califórnia, apresentados com insuportável arrogância (Tim Mondavi pretende fazer vinho em Marte), e a aristocracia toscana, nostálgica de Mussolini e vendida ao império Mondavi, não são poupados. Finalmente, o crítico de vinhos mais influente do mundo, Robert Parker (da revista Wine Spectator), e seu prazer sem fim de mostrar o peso da sua opinião, fazendo ações subir e descer nas bolsas. Mondovino ilustra assim os apetites financeiros que vão aos poucos substituindo conhecimentos ancestrais. No entanto, Nossiter mostra focos de resistência no próprio coração dos Estados Unidos. Um dos personagens é Neal Rosenthal, importador perspicaz de grandes vinhos artesanais. Os melhores momentos do documentário vêm de cenas que mostram conflitos franceses, particularmente na família do “herói” do filme, Hubert de Montille. O velho vinicultor da Borgonha solta verdades hilariantes sobre o mundo do vinho, criticando a cultura “monolítica” e o que ele chama de “vinhos-puta”, de sabor fácil, produzidos hoje.


CINEMA

O produtor de vinho francês Aimé Guibert e sua esposa, durante as filmagens de Mondovino

Na sua própria família, ele põe o filho sério e herdeiro da propriedade contra a filha caçula, obviamente a preferida e em sintonia com os valores e o discurso franco do pai. Numa cena pungente, ela anuncia sua demissão da Maison Boisset, uma grande negociante de vinhos cuja ética profissional ela passou a desaprovar. Ironicamente, o aspecto factual de Mondovino foi enriquecido com a notícia recente de que a Robert Mondavi Corporation foi vendida, em dezembro de 2004, à americana Constellation Brands, primeira negociante em vinho mundial, e obrigada a abandonar o setor dos grandes vinhos. Mondovino tem o grande mérito de chamar a atenção para as transformações cruciais que estão acontecendo na cena vinícola mundial. Uma delas é a queda contínua das exportações de vinhos franceses, já há alguns anos, afetando todo o setor de vinhos e espirituosos. Bordeaux é a região vinícola mais tocada, seguida pelo Beaujolais, a Borgonha resistindo ainda. A comparação com os vinhos do Novo Mundo (Estados Unidos, América do Sul, Austrália, África do Sul) é cruel para os vinhos franceses. No momen-

to em que as exportações francesas caíam 12% entre 1998 e 2003, as do Novo Mundo explodiam com uma progressão de 161% no mesmo período. A crise do setor, quando o consumo do vinho continua caindo na França, deverá ser acentuada pela ótima safra de 2004 que permitiu produzir 25% a mais do que em 2003. O millésime (vintage, safra boa) é abundante, e de excelente qualidade. Porém, essa safra não é uma boa notícia, pois se produz vinho em demasia na França, que nem sempre corresponde ao gosto novo dos consumidores. Sobram nas prateleiras, o moral dos vinicultores está baixíssimo e sua revolta palpável externada nas numerosas manifestações de vinicultores reclamando ajudas governamentais nas ruas da França no último mês de dezembro. A crise do vinho é latente, há 10 anos, com a perda progressiva do monopólio dos vinicultores franceses sobre a produção mundial e a aparição dos vinhos do Novo Mundo, em climas mais quentes e regulares. Em 20 anos, o mercado se transformou e a produção mundial atual de vinho excede a capacidade de consumo. Continente março 2005

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CINEMA

Os barris modificam o envelhecimento e o gosto dos vinhos

Erik Samazeuilh, courtier (intermediário entre o produtor e o negociante) em Bordeaux (da Tastet et Lawton), fala de “uma verdadeira revolução no mundo do vinho” e tem a sua própria idéia sobre as causas da crise: “Até 1985, os franceses podiam impor seu jeito de ler o vinho, mais ligado a um terroir, a associação entre um tipo de solo, um clima, uma variedade de vinha e o savoir-faire do homem, aspectos que definem a qualidade final do produto. Aos poucos, os consumidores estrangeiros, particularmente os americanos, foram impondo outros gostos. O cépage (variedade de uva) tornou-se mais importante que o terroir.” Outro filme recente, Sideways – Entre Umas e Outras, de Alexander Payne, indicado a cinco Oscars, ilustra bem esse fenômeno: com um enólogo como personagem Continente março 2005

importante, ouve-se falar no filme do pinot, cabernet, ou chardonnay (cépage), e muito pouco em Sauternes ou Saint-Emilion (regiões correspondendo a um terroir). O vinho de hoje tem de ser fácil de beber e de entender, e o cépage permite esse “acesso” de maneira mais fácil que o terroir, mais carregado de tradição. Henri Gasparoux, vinicultor na região de Pomerol (Château Ferrand, Bordeaux), explica: “Nós, vinicultores, não antecipamos nada disso. Até os anos 1990, estávamos num conforto quase absoluto, vendíamos o que queríamos somente atendendo ao telefone. Hoje, precisamos correr atrás dos clientes”. Umas das críticas que podem ser feitas a Mondovino talvez seja a ausência de um dado explicativo essencial da crise vinícola francesa. Os vinhos que se beneficiaram


CINEMA durante muito tempo do label “França” não estão mais à altura, num mercado mundial em mutação. A globalização não é novidade na área do vinho, mas, hoje, vinhos estão sendo produzidos nos quatro cantos do mundo e oferecem, muitas vezes, uma relação qualidadepreço mais interessante que a maioria dos vinhos franceses. O documentário deixa de fazer uma constatação importante: o sistema francês de AOC (Apelação de Origem Controlada, associação de uma região e de um produto, cujas características são o resultado de fatores naturais e humanos) está em crise. Concebidas em 1935 como um sistema que protegia uma notoriedade estabelecida, garantindo ao consumidor um terroir, um savoir-faire e um mínimo de qualidade, as apelações foram progressivamente sendo auto-administradas pelos vinicultores nos seus próprios interesses. Algumas AOC começaram a aumentar terrenos de cultivo e a utilizar produtos químicos. A inflação de AOC esvazia essa qualificação do seu sentido original e permite a generalização da mediocridade.

Hubert de Montille, vinicultor de Borgonha, faz declarações hilariantes sobre o mundo dos vinhos

Nos últimos meses, bodes expiatórios têm aparecido nas medidas drásticas para a segurança no trânsito, sobre beber e dirigir, e uma lei que limita a publicidade de bebidas alcoólicas. No entanto, o marasmo atual é menos uma crise da demanda que da oferta: há muito tempo que as AOC não oferecem garantias qualitativas. O Ministério Francês da Agricultura sugeriu criar uma nova categoria de vinho com menção do cépage e exceções à regra na fabricação do vinho, por exemplo, na utilização de aparas de madeira, imitando o sabor dado pelo envelhecimento em cascos de carvalho. É um processo que poderá acarretar mudanças preocupantes na noção tradicional de vinho (irrigação dos vinhedos, utilização de colorantes e químicos), preocupação que se choca com a pergunta “como competir com países onde impérios industriais trabalham com volumes gigantescos e uma mão-de-obra muito mais barata?” Nessa luta que está apenas começando, o destino do vinho está na diferenciação: o aporte mineral de terroirs variados e o valor do savoir-faire. Frente à crise e aos processos globais de massificação do gosto, a salvação pode vir dos vinicultores talentosos que escolherem a exceção. •

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Divulgação/AE

O arquiteto da imagem

O diretor de fotografia Walter Carvalho se confessa um aprendiz, apesar da sua vasta cinematografia, e se declara um dependente físico do cinema Felipe Porciúncula

S

eu olhar de fotógrafo deixa rastros bem delineados. O que quer que faça, sempre procura transformar em luz as visões premonitórias, que insiste em permanecer na cabeça dos cineastas com quem trabalha. Percorrendo um caminho muito sólido, busca levar para a tela essa subjetividade. Seu nome é Walter Carvalho. “Procuro observar o universo dos personagens e com esse conjunto de coisas vou tentando encontrar onde está a imagem do filme. É daí que me inspiro”, confessa. No filme A Máquina, de João Falcão, ambientado no Sertão do Nordeste, Walter fez uma viagem com o diretor por várias cidades da região. “Queria observar o universo em que nasceu a história e extrair elementos consistentes da narrativa”. Nessa procura, muitas vezes, uma frase pode dizer muito. “Quando estava lendo o roteiro, vi uma expressão incrível: ‘Dona Fulana diz que vrido é frasco’. Isso é um poema concreto. Chamar


CINEMA vrido de frasco pode significar uma imagem para mim”. A Máquina deve estrear em 2005. Aliás, o Sertão é um cenário recorrente para Carvalho. Seu primeiro trabalho em cinema aconteceu na caatinga, a convite do seu irmão Wladimir Carvalho com Incelência Para um Trem de Ferro, em 1971, rodado na Paraíba. Desde aquela época, ele sempre volta a filmar a aridez com um olhar cada vez mais apurado. “No filme Abril Despedaçado, a paisagem em si era um elemento da narrativa. A ação da luz do sol significa a passagem do tempo, a metamorfose”, lembra. Para levar essa riqueza visual à tela, a casa da fazenda (em que se passa a maior parte do filme) foi construída de tal forma que fosse possível filmar a qualquer hora do dia. “Dormi várias noites no set. Anotava a hora e a posição do entardecer e do nascer do sol. Acompanhei a sua trajetória em função da paisagem que seria filmada. Eu tive que me relacionar com essa mudança do tempo, indicada pela própria natureza, tentando me inserir nessa atmosfera. É assim que é construída a fotografia de um filme e não a partir da pintura, como muitos dizem. Até porque não há tempo para isso”, pontua. Por ser paraibano, suas andanças pelo Sertão lhe trazem muitas lembranças. “É como se nunca tivesse

saído dali. O Nordeste, para mim, é uma ilha da fantasia”. E isso já é herança para seu filho. “Aos 10 anos, ao invés de mandá-lo para a Disneylândia, fiz com ele uma viagem de carro para o Sertão da Bahia”. Na memória, elementos como a rapadura, a caça de passarinho e tomar banho de rio estão vivos ainda hoje. “Sinto falta disso, afinal um leito de rio seco só não é mais bonito que ele cheio”, relembra. Mas o seu trabalho é muito mais vasto. Inclui obras marcantes como Madame Satã, Carandiru, Amarelo Manga, e outros, rodados em cenários urbanos. Tanto é que há pouco tempo recebeu uma homenagem do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com uma retrospectiva da sua obra como diretor de fotografia. Apesar do reconhecimento, ainda se confessa um aprendiz: “Sou um dependente físico do cinema. O que me leva a aceitar trabalhos é a oportunidade de aprender. É um constante exercício. Ao acabar um filme, olho e digo – agora estou pronto para fazê-lo”. Não é à toa que sua estréia na co-direção de um filme foi em Janela da Alma. “Quem me convidou foi o João Jardim. No início, o filme era sobre a miopia e se transformou em uma história sobre o olhar. Para mim foi incrível, porque é isso que faço o tempo inDivulgação/Lumière

Abril Despedaçado: paisagem como elemento da narrativa

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Divulgação/Rio Filme

Simone Spoladore no filme Lavoura Arcaica

teiro, então precisei buscar as imagens dentro de mim. Já convivia com o assunto há muito tempo, já fazia parte do meu universo”, confessa. Com Cazuza aconteceu seu encontro com o grande público, que já foi visto por mais de dois milhões de espectadores. Feito em parceria com Suzana Werneck, a experiência o fez se aproximar ainda mais da direção cinematográfica, mas não foi suficiente para separá-lo da fotografia. “Até porque mesmo quando eu faço a luz do filme, dependendo do diretor, já compartilho a direção com vários cineastas. A relação é muito sutil, porque as decisões do diretor passam diretamente pelo fotógrafo”, salienta. Mesmo quando filma, continua com um olho no set e outra na lente. “Sempre que posso, faço exposições e publico minhas fotos”, como foi com Fotografias de um Filme, uma coletânea de imagens do filme Lavoura Arcaica, de Luis Fernando Carvalho, publicada em 2003. O que não significa que Walter Carvalho abra mão de projetos pessoais para a telona. Ele acabou de finalizar Moacir, sobre um artista esquizofrênico que mora em Alto Paraíso, em Goiás, e um outro que aborda a magia do cinema e que não tem prazo para terminar. “É sobre o prazer de filmar”. Além desses, há um projeto na gaveta, há muitos anos. “É a filmagem da destruição da sede da UNE (União Nacional dos Estudantes), que fiz em 1980. Nem existe mais ori-

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ginal e tenho que montá-lo a partir de uma telecinagem. Tenho um compromisso comigo mesmo de terminar o Agonia”. Achando pouco, ainda vai dirigir em breve um outro documentário sobre o universo dos brincantes, de Antônio Carlos Nóbrega. Talvez, para Carvalho, sua luta pela memória do cinema seja emblemática, já que seu primeiro curta foi MAM SOS, em 1978, sobre as precárias condições do Museu de Arte Moderna do Rio depois que sofreu um incêndio. “No Brasil, as pessoas se preocupam muito em produzir e muito pouco em preservar. Praticamente todos os negativos do Cinema Novo não resistiram ao tempo. Os que se salvaram estão no contratipo (a cópia da cópia). Precisamos seguir o exemplo do cineasta americano Martin Scorsese, que já recuperou filme brasileiro. Por que nós não fazemos o mesmo?” “É preciso mostrar para o público de hoje que esse bonde que está andando vem lá de longe. O cinema de qualquer país tem que ter uma cara que se solidifique pela diferença e não pela imitação, como os chineses fazem tão bem”. Aproveita para descarregar sua crítica no modelo hollywoodiano, que considera predatório. “Eles querem criar um padrão de imagem civilizatório que eu abomino porque vai igualando e globalizando as manifestações culturais de um povo. Soterrando tudo em troca de uma beleza que ele traz consigo”, conclui Carvalho. •


CINEMA

Cinematografia de Walter Carvalho 1971 - Incelência Para um Trem de Ferro (Wladimir Carvalho) 1974 - O Boi de Prata (Augusto Ribeiro Júnior) 1980 - A Difícil Viagem (Geraldo Moraes) 1981 - O Homem de Areia (Wladimir Carvalho) 1982 - A Missa do Galo (curta, Nelson Pereira dos Santos) 1983 - Só no Carnaval (curta, Eunice Gutman e Regina Veiga) Cinema Paraibano – Vinte Anos (curta, Manfredo Caldas) 1984 - Quilombo (Wladimir Carvalho) 1985 - Pedro Mico (Ipojuca Pontes) Igreja da Libertação (curta, Sílvio Da-Rin) 1986 - Com Licença, Eu vou à Luta (Lui Farias) A Rocinha tem Histórias (curta, Eunice Gutman) Duas Vezes Mulher (curta, Eunice Gutman) Geléia Geral (curta, Sandra Werneck) 1987 - Si Tu Vas à Rio... Tu Meurs (Phillipe Clair) Churrascaria Brasil (curta, Frederico Confalonieri) Damas da Noite (curta, Sandra Werneck) João Cândido, um Almirante Negro (curta, Iliano Ribeiro) Rio de Memórias (curta, José Inácio Parente) Os Trapalhões no Auto da Compadecida (Roberto Farias) 1988 - O Inspetor (curta, Arthur Omar) 1990 - Césio 137, Pesadelo de Goiânia (Roberto Pires) A Paisagem Natural (curta, Wladimir Carvalho) 1992 - Babel da Luz (curta, Sylvio Back) Conterrâneos Velhos de Guerra (Wladimir Carvalho) 1993 - A Coroação de Uma Rainha (curta, Arthur Omar) Butterfly (minissérie para TV RAI/ Tonino Cervi) Agosto (minissérie para TV Globo, Paulo José) Renascer (novela de Luiz Fernando Carvalho) 1994 - Socorro Nobre (media, Walter Salles) Canudos – As Duas Faces da Montanha (curta, Sandra Werneck) O País do Carnaval (curta, Nélio Ferreira Lima) 1995 - Terra Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas) Cinema de Lágrimas (Nelson Pereira dos Santos) 1996 - O Rei do Gado (novela de Luiz Fernando Carvalho) Buena Sorte (Tânia Lamarca) 1997 - O Amor Está no Ar (Amylton de Almeida) Pequeno Dicionário Amoroso (Sandra Werneck)

Reprod u

ção

1998 - O Primeiro Dia (Walter Salles e Daniela Thomas) Central do Brasil (Walter Salles) 1999 - Texas Hotel (curta, Cláudio Assis) Notícias de Uma Guerra Particular (João Moreira Salles) Adão ou Somos Todos Filhos da Terra (curta de Daniela Thomas, Walter Salles, João Moreira Salles e Kátia Lund) 2000 - Amores Possíveis (Sandra Werneck) A Composição do Vazio (curta, Marcos Enrique Lopes) Passadouro (curta, Torquato Joel) Villa-Lobos – Uma Vida de Paixão ( Zelito Vianna) 2001 - Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho) Janela da Alma (também co-direção com João Jardim) Abril Despedaçado (Walter Salles) A Canga (curta, Marcus Vilar) 2002 - Carandiru ( Hector Babenco) Madame Satã ( Karim Aïnouz) Amarelo Manga ( Cláudio Assis) Um Crime Nobre ( Walter Lima Jr, para TV Globo) 2003 - Quilombo (Wladimir Carvalho) 2004 - Cazuza (co-direção com Suzana Werneck) Filme de Amor (Julio Bressane) Entreatos (João Moreira Salles) Caetano Veloso 50 Anos (Walter Salles) Veneno de Madrugada(Ruy Guerra) Crime Delicado (Beto Brant)

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

A arte ótica de Jesús Soto A optical art é uma expressão-limite da pintura reduzida à sua materialidade perceptiva Luis Brito e Ramón Lepage /Divulgação/CCBB

Ambivalencia Deciembre, 1993, madeira, acrílico e metal, 164,3 x 334 x 16,7cm

O

Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro inaugurou este mês uma exposição do artista venezuelano Jesús Soto, que se tornou conhecido na década de 1960 por suas experiências no campo da optical art. Esta tendência pictórica derivou da arte abstrato-geométrica, desenvolvida no pós-guerra e cujas raízes se encontram na pintura futurista de Umberto Boccioni, Giacomo Balla e Carlo Carrà. Nas obras destes artistas, a tentativa de tornar o quadro expressão do dinamismo e da velocidade está ainda vinculada à representação do mundo exterior. De qualquer modo, tais tentativas expressam uma necessidade de explorar as virtualidades do campo ótico, que ganharia maior autonomia nas pinturas suprematistas de Kasemir Malevitch. Mas é só quando a pintura se desliga de toda e qualquer referência extra-quadro que ela se torna apta a explorar pleContinente março 2005

namente a dinâmica virtual do campo visual, sem nenhum outro propósito que obter os efeitos resultantes das relações formais e cromáticas. A optical art eliminou inteiramente os fatores subjetivos da expressão e, por isso mesmo, reduziu a experiência estética à percepção do puro presente, de maneira que o espectador limita-se a ser uma retina detida na superfície da tela, para captar-lhe a experiência sensorial, sem escape: tudo o que lhe resta é apreender o movimento virtual das formas na bidimensionalidade da tela, sem transcendência. Neste sentido, a optical art é uma expressão limite da pintura reduzida a sua materialidade perceptiva: a única fuga à materialidade, ali, resulta do que comumente se chama de “ilusão de ótica”. Dessa experiência e como necessidade de ampliá-la, nasceu a arte de Jesús Soto, que percorreria, como pintor, o mesmo caminho de Vasarely antes de abandonar o suporte


Guto Seixas/Divulgação/CCBB

TRADUZIR-SE

da tela e partir para construções no espaço tridimensional. Esta saída para o espaço real tornou-se uma alternativa inevitável para os artistas que romperam definitivamente com a linguagem figurativa, visando tornar a obra de arte não mais uma linguagem alusiva a qualquer outro universo semântico exterior a ela e, sim, uma construção objetiva, cujo significado nasceria dela e seria ela. Não foi outra a opção de Lygia Clark e Hélio Oiticica, depois que chegaram à tela em branco. A diferença é que, enquanto Lygia e Hélio desconstruiram a tela para, com seus elementos, construírem não-objetos, Soto simplesmente ignorou o suporte material que é a tela e transferiu para o espaço tridimensional os elementos visuais da pintura que, de cor e desenho que eram, passaram a ser fios de nylon e de metal presos ao teto e ao piso da sala. Se atentamos para essa diferença entre aqueles artistas brasileiros e o venezuelano, perceberemos uma diferença básica que nos ajudará a entender melhor a arte de Soto: a diferença do peso maior que tem a materialidade na experiência de Lygia e Hélio – e que se expressa na organicidade de suas obras – e o que ela tem na de Soto. O venezuelano opta pela construção da imaterialidade dos volumes virtuais; mantém-se no plano dos efeitos óticos. Este dado nos vale para abrir a discussão em torno da designação que se costuma dar às obras de Soto, qualificando-as como arte cinética. Esta qualificação nos parece inadequada. Gostaria que o leitor não visse nesta minha afirmação uma espécie de preciosismo conceitual, que certamente não teria cabimento. Na verdade, acredito que inserir as obras de Soto no conceito de arte cinética dificulta perceber o sentido real de seus trabalhos, além de dificultar também a compreensão do que se deve entender por arte cinética. No meu modo de ver, o adjetivo cinético qualifica um tipo de arte que inclui em sua expressão o movimento real. Por exemplo, o aparelho cinecromático de Abraham Palatnik que, como se sabe, constitui-se de uma tela semelhante à de um monitor de televisão em que as formas coloridas se movem efetivamente; o mesmo pode-se dizer das esculturas de Schöffer, constituídas de placas de metal que se movem pela ação de um motor. Já nas obras de Soto não há movimento real mas apenas virtual: de acordo com a vibração dos elementos lineares e cromáticos, os

Complementos, 2003, madeira e pintura, 150 x 75 x 14cm

volumes virtuais surgem e desaparecem, formam-se e apagam-se, de acordo com o movimento do olho do espectador. Seria mais apropriado qualificá-las como optical art, uma vez que nelas a expressão estética resulta da mesma combinação de elementos visuais que na pintura dessa tendência, só que, neste caso, atuando no espaço real, tridimensional. Esta maneira de ver as obras de Soto parece-me mais aberta à captação de seus valores implícitos e de sua rica ambigüidade. Por exemplo, ao transmigrar da tela para o espaço tridimensional, Soto, de certo modo, parece desejar sair do mundo meramente virtual da tela para situar sua obra no espaço, onde transcorre a vida das pessoas: o espaço urbano e arquitetônico. Não obstante, ao construir nesse espaço suas estruturas de volumes virtuais, ele de fato as imaterializa, ou seja, transforma as construções reais de fios de nylon e metal em simples aparências. Poder-se-ia dizer, usando de licença poética, que ele se vale de meios materiais para provocar, no espaço real, “aparições geométricas”, cubos ou pirâmides impalpáveis que, como os fantasmas, só têm existência no plano visual. • Continente março 2005

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Reprodução

Auto-rretrato, 1815


ARTES

Goya e a Inquisição

Uma pedagogia do desprezo A fascinação de Goya por temas místicos acompanha, em paradoxo, seu desprezo pela ignorância e atraso que tais crendices teriam provocado na Espanha Carlos André M. Cavalcanti

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relação entre a obra de Goya e a Inquisição foi marcada pelo conflito – o Tribunal o interrogou e o censurou em diferentes momentos – e pela confluência parcial de temas e preocupações. Na verdade, a Inquisição pós-iluminista da virada do século 18 para o 19 via o misticismo popular de modo semelhante a Goya. Já no campo moral, os inquisidores eram mais tradicionalistas: recusaram a nudez de uma de suas obras mais famosas. Mesmo apresentando inexatidões históricas, a iconografia inquisitorial permite uma tabulação das metáforas culturais com as quais se formaram as diversas concepções sobre o Tribunal do Santo Ofício. A tabulação das metáforas está sobreposta ao trabalho iconográfico. O historiador tem aí uma fonte extraordinária para a compreensão do imaginário inquisitorial através de imagens. Qualquer imagem, em qualquer época histórica, implica numa narrativa, como demonstrou Roland Barthes. A narrativa não está apenas nas imagens seqüenciadas que contam histórias com começo/meio/fim, como se faz no cinema, no teatro ou em algumas expressões das artes plásticas. Há também uma narrativa simbólica que é, inclusive, mais profunda que as narrativas icônicas. Mesmo que a uma certa imagem não corresponda uma narrativa claramente conhecida, na universalidade dos seus símbolos pode-se encontrar o “texto” a ser analisado e (con)textualizado. As obras de arte sedimentam o uso de metáforas para louvar ou condenar o Tribunal, dependendo da posição do artista. Francisco Goya Lucientes nasceu em 30 de março de 1746, no vilarejo aragonês de Fuendetodos. Foi pintor desde muito cedo, mas notabilizou-se internacionalmente pela pintura de temas polêmicos e denunciadores, típicos do terço final de sua vida. Antes, após um casamento estratégico, iniciou-se na Corte como criador de ilustrações para a tapeçaria real. Sua carreira o levaria a ser pintor da realeza, mas não chegou a ter, neste campo, o prestígio de Velázquez.

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ARTES A relação direta de Goya com a Inquisição parece ter começado quando o pintor foi chamado a se explicar pela pintura das famosas Majas: a Vestida e a Desnuda. As imensas majas já possuem tradição polêmica. Existe famosa versão de que se trataria da Duquesa de Alba, que teria sido amante do pintor e posado para ele. Na verdade, há semelhanças entre o rosto daquela senhora mostrado em retratos oficiais e aquele que se mostra na anônima maja. Porém, não é crível que o pintor comercializasse quadros que tivessem um significado tão pessoal, pois diversas de suas obras foram produzidas para ele próprio. As majas estavam nos aposentos do ex-primeiro ministro Manoel Godoy, quando este caiu em desgraça e foi preso pela Inquisição. Os quadros foram apreendidos e seu autor chamado para explicações. O tema da sensualidade está muito presente em algumas obras de Goya. É provável que o escândalo maior provocado pelas majas seja

devido à presença dos pêlos pubianos à mostra na desnuda. Talvez esta tenha sido a primeira aparição de nu frontal “completo” na alta pintura espanhola. A maja era um personagem espanhol: a palavra designava uma forma de ser e de vestir típica da Espanha de então. A vestida, aliás, apresenta uma roupa leve, colada ao corpo. Um lenço envolve sua cintura e o braço esquerdo está adornado. O olhar incógnito se repete nas duas pinturas, dando maior intensidade a uma refinada atmosfera sensual. Mais que nos temas do amor, foi naqueles ligados à cultura popular que Goya se aproximou de assuntos comuns ao Tribunal do Santo Ofício que, naquele período, diferentemente de cem anos antes, como ele, combatia o misticismo e as crendices. A obra goyesca sempre demonstrou a atração do autor pelas manifestações populares. O Enterro da Sardinha elucida o espírito do artista quanto a estas manifestações: Imagens: Reprodução

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A Maja Vestida,1803, óleo sobre tela

A Maja Desnuda,1803, óleo sobre tela Continente março 2005


ARTES

Sabbath das Bruxas, 1795

apesar de um certo trato pictográfico cuidadoso, Goya considerava tais manifestações um exemplo de ignorância e atraso. O Enterro é um quadro de tamanho médio, contendo um carnaval de mascarados e figuras horrendas. Seria uma comemoração que antecedia a Quaresma na quarta-feira de cinzas. As máscaras grotescas haviam sido utilizadas na Espanha para o enterro do porco, depois substituído pela sardinha, a fim de simbolizar o início da Quaresma. Porém, no tempo em que Goya viveu, já não se brincava carnaval na Espanha, o que deve denotar um caráter de sátira e denúncia contra uma crendice popular de origem medieval. O conjunto da cena é, ao mesmo tempo, cômico e macabro, paradoxalmente próximo ao riso irônico da cultura popular medieval. Esta obra teria sido pintada entre 1803 e 1806, já no espírito das pinturas negras de Goya. A fascinação de Goya por temas místicos acompanha, em paradoxo, seu desprezo pela ignorância e atraso que

tais crendices teriam provocado na Espanha. São componentes da Pedagogia do Desprezo, que ele tão bem expressou e sistematizou. O tratamento dado pela Inquisição e pelos homens cultos às crenças de origem popular passa por duas fases na Idade Moderna: na fase da Pedagogia do Medo (até meados do século 17), tais crenças inspiraram temor e provocaram reações intolerantes explícitas; já na fase seguinte, a da Pedagogia do Desprezo (após a segunda metade do século 17), tais crenças tornaram-se sinônimo de atraso ou coisa de gente sem instrução. Para o pintor de Aragão, o mundo à sua volta carecia de valores racionais, morais e humanos, o que permitia a proliferação de crenças místicas. Por isso, decidiu denunciar os abusos, distorções e imoralidades. A Igreja e, em menor monta, a nobreza retrógrada teriam sido os agentes deste obscurantismo contra o qual o artista se voltará fortemente. Mesmo assim, ainda que denunciando a mística, nota-se um fascínio que nos faz lembrar até mesmo alguns traços de Hieronymus Bosch (século 15). Em O Sabbath das Bruxas, por exemplo, as diversas componentes da reunião das maléficas estão notoriamente presentes: mulheres diversas trazem crianças para o sacrifício ao demônio, representado por um bode altivo, mas de olhar enlouquecido. Tudo se passa à noite. Criaturas demoníacas obscuras voam em formato de corujas: típico do simbolismo da época. Além das mulheres, há figuras humanas envelhecidas e de difícil caracterização sob a penumbra, ao fundo. O tom escuro azulado dá à atmosfera um ar estranho, pois a lua não está cheia. À Continente março 2005

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esquerda, uma das bruxas carrega uma vara com figuras de recém-nascidos. A fina ironia de Goya está presente, também, quando se trata da representação de crianças. Havia, então, a crença de que crianças que ainda não houvessem passado pelo batismo seriam pretensamente demoníacas. Durante a Idade Média, os sacramentos ganharam um significado místico direcionado para a realização material dos objetivos pessoais dos fiéis. O batismo ainda era parcialmente concebido como um ato de exorcismo. Em obras como Cena da Inquisição e Flagelados, o pintor trata diretamente do tema inquisição. Estas obras mostram a “Espanha Negra”. Utilizando-se de um estilo “medieval” para retratar os tipos devotos presentes nas obras, Goya aproxima a Inquisição da flagelação, mostrando indiretamente que as vítimas do Tribunal também eram flageladas, só que a contra-gosto. Em Flagelados, “Goya satiriza o aspecto grotesco dos rituais de penitência” (Patricia Wright). Penitência e Inquisição possuem algo em comum: punição do pecado pela purificação da alma. Continente março 2005

Embustes vulgares, ignorância e ridículo: as componentes do desprezo pela mística popular não-oficial marcaram o discurso de Goya e os processos inquisitoriais contra crendices desde a virada do seiscentos para o setecentos. Note-se que, em Pernambuco, à época de Goya, uma ronda policial prendeu, em nome da Inquisição, mas por prováveis motivos de vingança pessoal, Matias Gonçalves Guizanda. Acusação: porte de bolsa de mandinga – amuleto que se pendura ao pescoço com uma bolsinha para carregar escrituras ou outros objetos de culto. Com requerimentos, o preso conseguiu chegar ao príncipe regente D. João, que pediu um parecer ao Conde de Aguiar. O parecer do Conde reafirmou no Brasil o mesmo desprezo dos homens cultos pelas crenças populares: “este pobre miserável, supersticioso e ignorante se devia mandar pôr em liberdade (...)”. Em Expelindo Gases, da série Caprichos, há repugnante pedofilia que está envolta num clima de prazeres sádicos que são chocantes até para o apreciador atual da obra goyesca. Um bruxo alto e magro tortura uma criança, que lhe serve de fole para uma espécie de lampião.


Na página anterior, Cena da Inquisição, 1800, óleo sobre tela À direita, Expelindo Gases, 1797, desenho

Outro bruxo chupa o pênis de uma criança pequena. Figuras esqueléticas observam tudo. Bebês são trazidos por um monstro voador. Um outro monstro está ao fundo com o rosto meio virado para trás, parecendo gozar de prazer. A grosseria da gravura mostra um Goya inquieto e indignado com os descalabros morais envolvidos pela crença no feitiço. As fixações sexuais e as afetações imorais de comportamento estão, para Goya, no mesmo âmbito da loucura e das crendices. Poderia o argumento adentrar pela Psicologia e pela Antropologia, supondo que uma libido que se exterioriza de uma forma considerada diabólica pela cultura está relacionada com outras perversões, o que talvez desse sustentação científica para esta intuição do pintor há duzentos anos. Goya representou com maestria a Pedagogia do Desprezo, opondo, mesmo com certa ambigüidade, a razão às crendices. Deste mesmo discurso ilustrado havia nascido uma prática processual inquisitorial “branda” e excludente, que estigmatizava tudo que não fosse “racional” como sinônimo de atraso e ignorância. Antes mesmo de Goya, a própria Inquisição já se encaminhara neste sentido, mas o artista aprofunda a influência do desprezo e do racionalismo, levando suas críticas para o campo moral. Na gravura O Abutre Carnívoro, que sintetizaria a concepção do pintor sobre um Santo Ofício monstruoso e paradoxalmente ridículo, o terrível ser antropomorfo é expulso a golpes de tridente por um homem do povo – racionalista e ilustrado, quem sabe?! A multidão, ao fundo, vê o desenrolar da cena com um certo desdém pelo monstro escorraçado: há os que riem do monstro, olhando para o seu traseiro, outros conversam olhando em outra direção e há até os que estão de costas, totalmente alheios. Enquanto a Inquisição e o próprio pintor aragonês usaram o desprezo para combater o feitiço, nesta gravura usou-se a mesma noção para combater a própria Inquisição. Goya estava mais próximo da mentalidade inquisitorial de sua época do que talvez pudesse saber, já que os processos inquisitoriais eram secretos e só em torno de cem anos mais tarde começariam a vir à tona sistematicamente com o trabalho de historiadores. •

O Abutre Carnívoro, 1815, desenho

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A Perder de Vista. Galeria Amparo 60 (Avenida Domingos Ferreira, 92A, Pina, Recife-PE), Visitação de segunda a sexta, das 10h às 19h, e sábados, das 9h às 13h. De 22/03 a 16/04. Entrada franca. Informações:: (81) 3325-4728.

Memória do vazio Paulo Meira expõe fragmentos de cinco séries na mostra A Perder de Vista A Perder de Vista não é uma mostra linear da obra de Paulo Meira, mas fragmentos de cinco linhas de raciocínio ou séries distintas. Sábados, Bordas, Postais e Querido Amigo, reunidas na Galeria Amparo 60, são representações de objetos utilizados como meio de ampliação do alcance do corpo ou conexão com o Outro, ou mesmo o simples registro de idéias. Nas grandes páginas em branco de Sábados, nos cartões de Postais, nas margens de Bordas ou nos envelopes aéreos de Querido Amigo, Meira transpõe sua afetividade e

memória para os 14 óleos sobre tela. “Memória que se atualiza como um insistente campo em branco, como um insistente vazio possível de ser preenchido ou de lugar a ser imaginado. Uma proposta de potencialização do olhar em direção ao vazio, aos mundos possíveis de serem imaginados”, reflete. Ainda sendo uma mostra com caráter retrospectivo, mas realizada não com este fim, A Perder de Vista traz na série Sábados variantes de formatos inéditos ao público.

Resultado 2 Começou o segundo tempo do 46º Salão de Artes de Pernambuco. Se o primeiro (que não terminou) exibe obras de artistas convidados, o segundo (em sua segunda etapa) expõe obras executadas pelo Grupo Corgo e os artistas Augusto Japiá, Eudes Mota e Renato Valle, ganhadores das bolsas oferecidas na edição passada do Salão. O Corgo apresenta o intercâmbio artístico realizado com artesãos que produzem cerâmicas (artesanal, artística, rudimentar e industrial) no interior do Estado. Renato Valle espelhou-se nos ex-votos para compor Cristos Anônimos. Eudes Mota recorreu aos referenciais geométricos das palavras cruzadas para realizar Cruzadas Gravadas. Já Augusto Japiá investigou o universo dos relacionamentos entre homens e mulheres, ilustrando uma série de divertidas situações cotidianas em Homem x Mulher.

Trajetórias Alguns Objetos de Adoração III, de Renato Valle. Abaixo, Todos os Homens São Iguais, de Augusto Japiá

Resultado 2. Museu de Arte Contemporânea - MAC ( Rua 13 de Maio, 157, Varadouro, OlindaPE). Visitação de terça a sexta, das 10h às 17h, e sábado e domingo, das 14h às 17h. Até 27/03. Informações: (81) 3429.2587. Continente março 2005

Estão abertas as inscrições para o projeto Trajetórias 2005, realizado pelo Instituto de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco. Os artistas plásticos que desejarem participar têm até o dia 1º de abril para efetuarem inscrição, através da agência dos Correios ou na Coordenadoria de Artes Plásticas da Fundaj, Derby. Inscrições Trajetórias 2005: Instituto de Cultura – Espaço Cultural Mauro Mota –, Coordenação de Artes Plásticas (Rua Henrique Dias, 609, Derby, Recife - PE. Cep. 52.010.100). Fone ( 81) 3421.3266. Informações: www.fundaj.gov.br


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MÚSICA

O canto ensolarado Fundação Quinteto Violado registra em CD e DVD a riqueza e a diversidade da música do Nordeste, renovando a cultura do semi-árido e valorizando os artistas populares Fábio Araújo

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embrião surgiu em 1972. Os músicos do Quinteto Violado participaram, sob a coordenação de Hermilo Borba Filho, de um levantamento da cultura musical nordestina que resultou na gravação de um LP, incluído na série Mapa Musical do Brasil. O disco registrava o trabalho de violeiros, emboladores e cirandeiros, colocando lado a lado manifestações pouco conhecidas, como a taieira (Sergipe) e o bambelô (Rio Grande do Norte) a ritmos como o samba de roda e o frevo. Idéia do publicitário Marcus Pereira, o trabalho acabou premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e trouxe status e prestígio para a recém-formada banda, sedimentando sua entrada no mercado nacional. Era uma época em que – assim como fizeram os mangueboys duas décadas depois – uma nova geração de artistas procurava definir seus estilos a partir da mesclagem de ritmos da cultura popular com outras expressões. No caso do Quinteto, os urbanos bossa-nova e tropicalismo. Com a pesquisa, os integrantes da banda perceberam a dramaticidade, a riqueza e os aspectos brincantes da música nordestina, elementos logo incorporados ao som e aos shows do grupo. O passar do tempo levou ao acúmulo de experiências, e a banda exercitava-as, fazendo oficinas e palestras em universidades. Até que, Cavalhada de Poço Redondo (SE)

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em julho de 1997, surgiu a Fundação Quinteto Violado, entidade dirigida pelos próprios músicos, que veio para ampliar e sistematizar a proposta da banda, funcionando como um núcleo executivo de projetos culturais. Diretamente, ou através de convênios com instituições governamentais ou particulares, a FQV tem o objetivo de promover o desenvolvimento da cultura nordestina e a valorização das pessoas através de suas expressões artísticas. Após alguns trabalhos iniciais, o primeiro projeto de grande porte veio em 1998, em convênio com o programa Comunidade Solidária: a instalação de uma Frente Cultural em Serrita, Sertão de Pernambuco. Capacitando artistas e músicos da região no rumo do desenvolvimento sustentável, o trabalho resultou na formação do Coral Aboios, grupo de 11 vaqueiros que entoa, cantando em duas vozes, a música usada para conduzir os animais pela caatinga. O Coral estreou na Missa do Vaqueiro em 1999, teve seu primeiro CD gravado num estúdio móvel em Serrita – com apoio e participação de músicos do Quinteto – e chegou a contracenar com a atriz Marília Pêra no espetáculo “Além da Linha D’Água”, em São Paulo. Apoiados pela Cooperativa Serritense de Arte e Cultura, também criada a partir do projeto, os aboiadores deixaram de depender das frentes de trabalho.

Marcelo Lyra/FQV/Divulgação


Carla Navarro/FQV/Divulgação

Toinho Alves (E) com integrantes da Banda de pífanos de Zabé da Loca

Capacitação – Além de registrar e documentar as manifestações culturais, a idéia da FQV é capacitar os músicos para que tenham a chance de seguir com suas próprias pernas. Uma das estratégias da Fundação é comprar e revender os produtos gerados nos projetos, garantindo renda para os artistas. “Buscamos estimulálos a usar sua capacidade, com orgulho, para melhorar as condições de sobrevivência. Não é só chegar lá e gravar um CD com eles. Temos que antes criar um sentido cultural, inclusive com noções de cidadania e relação com o meio ambiente, para que eles entendam como lidar com a realidade”, explica o presidente da Fundação e vocalista do Quinteto, Marcelo Melo. Ele faz questão de citar o exemplo da pifeira Zabé da Loca, que teria vivido 25 anos dentro de uma caverna em Monteiro, na Paraíba. “Ela era amadora. Ganhava 50 reais por apresentação e não tinha apoio. Agora, cobra 2 mil reais por apresentação e aprendeu sobre o mercado musical”, diz Melo. Zabé foi uma das artistas beneficiadas pelo projeto Cantos do Semi-Árido, desenvolvido em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Sua banda, formada por dois pífanos, caixa, prato e zabumba, teve o primeiro CD gravado em 2003. São 14 faixas, entre composições próprias, textos falados e versões de “Asa Branca” e “Juazeiro”, clássicos de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. O programa também viabilizou o registro e lançamento em CD da música dos índios Fulni-ô, de Águas Belas, agreste pernambucano; do Grupo de Coco de Negros e Negras do Leitão e da

Banda de Pífanos do Sítio Leitão da Carapuça, ambos de Afogados da Ingazeira; e dos cordelistas Zé Ailton e Manoel Belarmino, de Poço Redondo, Sergipe. O mais recente lançamento da série registra os cantos de trabalho das cantadeiras do sisal, presentes nos municípios de Valente e Araci, no nordeste da Bahia. Planta da qual se extrai uma fibra resistente, usada na fabricação de cordas, esteiras, bolsas e objetos de decoração, o sisal é fonte de renda e sustento para diversas famílias da região. Enquanto tecem, as mulheres entoam versos e toadas, agora devidamente registradas em CD. O trabalho tem 17 faixas, incluindo uma interativa onde o trabalho e cantoria das artesãs – divididas nos grupos Cantadeiras do Sisal e Cantigas de Roda – são mostrados em vídeo. Destaque para a belíssima embalagem, confeccionada manualmente em sisal, perfeita para divulgar o produto. A música, cativante, é cantada à capella. DVD - Até agora, os registros musicais do projeto Cantos do Semi-Árido limitavam-se aos CDs. Porém, o próximo passo será investir numa mídia mais abrangente: o DVD. O assunto desta vez é a cavalhada, expressão cultural presente no município sergipano de Poço Redondo. O produto, que deve ser lançado ainda no primeiro semestre, terá um vídeo principal com 14 minutos, em que é apresentada uma cavalhada, os adereços, toda a preparação. Os participantes – divididos em dois grupos rivais – seguem em caminhada, acompanhados por uma banda de pífanos, até a Igreja, onde Continente março 2005


humanos que decidiu fazer outras 16 peças, cada uma com cerca de quatro minutos, mostrando todas as curiosidades da região. Fala-se de Lampião; da culinária; da fabricação dos chocalhos de boi; do artesanato de couro; do personagem “Véio”, dono de uma enorme coleção de antiguidades; do santeiro Mestre Tonho; dos índios Xokó, que moram numa ilha do rio São Francisco; do Mocambo, uma comunidade quilombola às margens do rio onde se dança o Samba de Coco. Como notaram os pesquisadores da Fundação, quando desembarcaram em Poço Redondo, a cavalhada encontra-se ameaçada de desaparecer pela falta de renovação e pouco interesse da própria população local. Foi necessário, inclusive, fazer um “seminário de conscientização” na cidade para começar a tirar a manifestação do limbo. Talvez um trabalho abrangente como o DVD possa ser útil nesta tarefa. • Carla Navarro/FQV/Divulgação

pedem à Padroeira para que não haja acidentes. Em seguida, começam a cavalhada propriamente dita, que dura cerca de quatro horas. É um “auto eqüestre”, originado na Idade Média dos tempos de Carlos Magno, no Brasil representando parte da herança cultural portuguesa de festejar as vitórias manifestando fé aos Santos e à Virgem Maria. Segundo afirma José Ramos Tinhorão, no texto O torneio das cavalhadas nas festas da corte, a ligação das festas de espírito cavaleiresco com o poder, e como forma de exibir dotes, é um dos aspectos observados no período colonial. “Nos torneios de cavalhadas, nas festas da corte, os próprios monarcas tomavam parte com os príncipes fidalgos da casa real, como forma de demonstração de poder pessoal”, descreve. Ao chegar no interior sergipano, a comitiva da FQV encontrou tamanha riqueza cultural e de tipos

Banda de pífanos Leitão da Carapuça (Afogados da Ingazeira/PE) Continente março 2005


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Donato, o maldito

A Bad Donato foi o grande disco que João Donato gravou na Califórnia, em 1970, e que agora ganha uma edição remasterizada pela Dubas. O que, à época, pareceu uma cacofonia free-jazzística, com uma pesada percussão afro-cubana, foi a gênese da disco music (JD também foi um dos cérebros da bossa-nova, lembra?). Com arranjos de Donato, do multifuncional Eumir Deodato e as influências do funk, de James Brown, além de uma boa dose de experimentação, A Bad Donato, nas palavras do próprio, foi uma tentativa de entrar no mercado americano no esquema daquele momento. Saía o Donato do piano bossa-nova com tempero caribenho e chegava o Donato elétrico, com cara de mau. E assim ele entrou no mundo, num esquema atemporal. A Bad Donato. Dubas Música, preço médio R$ 30,00.

O renovador do frevo Siba e Barachinha

Verso afiado Poetas do improviso de várias regiões do país se encontram no Rio de Janeiro A tradição do improviso em poesia é quem dá o mote para a realização do Na Ponta do Verso, evento que reunirá versejadores de várias regiões do país no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, durante as terças-feiras do mês de março. Quem representa os repentistas, emboladores e aboiadores é Ivanildo Vila Nova (PE), Sebastião da Silva, Antônio Caju e Caetano da Ingazeira. A pajada e o cururu serão defendidos por Paulo de Freitas e Jadir Oliveira (RS). O desafio do Maracatu de Baque Solto será entre Siba e Barachinha (PE). A peleja da Folia de Reis será com a Sagrada Família da Mangueira, Chiquinho Feijó e Serginho Barra Preta. A provocação dos partideiros e calangueiros será entre Xangô da Mangueira, Tantinho e Marquinho China. Geralmente acompanhados de instrumentos como a viola, rabeca, sanfona, pandeiro ou ganzá, os poetas lançam mão de métricas e temas para criarem individualmente ou estabelecerem duelos versados, em rimas marcadas pelo bom humor, crítica social, velocidade mental e astúcia. O verso afiado. Na Ponta do Verso. Centro Cultural Banco do Brasil (Rua 1º de Março, 66, Centro, RJ) dias 08, 15, 22 e 29/03, das 12h30 às 18h30. Ingressos: R$ 6,00 (estudantes e idosos pagam meia). Informações: (21) 3808.2020.

Quase todas as vezes que o Carnaval pernambucano é projetado para o resto do país, as imagens são embaladas por “Vassourinhas”, frevo de Matias da Rocha e Joana Batista, composto em 1909. Tratase de uma espécie de hino da folia local; o que leva alguns desavisados (e não pernambucanos) a indagarem: “vocês só têm esse frevo?” Mas esta história está sendo revolucionada, e o grande responsável é o maestro Spok, que levou o frevo para o palco e introduziu a marca jazzística do improviso às orquestrações, agregando harmonias mais dissonantes e solos; renovando a vitalidade do ritmo e divulgando-o para todo o mundo. O CD Passo de Anjo, primeiro da Orquestra, traz frevos em três partes, de Hermeto Pascoal e até sanfonado, de Sivuca. Passo de Anjo. Via Som, preço médio R$ 20,00.

A leveza da harpa Algumas músicas de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Villa-Lobos, Antônio Maria e Luís Bonfá, Egberto Gismonti, Chiquinha Gonzaga, Edu Lobo e Chico Buarque, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira ganham novos arranjos no álbum Harpa Brasileira, da harpista Cristina Braga. Nas 47 cordas do instrumento, Cristina dedilha (e canta) suavemente, em tom quase angelical, “Assum Preto”, “Trenzinho do Caipira”, “Corcovado”, “O Gaúcho”, “Beatriz”, “Manhã de Carnaval”, “Insensatez”. Acompanhada pelo violão baixo de Ricardo Medeiros, percussão e bateria, a primeira-harpista do Teatro Municipal do Rio confere uma coloração erudita, algumas com matizes jazzísticos, a canções populares. Harpa Brasileira. Kuarup, preço médio R$ 20,00. Continente março 2005

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Fotos: Divulgação

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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

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Vatel – Um Banquete Para o Rei “Os homens que preparavam os festins precisavam reunir diversas qualidades – o gênio para inventar, o conhecimento para decidir, o julgamento para proporcionar, a sagacidade para descobrir, a firmeza para se fazer obedecer e a pontualidade para não fazer esperar” Brillat-Savarin (A Fisiologia do Gosto)

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arço é mês de cinema. Mês de Oscar. Mesmo que a festa aconteça, algumas vezes, no fim de fevereiro. Como neste ano. O premio foi criado por Louis Mayer em 1927. Os mais premiados foram, vale a lembrança, BenHur e Titanic (11 estatuetas), Katharine Hepburn (4) e Jack Nicholson (3). A estatueta é pequena, 34 cm de altura, 3,5 kg de estanho folheado a ouro. Vale só 150 dólares. Mas a que pertenceu a Vivien Leigh (E o Vento Levou) acabou arrematada, em leilão, por 562 mil dólares. Vatel: um Banquete Para o Rei (2000), de Rolland Joffé, escolhido para abrir o Festival de Cannes, não recebeu qualquer Oscar. Apenas uma discreta indicação, em Direção de Arte. Continente março 2005

Gérard Depardieu em cena do filme Vatel: Um Banquete Para o Rei

Apesar disso, ou talvez por isso, é um filme soberbo – a epifania da mesa concebida como uma arte superior. Trata de episódio real, ocorrido na França do século 17. O príncipe de Condé (Julian Glover), em dificuldades financeiras, convida o Rei Luís XIV (Julien Sands) e toda a corte de Versailles para um fim de semana em seu castelo de Chantilly, norte da França. O Rei Sol aceita o convite. Porque o príncipe de Condé era, ainda, o melhor general da França – mesmo velho e sofrendo de gota. Seus serviços seriam necessários, caso a França entrasse mesmo em guerra com Guilherme de Orange, da casa da Holanda. Mas aceitou, sobretudo, porque apreciava as boas coisas da vida. Era protetor de Corneille, Racine, Jean-Baptiste Lully,


SABORES PERNAMBUCANOS

La Fontaine. Amante dos sabores, a ele se deve o apogeu da culinária francesa. E a valorização da etiqueta à mesa. Passando os pratos a ser servidos um por vez (“serviço à francesa”), seguindo ordem precisa – peixes, carnes e por fim sobremesas. Introduziu o uso do sorvete, do café, do champagne, do molho béchamel – homenagem ao financista Luís de Béchameil, marquês de Nointel. Os banquetes servidos em Chantilly eram mesmo memoráveis, todos o sabiam. O nome Chantilly, vale a lembrança, vem de Cantilius – romano que, no passado, aí tinha seus domínios. “Comparando a visita do rei, a Chantilly, com a guerra contra a Holanda, esta última não passaria de um piquenique”, assim queria o anfitrião. Seria uma batalha de luxo e sofisticação – mesmo que tivesse que se endividar, ainda mais. Para coordenar os serviços, escalou o suíço François Fritz Karl Vatel (Gérard Depardieu) – “Mestre dos Prazeres e das Festividades”, e um dos mais disputados cozinheiros e chefe de cerimônias (maître-desplaisirs) da França. Vatel havia trabalhado antes em Vauxle-Vicomte, com Nicolas Fouquet – ministro das finanças de Luís XIV. Perdendo Fouquet seu posto para JeanBaptiste Colbert, segundo as más-línguas, precisamente por não admitir o Rei tanto esplendor fora de seu palácio. Para organizar os festins naquele fim de semana, trabalha Vatel 12 dias e 12 noites sem dormir. Maquetes ensinavam como seriam as mesas, a cozinha (retangular, enorme, cheia de fornos, fogões, panelões, travessas) e a despensa (com ingredientes escolhidos por ele mesmo, todos os dias). Toalhas, talheres, candelabros, guardanapos e móveis ganharam desenhos especiais e únicos. Seriam três grandes banquetes “os maiores de todos os tempos”, em meio a danças, representações, músicas, cenários e fogos de artifício. Cada um com motivo temático específico. Primeira noite, “homenagem à gloria do sol e à generosidade da natureza, com suas flores, frutas, árvores gigantes e borboletas”. Na mesa codorna, ganso, pato, porco, carneiro, perdiz, torta, bolo confeitado. Sem contar aquilo que mais impressionou o Rei – uma laranja, aparentemente inteira, que puxada pela ponta da casca rodava e caia no prato, já descascada e cortada em gomos. Vinho e ponche à vontade. Vatel mais parecia, segundo um comensal, “maestro no comando de uma orquestra, onde os in-

gredientes são os instrumentos, enquanto sua sensibilidade e criatividade determinam as notas que comporão a sinfonia a saborear”. Todos ficaram deslumbrados com o espetáculo. Principalmente uma jovem e bela cortesã, Anne de Montausier (Uma Thurman). Que encanta a Vatel e ao Rei – com quem se encontra à meia-noite, no quarto dela, para tomar chocolate e dividir cama. Segunda noite, “homenagem à água”. Realizado ao ar livre, em volta do lago, iluminado com tochas, velas e lamparinas. Do chão brotam leques e árvores. No céu, anjos voando. Arranjos com frutas artificiais feitas de vidro soprado e flores de verdade garantiam “harmonia e contraste” – que, segundo Vatel, “a beleza surge desses dois elementos”. O vento apaga as tochas e derruba os arranjos. Anne diz que consegue parar o vento. E assim faz. “Fui, apenas, instrumento na mão de Deus”, justifica. Vatel se encanta, ainda mais. E fica arrasado ao saber que ela passou a noite anterior com o rei. Sentia desprezo por aqueles nobres. Queria abandonar tudo. Mas sabia “ter o poder de criar e de surpreender. Está nas minhas mãos agradar ao rei. O que não é pouca coisa”. Assim garantindo, ao patrão, “lugar importante no destino da França”. Anne confessa que “agradar a um rei é fácil... mas sem importância”. O marquês de Lauzun (Tim Roth) encomenda, a Vatel, arranjo de flores para impressionar Anne. Mais um interessado nela. O presente foi recusado pela dama. Então Vatel, lembrando seu mestre Eberhard (que lhe ensinou a arte de confeitar), lhe prepara jarro e flores de açúcar – “poucos objetos são belos ou feios em si, saber isso é o primeiro passo do artista”. E envia, junto, bilhete “Madame, a senhora foi bondosa com quem recusou a bondade. Os talentos que eu tenho emprego-os para obter perdão”. Anne vai a seu quarto. E, juntos, permanecem na cama por longo tempo. Vatel alimenta a confiança de que seu amor seria eterno. E correspondido. Pobre Vatel. As lanternas de vidro, encomendadas em Paris, chegam todas quebradas. Improvisa luminárias feitas com pequenas abóboras furadas, elogiadas por todos – “acho que vieram da Índia”, comenta um convidado. Não se pode fazer creme, porque os ovos estão podres. Mas Vatel descobre que, batendo nata de leite com açúcar, essa mistura cresce como clara de ovo em neve. Fica ainda melhor que Continente março 2005

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aquele creme feito de ovos. E previne a todos – “se perguntarem o que é isso, digam ser velha receita do Castelo de Chantilly”. O banquete está pronto. À mesa carne assada, faisão cozido enfeitado com as próprias penas, massa recheada com carne “de licorne”, cogumelo, cereja em calda, maçã cristalizada, uva, bolo, queijo. Vatel tudo controla. Troca o guardanapo de Mme. Coubé, que caiu no chão. Pede a um médico (Dr. Bourdelot) que alivie a dor do seu príncipe, tendo ainda que providenciar receita por este prescrita – o coração de uma ave viva, “único remédio eficiente para gota”. Durante o jantar enormes pássaros de madeira, montados por pessoas, sobrevoam os convidados. Nunca se viu banquete igual. “Quem é o responsável por essa maravilha ?” – pergunta o rei. “Tragam-me aqui esse Vatel”. Vatel alega estar ocupado e não vai. Mais tarde, no jogo de cartas, Condé se lamenta por nada ter para apostar. “Engano seu”, diz o Rei, “você tem algo mais raro que diamantes, o melhor Mestre dos Prazeres. Versailles precisa de um homem com esse talento”. Condé perde a aposta. E comunica a Vatel que deve partir para Versailles. Terceira noite, “homenagem a Netuno”, que deveria ser o mais suntuoso e magnífico de todos os banquetes. O da despedida. À entrada do palácio, enormes esculturas de gelo. No cardápio só peixe e frutos do mar – lagosta, camarão, ostra, siri. Caldo com alho e alho-poró. Legumes escaldados com cuidado “para não murchar enquanto esperam o rei”. Lagostas “cortadas ao meio ainda vivas, com facas muito afiadas” e depois fritas. Molho para acompa-

nhar os crustáceos. Os peixes, encomendados com tanta antecedência, por conta de uma tempestade não chegam. Vatel se desespera. Tranca-se no quarto. É avisado de que deverá partir para a corte, na manhã seguinte. A angústia é mais forte que ele. Prefere morrer. Por “valorizar a liberdade acima de tudo”, por não poder ter Anne e por não poder preparar um banquete à altura do Rei. Então trespassa o coração com uma espada – por ironia, no momento exato em que chegava ao castelo o carregamento de peixes. Não deixa carta para o seu príncipe. Nem para o Rei. Apenas uma, para Anne de Montausier – “Madame, não sou mestre dessas festividades, apenas escravo delas. Quando ler esta carta terei deixado este mundo com um único arrependimento. O de não poder estar mais com a senhora. Nos últimos três dias pude perceber que liberdade é tudo que prezo. Entre Condé e Versailles a estrada é estreita, e decidi não segui-la. Que a senhora possa encontrar estrada melhor. Lembre-se de que há um lugar, não muito longe de onde mora, em Vaucluse, onde se plantam cerejas no meio dos vinhedos. E o sabor dessas cerejas transparece no vinho”. Anne compreende suas palavras. E deixa Chantilly por uma porta lateral, enquanto as esculturas de gelo derretiam. Jamais foi vista na corte. Fim. Da noite e do filme. Faltando só dizer que, ao contrário do que se pensa, o tal creme Chantilly não foi invenção de Vatel. Já havia por lá, quase um século antes dele. Ficou a lenda. E a lenda, quase sempre, é maior que o homem. •

AE/Divulgação

RECEITAS: CREME CHANTILLY INGREDIENTES: 2 xícaras de creme de leite fresco (bem gelado) 2 colheres de café de baunilha 2 colheres de sopa de açúcar. PREPARO: Junte todos os ingredientes num recipiente de metal gelado. Bata com a batedeira em velocidade lenta, até que cresça em volume e forme caminhos, deixando ver o fundo do recipiente. Mantenha na geladeira até a hora de servir (conserva-sse bem por até 3 dias) O creme acompanha frutas, sobremesas, doces, sorvetes e bolos. Continente março 2005


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Antônio Maria: “Só sei escrever sozinho e malvestido”

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escubro em meus papéis este texto do pernambucano Antônio Maria, grande cronista: “Sou das pessoas que, realmente, trabalham, mas, desde que comecei, impus minhas condições: trabalhar em casa. Se querem que eu escreva, deixem que eu escreva em casa. Só sei escrever sozinho e malvestido. Levantando, deitando, comendo uma coisa. Às vezes, estou na máquina e bate a burrice. Levanto, vou à cozinha e como uma comida fria. Melhoro. Volto a escrever. Na segunda burrice, me deito e leio um trecho de novela policial. Fico poeta. As novelas policiais de Simenon me poetizam. Hoje, de manhã, andei lendo o começo de uma, em que a telefonista da Polícia Judiciária anotava as ocorrências de uma noite de Natal. E eu via cada uma das ruas de Paris de madrugada. Em minhas últimas lembranças de Paris, a perso-

nagem constante é Joel Silveira. Embora seja um homem muito sério, eu lhe acho uma graça enorme. Achar graça é amar. Uma noite (fazia frio), fomos comer piedde-cochon na rua Jean Jaurés. É lá que se come o melhor “pé de porco” de Paris. Depois dessa noite, todos os dias tinha que levar Joel a um “pé-de-porco”. Recordo-o já comido, com as mãos nos bolsos no sobretudo, cantando o hino de Sergipe. Há pessoas que a gente não deve – outras que a gente precisa – encontrar, em Paris. Joel Silveira é um. Como dizia, gosto de trabalhar, mas em casa. Parando, continuando, parando mais. Ou melhor: detesto trabalhar, mesmo assim, parando, continuando, parando. Às sete, o médico veio tirar meu sangue. Tirou todo. E aqui estou, exangue, a celebrar minhas modestas lembranças”. •

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À procura da Beleza A viagem de Umberto Eco através da história da Beleza termina nas contradições, dificuldades e aporias do século 20

Imagens: Reprodução

Luciano Trigo

Acima: Busto feminino, século 2º a.C., Lucera, Museo Cívico Pág. seguinte: Alegoria de Vênus, Agnolo Bronzino (detalhe), Londres National Gallery

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ais do que propriamente uma história da beleza ou um ensaio sobre estética, o livro organizado e, em parte, escrito por Umberto Eco é uma antologia crítica de textos de filósofos, historiadores e poetas, com mais de 300 ilustrações, que reconstituem o desenvolvimento da idéia de beleza ao longo dos séculos. É uma espécie de guia de artistas, obras de arte e textos que ajudaram a definir os traços característicos daquilo que chamamos belo – uma genealogia da beleza na cultura ocidental, de suas manifestações artísticas e de seus entrelaçamentos com diferentes aspectos da vida cotidiana. Eco combina o tom simpaticamente didático do texto com uma profusão de ilustrações, que vão de figuras pré-históricas às cobiçadas imagens dos calendários da Pirelli. O nome de Umberto Eco volta a se associar assim aos estudos estéticos e semiológicos feitos pelo autor nos anos 60 e 70, em livros como Obra Aberta e A Estrutura Ausente. Pois História da Beleza é sobretudo uma viagem pela História do Olhar, mais do que pela História da Arte. Eco faz uma síntese inédita e multidisciplinar que inclui não só as artes visuais, a arquitetura e o design, mas também a música, a literatura e a dança. Trata-se, portanto, não só da arte e do pensamento, mas também do comportamento como fonte de beleza. A ambição de Eco não é enciclopédica. Ainda assim, trata-se de um projeto ambicioso e difícil, já que a própria noção de beleza tem muito de vago e subjetivo. É um território de fronteiras difusas e cambiantes, determinadas social e culturalmente, que não se deixa cartografar facilmente. O belo não é uma qualidade intrínseca de um objeto ou de uma pessoa e, sim, algo que se inscreve no olho daquele que vê, na mão daquele que toca, no ouvido daquele que ouve. Eco tenta identificar os casos em que



uma determinada cultura ou época histórica reconheceram que há coisas que são agradáveis quando as contemplamos, independentemente do desejo que sentimos em relação a elas. Eco não parte, portanto, de um conceito pré-estabelecido de beleza, mas faz uma súmula das coisas que os seres humanos já consideraram belas e nos ajuda, assim, a entender o que consideramos belo hoje, isto é, os mecanismos atuais da percepção. Quadros comparativos no início do livro mostram diversas representações de Vênus e Adônis, de Jesus, de reis e rainhas, traçando uma espécie de panorama das transformações e diferentes concepções do rosto, do corpo e da beleza humanos, pontuada por trechos de obras célebres de filósofos e estetas de todas as eras. São referências que “conversam” entre si e com as obras reproduzidas: diante do leitor desfilam Eurípedes, Platão, Picasso, Kant, Andy Warhol, Nietzsche, Hegel, Kafka, Roland Barthes, Rimbaud. Imagens: Reprodução

As faces de Cristo: as diferentes representações da imagem de Jesus Cristo na História da Arte

Um bela expressão do feio: Afresco do Inferno, Giovanni da Modena, Igreja de São Petrônio, Bolonha, c. 1410

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Eco sugere que as diferentes concepções de beleza evoluem e se repetem em diferentes épocas, nas mais diversas áreas e regiões. Ele analisa, por exemplo, a mudança da visão do homem e da mulher, dos mitos gregos aos mitos da comunicação, como Monica Bellucci e Arnold Schwarzenegger. Da mesma forma, registra as variações observadas nas imagens do rei e da rainha, do busto do faraó Aquenaton, do século 4º a.C., a John Kennedy ou Giovanni Agnelli, e de Nefertite a Lady Di. Compara também as representações de Nossa Senhora e Jesus Cristo, do mosaico A Natividade, anônimo do século 12, a uma foto recente da cantora Madonna, e das figuras pintadas nas igrejas ao rosto ensangüentado de Jim Caviezel no filme de Mel Gibson. Eco e seu assistente Giramolo de Michele não param aí: investigam a proporção arquitetônica, a presença e o sentido do feio no simbolismo universal, os palácios e jardins medievais, as damas e os heróis, as diversas concepções da beleza da natureza, dos animais, dos corpos humanos, dos astros, das relações matemáticas, da luz, das pedras preciosas, das roupas, de Deus e do Diabo. Em alguns momentos, História da Beleza segue um caminho algo previsível, quase parecendo que a sua ambição é a de ser um manual para estudantes. Ainda assim, as questões que o livro propõe – O que é a Beleza? O que é a Arte? O que são o gosto e a moda? – geram reflexões sempre pertinentes. No capítulo referente à Grécia Antiga, Aristóteles, o autor da Poética, o primeiro texto teórico sobre arte, é estranhamente ignorado. Eco prefere realçar a relação entre a proporção divina e a desproporção humana, evocando Platão. Sua idéia de que o belo é entre todas as formas a mais sublime e importante persiste até os nossos dias para certos pensadores, críticos e artistas. No século 18, fica claro que não é possível construir uma lógica que permita dominar cientificamente o território do belo, isto é, que a sua percepção tem raízes numa determinada cultura e num determinado tempo. É quando se reconhece o caráter subjetivo, incontrolável e assiste-

Contraponto: Hélène Fourment, como Afrodite, 1630, por Peter Paul Rubens. E Marylin Monroe, Calendário Marylin,1952 Continente março 2005


Vanessa Redgrave, no filme Isadora


Imagens: Reprodução

Equilíbrio e harmonia na Arte Clássica: Laocoonte, século 1º a.C., Roma, Museu do Vaticano

ESPECIAL

mático da Beleza, tanto na natureza quanto na arte. Sabe-se, pelo menos desde Kant, que a experiência do belo nada acrescenta ao nosso saber, com ela não se aumenta o capital cognitivo do sujeito, ou seja, que com o belo entra-se num jogo livre e desinteressado: “O belo é aquilo que agrada de maneira desinteressada sem ser originado por um conceito ou a ele redutível: o gosto é, por isso, a faculdade de julgar desinteressadamente um objeto (ou uma representação), mediante um prazer ou um desprazer; o objeto desse prazer é o que definimos como belo”, escreve Eco. Já para interpretar a relação entre a Beleza e o desejo, Eco toma como guia Baudelaire: “O sentido da Beleza é diverso do sentido do desejo. Podemos considerar alguns seres humanos belíssimos, mesmo que não os desejemos sexualmente, ou que saibamos que nunca poderão ser nossos. Se, ao contrário, se deseja um ser humano (que além do mais poderia até ser feio) e não se pode ter com ele as relações almejadas, sofre-se”. A viagem de Umberto Eco termina nas contradições, dificuldades e aporias do século 20: “Imaginemos um historiador de arte do futuro ou um explorador que chegue do espaço a fazer esta pergunta: Qual é a idéia de beleza que domina o século 20?”, propõe. É esta descoberta que importa fazer, levando em conta a polifonia que o belo nos nossos dias apresenta. “O nosso visitante do futuro não poderá evitar outra curiosa descoberta. Aqueles que visitam uma exposição de arte de vanguarda, que (...) estão vestidos e maquiados segundo o modelo de beleza proposto pelas revistas impressas em papel couché, pelo cinema, pela televisão, isto é, pelos mass media, seguem os ideais de beleza propostos pelo mundo do consumo comercial, aquele mesmo contra o qual se bateu a arte das vanguardas. Como interpretar esta contradição? Sem procurar explicá-la: ela é a contradição típica do século 20”. Esse visitante será obrigado a render-se diante de uma orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto e irrefreável politeísmo da Beleza. Diferentemente de outras épocas, em nosso tempo há uma tolerância a ideais de beleza diferentes: basta andar pelas ruas para perceber que hoje coexistem diversos ideais do belo. Mas Eco também adverte: para muitos, essa tolerância se transformou em indiferença, e nesse ponto o politeísmo da Beleza pode se converter num ateísmo da Beleza. •

História da Beleza, Org. Umberto Eco, Editora Record, 440 páginas, R$ 150,00.

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Umberto Eco e o Nominalismo Medieval A insana busca pela verdade é causa do obscurecimento da razão e da intolerância em qualquer época Eduardo Cesar Maia

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Nome da Rosa já vendeu mais de 4,5 milhões de exemplares em todo o mundo. Trata-se de um êxito editorial incontestável. No entanto, a princípio, muitos editores rejeitaram a publicação por se tratar de uma obra “difícil” para a maioria das pessoas, inclusive pela quantidade razoável de citações em latim. A verdade é que o best-seller de Umberto Eco é uma obra aberta que possibilita vários níveis de leitura: pode ser lido como um romance policial, um romance histórico, um bildungsroman ou até, para um leitor um pouco mais preparado, pode ser analisado como uma obra de reflexão filosófica. Eco usa o ambiente medieval para expor, numa forma literária, um pouco do que foram os grandes debates sobre o conhecimento na Idade Média. Apesar da idéia tão propagada de que o medievo foi um período estéril para o Pensamento, Eco nos mostra que, mesmo com todo o dogmatismo religioso e com toda a intolerância, a história das idéias não sofreu um blackout de mil anos. Um dado interessante é que O Nome da Rosa foi escrito logo após a divulgação de uma encíclica de João Paulo II que dizia: “A verdadeira paixão pela verdade é Continente março 2005


ESPECIAL

"Temos poucos nomes e poucas definições para uma infinidade de coisas singulares. Assim, o recurso ao universal não é uma força de pensamento, mas enfermidade do discurso. O drama é que o homem fala sempre em geral enquanto as coisas são singulares. A linguagem nomeia, ofuscando a irresistível evidência do individual existente" Do livro Kant e o Ornitorrinco, de Umberto Eco

Zenival

fundamento da tolerância mais profunda e autêntica liberdade”. O que Eco nos diz é exatamente o contrário: a “insana busca pela verdade” é causa do obscurecimento da razão e da intolerância em qualquer época. Apesar de se tratar de uma obra literária, dificilmente se poderia expressar de maneira mais consistente o núcleo da corrente filosófica nominalista, que toma sua qualificação precisamente da proposta de que os conceitos universais não são mais do que nomes que usamos para designar meras coleções de indivíduos concretos. O próprio título, O Nome da Rosa, junto à citação latina Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus, que significa, dentro do contexto da obra, algo como: “A rosa originária consiste num simples nome, só ficamos com meros nomes”, pode ser visto como uma pista do autor sobre o conteúdo que fundamenta seu livro. A desconfiança frente à linguagem é uma atitude intelectual que pode ser bem perigosa para certas mentes doutrinadas. A mentalidade medieval que proclamava que “o Verbo era Deus” se aproximava de uma crença quase animista nas palavras – pronunciar um nome era invocar materialmente o ser referido. Até hoje, de certa forma, permanece um pouco dessa crença impregnada na cultura: basta que alguém fale a palavra “câncer”, por exemplo, para que muita gente faça o sinal da cruz... Nominalismo se opõe a Realismo enquanto doutrina que afirma a conexão entre a idéia e a realidade extramental. A oposição ao platonismo é frontal: os Universais não têm realidade nem nas coisas nem na mente divina, como exemplares eternos das coisas; são abstrações do espírito humano, conceitos ou termos arbitrários. As teses nominalistas, que tiveram como principal representante Guilherme de Ockhan, eram conside-

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Arte sobre gravura: imagem do filósofo Guilherme de Ockhan

radas heréticas pela Igreja por conduzir ao relativismo e ao ceticismo. Ao designar os Universais como meros signos, Ockhan transpunha, como Abelardo, a questão da natureza dos Universais à de seu uso no conhecimento; esse uso, que constitui todo seu ser, consiste em substituir por designações as coisas mesmas. O Universal nasce no intelecto, somente de uma certa maneira de considerar a imagem sensível, sem levar em conta o que há nela de individual. A conseqüência de considerar as coisas singulares como única realidade existente é a indemonstrabilidade da existência de um ser necessário e universal; contudo, Ockhan, assim como Kant, não pôde negar Deus por questões de ordem moral. O protagonista do relato, o franciscano Guilherme de Baskerville, assim como o autor, é semiólogo: “Nunca duvidei da verdade dos signos”. Guilherme, como nominalista, tem a convicção de que a abstração não é desmaterialização e universalização, mas um prescindir da existência das coisas. É aceitá-las como termos mentais que tem a capacidade de significar. Ele nunca está buscando uma verdade fixa e inabalável, pelo contrário: “Guilherme imaginava uma multiplicidade de respostas possíveis, muito distintas umas das outras; fiquei perplexo!”, admirava-se seu discípulo Adso de Melk, educado dentro dos Continente março 2005


ESPECIAL

princípios tomistas. Mas seu tutor insistia: “A beleza do cia do presente, fluindo – o simples nomear já é tornar o cosmos não é dada somente pela unidade na variedade, objeto uma ficção. mas também pela variedade na unidade”. Por certo, O Nome da Rosa tem muito a ver com o Para Ortega y Gasset, é uma ilusão achar que pode- percurso intelectual do seu autor, católico mos nos apropriar de uma coisa quando nos apropriamos progressista aos 20 anos, marxista aos 30 e, do seu nome. Nessa perspectiva, Ortega encara a vida e finalmente, pós-m moderno depois dos 40. Após buscar suas circunstâncias cambiantes como única realidade ra- tanto a Verdade em dogmatismos religiosos e dical. A vida é independente de significação – os signi- filosóficos, resolveu seguir outra trilha: “O dever de ficados pertencem a um sistema. Nas palavras de quem ama os nomes é fazer rir da Verdade, porque a Nietzsche: “Falar é uma bela loucura. Falando, baila o única verdade é aprender a nos liberar da paixão inhomem sobre todas as coisas”. sana pela Verdade, e que, portanto, as únicas verFica claro no romance e em outras obras de Umberto dades que nos servem são instrumentos descartáveis”. Eco que ele se situa numa posição de defesa das idéias Neste conturbado começo de século, a lição de nominalistas. O Neonominalismo defendido por Eco só Eco parece que retoma sua atualidade: a insanidade confere categoria ontológica, ou seja, só afirma a existên- de querer impor violentamente “verdades” políticas, religiosas e morais a outras pessoas e outras culturas permanece como mecanismo de dominação e obscurecimento da razão. •

Cena do filme O Nome da Rosa, do diretor Jean-Jacques Annaud

Divulgação/Warner

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Imagens: Guilherme Aquino e Arquivo Teatro Scala

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La Scala

O renascimento de um teatro A minuciosa reforma do célebre Teatro La Scala, de Milão, devolve ao mundo um templo da arte

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Guilherme Aquino, de Milão

Teatro La Scala é a principal porta de entrada para o mundo da ópera e também uma das instituições culturais mais importantes da Itália. Em estilo neoclássico, à beira da via Manzoni, no centro de Milão, foi alvo de uma reforma que o revirou pelo avesso nos últimos três anos, em três frentes distintas: a reforma estrutural, a restauração artística e criação da nova acústica. Para não interromper a tradicional temporada de espetáculos, foi construído o Teatro Arcimboldi, no outro lado da cidade e inaugurado antes do início das obras. Para desespero dos puristas e alegria dos visionários, o projeto de modernização do Teatro foi do arquiteto suíço Mario Botta, que comprou uma briga grande com mais da metade da população com a polêmica idéia, le-

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vada a cabo, de levantar duas novas estruturas nos fundos do palácio. “O Teatro precisava crescer para se adaptar às novas exigências das atuais cenografias. Não tínhamos espaços laterais, posteriores e frontais para ampliar o corpo físico do La Scala, o jeito foi aumentar para cima e para baixo”, explica Mario Botta. Até aí ele tinha o consenso de muitos cidadãos, ilustres ou não. As cortinas se fecharam de repente, quando se soube que os dois novos volumes em mente seriam estruturas modernas que nada teriam a ver com o estilo original do Teatro. Esta foi a única solução encontrada para ampliar o La Scala, sem demolir a cara vizinhança das vias Filodrammatici e Verdi, e colocá-lo de volta ao lugar de prima donna no cenário internacional da ópera.


ARQUITETURA

Na outra página, o Scala já reformado. Acima, visão dos camarotes e fosso da torre cênica

Na verdade, a tendência européia de contrapor duas épocas distintas, lado a lado, já vinha de algum tempo atrás. Bastava lembrar a pirâmide do Louvre, em Paris, ou a estação ferroviária de Lyon, as duas na França e ambas com intervenções modernas. Aquela no La Scala era uma oportunidade única numa terra onde as tradições são defendidas a ferro e fogo. A onda da nova estética arquitetônica tinha, finalmente, quebrado em conservadoras terras italianas. “Acho importante que duas linguagens, a contemporânea e a clássica, possam dialogar entre si”, defende-se o arquiteto. Ele se refere à interação da fachada neoclássica, intocável, com a nova torre cênica, em forma de paralelepípedo e ao surpreendente prédio em forma helióide, ambos nos fundos do La Scala. Ao longo dos seus 226 anos, o La Scala sofreu diversas reformas que foram se acumulando caoticamente umas sobre as outras. No final, o teto mais parecia um depósito de caixas e blocos de cimento armado e o sub-

solo era um interminável labirinto de corredores e salas capaz de desorientar o Minotauro mais experiente. No rastro da desordem, nem as normas básicas de segurança contra incêndios encontravam eco dentro das dependências do teatro. A fiação elétrica mais parecia um ninho de ratos. Não por acaso, estas duas partes nevrálgicas do Teatro foram completamente eliminadas e deram origem aos dois novos edifícios que concentraram tudo o que estava espalhado pelas dependências do palácio. Tudo o que tinha sido incorporado irregularmente ao corpo principal do Teatro foi removido sem deixar traços. A única exceção foi o velho palco cênico, desmontado, mas que será exibido em um museu. Assim se abriu espaço para criar, com funcionalidade e modernidade, os dois novos anexos do La Scala, ambos com uma iluminação externa inspirada num céu pontilhado de estrelas. O primeiro tem a forma de uma meia elipse – lembra a torre de comando de um navio transatlântico – e nasceu sobre os escombros de uma velha ala do Teatro. Abriga Continente março 2005

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ARQUITETURA os dez camarins dos artistas, coristas, músicos e técnicos, além das oficinas de costura e maquiagem e, ao nível do solo, contém ainda a boca de cena lateral. De longe e de perto, esta foi a obra mais criticada pelo ousado desenho das suas linhas sinuosas em grande contraste com os geométricos cortes transversais e horizontais do palácio Piermarini, como o La Scala também é conhecido. Já o outro anexo mantém os traços da fachada e abriga as salas de prova do coro, do corpo de baile, da orquestra, o fosso dos músicos, vestiários, o palco principal e o retropalco, os setores de climatização, os sistemas de refrigeração e sanitário, além de servir de espaço para armazenar as cenografias e os andaimes dos canhões de luz . As suas paredes abrigam as salas de controle de todos os implantes elétricos, hidráulicos, mecânicos e de iluminação, tudo com tecnologia de ponta e equipamentos de última geração. Tem 50 metros de largura, 70 de comprimento e 56 de altura e está bem atrás da imponente fachada do Teatro. Esta enorme estrutura contém a maior e a mais moderna torre cênica do mundo. Ela tem 18 metros de profundidade e é alta outros 38. No seu imenso espaço vazio poderia caber um prédio de 19 andares. O vão livre lembra uma plataforma de lançamento de foguetes. Sete pontes, cada uma com largura de sete metros e comprida, subdivididas em 22 retângulos acionados por pistões, garantem os movimentos verticais do palco principal e horizontais do lateral, já que o

O museu do La Scala guarda preciosidades, como esta escultura representando Verdi. Do tecido de veludo vermelho das cortinas e cadeiras às colunas de màrmore e seus capitéis, quase tudo foi reconstituído de acordo com os manuais do arquiteto Giuseppe Piermarini

Detalhe arquitetônico totalmente restaurado

retropalco é fixo. A dantesca engrenagem eletromecânica foi feita sob medida para a criação do arquiteto suíço. A estrutura permite a montagem completa de uma peça no subsolo do teatro que passa a ter uma área cênica total com 1.600m2, a maior e mais moderna do mundo. Os três palcos sao independentes entre si e quando um sai de cena o outro “desliza” para o lugar vago. Assim, três espetáculos podem ser montados ao mesmo tempo, aumentando em 30% a oferta das apresentações. A obra é tão inovadora que os administradores do Teatro estão organizando visitas guiadas às entranhas da boca de cena. O fosso escavado é impressionante, a ponto de dar vertigem. •


ARQUITETURA

Novas cores à luz da ribalta

Maquete do La Scala, representando a cenografia Europa Reconhecida, que inaugurou o Teatro em 3 de agosto de 1778

Não houve um centímetro quadrado do Teatro que não tenha passado por um rigoroso processo de limpeza e polimento

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e a obra do arquiteto suíço Mario Botta vestiu o Teatro com uma indumentária do século 21, o trabalho de restauração artística, conduzido pela arquiteta Elisabetta Fabbri, tratou de recuperar o interior do século 18. Não houve um centímetro quadrado do Teatro que não tenha passado por um rigoroso processo de limpeza e polimento precedido de uma minuciosa pesquisa sobre a constituição original de cada item: do tecido de veludo vermelho das cortinas e cadeiras às colunas de mármore e seus capitéis, passando pelos pisos de parquet e cerâmica aos afrescos nos tetos, escadas e paredes refletidos ao infinito em espelhos de molduras refinadíssimas e lustres de cristais. Quase tudo foi reconstituído de acordo com os manuais do arquiteto Giuseppe Piermarini. Uma ação difícil, pois era muito comum, no final do século 18, que os proprietários de camarotes os decorassem de acordo com os gostos pessoais. E as supresas não foram poucas. A equipe recuperou as cores azul e amarelo-ouro das pilastras dos camarotes. O feito foi considerado um verdadeiro achado de

arqueologia. Outras novidades foram a descoberta, nos corredores da platéia, das paredes em mármores do século 18, debaixo de 14 “mãos” de tinta, e o valioso chão em seminato veneziano camuflado sob uma velha e desgastada camada de parquet. Voltaram à luz o marmorino branco das paredes, o piso de cerâmica dos palcos e o pavimento de beola – uma pedra decorativa – do camarote real. “Tivemos muita dificuldade em recuperar o pavimento em cerâmica pois ele é feito de material poroso. Por exemplo, para cada quatro metros quadrados, somente para limpá-lo, duas pessoas gastaram 34 horas”, explica Elizabetta, também responsável pela reconstrução do Teatro La Fenice, de Veneza, e convidada a elaborar o projeto de reestruturação externa do Teatro Municipal, na capital paulista. A reconstituição de época chega junto com o avanço da tecnologia do terceiro milênio. Cada poltrona traz embutido um display em fibra ótica, no qual o espectador poderá ler – em diferentes idiomas – o texto da ópera durante o espetáculo, sem interferir na iluminação geral da platéia e galeria. • Continente março 2005

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O desafio da acústica perfeita O forro das poltronas está revestido com polietileno, num ambiente que potencializa as vibrações sonoras

O rigor da reforma é tal que o som será percebido não somente pela audição do espectador, mas também será sentido através do corpo inteiro

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som do La Scala foi comprometido, principalmente, depois da reconstrução do palácio Piermarini, após ele ter sido parcialmente destruído durante um raid aéreo dos aliados, em 1943. Durante sua reconstrução, boa parte dos escombros foi varrida para debaixo do piso da platéia, o que passou a impedir a reverberação das vozes e dos instrumentos da orquestra. A delicada obra de restaurar a pureza do som do La Scala foi confiada ao engenheiro catalão Higini Arau, credenciado pela sua atuação no Teatro Liceu de Barcelona. A primeira ação foi remover todo o entulho que estava embaixo do piso. Foi feita uma base com concreto armado, sobre o qual foi apoiada uma lâmina de PVC. Por cima desta estrutura se sobrepõem as camadas de compensado naval, aglomerado, borracha, cortiça, resina, gesso e pó de mármore, misturados e aplicados segundo disposições bem específicas. Toda esta complicada alquimia, distribuída em sete camadas, foi coberta com um parquet de carvalho. As cortinas, as tapeçarias e o forro das poltronas estão revestidos internamente com um véu quase invisível de polietileno. Desta forma o som será percebido não somente pela audição do espectador, mas também será sentido através do corpo inteiro. Esta nova tecnologia cria uma espécie de “pavimento flutuante”. Ele não permite a absorção excessiva das baixas freqüências, os graves, e potencializa a propagação de uma vibração sonora. As-

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sim, principalmente os instrumentos como a tuba, o trombone e o contrabaixo, antes quase inaudíveis, voltam a ganhar o destaque previsto na partitura. Os ensaios com a orquestra, sob a batuta de Riccardo Muti, na reta final da reforma, eram apenas o prelúdio do sucesso de um trabalho bem realizado. “O La Scala nunca teve uma boa sonoridade, mas posso garantir que hoje a acústica é belíssima”, comentou o maestro italiano, pouco antes do teste geral que teria como público apenas os operários, os eletricistas, os encanadores e os arquitetos que participaram da reforma. A prova de fogo do Teatro iniciaria dias depois, sob uma “tempestade com relâmpagos, trovões, chuva, sibilar dos ventos, barulho de mar agitado...”, começava assim o drama da ópera Europa Reconhecida, escrita pelo compositor italiano Antonio Salieri, o mesmo que teve que fazer as contas com a genialidade de Amadeus Mozart. A peça tinha sido apresentada, pela primeira e única vez, em 3 de agosto de 1778, durante a inauguração do La Scala e, por isso mesmo, foi a escolhida para marcar a noite de gala da estréia, em 7 de dezembro de 2004. Para o maestro Riccardo Muti esta também foi uma boa oportunidade de a História fazer justiça a este grande músico, professor de Beethoven, Schubert e de um dos filhos de Mozart, como mostra uma exposição sobre Antonio Salieri no museu do La Scala. •


Swim Ink 2, LLC/Corbis

ARQUITETURA

O Teatro ganhou prestígio ao longo dos anos pela exibição de grandes espetáculos

Cenário da vida artística O Teatro foi construído entre 5 de agosto 1776 e 3 de agosto de 1778, com projeto assinado por Giuseppe Piermarini, arquiteto da corte

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Teatro alla Scala nasceu por desejo da imperatriz Maria Teresa d’Áustria. Foi erguido onde existia a velha igreja Santa Maria alla Scala, origem do seu nome. A obra ficou por conta de Giuseppe Piermarini, arquiteto da corte. O Teatro foi construído entre 1776 e 1778, em estilo neoclássico. Na área externa trazia um pórtico imponente que servia de “convite” para os pedestres e espaço protegido da chuva na chegada das carroças. Dentro, uma rica decoração realçava o sofisticado desenho helióide da grande sala: cinco filas de camarotes e uma galeria. Havia poucas cadeira fixas. A maioria do vão aberto diante do palco era livre. A maioria das pessoas ia para lá mais para conversar e encontrar os amigos e menos para assistir aos espetáculos. Na platéia, sem poltronas, estavam os espectadores menos remediados, que transformavam o lugar numa bagunça. Nos camarotes se acomodavam os senhores burgueses e aristocratas. Eles jantavam e jogavam os restos da comida, como ossos de galinha, em quem estava lá embaixo que, por sua vez, respondia na mesma moeda, atirando de volta o que tinha caído sobre a cabeça. Naquele período, a música era apenas um pano de fundo e fazia parte da festa para os encontros de negócios, as paqueras, os piqueniques e até os

jogos de azar. O que menos importava era o que se passava no palco. O Teatro ganhou prestígio ao longo da sua existência. Pelo seu palco passaram o bailarino Rudolf Nureyev, a soprano Maria Callas, os compositores Giuseppe Verdi, e Richard Wagner, além de Giacomo Puccini e Arturu Toscanini. Foi também o primeiro teatro do mundo a ter corrente elétrica e mais tarde seria o único, por um bom tempo, a ter um sistema próprio de refrigeração. Permaneceu ativo durante quase todos os seus 226 anos, com interrupções por causa das guerras. A primeira não deixou grandes marcas. Já a segunda praticamente o reduziu a escombros. Uma bomba incendiária lançada durante o raid aéreo britânico, de 16 de agosto de 1943, atingiu o teto do La Scala. Por uma questão de honra, a reconstrução foi o primeiro ato dos milaneses após a decretação do armistício. Os recursos eram escassos e muita riqueza de detalhes foi perdida para colocar em pé, o mais rápido possível, o La Scala. E, em maio de 1946, o maestro Arturo Toscanini, reinaugurou o Teatro “onde estava e como era”. O renascimento do La Scala era uma metáfora da reconstrução italiana do pós-guerra. Hoje, a reforma do Teatro é o símbolo da vitalidade artística do país. • Continente março 2005

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PERFIL

Tropical melancolia Mais completa compilação da obra poética e jornalística de Torquato Neto celebra os 60 anos do intelectual iconoclasta Julio Moura

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a manhã tropical de 11 de novembro de 1972, os jornais do Brasil anunciaram a desafinação final do coro dos contentes na geléia geral brasileira. Na véspera, um dia depois de completar 28 anos, o poeta, compositor, jornalista, crítico, colunista, ator e diretor Torquato Pereira de Araújo Neto, nascido em 9 de novembro de 1944, em Teresina, Piauí, abreviava sua inquieta e provocativa existência. Ao regressar de uma festa, trancou-se no banheiro e abriu o gás. Na manhã seguinte, foi encontrado pela empregada, com um bilhete de despedida: “Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar”. Thiago era o seu filho de três anos. Precursor da pós-modernidade na vida artística brasileira, antes do termo entrar em voga, Torquato Neto deixou uma obra esparsa, fragmentada, que aos poucos vai ganhando homogeneidade e dimensão histórica. A primeira iniciativa foi da viúva, Ana Maria Duarte, que ao lado de Waly Salomão organizou, em


PERFIL 1973, a compilação Os Últimos Dias de Paupéria, reunindo poesias inéditas e textos da coluna “Geléia Geral”, publicada diariamente no jornal Última Hora. Rebeldes e demais descontentes recebiam, em primeira mão, as impressões de Torquato sobre as “transas” do Brasil de Médici – do show Fa-tal de Gal Costa às transgressões de Hélio Oiticica, do píer de Ipanema às mazelas da Tristeresina natal. O livro foi ampliado e relançado em 82, pela Max Limonad. O legado mais completo, entretanto, acaba de ser editado, em dois volumes organizados pelo jornalista Paulo Roberto Pires, para a editora Rocco. Trata-se de Torquatália, com os livros Do Lado de Dentro e Geléia Geral. O primeiro apresenta poemas inéditos, como os feitos em Teresina, entre 1961 e 1962, guardados pela família. Há ainda um poema escrito em Amsterdam, e dedicado ao compositor Ronaldo Bastos, que guardava a preciosidade a sete chaves em seu apartamento no Rio. “Um poeta não se faz com versos”, Torquato gostava de repetir. De fato, a multiplicidade de sua ação impressiona, sobretudo em tempos onde especialização é palavra de ordem. Além da poesia, do jornalismo, da música popular, meteu-se com o cinema, a televisão e as artes plásticas. Amigo de Hélio Oiticica – Do Lado de Dentro reúne a correspondência do anjo torto do Tropicalismo com o profeta dos parangolés – Torquato abusou do recurso de “inventar o perigo, destruir a linguagem e explodir com ela”. Torquato e Hélio haviam viajado para a Europa uma semana antes da decretação do AI-5, em dezembro de 68. A correspondência registrada no livro é de 1971, quando Torquato passava por crises de depressão e alcoolismo e Hélio vivia em Nova York. “Torquato sofreu muito e não tem nada de maravilhoso nisso. A melhor coisa que se pode fazer sobre um personagem como ele é desglamurizá-lo, descartar a imagem da loucura heróica. Sempre acreditei que sua obra merecia uma edição consistente e atualizada. É difícil reunir sua produção completa, pois ele escrevia de maneira fragmentária. Nesta edição, conseguimos reunir tudo o que se conhece e não se perdeu”, avalia Pires.

Torquato Neto (E), Caetano Veloso e Capinam, roteiristas parceiros no espetáculo Pois é (1966)

Fotos: Divulgação/Editora Rocco

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Do Lado de Dentro, um dos volumes de Torquatália, reúne a correspondência inédita do anjo torto do Tropicalismo com o profeta dos parangolés, Hélio Oiticica

O primeiro volume inclui ainda letras de mais de 40 composições, algumas inéditas, esboços de roteiros para TV e cinema, anotações diversas, o fac-símile da revista Navilouca, editada por Torquato, e o diário O Engenho de Dentro, de 71, em referência ao subúrbio carioca onde o poeta permaneceu internado no Hospital Psiquiátrico Pedro II. O segundo, Geléia Geral, enfoca a produção jornalística. Reúne a íntegra da coluna de mesmo nome, publicada entre agosto de 1971 e março de 1972, no Última Hora. A coluna “Música Popular”, até então inédita em livro, saiu primeiro no Jornal dos Sports, entre março e setembro de 1967, depois no tablóide O Sol, fechado pelo AI-5. Há também textos do suplemento cultural “Plug”, lançado pelo jornal Correio da Manhã, que não passou do mês de junho de 1971. Durante o lançamento dos livros, no Parque Lage, no Rio – cidade onde Torquato viveu a partir de 1963, e morreu quase uma década depois - foram exibidos os raríssimos O Terror da Vermelha e Helô e Dirce, rodados em Super 8, na cidade de Teresina. Montado depois da morte do autor, que deixou especificações por escrito sobre como gostaria que o filme fosse editado, O Terror da Vermelha escancara a tumbadora na selva selvagem preconizada por Torquato. Em Helô e Dirce, dirigido por Luiz Otavio Pimentel, Torquato aparece entre facadas, cigarros e violência, homoerotismo e mitologia cristã. O poeta dança freneticamente diante das câmeras, sob a voz de Luiz Melodia cantando “da melhor maneira possível, com caco de telha e caco de vidro”. As imagens são precárias, mas o conteúdo é precioso. Ainda no cinema, Torquato interpretou o papel-título de Nosferato, o Vampiro do Brasil, de Ivan Cardoso, rodado em 1971. O poeta Chacal assume a influência: “A idéia era não suspender a criação por falta de condição. O Cinema Novo tinha apoio do governo, para realizar filmes em cinemascope. Torquato não dispunha dessas benesses e por isso fazia filmes em Super 8. Anos mais tarde, nós (do grupo Nuvem Cigana) fizemos poesia marginal, com mimeógrafo. Torquato se deixou queimar em praça pública, por sua crença radical. Ao lado de Waly (Salomão) e Hélio (Oiticica), foi o ponta-de-lança do Tropicalismo no sentido bélico, de vanguarda militar”, afirma o criador do CEP 20 mil, espaço de experimentação poética, cultivado há mais de uma década no Rio. Continente março 2005


PERFIL Precursor da pós-modernidade na vida artística brasileira, antes do termo entrar em voga, Torquato Neto deixou uma obra esparsa, fragmentada, que aos poucos vai ganhando homogeneidade e dimensão histórica Como dizia Torquato, “o poeta é mãe das armas & das artes em geral”. Um dos alvos focados pela mira do bombardeio do tropicalista foi o sambista Ataulfo Alves. Em 1967, aos 23 anos, Torquato apedrejava o autor de “Atire a primeira pedra” na coluna “Música popular”, acusando Ataulfo de pertencer a uma MPB tradicionalista e ultrapassada, num período onde as tradições brasileiras eram associadas à cultura oficial vigente nos anos da ditadura. Exageros à parte, o sambista que entrou para a história do cinema brasileiro ao aparecer em Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, devolveu a provocação do redator iniciante com a música “Não cole cartaz em mim”, bem ao estilo dos bambas da antiga. Entre seus escritos jornalísticos, não faltam farpas às turmas do Pasquim e do Cinema Novo. Na geléia de Torquato, hospitaleira amizade e brutalidade jardim formavam contrastes indivisíveis. Desde então, apenas dois discos reuniram o essencial do cancioneiro, que flertou com a segunda geração da bossa-nova, radicalizou o Let’s play that tropicalista e chegou até o rock dos anos 80 – o vinil Um Poeta Desfolha a Bandeira e a Manhã Tropical se Inicia, lançado em 1985 pela Rio Arte, e o CD Todo Dia é Dia D, que a Dubas, de Ronaldo Bastos, pôs em circulação em 2003. Os discos trazem gravações originais de Gilberto Gil (“Louvação”, “Geléia Geral”, “Zabelê”, “Todo dia é dia D”), Gal Costa (“Minha senhora”, “A coisa mais linda que existe”, “Três da madrugada”), Jards Macalé (“Let's play that”), Nara Leão (“Mamãe coragem”), Nana Caymmi (“Cantiga”), Luiz Melodia (“Começar pelo recomeço”), Edu Lobo e Maria Bethânia (“Pra dizer adeus”, “Lua nova”), entre outras. No mês de aniversário de Torquato, novembro, Teresina festejou os 60 anos de seu poeta em uma semana de exposição, debates e shows, com participação de Chacal, Jards Macalé e Luiz Melodia. O escritor paranaense Toninho Vaz, biógrafo de Paulo Leminski, chegou a entregar os originais de uma biografia de Torquato à editora Record, que desistiu do projeto. Não fossem a celebração no Piauí e o lançamento de Torquatália, a efeméride passaria em nuvens plurialvas. É outra a dança na sala, mas aqui continua o fim do mundo. •

Divulgação/Editora Rocco

Paulo Roberto Pires: “A melhor coisa que se pode fazer sobre um personagem como ele é descartar a imagem da loucura heróica”

Torquatália-vol.1(Do Lado de Dentro) Editora Rocco, 368 págs. R$ 44,00. Torquatália-vol.II (Geléia Geral) Editora Rocco, 408 págs. R$ 49,00.

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

O artista, o atleta e o macaco na corda bamba Com certeza, não foi nos autódromos da Fórmula 1, nem nos campos de futebol, nem nas piscinas olímpicas, nem nas barras paralelas, que alongamos o passo na diferenciação do macaco

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s jornalistas submeteram os vencedores do prêmio literário Portugal Telecom a um verdadeiro interrogatório, desejando saber o destino que eles dariam ao dinheiro ganho. Um respondeu que financiaria um tratamento médico, outro que ajudaria um parente necessitado, e outro que trocaria de carro. Habituados aos concursos literários de premiações simbólicas, como o Jabuti, escritores e imprensa acham o Portugal Telecom um prêmio das Arábias. A fortuna consiste em 100 mil reais para o primeiro lugar, 30 para o segundo e 20 para o terceiro. Comparados aos 80 milhões de dólares que Schumacher recebe por ano, e aos milionários salários de Beckham e Ronaldo (não sou eu, é o outro, o jogador de futebol), os prêmios literários parecem esmolas. Atestam o desprestígio da literatura, e que nada mudou para os artistas desde a Antiguidade Clássica, a não ser para os poucos que escrevem como desportistas. Não pensem que na Grécia a situação era melhor. Nos concursos, os atletas vitoriosos recebiam mais odres de vinhos e potes de azeite por suas façanhas do que os poetas pelas suas comédias ou tragédias. Se ainda não existiam as revistas pornôs, em que os atletas posam nus na decadência, abundavam os amantes ricos, dispostos a pagar caro em troca de favores. O ganho dos poetas devia-se exclusivamente à qualidade de seus versos, e mesmo Ésquilo e Eurípides não estavam imunes à crítica.

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A Idade Moderna só agravou a marginalidade dos artistas que escolheram se tornar dissidentes do mundo burguês. Octávio Paz escreveu no livro de ensaios O Arco e a Lira: “A poesia é um alimento que a burguesia – como classe – tem sido incapaz de digerir. Eis porque, uma vez ou outra ela tentou domesticá-la.” Rimbaud e Van Gogh são os exemplos mais famosos de artistas que preferiram a maldição e a loucura a comerem as migalhas da mesa dos poderosos. Traduzindo, eles nunca cederam ao fascínio das academias, nem à fama ilusória. Já os autores de livros de auto-ajuda e romances policialescos que freqüentam a lista dos mais vendidos negociam a alma com o diabo, para se garantirem na mídia. Poucos leitores questionam a qualidade do que eles escrevem, pois vivemos um tempo em que os critérios verdade, beleza e ética foram bastante deformados. Há um ponto em que se confundem corridas de carro, futebol, desfile de moda, filmes, shows de rock, literatura best seller, partidas de tênis e basquetebol. Em quase todas as práticas esportivas busca-se menos uma depuração do corpo e do espírito do que o lucro financeiro. Roger Federer, tenista número 1 do mundo, numa entrevista à Veja, ilustra bem essa motivação, quando diz: “Adoro carros esportivos e me ligo cada vez mais em roupas de marca. Só viajo de primeira classe. Ter dinheiro faz com que a vida seja muito mais fácil.” Sem dúvida, é bem melhor e mais fácil viver com dinheiro. Questiono, se é justo pagar-se tanto a pessoas com habilidades técnicas


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que, segundo Nietzsche, estariam mais próximas de fazê-las retornar ao animal do que superar o homem. Qual o legado dos desportistas olímpicos? O que significam os centímetros a mais nos 100 metros rasos, conquistados por um atleta? Foi através do esforço muscular de homens e mulheres, muitas vezes favorecidos pelos anabolizantes, que avançamos na hierarquia animal? Com certeza, não foi nos autódromos da Fórmula 1, nem nos campos de futebol, nem nas piscinas olímpicas, nem nas barras paralelas, que alongamos o passo na diferenciação do macaco. A Filosofia, a Literatura, a Música e a Ciência são legados de pessoas que não temeram ir de encontro ao seu tempo, às idéias cristalizadas, às verdades proclamadas como absolutas, enfrentando a morte, a miséria e o exílio. Exemplo como o de Giordano Bruno, que preferiu ser queimado na fogueira a aceitar a afirmação da Igreja de que a Terra era o centro do Universo, é obsoleto para o nosso tempo de verdades elásticas e relativas. O único fim é o lucro. Abjura-se de qualquer verdade em função dele. Não se admirem dos minguados reais pagos aos escritores, nos prêmios literários. É o que acham que eles valem, embora os envolvam numa nuvem de glamour. O verdadeiro poeta aspira ao reconhecimento, vivendo no exílio de sua liberdade, a serviço único da criação. Seu trabalho não é valorizado e poucos ganham alguma coisa

dele. Por isto ele busca outras ocupações para não morrer de fome, algumas infamantes. Não me comove a morte de um jovem corredor de carro. Ele busca o risco e faz do convívio com a morte a razão de viver. É aclamado, conhece a fama, acumula dinheiro. Comove-me o solitário exercício do criador, seu esforço para arrancar do vazio as notas de uma música de Bach, os versos de Whitman, as cores de Monet, os movimentos de Marta Graham, o Davi de Michelangelo. Escuto os jornalistas se referirem a Beethoven e Ayrton Senna com o mesmo adjetivo “gênio”. Em algum espaço que separa a sublimidade da arte e a busca de superação do corpo pelo esporte, os gênios se confundem, quebrando-se as fronteiras estabelecidas pelos pensadores e filósofos? Neste caso, a dança se aproximaria da ginástica, e o esforço de concentração de um atleta teria a mesma medida do arrebatamento de um bailarino ou de um músico. O que há de comum entre o atleta e o artista? Qual dos dois transcende a si mesmo, indo além do macaco treinado para equilibrar-se sobre cordas? Há grandes diferenças, imperceptíveis pela massa e seus manipuladores. Eles se igualam, apenas, quando se transformam em meros servidores pagos da propaganda, seja do capitalismo privado ou do Estado. • Continente março 2005

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J煤lio Verne, em caricatura de Philippe Gill


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O homem que via o amanhã As Viagens Extraordinárias de Júlio Verne contam com quatro títulos de enorme sucesso, mesmo entre os jovens do universo high-tech de hoje Fernando Monteiro

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alvez a infância não contenha dias mais plenamente vividos do que aqueles que passaram sem acontecer nada, exceto as horas perdidas com algum livro preferido”. A frase é do francês Marcel Proust que, em Sodoma e Gomorra, também evoca – a respeito de um dos personagens – o “tom atento e febril de um menino que lê uma novela de Júlio Verne”. O autor do monumental A la Recherche du Temps Perdu foi leitor de Verne, ao tempo em que os romances do criador da ficção científica surgiam, nas populares edições de Hetzel, é o que se deduz, facilmente, dessas e outras menções de Proust. A própria “busca de um tempo perdido” (psicológico e mnemônico, no caso de Marcel) remete para as buscas – todas as buscas – e,acima de tudo, para aquelas do tipo iniciático que é a nova chave de interpretação das novelas “para a juventude” deixadas pelo gênio modesto que foi “Júlio” Verne. Reparemos, primeiro, no nome familiarmente “traduzido”, em Portugal e no Brasil, de tal modo que resultaria pedante e inútil chamá-lo de Jules, como seria mais correto. Nascido em Nantes, seu pai – Pierre Verne – era um advogado com o perfil característico da burguesia francesa, e a mãe, Sophie Alote, a filha mimada de uma rica família de armadores. O jovem casal foi viver na mansão dos Alote, na nobre rua de Kervegar, e foi lá que, em 9 de fevereiro de 1828, nasceu Jules, aquele que será sempre “Júlio” Verne – no território lusobrasileiro da lembrança de quantos tiveram o privilégio de viver, na infância, as “horas perdidas” da perfeita evasão oferecida pelos livros do tio que, por assim dizer, “inventou” o futuro por que o via, naturalmente, nas dobras da sua prodigiosa imaginação, logo cedo alimentada pelas leituras de Swift, Defoe e Chateaubriand. E quando se assinala o centenário da sua morte (em Amiens, no dia 24 de março de 1905), um novo olhar para este admirável mundo novo em que penetramos nos leva a concordar com Marcel Lecomte, quando até o insuspeito intelectual francês afirma, em O Tema do Grande Norte: “Havia mediunidade ou, pelo menos, vidência em Júlio Verne”... Continente março 2005

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As Viagens Extraordinárias – Foi aos 30 anos que Verne escreveu a sua primeira obra mais extensa: Cinco Semanas em um Balão, concluída em 1861. Ela traz todas as características “vernianas” típicas que fariam a sua fortuna – e a de Hetzel –, embora isso parecesse quase impossível, quando ele saiu à cata de um editor, recémcasado (contra a vontade do pai) com uma viúva, mãe de duas filhas do casamento anterior. Diante das novas responsabilidades para com uma família completa para sustentar, Júlio não desanimou em face das primeiras rejeições do livro (“geográfico demais”, para alguns editores) e só conseguiria uma chance de defender a obra, quando fez contato com Pierre-Jules Hetzel, através de Nadar, tipo curioso e aventureiro, amigo do editor que se dispôs a receber o autor daquela mistura de livro de aventuras com livro de viagens que, publicado, teve êxito imediato. Hetzel se tornou editor e amigo de Verne e só viria a recusar uma única das suas obras, nos termos peremptórios da carta mais tarde encontrada nos arquivos do escritor: “Meu caro Verne, eu daria não sei o que para não ter que escrever-lhe hoje. Você empreendeu uma tarefa impossível e – tanto quanto os que tentaram o mesmo ante-

Júlio Verne foi um mestre da mitologia moderna. As Viagens Extraordinárias são a nossa Odisséia, em todos os sentidos, da Telemaquia à descida aos infernos, buscando o Minotauro, ou qualquer outro prodígio, pelo fio de Ariadne da Ciência que é tema, no final de contas, dessas Viagens

O editor Jules Hetzel, na ótica do caricaturista Philippe Gill

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riormente – não conseguiu realizá-la bem. (...) Está a cem pés de Cinco Semanas em um Balão. Se você reler o livro, concordará comigo. Não há uma só questão em relação ao futuro sério que esteja resolvida (...) Eu veria como um desastre para seu nome a publicação do seu trabalho.” Já falaremos desse colossal erro de avaliação – de resto, aceito pacificamente pelo autor de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias –, pois, antes, cabe uma palavra sobre a “reabilitação” desse autor considerado menor ou, no máximo, um bom divulgador do mundo das curiosidades científicas da sua época e também dos delírios de feira, imaginosos, da Paris fin-de-siècle. A palavra está com o filófoso Michel Serres: “Júlio Verne foi um mestre da mitologia moderna. As Viagens Extraordinárias são a nossa Odisséia, em todos os sentidos, da Telemaquia à descida aos infernos, buscando o Minotauro, ou qualquer outro prodígio, pelo fio de Ariadne da Ciência que é tema, no final de contas, dessas ‘Viagens’ que funcionam também como um Curso de Filosofia Positiva (de Hegel) ao alcance de todos, pois ambas portam a mesma cartografia do saber, a mesma ideologia do conhecer.”


Imagem ilustrativa do livro Viagem ao Fundo do Mar

Para Serres, Viagem ao Centro da Terra teria um fundo oculto de viagem “iniciática”, no sentido do périplo de Ulisses – e também de Dante –, no qual “o circuito espacio-temporal e o ponto sublime, o ciclo enciclopédico e a experiência do sábio, suportam uma marcha de uma ordem bem diferente do modelo da antiguidade, na medida em que Júlio Verne é, na minha opinião, o único escritor francês que soube recolher e ocultar sob a ‘pele’ de um exotismo pitoresco e de uma sabedoria ao gosto da época, a quase totalidade da tradição européia em matéria de mitos, esoterismo, ritos de iniciação, religiosos e de misticismo”. As Viagens Extraordinárias de Júlio Verne contam com quatro títulos de enorme sucesso (mesmo entre os jovens do universo high-tech de hoje). São eles: o encantador 20.000 Léguas Submarinas – cuja versão cinematográfica virou um clássico de Disney –, o já citado Viagem ao Centro da Terra, o delicioso Os Filhos do Capitão Grant, e o mais conhecido de todos os livros de Verne, A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, com nova versão para o cinema, recém-lançada nas telas. A idéia do périplo mundial surgiu quando o escritor leu, em 1872, o anúncio da agência de viagens Cook, a

respeito de poder dar-se a volta ao planeta, em navio e por trem, os meios seguros de transporte de um século 19 cheio de charme nos romances do francês que chegou a imaginar algo como o Concorde – exatamente como o fim das viagens como processo de transformação dos viajantes. Na cabeça de Verne, a viagem era um sair de si mesmo ao encontro do Outro, com tempo para amadurecer, da França para o Japão, ou deste para a Noruega, passando pelas Ilhas Marquesas, pelo Mar de Coral ou pelas Maldivas (recentemente arrasadas pelo tsunami – que teria interessado o curioso Júlio), pelo Mar de Omam e pelo Estreito de Gibraltar até Portugal e, mais além, no meio da névoa misteriosa da baía de Vigo... A anti-viagem – menos para o autor de Miguel Strogoff do que para nós , seus leitores de um século depois – é justamente o que hoje fazemos: tomamos um superjato despressurizado e gelado, nas alturas, para sobrevoar todas as diferenças e diversidades das culturas, entre dois cochilos, na cabine irreal do invento mais-pesado-do-que-o-ar de Santos Dumont (que admirava Verne que admirava Leonardo da Vinci que admirava Homero)... Continente março 2005


memória Por incrível que pareça, um ficcionista como Verne – amado, em vida, no mundo inteiro – sofria pelo fato de não ter adentrado a poeira dos salões da Acedemia Francesa

Paris no Século 20 – Esse é título do romance que Hetzel se recusou a publicar, em 1864, através da carta da qual lemos, já, um fragmento. Dentre as muitas “obras de antecipação” de Júlio Verne, Paris no Século 20 foi a única que permaneceu inédita até 1995, quando os 90 anos da morte do mais popular autor da França fizeram a editora Hachette lançar a obra desconhecida, com prefácio do conde italiano Piero Gondolo della Riva, leitor apaixonado e estudioso da obra do escritor da sua juventude. O conde mantém, em Turim, um museu particular dedicado a Júlio Verne, com centenas de primeiras edições das suas obras, quase todas as traduções (milhares) em todas as línguas vivas etc., além de móveis e objetos que pertenceram a Verne. O museu também dispõe de cerca de 32 mil documentos (originais, cartas, cartazes das peças e dos filmes baseados na obra de JV), selecionados Cartaz do filme russo baseado no livro Miguel Strogoff O que domina a visão de Paris no século recémao longo de mais de 40 anos, por Della Riva, que é quem nos conta sobre a descoberta da inédita visão de encerrado é o filtro de um pessimismo total, inclusive no que diz respeito aos avanços da ciência. Na obra que Paris no século que já se tornou passado: “Em 1986, Jean, o bisneto de Verne, mudou-se de Verne aceitou não publicar, tais “avanços” – em 1960 Toulon para outra cidade do Sul da França. Antes de (ano em que transcorre a narrativa) – serviram apenas trocar de casa, decidiu abrir um cofre fechado, herdado do para desnaturar e “mecanizar” a vida dos europeus e dos seu avô, Michel (o filho com quem o escritor nunca se franceses em especial. Verne vê o amanhã como o eclodir entendeu bem). Jean pensava que o cofre estivesse vazio, de um época insuportavelmente “pragmática”, e como mas quando o abriram com dinamite, descobriram ali o que sobre a influência do Grande Norte que controla seus manuscrito de Paris no Século 20. Era um texto tipicamente cidadãos tal e qual como em 1984, o romance de George Orwell, também profético. Na obra de Verne, a educação de Verne, escrito só numa metade da página”... Cada metade dessas páginas do inédito revelaram um tornou-se um negócio, meramente, e há uma certa “SoJúlio Verne mais do que nunca sombrio na sua visão da ciedade Geral de Crédito Instrucional” que cuida da sociedade francesa do, então, “futuro” remoto. A marca preparação dos jovens para a vida não só prática, mas do autor – as antecipações no tempo – está presente, aqui destituída de quaisquer dos prazeres do espírito: “No e ali, na imaginação de um transporte urbano, rapídíssimo, Conselho de Administração, nenhum nome de sábio ou movido a gás, ou na descrição de um mundo feérico, ilu- professor que possa intranqüilizar o empreendimento minado eletricamente, com grandes navios fabricados em comercial da educação etc.” Para Piero Della Riva, o livro reflete um pessimismo super-estaleiros e o uso de alumínio em larga escala etc., porém esse não é o traço dominante do livro sem aventuras que, na verdade, já estava nos primeiros contos de JV, assim como na psicologia de personagens como Nemo e que foi rejeitado por Hetzel, categoricamente. Continente março 2005

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O conde italiano Piero Gondolo della Riva, leitor apaixonado, colecionador e estudioso da obra de Julio Verne

outros amargos desiludidos que não faltam na fase madura do mestre da literatura de imaginação. O conde italiano fascinado pelo velho “Júlio” finaliza com um sorriso de adesão à melancolia final de Jules, vivendo problemas familiares (foi ferido por um sobrinho que tentou matá-lo) e angústias insuspeitadas: “Paris no Século 20 pode ser considerado também como uma enciclopédia do pensamento de Verne, isto é, uma visão trágica das relações entre os seres humanos, marcadas pela solidão a dois e na multidão”. A Academia vesga – Por mais incrível que pareça, um ficcionista como Verne – admirado, amado, em vida, no mundo inteiro – sofria pelo fato de não ter adentrado a poeira dos salões da Academia Francesa. Pedante, vesga (para não fugir da regra), esta nunca o aceitou, com a magnanimidade entusiasmada com que a nossa ABL, por exemplo, recebeu a subliteratura de um Paulo Coelho. O grande Júlio Verne não entrou na de lá, e morreu ressentido pelo fato de não envergar o fardão

mofado, a espada bizarra e o chapéu de plumas sobre a sua cabeça coroada nos anais da literatura, no mínimo como o criador da science-fiction. Ouçamos, por fim, as suas próprias palavras a respeito do assunto menor (que o gênio, sem vaidades, não percebia como tal), em entrevista de 1893, ao jornalista Robert Sherard: “Ao ouvir minhas queixas de que não reconheciam meu lugar na literatura francesa, Alexandre Dumas costumava me dizer: ‘Você deveria ter sido um escritor americano ou inglês. Então, seus livros, traduzidos para o francês, teriam lhe trazido uma enorme popularidade na França, e seria considerado por seus compatriotas como um dos maiores mestres da ficção’. Mas sendo as coisas como são, não sou considerado na literatura francesa. Há 15 anos, Dumas propôs meu nome para a Academia Francesa, mas isso nunca deu em nada. Quando recebo cartas da América endereçadas a ‘monsieur Jules Verne, da Academia Francesa’, eu sorrio... A grande mágoa da minha vida é não ser levado em conta na literatura francesa.” • Continente março 2005


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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

O sétimo sentido da sétima arte Escolho, para mim, as sete virtudes existentes: prudência, justiça, compaixão, coragem, perdão, fé e humor

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ascemos no melhor país da América do Sul. O mais histórico, o mais cheiroso, fofo, animado, bonito e gostoso. Portanto, aprovado em todos os sentidos que não têm lá muito sentido. Agora, juntando todas estas questões com louvor, acrescenta-se mais uma – espantosa e de dar calafrios: vivemos a cruzar em todos os momentos com pessoas que já morreram – sem saber, ao menos, se gostam da gente. Será que é ou não é? Que realmente conhecemos uma porção de gente que pensa estar viva, disso não se deve ter a menor dúvida. Eu, por exemplo, estou cansado de ver, mesmo fora das telas da sétima arte. Pelas ruas, bares e cercanias. Assim os magos das telas fizeram O Sexto Sentido. Ora, Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo (Oh, sexto dia da criação!... Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa; descansasse o Senhor, e simplesmente não desistiríamos – versou Vinicius), legando-nos os sete pecados capitais. Se temos missa de 7º dia pelos irmãos recém-encantados; elegemos as sete maravilhas do planeta, e o número 7 como conta de mentiroso (nossa independência do jugo estrangeiro foi justo num dia desses de setembro); se sete cores tem o arco-íris, sete são as notas musicais. O Apocalipse de João Evangelista tem sete igrejas, sete estrelas, sete anjos, sete candelabros de ouro, sete selos, sete trombetas, sete trovões, uma besta (um dragão) saindo do mar com sete cabeças e sete diademas (a primeira dessas representava o poder político que se disfarça num cordeiro com sete chifres e sete olhos que são os sete espíritos a serviço do Anticristo – tudo isso sugerindo as sete pragas dizimadoras... – Por que não criarmos o sétimo sentido?... Escolho, para mim, as sete virtudes existentes (você, meu leitor, tem todo direito de eleger as suas): prudência, justiça, compaixão, coragem, perdão, fé e humor – esta última nos concede a mais genérica forma de se viver bem com a família, os amigos e a Continente março 2005

vida (ninguém por melhor que seja, será melhor do que todos nós juntos). A prudência nos leva a uma convivência estressante, porém lógica quanto ao perigo da violência que assola nossa terra (a qualquer mal-entendimento de palavras ou gestos); a justiça, para não nos emparelharmos à existente (os reais inocentes trancafiados e os “colarinhos brancos” fazendo misérias), exigimos o direito à cidadania; a compaixão atiça nossos sentimentos de gênero humano (ato repugnável às bestas de vários dos nossos segmentos sociais), aliás, raros hoje em dia, tornando-nos tementes a Deus (Davi) e às pregações do nosso Jesus Cristo (o grande orixalá sincretizado); coragem, para dizer que ama e agir como homem; o perdão, como Ele nos ensinou, aos que nada sabem do que fazem; sem fé, nada se faz ou se constrói em benefício da paz (ainda bem distante das pessoas de boa vontade); no humor, a gente vai levando a vida – às vezes negro, mas humor. A alienação, por exemplo, poderia ser até nosso oitavo sentido (um tanto conflitante para com os anteriores). É uma atividade pródiga, progressiva e brasante em nosso País. Uma país com todos os atributos que já revelei, não poderia ter um povo tão ligado, não é mesmo? Seria querer demais da conta. A fome e o desânimo tomam conta da nossa gente. A fome, tal ensinou Nelson Chaves – nutricionista dos bons do mundo –, nos traria o nanismo e o raquitismo do pensar. O desânimo – rogai por nós. A televisão só diz novelas e enlatados. Os políticos, sentidos, prometem a graça para os cassetas do planeta. E a glória dos pagodes e raps tocados no rádio é enfado!... Resta-nos a alegria típica, tópica e trópica de nossa gente, sempre irreverente e de temperança juvenil. Portanto, com Oscar ou não, a vida da sétima arte é bela. Priorizemos, então, esta sétima virtude do realíssimo sétimo sentido. •




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