Continente #053 - Escritores artistas

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Reprodução

EDITORIAL

A Erupção do Vesúvio, pintada por Goethe

Escrever e pintar

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o Renascimento, o artista, não raro, era cientista, botânico, escritor, poeta, músico, desenhista, como por exemplo, Albrech Dürer (pintor alemão com conhecimentos matemáticos e de geometria) e Leonardo da Vinci (além de pintor, escultor e arquiteto, tinha conhecimentos de música, geometria, biologia, hidráulica, anatomia, entre outros). O humanismo renascentista, onde o homem é o principal personagem do universo em contraposição ao teocentrismo medieval, considerava a nãoespecialização e o conhecimento abrangente juntamente com a inteligência e domínio artístico, as qualidades mais valorizadas. Vêm daí as raízes do fenômeno moderno de escritores que, mais do que terem também aptidões como artistas plásticos, integram as duas linguagens ou formas de expressão num trabalho indissociável. É o caso de Günter Grass, Goethe, Exupéry, Ariano Suassuna, Luís Jardim e outros em menor escala. A matéria de capa desta edição passeia pelos universos desses escritores, desnudando uma feliz conjugação entre esses campos, como decorrência da tradição do “artista completo” inaugurada pelos renascentistas. Outro destaque desta edição é o marco, agora em maio, dos 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, na Europa (o conflito ainda se estenderia até agosto de 1945, no Oriente, com a explosão da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki e a rendição do Japão). Os artigos abordam as horas finais do staff do ditador Hitler, diante da derrocada do sonho do império ariano; a persistência da esperança e da poesia, constatadas por um judeu que visitou há alguns anos dois famigerados campos de concentração na Polônia, e as surpreendentes premonições de Eça de Queiroz, ao analisar a questão judaica na Alemanha, em 1880. •

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46 O impacto atual do Expressionismo alemão

Moça com Maçã, de Günter Grass

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CAPA

08 Da pena ao pincel: escritores que integram a linguagem das artes plásticas e da literatura

LITERATURA

20 Álvaro Lins, o antigo “imperador” da crítica literária 24 25 26 28

A política como vocação final O lirismo contido de Fábio Andrade A prosa irônica de Ivana Arruda Leite Agenda livros

REGISTRO 55 Os encontros internacionais da Imprensa Oficial

ESPECIAL 60 Há 60 anos terminava a “última guerra justa” 66 A tragédia dos campos de concentração 68 A premonição de Eça

CINEMA 74 Autor do Relatório Kinsey vira personagem

CONVERSA

MÚSICA

COMPORTAMENTO

84 Ismael Silva e a invenção da escola de samba 88 Uma mini-enciclopédia do violão brasileiro 90 Agenda música

32 Brasil e Haiti na visão do sociólogo Laënnec Hurbon

38 Uma Buenos Aires de outrora na cidade de hoje

ARTES 46 A violenta atualidade do Expressionismo alemão 54 Agenda artes

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CÊNICAS 91 Humor e sensualidade no Mundo Perfumado 95 Agenda cênicas


DIvulgação/Municipalidade de Buenos Aires

CONTEÚDO

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A plasticidade do grupo mineiro Primeiro Ato

A atmosfera retrô de Buenos Aires

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 A burocracia mantém o poder das instituições

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 30 A economia da cultura merece mais atenção

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 44 Os trabalhos fascinantes e mágicos de Palatnik

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 70 A culinária da Igreja foi sempre meio diferente

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 73 Guerra: ambulâncias, frente ao mar, descarregavam feridos

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 82 Os contos de tradição oral e nossos políticos

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 A escolha do novo Papa Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente maio 2005


CRÉDITOS

Foto: Editora Steidl/Reprodução

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Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly

Maio | 2005 Ano 05 Capa: O escritor Günter Grass

Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta e Daniel Sigal Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Anna Karolina Pereira de Melo Renata Melo Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Demosthenes Galvão Gestor Comercial Octacílio de Oliveira Penteado Filho Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente maio 2005

Colaboradores desta edição: BETÂNIA UCHÔA CAVALCANTI-BRENDLE é arquiteta, PhD em História Urbana. DÉBORA PINHEIRO é jornalista. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. EDUARDO GRAÇA é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é escritor e cineasta. FLORIAN MADRUGA é jornalista e diretor-executivo do Instituto Legislativo Brasileiro, do Senado Federal. HUMBERTO FRANÇA é escritor. JACQUES RIBEMBOIM é doutor em Economia e professor da UFRPE. JULIO MOURA é jornalista e compositor. LUÍS REIS é jornalista e professor de Teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura. MARIANA CAMAROTTI é jornalista e faz especialização em Jornalismo Econômico na Universidade de Buenos Aires (UBA) PAULO

POLZONOFF

JR é jornalista.

RODRIGO PETRÔNIO é escritor e autor de Transversal do Tempo (ensaios), História Natural (poesia) e do livro de poemas Assinatura do Sol, que será lançado em Portugal, entre outros.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.


CARTAS Orgulho Parabéns, Ricardo Paiva, pelos seus comentários. A imparcialidade é fundamental. É lendo revistas como a Continente Multicultural que o meu orgulho de ser pernambucano aumenta ainda mais. Marco Aurélio Gomes de Souza “Parabém” Muito bem escrito, como tudo de sua lavra, o artigo de José Neumanne Pinto! Muito pertinente e generoso, ao distinguir quem domina a língua portuguesa de quem fica aí proclamando baboseiras modernosas. O mesmo seja dito de Alberto da Cunha Melo. Sempre leio com mais gosto poetas que fazem prosa, eles cuidam, como eu tento, mas nem sempre com sucesso, atentar para a poesia da prosa. O artigo do Alberto, além de qualidades como coesão e unidade, tem o gosto de uma prosa poética. “Parabém” — assim no singular, como gostava de grafar o Padre Antonio Vieira, para ter mais força — à Continente por abrigar escritores tão relevantes: um romancista notável e um poeta de nossos melhores. Deonísio da Silva, Rio de Janeiro-RJ Continente Turismo Gentilmente chegou às minhas mãos um exemplar completo da edição especial nº 03 da Continente Turismo. Antecipadamente, parabenizo a brilhante iniciativa em editar tão importante material, de qualidade fotográfica impressionante, sobre o turismo em nosso Estado, com o aval desta conceituada Revista e da Companhia Editora de Pernambuco, que muito envaidece todos os pernambucanos e é mais um apoio para colocar nosso Estado na vanguarda do turismo nacional. Mas, infelizmente, nem tudo está perfeito, e, com todo respeito, gostaria de externar, como uma crítica construtiva, a pouca relevância destinada a esta cidade – Cabo de Santo Agostinho – que possui uma das mais belas orlas do litoral pernambucano, contemplando 24km com oito praias belíssimas (Paiva, Itapuama, Xaréu, Enseada dos Corais, Gaibu, Calhetas, Paraíso e Suape), além do acervo histórico preservado do século 16 (Vila de Nazaré), o mar,

a fauna e a flora, tão privilegiadas nesta cidade. Quanto ao guia de serviços, no tocante às informações, é um desastre. O telefone que está veiculado não atende a nenhuma chamada; o conteúdo informativo sobre hotéis está totalmente desatualizado e equivocado – nunca existiu o Hotel Maré Mansa e o Hotel Privê Costa Dourada, e não está informado o terceiro maior hotel da região, o Hotel Enseada dos Corais, como também a mais bem instalada Pousada Caravelas de Pinzon. Quando vamos para os bares e restaurantes listados, a desatualização ainda é maior, pois vários deles inexistem, além de que os dois melhores restaurantes da cidade não foram sequer citados, o Marinos e o Opará. Espero que, na grandeza dos que fazem este veículo de informação, sejam as críticas encaradas como construtivas, uma vez que só objetivam atualizar o material de divulgação sobre nossa cidade nas próximas edições. Alberto de Barros Lima, Presidente do Trade Turístico do Cabo de Santo Agostinho Tema para pesquisa Sou constante leitora da Revista Continente Multicultural e bolsista PIBIC da Universidade Federal de Pernambuco. Estudo neologismos e regionalismos da fala e estou pensando seriamente em colocar a Continente em minha área de estudo. Rebeca Lins, Recife-PE Carnaval Simplesmente brilhante a Continente Documento nº 30 – “Carnaval: luta de classes ou espetáculo”, de Roseana Borges de Medeiros. Todavia, há um pequeno lapso, quando afirma que a Commedia dell’Arte surgiu na França. Na realidade, é originária da região onde hoje é a Itália, com os personagens Colombina e Arlequim e, somente muitos anos após, essas companhias mambembes foram para a França e outros países ao Norte da Europa, surgindo aí o Pierrô. Há uma obra muito elucidativa que aborda o assunto, A Commedia dell’Arte no lirismo do Carnaval de Pernambuco, do poeta João Araújo, recomendável a todos os interessados no tema. Walter Marques, Paulista-PE Bálsamo Estou voltando a assinar a Revista. Confesso que não exatamente eu, mas, sim, a minha saciável inspiração. Não encontrei em nenhuma revista o bálsamo cultural que encontrei

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

nesta. Será que, nesta minha nova assinatura, eu já posso receber a edição de março? André Luiz dos Santos Mesquita, Cabo Frio-RJ Distribuição Por favor: por que a Revista só chega aqui, quase um mês depois de ser publicada? Hoje é dia 23 e ela não está na única banca que se encontra aqui em Brasília. Se houvesse uma distribuição profissional desta Revista aqui em Brasília, haveria maior venda. Conheço muitas pessoas que a comprariam, se a ela tivessem acesso. Ou melhor: se vocês não querem vendêla tanto, pelo menos pensem na possibilidade de um maior número de pessoas lendo-a. Uma revista dessa, se fosse vendida na Câmara dos Deputados, por exemplo, venderia muito. Nonato Véras, Brasília-DF Embaixador Adorei ter recebido e lido a vossa Revista Continente. Muito linda e bem feita; apresentei-a a todos os meus amigos de Israel e me tornei, dessa forma, embaixador das coisas lindas do Brasil. Mordechal Napchan, Petah-Tikua, Israel Capa A capa da Continente, edição 51, está belíssima. Mas confesso que me assustei um pouco: confundi a atriz da foto com um polêmico astro pop – jurava que era Michael Jackson. Ludmila Brandão, Recife - PE. Sabores Adorei a coluna “Sabores”, edição nº 51. Maria Lecticia costuma trazer temas interessantes sobre culinária, e a inserção dos ingredientes, em um contexto histórico, torna o ato de cozinhar, no mínimo, curioso, até para quem não é grande admirador da arte culinária. Cassilda Barros Leal, Paraná - PR Eco Parabéns pela matéria de Luciano Trigo, na edição nº 51, sobre o livro A História da Beleza, de Umberto Eco.Terminei comprando o livro – que é fabuloso. Cássia Soares, São Paulo - SP Continente maio 2005

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CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes

O poder da burocracia Os mortais não tomam as decisões que querem, mas as decisões que podem

O

Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, em declarações recentes, disse que o Papa João Paulo II, numa de suas visitas ao Brasil, tinha lhe garantido que a Arquidiocese de São Paulo não seria dividida. Logo que o Papa deixou o Brasil, o Cardeal Arns foi notificado pelo Vaticano de que a Arquidiocese estava dividida em quatro, o que permanece até hoje, tendo levado aquele Cardeal a duvidar do real poder do Papa sobre a Cúria Romana. Esse caso mostra que nem a experiência de grande pastor e líder da Igreja Brasileira foi suficiente para que o emérito Cardeal compreendesse a força e o poder do modelo burocrático – formulado por Max Weber à luz da própria estrutura da Igreja. Acredita-se que, antes da visita do Papa, a própria Cúria Romana já tinha definido a sua estratégia e cristalizado o seu tempo de mudança. Tudo já estava consumado. O Papa representa, mas não é a Igreja. Seja no Brasil, ou em qualquer rincão do planeta, os governantes têm pleno conhecimento das limitações de seu poder diante do poder burocrático. O maior desafio deles, hoje, é a luta contra os fantasmas deste poder. A burocracia simplesmente existe como requisito de sobrevivência das organizações. Qualquer esforço de mudança é sempre objeto de muitos recursos e muita energia. Mantê-la antenada com as mudanças do mundo requer tempo, obstinação e perseverança. Nesse aspecto, uma coisa que a Igreja pode nos ensinar é que as mudanças requerem tempo – e tempo certo. Daí ser compreensível o seu fundamentalismo ao condenar o aborto, a união homossexual, o uso de células-tronco e a camisinha. Conservare é palavra, conceito e estratégia. Do alto dos seus dois mil anos de história, a Igreja ultrapassou todas as crises. Sobreviveu a todas as guerras. Foi perseguida e ainda, em alguns países, sofre perseguições. Silenciou quando era esperado o seu grito. Foi poder real e espiritual. Cometeu também grandes pecados – o próprio Papa João Paulo II os reconheceu e pediu perdão pelos erros cometidos. Não obstante, mantém-se viva, em função de uma invejável estrutura burocrática que preserva os valores herdados por séculos. Sua estrutura de poder e sobrevivência é tão marcante que foi objeto de inspiração de Max Weber como paradigma para a formulação do arquétipo de racionalidade do modelo burocrático, hoje adotado nas organizações do mundo inteiro. Todavia, tanto para Weber quanto para Herbert Simon, a racionalidade no mundo real tem limites. Os seres humanos,

mesmo aqueles com inspiração divina, não tomam as decisões que querem, mas as decisões que podem. O próprio Karol Wojtyla foi eleito Papa em função de um impasse entre os dois cardeais mais votados. Foi a vitória do Espírito Santo. O constrangimento do Cardeal Arns, por não ver atendido o seu pedido, é explicado pelas limitações intrínsecas ao poder nas organizações, em que nenhum mortal é líder, impondo suas idéias e predileções. Saint Exüpéry dizia, no Pequeno Príncipe, que até para os reis manterem o seu poder teriam que aprender a dar ordens razoáveis. A despeito do conservadorismo, foi através da razoabilidade das decisões como Papa e ator político que a ação pastoral de João Paulo II teve alcance global. A mídia foi decisiva para isso. Se alienou muitos com suas certezas, seduziu multidões com seu carisma. Certamente, foi através dos hierarcas da Cúria Romana que pautou seu pontificado, fazendo com que a Igreja preservasse os valores que herdara do passado. Além do poder burocrático, usou o poder político para combater a opressão do comunismo e a injustiça do sistema capitalista. Conservador no Brasil, foi revolucionário na Polônia. Um político de habilidade genial. No fim, com sua agonia exposta ao mundo, ficou claro para todos nós que a morte e a burocracia fazem parte da vida. Com a eleição do Cardeal Ratzinger, a estrutura burocrática da Igreja, com o seu poder institucional, consolida-se como depositária de atos e fatos – que preservam os valores do passado – e de estratégias que proporcionam através da fé os caminhos do futuro. É assim que mantém o seu poder por todos os séculos dos séculos. Amém. • Continente maio 2005

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CAPA

A pena e o pincel Escritores-artistas, como Günter Grass, Johann Goethe, Ariano Suassuna, Gilberto Freyre e Luís Jardim, têm raízes no Renascimento que enaltecia o artista completo Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle

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intura, gravura, escultura, desenho, o que inspira ou motiva escritores a se manifestarem plasticamente e o que eles têm em comum? Esta dualidade literária e artística encontra raízes no Renascimento, onde o artista era, não raro, cientista, botânico, escritor, poeta, músico, desenhista, como por exemplo, Albrech Dürer (pintor alemão com conhecimentos matemáticos e de geometria) e Leonardo da Vinci (além de pintor, escultor e arquiteto, tinha conhecimentos de música, geometria, biologia, hidráulica, anatomia, entre outros). O humanismo renascentista, onde o homem é o principal personagem do universo, em contraposição ao teocentrismo medieval, considerava a não-especialização e o conhecimento abrangente juntamente com a inteligência e domínio artístico, as qualidades mais valorizadas. Cantar e tocar um instrumento eram talentos desejáveis ao homem culto da renascença. A conjugação da expressão literária e plástica é, portanto, uma decorrência natural dos múltiplos talentos e possibilidades de expressão do escritor-artista que, em momentos e contextos diversos e motivados por razões ou inspirações distintas, recorre às artes plásticas como atividades paralelas como Goethe, Gilberto Freyre, Hans Christian Andersen, cujo bicentenário está sendo comemorado com uma exposição de seus trabalhos no Continente maio 2005

Museu de Odense, Dinamarca, Hermann Hesse que, em 1920, publica o livro Wanderungen (em português, Caminhadas) com textos e aquarelas, e, Heinrich Mann, autor de Blauer Angel, que desde a juventude desenhava e pintava e cujo trabalho gráfico foi publicado recentemente em Liebschaften und Greuelmärchen. Die unbekannten Zeichnungen von Heinrich Mann (Skierka Volker, 2001). Nele, 400 desenhos e algumas aquarelas cujos temas incluem cenas de rua e dos bordéis de Lübeck, onde vivia, auto-retratos e cenas sensuais e de sexo, severamente criticados pelo irmão Thomas Mann. Johann Wolfgang Goethe, em sua viagem pela Itália, entre 1776 -78, então com 27 anos e já consagrado pelo sucesso literário de Werther, se aproxima de Vitruvio através dos escritos de Andrea Palladio que lhe abre “o caminho para toda arte e toda a vida”. O interesse de Goethe pela pintura (Ticiano, Rafael, Rubem), arquitetura, natureza e construção das cidades e seus conhecimentos de botânica (escreve A Metamorfose das Plantas), zoologia, mineralogia, ótica, geologia, aproximam-no do ideal do artista completo do Renascimento. O contato com o mundo das artes emociona e surpreende Goethe e lhe revela um universo até então desconhecido. Em suas cartas de viagem que publica em Italianische Reise, declara: “...agora, volto minha atenção para o arquiteto, o escultor e o pintor, e também


Imagens: Reprodução

Litoral Napolitano, pintura de Goethe

Retrato de Goethe, pintado por Tischbein, em Roma

em seu meio vou aprender a encontrar-me”. Estuda perspectiva com o pintor-arquiteto Maximilian von Verschaffelt e pintura de paisagens com Jakob Philipp Hackert, de quem recebe forte influência e severas críticas, e tem aulas de desenho com o pintor Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, seu conselheiro e guia para assuntos artísticos, com quem Goethe divide um apartamento em Roma. Tischbein acreditava que “o poeta e pintor deveriam trabalhar em conjunto para, já desde o princípio, construir uma unidade”. Adotando este princípio, em 1821, Goethe publica pela primeira vez suas poesias e seus próprios desenhos em Zweiundzwanzig Handzeichnungen von 1810, apresentando seu WortBild-Projekten, onde palavra-imagem e poesia-desenho são indissociáveis, ou seja, são produzidas conjuntamente. Outros escritores como Günter Grass, Luís Jardim, Ariano Suassuna e Antoine Saint-Exupéry têm sua obra artística integrada à literária. Este último, filho de nobres franceses de Lyon, recebe aos 14 anos um prêmio pelo seu ensaio literário L´Odyssée d´um Chapeau Haut de Forme e, aos 19, inscreve -se na Escola de Belas Artes, na seção de arquitetura. No eclodir da Segunda Guerra Mundial, em 1939, recebe o Grande Prêmio da Academia Francesa pelo livro Terra dos Homens e, em 1943, O Pequeno Príncipe, um texto ilustrado integrado ao texto escrito, é publicado em mais de 80 línguas. Na história, o piloto-narrador é também um desenhista que desde a primeira página integra com freqüência texto e imagens aquareladas em alusões integradas à trama da história. • Continente maio 2005


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Editora Steidl/Reprodução

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Günter Grass no atelier de gravura de Anselm Dreher, Berlim, 1977 Na pág. seguinte: Aua, terracota, 1982

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CAPA

Prêmio Nobel de Literatura, escritor alemão teve carreira paralela de artista plástico e integrou as duas linguagens de uma forma plena

Günter Grass, a palavra insuficiente P

oucas pessoas no Brasil conhecem o Günter Grass escultor, pintor de aquarelas, desenhista de bico de pena e carvão e gravurista. O Prêmio Nobel de Literatura de 1999, nascido na cidade alemã de Danzig (hoje Gdansk, Polônia), que como muitos de sua geração pertenceu à Juventude Hitlerista, foi soldado do exército alemão ferido em batalha e prisioneiro em Marienbad, antiga Tchecoslováquia, começou a escrever e a desenhar a natureza aos 12 anos. Nada ficou desta época. A guerra destruiu tudo. Entre os 13 e 14 anos, Grass teve sua primeira experiência estética ao visitar sua professora de desenho, que também era escultora -...“ela tinha 25 anos e me convidou à sua casa...lá tinha mais quadros que na minha casa ...e sobre a mesa, catálogos dos anos 20. Lá eu vi Picasso, HeckelKirchner e Barlach. ...isto produziu um efeito dentro de mim, na minha mente e espírito”. Desde cedo, Grass lia muitas monografias de artistas, desenhava e fazia esboços de pessoas na rua, cenas do cotidiano, mulheres e animais. “Ich habe immer gezeichnet” (Eu sempre desenhei). Na Luftwaffe, no hospital militar, como prisioneiro de guerra. Sempre. E escrevia poesias também. Na Alemanha do pós-guerra, a euforia cultural dos escritores, artistas, poetas e jovens o contagia e lhe revela um grande desejo de desenhar e escrever. Estava de-

terminado a se tornar um artista e viaja para Düsseldorf atraído pela Düsseldorf Künstakademie. Lá trabalha, inicialmente, fazendo lápides de pedra no cemitério Stommeler Friedhof e divide um quarto com 10 pessoas no antigo Caritas-Heim e, em 1948, quando a Kunstakademie reabre, Günter Grass é o primeiro aluno a se inscrever. Outra revelação: ele era músico também. O Jazztrio Grass se apresentava num bar em Düsseldorf. Suas primeiras esculturas, Moça com Maçã (Mädchen mit Apfel, 1950) e O Pássaro (Die Vögel, 1955) possuem uma linguagem simplificada, limpa, pura e ainda sem o acentuado apelo figurativo. Segundo Grass, esses trabalhos carregam influências de seus primeiros mestres Sepp Mages, Otto Pankok e Karl Hartung. Suas primeiras tintas de aquarela!!! ...uma alegre extravagância adquirida com o dinheiro de seu duro trabalho como cortador de pedras para a recuperação de casas destruídas na guerra em Düsseldorf. Tintas profissionais embrulhadas cuidadosamente em papel-seda com etiquetas escritas: vermelho-carmim, ocre, azulcobalto... Em 1952, viaja pela França e entre 1956-1960 vive em Paris, onde conhece Paul Celan e registra não somente rostos, pontes, pessoas, ruas, cafés, mas principalmente tudo que o III Reich tinha

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Loest. Lá estuda escultura com Karl Hartung na Hochschule für Bildende Künst e adota definitivamente o figurativo, que muito o agrada plasticamente, como caminho e estilo próprio, gerando com isso a polêmica recusa de seus trabalhos para a uma exposição de desenhos da Federação de Artistas Alemães. Recusados “não porque eram desenhos ruins, mas, infelizmente, figurativos”, como declarou Grass em entrevista a Heinrich Vormbeck, em 1985. Essa recusa ocorre numa época em que a arte abstrata e o Modernismo simbolizavam a postura estética “aceita” na República Federal da Alemanha, uma confrontação dialética com o realismo socialista imposto pela URSS no auge da Guerra Fria aos países do bloco soviético. Mais tarde, Hühn (O Galo), entre 1983-86, Günter Grass vem a ser presiaquarela dente da Berlin Künstakademie. 1954 O crítico de arte e proibido e privado à sua geração: o contato com os professor de literatura Hans clássicos modernos Soutine, Picasso, Chagall, Dufy Mayer afirma que os anietc. Grass se permite curtas experiências e releituras mais de Günter Grass não cubistas de extrema leveza e simplificação formal em são símbolos, mas criaturas aquarelas e desenhos, como em um de seus primeiros verdadeiras, existentes trabalhos Huhn ou Galo, de 1954. E pinta em papel de e reais e que com embrulho mesmo, pois papel Ingres e qualquer outro eles Grass traz papel de aquarela era então, para ele, muito caro. Ainda o verdadeiro nesta época, Grass realiza algumas esculturas em barro e o vivo pae começa a escrever e compor seu primeiro romance, O ra a sua Tambor (Die Blechtrommel, 1959), que filmado por Volker Schlöndorff, vence o Oscar de melhor filme estrangeiro 20 anos depois. Em O Tambor, a forma literária, como em um cordel, cresce junto com as figuras dos personagens de seu romance. Do artista plástico surge o escritor que vai utilizar elementos do grotesco e do fantástico, como Oscar Matzerath, o menino que Rücken an tem em seu tambor o único elemento de comunicaRücken (Costa a Costa), 2002 ção com o mundo, recusando-se a crescer e a falar em protesto contra as crueldades da história alemã. Grass perde o interesse na França impregnada do regime direitista do general de Gaulle e volta para Berlim, onde convive com Uwe Johnson e Einzensberger, e começa a desenhar as capas de seus livros e de outros autores como Ingeborg Bachmann, Reinhard Lettau e Erich

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Editora Steidl/Reprodução

Dirk

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Editora Steidl/Reprodução

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Ilustração para o livro Fundsachen für Nichtleser,

linguagem e modo de escrever, e para os personagens de suas histórias. Interessado no realismo das figuras vivas, como linguagem e expressão, Grass distancia-se naturalmente da arte abstrata como plástica e estética. Em seus livros, caranguejos, peixes, ratos, cachorros, lesmas, caracóis, enguias, pássaros etc., são a expressão de seus personagens, às vezes caricaturados, deformados, grotescos, que muitas vezes inspiram asco, nojo e náusea. Sua obra literária se completa com sua obra artística e plástica. Em Berlim, Günter Grass engaja-se na militância política e desenha os cartazes da campanha publicitária do Sozialdemokratische Partei Deutschlands – SPD,

(Partido Social Democrata Alemão) que elege Willy Brandt (Prêmio Nobel da Paz e amigo pessoal) chanceler da República Federal da Alemanha. Desde então, Günter Grass tem lutado contra todo e qualquer tipo de totalitarismo, xenofobia e nacionalismo, e seu engajamento político tornou-se parte indissociável de sua existência. Sua obra crítica permitiu que a Alemanha do pósguerra pudesse se redimir do sentimento de culpa do Nazismo. Em Im Krebsgang (Passo de Caranguejo, Nova Fronteira 2002), o escritor aborda novamente o tabu da culpa alemã e vai mais além ao conclamar os filhos e netos de sua geração para que não permitam que as atrocidades do Nazismo voltem a acontecer. A favor da Continente maio 2005


Imagens: Editora Steidl/Reprodução

Aquarela e texto para a edição especial alemã de Meu Século, 1959, ano de lançamento de O Tambor

liberdade e contra todo tipo de opressão, posicionou-se contra a reunificação da Alemanha, comparando-a com a anexação da Áustria pelos alemães em 1938. Grass, uma das vozes políticas mais importantes e ousadas da Alemanha, em recente entrevista declarou que Bush é “uma ameaça à paz mundial”. Ao escrever Tagebuch einer Schnecke (ainda inédito no Brasil) e Der Butt (O Linguado, livro esgotado, publicado pela editora portuguesa Inquérito, em 1986), faz simultaneamente gravuras em chapas de cobre, cuja técnica, segundo Grass, exige muita precisão e concentracão, e desenha a bico de pena, grafite e carvão. Como afirma em seu livro Gebrannte Erde, (Steidl, 2000), onde apresenta seu trabalho em barro: “o que eu escrevia, transformava imediatamente em imagem”. Depois de um longo período de desenhos em grafite e carvão, onde o cinzento e o preto predominam, Grass descobre a cor outra vez e realiza uma exuberante produção de aquarelas carregadas de fortes verdes, azuis, amarelos e vermelhos, compondo paisagens, árvores em flor, peixes, frutas e objetos de sua predileção, afastando-se do cinzento e descobrindo um novo mundo de prazer estético. Vai mais além e se permite mais um experimento: às aquarelas, mistura letras, frases e linhas inteiras de poesias escritas à mão-livre. Daí resulta o ainda inédito no Brasil, Fundsachen für Nichtleser e Mein Jahrhundert (Meu Século, Record, 2000), 100 páginas pintadas e escritas à mão, uma história do século 20 contada sob sua perspectiva.“Cada Continente maio 2005

O Linguado), 1977, Editora Capa do livro Der Butt (O Luchterland. O Pássaro), 1954 Abaixo, escultura Die Vogel (O

ano tinha sua marca. Às vezes, a imagem vinha primeiro, noutras, a história... No final das 100 páginas, eu percebi quanta liberdade o uso da aquarela tinha me proporcionado e exigido de mim uma nova disciplina”. Uma seleção de sua obra literária e artística, que inclui 3000 desenhos e aquarelas, 450 gravuras e 100 esculturas, pode ser vista na Günter Grass-Haus. Forum fürLiteratur und bildende Kunst, na Glockengieben Strasse 21, em Lübeck, norte da Alemanha, onde vive há alguns anos. De acordo com a instituição inaugurada em 2002, o objetivo é complementar a exposição permanente de Günter Grass, com exposições rotativas, enfatizando a sua variada produção artística, promovendo o diálogo entre palavra e imagem. Além disso, o trabalho de outros artistas-escritores será objeto de exposições especiais como a Diesseits und jenseits von Arkadien. Goethe und Grass als Landschaftszeichner, exposição do trabalho de Goethe e Grass, escritores-artistas, desenhistas de paisagens. A Günter Grass-Haus (www.guenter-grass-haus.de) oferece ainda uma loja com objetos, cartões-postais e edições de sua obra em vários idiomas, uma biblioteca para pesquisas (aberta ao público) e um jardim com esculturas, onde, no verão, se pode beber um bom vinho da Weincastell, do amigo Kurt Tachter, e com sorte encontrar o sisudo Grass com seu inseparável cachimbo. (BUC-B) •


Reprodução

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Alto da Misericórdia, de Gilberto Freyre

Freyre e o escândalo moderno Autor de Casa-Grande & Senzala, que aprendeu a desenhar antes de escrever e ler, fez ilustrações e croquis para sua própria obra

R

ecife-Brasil, começo do século 20. Gilberto Freyre, aos 7 anos, é aprendiz de Telles Júnior, pintor brasileiro de tradição acadêmica, com quem estuda desenho. O mestre se enfurecia com “seu menino”, como o chamava: “...você tem a mania de não copiar os modelos... de querer inventar... seu irmão copia direito, você altera”. O testemunho de José Lins do Rego, no prefácio da edição de 1941 de Região e Tradição é revelador: “O mestre falava zangado. Defendia zangado o classicismo acadêmico. O aprendiz era aos 7 anos um deformador. ...o deformador maior talvez fosse o mestre não querendo que o menino romântico se afastasse de seus modelos”. Já o inglês, Mr. Williams, com quem se iniciara no estudo do desenho e da língua inglesa, segundo Gilberto Freyre, em trechos de seu diário de adolescência, o aconselharia a “continuar desenhando

como eu desenhava”. Assim desenha muito e muito cedo, fazendo caricaturas, retratos e paisagens. Mais tarde, Gilberto Freyre faz ilustrações para Sobrados e Mucambos, desenhos – ainda hoje inéditos –, para seu romance Dona Sinhá e o Filho Padre e o croqui que serviu de base para a aquarela de Casa-Grande, magistralmente pintada por Cícero Dias. Como diretor do jornal A Província, Gilberto Freyre abre espaço para “escandalosos desenhos modernos” de Cícero Dias e Luís Jardim, provocando, em vão, protestos da elite conservadora do Recife. Ele mesmo, que considerava Vicente do Rego Monteiro um dos pintores mais fortes do Brasil, se dedica também à pintura e se revela, segundo José Lins do Rego, “um apaixonado da cor e das formas que fossem mais poéticas do que exclusivamente geométricas”. (BUC-B) • Continente maio 2005


CAPA

A paixão de Jardim

Imagens: Reprodução

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Desenhista e escritor em igual medida, Luís Jardim obteve prêmios e reconhecimento internacionais

Desenho de Luís Jardim para o Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife, de Gilberto Freyre, 1934

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uís Jardim: desenhista, pintor, jornalista, contista, romancista, dramaturgo, tradutor da peça – A Morte do Caixeiro-Viajante, de Artur Miller – e escritor de histórias infantis. Vem de Garanhuns para o Recife aos 17 anos, depois de uma tragédia conhecida como a “hecatombe”, que dizima toda sua família. A trajetória de Luís Jardim é impressionante. Primeiro surge o artista – “...lá (no Recife) eu adquiri o sentido plástico da arte”– depois, o escritor. Na década de 1920, ilustra o poema de Gilberto Freyre – “Bahia de Todos os Santos e de Quase Todos os Pecados”, organiza uma exposição de artes plásticas com Continente maio 2005

Joaquim Cardozo, Manoel Bandeira (o pintor), Augusto Rodrigues e alguns trabalhos seus. Entre outros, faz as ilustrações para o Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife (1934), e Olinda - Segundo Guia Prático, Histórico e Sentimental de Cidade Brasileira (1944), de Gilberto Freyre; para o Guia de Ouro Preto, de Manuel Bandeira (publicado pelo Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional em1938); ilustra poemas de Ascenso Ferreira, e para Fogo Morto, de José Lins do Rego, faz 300 desenhos. Em 1937 recebe o primeiro e segundo prêmios do concurso de literatura infantil do Ministério


CAPA

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Ilustração de Luís Jardim para o índice do livro de Guimarães Rosa, Primeiras Estórias

“Verinha , querida. Você vem cá, vovô conta estória. Você não vai me duvidar, hem? Aqui tem histórias muito bonitas, muitas, muitas. Do macaco risonho. Do boi de chapéu. Do peixe pintado. Do trem-de-ferro que queria pegar o outro trem... Da bruxa má que casou com o macacão...” (Guimarães Rosa)

vens que fossem de “excepcional valor e capazes de contribuir para uma melhor compreensão entre os povos”. Em entrevista a Joselice Jucá, publicada em – Imagem e Texto: Homenagem ao Pintor-Escritor Luís Jardim – organizado pelo Prof. Edson Nery da Fonseca, em 1985, Luís Jardim relembra a paixão pelo desenho, quando era criança: “se eu não estivesse estudando ou fingindo que estudava, minha mãe subia para ver... eu não estava fazendo nada, mas fazendo desenho – desenho, desenho, desenho”. De Guimarães Rosa, uma revelação surpreendente. Para se comunicar com suas netas Vera e Beatriz, ele cria uma linguagem literária, gráfica e afetiva que sensibiliza e emociona. Revestido de delicadeza e envolto no carinho que o autor de Grande Sertão, Veredas, às suas netas dedica o livro – Ooó do Vovô ! Correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joaozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess – é publicado em 2003 pela Edusp. Guimarães Rosa, liberto de qualquer traço de censura estética ou literária, se deleita ao brincar, pintar, desenhar e contar estórias à suas netas, nos cartões que lhes mandava das terras distantes por onde viajava como diplomata do Itamaraty. O mundo infantil é por ele homenageado em desenhos, cores, palavras e afeto, muito afeto. (BUC-B) • Divulgação/Edusp

Divulgação/José Olympio Editora

da Educação e Saúde com O Boi Aruá (traduzido para o japonês e publicado pela Editora Shinsekai Kenkyujo nos anos 70) e O Tatu e o Macaco, ambos por ele ilustrados. Em 1938, vence Guimarães Rosa (do qual depois se tornaria amigo) no Concurso Humberto de Campos com os contos Maria Perigosa. Seu livro infantil Proezas do Menino Jesus, com suas ilustrações, (atualmente em sua 27ª edição pela José Olympio Editora) recebe o Prêmio da Academia Brasileira de Letras em 1968, que o homenageia em Sessão Solene realizada em 9 de dezembro de 1971. A pedido de Guimarães Rosa, faz a capa e um insólito índice ilustrado com desenhos-miniaturas para Primeiras Estórias (1962). Luís Jardim tinha um universo mágico e único desde criança. Falava com as árvores, colocando-lhes nomes de gente (tinha uma que se chamava Seu Armando), ora reclamando, ora lhes agradecendo pelas frutas. Tinha um senso natural de proporção e beleza e não estudou desenho. Admirado por Mário de Andrade, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo de Melo Franco, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, entre outros, Luís Jardim recebe o reconhecimento internacional ao ter O Boi Aruá e Proezas do Menino Jesus entre os 10 livros brasileiros selecionados pela UNESCO, para integrar a lista de livros de 57 países que melhor tinham sido escritos para crianças e jo-

À esquerda, desenho de Luís Jardim para a capa de seu livro Proezas do Menino Jesus. À direita, trabalho gráfico de Guimarães Rosa

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CAPA

Iluminogravura de Ariano Suassuna

A escrita armorial Ariano Suassuna considera a imagem indissociável da obra literária

Imagens: Reprodução

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“primeiras alegrias” estéticas de Ariano Suassuna A sforam com o circo, onde ele viu o teatro pela pri-

meira vez. O circo trouxe, ainda, ao menino Ariano, os cantadores e o espetáculo do mamulengo. Não demorou muito e ele se “deixa possuir pela paixão da leitura”, porque para ele a leitura nunca foi um hábito, mas uma paixão que lhe deu outras grandes alegrias – livros. No Colégio Americano Batista, Ariano estuda desenho com Adelle Lain, uma “galega alta” americana que ele carinhosamente ainda hoje chama de Miss Lain e que estimularia muito cedo seu potencial criador. “Ela era uma figura interessante porque dava muita importância à invenção, à invenção do aluno. Ela não gostava que a gente copiasse, gostava que a gente inventasse. Nesta época, eu me interessei por desenho, mas fazia, assim, mais como uma tarefa... mas eu me lembro que ela ficou muito satisfeita no dia em que eu fiz um desenho – uma espécie de história em quadrinhos, combatendo o vício do fumo. Eu tinha uns 13 anos, talvez, por aí.” Na Biblioteca do Ginásio Pernambucano, Ariano descobre a pintura, folheando a antiga coleção Galerias da Europa. “Me lembro do entusiasmo que eu senti, isso aos 16, 17 anos, com o quadro do pintor impressionista

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alemão, Max Liebermann – Paisagem Alemã – e também por uma Madalena de Ticiano, um quadro belíssimo que me tocou muito, além de Jerome Bosch, Goya e El Greco.” Nessa época, torna-se colega de Carlos Alberto de Buarque Borges, a quem Ariano reconhece ter exercido uma grande influência em sua formação e, juntos, começam a pintar nos arredores do Recife. “...a gente pintava ao vivo, mas como auto-didatas, todos dois”. Além de pintar, estuda piano, faz escultura, escreve contos e poesias. A formação artística do jovem Ariano é sólida, mas “...aí de repente eu percebi que nós não estávamos mais na Renascença e a época moderna não dava mais pra gente praticar mais de uma arte, não. Principalmente as pessoas como eu... eu levo a arte muito a sério, e resolvi escolher aquela que era fundamental para mim. Então vi que era a literatura”. Sem nunca deixar de se interessar pelas artes plásticas, dedica-se inteiramente à literatura, até que surge o Ariano-artista. “...eu comecei a perceber que eu podia juntar as duas coisas, estas duas paixões”. É o ano de 1971 e ele introduz em seu trabalho a interação texto-imagem em O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, onde o protagonista-narrador Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna


CAPA Nos anos 70, Ariano Suassuna funda o Movimento anexa gravuras aos autos do processo, elaboradas pelo irmão Taparica Quaderna, que são de autoria do próprio Armorial, reafirmando sua crença em uma arte erudita Ariano. Como revelou em entrevista publicada nos Ca- brasileira a partir da referência popular que agregue dernos de Literatura Brasileira (Instituto Moreira Sales, múltiplas manifestações artísticas e literárias, como poe2000): “...Fiz as gravuras que aparecem no livro. Ori- sia, música, literatura, pintura, teatro, balé etc., e cujo ginalmente, eu tinha pensado em pedir as gravuras para objeto artístico é a pura poética popular. “Eu acho a o Samico, mas ele estava viajando. Lembrei também separação entre as artes uma coisa muito ruim. Eu gosque, se as gravuras fossem dele, precisaria assinar ‘Sa- taria de ver a arte voltando ao fecundo caos original... mico’, e eu queria que elas aparecessem como sendo de porque, com essa mania de pureza, vai se criando um isolamento, a meu ver, muito estéril... e é por isso que autoria do personagem”. De ilustrativa, em O Romance d’A Pedra do Reino e o eu acho que a iluminogravura, ligando-se às artes Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, a imagem torna-se parte indissociável de sua obra literária. Inspirado nas iluminuras medievais e seus textos apocalípticos produzidos nos mosteiros da Idade Média, ele cria nos anos 80 o termo iluminogravura – “Eu criei o nome iluminogravura para batizar estes textos que são não apostos a uma ilustração, mas que se fundem com ela numa obra de arte só”. Nesta releitura contemporânea que Ariano faz da iluminura (palavra que, segundo Houaiss, etmologicamente vem do francês enluminur, e é a arte ou o ato de ornar um texto, uma página), a imagem gráfica surge a partir da imagem literária. Para Ariano, a imagem surge no texto e é mais que um orna- Gravura inédita de Ariano Suassuna para seu novo livro, atualmente em elaboração mento. “Eu até discordaria do meu amigo Antônio Houaiss. Para mim, iluminura medieval plásticas e à literatura está perfeitamente integrada ao é mais que um ornamento, é o aparecimento de uma espírito do Movimento Armorial”. fusão entre imagem literária e imagem gráfica”. UtiliAriano Suassuna, Patrimônio Vivo do Brasil, que zando processos modernos de gravar pela luz, ele faz o vigorosamente defende a cultura brasileira contra a desenho e o grava por processos vários, como a litogra- vulgarização e banalização poética e artística, toma vura, off-set etc. – “Eu coloco a cor à mão. Cada obra é posse na Academia Brasileira de Letras em 1993, e feita à mão. É daí que vem a iluminogravura”. Admi- tem vários de seus livros traduzidos para o inglês, rador de Kandinsky, Miró e da arte abstrata, sua opção francês, alemão, espanhol, italiano, holandês e polopelo figurativo deve-se a uma escolha estética que mais nês. Além de romancista, poeta, dramaturgo, graaproxima a imagem literária da gráfica. “Eu sempre fui vador e pintor, foi professor de Iniciação à Estética na ligado à pintura figurativa. Às vezes, as pessoas pensam Universidade Federal de Pernambuco e secretário de que eu não gosto de arte abstrata... eu gosto muito. Eu Cultura do Estado de Pernambuco, e ainda hoje lota gosto muito de Kandinsky, gosto demais de Miró. Eu auditórios nas cidades brasileiras, ministrando suas não me considero um artista plástico. Eu sou um escritor aulas-espetáculo. Seu novo livro, em processo de elaque tem interesse pela imagem gráfica. Eu procuro dar boração, é todo escrito à mão e com gravuras integraexpressão a esta imagem literária. Então, naturalmente, das ao texto, das quais ele gentilmente cedeu uma isto inclina para a figura”. inédita para a Continente. (BUC-B) • Continente maio 2005

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LITERATURA

a c i t í r c (da onista) i s s e r p im

Saudades de Álvaro Lins

Expoente da crítica literária dos anos 40 a 60, o escritor e diplomata pernambucano foi jogado no ostracismo, acusado de praticar “crítica impressionista”. Mas faz falta hoje em dia Paulo Polzonoff Jr.

Leo Martins

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LITERATURA

Q

Arquivo Fundaj

uem abre os jornais que ainda disponibi- rio do confronto para entender o estado de penúria a que lizam algum espaço para a crítica literária chegou o universo literário brasileiro. Entendem-se as hoje em dia não pode imaginar o que ela agruras do presente, estudando os vencedores de guerras era há 60 anos. Não existia a tal da resenha; passadas. Na vida real, nem sempre é o bem que sai e os críticos eram respeitados por suas idi- vitorioso. A crítica de rodapé, da qual Álvaro Lins era repreossincrasias, porque se sabia que era delas que nasciam os grandes e interessantes debates literários de então. Um sentante, se pautava por uma orientação não-acadêmica. dos nomes de maior prestígio na chamada crítica de ro- Era feita por homens de letras bastante instruídos, mas não comprometidos com os estudos literários. Serviam dapé era ninguém menos do que Álvaro Lins. Pode-se ter muita coisa contra Álvaro Lins. Eu, por como intermediários entre o leitor e a produção literária exemplo, não vejo com muito bons olhos o fato de ele recente, qual fosse. Seu trabalho era emitir um juízo de ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras – valor sobre as obras que analisava, pautado no conhecisimplesmente porque não simpatizo com a casa. Mas mento empírico, alguma comparação histórica e estética isto é algo a ser relevado, se pesarmos os feitos deste e, também, algum juízo moral, que ninguém é santo. A crítico literário de um tempo em que crítica se fazia por crítica de rodapé era lida não como tédio necessário, e sim com verdadeiro entusiasmo. vocação, devoção, honestidade Isto porque esta crítica não era e inteligência. Parece muito, pautada por regras quaisquer. mas não é. Objetividade era só uma paLins fez parte de um time lavra feia. Fazia-se crítica code craques da nossa crítica litemo se escrevia uma crônica, rária, quando crítica havia. Ao isto é, dialogando com o leitor lado de Tristão de Athaíde e e fazendo-o se interessar ou Otto Maria Carpeaux, era uma não por determinado livro. De voz influente no meio literário, vez em quando surgia uma sempre com pontuações persopolêmica, mas não se poleminalíssimas sobre as obras que zava com o intuito de conadmirava ou não. Se a sina do vencer o adversário e, sim, pecrítico é arranjar inimigos, lo gosto do debate. Álvaro Lins os teve às pencas; Se há quem duvide, hoje, se, por outro lado, é destino do da validade desta crítica chacrítico reconhecer no berço mada, pejorativamente, de grandes talentos, quiçá canô“impressionista”, vale a pena nicos, Lins também teve sua citar nomes. De Drummond a cota destes. Guimarães Rosa, passando Mas a história de Álvaro por Clarice Lispector, FernanLins e sua importância para a lido Sabino e Nelson Rodriteratura brasileira se confunde gues, entre outros, todos focom a história de uma ruptura. ram agraciados com críticas, É importante entender o cená- O jovem Álvaro Lins, nos tempos do Recife Continente maio 2005

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LITERATURA elogiosas ou não, escritas por homens em busca do novo. Como a campanha difamatória ainda dura, ainda tem gente que chama os críticos de rodapé de conservadores. Voltemos à nossa história, porém. A crítica vive seu apogeu no Brasil, quando os scholars, os “erúditos” (© by Millôr Fernandes), os acadêmicos, enfim, toda a turma invadiu as redações de jornais pedindo o fim da crítica de rodapé, impressionista, e propondo a sua imediata substituição pela nova crítica, pautada pela objetividade dos parâmetros acadêmicos, apontando soluções e agrupando os escritores em grupos como melhor coubessem nos arquivos das universidades. Álvaro Lins foi duramente atacado por Afrânio Coutinho, um dos precursores da tal da new criticism, Arquivo Última Hora

Graciliano Ramos: Caetés criticado e Angústia elogiado

mas não só ele. Tristão de Athaíde e Otto Maria Carpeaux também foram tipificados como críticos impressionistas. Surgiu, então, uma nova leva de críticos, agora mais preocupados com teorias e inserções dentro da filosofia estética. Parece simples. E é. Enquanto os críticos impressionistas, na total ausência de teses e títulos, descobriram a nata da literatura brasileira, o verdadeiro cânone do século 20, a crítica nova, de vertente acadêmica, cheia de termos ininteligíveis, com Bakhtin embaixo do braço qual uma Bíblia, descobriu... Quem? O Concretismo. As vanguardas estéreis. A nova velha literatura que está aí, cheia de autores jovens fazendo romance de idéias. Há quem dê a isso o nome de evolução, de verdadeiro salto qualitativo. Eu prefiro deixar que o tempo diga. Continente maio 2005

O “imperador da crítica brasileira”, como certa vez o chamou Carlos Drummond de Andrade, também teve um papel importante no resgate de alguns autores pré-modernos, como Augusto dos Anjos

A universidade invadiu a crítica com tal força que hoje o nome de Álvaro Lins está esquecido, como também estão esquecidos os nomes de seus companheiros de crítica impressionista. É uma imensa pena e também um grande ônus para a literatura nacional. Penso que a qualidade dos escritores de um país têm uma relação muito próxima com a qualidade dos críticos deste mesmo país. Ora, o que se tem visto nos últimos anos é uma crítica feita na academia e para os acadêmicos. Não é à toa que, das últimas fornadas editoriais, tenha saído tanto autor com a beca na foto da orelha. Mas deixemos as cisões de lado. Porque é preciso pensar numa crítica cada vez mais idiossincrática, pautada, vale dizer novamente, pela “honestidade e obediência”, os pilares que sustentavam o exercício de Tristão de Ataíde. Álvaro Lins era assim: idiossincrático como todo bom crítico deve ser. Em seus quase 20 anos de atividade, antes de se render aos caprichos do poder, Álvaro Lins criticou negativamente alguns dos principais nomes da literatura nacional, como Graciliano Ramos, por seu Caetés, e Clarice Lispector. Mas também elogiou Nelson Rodrigues, até então atacado como pornógrafo, e Guimarães Rosa. Hoje, infelizmente, vê-se muito a literatura como um jogo de futebol. A torcida de Rubem Fonseca hostiliza a torcida de Lima Barreto, que hostiliza a de Dalton Trevisan, que hostiliza a de Mário de Andrade. E por aí vai. Os prolixos anos 40 permitiam um debate menos maniqueísta, o que deu a Álvaro Lins a condição de exercer seu ofício com mais liberdade. Não à toa, sua crítica negativa a Caetés não impediu que ele tivesse elogiado o Angústia, do mesmo Graciliano Ramos. Naquele tempo, valia a obra e não o escritor. O “imperador da crítica brasileira”, como certa vez o chamou Carlos Drummond de Andrade, também teve um papel importante no resgate de alguns autores prémodernos, como Augusto dos Anjos, bem como na reconciliação (sempre frágil) entre Gilberto Freyre e a intelectualidade brasileira, em polvorosa naqueles tempos de ideologias fartas. Mas, como dar murro em ponta de faca não é nem será jamais sinal de inteligência, Álvaro Lins também se cansou da crítica. Depois do embate com a nova crítica


Aniele Nascimento/Gazeta do Povo/AE

LITERATURA 23

Wilson Martins, último grande nome da crítica de rodapé

acadêmica, do qual saiu derrotado, mas não vencido, Lins se dedicou à política e à diplomacia. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1955, tomando posse no ano seguinte. Já então se pode prever o que aconteceu com o intelectual, depois de se juntar aos homens de fardão: declínio. A crítica de rodapé ainda não morreu, mas agoniza. Wilson Martins é o último grande nome do gênero. Não por acaso, Martins é cria de Álvaro Lins, que foi quem o descobriu em Curitiba e o recomendou à editora José Olympio. De resto, estamos mesmo condenados à crítica sistemática da universidade, com seu jargão risível e suas citações obscuras para dizer aquilo que nos

interessaria mais se fosse dito de forma clara e simples – e com humor, que sem humor ninguém vive: é bom ou não é e por quê. Para os que, como eu, são saudosos, existe vasta bibliografia contendo artigos de Álvaro Lins para consulta. Eu recomendo Os Mortos de Sobrecasaca e todas as “séries” do seu Jornal de Crítica, publicadas entre 1941 e 1963. Vale a pena descobrir que, antes do debate cultural encastelado de hoje, havia um diálogo bastante rico entre os comuns. A grande lição de Álvaro Lins é esta: literatura não é ciência e se confunde com a vida, o que pressupõe acertos, erros, alguma virilidade e também o ocaso, ao qual todos estamos sujeitos. •

Seminário Internacional

Portugal – Brasil: Ditadura e Democracia – Uma Homenagem a Álvaro Lins Fundação Joaquim Nabuco – 1º e 2 de junho de 2005 Dia 1º de junho/2005 – 18 h Conferência: Mário Soares – Presidente da Fundação Mário Soares. Dia 2 de junho/2005 – Manhã – Painel: Portugal e Brasil: resistência à ditadura e processo democrático Da Resistência à Ditadura Salazarista até a Revolução dos Cravos – Amândio Silva, diretor da Sociedade Cultural Mares Navegados. O Papel das Forças Armadas no 25 de Abril – Tenente-coronel Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril. Portugal–Brasil: Meio Século de Diplomacia. A Figura de Álvaro Lins – Dário Castro Alves, embaixador do Brasil em Portugal. O Processo Democrática em Portugal e no Brasil. – Fernando Lyra – presidente da Fundação Joaquim Nabuco. Tarde – Painel: A Produção Intelectual de Álvaro Lins O Personalismo Crítico de Álvaro Lins – João Alexandre Barbosa, Universidade de São Paulo. O Drama Religioso de Álvaro Lins – Edson Nery da Fonseca. Álvaro Lins, Crítico Literário – Lourival Holanda, Universidade Federal de Pernambuco. Álvaro Lins, Revelador de Talentos – Humberto França, Fundação Joaquim Nabuco. Informações: Fone/fax: (81) 3441-5287 – e-mail: indoc@fundaj.gov.br

Continente maio 2005


LITERATURA

De integralista a amigo de Cuba Como tantos outros intelectuais brasileiros, Álvaro Lins teve uma trajetória política da direita à esquerda, culminando com o célebre episódio da embaixada em Lisboa Humberto França

N

o início da década de 1930, Álvaro Lins já fazia política como presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife. Mais tarde, Lins, assim como a maioria dos intelectuais do seu tempo, passou a integrar a “Congregação Mariana”. Álvaro também ligou-se ao movimento de tendências fascistas, a “Ação Integralista”. São daquela época, os seus artigos políticos publicados no Diario de Pernambuco e no Diário da Manhã, defendendo a Igreja e os partidos nazifascistas europeus. Entre os anos de 1934 a 1937, Lins exerceu o cargo de secretário do Governo de Pernambuco, na gestão de Carlos de Lima Cavalcanti. Com o golpe do Estado Novo, foi destituído. A partir de então, o caruaruense sofreu perseguições e ameaças. Forçado a abandonar o Recife em 1940, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Indicado por Gilberto Freyre, ele foi contratado para ser crítico literário no Correio da Manhã. Instalado no Rio, Álvaro Lins abandonou as idéias totalitárias, passando a experimentar um processo de amadurecimento intelectual, quando propôs uma total desvinculação entre a atitude ideológica e a do crítico literário. Durante os anos da Segunda Grande Guerra, ele manteve-se católico. Defendia as posições do Vaticano, radicalmente hostis ao Comunismo. Após o conflito mundial, aproximou-se das idéias de Harold Laski, apoiando o sistema parlamentarista e o diálogo da Igreja com os partidos socialistas, desde que esses não mantivessem, em seus programas, o anticatolicismo e o ateísmo. No entanto, perdeu a fé em 1952. A partir de 1950, Álvaro Lins exerceu importantes funções, como a de vice-presidente da Unesco no Brasil e trabalhou como consultor técnico do Ministério das Relações Exteriores. A sua atividade política culminou, em 1955, quando, no Correio da Manhã, lutou bravamente em favor da democracia, desencadeando uma campanha em defesa da legitimidade da eleição de JusContinente maio 2005

Arquivo/Agência O Globo

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Álvaro Lins, com a esposa e a filha, ao regressar do Portugal, em novembro de 1959: crise diplomática

celino Kubitschek e se opondo valentemente aos golpistas que queriam impedir a sua posse. Em 1956 foi nomeado chefe da Casa Civil do presidente JK. Mas não se demorou no cargo. Em seguida, iniciou sua carreira diplomática como embaixador do Brasil em Lisboa. Em Portugal, deu-se, talvez, o mais importante acontecimento de sua vida política, quando em 1959, o general Humberto Delgado, líder oposicionista português e candidato à Presidência da República, sentindo-se perseguido, pediu asilo à embaixada do Brasil. O embaixador Lins o acolheu. O ato instaurou uma crise diplomática entre os dois países. Álvaro, nordestinamente corajoso, manteve-se firme. O governo JK claudicava em suas ações. Não desejava desagradar o governo de Portugal. Cedia às pressões. O embaixador Lins passou a atacar a ditadura salazarista. Pressionado, renunciou ao cargo de embaixador do Brasil e escreveu ao presidente JK a célebre carta de rompimento. Nunca mais seria o mesmo. Regressou ao seu país, transtornado. Após o retorno, Álvaro Lins retoma as atividades de professor e jornalista. Assume a militância de esquerda. Publica Missão em Portugal, no qual relata “o caso Delgado”. Em 1960, é nomeado presidente da I Conferência Interamericana de Anistia para os Exilados e Presos Políticos da Espanha e de Portugal. Viaja para Moscou como chefe da delegação brasileira ao Congresso Mundial da Paz, em 1962. Em seguida, faz uma viagem a Cuba e preside no Rio de Janeiro, o Instituto Cultural Brasil-Cuba. Movimenta-se. Escreve. Agita. Participa ativamente da “Revolta dos Marinheiros”. Desafia as forças que se opõem ao Governo de João Goulart. Com o Golpe de 1964, a sua carreira política se encerra. Sofre perseguições. Passa a viver isolado. Adoece. Abandona os escritos e as publicações. Silencia como forma de protesto. Encerra-se em si mesmo, apressando a morte que, finalmente, lhe abate em 1970. •


POESIA

Poemas de Fábio Andrade Anti-C Cabral

Miríades

Nada se pode dizer sobre a rosa perdida Nenhum verso pode torcer-se para acompanhá-la

O mar avança com o dia, Tragando os sulcos que a lua Pisara com indolência.

O eixo estriado, alternadamente cálido E hostil, dardejando um duvidoso viço. Dada assim, aplacada pelas mãos senis De um poema que insiste em procurar, Deixando de lado pétalas, espinhos – a flor Procurar a raiz onde só há um nome, uma cor.

• No mundo alguém conta As conchas do desejo – intrincada a matemática da ausência.

(Sem título) • O centauro ainda arde em mim: tatuagem medonha a lanhar por dentro a carne Contra ele ergui cidades, construí estradas e ruas: a ferroada de suas patas dispersa minhas searas. (Sem título) Uma poesia, canto oculto Entre pálpebras, nervos, ossos Uma reticência de canto Uivo no ar, entre os espaços do corpo: Poesia que o refaça – o corpo Mais nítido.

O dia e o pão oferecemos – a casa de farinha ilumina-se com alguém que labuta. • Buscamos o horizonte Das coisas inacontecidas Onde o morto esquece suas origens.

Fábio Andrade é poeta e ensaista. Edita a Revista Crispim de Artes e Literatura e é professor de Letras na Universidade Federal de Pernambuco. Continente maio 2005

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A mulher que adivinhava o futuro

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aria se dizia muito intuitiva. Desde pequena, quando previu o desenrolar de dois ou três episódios domésticos, começou a achar-se dotada de poderes sobrenaturais que a capacitavam a adivinhar o futuro. Quando a campainha tocava, ela se apressava em dizer quem era, antes mesmo de abrir a porta. Sua margem de erro nunca pôs em dúvida seu talento de adivinha. As amigas não dispensavam seus conselhos. Bastava olhar um rapaz uma única vez para proferir o diagnóstico: esse só quer tirar proveito. Esse tá te enganando. Esse tem namorada firme lá na cidade dele. Era uma bênção ter uma amiga como aquela. Quantas desgraças Maria não evitou, antevendo o que viria. No carnaval de 1965, as meninas estavam doidas pelo pirata que bebia cerveja sozinho, encostado num pilar no Continente maio 2005

Ivana Arruda Leite

fundo do salão. O moço mais bonito do baile. Um moreno alto, com lenço amarrado na cabeça, tapa-olho e peito nu tatuado. – Como pode estar sozinho? – elas se perguntavam. – Ele deve estar escolhendo. Lindo como é, basta estalar os dedos e dança com quem quiser. Elas tentavam adivinhar quem seria a felizarda, quando Maria saiu com essa: – Ele já tem dona e a dona dele sou eu. As amigas arregalaram os olhos. Só faltaram falar: você? A mais sem graça? A mais feiosa? A de pernas mais finas? A pobretona que amarrou uma toalha na cintura e acha que está fantasiada de havaiana? – Havaiana estilizada, mais respeito. Escutem bem o que estou dizendo: esse homem é meu e assim será até o fim da vida.


PROSA

Maria disse isso e foi andando em direção ao rapaz. O morenão não moveu um músculo. Continuou bebendo cerveja e olhando pra frente, com um olho só. Maria entrou no banheiro a ponto de desmaiar. “Que besteira eu fui fazer. Por que fui inventar essa história? Imagina se esse moço vai olhar pra uma songamonga como eu”. Pela primeira vez, ela havia inventado uma premonição. Nada daquela história de esse homem é meu, vou viver com ele o resto dos meus dias era verdade. Lavou o rosto e voltou ao salão de cabeça baixa. Quando passou perto do pirata, uma voz grossa soou no seu ouvido: quer dançar? Eu estou ouvindo coisas. Não pode ser comigo. Mas a voz repetiu a pergunta: quer dançar? Eu? A mais sem graça? A de pernas finas? A que catou uns colares que estavam sendo distribuídos na porta do clube pra completar a fantasia? Cê tá falando comigo? O moreno levantou o tapaolho. “Claro!” – e nem esperou a resposta pra colocar o braço no ombro magricelo de Maria, que pulava feito cabrita para disfarçar a tremedeira. Você dança muito bem. Você acha? Acho. Você gosta de carnaval? Adoro, e você? Eu também. Você costumar pular aqui? Eu nunca te vi. É a primeira vez que venho a essa cidade. Ah... Fez questão de passar bem perto das amigas para que elas vissem quem era o seu par. São suas amigas? Mais ou menos, respondeu hesitante. Era melhor não apresentá-lo a ninguém, pelo menos por enquanto. O que você faz? Eu terminei o colegial. No ano que vem, vou fazer cursinho. De noite, trabalho num supermercado. Minha família é muito pobre, eu ajudo meus pais.

O rapaz só perguntou o que eu fazia e eu já desfiei minha desgraceira toda, que vexame. Essa mania de falar mais que a boca. Não devia ter me escancarado desse jeito. Ainda nem sei o nome dele. Alcides, e o seu? Maria? Que nome lindo. Cê tá brincando... Maria é o nome mais sem graça que existe. É nada. É o nome de Nossa Senhora. Você é católico? Eu sou, mas não precisa ser católico pra gostar desse nome. É o nome da minha mãe. É mesmo? E ela está viva? Que pergunta mais besta. Por que a mãe de um rapaz tão jovem e bonito estaria morta? Só porque chama Maria? E desde quando Maria é nome de gente morta? Como você adivinhou? Adivinhei o quê? Que minha mãe morreu. Cê tá brincando... Não tô não, ele disse apertando-a contra o peito, minha mãe morreu no ano passado. Como já disse, Maria adivinhava umas coisas e errava outras. Adivinhou que o rapaz era órfão, adivinhou que passaria o resto da vida com o homem mais lindo do salão, mas não adivinhou que o resto da vida seria tão curto. Na porta do clube, ela atravessou a rua sem olhar e foi atropelada por um caminhão. Infelizmente, quando a ambulância chegou não havia mais nada a ser feito. Maria morreu na manhã da quarta-feira de cinzas mais feliz da sua vida. Alcides fez questão de levar o colar de recordação. “Esta seria uma mulher com quem eu passaria o resto dos meus dias” – ele disse afastandose do corpo da havaiana que jazia estendido no asfalto. • Ivana Arruda Leite é poeta e contista.

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AGENDA

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A personagem rebelada Lançado agora em 3ª edição, Capitu – Memórias Póstumas, de Domício Proença Filho, afirma-se como um romance autônomo Capitu traiu ou não traiu? Embora irrelevante do ponto de vista da arte literária em si, a questão suscitada há mais de um século pelo Dom Casmurro de Machado de Assis permanece mobilizando leitores, críticos e exegetas. Prova irrefutável da genialidade do bruxo do Cosme Velho, ao criar uma personagem que permanece viva e a despertar paixões. O professor de literatura, crítico e ficcionista Domício Proença Filho propôs-se uma “empresa temerária”: reescrever o romance, dando voz a Capitu. E o fez de forma brilhante, não caindo na armadilha de “culpar” Machado (confundindo autor e personagem), apesar de proclamar de saída ter sido movido pela indignação contra o narrador maquiavélico que, sem provas concretas, produziu um texto “feito de acusação e vilipêndio”. Valendo-se basicamente da própria narrativa de Bento Santiago (misto de Otelo e Iago), o autor praticamente desconstrói o libelo acusatório, apresentando Bentinho como um homem cruel e desumano, de consciência dilacerada. Magistralmente, mostra que está tudo lá, no texto de Machado. É só saber ler com acuidade. Mas este resultado, já de si notável, seria meramente um exercício interpretativo, não conseguisse o autor

estabelecer um autêntico diálogo entre os personagens (Capitu e Bentinho), fazendo dela uma criatura de carne e osso, com sonhos, mágoas, ressentimento e compaixão. Capitu defende sua honra de um Além em que conta com a empatia de outros personagens machadianos, como Brás Cubas, Quincas Borba e Conselheiro Aires. E, assumindo uma dimensão supratemporal, que torna o relato delicioso, incorpora conceitos contemporâneos (ex-marido, por exemplo) em seu revide, insinuando um componente homoerótico no relacionamento Bentinho-Escobar. Fica a pergunta: Bentinho era ou não era? (Homero Fonseca) Capitu – Memórias Póstumas, Domício Proença Filho, Record, 288 pág., R$ 32,90.

Várias faces

Tragédia grega

Quadro mutante

O pernambucano Abdias Moura é jornalista, professor e ensaísta, autor de uma obra fundamental para o conhecimento do Brasil – O Sumidouro do São Francisco. Mas é também ficcionista, autor de três romances (A Descoberta da Harpa, 1988; Os Desamores de Benedicto, 1992; O Segredo da Ilha de Pedra, 1995), agora reunidos num único volume – As Três Faces do Amor. Compõem uma trilogia romanesca, onde a vida, a história, os mitos e os destinos se confluem e se integram abrindo janelas para uma realidade interior e exterior multifacetada.

Escrito quando Friedrich Nietzsche tinha 27 anos, A Origem da Tragédia – Proveniente do Espírito da Música é uma erudita e caótica incursão na cultura grega, em que, valendo-se da célebre contraposição entre o espírito apolíneo e o dionisíaco, o autor mergulha na análise de estados estéticos de dor e alegria, tendo em vista a metafísica da arte. Tipicamente, repassa, com seu texto vigoroso e apaixonado, o modelo clássico para constatar a irreversível decadência da cultura ocidental. Integra o volume o Ensaio de Autocrítica anexado ao texto 15 anos depois.

Desde jovem o sociólogo alemão Norbert Elias havia se encantado pela tela Embarque para Citera, pintada em 1712 por Antoine Watteau. Já na maturidade, teve chance de fazer uma explanação para acadêmicos sobre a obra, que gerou o ensaio A Peregrinação de Watteau à Ilha do Amor, recém-editado entre nós. A partir das ambigüidades do quadro, enxerga o prenúncio de uma mudança na configuração social européia. Unindo arte e sociologia, traça uma análise aguda da mudança de mentalidade na Europa desde a Revolução Francesa até o final do século 19.

As Três Faces do Amor, Abdias Moura, edição do autor, 253 pág., R$ 25,00.

Origem da Tragédia, Friedrich Nietzsche, Madras, 128 pág., R$ 17,90.

A Peregrinação de Watteau à Ilha do Amor, Norbert Elias, Zahar, 72 pág., R$ 24,50.

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Língua suntuosa

História cultural

Poeta original, em busca de uma voz realmente própria, a pernambucana Jussara Salazar, radicada em Curitiba desde os anos 80, acaba de lançar Natália, uma obra em que parece alcançar o domínio maduro de todos os recursos formais e material temático que vem explorando desde seus livros anteriores: Inscritos da Casa de Alice (1999) e Baobá. Poemas de Liticia Volpi (2002). Artista plástica e design (é responsável pelas partes editorial e gráfica da belíssima revista Et Cetera), Jussara traz nos seus versos um natural encantamento pela visualidade. Mas parece ser a música que pauta sua sintaxe estranha, seu uso de palavras inventadas, arcaicas ou de outras línguas, num magma que se aproxima do barroco, embora mantenha solar claridade. O livro parte de Natália, tia-avó da poeta, que fugiu com um tenente da volante que caçava Lampião. Nunca mais voltou e seu nome foi proibido na família. Ao contrariar esta censura, Jussara vai além, recriando ambientes suntuosos, às vezes santos, às vezes pecaminosos, uma cigana possuída, um punhal, uma tatuagem, um anão, um rei, um deus pintado. Dá prazer constatar que a poesia brasileira não se resume à moda dos versos raquíticos. (Marco Polo).

Contendo as conferências que foram proferidas na ABL, entre 2001 e 2003, este livro, dividido em dois tomos, tem como tema as grandes escolas literárias brasileiras que surgiram entre os séculos 17 e 20: o Barroco, o Arcadismo, o Romantismo, o Realismo-Naturalismo, o Parnasianismo, o Simbolismo, o Modernismo e os movimentos de vanguarda, surgidos a partir dos anos 50: o Concretismo, o Neoconcretismo e a Instauração-Práxis, além de outras vertentes da pósmodernidade. Acadêmicos e convidados promoveram uma reflexão estético-historiográfica, procurando determinar a importância dessas escolas e movimentos no desenvolvimento da literatura brasileira. Foram, assim, discutidos não só os ideários estéticos e doutrinas, como também o papel que desempenharam seus componentes e o legado que deixaram. A fim de realizar uma abordagem ecumênica dos temas, participaram das conferências poetas, ficcionistas, ensaístas, críticos e historiadores das mais diversas tendências. Entre os palestrantes estão nomes de peso da cultura nacional.

Natália, Jussara Salazar, Travessa dos Editores, 134 págs., R$ 25,00.

Escolas Literárias do Brasil, Ivan Junqueira (coordenação), Academia Brasileira de Letras, 1283 págs., dois tomos, R$ 45,00 (cada).

Difusão do livro

Fina sensibilidade

Marco nas artes

Em abril do ano passado escritores, jornalistas, editores, autoridades e intelectuais em geral, enfim, pessoas interessadas no produto livro, realizaram no Recife o Fórum do Livro Pernambucano, enfocando os problemas do leitor e, principalmente, a recusa das livrarias (a maioria com sede no Sudeste) em receber, exibir e vender obras editadas em Pernambuco. Paralelamente foram abordadas questões como distribuição, qualidade e marketing do livro local, além do papel das academias e instituições, do Estado e da imprensa, no incremento do livro pernambucano. O resultado está registrado neste livro que possibilita uma madura reflexão sobre o assunto.

Recentemente, o poeta cearense, radicado no Recife, Majela Colares lançou o belo livro (no conteúdo e na edição) O Silêncio no Aquário, com poemas em português e em alemão, em tradução de Curt Meyer-Clason, o mesmo que transpôs Guimarães Rosa para a língua germânica. Agora, também em edição bem cuidada, da mesma Calibán, lança este Quadrante Lunar, em que reafirma a qualidade de sua poesia. Poesia limpa, elegante, em que pensamento e emoção se equilibram, ao lado de uma visualidade colorida e ensolarada. A forma fixa, adotada desde o livro anterior, revela a preocupação formal do poeta, realçando sua fina sensibilidade.

Marcantonio Vilaça foi um dos mais importantes e polêmicos marchands brasileiros das últimas décadas. Voltado principalmente para o descobrimento de novos talentos e a consolidação da arte contemporânea brasileira no mercado internacional, marcou uma presença tão forte que seu prematuro falecimento, na virada de ano de 1999 para 2000, provocou uma verdadeira comoção. Este livro reúne depoimentos de seus pais, críticos, curadores e artistas que atestam com segurança: há um antes e depois de Marcantonio Vilaça na história das artes plásticas do Brasil. A edição, sóbria e elegante, é um complemento na qualidade do livro.

Em Defesa do Livro Pernambucano, Jacques Ribemboim (org.), Edições Bagaço, 156 págs., R$ 10,00.

Quadrante Lunar, Majela Colares, Editora Calibán, 110 págs., R$ 20,00.

Mensagens a Marcantonio, vários autores, 190 págs., R$ 30,00. Continente maio 2005

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LIVROS


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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Cultura na registradora “A literatura internacional sobre economia da cultura adquiriu autonomia como ramo de uma especialização a partir dos anos 70” Celso Furtado (1920-2004)

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m dos mais importantes poetas líricos da antiguidade grega, Simônides de Ceos (556aC – 408aC), dizem alguns historiadores, foi o primeiro poeta do Ocidente a receber encomenda de poemas e cobrar por eles, arriscando ser chamado de mercenário. O costume era o poeta ser algo como ilustre agregado de um rei, um príncipe ou um nobre, que o tratava regiamente. Simônides fazia muito bem, pois nos festivais dedicados a Apolo e a outros deuses, os poetas vencedores recebiam na cabeça uma coroa de louros e nada de dinheiro. Com o tempo, a coroa murchava e não podia sequer ser vendida no ferro-velho, caso existisse. Num dos seus livros, Décio Pignatari lembra que Ovídio (43aC – 18aC), grande poeta latino, dizia que a coroa de louros só servia mesmo “para temperar arroz”. Se realmente Simônides foi o primeiro poeta ocidental a cobrar por suas produções, pode ter sido um dos precursores da Economia da Cultura. Mas, esta, enquanto disciplina ou estudo sistemático, teve o seu surgimento na segunda metade do século passado. E quem nos informa isso é o mestre Celso Furtado, até hoje o melhor ministro da cultura que tivemos nesta equivocada Nova República. É uma pena que só tenha ficado no cargo durante dois anos (1986 a 1988), pois a Lei de Incentivos Fiscais à Cultura foi promulgada em sua gestão (a chamada Lei Continente maio 2005

Sarney) e criou ainda, no Ministério, o Instituto de Promoção Cultural, para estudar as dimensões econômicas das atividades culturais. Ele inaugurou um processo de racionalidade no setor que os seus sucessores vêm matando de inanição. Em um dos seminários promovidos por aquele Instituto, o criador da Sudene disse: –“Para pensar a cultura como dimensão da sociedade, como aspecto de um processo produtivo, é necessário penetrar num campo conceitual pouco explorado, que é o da Economia da Cultura. Todo mundo fala sobre isso vagamente, mas muito pouco trabalho conceitual e sistemático foi realizado. É essa uma problemática que emergiu a partir dos anos 70”. No último ano de sua gestão (2002), Francisco Weffort encomendou, milagrosamente, para o Ministério, um levantamento à Fundação João Pinheiro (Diagnóstico dos Investimentos na Cultura do Brasil), correspondente ao período de 10 anos (1985-1995), quando se constatou que para cada R$ 1 milhão investido na cultura geraramse 160 postos de trabalho. Vejam só, meus milhões de leitores: no setor terciário da economia, o investimento cultural cria empregos mais baratos do que o de outros setores, e não se entende por que o Ministério da Cultura é o que recebe a menor dotação orçamentária, sempre abaixo de 1%. Tenho aqui um recorte do jornal O Globo, de março de 2001, informando


MARCO ZERO

que o carnaval do Rio, financiado pelos bicheiros (dizem...) cria 60 mil empregos permanentes “um ano inteiro”. Ora, os empresários e os banqueiros não têm entre suas metas criar emprego, pois se assim fosse, com o nosso dinamismo cultural, teríamos talvez a menor taxa de desemprego do continente. Quem tem como meta criar empregos são os governos, mas contraditoriamente reservam para cultura só uma migalha. Não se esqueçam de que não estamos nos States onde (guardei este dado), em 1993, a indústria cinematográfica faturou nada menos que CR$ 60 bilhões, mais dinheiro que todas as nossas exportações naquele ano. Quantos empregos não terá gerado apenas o cinema ianque, entre provisórios e permanentes? Esse é o primeiro dado econômico que me interessa, porque significa pirão na mesa e menos criminalidade. Outro estudo encomendado à Fundação João Pinheiro, pelo MinC (gestão de Celso Furtado), declara que “as indústrias culturais, enquanto espaços individualizados de acumulação de capital, possibilitam mais integração de políticas culturais no conjunto das políticas econômicas”. Ver a economia da cultura como parte do todo econômico, numa época de ouro, como a nossa, para a evolução de todos os tipos de indústria cultural ou cultura de massa, é agir com realismo sem qualquer ranço de mecenato. Caso as equipes econômicas se apercebessem do fato de que o investimento cultural tem alto retorno para o Estado, na formação de empregos, na

arrecadação de impostos ou na divulgação institucional positiva da imagem do país no exterior, não tratariam a pão e água o Ministério da Cultura. Como já aconteceu em alguns Estados, mas como o objetivo de reduzir e não aumentar os investimentos, os Ministérios do Turismo e da Cultura deveriam ser mais dotados com as fatias do orçamento e trabalharem mais articuladamente. As atividades culturais, seja como suporte publicitário para refrigerantes e outros produtos de grande consumo, seja até mesmo como forma de ampliação de público, poderiam aliar-se a atividades esportivas, como o basquete, o vôlei e, principalmente, o futebol, não como aqueles chatos desfiles de cheer leaders dos estádios norte-americanos, antes dos jogos, mas como shows de música popular brasileira, espetáculos de dança, de humor e outros. O que é importante mesmo, é convencer os patrocinadores privados, com seus óbvios interesses de retorno, de que existem desaproveitados muitos espaços para aliar um produto nobre, como a arte, a seus sabões e maioneses, para valorizá-los. Quanto à minha tribo, a dos poetas, ela parece só vender pesadelos, que não interessam aos públicos esportivos, por exemplo. Mas falo da tribo dos poetas estigmatizados de eruditos, e não da tribo dos poetas repentistas do Nordeste. Eles nasceram para os palcos, e alguns tocam maravilhosamente bem sua violas. Parece até que estou vendo o desafio de dois violeiros, antes de um Fla-Flu, no Maracanã, um escrachando o Flamengo e outro esculhambando o Fluminense. Vai lá um mote para eles glosarem: Fla-Flu jogando é fogueira, é som de brasas, é guerra. • Continente maio 2005

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CONVERSA Chico Porto

Laënnec Hurbon, durante palestra na 6a. Semana de Culturas Francófonas, na UFPE

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edicado à análise das relações entre escravidão, religião e política, o sociólogo Laënnec Hurbon é considerado um dos mais influentes intelectuais haitianos de sua geração. Doutor em teologia pelo Instituto Católico de Paris e em sociologia pela Sorbonne, Hurbon é atualmente diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) mas mora no Haiti, onde é professor e membro fundador da Universidade Quisqueya. Durante a 6ª Semana de Culturas Francófonas na UFPE, ele trouxe, em 17 de março, algumas reflexões sobre a diversidade cultural e os desafios em face da hegemonia de idéias e valores globalizados. Nesta entrevista exclusiva, Hurbon se dispôs a falar também de aspectos históricos e políticos que explicam uma identificação cultural forte, embora pouco explorada, entre os povos haitiano e brasileiro. “Estive no Brasil pela última vez em 1992, durante um congresso de especialistas da história da Igreja da América Latina e do Caribe”, lembra, lamentando ter ficado tanto tempo sem voltar para um país onde diz se sentir completamente em casa. “Prometi a mim mesmo aceitar todas as propostas de cursos e seminários em universidades brasileiras”, comenta, cumprindo logo a palavra com a presença em eventos no Ceará, em Pernambuco e na Bahia, em menos de sete dias, durante o mês de março. Continente maio 2005


CONVERSA

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“ ” LAËNNEC HURBON

O Brasil não é (e é) o Haiti Sociólogo haitiano analisa as convergências entre os dois países, vê a cultura e o futebol como uma ponte entre os povos e defende que a libertação dos escravos precisa ser completada Débora Pinheiro

Na aldeia global, como situar o Haiti? O Haiti é um microcosmo do mundo moderno; ali todos os grandes problemas não resolvidos e escondidos da modernidade aparecem de maneira inequívoca. Compreender o Haiti é compreender os horrores de um mundo que marginaliza a maioria da população enquanto celebramos a aldeia global. Uma igualdade efetiva entre indivíduos e povos não pode acontecer enquanto um império se instaura sem um contrapeso real.

Porém, o Brasil é o Haiti por causa de uma memória de escravidão e de despotismo que deveria suscitar uma maior solidariedade entre haitianos e brasileiros, além de uma tomada de consciência da situação do Brasil no que diz respeito às desigualdades sociais e às relações interétnicas. Gil também vê no Haiti a terra da liberdade, o primeiro país a sair da escravidão por uma insurreição geral, embora ainda precise lutar contra o despotismo.

Que brasileiros têm despertado sua atenção para a Então o senhor também acha que o Haiti é aqui? produção cultural daqui? Existe uma certa ambigüidade nessa música de GilberGostei muito dos filmes de Glauber Rocha e da obra to Gil, que tenta provocar nos brasileiros uma solidarie- de Jorge Amado. Há pouco tempo vi um filme, de cujo dade mais profunda com o Haiti. O Brasil não é o Haiti título esqueci-me, sobre um menino de rua adotado por das ditaduras recorrentes e da miséria sem cabimento. uma mulher, interpretada por uma atriz famosa, e, Continente maio 2005


Hector Mata/AFP

O vodu tem um peso incomensurável para a cultura haitiana

contando sua história, o cineasta nos leva para uma peregrinação pelo interior rural e o mundo operário do Brasil, fazendo-nos descobrir a história real do país e os problemas do seu cotidiano. Achei esse filme (Central do Brasil, de Walter Salles) genial. E de futebol, o senhor gosta? Como todo haitiano mediano, acredito que o futebol é brasileiro e me apaixono ainda mais por esse esporte na Copa do Mundo. Suponho que os brasileiros sabem que a cada Copa do Mundo as ruas das favelas de Porto Príncipe são tomadas por torcedores apaixonados pelo Brasil – um Existe uma certa fenômeno impressionante. Lembremos que no jogo Brasil-Haiti, organizado em agosto ambigüidade nessa do ano passado no estádio de Porto Príncipe, houve uma verdadeira trégua: nenhum tiro música de Gilberto Gil. O foi disparado nas ruas da capital naquele dia. Brasil não é o Haiti das O que o senhor pensa das tropas brasileiras à frente da missão de estabilização do ditaduras recorrentes e da miséria sem cabimento. Haiti? Ah, que situação delicada! Há um ano, desde a demissão de (Jean-Bertrand) Aristide Porém, o Brasil é o Haiti por causa de uma e sua partida (que não foi forçada, já que ele não dirigia mais nada), acreditava-se que as forças estrangeiras vinham para apoiar a Polícia, que era uma instituição frágil e colocada memória de escravidão e a serviço da política de Aristide. Para vários de nós, a presença das Forças Brasileiras é de despotismo um sinal de solidariedade com o Haiti. Pensava-se então que essas forças estrangeiras iriam colaborar para o desarmamento dos grupos armados chamados chimères (“garotos maus”, em crioulo), esses novos tonton-macoutes (milícias para-policiais que perseguiam e matavam opositores dos Duvalier, pai e filho, cujo governo ditatorial ficou conhecido como o mais truculento da história do país até então). Pois a insegurança só aumentou e as forças da ONU se mostraram negligentes em relação a esses grupos como se eles representassem o povo e como se isso se relacionasse a um problema social derivado da miséria e do desemprego. Com esses grupos armados, Aristide tentou controlar as favelas, cujos habitantes foram as primeiras vítimas desses grupos armados que operam impunemente. Continente maio 2005


CONVERSA

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Como o senhor avalia a evolução cultural dos dois países rumo a um futuro mais esperançoso para a América Latina? Os dois países partilham um futuro comum por terem, antes de tudo, uma memória comum. Essa memória não se orienta necessariamente para o culto do passado ou para a retomada de fatos traumáticos. Tomo como exemplo o projeto da Unesco da Rota do Escravo. Trata-se de um projeto que propôs uma volta crítica ao passado do tráfico e da escravidão para descobrir movimentos solidários entre os povos, novas culturas que emergiram nas lutas que os escravos travaram pela liberdade. Há semelhanças tão profundas entre os dois povos que, se eles conseguirem se ajudar mutuamente, poderão colaborar muito mais para a revalorização de toda a América Latina, tanto no âmbito cultural como no político. Porém, o Brasil deve saber que só pode acom- Compreender o Haiti é panhar o Haiti no seu combate atual contra a ditadura e o subdesenvolvimento se compreender os horrores de buscar o máximo de informações sobre o que representava o regime criado por um mundo que marginaliza Aristide entre 2000 e 2004. a maioria da população, enquanto celebramos a O que Aristide representa agora? aldeia global Embora tenha cristalizado uma esperança para as massas pobres do Haiti em 1991 e em 1994, ele traiu essas esperanças: confiscou a televisão nacional para seu único partido político entre 1994 e 2004, abocanhou as empresas públicas como um bem privado, desmantelou a Teleco (a companhia telefônica mais rentável para os cofres públicos) para seu enriquecimento pessoal. Aristide criou gangues armadas nas favelas da capital para servir seu partido, transformando a polícia nacional em um exército de milícia a seu serviço. Ele chegou a deixar as favelas proliferarem sistematicamente. Por isso ele foi impelido a se demitir, diante dos protestos de todos os partidos políticos e de organizações da sociedade civil. Ele se fez passar por vítima do racismo e induziu os haitianos não escolarizados a pensar que uma minoria mestiça queria manter o país no subdesenvolvimento. Acontece que o pobre padre negrinho tornou-se o homem mais rico do Haiti e cabe aqui questionar as fontes reais do seu enriquecimento. Ele transformou o Estado em instituição de apoio ao narcotráfico. O regime de Aristide foi o coroamento da ditadura dos Duvalier, que conhecemos de 1957 a 1986. Que elementos culturais brasileiros e haitianos o senhor destaca na construção da identidade desses dois países? Os haitianos dispõem de uma herança cultural e religiosa importante que se enraíza no vodu, que equivale ao candomblé brasileiro. O que a pintura, a música (com ritmos nacionais como o compas e o meringue), a dança, a literatura, enfim, as manifestações artísticas do Haiti devem ao vodu é Ricardo Bonalune Neto/Folha Imagem

Favelas do Haiti: miséria sem cabimento


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CONVERSA incomensurável. Também acredito que o candomblé tenha essa mesma importância no Brasil. A identidade brasileira tem um vínculo muito forte com a memória da escravidão. Todos os outros grupos de migrantes deveriam reconhecer e assumir essa memória para que o Brasil se livre de preconceitos racistas que ainda habitam instituições e mentalidades. Como comparar o racismo brasileiro com o haitiano? Por muito tempo, certas obras antropológicas apontaram o Brasil como um país em que a democracia racial triunfara, mas a realidade é outra. Eu percebi isso em minhas viagens ao Brasil. No Haiti, o preconceito de uma parte de mulatos contra os negros é uma herança do escravagismo, pois não há mais brancos no país desde o extermínio organizado pelo primeiro chefe de Estado, Jean-Jacques Dessalines, em 1805, que só poupou os farmacêuticos, os padres e os regimentos poloneses e alemães que viraram a casaca contra a França de Bonaparte em 1802, durante a guerra da independência. O que o senhor acha do sistema de cotas para negros? Não simpatizo com essa idéia das cotas por achar que ela não corresponde aos princípios de um estado republicano, mas a demanda de cotas para estudantes

No Haiti, o preconceito de uma parte de mulatos contra os negros é uma herança do escravagismo, pois não há mais brancos no país desde o extermínio organizado em 1805

afro-brasileiros relaciona-se à idéia de igualdade e não apenas de justiça que pode ajudar a manter o status quo. A idéia de igualdade pressupõe que consideremos uma história de injustiça jamais reconhecida até então. De todo modo, a regra da competência deve ser observada onde o princípio de cotas for adotado. No conjunto de sua obra, o senhor menciona que as respostas para as injustiças sociais podem ser encontradas no seio mesmo dos movimentos nascidos por escravos rebelados. Que iniciativas significativas nesse sentido podem ser percebidas na América Latina? O que caracteriza os movimentos de revolta desencadeados por escravos no Caribe e em toda a América Latina é a reivindicação clara da igualdade e da liberdade. Porém, atualmente essa reivindicação espera ainda por ser honrada, pois a saída real da escravidão supõe o acesso à cidadania plena e integral. Ora, do século 19 até hoje os problemas de acesso à propriedade, de reconhecimento de culturas e religiões herdadas da escravidão, as possibilidades de se obter serviços de base como saúde, escola etc.… tudo isso mostra que comunidades inteiras, sejam elas negras ou indígenas, são marginalizadas. Os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, os movimentos feministas, os sindicatos e as organizações que militam contra as políticas das instituições internacionais obcecadas pela privatização dos bens públicos parecem se situar na linha das revoltas baseadas em uma demanda de igualdade e liberdade – ou seja, o que ficou incompleto no passado, para retomar a expressão do filósofo Ernst Bloch. •

Antônio Graudio/Folha Imagem

Para começar a ler Hurbon Em português “O imaginário da África nas Caraíbas”, in Escravatura e Transformações Culturais, organizado por Isabel Castro Henriques, em 2001, no âmbito do Comitê português do Projeto da Unesco A Rota do Escravo. Editora Vulgata. O Deus da Resistência Negra : o Vodu Haitiano. São Paulo, Paulinas, 1988. Em francês, distribuídos no Brasil Le Barbare Imaginaire. Cerf, 1988. Pour une Sociologie d’Haïti au 210 Siècle. Karthala, 2001 Seleção Brasileira nas ruas de Porto Príncipe: torcedores apaixonados Continente maio 2005


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Buenos Aires Retrô Dentro de uma cidade cosmopolita e metropolitana, existe uma outra: a que foi embalsamada e permanece com os costumes de outras épocas, tão sutis como o respeito à fila do ônibus ou a ida diária a um café Mariana Camarotti, de Buenos Aires

Foto antiga de Buenos Aires: além da arquitetura, certa atmosfera retrô permanece


Philip Gendreau/Corbis

COMPORTAMENTO 39


COMPORTAMENTO As folhas caíam incessantemente das árvores e formavam um tapete amarelo no chão daquela fria manhã de outono em Buenos Aires. Sentada no banco de uma praça, eu viajava com os textos de Jorge Luis Borges que tinha em mãos, cheios de relatos íntimos e atentos sobre uma capital argentina que só ele conhecia e que tanto inspirava sua obra. Borges, maior escritor desse país, faleceu em 1986; mas é como se ainda estivesse ali, em cada café, esquina ou rua por onde costumava passear. De repente, imaginei que ele poderia ter sido condenado por seus versos e prosas a continuar vagando pela cidade e que viria àquela praça para levar-me pela “sua” Buenos Aires. Nosso primeiro destino era o velho e tradicional bairro de San Telmo, onde o casario erguido no século 19 e belos cafés formam um cenário de épocas passadas. Partimos sem demora, em direção a uma parada de ônibus. E é quando me chama atenção a fila para tomar o coletivo. Apenas três pessoas na parada, mas organizadas por ordem de chegada. Quando vem o ônibus, um homem que estava primeiro segura no corrimão do lado de fora e faz sinal para que duas senhoras e eu passemos na frente. E também o meu acompanhante. Surpresa, não acredito naquilo que parecia remontar à cena dos antigos bondes urbanos. Borges me explica que esse é um costume dos argentinos, existe um respeito até para subir no ônibus e, geralmente, se dá a vez às senhoras e crianças. Não há mais isso no Brasil, digo-lhe. Ao que ele fala que há muitos outros hábitos e lugares em Buenos Aires que se mantêm, contrariando a passagem dos anos, a chegada da modernidade e a pressa cotidiana de uma grande metrópole. “E é essa a cidade, menina, a de outros tempos e que se perpetuou nos dias de hoje, que eu irei lhe apresentar”, me diz. E continua: –“Buenos Aires é a outra rua. A que não pisei nunca; é o centro secreto nos quarteirões, os pátios últimos, é o que as fachadas ocultam; é o meu inimigo, se os tenho; é a pessoa a quem desagradam meus versos (a mim me desagradam também); é a modesta livraria em que entramos por acaso e que nos esquecemos; é essa racha de milongas assoviada que não reconhecemos e que nos toca; é o que se perdeu e que será; é o ulterior, o alheio, o lateral, o bairro que não é teu nem meu, o que ignoramos e queremos.” Descemos do ônibus e entramos no Café Britânico, numa esquina de San Telmo. Dou-me conta de que nesse e nos demais cafés antigos quase nada mudou. Os vidros ainda têm as molduras desenhadas, os adornos coloridos e escritos tão comuns no princípio do século passado. Até a falta de higiene nos toaletes continua. Mesas e cadeiras de madeira velha, estas, às vezes, forradas de veludo vermelho, acolhem os moradores da cidade desde as primeiras horas da manhã. Ali, em meio a baforadas de cigarro, costumam passar horas sentados com uma leitura quase obrigatória dos jornais, oferecidos pelo próprio café, o que deixa o cenário ainda mais antigo. Os jovens seguem a tradição e hoje freqüentam esses locais para estudar, principalmente nas redondezas das faculdades. Enquanto anoto minhas impressões, percebo que Borges, como fantasma imaginário que era, havia desaparecido. Só, começo a conversar com o Continente maio 2005

Propaganda da Coca-Cola: como nos anos 50


COMPORTAMENTO

Fileteado: estética marcante

Fotos: Mariana Camaroti

“Buenos Aires é a outra rua. A que não pisei nunca; é o centro secreto nos quarteirões, os pátios últimos, é o que as fachadas ocultam” Jorge Luis Borges

Café Britânico: sem mudar nada há meio século.

garçom, José Miñones, há 45 anos na casa. Miñones conta que o Britânico, assim como outras cafeterias, são considerados patrimônio nacional e recebem verba do poder público para se conservarem como estão. O garçom recorda que naquelas mesas o escritor Ernesto Sábato, maior nome vivo da literatura argentina, redigiu muitas páginas do seu Sobre Heróis e Tumbas. Saio do café e continuo meu passeio pela cidade, seguindo as ruas que Borges havia me indicado, conversando com um e outro que encontro pelo caminho. Vejo que os argentinos jogam sinuca, compram soda em garrafas de vidro vendidas de casa em casa há mais de um século, volta e meia falam da época de ouro da economia (100 anos atrás). Tomam vinho em casa ao som de tangos criados há mais de cinco décadas, enquanto mulheres fazem tricô nos trens. São muitas as feiras de antiguidade e lojas de ferro velho espalhadas pelo país. Entro em um movimentado sebo de discos long play (LP), o Eureka. Escuto um pouco de jazz e vejo edições raras de discos da música mundial. Volto para a calçada. Olho para cima e descubro uma Buenos Aires coroada de cúpulas e adornada por estátuas de águias e monstros que se debruçam do alto dos edifícios. Tudo muito cinza e grandioso, com detalhes rebuscados nas fachadas dos prédios. Uma arquitetura européia, que não nega a influência da colonização espanhola e da enorme imigração italiana.

O cenário de outras épocas se completa com a grande quantidade de carros antigos que circulam pelas ruas e alguns detalhes nas fachadas – velhas luminárias, nomes de rua em placas de bronze. As propagandas de alimentos em bares e restaurantes que nunca foram tiradas das paredes dão um toque de decadência à cidade. As publicidades do refrigerante Coca-Cola, com típicas garotas norte-americanas desenhadas com uma garrafa ou copo de vidro na mão, são das mais recorrentes. A cidade manteve costumes antigos não apenas no centro, mas também nos bairros mais afastados. Como, por exemplo, as casas que vendem tudo a granel – da maisena aos materiais de limpeza –, as verdureiras que espalham seus caixotes pelas calçadas e os armazéns, onde se continua comprando fiado. Lembro da primeira vez que fui em um lugar assim, lá perto de casa. A dona da quitanda, Teresa Mayer, me deu uma cadernetinha onde anota minhas dívidas, pagas no final da semana. Mais uma vez me surpreendi, mas resolvi ter uma caderneta como os demais clientes. Saio à rua e, de repente, um vento frio passa pelas minhas costas e me dou conta de que era Borges que voltava para me acompanhar. Diz-me que Buenos Aires é para se caminhar e seguimos nossa andança, enquanto a tarde começava a cair. Passamos por casas que servem churro com chocolate quente, bancas de revistas em que os vendedores atendem de gravata até altas madrugadas, paramos Continente maio 2005

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COMPORTAMENTO em inúmeros sebos de livro. Vimos casais de velhos sentados na calçada tomando uma espécie de chimarrão. Era o mate argentino, responsável por mais um costume de outras datas e mantido até hoje: o piquenique. Famílias inteiras, casais de namorados, jovens colegas ou os que buscam tranqüilidade para a leitura forram toalhas em jardins, praças e margens dos rios para tomar mate e aproveitar o dia. Encantada com os piqueniques, comento com o escritor: “Que coisa linda!” Ao que ele responde, com uma de suas sentenças poéticas: “A palavra linda é a previsão da namorada de cada um, e dela apenas, de mais ninguém. Não quero apoiar-me em outros exemplos, há demasiados.” O autor de Fervor de Buenos Aires me leva pelos bairros de Palermo e Boedo, onde começo a prestar atenção em uns desenhos em tudo que é cartaz, fachadas comerciais, vitrines. Eram os fileteados, nascidos no final do século 19 com a vinda de centenas de milhares de imigrantes europeus à Argentina e que buscavam uma forma singular para seus escritos e desenhos. Colorido e rebuscado, o fileteado começou a ser feito nas carrocerias de caminhões que transportavam alimentos, principalmente verduras. Após caírem no gosto do povo do interior do país e do subúrbio da capital, os desenhos passam a decorar ônibus, placas de restaurantes, cardápios colocados nas portas, vidros de cafés, caixas e bandejas. Depois passaram aos azulejos e paredes. Hoje, não é difícil encontrar jovens com desenhos do estilo tatuados no corpo. Tango no formol – O principal ritmo do país pouco mudou desde a sua consagração, na primeira metade do século passado. Os mesmos temas são escutados nas casas e lojas de discos, lembrando a quem vai pela calçada que Buenos Aires é uma cidade de coisas antigas. É verdade que surgiram os modernos espetáculos e formas menos tradicionais de se bailar, mas o tango perdura quase tal e qual nasceu, apesar das inovações de Astor Piazzolla. E, há pouco tempo, era dançado apenas pelos mais velhos, o que resultava

Café Tortoni, fundado em 1858: majestade

O portenho parece seguir à risca Borges, quando ele diz: “Seguimos sendo imortais; mais além da morte corporal, fica nossa memória, ficam nossos atos, nossos feitos, nossas atitudes, toda essa maravilhosa história universal”

O tango: pouca evolução


num obstáculo para que a juventude se aproximasse e aprendesse os passos. Mergulhado num formol durante quase quatro décadas e apreciado mais no exterior que na Argentina, só agora o tango começa a se renovar com festivais, jovens orquestras e aulas nas academias de ginástica. Mas o processo ainda é lento. Carlos Gardel, o cantor e compositor maioral do melancólico ritmo argentino, autor de “El día que me quieras”, “Mano a Mano” e “Cuesta Abajo”, continua sendo a grande figura. Falecido em 1932, suas fotos ainda decoram cafés e restaurantes e são vendidas em bancas de revistas como um astro da atualidade. A expressão “é um Gardel”, para dizer que a pessoa é o máximo, continua vigente, mesmo na boca dos adolescentes. A criação e culto de personalidades do passado, como Gardel, é um outro costume que envelhece as referências do país. Dá para acreditar que Evita Perón, atriz, política e esposa do ex-presidente Juan Perón, falecida em 1952, continue com sua imagem estampada pelas ruas? E que seu túmulo receba flores, velas e visitantes diariamente? Havíamos chegado à Avenida de Mayo, a preferida de Borges e uma das mais exuberantes de Buenos Aires. E é quando ele reprime meus julgamentos acerca do culto à antiguidade dos portenhos: “ (...) Seguimos sendo imortais; mais além da morte corporal, fica nossa memória, ficam nossos atos, nossos feitos, nossas atitudes, toda essa maravilhosa história universal (...)”. Calo-me, e ele me convida para conhecer um dos lugares que considerava a extensão da sua casa, o Gran Café Tortoni. Aquelas enormes portas de madeira davam idéia da majestade que eu encontraria ali dentro. “Esse café foi fundado em 1858, pelo monsieur Touan e está entre os mais belos do mundo”. Disse isso e me levou até uma das mesas em que costumava sentar em suas tardes literárias e de discussões filosóficas. Enquanto saboreávamos o nosso último café juntos, meu guia insiste na conversa sobre o tempo, a antiguidade e a memória. “(...) O tempo é a dádiva da eternidade. A eternidade nos permite todas essas experiências de um modo sucessivo”. O poeta me faz chegar à conclusão de que dentro de uma Buenos Aires cosmopolita e metropolitana existe uma outra: a que foi embalsamada e permanece com os costumes de outras épocas, tão sutis como a fila do ônibus ou a ida a um café. Uma cidade que se poderia chamar de retrô, com uma formalidade e culto ao antigo que vão além dos exuberantes velhos edifícios. A lua já havia saído e era hora de eu me despedir do meu delírio. Borges continuou lá no Tortoni. Eu voltei para casa, desacompanhada, mas certa de que algo teria para escrever. •

Fotos Reprodução/Mariana Camarotti

COMPORTAMENTO

Evita Perón: presente

A cidade manteve costumes antigos como as casas que vendem tudo a granel – da maizena aos materiais de limpeza –, as verdureiras que espalham seus caixotes pelas calçadas e os armazéns, onde se continua comprando fiado

Carlos Gardel: atual Continente maio 2005

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Imagens: Divulgação/Cosac & Naify

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Aparelho cinecromático, 1954 (seqüência visual de doze imagens), madeira, metal, tecido sintético, lâmpadas e motor

A arte cinética de Palatnik O brasileiro Abraham Palatnik tornou-se um dos pioneiros da arte cinética, ao criar em 1950 uma “máquina de pintura” que mais tarde tomou o nome de aparelho cinecromático

A

arte cinética é um fenômeno tipicamente moderno que surgiu em decorrência tanto do espírito inovador da vanguarda artística quanto da possibilidade de usar, nas obras de arte, motores elétricos, e assim imprimir-lhes movimento real. Antes disso, as tentativas de expressar o dinamismo da vida moderna na pintura e na escultura – como observei no artigo anterior – não passaram de sugestões sensoriais, de que são exemplos os quadros futuristas de Boccioni, Balla e Carrà. Mas a obra mais famosa, que incorpora essa aspiração ao movimento na pintura, é Nu Descendo Uma Escada, de Marcel Duchamp, pintado em 1912. Não por acaso, mais tarde, em 1923, ele construiu uma série de Discos em Espiral movidos a motor. Na verdade, o primeiro artista a incorporar o movimento real na pintura foi Thomas Wilfred, com seu Clavilux (1921), que consistia numa espécie de piano que, em vez de emitir sons, projetava formas coloridas numa Continente maio 2005

tela, à medida que as teclas do instrumentos eram acionadas. É verdade, porém, que o artista que mais conseqüentemente explorou as possibilidades cinéticas da expressão artística foi o húngaro Lazlo Moholy-Nagy, que concebeu a “arquitetura da luz” e os “afrescos de luz”, destinados a ativar vastas unidades arquitetônicas, cobrindo imensas paredes com suas imagens em movimento. Em 1935, ele concebeu uma estética da pintura tridimensional, realizada com “moduladores espaciais” compostos de superfícies transparentes superpostas, entre as quais modulavam-se delicados jogos de sombra e reflexos luminosos. Sonhou com a projeção, sobre as nuvens ou sobre grandes lençóis de substâncias gasosas, de composições cromáticas, que o espectador não apenas contemplaria, mas as atravessaria. Imaginou também uma ordenação da iluminação das cidades de modo a formar vastas composições de luz que ofereceriam aos passageiros dos aviões prodigiosos espetáculos. Desnecessário dizer que a maior parte desses projetos não saiu do papel.


TRADUZIR-SE

T4, acrílica sobre tela, 120 x 187m, 2004

O brasileiro Abraham Palatnik tornou-se um dos pioneiros da arte cinética ao criar em 1950 uma “máquina de pintura” que mais tarde tomou o nome de aparelho cinecromático. A editora Cosac & Naify acaba de publicar um volume sobre sua obra com textos de Luiz Camillo Osório, Mário Pedrosa, Frederico Morais e Fabiana Barcinsky, livro que possibilitará ao público maior conhecimento do trabalho deste artista que abriu um caminho único na arte brasileira. Palatnik dificilmente terá conhecido, naquela época, os experimentos de Thomas Wilfred e Moholy-Nagy, uma vez que partiu de um brinquedo – o caleidoscópio – para criar composições cromáticas em movimento cuja evolução se daria sob controle do artista. Seu aparelho cinecromático foi exibido pela primeira vez na I Bienal de São Paulo, em 1951, provocando perplexidade no júri que não sabia como catalogá-lo. Por isso, foi posto num local à parte e sem concorrer à premiação, já que não cabia nas categorias artísticas existentes. Mas o aparelho de Palatnik despertou o interesse de críticos e de museus internacionais, que reconheceram a sua importância e o incluíram em seus acervos. Mais tarde, Palatnik diversificou suas experiências, criando um variado número de objetos cinéticos, movidos por motor elétrico, que tanto participam da expressão escultórica quanto da pictórica, por se situarem ao mesmo tempo no espaço tridimensional e no espaço bidimensional do quadro, uma vez que as formas coloridas se movem sobre uma superfície que lhes serve de fundo. Têm esses objetos certo parentesco com os móbiles de Calder, muito embora Palatnik lhes

imprima um caráter próprio. Diria mesmo que, em que pese à sua concepção sofisticada, esses objetos cinéticos de Palatnik têm em si alguma coisa de brinquedos, como aliás também os móbiles de Calder. A arte cinética, por introduzir na obra de arte o movimento real, defronta-se com um problema básico que é a repetitividade, inerente ao movimento mecânico. Esta questão foi indiretamente levantada por Mário Pedrosa, ao sugerir a Palatnik que passasse da mecânica para a eletrônica. Esta questão atormentou todos os artistas que seguiram esse caminho, como Nicolas Schöffer, Le Parc, Jean-Tinguely e inclusive Alexandre Calder, que simplesmente livrou-se dele: excluiu o motor de seus móbiles e deixou que se movessem ao sopro casual da brisa. Thomas Wilfred foi quem mais avançou na tentativa de superar a repetitividade: trabalhou durante 40 anos em seu Clavilux até conseguir movimentos extremamente variados que só se repetiam após 16 dias. Diferentemente desses artistas, a introdução do movimento na obra dos artistas brasileiros neoconcretos nada tem de mecânico, uma vez que se trata da ação do próprio espectador que, assim, torna-se participante dela. O caminho de Palatnik, portanto, tanto difere da arte neoconcreta quanto da optical art. Deve-se reconhecer que, além da inventividade que o caracteriza, ele conseguiu em sua obra cinética vencer a já mencionada repetitividade pela multiplicação e variação dos movimentos que imprimiu a seus trabalhos que, com isso, tornamse fascinantes e mágicos. • Continente maio 2005

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ARTES

Expressionismo

Imagens: Divulgação

Uma ponte para o coração da Terra


ARTES

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Exposição do grupo Die Brücke, no museu Thyssen-Bornemisza de Madri, é um amplo painel que está na origem do Expressionismo alemão e cujo impacto até hoje não foi devidamente assimilado Rodrigo Petronio, de Madri

Ao transpor o corredor estreito e iluminado que dá acesso às salas do museu Thyssen-Bornemisza, o primeiro impacto que temos é o de distopia em relação à nossa experiência cotidiana. Mal as cores fortes das telas e as deformações programadas dos corpos se anunciam, deixamos, como disse Dante, nossa esperança de salvação à porta, e mergulhamos por vontade própria na espessura de um imaginário que parece ter acabado de despertar de um sono de milênios. Não mais os automóveis, trens, barulho, agitação, luzes, sinais, tráfego de todos os tipos que povoam Madri, circulando à margem da imponência palaciana de suas avenidas e de seus monumentos. Mas, sim, um silêncio perturbador e inebriante ao mesmo tempo. É o outro lado da ponte. Quando, em 7 de junho de 1905, alguns estudantes de Arquitetura expuseram seus quadros em uma antiga fábrica de lâmpadas, localizada na Berlinstrasse, em Dresden, não tinham em mente ao certo qual seria o resultado do seu trabalho. Mas traziam todas as pretensões do mundo, no melhor sentido desta palavra, que só possui bons sentidos. Já a partir do nome do grupo que os distingue, Die Brücke, cuja tradução seria A Ponte, podemos notar as suas ambições. Não sabiam ao certo aonde chegariam, mas sabiam o que deveria ser evitado, como disse certa vez Erich Heckel. Do que deveriam se afastar para que viessem a se tornar o que eram, para lembrar a famosa agudeza de Nietzsche, filósofo cujo impacto a arte alemã já pressentia. O núcleo inicial do Brücke foi composto por Fritz Bleyl, Erich Heckel, Karl SchmidtRottluff e por Ernst Ludwig Kirchner, provavelmente o maior artista do grupo e um dos grandes pintores do século 20. Porém, dele participaram no seu início outros grandes artistas, como Emil Nolde, Max Pechstein, Otto Mueller e Cuno Amiet, entre outros, até a sua dissolução, em 1913. Embora, enquanto grupo, tenham permanecido unidos durante um

Na pág. anterior: Cartaz da Exposição do Grupo Die Brücke no Museu Thyssen–Bornemisza de Madri Ao lado: Banhista com Pano (1913),, escultura de Erich Heckel Abaixo: Menina Deitada (1910), de Max Pechstein


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ARTES interregno relativamente curto, a marca do Brücke foi indelével, e deu ao mundo algumas das trilhas decisivas para toda a arte ulterior. Mas em que consiste ao certo este caminho? Muitos críticos já apontaram as influências e as fontes de inspiração do Brücke, trabalho que chega a ser ocioso, dado o caráter evidente de muitas destas aproximações, reconhecíveis até por pessoas iniciantes em arte. De certa forma, a proposta do grupo não era original, e nem era essa a sua preocupação mais profunda. Quando muito tinham como objetivo reler uma tradição que ainda era marginalizada ou pouco conhecida. O trabalho de cor de Van Gogh, borrando os limites da figura em benefício da expressão. As cores fortes de Gauguin e o retorno à linha como elemento estruturante da composição, ou seja, em franca ruptura com a tradição do desenho, desde o século 15 entendido como contorno de volumes. Todos os impressionistas e a possibilidade de pintar o intervalo entre a tela e o tema: a atmosfera. A estima a alguns pintores de limite: Turner, Delacroix, a fase negra de Goya, Rubens. A herança da famosa Feira Internacional de Paris, sobretudo a de 1848. A decomposição da natureza levada a cabo por Cézanne. Na arte gráfica e na gravura, o retorno à grande tradição alemã, principalmente a Dürer e Cranach. E, acima de tudo, a valorização da arte dita primitiva, da África e da Oceania. Toda essa tradição é importante para a formação do Brücke. Além da convergência curiosa de sua proposta com a do Fauvismo, cuja primeira exposição oficial data também de 1905, no Salão de Outono, em Paris, tendo à sua cabeça Matisse e Dufy. Convivência polêmica e nem um pouco pacífica, pelas sucessivas sugestões de imitação servil a que Kirchner depois vai acusar alguns de seus

Ao lado: Natureza Morta com Escultura de Madeira (1913), de Erich Heckel Na pág. seguinte: Mulher na Rua (1915), de Ernest Ludwig Kirchner Continente maio 2005



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ARTES

Casas Vermelhas (1908), de Erich Heckel

companheiros de grupo, como bem notou Norbert Wolf em seu excelente estudo sobre o pintor de Dresden, À Beira do Abismo do Tempo. E devido às diferenças de fundo entre as duas propostas. Mais que isso: devido à influência hipotética que os expressionistas teriam sofrido dos fauves, então muitas vezes designados pejorativamente como artistas de superfície e enquadrados na arte decorativa, A reconquista da coisa que contrariava o delírio fáustico daqueles e repunha em cena a velha querela de adesão e repúdio ao cinismo e aos floreios franceses. sexualidade recalcada Entretanto, todos esses elementos podem ser vistos como componentes externos de sua e o retorno à terra que proposta. E se quisermos conhecer melhor o que de fato os caracteriza, teremos que ir mais apaga a distinção dos fundo. Talvez aqui, nessa querela entre os fauves e o Brücke, possamos pescar um dado imrostos e esculpe o portante para a compreensão deste último. Ou seja, se pensarmos que sua essência radica homem a partir de sua em algo que ultrapassa a estética e deve ser buscado em outro domínio, como certa vez sombra são Paul Valéry disse acerca do Simbolismo, segundo o poeta de Sète o primeiro fato estético características do que não pode ser circunscrito pela estética. Esse domínio, no caso dos expressionistas, é o Expressionismo alemão do sobrenatural. Na exposição, há que se destacar a importância dada às esculturas, todas de impressionante qualidade. E nela também o espectador tem a oportunidade de ver alguns quadros emblemáticos da modernidade, como Fränzi numa Cadeira Entalhada e Artista, Marcella, dois ícones da arte de Kirchner. Também é preciso destacar a presença da ótima tela Natureza Morta com Escultura de Madeira, de Heckel, e as paisagens e nus de Pechstein. Além disso, há as esculturas e as gravuras, dois pontos altos dos artistas, junto com as cenas de cabaré, de interiores e os retratos, gênero no qual os integrantes do Brücke deram uma contribuição decisiva.

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ARTES Coesão interna impressionante - Observando obra a obra, por maior que seja a diferença entre os artistas do grupo, a coesão interna entre eles é impressionante, chega a ser homogênea a certa altura. Isso pode ser explicado dentro do ambiente vanguardista e dos programas coletivos de criação, típicos do início do século 20. Mas esse caráter coletivo do Brücke se ampara em uma outra dimensão, que é cultural. Para sanar o impasse técnico a que a pintura foi conduzida pelas mãos de alguns gênios no final do século 19, era necessário que fossem escavadas regiões mais profundas em busca de veios virgens e novos lençóis freáticos. Essa inclinação no sentido de uma experiência telúrica, original, de retorno aos instintos que tinham sido atrofiados pela modernidade, pela ciência positiva e pelo advento da era da máquina, podia se cumprir como sagração ou como miséria. Na melhor das hipóteses, e este parece ser o objetivo dos expressionistas, como uma união feliz destas duas coisas. A reconquista da sexualidade recalcada e o retorno à terra que apaga a distinção dos rostos e esculpe o homem a partir de sua sombra também é, simultaneamente, uma aproximação da morte, da plenitude indiferenciada que nos constitui e para o interior da qual iremos após um longo ritual de degradação regido pelo tempo. É mais ou menos dessa matéria, viscosa e contraditória, que se nutre o Expressionismo e, em especial, o Brücke. Basta pensar na xilogravura de Kirchner intitulada Schlehmil na Solidão de seu Quarto, que trata do famoso personagem de Chamisso e da desgraça do homem que vendera a própria sombra e vive então em função dela, ou melhor, de sua ausência. Esse caminho sui generis nasce na Alemanha e pode ser lido como um corolário da grande tradição trágica de sua música, de sua poesia, de seu teatro, de sua filosofia. A natureza, entendida no antigo sentido de physis, manifesta como potência vital e como vontade

Acima: Taberna (1913), de Karl Schmidt-Rottluff Abaixo da esquerda para a direita: Marcella e Artista, Marcella (1910), de Ernest Ludwig Kirchner

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ARTES

de transpor os limites da representação, já que todo o mundo não passa de ilusão, está dispersa pela obra de todos os expressionistas. É uma celebração da cor, da força, da volição, do instinto, captados, sobretudo, nos nus e nos retratos, que dão voz ao corpo e ao seu apelo mais elementar. Por outro lado, esse excesso vital traz inscrito em si a sombra de expiação e de dor que o engendraram. Ambos, expiação e dor, são a contrafação de uma vitalidade sem limites. Em um simples nu, a fragilidade do corpo aflora, trêmulo, e a pincelada capta ossos salientes. O lado escuro, a morte, as cavilações armadas pelo tempo não seguem um caminho à parte: fazem parte da composição mesma de treva e luz que se unem nestas telas. E se revelam mais nitidamente no trabalho gráfico e na pintura a óleo, com certeza devido às possibilidades técnicas e grâmicas que ambos, técnica e gênero, proporcionam. No fundo, estes artistas parecem ter confirmado a leitura que Walter Benjamin faz do anjo pintado por outro artista gigante, Paul Klee. Com ele afirmaram que há um rastro de barbárie e morte por trás dos mais prestigiosos signos da civilização. Rilke propôs uma inaudita celebração de todos os instintos e da mortalidade como bem supremo. É o ritual da morte e transfiguração pelo deus rio do sangue que ele encarna em sua poesia. A celebração da criatura como criatura, e esta, como fim a ser atingido por algum tipo de milagre, que já não é redenção metafísica, mas mergulho na substância una e indivisível do mundo. Até o seu coração. Talvez seja isto que somos. Uma corda atada entre o animal e aquilo que está além do homem. Uma ponte sobre um abismo. •

O movimento artístico é uma celebração da cor, da força, da volição, do instinto, captados, sobretudo, nos nus e nos retratos, que dão voz ao corpo e ao seu apelo mais elementar

Acima: Milly Dormindo (1911), de Ernest Ludwig Kirchner Na pág. anterior: Schlehmil na Solidão de seu Quarto (1915), xilogravura de Ernest Ludwig Kirchner

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AGENDA

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ARTES

Os pés Roberto Lúcio coloca os pés na sua obra em exposição no Museu do Estado

Há cinco anos que Roberto Lúcio não realizava uma exposição individual no Recife. Para caminhar te dou meus pés baseia-se numa obsessiva observação dos pés, permitindo múltiplas leituras: os pés como identidades, com marcas do

Bamako A Exposição Bamako V...Suíte mostrará a África em fotografia. A Exposição chega ao Museu do Estado de Pernambuco com 47 fotografias que apresentam o universo senegalês sob a perspectiva das lentes de quatro fotógrafos do país: Fatou Kandé Senghor, Aliou Mbaye, Matar Ndour e Pape Seydi. Bamako V...Suíte fez parte da V Bienal de Bamako, realizada em Mali, em 2003, e é resultado de uma iniciativa do Governo Francês que apóia a circulação de parte do que foi exposto, durante a Bienal, ao redor do mundo. Os eventos são realizados numa parceria entre Fundarpe, Consulado da França e Aliança Francesa.

tempo com características pessoais, mapas do destino; capaz de revelar a alma através de suas escrituras. “Ao efetuar as fotografias dos pés de variados tipos humanos, independentemente de cor, profissão, classe social, percebi uma rica e múltipla variação de identidades, como se a planta dos pés delineasse uns mapas do destino para cada indivíduo focalizado”, antecipa o artista. Para esta Mostra, Roberto Lúcio utiliza a fotografia, objetos em madeira e uma grande instalação composta por 500 pães em forma de pés, intitulada A mesa está posta II. Sobre a instalação, Gabriel Bechara Filho, curador da Mostra, escreveu: “como a espera de um banquete antropofágico em que caminhos possíveis, abertos por cada um deles, estivessem à espreita para serem devorados e incorporados”. Para caminhar te dou meus pés. Museu do Estado de Pernambuco (Av. Rui Barbosa, 960, Graças). Abertura: 19 de Maio. Visitação de terça a sexta, das 10h às 13h, e sábado e domingo, das 13h às 18h. Até 3 de Julho.

Caminho das artes O Caminho das Artes está aberto no Rio de Janeiro. Está será a 5ª edição daquele que é considerado um dos maiores e mais diversificados eventos do tipo “ateliês de portas abertas” do Brasil. Além da participação de artistas plásticos e artesãos, cerca de 300 divididos em 60 ateliês, o 5º Caminho das Artes vai incluir em sua programação dança, música e cinema. Esta edição, que acontece em dois finais de semana (dias 21 e 22, 28 e 29 de maio), também abrange uma área maior, que vai de São Conrado até o Pontal – passando pela Barra da Tijuca, Itanhangá, Vargem Grande e Vargem Pequena –, região da Zona Oeste carioca. 5º Caminho das Artes. Dias 21, 22, 27 e 28 de maio, entre 10 e 18 horas.

Catálogo Pernambuco tem uma grande carência de publicações na área de artes plásticas. Visando suprir esta necessidade, o 46º Salão de Artes de Pernambuco coloca no mercado editorial um consistente catálogo crítico-analítico que contempla esta e a edição anterior do evento, ocorrido em 2003. Com depoimentos em primeira pessoa, a publicação reconta a história de participação dos artistas envolvidos nos Salões. Bamako V... Suíte. Museu do Estado (Av. Rui Barbosa, 960, Graças). Visitação de terça a sexta, das 10h às 13h, e sábado e domingo, das 13h às 18h. Até 25 de maio.

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Catálogo 45º e 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Fundarpe/ Governo do Estado. R$ 15,00 (à venda no Museu do Estado).


Ron Watts/Corbis

REGISTRO

As Caravelas das Imprensas Oficiais Em maio, será oficializado o Fórum Permanente das Imprensas Oficiais dos Países de Língua Portuguesa Florian Madruga

T

udo começou quando as caravelas de Marcelo Maciel, Sérgio Kobayashi e João Esteves Pinto encontraram-se ao lado da ponte do Imperador, no rio Capibaribe, tendo ao fundo os casarões da rua da Aurora, na sempre bela cidade do Recife. Explico. Maciel, presidente da Companhia Editora de Pernambuco, Kobayashi, presidente da Imprensa Oficial de São Paulo e da Associação Brasileira de

Imprensas Oficiais, e Esteves Pinto, Administrador da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Portugal. Os três lideraram o I Encontro das Imprensas Oficiais de Língua Portuguesa, na capital pernambucana, paralelamente ao V Congresso Internacional do Jornalismo de Língua Portuguesa, organizado pelo mestre do jornalismo brasileiro, Alberto Dines. Era junho de 2000, mês de São João, pamonha, milho assado e quentão. Continente maio 2005

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REGISTRO Imagens: Divulgação

Reunião de representantes das Imprensas Oficiais, em Portugal

Vinte e três Imprensas Oficiais brasileiras participaram. Mais Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Uma beleza. Foi como se o imenso continente português se reencontrasse e se juntasse. Todos falando a mesma língua. Alguns puxando os esses; outros acentuando nos graves e tônicos e tantos mais nos erres compridos. E da primeira Carta do Recife saiu esta pérola: – A Língua Portuguesa é um veículo fundamental de difusão que deve valorizar as relações entre os Estados a que pertencem e as instituições que representam. Um ano depois Lisboa, a velha Lisboa, cada dia mais linda e mais nova, capital-mãe de todos nós, recebe as caravelas numa viagem oposta à de Pedro Álvares Cabral, para o II Encontro das IOLP. No mesmo mês de junho, agora, 2001, no Tejo, sempre cantado por Fernando Pessoa, próximo ao Monumento dos Descobridores, e sob os olhares do Mosteiro dos Jerónimos, lá estavam nós, os do Recife, e mais Pedro Miguel Soares Alves dos Santos, da Região Autônoma dos Açores, a serena Maria Lúcia Fernandez da Cruz dos Santos, da Região Autônoma da Madeira, José Gomes, de Angola, a alegre e cativante Clotilde Fortes Tienne, de Cabo Verde, de Guiné-Bissau, José Celestino Sanches e Raul Cunha Lisboa, de São Tomé e Príncipe. Do Brasil éramos 12. Não apóstolos, mas defensores da boa causa em prol das Imprensas Oficiais. Dos 11 tópicos da Carta de Lisboa, o destaque foi: – Fortalecer, através de outras organizações das quais as Imprensas Oficiais de Língua Portuguesa sejam parte, o papel dos Jornais Oficiais, na sua missão de transmissores seguros e fidedignos dos atos de conteúdo normativo, judicial ou outros que caibam nas atribuições dessas instituições, por força dos respectivos ordenamentos jurídicos. Continente maio 2005

Florian Madruga, diretor do Instituto Legislativo Brasileiro

É de se frisar que o fado foi ouvido a mancheias. Ah, sim, e os pastéis de Belém consumidos sem nenhuma preocupação com a forma física. E como pièce de résistance o bacalhau farto do restaurante Delfim, próximo ao parque Eduardo VII. O Recife ficou na memória de brasileiros, portugueses e africanos. Tanto é que foi escolhido para o III Encontro das Imprensas Oficiais, novamente sob a batuta de Marcelo Maciel e o grupo já citado, cada vez mais afinado. Eis o que diz a Carta II do Recife, em maio de 2002: – Constitui papel da Imprensa Oficial – em alguns casos consignado expressamente nos seus Estatutos – o exercício da atividade editorial com vista à divulgação de cultura dos respectivos países ou Estados, num quadro que se pretende predominantemente supletivo em face da atividade editorial de outras empresas que exerçam a sua atividade nos mesmos espaços de ação. Cada vez mais unidas e harmonizadas as Imprensas Oficiais consolidam os Encontros e se preparam para criar seu Fórum. Não houve reunião em 2003. Mas no ano seguinte voltamos a Portugal. Mais precisamente a Évora, cidade medieval, onde tivemos a alegria de receber, nesse IV Encontro, Abílio José Caetano, representando a Gráfica Nacional de Timor-Leste, Fernando Manuel da Silva Nunes, da Imprensa Oficial de RAEM, em Macau, e Albrecht Berger, observador da União Européia. Foi marcante a participação no evento, presidindo as reuniões, do intelectual António Braz Teixeira, presidente do Conselho de Administração da Imprensa Nacional – Casa da Moeda de Portugal. Évora nos recebeu em sua Universidade, criada no século 17. Um cenário perfeito para uma Carta: – “A


REGISTRO

Maria Luiza Ribeiro Félix, Carlos Alberto Torres, Antônio Eustáquio Corrêa da Costa, Celso Mansur, Eugênio Pacceli Buery, Mário Jorge Corrêa, Francisco Dantas, Carlos Alberto Prado, Altino Cádena, José Itamar da Rocha Cândido, todos passageiros dessas caravelas que tornaram realidade os sonhos dos visionários Agaciel da Silva Maia, Esteves Pinto, Sérgio Kobayashi e Marcelo Maciel. Esses acreditam nos versos de Fernando Pessoa “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, e nas palavras de Fernando Sabino “No fim tudo dá certo; se não deu certo é porque não chegou ao fim”. São Francisco de Assis poderia ser o padroeiro das Imprensas Oficiais. Diz o santo da natureza: “Comece fazendo o necessário; depois o que é possível e de repente estará fazendo o impossível.” As Imprensas Oficiais têm feito. Para o bem da pátria nossa, que é a Língua Portuguesa. • Stapleton Collection/Corbis

minha pátria é a Língua Portuguesa”. Na presente circunstância, entendem, igualmente, dever realçar a grande conveniência na outorga e ratificação, por todos os países de Língua Portuguesa, do Acordo Ortográfico que consagre regras que evitem divergências de escrita na nossa Língua comum e que podem, a prazo, dar lugar a um menor rigor de idéias e conceitos e a uma maior dificuldade de compreensão recíproca. Foi em Évora, na presença do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros de Portugal, Dr. Domingos Jerônimo, e com a aquiescência de Agaciel da Silva Maia, diretor-geral do Senado Federal, que a capital do futuro, Brasília, foi escolhida, no ano em que completa 45 anos, para sediar o V Encontro das Imprensas Oficiais, na sede do Congresso Nacional, na Casa Maior do Parlamento Brasileiro, que é o Senado Federal. Agora, em maio, será oficializado o Fórum Permanente das Imprensas Oficiais dos Países de Língua Portuguesa. Cinco anos depois, relembrando Nélio Palheta, Luiz Augusto da Paz Jr., Júlio Werner Pedrosa, Rui Loepert, Luiz Heron da Silva, Eberard Nunes, Eduardo Heinig, Adriana Cristina Tosi, Adroaldo Garani,

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São Francisco de Assis poderia ser o padroeiro das Imprensas Oficiais. Diz o santo da natureza: “Comece fazendo o necessário; depois o que é possível e de repente estará fazendo o impossível”

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ESPECIAL

Arquivo Fernando Monteiro

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Berlinenses em fuga, depois da cidade ser bombardeada pela vanguarda da artilharia pesada soviĂŠtica


ESPECIAL 60 anos depois do fim da guerra, filme alemão retrata as últimas horas vividas por Hitler e pela alta cúpula nazista, antes da tomada da capital pelos soviéticos Fernando Monteiro

Berlim 1945: a vigésima quinta hora

A

Alemanha de hoje tomou coragem e está olhando, pela primeira vez, na face do Hitler do fim, das últimas horas no bunker, abaixo dos escombros da Chancelaria, de 29 de abril para a madrugada de primeiro de maio de 1945. O filme Der Untergang, do diretor Oliver Hirschbiegel, foi exibido, sem problemas, em 400 salas alemãs, no final do ano passado, e esteve nas capas das duas revistas semanais mais influentes (Der Spiegel e Stern) da Alemanha unificada, cuja atitude já não é a de empurrar o passado para debaixo do tapete de grama que ainda forra o abrigo subterrâneo nazista. O longa-metragem tem rendido os maiores elogios ao excelente ator Bruno Ganz, talvez por encarnar o Führer como um outro papel qualquer da sua vitoriosa carreira. Será? Viver Hitler, dar-lhe um rosto e emoções, sentimentos etc. é mais do que o “desafio” que todo ator diz que representa cada novo papel que lhe é oferecido – principalmente quando o papel é o de um homenzinho colérico, de bigodinho aparado como cocô quadrado de pombo, acima da boca que sabia, como ninguém, gritar pela odiosa tese da “raça pura”. O “Adolf ” de Ganz (e Hirschbiegel) se parece, perturbadoramente, com qualquer um de nós, necessitando ir ao banheiro, assoando o nariz e se despedindo, educadamente, da secretária – para dar um tiro na cabeça. Der Untergang se baseia nos relatos de Gertrude “Trauld” Junge, a secretária que já havia protagonizado Im Toten Winkel (documentário de 95 minutos no qual recordava os três anos em que foi a mais jovem assistente do ditador do III Reich) e também noutros depoimentos sobre o que aconteceu na noite e na madrugada daquele dia primeiro de maio, já não visto por Hitler. Será? Muitos duvidam das “recordações” de todos que estavam vivendo em intimidade com o Führer, no bunker, assim como encaram com reserva todas as fontes de informações russas sobre o polêmico assunto, o “fim de Hitler” – porque não há outras fontes senão os nazistas do staff do ditador, Continente maio 2005

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ESPECIAL Divulgação Europa Filmes

Depois de receber mais uma notícia sinistra (sobre o cadáver de Benito Mussolini estar sendo exibido nas ruas de Milão, junto com o de Clareta Petacci) Hitler se despediu de todos

O ator Bruno Ganz interpreta Hitler, no filme Der Untergang A Queda), do diretor Olivier Hirschbiegel (A

sobreviventes da guerra, e os soviéticos que chegaram primeiro no último esconderijo do homem mais odiado da Europa de sessenta anos atrás. Os americanos poderiam ter avançado sobre Berlim, troféu supremo, na frente dos russos mais temidos do que todos (pelos alemães, acima de tudo), porém as tropas dos generais Eisenhower, Simpson, Patton e Bradley se detiveram, no último momento, no rio Elba, por ordem do presidente Roosevelt, o comandante-em-chefe. Durante muito tempo se acreditou num acordo – firmado em 12 de fevereiro, na cidade de Yalta (Ucrânia) – garantindo aos soviéticos a primazia na tomada de Berlim (e a sua divisão, posterior, em quatro partes ou “zonas de influência”). Parte dos documentos militares russos e americanos liberados nos anos 60 – durante a administração Kennedy – desmentiram a versão “conspiratória” e tornaram possível entender os fatos de maneira bem mais simples: Ike era de opinião que não se devia lançar as tropas contra um suposto reduto alemão, fortíssimo, tanto ao sul quanto ao norte, com ordens severas de “combate até o último homem”, o que poderia resultar em perdas aliadas em torno de 100 mil soldados, entre mortos, feridos e desaparecidos. Parados na linha do rio, a “perda” americana seria mais política do que em vidas (Eisenhower nunca foi um bom político, e era um general, às vezes, hesitante demais). Isso explica que, aos russos, tenha sido mais ou menos “concedido” o privilégio de hastear a bandeira vermelha sobre o Reichstag ao custo de quantas vidas fossem necessárias... contanto que se pudesse pôr as mãos no acuado Führer da Alemanha. Continente maio 2005

O fim de Adolf, Eva, Joseph... – Entre os dias 13 e 14 de fevereiro de 1945, a sexta cidade mais industrializada do Reich (Dresden) já sofrera bombardeios em escala nunca vista, com 1,2 mil aviões britânicos e americanos despejando 3,3 mil toneladas de bombas que mataram 35 mil pessoas, a maioria nas proximidades de alvos não-militares. Em abril, estava sendo a vez de Berlim, com devastação maior ainda, porque se tratava da capital do inimigo, uma cidade reduzida a 2 milhões e 600 mil habitantes. Esse total (que já fora de quase 4 milhões, em 1939) era formado de mais ou menos 600 mil crianças abaixo de 10 anos, velhos, feridos e 2 milhões de mulheres que um planfleto supostamente assinado pelo russo Ilya Ehrenburg ameaçava grosseiramente. Apesar disso, Hitler ainda passava as noites em claro, debruçado sobre mapas do cinturão de defesa da cidade, imaginando uma resistência impossível e até uma louca contra-ofensiva conduzida por tropas de adolescentes que nunca haviam empunhado uma arma. No bunker, entre refeições de carne e verduras estocadas, bebidas caras e café para todos, ele se mantinha animado daquela força estranha que contaminava os auxiliares e as pessoas próximas do cabo de guerra catapultado da liderança do Partido Nacional-Socialista para se tornar Chanceler e, afinal, Führer, em poucos anos. E talvez fosse continuar assim, delirante por maio adentro – até ser capturado pelos soviéticos – se um fato não tivesse vindo quebrarlhe o ânimo e colocá-lo de frente para a derrota inevitável e desonrosa, no final da tarde do dia 29 de abril de 1945.


Reprodução

ESPECIAL

Mulher com criança foge de bombardeios, em Berlim

Paul Scott Rankine, correspondente da agência Reuteurs em São Francisco, havia sido designado para cobrir as negociações preliminares para a fundação das Nações Unidas (a informação é de Cornelius Ryan), quando a sorte o colocou em contato com Jack Winocour, chefe do British Information Services. Era o dia 29 de abril de 1945, e o inglês acabara de ouvir do ministro do Exterior da Inglaterra, Anthony Eden, uma informação extremamente importante: o Reichesführer S. S. Heinrich Himmler havia encaminhado, secretamente, proposta de rendição aos “aliados ocidentais” (russos excluídos). Irradiado por Rankine, o “furo” foi transmitido para o mundo inteiro e chegou às profundezas do bunker. Hitler estava em conferência com os generais Karl Weidling, Hans Kreb, Wilhelm Burgdorfe e o ministro da Propaganda, Goebbels, quando o assistente deste, Dr. Werner Naumann, chegou com a notícia – ouvida de uma rádio de Estocolmo – de que Himmler “iniciara negociações com o Alto Comando Anglo-Americano”. O general Weidling descreveu: “O Führer vacilou, com a

face desfeita. Ele olhou longamente para Goebbels, incapaz de uma reação, como eu o via, pela primeira vez. Afinal, engrolou algumas palavras, que ninguém pôde compreender, tão baixa era a sua voz. Parecia estupefato. Creio que foi só nesse momento que ele teve a nítida impressão da derrota”. A atenta secretária Gertrude completou o quadro: “Ele estava pálido, os olhos esbugalhados, literalmente arrasado, como quem houvesse perdido tudo.” Hitler estava se sentindo acabado, porém ainda não estava inerte. Deu ordens para executar o SS Gruppenführer Hermann Feigelen (oficial de ligação entre ele e Himmler), recém-capturado, em roupas civis, não muito longe do abrigo onde Hitler também decidiu contrair bodas in extremis com Eva Braun. Detalhe: Feigelen era casado com a irmã de Eva, que não moveu um dedo para tentar comutar a sentença da corte marcial sumária que condenou o cunhado. Na manhã seguinte, Hitler ditou seu testamento pessoal e político a Martin Bormann, entregando o governo Continente maio 2005

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ESPECIAL

Imagens: Reprodução

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Martin Bormann foi o primeiro a encontrar o corpo do Führer, que se matou com um tiro. Abaixo, Joseph Goebbels, ministro da propaganda, e sua mulher deram veneno aos seus filhos e também se mataram

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nas mãos do Almirante Doenitz (presidente) e de Joseph Goebbels (chanceler). O casamento com Eva Braun foi uma cerimônia rápida – segundo a secretária de Hitler –, após a qual “o Führer e sua esposa passaram uma hora sentados com o Dr. Goebbels, o Dr. Naumann, os generais Krebs e Burgdorf e o Coronel-Aviador Nicolaus von Below”. “Depois de receber mais uma notícia sinistra (sobre o cadáver de Benito Mussolini estar sendo exibido nas ruas de Milão, junto com o de Clareta Petacci) – conta Gertrude – Hitler se despediu de todos. Na manhã seguinte, quando chegaram notícias de tanques russos a menos de uma milha da cidade, ele decidiu que havia chegado o momento, eu entendi, ao nos dizer: ‘Isso já foi longe demais’. O fim do almoço (espaguete com molho de tomate) trouxe novas despedidas, nas quais Gertrude afirma ter ganho o casaco de pele de Eva Braun, como presente da esposa de Hitler. O casal se encaminhou para os seus aposentos particulares. Quem conta agora é o Coronel Otto Günsche, que ficou postado na ante-sala que dava para o apartamento


ESPECIAL

do casal: “Foi a coisa mais difícil que eu fiz em minha vida. Fiquei esperando para ouvir o tiro, desde que eles entraram. Por volta das três horas da manhã, apareceu Frau Magda Goebbels, desesperada, pedindo para ver o Führer de qualquer jeito. Sem conseguir dissuadi-la, bati naquela porta fechada há horas. Ele abriu, afinal, muito contrariado. Não vi Eva Braun – que devia estar no banheiro, pois ouvi o som de água correndo. O Fürher disse que não iria receber mais ninguém na vida, e pediu que eu me retirasse. Cinco ou seis minutos depois, ouvi um tiro lá dentro.” “O Führer está morto” Foi Martin Bormann o primeiro a entrar, logo em seguida. Depois, teria entrado Linge, o mordomo de Hitler, que estivera sentado numa cadeira. Este contou que Eva Braun estava deitada no sofá, tendo tirado os sapatos (emparelhados cuidadosamente, ao lado do móvel). Estava com um vestido azul, de gola branca e mangas compridas. O ambiente cheirava a cianureto. O rosto de Hitler era uma máscara de sangue. Havia um revólver Walter PPK no chão, segundo os que descrevem a cena do duplo suicídio – com Martim Bormann saindo, apressadamente, para avisar aos que se encontravam lá fora: “O Führer está morto.” Não havia tempo para demoras, segundo narram esses “historiadores” improvisados (ou mentirosos bem ensaiados). Os dois cadáveres teriam sido envolvidos em lençóis e levados para uma depressão no terreno fora do bunker, “perto de uma máquina de misturar cimento”, detalhou Erich Kempa, chofer de Hitler. Segundo ele, gasolina foi logo despejada sobre os corpos, para dar início a uma cremação amadorística. E logo o cheiro de carne queimada teria sido levado para dentro do abrigo, levado pelo vento, como se fosse “o enjoativo aroma de

bacon fritado num bar de segunda” (as palavras são de Kempa, talvez para agradar aos interrogadores russos, que a transcreveram sem comentários). O resto é conhecido. Enquanto Joseph Goebbels e sua mulher seguiam o exemplo de Hitler e Eva Braun (depois de eliminarem os três filhos), os astutos generais e oficiais do III Reich cuidavam de si mesmos. Martim Bormann desapareceu, para sempre, por alguma “porta dos fundos” do Reich – que passava, ao que parece, pelo Vaticano, pela Espanha de Franco, pela Síria e por alguns países da América Latina (não esqueçamos que Adolf Eichmann foi caçado, pelo Mossad, na Argentina e que Joseph Mengele viveu seus últimos anos aqui no Brasil). Otto Günsche caiu nas mãos dos soviéticos e passou 12 anos preso na URSS, mas não era um acusado de crimes de guerra – como os réus de Nuremberg – e pôde, como Weidling, viver ainda o bastante para fornecer informações a Cornelius Ryan e outros. Com base no que disseram é que se formou o quadro, que se acabou de dar, do que teriam sido as últimas horas de Hitler e Goebbels (Günsche e Naumann protestando que teriam “feito de tudo” para dissuadirem Frau Goebbels de seguir à risca o sentido de imitação do marido; ela, entretanto, aceitara o suicídio junto com o ministro da Propaganda, e não revelou, segundo eles, a menor piedade para com os filhos, vítimas de um veneno injetável que ela própria aplicou, com uma só seringa, para “livrá-los de crescerem cercados de ódio”). Trauld Junge se deu relativamente bem: ficou presa apenas por seis meses e morreu, aos 81 anos, num hospital de Münich, em 10 de fevereiro de 2002. Sempre afirmou que nunca ouviu a palavra “judeu” pronunciada no círculo íntimo de Hitler, o que jamais foi acreditado pelo escritório de Simon Wiesenthal, o caçador de nazistas. Ela descrevia Hitler apenas como um homem mais velho, agradável, que nunca esquecia de desejar boa noite, ao final do expediente... em que centenas de trens, atulhados do gado humano condenado racialmente, haviam sido despachados para os campos da morte. Porém Frau Junge nunca viu nada, nunca desconfiou de nada e nunca agiu senão como apenas a secretária de um ex-ditador qualquer, para uns, morto – e bem morto – em 1945, e, para outros, vivo até a primeira metade dos anos 70, quando teria sido visto, pela última vez, nos arredores de... mas isso já é matéria para outra edição. • Continente maio 2005

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Fotos: Jacques Ribemboim

Oswiecim e Brzezinka – 60 anos depois

Em 1939, depois da ocupação alemã na Polônia, Oswiecim tornou-se Auschwitz e Brzezinka ficou conhecida como Birkenau Jacques Ribemboim

Garotinha observa o Paredão de Fuzilamento, State Museum in Oswiecim

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isitei Oswiecim e Brzezinka, há cerca de 10 anos. Duas pacatas cidadezinhas no interior da Polônia com nomes impronunciáveis. Talvez tenha sido por isso que os nazistas deram-lhes denominações germanizadas, quando da ocupação de 1939. Oswiecim tornou-se Auschwitz, e Brzezinka ficou conhecida como Birkenau. Dois nomes sombrios, dois campos de concentração. Juntos, formaram o maior complexo de extermínio sistemático da história do homem. Sob o comando de Rudolf Höss, ali foram mortos cerca de um milhão e meio de pessoas, em sua grande maioria, judeus, mas também ciganos, homossexuais, comunistas, prisioneiros polacos, russos e até criminosos comuns. A cada um era imputada sua culpa: os russos e os polacos eram inimigos de guerra; os comunistas, inimigos ideológicos; os homossexuais, acusados de perversão; os ciganos, considerados “anti-sociais”; e os judeus, acusados de serem judeus. Naquela época, Hitler e seus asseclas tramavam uma Alemanha ariana, de raça pura, superior, sem riscos de contaminação pela escória humana. Para os israelitas, eles propunham a “solução final”, o completo aniquilamento do judaísmo europeu. Com este propósito, engendraram um descomunal sistema de logística, transporte, concentração e morte. Nunca a ciência e a tecnologia estiveram tão empenhadas a serviço do mal. Durante a guerra, Auschwitz-Birkenau tornou-se o horror dentre os horrores, o Continente maio 2005

emblema do medo, das câmaras de gás, dos fornos crematórios e dos limites da degenerescência humana. A partir de 1941, durante a invasão da Rússia, a máquina de matar foi “aperfeiçoada”. Era preciso deter o “conchavo judaico-bolchevique” (o anti-semitismo sempre foi pródigo em atribuir aos judeus a primazia dos extremismos, entre nazifascistas eram taxados de comunistas, e entre os comunistas, apontados como nazifascistas). Assim, ativada por um ódio inexplicável, a cúpula alemã pôs em ação unidades móveis e fixas de extermínio. As móveis eram formadas por contingentes que variavam entre 500 e 900 soldados e por caminhões com tubos de escapamento direcionados para o interior selado do compartimento de carga, onde os judeus morriam por asfixia. Os einsatzgruppen valiam-se, ainda, da execução a tiros, com matanças em valas coletivas, quando os prisioneiros cavavam largos buracos e se deitavam ao fundo, sendo fuzilados pelas costas e uma nova leva deitava-se sobre os corpos dos primeiros, de bruços, para serem alvejados, repetindo-se a operação, até que se formassem cinco ou seis camadas de cadáveres, quando, então, eram enterrados. Enquanto isso, nos centros fixos de extermínio, os chamados campos da morte, havia as câmaras de gás, onde os hebreus eram assassinados por envenenamento, ao inalarem o Zyklon-B. A maioria, porém, sucumbia antes, por inanição, frio, doenças, exaustão por trabalhos forçados, ou a tiros. No ápice da carnificina, os nazistas chegaram a

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ESPECIAL manter nada menos que 1.634 campos de concentração e seus satélites, dentre os quais, seis foram equipados especialmente para a morte, todos em território polonês: Chelmno-Kulmhof, Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Sobibor, Lublin-Majdanek, Belzec. Com as notícias da guerra e de seus novos métodos de matança, o pessimismo tomou conta do Ocidente, sobretudo no pensamento de famosos scholars que, na condição de judeus ou descendentes, precisaram abandonar a Europa Continental. Era simplesmente impossível explicar o Holocausto deflagrado a partir de um país que detinha o front tecnológico, cultural e intelectual do “mundo civilizado”. Logo ali, nas cercanias de Heidelberg, Frankfurt e Viena...! Para aquela intelligentsia, que incluía nomes como Einstein, Freud, Hannah Arendt, Isaiah Berlin, Erich Fromm, Marcuse, Horkheimer, o que poderia se esperar a partir de então? Adorno chegou a afirmar que seria selvagem escrever poesia depois de Auschwitz. E em meio àquele cenário de desesperança, surge um diário escrito por uma adolescente. Anne Frank. Uma judiazinha obrigada a se esconder nos cômodos secretos de um edifício na Amsterdã ocupada. O texto apareceu como uma tábua de salvação: a menina que passara por Auschwitz e morrera de tifo em Bergen-Belsen havia escrito que acreditava na bondade humana, apesar de tudo?! “Apesar de tudo, ainda acredito que as pessoas, no fundo, são realmente boas. Vejo o mundo transformar-se gradualmente em uma selva. Sinto que estamos cada vez mais próximos da destruição. Sofro com o sofrimento de milhões e, no entanto, se levanto os olhos aos céus sei que tudo acabará bem, toda

Entrada do Campo de Concentração de Birkenau, Polônia

esta crueldade desaparecerá, voltarão a paz e a tranqüilidade”. (A.F.) Quem estava com a razão: Anne ou os filósofos desiludidos? Apostem na pequena que sonhava um dia ser escritora. O seu otimismo contagiante talvez decorresse da solidariedade dos holandeses. Ou, talvez, aludisse à decência de um Herr Oskar Schindler, industrial alemão que salvava judeus. Ou, quem sabe, da atitude dos súditos dinamarqueses que decidiram usar a estrela de David, fossem judeus ou não. Ou da coragem do prefeito russo, assassinado por se recusar a entregar seus semitas. Ou em razão de um certo monsieur Souza Dantas, que agilizava vistos para os israelitas aportarem no Brasil (por sua graça, pudemos desfrutar de um Stefan Zweig e de um Otto Maria Carpeaux). Em janeiro de 1945, os russos concluem a libertação dos palcos de genocídio da Polônia. Havia poucos sobreviventes. Desde então, Auschwitz voltou a ser Oswiecim e Birkenau voltou a ser Brzezinka. Suas esteiras da morte foram transformadas em museus, que recebem atualmente 700 mil visitantes por ano. Semidestruídas, as câmaras de gás lá permanecem. Assim como o paredão de fuzilamento, os fornos crematórios e a forca onde Hudolf Höss pagou por seus crimes. Está tudo ali. Para recordar e nunca esquecer. Se Hannale estivesse viva, estaria completando 75 anos e constataria o seu triunfo da vontade. Como fênix, a capacidade do ser humano em se reerguer por entre escombros e fazer poesia é inquebrantável. Apesar de tudo, apesar de tudo. •

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ESPECIAL

Eça de Queiroz e a questão judaica Em 1880, o escritor português já alertava o perigo da oficialização do anti-semitismo Eduardo Cesar Maia

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escritor português Eça de Queiroz, impressionado com as manifestações cada vez mais intensas contra os judeus na Alemanha, escreveu um artigo para o jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1880, noticiando a petição popular assinada por 300 mil cidadãos prussianos – a que se seguiram dois dias de violentos debates no Parlamento – com a finalidade de excluir os judeus de todas as escolas e universidades e que lhes proibisse de ocupar qualquer cargo público. A leitura do artigo impressiona os leitores atuais tanto pela constatação de que o sentimento de hostilidade ao povo hebreu já era bastante forte dentro daquele país muito antes da ascensão do partido Nacional-Socialista de Hitler, como pela previsão feita por Eça de Queiroz de que “é realmente uma perseguição de judeus que vamos assistir, das boas, das antigas, das manuelinas, quando se deitavam à mesma fogueira os livros do rabino e o próprio rabino (...)”. O mais extraordinário para Eça foi a posição do Estado Alemão frente aos pedidos populares: forçado a emitir alguma opinião, o governo declara oficialmente que não Continente maio 2005

tenciona , “por ora”, alterar a legislação relativamente aos israelitas (por ora!). O escritor passa então a acusar a conivência do Estado com o anti-semitismo e até a participação direta de políticos e funcionários públicos na organização de manifestações contra a comunidade judaica. Por trás de toda argumentação do escritor português contra os acontecimentos na Alemanha estava a defesa de princípios liberais de proteção ao indivíduo frente à opressão autoritária do Estado – e não uma apologia ao judaísmo –, até porque Eça não simpatizava tanto assim com os hábitos gregários e com a as atitudes dos judeus que conhecia. O gênio do escritor transparece no texto jornalístico, quando ele, para efeito argumentativo, usa sua habilidade literária para estabelecer uma comparação entre os tempos em que ele estava vivendo e a época da morte de Cristo (o deicídio atribuído aos judeus). Eça inverte os papéis: compara o conservador e burocrático Estado Alemão ao Império Romano e, por outro lado, o povo judeu perseguido ao Cristo crucificado: “E se Bismarck estivesse de toga, no pretório, sobre a cadeira de Caifás, teria assinado a sentença fatal tão serenamente


“Dizia o príncipe e a Igreja, na Idade Média: 'Bem vemos, tu sofres! Mas a culpa é tua. É que o judeu matou Nosso Senhor, e tu ainda não castigaste suficientemente o judeu'. A populaça então atirava-se aos judeus: degolava, assava, esquartejava, fazia-se uma grande orgia de suplícios; depois, saciada, a turba reentrava na treva da sua miséria a esperar a recompensa do Senhor"! Eça de Queiroz

como o dito Caifás, certo de que nesse momento salvava sua pátria da anarquia”. Eça de Queiroz atribui todo o furor anti-semítico não a uma exacerbação do radicalismo religioso católico – isso seria só uma escusa –, mas simplesmente à crescente prosperidade da comunidade judaica, colônia numericamente pequena, mas que pela habilidade e pertinácia lograva desbancar a concorrência da burguesia alemã: “As altas finanças e o pequeno comércio estão-lhe igualmente nas mãos, é o judeu que empresta ao Estado e aos príncipes, e é a ele que o pequeno proprietário hipoteca as terras. Nas profissões liberais absorve tudo: é ele o advogado com mais causas, e o médico com mais clientela; se há na mesma rua dois tendeiros, um alemão e outro judeu – o filho da Germânia ao fim do ano está falido, e o filho de Israel tem carruagem”. Contudo, se a prosperidade dos judeus incomodava o povo alemão, a ostentação que faziam da sua riqueza o enchia de ódio, e é sobre isso que Eça também dá sua alfinetada: “a antiga legenda do israelita magro, esguio, adunco, (...) – pertence ao passado. O judeu hoje é um gordo. Traz a cabeça alta, tem a

pança ostentosa e enche a rua. É necessário vê-los em Londres, em Berlim ou em Viena: nas menores coisas, entrando em um café ou ocupando uma cadeira do teatro, têm um olhar arrogante e ricaço que escandaliza”. O que mais irritava Eça na atitude do povo alemão é que covardemente recorria ao Estado para suprimir as conquistas dos judeus, sem tentar superá-las por mérito próprio. E o Estado, por sua vez, simpatizava com essa atitude, por tirar o peso das suas costas e jogá-lo na de um bode expiatório: é importante lembrar que a Alemanha vivia um período de crise comercial, de problemas na agricultura, decadência industrial e a classe média estava sufocada por excesso de impostos e por um pesado serviço militar. Aquilo que veio a acontecer algumas décadas depois da publicação dessas clarividentes linhas de Eça de Queiroz, todos já sabemos: a ascensão do Nazismo, a oficialização do anti-semitismo e o Holocausto foram a culminação de um movimento que já vinha se desenhando há muito tempo na sociedade e no Estado alemães. • Continente maio 2005

David H. Wells/Corbis

Judeus ortodoxos, em Jerusalém


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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti Bernard Bissou/Corbis

Comidas dos papas "Não tenhais medo..." João Paulo II (Testamento espiritual)

O papa João Paulo II, em Praga,Tchecoslováquia, 1990

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polonês Karol Wojtyla gostava de almoçar sozinho. E de beber um cálice de vodka, toda noite, após o jantar. O hábito lhe veio dos tempos em que trabalhava numa pedreira, explodindo rochas. Surpreendeu o mundo ao ser feito Papa – por ser moço (58 anos), por falar muitas línguas, por praticar esportes, por não ser italiano. E, também, por não gostar de espaguete. Ainda por cima tinha o gosto estranho, ao menos para os romanos, de cortar aquele macarrão com faca, ao invés de enrolar no garfo. Preferiu se manter fiel aos sabores de sua terra natal. Tanto que, de lá, mandou vir três freiras da Ordem das Servas do Sagrado Coração que lhe preparavam pratos simples, reproduzindo receitas de sua infância em Wadowice. A culinária da Igreja foi sempre meio diferente. Nos primeiros tempos, os alimentos dos povos de Deus eram separados por grupos – os proibidos, os permitidos, os destinados aos rituais de sacrifício, os usados só como remédio. Desses alimentos o mais importante era o pão. Naqueles primeiros tempos, uma mistura de farinha de trigo (ou cevada) com legumes secos. Esse pão ia à mesa puro ou molhado no vinagre. E servia, também, para levar comida à boca. Depois vinho. Feito de uva, de arroz ou mesmo de água – como no milagre das bodas realizadas na cidade galiléia de Canaã. Entre as carnes, preferência para o cordeiro, escolhido pelo próprio Deus como símbolo do sacrifício da Páscoa. Depois boi, vitelo e outros “animais que têm a unha fendida, o casco divi-

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dido e que ruminam”. Não sendo permitido, segundo as sagradas escrituras, camelo, coelho, lebre e porco. Aves também – pombo, falcão, abutre, milhafre e toda espécie de corvo, avestruz, andorinha, gaivota, gavião, mocho, coruja, íbis, cisne, pelicano, alcatraz, cegonha, garça, poupa e morcego. Peixes sim, mas apenas os que tinham “barbatana e escamas”. E, para fechar essa relação, insetos – gafanhotos, solam, hargol, hagab e todos aqueles que, “além dos quatro pés, tem pernas para saltar em cima da terra”. A cozinha da Bíblia se fazia, igualmente, com grande quantidade de ervas – hissopo, coentro, cominho, endro, hortelã, mostarda, anis, chicória, tomilho, sálvia, aipo. Legumes também, sobretudo secos, por serem mais fáceis de conservar. E arroz – que, além de acompanhar pratos, era também usado na fabricação de vinagre, cerveja e, como visto, vinho. Mais azeite de oliva. Do leite da cabra, ovelha e vaca, faziam queijos frescos e secos (conservados no sal). E, do mel de abelha, torta e bolos. Na verdade a história dos papas começa muito antes de João Paulo II. São Pedro era Simão. Pescador, encontrou Jesus às margens do lago Genesaré e nunca mais o abandonou. O novo nome recebeu do próprio Jesus. Vem do grego petras (pedra) – “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ele. Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo que desligares na terra será desligado no céu” (Mateus 16, 14-20). Nascia, ali, o primeiro “Pontífice” – ponte entre Deus e os


SABORES PERNAMBUCANOS homens. Morto Jesus, sai Pedro pelo mundo transmitindo Sua palavra. Chega a Roma, então a mais importante cidade do Ocidente. Lá, encontra uma comunidade cristã e se torna o primeiro Bispo da cidade. Por esse tempo, o Bispo de Roma era também chamado de Papa. Depois Pedro acabou crucificado por Nero, em 29 de Junho do ano 67. Depois vieram outros Papas. E as marcas do exagero. Clemente V (1305 - 1314) transferiu a sede da Igreja de Roma para Avignon – cidade medieval, no sul da França. Dissolveu a ordem dos Templários (ordem militar e religiosa, muito rica). Prendeu, confiscou bens e condenou centenas a morrer na fogueira. Morreu comendo esmeraldas em pó, prescritas pelo médico, para curar seus tormentos estomacais. Para muitos, castigo de Deus. Clemente VI (1342 1352), feito papa com 51 anos, esbanjou dinheiro em palácios, roupas, jóias e sobretudo na mesa – com louças, talheres, muita comida e muita bebida. Para o banquete de sua coroação foram convocados todos os cozinheiros dos cardeais, para colaborar com os 14 que já trabalhavam no palácio papal. Na mesa toalhas de linho e louças de porcelanas. E, só para ele, facas de ouro – com seus convidados condenados a comer com as mãos, (inclusive o rei da França). A precaução era um ato de prudência, única maneira de evitar atentados e duelos. Do cardápio constaram 1.023 carneiros, 914 cabritos, 118 bois, 101 vitelos e 60 porcos. Ainda 7.048 frangos, 3.043 galinhas, 1.146 gansos, 1500 capões, 300 lúcios e 15 enormes esturjões. Mais 15.000 tortas de frutas, em que usaram 3.250 ovos e 36.100 maçãs. Os jantares papais, por essa época, tinham gostos tipicamente medievais – javali ou boi assados inteiros, caldos gordurosos, excesso de condimentos e sobremesas à base de mel. Logo o gosto pela ordem levou à definição de algumas regras rigorosas na mesa. Era o fim dos tempos em que pratos iam à mesa, todos, ao mesmo tempo. Primeiro passaram a ser servidos caldos ou cozidos. Depois assados, temperados sempre com muito alho – moda na Europa daquela época, por ser antídoto para a peste. Só no fim as sobremesas. Certa vez, quando se encontrava debruçado sobre um pote de cozido, perguntaram ao dito Clemente VI, se gula continuava a ser pecado. Respondendo o Papa, lambendo os beiços, que “Deus também está nos cozidos”. A Idade Média foi, para a Igreja, tempo de jejum e abstinência. E poucos católicos cumpriram com maior rigor as normas da penitência que Luís IX, rei da França (1214 1270). Acabou canonizado, por Bonifácio VIII, 27 anos depois de sua morte. São Luís. Mas essa abstinência não era, à época, tão severa assim. A realeza sempre soube comer bem. Basta ver os cardápios de banquetes oferecidos a São Tomás de Aquino e ao Papa Inocêncio IV. Neles não houve

carne, é certo. Mas, em compensação, sobraram na mesa cerejas frescas, favas cozidas em leite de vaca, sobremesa de enguias, lampreia (peixe da Europa) com molho verde, tortas, pastéis doces e salgados. Para finalizar, um prato sabidamente de origem árabe, o arroz doce – arroz com leite, polvilhado com amêndoas e canela em pó. Não obstante a reserva com que esses assuntos foram sempre tratados, sabe-se que os pratos preferidos de Inocêncio IV eram assados, caldos gordurosos, mingaus de cereais, cozidos de legumes e carnes, arenques grelhados, aves, porco salgado e embutidos e, como se não fosse pouco, baleias assadas. Segundo a lenda, foi após uma última garfada, e alguns goles de vinho, que São Tomás de Aquino deu um soco na mesa e gritou Consummatum est. Seu biógrafo, o inglês (Gilbert Keith) Chesterton, confessa não saber se o Santo fazia alguma reflexão filosófica ou apenas se referia à lampreia que acabara de saborear com santo deleite. No Renascimento, continuou o Vaticano a ser bem servido à mesa. Por mais de 30 cozinhou, para seis pontífices, o maior chef de seu tempo e um dos melhores que o mundo já teve – Bartolomeo Scappi. Acabou, por isso, conhecido como “o cozinheiro dos papas”. O primeiro deles foi Paulo III (1534 - 1549), famoso por comer e beber com refinamento. Sua despensa tinha sempre produtos das melhores procedências: “cebolas e verduras vinham de Gradoli; peixes, do Mar Tirreno e de lagos da Itália; veados, javalis e lebres, de Castro; laranjas, de Capodimonte; cerejas, de Pianiano; azeite e mel, de Canino, terra natal do papa” observou J.A. Dias Lopes (A Canja do Imperador). Tinha fama de ter a melhor mesa de Roma. Adorava grandes assados (temperados com noz moscada, cravo da índia, pimenta-do-reino, canela e gengibre), capões recheados, as caças de pena, aves domésticas, massas recheadas (tortelletti, ravióli) e strozzapreti (“estrangula padre” – em referencia à gula dos sacerdotes). Tudo acompanhado de molhos leves à base de plantas ou frutas aromáticas (limão, laranja). Como sobremesa a preferência era pêra com vinho. A seu serviço tinha um sommelier famoso – Sante Lancerio. No verão, servia ao Papa vinho tinto doce da Ligúria, acompanhado de frutas frescas banhadas em mel. Nas noites frias de inverno, sopa quente de pão, junto com um bom vinho branco. Paulo III, bem a propósito, ficou conhecido como o “papa do vinho”. Morto, descreveu Lancerio os hábitos que havia, com ele, aprendido – “o vinho branco Greco della Torre, da região da Campânia, escurecia rapidamente e não deveria ser bebido pelos prelados, mas se prestava aos forneiros; o tinto de Terracina deveria ser servido aos tabeliães e copistas; um cavaleiro nunca deveria beber vinho da Calábria, para não se comportar mal com as senhoras”. O últiContinente maio 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS mo papa a quem serviu Scappi foi Pio V (1566 - 1572). Diferente dos seus antecessores, levava uma vida austera. Fazia demorados jejuns e abstinências. Apreciava comida simples, sem complicação – caldo ralo de carne e sopa de urtiga. Depois virou santo – São Pio V. A ele dedicou Scappi o mais importante livro de culinária do renascimento – Opera dell'arte del cucinare (1570) – 6 tomos, divididos em 804 capítulos, com mais de mil receitas. Dos Papas recentes, o mais popular foi João XXIII – eleito em 28 de Outubro de 1958. Seu pontificado durou menos que cinco anos. Mas ficou, na memória do povo, por sua figura generosa e seus hábitos simples. Era o “Papa da bondade”. Certa vez desapareceu do palácio do Vaticano. Foi encontrado em uma cantina próxima, repartindo pão e vinho com operários. Na mesa cultivava hábitos que aprendera em sua casa de camponês. Tudo muito italiano. Café da manhã com café, leite, brioche e queijo. No almoço cordeiro, peixe (peixe-espada, sardinha) e vitelo, sempre acompanhados de batatas e massas; usando sempre, como tempero, ervas frescas – manjericão, salsinha, sálvia, erva-doce, alecrim, tomilho, alcaparras, alho, alho-poró, pimentão. Também tomate, em quase todas as receitas. E mais pignolis, azeitonas, arroz arbóreo. Tudo regado com azeite de oliva. No outono, ainda apreciava cogumelos porcini. No jantar risoto e sobretudo sopas, das quais a preferida era a de legumes crus. João Paulo II foi “peregrino da esperança” – assim o definiu Pe. Theodoro Peters. Com ele não foi diferente. Conservou os hábitos simples. No café da manhã pão, manteiga, ovo, geléia e carnes defumadas. No almoço ganso, peixe (trutas, enguias), pato, cervos, javali, muita fruta e sobremesa (bolo polonês, slivovyj sup (sopa de ameixas), sup iz cerniki (sopa de amoras) e jablocnyj sup(sopa de maçãs) acompanhadas de creme de leite azedo. No jantar sopa czarnina (negra, à base de pato ou ganso, em que o sangue da ave é usado como base) e sopa de cogumelo. Também kasza (polenta feita com milho, centeio e trigo), lazanke (massa em forma de quadrados preparada com presunto, cogumelos e repolho), pieroji (ravióli com recheio de batata) e zrazy (bolinho misto de carne). Após a missa de posse, dirigiu-se à janela de seu apartamento para abençoar a multidão que lotava a Praça de São Pedro. Então olhou para seu moderno relógio de quartzo, que marcava 13h30. E disse, sem cerimônia – “Necessitamos encerrar, é preciso almoçar, vocês e o papa”. Aos poucos, rendeu-se à culinária do país que o acolheu. Limitando as receitas da pátria amada a ocasiões muito especiais – como aniversário e Natal. Trocou o cálice de vodka pelo de vinho tinto, da Toscana. Passou a comer massa todos os dias. Compartilhando essa massa, em mesa circular, com judeus, muContinente maio 2005

çulmanos, budistas, hinduístas, protestantes. E católicos também, claro. O último banquete público do qual participou aconteceu em 2000, na comemoração por seus 80 anos. Almoçou com 78 cardeais, três patriarcas e 12 sacerdotes que completavam essa idade naquele ano. O cardápio foi gnocchetti, risotto allá milanese, medalhões de lagosta e filé com espinafre. Tudo regado ao vinho tinto Chiati Clássico. De sobremesa um grande bolo com receita polonesa. Está agora, sem dúvida, à mesa com Deus. Mas esse cardápio, literalmente divino, não é fornecido pelo dono da casa. Que descanse em paz. O cardeal alemão Joseph Ratzinger é o novo papa. Bento XVI. Na sua mesa, com certeza, pratos típicos de sua terra – wurste (salsicha), sauerkraut (chucrute), schinitzel (carne moída), eisbein (joelho de porco com repolho), spatzle (sopa de nhoque), ent mit apfeln ( pato com purê de maçã). Sopas de batata, de grão de bico, de aspargo, de flocos de aveia. Como sobremesa bavaroises, strudels, pudins, cremes, bolos. Longa vida ao Papa! Sérgio Castro/AE

RECEITA: ZRAZY INGREDIENTES: 1 kg de carne de porco (moída e sem gordura), 1 kg de carne de boi (moída e sem gordura), 200 gr de farinha de milho, 3 ovos inteiros, alho, pimenta do reino, sal, cebolinha, salsinha. PREPARO: Misture, em recipiente, todos os ingredientes. Amasse bem. Tempere com sal, pimenta, alho, salsa e cebolinha. Faça bolinhos e frite em óleo quente, na hora de servir. Escorra em papel toalha.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

À espera da morte

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ia oito de maio, aniversário do fim da guerra, eu me lembro não do último, mas do primeiro dia na Itália, em Nápoles, quando metade do país ainda era de Hitler. O transporte militar me havia deixado na cidade que a guerra ferira cruelmente. Os sacos de campanha me pesavam sobre os ombros. O frio era cortante – certamente descia daquelas montanhas cinzentas que se avistavam à distância ou daquele céu de chumbo caindo sobre tudo e todos, asfixiante. Era a guerra. Ambulâncias, defronte do mar, descarregavam os feridos.Quando veio a noite, veio com-

pleta, definitiva, treva. Numa praça de canteiros descuidados, a estátua eqüestre perdera uma parte do pedestal e se havia transformado numa disforme ferida de cimento. Era a guerra – e ali me encontrava na cidade grande talada pelas bombas, sozinho, sem amigos, sem ninguém e sem direção. Sozinho na cidade tumultuada, invadida – uma cidade de dias cinzentos e empoeirados, noites que cheiravam a gasolina e a cerveja. Tudo era adulto: a cidade, a noite, a guerra: os próprios meninos que nos perseguiam, sujos e insistentes. Tudo estava maduro, à espera da morte. • Continente maio 2005

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Bettmann /Corbis

CINEMA Filme e livro trazem de volta a figura polêmica do sexólogo Alfred Kinsey, autor dos famosos relatórios que desnudaram a hipocrisia sexual nos EUA Eduardo Graça, de Nova York

O fantasma de

Kinsey U

Moças americanas se espantam com a leitura do Relatório Kinsey sobre as mulheres, em agosto de 1953

m fantasma assombra o inverno dos Estados Unidos. Um fantasma incômodo, abusado e determinado. Tal fantasma atende pelo nome de Alfred C. Kinsey (1894-1956), o homem que virou a sociedade norte-americana de pernas para o ar nas décadas de 40 e 50 e que semeou a revolução comportamental que ganharia corpo nas décadas seguintes. Kinsey ressuscitou no filme homônimo que no Brasil teve a infame tradução Vamos Falar de Sexo e no sucesso de crítica e público The Inner Circle, de TC Boyle, romance que conta a história de Prok e Mac, como o casal Kinsey era tratado por amigos e alunos, a partir da percepção de um fictício discípulo do cientista. Taxonomista especializado no estudo das vespas, Kinsey decidiu, no fim da década de 30, aplicar seus métodos de pesquisas em outro tipo de animal – os humanos. Ele foi pioneiro em demonstrar empiricamente que sexo fora do casamento era prática corrente no país, que mulheres também tinham orgasmo e que a masturbação e a homossexualidade não provocam insanidade. Suas pesquisas, realizadas com patrocínio dos Rockefeller, geraram em 1948 o calhamaço Sexual Behaviour in Human Male, best-seller instantâneo que, em oito semanas, vendeu mais de 200 mil cópias. Um recorde para a época, comparado pela Time a E O Vento Levou. Se o livro caiu no gosto do público – Cole Porter imortalizou o sexólogo em sua “Too Darn Hot” e pesquisas do Insituto Continente maio 2005

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Divulgação / Kinsey Institute

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CINEMA

O doutor Kinsey: sexualmente liberal, politicamente conservador

Gallup na época garantiam que ¾ dos americanos aprovaram as idéias de Kinsey – a cruzada moral contra seu trabalho foi gigantesca. O The New York Times, por exemplo, recusou a publicação de anúncios sobre o livro. Mas o leitor há de pensar, agora os tempos são outros, o sonho americano ruiu, o feminismo chegou para ficar e poucos se escandalizariam com as descobertas de Kinsey, certo? Errado. Ironicamente, as únicas “aberrações sexuais” encontradas por Kinsey foram a abstinência, o celibato e a demora em se encontrar um parceiro sexual. É aqui que o espectro do Doutor Sexo assombra de modo O espectro do Doutor mais efetivo a república de Tio Sam. No filme, o personagem-tíSexo assombra a tulo, vivido por Liam Neeson, se defronta com professores que república de Tio Sam, defendem a abstinência sexual como única saída diante da ameaça quando o Governo Bush da sífilis. Pois o único programa de educação sexual promovido defende a valorização pelo Governo Bush é o da valorização do celibato como forma de do celibato como forma precaução de gravidez indesejada e da contaminação pelo vírus de precaução de HIV. O fundo pró-abstinência criado pelos republicanos já gravidez indesejada e utilizou cerca de US$ 900 milhões em propaganda voltada da contaminação pelo para adolescentes. No mesmo The New York Times que nos anos 40 recusou os vírus HIV anúncios do livro de Kinsey, o colunista Frank Rich, de seu espaço cativo na primeira página do caderno dominical de Cultura, transformou-se no principal defensor do filme de Bill Condon. Rich afirma não ter dúvidas de que existe hoje em dia uma guerra cultural contra o sexo nos Estados Unidos: “Você percebe isso claramente, quando adolescentes simplesmente não têm acesso a informações, do mesmo modo que os jovens da era pré-Kinsey. Ou quando o governo suprime estas informações, privilegiando a ideologia e laços partidários a fatos comprovados pela Ciência’’. Responsável pelo elogiado Deuses e Monstros, Condon começou a trabalhar no projeto Kinsey em 1999, durante o Governo Clinton. Visitou, junto com o ator Liam Neeson, o Kinsey Institute For Research in Sex, Continente maio 2005


Divulgação / Fox Filmes

CINEMA

O ator Liam Neeson interpreta o protoganista no filme Kinsey

Gender and Reproduction, em Blomington, Indiana, hoje dedicado a estudar o uso de preservativos, e decidiu realizar uma “biografia na tela”. “ Eu precisava contar esta história de como uma pessoa improvável realizou, a partir de um local improvável, um trabalho com resultados igualmente improváveis”, contou o diretor em recente entrevista. Condon não se rendeu a messianismos políticos nem fez concessões a pregações libertárias. Ainda assim, enfrentou a oposição furiosa de setores da sociedade americana. A Morality In Media e a Concerned Women For America buscaram impedir a projeção do filme nos Estados Unidos. Advogaram que o sexólogo foi um O Kinsey do livro é pervertido e que sua “herança diabólica resume-se em Aids, direito ao uma figura dúbia – generoso e aborto e pornografia”. Exatamente três semanas depois das eleições presidenciais de 4 de afetuoso, obsessivo novembro, o Canal 13 de Nova York, parte da National Public e egóico. Broadcasting (PBS), decidiu censurar uma propaganda do filme de Sexualmente Condon. O comercial, justificou a rede de televisão, era excessivamente liberado, mas provocativo. Mas a distribuidora Fox Searchlight abriu o jogo e mos- emocionalmente trou para a imprensa uma troca de e-mails com diretores da PBS, perturbado, afirmando que o real problema era o conteúdo de Kinsey e a “pressão manipulador e de grupos organizados contra o filme”. A cada vez mais poderosa Coalizão de Valores Tradicionais não se vexou e pediu um boicote de inconseqüente um ano a todos os filmes lançados pela Fox. Católico criado em uma pequena cidade de maioria protestante, próxima a Belfast, na Irlanda do Norte, Liam Neeson sabe bem o que é crescer dentro de uma realidade em que o sexo é um tabu. Nas entrevistas de divulgação do filme o ator tem procurado destacar que, para além do cientista objetivo, Kinsey foi um importante reformador social. Frank Rich vai além: “O filme de Condon é uma inteligente prestação de contas a um quase-esquecido, e no entanto importantíssimo, capítulo da história social dos Estados Unidos”.

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CINEMA Kinsey, o filme, tem muitos outros atrativos. A interpertação de Liam Neeson foi incensada pela crítica. O britânico Guardian chegou a afirmar que este “é o melhor trabalho de Neeson em filmes até hoje”, incluindo seu tocante desempenho em A Lista de Schindler. Laura Linney dá vida a uma Mac companheira e crítica, admiradora e refém de um marido mais apaixonante do que apaixonado. E, em um elenco que ainda conta com John Lithgow, Timothy Hutton e Chris O’Donnel, a grande surpresa fica por conta de Peter Sarsgaard, excepcional no papel do auxiliar de Neeson que divide a cama com o casal Kinsey – primeiro com Prok, depois com Mac. Em The Inner Circle, que chegou às livrarias americanas no último semestre, a história de Kinsey nos é contada justamente a partir da perspectiva do estudante John Milk, parceiro de Prok na cama e na vida acadêmica. Assim como no filme, o Kinsey do livro é uma figura dúbia – generoso e afetuoso, obsessivo e egóico. Sexualmente liberado, mas emocionalmente perturbado, manipulador e inconseqüente. Não por acaso ele é comparado por TC Boyle a um canibal. The Inner Circle recebe seu título a partir do fato de que Kinsey estimulava trocas sexuais entre membros de seu círculo íntimo, incluindo sua mulher e seus ajudantes. Milk vai para a cama com Kinsey e o retrato que revela do sexólogo está marcado por este detalhe crucial. Parte de uma série de eventos que modificariam para sempre a história sócio-cultural do mundo ocidental, Milk se vê como um ator menor de um projeto condenado ao naufrágio, posto que não contém, ou mais propriamente faz questão de apagar, o menor vestígio de amor. No experimento científico de Kinsey há lugar para o desejo, mas não há mais espaço para o amor romântico. Cabe a Iris, mulher de Milk, lembrá-lo de que toda aquela busca desenfreada pela sexualidade do bicho-homem ocorre exatamente quando da eclosão da Segunda Guerra Mundial. “Não há mais certeza alguma no mundo e você passa seu tempo checando orgasmos aqui e acolá”. Cinco anos depois da publicação de seu best-seller, já vivendo a realidade da Guerra Fria, Kinsey lançou seu Sexual Behavior in the Human Female. A recepção não poderia ser mais fria em tempos de macarthismo e da crença de que o “perigo comunista” estava infiltrado em todos os cantos. Exatamente como agora, os ultraconservadores tomaram a cena de assalto e Kinsey foi crucificado. Sua acusação foi a de profanar a santidade do lar norte-americano. Ninguém levou em conta que Alfred Kinsey era um conservador político, que tinha tanto Continente maio 2005

No experimento científico de Kinsey há lugar para o desejo, mas não há mais espaço para o amor romântico


Divulgação / Fox Filmes

CINEMA Divulação

O escritor T.C. Boyle, autor de The Inner Circle

horror ao comunismo quanto ao New Deal democrata. Em 1956, aos 63 anos, sem o apoio da Rockefeller Foundation e desacreditado pela opinião pública, Kinsey capitulou. De seu objetivo inicial de entrevistar 100 mil cidadãos, chegara a algo próximo de 20 mil. Nem filme nem livro se atrevem a prever o que Prok diria de um tempo em que 40 dos 50 Estados deste país estão lidando com ações populares pedindo o fim do ensino, nas escolas públicas, da Teoria da Evolução de Darwin. Ou qual seria sua reação à postura do segundo governo Bush, veementemente contrário a quaisquer pesquisas de célulastronco a partir de embriões defeituosos, a avanços nos direitos civis dos homossexuais e nos direitos de reprodução das mulheres (incluídos aqui o aborto e o uso de contraceptivos). Mas ambos revelam, de modo primoroso, que o fantasma de Alfred Kinsey permanece assombrando o dia-a-dia da maior economia do mundo na mesma proporção em que sua voz e ousadia parecem nos fazer cada vez mais falta. •

The Inner Circle, em inglês, pode ser comprado no site da Livraria Cultura, por R$ 77,07 (www.livrariacultura.com.br). Continente maio 2005

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Peixes, cebolas e políticos Os contos da tradição oral encerram os ensinamentos acumulados ao longo da trajetória do homem sobre a Terra

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história é bem popular. Até Virgínia Woolf a relata no seu romance Passeio ao Farol. Alguns autores costumam chamá-la simplesmente de A Solha, o que pareceria um erro para nós brasileiros, que masculinizamos esta espécie de peixe, abundante na costa atlântica. Habitueime com a forma feminina, de tanto lê-la nos livros clássicos, parecendo-me artificial dizer o solha, do mesmo modo que parece pedante quando escrevo o charque, ao invés de a charque, referindo-me à carne de jabá. Mas o artigo não pretende discorrer sobre gramática, apenas contar histórias. Um pescador muito pobre atirou sua rede nas águas do mar. Ele, a mulher e os filhos passavam fome há três dias, porque nada pescara. Desanimado, tentou a sorte Continente maio 2005

uma última vez, encontrando no fundo da rede uma solha. O pobre peixe debatia-se em vão. Sabendo o destino que o esperava, suplicou ao homem que o atirasse de volta ao mar. Em troca, daria o que ele pedisse. Habituado à pobreza, o homem pediu uma fazenda modesta, um curral de vacas, chiqueiros com porcos e galinhas, roupas domingueiras. Ao voltar para casa, mal acreditou na fortuna. Tudo estava ali, muito acima do que imaginara. Feliz, o pescador contou sua história à mulher, que ao invés de mostrar-se satisfeita, ficou dias amuada. Chamou-o de idiota, homem sem ambições, incapaz de enxergar mais longe. Pouco tempo depois, ordenou que o marido voltasse ao mar, invocasse a solha, e exigisse um baronato para ela. A história é longa e fácil de prever. A ambição da


ENTREMEZ

mulher não tinha medida, a ansiedade por novos poderes e haveres subia num permanente crescendo. Depois do baronato, ela desejou um condado, um ducado, um reinado, um império, um papado, e, por último, ser Deus. A cada retorno, o pescador encontrava o mar mais agitado. Na última viagem, ondas escuras e medonhas ameaçavam tragá-lo. Temeroso, comunicou à solha que a mulher desejava ser Deus. O peixe olhou-o sem a menor compaixão. Voltasse para casa, desta vez a mulher ficaria satisfeita. Já de longe, ele avistou a antiga choça imunda, os filhos maltrapilhos, a esposa descabelada. Tudo voltara a ser como antes. Os leitores devem estar pensando que, à falta de outro assunto, eu resolvi encher as duas páginas da coluna com histórias da Carochinha. Se fosse apenas isto, já seria bastante. Os contos da tradição oral encerram os ensinamentos acumulados ao longo da trajetória do homem sobre a Terra. Talvez precisem ser novamente recontados, lidos, tomados como exemplo para uma prática de vida mais justa e coerente. Não parece a vocês que a mulher do pescador é a representação perfeita dos nossos políticos, esses que só pensam em eleger-se e subir nos cargos? Mal se assumem deputados estaduais, já estão brigando para chegar a federais. Depois a governadores, senadores, ministros ou presidentes da república. Um frenético jogo de cadeiras, girando, sentando, girando, sentando, girando, sentando... Os discursos rapidamente esquecidos, a ética relegada, a honestidade proscrita da memória. Nós, eleitores, damos os votos que eles pedem, como a solha atendia aos pedidos sem limite da mulher ambiciosa. Alimentamos o egoísmo dessa gente, acreditando que um dia, como o peixe, daremos um basta final. Temo estar sendo cruel, na medida em que generalizo. O conto de tradição oral relata exemplos particulares, estendendo a sua função educativa à coletividade. Cada um bote na cabeça a carapuça que melhor lhe servir. Professo que por uma ovelha não devemos condenar o redil. Mas, hoje em dia, as ovelhas são exceções e o rebanho a regra. Quando Iahweh resolveu destruir a cidade de Sodoma, segundo o relato bíblico, Abraão

protestou: “Destruirás o justo com o pecador? Talvez haja cinqüenta justos na cidade. Destruirás e não perdoarás a cidade pelos cinqüenta justos que estão em seu seio?” Ao que Iahweh respondeu: “Se eu encontrar em Sodoma cinqüenta justos na cidade, perdoarei toda a cidade por causa deles.” Como não foram encontrados, a cidade ardeu em chamas. No Brasil teríamos mais sorte? Talvez devêssemos aplicar a justiça e a benevolência do conto da cebola. – Outra história?! – reclamarão vocês?! Sim, outra história da tradição, que bem faria se fosse lida na Câmara dos Deputados, em Brasília. Um pecador ardia no fogo do inferno e suplicava clemência ao Deus Todo Poderoso. Seus clamores foram escutados lá em cima, no céu, e um anjo enviado para ajudá-lo. – Em sua vida terrena, você praticou pelo menos um ato de caridade que possa aboná-lo? – perguntou o Anjo compadecido. A alma danada procurou lá no fundo de sua vida egoísta e mesquinha um gesto, por mais insignificante que fosse, para salvá-lo das chamas. E lembrou que há muitos anos, quando vivia na opulência, atirara uma cebola podre para um mendigo. O Anjo, feliz em poder ajudar o desgraçado, falou que seria aquela mesma cebola que o salvaria. Estendeu até o céu uma folha de cebola e pediu que a alma se pendurasse nela e subisse sem medo. Apavorado, aquele que um dia fora um homem, agarrou-se com sofreguidão ao fiapo verde, e começou a subir. Bem adiante, olhou para baixo e reparou que outras almas condenadas também se penduravam na cebola, tentado escapar de um destino igual ao seu. Temendo que a folha se partisse com o excesso de peso, o danado chutava os que vinham abaixo dele, com a intenção de derrubá-los. Tantos movimentos ele fez que a cebola partiu-se, precipitando-o novamente nas profundezas do inferno. Rudyard Kipling afirmava que ao escritor é dado inventar a fábula, mas não a sua moral. Não sou apreciador de fábulas moralistas. Mas confesso que gostaria de ver uma folha de cebola estendida de Brasília até o céu. E de dar gargalhadas vendo as quedas monumentais. • Continente maio 2005

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MÚSICA

Ismael Silva: pai do samba carioca

Arquivo/Agência O Globo

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MÚSICA

São Ismael Samba celebra o centenário de Ismael Silva, formatador do gênero e fundador da primeira escola Julio Moura

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em Bahia, nem Praça Onze. O samba, tal qual o século 20 consagrou, nasceu mesmo no Estácio, bairro da zona norte do Rio. De uma barrica veio a cuíca, de outra barrica, o surdo de marcação, como ensina aquele samba-enredo do Império. Quem se chamava samba, até o surgimento dos bambas do Estácio na década de 30, era na verdade seu antepassado mais manhoso, o maxixe, concebido por Donga, João da Bahiana e a turma da pequena África carioca na casa da Tia Ciata, levado às últimas conseqüências por Sinhô e o Mario Reis dos primeiros anos. Foi no Estácio – de Bide, Marçal, Baiaco, Brancura, Nilton Bastos e de Ismael Silva – que surgiu a primeira escola de samba, a Deixa Falar. Ali, o samba ganhou seus contornos definitivos, mais cadenciado, cheio das síncopes que consagrariam Geraldo Pereira na década seguinte. Personagem central desta trama, Ismael Silva, nascido em 14 de setembro de 1905, tem seu centenário celebrado às escuras, como as ruas do Estácio dos malandros ancestrais. Autor de clássicos como “Se você jurar”, “Nem é bom falar” (as duas com Nilton Bastos), “Adeus”, “A razão dá-se a quem tem” (ambas com Noel Rosa), “Antonico”, Ismael costumava definir com simplicidade orgulhosa a revolução estética protagonizada pelos bambas de sua turma, tão afeita às síncopes e contratempos quanto a furtos e navalhadas: “mudamos a marcação e foi um tal de braço e perna se mexendo que foi uma loucura”. Foi o próprio Ismael quem contou para o poeta Hermínio Bello de Carvalho, sem deixar de abrir mão da modéstia: “Fundei a primeira escola de samba, a Deixa Falar. Havia naquela época o que se chamava de agrupamento. Saía aquela meia dúzia de pessoas, fantasiada cada uma como bem entendia. Eu fazia música para o agrupamento do bairro. Havia uma rivalidade entre os agrupamentos – Piedade, Estácio, Mangueira e outros. Cada um queria, naturalmente, ser o melhor. Saímos com esse nome, sabe como é, vamos pra frente, ou seja, Deixa Falar”. É comum a mitologia se interpor aos fatos na vida de Ismael, sobretudo quando era o próprio a dar sua versão da história. Sabe-se que nasceu muito pobre, em Jurujuba, região de Niterói. Com a morte do pai, a família mudouse para o bairro do Estácio. Ismael contava que, com pouco mais de sete anos, Continente maio 2005

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Reprodução

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Orson Welles encantou-se com Ismael quando esteve no Rio

resolveu, por vontade própria, ir até a escola mais próxima decidido a alfabetizar-se. Virou poeta. Adolescente, notabilizou-se como versador e autor de melodias que se tatuavam nas rodas de malandro. Driblando a miséria, as injustiças sociais, o preconceito racial e a sífilis, numa manhã de 1928 foi informado pelo compositor Alcebíades Barcelos, o lendário Bide, que o Rei da Voz, Francisco Alves, estava disposto a comprar seu samba “Me faz carinhos”. Conhecido por apropriar-se das criações de sambistas obscuros com a mesma intensidade com que exprimia seus dós-de-peito, Francisco Alves viu no negro jovem e magricelo uma mina de ouro. Apareceu no Estácio, a bordo de seu carro conversível, e fechou negócio com o moleque bamba. Por vinte mil réis, Alves tornara-se autor de “Me faz carinhos”, o primeiro sucesso de Ismael. A partir daquele momento, passaria a trabalhar exclusivamente para Francisco Alves que, em arroubos de bondade, permitia que o compositor também assinasse algumas de suas próprias criações. Outras vezes, os selos dos discos traziam ainda os nomes de parceiros reais, como Nilton Bastos e Noel Rosa. Quando o próprio Alves não gravava, era ele quem decidia que intérprete mais se adequava às músicas de Ismael e outros bambas do Estácio. Na década de 30, seus sambas conheceriam a glória, emanados dos gramofones e dos programas de rádio na voz da dupla Mario Reis e Francisco Alves (“O que será de mim”, “A razão dá-se a quem tem”, “Antes não te conhecesse”), Carmem Miranda (“Assim, sim”), Jonjoca e Castro Barbosa (“Adeus”), Silvio Caldas (“Agradeças a mim”), Aurora Miranda (“Boa viagem”). Ao lado de Continente maio 2005

Noel Rosa: parceiro musical

Noel, gravou ele próprio algumas colaborações com o poeta da Vila: “Seu Jacinto”, “Quem não dança”, “Vejo amanhecer”. A filosofia de Ismael, naturalmente, vinha impressa em seus sambas: “Se eu precisar algum dia / de ir pro batente / não sei o que será / pois vivo na malandragem / e vida melhor não há”, insinuava em “O que será de mim”, feita com Nilton Bastos, morto precocemente por tuberculose, em 1931. Há quem diga que “Adeus”, parceria com Noel, chorava a morte de Bastos: “Adeus / palavra que faz chorar / adeus / não há quem possa suportar / adeus é tão triste / e não se resiste / ninguém jamais / com adeus pode viver em paz”. Outra parceria com Noel – recriada por Arnaldo Antunes em ritmo quase punk, no álbum Saiba, de 2004 – é a genial “A razão dá-se a quem tem”: “Se meu amor me deixar / eu não posso me queixar / vou sofrendo sem dizer nada a ninguém / a razão dá-se a quem tem”. O gênio de Rosa aproveitou os versos escritos por Ismael para a primeira parte do samba e transformou-os em contracanto na segunda: “Sei que não posso suportar (se meu amor me deixar) / e de saudades eu chorar (eu não posso me queixar) / abandonado sem vintém (vou sofrendo sem dizer nada a ninguém) / quem muito riu, chora também (a razão dá-se a quem tem). Dores de amores eram parte integrante do inventário de desconsolo dos sambistas do Estácio. Como atesta Ismael em “Uma jura que fiz”, lançada por Mario Reis: “Não tenho amor / nem posso amar / pra não quebrar uma jura que fiz / e pra não ter em quem pensar / eu vivo só e sou muito feliz”. Coerente com sua própria verve, Ismael passou a maior parte de


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MÚSICA

Preso no fim dos anos 30, quando voltou para o lado de cá, Ismael não encontrou mais eco para os seus sambas

sua vida solitário, queixando-se em versos por algum amor ausente. O fim dos anos 30 marcou a derrocada de boa parte dos compositores que criaram fama (e sambas) ao longo da década. Nilton Bastos já batera os sapatos brancos em 31. Noel morreu em 37. Cartola sumiu do mapa, Assis Valente entrou em depressão até suicidar-se poucos anos depois. Dentre os cantores, Francisco Alves e Orlando Silva se aproximavam dos boleros. Mario Reis trocava o estrelato por um cargo de funcionário público e Carmem Miranda fora colocar bananas na cabeça, em Hollywood. No auge da popularidade, em 1935, Ismael Silva foi parar atrás das grades. Entregou-se espontaneamente à polícia, depois de disparar contra os glúteos de um malandro que inadvertidamente mexera com sua irmã. Quando saiu do presídio, o panorama era outro. Ninguém mais queria saber de seus sambas, que em pouco tempo seriam considerados ultrapassados, a trincheiras de distância da configuração musical que o Brasil assumiria no pós-guerra. Consta que Orson Welles, quando esteve no Rio a serviço da política da boa vizinhança, encantou-se com Ismael. Mas quando o encontro se deu, Welles já havia gastado seus cartuchos e Hollywood o chamara de volta.

Outro sucesso, só em 1950, com o autobiográfico “Antonico”: “Vou lhe pedir um favor / que só depende / da sua boa vontade / é necessária uma viração pro Nestor / que está vivendo em grande dificuldade (...) / faça por ele como se fosse por mim”. Foi redescoberto anos mais tarde, no fim da década de 60. Com saúde abalada, vivendo numa casa de cômodos da Lapa, Ismael dava palestras em universidades e freqüentava a igreja messiânica do bairro do Grajaú, no Rio. Elogiado por Chico Buarque, gravado por Gal Costa, Jards Macalé, Toquinho e Vinicius, não conseguiu realizar seu último desejo – entradas permanentes para os desfiles das escolas de samba no Rio. Morreu pobre no dia 14 de março de 1978, endurecido sem perder a pose. Fato atestado pelo jornalista e historiador Sérgio Cabral: “Ismael Silva nos ensinou a falar, nos ensinou a cantar. É um dos criadores do samba carioca, um dos pais da nacionalidade brasileira, pois sendo um dos pais do samba, é um dos nossos pais”. Canonizado pelo papa Vinicius de Moraes, virou São Ismael, na definição do poetinha. A multiplicação dos sambas e de suas escolas figura entre os milagres realizados no altar da malandragem. • Continente maio 2005

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MÚSICA

O violão ao avesso O projeto multimídia Violões do Brasil traz o mais completo panorama do instrumento no país Isabelle Câmara

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o contrário dos destros, um violonista canhoto faz o acompanhamento, o ritmo, com a mão esquerda e os acordes com a direita. Para conseguir isso, ele tem que inverter a posição do instrumento, colocando o corpo do violão para o lado esquerdo e o braço para o direito. E ainda, para que ouçamos bem o som do instrumento, a posição das cordas tem que ser invertida. O que é comum para todos os violonistas canhotos, foi rompido por Américo Jacomino, o Canhoto, que, ainda criança, começou a brincar com o violão do irmão, aprendendo a inverter a posição do instrumento, mas não podendo fazer o mesmo com as cordas, pois o irmão era destro. Violonista de rara e extraordinária habilidade, Canhoto deixou por volta de 100 composições, das quais poucos registros chegaram até os dias de hoje. Já a obra do violonista pernambucano Quincas Laranjeira, que morreu há exatos 70 anos, foi extraviada e algumas de suas peças são conhecidas apenas pelos nomes. Praticamente um dos primeiros professores a ensinar violão por música no Rio de Janeiro, Quincas deu aulas a violonistas como João Pernambuco e Antonio Rebello. Como um dos pioneiros do violão no choro carioca, fez fama nos meios musicais, tendo tocado com Villa-Lobos, Bonfiglio de Oliveira e Satyro Bilhar. Estas e outras (muitas outras) histórias estão no livro Violões do Brasil, que integra o projeto homônimo, composto ainda por CD duplo e DVD, coordenado por Myriam Taubkin. A nota tônica do levantamento, viabilizado pela Lei Rouanet, é dada pelo empresário Rodolfo Galvani Jr., idealizador do projeto e profundo conhecedor do instrumento, na qual ele homenageia Zé Lansac, virtuoso esquecido, mas tido como o maior do seu tempo, anos 30, por Ronoel Simões, detentor do mais importante acervo sobre violão do país. Continua com um breve histórico do instrumento no Brasil, colocando a sua origem cigana como a mais provável; o que justifica o fato de, durante muitos anos, ter sido considerado marginal. Revisita o passado, dedicando um longo capítulo aos grandes mestres – muitos conhecidos apenas pelos iniciados –, como João Pernambuco, Garoto, Levino da Conceição (que era cego), Isaías Sávio, Satyro Bilhar, Antônio Rebello, Meira, Dilermando Reis, Laurindo de Almeida, Dino 7 Cordas, Rosinha Valença, Nicanor Teixeira, Luiz Bonfá, Canhoto da Continente maio 2005


Fotos: Divulgação

Raphael Rabello

Meira

Paraíba, Paulinho Nogueira, Baden Powell e Raphael Rabello. Villa-Lobos, Meira e Augustín Barrios são homenageados em ensaios de Turíbio Santos, Maurício Carrilho e Luís Nassif, respectivamente. O livro também prestigia virtuosos do presente, que dão depoimentos exclusivos sobre a sua relação, por vezes simbiótica, com o instrumento, como Badi Assad, Turíbio Santos e Fábio Zanon, contando com um recorte dedicado a João Gilberto, “Um violão chamado João”, e um guia com nomes e contatos de cerca de 400 violonistas e 70 luthiers em atividade. Apresenta ainda com um ensaio da fotógrafa Angélica Del Nery, que capta belíssimos detalhes do violão, certamente impensados para um observador comum. O CD, produzido pelo violonista e arranjador Luiz Roberto Oliveira, tem um acorde pivô: duas músicas de cada intérprete, sendo uma composição própria, ou de um outro contemporâneo, e outra reverenciando um mestre. De Satyro Bilhar, passando por João Pernambuco, Meira, Garoto, até Villa-Lobos, Laurindo Almeida, Baden Powell e Raphael Rabello, o álbum traz valsas, choros, sambas, cateretê paulista, frevos, maxixes, polcas, vaneiras (descendente da habanera cubana), concertos e estudos, além de um chamamé (ritmo da fronteira brasileira com a Argentina e Paraguai cheio de humor e malícia, a única composição de autor não brasileiro), em execuções exuberantes, límpidas e esmerilhadas de Antônio Madureira, Quarteto Maogani, Badi Assad, Maurício Carrilho, Duo Assad, Zé Menezes (de uma agilidade espantosa aos 83 anos), entre outros nem tão conhecidos, mas não menos habilidosos, como Gilvan de Oliveira e Carlos Barbosa-Lima – talentos e “músicas que pairam acima do tempo”, como bem afirma Luiz Roberto. A imagem tem mediação efetiva, no entanto quase redundante neste projeto, quando nos apresenta situações óticas e sonoras já oferecidas pelos outros suportes. São duas horas de DVD que poderiam ser reduzidas a uma.

João Gilberto

A emoção visual fica por conta do lendário Duo Abreu, que aqui ganha um capítulo especial. Influente entre os violonistas, com carreira estabelecida nos EUA e na Europa, mas ilustre desconhecido no Brasil, o duo formado pelos irmãos Sérgio e Eduardo teve uma trajetória brilhante e fugaz. Sérgio se tornou luthier, um dos mais respeitados no Brasil. Também por Turíbio Santos, que mostra que, além de excelente músico, conhece a história do instrumento e dos violonistas como poucos. Sobre João Gilberto, ele faz uma análise concisa e original: “ele tem uma precisão rítmica quase à beira da anormalidade”. Para além da imagem-movimento, o levantamento em geral comete alguns lapsos: concede pouco espaço a Egberto Gismonti e Henrique Annes e ignora nomes como o de Lenine, João Bosco, Chico César, Toquinho, Yamandú Costa e Geraldo Azevedo. “Escolhemos artistas cujo foco é o violão. Se fôssemos colocar todo mundo, teríamos que fazer vários livros”, justifica Morris Picciotto, um dos pesquisadores do projeto. Mas João Gilberto, inquestionável, comparece. Porém, muito mais do que os “Canhotos” fizeram, o projeto Violões do Brasil revira o instrumento pelo avesso, caracterizando-se como obra indispensável na biblioteca/discoteca dos violonistas do país e dos que admiram e pesquisam a música brasileira. •

Violões do Brasil (Livro, CD e DVD). Preço médio R$ 130,00. Continente maio 2005


AGENDA

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MÚSICA

Raízes nordestinas

Cortejo Aboyami

As (En)Cantadeiras Encontro inédito reúne mulheres que cantam enquanto trabalham As Quebradeiras de Coco do Babaçu são mulheres que enquanto trabalham quebrando coco, entoam músicas que amenizam e alegram o seu labor. Já as Encomendadeiras de Correntina, senhoras do interior da Bahia, representam uma antiga tradição de “livração” dos espíritos, hábito milenar que envolve a can-

toria. Estas e outras mulheres participarão da série musical inédita Encantandeiras, evento promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro e Brasília) que reúne mulheres que usam o canto como ferramenta de trabalho, como as artesãs, cantoras de feira, rezadeiras e trabalhadoras rurais. O elenco singular, formado por mulheres que mantêm acesa a tradição das cantorias de trabalho, é encorpado pela mezzo soprano Virgínia Rodrigues, pela rapper Nega Gizza, a menestrel Elisa Lucinda e o grupo Mawaca.

Virgínia Rodrigues

Encantadeiras. Brasília – Dias: 17, 24, 31/05 e 07/06 (terças-feiras), no Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Trecho 2, Conjunto 22, Brasília-DF), às 13h e 21h. Ingressos: R$ 15,00 (estudante paga meia). Informações: (61) 310.7087. Rio de Janeiro – Dias: 07, 14, 21 e 28/06 (terças-feiras), no Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil (Rua 1º de Março, 66, Centro, RJ), às 12h30 e 18h30. Ingressos: R$ 6,00 (estudante paga meia). Informações: (21) 3808.2020.

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Solando com um berimbau, seguido pelo timbre barítono do violoncelo, o Grupo Orange, sob a batuta do maestro e violinista Cussy de Almeida, dá o tom do álbum Raízes Brasileiras. Cussy de Almeida, que também assina os arranjos e a maioria das composições, retoma com este disco o projeto, iniciado nos anos 60, de criar uma música de concerto a partir da temática rítmica e melódica do cancioneiro popular do Nordeste, diminuindo as supostas fronteiras entre o popular e o erudito para, a exemplo do que fez VillaLobos, levar para palcos elitizados a música popular nordestina. Faixa a faixa, o Grupo Orange mostra a exuberância do seu trabalho. Do banzo e da congada, passa pelo caboclinhos, cantoria, aboio, maracatu, modinha, música sertaneja (de verdade!), baião (com um terno de pife), toada de cavalo-marinho e algumas temáticas, aparentemente híbridas, que misturam tema sertanejo com motivos da zona da mata e cantiga de roda (“Cirandância”), o que resulta numa sonoridade que enleva. Revisitando alguns trabalhos próprios na Orquestra Armorial e indo a Nelson Ferreira e Luiz Queiroga, em “Adivinhações”; Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, em “Assum Preto”; Capiba, em “Minha Ciranda”; Guerra Peixe, em “De Viola e de Rabeca” e “Galope”, Cussy de Almeida faz uma viagem profunda através da nossa cultura, promovendo sucessivos alumbramentos. (Isabelle Câmara) Raízes Brasileiras. Independente, preço médio R$ 31,00.


cênicas

H

á algumas semanas, várias pessoas ligadas à dança no Recife foram ao Teatro Hermilo Borba Filho, para participar de um batepapo com Suely Machado, diretora artística e fundadora do grupo Primeiro Ato, que na ocasião trazia à cidade sua mais recente criação: o espetáculo Mundo Perfumado. Nessa noite, acompanhada por seus bailarinos, Suely falou por mais de três horas sobre seu trabalho, demonstrando um entusiasmo que geralmente só é visto em artistas jovens, ainda em início de carreira. Em sua eloqüência irresistível, tratava de assuntos com-

plexos com simplicidade e franqueza, estabelecendo um diálogo imediato com sua efusiva platéia. Ali, naquela informalidade, além de se discutirem questões mais pragmáticas, relativas à manutenção financeira de uma Companhia e à profissionalização de bailarinos e de coreógrafos, foram abordados também alguns problemas essenciais da dança contemporânea, tais como: a função político-estética da dança frente aos ditames da comunicação de massa; os limites expressivos da dança cênica; o equilíbrio entre a técnica e a intuição; o reconhecimento do bailarino como sujeito-criador de

A busca pelo gesto fundamental

Grupo Primeiro Ato apresenta uma dança que exprime a verdade essencial de quem a cria no espetáculo Mundo Perfumado, claramente marcada pela utilização de um despretensioso senso de humor e de uma sutil carga de sensualidade

Fotos: Divulgação

Luís Augusto Reis

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Acima e na página ao lado, cenas de Mundo Perfumado: reflexão sobre o excesso de estímulos aos quais estamos submetidos

seus próprios movimentos; as fronteiras com outras linguagens artísticas, sobretudo com o teatro e com a performance; e a preocupação (ou não) de se fazer inteligível por um público mais amplo e mais diversificado. Curiosamente, três anos atrás, algumas dessas mesmas questões haviam também sido levantadas por uma platéia semelhante, no mesmo Teatro Hermilo Borba Filho, durante um outro “encontro informal” – bem menos espontâneo, na verdade – com ninguém menos do que a coreógrafa alemã Pina Bausch, um dos maiores nomes da dança mundial na atualidade, referência imediatamente associada à chamada “dança-teatro”. Naquela ocasião, gentilmente interrompendo o que deveria ter sido alguns breves dias de férias, e esforçando-se para vencer sua timidez quase imobilizadora, o pouco que Pina Bausch falou, sobretudo sobre a sua forma de criar e sobre suas dúvidas em relação à dança, assemelhou-se imensamente às principais idéias expostas agora por Suely Machado e por seus bailarinos. Quem conhece um pouco da trajetória do Primeiro Ato que em seus vinte e dois anos de atuação firmou-se entre as companhias de dança mais consistentes do país, não se surpreende com a constatação dessa afinidade com a arte e com o pensamento de Pina Bausch. Manifestadamente, ela sempre foi uma das principais referências Continente maio 2005

para esse grupo mineiro, de Belo Horizonte. E não é difícil identificar essa influência, seja na composição coreográfica, seja nos cenários e nos figurinos, ou ainda, e principalmente, no modo pelo qual os bailarinos procuram se expressar em cena: deixando a alma falar por meio do corpo, em vez de apenas executarem, com mais ou menos virtuosismo, uma determinada coreografia. Não por acaso, sempre que Regina Advento, brasileira que atua na companhia dessa renomada coreógrafa alemã, encontra-se no Brasil, Suely Machado faz o possível para que ela passe alguns dias trabalhando com o seu grupo. Mas somente a influência de Pina Bausch decerto não explicaria a personalidade própria conquistada pelo Primeiro Ato. Seus trabalhos, embora diversos entre si, guardam uma identidade forte, claramente marcada, entre outros aspectos, pela utilização de um despretensioso senso de humor, pela presença de uma sutil carga de sensualidade, e também por um sofisticado manejo dos elementos visuais que compõem a cena. Vários coreógrafos e bailarinos já foram convidados a dividir com o grupo suas diferentes vivências. Por exemplo, entre outros, Osmar Kelili, que vive há anos na França; Mário Nascimento, de São Paulo; João Saldanha, do Rio de Janeiro; e Airton Tenório, fundador da Companhia dos Homens, do Recife. Mas o grupo, tão qual um conjunto teatral, também tem investido em aulas de mí-


cênicas mica, de improvisação, de canto e de preparação vocal. Esse diálogo com o teatro ficaria mais evidente em 1997, com o convite feito ao encenador Gerald Thomas para assumir a direção de um espetáculo, experiência que resultou no trabalho chamado Breve Interrupção do Fim. “O convívio com Gerald foi riquíssimo, aprendemos muito com ele; mas sofremos com seu jeito imediato de resolver as coisas. Na dança, os movimentos demoram muito a ganhar organicidade; na verdade levamos meses e meses, às vezes um ano inteiro, para criar um espetáculo: e ele fez tudo em algumas semanas”, diz Suely. Esse desejo de aglutinar diferentes artistas e de conviver com uma multiplicidade de repertórios pessoais parece também se refletir na diversidade dos tipos físicos escolhidos para compor o elenco de cada espetáculo. Para Suely Machado, essas diferenças trazem beleza e tornam sua dança mais humana. “Gosto de ver corpos diferentes dividindo o palco. Quero gente alta, gente baixa; uns mais fortes, outros mais magrinhos; quero negros, brancos e mulatos; mais jovens e mais velhos. Para mim, todos são igualmente importantes. Nunca tive um primeiro bailarino, tenho doze primeiros bailarinos. E cada um me traz sua originalidade mais verdadeira em seus gestos”, explica. Pessoas que dançam – Essa busca por um movimento capaz de exprimir uma verdade essencial de quem o cria, e também de quem o executa, foi a principal diretriz na concepção do novo trabalho do grupo, Mundo Perfumado, que atualmente excursiona por algumas capitais do país. Se nas criações anteriores partia-se sempre de um tema previamente determinado para se chegar aos movimentos que comporiam a coreografia final, dessa vez, sob o comando do bailarino e coreógrafo Alex Dias, percorreu-

se o caminho inverso: “Fomos construíndo tudo a partir da resposta física dos nossos corpos. A rigor, o tema de Mundo Perfumado, uma reflexão sobre os excessos de estímulos aos quais somos submetidos atualmente, foi surgindo a partir dos trabalhos na sala de ensaio”, afirma Alex. Essa opção, claro, repercute na estrutura geral do trabalho. Ao público pagante, salvo em um ou outro breve momento, não é concedida aquela tão desejada satisfação de ver corpos treinados superando-se na realização impecável de movimentos extremamente complexos. Não são deuses em cena, são pessoas que dançam; que riem, que pensam, e que se emocionam – sem a preocupação parnasiana de disfarçar na forma o esforço da realização. Nesse ponto, uma comparação com outra importantíssima companhia de dança contemporânea do país, também de Belo Horizonte, talvez seja oportuna, ou quase inevitável: afinal, o público que assiste a um espetáculo do Grupo Corpo – de onde, por sinal, saíram as fundadoras do Primeiro Ato – é tomado de imediato pela deslumbrante precisão de corpos tão eficazes que, às vezes, podem parecer sobrehumanos. Ali, primordialmente, os bailarinos se entregam como afinados instrumentos em prol da expressão subjetiva do coreógrafo – no caso, o brilhante Rodrigo Pederneiras. Além disso, um outro aspecto certamente também contribui para fazer de Mundo Perfumado um trabalho de fruição mais restrita: a deliberada renúncia a qualquer costura narrativa, por tênue que seja, capaz de conduzir o olhar do espectador em uma leitura, digamos, aristotélica, do que lhe está sendo apresentado. “Não é um espeContinente maio 2005

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Quem conhece um pouco da trajetória do Primeiro Ato não se surpreende com a constatação dessa afinidade com Pina Bausch. E não é difícil identificar essa influência, principalmente no modo pelo qual os bailarinos procuram se expressar em cena: deixando a alma falar por meio do corpo

táculo para ser entendido, é um espetáculo para ser sentido”, esclarece a diretora. As possíveis chaves para interpretações mais convencionais revelam-se pistas falsas, deixando boa parcela do público com a sensação de que não está preparado para dialogar com aquela obra. Por outro lado, para um público afeito a experimentações mais radicais na dança contemporânea, é provável que Mundo Perfumado, embora suscite reflexões sobre quase todas aquelas importantes questões abordadas por Suely Machado em seu bate-papo no Teatro Hermilo Borba Filho, deixe a impressão de que não consegue aprofundar muito essas discussões. Todavia, assiste-se a esse enxuto espetáculo (em torno de 50 minutos de duração) com muita alegria, sobretudo porque ele evidencia a saudável inquietação que caracteriza esse grupo, formado por artistas dispostos a abandonar o conforto das fórmulas já testadas e aprovadas, para se lançarem em novos e desconhecidos caminhos. •

Maio: Teatro Sesi Minas, em Belo Horizonte, dias 19 e 22 Theatro da Paz, em Belém, dias 27 e 28 Junho: Theatro José de Alencar, em Fortaleza, dias 1 e 2 Teatro Alberto Maranhão, em Natal, dias 4 e 5 10 Teatro Castro Alves, em Salvador.


Imagens: Divulgação

Inimigo do povo

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Carlos Carvalho volta aos palcos com texto de Ibsen

Um inimigo do Povo, texto de Henrik Ibsen (que morreu há exatos 100 anos) escrito em 1882 e montado em Paris, em 1883, onde provocou reações controversas, é encenado no Recife sob a direção de Carlos Carvalho. Ibsen-Carvalho coloca no grande palco do 3º milênio temas do século 19 que teimam em não envelhecer: o indivíduo e o Estado, opinião individual e maioria, a política e seus mecanismos, ética e até mesmo a psicanálise. O espetáculo obedece e recria o teatro dialético de Bertold Brecht e o realismo de Stanislavski, numa encenação "bretchtnianamente brasileira". Segundo Carvalho, serão observadas a psicofísica das personagens, como também

seus comportamentos individuais e coletivos. Ocupando o espaço de forma múltipla, a encenação permitirá a observação, mesmo que nas sombras, de todos os movimentos das personagens, criando um grande painel de ações. O espetáculo utilizará a linguagem do rap entrecortando os atos e cenários do pintor José Cláudio. Um inimigo do povo. Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Recife Antigo. Tel: 81. 3224.1114). Estréia dia 7/05. De sexta a domingo, às 20h. Ingressos R$ 10,00 (estudantes pagam meia entrada). Até 29/05.

As sombras da alma As sombrias ruínas da alma, texto de Raimundo Carrero (vencedor do prêmio Jabuti de 2002) ganha os palcos sob as mãos de (também) Carlos Carvalho. O espetáculo narra a história de três homens – Sebastião, Samuel e Daniel – amargurados, e ao mesmo tempo alegres, que amam a mesma mulher, Beatriz, e por ela descarrilaram suas vidas. “É um espetáculo que tem como objetivo, mais do que nunca, o trabalho do ator. Na cena, a palavra e o gesto caminham juntos, cada qual construindo significados, revelando o indizível nas zonas de silêncio, perscrutando a alma das personagens e invadindo a platéia”, adianta o diretor.

As sombrias ruínas da alma. Teatro Armazém 14 (Rua Alfredo Lisboa, s/n, Cais do Porto, Bairro do Recife). Estréia dia 14/05. Quintas e sextas, às 20 horas. Ingressos: R$ 20,00 (estudante paga meia).

Bom senso A Escambo Companhia de Criação volta à cena com o universo de Rubem Fonseca, pela primeira vez em palcos pernambucanos. Disso que chamam Bom Senso é uma adaptação dos contos “Livre Arbítrio” e “A Festa”, do livro Confraria dos Espadas. O espetáculo, que fez sua estréia dentro da programação do XI Janeiro de Grandes Espetáculos, entra em cartaz no dia 12 de maio no Teatro Hermilo Borba Filho. Disso que chamam Bom Senso. Teatro Hermilo Borba Filho (Av. Martin Luther King, s/n, Cais do Apolo. Tel: 81.3224.1114). Estréia: dia12/05. Todas as quintas, às 20h, e sextas, às 21h. Ingressos R$ 10,00 (estudantes pagam meia entrada). Até 27/05. Continente maio 2005

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CÊNICAS


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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

A fumaça da outra casa Um novo Papa nos trará uma preocupante expectativa das crendices apocalípticas

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uigi Pirandello, contista dos melhores, a partir de 1920, quando se tornou universalmente conhecido nas raias da literatura, imaginou uma luz. Com A Luz da Outra Casa trazia humor, traço característico que refletia toda a sua genialidade e originalidade, escreveu o tradutor Benjamin Cremieux – um sentimento desdobrado que correspondia a uma realidade profunda, irremediável, que a todo espírito reflexivo havia de arrastar forçosamente a um ceticismo e a um pessimismo os mais absolutos. Porém, há uma fumaça para sair de outra casa. Uma fumaça branca, pontifícia e esperançosa de paz, contraponteando com uma outra fumaça que nos faz lembrar a de uma outra casa ou de outras casas – aquelas sinistras dos endemoniados nazistas. A fumaça do holocausto. A fumaça da queimação dos inocentes judeus nas caldeiras infernais dos malditos campos de concentração nas paragens européias. Diferente de Doris Lessing, que insiste em esquecer de que não pediu para ser filha da Segunda Guerra Mundial, participante de uma geração indignada, por isso perdedora, preferi registrar os melhores anos do meu sweetest dream – nos anos rebeldes de 60. E, como a velha dama inglesa, sem a frustração da mesma quanto ao seu cruel testemunho da Europa devastada pela violência e morte de milhões de pessoas, resta-me acender a luz da memória para sinalizar os 60 anos do fim da Segunda Guerra na Europa. Coincidentemente, agora, no mesmo continente, uma luz também deverá ser acesa – se já não foi - em uma das janelas do Vaticano. Um novo Papa – que das profecias de Nostradamus (a partir de 1555) extraem-se as mais variadas interpretações, através de estudiosos das suas 12 Centúrias, a essas acrescentando-se os Presságios – nos trará uma preocupante expectativa das crendices apocalípticas. Será o Bento XVI o penúltimo chefe da Igreja Católica e será assassinado em pouco tempo de reinado, à época do Continente maio 2005

fim da primavera européia (quando floresce a rosa), numa de suas visitas a alguma cidade banhada por dois rios. Acompanharia, assim, tantas previsões de vates antigos, pois assumiria logo após o deslocamento do eixo da Terra pelos inúmeros terremotos e maremotos que dizimariam (já aconteceu com o advento dos tsunamis asiáticos) milhares de vítimas. Estaríamos mesmo na era do anticristo? Pois este falaria de uma paz acompanhada de animalidade e começaria a pôr sua ferocidade a flor das peles dos povos pelas hordas do Oriente (também afirmado por São João no seu Apocalipse). Ademais, as cartas proféticas da Monja de Dresden anunciam “a morte dos grandes príncipes” – que seriam os políticos, os parlamentares, todos corrompidos, da direita à esquerda, do centro às alas extremas, como uma “chaga universal”. A “chaga” poderia ser, portanto, a corrupção que atualmente se espalha em todos os níveis – a corrupção que envolve, como um polvo, os homens e os sistemas. A vidente diz, entretanto, que tal chaga é “mais forte no Ocidente”, e daí “virá a época em que o pão e a água serão mais preciosos que o ouro”, após uma grande potência desencadear um verdadeiro périplo manhoso de domínio do mundo pela força e a mentira – aí seria repelido pela grande massa humana da raça amarela do Oriente. Vejam só, meus caros crentes e cristãos! Habemus Papa, certamente um conservador, dogmático em razão da globalização e que incomodará outros extremistas de outras religiões – salientes veneradores das guerras e arengas inescrupulosas. Em sendo assim, teremos de criar bueiros no sentido de provocarem fumaças de todas as cores – acrescidas das luzes da outra casa de Pirandello – em nossos lares, para, reunidos aos familiares, abrirmos o opérculo do incensório por dias e noites... E seja o que Deus quiser. Afinal, somos do Ocidente, banhados de uma gama de políticos corruptos. Assim é, Luigi, se lhe parece. •


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