Reprodução
EDITORIAL
Telefone-llagosta, de Salvador Dalí, 1936
Kitsch e Relatividade
D
ela já se ocuparam teóricos como Walter Benjamin, Abraham Moles, Umberto Eco ou José Guilherme Merquior. Fenômeno típico da sociedade de massas, a estética kitsch está presente em toda a parte, especialmente nos objetos que nos rodeiam. Quer tirar uma prova? Olhe ao seu próprio redor, em sua casa ou escritório. Examine suas estantes, seus armários, guarda-roupas, as paredes, os álbuns de viagens, os registros de suas recordações. Não há nada, nada mesmo, que remeta à busca da felicidade apontada por Moles? Confundida freqüentemente com o brega, a estética kitsch vai muito além do mau gosto ou a da reprodutibilidade em série. Revela uma atitude perante as coisas que cada vez mais impregna o mundo ao nosso redor. Há mesmo quem considere que o mundo está sofrendo um processo de kitschnização. Nesta edição, refletimos sobre esse fenômeno que suscita interpretações diferentes, até definições desencontradas. E ao qual, sobretudo, dificilmente alguém que vive nesta época já denominada por alguns “pós-moderna” está completamente imune. Outro destaque são os 100 anos de uma descoberta que abalou a Física. Transformado em estrela pop da ciência pela mídia, Albert Einstein publicou a Teoria da Relatividade aos 26 anos, exatamente em 1905. Questionando as estruturas do sólido edifício construído por Isaac Newton, a famosa fórmula E=mc2 levou a conseqüências tão díspares quanto radicais: desde o desenvolvimento da bomba atômica, até o dito popular de que “tudo é relativo”. Curiosamente, Einstein não recebeu o Prêmio Nobel pela Teoria da Relatividade e, sim, por outro artigo em que tratava do chamado Efeito Fotoelétrico, propondo que a luz fosse tratada não como onda, mas como partícula, mais tarde chamada de fóton. Nessa edição, o que é a Relatividade, seus desdobramentos, e a relação entre ciência, filosofia e religião. •
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CONTEÚDO
Divulgação
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As fronteiras do kitsch
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Uma grande coleção de arte popular
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CAPA
08 Kitsch, a estética do gosto pretensioso 11 Kitschnização do mundo provoca debates 18 Exemplares recifenses na arquitetura e nas artes
CONVERSA
20 Mia Couto revela como trabalha sua ficção criativa
LITERATURA
ESPECIAL 52 Há 100 anos Einstein publicava a Teoria da Relatividade 55 A tangência nem sempre nítida entre ciência e filosofia 57 O conflito da religiosidade com a ciência 58 O “endeusamento” de Einstein pela mídia 59 A dimensão histórica da Relatividade
25 Novo romance de Craveiro supera amarras
FOTOGRAFIA
provincianas 26 José Nêumanne expõe importância da língua materna 29 A poesia brilhante e concisa de Hugo Mujica 30 Um conto inédito de Cíntia Moscovich
68 Robert Capa, a guerra pelos olhos de um pacifista
CINEMA
TEATRO
36 A incômoda lente do documentarista Vladimir Carvalho
80 Texto inédito de Genet no Brasil é encenado no Recife
ARTES
TRADIÇÕES
42 Moema Cavalcanti: técnica e arte na capa dos livros 46 O despojamento como expressão em Nóbrega e Veiga
90 A preciosa Coleção Jarbas Vasconcelos vai ao ICB
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MÚSICA 74 A arte de tocar para os olhos 78 Ivan Ferraz, embaixador do forró, lança CD
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A arte de Moema Cavalcanti
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Nasa/Divulgação
Reprodução
CONTEÚDO
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A Teoria da Relatividade e suas conseqüências
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 A linguagem como instrumento de perpetuação do poder
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 Os livros sagrados também combatem os juros
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 42 Tàpies e Farnese: dois caminhos totalmente diferentes
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 64 A longa e doce-amarga história do chocolate
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 67 Quando os nazistas afundaram navios brasileiros
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 A palavra transforma, mas também pode causar equívocos
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Deuses da guerra que se alimentam das próprias vaidades Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente abril 2005
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena
Diretor Industrial Rui Loepert
Continente
Abril | 2005 Ano 05 Capa: Moema Cavalcanti Foto: Roberta Mariz
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta e Daniel Sigal Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Anna Karolina Pereira de Melo Reanata Melo Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente abril 2005
Colaboradores desta edição: ANDRÉ
DE
SENA é jornalista, escritor e mestre em Literatura.
CAMILO SOARES é jornalista. CÍNTIA MOSCOVICH nascida em Porto Alegre, é jornalista e escritora, mestre em Teoria Literária, autora, entre outros, de O Reino da Cebola (contos, 1996) e Duas Iguais – Manual de Amores e Equívocos Assemelhados (novela, 1998). DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de São Paulo e autor de Perfis e Entrevistas, entre outros.. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. FÁBIO ARAÚJO é jornalista. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia. KLEBER MENDONÇA FILHO é cineasta e crítico de cinema. JOSÉ NÊUMANNE é jornalista, poeta e escritor, autor do romance O Silêncio do Delator. LUÍS REIS é jornalista e professor de teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Poemas e Vigílias. MARCELO GLEISER é professor de física e astronomia no Dartmouth College, em New Hampshire nos EUA e autor, mais recentemente de O Livro do Cientista e O Fim da Terra e do Céu. Está terminando um romance histórico baseado na vida de Johannes Kepler. PAULO
POLZONOFF
JR é jornalista.
RODRIGO DOURADO é jornalista e diretor teatral. WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de artes plásticas.
Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.
CARTAS Media e mercado Promotores de bobagens globais, os media seguem uma única lógica: a do mercado. Às vezes, até que se imagina uma exceção, como a que pensei com relação à revista Veja. Ledo engano. É só ver a sua mais recente capa. Chega a ser cômico, essa revista invocar a ”ôtoridade” de Clinton, Madonna etc. e de instituição (hoje descaracterizada) como a Academia Brasileira de Letras para justificar, em sua capa, a presença desse escrevinhador de tolices, o camelô da literatura, Paulo $ Coelho. Resta-me indagar: não seria o caso da Revista Continente dar ainda mais provas de que o (agora, sonolento) Leão do Norte está vivo, fazendo ecoar um rugido de certa autonomia em face da (burra) unanimidade demonstrada pelos media quanto à promoção de Paulo Kitsch Coelho? Seria mais honesto, demonstrar a coragem de abrir um grande debate, envolvendo tanto as idéias dos seus fãs quanto as dos que cultivam a boa tradição literária. Quem faria isso, hoje, senão quem detivesse ainda uma certa liberdade, com relação ao mercado, pois Paulo Bestseller Coelho é apenas questão mercadológica, não de literatura. Claro; é que não se lê... nem O Alquimista, nem as obras que analisam essa necrose histórico-cultural. Do contrário, talvez se tivesse certo acanhamento de promover tanta babaquice. Edvânia dos Santos Alves, Recife–PE Privilégio Estive em Curitiba para uma consulta médica com a minha filha e no momento em que estava aguardando ser chamada, eis que dou uma olhada nas revistas que estavam à disposição dos pacientes na sala de espera e encontro esta bela Revista, tão vasta de informações culturais, maravilhosa em todos os sentidos. Não lembro de ter visto aqui no sul, principalmente, uma revista tão bem feita, parece-me que é feita com muito sentimento e respeito aos que tiverem o privilégio de poder colocá-la em frente aos olhos. Maria Sarita Ropelato, Florianópolis–SC Encanto Recentemente, fui à Fnac, em Campinas-SP, e conheci a Revista de vocês. Sou professora do Ensino Fundamental – I Ciclo e fiquei encantada com os temas abordados e com a apresentação dos mesmos. Na escola em que atuo, trabalho com projetos e o tema deste ano são manifestações culturais e o respeito para com elas. Uma das questões levantadas pelos alunos é que eles querem saber qual é a origem do Carnaval, da Páscoa, da Festa Junina, do Folclore e do Natal. Adquiri a Revista Documento sobre o Carnaval na Fnac, mas gostaria de saber se vocês teriam outras com os temas que citei. Solange Aparecida Corrêa, Campinas–SP
Decepção Oi, meu nome é Isaac, estou atualmente cursando Turismo. Eu gostaria de saber por que não há renovação das fotos publicadas na Revista (não são todas), pois a mesma foto que vi na Revista de 2005, já vi em diversas outras revistas antigas. Tudo bem que se trata do mesmo lugar (sempre o mesmo lugar), sendo que alguns lugares já não estão mais daquele jeito, já passou por uma reforma ou pintura. A mesma coisa acontece com a Empetur e as secretarias de turismo do Recife e Olinda, não há renovação. Por que vocês não procuram tirar fotografias de outros ângulos e de monumentos e paisagens que nunca foram explorados? Pernambuco não se resume apenas à Igreja da Sé, Recife Antigo, Fernando de Noronha e Porto de Galinhas. Procurem divulgar o que ainda é desconhecido. Será mais interessante, principalmente para os turistas que têm uma visão restrita de Pernambuco. Isaac Francisco Luz, Recife–PE
Goya e a Inquisição A matéria do historiador Carlos André Cavalcanti sobre os conflitos entre Goya e a Inquisição, publicada na Continente N° 51, está excelente: tanto pelo conteúdo erudito, como pela beleza das imagens. Para quem é da área de História, como eu, foi um deleite para os olhos e para a mente. Meus parabéns! Diógenes Abrantes, Natal–RN. Saudades É inevitável, não se encantar com a leitura prazerosa que nos é oferecida pela Continente Multicultural. Parabéns! Daqui do Rio de Janeiro, vou matando aos poucos a saudade do meu inesquecível Pernambuco, lendo a versão on-line da Revista. Existe a possibilidade de assinatura para outros Estados? Gostaria de fazer parte deste grupo felizardo que recebe tão primorosa Revista. Salve, Pernambuco! Katharyna Barros, Rio de Janeiro–RJ
redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax
Totalmente pernambucana Achei a matéria “Vestígios da Pré-História” (Edição nº 02) muito interessante , inclusive fiz questão de mostrá-la ao meu pai, que é natural da cidade de Ingá, na Paraíba. Ele ficou muito orgulhoso em ver um pouco da história da sua cidade contada em uma das melhores revistas do país. Desde criança, ouço meu pai falar sobre a Pedra do Ingá. Ele conta que ela hoje está modificada, pois, antigamente, em cima dela havia uma espécie de cela, dessas que se colocam em cavalo, e que quando se colocava o ouvido próximo à pedra podia-se ouvir um barulho, como se houvesse sinos tocando dentro dela... são histórias realmente curiosas. Só fiquei um pouco desapontada porque a matéria não traz nenhuma foto da Pedra do Ingá, mas isso não diminui a importância da reportagem, que nos dá um relato do quanto o Nordeste é rico em vestígios pré-históricos. Aproveito a oportunidade para agradecer a todos os que fazem a Continente Multicultural e Continente Documento pela dedicação e responsabilidade que têm tido a cada edição das revistas; isto nos motiva e faz com que sejamos leitores ávidos e atentos. A Continente é, sem dúvida, um prêmio ao leitor, pois o valoriza por completo. E o que é melhor: ela é totalmente pernambucana. Fátima Tavares, via e-mail Qualidade Conheci a Revista na UESB, mas não cheguei a ler, pois minha amiga recebeu-a há pouco tempo. Ainda assim, fiquei encantado com a qualidade do material e mais ainda com uma das capas, por trazer Octávio Paz. João Marcos do Carmo, Vitória da Conquista–BA Continente abril 2005
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CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes
A íngua Compreender o povo não é opção, é necessidade
“ -D
otôra, tô com uma inga e Dotô Afonso disse que foi culpa do médico. – Tenha calma, minha senhora! Por favor, explique melhor qual é o seu problema. – É inga dotôra! Depois da operação, fiquei cheia de inga, disse, apontando a inchação. – Calma senhora, por favor, volte ao hospital e peça ao seu médico para detalhar as causas do pedido desse processo e retorne dentro de uma semana.” Este foi o diálogo travado entre uma alta representante da Justiça e uma humilde senhora do interior. Humilde no linguajar e inocente na defesa de seus direitos, quando imaginava poder processar alguém por erro médico numa pequena cidade de 20 mil habitantes. A representante da Justiça depois nos segredou das dificuldades do povo se expressar e de ser entendido. Por fim, teria admitido que nem estava compreendendo o que a humilde senhora queria dizer, pois nem sabia o que era inga. Logo que a reclamante deixou o recinto, recebeu da auxiliar a informação de que o termo correto era íngua e que seria uma inchação dos gânglios da região do sovaco ou da virilha. Ao procurar no Aurélio, estava confirmada a informação: íngua é um intumescimento do gânglio linfático inguinal. Este caso reflete as contradições que existem entre a linguagem que é ensinada às elites e a linguagem que o povo usa nas pelejas do dia-a-dia. Caracteriza as diferenças e as distâncias que são demarcadas cultural e institucionalmente entre aqueles que têm a responsabilidade de servir e o povo – objeto de seus serviços. Compreender o povo não é opção, é necessidade. Na história, a linguagem foi sempre um instrumento de perpetuação do poder pela obscuridade. Em O Nome da Rosa, Umberto Eco mostra como o conhecimento era monopolizado pela Igreja na Idade Média. O acesso às grandes obras, geralmente escritas em latim, era restrito aos altos sacerdotes. Como contraponto, Lutero fez uma revolução apenas traduzindo a Bíblia para um idioma considerado “vulgar” (o alemão), tornando possível a sua leitura e interpretação direta pelos leigos. E Bill Gates, contrariando a idéia da “caixa preta”, criou o windows, abrindo para a sociedade a maior janela de democratização da linguagem da tecnologia da informação. Mesmo com esses bem-sucedidos exemplos de democratização do conhecimento, as elites que representam o Estado e suas Leis, mantêm-se fechadas à compreensão do
contexto local e suas variações de linguagem, numa atitude que vai além dos cacoetes da especialização. Neste aspecto, sabe-se que os médicos cultuam uma linguagem gráfica cheia de hieróglifos que lhe dão um ar de mistério e competência divina; os técnicos envernizam uma linguagem rebuscada e fechada, cuja compreensão só atinge os seus círculos de conhecimento; e os professores, em geral, adotam uma linguagem que lustra a sua proficiência e mascara o seu precário nível de sobrevivência. Como influência da globalização, vê-se ainda que os jovens adotam expressões modernosas, agora engrossadas com as criativas expressões do rap e do funk; e os internautas usam uma linguagem cifrada de pragmatismo. No particular, a criação de códigos de linguagem próprios não deixa de ser uma reação tribal aos radicais padrões de comunicação da globalização. De fato, nem a verdade parece fazer parte das limitações da linguagem nas relações humanas, pois até os poetas usam, nos versos de amor, um lirismo em que nem eles próprios acreditam. Eça de Queiroz já dizia que nem as mulheres acreditam na sinceridade dos poemas de amor, pois eles são meros exercícios de literatura, compostos pacientemente, friamente, com um dicionário de rimas. Não obstante, compreender a linguagem do outro é essencial. É claro que a reclamante foi enfim compreendida e não logrou êxito no seu processo de erro médico. Para Michel Foucault esse seria mais um caso de dominação pela palavra. Mas, desta experiência, ficam claras as limitações do conhecimento e que o povo não deve ser só objeto, mas sujeito nas suas relações sociais e institucionais. E não resta reconhecer que o conhecimento é ativo e submisso à vida. O mundo que tem valor é o que criamos ao perceber a realidade. A ignorância do conhecimento sobre a íngua mostra sem rodeios que nossas verdades são mera ilusão. • Continente abril 2005
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CAPA Reprodução
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de kitsch O kitsch, como fenômeno sociocultural, caracteriza-se pela rejeição a um processo de aprendizado e pela estética da redundância Daniel Piza
K
itsch não é o mesmo que cafona ou brega, não é apenas uma coisa de mau gosto. Mais que um qualificativo estético, o kitsch é um fenômeno sociocultural. É aquilo que traduz um comportamento que se caracteriza por pretender ser o que não é, por querer aparentar qualidades que não são autênticas, que são emprestadas de forma tosca. O exemplo famoso é o do pingüim sobre a geladeira. O pingüim está ali para reforçar a obviedade de que se trata de um compartimento gelado. É uma redundância que, além de desnecessária, tem a função de sugerir um mundo ao qual aquela pessoa não pertence, pois só conhece por fotos que lhe dão a idéia falsa de que existe ali mais graça do que realmente existe. É um enfeite enganador, uma simbologia ingênua. Mas existem outros e melhores exemplos. Woody Allen tratou deles em Trapaceiros, a história de um casal que fica milionário graças aos biscoitos que ela faz, não aos roubos que ele tenta fazer. Ela então começa a querer ostentar luxo e cultura que imagina compatíveis com sua conta bancária. Contrata um marchand (Hugh Grant) para lhe ensinar arte e lhe dar dicas sobre roupas, restaurantes, óperas. Tal como as madames do novo-riquismo paulista, distribui pela casa colunas gregas, puffs de oncinha e mesmo uma harpa – até que é traída por seu personal stylist... Continente abril 2005
Mistur sem co mais d de mau
ando elementos oerĂŞncia, o kitsch ĂŠ do que uma coisa u gosto
CAPA
Exposição na Galeria Prestes Maia, em São Paulo
O kitsch, em outras palavras, é também a pompa, o chique artificial, inorgânico, não assimilado por um processo gradual de aprendizado. O kitsch rejeita o estudo, a paciência, o realismo, o ritmo natural. Ele quer “queimar etapas” porque supõe que ser culto é fazer citações sem utilidade, freqüentar concertos sem conhecimento, usar roupas de grife que não combinam com seu corpo, viajar para lugares famosos e visitar os monumentos apenas para tirar fotos. É como Ronaldo, Daniela Cicarelli e seus convidados e penetras fazendo do castelo um barraco, interessados em estar em Chantilly, não em olhar as obras de arte, culinária e paisagismo que Chantilly oferece. Como diz Milan Kundera, o kitsch é a ausência de ironia. É achar que ter “classe” é copiar um manual de signos sem dominar os valores correspondentes, à maneira das mulheres que imitam Audrey Hepburn e Jacqueline Kennedy – usando tailleur Chanel, pérolas, óculos escuros grandes – sem ter a elegância herdada e aprimorada por elas. Às vezes o look é exatamente aquele, tal como visto na revista de moda. Mas basta a moça começar a andar e falar para que a máscara caia; a falta de leveza e espirituosidade, atributos que só a genética, a educação e a vivência podem produzir, torna o conjunto ainda pior. Como se vê, estamos rodeados de kitsch. Modelos que fazem poses de uma beleza sexy quase sobre-humana e têm a maturidade de uma colegial com meia três-quartos. O carnaval que está cada vez mais midiático e apoteótico e, portanto, distante de suas raízes tristes e populares. Mulheres que fazem plásticas para ter bocões e peitões que não combinam com seus pescoços e cotovelos enrugados. Políticos e juízes que falam de modo empolado para aparentar inteligência e cultura inacessíveis para os reles mortais. Intelectuais que não conseguem dirigir um carro e querem resolver os problemas da pós-modernidade. Novelas e músicas em tom altissonante e meloso que pretendem que os sentimentos sejam todos arrebatadores e unilaterais. Etc., etc. Kitsch, enfim, é tudo que é postiço, que quer aparentar o que não é. Em certas situações e etapas da vida, todos temos algo de kitsch, porque queremos possuir o que não possuímos. Isso pode ser até louvável: você só enriquece seu repertório se ambiciona enriquecê-lo. Mas o kitsch, em essência, é justamente a falsificação dessa ambição. Por falta de senso crítico, principalmente do autocrítico, e por não perceber os duplos sentidos da história e da natureza humana, o kitsch é de quem acha que ornamento vale mais que pensamento. É a troca da madeira pelo verniz. •
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Mona Lisa Lins/AE
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11 Roberta Mariz
CAPA
Os pingüins de geladeira são um exemplo clássico de reforço da obviedade
O mundo impregnado pelo kitsch Massificação produzida pela indústria cultural fez do kitsch o mal cultural do século 20, mas as dificuldades conceituais são evidentes, quando um museu de arte, como o Masp, o abriga e expõe Paulo Polzonoff Jr
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CAPA
Roberta Mariz
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Você é kitsch e eu sou kitsch. Todos somos kitschs. Não adianta olhar para o lado nem desconversar. Muito menos fazer cara feia. Alguns são kitschs por convicção e outros, involuntariamente. Muitos de nós somos kitschs sem nem saber disso. Tem os que são mais e os que são menos. Ninguém, contudo, escapa à praga. O kitsch é o mal cultural do século 20 que o século 21 herdou. Fugir dele é tão necessário quanto inútil. O conceito do kitsch é amplo e, por isso mesmo, vago. As origens do termo acabam se misturando ao seu significado. Porque, se o kitsch é o fenômeno da disseminação da baixa cultura, como querem muitos, nada mais kitsch do que se perder em definições rasteiras de fontes obscuríssimas. O único consenso envolvendo a palavra é que ela é de origem alemã, ainda que alguns digam que é uma corruptela de sketch, termo americano para esboço. Reza a lenda que os americanos menos endinheirados e sem bom gosto iam para Paris e, na ânsia de comprar quadros de autênticos artistas parisienses de boina, adquiriam esboços. Daí o termo. O teórico da arte Abraham Moles, por sua vez, diz que kitsch significa “fazer objetos novos com os velhos”. Outros dizem que o termo quer dizer simplesmente lixo. Outros vão além e dizem que o termo era usado por pintores de Munique, quando se referiam a tintas de baixa qualidade. Na dúvida, fui consultar um dicionário de alemão que traz kitsch como sendo sinônimo de cafona e brega. Pura e simplesmente. Olney Krüse, considerado o maior especialista em kitsch do Brasil (ou pelo menos o maior colecionador de objetos kitsch), concorda. Para ele, entre o brega e o kitsch não existe diferença alguma. “É só uma questão de denominação”. Ainda assim, muitos artistas têm se empenhado em criar uma distinção entre uma coisa e outra. Pode-se dizer, então, que o kitsch é o brega com marketing. O que não deixa de ser brega. Muitos estudiosos de comunicação se debruçaram sobre o tema do kitsch e cada qual tem uma explicação para o fenômeno. Os da Fundação Cisneros não são nem um pouco condescendentes e vão logo dizendo que o kitsch é a arte vulgar e baixa. Kitsch, para eles, é sinônimo de mau gosto. E nem todo marketing do mundo é capaz de demovê-los desta idéia. Mas a mais kitsch das explicações sobre o kitsch vem do italiano Umberto Eco, que, sobre o assunto, diz: “O kitsch é a comunicação que tende à provocação do efeito”. São palavras capazes de combinar com um pingüim de geladeira ou uma lava-lamp. Teorias à parte, o fato é que a sociedade contemporânea está impregnada do kitsch. Podemos pensar no óbvio: rosas de plásticos, suvenires da viagem à Europa, pochete na cintura, cor-derosa-choque. Mas não é só do óbvio que vive o kitsch. Para Olney Krüse, até a rainha Elisabeth é kitsch, quando usa aquela luvinha branca cheia de babados. O kitsch está ainda no melodrama
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CAPA das telenovelas, nos poemas parnasianos, nos discursos ufanistas, no rock, nos desfiles de moda e nos fardões da Academia Brasileira de Letras. Aliás, é de um imortal, José Guilherme Merquior, que vem uma das críticas mais contundentes ao kitsch. Merquior, é claro, se considerava imune ao fenômeno. No seu famoso texto Kitsch e Efeitismo, o diplomata dá à estética kitsch uma importância que ela não faz a menor questão de ter. Para ele, o kitsch nada mais é do que um “excitante vulgar” para pessoas com aversão ao raciocínio. Na visão de Merquior, que é a visão comum dos críticos do kitsch, ele está ligado a uma ideologia massificadora e hedonista, que exclui o pensamento individual e o substitui por um pensamento coletivo. Olney Krüse não discorda. “O kitsch é a busca desesperada da felicidade”, afirma. O que nos leva a uma aproximação entre o kitsch e o narcisismo – a doença do século 21. Sem uma proposta crítica e sem nenhuma necessidade de levar o espectador a um raciocínio mais apurado, o kitsch dá respostas imediatas a necessidades imediatas. É o tal do efeitismo de que falam Merquior e Umberto Eco.
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Quando o kitsch vira arte – Foi graças à vontade e ao pioneirismo de Olney Krüse e a certa licenciosidade do lendário Pietro Maria Bardi, presidente do Masp, que o kitsch começou a ganhar status de arte reconhecida pelo mais importante museu do Brasil. Bardi foi quem autorizou a aquisição do material acumulado por Krüse que resultou na primeira exposição sobre o assunto, no longínquo ano de 1984. Antes disso, porém, Krüse já havia perpetrado uma exposição em 1973, na prestigiada galeria Arte Aplicada. A mais recente investida neste tipo de arte foi em 2001, com a exposição Viva o Kitsch! (com ponto-de-exclamação e tudo), que teve como madrinha ninguém menos do que Hebe Camargo. Ainda que alguns museólogos corroborem a noção de que o kitsch é arte, a crítica de arte Nilza Procopiak vê aí um aspecto dúbio. “Pode haver arte no kitsch usado de forma proposital, mas também há muito caipirismo-pop travestido de kitsch, afirma ela. Prova maior, talvez, de que o kitsch não conseguiu ultrapassar a fronteira das lojas de R$ 1,99, apesar das tentativas, é que este
Para quem se diz à margem do kitsch, nem os Tribalistas são poupados
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CAPA
Divulgação
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Para Olney Krüse, rock, telenovela, parnasianismo, fardão da Academia – tudo é kitsch
tipo de material não encontra resposta significativa no mercado de artes. Até porque um dos aspectos mais significativos do kitsch é estar disponível a quem quer que seja, a preços módicos. Prokopiak, porém, concorda que a arte contemporânea está impregnada de kitsch. Pergunto a ela se o termo é ofensivo e ela diz que não, sem hesitar. Ao mesmo tempo, porém, diz que jamais se referiu à obra de nenhum artista como sendo kitsch, por medo de ofender. Contradição? Um dos mais renomados artistas plásticos brasileiros, Siron Franco, afirma que não se ofende nem um pouco com o termo kitsch. Orgulhoso até, não esconde que suas obras tragam um pouco deste universo cafona e sentimentalóide. “O kitsch fez parte da minha infância”, diz, ao mesmo tempo em que se lembra de um presépio feito em alumínio. Franco acredita, ao contrário de Merquior e Umberto Eco, que o kitsch pode causar sensações bastante profundas em quem estiver apto a “receber expressões visuais diferentes”. Ele lembra uma viagem que fez ao litoral de São Paulo, onde viu um casal de turistas ficar maravilhado com uma escultura feita de conchas. “Eles estavam buscando referências pessoais naquele objeto. E esta busca por referências faz parte da vida e da arte”, diz. Com alguma graça, Siron Franco aponta em suas obras um caráter inegavelmente kitsch, como o uso abundante do cor-de-rosa nos anos 80. Já que a busca pela brasilidade também é algo kitsch, pode-se dizer que os trabalhos do artista para espaços públicos não são menos do que kitsch. Sem ofensa, é claro. Em se tratando de espaços públicos, nenhuma cidade é mais kitsch do que Curitiba. Sob a batuta do ex-prefeito Rafael Greca, que gostava de escutar ópera em seu gabinete, a cidade viveu o apogeu da sua era kitsch, com a aquisição de vários monumentos de gosto mais do que duvidoso. Na capital paranaense o assunto há muito deixou de ser tabu. A santa dourada num obelisco no meio da rua, a cabeça de cavalo que solta água pela boca, os anjos trombeteiros e as fontes em homenagem à dupla caipira Nhô Belarmino e Nhá Gabriela formam um poderoso acervo kitsch ao ar livre. Isso sem contar o mural ufanista de Sérgio Ferro, em seu inconfundível estilo neo-renascentista. “Aquilo não é kitsch”, diz Nilza Prokopiak. “Existe o kitsch agradável e o resto. Aquilo é resto, é um vômito”, afirma. Idiossincrasias à parte, a verdade é que o kitsch chegou ao museu. Hoje o Masp conta com um acervo de nada menos do que 2.126 peças, acondicionadas com todo cuidado na reserva técnica. Eunice Sophia, coordenadora do
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acervo no museu paulista, fala com orgulho do pioneirismo em acolher este material e rebate as críticas: “A função do museu não é se preocupar com o mercado; o kitsch está dentro de um contexto histórico, é um momento importante da cultura popular. Cabe ao museu fazer a documentação deste material.” Se serve como consolo, vale dizer que não é só no Brasil que o kitsch está invadindo os espaços tradicionais da arte. Na Espanha, o prestigiado Museu Reina Sofia, que abriga o mural Guernica, de Picasso, cedeu suas instalações para uma exposição de arte kitsch. O acervo pertence ao dono da editora Taschen, o alemão Benedikt Taschen. É curioso perceber, ainda, que a chamada alta cultura também passou por um processo de “kitschnização” nas últimas décadas. Numa grande inversão de valores, passou a ser considerado de extremo mau gosto a arte feita nos moldes clássicos. Deste modo, não só as imitações do barroco e do rococó, como os barrocos e rococós autênticos passaram a ser considerados bregas. O mesmo serve para obras renascentistas e até mesmo impressionistas. Um fenômeno que foge ao efeitismo do kitsch. Homens-sereia: entre o brega e o kitsch
Reprodução
Kitsch e postura – Com o crescimento do interesse sobre o assunto, têm surgindo várias teorias sobre o kitsch. Elas pretendem, num primeiro momento, estabelecer as diferenças entre o que é kitsch e o que é brega. Para Olney Krüse, esta diferença é da espessura de um fio de cabelo. Mas parece que os teóricos querem separar de uma vez por todas as coisas – para o bem do kitsch. Há até estudos que tentam decodificar a arte kitsch, que, para ser reconhecida como tal, deveria obedecer a alguns critérios bastante objetivos. De acordo com Thiago Bortolozzo da Silva e Adams Carvalho, da Escola de Comunicação e Artes da USP, os objetos de arte kitsch são os que estão de acordo com o (1) princípio da inadequação, (2) princípio da acumulação, (3) percepção sinestésica, (4) princípio da mediocridade e (5) princípio do conforto. Parece complicado, mas não é. O princípio da inadequação se refere aos objetos que têm formas ou funções esdrúxulas, como abridores de garrafa de Itu e flores de plástico ou conchas. O princípio da acumulação é aquele a que estamos mais ligados, porque se refere a objetos de baixa qualidade, sem valor algum, mas que guardamos e ostentamos por um valor afetivo. O princípio da percepção sinestésica se
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CAPA revela, por exemplo, em papéis-higiênicos perfumados e mesmo perfumes de baixa qualidade. Já o princípio da mediocridade é o mais interessante, porque ele estabelece que o kitsch não pretende ser o mais vulgar, e sim estar no meio-termo entre o vagabundo e o elegante. Por fim, há o princípio do conforto, que se aplica ao kitsch na medida em que os objetos servem para suprir alguma necessidade, eventualmente cultural, do consumidor. A verdade é que a maior parte dos produtos da indústria cultural (para usar um termo caro aos frankfurtianos) respondem positivamente aos princípios do kitsch. Donde a conclusão do início deste texto de que ninguém está imune ao kitsch. Por mais que tente argumentar a respeito. O bancário Alexandre Inagaki, por exemplo, se diz um homem à margem do kitsch. “Detesto Carmen Miranda, Hebe Camargo e afins, não tenho pingüim em minha geladeira, anões no meu jardim e sequer li O Código da Vinci”. Por outro lado, reconhece-se como kitsch na medida em que consome produtos da indústria cultural. “Eu e todo mundo que consome qualquer produto vendido pela indústria cultural (incluindo-se aí filmes da Miramax, quadros do Romero Britto, qualquer música dos Tribalistas e tudo o mais que faz a cabeça da classe média) somos kitsch ad nauseam”, afirma. Até aí, nada demais. Mas quando tenta separar o brega do kitsch é que Inagaki mostra o quanto ainda nos sentimos desconfortáveis quando nos nivelamos com o que há de reconhecidamente pior da cultura contemporânea. “O problema é que o conceito de kitsch é muito confundido com o que é considerado brega. Considero muito mais kitsch, por exemplo, uma casa cuja estante está repleta de livros daquela
Com o kitsch na alma S
e para algumas pessoas é fácil fazer uma distinção entre o que é ou não kitsch, por outro lado há toda uma geração que já nasceu com o kitsch na alma. São filhos da indústria cultural nos termos concebidos por Adorno e Hokkeimer. São pessoas que não tiveram chance de viver uma vida livre do brega, por mais abastadas que tivessem sido suas vidas. Entre eles, me incluo. O casal Daniela Macedo e Daerson Oliveira são kitsch, mas ficam ressabiados quando escutam a palavra. “Tenho pensado no kitsch sociologicamente”, diz Daerson, situando o assunto num ponto externo qualquer. Para ele, como para a maioria das pessoas que já nasceu sob o Império do Kitsch, há uma distinção entre ele e o brega. E o ponto de ruptura é sempre o mesmo: a nostalgia. Daerson Oliveira e Daniela Macedo me recebem em sua casa, em Botafogo. Logo na sala há uma cristaleira repleta de badulaques. “Esta parte de cima é kitsch, mas a de baixo são coisas de Daerson, Daniela e a lâmpada lava-lamp Continente abril 2005
Paulo Polznoff Jr.
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Obra de Romero Britto: exposições têm elevado o kitsch à arte
Coleção Prêmio Nobel de Literatura que jamais foram folheados na vida e cujas paredes são adornadas por cópias de quadros de Rembrandt e Degas (sem que o morador tenha a menor idéia de quem eles tenham sido), do que outra com pôsteres de Elvis Presley e Marilyn Monroe colocados por alguém que efetivamente goste desses artistas”, teoriza. Ao que parece, o termo kitsch só não causa nenhuma estranheza quando relacionado à nostalgia. De algum modo, somos condescendentes com aquilo que é brega, cafona e culturalmente pobre, se estivermos ligados emocionalmente a ele. Os quadros da Santa Ceia herdados da avó, a multicolorida capa de botijão de gás, os sapatos plataforma com lantejoulas, as músicas de Odair José e Cauby Peixoto – tudo o que de uma maneira geral reprovamos em nossas discussões intelectualizadas ganham um verniz de extremo bom gosto quando ligado à inocência da infância. Daí a relação possível entre o apego ao kitsch e o narcisismo, que é justamente uma incapacidade do homem moderno de ver o mundo com olhos de adulto. Alexandre Inagaki, por exemplo, vê os anos 80 e todos os produtos culturais daquela época com um olhar mais ameno. “Ora, a travessia da minha infância foi feita durante os anos 80. Logo, nada mais natural do que gostar das tranqueiras culturais que consumi na época em que eu era mais inocente e não precisava me preocupar com a fatura da minha conta bancária, como discos da Turma do Balão Mágico, filmes dos Trapalhões e os desenhos desanimados da Hanna Barbera”, diz. Não adianta olhar para o lado nem desconversar. O mundo está impregnado de kitsch. Uma alternativa talvez seja o recolhimento a um monastério, desde que bem servido por livros de autores clássicos. Se bem que há quem diga que no estilo de vida dos monastérios, ou mesmo daqueles elegantes fidalgos que se fecham em seus castelos, há de algo de kitsch. A verdade é que, se correr o kitsch pega; se ficar o kitsch come. •
valor afetivo”, tenta se desculpar Daniela, sem que isso fosse necessário. Na sala, uma lâmpada lava-lamp, dá um toque retrô à decoração. O raciocínio é simples e nele não reside ostentação intelectual alguma. É um erro comum e passível de desculpas. O casal tem para si que kitsch é o brega com algum valor sentimental agregado; já o brega é o brega. Daniela Macedo me mostra um duende que um amigo de faculdade lhe deu. Ao lado dele há um baldinho de gelo em miniatura, uma referência ao livro de Daniela, intitulado Balde de Gelo. Mas para quem olha de fora e não compartilha das experiências sentimentais do casal, os objetos não têm valor algum. O balde de gelo continua a ser apenas um balde de gelo, assim como o duende não passa de um duende. A xícara de porcelana em miniatura é só uma xícara decorativa e o relógio prateado é apenas um relógio prateado. Porque, objetiva-
mente, os objetos kitsch são apenas objetos de gosto duvidoso. Por mais que tentemos dar a ele um valor sentimental. “Há toda uma geração apegada a estas coisas”, diz Daerson Oliveira. “Para mim, a santa e o pingüim de geladeira me trazem recordações da minha infância, da casa da minha avó”, completa. Daniela Macedo me mostra, então, um azulejo pintado e emoldurado, presente de um amigo. É kitsch, eu digo. “Mas como é que eu vou jogar fora uma coisa destas”, pergunta-me, com uma lembrança boa nos olhos. Longe de serem consumidores típicos de produtos brega, ao longo da conversa eles vão se mostrando mais e mais kitschs. Ela, por exemplo, se diz admiradora de uma música de George Michael. As luzes se apagam e somos iluminados apenas pela parafina derretida da lava-lamp. Mais kitsch impossível. • Continente abril 2005
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Maravilhas recifenses O Bal Masqué, casas de novos ricos misturando formas distintas e até o Castelo de São João são apontados como exemplos da estética kitsch entre nós Fábio Araújo O Castelo de São João, sede do Instituto Ricardo Brenannd
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recifense médio ficou maravilhado. Afinal, não era todo dia que uma capital terceiromundista presenciava a chegada de um centro cultural como aquele, funcionando dentro de um castelo de traços medievais, com direito à coleção de armas de três mil peças, mobiliário gótico da França e da Inglaterra, tapeçarias francesas dos anos 1700 e rico acervo de esculturas, artes decorativas e artes visuais. De quebra, o Instituto Ricardo Brennand, inaugurado no segundo semestre de 2002, trouxe à cidade exposições de grande relevância e repercussão, como as mostras de Albert Eckhout e Frans Post. Parecia um empreendimento imune a quaisquer críticas. Mas elas vieram. Não ao conteúdo, e, sim, à embalagem. Diversos arquitetos e estudiosos de arte identificaram no Castelo de São João – nome dado à sede do IRB – elementos postiços, inadequados, artificiais e inorgânicos. Em uma palavra, kitsch. Tomando emprestadas as definições citadas por Daniel Piza, para muitos o edifício, ao se propor “medieval”, apesar de erguido no século 21, pretendia ser o que não era e queria aparentar qualidades não autênticas. Se, para Kundera, kitsch é copiar um manual de signos sem dominar os valores
correspondentes, o castelo da Várzea é kitsch. Não as exposições, não as coleções particulares, não as tapeçarias; mas a aura falsamente medieval, as estátuas no jardim, os portões guardados por leões de mármore fora de contexto. Para o professor Maurício Rocha, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a idéia de arquitetura kitsch está relacionada com o não-domínio das normas eruditas de construir de uma determinada época. Ele concorda que o Instituto Ricardo Brennand se encaixa nesta categoria, mas ressalta se tratar de um exemplar um pouco diferenciado. “Pode-se considerá-lo kitsch, não como a maioria dos objetos deste tipo de arte, mas como um exemplar de extremo apuro técnico e artístico e primoroso acabamento; sem julgar aqui o seu grande valor como pólo cultural”. Normalmente, o kitsch na arquitetura apresenta superposição ou uso exagerado de elementos. O objeto foge, por exagero, aos padrões usuais do estilo artístico daquele momento. “Isto quer dizer que em todas as épocas houve arquitetura kitsch e que ela não constitui um estilo, e sim uma forma Reginaldo Rossi, segundo Neto: camelô da banalidade
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Léo Caldas/Titular
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Enquanto o brega fica nas camadas menos favorecidas da sociedade, ou pelo menos se nutre delas, e o kitsch afeta toda a pirâmide social de expressão ingênua ou muito pessoal de pensar um objeto arquitetônico”, continua o professor. Na maioria das vezes, este tipo de manifestação é tratado como curiosidade e/ou excentricidade, possuindo caráter alegórico, divertido e criativo. No Recife, além do exemplo de maior porte que é o Castelo São João, Maurício Rocha aponta a existência de grande quantidade de casas, pertencentes à classe média alta, que trazem a estética kitsch. Nelas, encontra-se uma mistura de formas distintas, sendo comum encontrar-se traços do movimento moderno junto a elementos de procedência “colonial”, como janelas e portas com arcos abatidos, plumas invertidas nas pontas dos telhados ou gradis de desenhos antigos misturados com modernos. “Esta estética se manifesta muito na utilização de cores nas fachadas – fruto de uma interpretação do projeto Cores da Cidade, do Bairro do Recife – e de cerâmicas 10 x 10, com desenhos variados”, explica. Desproporções – Segundo o dramaturgo e escritor Moisés Neto, mestre em Teoria da Literatura pela UFPE, apontar fronteiras invioláveis entre “brega” e kitsch pode ser tarefa vã. No primeiro, há excesso de drama e lágrimas. O brega fica nas camadas menos favorecidas da sociedade, ou pelo menos se nutre delas, e o kitsch afeta toda a pirâmide social. “A produção do kitsch é
dirigida a quem quer gastar e não sabe como, a quem tem muita coisa e resolve usar o máximo ao mesmo tempo. São desproporções aberrantes – no kitsch as coisas parecem não combinar propositalmente, como por exemplo o azul e o verde”. Neto considera que Reginaldo Rossi não é kitsch, apenas apela para efeitos instantâneos e óbvios demais, buscando reforçar o estímulo sentimental, um camelô da banalidade. “Jeison Walace é brega, com suas gafes e falta de tato. E bandas como Ovelha Negra, Metade, Nega do Babado e outras nada mais são do que a escória de uma sociedade melancólica, que esconde sua infelicidade atrás de uma neo-reificação caça-níquel”, ataca. Já certas atrações da TV recifense atestam o kitsch, ao demonstrarem falta de serenidade e de equilíbrio na forma. E alguns bailes de Carnaval, como o Bal Masqué, oferecem o produto kitsch com suas decorações enfartantes e desfiles que misturam lantejoulas, maquiagens, luzes, plumas e pregas. O dramaturgo lembra que, paradoxalmente, alguns estilos hoje respeitados, como o Barroco, foram taxados de mau gosto durante muito tempo. “Um pouco de kitsch (ou de brega?) parece necessário? Pode ser. Mas não devemos aplaudi-lo, a não ser enquanto farsa, distorção comercial na representação do mundo, oferecida a consumidores desesperados e despreparados”, afirma. •
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Continente março 2005 SÊrgio Lima/Folha Imagem
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MIA COUTO
O escritor não tem função
Considerado o mais inventivo ficcionista em língua portuguesa atualmente, Mia Couto separa militância do fazer literário, defende a arte de contar histórias e revela como trabalha sua ficção Homero Fonseca
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ntónio Emílio Leite Couto é um dos mais criativos escritores contemporâneos em língua portuguesa, recorrentemente comparado a Guimarães Rosa. Além dessa influência assumida, sua escrita lembra certas características da melhor poesia de Manuel de Barros quando, em suas próprias palavras, deixa transparecer uma “capacidade de espanto, de me encantar com pequenas coisas, como se o mundo fosse uma coisa que ainda me está a ser apresentada, como se tudo estivesse a ser estreado”. Os críticos ressaltam seu estilo original, que se apropria do caldeamento entre o falar dialetal africano e a norma culta do português, para criar um universo próprio, onde o maravilhoso convive com a vida real de pessoas simples, numa África arquetípica que enfrenta hoje os dilemas da construção de identidades na moldura da modernidade. Nascido em Beira, Moçambique, em 1955, adotou profissionalmente o apelido conservado desde a infância: Mia. Estreou em 1983 com o livro de poemas Raiz de Orvalho e nesses 22 anos construiu uma obra relativamente pouco extensa – meia dúzia de romances, outro tanto de livros de contos, uma seleção de crônicas e adaptação para o teatro – mas de extra-
ordinária relevância pela inventividade que o coloca no patamar de renovador da língua portuguesa. Traduzido em holandês, sueco, norueguês, italiano, francês e espanhol e detentor de vários prêmios literários, Mia Couto é autor, entre outros, dos livros de contos Estórias Abensonhadas, Vozes Anoitecidas, Cada Homem É uma Raça e de romances como Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, em que sua capacidade imagética se traduz na recriação semântica das palavras, processo batizado por ele próprio de brincriações. O romance O Último Vôo do Flamingo acaba de ser lançado no Brasil. Antes de se dedicar à literatura, foi jornalista, diretor da Agência de Informação de Moçambique e dirigiu o jornal Notícias de Maputo e a revista Tempo. É ainda biólogo, responsável pela reserva natural da Ilha da Inhaca, em Moçambique. Apesar do currículo de militante, Mia Couto revela, nesta entrevista, saber distinguir os campos de atuação, ao afirmar taxativamente: “O escritor não tem ‘função’. Não creio que se pode olhar a escrita literária do ponto de vista utilitário. Ele escreve movido por um telúrico e inexplicável desejo de se religar aos outros”.
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Como foi a sua descoberta da Literatura, entre os livros em português e as histórias orais da África ágrafa? Cresci cercado pela poesia, literalmente. As paredes de nossa casa estavam forradas de livros de poesia. E, para agravar, o meu pai era poeta em permanente exercício. Essa era a casa. Do outro lado, a rua se compunha como a outra margem de mim. Ali estava África, os contadores de histórias e, mais do que tudo, uma lógica outra que me fascinava. Nessa aparente dualidade, eu fabriquei os dois pés da alma.
“” Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham sotaque de nuvem. – A vida é que é a mais contagiosa – dizia
Do romance O Último Vôo do Flamingo, Editora Nadjira, 2000.
Sua escrita traz uma elaboração de linguagem que provoca comparações recorrentes a Guimarães Rosa. Entretanto, certas abordagens - em que um objeto ou uma coisa banal são descritos como se vistos pela primeira vez lembram o poeta Manuel de Barros. Conhece sua obra? O que acha dessa aproximação? Conheço os dois, Guimarães e Barros. Eu apenas me honro com a comparação. Assumo ambos como inspiradores, instigando a exploração dos limites da palavra em luta contra o idioma. Creio, no entanto, que os nossos domínios não são comparáveis. Estou num tempo diferente, num universo cultural outro. E isso apenas pode produzir literaturas diversas.
Certas teorias decretaram o fim da narrativa e o império absoluto da construção formal. O que acha deste dilema? A narrativa ainda é necessária? Esses dilemas serão construídos certamente por quem não escreve para contar histórias. Estas construções possuem um interesse teórico que não quero desdenhar, mas para o escritor essas categorias não se colocam dessa maneira. Ele faz porque esse é o seu modo de intuir, de respirar, de se inventar. Que tipo de contribuição à Literatura estão dando as nações jovens (africanas, latino-aamericanas)? Há algo em comum em sua produção, apesar da imensa diversidade? A literatura nossa, africana, é quase sempre contemporânea ao processo de criação do sentimento de nacionalidade e de identidade nacional. A construção da modernidade e o modo como o universo da escrita se está instalando em África (não falo na alfabetização, mas no sistema de pensamento associado à lógica da escrita), tudo isso é comum nos países africanos.
Qual a função do escritor no mundo globalizado de hoje, em que a questão das identidades está colocada na ordem do dia (política e culturalmente)? O escritor não tem “função”. Não creio que se pode olhar a escrita literária do ponto de vista utilitário. Ele escreve movido por um telúrico e inexplicável desejo de se religar aos outros. É evidente que, por outro lado, Continente abril 2005
Nicole Guardiola/NOTIMEX/AFP
Moçambique: construção simultânea da identidade e da literatura nacionais
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Iniciemos pela moça: ela era espantadamente bela, com face de invejar aos anjos. Nem água fosse mais cristalinda. O porém dela, contudo: era vagarosa de mente, o pensamento parecia nela não pernoitar
Do conto “As Flores de Novidade”, in Estórias Abensonhadas, Caminho Editorial, 1994.
o escritor não escapa ao tempo e ao lugar. E aí o seu produto é posto a navegar nas águas da História. Mas se tem um fito honesto, só pode ser o navegar para além da História. Alguns escritores, especialmente os latinos, costumam atribuir razões transcendentais ao ato de escrever (exorcizar seus demônios pessoais, vencer a finitude da condição humana). John Steinberg disse que escrevia porque gostava de escrever. O senhor, por que escreve? Invento sempre um expediente, uma pequena mentira para “explicar” aquilo que, afinal, não tem que ter explicação. Se calhar a fórmula de Steinberg, é a mais honesta: fazemo-lo porque nos dá prazer. Esse prazer que contamina a escrita é perceptível por parte de quem lê. Aqui não há artifício possível.
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José Frade/ Divulgação/ Cia. das Letras
Regressando a casa, meu pai se costurou em silêncio. Dias seguidos ele se conservou fechado no quarto. Impossivelmente, os dois desconvivíamos. Nos evitávamos, existindo em turnos
Do romance Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, Companhia das Letras, 2003.
Não obstante a imensa dívida cultural para com os povos africanos, o Brasil pouco se volta para África. O José Eduardo Agualusa acredita que o Brasil tem vergonha de suas origens africanas. O que o sr. acha desta distância e como pode (deve) ser encurtada? Essa viagem está sendo feita no interior de cada um dos nossos espaços, na busca de uma relação mais tranqüila com aquilo que somos. O Brasil não tem outra opção, senão reencontrar essa dimensão de origem africana e que hoje é brasileira. Digo brasileira, para evitar propositadamente dizer “afro-brasileira”. Angola só poderá inventar a sua identidade se enfrentar o quanto de brasileiro há na sua história. Nós, em Moçambique, temos menos cruzamentos com Angola e o Brasil, mas os nossos valem tanto como quaisquer outros. A literatura moçambicana foi toda ela construída sob fortíssima inspiração do Brasil. Desde António Gonzaga às diferentes gerações do século passado foi no Brasil que fomos beber. E isso tem implicações na criação do nosso próprio sentimento de modernidade. Pode revelar um pouco do seu método de trabalho? Como surge a idéia de um romance ou um conto? Como é trabalhada: pesquisa primeiro e depois escreve? Ou vai escrevendo e pesquisando à medida que as questões se colocam? Como é sua relação com os personagens? Continente abril 2005
Não existe método. Existem núcleos sugestivos que se estruturam e passam a funcionar como pólos de atração de outras idéias. É como o processo de formação da chuva. Um núcleo de poeiras serve de ponto de partida para a formação da gota. Não trabalho, à partida, com um esquema preparado antecipadamente. Sou, na realidade, mais um construtor de personagens do que de narrativa. São esses personagens que, por vezes, me contam o resto da história. O senhor aproveitou sua participação na Bienal do Livro de Fortaleza (ano passado) para fazer uma viagem ao Sertão nordestino. Algum objetivo (literário) específico? A propósito, quais seus novos projetos literários? Queria percorrer um Brasil mais distante do roteiro turístico. Mas não existia objetivo propriamente literário. Nada é literário, se não tocar profundamente e de surpresa. E essa surpresa acontece em todo o lado. Não tenho a idéia romântica de que o interior dos países seja uma moradia especial da poesia ou da inspiração. Quanto aos projetos, estou agora redigindo um romance de inspiração histórica, que trata da escravatura no Oceano Índico e os mal-entendidos, os clichês do fenômeno que até hoje se renovam no imaginário africano. •
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LITERATURA
Paulo Fernando Craveiro, um paraibano radicado no Recife, teve a coragem necessária para romper as amarras de uma espécie de linguagem conservadora presente em muito da ficção pernambucana, ao praticar uma prosa sem as marcas do tribalismo oficioso e da atitude provinciana. Dividido em duas partes, “De mortos vivos” e “De vivos mortos”, a temática central e idiossincrática de O Último Dia do Corpo é a relação profunda e simbiótica entre vida e morte, desaparição e criação, corpo e atividade mental. A condição dupla do corpo, ora imóvel ora em movimento – supostamente morto e, se isto é possível, também supostamente vivo – apenas vem demonstrar que não é permitido ao leitor certificar-se ou assegurar a validação de tais situações extremas. Persistem dúvidas se a morte da atriz Vega se realizou, ou se se realizou apenas no plano ficcional. Vega vê a si mesma, a certa altura de sua “morte”, como no capítulo intitulado “Novembro”: “A memória era como subir novamente ao palco. Os pais pareciam estar ali com ela, que estava deitada, morta. A vida passa depressa, imagina, apesar de morta. Os mortos pensam. Ocupara-se em encarnar personagens e esquecera da própria vida. Gostaria de ter invertido as coisas”. Através do legista Santo, o prosador Segundo romance de Paulo Fernando esmera-se na técnica descritiva da autópsia da personagem Craveiro rompe amarras, ao praticar central Vega – que tem como companheiros o diretor de filuma prosa sem as marcas do tribalismo mes comerciais Hatus e um homem identificado como robô oficioso e da atitude provinciana musculoso – e em compará-la com a autópsia de Marylin Monroe. Luiz Carlos Monteiro Craveiro se serve de recursos lingüísticos e formais como trocadilhos, versos soltos em meio à prosa, diálogos exo romance O Último Dia do Corpo, recém-publicado por Paulo Fernando Craveiro, mos- tremamente rápidos. O Último Dia do Corpo aparece como tra-se surpreendente a utilização obsessiva de romance ao mesmo tempo intimista e urbano, cosmopolita que guarda caracteres ambientais e vivenciais efeitos metafóricos. A metáfora duma cidade ocidental qualquer e comum. Na comparece em praticamente tudo o que o autor descrição de locais e cenários, não é feita uma escreve, tanto em relação a situações internas, distinção rigorosa entre o kitsch e o requintado, que envolvem personagens e ele próprio enentre o mau gosto da sociedade pós-moderna e os quanto narrador, como a situações externas, que padrões artísticos de uma arte canônica, contudo trazem à luz paisagens e objetos configurados válida pelo seu alto grau de eficácia estética. Pauno texto. É recorrente o diálogo mantido com lo Fernando Craveiro acerta, em muitos instanmanifestações artísticas como o teatro, o cinetes, em seus propósitos de desvendar o real pela ma, a dança, a pintura, a escultura, a música e ficção, em desvelar os atos e gestos profundos e as histórias em quadrinhos. Essas relações não cotidianos da vida. Mesmo que isso venha a estaficam apenas no plano superficial das informa- O Último Dia do Corpo, ções de passagem, pelo fato de sugerirem in- Paulo Fernando Craveiro, belecer e provocar, em proporção significativa, uma relação confusa, indecifrada e indefinível terpretações do ficcionista e, em certos trechos, Editora Nossa Livraria, 334 páginas. entre vida e morte. • aprofundamento estético.
De vivos e de mortos
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Imagens: Reprodução
Em defesa da língua materna A cada 15 dias perde-se uma língua. “Já vai tarde”, dirão os que temem a repetição da Torre de Babel e os apóstolos da globalização cultural José Nêumanne
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ste profissional da língua que lhes escreve tem sido convocado amiúde para participar de debates com professores de literatura e gramáticos e neles se tem situado na isolada posição de defensor dos cânones, quase sempre tratados nesses encontros como autênticas teias de aranha. Sente-se ele, então, um crítico de arte que, além de não aceitar essas instalações que pululam por aí, só considera válidas pinturas rupestres. Num desses encontros, na Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), um colega, Rodolfo Konder, contou ter lido em algum lugar que, embora tenha crescido muito de então até nossos tempos, a humanidade, que já falou 150 mil línguas diferentes,
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hoje se expressa em apenas 6 mil. A cada 15 dias, segundo Konder leu em tal relato, perde-se uma língua. Já vai tarde, dirão os que temem a repetição do fenômeno bíblico da Torre de Babel, os apóstolos da globalização cultural e os entusiastas do esperanto, entre outros profetas desse Apocalipse. Ocorre, porém, que, quando uma língua some desaparecem com ela as lembranças de uma raça, a cultura de uma tribo e a memória dos contatos primitivos de um povo com a civilização. A língua materna é repositório de saber e expressão de sentimentos. Belo texto do escritor argentino Juan José Saer que a Folha de S. Paulo publicou no último domingo de Carnaval, mostrando que as grandes
LITERATURA
obras da poesia universal não foram escritas em algum idioma nacional, mas sempre na língua original, aquela que o autor bebera no regaço materno nos anos formadores da primeira infância. E muitas dessas línguas, que estão em franca extinção, agonizam aqui mesmo no Brasil, ao alcance de nossos ouvidos desatentos. Sim, mas não o português, dirão os idiotas do óbvio. De fato, os dialetos agonizantes em nosso território são remotas manifestações toscas de povos primitivos que se extinguem juntamente com elas e as florestas onde vivem. Nada a comemorar. Infelizmente, do ponto de vista pragmático, também há não muito a lamentar. A última flor do Lácio – Quanto ao português, idioma nacional e língua materna comum à acachapante maioria de nossa população, ele A Torre de Babel, passa bem, obrigado, embora vez por Pieter Brueghel, o Velho, 1563 outra vilipendiado por algum político ignorante, professor populista ou escritor petulante. Um cultivador do óbvio ululará: a língua de Camões não está em vias de extinção, mas apenas se transforma, em estado de mutação permanente, e se amolda, afina, aos interesses do povo que a fala, liberta dos cânones elitistas que a agrilhoavam. Só que nosso vernáculo é debilitado por três moléstias gravíssimas. A primeira é a autodepreciação. Ela se manifesta no verso mais famoso em que ela mesma foi cantada: “Última flor do Lácio, inculta e bela”. Olavo Bilac, príncipe dos parnasianos, que perdoe, mas “inculta” a língua de Camões, Eça e Machado? Vamos e venhamos: “inculto” é o latim vulgar em que se escreve a quase totalidade dos anúncios publicitários e das notícias dos jornais e até alguns romances badalados pela crítica estruturalista de nossos tempos – verdadeiras instalações em tinta sobre papel. Nada inculto e muito belo, contudo, é o instrumento de trabalho de escritores como os gênios acima citados, Euclydes da Cunha, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e João Cabral
de Melo Neto, que infelizmente não estão mais em condições de combater o bom combate da defesa dele. Tropeçando na língua de mamãe – Está certo que muitas vezes a língua inculta e nada bela – que atrás dele se esconde – ganha legitimidade acadêmica. O mais premiado romancista brasileiro contemporâneo, Bernardo Carvalho, professa seus princípios disformes, levantando a poeira dos aplausos da crítica, com Luiz Costa Lima na comissão de frente. A obra vertida para as imagens da televisão de Márcio de Souza, um fabulador extraordinário, mas um trôpego construtor de frases, também se inclui na galeria dos discursos oficiais lavrados em formas toscas e muitas vezes torpes. Fernando Collor, de ofício jornalista, consagrou em seus pronunciamentos oficiais o uso errado da palavra “penalizar” no sentido de punir, apenar, quando só poderia significar ter pena, ter dó. Nesse particular, o atual chefe do governo tem exagerado no fornecimento de tropeços na língua aprendida da mãe, que ele tanto venera. Um dia destes, perpetrou: “a gente tem que ser gentis”. Poder-se-ia dizer que poderia ter sido pior se ele tivesse dito: “a gente temos que ser gentil”. E deve ter pensado nisso o professor Pasquale Cipro Neto ao registrar o vernáculo rotineiro dos incontáveis pronunciamentos públicos de Luiz Inácio Lula da Silva como “correto”. Não é, aliás, o único a fazê-lo. Num debate travado no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, um professor da USP, rebatendo uma brincadeira que o autor destas linhas fez com a mania do presidente de flexionar advérbios – usando palavras inexistentes como “menas” –, argumentou que o Conde (promovendo o pobre visconde a um grau maior de nobreza) Almeida Garrett já o fazia. Não restou a este polemista outro recurso além do de garantir que não foi nos textos de Garrett ou de qualquer outro clássico da língua que Sua Excelência se inspirou para criar seus “neologismos”. Sendo monoglota, o atual presidente da República, contudo, nos tem poupado pelo menos do vexame que muitos de seus antecessores nos impingiam falando línguas estrangeiras. Embora seja um escritor de recursos para lá de razoáveis em português, José Sarney produziu pérolas inesquecíveis em seu “portunhol” capenga – dialeto inexistente ao qual o citado Fernando Collor deu contribuições inestimáveis, como o célebre duela a quien duela. E mesmo o fazendo por falta de instrução adequada, Lula pelo menos não Continente abril 2005
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LITERATURA
Luís Vaz de Camões, 1524/1580 (datas aproximadas), poeta português
Até os mais recalcitrantes nativistas haverão de reconhecer que, imposto à Colônia ou não, o idioma que se fala do Oiapoque ao Chuí é o mesmo com que se conversa em Lisboa ou Luanda – aquele que o soldado caolho Luís de Camões inventou na epopéia Os Lusíadas
repete aqueles espetáculos de “caipira complexo de inferioridade explícito” de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, que adorava exibir seus dotes em inglês e, principalmente, em francês, mesmo não tendo o português muito castiço para se expressar com correção. A tal da língua brasileira – A citação supra de Mário de Andrade vem a calhar, pois ele é uma espécie de padroeiro de uma tal de “língua brasileira”, outro modismo universitário e manifestação da segunda doença de que a “última flor do Lácio” tem sido acometida em nossos dias: a descaracterização. O autor de Macunaíma assinou obras de grande relevo na literatura brasileira, mas não conseguiu fixar a grafia peculiar com que tentou diferenciar os lusófonos americanos dos europeus e quiçá africanos. Igual empreitada tentou um gênio do cinema, o baiano Glauber Rocha, e igual insucesso amargou. Pelo simples motivo de que aqui, em Portugal, Angola, Cabo Verde, Moçambique, Goa ou Macau, fala-se um só idioma, que descende do galaico-português. De fato, nem sempre foi assim. Sabe-se que na época dos bandeirantes, o que se mais falava no país era a chamada “língua geral”, que misturava português com o tupi-guarani dos moradores originais destes nossos rincões tropicais. A língua da metrópole tornou-se nacional por obra e força da mentalidade tirânica do Marquês de Pombal. Mas até os mais recalcitrantes nativistas haverão de reconhecer que, imposto à Colônia ou não, o idioma que se fala do Oiapoque ao Chuí é o mesmo com que se conversa em Lisboa ou Luanda – aquele que o soldado caolho Luís de Camões inventou na epopéia Os Lusíadas. Continente abril 2005
O populismo elitista de esquerda – Há ainda uma terceira doença, esta talvez a mais grave de todas, a ameaçar o débil organismo de nossa língua culta e linda. É o populismo elitista de esquerda que assola a Universidade brasileira e já ganha foros de legitimidade acadêmica: a teoria da inexistência do erro e a contestação armada dos cânones gramaticais. Será conveniente dissecar a expressão acima usada. Populismo, por quê? Porque pretende dar às formas populares coloquiais de uso comum da língua poderes para predominar sobre as formas cultas, acusadas de elitistas e excludentes. Mas elitista como? Sim, porque o ensino dos cânones gramaticais é a única forma possível de permitir alguém dominá-lo e só assim ter acesso ao amplo e plural universo da língua escrita e impressa. O populismo de quem acusa o cânone de impedir o acesso do pobre ao poder de comunicação dado pela língua é que é excludente, pois nega ao mais humilde a porta de entrada de tesouros de rica beleza encastelados nas bibliotecas. A teoria absurda da inexistência do erro gramatical não apenas dificulta a comunicação pela implantação da algaravia, ou seja, a anarquia total dos significados dados às palavras e locuções, ela também inutiliza a fortuna artística e cultural e o cabedal de conhecimentos produzidos em obediência aos cânones da gramática. O tônico para debelar os efeitos debilitantes desses três males é um só: a boa língua materna a serviço da melhor literatura. Para essa guerra insana ainda podemos convocar poetas como Maria Carpi, Mário Chamie, Ferreira Gullar e Alberto da Cunha Melo e prosadores como Sinval Medina, Deonísio da Silva, Moacir Japiassu e Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque. E estamos conversados. •
POESIA
Três poemas de Hugo Mujica NO ESCURO
EN LO OSCURO
Brisa, e ondeiam as árvores,
Brisa, y ondean los árboles,
o olor da lima diz a lima em meio à escuridão
el olor del tilo dice al tilo en medio de lo oscuro
Os que foram já regressaram, dormem.
Los que fueron ya regresaron, duermen.
Na noite, Solitário, o que nasce fala, o que vai morrendo escuta.
En la noche, Solitario, lo que nace habla, lo que va muriendo escucha.
REVELAÇÃO
REVELACIÓN
Noite sem céu e o mais alto é o nascer da chuva.
Noche sin cielo y lo más alto es el nacer de la lluvia.
Sem um antes nem um depois, em seu puro agora
Sin un antes ni un después, en su puro ahora
cai a chuva;
cae la lluvia;
cai sobre o mundo e algo, algo outro que a dúvida ou a certeza transparece em suas águas.
cae sobre el mundo y algo, algo otro que la duda o la certeza se transparenta sobre sus aguas.
POÉTICA
POÉTICA
Um relâmpago, na noite que dilata, ilumina seu próprio apagar-se.
Un relámpago, en la noche que dilata, alumbra su mismo apagarse.
Hugo Muijca é escritor, ensaísta e poeta. Nasceu em Buenos Aires, em 1942. Publicou, entre outras obras, Sed Adentro, Noche Abierta e Para Albergar una Ausência. Continente abril 2005
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PROSA
Mare nostrum Cíntia Moscovich
Á
rvore, placa, cavalo, carro. Placa, ponte, carro, cavalo, vaca. Montanha, água, caminhão, carro, carro, carro. E a paisagem, para ela que vinha no banco de trás, enchia as pupilas duma vontade de abreviar a massa de tempo, aquele agora que nunca e nunca era depois, que só vinha para aqueles que iam lá adiante, que mesmo todos se adiantavam ao carro do pai. A menina atrasada de espera, tantos meses querendo e pedindo – queria porque queria tomar banho de mar, a tia havia dado um planonda e a recomendação pegue jacaré e divirta-se, a família só esteve na praia quando ela era menorzinha e queriam que ela pegasse jacaré, onde, debaixo do chuveiro? O pai achou graça da impertinência da filha, que era a única, xingou a tia com aquelas idéias de planonda e jacarés, periga a menina morrer afogada, mas também, poxa vida, a pobrezinha fica o tempo amuada no apartamento, quem sabe não era até bom sair? Fez e refez Continente abril 2005
as contas, queimou pestana, consultou o chefe e decidiu que era justo que a família passasse uns dias na praia. E aquele agora constante, a prisão no banco de trás, tivessem ido a pé já se teria chegado, bocejos, fila de carros e mais o pedágio e mais o pai pedindo um troco para a mãe, e, susto, o caminhão passando no costado direito da estrada, uma fumaceira e pneus guinchando, e o pai que ergueu a mão fechada no ar e esbravejou, filho-damãe. Todos eram filhos da mãe, a menina já esgotada, sem ter se conformado ainda que, para a grande surpresa, é necessário haver uma sucessão de coisas que, em passo de monotonia, se repetem. Até que enfim, ali, à direita – e era como se o pai, em seu anúncio, tivesse feito o milagre – estava o mar. O mar, e na surpresa, o mar era uma eternidade, alongando sua lâmina feito uma grande asa de vidro azulada. O pai falou, satisfeito, mare nostrum, e ela, sem entender o latim de ginásio, sabia que o pai lhe dava uma liberdade.
PROSA
Outra espera agora, falta muito para nossa casa? Mar, mar, mar, carro, carro, bicicletas, placa, bem-vindo, cidade. Quando desceram em frente à casa de aluguel, a mãe retardou-se, malas, sacolas, fazer arrumação, preparar o almoço. O pai teve piedade: come-se milho na praia, tem a melancia que a gente trouxe, pega a planonda, vamos. Guarda-sol, cadeiras. Caminhando na areia quente, os pés se enterrando na fofura morna, a menina ia com uma gorda camada de hipoglós a melecar o nariz sardento, agarrada à planonda de isopor, uma alegria nela inteira, viria na onda até a beirinha, até a beirinha, flutuando de voar na crista da água, não era difícil, foi o que imaginou, só se prender na borda da prancha. O pai cavou a areia com a haste do guarda-sol – com um buraco desses, pode-se chegar na China, exclamouse –, os gomos cheios de peixinhos, algas e estrelas-do-mar apararam a luminosidade de quase meio-dia, a mãe abriu as cadeiras de plástico, o pai olhou para um lado, para o outro, para a filha e disse: vai, o que é que está esperando? A menina olhou para um lado, olhou para o outro, olhou para o mar – sentiu um receio, que nem sabia direito que era receio nem de que se receava: mais tarde ia para a água, tinha fome, queria comer primeiro. O pai e a mãe se entreolharam de surpresa frustrada e, quase ao mesmo tempo, sentaram nas cadeirinhas, espalhando areia com a sola dos pés. Uma carrocinha passou, milho verde; o vendedor tirou do panelão fervente três espigas, granadura carnosa, carreiras simétricas de dentes amarelos, acomodou-as na palha verde, jogou sal por cima, um filete de margarina derretida, quase líquida de calor. Uma delícia, disse o pai; uma delícia, disse a mãe; uma delícia, concordou a menina. Depois as talhadas de melancia, que vieram embaladas em sacos plásticos, o beijo aquoso e doce da polpa, os caroços em barulhinho contra os dentes, e a menina sentiu o sumo perfumado que nem era da fruta, era da própria alegria que se agitava inquieta contra o receio para ser de uma vez só alegria. Como se ainda não pudesse, a menina ficou ali sentada no chão, as pernas paralelas, os dedos dos pés espetados, vez que outra os calcanhares cavando pequenas valas das quais brotava uma umidade escura. De ansiedade, que ela nem sabia que era, alma pequena, roía as unhas até o sabugo, comia a pelezinha trincando os dentes com areia, ralando a língua de aspereza, até que a car-
ne doeu em dor aguda – até que o pai disse, agora, mocinha, agora que fez a digestão, vai pra água que eu fico cuidando daqui. A mocinha disse que não, que ia depois. O pai não gostou da resposta, aquilo não era coisa que se fizesse, aquela falação de quero praia, quero praia, e ela ficava ali, na areia, que nem uma bobalhona, com todo aquele marzão para aproveitar. Pois é, o marzão, ela pensou, e agora? Foi daí que a mãe pulou da cadeira, então vou eu, e numa arrancada já estava lá na beira da água, dando gritinhos e uns pulinhos meio desajeitados, anunciando que a água estava fria, como a água está fria, vocês não vêm? E o pai riu, um riso que a menina adorava, e o pai levantou da cadeira e correu com as pernas peludas, jogando areia para todos os lados, até naquelas moças deitadas nas toalhas coloridas, e, já pisando na espuminha da beira, estendeu os braços e pegou as mãos da mãe e abraçou-a dum jeito de marido. E os dois avançaram, simulando covardia, e a água estourava neles, e a mãe, de repente desgarrada, se enfiou debaixo de uma onda, o torso bonito feito o de um peixe, e saiu do outro lado luzindo de molhada e de sal, e as ondas batendo nas pernas do pai, o corpo forte feito um casco de navio. A menina gostou, porque os dois estavam se divertindo, porque era ela, no final das contas, que havia trazido os pais para a praia. O pai saiu do mar e veio até ela, o corpo pingando água, os cabelos já duros de sal, e estendeu a mão, os dedos como âncoras que prendiam as coisas em seus lugares, e disse, vem, filhinha, vem, amada do pai. A menina fez um esforço por dentro, se ergueu de um pulo, apanhou a planonda, sacudiu a areia da bunda, estufou o peito que nem um nadador e foi caminhando com o pai em direção ao mar. De barriga na prancha – soube como se equilibrar sem o mínimo esforço –, passou zunindo pelos pais e foi até a beirinha, bem na beirinha, bateu bastante os pés para ir ainda um tico mais, ainda um pouco mais, dona da massa de água e de tempo, de um tempo que era só agora e que nem chegava a pedir um depois. Pai e mãe aplaudiram – e na volta às ondas, a menina encheu a concha de uma das mãos com água e bebeu um gole de mar, como quem chega ao destino depois de um deserto. Só assim, finalmente, ela pôde suportar o tamanho da liberdade. Só assim, depois de um deserto. • Continente abril 2005
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AGENDA
32 LIVROS
Um vôo mágico
Contos e política
Romance opõe tradição e modernidade numa África à procura de si mesma
As mazelas da vida política nacional são focalizadas por contistas de várias gerações
“Nu e cru, eis o facto: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado”. Assim começa o mais novo romance lançado no Brasil do escritor moçambicano (leia entrevista nesta edição) Mia Couto. Já conhecido dos leitores brasileiros por obras como Histórias Abensonhadas, Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, entre outros títulos, Couto reafirma aqui seu estilo criativo, renovador das letras em língua de Camões, além de unir magistralmente o local ao universal, juntando com artesanaria competente elementos das culturas européia e africana num universo mágico. O enredo trata de uma força de paz da ONU, após a guerra de independência moçambicana, cujos soldados começam misteriosamente a explodir. É romance poético e fantástico, traçando, sem panfletarismo, a trajetória de resistência de sua gente. Infelizmente, a editora (talvez por economia) prefere repetir a grafia do Português de Moçambique. (Homero Fonseca)
A idéia da coleção da Geração Editorial é interessantíssima: contar a história do nosso país pelos olhos de nossos ficcionistas. O primeiro volume – Fora da Ordem e do Progresso –, organizado por Luiz e Simone Ruffato, traz contos de 27 autores dos séculos 19 e 20, de contemporâneos como João Anzanello Carrascoza, Julio César Monteiro Martins e Luiz Fernando Emediato, a Bernardo Guimarães, Machado de Assis e Arthur de Azevedo. O tema política é abordado em várias facetas: dos conchavos parlamentares à corrupção, das guerras, revoluções e golpes de Estado às traições, torturas e execuções, das manipulações eleitorais a outras velhacarias. Os nomes, abordagens e estilos variam, da bem-humorada fábula “Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon”, de José Cândido de Carvalho, ao trágico “Execução”, de Dyonélio Machado; do cínico “Teoria do Medalhão”, de Machado, à pungente “Posição” (de tortura), de Julio César Martins, apresentando um painel dramático, caricatural, satírico, indignado, cético, poético, da construção dessa nação inconclusa chamada Brasil.
O Último Vôo do Flamingo, Mia Couto, Companhia das Letras, 226 páginas, R$ 36,00.
Fora da Ordem e do Progresso, Luiz e Simone Ruffato (org.), Geração Editorial, 400 páginas, R$ 48,00.
Graça breve
Questão de identidade Lições de mestre
Sérgio de Castro Pinto é poeta concluído. Mas foi construção lenta e pensada: cinco livros de poemas publicados em 27 anos, fora a participação em quase duas dezenas de antologias. Tempo em que foi apurando temas e estilo até chegar à concisão precisa de Zôo Imaginário, lançado este ano, com 20 poemas inéditos e outro tanto extraído dos livros anteriores. Todos ligados à fauna que povoa a imaginação infantil preservada no poeta-avô: girafa, leão, cigarra, andorinha, garça, zebra, coruja, araponga... Alcançando, em poemas curtíssimos, o casamento entre a precisão e a graça, como ressalta José Nêumanne na introdução.
Saberes Brasileiros, organizado por Geraldo Pieroni e Cláudio DeNipoti, seria apenas uma colcha de retalhos de artigos de oito estudiosos do Brasil, não tivesse como ponto de referência a questão da identidade nacional – tão negada, tão questionada, nunca solucionada. Baseado em trabalhos acadêmicos nas áreas da Antropologia, História, Sociologia, Filosofia e Psicanálise, o livro traz reflexões sobre assuntos tão diversos quanto imigração japonesa, deportação de mulheres portuguesas para o Brasil colonial, as utopias de Mário de Andrade e os diversos grupos políticos que disputavam espaço dentro do segundo governo Vargas.
Zôo Imaginário, Sérgio de Castro Pinto, Escrituras, 64 páginas, R$ 17,00.
Saberes Brasileiros, vários autores, Bertrand Brasil, 272 páginas, R$ 39,00.
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A historiografia nacional muito deve ao pesquisador pernambucano José Antônio Gonsalves de Melo, cujos estudos sobre o período de ocupação holandesa no Nordeste brasileiro são referência ineludível. Agora, a Editora da UFPE acaba de lançar o volume Da Inquisição ao Império, com organização e apresentação do professor Denis Bernardes, reunindo 10 artigos de Gonsalves de Melo, originalmente aparecidos em publicações dispersas e de há muito esgotadas. Entre eles, destacam-se “Três roteiros de penetração do território pernambucano” e “Por uma história do Império vista do Nordeste”. Da Inquisição ao Império, José Antônio Gonsalves de Melo, Editora UniversitáriaUFPE, 169 páginas, R$ 15,00.
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Intelectual na berlinda Jogos literários Por ter acesso a melhores fontes de informação, o intelectual tem a obrigação moral de se manifestar ante as injustiças e violências praticadas contra os mais fracos. Esta é a convicção de Edward W. Said, palestino exilado nos EUA. Em seis comunicações proferidas em 1993, no programa Conferências Reith, da BBC, Said utiliza os exemplos de pensadores como Gramsci, Sartre e Adorno, e de escritores como Flaubert, Joyce, Turguêniev e Virgínia Woolf, para reafirmar suas convicções. Said parte do pressuposto de que, apesar de todos os relativismos, certos princípios são universais e podem ser aplicados a quaisquer povos e em qualquer circunstância: a necessidade de paz e justiça, por exemplo. Para ele, intelectual não pode estar comprometido com a Universidade nem com o Estado, com uma ideologia e, muito menos, com uma religião. Ataca o nacionalismo – que quase sempre derrapa para a patriotada e o fanatismo – e defende o direito de errar e se corrigir. Por fim, combate o “profissionalismo”, que disfarça a falta de conhecimento geral e justifica oportunismos. (Marco Polo)
O escritor francês Georges Perec fazia parte do “Oulipo”, grupo de literatura experimental do qual fazia parte Italo Calvino. Sua proposta era criar regras que limitassem o exercício da escrita, desafiando o escritor a procurar soluções criativas. Perec chegou a compor um romance onde não aparecia a letra “e”, a mais comum da língua francesa. Nestas duas narrativas enfeixadas neste volume, o autor de A Vida – Modo de Usar, romance ensaístico considerado sua obraprima, exerce seu poder de engodo e ironia, numa série de jogos de espelhos que, inevitavelmente, nos remete a Borges. Em A Coleção Particular, um pintor retrata, numa tela, todos os quadros da coleção de um milionário, incluindo esta própria tela. Assim, dentro do quadro há outro quadro semelhante que contem outro quadro igual e assim por diante, numa perspectiva abismal. Viagem de Inverno conta a estória de um jovem que encontra o livro de um autor desconhecido, contemporâneo de Victor Hugo, onde estão os principais versos dos mais célebres poetas que viriam a seguir. Seriam todos eles, portanto, plagiadores de um gênio obscuro que leva seu descobridor a um triste final. (MP)
Representações do Intelectual, Edward W. Said, Companhia das Letras, 128 páginas, R$29,00.
A Coleção Particular, Georges Perec, Cosacnaify, 96 páginas, R$ 29,90.
Cumplicidade O intercâmbio de influências e enriquecimento intelectual mútuo, além de uma certa cumplicidade, são alguns dos pontos levantados pelo crítico, professor e jornalista Alexandre Figueirôa sobre o Cinema Novo e sua recepção na França, particularmente pelos intelectuais que gravitavam em torno do Cahiers du Cinema. Alexandre Figueirôa mostra que, assim como os críticos franceses legitimaram e difundiram as obras de Glauber Rocha e Cia., estes, por seu lado, se adequaram aos princípios defendidos por aqueles, de forma a terem uma receptividade positiva. Cinema Novo: A Onda do Jovem Cinema e sua Recepção na França, Alexandre Figueirôa, Papirus Editora, 252 páginas, R$ 37,50.
Kit delícia
Viagem ao Oriente
Galinha pode ser a mulher que faz sexo com todo mundo.Mamão pode ser o camarada meio abobalhado. Pamonha é o homem sem personalidade. Sapoti é a mulher morena. As relações entre linguagem, sexo e culinária são exploradas num dos livros mais deliciosos de Mário Souto Maior, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, Fundaj Alimentação e Folclore, relançado agora, pela Editora Massangana, juntamente com mais quatro títulos: Comes e Bebes do Nordeste, Dicionário Folclórico da Cachaça, Qual é a Sua Graça e Dicionário de Folclore para Estudantes. Coleção imperdível para quem se interessa pelo assunto.
A lenda do Pavão Misterioso é um dos temas mais fascinantes da literatura de cordel nordestina, em sua vertente fantástica. É a partir dela que o escritor e teatrólogo Ronaldo Correia Brito, com particular competência, desenvolve e escreve este livro infantojuvenil homônimo. Mantendo as influências árabes e ibéricas que permeiam a cultura popular nordestina, e um certo clima de 1001 Noites, conta a estória de dois irmãos que, tristes com a morte dos pais, resolvem viajar pelo mundo. Nas longínquas terras do Oriente encontram prisioneira numa torre a mais bela mulher do planeta, por quem se apaixonam e a quem decidem libertar.
Kit com cinco livros, Mário Souto Maior, Editora Massangana, 1030 páginas, R$ 30,00.
O Pavão Misterioso, Ronaldo Correia Brito/Assis Lima, Cosacnaify, 72 páginas, R$ 29,00.
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LIVROS
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Com usura não vá ao túmulo de Pound "Com usura, pecado contra a natureza, sempre teu pão será rançosas côdeas sempre teu pão será de papel seco sem trigo da montanha, sem farinha forte" Ezra Pound (1885-1972) Trad. José Lino Grunewald
N
os fins da década de 60, perto da morte de Ezra Pound, eu sempre conversava com o grande historiador Amaro Quintas, nas tardes do escritório de advocacia dos poetas Carlos Moreira e Audálio Alves. Numa dessas suarentas tardes, não sei por quê, o assunto Pound entrou na berlinda e eu, sempre pretensioso, lamentava que um poeta que muito contribuiu para mudar a face da poesia ocidental aderira ao fascismo na Itália, e fizera na Rádio Roma centenas de transmissões, durante a 2ª Guerra, condenando o esforço de guerra dos Estados Unidos e o que considerava o domínio da economia do país pelos banqueiros judeus. Mas sua fixação filosófica ia mais longe: ele condenava veementemente a usura. Mas eu achava dura e insensível a decisão dos EUA, ao prendêlo, em 1945, de castigar um poeta que elevava a imagem de seu país, com sua internação num manicômio. (Não se apressem a rir, meus milhões de leitores, que todo poeta é doido eu concordo, mas só metaforicamente.) O velho historiador, respeitável representante da esquerda pernambucana, com sua opinião insuspeita, respondeu-me que aquela internação representou o enorme respeito do governo norte-americano pelo extraordinário poeta, pois o longo tempo de transmissões radiofônicas, em plena 2ª Guerra, contra os aliados e os bancos judeus, seria cominado como crime de alta traição, punido com a Continente abril 2005
pena de morte. O honrado mestre da história defendeu o grande inimigo do Norte, ficou com a verdade. Não se sabe se Pound foi especialmente influenciado em sua guerra poética contra a usura pelos princípios econômicos dos estatutos, em particular, do nazismo, mais especificamente seu Programa do Partido Nacional-Socialista. Está lá, no Art. 11: “Pedimos a supressão de todos os rendimentos adquiridos sem trabalho, a abolição das percentagens e de todos os juros”. O programa-estatuto do nazismo foi feito para boi dormir ou inglês ver, pois, segundo Pierre Dehillotte, autor do livro Gestapo, dele não tomaram conhecimento sequer os altos dirigentes do partido e, muito menos, Hitler. Quanto a isso, nada me admira, pois os partidos brasileiros fazem tábula rasa de seus estatutos, e só cuidam em elaborar planos eleitorais. Os livros sagrados também combatem os juros, como o Alcorão, que os chicoteia em três versículos (2:275; 276; e 3:130). Vejamos o versículo 3:130 – “Ó vós que credes, não vivais dos juros que vão dobrando a importância emprestada”. Na Bíblia, não procurei muito, mas achei, por acaso, no livro Provérbios, o versículo 28:8, que diz: “Quem multiplica suas riquezas com juros e usura acumula para quem se compadece dos fracos”. Bem, se as riquezas forem herdadas pelos filhos de um banqueiro ou de um especulador, eu duvido que eles se tornem umas Santas Teresas.
MARCO ZERO
No milênio de teocracia medieval, a usura estava proibida em toda a Europa. Eu gostaria de ter nascido nessas trevas, mas não o grande escritor Ernest Renan (27.02.1823/02.10.1892), autor da História das Origens do Cristianismo, de onde transcrevo esta declaração: “O terror funesto espalhado durante a Idade Média pelo pretenso crime de usura foi o obstáculo que se ergueu durante mais de dez séculos ao progresso da civilização.” Renan diz isso porque nunca precisou utilizar um cheque especial, que às vezes chega a quase 300% a.a. de juros. Salve a universidade medieval, que não fez da ascensão acadêmica uma feira de troca-troca, e salve uma economia atrasada em que não havia o intermediário do dinheiro, que hoje ganha mais do que aquele que o gerou. O capital financeiro é, para mim, o verdadeiro Armagedon. Não me lembro que outro grande poeta tenha elegido a usura, o juro, como tema, nem que ela tenha sido motivo para um grande pintor ou escultor, mas, para Pound, que uniu sua poesia coloquial à mais estreita rotina urbana, “ela oxida o cinzel/ ela enferruja o ofício e o artesão/ ela corrói o fio do tear.” Outro mestre da palavra, Gilberto Freyre, o mais paralelístico (ou poético) dos prosadores brasileiros, reconheceu como valor expressivo o que vem da realidade imediata, a que nos circunda, ao dizer: “Pobres dos poetas sem ouvidos para as vozes humildes; pobres dos poetas sem olhos para árvores que não sejam as clássicas; plantas que não sejam as ilustres; pássaros que não sejam sabiás.” A realidade da
desigualdade social, gerada em parte pela acumulação desenfreada do capital financeiro, via juros exorbitantes, não passou despercebida ao velho Ezra Pound. Ele fez seus versos mergulharem fundamente nesse pecado original do capitalismo. Neste março de 2005, em que escrevo estas maledicentes linhas, já foram divulgados pelos jornais os balanços da rede bancária no exercício de 2004. Nesse ano, três bancos ultrapassaram lucros superiores a R$ 3 bilhões: Banco do Brasil: R$ 3.024 bilhões, Bradesco: R$ 3.060 bilhões e Itaú: R$ 3.776 bilhões. Lucros auferidos por juros altíssimos, o abuso no número de tarifas e os títulos do governo. Não esquecer que o spread (diferença entre o que paga à captação e o que ganha em juros) bancário brasileiro é o maior do mundo. E ainda há pessoas inteligentes e que admiro que têm pena dos banquinhos, coitadinhos, por pagarem tantos impostos ao governo... Bem, eles são um mal necessário, uma doença crônica que poderia ser um rápido enfarte. São como aparelhos para respiração artificial, ruim com eles, pior sem eles. Já pensou? Alguém de honesta, mas rígida formação acadêmica, poderia achar difícil rimar poesia com juros. A ele eu diria que em arte o conteúdo é imprescindível, mas pouco importa do que trata, podendo ser uma cueca ou a Santíssima Trindade. A diferença específica entre um grande poema e um discurso de Maluf está na forma. Foi a forma como Ezra Pound tratou o tema usura (Cantos 45) que o fez destacar-se como um tema raro, inesperado, e não a significação da usura em si. Maldita a hora em que escolhi esse tema antipático para esta crônica. Meu contato mais próximo com um banco é aquele que me impõe a repartição ao depositar meu pobre salário numa conta bancária. • Continente abril 2005
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CINEMA
O incômodo foco no Brasil Vladimir Carvalho, um dos mais importantes documentaristas do país, ganha uma mostra retrospectiva que redimensiona o valor da sua obra Kleber Mendonça Filho
Cena de Conterrâneos Velhos de Guerra (1991), filme sobre a construção de Brasília
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kim Ir Sen/Divulgação
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CINEMA
C
onversar com Vladimir Carvalho, 70 anos completos em janeiro passado, é um pouco como ver um filme. Morando em Brasília desde 1969, ele mantém o sotaque paraibano não exatamente forte, mas absolutamente notável. Sua fala é pontuada por palavras que inspiram imagens, resultando numa espécie de telefonema sugestivamente visual. Em dois minutos, ele pula de uma imagem para outra, ora lembrando que seu avô fazia celas, que já pegou muitos trens na Estação Ferroviária construída pelos ingleses, no centro do Recife, ora afirmando que, no seu papel de documentarista, o Sertão mudou pouco em tanto tempo, “embora vaqueiros hoje andem de moto com boné de baseball”. Pessoalmente, Vladimir é um dínamo. Parece ter 15 anos a menos, é um dos personagens mais ativos do cinema brasileiro e consegue o curioso feito de ter duas identidades fortes, sem que uma sobreponha-se à outra. É paraibano e candango, numa mesma precisa medida. “Saí do Sertão seco e vim para um sertão mais molhado. Brasília é a ressonância do país, toda a nossa problemática foi transferida política e humanamente para a capital. Alguns dos problemas e paisagens que eu tinha em Itabaiana têm reflexos claros em Brasília, é muito familiar”. Na sua pessoa, esse equilíbrio vem de maneira paraibana no seu já comentado sotaque, de um certo jeito de se colocar, de uma bagagem de vida que parece existir estampada na sua cara, dos seus filmes. Como brasiliense, seu nome sugere ensino, militância e luta por cinema numa cidade que, nos últimos anos, tenta efetivar um ideal de pólo de produção cinematográfica. Vladimir Carvalho é o objeto de uma retrospectiva realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil neste mês de abril. Brasília e Rio de Janeiro irão receber a mostra Vladimir 70, até
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CINEMA Mila Petrillo/Divulgação
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Vladimir Carvalho prepara seu próximo projeto: O Engenho de Zé Lins, exploração afetiva da obra de José Lins do Rêgo
Em Conterrâneos Velhos de Guerra, Vladimir montou um relato sobre a construção de Brasília, num processo que levou centenas de vidas
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agora a mais abrangente revista da sua obra, marcada por um olhar ao mesmo tempo duro e carinhoso sobre a sociedade brasileira, suas injustiças, seus desníveis sociais, a má distribuição da renda, olhares sobre o nordeste e a ditadura. Serão apresentados seus cinco longas-metragens e 15 curtas e médias, entre eles, A Bolandeira (1968, curta) e os míticos O País de São Saruê (1971, longa) e Conterrâneos Velhos de Guerra (1990), longas. “Vou três ou quatro vezes por semana ao cinema, mas nunca fiz ficção. Sempre digo que a realidade tem todas as tensões dramáticas de que o cinema precisa. Veja aquele filme Ônibus 174, um documentário que é um filme de ficção tenebroso”, diz. A revisão da obra de Vladimir Carvalho revela um acervo rico para o Brasil se ver, feita por um cineasta que tem olhar claramente político ao longo da sua trajetória. Em Conterrâneos Velhos de Guerra, Vladimir montou um relato de três horas de duração sobre, literalmente, os alicerces do Brasil, enfocando os milhares de trabalhadores que construíram Brasília como um Eldorado, brasileiros de todos os cantos, num processo que levou centenas de vidas. Em Barra 68 – Sem Perder a Ternura (2000), seu longa mais recente, há enfoque pessoal sobre um outro início de Brasília a partir do trabalho de Darcy Ribeiro na UNB – Universidade de Brasília, e a repressão do período via-ocupação do campus. Há um relato apaixonado sobre um tempo e uma causa, num painel que parece esboçar memórias sentimentais. Sua ênfase no ouvir o trabalhador é força motriz para a sua obra. Num país onde versões oficiais atropelavam qualquer noção diferente de verdade, o cinema documental de Vladimir chegou, freqüentemente, para incomodar. No último Festival de Cinema de Brasília, em novembro do ano passado, foi apresentada, por exemplo, a cópia restaurada de O País de São Saruê. A projeção pareceu fechar mais um ciclo que marcou a trajetória do filme, ele próprio uma obra que enfoca de forma crítica ciclos sociais, econômicos e políticos que não parecem trazer grandes mudanças para o homem do Sertão nordestino, exceto na sua relação com a própria natureza.
CINEMA Sobre os ciclos do filme em si, Vladimir o viu ser proibido pela censura no mesmo Festival de Brasília, mas em 1971. Em 1979, no período da Anistia, São Saruê voltou ao Cine Brasília e ao Festival liberado sem cortes, firmando-se como um dos grandes documentários do cinema brasileiro, junto a Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho. Nesse filme, Vladimir foi assistente de produção na chamada “primeira fase” (em 1964) e produtor da “segunda fase”, duas metades de uma mesma história interrompida pelo governo militar, e que estreou em 1984. Eixo comum dos dois filmes? A fala livre do povo oprimido. “Outro dia li uma entrevista do Jean-Claude Bernadette publicada, se não me engano, no Diario de Pernambuco, onde ele declara guerra ao “filme de entrevista”. Eu já havia abordado esse tema anos atrás, embora tenha sido chamado à atenção pelo crítico Luiz Carlos Merten, uma vez que meus próprios filmes são muito construídos a partir da fala! Talvez a fala no documentário brasileiro tenha sido dominada pelo formato inquestionável de Eduardo Coutinho, mas tenho visto exemplos de uma linguagem mais ensaística, como esse filme recente do Sérgio Rezende, O Cinema é Meu Jardim. Que maravilha de filme!”, exclama. Isso leva Vladimir a falar sobre o formato digital, que ele considera extraordinário para o documentário. “Embora a transferência para a película ainda seja exorbitante, a produção em si é mais fácil. Com uma câmera pequena, o entrevistado esquece que está num filme. Ainda não me contento em ter o filme apenas em película, talvez daqui a algum tempo, sim. Como ocorreu com o Barra 68, luto para passar para 35mm, embora essa experiência que vi do Rezende, todo digital, já tenha me animado mais. De qualquer forma, não tenho qualquer relação de nostalgia, purismo com a película. Trabalho com qualquer mídia que me der o meu documentário”. Walter Carvalho/Divulgação
Cena de O País de São Saruê (1970): enfoque crítico nos ciclos sociais, econômicos e políticos
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CINEMA Num país onde versões oficiais atropelavam qualquer noção diferente de verdade, o cinema documental de Vladimir chegou, frequentemente, para incomodar
E como Vladimir vê o documentário brasileiro, hoje? “Muita gente acredita que o documentário brasileiro melhorou, não sei se é bem assim. Acho que o público para o documentário melhorou através de cursos e escolas de cinema, pela presença forte de documentários na televisão, um público mais preparado para ver um cinema menos raso.” Ele já se sentiu impertinente, fazendo o cinema de documentário? “Não sou aquele tipo polêmico, mas sou capaz de tomar uma oportunidade apresentada, ser sincero ao que penso. Observo que, por exemplo, um Michael Moore traz um certo narcisismo e um desejo de levar vantagem que pode prejudicar o todo, ao meu ver. De qualquer maneira, talvez seja impossível não ser impertinente, trabalhando com o documentário, tão umbilicalmente ligado à verdade, num país tão cheio de contradições como o nosso”. Da obra de Vladimir, há uma ligação com algo de umbilical via-imagens, talvez algo de primal. Seu irmão Walter, 57 anos, que trilhou um outro caminho dentro do cinema, o de fotógrafo, prestou-lhe uma bela homenagem. Fotografou com enorme reverência uma bolandeira, o engenho movido à tração animal, no filme Abril Despedaçado (2002), de Walter Salles, filme que rendeu a Walter alguns dos prêmios mais importantes da sua carreira. A citação carinhosa rendeu imagens poderosas de um engenho que foi registrado por Vladimir já no seu ocaso (seriam trocados por motores de explosão), num comentário sobre um progresso que pouco interfere na realidade social de uma região. Curiosamente, a palavra “engenho” continua nos planos de Vladimir, muito embora trazendo agora duplo significado. Engenho poderia tanto ser o lugar, como também a astúcia, pois ele trabalha atualmente num próximo documentário, O Engenho de Zé Lins, exploração de um nome relevante da sua infância, Zé Lins do Rêgo. “Tem sido difícil trabalhar com material de arquivo para esse filme, Zé Lins não foi um homem muito filmado. Quando acho uma foto que seja, essa imagem para mim vira um verdadeiro monumento”. •
Cena do curta-metragem Vestibular 70 (1970)
Vladimir 70 – 19 a 24 de abril de 2005, no Cinema do Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília (SCES Trecho 2, Conjunto 22, Brasília-DF. Tel: 61.310 7087) – 26 de abril a 1º de maio de 2005, no Cinema do Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro (Rua 1º de março, 66. Centro. Tel: 21.3808 2020)
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Programação LONGAS-METRAGENS* •Casa de Areia (Hors Concours-Abertura) (RJ) * Até o fechamento desta edição a lista dos longas-metragens da mostra competitiva ainda não havia sido divulgada.
CURTAS 16mm
Fernanda Montenegro, Seu Jorge e Fernanda Torres no filme Casa de Areia
Filmes e casa cheia O Cine PE Festival do Audiovisual chega a sua nona edição, consolidado por um público fiel e uma programação variada Com nove anos de existência, muitos filmes exibidos e um público que sempre lota o Teatro Guararapes, o Cine PE Festival do Audiovisual é um dos festivais de cinema mais movimentados do circuito nacional. Entre os dias 13 e 19 de abril, o Recife vai parar para assistir à nova safra de vídeos digitais, longas e curtas-metragens, produzidos no Brasil. Este ano, a programação começa um pouco mais cedo, às 18h30, com a mostra de vídeos, e deve terminar por volta da meia noite. O filme de ficção Casa de Areia, de Andrucha Waddington e Elena Soares, com Fernanda Montenegro, Seu Jorge, Fernanda Torres e Stenio Garcia, será o hors concours da abertura, no dia 13. Durante a semana, serão exibidos oito filmes por noite, sendo três vídeos, quatro curtas e um longa-metragem. No fim de semana, a programação ganha mais um longa e deve entrar pela madrugada. Até o fechamento desta edição, já estavam definidos os 12 vídeos digitais produzidos no Estado, e os 32 curtas, dos quais oito são pernambucanos, que participarão da
mostra competitiva. Já a lista dos longasmetragens ainda não tinha sido definida. Além da exibição de filmes, a grade do Cine PE conta com algumas oficinas. Com o objetivo de reciclar a mão-de-obra, serão oferecidas a de Trilha Sonora, Direção de Arte e Montagem. No último dia do festival, será exibido o filme sobre o cotidiano da comunidade de Brasília Teimosa, produzido dentro da Oficina Comunitária de Cinema Documentário, realizada pelo quarto ano. Em março, 18 jovens da própria comunidade aprenderam, com o jornalista e cineasta Evaldo Morcazel, como fazer um curta-metragem documentário. O tema dessa edição será Música e Cinema. Magia e Paixão, destacando, segundo os organizadores, as duas mais fortes vocações culturais de Pernambuco. Por curiosidade, a 13a edição do Abril pro Rock, maior festival de música independente do país (ver programação pág.79), vai estar acontecendo, simultaneamente, nos dias 15,16 e 17, no pavilhão do Centro de Convenções, a poucos metros do Teatro Guararapes.
Cine PE Festival do Audiovisual – 13 a 19 de abril - Ingressos: R$ 6,00 (inteira) R$ 3,00 (meia) Mais Informações: (81) 3343.5066 – www.cine-pe.com.br
•Alma (PB) •Amigo Secreto (SP) •Noturno (SP) •O Cão Sedento (PB) •O Homem da Mata (PE) •O Problema (RJ) •Quando Jorge Vai à Guerra (PR) CURTAS 35mm •A Hora do Galo (RJ) •A Idade do Homem (MG) •Arigó (RJ) •A Velha e o Mar (CE) •Cada um com seus Problemas (CE) •Cavalhada de Pirenópolis (RJ) •Cinco Naipes (RS) •Da Janela do meu Quarto (PE) •Entre Paredes (PE) •Êxito D’ Rua (PE) •Fuloresta do Samba (PE) •Gasolina Comum (SP) •História Sem Fim do Rio Paraguai (RJ) •Jorjão (RJ) •Mamãe Tá na Geladeira (DF) •O Mundo é uma Cabeça (PE) •O Último Raio de Sol (DF) •O Vento (MG) •O Xadrez das Cores (RJ) •Primeiros Passos (SP) •Véio (PE) •Vinil Verde (PE) •Visita Íntima (PR) •Zen ou Não Zen (ES) •29 Polegadas (BA) VÍDEOS DIGITAIS PERNAMBUCANOS •A Música Armorial: do Experimento à Fase Arraial •Um Ponto no Tempo •Gangarras do Bandeira •O Lago •Cinema Sozinho •Biodiversidade •Contratempo •Vende-se Este Rio •Mais um Domingo •Tropeiros •Doces Apegos •Homine: Costurando Identidades Urbanas
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AGENDA
Divulgação
CINEMA
TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Eduardo Ortega
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Tàpies e Farnese: duas opções A optical art é uma expressão-limite da pintura reduzida à sua materialidade perceptiva
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m salas contíguas do Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, estão expostas as obras do catalão Antoni Tàpies e do mineiro-carioca Farnese de Andrade. Ver, numa mesma visita, as duas exposições, foi para mim uma experiência particularmente estimulante porque me levou a estabelecer entre os dois artistas relações que, noutras circunstâncias, eu jamais teria estabelecido. De fato, o artista espanhol é sobretudo um pintor e as obras suas ali expostas são preponderantemente pinturas, gravuras e desenhos, enquanto as do brasileiro – que foi também desenhista – são assemblages construídas com os mais diversos elementos, desde bonecos e ex-votos até gamelas e oratórios. Dois caminhos totalmente diferentes, mas – e aqui o vínculo entre eles – respondendo a uma mesma questão: como fazer arte sem se valer das técnicas artísticas usuais, nem da que se funda Continente abril 2005
na figura pintada nem da que se apóia na construção intelectual abstrata? Não sei se Farnese se colocou claramente esta questão; Tàpies seguramente sim, e por isso mesmo deu a resposta que deu. De qualquer modo, Farnese opta por um tipo de expressão que dispensa toda sabedoria pictórica que assimilara e lança mão de formas do cotidiano por isso mesmo já impregnadas de sentido, para com elas inventar um mundo de evocação e fantasia. Esta é uma escolha exatamente contrária à que fez Antoni Tàpies. O artista catalão optou pela exclusão da fantasia, do imaginário, e o mais curioso é que, antes de fazer esta opção, a sua pintura era extraordinariamente rica de imaginação e fantasia surreal, como se vê pelo único quadro dessa fase, exposto ali no CCBB. Esse quadro nos mostra um pintor capaz de inventar um mundo de imagens oní-
TRADUZIR-SE copyright@vegap, Madrid, 2004 - Outivis,SP,Brasil, 2004
ricas, criadas por exímio desenhista e um colorista fascinante. Se se atenta para esta fase de Tàpies, sua obra posterior – sejam os desenhos, as gravuras e os quadros de grande formato – surge como uma espécie de descida ao rés de pintura, a uma linguagem rude, rasa, de garatujas, sinais, manchas e pasta, sem abertura a qualquer transcendência. Vi os trabalhos de Tàpies antes de ver os de Farnese, mas, já nesta primeira vista, percebi – sobretudo diante das grandes telas – que o pintor espanhol trava ali uma luta para incutir significação a um fazer que é mero gesto a partir de nada. Para chegar aonde? Sem dúvida, uma pintura que se nega a representar a realidade em qualquer nível e, por isso, limita-se a ser uma linguagem de sinais. Sinais sem significado a priori, que não se constituem em sistema semântico e que buscam captar, na sua ausência de significado, o Significado. E, assim, cada quadro é o esboço de uma linguagem que ainda não existe e cujo sentido reside na nossa necessidade de lhe atribuir significação. É uma pintura sem espiritualidade (no sentido laico), sem relação com a personalidade consciente do pintor nem com sua história pessoal, passada ou presente. Como a expressão do corpo que nada sabe de si. Porque assim é essa escrita feita garatujas e manchas, que não se constitui em discurso, que não se refere à realidade exterior a ela: vestígios da gesticulação do corpo-corpo. Isto nos quadros posteriores aos anos 70, porque os da fase anterior (corda presa na tela, toalha pendente de um suporte) são apenas a expressão de uma espécie de desprezo dos valores estéticos, espécie de não-arte – que usa a tela para não pintar, para negá-la –
como a dizer: “tudo é expressão e basta”. Só que não basta, mesmo quando se escolhe , para demonstrar seu desprezo à “arte burguesa”, tudo aquilo que, por definição, expressa apenas banalidade. Nos dois quadros mais recentes, Tàpies parece tentar reconstruir a linguagem figurativa, ainda que sem qualquer concessão ao “artístico”. Farnese, ao contrário, se vale do universo cultural – e freqüentemente religioso, de religiosidade erotizada – para expressar-se. Lança mão de coisas do cotidiano – como armários, caixas, oratórios, gamelas – violenta-lhes a função habitual e, com isso, provoca um curto-circuito, um espanto que nos arrasta ao seu mundo mágico, habitado por bonecas mutiladas, descascadas que, ainda assim, nos espiam com seus olhos azuis, do fundo da perdida infância ou da morte. São duas atitudes em face da arte e ambas voltadas para reinventá-la, já que, aparentemente, no entender dos dois artistas, o caminho que ela percorreu se esgotara. Tàpies assumiu uma visão crítica, desmistificadora do mundo imaginário (“irreal”) e reduziu a linguagem pictórica aos seus elementos últimos (ou primeiros), isto é, ao rastro do pincel movido pelo gesto aleatório da mão. Não há na pintura de Tàpies nenhuma concessão à fantasia, devotado que está à materialidade da pintura: basta-lhe a expressão imanente a toda e qualquer forma e que não expressa senão a si mesma. Já a opção de Farnese, que também evita o “imaginário pintado”, é outra: ele o substitui pelo imaginário dos objetos e figuras, com a intenção de dessacralizá-los e dar vazão a seus mais secretos desejos, expressos com a irreverência dos dadaístas e surrealistas. • Continente abril 2005
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Abrindo as portas da leitura A designer gráfica Moema Cavalcanti faz da criação de capas de livros uma verdadeira arte Eduardo Cesar Maia
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o universo editorial, ninguém duvida de que uma capa bem-feita pode determinar o sucesso de um livro no mercado; assim como uma capa pouco cuidada pode espantar os leitores mais exigentes. Os profissionais responsáveis pela concepção e produção das capas, conhecidos como “capistas”, trabalham num campo em que técnica e arte se confundem: alguns, como a capista pernambucana Moema Cavalcanti, são considerados verdadeiros artistas. Numa época em que quase tudo relacionado às artes gráficas é criado e elaborado com auxílio de programas de computador, Moema Cavalcanti não abre mão, no momento da criação, da lapiseira e do lápis de cor, “É um momento tão singular e pessoal que eu não consigo usar a tela do computador como suporte”, diz a artista gráfica. Porém, num segundo momento, a interferência dos meios eletrônicos é fundamental: o processo de montagem, editoração eletrônica e finalização é todo feito com o apoio de softwares específicos. Moema conta com a ajuda de uma assistente para esse processo final, mas não deixa de supervisionar todas as etapas do trabalho, “embora me entenda razoavelmente com a máquina, não preciso usar meu tempo para fazer um trabalho, digamos, mecânico.”
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DESIGN Na etapa manual do seu trabalho, Moema utiliza materiais diversos, “Não há uma regra – pode ser um rabisco de lápis, um papel rasgado, uma sobreposição de papéis coloridos –, o importante para mim é colocar o layout no papel, antes de visualizar a capa na tela do computador”. Nascida no Recife, Moema Cavalcanti fez, além da faculdade de Pedagogia, o curso de Professorado de Desenho na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco. Também chegou a fazer teatro como atriz, cenógrafa e figu-
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rinista. Começou a se interessar por capas de livro ainda no Recife, manuseando os livros da biblioteca do pai, vendo o trabalho elaborado pelo Gráfico Amador e admirando as capas de Eugênio Hirsh para a Editora Civilização Brasileira. Em 1968, ela foi viver em São Paulo e começou a trabalhar na Editora Abril como assistente de arte das revistas técnicas – esse foi o passo fundamental para entrar no mundo dos livros, “Recebi um convite de um amigo e pensei: quem faz capas de revista também faz capa de livro”.
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Moema Cavalcanti: considerada uma das maiores
O belo trabalho de Moema Cavalcanti é a prova de que a criação de uma capa não é um simples processo técnico. Existe, primeiro, um processo de concepção e interpretação daquilo que cada livro representa; depois, é necessário transformar uma idéia abstrata numa forma concreta, que possa comunicar e, portanto, informar algo ao leitor que vai ter na capa o primeiro contato com a obra. A capa encerra, assim, duas funções fundamentais: uma complementar – artística –, que é uma tradução pessoal da obra; e uma mercadológica, que surge da necessidade de seduzir o leitor (leia-se, consumidor). Perguntada sobre suas preferências dentro do universo das capas e dos capistas, ela respondeu: “Monteiro Lobato, entre 1920 e 1927, na Editora Monteiro Lobato e na Companhia Editora Nacional, reinventou a capa de livro. Deixou de lado as capas clássicas e comportadas, bem no estilo francês, e colocou nelas ilustrações e letterings modernos e inusitados, com o firme propósito de seduzir o leitor”. Outra admiração é por Eugênio Hirsh, “Hirsh revolucionou a arte de fazer capa de livro. Devo dizer que ele encontrou um editor corajoso e de bom gosto que aceitou suas ‘loucuras’ e pagou para ver: Ênio Silveira da Editora Civilização Brasileira”. Sobre o panorama atual, ela enfatiza: “Hoje temos grandes designers gráficos trabalhando com capas de livro: Victor Burton, João Baptista da Costa Aguiar, Evelyn Grumach e Ettore Bottini, para citar os da minha geração; e os mais jovens: Raul Loureiro, Paula Astiz, Silvia Ribeiro...” Para quem se interessa profissionalmente em ser capista, a artista gráfica dá alguns conselhos (e faz uma ressalva): “Ouvir palestras de profissionais da área é bom; fazer cursos, freqüentar seminários é muito importante; ler (e ver) livros sobre design gráfico é muito bom também; gostar de ler, então, é ótimo! Mas nada como ter o hábito de entrar em todas as livrarias que estiverem à sua frente, manusear os livros, tocar, mexer, sentir o cheiro, acariciar... Enfim, ser um apaixonado pelo objeto ‘livro’. Ter sempre um livro ao alcance da mão. Ah! E não ligar muito para dinheiro, é absolutamente fundamental!”. •
“O importante para mim é colocar o layout no papel antes de visualizar a capa na tela do computador”
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Sem Títulos, Alexandre Nóbrega, técnica mista sobre papel
Os caminhos da contenção Exposição conjunta de Alexandre Nóbrega e Manoel Veiga mostra a busca pelo despojamento através de posturas diferentes
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s artistas plásticos pernambucanos Alexandre Nóbrega e Manoel Veiga expõem juntos na Galeria Virgílio, de São Paulo, na mostra Os Olhos Vão Palmilhando Esse Caminho Estreito, que deverá depois viajar para Belo Horizonte e Recife. Veiga apresenta pinturas de grandes formatos, em acrílica sobre tela; Nóbrega mostra grandes desenhos em técnica mista: betume, carvão, esmalte, crayon, cal, acrílica e nanquim sobre papel. O trabalho dos dois apresentam como que pontos extremos antagônicos de uma busca similar pelo despojamento. Veiga parte de sua experiência como estudante de ciênContinente abril 2005
cias para realizar suas obras, conforme explica: “As pinturas são realizadas no chão, sem nenhuma movimentação do suporte. O processo se inicia com a preparação de uma mistura cuidadosa de várias cores (sendo algumas compostas de pigmentos leves e outras de pigmentos pesados), mistura única e muito fluida, inicialmente de uma só cor complexa. Ataco em seguida a tela com um pincel que mal a toca, em movimentos decididos e que darão a intensidade estrutural ao trabalho”. E continua: “Passo então a acompanhar a secagem da tinta, interferindo em determinados momentos e determi-
ARTES nadas regiões da tela, apenas pulverizando água para formar finas camadas em determinadas regiões da tela. Criam-se gradientes de concentração e os pigmentos ainda flutuantes começam a migrar, os mais leves, sendo mais rápidos, separam-se e todo um fluxo se estabelece, gradações tonais se formam, cores se separam, num processo muito lento e delicado. Parte do gesto inaugural, permanece, parte se perde, sendo obliterada e modificada por outro movimento resultante de processos físicos naturais, embora sempre induzidos por mim: difusão, atração gravitacional e capilaridade. Tendo um controle ‘probabilístico’, maior ou menor, dependendo do momento, trabalho junto com a natureza, fazendo uso de seus movimentos. Trata-se de agir ‘com’ a natureza, não buscando o domínio sobre ela, mas uma integração”. O resultado são formas abstratas fluidas, em que o determinismo do gestual dialoga com a casualidade, num misto de contenção e elegância. Já Nóbrega trabalha no exercício de total controle sobre o desenho, aguçando o diálogo entre o preto e o branco. Como diz o crítico Agnaldo Farias: “A vasta brancura de papel é a arena da expressão. Cada marca, risco ou borrão, indicará uma possibilidade enunciada pelo artista
dentre as infinitas que o branco, quando imaculado, sugere. Daí que enfrentar o papel exige mais que desejo, estratégia, força e fôlego. O sulco aberto pelo lápis ou a estrada pelo pincel encharcado de preto, como é corrente nesses desenhos de Nóbrega, deverão ser enfáticos, sólidos o suficiente para não serem recobertos e destruídos pelas intermitentes vagas de pureza. E se vários deles são impuros, sujos, é porque o branco, ao enfrentar o preto e vice-e-versa, ao fazê-lo submergir, modifica-se, acinzentado-se”. E conclui: “Falar da relação que nesses desenhos de Alexandre Nóbrega o branco estabelece com o preto equivale a falar de um duelo, o mesmo duelo que a luz estabelece com a sombra, o som com o silêncio, a ação com a letargia, enfim, o duelo que cada um de nós estabelece entre a clausura à qual estamos condenados e o nosso desejo de marcar nossa presença no mundo”. • Os Olhos Vão Palmilhando Esse Caminho Estreito, com Alexandre Nóbrega e Manoel Veiga. Galeria Virgílio. Rua Virgílio de Carvalho Pinto, 426 Pinheiros, São Paulo. SP. Fone (11) 3062 9446 Abertura: 13 de abril, às 19h. Até 5 de maio www.espacovirgilio.com.br
Sem Título, Manoel Veiga, acrílica sobre tela Continente abril 2005
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Brasil negro Salvador sedia Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, evento inédito no Brasil É num cenário envolto em história que o Brasil acolhe a primeira Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea. O evento acontece em Salvador e traça um panorama da atual produção de artistas africanos e afro-descendentes, que buscam, através de suas obras, dialogar com a diáspora africana. Totalmente gratuito, o evento inclui artes plásticas, instalações, fotografia e uma mostra do maior festival de cinema africano, o Festival Pan-Africano do Cinema e da Televisão de Ouagadougou, e será realizada no Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM e na Sala Walter da Silveira (Biblioteca Pública do Estado – Barris). A escolha do MAM para receber a Mostra tem um significado especial: foi no local onde o Museu está instalado que o primeiro navio negreiro aportou no Brasil, passo importante para a construção da miscigenada cultura brasileira. A Mostra conta ainda com a inauguração da Coluna Laser III – Mar, potente raio laser apontado para a entrada da Baía de Todos os Santos que sinaliza, como um antifarol - nas palavras do artista Daniel Lima –, o trajeto dos navios negreiros; e debates, denominados de Encontros, com nomes como José Eduardo Agualusa , João Reis, Armindo Bião, Koyo Kouoh, Laënnec Hurbon e Moussa Sene Absa, nos quais serão discutidos assuntos como Filosofia, Artes Visuais, Cinema, Memória e Escravidão.
Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea. Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM/Solar do Unhão (Av. Contorno s/n, Solar do Unhão, Comércio, Salvador/BA – Tel: 71. 3329-0660) e na Sala Walter da Silveira (Biblioteca Pública do Estado, Rua General Labatut, 27, Barris, Salvador/BA.Tel: 71. 3116-8100). Até 17 de abril.
Figurações Mais um recorte da coleção de Marcantônio Vilaça está exposto na galeria que leva seu nome, no Instituto Cultural Bandepe. Figurações reúne pinturas, fotografias, gravuras, objetos e esculturas de artistas como Adriana Varejão, Cindy Sherman, Emmanuel Nassar, Ernesto Neto, Paul McCarthy, Gilvan Samico e Takashi Murakami, que, de modos diversos, afirmam a importância renovada que a representação possui na produção visual contemporânea. Moacir dos Anjos, curador da mostra, avalia que as obras subvertem os contornos exteriores da realidade sensível e alteram os sentidos imediatos que possuem imagens conhecidas. “Fazem simbolicamente emergir o que, talvez por familiaridade excessiva, poucas vezes é efetivamente visto”.
Painting With Three Balls, de Donald Baechler. À direita, Carneirinho com Estandarte, de Afrain Almeida
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Figurações. Galeria Marcantônio Vilaça, Instituto Cultural Bandepe (Av. Rio Branco, 23, 2º andar, Bairro do Recife, Recife/PE. Tel: 81. 32241110). Visitação de terça a domingo, das 14 às 20h, até 03 de julho. Informações: www.culturalbandepe.com
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100 anos de Relatividade Albert Einstein no ano em que publicou seu primeiro artigo sobre a Teoria da Relatividade
Em 1905, com apenas 26 anos, Albert Einstein publicou um artigo em que divulgava, pela primeira vez, a Teoria da Relatividade Marcelo Gleiser
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ste é o ano internacional da Física, designação recebida pela Unesco. No mundo inteiro, dezenas de conferências, centenas de palestras e artigos estão celebrando nosso conhecimento da Natureza e das leis que regem seu comportamento. A escolha não é acidental: 1905 foi o ano em que Albert Einstein, então com apenas 26 anos e trabalhando em um escritório de patentes em Berna, na Suíça, publicou três artigos revolucionários. Cada um deles seria suficiente para garantir a celebridade de seu autor. O fato de Einstein ter escrito os três sozinho, é prova irrevogável de seu gênio. Portanto, este ano celebramos não só as descobertas da Física em geral, mas, também, este cientista que revolucionou nossa visão do espaço, tempo e matéria. Todo mundo já ouviu falar da Teoria da Relatividade, ou da fórmula E=mc2 que, aliás, não aparece no primeiro dos artigos publicados por Einstein sobre a Teoria. Compreender o seu significado, porém, é uma outra estória. Antes de explorarmos a Teoria da Relatividade, gostaria de resumir os resultados dos outros dois artigos de 1905. O primeiro deles trata do chamado Efeito Fotoelétrico, que revela a misteriosa natureza da luz. Desde o século 19, cientistas sabiam que a luz é capaz de eletrizar uma chapa metálica: quando um feixe luminoso atinge uma placa de cobre eletricamente neutra, ela passa a ter uma carga elétrica
diferente de zero. O efeito, observado no laboratório, era um enigma; nem todos os tipos de luz funcionavam, apenas aqueles com os menores comprimentos de onda, principalmente o violeta e o ultravioleta. (Lembre-sse que a luz pode ser considerada como uma onda e, como tal, tem um determinado comprimento de onda, a distância entre duas cristas consecutivas, como o fole de uma sanfona. Das cores do arco-ííris, a vermelha tem o maior comprimento de onda, enquanto que a violeta tem o menor.) Einstein sabia que a energia de uma onda eletromagnética feito a luz é inversamente proporcional ao seu comprimento de onda; a cor violeta é mais energética do que a vermelha. Ele propôs que a luz fosse tratada não como onda, mas como partícula, que mais tarde foi chamada de fóton. Quanto mais energético o fóton, mais energética sua colisão com os elétrons do metal. Os fótons violeta eram capazes de arrancar elétrons da superfície, criando assim uma carga positiva no metal. O efeito foi confirmado e Einstein recebeu o Prêmio Nobel em 1921. Ele nunca recebeu o Nobel pela Teoria da Relatividade. O segundo artigo, de 1905, trata do Movimento Browniano, cujo nome é devido ao botânico inglês Robert Brown, que observou que grãos de pólen sobre água e outros líquidos movem-sse em ziguezague como se tivessem sua própria energia. Brown chegou a propor que Continente abril 2005
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ESPECIAL o movimento tinha uma conexão com a vida. Einstein mostrou que o movimento se dá devido a colisões entre os grãos de pólen e as moléculas do líquido, estabelecendo assim a existência de moléculas e, por conseqüência, de átomos. Finalmente, a Teoria da Relatividade de 1905, a teoria especial. Outra teoria foi proposta em 1915, a teoria geral da relatividade, que trata da força gravitacional. A teoria especial é a que ganha o refrão popular “tudo é relativo”. Na verdade, a teoria é justamente sobre o contrário, sobre o que é absoluto. Einstein construiu a teoria baseado em dois princípios que falam explicitamente de coisas que não mudam. Primeiro, que as leis da física são as mesmas para observadores em movimento relativo com velocidade constante. Ou seja, se você fizer um experimento em um carro a 60km/h e eu fizer o mesmo experimento na calçada, devemos obter resultados idênticos. Segundo, e este é o princípio mais estranho, a velocidade da luz é sempre a mesma, independente do movimento de sua fonte. Por exemplo, se você passa de carro e eu estou na calçada e você acende uma lanterna, eu e você veremos a luz saindo com a mesma velocidade, 300 mil quilômetros por segundo (no espaço vazio). Isto é muito contra intuitivo; se você jogasse uma bola do seu carro a 20km/h na direção de seu movimento, eu veria a bola movendo-sse a 20+60 = 80km/h. Mas a luz é diferente. Nada pode viajar mais rápido; a velocidade da luz é a velocidade com que a informação se propaga. Caso algo pudesse viajar mais rápido, seria possível voltar ao passado, violando a causalidade. O efeito não pode proceder a causa.
A Teoria estabelece um código entre observadores com movimento relativo de modo que possam comparar os resultados de suas medidas sem conflito. Isso porque fenômenos podem de fato parecer diferentes para observadores em movimento relativo. O exemplo mais famoso é o da simultaneidade. Dois eventos são simultâneos quando ocorrem ao mesmo tempo. Einstein mostrou que, devido à constância da velocidade da luz, o que é simultâneo para um observador pode não ser para outro. Por exemplo, imagine um observador em um trem e outro em uma plataforma. Quando o trem passa pela plataforma é atingido por dois raios, um em cada extremidade. O observador na plataforma vê os raios ao mesmo tempo e diz que os eventos foram simultâneos. O do trem vê o que caiu na frente antes, já que a luz teve de viajar menos tempo para chegar até ele. Simultaneidade é relativa e, portanto, nossa percepção do tempo também. Não vemos isso no dia-aa-ddia porque, a menos que os movimentos tenham velocidades comparáveis à da luz, as diferenças são minúsculas. Einstein nos forçou a repensar a estrutura do espaço e do tempo, e a interação da luz com a matéria. Seu legado continua absolutamente vivo, usado todos os dias em laboratórios e centros de pesquisa em todo o mundo. Vivemos, essencialmente, em uma era einsteniana. A ciência que veio após Einstein, como a descoberta da expansão do universo ou do mundo das partículas elementares da matéria, só pode existir devido às suas contribuições. A ciência de Einstein prova que nada é tão maravilhoso que não possa ser verdade. Contanto, claro, que sejam respeitadas as leis da Natureza. •
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O pensamento de Deus A passagem dos 100 anos da Relatividade, neste que foi batizado como o Ano Mundial da Física, é uma oportunidade para se refletir sobre a tangência, nem sempre nítida, entre ciência e filosofia Fábio Lucas
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que têm em comum a energia nuclear e a hidráulica de Arquimedes, o cálculo de Newton e as leis de Kepler? É o conhecimento abstrato, que está na base da pesquisa científica, do aprendizado escolar e do desenvolvimento cognitivo. O pensamento abstrato, por sua vez, está no legado dos grandes sistemas filosóficos, cujo esforço não era outro senão o mesmo tão caro à ciência: a fuga do mundo das impressões e das sensações em direção ao encontro, cara a cara, com a realidade, numa árdua escalada – a da objetividade. A abstração é o imperativo da ciência por excelência, segundo Gaston Bachelard, filósofo francês para quem a Teoria da Relatividade instaurou um novo espírito científico, marcado pela variedade de pontos de vista e pela atitude de abertura perante a possibilidade do diferente e do novo. Karl Popper, outro famoso epistemólogo, tam-
bém considerava o pai da Relatividade, Albert Einstein, como o modelo de cientista. A passagem dos 100 anos da Relatividade, neste que foi batizado como o Ano Mundial da Física, é uma oportunidade para se refletir sobre a tangência, nem sempre nítida, entre ciência e filosofia. Até porque, como lembra o brasileiro Mário Bunge, a história da física está entrelaçada à da filosofia: os filósofos sempre se colocaram questões físicas e os físicos, questões filosóficas. Mas será que comemoramos em 2005 um século de vitória do espírito de ciência sobre o não-científico, como queria Bachelard? Ou a persistência de visões de mundo antigas, de idéias e comportamentos refratários ao progresso tecnológico revela que a filosofia científica, na qual a Relatividade se insere – ou inaugura – terá que enfrentar uma estrada interminável de séculos e obstáculos pela frente? Continente abril 2005
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Michio Kaku diz que Einstein provou que o tempo muda de velocidade. Para John D. Norton (à direita), a Relatividade é a melhor resposta para antigas questões filosóficas
Para o professor do Departamento de Física Experimental da USP, Airton Deppman, a mistura entre física e filosofia fica clara no caso da Relatividade, por conta da nova definição, trazida pela teoria, sobre o espaço e o tempo – conceitos que já haviam sido abordados por filósofos como Aristóteles, Descartes e Kant. “A Relatividade é a melhor resposta para antigas questões filosóficas”, argumenta por sua vez o professor de história e filosofia da ciência da Universidade de Pittsburgh, John D. Norton. O filósofo Kelley Ross, da Los Angeles Valley College, na Califórnia, acrescenta que Einstein pode ter oferecido opções de resposta para a antinomia do espaço, de Kant, mas pontua que “os físicos nem sempre estão familiarizados com os debates filosóficos tradicionais ou com os temas ontológicos envolvidos”. O professor do Instituto de Física da UFRGS, Carlos Alberto dos Santos, concorda com a separação: “Acho muito complicada essa tentativa de associar ou relacionar física e filosofia. Para compreender e utilizar qualquer conhecimento da física, é necessário o domínio de determinadas ferramentas (cálculo, habilidade experimental), além da capacidade intelectual para lidar com fatos novos. Na filosofia, basta a capacidade intelectual, o que não é simples como se imagina”. O novo paradigma relativístico influenciou, contudo, a natureza da matéria, conseqüentemente, o que se chamava de “filosofia natural”, observa o físico Ronald Continente abril 2005
Cintra Shellard, da PUC-RJ. Seu colega da UFRGS vislumbra agora uma interface entre ciência e filosofia, onde não se distingue uma da outra: “Se você toma a filosofia da ciência do ponto de vista de Kuhn, então a Relatividade desempenha um papel importantíssimo, pois foi ela que estabeleceu a quebra de paradigma da física clássica”. O professor Michio Kaku, da Universidade de Nova York, autor de alguns best-sellers de divulgação científica como Hiperespaço, compara o antigo mundo de Newton com o tablado de Shakespeare: “Ambos acreditavam que o palco da vida era estático, uniforme e imutável, e o tempo batia uniformemente nesse palco”, diz ele. “Einstein provou que o tempo se assemelha mais a um rio, aumentando ou diminuindo de velocidade em sua jornada entre estrelas e galáxias. Além disso, quanto mais rápido se vai, mais o espaço se contrai, e a massa se torna mais pesada”. Porém, isto não significa que o novo conhecimento deva obrigatoriamente alterar a maneira de vivenciar, ou mesmo, de enxergar o real. “O papel primordial da ciência não é mudar o mundo, mas compreendê-lo à luz da razão e da lógica”, salienta Deppman. Assim, de acordo com ele, a Teoria da Relatividade cumpriu perfeitamente sua função científica, pois permitiu entender fenômenos impossíveis de se compreender até então, pela física clássica. O filósofo americano John Norton acrescenta que a Relatividade mudou, sim, a natureza da teoria
científica, além do modo de se pensar a física, com a popularização dos “experimentos de pensamento”. Outra mudança efetuada por Einstein foi a quebra do modelo filosófico da indução, de acordo com o físico Carlos Alberto dos Santos. “A ciência não evolui necessariamente da experiência para a formulação teórica, como defendiam os filósofos. As principais contribuições de Einstein surgiram de análises que ele fez das consistências internas das teorias vigentes. Muito depois é que resultados experimentais mostraram que ele estava certo”, defende Santos. Uma mudança de percepção mais ampla, contudo, é notória, se levarmos em conta – com todos os senões necessários – a emergência de uma cultura de massa relacionada ao progresso científico, um fenômeno que foi fortalecido justamente no primeiro século de conhecimento da Relatividade. Colaborou para isto a estranheza gerada pela divergência na medição do tempo com o aumento da velocidade, a sugestão de outras dimensões no universo que não as habituais, e a descoberta de algo impossível de ver, dando um toque bizarro e fantástico ao mundo conhecido: os buracos negros. Faz parte da cultura científica tanto uma espécie de culto aos avanços teóricos e tecnológicos, quanto a demonização do que é tomado como conquista. O professor Airton Deppman reconhece que a forma como a mídia e a ficção científica se apropriaram da Teoria da Relati-
vidade e a divulgaram junto ao público leigo “transformou o modo como a sociedade moderna encara a ciência e os cientistas”. Assim, apesar da afirmação acima sobre o papel essencialmente descritivo da ciência, o físico termina admitindo aquilo que filósofos como Popper e Bachelard sustentavam: que “conceitos profundamente arraigados em nossas mentes podem acabar sendo modificados pelo desenvolvimento científico”. A Relatividade, inclusive, pode ser refutada, ao menos em parte. É o que faz o físico português João Magueijo, autor de Mais Rápido que a Velocidade da Luz, onde contradiz um dos pilares da teoria relativística. Mesmo assim, em entrevista para o site frontwheeldrive.com, em abril de 2003, Magueijo afirmou a necessidade de se manter no eixo histórico da pesquisa científica tradicional. “Fora dele, nos sentimos perdidos, e temos que voltar”, disse, referindo-sse à sua polêmica teoria sobre a variabilidade da velocidade da luz. Para Magueijo, a velocidade da luz no início do universo teria sido muito mais rápida do que conhecemos hoje. Segundo o físico português, sua proposta resolveria melhor alguns problemas cuja solução a Relatividade não dá conta, e depende de teorias auxiliares, como a da inflação do universo. A heresia é tão indispensável para a ciência quanto o erro. E como os “deuses” da ciência são de carne e osso, a física de Einstein é um ótimo exemplo de como a teoria pode se retificar sem que a fé no projeto científico seja abalada. •
Einstein se perguntava, se o Velho, como ele chamava Deus, teria alguma escolha ao criar o universo
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Relatividade, filosofia e fé Sem Platão nem Wittgenstein, o cientista vê o que quiser. É aí que a religião o consola mais do que o poderia a filosofia
A beleza do que existe seria, para Einstein, razão suficiente para descartar o acaso como causa de nossa existência
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alvez a atitude religiosa seja uma das coisas que mais separam os cientistas dos filósofos. Afinal, a matematização do universo não é tão surpreendente quanto a “feliz coincidência” que parte dos objetos para a sua representação matemática, na expressão de Bachelard. A reverência do cientista e a do homem de fé expressam o mesmo espanto, em línguas diferentes. Entre a matemática e o silêncio, a fé se esgueira, na invasão do espírito humano possível de ser causada, seja pela abstração máxima, seja pela mínima elaboração mental da experiência religiosa – um vazio pleno de luz, segundo os místicos. Enquanto do lado da filosofia haveria muito mais motivos para se descartar qualquer coincidência, pois, se a metafísica prescinde da ciência, os pós-m metafísicos tampouco se importam com as coincidências. Sem Platão nem Wittgenstein, o cientista vê o que quiser, no filamento de DNA ou em Órion. É aí que a fé o recruta, e a religião o consola – muito mais do que jamais o poderia a filosofia.
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A linhagem sagrada da ciência espelha uma inclinação à religiosidade que seria, à primeira vista, difícil de definir. O funcionário público Albert Einstein, maior ícone deste grupo, ao lado de Isaac Newton, não escapa dela. “Einstein foi um realista cognitivo e ontológico, indagando sobre o porquê das leis naturais serem como são, o que desperta um teísmo em vários cientistas”, diz o filósofo Kelley Ross. Algumas de suas citações mais famosas, de fato, contam com a palavra “Deus”, como aquela em que diz que “Ele” não joga dados – ou seja, que há uma explicação racional para qualquer movimento ou ente no universo. A beleza do que existe seria, para Einstein, razão suficiente para descartar o acaso como causa de nossa existência. Neste aspecto, apontou o físico Stephen W. Hawking, Einstein sucederia Laplace, na ambição de conhecer tudo, incluindo o passado e o futuro, como se ao ser humano fosse dado, eventualmente, ler o pensamento de Deus. Embora não haja conotação teológica nas suas
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Stephen W. Hawking e Newton: ambição do conhecer
teorias, como ressalta John Norton, ou o Deus einsteiniano esteja mais para um deus filosófico impessoal, como o de Espinosa, na opinião do filósofo americano Kelley Ross e do professor Michio Kaku. “Einstein se perguntava se o Velho – como ele chamava Deus – teria alguma escolha ao criar o universo. A meta de sua vida era ler a mente de Deus e descobrir uma equação que unificasse todo o conhecimento”, confirma Michio Kaku. À medida que avança a informação sobre a natureza, o certo é que perdemos a esperança de conhecer tudo, o que em si carrega um forte apelo filosófico. Há uma desesperança inerente ao conhecimento. A diminuição da importância do homem é apenas parte de um processo que ainda não se esgotou, segundo o físico Ronald Shellard: “Hoje quem não tem importância sequer é o homem, mas a matéria como nós a conhecemos. Grande parte do universo é feito de matéria e energia escura. Portanto, dizer que o homem é irrelevante, é irrelevante, uma vez que nosso mundo, entendendo aí até galáxias distantes, é irrelevante!”, pondera. Uma das influências da Relatividade sobre a cultura religiosa pode ter sido o alargamento da ingerência divina, sem a correlata diminuição do papel do homem em sua “obra”. Influência que pode ser atribuída a todo avanço científico, mas que no caso da Relatividade surge mais brilhante, provavelmente em virtude dos conceitos simples com que mexe. Seria tentador associar o grau de
conhecimento ao fervor da fé, e por isso vale o alerta de Airton Deppman: “A religiosidade das pessoas depende de vários fatores, e evolui à medida que a sociedade se desenvolve e amadurece. O conflito entre religiosidade e ciência é em grande parte ilusório. Claro que, à medida que a ciência explica fenômenos naturais cada vez mais profundos e ubíquos, sobra menos espaço para as religiões se aventurarem nesse terreno. O que acaba forçando algumas modificações, mas não é somente a ciência que provoca esse efeito.” Além disso, convém não esquecer os efeitos da Relatividade sobre a concepção do mundo conhecido. É relativística a noção contemporânea que produz quase todos os modelos para o Big Bang, a grande explosão que teria originado o universo há 13,7 bilhões de anos. “Foi uma mudança radical na Cosmogonia humana”, acredita o físico Ronald Shellard, pois o próprio Einstein partiu do pressuposto de um universo eterno, modificando as equações com a introdução da constante cosmológica, que considerou mais tarde como sua maior estupidez. Para o professor da PUC do Rio, “Einstein tinha uma profunda convicção sobre a compreensibilidade do universo, mas ao mesmo tempo uma noção aguda de nossas limitações humanas”. A fé na ciência, mesclada com a humildade, portanto, seria um dos principais legados filosóficos do pai da Relatividade. (F.L) • Continente abril 2005
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Einstein diante do lago Saranac, em Nova York
O “deus” Einstein A popularidade de Einstein como figura pública não tem nada a ver com o seu sucesso como cientista
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a história da ciência, os erros não são meros episódios descartáveis, e sim motores de novos conhecimentos. Nada ilustra melhor essa característica do progresso teórico de que a complementação de Newton por Einstein. O “endeusamento” de Einstein pela mídia não deve ofuscar, entretanto, seu mérito científico, como denunciava o físico brasileiro César Lattes. “As suas teorias são firmemente fundamentadas em provas: não acreditamos nelas porque estão na moda”, adverte o professor Norton, da Universidade de Pittsburgh. “Nem porque são belas, mas sim corretas”, emenda o físico Michio Kaku. “A popularidade de Einstein como figura pública não tem nada a ver com o seu sucesso como cientista. A relatividade especial permanece como base da física moderna, e a relatividade geral ainda é a melhor teoria que temos sobre gravitação. Quanto à popularidade, eu não saberia explicar”, afirma o filósofo John Norton. Michio Kaku chega a incluir Einstein numa lista de celebridades do último milênio. “Todo o conhecimento da física atual pode ser resumido em duas teorias”, diz ele, “a Relatividade, que explica o mundo do muito grande, e a Mecânica Quântica, que explica o mundo do muito pequeno. Einstein criou a primeira e é o padrinho da segunda, e gastou trinta anos de sua vida tentando reunilas numa teoria só.” O “popstar da ciência”, como o chama Ronald Shellard, da PUC do Rio, começou a ser forjado depois que a distorção da luz das estrelas foi comprovada por um
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experimento comandado por Eddington no Brasil e na África. Hoje a ampla maioria dos físicos o vê como um gigante, ao lado de Galileu, Newton e Maxwell, com a diferença de que Einstein conquistou a fama cedo, aos 25 anos, um feito sem equivalente na história, de acordo com Shellard. O gênio que não gostava de usar meias nem de pentear os cabelos ganhou o estigma de cientista esotérico. “Einstein preferiria a imagem de pacifista e socialista, mas não foi o que conseguiu”, analisa o filósofo Kelley Ross, por seu engajamento na produção da bomba atômica, entre outras coisas. “Seu apoio à candidatura de Henry Wallace para a presidência dos EUA, em 1948, revelou alguém sem nenhum discernimento político realista”, ironiza o professor Ross. Quanto mais se restringe à ciência, mais seu valor é intocável, entretanto. “Quem tiver o prazer de ler os artigos originais de Albert Einstein (recentemente traduzi um artigo de 1917, no qual ele antecipa a possibilidade teórica do laser, que veio a ser inventado nos anos 1960), logo perceberá sua genialidade”, atesta o professor Carlos Alberto dos Santos. Além disto, a fama também decorre da natureza dos problemas abordados pela Relatividade, na visão do físico da Universidade de Merlbourne, na Austrália, Ray Volkas. “O público se interessa por grandes questões como a expansão do universo”, diz Volkas, “e por isso se interessou pelo trabalho de Einstein. Mas se a sua teoria estivesse errada, ele não seria famoso, apesar de todo o carisma”, acredita o australiano. (F.L) •
O conhecimento absoluto de uma realidade relativa
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Ortega e Einstein
“A perspectiva é um dos componentes da realidade” Ortega y Gasset
Eduardo Cesar Maia
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o ano de 1923, o já amplamente reconhecido cientista Albert Einstein realizou uma série de conferências na Espanha. Durante essa passagem, sabe-se que manteve contato algumas vezes com o filósofo Ortega y Gasset o qual, num ensaio intitulado O Sentido Histórico da Teoria da Relatividade, que faz parte do compêndio O Tema do Nosso Tempo, buscou não já averiguar ou refutar a validez científica da Relatividade, mas, prescindindo de conceitos como verdade ou falsidade, situá-la dentro de uma perspectiva histórico-filosófica. Ortega começa por se perguntar em que contexto surgiu a Teoria da Relatividade. Nos últimos anos do século 19 havia arraigada na comunidade científica a crença de que as ferramentas teóricas para explicar qualquer fenômeno natural já estavam estabelecidas, restando aperfeiçoá-las. Este suporte teórico se baseava na Mecânica Clássica de Newton e na Teoria Eletromagnética de Maxwell. Por outro lado, desde Galileu já se discutia a relatividade do movimento e se sabia que cada objeto tem um sistema de referências próprio. O que Ortega queria mais intensamente sugerir é que a Relatividade era um passo que a Ciência tinha que dar – era algo que estava no ar e que Einstein, com seu gênio, conseguiu capturar. O filósofo espanhol argumentava que as idéias de Einstein convergiam com as suas próprias, especialmente com a doutrina que chamou de Perspectivista. Os dois sistemas de pensamento seriam fruto de um processo de desenvolvimento das idéias filosóficas e científicas e, ao mesmo tempo, a superação de tais idéias. A interpretação orteguiana da Teoria da Relatividade começa pela contraposição entre relativismo e relatividade: “para o velho relativismo, nosso conhecimento é relativo, porque o que aspiramos conhecer (a realidade tempo-espacial) é absoluto e não o conseguimos. Para a física de Einstein, nosso conhecimento é absoluto – a realidade é a relativa”. Já a física de Newton e Galileu, assentada em conceitos absolutos (a força centrífuga, por exemplo), acaba por ser relativa no que se refere à possibilidade do conhecimento. Quer dizer, o que é relativo para Einstein não deveria servir de arma ao relativismo filosófico, como muitos quiseram interpretar, “não obstante o seu relati-
vismo (a Teoria da Relatividade) consegue uma significação absoluta”. Ortega nega a relação que muitos pensadores estabeleceram entre Relatividade e subjetivismo filosófico. Não é o caso de considerar que “a verdade só é verdade para um determinado sujeito”, mas que, “a perspectiva é a ordem e a forma que a realidade toma para aquele que a contempla”. A busca racionalista por um espaço absoluto, ou como disse Newton, um sensorium Dei – uma perspectiva divina, alcançada apenas pela razão pura, independente dos sentidos individuais, é vista por Ortega como superada. Há, no argumento orteguiano, uma afirmação veemente da perspectiva individual como fonte de acesso ao real, mas sem o apelo ao velho subjetivismo e, muito menos, ao solipsismo. Há algo de absoluto em toda visão física do mundo após a Teoria da Relatividade. A matéria se comporta da mesma forma, seguindo leis semelhantes, em qualquer ponto do universo, a qualquer tempo – nenhum relativismo ou ceticismo pode pretender fazer da Relatividade um argumento de legitimação. Além de convergirem no âmbito científico, Perspectivismo e Relatividade acabam reverberando, dentro do sistema filosófico de Ortega, no campo da ética. Nas palavras do filósofo Pedro José Chamizo, “o descobrimento e a aceitação de que, além da que possuo, há uma gama de perspectivas possíveis que são tão válidas como a minha própria, tem uma conseqüência inevitável: a de aceitar que o outro tem um valor em si, enquanto sujeito de perspectivas, ainda que sua perspectiva não coincida em nenhum momento com a minha”. Todo indivíduo teria, então, a intransferível missão de ser portador único de um ponto de vista original do universo e de ser fiel a ele; por outro lado, a busca por um ponto de vista “superior” às perspectivas individuais, abstrato e normativo, é um ponto de vista cego, “que nada vê e que nem existe”. • Continente abril 2005
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
RV/AFP
A amarga doçura do chocolate "Os que consomem chocolate estão menos sujeitos a pequenos males que perturbam a felicidade da vida". Brillat-Savarin (A Fisiologia do Gosto)
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m dia, Quetzalcoatl, a “serpente emplumada”, subiu ao céu para ser a estrela mais brilhante – Vênus. Na terra era deus do ar, da água, da agricultura e da sabedoria. Ficou a lenda de que voltaria num “cunho” – que se dava a cada cinqüenta e dois anos, segundo o calendário que ele mesmo criou. A partir de então passaram os astecas a acender, no alto de Uixachtecatl, nesses anos, o “fogo novo” –, orando pela volta do seu deus que virou estrela. Eram, esses astecas, o povo mais civilizado deste lado do mundo. Construíam diques, aquedutos e estradas. Tinham organização militar bem desenvolvida. Dominavam técnicas avançadas de agricultura, irrigação, astronomia, comércio e metalurgia. Sabiam trabalhar ouro, prata e cobre. Apreciavam livros – escritos em nauatle, mistura de ideogramas com escrita fonética. E adoravam vários deuses – sobretudo Quetzalcoatl. Hernan Cortés chegou àquelas terras em 1519. Desembarcou preparado para as batalhas próprias de toda guerra de conquista. Só que, para sua surpresa, a resistência foi nenhuma – “não queira Deus que tenhamos que usar a força com esses índios que tão bem nos recebem”, disse Bernal Díaz del Castillo na sua Historia Verdadera de la Conquista de Nueva España. Não Continente abril 2005
sabiam aqueles espanhóis que 1519 era, precisamente, um daqueles anos de “cunho”. Sendo recebido Cortés como a própria reencarnação de Quetzalcoatl – que voltava com cavalos, armaduras e gentes de traços finos, tão diferentes deles próprios que tinham pele escura, cabelos curtos e rosto redondo. Cortés foi levado ao pico da montanha onde faziam aquele fogo. De lá pôde então contemplar, maravilhado, a grandiosidade da capital do Império asteca. Tenochtitlán tinha 250 mil habitantes – mais que Sevilha, Nápoles, Paris ou Constantinopla. Em seguida foi recebido, calorosamente, pelo próprio Imperador Montezuma, “em salão iluminado por tochas perfumadas de madeira que não provocavam fumaça; em mesa posta com toalhas e guardanapos brancos”, assim descreveu a cena Felipe Fernández-Armesto (Comida – Uma História). Na festa havia dança, música, incenso, flor e comida farta – galinha, peru, pombos, patos selvagens, coelhos, lebres, pássaros, perdizes, codornas, frutas, tortillas. E, também, uma bebida sagrada, servida fria e em taças de ouro, o mesmo ouro que decorava generosamente aquele palácio. Essa bebida era o xocoatl, ou cacauatl(água amarga), preparada com sementes do cacahuaquchtl – fruto que, segundo a tradição, Quetzalcoatl deixou com
SABORES PERNAMBUCANOS seu povo ao partir. Tinha poderes de salvar e ressuscitar. Era privilégio de poucos – sacerdotes (por ser fonte de sabedoria espiritual), guerreiros (por lhes conferir vigor no combate) e nobres (por ser afrodisíaca). Segundo o mesmo Bernal Díaz, que acompanhou Cortés nessa viagem, “Montezuma a tomava até 50 vezes por dia, antes de encontrar as esposas”. O fim dessa história é bem conhecido. Montezuma acabou vítima da sua lenda, a cidade destruída e os tesouros levados à Espanha – inclusive aquelas sementes sagradas que, no Velho Mundo, passaram a ser conhecidas como cacau. Seu nome científico, theobroma cacau, é homenagem a essas origens – posto ser theobroma, em grego, “alimento dos deuses”. Olmecas (200 a.C.), primeiros habitantes a ocupar a região do golfo do México, foram os primeiros a usar sementes de cacau. Para eles era apenas remédio, de curar quase tudo – dor, inchaço, queimadura, ferida e sobretudo tristeza. Pasta de cacau combatia dor de estômago e catarro. Misturada com ossos moídos de ancestrais, curava diarréia. A bebida era oferecida às vítimas antes de imoladas em rituais religiosos. Depois vieram os maias (séc. 4º), para quem aquele cacau era símbolo de fertilidade e vida. Está nos desenhos das paredes de templos e palácios da época. Com as sementes preparavam bebida com consistência de mel, espumosa, fermentada, amarga e condimentada com especiarias – pimenta, canela, noz-moscada. Era dada aos guerreiros, antes dos combates. Mais tarde vieram toltecas, incas e sobretudo astecas – que aperfeiçoaram a bebida, acrescentando baunilha, farinha de milho, corante, pimenta, mel e flores secas. Colocavam as sementes em recipiente de cerâmica, para que fossem secas em fogo ou ao sol. Depois as quebravam sobre duas pedras (metatos) e faziam uma farinha, exatamente como faziam pão. Essa farinha era então transferida para recipiente em forma de cuia “e molhada aos poucos com água, sempre adicionando aquela pimenta comprida (chilli)” – assim o botânico italiano Giorlamo Benzoni descreveu o processo, já no séc 16. Colombo foi o primeiro europeu a provar esse xocoatl, no Caribe (1502), em sua quarta e derradeira viagem. Não gostou. Ainda assim levou as sementes para a Espanha do Rei Fernando II, onde não fizeram sucesso. Cortés compreendeu melhor seu valor, espalhando plantações de cacau desde onde hoje é o México até Trinidad e Tobago. Voltou à Espanha só em 1528, já com sementes, ferramentas e receitas para seu preparo. Ao Rei garantindo que “uma taça dessa preciosa bebida permite que o homem caminhe durante dia inteiro, sem nenhum alimento”. Logo passaram a ser tão valiosas quanto ouro. Acabaram mesmo usadas como moeda – “amêndoas monetárias”, um “dinheiro abençoado que livra seus possuidores da avareza, já que não pode ser armazenado ou escondido”, assim disse o jesuíta Pedro Martyre de Angleria (Livro Primo Della Historia de L’Indie Ocidentali). Por essa época um escravo custava 100, serviços de prostituta 10, e um coelho quatro sementes. A fórmula
foi mantida em segredo, por muito tempo. Nos mosteiros, a bebida ganhou importância, especialmente, quando decidiu a Igreja que liquidum non frangit jejunium (o líquido não quebra o jejum). Sendo, aquele chocolate, alimento perfeito para os períodos de jejum. Principalmente quaresma. Nesses mosteiros abandonou a pimenta da receita original – ganhando açúcar, almíscar, urucum, canela, anis e âmbar cinzento. Passou a ser servida quente, em vez de fria, ficando muitíssimo mais saborosa. Acabou proibida, em 1650, pela Companhia de Jesus, porque “suas propriedades revigorantes deveriam ser obra de espíritos malignos” – segundo Thomas Cage (O Anglo-Americano, suas Viagens por Mar e Terra). Mas essa proibição durou pouco. À França chegou em 1615, na bagagem da princesa Anne – filha de Felipe II da Espanha, que ali foi para casar com Luís XIII. Todo fim de tarde havia, na corte, o chocolat du Roi. Consta até que o cardeal de Lyon, querendo agradar ao Rei, “conseguiu o segredo com um monge espanhol, para acalmar sua irritação, sua raiva e seu temperamento desagradável” –, segundo o historiador Bonaventure D’Argonne. Por esse tempo era ainda apenas bebida. Maria Tereza da Espanha, que casou com Luís XIV, chegou a confessar – “o chocolate e o rei são minhas únicas paixões”. Nessa ordem. Obedecendo a Luís XV, a marinha francesa levou aquelas sementes para o Haiti, formando grandes plantações de cacau. Era, nos palácios, luxo destinado só a nobres. Maria Antonieta chegou a criar o prestigioso cargo de “Chocolateiro da Rainha”. Depois acabou presa na Consiérge e morta no cadafalso, mas essa é outra história. Napoleão Bonaparte preferia chocolate ao café, como bebida matinal. O Marquês de Sade enlouqueceu os protagonistas de uma de suas novelas obscenas, misturando chocolate com um besouro (a cantárida). E a bebida ganhou o mundo. As primeiras casas de vender chocolate surgiram na Espanha, em fins do século 16. Essas casas compravam na fábrica pequenos tabletes secos de “essência de cacau” que, aquecidos, se transformavam em bebida. Virou moda tomar uma xícara, às tardes, acompanhada de picatoste (pão torrado molhado na bebida). Depois foi à Inglaterra – anunciada, pelo Public Advertiser, como “uma excelente bebida, das Índias Ocidentais, vendida em Queen’s Head, na Bishopsgate street”. Todas as grandes cidades européias passaram a ter dessas casas. Voltou às Américas só no princípio do século 18, por mãos de oficiais ingleses em serviço na colônia. Começou a ser vendida nas farmácias de Boston; e logo cairia, também ali, no gosto do povo. Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, chegou a dizer que “a superioridade do chocolate, para a saúde e a nutrição, terá logo a preferência sobre o chá e o café na América”. Sendo esse chocolate ainda usado, por essa época, apenas como bebida. E feito de maneira muito semelhante àquela usada pelos astecas. Os avanços na tecnologia foram surgindo e, com eles, um outro jeito de fazer chocolate. Em barra. Dubuisson (1732) inventou mesa de moagem em que os operários moíam Continente abril 2005
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SABORES PERNAMBUCANOS as sementes de pé – e não mais ajoelhados, em cima de uma pedra curva que lembrava o metate asteca. Depois veio máquina a vapor (1795), inventada por Joseph Fry (Inglaterra), que moía os grãos de cacau. Coenraad van Houten (1828), na Holanda, revolucionou a indústria do chocolate, ao extrair 50% da manteiga do cacau – deixando, como resultado, um pó muito fino. Houten também inventou o dutching – processo para tornar esse pó mais fácil de ser dissolvido com outros líquidos, ao beneficiálo com sais alcalinos. O chocolate passou a ser mais escuro e a ter gosto mais suave. Ghirardelli descobriu acidentalmente, na Califórnia (1885), um jeito de tirar quase completamente a gordura daquele pó. Quando, depois de prensar aquele cacau, deixou a pasta em saco pendurado ao relento. Encontrando, na manhã seguinte, o chão coberto de manteiga de cacau. Separada aquela manteiga, veio a idéia de combiná-la com uma mistura de açúcar e sementes moídas de cacau – no que resultou pasta muito fina, ideal para ser colocada em moldes. Na região amazônica o cacau já era encontrado desde fins do séc 17. Há inclusive registros de nativos que utilizavam esses frutos triturados e passados em peneira com água. Em 1678, uma Carta Régia determinou fossem formadas plantações de cacau, trazendo o francês Louis Frederic Warneaux as primeiras sementes para a Bahia. As invenções, na Europa, continuavam. Bozelli projetou máquina capaz de produzir mais que 300 kg de chocolate por dia. O químico suíço Henri Nestlé inventou um tipo de pó de leite evaporado que se misturava bem ao pó de cacau. O fabricante de velas Daniel Peter, que morava no mesmo quarteirão de Nestlé, ao saber da descoberta misturou leite evaporado àquele pó – assim nascendo um delicioso “leite achocolatado”. Logo depois Philippe Suchard acrescentou leite in natura, em maior quantidade, criando a primeira barra de “chocolate ao leite” – a Milka. Rodolphe Lindt construiu máquina que aquecia e mexia o chocolate, por 72 horas, tornando-o ainda mais maleável. Um chocolate que “derretia na boca”. Da Itália veio o Gianduia (mistura de chocolate com creme de avelã) e o Torrone (com nozes e frutas cristalizadas); e, da França, o praliné, chocolate crocante feito com nozes ou castanhas picadas – homenagem ao conde de Plessis-Plaslin, ministro de Luís XIV, que tinha o hábito de misturar esses ingredientes ao seu chocolate quente. Virou moda fazer, com chocolate, réplicas perfeitas de objetos. Inclusive aqueles ovos de ouro, cheios de pedras preciosas, que o joalheiro Carl Fabergé (1884) fazia, por encomenda do Czar Alexandre III, para a czarina Marie Feodorovna. Fabricantes italianos imaginaram fazer esses ovos de chocolate, recheados com bombons. Deu certo. Acabou convertido no próprio símbolo da Páscoa – o ovo da Páscoa. Também fizeram “trufas” (bolas de chocolate cobertas com pó de cacau), cópias daqueles cogumelos negros encontrados nas raízes dos carvalhos da região do Périgord. Jean Tobler, já no começo do século 20, criou a barra Toblerone – evocando, na forma, os Alpes suíços. Continente abril 2005
O formato se mantém, até hoje. Na Bélgica, Jean Neuhaus criou a “casca” de chocolate – resistente o bastante para comportar líquidos e cremes no seu interior. Nasciam os bombons recheados. Quase todos esses sobrenomes estão, ainda hoje, nas prateleiras de mercearias e delicatessens, em rótulos de chocolate. O mundo, afinal, se curvou àquela plantinha de Quetzacoatl. (continua) • AE/Divulgação
RECEITA: MOUSSE DE CHOCOLATE INGREDIENTES: 6 ovos inteiros, 7 colheres de sopa de açúcar, 7 colheres de sopa de chocolate em pó, 1 tablete de manteiga, 1 colher de sopa de whisky. PREPARO: A mousse é toda preparada no liquidificador. Mas, atenção, todos os ingredientes, quando colocados, devem ser muito bem batidos. Comece batendo, bastante, os ovos inteiros. Junte açúcar e bata mais ainda. Junte chocolate em pó, manteiga e whisky. Bata bem. Coloque para gelar 1 hora no congelador. Depois na geladeira.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
O dia em que Hitler nos atacou
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elembro tais fatos, pensando nos jovens de hoje: gente de 18, 20 anos que talvez não conheça os motivos reais por que o Brasil entrou na guerra contra Hitler. Tudo começou naquela terrível madrugada de agosto. Os primeiros pescadores que atracaram seus barcos no cais de Aracaju trouxeram a notícia: – Está dando lá na praia uma porção de coisas. Malas, caixões, fardos de xarope. Parece que afundou um navio. Outros barcos pesqueiros que arribavam do oceano traziam novas ainda mais apavorantes: o mar havia jogado dezenas de cadáveres na areia da praia. Que acontecera? Milhares de pessoas, habitantes da capital e dos povoados da beira do mar, correram para o local onde se amontoavam aqueles rostos sinistros.
As proporções exatas da tragédia só seriam reveladas três dias depois, quando a “Hora do Brasil” transmitiu o comunicado: “Pela primeira vez, embarcações brasileiras sofreram o ataque de submarinos do Eixo. O inominável atentado contra indefesas unidades da Marinha de um país pacífico, cuja vida se desenrola à margem e distante do teatro de guerra, foi praticado com desconhecimento dos mais elementares princípios de direito e de humanidade”. A tocaia dos submarinos de Hitler indignou o país inteiro. A guerra foi declarada. Mas os cinqüenta e poucos mortos que lá ficaram, esquecidos na deserta praia sergipana, não souberam disso nem do que se seguiu depois. Porque, para eles, tudo acabou na metade da noite de 15 de agosto de 1942, quando se abateu sobre todos o duplo silêncio da morte e do anonimato. •
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m 300 imagens, a Biblioteca Nacional da França e, em seguida, o Museu Martin-Gropius Baus narram o percurso de um dos inventores do fotojornalismo, o húngaro Robert Capa, pacifista que se especializou em coberturas de guerra, tornando-se mito por ter deixado à humanidade ícones de dor e esperança. Não apenas criou um estilo, mas uma profissão, fotografando cinco guerras: a guerra civil espanhola (1936-1939), a invasão japonesa na China (1938), a 2ª Guerra Mundial na Europa (1939-1945), a primeira guerra israelo-árabe (1948) e a guerra da Indochina (1954). Apresentado pela mídia desde 1938, como o maior fotógrafo de guerra do mundo, Capa nunca se acomodou, confirmando o título a cada nova reportagem, entre as quais as fotos do desembarque das tropas aliadas na Normandia, França, em 6 de junho de 1944, o Dia D. Fotografias que simbolizam a libertação do mundo da ameaça nazista. Mais do que retratar a guerra, o trabalho de Capa nunca foi neutro e passivo. Em suas primeiras grandes coberturas, empunhou sua câmera lado-a-lado a rifles e metralhadoras de soldados que combatiam o avanço do facismo no planeta. Assim partiu para denunciar o golpe de Franco na Espanha e a invasão do Japão à China, que representou a ascensão do Eixo na Ásia. Tais conflitos seriam a premissa da 2ª Guerra Mundial, também fotografada por Capa, apesar da proibição que os Estados Unidos
Fotos: Divulgação
Robert Capa por Ruth Orkin Continente abril março 2005 2005
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A guerra nos olhos da paz Exposição da obra do fotógrafo Robert Capa enseja reflexões sobre a ética das imagens no mundo da reprodutibilidade Camilo Soares, de Paris
Indochina, 1954: conflito visto de perto pelas lentes de Capa
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FOTOGRAFIA Capa não caiu no perigo anunciado por Walter Benjamin em relação à coisificação das imagens num mundo da reprodutibilidade, questão ainda mais presente hoje com a estetização da morte em cotidianos no mundo inteiro, onde cadáveres são apenas uma vazia e amorfa atração diária
Dia D, na Normandia: Capa estava no meio dos aliados
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lhe impuseram de não poder deixar seu território, pois ele era originário de um país ocupado. No entanto, apesar de vir de família judia, Capa nunca deixou que suas fotos tivessem um ar político ou propangadista: ele era, antes de tudo, contra a guerra. Não apenas fotografou, mas viveu a guerra, ao lado de soldados que perderam suas vidas pela insensatez dos homens. Capa não fotografava soldados, mas
num mundo da reprodutibilidade, questão ainda mais presente hoje com a estetização da morte em cotidianos no mundo inteiro, onde cadáveres são apenas uma vazia e amorfa atração diária. Henri Cartier-Bresson, colegafundador da mítica agência Magnum, dizia que, naquela época, quando estavam fazendo uma reportagem, não era em estética que pensavam, como hoje, mas na sinceridade das fotos.
jovens homens dentro de um contexto absurdo. Desenvolveu, assim, não apenas a técnica fotográfica, com suas imagens simples e bem próximas, mas apresentou um exemplo de ética em relação à criação e divulgação de imagens em meios de comunicação de massa. Não caiu no perigo anunciado por Walter Benjamin, em relação à coisificação das imagens
Mesmo no seu mais controversivo clichê, retratando o momento exato da morte de um combatente espanhol durante a Guerra Civil, a morte não é apresentada como espetáculo. Há uma dignidade nesse homem que encontra seu fim em nome de um ideal. Todas as teorias sobre a falsidade desta morte se esmorecem diante do percurso representado nessa exposição. Ele simplesmente não precisava disso.
Seguiu com fidelidade, até o fim, sua mais famosa máxima sobre a fotografia: “Se a foto saiu ruim, é porque não se estava perto o suficiente!”. Não fazia qualquer concessão em troca de sua segurança. Deveria estar dentro da ação, para sentir e poder retratála. Assim saltou de pára-quedas no meio da Alemanha nazista, numa ofensiva em que um terço dos homens encontrou a morte. A coragem e a simpatia de Capa era bem vista pelas tropas. Sua presença era considerada como um talismã, uma garantia de uma missão com sucesso. A força de suas imagens encontra razão no extremo senso de justiça e humanidade que guiava seus enquadramentos. Pouco mais de um mês, depois de sobreviver ao sangrento desembarque das tropas aliadas em terras francesas, ocupadas pelos alemães (fotos históricas que foram estragadas por um laboratório: apenas 11 dos 150 fotogramas se salvaram), ele fotografou a famosa cena de uma mulher de cabeça raspada molestada pela multidão, na cidade francesa de Chartres, por ter tido um filho com soldado alemão. A mulher é retratada como uma Joana d’Arc diante da intolerância (e hipocrisia) do povo. Seu olhar, apesar da origem judia, não esqueceu tampouco a penúria do povo alemão após a guerra (“Família alemã em meio a ruínas fumegantes”, 20 abril 1945). Trajetória coerente – Nascido em 22 de outubro de 1913, Endre Friedmann deixa a Hungria, em 1931, para estudar em Berlim, pois, com apenas 17 anos foi preso em seu país por participar de atividades hostis ao governo conservador de Miklós Horthy. Estuda jornalismo, que conciliaria seu amor pela política e pela literatura. Mas com a recessão, seus pais não podem mais pagar seus estudos e ele deixa a escola para obter um posto de assistente numa agência de fotojornalismo. Faz sua estréia em 1932, quando foi enviado para Conpenhague para fotografar Trotski no exílio – e que ali dava uma palestra sobre a Revolução Russa.
Pára-quedistas invadem a Alemanha nazista em 1945
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A polêmica foto do exato instante em que combatente espanhol é morto
Mas já em 1933, quando Hitler se torna chanceler, o jovem fotógrafo se sente triplamente inquieto, sendo imigrante, judeu e esquerdista. Então parte para Viena e depois Paris. Lá encontra o conterrâneo Kertész e outros fotógrafos como David “Chim” Seymour e Cartier-Bresson que o ajudam a encontrar trabalho. Com esses dois últimos, abrirá depois da 2ª Guerra a agência Magnum, famosa no mundo inteiro, pois os fotógrafos são donos de seus próprios negativos. Mas as fotos de Capa não foram sempre bem aceitas pela mídia. A modernidade de suas imagens não era bem vista pela grande imprensa, que preferia vistas abertas, mostrando uma manifestação em geral, às fotos de proximidade feitas por Capa. Passou a trabalhar para a imprensa alternativa e esquerdista. Em 1934, Endre, que era chamado de André, conhece Gerda Pohorylle, refugiada judia, alemã de origem polonesa, que seria seu grande amor. Tornou-se sua agente, e durante a crise e a dificuldade de vender as fotos, propôs aos redatores as fotos de um ilustre fotógrafo americano, “André Capa”, nome inspirado no do diretor americano de origem italiana, Frank Capra. A estratégia surtiu efeito. Quando a
própria Gerda começou a fotografar ao lado de Capa, refez a jogada: tornou-se Gerda Taro, pois a pronúncia lembrava Greta Garbo. Os dois passaram a assinar juntos as fotos, não importando quem realmente tinha captado a imagem. Assim, “Capa e Taro” tornou-se uma marca na cobertura da guerra civil espanhola, onde o casal usava seus aparelhos fotográficos, não apenas como instrumento de trabalho, mas como armas a fim de obter apoio internacional à causa republicana. Cobriram a guerra da despedida dos soldados e suas famílias ao front, ininterruptamente, até a morte de Taro, atropelada por um tanque em meio a uma feroz investida. Ela foi a primeira mulher fotógrafa morta em combate. Capa sentiu profundamente a perda da companheira, pensando seriamente em não voltar para a guerra. No entanto, foi para o Oriente, cobrir o que para muitos foi o front oriental da luta internacional contra o fascismo: o Japão, aliado da Alemanha, invadia a China. As fotos de grande força e plasticidade chamaram a atenção da grande mídia. De volta, retornou para a Espanha, para fazer os fotogramas que seriam publicados em oito páginas da prestigiosa revista inglesa Post, cuja cobertura saiu com um retra-
Henri Cartier-Bresson, colega-fundador da mítica agência Magnum dizia que, naquela época, quando estavam fazendo uma reportagem, não era em estética que pensavam, como hoje, mas na sinceridade das fotos Continente abril 2005
FOTOGRAFIA Seguiu com fidelidade até o fim sua mais famosa máxima sobre a fotografia: "Se a foto saiu ruim, é porque não se estava perto o suficiente!". Não fazia qualquer concessão em troca de sua segurança
to de Capa, tirado por Gerda Taro, com a chamada: “O maior fotógrafo de guerra do mundo”. Com a invasão de Paris, Capa se viu forçado a emigrar para Nova York. Após a declaração de guerra, ele é proibido de fotografar e de deixar o país, pois é originário de um país inimigo. Depois de muita luta, consegue uma credencial do exército americano e vai cobrir, entre outras, as operações na África do Norte, a liberação da Itália e o Dia D. Após a guerra, ele realiza diversos projetos pesssoais com amigos artistas e intectuais. Faz um livro de viagem sobre a Rússia com John Steinbeck. Fotografa diversos artistas, entre os quais as famosas fotos de Picasso em família.
Teve uma rápida passagem por Hollywood (dizia que nunca tinha visto lugar mais podre). Mesmo assim, fez fama: fala-se que Hitchcock teria escrito Janela Indiscreta inspirado no romance de Capa e Ingrid Bergman. Mas seu prestígio não impede que seu passaporte americano seja confiscado, em 1952, por vários meses, em razão de suas reportagens na imprensa esquerdista durante a Guerra Civil Espanhola. Mesmo assim, segue, em 1954 para a Indochina, a fim de cobrir para a Life a evacuação das tropas francesas, depois da derrota de Dien Bien Phu. Sempre ao lado dos soldados, morre ao pisar numa mina. Sua mãe não autoriza honrarias militares em seu enterro, sabendo que ele sempre detestou a guerra. • Acima, fachada do Museu MartinGropius Bau, em Berlim Ao lado, camponês siciliano indica rumo a soldado aliado, em 1943
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A música visível Yara Caznok fala sobre a dimensão visual da música, a partir das teorias da intercomunicação dos sentidos de Merleau-Ponty e da obra autoral do compositor húngaro György Liget André de Sena
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debate da união entre a audição e a visão é hoje um fato corriqueiro e está presente na produção artística de diferentes maneiras. Há obras que exigem do espectador uma totalidade perceptiva nunca antes ousada, tais como as performances, as instalações e os eventos multimídia que requerem, além da visão e da audição, a participação do tato, do olfato e, por vezes, do paladar. A esse tipo de arte não está reservado nenhum lugar no rol das classificações tradicionais e, assim como suas obras, seus criadores são genericamente nomeados como artistas multimídia, performáticos ou holísticos, entre outros. Investigar a participação de outros sentidos, com destaque para a visão, num domínio tido como eminentemente auditivo foi o objetivo da pesquisadora paulista Yara Borges Caznok, cujo livro Música: Entre o Audível e o Visível, foi lançado pela editora Unesp. Para desenvolvê-lo, a autora buscou apoio nos trabalhos do filosófo francês Maurice Merleau-Ponty, para quem é uma realidade o fato de que os sentidos se comunicam, considerando mais especificamente a dimensão visual presente na música (desde a composição até a audição) e na obra autoral do compositor húngaro György Liget e sua música textural. Originalmente uma tese de doutorado apresentada na USP, o livro constata, por meio de investigação histórico-bibliográfica e de análise de repertório, que a audição sempre esteve estreitamente ligada à visão, ou seja, o ouvir na tradição da música ocidental articula-se ao ver desde há muito tempo. A obra investiga também as relações da produção pictórica não figurativa (abstrata) com a linguagem musical, focalizando com especial atenção a presença de parâmetros até então considerados como pertencentes apenas ao domínio musical em trabalhos de importantes pintores. Embora o livro dê destaque para a interpenetração entre a audição e a visão, ele também pretende contribuir tanto para uma aproximação entre o público e as obras contemporâneas, quanto para uma ampliação, especialmente entre os músicos, da experiência do que pode vir a ser uma audição multissensorial. Com base nessas investigações e análises, a autora quis mostrar que as fronteiras que distanciam e atribuem funções delimitadas aos sentidos da audição e da visão, ou seja, a clássica definição e divisão das artes em dois grupos – artes do tempo: música, poesia e dança; artes do espaço: arquitetura, escultura e pintura – são, no fundo, fruto de um pensamento teórico, técnico e analítico alheio à criação e à vivência artísticas.
Como vem sendo vista a interpenetração multissensorial na audição musical? Historicamente, podem-se identificar, grosso modo, duas correntes estético-filosóficas opostas, mas não excludentes, que polemizaram esse tema: a chamada estética referencialista e a vertente absolutista. A primeira acredita que a música tenha seu significado assentado sobre a possibilidade de o mundo sonoro remeter o ouvinte a um outro conteúdo que não o musical: ele se torna meio para atingir algo que está além dele. Expressar, descrever, simbolizar ou imitar essas referências extramusicais – relações cosmológicas ou numerológicas, fenômenos da natureza, conteúdos narrativos e afetivos, entre outras possibilidades – seriam a razão de ser de um discurso musical. Até a primeira metade do século 18, essa concepção não se apresentava como problema – era quase uma forma de visão de mundo – e, portanto, não havia necessidade de pressupostos teóricos para defendê-la. Estes encontram-se explícitos em obras e poéticas de diferentes estilos e compositores. A corrente absolutista, ligada prioritariamente à música instrumental, concebe a música como linguagem autônoma em relação a quaisquer outros conteúdos, considerando-a auto-suficiente na construção e no estabelecimento de relações puramente sonoras, intramusicais. Imitações, descrições e referências a outros conteúdos que não o sonoro são consideradas interferências a uma suContinente abril 2005
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posta “audição verdadeira” e diminuem o valor de uma obra. De acordo com Meyer (1956), entre os adeptos da corrente absolutista há uma distinção a ser feita entre os formalistas e os “expressionistas”. Os primeiros apreendem o significado musical de uma forma mais intelectual, racional e categorizante, enquanto os segundos estabelecem com o discurso musical um relacionamento mais emocional e afetivo. Essa forma de vivência artística é também denominada “estética do sentimento”. E quais seriam as principais formas de relacionamento audiovisual? Entre todas as formas de relacionamento audiovisual, a correspondência entre os sons e as cores é a mais antiga e comum, e geralmente refere-se aos timbres ou às alturas (freqüências). Muitos termos integrantes do vocabulário cotidiano dos músicos explicitam a relação entre sons e cores: tom, tonalidade, cromatismo, entre outros. O termo color designa o procedimento de variação de alturas de uma melodia por meio de repetições, alterações cromáticas ou ornamentações, encontrados nos motetos isorrítmicos dos séculos 14 e 15. Em relação às imagens visuais, as tentativas de descrever ou imitar figurativamente a natureza, ou de representar e suscitar sentimentos e emoções por meio de sons, permeiam a história da música ocidental desde o Renascimento até os dias de hoje.
“A Augenmusik, ou música para os olhos, é uma notação musical cujo significado simbólico só é percebido pelos olhos e não pelos ouvidos, pois exige a leitura ou a visualização das partituras”
A pesquisadora Yara Caznok
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E a chamada Augenmusik? Sim, a Augenmusik, ou música para os olhos. Trata-se de uma notação musical cujo significado simbólico só é percebido pelos olhos e não pelos ouvidos, pois exige a leitura ou a visualização das partituras. Seus efeitos, assim, são restritos aos executantes e compositores, deixando o ouvinte sem acesso ao rico simbolismo que esse procedimento encerra. Esse tipo de escrita foi muito popular entre os madrigalistas italianos, durante os séculos 16 e 17, embora fosse censurado e considerado um maneirismo por teóricos e intelectuais, entre eles Vincenzo Galilei. Pejorativamente, Galilei denominava esse procedimento de “madrigalismo”. A técnica da Augenmusik encontrou sua síntese máxima na obra de Luca Marenzio (1553-1599), um dos maiores madrigalistas da Renascença. O compositor levou à perfeição a proposta do madrigal que visava à pintura literal das palavras, apresentando visual e musicalmente um objeto, uma idéia, um estado de espírito ou uma paisagem. Em uma de suas obras, Marenzio “desenha” por meio de linhas melódicas os arcos de uma catedral de Roma. A brancura das notas simbolizava situações descritas pelo texto, tais como o dia, a
MÚSICA luz, a palidez. As notas pretas apresentavam idéias de sombra, morte, cegueira, noite, escuridão. Johannes Ockeghem (1410-1497), um dos mais conhecidos e respeitados contrapontistas da escola flamenga, no Credo de sua Missa Mi-mi, enegrece as notas na palavra mortuorum, e Josquin des Près (1450-1521) utilizou um grande número de notas pretas em seu lamento a cinco vozes pela morte de Ockeghem, intitulado Nymphes des bois. Como surgiu seu interesse em abordar a sinestesia nas artes? Surgiu na observação, em sala de aula, de recorrências perceptivas experimentadas e relatadas por alunos. Como professora de disciplinas que lidam com a percepção de obras musicais (Harmonia, Treinamento Auditivo e Análise), tento sempre acompanhar os processos pelos quais as pessoas apreendem o fenômeno sonoro. Minha pergunta é sempre: como você escutou essa peça? As descrições vêm, geralmente, acompanhadas de relatos de vivências corporais (tensão, relaxamento), de evocações de cores, formas plásticas (redondo, pontiagudo, espiralado, cheio, vazado etc.), sensações táteis (aspereza, maciez), espacialidade (longe, dentro, fora etc.), entre outros. Depois de muitos anos de observação, passei a considerar que tudo isso faz parte da escuta musical – é como se nosso ouvido estivesse “espalhado” pelo corpo todo e qualquer mensagem sonora recebida pudesse ser processada por qualquer uma dessas ramificações sensíveis. Você também consegue enxergar cores musicais ou ter outras espécies de sinestesias? Tenho uma predisposição em ouvir vogais e timbres de vozes associados a cores. Para mim, o A é branco leitoso, E verde escuro, I azul escuro, O amarelo vivo e U preto. Uma palavra pode ter cores misturadas ou a predominância de uma cor. Às vezes, só consigo me lembrar de determinada palavra pelas cores que ela tem para mim. Já as vozes das pessoas dependem da vivacidade de suas falas, de sua energia, e a gama de cores aí é infinita. No Brasil, quais foram os principais compositores que utilizaram processos sinestésicos em suas obras? Não tenho notícia de algum compositor brasileiro sinestésico. Jorge Antunes, compositor contemporâneo, que mora atualmente em Brasília, DF, tem uma obra publicada na qual expõe suas idéias de relacionamento entre sons e cores. O livro se chama A Correspondência Entre os Sons e as Cores e saiu pela Editora Thesaurus. Como você tomou contato com a obra do compositor húngaro György Liget? Qual a importância dele no contexto da atual música erudita? Quando adolescente, assistindo ao filme 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, fiquei intrigada (um misto de fascinação e estranhamento) com vários trechos da trilha sonora. Ao lado do Danúbio Azul, de Strauss (1825-1899), valsa superconhecida, havia músicas que não tinham melodia, harmonia ou ritmo regular. Eram sonoridades difusas, como se fossem nebulosas, massas sonoras indistintas. Nunca esqueci aquela sonoridade, até que, anos mais tarde, cantando em um coral, nossa regente trouxe para o ensaio uma peça de Liget. A partir desse encontro, passei a estudar sua obra e a me encantar com sua proposta estética. Hoje, com 81 anos, György Liget é reconhecido internacionalmente como um dos grandes nomes da música do século 20. Tendo chegado à Alemanha, um dos centros da cultura “oficial”, como imigrante de um país pobre da Europa do Leste (Hungria), Liget trouxe ao pensamento musical do pós-guerra inúmeras contribuições. Dentre elas, a volta a uma escuta mais sensível, menos calculadora e árida como o serialismo integral almejava. •
Música: Entre o Audível e o Visível, Yara Borges Caznok, Unesp, páginas: 232, R$ 35,00.
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AGENDA
O Dom
Forró atemporal Ivan Ferraz, divulgador do forró em Pernambuco, lança CD com participação de grandes nomes do gênero
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ntecipando-se aos feste- Cláudio Almeida, que assinam os arjos juninos, Ivan Ferraz, ranjos da maioria das canções, o álEmbaixador do Forró bum tem suas bases assentadas por em Pernambuco, lança Gonzagão e Jackson do Pandeiro, seu quarto CD (primeiro independen- que, aliás, parecem ressuscitar na faixa te), Vamos Dar as Mãos. Com a voz em “Bananeira Mangará”, de Janduhy tom de aboio, Ferraz apresenta um ál- Finizola. A memorável “Sertaneja” (René bum correto, com um sotaque rítmico bem local, distanciado da obviedade que Bittencourt), quase um lamento, ganha marca parte da enxurrada de CDs do um tom a mais com os arranjos de Dugênero, na verdade, do forró mais co- da da Passira e a participação de Bozó nhecido como “mauricinho” ou “uni- no violão de sete cordas. O disco finaversitário” – um disco feito por quem liza com o poema “Os sete constituintes conhece e convive com os ritmos que ou os animais têm razão”, de Antônio compõem o estilo há mais de 20 anos. Francisco, uma longa fábula em forma Natural de Floresta (PE) e radica- de literatura de cordel que produz imado no Recife, Ferraz ancorou na TV gens insólitas, como a da reunião de biPernambuco, durante 16 anos, o pro- chos embaixo de um juazeiro: “O grama Forró, Verso e Viola, espaço privi- porco dizia assim:/ – pelas barbas do legiado para apresentação capeta!/ se nós ficarmos e discussão do xote, do xaparados/ a coisa vai ficar xado e do baião. Hoje ele preta.../ do jeito que o apresenta o mesmo prohomem vai/ vai acabar o grama na Rádio Univerplaneta”. Feito para dançar sitária. (recitar) como o próprio Dividindo as atenções gênero sugere (a dois), com Dominguinhos, Vamos dar as Mãos. Vamos Dar as Mãos tange o Independente , preço Nando Cordel e Maciel forró de ocasião. Fica. É médio R$ 10,00. Melo, além de Genaro e atemporal. • Continente abril 2005
O genial baterista Dom Um Romão fez escola com a sua técnica veloz e o toque afro da baqueta cruzada. Referência no samba-jazz e na bossa-nova, ele volta com o seu primeiro registro-solo, Dom Um (1964), em reedição primorosa pela Dubas. Dom Um é um disco incrível, cheio de suingue e personalidade, que extrapola o padrão “disco de bateria”. Dom Um Romão. Dubas, preço médio R$ 25,00.
Estado alterado
Promovendo um passeio pela música tradicional de rua pernambucana, Mauritsstadt Dub traz cirandas, toadas de cavalo-marinho, caboclinhos, forró, embolada e coco. Autointitulado Alteradores de Estado, o que os músicos que fazem o CD duplo (um em versão dub e outro, raiz) é exatamente isto: transportar o ouvinte a estados alterados de percepção musical. Mauritsstadt dub. Candeeiro Records, preço médio R$ 28,50.
Soprano
A soprano Anna Netrebko traz uma seleção de árias de óperas como Otello, de Verdi; “La Sonnambula”, de Bellini; e “Lucia di Lammermoor”, de Donizetti, no CD Sempre Libera. A voz de Anna ondula pela notas, saindo da tônica às mais altas, de acordo com o papel: em Otello é drama e desassossego; para La Sonnambula torna-se pesarosa e onírica. Sempre Libera. Universal, preço médio R$ 35,00.
Abril pro Rock mantém a marca da independência e traz a banda inglesa Placebo, que faz o primeiro show no Brasil
Tiger Man, o homem-banda. Abaixo, Daniel Belleza
A 13ª edição do Abril Pro Rock confirma a força do cenário alternativo no Brasil: é o maior festival independente do país, que continua primando pela valorização das bandas pernambucanas e trazendo para o público local grandes nomes da música nacional e internacional. Mas já na sexta-feira, o evento apresenta algumas mudanças: o primeiro dia, sempre marcado pelas mistura de sons de várias nacionalidades, cede espaço à primeira eliminatória de um concurso nacional e ao show da banda inglesa Placebo, que aterrissa pela primeira vez em terras nacionais e faz o primeiro show da turnê brasileira, trazendo na bagagem um som andrógino e pesado. Los Hermanos divide o palco com a Placebo. O sábado vem com a mesma pancada roqueira de sempre. A noite começa com o Silent Moon e o Chaosphere, bandas pernambucanas, e segue com Retrofoguetes e MQN, ambos do selo Monstro Discos. Na seqüência, tocam o Matanza, o Dead Fish e o Massacration, composta pela turma do Hermes e Renato, da MTV. Shaaman toca pela segunda vez no APR e deve atrair os fãs do metal melódico. Sepultura fecha a noite do sábado com o show do último CD, que o Recife ainda não viu. O último dia do evento, tradicionalmente o mais diversificado do festival, traz o rock independente do Superoutro e do Volver. Estreando em terras pernambucanas, os cariocas do Leela e Daniel Belleza e Os Corações em Fúria, de São Paulo. The Legendary Tiger Man é uma “banda” portuguesa de um homem só, que vem com um rock blueseiro. A Mombojó e o produtor Arto Lindsay vão fazer uma dobradinha inédita. A noite conta ainda com o DJ Dolores: Aparelhagem (lançando CD), os paulistas do Gram e a Orquestra Manguefônica, união da Nação Zumbi e Mundo Livre s/a, que tocam músicas dos respectivos discos de estréia, Da Lama ao Caos e Samba Esquema Noise, encerrando o APR. Abril Pro Rock 2005, de 15 a17 de abril, no Centro de Convenções, Olinda - PE. Ingressos: R$ 40,00 (Estudante paga meia). Passaporte para os 3 dias: R$ 65,00 (com direito a um CD promocional). Informações: www.abrilprorock.com.br
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Silvério na estrada
Silvério Pessoa entra em turnê a partir deste mês. Até julho, ele estará levando seu forró Bate o Mancá Brasil adentro e mundo afora. No Brasil, Silvério faz shows pelos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo, através do projeto Pixinguinha. Depois parte para a Europa, onde participa do Ano do Brasil na França e faz shows naquele país, na Espanha, Suécia, Itália e Holanda. Segundo o artista, esta é a maior tour de um artista pernambucano na Europa.
Solte a voz Estão abertas as inscrições para o 8º Prêmio Visa de Música Brasileira (categoria vocal). Com o tema “Solte a voz no maior prêmio da música brasileira”, o concurso oferece 200 mil reais em prêmios, além de troféu e certificado. As inscrições podem ser feitas até o dia 17 de maio, na Rádio Eldorado. 8º Prêmio Visa de Música Brasileira. Inscrições: Rádio Eldorado (Av. Prof. Celestino Bourrol, nº 100, 2º mezanino, Edf. Industrial, Bairro do Limão, São Paulo). Inscrições: marketing@radioeldorado.com.br, www.premiovisa.com.br ou no telefone: (11) 2108.6703.
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AGENDA
Rock independente
Fotos: Divulgação
MÚSICA
TEATRO
Márcio Shimabukuro/Divulgação
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A morte e o equilibrista Há nove anos longe dos palcos, João Denys volta à cena com texto inédito de Jean Genet no Brasil Rodrigo Dourado
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ean Genet (1910-1986) era um apaixonado pela morte. Ela está presente em quase toda a sua dramaturgia, como emblema de mistério, beleza e risco. Num importante ensaio intitulado “A estranha palavra...”, o autor chega mesmo a afirmar que “nas cidades de hoje, o único lugar – infelizmente ainda na periferia – onde um teatro poderia ser construído é o cemitério”, revelando sua intenção de transformar a cena num espaço de exumação e de exposição das vísceras da sociedade que o transformou em pária. O Funâmbulo, de 1957, é também uma ode à morte. O texto foi dedicado ao grande amor de Genet, o jovem Abdallah Bentaga, um equilibrista circense. A palavra funâmbulo significa dançarino que evolui na corda-bamba ou no arame e neste escrito o autor elabora uma espécie de manual para seu companheiro. A originalidade com que reflete sobre o ofício do artista, no entanto, transforma a obra num importante tratado de ética, capital para a compreensão do universo genetiano. Pela primeira vez no Brasil, O Funâmbulo ganha versão teatral pelas mãos do dramaturgo, professor e diretor João Denys. Em cena, ele dirige um único ator, João Augusto Lira. Afastados por nove anos dos palcos, os dois se reuniram para realizar esta produção, cuja origem está ligada ao projeto Tintas Frescas, intercâmbio entre a produção teatral francesa e brasileira, que em 2002 promoveu uma leitura do texto. Continente março 2005
TEATRO
Abdallah não evolui na corda-bamba, mas seus pulsos cortados aparecem dependurados e é a eles que as personagens se remetem, numa referência direta ao suicídio do equilibrista que, por conta de um acidente, não pôde mais exercer a profissão
Reprodução
Desde lá, Lira, que participou do projeto, alimenta o desejo de transformar aquele experimento num espetáculo. Acumulando também a função de produtor, ele engavetou o trabalho por três anos, em virtude da proverbial dificuldade financeira. Mas graças aos auspícios das leis de incentivo (leia-se SIC – Recife), conseguiu realizar a empreitada este ano, lançando a novíssima Cia. dos Navegantes. Um reencontro com o diretor com quem havia trabalhado 15 anos, protagonizando o Calderón, de Pier Paolo Pasolini. “É um conforto enorme trabalhar novamente com João, por conta da inteligência. Ele absorveu a gramática desse espetáculo e tem profundo conhecimento da obra de Genet. Por isso, não manipulei nada, tudo foi dividido entre nós, embora tenha exigido dele a disciplina dos funâmbulos”, lembra Denys. Na encenação, que segue em temporada até o dia 17 deste mês, o intérprete se desdobra em 20 personagens, entidades extraídas do mundo criado pelo escritor em sua vasta obra. O espetáculo pretende fundir ator, autor e funâmbulo (tríade) numa só figura performática, criando duplos, uma constelação de máscaras para lidar com as imposturas de Genet: travestis, assassinos, viciados e os tantos proscritos aos quais a literatura dele deu voz. O conceito de tríade está presente também na cenografia (assinada pelo diretor), que constrói um espaço triangular (dois triângulos eqüiláteros e concêntricos), com a platéia disposta em duas das faces da figura geométrica, espreitando através de cortinas o que se passa dentro da pequena caixa. As cortinas reforçam o jogo de luz e sombra, desvelamento e ocultamento proposto pelo texto e, sobretudo, impõem ao espectador um olhar voyerístico sobre os bastidores da criação, essa antecâmara da solidão e da morte. “Queremos que o público veja o que está por trás do pano e procure entender um pouco mais dessa arte. Nossa idéia é ainda falar da corda, do arame e do equilibrista para dizer à platéia que ela também tem que dançar, correr riscos”, comenta o diretor. Embora não esteja presente em cena, o arame e a tensão gerada por seu alongamento dão o tom da encenação – no jogo de contrários entre os personagens que se revezam no palco, no contraste de cores da direção de arte, na sonoplastia que extrai musicalidade do fio e remete à cultura árabe pela qual Genet foi apaixonado e da qual tornou-se porta-voz. Abdallah não evolui na corda-bamba, mas seus pulsos cortados aparecem dependurados e é a eles que as personagens se remetem, numa referência direta ao suicídio do equilibrista que, por conta de um acidente, não pôde mais exercer a profissão. O corpo, encontrado num apartamento na periferia de Paris, cercado por livros de Genet, que o havia abandonado anos antes. O Funâmbulo é, na verdade, um experimento metateatral, que utiliza o equilibrismo para tocar na natureza da atividade artística. Nele, o autor propõe que artista e
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TEATRO
arame vivam uma relação de amor e respeito, mas assevera que é ao instrumento daquela arte (o fio) que todas as glórias devem ser rendidas. Fala de disciplina e garante que somente o treinamento e a exatidão matemática permitirão que o funâmbulo vença. Retoma o tema da morte e aconselha o amante a morrer antes de sua aparição frente ao público, uma vez que só ela lhe permitirá subir ao cabo “decidido a todas as belezas, capaz de todas elas”. Aqui, nada escapa ao olhar de Genet, para quem o brilho do equilibrista será tanto maior quanto mais miserável for sua existência fora do picadeiro, afinal “a realidade do circo consiste nesta metamorfose da poeira em pó de ouro”. Segundo a tradutora da obra, Fátima Saadi, esse texto se diferencia dos demais produzidos pelo autor, por deixar de lado um certo tom barroco comum à sua literatura. Quando fala de barroco, Saadi se refere àquela que se tornou a marca de Genet, o uso de uma linguagem rebuscada e poética para tratar de um conteúdo brutalizado, marginal e cruel. Forma contraditória e original de literatura que justifica seu interesse pelo circo. Saadi, que há 20 anos traduziu a primeira versão de Os Negros no Brasil e mais tarde verteu para o português Os Biombos, pondera, entretanto, que a linguagem continua rica e elaborada como no restante da obra. Denys concorda com a tradutora, mas acredita que essa é uma questão de gênero, já que O Funâmbulo, que ele define como prosa-poética, não foi escrito originalmente para o teatro. De qualquer forma, a força de Genet pulsa neste espetáculo, reforçando a idéia de que ele é “um terrorista que usa como arma a poesia e cujos textos têm uma enorme capacidade de inflamar”, nas palavras do diretor, para quem, fosse vivo, Genet seria hoje a célula-mãe do pensamento francês contemporâneo. Lembrando que Jean-Paul Sartre, Jean Cocteau e Jaques Derrida debruçaramse sobre seus escritos. O próprio Denys enxerga convergências entre a produção genetiana e a de um conterrâneo, o poeta Joaquim Cardozo, sobre o qual escreveu Um Teatro da Morte, dissertação de mestrado premiada e publicada pela prefeitura do Recife. E é inflamado por Genet e por O Funâmbulo que ele planeja, ainda para este ano, o lançamento, pelo Sesc, de sua mais recente peça, Flores D’América, premiada em 1998 no Concurso Nacional Hermilo Borba Filho. Nela, uma mãe sertaneja enterra uma a uma suas 20 filhas, transformando a casa num grande cemitério, tal qual sugerido por Genet, local ideal para o jogo de disfarces do teatro. •
Em cena, um único ator se desdobra em 20 personagens, entidades extraídas do mundo criado por Genet Continente janeiro 2005
TEATRO
A arriscada travessia de O Funâmbulo
Fotos: Márcio Shimabukuro/Divulgação
Na primeira versão de O Funâmbulo para os palcos brasileiros, as intenções e os desejos não se apropriam da cena com a força necessária para arrebatar a platéia Luís Augusto Reis
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teatro não é a soma de diversas linguagens artísticas. O teatro não é um suporte luxuoso para a literatura, nem para a música, nem para a dança, nem para as artes plásticas. O teatro não é feito nem de poesia nem de filosofia; nem de inteligência nem de criatividade; nem de ideologia nem de fé; nem de sonho nem de realidade; nem de paixão nem de razão. O teatro nunca é puro entretenimento. Também jamais será apenas um instrumento pedagógico ou político. O teatro, embora envolva tudo isso, trata-se de uma outra coisa. O teatro, quando se dá em sua plenitude, parece prescindir de definições: é apenas teatro, imponderavelmente teatro. As dúvidas e as discussões a respeito de sua especificidade e de seus limites enquanto linguagem – fundamentais para sua própria evolução – quase sempre afloram mediante trabalhos que, por razões invariavelmente complexas, não conseguem abraçar o espectador com toda a potencialidade expressiva dessa arte. De certa forma, a montagem do monólogo O Funâmbulo, de Jean Genet, que estreou há algumas semanas no Teatro Hermilo Borba Filho, parece colocar o público diante dessa espécie de axioma. Produzido e interpretado por João Augusto Lira, sob a direção de João Denys, dois nomes que figuram entre os mais talentosos da cena pernambucana, tem-se a impressão de que esse espetáculo, a despeito da evidente qualidade de vários de seus elementos constitutivos, não resulta em uma experiência comunicativa plena, capaz de encantar os sentidos e de instigar o raciocínio do público; capaz de suspender os espectadores no tempo e no espaço, para imediatamente mergulhá-los em reflexões, prazerosas ou sofridas – mas sempre necessárias –, sobre o modo pelo qual percebem e interagem com a realidade que os cerca. Como é comum acontecer, quando se trabalha com dramaturgias que privilegiam a poesia em detrimento da ação, é provável que apreciações apressadas identifiquem nesse espetáculo uma certa disputa entre o texto e a cena. Porém, talvez
João Denys (E) dirige o ator João Augusto Lira
um exame mais cauteloso possa atestar que, embora exuberantes e por vezes imprecisos, os signos que compõem essa encenação não sejam redundantes, nem supérfluos, em relação ao texto. E isso, por si só, permitiria que alguns espectadores, especialmente aqueles já iniciados no universo de Genet, vislumbrassem um intenso e verdadeiro diálogo por parte do diretor, e também do intérprete, com a obra e com a vida desse extraordinário autor. Um diálogo que se deixa intuir sobretudo pelo tom de homenagem que vai tomando o palco: um tributo amoroso e repleto de admiração, mesmo quando se faz irreverente no manejo do texto. No entanto, como há muito tempo é sabido, no teatro não importa o que de fato se sente, e sim o que se deixa acreditar estar sentindo. E aqui, nessa primeira versão de O Funâmbulo para os palcos brasileiros, a autenticidade das intenções e a profundidade dos desejos que certamente motivaram a realização desse importante projeto, embora possam ser pressentidas por alguns, não se apropriam da cena com a força necessária para arrebatar a platéia, transformando-a em um coparticipante desse surpreendente jogo que é a criação teatral, dessa arriscada travessia sobre um fio de arame, sempre erguido a muitos metros do chão. • Continente abril 2005
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TEATRO
A dramaturgia da provocação
Reprodução
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Jean Genet costumava acompanhar a montagem dos seus textos para teatro, dialogando, interferindo e opinando
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uando vivo, Genet costumava assistir aos ensaios de suas peças muitas vezes. Sentia grande prazer em acompanhar o que se passava antes da estréia, dialogar com os diretores, interferir, opinar. Para ele, era durante as répétitions, como os franceses chamam os ensaios, que a chama dos atores deveria se intensificar, de maneira que uma única apresentação do espetáculo fosse suficiente para dividir com a platéia a experiência construída ao longo de meses de trabalho. Nesse sentido, muitos costumam alinhá-lo a Artaud, cujo teatro cerimonial, festivo e ritualístico serviu de guia para os grupos de “performance” dos anos de 1960/70, que investiram na efemeridade do fenômeno cênico. Não por coincidência, coube justamente a um diretor que havia trabalhado como figurante e assistente de Artaud garantir a Genet lugar de destaque na dramaturgia contemporânea. Foi Roger Blin quem montou pela primeira vez Os Negros, em 1958, levando o próprio autor a escrever mais tarde no prefácio à publicação da peça: “Imitar Blin? Sua realização era perfeita, imitá-la seria degradá-la”. A parceria seria renovada anos mais tarde, 1966, com a montagem de Os Biombos, tendo o grande Jean-Louis Barrault em cena. Um escândalo pela clara alusão à guerra da Argélia presente na obra. Nesse mesmo ano, Genet resolve publicar Cartas a Roger Blin, registro de sua interlocução com o diretor das duas montagens. A primeira peça para teatro, no entanto, foi escrita em 1947 a pedido de Louis Jouvet e chamou-se As Criadas. E além de Blin, outros encenadores de peso deram vida à sua obra, como Peter Brook, que montou O Balcão em 1960, e Patrice Chéreau, cuja versão de Os Biombos estreou em 1983. No Brasil, entre as montagens mais expressivas de seus textos destacam-se O Balcão (1969), As Boas (1991) e Ela (1997). O Balcão, por Victor García, tornou-se um marco na história do teatro nacional. Genet veio ao Brasil conferir aquela que considerou a melhor encenação Continente abril 2005
Para Genet, as répétitions faziam a chama do ator se intensificar
do texto. Já na década de 90, Zé Celso Martinez Corrêa adapta As Criadas (título original Les Bonnes) e a transforma em As Boas, com Rauz Cortez no elenco. Anos mais tarde, numa clara provocação à visita do Papa ao Brasil, ele monta e protagoniza Ela, texto em que Genet discute a construção e a impostura da imagem de Sua Santidade. Em Pernambuco, três montagens de textos do autor se destacam. Em 1979, o Grupo Vivencial Diversiones coloca em cena As Criadas, com direção de Américo Barreto, utilizando a história das duas criadas que trocam de papel com a “madame” para investir na prática do transformismo, cara ao grupo. Sobre essa peça vale ressaltar que nunca houve qualquer recomendação do autor para que as personagens (femininas) fossem feitas por homens, mas esse mito propagou-se a partir de uma idéia de Sartre a respeito da obra e, em todo o mundo, ela tem servido ao propósito de grupos de orientação queer. Alguns anos mais tarde, 1987, no rastro da cultura do encenador como eixo da criação teatral em voga na França, Antônio Cadengue realiza com alunos do Curso de Formação do Ator (CFA) da UFPE o espetáculo O Balcão. No elenco, João Denys, que agora dirige O Funâmbulo, fazendo o papel do Bispo. Em 1995, já à frente da Cia. Teatro de Seraphim, Cadengue retoma Genet, dessa vez com Os Biombos, na tradução de Fátima Saadi. Como havia acontecido na Europa, mais uma vez o autor e sua dramaturgia estão diretamente ligados à modernização da cena, vinculando-se no Recife a dois grupos responsáveis por mudanças fundamentais no tablado pernambucano, seja pela verve subversiva, no caso do Vivencial Diversiones, seja pela excelência artística, no caso da Seraphim. (Rodrigo Dourado) •
Quem quiser ver ou rever as peripécias e confusões armadas pelo amarelinho espertalhão João Grilo que, ao lado do seu inseparável amigo Chicó, tira proveito de todos na cidade de Taperoá, enterrando cachorro em latim, vendendo gato que “descome” dinheiro e enredando ilustres políticos, comerciantes, cangaceiros, representantes da Igreja e até mesmo Deus e o Diabo numa trama farsesca, tem mais uma oportunidade. Há 13 anos com praticamente o mesmo elenco, formado por Socorro Rapôso, Sóstenes Vidal, Williams Sant’Anna, Luiz César, Margarida Meira, Luiz de Lima Navarro (Padeiro), Leidson Ferraz, Hélio Rodrigues, entre outros, da Dramart Produções, o Auto da Compadecida (o artigo “O” foi invencionice Global) entra em cartaz novamente no Recife. Espetáculo recordista – é a montagem que está há mais tempo em cena em Pernambu-
Uma edição primorosa Editora Agir relança livro com ensaios enriquecedores Há justos 50 anos, Ariano Suassuna pôs o ponto final no texto do Auto da Compadecida. Um ano depois, a peça era encenada pela primeira vez no Teatro de Santa Isabel, no Recife, sob a direção de Clênio Wanderley, e nunca mais cessaram os aplausos do público. Logo em seu prólogo, o Palhaço – espécie de mestre-de-cerimônias da ação – apresenta todos os personagens e adverte que o ator que representará Cristo “não vem agora, porque sua aparição constituirá um grande efeito teatral”. Quando na cena
A invenção do teatro Do teatro de Gil Vicente ou Calderón de la Barca ao teatro do Cordel nordestino de Lourdes Ramalho, abre-se um vasto oceano de memórias poéticas em Bululu – A Invenção do Mundo, nova montagem de Moncho Rodriguez. Depois de vários anos pesquisando linguagens teatrais que influenciam a construção da dramaturgia teatral no Nordeste brasileiro, o encenador criou um espetáculo-síntese de todas as experiências teatrais vividas. A base da trama é uma ficção de como se inventou o mundo no teatro e como nesse mundo foram criadas personagens tão apaixonantes, e perversas; humildes e arrogantes. A encenação pretende provocar um belo e divertido exercício de linguagem para o teatro do Nordeste, trazendo para os nossos dias a pureza dos contadores de histórias.
Jorge Clésio/ Divulgação
Há 13 anos com praticamente o mesmo elenco, Auto da Compadecida volta à cena no Recife
co, 13 anos; é o texto de Suassuna que permanece há mais tempo em cartaz no Brasil; e a primeira encenação está completando 50 anos, com algumas pessoas que compuseram a primeira equipe ainda na montagem atual, como Socorro Rapôso, a primeira, e “eterna”, segundo Ariano, Compadecida –, Auto da Compadecida mantém a direção deixada por Marco Camarotti (falecido em outubro passado) e inscreve-se na galeria dos grandes textos universais. Auto da Compadecida.Teatro Valdemar de Oliveira (praça Oswaldo Cruz, s/n, Boa Vista. Tel. 81.32221200), todos os sábados, às 18h. Ingressos: R$ 12,00 (estudantes e idosos pagam meia). Até junho.
final do julgamento aparece enfim o personagem, constata-se ser interpretado por um ator negro. Em 1956, o impacto foi tremendo. E mesmo hoje não é desprezível. Mas não foi só por isso que a peça era revolucionária: a combinação do teatro religioso e do profano, do erudito e do popular, a refinada carpintaria cênica e a linguagem regional sem afetação fizeram da peça um marco do teatro brasileiro. Traduzida e encenada em inúmeros países, levada para o cinema em três versões, a peça recebe uma edição primorosa, com bela feição gráfica (desenhos e iluminuras de Dantas Suassuna) e enriquecedores ensaios de Bráulio Tavares, Carlos Newton Júnior e Raimundo Carrero. (Homero Fonseca) Auto da Compadecida – Ariano Suassuna, Editora Agir, 260 páginas, R$ 39,90. Divulgação
Bululu – A Invenção do Mundo. Teatro Armazém 14 (Av. Alfredo Lisboa, s/n, Bairro do Recife, Recife/PE) Sábados, às 20h, e domingos, às 18h. Ingressos: R$ 20,00 (estudantes pagam meia). Até 10 de abril. Continente abril 2005
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A volta da Compadecida
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Cristo nasceu em Macujê – II Apontar dificuldades não é negar o que está sendo feito
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palavra move e transforma. Também pode ser a causa de equívocos, discórdia e caos. São Paulo afirmou que o que perde o homem não é o que lhe entra pela boca, mas o que lhe sai pela boca, dizendo com isto que a fala pode levar o homem à ruína, se não é claramente enunciada e compreendida. Quando os homens inflamados de soberba tentaram erguer uma torre que subisse até o céu, segundo o relato contido na Bíblia, o deus dos judeus castigou-os, confundindo as falas em idiomas diferentes, impedindo que se compreendessem e comunicassem. Felizmente, surgiu a escrita, permitindo o registro da fala em caracteres. A expressão “está escrito” passou a significar o que foi registrado e não pode ser revogado. Na mesma Bíblia Sagrada, que nos deu o exemplo da Babel, encontramos a história de Moisés, retornado do monte Sinai com as tábuas da lei, os dez mandamentos redigidos a fogo pelo Senhor do povo eleito. No entanto, mesmo esta escritura sagrada esteve sujeita a análises e interpretações, algumas convergentes, outras desencontradas e díspares. A escrita serviu para que o homem comunicasse sentimentos, descobertas, certezas e medos. Através dela expressasse a sua visão da realidade que o cerca, registrando o momento e a permanente transformação. Durante mais de quatro anos tenho assinado esta coluna mensal, ora com ensaios sobre cultura, ora com crônicas do cotidiano, ora com narrativas beirando o conto. Escrever exige uma exposição de pontos de vista, Continente abril 2005
um olhar próprio e corajoso sobre o que se escreve, buscando-se alcançar uma verdade jornalística ou poética. Nem sempre somos compreendidos. O que nos parece claro, quase óbvio, é obscuro para o leitor. O texto permite uma leitura do que chamamos de subtexto, atribuir significados às palavras e frases, que não correspondem às intenções de quem escreveu. Surgem discórdias, polêmicas, retaliações. Nos paises democráticos, são rotineiros os debates pela imprensa. Eles representam um ganho para a democracia, quando objetivam a verdade, a ética e o bem comum. Vez por outra uma matéria me rende cartas de leitores, telefonemas, e-mails, abordagens na rua. Há quem confesse simpatia pelo que escrevi e quem rejeite a minha opinião. Nada mais saudável. Um artigo em especial precisou que eu voltasse a ele: “Cristo nasceu em Macujê”, publicado na edição de dezembro do ano passado. Minha intenção ao escrever a crônica natalina era apenas relatar a experiência de arte-educador, num vilarejo da cidade de Aliança. Contrapor o significado de compaixão (“pesar que em nós desperta a infelicidade, a dor, o mal de outrem”), provocada em mim pela dura realidade local, ao de arrogância (“orgulho, insolência, atrevimento”), observada na forma como são tratadas as pessoas, os rios, as matas, pelos usineiros locais. Desejava, como no poema de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”, louvar a vida como o maior dos bens, mesmo que ela surja no meio da pobreza e da adversidade, na representação do nascimento de um menino canavieiro, o eterno Cristo
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Uma peça literária se compõe da mesma maneira como se arranjam as figuras de um presépio. Precisava descrever um cenário da Zona da Mata de Pernambuco, e a vila de Macujê era a minha impressão mais recente. Surge o primeiro equívoco de leitura, com a palavra “arrogância”. Não sei se as pessoas leram o que escrevi em seguida a esta palavra, significando que “o descaso absoluto pelo Outro (maiúsculo) faz com que joguem os dejetos das usinas nos rios, envenenem o ar, encham as casas de fuligem”. Arrogantes não são os moradores de Macujê, mas os que ao longo de 500 anos de história trataram com desprezo as pessoas, a terra, os rios e o ar que respiramos, pensando apenas no lucro. Os moradores de Macujê vivem o contraditório drama dessa convivência: por um lado necessitam do trabalho na cana, e por outro, têm de suportar os males da monocultura. A minha crônica poética não pretendia ser mais que uma crônica. Não referia as estatísticas sobre analfabetismo, fome, desnutrição, doenças de veiculação hídrica e outros males da Zona da Mata. Também não falava dos esforços em andamento para reverter esta realidade, através de um projeto de desenvolvimento sustentável, saneamento básico das cidades, alfabetização de adultos e fomento ao emprego. Não cabia referir numa peça literária que técnicos estão atuando em tempo integral nessa área, entre os quais me incluo.
Omitir não significa negar. Existe vontade de aprender nos jovens dessas comunidades, e esforço para transformar o meio em que vivem, fazendo que nem se incomodem com a precariedade dos espaços em que trabalhamos. Em várias cidades, grupos de teatro mantêm-se em atividade regular, formando novas gerações de atores. Muitos talentos anônimos se revelam nas oficinas de formação. Apontar dificuldades não é negar o que está sendo feito. O primeiro passo para a transformação é reconhecer as deficiências, e não camuflá-las. Que bom seria se a minha crônica começasse dizendo que o caminho para Macujê atravessa florestas, rios de água limpa, casas confortáveis. Um dia, isto será possível? Tem muita gente apostando que sim, e trabalhando duro para que não demore a chegar. Os estudantes que se revoltaram com o meu artigo, que enxergaram nele significados inexistentes, deslocam-se em ônibus desconfortáveis, atrás de escolas e do saber. As faculdades mais próximas estão cheias desses rapazes e moças. Mesmo que não tenham compreendido o que escrevi, alegro-me em constatar que a partir deles a realidade da Zona da Mata pode reverter. O conhecimento é como o fogo de Deus, inscrito nas tábuas de Moisés. Ninguém toma, ninguém desfaz. Um “jesuscristinho” luminoso, de caneta e livro na mão, renascerá com ele. – Seja bem-vindo! Deus o salve! – diremos. E já será quase tudo, se pudermos dizer. • Continente abril 2005
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TRADIÇÕES Thomas Baccaro/Divulgação
Louco, madeira, Cachoeira-BA
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O colecionador Jarbas Vasconcelos: rompendo a distinção entre o erudito e o popular
Michele Zollini / Ag. Balão
Arte sem fronteiras A coleção de arte popular do governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, um dos mais completos e importantes acervos particulares do Brasil, abre uma série de exposições no Instituto Cultural Bandepe, no Recife Weydson Barros Leal
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oderíamos começar por uma definição. Mas, logo, encontraríamos em suas fronteiras sentidos tão próximos e tão distantes que preferimos deixar em aberto, para o leitor paciente, os possíveis conceitos de “arte popular”. É comum, por exemplo, associá-la ao artesanato. Mas, estará certo o caminho? E qual a distância entre o artista e o artesão? Não importando as respostas, tudo, no fim, fica menor diante da verdadeira expressão da arte. Pode ser chato o conceito ou a premissa. No entanto, partamos do seguinte ponto: diferente do verdadeiro artista popular, o simples artífice não costuma alcançar uma assinatura pessoal, enquanto o outro, por mais primitiva, inconsciente ou rudimentar que seja sua linguagem, cria, junto com a obra, sua identidade, seu estilo, imprimindo na escultura ou na pintura um nome invisível que é a sua silenciosa marca. São muitos os verdadeiros artistas populares de Pernambuco, Estado brasileiro com uma das mais ricas tradições neste segmento. Entre aqueles que fizeram história e os mestres de hoje – entre os quais estão filhos e filhas dos grandes nomes –, podemos citar Mestre Vitalino, Zé Caboclo, Marliete, Manuel Eudócio, Zé Rodrigues, Ernestina, Lídia Vieira, José Antonio Vieira, Mestre Solon, Heleno e muitos outros. Aqui, no entanto, suas criações têm em comum algo além da marca do talento: fazem parte de uma das mais ricas coleções de arte popular do Brasil, a do cidadão Jarbas Vasconcelos, hoje governador de Pernambuco. Continente abril 2005
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TRADIÇÕES buscou trabalhos de outros Estados e países, e o colecionador, com o tempo, tornou-se um connaisseur refinado dessa arte. As feiras de Caruaru e o Alto do Moura – região daquela cidade onde se concentram ateliês e lojas – foram os celeiros, para Jarbas, de uma arte que também poderia ser o veio ou a identidade de uma expressão genuinamente local, sem a interferência ou a fruição cosmopolita sentida em artistas das capitais, ou simplesmente artistas plásticos. Aquela pureza de temas e formas, aliada a uma linguagem pessoal cheia de pequeníssimos detalhes – que, assim como ocorre com os artistas plásticos, nos permite diferençar autorias –, passou a revelar uma riqueza de invenção e de valores identificáveis, hoje, em cada personagem de sua coleção. Como especialista no assunto, para Jarbas os grandes centros de arte popular pernambucana ainda são Caruaru e Tracunhaém. Não apenas por isso, sua coleção concentra-se na arte figurativa – expressão mais comum nesses centros –, em que tipos e cenas da cultura popular, como trabalhadores rurais, festejos, cerimônias e animais são encontrados, na maioria das vezes, em esculturas hiper-realistas. Em trabalhos como os de Manuel Eudócio, artesão de Caruaru, já falecido, a expressão do rosto, o movimento das roupas e o corte preciso de objetos e adeO colecionador como conhecedor – Depois das reços revelam um domínio superior na arte da modelaprimeiras aquisições, a paixão de Jarbas pela arte popular gem. Por essa razão e gosto pessoal, na coleção de Jarbas A primeira peça do imenso acervo de Jarbas – um pequeno boi em cerâmica, do Mestre Vitalino, de Caruaru –, foi adquirida há pouco mais 30 anos. Apesar de admirador de seus trabalhos, Jarbas não conheceu pessoalmente o mais famoso artesão de Caruaru, falecido em 1963. Mas isto não o impediu de adquirir “Vitalinos” originais de outros colecionadores ou mesmo de seus herdeiros. Só de Mestre Vitalino, ele reúne, em um dos móveis de sua casa, 35 preciosos exemplares. Logo, o que se pode considerar como início da Coleção Jarbas Vasconcelos, surge nos anos 70, durante as viagens que o político fazia pelo interior de Pernambuco para divulgação de seu partido, o antigo MDB. Nessas viagens, nas quais Caruaru era uma base de apoio, cresceu o encantamento pela cerâmica, que depois virou paixão de colecionador. Hoje, sua casa, completamente ocupada por seu acervo, reflete a história de sua vida – afinal, no Nordeste, quase todas as crianças brincaram com bonequinhos de barro –, que pode ser contada através das mais de 1.500 peças adquiridas ao longo desses anos. Assim, é pela abrangência de estilos, autores e referências dessas obras, que também poderíamos contar a história de quase toda arte popular pernambucana.
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Vitalino, cerâmica Caruaru-PE
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a ser realizada em Paris. Paralesão poucos os exemplares de peças lamente a essa mostra, 10 mil utilitárias, seja em barro ou outro mapequenas peças, encomendadas terial, como pratos, potes e jarros. a diversos artesãos do interior, Certamente, o traço mais profunserão enviadas para venda numa do e importante da arte popular é a grande feira de arte popular em preservação de uma cultura quase Nancy. De um lado, a criação sempre intacta à massificação que os dos mestres como expressão de meios de comunicação podem introuma cultura; de outro, peças paduzir entre suas fontes e referências. ra serem vendidas como amosJarbas lembra o caso de Tracunhaém, tras daquela cultura. na Zona da Mata pernambucana, importante centro de artistas popuUma coleção de artes e lares, que há 20 anos sofreu uma periculturas – A coleção de Jarbas gosa influência de artistas da capital Vasconcelos, como dissemos, que foram dar cursos na cidade. Na vai além do universo pernamépoca, visitando um grupo que recebucano. Isso tomou força, prinbia a nova orientação, Jarbas se viu cipalmente, durante os anos em diante de crianças que retratavam, em que ele fez parte da direção napeças de barro, personagens da telecional do já PMDB, quando visão. Esse é um aspecto que justifica passou a viajar pelo país ao lado o valor das verdadeiras peças de arte Baé, cerâmica, Tracunhaém-PE do então presidente da legenda, popular – que, no fim, são peças de o deputado Ulysses Guimarães. arte – como resultado de um trabalho tão difícil quanto o dos bons artistas plásticos. “Se você Na época, ao saber antecipadamente os destinos de suas obriga o artesão a produzir fora de seu padrão usual, ex- viagens, Jarbas procurava centros de arte popular que plica Jarbas, ou mesmo a criar figuras que não são as que poderiam ser de seu interesse na região. Com o tempo, ele deseja fazer, o trabalho será prejudicado, e a peça identificou lugares onde a produção artesanal era tão rica quanto em Pernambuco, como Belém, no Pará, e cidades resultará de qualidade inferior.” O mesmo ocorre com a questão – atribuída indiscri- do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais A paixão do colecionador de arte popular é a mesma minadamente à arte popular – da “produção em série”. Nos casos de figuras produzidas como cópias, para o de qualquer outro colecionador de arte: é a busca de algo verdadeiro ceramista nunca uma peça será igual à outra. ainda não conseguido, o ópio que transforma o hobby nuAssim acontece com as técnicas consideradas acadêmi- ma religião. Cada peça, de acordo com seu valor histócas, como a monotipia e outras formas de gravura. No rico, sentimental ou de unicidade tem um lugar mais alto caso das peças dos mestres artesãos, cada modelo, por na hierarquia das prateleiras, das mesas, de móveis como mais que possa parecer com um anterior, trará elementos vitrinas de jóias raras na casa do colecionador. Isso fica que garantem sua individualidade. Em alguns casos, os claro, no caso de Jarbas, na quantidade de peças em barvalores podem até se inverter, como diz o próprio Jarbas: ro em relação à de pinturas populares, que também fa“Eu acho que o artista de um modo geral e o artesão se zem parte de seu acervo. Neste quesito, há um democráconfundem. Entretanto, o mestre artesão não pode traba- tico critério em sua Pinacoteca: ao lado dos quadros de lhar com produção, o que o artista plástico pode fazer”. grandes mestres da arte brasileira, como João Câmara, E aqui, Jarbas sublinha que “é preciso distinguir entre Reynaldo Fonseca, Cícero Dias, Siron Franco, Vicente artesanato e a obra de um mestre artesão” – ou seja, a do Rego Monteiro e Aldemir Martins, figuram, nas obra de “um ser criativo” e a simples produção em série. mesmas paredes, pinturas de artistas populares. Apesar de sua coleção abranger obras feitas nos mais O governador ilustra essa distinção com um exemplo prático. Em 2005 – ano em que o Brasil é tema do calen- diversos materiais, como barro, madeira, ferro e pedra – dário cultural na França –, Pernambuco estará enviando além da pintura em tela –, a preferência de Jarbas é pela peças dos grandes mestres do Estado para uma exposição cerâmica. Ele exemplifica: “Se numa exposição me fosse Continente abril 2005
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TRADIÇÕES Thomas Baccaro/Divulgação
Heleno, madeira, Tracunhaém-PE
São muitos os verdadeiros artistas populares de Pernambuco, Estado brasileiro com uma das mais ricas tradições neste segmento dito que eu só poderia comprar uma peça, eu escolheria alguma coisa em cerâmica”. Outra vez questionado, justifica: “Porque essa foi a origem de minha coleção, eu comecei com o barro; desde o começo eu fiquei encantado com as coisas de Vitalino, de Manuel Eudócio, de Zé Rodrigues...” Sobre arte popular de fora do Brasil, Jarbas é um grande admirador (e colecionador) do que se faz em países da América Latina, além, é claro, de trabalhos dos artesãos de Portugal, onde estão algumas de nossas raízes. No caso das Américas, há em sua coleção representantes da Argentina, da Venezuela, do México e do Peru. “Eu já saí daqui para o Rio de Janeiro, para ver uma exposição de arte peruana”, conta. E nos mostra, em diferentes cantos da casa, peças de médio e grande porte adquiridas no país andino. Analisando o mercado de arte popular, ele diz que eventualmente ocorre lhe serem oferecidas peças raras ou Continente abril 2005
importantes de acervos pessoais. Mas, como colecionador experiente, adverte: “É preciso ter cuidado ao adquirir peças de grandes mestres, é preciso entender mesmo das coisas.” E previne que, apesar de ser muito difícil, nesse mercado até os mais experientes às vezes se confundem com peças atribuídas a Vitalino, especificamente em temas trabalhados à exaustão pelo Mestre, como as famílias de retirantes. Perguntado se há um mercado de falsificações, diz que neste segmento a falsificação é rara ou nenhuma. Mesmo com a fama alcançada por Vitalino – que se tornou sinônimo ou substantivo para os bonecos de barro de Caruaru –, Jarbas explica, no entanto, que outros dois mestres ceramistas podem ser, por razões específicas, considerados até maiores que o emblemático artesão: são eles Manuel Eudócio e Zé Caboclo. Este último, contemporâneo de Vitalino e falecido pouco depois do amigo, é pai de três importantes artesãos que hoje têm seus
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Antônia Leão, cerâmica, Tracunhaém-PE
uma reverência sempre admirada, que se renova a cada pergunta do visitante, às quais responde com a alegria de uma primeira vez. Sua casa, de tão habitada pela arte, não parece apenas uma casa, mas um lugar que se multiplica em seu próprio espaço, e cresce indefinidamente como o que faz de um bonequinho de barro um valioso registro na vida deste colecionador. Na mostra do Instituto Cultural Bandepe, cada peça representa o exercício que o homem Jarbas Vasconcelos transformou em patrimônio, e como resultado de sua sensibilidade, ilustra um importante capítulo da história da arte brasileira. • Michele Zollini / Ag. Balão
nomes entre os melhores de Caruaru: Marliete, Antônio e Socorro. (Já em relação aos trabalhos em madeira, os artesãos do sul de Minas Gerais são considerados por Jarbas os mais habilidosos e reconhecidos.) Ao percorrer os diversos aposentos de sua casa, que tem a ambiência de um museu de arte popular, Jarbas pára diante das prateleiras e vitrinas para nos mostrar o detalhe meticuloso de uma figura, de um pequeno animal de barro – como a robustez inimitável de um velho Boi de Vitalino –, e descrever ou explicar traços minuciosos de seus personagens preferidos. Guarda, por alguns artesãos,
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Exposição: Arte Popular – Coleção Jarbas Vasconcelos De 30 de março a 15 de maio de 2005 Galeria térrea – Instituto Cultural Bandepe Av. Rio Branco, 23 – bairro do Recife. Horário: de 3ª a 5ª–feira, das 14h às 20h; de 6ª a domingo, das 14h às 22h. Entrada: Franca Idealização / Coord. Geral: Carlos Trevi Curadoria: Janete Costa Textos: Maria Lucia Montes Produção: Ana Gonçalves Informações: tel. 3224-1110 ou www.culturalbandepe.com.br
Jarbas cercado por sua coleção: mais de 1.500 peças de todo o mundo
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Olha eles aí outra vez O terrorismo que hoje move montanhas, move também o mundo
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o que me parece, trazendo mais horripilantes e repelentes ventos de um fim de tempo. Algum tempo, quem sabe, por terminar para um punhado de povos. Passo até a acreditar que o anticristo já anda por aí pintando ordens aos seus súditos mais frios e audaciosos do mal. De todos os ares sopram ardilosos recados, precedendo chuvas de sangrentas novas invasões com terríveis bombas batizadas com nomes sincretizados e sincronizadas a partir dos fictícios deuses da guerra de Toland. Na verdade, o terrorismo que hoje move montanhas, move também o mundo. Não estamos mais na época da Revolução Francesa, da queda dos girondinos em 1793 à queda de Robespierre em 1794 – com datas curtas e nunca marcadas. Não estamos simplesmente vivendo aquele terror branco, abrangendo os excessos perpetrados pelos realistas do Sul da França durante os primeiros anos de restauração ou da Guerra Fria iniciada nos anos 50. Convivemos, sim, com um terrorismo provocativo e reativo. É o modo de coagir, ameaçar ou influenciar pessoas ou impor-lhes a vontade – uma forma política violenta de se mostrarem poderosos e ricos belicistas. Acabou-se aquela história de se lutar por etnia ou religião – agora, mais forte do que nunca, é a expansão do domínio pela força insana e brutal. A maldade está presente e configurada em ambas as partes meliantes e preliantes. Em negras nuanças lúgubres e aziagas, antevia Augusto dos Anjos, as terribilíssimas adagas atravessam os ares bruscamente. E assim, depois do Iraque do famigerado Saddam, voltamos a nos preparar para vermos, extasiados, outra preparação de guerra contra o chamado “eixo do mal” – uma aparente parábola do patético senhor Bush preconizando, oxalá, alguns fins de tempos. Os ventos, por exemplo, que ele sopra para o Oriente Médio, são ventos do mal – ventos mórbidos abençoados pelo senhor Sharon. A grande maioria dos israelenses, gente sofrida por isso de boa índole, já deveria tê-lo derrubado do poder, idem com os norteamericanos, que nas recentes eleições perderam a chance de Continente abril 2005
execrar pelo voto livre o senhor Bush, ambos apodrecendo de maldades – tais como foram eliminados da vida pública os Hitler, Mussolini, Stalin, o Reino Unido colonizador, Mao e o quinto cavaleiro. É vero que tanto o dizimador de Shatila está unha e carne com o anticristo quanto o megalomaníaco texano, que recomeçou a expor suas patadas em pauta, ameaçando Irã, Síria, Coréia do Norte, pondo a paz da Terra novamente em progressivo perigo. Pois é. Não crêem em Deus nem acreditam em Jesus Cristo – isso é muito ruim. Por outro lado, a maioria dos fanáticos religiosos e extremistas de costumes idiotas, formados por árabes – palestinos, xiitas, sunitas, curdos e talibãs –, com todo potencial fundamentalista, vivem a se dar ao luxo de se tornarem artefatos humanos, explodindo-se em quaisquer esquinas de bodegas, tirando vidas inocentes pelo mundo afora. Tudo em nome de Alá – o Deus de seus povos. A ONU já não serve pra nada. Bush não liga pra ela, tampouco Sharon, muito menos Blair, que não dão a mínima bola para Chirac e Shoereder, sequer para os chineses, japoneses e coreanos. Incrível é que somente a Rússia de Putin e seus vizinhos (antes soviéticos, supremos e frios) parecem impor um pouco de respeito, visto ainda guardarem um grande naco de ogivas nucleares nos undergrounds siberianos e nos fundos do Báltico. Olhe, minha gente, no dia em que o Paquistão der na telha uma cabeçada, a Índia acordar com chicotinho intestinal e o homenzinho de cabelo em pé da Coréia do Norte tiver uma unha encravada, crostas secas de terras continentais se dividirão, boiando a esmo pelos oceanos. E só restará o silêncio dos inocentes. Os que conseguirem se safar a tempo que cuidem de juntar seus teréns e se mandem logo pra cá, porque lá vêm eles aí outra vez. Aqui, pelo menos temos o nosso falador Lulinha paz e amor, longe desses deuses da guerra que se alimentam das suas próprias vaidades. •