Continente #055 - O dogma posto em questão

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AFP PHOTO/ Patrick Hertzog

EDITORIAL

O papa Bento XVI: a Igreja Católica escolheu um guardião da ortodoxia

A permanência do dogma

Q

uando o colégio eleitoral dos cardeais elegeu Joseph Ratzinger novo papa católico, há poucos meses, na mais espetacular sucessão papal da história, a permanência do dogma no fragmentado mundo que alguns nomeiam de pós-moderno emerge como questão das mais pertinentes. Afinal, Bento XVI teve sua trajetória na Cúria romana marcada pela função de guardião da fé, o que levou a imprensa de países europeus protestantes a definirem-no, com irreverência e má-vontade, como “o pastor alemão” ou o “rottweiler de Deus”. Nesta edição, o assunto é abordado não sob a ótica conjuntural da eleição do papa, mas como uma discussão, a partir deste fato relevante, sobre o que é o dogma e qual seu papel nos corações e mentes das pessoas nos dias de hoje. Ouvimos insignes representantes da Igreja Católica, como o cardeal Aloísio Lorscheider, o arcebispo de Florianópolis, dom Murilo Krieger e o midiático frei Betto, além de representantes do saber secular, como o professor Stephen Law, da Universidade de Londres, e o filósofo Felix Duque, da Universidade Autônoma de Madri. O autor da matéria, jornalista e mestre em Filosofia Fábio Lucas, também entrevistou o pensador brasileiro Roberto Romano que, com erudição sem pedantismo, elaborou uma curiosa metáfora: a do dogma como dívida. O tema é complementado ainda pelo cientista político e professor Fábio Wanderley Reis, que focou, a nosso pedido, o tema do dogma na política. Outro tema em destaque é o músico Naná Vasconcelos, que saiu do bairro de Sítio Novo, em Olinda, para conquistar os Estados Unidos e a Europa, sendo considerado por nove anos consecutivos, pela bíblia do jazz, a revista Down Beat, o maior percussionista do mundo. Ele relembra seu começo, aos 12 anos, tocando em gafieiras, sua participação no grupo de Gato Barbieri, seus contatos com Bertolucci e Marlon Brando, e de quando, atrevidamente, colocou berimbau no tradicionalíssimo blues de B. B. King, entre outras saborosas revelações. • Continente julho 2005

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CONTEÚDO

Divulgação

Reprodução

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08 Dom Murilo Krieger: defesa do dogma

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O original design de Gaetano Pesce

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CAPA

08 Dogma, os caminhos da fé 13 Romano: “Dogma é dívida” 16 O dogma político

CONVERSA

18 Márcio Souza e a história do Grão-Pará

LITERATURA

REGISTRO 57 Falar difícil é fácil

CINEMA 60 Os últimos dias de Glauber Rocha em Sintra

ESPECIAL 72 Naná Vasconcelos, talento internacional

22 As 1001 Noites em tradução direta do árabe

MÚSICA

28 Carlos Pena: a poesia sobrevive 32 A beleza em Carlos Pena Filho 34 Os 150 anos das Folhas de Relva, de Whitman 36 Editora da UFPE faz 50 anos 37 A poesia filosófica de Francisco Bandeira de Mello 38 A prosa aérea de Flávia Savary 40 Agenda livros

82 Academia Brasileira de Música faz 60 anos 84 Agenda música

ARTES 46 Originalidade e irreverência em Gaetano Pesce 56 Agenda artes

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TEATRO 86 A dramaturga, roteirista e escritora Lilian Helmann

HISTÓRIA 90 A ação inconclusa de Joaquim Nabuco

TRADIÇÕES 94 Reeditada obra única sobre bacamarteiros


CONTEÚDO

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Maristela/Divulgaçao

Ilustração: Walter Vasconcelos/Detalhe

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O percussionista pernambucano Naná Vasconcelos

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Os engodos do falar difícil

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Não me venham só com verdades

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 42 Mecenato verdadeiro é proteção vitalícia

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 54 A experiência artística de Mary Vieira

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 66 Há 5.000 anos o arroz era símbolo de fertilidade

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 69 Um presidenciável com horror de altura

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 92 Não existe sensação melhor que uma descoberta

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Estão podres os poderes constituídos do nosso Brasil Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente julho 2005


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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta e Daniel Sigal Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo Renata Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Octacílio de Oliveira Penteado Filho Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE

Julho | 2005 Ano 05 Capa: Ric Ergenbright/CORBIS

Colaboradores desta edição: ÂNGELO MONTEIRO é poeta, ensaísta e professor adjunto de Estética e Filosofia da Arte da UFPE. ANTONIO JUNIOR é jornalista e escritor. DUDA GUENES é jornalista. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia. FÁBIO WANDERLEY REIS é cientista político, professor emérito de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, autor de Política e Racionalidade e Mercado e Utopia, entre outras obras. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e Armada América, e cineasta. GUILHERME AQUINO é jornalista. JOSÉ TELES é jornalista e escritor, autor do livro Do Frevo ao Manguebeat. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Poemas e Vigílias. MARC J. HOFFNAGEL é doutor em História e professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. RODRIGO GARCIA LOPES é poeta, ensaísta, tradutor, autor do livro Solarium e editor da revista de literatura e arte Coyote. RODRIGO PETRÔNIO é poeta, ensaísta e autor dos livros História Natural e Tranversal do Tempo.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.

Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco

RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial. de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60.

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.

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CARTAS Diagramação A edição de junho, deste ano, está muito boa. A ilustração da capa chama a atenção. Além dos textos bem elaborados, a diagramação está belíssima. A matéria sobre Fernando Spencer – que merecia ter sido lembrado pela Revista antes – está moderna e arrojada. Também gostei bastante da matéria “Saudades do meu São João”. Um belo resgate dos ritmos regionais. Aproveito a oportunidade para sugerir uma matéria sobre o maestro Spock, lembrando seu trabalho com o frevo. Rodolfo Cabral, Recife – PE Praza aos céus Nem a Revista precisa de elogios nem minha fraca palavra aumentaria o valor desse trabalho primoroso que vocês fazem. A Continente tem assuntos para o mês todo, a gente vai saboreando devagarzinho e, quando termina, vem outra, sempre recheada de valores. A própria chegada da Revista é uma festa disputada pelos leitores, cada um querendo ler antes do outro. E no interior de cada um há, de forma inequívoca, o prazer de perceber que aqui no Recife, pertinho da gente, há ainda quem faça coisas boas. Praza aos céus que tenha vida longa. Enéas Alvarez, Olinda – PE Sartre apaixonado Adorei a crônica sobre a vinda de Simone de Beauvoir e Sartre ao Brasil (edição nº 4 – setembro/2001). Apesar de esta passagem ter um tom sarcástico, e sendo eu adoradora incondicional de Simone de Beauvoir e Sartre, ainda assim gostei. Faz sete anos que conheci o Existencialismo francês, e desde então me apaixonei pelo tema – em especial por tudo que diz respeito ao casal. Já li muitos livros de ambos, mas confesso que sempre quis saber um pouco mais sobre como era a vida deles. É incomum encontrar alguém que os conheça. Desde os 10 anos de idade venho lendo Beauvoir e Sartre (hoje estou com 17), e sempre procurei por pessoas que fizessem o mesmo; mas minha procura nunca teve êxito... Luciana Alves, via e-mail Show de refinamento Aprecio bastante o trabalho minucioso e brilhante que a Continente Multicultural tem feito ao longo de sua história, firmando-se como a revista de maior duração no Estado e consagrada nacionalmente. Tendo em sua personalidade uma visão ao mesmo tempo regional e global da cultura, focando no que está em sua volta, sem deixar nenhuma novidade do âmbito internacional de fora. Um verdadeiro show de refinamento e inteligência. Manuela Andrade, Recife – PE

Difusor Felicito-os pela excelente publicação que, acredito, é pouco conhecida aqui em Minas Gerais. Tenho tido a oportunidade de difundi-la na Associação Granberiense, da qual faço parte. Essa associação é formada por alunos, professores e ex-alunos do tradicional Instituto Metodista Granbery, fundado em 1889. Meus votos de muitas e excelentes reportagens para a Continente Multicultural e Documento. Alberto S. Moutinho, Juiz de Fora – MG Publicação ímpar A cada edição, a Continente se consolida como uma publicação ímpar, pelos temas e, sobretudo, pelo compromisso com a qualidade na abordagem desses temas. A Revista é, simplesmente, um raro exemplo de sucesso, num mercado manipulado pela mediocridade e pelo desrespeito para com os leitores. Mais uma vez, parabéns aos que se dedicam a levar adiante esse trabalho. José Gouveia de Figueiroa, Aracaju – SE

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Continente Sinto vergonha em dizer que somente sábado, 16/04, conheci a sua excelente Revista Continente, no hall de um cinema baiano. Vou pedir a assinatura via telefone, todavia quero dar-lhes parabéns pelo seu continente. Luís Henrique Tavares, professor da UFBA e membro do Conselho Estadual de Cultura (BA) Errata Na edição passada (54), informamos erroneamente, na agenda, a programação do Festival Virtuosi Celebra Cervantes, que seria realizado entre 16 e 18 junho. Ocorre que a Revista já estava impressa, quando a coordenação do evento informou o seu cancelamento.

Cartão-postal Sou olindense, 19 anos, e faço Letras na Federal daqui do Tocantins, e já faz um ano que moro por essas bandas. Tive que assinar a Revista... além de saciar minha sede de boa leitura, já é mais um cartão-postal que carrego do meu Leão do Norte... Kizzy de Morais, Tocantins – RO Acorda, Pernambuco Terça-feira, 10.05.05, no Teatro Santa Isabel, casa cheia, preços módicos, através do Projeto Pixinguinha, tive o prazer de assistir ao espetáculo proporcionado pelo Conjunto Galo Preto – violão de 6 e 7 cordas, flauta transversa, bandolim, cavaquinho e percussão, tocando choro, polca e até frevo, e, como se não bastasse, ainda acompanhando Elton Medeiros, cantor e compositor, Jair do Cavaquinho, cantor e dançarino, cariocas, Andréa Pinheiro, cantora paraense, e Geraldo Vargas, bandolinista catarinense; ruidosa e merecidamente aplaudidos. Na qualidade de assinante das duas Revistas Continente (Documento e Multicultural), solicito, seja com a publicação deste, seja com algum artigo assinado pelos senhores, que sejam conclamadas as Secretarias de Cultura do Estado e das prefeituras das maiores cidades de Pernambuco, que reúnam possibilidades, para que, a exemplo do citado Projeto Pixinguinha, realizem semanal, quinzenal ou mensalmente, espetáculos como o ora comentado. Sem qualquer laivo de bairrismo, afirmo, por ser também músico, que possuímos inúmeros artistas do mesmo quilate, aptos, que não fazem feio em qualquer apresentação nacional ou internacional, e provavelmente desejosos de iniciativas desse porte. Walter Marques, Paulista – PE

Segunda Guerra Na condição de estudioso da Segunda Guerra Mundial, desejo parabenizar esta revista pelo importante documento sobre aquele conflito. Destaco também o patriotismo dos amigos ao tratarem da participação do Brasil naquela gigantesca e violenta guerra, participação essa que não foi tão pequena como alguns tentam dizer às gerações atuais. Um estudo aprofundado das relações Brasil – USA e Brasil – III Reich, desde 1938 até agosto de 1942, indica a importância do nosso país na geopolítica do conflito.

Josué Souto Maior Mussalém, Recife – PE

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes

Verdades, quem as quer? Minta, mas diga que me ama

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ara que excessos nas virtudes? São Tomás de Aquino dizia que não deveria haver excesso na virtude, porque não há virtude onde há excesso. Daí serem compreensíveis as limitações da paixão em função de seus virtuais excessos e a razoabilidade da expressão poética de Vinícius de Morais: “que seja infinito enquanto dure,” por incorporar a dialética da plenitude dentro dos limites da existência. Diante desses sentimentos controversos, a realidade das coisas deste mundo nos tem ensinado que talvez seja inócuo opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a razão, pois, a racionalidade é limitada, defende Talcon Parsons. Os mais sábios têm afirmado que o maior sintoma de loucura no mundo é reduzir a compreensão da natureza à nossa capacidade e à nossa inteligência, considerando quantas coisas pouco verossímeis são afirmadas por gente digna de toda a fé do mundo. Não é forçoso repetir Eça de Queiroz, quando dizia que nem os poetas são sinceros na construção dos versos de amor. Mentiras soam como verdades. Verdades se desmancham no ar. Qualquer um de nós é capaz de dizer que é presunção exagerada alguém arvorar-se em saber até onde vão as possibilidades e impossibilidades do fazer ou do dizer coisas; particularmente, coisas que, apesar de inverossímeis, fazem bem aos olhos e ouvidos de qualquer ser humano. E, em se tratando do povo, o ressoar é ainda maior. A mídia está aí para gerar emoções, promover comoções e anestesiar geral. Quanto ao futuro, não se descuide das limitações dos excessos e das carências. Os governos estarão trabalhando sob a bandeira da inclusão social e você naturalmente será contemplado com essa inserção. As reformas (inclusive a política) virão para melhorar a vida de todos nós e das gerações futuras. O seu filho vai ter emprego. O salário mínimo vai ser 200 dólares. As alianças políticas continuarão a ajudar a governabilidade. Eis verdades que excedem a qualquer realidade. Nesse rosário de virtualidade, os países ricos estão sensibilizados em contribuir para acabar com a miséria e a fome no mundo. O meio ambiente será respeitado. A devas-

tação da Amazônia será controlada. A discriminação social e racial erradicada. Nos limites dos discursos oficiais, o assunto “sucessão” só será tratado em 2006. E, a partir daí, todos terão emprego, educação e saúde de qualidade. A violência será riscada do mapa. A miséria chutada para longe. As palafitas expurgadas. A corrupção controlada. E todos enfim, comerão o pão de cada dia. Zero para a fome. Dez para a inclusão social. Todas essas proposições devem ser consideradas, na medida em que você acredita em duendes.Verdades, quem é que as quer? Aduzia Fernando Pessoa – a convivência social sem as chamadas meias-verdades seria uma chatice. A tal da verdade é tão complicada que muitos preferem ignorá-la, pois ela pode inviabilizar qualquer fantasia que alimente o nosso ego e as nossas vaidades. Vejam algumas controvérsias sobre o tema: 1. Os americanos no Iraque estão só defendendo a democracia. 2. Os partidos políticos querem cargos para ajudar o Governo a governar. 3. Os réus costumam jurar inocência pela mãe, por Deus e de pés juntos. 4. Os conservadores acreditam serem os únicos a defender os bons costumes. 5. Os cínicos jamais admitem a traição diante delas. 6. Os desportistas fazem-nos acreditar até o último minuto. 7. Os enfermos graves preferem metáforas ao diagnóstico definitivo. 8. Os amantes, na primeira vez: só mais um pouquinho...amor. 9. O bêbado, numa mesa de bar: esta é a saideira. 10. O assessor do patrão: todos os seus empregados o adoram. Enfim, os mentirosos acreditam que convencem. De qualquer sorte, para o bem ou para o mal, tanto os homens como as mulheres preferem o “minta, mas diga que me ama.” Parece que é necessidade do espírito. Portanto, vivamos intensamente a fantasia de uma realidade cuja convivência é pautada pelos limites da conveniência. Digam coisas que enlevem o espírito. Que alimentem a alma. Que façam crescer o ego. E não me venham só com verdades. Façam-nos, mesmo por uns momentos, felizes. • Continente julho 2005

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8 Oswald Eckstein/Corbis

CAPA


CAPA

À luz da eleição de um novo papa, profundamente comprometido com a questão doutrinária, religiosos e intelectuais discutem a permanência do dogma nesse limiar do século 21 Fábio Lucas

O dogma no século 21

A

validade dos dogmas cristãos foi questionada na curta transição entre o falecimento do Papa João Paulo II e a eleição de Bento XVI. Antes da confirmação do cardeal Ratzinger, a expectativa era a de uma Igreja católica “mais aberta” e “menos dogmática”, expectativa frustrada com a eleição de um papa associado à tradição doutrinária. Daí decorreram duas perguntas imediatas: existe uma pluralidade de visões dentro da Igreja, em relação à obediência aos dogmas? Um dogma pode ser interpretado, de forma a se apresentar “menos dogmático”? Os defensores do dogma conclamam sua evidência. Os oponentes reclamam de sua obstrução. Enquanto os primeiros alegam ser ele a ponte para o que importa, os outros insistem em que ali não há nada senão abismo. Entre o caminho das pedras e as pedras do caminho, dogmáticos e antidogmáticos travam duelos que se costuma apontar como duelos da fé contra o conhecimento. Será âncora ou foguete, barreira ou saída, o dogma? A verdade não está em questão, embora a verdade dogmática seja a sua razão de ser. Pois ela fecha as janelas para o mundo enquanto abre os portões da revelação. A verdade dogmática é, antes, a fronteira que antecede a verdade – cujo trespassar nem se põe em discussão. Mas a rigidez do limite não seria absoluta, como observa o cardeal Aloísio Lorscheider. “Uma verdade é sempre uma baliza. É sempre um ponto de chegada. Não é, porém, o termo final. Do ponto de chegada podemos partir para outros pontos de chegada. O dogma não é ponto de parada total. É um ponto de onde podemos alçar novos vôos”, define. Para D. Aloísio, aqueles que pedem uma Igreja “menos dogmática” não sabem do que estão falando. “Seria o mesmo que pedir uma ciência menos dogmática. A ciência também tem suas balizas, seus pontos de chegada, donde partir para ulteriores elucubrações”, compara o ex-presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. Ao mesmo tempo em que retorna ao caráter “duro” do problema: “O dogma é uma verdade de fé, como tal definida pela Igreja. Tratando-se de verdade, não se pode tergiversar. Acontece o mesmo nas verdades científicas”. A “infalibilidade pontifícia” foi reafirmada pelo Concílio Vaticano II e é um dos pontos de chegada dos quais a doutrina cristã não abre mão. Aqui se reconhece a distância que pode ser criada pelo dogmatismo. “Quando se pronuncia a palavra dogma, as reações são diversas. Há os que o vêem apenas de forma negativa, acreditando que ele negue a liberdade e seja até algo irracional. Outros o julgam racional demais, a ponto de se pretender aprisionar a mensagem da salvação em conceitos rígidos da razão ou em uma linguagem que se presumiria válida para todos os tempos Continente julho 2005

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A verdade dogmática é, antes, a fronteira que antecede a verdade cujo trespassar nem se põe em discussão

Frei Betto: “Negar um aspecto substancial do dogma é excluir-se da comunidade dos fiéis”

mas que, de fato, não seria. Mais: ele se constituiria em obstáculo no diálogo entre a Igreja e o mundo, dificultando também o diálogo com as demais confissões religiosas”, resume o arcebispo de Florianópolis, D. Murilo Krieger. Seria preciso se libertar do termo pejorativo para compreender sua riqueza, indica D. Murilo, cuja definição termina onde teve início a do cardeal Lorscheider: “O dogma é uma obediência de fé; um momento de encontro de Deus com o homem e do homem com Deus; uma referência ao mistério. É uma baliza que indica o que já se conseguiu saber com certeza, e não um muro que impede a caminhada”. Na mesma direção é o conceito de Frei Betto, que no entanto muda a imagem de comparação: “Os dogmas são pilares da fé. Portanto, são aceitos pelo acolhimento da inteligência – da qual a fé é um dom – e não por clarividência da razão.” Ao contrário de D. Aloísio, Frei Betto aceita o clamor por menos dogmatismo. “Em geral, quando se fala de uma Igreja ‘menos dogmática’, significa uma Igreja mais aberta às indagações da atualidade, da modernidade, uma Igreja tolerante e mais centrada na misericórdia que na disciplina”. Seu testemunho é um exemplo de mudança. “A fé evolui. É claro que não tenho mais a mesma fé do catecismo, felizmente. O modo de compreender os dogmas mudou com o passar do tempo e o acúmulo de conhecimentos, sobretudo teológicos”, afirma Frei Betto. Se a compreensão e a fé evoluem, contudo, persiste o núcleo em torno do qual gira a dogmática: “Pode evoluir a interpretação, o enfoque, a adequação a diferentes contextos culturais. Mas, em sua essência, os dogmas são intransponíveis. Negar um aspecto substancial do dogma é coContinente julho 2005

locar-se fora da comunhão da Igreja, é excluir-se da comunidade dos fiéis”. O que seria sair do caminho iluminado pela palavra sagrada que proclama aos homens a verdade divina. Mas o dogma, de luz celestial, vira sombra terrena, quando criticado pelos que não buscam na fé a fonte de todo conhecimento – como quem desprezasse as balizas de chegada, enxergando apenas pontos de partida. Certezas dogmáticas x enigmas do mundo – As primeiras ações do papa Bento XVI confirmaram a tendência conservadora pronunciada do cardeal Ratzinger. O papa pediu aos italianos para não irem às urnas, quando o motivo foi a flexibilização da lei sobre pesquisa genética – uma das mais restritivas do mundo; e declarou, ratificando a posição conhecida, que a única medida eficaz contra a Aids é a abstinência sexual pregada pela Igreja. A camisinha e outros métodos contraceptivos continuam sendo um tabu no Vaticano, muito embora a maioria dos católicos admita abertamente o seu uso. “Creio fervorosamente no princípio iluminista segundo o qual nós devemos ser encorajados a pensar por nós mesmos, ao invés de nos submetermos acriticamente a qualquer tipo de autoridade”, provoca o professor Stephen Law, do Heythrop College de Filosofia e Teologia da Universidade de Londres. “O dogma religioso estava errado ao ver a Terra como centro do universo, ou quando disse que o mundo foi criado em apenas seis dias. Vários dos maiores avanços humanos foram conseqüência do questionamento dos dogmas”, recorda. “As pessoas devem ser livres para pensar e indagar”, defende Law, sem deixar de lado a contrapartida moral que acompanha a liberdade: “Se eu me amarro a explo-

Robson Fernandjes/AE

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Divulgação

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Os defensores do dogma conclamam sua evidência. Os oponentes reclamam de sua obstrução. Para uns, é uma ponte, para outros, abismo

Felix Duque: “O fundamentalismo é o pólo oposto da globalização, sendo ambos irrealizáveis plenamente”

Helvio Homero/AE

sivos, entro num supermercado e me detono, eu ainda sou moralmente culpado, mesmo que uma autoridade religiosa tenha me mandado fazer aquilo. Ninguém jamais deve aceitar ordens morais de qualquer autoridade, até de autoridades religiosas”. Para o filósofo britânico, a obediência cega a preceitos religiosos é o que caracteriza um fundamentalista. E se 46% da população do país mais rico do planeta acreditam que a Terra tem apenas 6 mil anos de idade – porque assim está escrito na Bíblia? O dado, referente aos EUA, é mostrado por Stephen Law como indício do retorno da autoridade religiosa, ao lado do crescimento verificado do fundamentalismo islâmico. Na sua concepção, nota-se a redução do arco moral da liberdade de pensamento necessária ao progresso do conhecimento. Ou seja: estaríamos entrando numa era de obscurantismo. Trata-se de uma perspectiva pessimista compartilhada por muitos que sobrepõem a certeza dos dogmas aos enigmas do mundo. Na opinião do filósofo Felix Duque, da Universidade Autônoma de Madri, o fundamentalismo é o pólo oposto da globalização, sendo ambos irrealizáveis plenamente: “A abertura infinita do livre-mercado, da livre circulação, do relativismo sócio-cultural, versus a solidez, a firmeza e a confiança do absolutismo que exige obediência”, dentro de um quadro em que o fundamentalista seria “um dogmático ingênuo, que baseia o dogma numa revelação primitiva, miticamente permeando todas as épocas”. A ingenuidade é essencial, pois, de acordo com

o catedrático espanhol, um dogmático poderia defender a globalização (como um dogmático liberal) – porém um fundamentalista nunca poderia fazê-lo. A diferença que separa o dogmático do fundamentalista afastaria a noção, disseminada desde que a ciência iniciou sua história, de que a religião não é mais do que um conjunto de superstições. “O que implicaria na crença ideológica de que, por trás dos dogmas religiosos, existiria uma verdade inalterável, própria da ‘natureza humana’, cuja índole e constituição secretas seriam conhecidas pelo pensador da hora. Isso, sim, seria fundamentalismo, mais que dogmático”, adverte o professor Duque. No mundo dos enigmas, entretanto, é possível dizer que são os dogmáticos que interpõem pedras na trilha do esclarecimento. Como na postura reativa da Igreja às pesquisas feitas atualmente com células-tronco. Postura que vem de longe. No século 16, um pouco depois da campanha de Lutero, seus seguidores – críticos da Igreja da época, portanto – aceitavam o Dogma de Zwickau (cidade em que surgiu), que pregava a simplicidade da palavra divina, cujo alcance instintivo não precisaria de erudição, ou sequer de alfabetização. Para os simpatizantes da doutrina, o verdadeiro crente deveria limitar-se à agricultura e ao trabalho manual. É somente um exemplo da desconfiança, formada ao longo dos anos, de que há uma espécie de ojeriza ao conhecimento, inerente ao espírito dogmático. Dom Aloísio: “O dogma não é ponto de parada. É de onde podemos alçar novos vôos” Continente julho 2005


CAPA

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Patrick Hertzog/AFP

A palavra do Papa

O pensamento de Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI “Quanto mais uma religião se assimila ao mundo, mais ela se torna supérflua”. (Revista italiana Panorama, outubro de 2004) “Embora a inclinação particular de uma pessoa homossexual não seja um pecado, é mais ou menos uma tendência que vem de um mal moral intrínseco”. (Em 1986, em carta aos bispos da Igreja Católica.) “O mundo político segue suas normas e caminhos, excluindo Deus como algo que não é deste mundo. (...) Para mim parece necessário voltar a descobrir, e existem forças para isso, que também a esfera política e econômica precisa de uma responsabilidade moral, que nasce do coração do homem e está ligada à presença ou ausência de Deus. Uma sociedade em que Deus está totalmente ausente se autodestrói.” (entrevista ao jornal La Republica em 2004) “Nós estamos caminhando para uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e tem como valor máximo o ego e os desejos individuais”. (em missa na Basílica de S. Pedro, um dia antes de ser eleito papa) “O materialismo e o feminismo não têm o objetivo de entender o texto sagrado, da forma com que foi originalmente concebido. No máximo podem ser vistos como expressões da visão de que a Bíblia é em si inexplicável, ou ainda, de que ela é incompreensível para o mundo de hoje. Neste sentido, o materialismo e o feminismo não estão interessados em defender a verdade, mas apenas naquilo que vai servir para suas agendas particulares”. “Se o modelo da ciência deve ser seguido sem hesitação, então o Princípio de Heisenberg deveria ser aplicado também no método crítico-histórico. Heisenberg mostrou que o resultado de qualquer experiência é fortemente influenciado pelo ponto de vista do observador. Neste caso, tanto as perguntas formuladas quanto as observações continuam a mudar durante o curso natural dos eventos”. “A objetividade pura é uma abstração absurda. Não é quem não se envolve que atinge o conhecimento; pelo contrário, o próprio interesse é um requisito para a possibilidade de conhecer”. Trechos de palestra sobre a “Crise da Interpretação Bíblica”, realizada em 27 de janeiro de 1988 na Catedral de São Pedro, em Nova York. Continente julho 2005

O filósofo madrilenho revela a outra face da moeda. “O dogma, como resulta da redução e condensação de diversas tradições, supõe um forte exercício de racionalidade. Não devemos esquecer que onde há letra, há razão”, diz Duque. “A Igreja sustenta-se na credibilidade do dogma”, emenda Frei Betto. Credibilidade que deriva, por sua vez, de uma liberdade individual interior. “Não há autoridade que, hoje em dia, possa impor ao fiel uma ortodoxia. Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos, dizia Santo Agostinho”, cita Betto. Este traço ontológico da fé, anterior ao conhecimento teológico ou a qualquer conhecimento, como sustenta Frei Betto, pode ser capaz de diminuir as certezas dogmáticas diante dos mistérios do mundo? Dois dogmas sobre Maria, mãe de Cristo, desafiam exemplarmente a razão comum. A virgindade e a assunção de Maria são temas que dividem os crentes, numa polêmica que a outros pode parecer pouco produtiva. Sobre a virgindade, “há quem a situe na integridade fisiológica, como há quem a encare pela pureza do coração”, explica Frei Betto. Sobre a assunção, D. Aloísio Lorscheider conta que o dogma foi definido no pontificado de Pio XII no dia 1º de novembro de 1950. “O que se definiu? Qual é a verdade? Nossa Senhora foi levada em corpo e alma ao céu. É a ressurreição antecipada. Mas nesta verdade nem tudo foi definido. O que falta definir? Falta definir se Nossa Senhora morreu ou não morreu”, ensina o cardeal. A doutrina da Igreja, por sua vez, parece ter feito a trajetória inversa. Revelada de Deus para os homens, como reza a tradição, a palavra sagrada que induz ao rigor ético e moral é também a mesma palavra que introduz, por resistência, a sede de conhecimento – e mesmo que sobrevenha o erro dogmático, a virgindade da fé fica mantida. Se a ciência se defronta com um dogma e o bate, pensa-se que a doutrina morreu. Mas se o dogma resiste à ciência, logo se vê a conservação perfeita – da alma e do corpo – da doutrina. •


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A. Huber/U. Starke/Corbis

CAPA

“Dogma é dívida” Com Platão, Tertuliano e Nietzsche, o filósofo Roberto Romano sustenta que “dogmas são espécies de promissórias que servem como lembrança e registro do que deve ser pago, na religião ou na ciência, na moral ou na política”. A seguir, os principais trechos da entrevista

Deus e o Estado Penso ser preciso explicitar o problema dos dogmas no campo em que surgiu o nosso Estado e a Igreja Católica. As duas instituições, no Ocidente, produziram a chamada “civilização”. É preciso distinguir vários dogmas na história social. Existem dogmas que executam função política e repressiva para assegurar a “governabilidade”. É deste naipe o dogma ideado nas Leis platônicas sobre o ateísmo e os ateus. O ateu, quando surpreendido e preso, tinha a oportunidade de repensar suas idéias. Se mudasse de pensamento, seria poupado. Caso oposto a sua morte garantiria a base do Estado, a crença popular no divino. Dogmas políticos possuem caráter funcional na maioria das vezes. Quando eles se unem aos dogmas religiosos, trazem lucros e prejuízos tanto ao Estado e à sociedade quanto às Igrejas. Cristo e o Fisco A Igreja Católica enquanto instituição que ordena e controla os seus membros assumiu fortemente a forma jurídica do império. As questões teológicas passaram às definições do direito romano, dando à fé cristã um lado formal rigoroso. Mesmo a


CAPA propaganda do cristianismo, a sua defesa frente aos ataques vindos do paganismo, traz esta marca jurídica. Tertuliano é um nome essencial neste ponto. Aquele padre da Igreja acusa os filósofos gregos e romanos de usar a Verdade, revelada por Moisés e na pessoa do Cristo, como grileiros que não reconhecem o título de propriedade cristão, anterior a Sócrates, Platão etc. A verdade, para ele, não é mera posse, mas um título de propriedade. A fórmula foi extraída dos processos romanos. E também os sofrimentos de Cristo. Eles seriam o resgate, pensa Tertuliano, de uma dívida infinita. Como os homens pecaram contra o infinito divino, apenas um ser infinito pagaria tal mancha satisfatoriamente. A Igreja edificou-se em três bases: a tradição judaica, a filosofia grega, as formas jurídicas romanas. Harmonizar os três ingredientes foi um trabalho árduo e não raro perdido nas chamadas “heresias”. A Igreja administra com dificuldade o que se liga ao dogma enquanto pensamento teológico (verdade ensinada aos cristãos pelo magistério e derivando dos Evangelhos) e o que liga ao dogma enquanto normas legais de atividade dos cristãos (sejam eles leigos ou sacerdotes). O direito canônico é um dos grandes lugares desta normatização. Muitas vezes o elemento legal, na Igreja, sobrepõe-se ao teológico. Temos os “Tribunais” de opinião, as perseguições etc. O Estado moderno surgiu enquanto mimesis entre as cortes laicas e a Igreja. Os “dogmas” comportamentais do direito canônico e mesmo os “dogmas” do mistério cristão

foram aplicados ao ser estatal pelos juristas seculares, contra a Igreja. Assim é a idéia de um Christus-fiscus em favor dos cofres estatais: como Cristo, o Fisco seria eterno, onipresente. Quando se fala em “dogma” em nossa sociedade e Estado, é preciso ter em mente as significações da palavra, a jurídica e a filosófica entram num rol complexo que, no fim, serve para determinar o que pode ser feito, ou não pode ser feito, pelos grupos e indivíduos. Nietzsche, com base em Tertuliano, apontou perfeitamente o núcleo da moral laica e cristã ocidentais no campo da dívida: se alguém age com o fito de “pagar” uma dívida (ao divino, à sociedade, à ciência), entra no caminho que leva ao infinito e, como resultado, jamais paga nada, só aumenta o rigor de próprio comportamento, no ascetismo, inútil e perigosamente (para os outros que não sentem nenhuma dívida no horizonte e apenas vivem). Digamos brutalmente: dogmas são espécies de promissórias que servem como lembrança e registro do que deve ser pago, na religião ou na ciência, na moral ou na política. Democracia e globalização Não seriam os próprios valores democráticos outros tantos dogmas? E seria de fato “globalizada” a sociedade atual? Não seria mais uma franja da população, com acesso à ciência e à tecnologia, que pode aceder às escolhas morais apresentadas pela ciência de ponta? E de outro lado, os mesmos valores democráticos (supondo-se a sua deseja-

João Paulo II em visita oficial à Lituânia, setembro de 1993

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Giansanti Gianni/Corbis Sygma

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CAPA

Clayton de Souza/AE

“Quando se fala em dogma em nossa sociedade e Estado, é preciso ter em mente as significações da palavra que, no fim, serve para determinar o que pode ser feito, ou não pode ser feito, pelos grupos e indivíduos”

O filósofo Roberto Romano

bilidade) estão mesmo enraizados como “dogmas” nas massas populares e nas elites? Pesquisas mostram que a massa popular em continentes como a América do Sul de bom grado rifariam a democracia em troca de segurança no emprego e controle da inflação. De onde vêm os sinais de sede infinita de salvação que joga massas e massas nos braços de líderes carismáticos? No caso nazista, Canetti (Massa e Poder) indica a relevância da inflação. No Brasil, este ponto é estratégico. Hoje, além da segurança de emprego e controle de inflação, temos a mimesis entre “o operário que chegou lá” e a pessoa média das massas. Governos carismáticos (mesmo que o carisma seja fabricado com muita técnica, como é o caso de Duda Mendonça) surgem sempre e não recebem como resposta a democracia. Por outro lado, as religiões que se baseiam numa racionalidade mercadológica absoluta crescem em número, rapidamente. Enquanto Tertuliano falava em dívida dos homens para com Deus, pastores eletrônicos falam em gerar dívidas de Deus para com os homens. O jeito é conseguir as promissórias divinas. Mas o essencial não muda: seja o movimento DeusHomem, seja o movimento Homem-Deus, tudo se regula pelos dogmas que garantem a compra e a venda, a dívida a ser resgatada rigorosamente, sempre na ordem jurídica estrita.

Criacionismo e comunismo O Criacionismo é a vertente política das religiões em busca de salvação e dos governos idem. A retórica contra aquela tendência não pode ser encontrada em valores tidos (dogmaticamente…) como imediatamente válidos e evidentes. Retomar a retórica das Luzes sobre a “livre pesquisa”, sem mostrar que a ela é vital para a sociedade, a economia, o Estado, é perder a guerra de antemão. Valores abstratos e universais dificilmente movem multidões sedentas de segurança e bem-estar. A mesma “globalização” arranca empregos, aumenta os atos terroristas, abala os fundamentos jurídicos dos Estados e das sociedades. Assim, ela não “resolve” ou garante a luta pelos direitos, dentre eles o de pesquisa. No Brasil assistimos ao paradoxo: a economia é globalizada e, justamente por isso, temos agora no poder um partido autoritário que negou toda a crítica anterior ao “neoliberalismo” e que tem no seu cume um messias pequeno, mas eficaz, que promete salvação… no emprego em massa, o exato contrário do que a política econômica “globalizada” pode oferecer. Mesmo que sua mensagem absurda se desgaste e seja necessário trocar o ídolo por outro, o paradoxo continua. Não é por acaso que as verbas são subtraídas das universidades, com alegre consentimento dos que as dirigem, porque raros dentre eles se interessam de fato pelas pesquisas e menos ainda por pesquisas “livres”. O grande interesse de hoje, nos campi e sobretudo nas áreas científicas e tecnológicas, não é a liberdade de pesquisa, mas o quanto pode render uma patente. Vivemos a profecia de Marx no Manifesto Comunista: tudo se compra com dinheiro, tudo se troca. Para que exista liberdade é preciso que exista alma. Mas esta última, nos campi e na vida social, é apenas uma cifra. •

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O dogma político O que agora observamos sugere o risco de que a adesão virtuosa a princípios e valores, suscetível de degenerar em sectarismo dogmático, se tenha destemperado, ao revés, num hiper-realismo inconsistente Fábio Wanderley Reis

O Nazismo: negação do ideal liberal e pluralista em que a virtude por excelência é a tolerância

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m primeiro aspecto que cabe destacar quanto à relação entre dogma e política diz respeito às circunstâncias em que a vida política é condicionada diretamente pela religião e seus dogmas. Basta evocar as guerras religiosas nos começos da Europa moderna, que ainda encontram eco nos enfrentamentos entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte. Ou os muitos casos em que, nos dias de hoje, a religião é objeto de ásperas disputas e perseguições políticas especialmente em países do Oriente Médio, asiáticos e africanos. Esse aspecto assume particular relevância, na atualidade, com a afirmação do fundamentalismo islâmico, que Samuel Huntington relacionou com um “choque de Continente julho 2005

civilizações”. Pondo de lado muitas simplificações de Huntington e uma possível perspectiva cruzadista de “mouros contra cristãos”, há um sentido inegável em que o islamismo afirmativo e militante representa nítido exemplo negativo quanto à relação entre religião e política. Refiro-me ao papel cumprido pelo ideal da umma islâmica, a comunidade baseada na fé compartilhada e na implementação de sua lei, como a caracterizou Ernest Gellner em livro de alguns anos atrás. Em contraste com esse ideal, o que distinguiria o desenvolvimento político dos países ocidentais no período moderno, não obstante dificuldades e reviravoltas trágicas, é a afirmação gradativa de um ideal liberal e pluralista


em que a virtude por excelência é a tolerância. Ainda que lógica”, em que a boa política é vista como aquela em esse ideal possa com certeza ligar-se a alguns importantes que partidos de orientação ideológica buscariam, de elementos da doutrina cristã, ele se acha associado antes maneira abnegada e solidária, realizar “valores” com a separação entre Igreja e Estado e com um processo coletivos de diferentes tipos. O problema está em que os geral de secularização. E cabe ressaltar que a Igreja partidos que melhor se ajustam ao ideal de política católica como instituição retém em suas práticas atuais ideológica são partidos originalmente marxistas e fremuito da demanda de lealdade incondicional e acrítica da qüentemente dogmáticos, caracterizados por objetivos umma islâmica. Traços que podemos também observar no revolucionários. Descartado o socialismo de tipo menos secularizado dos países ocidentais avançados, os stalinista, menos mal que o melhor exemplo de tais parEstados Unidos (não obstante, contraditoriamente, o in- tidos sejam os socialdemocratas europeus, em que a distenso pluralismo que o caracteriza em diversos aspectos), posição dogmática e revolucionária correspondeu a como a liderança de George W. Bush e os confrontos em uma experiência fugaz a que se seguiu, com a inserção torno dela têm evidenciado, permitindo falar, sem dúvida, no jogo eleitoral e democrático, a absorção de um ânimo realista e pragmático. Se a socialdemocracia eurode um fundamentalismo “bushiano”. As dificuldades contidas na tensão entre tolerância e péia se encontra agora em xeque com as novas condições dogma na política podem ser referidas a elementos contraditórios da própria idéia de “cidadania”, apontados já no clássico ensaio de Benjamin Constant sobre a liberdade dos antigos e a dos modernos. Nos termos em que o tema é retomado por George A. Kelly, o ideal de cidadania dos nossos dias contém um componente moderno, liberal e privatista, designado como a dimensão “civil” da cidadania, em que o valor por excelência é o da autonomia do cidadão, ao qual se asseguram direitos e que deve ser capaz de afirmar-se por si mesmo contra a eventual opressão dos demais ou do próprio Estado. Mas o ideal de cidadania contém também um componente “clássico” e solidarista, a dimensão “cívica” da cidadania invocada por certa tradição “republi- EUA, século 21: pode-se falar de um fundamentalismo “bushiano” cana”, em que o cidadão por excelência é aquele que re- econômicas mundiais e a globalização, cumpre ressaltar conhece virtuosamente seus deveres ou responsabilidades que foi com ela que melhor se equilibraram os desideperante a coletividade. Naturalmente, ambos os aspectos ratos de autonomia e solidariedade, nos muitos formacorrespondem a valores autênticos que prezamos. Mas é tos institucionais em que o mercado capitalista se compatente o caráter problemático das relações entre as duas binou com a sensibilidade social de governos de insdimensões e a dificuldade de conciliá-las – em particular piração trabalhista e popular. No Brasil atual, o PT parecia justificar a expectativa os riscos de que a exigência “cívica” se desvirtue na tirania sufocante da pressão à convergência e à conformi- de que viesse a reproduzir o que houve de melhor na experiência socialdemocrática. Mas o que agora observadade aos dogmas da coletividade. A expressão talvez mais clara do problema geral nos mos sugere o risco de que a adesão virtuosa a princípios debates políticos correntes, incluídos os que se dão no e valores, suscetível de degenerar em sectarismo dogBrasil, é a contraposição entre ideologia e pragmatismo mático, se tenha destemperado, ao revés, num hiper-reana política, especialmente no que diz respeito aos parti- lismo inconsistente. Ou será este apenas o anverso instrudos. Há um difuso ideal dominante de “política ideo- mental e maquiavélico do dogmatismo? • Continente julho 2005

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Greg Smith/CORBIS

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Divulgação/Editora Record


CONVERSA

MÁRCIO SOUZA

Essa história de modernidade aqui no Brasil está malcolocada

O escritor amazonense Márcio Souza revela que não é possível construir uma série de romances sobre a construção do Norte, mas, sim, sobre a desconstrução de um projeto de civilização que existiu, o Grão-Pará

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Eduardo Cesar Maia

Literatura que busca nos fatos históricos o seu manancial sempre teve muita força no Brasil. Talvez pela imensidão destas terras e as diferenças que se podem encontrar dentro de um mesmo país – que às vezes parece vários “brasis” –, desperta curiosidade e instiga nossos escritores a nos relatar outras visões da nossa terra. Material dramático nós temos de sobra, e, como dizia Darcy Ribeiro, “muita carne foi queimada para esse país chegar aonde chegou”. Autor de obras como Galvez Imperador do Acre e Mad Maria, o escritor amazonense Márcio Souza tem se dedicado nos últimos anos a escrever uma saga que, à maneira de Érico Veríssimo em O Tempo e o Vento, resgata um período fundamental da história do Brasil. Enquanto Veríssimo tratou de traçar um painel da formação do Rio Grande do Sul, Márcio Souza fez o mesmo em relação à Região Norte. Trata-se de uma tetralogia de romances que compreendem o projeto de uma moderna civilização (o Grão-Pará), baseado nos conceitos iluministas, e sua derrocada pelo Império Brasileiro.

Brasil. A partir dessa proposta, que foi um esforço de entender o Brasil a partir do Sul, eu pensei em fazer o mesmo a partir de outra perspectiva: construir um painel semelhante, tomando o Norte como referência. E eu acredito que o eixo Rio/ São Paulo desconheça mais a história do Norte do que a do Sul.

De que forma a seqüência da história está estruturada? Eu dividi a história em quatro romances – que podem ser lidos separadamente, embora alguns personagens apareçam e reapareçam a cada volume. Eu traço um painel histórico que vai mais ou menos de 1790 a 1840. A pergunta que se faz é: o que de fato aconteceu no Norte do Brasil no século 19? E os quatro romances, a partir da vida dos personagens e suas vicissitudes, tentam responder a esta pergunta. Primeiro porque para a maioria dos brasileiros, quando se fala em século 19, vem logo à mente o ciclo da borracha: as cantoras líricas no Teatro da Paz, as senhoras da sociedade mandando suas roupas para serem lavadas em Portugal, os barões do látex acendendo seus charutos com libras esterlinas... E não é nada disso. O ciclo da borracha aconteceu já no Como surgiu a idéia de construir essa tetralogia e qual foi século 20. O século 19 foi um período de tragédias para o a sua motivação para escrevê-lla? Norte do Brasil. Na verdade, o que descobri é que não é A idéia partiu da leitura do Érico Veríssimo com O Tempo possível construir uma série de romances sobre a construe o Vento, que construiu a saga, o épico, da formação do Sul do ção do Norte, mas, sim, sobre a desconstrução de um Continente julho 2005

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20 O Reformista, Descartes Gadelha/Reprodução

tativa e sem escravidão – e isso em 1820! Tudo isso se pode ler no Paraense, o primeiro jornal impresso do Grão-Pará. Ali existia toda uma elite influenciada pela ilustração francesa. Não se pode esquecer que os paraenses – os súditos dos portugueses no Grão-Pará – ocuparam a Guiana Francesa durante 9 anos e lá tiveram contato com uma biblioteca revolucionária completa em português (os franceses tinham traduzido para introduzir os ideais liberais na América Espanhola e portuguesa). Ou seja, os intelectuais em Belém eram familiarizados com Rousseau, Diderot e todos os pensadores radicais da Revolução Francesa e jamais se contentariam em ser parte de um império monárquico que era caudatário da decadente dinastia dos Bragança de Portugal. Daí começa o conflito. A Cabanagem, que parece uma insurreição popular na década de 30, é parte desse processo de destruição do Grão-Pará. Como foi o seu trabalho de pesquisa e quais foram as maiores dificuldades para a realização desse resgate histórico? Eu levei 10 anos levantando esse material. Inicialmente, nos A Revolta de Canudos foi uma revolta do Brasil arcaico – o Grão-Pará, arquivos internacionais e, depois, com a reforma do Arquivo por outro lado, representava a modernidade Público de Belém, que é um dos melhores do Brasil hoje, eu projeto de civilização que existia, o Grão-Pará, perpetrada tive contato com a documentação toda da história do Grãopelo Império do Brasil. Pará; e não apenas a documentação do Estado do Grão-Pará, mas a documentação das embaixadas que existiam lá (inglesa, Por que o Império Brasileiro não admitia o projeto de ci- francesa, espanhola, portuguesa e a dos Estados Unidos), além vilização que vinha sendo construído no Grão-P Pará? de relatos de viajantes que deixaram informações sobre esse A história gravita em torno do fato de que o Império do período convulso. Brasil, a partir do famoso grito do Ipiranga do príncipe português, decide anexar o resto dos territórios portugueses de Mesmo assentada nessa vasta pesquisa histórica, sua tequalquer maneira. O exemplo de tratamento com projetos, tralogia Crônica do Grão-P Pará e Rio Negro é uma obra ficciodigamos, “paralelos” ao projeto imperial, já havia sido dado nal. Como você construiu seus personagens dentro desse por D. João em relação à Confederação do Equador. Quer contexto? dizer, mesmo depois da Independência, quando se esperava Realmente, é uma obra ficcional. Eu estabeleci um cenáum pouco mais de diálogo, viu-se que os métodos continua- rio histórico e os personagens aparecem como encarnações das vam os mesmos. No caso do Grão-Pará, em 1823, o que acon- criaturas que viveram aquelas épocas. teceu foi um verdadeiro massacre: o Império contratou mercenários ingleses para invadir o território e eliminar sistemaQual a lição histórica que podemos tirar daquele período? ticamente todas as lideranças locais. O fato é que os interesses Eu considero que a principal lição, principalmente políticos do Grão-Pará, a formação da elite, a economia e a para nós que somos do Grande Norte, é que essa história cultura daquela região jamais seriam conciliáveis com a eco- de modernidade aqui no Brasil está malcolocada. Como nomia e a cultura política do Império Brasileiro. geralmente se coloca, parece que São Paulo puxa esse vagão vazio com todo o sacrifício e que nós, amazonenCanudos, então, seria um caso bem diferente... ses, paraenses, pernambucanos, cearenses, goianos etc. Completamente. A Revolta de Canudos é uma revolta do somos todos uns atrasados primitivos que retardamos o Brasil arcaico, primitivo e miserável contra uma república ritmo do Brasil em direção à modernidade. Na verdade, também miserável... O Grão-Pará, por outro lado, represen- a história é outra. Quem era mais moderno: os que protava a modernidade. A proposta das lideranças independen- punham uma democracia representativa, moderna, batistas era a criação de uma república democrática, represen- seada em pequenas propriedades agrícolas e na indústria, Continente julho 2005


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CONVERSA

“A idéia partiu da leitura do Érico Veríssimo (foto) com o Tempo e o Vento, que construiu a saga, o épico, da formação do Sul do Brasil. A partir dessa proposta, eu pensei em fazer o mesmo a partir de outra perspectiva: construir um painel semelhante tomando o Norte como referência”

com libertação dos escravos; ou um Estado agroindus- na minha literatura. Faz parte da minha visão de mundo e, trial exportador, baseado em latifúndios e na mão de obra portanto, daquilo que escrevo. escrava? Isso que ocorreu no Norte do Brasil foi a nossa Você poderia citar algum escritor que você considera Guerra da Secessão – mas, para azar nosso, o Sul gade valor, mas que, por estar fora do eixo Rio-SSão Paulo, nhou. Se o Sul tivesse vencido nos Estados Unidos, hoje eles não conseguiu reconhecimento nacional? seriam como nós, teriam essa confusão que nós temos aqui. Eu citaria um grande poeta amazonense, nascido Cônego Baptista Campos e Frei Caneca. Você poderia fa- em Manaus, chamado Aldísio Filgueiras. Ele publizer uma comparação entre estes dois libertários brasileiros? cou em 1968 um grande livro de poesia, Estado de SíSem dúvida foram duas figuras centrais na propagação das tio, proibido pela censura. A obra foi vencedora do idéias e valores liberais no Brasil. Frei Caneca era um místico, concurso de poesia promovido pela União Brasileira um homem de forte fé cristã. Por isso ele acabou sendo um de Escritores. Embora o título possa dar a entender mártir. O Cônego Baptista Campos já não era tão fanático e que se trata somente de uma literatura engajada, eu inclusive apreciava bastante as companhias femininas. Deci- considero que o surpreendente trabalho com a lindiu fazer parte da Igreja para não ser um simples mameluco guagem e o grande exercício de invenção poética faque carregaria pedra toda a vida: este grande homem foi mui- zem com que esse livro permaneça com um teor artísto mais um político do que um religioso. Infelizmente, nenhu- tico atual. A editora Valer de Manaus está publicando outra ma dessas duas figuras pode ver seus ideais concretizados. vez esta obra, mas, infelizmente, não haverá distribuiNa sua obra, mesmo em se tratando de uma representa- ção nacional. ção do passado, sentimos um forte teor político que, de certa Você tem interesse na atual literatura produzida forma, deixa transparecer aspectos de sua visão política. Você no Brasil? Que autores você destacaria? se considera, de alguma maneira, um autor engajado? Eu acho muito interessante o trabalho do escritor caAcho que isso acontece naturalmente. Eu não tenho nenhum receio em deixar transparecer minhas opiniões políticas rioca Alberto Mussa. É um autor que merece atenção. • Continente julho 2005

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A eternidade e uma noite Editora Globo lança, em cinco volumes, a primeira tradução em língua portuguesa, integral e direta do árabe, do Livro das Mil e Uma Noites, uma das obras mais importantes de todos os tempos Rodrigo Petronio Corbis

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oucos acontecimentos da literatura são passíveis de tantas interpretações quanto a saída de Cândido do castelo do barão de Thunder-tentronckh. Ele deixa a paz e a harmonia da Vestfália para conhecer o mundo, mas mal sai de seu aconchego, já se enovela numa seqüência infinita de desastres, patifarias, canalhices e enganos. A crítica sempre ressaltou essa transição. Ela seria a passagem de um mundo ordenado e coeso a outro, caótico e inabitável. Uma alegoria que Voltaire teria criado, inspirado na ruína real da cidade de Lisboa, com o terremoto de 1755, para representar a ruína do Antigo Regime e dos sistemas totalizadores. Quanto ao nome bizarro do fictício barão, talvez seja uma possível sátira a Frederico II da Prússia, que de fato escorraçou Voltaire de sua corte. A partir de então, o homem estaria entregue ao devir da história, relegado à fragilidade de sua condição e ten-

do como guia apenas a luz opaca de seu discernimento. Não há mais uma redenção. Há apenas a consumação de nossa liberdade no círculo estreito de nossos atos. Muito já foi esmiuçado sobre a bufonaria que Voltaire mobiliza contra a monadologia e o universo dos compossíveis de que fala Leibniz, caricaturado no amo Pangloss. Já se chamou a atenção para os intrincados recursos teológicos de que o autor do Dicionário Filosófico se serve para dar cabo da divina providência e secularizar o conhecimento, ao ligá-lo à necessidade da experiência e ao fazer tabula rasa do pensamento, como queria o empirismo de Locke. Porém, poucos estudiosos deram atenção à importância do islamismo e dos árabes em sua obra, a começar pela sua impecável novela Zadig, por seu drama Mahomet, de 1742, e pelos Ensaios sobre os Costumes e o Espírito das Nações, de 1756, onde ele presta reverência ao mestre maior da língua francesa e à sua curiosidade Continente julho 2005


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antropológica: Michel de Montaigne. Este clima, misto de orientalismo, crítica de costumes, literatura de idéias e ostentação cortesã, já está disperso na literatura francesa, a começar pelas Cartas Persas de Montesquieu, de 1721. Porém, é notória a ligação direta de Voltaire a esta cultura. Sobretudo a uma das maiores obras de todos os tempos: o Livro das Mil e Uma Noites. Sua entrada na Europa se deu de maneira indireta, por meio da tradução de Galland, sábio versado em letras latinas, grego, hebraico, persa e árabe. Mas isto não atenuou o seu impacto. Publicada em 6 volumes, entre 1704 e 1717, o mote que a inaugura é o mesmo que persegue todas as aventuras do cândido herói. Haverá alguém mais desgraçado do que eu? É a mesma pergunta que Cândido e os reis irmãos Shahriyar e Shahzaman se fazem antes de correr o mundo. A resposta, como era de se esperar, é positiva. Sempre se dá o pior no pior dos mundos possíveis. Depois de Galland, as traduções se sucederam: Lane, Burton, Paine, Mardrus, Littmann, Henning, Weil, Cansinos-Asséns. Cada qual criando novas noites em nova língua e novas linguagens, com outros valores e outros Continente julho 2005

pressupostos. Novas obras, dir-se-ia. Mas todas se remetendo à ficção de um original que não existe, mas que está, isto sim, pulverizado no imaginário de toda a humanidade durante séculos. O que nos leva a supor que as Noites sejam um livro que não precisa ser lido para ser conhecido. Quanto aos seus leitores e à sua recepção na literatura ocidental, são tantas e de tal importância que se torna difícil defini-las. Dos Canterbury Tales de Chaucer ao Decameron, da Kublai Khan sonhada por Coleridge ao enciclopedismo delirante de um De Quincey, do romance de idéias francês ao noveau roman, de Stendhal a Proust, de Stevenson a Chesterton, de Kipling a García Márquez. E uma convicção da qual ninguém me demove: as Noites são uma fonte de inspiração direta para um dos maiores livros da literatura ocidental: o Quixote. Seja no seu aspecto árabe mais evidente, como manuscrito narrado por Cide Hamete Benengeli, seja pela estrutura de contos dentro de contos dentro de contos, seja em episódios tópicos, sobretudo da primeira parte, como a estória, provavelmente autobiográfica, do Capitão Cativo, e sua estada em Argel sob domínio mouro. As pontes possíveis são muitas. E creio que nem um pouco improváveis. De


LITERATURA res idealistas define como o ápice da cultura ocidental teria, portanto, como uma de suas âncoras, o obscuro Islã. É a triste ironia de nossas verdades positivas. Em tempos de obscuridade fundamentalista, onde o Islã é despudoradamente deturpado na mídia, nada mais saudável do que o colocar na raiz da criação de um dos maiores expoentes do Iluminismo. E, de fato, seria redundante repisar a importância dos árabes para a consecução de um desenvolvimento filosófico e científico de envergadura, o que tem levado alguns estudiosos a repensar a oposição entre religião e progresso, que seria uma falsa questão, ou no mínimo malformulada, eivada de preconceitos oitocentistas. Já a estória das edições das Mil e Uma Noites talvez seja tão pitoresca quanto seu conteúdo. Na verdade, sabemos pouco de suas raízes. Pouco pode nos dizer o parco manuscrito encontrado em Antioquia, pertencente à chamada matriz iraquiana da obra. E poucos são os indícios oferecidos pela tradição de contos noturnos, anteriores à sua primeira compilação, entre os séculos 13 e 14, no Cairo. Estes antigos contos compõem um gênero, o dos contadores de estórias noturnas, e seu primeiro cultor foi ninguém menos que Alexandre da Macedônia, famoso explorador desta terra além do Ganges e da

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modo que a trajetória da obra transcorre à revelia de nossa vontade. Ela á autônoma. Um patrimônio diáfano da humanidade. Da mesma forma, o paralelismo entre alguns personagens e mitos com outros gregos e indianos é admirável. Há correspondências entre as aventuras de Ulisses e a do marujo Simbad, e o ifrit, o gênio das Noites, pode assumir às vezes a feição gigante de um Polifemo. Assim também as estórias de Aladim, do califa Harum Al-Rachid, dos amores do príncipe Camaralzaman, a estória de Ganem e a do cavalo encantado. Neste caso, é interessante notar a mescla de culturas. Talvez para nos advertir que as idéias não têm lugar. E que todo fenômeno a que chamamos cultura é um ato de tradução. Algo ontologicamente impuro. Uma borboleta que, mesmo depois de morta, se esquiva das gavetinhas do especialista. O entrelaçamento entre esta abstração chamada Ocidente e a cultura milenar que deita suas raízes remotas na península da Arábia Feliz, como a chamou Heródoto, é antigo e em alguns momentos intenso. Tanto que é difícil definir uma linha divisora clara entre a tradição greco-romana e o que chamamos com impertinência de Oriente. Boa parte da arte bizantina é matéria helenística talhada em um molde parta, antiga civilização do atual Irã. Como demonstrou a pesquisadora Karen Armstrong, em seu livro Maomé, do século 10 ao século 15, havia na Península Ibérica uma forte correspondência entre cristãos, muçulmanos e judeus, em uma tradução pacífica e recíproca de suas histórias e culturas. Esse intercâmbio vai praticamente se encerrar com o Concílio de Trento, em 1542. Embargo que dura até hoje. Com agravantes adicionais. Também é importante lembrar os exemplos clássicos da preservação de obras da antiguidade, sobretudo de Aristóteles. Algumas delas chegaram a passar por anônimas durante séculos. Outras só vieram à luz graças às traduções de sábios árabes, como Abu Mattar e sua edição da Poética e da Retórica, no século 10. Outro ponto bastante interessante é o impacto que os estudos de ótica de Al-Hazen exerceram sobre Roger Bacon, o Doctor Mirabilis, cuja guinada no estudo da luz no século 13 será decisiva para a adoção do ponto cêntrico, da teoria das luzes e sombras e da perspectiva na pintura do Renascimento. O que o provincianismo dos historiado-

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Aurora a que o poeta Juvenal alude, para descrever o Oriente. Como observa Mamede Mustafa Jarouche, na introdução desta que é a primeira tradução das Noites feita direta do árabe, com cuidados primorosos da editora Globo, além do ramo iraquiano, há dois principais: o sírio e o egípcio. Este último se subdivide em antigo e tardio. A obra, tal como a conhecemos, é, em sua totalidade, uma assimilação do ramo sírio e do egípcio tardio, sendo este a única fonte onde constam as 1001 noites completas. Ao contrário do que se cria, ela não tem muita relação com a obra Hazar Afsana, o livro persa das Mil Fábulas, como a tradição equivocadamente consignou. É interessante seguir a trajetória dos códices e edições das Noites. Dispomos de duas grandes fontes neste sentido. Ambas são do século 10. A primeira é do historiador Al-Masudi, que nos dá um breve relato da tradição das fábulas de narração noturna, em sua obra Pradarias de Ouro e Minas de Pedras Preciosas, composta por volta de 950. A segunda nos é confiada por Ibn AlNadim, livreiro do Cairo que se propôs ao curioso trabalho de comentar todas as obras que lhe caíam em mãos e, em 987, enfeixou estes relatos em uma obra intitulada Catálogo. Da mesma família de obras ou fontes possíveis de inspiração às Noites temos a Kalila wa-Dimna, coleção de fábulas indianas traduzidas para o persa no século 6. E outras estórias soltas, como a do sábio Sindabad, na qual sete vizires de um rei se revezam na narração de estórias para tentar assim dissuadi-lo de matar seu filho. Esta movência textual, para usar o conceito do grande crítico Paul Zumthor, não se esgota em uma curiosidade arqueológica. É decisiva para se entender a grande transformação que as Noites empreendem na tradição de fábulas noturnas que a precedeu. De fato, pela primeira vez temos uma obra cuja narradora feminina não só se Continente julho 2005

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Livro das Mil e Uma Noites – Volume I – Ramo Sírio. Tradução, introdução e notas de Mamede Mustafa Jarouche. Editora Globo 422 páginas. R$ 46,75.

faz presente em toda a sua extensão, como muitas vezes insere a perspectiva da mulher na descrição, ocasionando uma mudança importante no estatuto social da representação. Muito além de qualquer realismo crítico aziago, trata-se de uma marca textual que corrobora outras mudanças profundas levadas a cabo pelas Noites. Essa transformação também é visível no tratamento dado ao matal, vocábulo que pode ser traduzido como paradigma ou provérbio, mas que também designa a moralidade exemplar das fábulas. Pois bem: nas Noites esta coerção moral quase desaparece. Os personagens parecem estar mais preocupados com a ação e a eficiência de cada ato do que com o seu valor pedagógico ou ilustrativo, perspectiva que ainda predomina, por exemplo, no Livro das 101 Noites, manuscrito tunisiano da mesma família, tecido pela narrativa do filósofo Fihrás, também traduzido por Jarouche e publicado tempos atrás, pela editora Hedra. Ao valorizar o prazer da pura narração em detrimento da sua utilidade didática, ao visar à elocução a despeito da utilitas, como diziam os priscos retores, as Noites devolvem a fábula à sua dimensão amoral originária. Como crítica dos costumes, a fábula sempre foi um instrumento de repor a ordem e os valores. Mensageira de uma narrativa infinita, cuja eficiência tem por objetivo, não a educação da sociedade, mas sim a suspensão da própria morte, Shahrazád bane o juízo e adota em seu lugar uma espécie de utopia lúdica: um livro que se narra a si mesmo e, ao se narrar, implica em si o mundo e o leitor.


LITERATURA das ações mais devastadoras sofridas pela sociedade árabe e pelos islâmicos: a invasão mongólica que culminou com a destruição de Bagdá e a extinção do califado abássida. Sete séculos e meio depois, a história não se repete, porque nada se repete, mas repropõe a farsa, pois parece que só ela existe. Hoje, em um mundo que tem todos os seus valores leiloados em uma feira internacional e se encontra prestes a ser dividido em dois hemisférios, um de animais, outro de profissionais liberais, a força da ficção provavelmente não possa mais contra a morte real e iminente. Porque agora a morte vem de dentro, devém da ruína de sua própria possibilidade de existência, de nossa própria incapacidade de simbolizar o absurdo. O phármakon se esvaziou de sua dupla acepção. Só admite o veneno que se extrai do próprio veneno. Em ambos os contextos, o fio infinito da voz de Shahrazád tenta interditar a morte, sob a ação cada vez mais precária da fábula. O puro prazer das formas e as fórmulas encantatórias, aquilo que Emir Rodríguez Monegal definiu como uma poética da narrativa, não podem mais suspender a ação do cadafalso ou entreter o rei que ora degola suas marionetes aos milhões. Talvez estejamos prestes a entrar em uma curiosa história da eternidade. Não aquela que dá origem a todo o tempo, mas sim aquela que consiste na sua absoluta privação. As Mil e Uma Noites serão sempre esse canto agônico de um cisne que não morre. E assim nos lega indefinidamente uma redenção possível. •

Myron Jay Dorf/Corbis

É este sentido auto-suficiente da obra que mais nos encanta. Analisando o seu título, que é por si só uma composição poética, Borges interpretou mil como um equivalente mensurável para muitos. E, diz-nos, em último caso, que podemos ver neste número um correlato de infinito. Então, por que a adição de uma noite? Para que se possa ter a idéia de um infinito que transborda: além do horizonte sem fim do mundo uma noite ainda circula. E também para dar o anúncio circular do eterno retorno: todo o rio da eternidade que reflui para si mesmo. Infinidade do tempo. Infinitude do espaço. Ele disse. Dois pontos. A fórmula é repetitiva, tautológica, circular, mas por isso mesmo encantatória. Não quer comunicar uma experiência: quer gerar um mundo possível. Abre uma série de vasos comunicantes na narrativa, que se desdobra em inúmeras vozes e falas. Estas, por sua vez, se encaixam umas dentro das outras. Com isso, as Noites demonstram que o prazer do texto, misto de mediação racional e operação afetiva, é irredutível à apropriação ideológica interessada (e mesquinha) de quem queira lê-las em função de seu próprio umbigo. Isto não lhes veda a capacidade de indiciar a época em que foram escritas. Muito menos anula a sua atualidade para o nosso mundo, pelo contrário. Apenas matiza este processo, evitando transformar a obra em letra morta de um mundo morto. Compostas durante a vigência do Estado mameluco, as Noites são contemporâneas de uma

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LITERATURA

O poeta singular 45 anos depois de sua morte, Carlos Pena Filho, com sua poesia pictórica, destaca-se como um dos poetas mais vigorosos da década de 1950 Luiz Carlos Monteiro - Ilustrações: Gil Vicente


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arlos Pena Filho fez sua estréia na poesia em 1952, com a reunião dos primeiros poemas escritos numa publicação que intitulou de O Tempo da Busca. Nascido no Recife, em 17 de maio de 1929, desde muito cedo se afirmou como uma personalidade singular de poeta em franca e rápida expansão. Esse primeiro livro envolvia parte de suas inquietações de artista recém-saído da adolescência, além de algumas projeções e questionamentos acerca da validação do ofício poético e da experiência concreta com o mundo sensível. Na passagem vivenciada entre o adolescer tateante e perplexo e um rápido amadurecimento, pode-se entrever uma enorme vontade de superação de si mesmo, que se revela principalmente na atividade de maior peso em sua vida e na qual melhor se realizava, a poesia. A multiplicidade diccional e as modulações estéticas e expressionais que caracterizam sua poesia repartem-se entre o funcionalismo artesanal herdado da geração de 45 e uma tendência visivelmente romântica, por sua vez subdividida entre o lirismo mais emocionado e subjetivo e os poemas de vertente social e popular. Na condição de poeta avesso a ideologias radicalmente empenhadas, dá sua contribuição à poesia social com os poemas de Nordesterro, Cinco Aparições e com o poema-inventário Guia Prático da Cidade do Recife. Assumindo uma atitude deste tipo, rompe de modo corajoso as amarras políticas de seu próprio meio e convivência, de cunho eminentemente liberal. A análise do Livro Geral demonstra que a busca de originalidade nem sempre é alcançada por ele, notadamente quando trabalha uma espécie de surrealismo lírico mal-assimilado. No entanto, a mudança de orientação temática e diccional nos poemas

de Nordesterro revela uma faceta poética radicalmente oposta ao maneirismo formalista apreendido da geração de 45, até então inimaginável num poeta que se diferenciava também pela alta realização lírica de sua poesia. E isto vai culminar numa poética urbana de rara eficácia, que se estrutura no mesmo passo dos poemas de feição pictorialista. Em Nordesterro não há concessões demasiado comprometedoras ao senso comum. O mesmo cuidado com as formas fixas ocorrentes no lirismo verifica-se com as formas presentes nos poemas de raiz popular. Tais poemas – do Nordesterro e do Guia Prático – servem também para afastar uma certa noção de “purismo” requerida para Carlos Pena por alguns companheiros de geração. E, ainda, demonstram que o poeta não estava impregnado apenas de lirismo subjetivista, mas era capaz de desenvolver conteúdos de maior “impureza”, como os referentes ao social, ao rural e ao urbano escritos em linguagem contundente e desabrida. Carlos Pena Filho destaca-se como um dos poetas mais vigorosos da década de 1950, ombreando-se a poetas locais de repercussão nacional como João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo, Mauro Mota, Ascenso Ferreira e Manuel Bandeira, e de outros Estados como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt e Vinícius de Morais, todos seus aparentados espirituais e revelando também novas preocupações sociais e políticas. Edilberto Coutinho relaciona, no Livro de Carlos, o grupo de poetas a que pertencia Carlos Pena a esse tempo: Edmir Domingues, Audálio Alves, Olimpio Bonald Neto, Francisco Bandeira de Melo, Félix de Athayde e Fernando Pessoa Ferreira. Prefaciando o livro de Carlos Moreira Os Sonetos (Recife, Continente julho 2005

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LITERATURA Sagitário, 1953), Carlos Pena se insurge, de modo irônico e contundente, contra os mais fortes preceitos estéticos e bases teóricas da geração de 45. No entanto, ele não estava totalmente desvinculado da poesia que o grupo praticava. Assim, é notável a influência da geração de 45 sobre o poeta, isto se verificando na análise de alguns poemas seus, através da utilização freqüente de recursos poéticos e padrões lingüísticos e de estilo comuns e característicos àquele grupo. A leitura de seus versos não suprime a fruição e o prazer provocados por uma conformação altamente fluente e musical que os reveste. Sem excluir a força desse ludismo, pode-se partilhar, ainda, de uma operação mental diversa, de outro modo de apreensão da linguagem, sinalizado pela descoberta singular da realidade social e do mundo circundante que permeia frações e núcleos significantes de sua poesia. No esforço de apreensão crítica dessa poética, com o mapeamento de seus aspectos formais e elementos temáticos, estilísticos e conteudísticos, duas vertentes analíticas diferenciadas se reafirmam, se excluem ou se ramificam.

A primeira delas envolve uma orientação analítica que começa a se definir no que existe de particularmente revelador no discurso lírico praticado por ele, originário de sua compulsão anímica e espiritual, levandoo a se exprimir numa fala que privilegia a absorção do mundo psíquico autocentrado e narcísico. A segunda vertente analítica tende a revelar os poemas de nítido conteúdo social, de sabor e referência históricos. Em tais poemas, são mantidas conexões definidoras com a cultura popular, que desemboca, por sua vez, numa visão regionalista, contudo participante, derivada diretamente da contemplação ativa de ambientes rurais, onde prevalecem figuras mitológicas e personagens insignes do imaginário nordestino. Devido ao seu temperamento boêmio, as suas vivências pessoais seriam sublinhadas por uma vida literária e intelectual movimentada e enriquecida de muitas solicitações e atividades. E estas vivências seriam referendadas também de algum modo nas rápidas, porém definidoras incursões que fez pelo jornalismo, no empenho levado a efeito nas discussões estéticas, e ainda nos perImagens: Arquivo Fundação Gilberto Freyre

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Da esquerda para a direita: Carlos Pena Filho, Sylvio Rabelo, Gilberto Freyre, Paulo Rangel Moreira e Murilo Costa Rego (s/d)

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Poemas de Carlos Pena Filho (...) Do alto de um morro qualquer ou da Serra dos Cavalos, vejo as cercas de avelozes que são verdes intervalos

dividindo terras secas onde só cresce o abandono mostrando a qualquer passante que o nada também tem dono. (...) De: “O Regresso de Quem, Estando no Mundo, Volta ao Sertão” *** Tinha a noite escondida na espessura De seus cabelos rotos pela aragem Quando a manhã cresceu para a aventura Em seus olhos magoados de paisagem. De: “Elegia Amarga” ***

Carlos Pena Filho e Gilberto Freyre (s/d)

calços e compromissos representados pela transitoriedade de uma vida pública de cargos ou funções sem maiores ressonâncias. É de interesse lembrar ainda que, fraternas e socialmente extensivas como eram, tais vivências como que se prolongariam em admiração comovida e perplexa da parte de seus leitores e aficionados, dos amigos e pessoas com quem convivera ou que eventualmente o conheceram, mesmo tanto tempo após a sua morte prematura no Recife, a 1 de julho de 1960, em conseqüência de um acidente de automóvel. O esforço poético empreendido por Carlos Pena Filho logra realizar-se numa obra que, se não extensa numericamente, mostra-se competentemente elaborada e trabalhada. Mesmo nos poemas em que podem ser rastreados defeitos, maneirismos ou fraquezas de concepção, ele não abdica da expressividade peculiar e do estilo diferenciado, construídos em cerca de uma década e meia. E nos poemas onde se sente a presença do poeta pleno e maduro, confirma-se o percurso exigente de uma poesia que sempre buscou, da adolescência à morte prematura, as melhores soluções e definições acompanhadas dos mais convincentes resultados estéticos. •

Essa verdágua azul pelo maralto Sacudida por gastos vendavais O pacífico Atlântico e ainda mais A estrela brancazul do céu mais alto. De: “Viagens” *** Quando mais nada resistir que valha a pena de viver e a dor de amar e quando nada mais interessar, (nem o torpor do sono que se espalha). Quando, pelo desuso da navalha a barba livremente caminhar e até Deus em silêncio se afastar deixando-te sozinho na batalha a arquitetar na sombra a despedida do mundo que te foi contraditório, lembra-te que afinal te resta a vida Com tudo que é insolvente e provisório E de que ainda tens uma saída: Entrar no acaso e amar o transitório”. “A Solidão e sua Porta”


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O poeta da beleza

O predomínio de Apolo sobre Dionísio definiu liminarmente o destino poético de Carlos Pena, pois os abismos de dor e de embriaguez não conseguiram sequer anuviar a solaridade do seu canto Ângelo Monteiro

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que sempre nos chamou a atenção em Carlos Pena Filho foi a familiaridade com que ele trabalhava formas fixas como o soneto, sem perder o acento moderno, e em nada se assemelhar, em sua fluida musicalidade, com alguns dos representantes da Geração 45 que, em seu trêfego formalismo, ou em sua ainda mais trêfega postura ortodoxa, não expressavam mais do que a ausência de verdadeira experiência pessoal no trato com a poesia. Poucos, por isso, atingiram sua altura, numa geração que juntou, também, nomes tão densos e significativos como Mauro Mota, Audálio Alves, Paulo Mendes Campos, Bueno de Rivera e Alphonsus de Guimaraens Filho, sem esquecer – como um caso à parte – João Cabral de Melo Neto. Carlos Pena, desde sua estréia com O Tempo da Busca, aos 22 anos, foi, sobretudo, o poeta da beleza. Tudo nele confluía esteticamente para a sua realização: som, imagem e idéia. Apolineamente não o cativavam os grandes dramas humanos, mas a graça, a serenidade das cores, a luminosidade das linhas, a combinação harmoniosa dos sons. A plasticidade, com efeito, se tornou numa das marcas mais decisivas de sua poesia: seus poemas se constituem, não raramente, verdadeiras pinturas a emergir de suas estruturas caprichosamente sonoras. A terceira estrofe de seu poema “Olinda” é bastante reveladora a esse respeito: “Olinda é só para os olhos,/ não se apalpa, é só desejo./ Ninguém diz: é lá que eu moro./ Diz somente: é lá que eu vejo.” Na quinta estrofe a ênfase se Continente julho 2005

concentra no olhar do poeta-pintor: “As claras paisagens dormem/ no olhar, quando em existência./ Diluídas, evaporadas,/ Só se reúnem na ausência.” A última estrofe do poema se conclui pictoricamente impressionista: “Quando a luz é muito intensa/ é quando mais frágil é:/ planície, que de tão plana/ parecesse em pé.” Para evocar a já clássica distinção nietzschiana entre o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco, nós poderemos afirmar, com alguma segurança, que o predomínio de Apolo sobre Dionísio definiu liminarmente seu destino poético, pois os abismos de dor e de embriaguez dessa última pulsão não conseguiram sequer anuviar a solaridade que se desprende continuamente do seu canto. É o signo da arte pela arte e da beleza pela beleza – e isso sem nenhum desdouro para o poeta, porque também há preconceito contra a beleza – que determina, em grande parte, a fisionomia poética de Carlos Pena, como tão expressivamente demonstra em um dos seus sonetos definitivos: “Por seres bela e azul é que te oferto/ a serena lembrança desta tarde:/ tudo em torno de mim vestiu um ar de/ quem não te tem mas te deseja perto.// O verão que fugiu para o deserto/ onde, indolente e sem motivos, arde/ deixou-nos este leve e vago e incerto/ silêncio que se espalha pela tarde.// Por seres bela e azul e improcedente/ é que sabes que a flor o céu e os dias/ são estados de espírito somente,// como o leste e o oeste, o norte e o sul./ Como a razão por que não renuncias/ ao privilégio de ser bela e azul.”


LITERATURA Por isso o elemento trágico é praticamente inexistente em Pena, mesmo em poemas como “Memórias do Boi Serapião” e “Episódio Sinistro de Virgulino Ferreira” em que a visível nota social é revestida nele de tal nobreza que a possível crítica das situações faz-se mais música que denúncia em nossos ouvidos. Não será talvez mais um indício das razões por que seus poemas carreguem o poder de ser mais memorizados do que o de outros poetas? Quem se esquecerá, por exemplo, do “Soneto do Desmantelo Azul”, em que a música dos versos não faz esquecer, em nenhum momento, a obsessão da cor predominante em seu universo poético? “Então, pintei de azul os meus sapatos/ por não poder de azul pintar as ruas,/ depois, vesti meus gestos insensatos/ e colori as minhas mãos e as tuas.// Para extinguir em nós o azul ausente/ e aprisionar no azul as coisas gratas,/ enfim, nós derramamos simplesmente/ azul sobre os vestidos e as gravatas.// E afogados em nós, nem nos lembramos/ que no excesso que havia em nosso espaço/ pudesse haver de azul também cansaço.// E perdidos de azul nos contemplamos/ e vimos que entre nós nascia um sul/ vertiginosamente azul. Azul.” Existe uma tendência, há algum tempo em nossa história literária, que parece dotada de um equívoco compromisso para durar: é aquela que, privilegiando quase de maneira exclusiva o jogo ou a luta das forças sociais, tende a obscurecer qualquer tipo de hedonismo estético. Como se todos os poetas fossem constrangidos a adotar, mesmo contrário à sua natureza, um determinado apelo quer social, quer político, apesar de humanamente falso, talvez pela necessidade de algumas das nossas elites de disfarçar seus restos de má consciência que não conseguiram exorcizar de todo... O próprio Carlos Pena traz, no diferenciado código de sua escrita, uma clara resposta a tais impertinências em dois tercetos de um dos seus sonetos mais lembrados: “Nesse tempo, onde inquieta e rara voas,/ sobre os nossos momentos perturbados,/ mais que o azul de setembro nas canoas// São tuas mãos longínquas, litorâneas./ O azul que viu teus seios transformados/ em andorinhas cegas e instantâneas.” A presença desse azul, que banha tantas de suas páginas, em sua inquietude e em sua raridade, não será suficiente em sua sugestividade hipnótica para calar a boca ou, pelo menos, entontecer os olhos dos que vêem apenas um registro na voz poética do homem? Carlos Pena Filho – quer se queira ou não – ficará como o poeta daquela fase psicológica da nossa existência, que nenhum de nós gostaria que passasse: daquela fase

em que o azul parece encobrir, sem intermitência, a face mais estranha e dolorosa da nossa natureza que não gostamos de fixar, temendo os olhos inquisidores de Dionísio, bem como as transtornadas coreografias de sua dança sob as máscaras do mundo. Ora, no mundo de Carlos Pena não há grandes impasses, além das nuvens de melancolia que empanam o seu alvissareiro azul, ou da serena nostalgia que se desgarra da fragilidade das coisas em constante despedida: a permanência desse estado de graça poético se deixa revelar tanto no soneto “Elegia para Adolescência”: “E enfim descansaremos sob a verde/ resistência dos campos escondidos./ Nem pensaremos mais no que há de ser de/ nós que então seremos definidos.// No mar que nos chamou, no mar ausente,/ simples e prolongado que supomos/ seremos atirados de repente,/ puros e inúteis como sempre fomos.// Veremos que as vogais e as consoantes/ não são mais que ornamentos coloridos,/ frutos de nossas bocas inconstantes./ /E em silêncios seremos transformados,/ quando formos, serenos e perdidos/ além das coisas vãs precipitados.”, quanto nos tercetos de outro famoso soneto “A Solidão e sua Porta”, que já no título endossa a visão de que há sempre um jeito para contornar o fado inescapável que nos persegue: “a arquitetar na sombra a despedida/ do mundo que te foi contraditório,/ lembra-te que afinal te resta a vida// com tudo que é insolvente e provisório/ e de que ainda tens uma saída:/ entrar no acaso e amar o transitório.” Nesse sentido ele será o poeta, no qual Apolo brilha em sua plena claridade, escondendo sob os seus olhos radiosos o avesso trágico de toda a beleza, mas em cuja mirada está ausente o abismo de que já falava o filósofo Demócrito no fragmento 106: “Em realidade, porém, nada sabemos, pois no abismo está a verdade”. E é precisamente no abismo, que nenhum azul escamoteia, onde reside a verdade não só de Dionísio mas do fundo escuro da nossa natureza. Mas voltando ao soneto “A Solidão e sua Porta”: é justamente a possibilidade de saída que faz da poética de Carlos Pena Filho um convite permanente à juventude da condição humana face às ressurgências do sofrimento, da enfermidade, da velhice e da morte. Dessa forma sua poesia parece possuir um indiscutível condão de suspender o tempo, como se buscasse recolher, para todo o sempre, o eco da súplica lancinante do romântico Lamartine em “Le Lac”: “O temps, suspends ton vol! Et vous, heures propices,/ Suspendez votre cours!” • Continente julho 2005

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LITERATURA

Uma experiência de linguagem Há 150 anos, era publicado um dos livros mais importantes da poesia universal: Folhas de Relva, de Walt Whitman Rodrigo Garcia Lopes

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ançado dois anos antes de As Flores do Mal, de Baudelaire, 30 anos antes das Illuminations, de Rimbaud, e 32 antes de Um Lance de Dados, de Mallarmé, Folhas de Relva é a declaração de independência da poesia americana. Escrito por um jornalista de 36 anos que nada tinha escrito de importante até então, como essas outras obras inaugurais, Leaves of Grass alterou os rumos da poesia moderna como uma onda gigantesca, cujos impactos podem ser sentidos até hoje. O tsunami Whitman chegou às mais diversas praias do globo, afetando a sensibilidade e a obra de várias gerações de escritores. Para uma dimensão do impacto, citemos alguns: Laforgue, Gide, Appolinaire, Thomas Mann, Ruben Dario, Valejo, Huidobro, Borges, Neruda, Turgenev, Mayakovski, Kheblinikov, Iuvetuchenko, Hopkins, Dante Gabriel Rosseti, D. H. Lawrence; Lorca e Pessoa. Isso sem mencionar boa parte dos principais poetas americanos do século 20, sobretudo Carl Sandburg, Eliot, Pound, RobinContinente julho 2005

son Jeffers, Hart Crane, Williams, Stevens, George Oppen até Frank O’Hara, Allen Ginsberg e John Ashbery. E foi Pound, talvez o poeta mais influente do século 20, quem melhor resumiu a importância de Whitman para a literatura e cultura norte-americanas: “Whitman é para minha pátria o que Dante é para a Itália”. Imediatamente à primeira edição, que ganhou as livrarias no dia 4 de julho de 1855, Whitman foi vertiginosamente expandindo seu livro em sucessivas edições. Dos 12 poemas de 1855, em 1892 teríamos o considerável número de 383 poemas escritos. Embora o bardo barbudo e seu livro fossem companheiros de viagem, e apesar dele ter escrito poemas memoráveis depois de 1855, o impacto daquela edição e sua originalidade de concepção são únicos. Do design da capa aos 12 poemas, a primeira edição é uma obra coesa, conceitual e poeticamente projetada. É nesta edição que a persona literária “Walt Whitman” faz sua primeira aparição, mostra sua pegada e leva o leitor ao nocaute, em 12 rounds.


Uma das “vítimas” foi nada menos que o maior intelectual e figura literária de seu tempo, Emerson. Numa carta histórica, enviada ao poeta em julho de 1855, maravilhado, ele escrevia: “Esfreguei meus olhos um pouco para ver se este raio de sol não era ilusão”. E resumiu Folhas de Relva como sendo “a mais extraordinária peça de inteligência e sabedoria que a América jamais produziu”. E é neste livro que fazem suas primeiras aparições obras-primas como “Canção de Mim Mesmo”, um dos mais extensos e belos poemas em língua inglesa (ocupando metade do volume), os sublimes “Os Adormecidos” e “Eu Canto o Corpo Elétrico”, além de poemas essenciais como “Tinha uma Criança que Saía Todo Dia”, “Canção às Ocupações”, “Uma Balada de Boston” e “Europa”. Como poucos, Whitman foi capaz de absorver e combinar estilos e procedimentos literários ou não, filosóficos ou mundanos, de modo inovador. Suas descobertas prenunciam e antecipam procedimentos e preocupações básicas do Modernismo e das vanguardas do século 20. Em 1854, Whitman tinha assimilado à sua maneira as técnicas, vivências e conteúdos que lhe interessavam incluir em Leaves. Já havia encontrado a sua linguagem. Seu gênio está em dar novas potencialidades a formas ancestrais e em experimentar novas formas e modos de dizer: desde o recurso do paralelismo, da poesia bíblica, até as linguagens mais recentes do jornalismo e da fotografia, além da parataxe e do verso livre, fazendo o livro um verdadeiro mix e construindo uma nova poética. Igualmente importante para sua “experiência de linguagem”, que era como ele chamava sua obra, foi seu aprendizado como poeta, foram as experiências como repórter, gráfico, construtor de casas, editor de jornais, além de sua auto-educação em teatros, ópera, museus de raridades, em suas observações da cidade, conversas, leituras e relações pessoais. Os anos de experiência como repórter de rua e editor de jornal se dá, por exemplo, na ênfase que ele presta à “eternidade deste agora”. Como se o poeta estivesse querendo passar suas mensagens “ao vivo”: “Ouvi o que os falantes falavam . . . . a fala do começo e do fim, / Mas não estou falando nem de fim nem de começo. / Nunca existiu mais começo do que este agora, / Nem mais juventude ou velhice do que existe agora; / Nem vai existir mais perfeição do que já existe agora, / Nem mais inferno ou paraíso como existe bem agora. [...]. Tanto eruditos quanto ignorantes sabem que é assim. / Certo como a certeza mais certa . . . . aprumado na vertical, bem trançado, firme nas vigas, / Forte como um cavalo, carinhoso, orgulhoso, elétrico, /Aqui estamos eu e este mistério.”

Acusado de “charlatão”, “obsceno”, “adorador de falo”, “louco”, “exibicionista”, por uns, e de “o profeta da América” e autor da “Nova Bíblia”, por outros, Whitman conheceu o inferno e o céu com seu livro. Folhas de Relva seria banido por obscenidade, e alvo de seitas fanáticas, que chegaram a queimá-lo em autos-da-fé. Por que tanto barulho por um livro de poesia? Em primeiro lugar, pelo conteúdo explosivo, onde alusões ao homoerotismo e fantasias masturbatórias se misturavam com imagens sexuais e um culto religioso ao corpo e às “pessoas comuns”. Pela aparência de miscelânia de discursos como o filosófico e jornalístico, o religioso e profético com mundanidades e fatos históricos, aparentemente “editados” por um jornalista louco. Imagine o leitor e a leitora de 1855 se deparando com versos como esses: “Sou o poeta da mulher tanto quanto do homem, / E digo que é tão bom ser mulher quanto ser homem”. Ou que descrevem fluidos de uma orgia sexual: “Límpidas e ilimitadas ejaculações de amor quentes e imensas . . . . / gelatina trêmula do amor . . . . suco delirante jato branco,/ Noite de núpcias trabalhando com segurança e suavidade dentro da aurora ereta, / Entrando e saindo dentro do dia pronto e produtivo, / Perdido na brecha apertada na carne tenra e macia do dia”? Ou o voyeur que canta “a marcha dos bombeiros em seus trajes – o membro masculino jogando sob as calças bem justas e dos cós”? Ou ainda que descreve uma ejaculação em “Os Adormecidos”: “O pano lambe a primeira sobremesa e bebida, / Lambe os ovos devoradores de vida . . . . lambe a orelha do milho rosa, cheio de leite e no ponto: / O dente branco fica, e o da frente se enfia na treva, / E um licor se derrama dos lábios e nos seios e fazem tim-tim, e o melhor licor vem depois”. Se a primeira edição de Folhas de Relva antecipa, em algumas passagens, os conflitos que dividiriam o país em 1861 e os movimentos libertários do século 20, até os beats e hippies da revolução sexual dos anos 60, o que ele diz em 1855 – sobre liberdade individual, de expressão, de pensamento, de opção sexual, intolerância e guerra – diz muito também ao atual momento mundial: um mundo de guerras, cerceamento de liberdades individuais, terrorismo global, intolerância religiosa, consumismo, cultura midiática, do self e da superficialidade. Também é uma chave para compreendermos a crise da cultura americana pós-11 de setembro. Seu “grito bárbaro sobre os telhados do mundo” ainda merece ser ouvido, 150 anos depois. • Continente julho 2005

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Corbis

LITERATURA


Divulgação/UFPE

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Meio século de impressão

U

m dos avanços estratégicos alcançados pela Editora Universitária da UFPE é ter adotado, a partir da década de 1990, o sistema digital de publicação por demanda, embora disponha também de um parque gráfico com as formas convencionais e antigas de montagem e impressão. A Editora, conhecida anteriormente por Imprensa Universitária, numa denominação de viés getulista, está completando meio século de atividades, sendo a mais antiga do país no circuito universitário. Sua produção média de publicação é de cerca de um livro por semana, devendose isto ao atendimento de um público que não se restringe apenas ao universitário. E esta prática certamente é responsável pelo fato de ela ter conseguido se manter de pé durante todos esses anos, sem depender exclusivamente de sustentação oficial. No âmbito interno da UFPE, encarrega-se de serviços como impressão de cartazes, convites, folders, revistas de centros e departamentos, boletins oficiais e livros de docentes e pesquisadores. Em termos editoriais, uma comissão com um presidente e nove titulares, guardando uma reserva de nove suplentes, decide o que deve, ou não, ser publicado. A Editora Universitária conta, em seus catálogos remotos e recentes, com nomes como Gilberto Freyre, Osman Lins, Continente julho 2005

Editora da Universidade Federal de Pernambuco aniversaria publicando um livro por semana

José Antonio Gonsalves de Melo e Ariano Suassuna, além de toda a Geração 65 de poetas. Uma das ameaças a qualquer gestão editorial oficial, e que vem atravessando os tempos, mostra-se exatamente como o sistema de distribuição de livros. No caso específico de editoras universitárias, algumas vezes os livros não ultrapassam o próprio campus. No entanto, dentre os órgãos suplementares da UFPE, a editora seria um dos que teriam mais condições de realizar políticas institucionais arrojadas a partir de acordos públicos e privados definidores, locais e internacionais, pelo seu caráter de empresa mista que sugere uma configuração de independência financeira no âmbito administrativo oficial. No seu discurso de posse, em outubro de 2003, o atual reitor da UFPE, professor Amaro Lins enfatizou a necessidade de estruturação da editora universitária “através da cooperação com universidades de língua portuguesa, com a publicação regular de teses e dissertações, definindo claramente uma nova política editorial”. Algo neste sentido já está sendo feito, com a assinatura de um protocolo de cooperação acadêmico-científica entre a UFPE e a Universidade do Porto (Portugal). Além disto, um regime de co-edição com a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) foi definido, com publicações anunciadas para breve. (L.C.M.) •


POESIA O EQUILIBRISTA

ELZA: PAISAGEM DO MAR

Tocávamos clarinete na corda bamba subíamos às altas torres do Egito passeávamos de pára-qquedas no sol sem fim dos dias de fogo subíamos à capota do avião por cima das nuvens recitávamos poemas à lua tocando nela.

Ontem Elza boiava, indiferente, no denso azul de espuma e de cristal. (Ao longe vidro azul, de sol e sal, desciam nimbos de fogo, lentamente.) Submersa, ela era um peixe de rosas, adormecida, bela, transparente. Galhos de sol douravam suavemente a sua carne tranqüila e gloriosa.

Andávamos nos parapeitos dos edifícios de um pé só na balaustrada dos abismos não caíamos dos fios metálicos do circo andando de cabeça para baixo nem do alto da torre Eiffel correndo sonâmbulo.

Que as doces canções de sol e exílio de si mesma, Elza vinha escutar no horizonte sem fim da tarde calma.

Só na vida é que não nos equilibrávamos.

Porém, ao som azul do mar tranqüilo, bela, muito mais bela do que o mar, Elza boiava à tona de sua alma.

Poemas de Francisco Bandeira de Mello DOMINGO

SOL AMARGO III

O longo sono de domingo (a morte) e os pássaros cantando na janela; um vento leve, amavelmente norte, lava o timo das flores amarelas.

Cansado já do mundo, e do mistério, Bandeira se tornou um sol amargo. Depois abandonou-sse a um fiel tédio que minava seus olhos, corpo e alma.

Uma gaiola se esvazia (a morte). À luz da tarde, entre cristais e velas, somente a solidão, calcárea e bela, e o mar, o areal, o cais, a sorte.

Agora ele transporta a cor do nada, vagos cinzentos, no íntimo de sua alma: indiferente ao sol que procurara, Bandeira vai passando já seus dias.

Poças de sol na sombra dos cajus, o coqueiral, morenos braços nus, e o cheiro e a memória dos sargaços,

Esquecido da musa que o alentara, suas múltiplas e gastas geografias; inimigo da verde realidade,

completam a beleza da paisagem. Sono e domingo, uma frugal viagem, após a imensa mesa no terraço.

deitado ou preso em plácido silêncio, Bandeira é um enigma ferido nos rochedos da noite interminável.

Francisco Bandeira de Mello é jornalista, escritor e poeta, membro da Academia Pernambucana de Letras.

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PROSA

AVOANTE Flávia Savary

A

velha separou as meadas de lã vermelha, deitadas feito pássaros feridos, ao lado do tear. Cobriu-as com um lenço branco, bordado com canários, e foi espiar a janela. Chovia. Nem sombra do menino. Nem sombra de nada, aliás – era noite. Passou um café no coador de pano cor-de-terra, voltando ao tear. Olhou com meia-atenção as aves congeladas na cena inacabada do tapete. Faltava um nada para o arremate, mas ela adiava o fim. A casa, sem varanda, vivia cheia de bichos de voar: borboletas empalhadas, gaiolas com coleiro, sabiá, trinca-ferro; postais de aviões pregados na cortiça. Um mundo de arribação preso que nem os fios da urdidura do tapete. E o menino nada de voltar. O filho único, homem de trinta e tais, bigode, barba e um sonho, desde sempre: o que tem por trás das montanhas? A mãe: “Pedras”. Silêncio. Só num

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PROSA

assunto eram iguais – no amor às coisas do ar. Bastava um pouco de decolagem e já lhes caía no agrado. Mesmo a queda do marido, voado dos tantos metros de altura do telhado, não tinha dado cabo desse gosto de ambos. Gente não foi feita pra voar, caiu, quebra mesmo. Só doía a lembrança do pai que, cedo, numa época em que isso era incomum, voou pra outro ninho. A mãe da velha secou de saudade. A velha, moça então, nunca mais soltou pipa. Daí que começou a trançar tudo que fosse fio, amarrando uns nos outros, no controle da história. Viveu de tapetes, fez muitos pra ajudar o marido, que morreu naquele súbito. Ficou só. E um filho. Nada de voltar. O café esfriou. Com cuidado, desatou a lã vermelha pra colocar na gaveta. O calor do café tava todo na lã, como coisa viva. Coisa viva. Viva. Deu um vento na alma da velha, que lembrou do nome: Tamarinda. “Tamarinda tá viva!”, estalou, num nascer de asa, pensamento novo no coração dela. “O menino é um homem, Tamarinda. E é de arribação. Quebra a casca do ovo, deixa ir!” Correu a lã vermelha no tapete, parecendo menina, veloz. Voou. O tapete? Pronto. Lindo, com aquele bando de araras em fuga. Pendia um tanto de fio do lado, sangrando, esperando um nó de estancar. Que ela não deu. Ficou solto. Mudou da sala pro quarto e, de frente pro espelho da penteadeira, viu um sorriso flutuar nos lábios. Pôs um vestido largo, uma música de dançar e foi fazer um bolo bem doce. Quando Rodrigo voltou, era uma semana depois. Veio armado de sisudez e argumento que não precisava mais usar. Ainda sobrara bolo pra dividir, além de postais recém-comprados, fotos e um sabiá novo que ele trouxe de viagem. Ah, filho, desculpe, mas esse eu vou soltar. Os dois se olharam, rindo. O tapete tava no chão. • Flávia Savary é poetisa, escritora e dramaturga, autora dos livros A Arca do Tesouro e Querido Amigo, entre outros.

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AGENDA

40 LIVROS

Bom dia, literatura

Da arte de pensar

Lançada obra relevante para atualizar conhecimentos de teorias literárias Teoria da Literatura “Revisitada”, das professoras Magaly Trindade Gonçalves e Zina C. Bellodi, tem o mérito maior de proporcionar ao leitor menos afeito à linguagem hermética dos textos de teoria literária, uma espécie de “viagem” pelo percurso que, de Platão às mais recentes escolas do Pós-Modernismo, ou a da Estética da Recepção, busca desvendar o enigma da criação literária. Mostra, de forma didática, a distinção entre crítica, história e teoria da literatura e como os estudiosos desta última disciplina têm estabelecido um diálogo permanente com os distintos campos do conhecimento. Analisa, também, como as tentativas de elucidação da natureza da criação estão permanentemente interligadas às questões suscitadas pela função da obra literária. Natureza e função da obra literária emergem, assim, à leitura de Teoria da Literatura “Revisitada”, como os principais elementos motivadores dos estudos no campo da literatura. Teoria da Literatura “Revisitada” sugere uma leitura atenta. Contudo, algumas de suas lacunas merecem reparo, como a ausência de referência às contribuições do teórico russo Mikhail Bakhtin e de um pequeno balanço da teoria literária no Brasil.

Em Mundo Enquadrado, o jornalista e comunicador pernambucano André Resende enfrenta o mal-estar da civilização pós-industrial com a arma da reflexão. Num texto fluido, sem arabescos acadêmicos, mas bem embasado, desfia as angústias deste início do século 21 (o da megalomania, enquanto a histeria teria marcado o 19 e a melancolia, o 20). Embora abarcando um espectro bastante largo – que passa pela economia, a política, a sociologia – o ensaio atém-se especialmente à dimensão cultural, apontando o lugar do simbólico nas coisas reais. Ao constatar havermos chegado à era da imaginação padronizada, Resende não escamoteia os dramas urbanos – a violência, a falta de perspectiva, o consumismo, o vazio e o desespero –, mas enxerga no quadro uma evolução. Se o mito socialista ruiu, o mito da auto-regulação liberal também não tem respostas. Por trás disso, está a mudança das sensibilidades, que provoca uma mudança na maneira de ver o mundo. Pode-se discordar de Resende, mas não se pode negar que neste ensaio ele pratica um notável exercício de reflexão, alertando para a necessidade de um novo pensar para os novos problemas.

Teoria da Literatura “Revisitada”, Magaly Trindade Gonçalves e Zina C. Bellodi, Vozes, 232 páginas, R$ 30,00.

Mundo Enquadrado - O Lugar do Símbolo nas Coisas Reais, André Resende, Editora Altana, 138 páginas, R$ 22,00.

A personagem

Corações silenciados

Exílio e cotidiano

Ailin é jovem, bonita, profissionalmente bem-sucedida e liberada. Enfim, uma pós-mulher, na definição de Arnaldo Jabor. Esse resumo pode ser extraído do conto “Dueto da Mulher em Si”, que termina desta forma: “Fazer o quê, viver errado me atrai”. Em Só os Idiotas São Felizes, Ailin Aleixo revela-se uma escritora em construção. Num estilo bem contemporâneo, ela fez uma estréia literária digna de atenção. O problema é que, nos nove contos, salvo no que dá nome ao volume, só há uma personagem: ela mesma. A autora fica-nos devendo nova obra, para além das facilidades da literatura confessional.

O escritor Urariano Mota acaba de registrar, no romance Os Corações Futuristas, a experiência dos jovens que, nos fins dos anos 60 e início dos anos 70, tentaram implantar a utopia igualitária vis-à-vis à opressão da ditadura em seus anos de chumbo. Definido pelo poeta Alberto Cunha Melo como “um romance assumidamente realista e linear, de linguagem descascada, sem qualquer prurido experimental”, é, ao mesmo tempo, “estranhamente a primeira obra literária de fôlego, escrita em Pernambuco, sobre aquele vergonhoso período”. É um documento cru da devastação de coração e mentes vitimados pela tirania.

Graças a escritores como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rachel de Queiroz, a crônica firmou-se como gênero literário. Se Braga privilegiou a poesia e Sabino o humor, Ferreira Gullar é o cronista do cotidiano, dos lugares e do exílio. Engraçadas, poéticas ou até mesmo absurdas, as crônicas abordam também temas políticos ou polêmicos, sempre com a inteligência e a sensibilidade deste que é um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. O livro faz parte de uma coleção que já editou crônicas de Machado de Assis, Marques Rebelo, Ignácio de Loyola Brandão e Affonso Romano de Sant’Anna, entre outros.

Só os Idiotas São Felizes, Ailin Aleixo, Geração Editorial, 112 páginas, R$ 29,00.

Os Corações Futuristas, Urariano Mota, Bagaço, 276 páginas, R$ 25,00.

Melhores Crônicas, Ferreira Gullar, Global Editora, 256 páginas, R$ 37,00.

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Fertilidade oceânica O poeta gaúcho Fabrício Carpinejar é um desses raros poetas de fertilidade oceânica. É também um poeta cuja voz percorre diversas claves, tons e timbres, sem perder a identidade, que talvez se resuma na sua integral empatia com o mundo. Há em sua poesia uma generosidade transbordante para com todas as coisas do mundo. Seus versos são como os galhos de uma árvore pejada de frutos maduros, perfumando o ar, gotejando seiva e sumo, atraindo os olhos e provocando a vontade de saboreá-los. São imagens de uma tal nitidez que se fixam na nossa mente como gravuras: “Meus olhos são dois cães/ raivosos em sua cintura”. Contrastantemente, às vezes, emergem delicados haicais; “As telhas são aves dormindo./ Acordam com a chuva”. A incisão volta em afirmações imperativas: “Um inferno tem mais/ realidade do que o paraíso”. Os versos podem, também, flagrar, cantando alto, um instante de encantamento: “Os pássaros entram na sala/ sem alarde, desatam/ as janelas e os alarmes”. E podem, ainda, chegar, à meia-voz, a melancólicas conclusões: “Todo susto era um riso./ Com a insistência da morte,/ o medo perde a graça”. Será preciso mais para mostrar o quão diverso e uno é ao mesmo tempo este poeta? (Marco Polo) Como no Céu/Livro de Visitas, Carpinejar, Bertrand Brasil, 224 páginas, R$ 29,00.

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As idéias de Locke Figura fundamental na história do pensamento político liberal e um dos fundadores do empirismo inglês, John Locke (1632-1704) combateu toda a sua vida a teocracia anglicana e, principalmente, duas teses correntes à época: que o poder monárquico é absoluto e de direito divino; e que o poder do rei é tão espiritual como temporal – e tem direito a impor à nação uma crença e uma forma de culto. Neste livro de Aléxis Tadié, professor de Literatura Inglesa na Universidade de Paris 7, a diversificada e profunda obra do filósofo inglês é revisitada e apresentada aos leitores de forma a reavivar o interesse do público não especializado. Segundo Aléxis Tadié, muito ganharíamos se nos ocupássemos novamente com os Tratados Sobre o Governo Civil, com a Carta Sobre a Tolerância e, particularmente, com o Ensaio Sobre o Entendimento Humano, obra que teve (e tem) profunda influência, de Leibniz aos cognitivistas contemporâneos. Locke está sendo lançado pela editora Estação Liberdade, como parte da coleção Figuras do Saber, que já publicou também, recentemente, títulos sobre Hegel e D’Alembert. Locke, Alexis Tadié, Estação Liberdade, 208 páginas, R$ 30,40.

Uma boa idéia

Denúncia de morte

Qualidade variada

Quando uma boa idéia resulta num bom livro, o que nem sempre acontece, o prazer do leitor é duplo. É o que acontece em Questionário, do paulista Cadão Volpato, que pode ser lido como um volume de contos ou um romance fragmentário, uma vez que vários personagens vêm e voltam em diversas narrativas. Respondendo perguntas como “A santa prestou atenção em vocês?”, “Já dormiu num automóvel?” ou “Como era sua miss?”, ele traça perfis coloridos, descrições movimentadas e considerações que surpreendem pela leveza, humor e perspicácia. Quase crônicas, os textos menos narram que apreendem um momento epifânico. Gratificante.

Com o subtítulo Morte e Impunidade nos Rincões do Brasil, este livro do jornalista Klester Cavancanti faz um levantamento da violência rural no Brasil, provando que o extermínio de sindicalistas, trabalhadores rurais, advogados e religiosos, todos ligados a questões sociais e agrárias, continua, infelizmente, como uma realidade tratada com desinteresse pela sociedade ensimesmada em sua própria insegurança, e indiferença pelo poder que teria competência para dirimir a questão. O autor entrevistou acusados, vítimas e testemunhas e analisou mais de três mil páginas de inquéritos policiais e processos judiciais relativos aos casos narrados.

Editada por Ademir Assunção, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes, a revista de literatura e arte Coyote chega ao número 11, mantendo a qualidade que marcou seu surgimento. Entre os destaques, os poemas experimentais de Douglas Diegues; um texto de John Fante, inédito em português; traduções dos poemas em prosa (ou mini-histórias) da poetisa romena, mas integrada à literatura alemã, Aglaja Veteranyi, que se suicidou ainda jovem em 2002; e uma instigante entrevista com o poeta norte-americano Kent Johnson, inventor do poeta japonês Araki Yasusada, testemunha do horror de Hiroshima, e um escândalo literário.

Questionário, Cadão Volpato, Iluminuras, 96 páginas, R$ 25,00.

Viúvas da Terra, Klester Cavalcanti, Planeta, 184 páginas, R$ 32,90.

Coyote, vários autores, Coyote Edições, 52 páginas, R$ 10,00.

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AGENDA

LIVROS


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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Bater palmas também é mecenato? “Amigo de mesa não é de firmeza” Provérbio

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ara o artista pobre, a escravidão do trabalho compulsório só lhe deixa as horas de sono e de cansaço para construir a sua obra. Isto não é um postulado. Certos tipos de artista, como o artesão e o violeiro repentista, por exemplo, realizam sua obra como trabalho voluntário, sobrevivem criando. Muitos, modestamente, como um vaqueiro, outros e poucos, com o padrão de vida, vamos dizer, de um dentista do interior. Todos, no entanto, têm o vago sonho de receber uma herança de parente desconhecido, que não morre nunca, ou de um Mecenas salvador, que parece morar tão longe, como quem mora no passado. Caius Gilnius Mecenas, ou simplesmente Mecenas, personagem histórica e metonímica, sempre foi concebido em minha imaginação como um anjo da guarda dos poetas. Ele próprio autor de obras de poesia e de história natural, o primeiro mais célebre e rico protetor dos poetas pobres, coisa difícil de acontecer nestes tempos em que faz dois mil e treze anos de sua morte (69 – 8 a.C.). Hoje, os artistas de muitas posses deixam morrer à míngua os confrades sem barraco e sem fogão, sob o argumento de que a miséria é um ótimo estímulo e tema para a arte. Esta crônica começou mais velha e quadrada do que as outras, e peço perdão aos meus milhões de leitores, todos rigorosíssimos. Mas a divagação ginasiana é necessária para mostrar que, pelo menos neste hemisfério, é mais fácil encontrar o homem de Cro-Magnon tomando fanta na esquina do que um milionário oferecendo proteção permanente a um pintor, escultor, músico e, por que não? poeta. Mecenas protegeu três grandes poetas: Virgílio, Propércio e Horácio. Não sei o que fez de bom com os dois primeiros, mas consta que deu a Horárcio uma pequena Continente julho 2005

fazenda e uma pensão permanente para viver, com dignidade, escrevendo apenas a sua poesia. Nos seus quatro livros de odes, encontrei sete composições dedicadas e de louvor a Mecenas, e seis a Augusto. Nos Epodos, quatro composições dedicadas a Mecenas. O que não sei é se foram escritas antes ou depois da fazenda. O lavor, a beleza de uma obra que dois milênios consagraram levam a crer que foi a gratidão, um sentimento elevado, e não a bajulação, coisa de cafajeste, e mais o vagar de um artesanato racional pré-cabralino, que deram ao poeta condições psicológicas e materiais para realizá-la. Aquela dúvida minha é pura maledicência, que aprendi aqui, no Recife. Na Grécia do século 6 a.C., “era das trevas” para alguns historiadores, quando o tirano Pisístrates dominava Atenas (o mesmo que ordenou a primeira versão escrita das epopéias de Homero) poetas pobres e famosos da época, como Anacreonte e Simônides, eram convidados como hóspedes do palácio real. Quanto aos demais poetas, cantavam com suas cítaras nas feiras em troca de algumas moedas, como nossos repentistas nos começos. No entanto, não considero mecenato esses gestos do poder, nem sequer a acolhida que deu a baronesa de Duino a Rilke. Esses apoios passageiros não garantem a sobrevivência do artista. Sua presença no palácio eleva a imagem do poderoso, ao invés de resultar em benefício para o hóspede genial. Mecenato verdadeiro, para mim, que faça jus à sua origem histórica, é uma proteção vitalícia proporcionada por um homem muito rico a um poeta, um pintor, um escultor, um músico, um cientista, ou ainda um atleta sem posses. O Mecenas pode criar um fundo de proteção permanente, como fez o filósofo Wittgenstein, com sua fortuna, que seu


MARCO ZERO

gesto não deforma o conceito. Na verdade, o conceito de mecenato foi, aos poucos, adquirindo tal extensão que sua compreensão se esgarça cada vez mais. Financiar um projeto ou uma viagem com estadia não é mecenato. Divulgar a obra do artista também não o é. Mecenato é proteção financeira permanente, vitalícia, o resto é esmola. Os ricos brasileiros são espantosamente ricos, porque temos a segunda maior concentração de renda do mundo, depois de Serra Leoa, e não tenho notícia de um só Mecenas. O que fazem os ricos brasileiros com tanto dinheiro? No ano 2000, depois de dois anos de investigações, a Polícia Federal descobriu que nada menos de R$124 bilhões foram mandados para o exterior, em quatro anos, por cinco mil pessoas envolvidas com lavagem de dinheiro. Aquele valor, nestes últimos quatro anos, deve ter duplicado. O sistema financeiro nacional parece ser uma quadrilha só. Como esperar que desse meio criminoso surja um Mecenas? Desde os tempos de Sarney (85-89) foi criada no Brasil uma Lei de Incentivos Fiscais à Cultura. Bancos, empresas privadas e estatais podem aplicar um percentual de seus impostos devidos em atividades culturais. Com a parte do imposto que deixou de repassar ao go-

verno, pois se trata de dinheiro público, os empresários selecionam os eventos ou atividades culturais que lhes convêm e lhes dão retorno institucional, elevando sua imagem, e a marca de seus produtos. Isso é fazer pose com o dinheiro do povo e de mecenato não tem nada. O que é mais preocupante é o fato de que essas leis de incentivo, nos planos federal, estadual e municipal, deixam à mercê dos gerentes de marketing das empresas o poder de ditar a política cultural do país. Como a característica desse marketing é investir o dinheiro de todos nós nos artistas que consideram de “alta visibilidade” e, portanto, de alto retorno, um mundo de artistas invisíveis e pobres ficam fora dessa política mais mercadológica que cultural. Outra distorção causada pelos incentivos fiscais, segundo a comentarista Cláudia Amorim, é a de condicionar o empresariado “a só patrocinar com verba incentivada.” Se esse negócio é mecenato, eu me chamo pé de quentro. Será que bater palmas também é? Vote! A Lei de incentivo de Portugal se chama Estatuto do Mecenato, e foi aprovada em 1999. O sofrido dinheirinho do povo tem muitos apelidos, mas pouco importa seu nome aos artistas ricos para os quais, agora, é arrecadado. Concentrar é a lei do sistema econômico e do incentivo fiscal, meu irmão. •

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Imagens: Divulgação

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ARTES

O rumor do tempo na obra de Gaetano Pesce Exposição inédita mostra a obra do rebelde designer e arquiteto italiano radicado em Nova York Guilherme Aquino, de Milão

Moloch Lamp


ARTES

Gaetano Pesce, se não fosse uma criatura humana, seria um polímero, um plástico esquecido numa praia qualquer do litoral da Bahia, onde ele tem uma casa de veraneio. Este artista italiano, hoje radicado em Nova York, cresceu com a sua alma criativa sendo disputada por dois deuses: Dionísio, do caos, e Apolo, da harmonia. Quando pôde exercer o seu livre arbítrio e opção de escolha, o designer e arquiteto Gaetano Pesce decidiu não se livrar nem de um e nem do outro. E não seria exagero algum afirmar que ele conseguiu fundir os dois graças às pesquisas de materiais inovativos como a resina e o poliuretano e aos projetos arquitetônicos inusitados responsáveis pela sua elevação ao Olimpo das formas. Daí vem a característica dos duelos explícitos incorporados nas suas obras: o abstratismo e o realismo, o perfeito e o imperfeito, o masculino e o feminino, o sagrado e o profano, a singularidade e a pluralidade, o idêntico e o oposto. Numa sociedade de consumo desenfreado, tudo é pensado, projetado, produzido e construído para ser comprado, usado, exibido e abandonado, fechando um ciclo cruel, determinado pela regência das horas e costumes de uma época. Pesce se rebela, rompe dogmas acadêmicos e derruba tabus institucionais. Ele foi o pioneiro em inocular o conceito de exclusividade até mesmo para um produto de série e estava na vanguarda da defesa da liberdade dos objetos. O Rumor do Tempo é uma exposição inédita das suas obras na Triennale de Milão, um dos principais palcos mundias do design. A mostra tenta desnudar a filosofia e o trabalho existentes no ato de criação deste intrépido artista, de olhar doce, voz arrastada e que se deixa levar na palma da mão do visitante. Sim, Gaetano Pesce em versão virtual, quase holográfica, trasforma-se num cicerone tecnológico e acompanha passo a passo, de dentro de um “palmar eletrônico”, o indivíduo à descoberta do seu mundo distribuído em nove seções. A interação de ambos ocorre no diálogo silencioso entre o observador e o objeto exibido. A admiração de um e o fascínio do outro criam uma espécie de arco voltaíco, construindo a ponte entre o artista e o seu público. As obras de Pesce trazem em si mensagens políticas, sociais, econômicas, estéticas e religiosas. Não por acaso, os curadores da exposição decidiram tematizar a apresentação das peças e dos objetos provenientes dos principais museus e coleções privadas espalhadas pela Europa, além dos Estados Unidos, Canadá, Japão e Brasil. •

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À esquerda, O’Sole Mio Abaixo, Alda Lamp

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ARTES

Rag Armchair

La Smorfia

Séries personalizadas Inconformado com a padronização imposta pela produção industrial destinada ao consumo de massa, o arquiteto italiano questiona a repetição como modelo de alienação. A perda da identidade do indivíduo lhe serve de motor propulsor para resgatar a dignidade e a valoriKim Chair zação do ser humano e dar uma impressão digital única e singular até mesmo aos objetos. A universalização dos códigos de comportamento e a globalização das necessidades aniquilam a heterogenia. A reação parte do movimento de dar a devida importância ao microcosmos de cada ser. Hoje em dia, muitos prédios tem as plantas internas dos apartamentos modificadas e elaboradas de acordo com as premissas do futuro morador. O vizinho do terceiro andar pode querer uma cozinha na sala, enquanto o habitante do quinto não quer saber de paredes na sua moradia. Gaetano Pesce já ia muito mais além quando esta “arquiquetura personalizada” estava ainda na incubadeira: “Hoje, os arranha-céus são repetitivos, cada andar é igual ao outro, ainda que sirvam para realidades muito diferentes. Os indivíduos que vivem nele são diferentes, Continente julho 2005

os escritórios pertencem a empresas diferentes, as famílias tem estórias diversas e pertencem a classes sociais distintas. Então, cada andar deve ser visualmente e internamente único. “As formas democráticas e plurais são a defesa contra a expressão totalitária”, afirma, diante do projeto de uma torre residencial em São Paulo. A mesma solução adotada na arquitetura de Pesce foi moldada na produção de objetos. Para supresa geral, 30 anos atrás o designer dava liberdade total aos empregados de uma fábrica, para personalizar o mecanismo de elaboração de uma determinada peça. “Deixo sempre aberta a possibilidade de uma intervenção do acaso”, explica. As cadeiras da série Nobody’s Perfect são um exemplo de como os operários podem se expressar com desenhos, cores e formas graças a um processo especial de colagem de resina da qual cada peça é feita. A descoberta das qualidades químicas de algumas matérias-primas permite o surgimento de uma impressão digital única do objeto que estava na linha de produção. “A espuma do poliuretano, quando levita, é sensível à pressão atmosférica e ao calor do ambiente, então, se você abre uma porta no local de produção e deixa uma corrente de ar entrar, não tenha dúvida de que as características daquele objeto vão se modificar”, conta Gaetano Pesce, testemunha de um retorno à produção artesanal. •


Fotos: Mariana Camaroti

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Knife Lamp

O figurativismo deve se sobrepor As formas devem acionar o raciocínio, o pensamento. Elas devem estimular as interpretações de um determinado objeto ou de uma construção. A partir desta linha de conduta o designer iniciou um percurso que o levou a criar peças inusitadas e singulares. “Os objetos e a arquitetura, até poucos anos atrás, eram resultado de uma produção em nome da beleza abstrata baseada na repetição infinita de uma mesma geometria, mas agora as coisas neste campo estão mudando”, constata o artista enquanto “conversa” com o visitante da mostra. Ele defende a criatividade como forma legítima de comunicação. Uma porta, simples e retangular, como tantas outras, não seria capaz de enviar nenhuma mensagem sobre o que está atrás dela. O exemplo é singular

pois este ponto de passagem entre o espaço conhecido e aquele ignorado poderia, concretamente, emitir algum tipo de sinal sobre as características do outro lado. Não se trataria de transformá-la num dazibao ou num mural com informações explícitas, mas, sim, imprimir um sinal decodificador que pode ser um rodapé colorido ou uma sobreexposição de uma estrutura assimétrica. Uma porta retangular com uma moldura irregular, “desencaixada” da forma principal, tem o poder de transmitir de alguma maneira a natureza do espaço contido atrás dela. “Por isso me perguntei: por que não projetar uma porta capaz de sugerir o tipo e a função da área por ela delimitada ?”, questionava-se Pesce, até criar um portal à imagem e semelhança de qualquer outro desenho, menos daquele tradicional de uma porta. • Continente julho 2005


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ARTES

Erro é atestado de humanidade A obsessão de perfeição marcou a educação de Gaetano Pesce a ponto dele refutar o conceito da forma ideal. O jovem Pesce cresceu à sombra dos padrões arianos enaltecidos por Hitler na Europa dos anos 30 e 40. Para o artista, o defeito, o erro, a deformação são valorizados enquanto características de um atestado de humanidade. O malfeito remete o criador à condição inerente de ser humano, propício pela própria natureza a ser protagonista de equívocos. Portanto, nada mais intuitivo e pouco racional do que transformar a vulnerabilidade de um “tropeço” em fortaleza e ponto de apoio no processo de criação. “Até economicamente esta linha de pensamento é vantajosa. Assim, uma peça defeituosa não será nunca descartada, mas, sim, vendida, oferecida com o rótulo de original e única, como realmente é”, admite, enquanto declara guerra à idéia da beleza absoluta, universal e monolítica. A coerência deste raciocínio e postura levou Pesce a criar, em 1972, a cadeira Rag Chair, com restos de tecidos recicláveis e borracha. A poltrona é uma das maiores expressões do paradoxalismo que o tema comporta. Ela é

perfeita nas suas imperfeições. O material usado anteriormente para a produção de algo ideal tem os seus restos aproveitados e transformados e “reconduzidos” a uma outra função supreendente. A verdadeira beleza é conseqüência direta da imprevisibilidade dela própria. “O que faço deve ser fruto de uma determinada casualidade. Dou ao material a liberdade possível e pretendo que a matéria me dê surpresa”, diz o “filósofo da matéria”, Gaetano Pesce. A lâmpada Olo, de 2001, deu a volta ao mundo. Ela é um grito de alerta à consciência de cada um, segundo a interpretação do designer italiano. Na verdade, esse abat-jour é um “personagem” que o visita durante as suas estadias e andanças no Brasil. “Um país sem modelos determinantes ou exemplares, mas, sim, resultado de uma miscigenação intensa. Olo é um indivíduo extremamente marginalizado e pertence a uma minoria estigmatizada. Ele é deficiente como todos nós somos, de uma forma ou de outra, e, ao mesmo tempo, nos dá a luz e ilumina uma realidade na qual estamos entrando e que eu a chamo de “o futuro dos monstros”, conta Pesce. •

Olo Lamp


ARTES

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Pesquisa garante a inovação Gaeatano Pesce aposta na descoberta de novos materiais, no aprimoramento de novas técnicas e no desenvolvimento de novas linguagens como condições necessárias para a construção do “novo sincero”. Para ele, o ato de experimentar primeiro lhe dá a certeza de obter um resultado inédito, seja este qual for. “Qualquer coisa que se faça com um material velho, corre o risco de já ter sido feita antes”, sacramenta. Um dos seus primeiros passos foi conhecer a indústria química e sua gama de possibilidades. A resina, o silicone, os elastômeros e uretanos são elementos que tem a mutação como característica principal e por isso mesmo são os principais ingredientes do designer. “Os materiais devem estar em sintonia com o nosso tempo, devem ser elásticos e multiformes, opacos em alguns momentos e transparentes em outros”, afirma o artista. de dentro do palmar eletrônico. Estes conceitos foram levados a ferro e fogo, brisa e mar, na construção da sua casa numa praia no litoral norte

baiano, a uma hora de carro de Salvador. A obra já dura sete anos, por culpa do preciosimo das pesquisas de Pesce e virou atração turística da região. A chamada “casa do gringo” é um templo em homenagem à criatividade. “A arquiquetura como ato de criação é impossível na Europa e nos Estados Unidos, onde existem regras em excesso. No Brasil é como se estivéssemos na Toscana do século 19. É um país que olha para frente, é um novo mundo”, afirma. O terreno fértil da costa viu crescer um bloco com tijolos de borracha na forma de escamas e outro de vidro reciclado. Ainda faltam seis blocos. Todos os espaços vão ser interligados por pontes móveis sobre a água. •

O lado feminino do cérebro Depois de quase cinco mil anos de história é hora do lado feminino da mente do homem se expressar para o bem da humanidade. “A arquiquetura sempre foi rígida, monolítica, repetitiva, enfim, masculina. Já a elasticidade, a sensualidade, o cromatismo, a liberdade, a coexistência de valores e a tolerância são valores femininos”, acredita Gaetano Pesce, enquanto o visitante da mostra circula por objetos desconstruídos, entre eles um vaso com a base distorcida. Para o designer, as emoções e o comportamento privado do ser humano derivam das atividades do lado feminino do cérebro, enquanto que as atitudes públicas são conseqüência do lado masculino. “O totalitarismo é masculino e a democracia é feminina”, dispara. Habitante de Nova York, o arquiteto viveu com apreensão o ataque terrorista de 11 de setembro e logo identificou as Twin Towers como emblemas muito fortes. Imediatamente depois, ele apresentaria um

projeto de duas torres unidas no alto por um edifício de 23 andares na forma de coração, símbolo da cidade. “Imaginavo que nesse prédio deveriam funcionar instituições que discutissem a tolerância, por exemplo. E acho que este grande coração iluminado de noite, lá no alto, teria um efeito muito positivo na vida dos novaiorquinos”, acrescenta o visionário Pesce. • WTC Rebuilding Project

Bahia House, casa do designer Gaetano Pesce no litoral baiano


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ARTES

Golgotha Table

O desiign é uma expressão política e instrumento religioso O trabalho de Gaeatano Pesce é uma continuação do seu pensamento e das suas emoções. Uma vez exibido ao público um objeto, ele adquire um valor político intrínseco ao interagir com o público. Segundo o artista, houve um tempo em que a arquitetura conseguia passar, de uma forma ou de outra, mensagens bem claras e conceitos como a violência, a paz, a surpresa. “Hoje em dia atravessamos uma fase de mutismo”, critica ele. A globalização tenta impor padrões internacionais nos locais mais díspares possíveis, sem respeitar as diferenças e as características próprias de cada lugar”, comenta. O mesmo ocorre com os objetos, vistos e valorizados apenas pela sua função prática, deixando de lado os “sinais” capazes de transmitir visões, mensagens e emoções, quer pela cegueira do consumo desenfreado, quer pela ausência da capacidade do artista de transformar o objeto criado numa espécie de canal de comunicação.”Quando o objeto industrial deixar de ser escravo da funcionalidade, então poderá ser considerado uma arte do futuro, assim o chamado design de um produto fará parte de uma cultura verdadeira”, comenta Pesce, enquanto o visitante circula numa sala iluminada por uma lâmpada-faca enfiada na parede. O famoso sofá Pôr-do-Sol em Nova York, de 1980, é um dos principais símbolos desta corrente de pensamento. O nome original seria Pôr-do-Sol de Nova York, mas a casa produtora do sofá com a reprodução do skyline da cidade optou por uma mensagem mais otimista. Duas décadas depois se verificaria que a preposição original faria toda a diferença. Continente julho 2005

A fronteira entre a blasfêmia e a reverência concreta a um evento sagrado é muito sutil. O cinzeiro Manodidio (1969-70), na forma das mãos de Cristo, com o orifício do prego e o sangue escorrendo na palma da mão de gesso e esmalte e entre os dedos, pode provocar a ira dos católicos efervecentes e ao mesmo tempo despertar num ateu a relação entre as cinzas do cigarro e a morte por um câncer nos pulmões. “Em outras épocas os objetos tinham uma razão de culto e no passado os temas e sujeitos eram do tipo religioso. Hoje a cultura dos objetos pode fazer o mesmo”, conclui Gaetano Pesce. A arte-pop também se aproxima de temas distantes da origem da matéria-prima. A mesa Galghota, em resina, vidro e borracha remete o espectador à cena da Santa Ceia. O sangue borrifado e os tons escuros provocam inquietação e reflexão, ambos sagrados objetivos do autor. •

Manodidio


ARTES

Creativitalia

A ativação de todos os sentidos e a cultura da diferença O predomínio da visão sobre os outros quatro sentidos começa a não ser suficiente para a compreensão do mundo. Gaetano Pesce defende uma interatividade absoluta dos cinco sentidos com a vida que rodeia o homem. “Devemos ouvir uma estrutura arquitetônica enquanto estamos dentro dela, devemos tocar uma parede que seja elástica como o corpo humano”, teoriza e coloca em prática o arquiteto visionário. O muro de borracha da casa baiana de alguma forma se “impermeabilizou” com o perfume de junípero, muito comum no local. O resultado foi que, em determinada época do ano, as abelhas cobrem as paredes atraídas pelo cheiro ou pelo sabor da planta. “Agora é como se o muro fosse disponível para ser

tocado, cheirado e comido, pelo menos pelas abelhas”, conta Pesce, surpreso com a resposta da natureza à sua intervenção. A presença do tempo na vida do homem é indiscutível. Mas levando-se em conta que um momento nunca pode se repetir, seria justo pensar que uma hora de amanhã não pode existir à mesma hora de depois de amanhã. A natureza do tempo é irrepetível. “Assim, até o tempo nos ensina a importância da cultura da diferença”, analisa Gaetano Pesce. O seu relógio é uma lâmpada de metal a anos-luz da concepção tradicional do tempo relativo de todos nós. Ele não corre em círculos, mas, sim, na posição horizontal, pois a idéia da repetição é inadmissível. • Continente julho 2005

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Imagens: Rômulo Fialdini/Divulgação/CCBB

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omento Elipsoidal, Suíça, 1967 - 1970, alumínio Polivolume: Mo anodizado, 200x40x10cm

Polivolume: Côncavo - Convexo, Suíça, 1948 - 1967, alumínio anodizado, 200x36cm

Mary Vieira: Idéia e Forma Para a artista mineira, a arte é essencialmente idéia, coisa espiritual, acima das contingências

E

ntre os artistas concretos brasileiros Mary Vieira ocupa uma posição muito especial, não apenas pela qualidade de sua obra como também por sua trajetória, que muito mais tem a ver com o grupo suíço Alianz de artistas concretos do que os concretistas brasileiros, sejam os do Rio, sejam os de São Paulo. Sua carreira, neste particular, aproxima-se da de Almir Mavignier que, como ela, foi muito cedo para a Europa, atraído pelas idéias e obras de Max Bill, líder dos concretistas de Ulm. Mas, no que se refere a Mary Vieira, há mais um traço a ser apontado: é a precocidade de suas experiências neste campo, uma vez que já em 1948 realizava um escultura cinética (formas eletrorotatórias) movida à eletricidade. Em 1951, na I Bienal de São Paulo, tomou contato maior com as obras dos suíços e mais particularmente com a de Max Bill, decidindo-se por transferir-se para Ulm. A exposição de um conjunto de trabalhos da artista no Centro Cultural do Banco do Brasil, embora com um número reduzido de obras, permite uma visão de conjunto de sua experiência artística. Estão reunidos na mostra trabalhos dos anos iniciais da década de 1950 – quando se mudou para Ulm – e vários outros dos períodos subseqüentes , sendo os últimos do final da década de 60, começos de 70.

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TRADUZIR-SE

Na fase inicial, a influência de Max Bill sobre Mary Vieira é bem evidente, a ponto de alguns trabalhos dela se confundirem com os do escultor suíço. Mas isto não significa que a artista brasileira o copiava e, sim, que se identificou de tal modo com sua visão estética que as referidas obras, ainda que de concepção pessoal dela, poderiam ser assinadas por ele, tanto mais pela qualidade que apresentam. Este fato se deve também à concepção de arte concreta de Max Bill, cujos elementos básicos de realização foram assimilados pela escultora mineira. Estão neste caso as obras da série Equilíbrio, construídas em fios de aço inoxidável, de apurado acabamento técnico, o que certamente acrescenta a qualidade estética num tipo de trabalho em que tal acabamento é decisivo. Neste caso, a técnica serve como divisor de águas, e este é um dos aspectos que fazem de Mary Vieira uma escultora mais suíça que brasileira. Semelhante afirmação não tem tanto peso, quando se trata de uma artista com as características de Mary Vieira, para quem a questão da nacionalidade não tinha qualquer importância no plano estético. Isto, ela o afirma no vídeo exibido na mostra e, a meu ver, em perfeita coerência com a natureza mesma de sua arte, despojada de todo e qualquer elemento de caráter pessoal, subjetivo, regional ou nacional. A propósito de uma pergunta que lhe é feita, responde que, para ela, a arte é essencialmente idéia, coisa espiritual, acima das contingências. Voltando à obra a que me referi, gostaria de observar que, embora numa primeira visada ela se mostre rica de combinações formais, o exame mais detido revelará que se trata da montagem de um elemento único – um semicírculo – combinado em tamanhos diferentes. O extraordinário da obra consiste precisamente na riqueza de relações espaciais e rítmicas conseguidas pela artista com apenas a combinação de um elemento tão simples. Aliás, devemos assinalar que a maioria das obras de Mary Vieira são realizadas com base nesse procedimento que poderíamos chamar de análise combinatória, às vezes com maior complexidade, às vezes com menor complexidade, dependendo da idéia primeira que move a escultora. A obra intitulada Coluna Centripetal, também realizada a partir do mesmo elemento não provoca igual sensação de riqueza rítmica, mesmo porque se trata de colunas encaixadas umas nas outras, de modo que a repetição dos elementos idênticos só se percebe ao observar o topo das colunas; aí, então, se vê que as colunas têm forma semicircular e esta percepção é, de certo modo, uma espécie de decifração da obra. Noutras palavras, a descoberta de que a estrutura total deriva de um mesmo elemento simples é parte do prazer estético que a autora deseja provocar; um prazer puramente intelectual, decorrente da racionalidade da construção. Como se vê, estamos muito distante de qualquer intenção emocional ou existencial. Se aquela é uma obra bastante maxibiliana, o mesmo não se pode dizer da que se intitula Tempos de um Movimento: Luz-Espaço (1952-1955), composta de duas placas de alumínio anodizado com incisões de semicírculos, por onde vaza a luz natural refletida de um painel branco colocado atrás das placas. O resultado excelente de novo nos surpreende pelo resultado obtido com recursos tão reduzidos. Esta é, aliás, uma das virtudes de Mary Vieira: obter o máximo de resultados com o mínimo de meios. Algumas das obras mais interessantes da exposição são os Polivolumes Manuseáveis, constituídos de centenas de placas oblongas de alumínio anodizado, presas por um eixo invisível que as sustenta de alto a baixo, permitindo ao visitante moldar a forma desses polivolumes como se fossem feitos de massa fresca. Mas a obra-prima ali exposta é, a meu ver, o Desenvolvimento do Quadrado ao Cubo, em que Mary Vieira consegue, com economia e rara inspiração, transformar uma placa quadrada num cubo virtual de grande beleza ótico-plástica. •

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Disque plastique noir, alumínio anodizado preto, 36x34x17cm

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AGENDA

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ARTES

A permanência da pintura

Tubos, em metal e barro

A repetição da forma A partir da fragilidade da argila e do barro, José Paulo apresenta uma obra densa e carregada de simbolismos no MAC de Niterói Materializada nos contornos físicos, ou presente de forma metafórica, a reflexão sobre o aspecto padronizado da sociedade contemporânea é destaque na exposição José Paulo – Repetir, Repetir, Repetir. Carimbando o comando de replicação em 600 tijolos de barro cozido, o autor estrutura a obra que intitula a mostra, ao mesmo tempo em que questiona os limites da ética. Os 11 trabalhos, entre instalações, objetos e esculturas, reunidos no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, expressam – no despojamento das formas – consistentes significados existenciais, mesmo que, à primeira vista, os trabalhos aparentem não ter nenhum referente no mundo visual ou tátil.Além do barro, o artista explora o ferro e a cerâmica e, no MAC, vão estar presentes também peças em aço inox, madeira e couro. No Recife, uma pequena mostra do trabalho do artista, da exposição Quimera (2003), pode ser vista na Galeria Amparo 60.

Num tempo em que qualquer expressão artística é classificada como obra de arte, o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – Mamam – abriga três exposições individuais e simultâneas que são testemunhos – distintos, mas igualmente maduros – da vitalidade e da permanência da pintura contemporânea. Daniel Senise apresenta uma série inédita de oito pinturas; o alagoano Delson Uchoa, uma seleção de 10 pinturas feitas na última década; e o pernambucano Eudes Mota mostra oito pinturas e um trabalho tridimensional feitos especialmente para a ocasião. Este mês, o Mamam lançará os três catálogos das exposições, incluindo imagens das obras expostas e textos críticos de Moacir dos Anjos, diretor do Museu e curador da mostra. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Mamam (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife - PE). Até 31 de julho. Informações: www.mamam.art.br

Pós-humano José Paulo – Repetir, Repetir, Repetir. MAC – Museu de Arte Contemporânea de Niterói (Mirante da Boa Viagem, s/n Niterói, RJ Fone: 21.2620.2400 / 2286.7926). Até 28/08. Continente julho 2005

Como os artistas urbanos representam, apresentam e simulam o corpo humano, seus pensamentos, ações, sensibilidade, ambiente em que vive e as relações entre razão e emoção, objetividade e subjetividade? A exposição Humano Pós-Humano pretende mostrar como as revoluções e os novos paradigmas ético-estéticos nos campos da biologia, da informática, da robótica, da filosofia e da arte se refletem no imaginário do artista.

Humano Pós-humano. Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília. De 11 de julho a 18 de setembro. Informações: www.bb.com.br/cultura


Ilustração: Walter Vasconcelos

Falar difícil é fácil

Há gente que gosta de falar difícil. Alguns por sua cultura bacharelesca e outros pela vivência científica das suas profissões Duda Guenes, de Lisboa Continente julho 2005


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REGISTRO

H

á um soneto famoso, na literatura brasileira, de autoria de um desconhecido poeta, Luiz Lisboa, cujo nome não figura nos compêndios didáticos nem consta nas enciclopédias. O poema tem passado de mão em mão e preservado do esquecimento pelo inusitado dos seus versos. Conheço duas versões e três títulos diferentes: 1ª - “A uma deuza” (sic) - Luiz Lisboa “Tu és o quelso do pental ganírio/Saltando as rimpas do fermim calério,/Carpindo as taipas do furor salírio/Nos rúbios calos do pijom sidério.//És a bartólia do bocal empírio/Que ruge e passa no festim sitério,/Em ticoteios de partano estírio,/Rompendo as gambias do hortomogenério.//Teus lindos olhos tem barlacantes/São camencúrias que carquejam lantes/Nas duras pélias do pegal balônio.//São carmentórios de um carce metálio,/De lúrias peles em que pulsa obálio/Em vertimbáceas do pental perônio.” 2ª - “Soneto Bestialógico” de Luiz Lisboa

“Tu és o quelso do pental ganírio/Saltando as rimpas do fermim calério,/Carpido as taipas do furur salírio/Nos rúbios calos do pijón sidério.//És o bartólio no bocal empíreo/Que ruge e passa no festão sitério/Em ticoteio no partano estírio/Rompendo as gambas do hartomogenério//Teus belos olhos, que têm barlacantes,/São camensúrias que carquejam lantes/Nas duras péleas do pegal balônio;//São carmentórios de um carcê metálico/De lúrias peles, em que buza o bálico/Em vertimbáceas do cental perônio”. O terceiro título é “Soneto a uma virgem”. Paparreta de chafranafra – Em 1968, o jornal Diário de Notícias do Rio de Janeiro publicou uma carta-aberta que o Diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais (acho que se chamava Lopes Rodrigues ou Lopes Gonçalves, por aí.) endereçou ao escritor Gustavo Corção, na qual, entre outros mimos, chamava-o de “Doidarraz escanifrado e mau, moralão cloacino dos estultilóquios regeneradores que a canina facúndia de Quintiliano compele no sadismo incoercível dos maldizentes procelosos, ao duelo hipocondríaco da luta com os moinhos da sua alucinada quiContinente julho 2005


REGISTRO

xotesca nosocomial dematóide do regicídio inconsciente e de esquizopata da agressão bebefrênica...” e por aí vai. Eu acho que nesse artigo o remetente não estava a elogiar o escritor, penso eu. Petição escalafobética – Isso aí é que é falar difícil. O advogado Edson Canaã, inconformado com a decisão do II Tribunal do Júri do antigo Estado da Guanabara (o fato ocorreu em 1973), que condenou o seu cliente Hélio Marques da Silva por homicídio culposo, recorreu da sentença num arrazoado (para mim) caótico. Dizia: “O jurado mais inhenho, mais tataranha, mais tatibitate sabe que essa asserção é apodíctica. O ametódico, o arrispidado, o baguari, o beldroegas, o borboró, o bordalengo, o calongo, o farromeiro, o farroqueiro, o tuxuana sabem que a transparência, a limpidez da verdade só aparecem em juízo, pois a busca policial é recoberta de improficiência”. E por aí vai. Defendendo o uso da legítima defesa pelo cliente, diz o causídico mais adiante que a vítima, Sesino Mendonça, agredira o réu e “era camumbembe, safineiro, fameeiro, achinfrinado, gajo e melro”, de fama notória na praça. Quanto a Anísia Ribeiro Leite, contra quem o réu também teria disparado sua arma, o advogado a classifica de “xixilada, zoina, zarelha, zabaneira, arruandeira, que vivia sempre a zaranza, em zaragara, turubamba e zanguizarra”. E, fulminou com a acusação: “Vegetava em tereterê”. Acrescentou que seu cliente caiu em “lúgubre taciturnidade” até a injusta condenação de um júri que se baseou “no intáctil, no intangível, no impalpável”, o advogado declara que a decisão está produzindo no mesmo “um fartum enjoativo, provocando anorexia ao próprio anhangá”. E acrescenta: “Esse absono e um brático resultado condenatório não poderá perdurar. Por isso mesmo o ora apelante vem pedir fautoria aos adamantinos desembargadores”. No preâmbulo de sua “veemente verrina”, o advogado a definiu como uma “petição escalafobética”. Concordo. Falando difícil – Tramita na 36ª Vara Cível do Rio uma ação de cobrança de dívida que chama a atenção pela extravagância de termos. O autor clama por “abestegados caminhos que não lograrão medrança”, argumenta “despiciendo dizer-se a V. Exa., nobre e culto aguazil de escol, que consoante fulcrado no artigo 259...”. Termina pedindo medida urgente, “por fás ou por nefas”. Entendeu? • Continente julho 2005

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Imagens:Reprodução

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CINEMA

O dragão do capitalismo contra o cineasta guerreiro

Nos últimos momentos, Glauber “partia” para a máquina de escrever como quem vai para uma guerra


CINEMA

Jornalista narra os últimos meses de vida de Glauber Rocha, o mais polêmico e original cineasta brasileiro Antonio Junior, de Sintra (Portugal)

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e todos os cineastas brasileiros surgidos no Cinema Novo – Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Roberto Santos –, possivelmente o mais influente foi o baiano Glauber de Andrade Rocha (1939-1981), especialmente depois da aparição do seu segundo filme, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964 – remasterizado e lançado em DVD no fim de 2004). Glauber eclipsou todos com sua rutilante celebridade, poesia agreste e personalidade contraditória, revolucionária e apaixonada, ganhando visibilidade internacional com sua aura desordenada e trágica, e abrindo, mais recentemente, caminho a novos realizadores do cinema brasileiro, como Walter Salles (Abril Despedaçado), Fernando Meirelles (Cidade de Deus). Em poucos anos, filma vários curtas, publica livros, viaja por inúmeros países e realiza duas obras fundamentais, Terra em Transe (1967 - relançado este ano em cópia restaurada) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), apresentadas no Festival de Cannes, recebendo com a segunda o prêmio de melhor diretor. Foi o seu auge, e parecia ter o mundo aos seus pés. Na década seguinte, entretanto, sua estrela decaiu como conseqüência da emergência e triunfo do cinema comercial.

A loucura como lucidez (Parte 1) Aos que nunca viram nada de Glauber Rocha há que adverti-los duas coisas: por uma parte, que ninguém pode aspirar a compreender o cinema brasileiro, se não viu duas ou três obras deste cineasta extraordinário, injustamente etiquetado de “difícil”, “incompreensível”. E, por outro lado, que talvez seja um dos últimos expoentes de uma maneira de filmar personalíssima, irreverente, quiçá “difícil” – note a contradição –, chama esta ainda encontrada em um Jean-Luc Godard ou um Raoul Ruiz. “O problema do espectador na obra de arte é um problema que eu não considero, digo-lhe isto com a maior sinceridade. Porque eu acredito que a obra de arte é um produto da loucura, no sentido em que fala o Fernando Pessoa, que fala o Erasmo, quer dizer, a loucura como a lucidez, a libertação do inconsciente. É por isso que eu não me considero um cineasta profissional, porque se fosse teria que atuar segundo o ritual da indústria cinematográfica. Considero-me um amador, como o Buñuel, alguém que ama o cinema”, declarou pouco antes de morrer, num dos seus arroubos verbais de poderosa vitalidade.

Desenho de Glauber: filmes no papel

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CINEMA A estética do caos

Imagens:Reprodução

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A personalidade particularmente dotada de Glauber para perceber o cinema – ou seja, o próprio mundo –, em toda sua complexidade, se diluiu numa estética alarmante e desconcertante. Radicalizou a idéia de narrar o caos, sustentando que só o caótico sustenta a obra de arte, em um efeito artístico ambíguo que reflete esse mesmo caos iluminado ao fim por uma poética misteriosa, quase redentora. Exilado voluntariamente do Brasil, filma na África (O Leão de 7 Cabeças, 1969), Espanha (Cabezas Cortadas, 1970), Cuba (História do Brasil, 1972) e Itália (Claro, 1975). Ele que havia bebido em fontes diversas (Eisenstein, Bergman, Fellini, Visconti) para compor sua lógica, tentando decifrar o Brasil ao filmar o seu avesso, mergulhava de cabeça numa utopia cinematográfica estranha e marcada por contradições, ideológica, política, espiritual e mitológica. “Criticar – teorizar – praticar um cinema revolucionário, histórico – dialético e poético (o homem livre de seus fantasmas burgueses) é a única saída”, escreveu em 1975.

A queda

Os primeiros anos de Glauber

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Recusando uma carreira internacional convencional, passa por graves dificuldades financeiras, é ridicularizado no Brasil por seus próprios colegas, escreve para o irreverente semanário O Pasquim – num idioma particular com y e k no lugar de i e c – e para vários outros jornais, provocando polêmicas e reações furiosas. Em 1979, no programa Abertura, da TV Tupi, na época a mais popular do Brasil, faz entrevistas com grande repercussão. Torna-se uma espécie de profeta, de intelectual que perdeu a razão e, mesquinhamente, contam-se casos reais dele caminhando na praia de Ipanema, enrolado num cobertor como mendigo, falando sozinho; conversando com as paredes do hotel, em Santiago do Chile, com um microfone na mão: “Aqui é Glauber Rocha, eu sei que a CIA está gravando, e a KGB também”; das brigas irreconciliáveis com diversos amigos.

Em 1979, num último esforço para sair das trevas, vende seu único bem, uma casa, para filmar A Idade da Terra em Salvador, Brasília e Rio de Janeiro, com um elenco de estrelas (Norma Bengell, Tarcísio Meira, Antônio Pitanga, Danuza Leão). Quebrando com o cinema teatral e ficcional, numa desintregação da sequência narrativa sem a perda do discurso, o filme é um fracasso de público e é vaiado no Festival de Veneza. Glauber, alucinado, magoado, faz passeata, ofende o júri, ataca de reacionário ao vencedor, o francês Eric Rohmer, prometendo nunca mais voltar ao seu país e sempre defendendo a sua obra: “Busco um outro cinema. Um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, antiliterário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido”. No final de 1980, o maior cineasta brasileiro do século 20, se encontra em Roma, hospedando-se com Luchino Visconti, e por fim, Paris, acompanhando uma retrospectiva de seus filmes. Sua câmara havia revelado a essência de um país, fugindo da beleza defunta tipo cartão-postal, e pousando na loucura e no desespero, na crueza e nas mazelas sociais. Mesmo assim, aos 41 anos, tinha todas as portas fechadas e vivia numa terrível penúria econômica. Havia visitado Portugal pela primeira vez em 1962. Tentando colocar a cabeça em ordem, resolve viver em Sintra, “o lugar mais bonito do mundo”, como dizia. Leva a esposa colombiana, Paula Gaitán, fotógrafa e atriz, e os dois filhos de menos de dois anos de idade, Ava Patria Yndia Yracema Gaitán Rocha e Erik Arouak. Define-se como sebastianista e apocalíptico, e é recebido de braços abertos por dois cineastas, Manuel Carvalheiro e José Fonseca e Costa. É um homem amargurado, decepcionado, com problemas políticos e saúde frágil. Sentia-se cansado, doente, visitara médicos em Paris, porém os mais íntimos conheciam a antiga mania de doença do diretor, e nunca levaram a sério sua hipocondria.


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Desenhos nervosos como a câmera, figura manchada que quase recupera a espontaneidade de criança

Vivendo em Sintra Em Sintra desde 1973, num grande casarão acostumado a hospedar intelectuais e artistas de todo o mundo, o engenheiro de som português Carlos Pinto (São Pedro do Estoril, 1950) recebe um telefonema do cineasta brasileiro, pedindo o seu apoio, “talvez pudesse ficar em sua casa por uns tempos”. “Venha quando quiser”, responde Pinto. Profissional dos mais requisitados, com currículo admirável, Carlos Pinto trabalhava basicamente no cinema francês, filmando muito fora de casa, e ainda não conhecia pessoalmente o autor de Barravento (1960). Na época da chegada de Glauber, em janeiro de 1981, filma na África, Música em Moçambique, de Fonseca e Costa. Terminadas as filmagens, encontra Glauber hospedado no Hotel Central, ocupando todo o primeiro andar de um hotel praticamente vazio. Sua esposa, Paula, de família burguesa, não admitia viver numa casa com estranhos, e o casarão de Pinto, além do próprio, era bastante concorrido, habitado por um psicólogo e uma suiça professora de línguas. Só que a família Rocha não tinha condições financeiras para viver num hotel. A solução foi procurar uma casa para alugar. E encontraram a antiga residência de Ferreira de Castro, ao lado da casa de Pinto, e também um dos escritores favoritos de Glauber, que lera boa parte de sua obra e havia feito

um documentário em 1974, desaparecido. “Aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro. As coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira-mar plantado, vendo todos os dias naves partindo na construção do IV Império de Sebastião Ressuscitado...”, anotou no seu diário em 26 de abril de 1981. Eles viveram nesta casa durante três meses, depois mudaram para a Estalagem dos Lobos, perto de Montserrate, e terminaram na própria casa de Carlos Pinto, então já um dos melhores amigos e principal confidente de Glauber Rocha.

Reduto de artistas (Parte II) Quando este espírito independente, conhecido em todo o mundo por sua intransigência e temperamento apaixonado, chegou no Monte da Lua, era um inverno muito rigoroso. As névoas cobriam as ruelas, as montanhas e os jardins; chovia quase sempre. Sintra era conhecido como um reduto de artistas, de pensadores. Era muito mais forte a marca da passagem de Lord Byron, Hans Christian Anderson e William Beckford, entre outros. Importantes escritores, pintores, escultores, atores, músicos, pensadores ou jornalistas passavam por lá, perContinente julho 2005


A viúva Paula Gaitán (em foto de 1999): admiração e conflitos

manecendo longas temporadas. Neste mesmo inverno, Wim Wenders rodou parte de O Estado das Coisas na Praia Grande, e o chileno Raoul Rouiz e o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, um inimigo de Glauber, também filmavam nas redondezas. Glauber Rocha, sempre reservado, longe do mundo mundano do jet-set, finalizava Revolução do Cinema Novo, uma antologia de textos críticos produzidos entre 1958 e 1980, que seria publicado poucos dias antes de sua morte, e escrevia o roteiro para um próximo filme, O Império de Napoleão, planejado para um elenco encabeçado por Jack Nicholson e Jane Fonda, e que já tinha confirmado o nome do gênio Orson Welles, que não receberia cachê, apenas pedia hospedagem confortável e garrafas de uísque.

Crises A depressão também era uma constante no seu cotidiano. “Vim para morrer em Portugal”, disse a Pinto. O amigo procurou animá-lo, confortá-lo, ele era jovem, talentoso, as coisas iriam melhorar. “É o meu coração. Não está bem”, confessou. Preocupava-se com os problemas financeiros permanentes, com a política e o cinema brasileiros, não conseguia esquecer a morte trágica da irmã, a fabulosa atriz Anecy Rocha (A Lira do Delírio), que caíra no poço de um elevador em 1977; sentia-se incompreendido e não aceitava a proibição, pela própria família do retratado, do curta-metragem Di Cavalcanti (1976), premiado em Cannes. Também tinha saudades da mãe, Lúcia Mendes de Andrade Rocha, escrevendo sempre para ela, numa ligação profunda. O casamento também ia mal das pernas. A simpática Paula, uma loura de grande cabeleira, sofisticada e inteligente, muito mais jovem que ele, desejava voltar para o Brasil, e mesmo admirando o marido, não entendia seus enigmas. Bela e mimada, não Continente julho 2005

Imagens: Reprodução

CINEMA Leonardo Aversa/O Globo

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Storyboard de América Nuestra, filme escrito em 1965 e que ficou no papel

se situava completamente na pele de mãe de família, e ainda mais passando dificuldades. Recebia ajuda dos pais ricos, não acreditava numa suposta enfermidade do companheiro e vivia implicando para que ele superasse suas angústias. Uma crise conjugal educada e silenciosa, ficando visível que algo não funcionava muito bem.

O incêndio da Cinemateca Portuguesa A imprensa deu intensa cobertura à temporada de Glauber Rocha em Sintra, com fartas manchetes e longas entrevistas comuns a uma celebridade respeitada. O cineasta, em eterna preocupação com a preservação das cópias de seus filmes, ficou entusiasmado com o ciclo dos seus filmes anunciado pela Cinemateca Portuguesa, em abril de 1981. O catálogo foi editado, a mídia deu bastante destaque à mostra, e na primeira semana de exibição, durante a projeção de um filme do belga René Aiollo, a sala de projeções pegou fogo, destruindo totalmente toda a obra de Glauber. Alucinado, viu como um sinal do fim; foi um golpe mortal. A queda foi instantânea. “A doença, a precariedade financeira e as incertezas me levam a pensar que vivo em Portugal meu segundo e último exílio. Foi o preço que paguei no Brasil pela liberdade artística”, disse. Em julho, Carlos Pinto filmava sob a direção de António Reis, em Trás-os-Montes, e, ao voltar, encontrou o amigo internado no Hospital de Sintra. Esteve três dias sendo tratado, suspeitavam de uma doença broncopulmonar, talvez uma tuberculose. Pinto se assustou com a sua figura esverdeada e abatida, olhos amarelados, e, ao apertar a sua mão, ouviu dele: “Estou com uma angústia”. Transferido para o Hospital da CUF, em Lisboa, melhorou a olhos vistos. Lúcido, brincalhão, recebendo visitas, lendo jornais e vendo televisão, criticando as autoridades e políticos que


Cena de Terra em Transe

CINEMA

As causas da morte ainda hoje são nebulosas, fala-se inclusive de Aids. O mais provável é que foi contaminado ao fazer biópsia com equipamento não esterilizado

apareciam: “Esses engravatados não me deixam em paz”. Ainda acamado, recebeu os primeiros exemplares de Revolução do Cinema Novo, o que o deixou muito contente. Parecia estar bem, como se tudo não passasse de uma elaborada encenação para ajudá-lo a renascer dos mortos. Paula Gaitán havia mudado com os filhos para o Hotel Tivoli, tirava fotos polaroid do companheiro e seus amigos, circulava por Lisboa com o cantor Fagner, e não parecia ter consciência da gravidade da enfermidade de Glauber. Ele próprio não sabia qual era o seu mal. Os médicos não entravam num acordo, contraditórios. Havia rumores não confirmados de um câncer. Carlos Pinto o visitava todos os dias. “Era um personagem adorável, e a nossa ligação muito profunda”, recorda. Na dia 20 de agosto, após uma série de exames rigorosos, Glauber disse que não gostaria de ficar sozinho naquela noite, pediu que Paula lhe fizesse companhia. Ela negou, não podia deixar os filhos sozinhos no hotel. “Então você fica, Pinto. E a Paula vai”, decidiu. O amigo disse que poderia ficar, sem problemas, mas as enfermeiras não permitiram, pois o horário de visitas era rigoroso, restrito. Glauber estava bem, radiante, conversador como nos seus melhores dias, porém havia algo estranho no ar, uma energia muito forte que tomava todo o quarto. Na mesma noite, sozinho, ele entrou em coma.

Morte nebulosa No dia seguinte foi levado para o Brasil. Carlos Pinto e José Fonseca e Costa acompanharam o parceiro até o aeroporto, dentro da ambulância. O estado era

crítico, Paula estava muito nervosa, e Glauber, mesmo todo entubado, tinha bom aspecto. Ficaram algum tempo à espera do avião. Então Glauber falou, algo incompreensível, sussurrante. O que ele queria dizer? Qual seria a sua mensagem final? Será que não desejava morrer no Brasil? No dia 22 de agosto de 1981, o gênio incompreendido, que lia Nietzsche e Schopenhauer aos 13 anos, morre, e é velado no Parque Lage, no Rio de Janeiro, cenário de Terra em Transe, em meio à grande comoção e exaltação. Poucos dias após partir para a Eternidade, seus filmes estariam sendo exibidos em mostras retrospectivas em vários países: Inglaterra (National Film Institute), Estados Unidos (American Film Institute) e França (Instituit Nacional d'Études Cinematographiques). As causas da morte ainda hoje são nebulosas, fala-se inclusive de Aids. O mais provável é que foi contaminado ao fazer biópsia com equipamento não esterilizado. Segundo D. Lúcia, “Meu filho era famosíssimo e paupérrimo. Não morreu da vontade de Deus, morreu de uma doença chamada Brasil”. Já Glauber dizia: “Prefiro ser um cadáver a um desses mortos-vivos que andam por aí”. Tinha 42 anos, ele que desde adolescente dizia que morreria aos 42 anos, o inverso de 24, idade em que morreu o poeta Castro Alves, que fazia aniversário no mesmo dia e um dos seus favoritos. Foi-se, carregado por sua mensagem exuberante, valente e lúcida. Se continuasse filmando, possivelmente ainda estaria vivo. A arte seria sua cura. Mas não deixaram. Incomodava demais aos medíocres. • Continente julho 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Claus Meyer/Tyba

O arroz

“Até nas ruas, dizem as tradições, se vendia arroz-doce no Recife em grandes pratos da Índia ou da China” Gilberto Freyre (Açúcar)

S

ilvana Mangano, atriz italiana dos anos 50, passou quase o filme todo com os pés nas águas de uma plantação de arroz. A serviço de patrões insensíveis – como insensíveis eram quase todos os patrões de quase todos os filmes italianos dos anos 50. Acabou morrendo, coitada. E não de alguma doença ribeirinha. Mas de amor. Jogando-se do alto de uma torre, desesperada pela morte do grande Vittorio Gassman. Esse filme era Arroz Amargo, de Giuseppe de Santis. Um dos muitos produzidos pela Cinecittá, depois da Segunda Guerra. E o rio em que estava aquele arrozal era o Pó, que corta a Itália de um lado ao outro, entre cidades e sabores – Parma e seus queijos; Bologna e seus molhos; Ferrara e seu Cappeletti de Abóbora; Cremona, terra de Antonio Stradivarius, e seu Risotto in Festa. Próximo ao Pó fica o Rio Sesia; de onde, à beira de Vercelli,

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o laboratório de La Sapise conseguiu realizar cruzamento genético que resultou em um arroz preto – o rizo venere, muitíssimo mais saboroso que aquele colhido pela bela Mangano. Mas a história do arroz não começa na Itália. Vem de bem antes. Na China, 5.000 anos atrás, era alimento e símbolo de fertilidade. Na Índia, acreditava-se que os arrozais tinham alma – razão por que desde então, e até hoje, é comum ver pequenos templos em meio às plantações. Nas águas que escorrem do Himalaia, desde muito tempo, se cultiva o Basmati – um arroz com aroma de sândalo, consumido só 7 anos depois de colhido, hoje considerado pelos grandes chefes o melhor do mundo. No séc. 4 a.C., Alexandre (o Grande) traz esse arroz, do Oriente, para Grécia e Roma – onde, no começo, foi usado apenas para preparar infusões medicinais e cosméticos.


SABORES PERNAMBUCANOS

O filósofo Teosfrato e também Plínio (o Velho), por exemplo, recomendavam água de arroz para combater os males do intestino. Mas o cultivo do arroz no Ocidente verdadeiramente se deve aos árabes. Primeiro na Espanha – plantado nos campos alagados de Sevilha. Depois Portugal – ao sul do Tejo. No mundo árabe era ar-ruzz (ainda hoje é assim pronunciado, ao sul de Portugal). A própria raiz da palavra, embora indiana em sua origem, é a mesma para quase todos os países. Nem sempre teve o prestígio que tem hoje. Na Idade Média, como era cultivado em terras úmidas, e sendo as pestes disseminadas em águas contaminadas, chegou a ser considerado alimento maldito. Aos poucos, tudo começou a mudar. Embora essa evolução tenha sido diferente, dependendo de cada lugar. Na Itália, por exemplo, o famoso mestre de cozinha Martinho usava uma receita de arroz em que misturava gengibre, canela, açafrão, caldo de galinha e gemas. Na Espanha, Isabel, a rainha Católica, tinha especial predileção por um prato feito com galinha, especiarias e farinha de arroz. Na França, foi, por muito tempo, apenas comida de quartel. O oficial encarregado da distribuição de mantimentos nesses quartéis era conhecido como ripaisel – curiosa combinação de nomes dos alimentos que compunham a dieta militar básica – riz (arroz), pain (pão), sel (sal). Os soldados ingleses, ao contrário, orgulhavam-se de nunca usar arroz. Câmara Cascudo até refere que “os ingleses, alimentados à carne, dominavam a multidão da Índia alimentada a arroz”. Não por muito tempo. Que depois de Gandhi, a “grande alma” (mahatma), aqueles franzinos comedores de arroz acabaram expulsando os colonizadores carnívoros. Em Portugal não foi diferente. Começou por ser apenas sobremesa – “arroz doce”, cozido no leite, com açúcar, e polvilhado com canela. Uma receita (não por acaso) árabe, o roz bi halib – que tinha esses mesmos ingredientes mais água de rosas, flor de laranjeira e damasco. Esse hábito de usar arroz como sobremesa é também herança oriental. Depois, bem aos poucos, passou a ser acompanhamento de pratos salgados. Domingos Rodrigues, em seu glorioso A Arte de Cozinhar, editou sete cardápios, um para cada dia da semana. 200 pratos diferentes. Entre tantas receitas, o arroz aparece apenas uma vez. E numa nota de rodapé: “advirto que, para as galinhas que ficam

em caldo, se hão de mandar à mesa, um dia sobre cuscuz, outro sobre fidéus, outro sobre letria, outro sobre arroz”. Durante muito tempo, continuou cumprindo papel secundário na cozinha. Como ingrediente de alguns pratos – Canja de Galinha, Arroz de Braga (cebola, alho, louro, cenoura, repolho, ervilha, lingüiça, costeleta de porco defumada e pedaços de galinha), Arroz de Sarrabulho (cozido no caldo do cozimento de miúdos e sangue de porco ou cabrito), Arroz de Sustância (cebola, alho, louro e outros temperos, em forno bem quente). A colonização portuguesa passou a estimular sua cultura. Por toda parte – em Goa, Guiné, Angola, Moçambique, Brasil. Mas as experiências culinárias, nessas terras todas, acabaram sendo muito diferenciadas. Na Guiné, por exemplo, destaque para o pitchepatche (arroz cozido com ostras) e o ticadege (arroz cozido com amendoim pilado). Em Angola o muamba (arroz com galinha cozida). Em Moçambique o nicurre (arroz e feijão, cozidos juntos) e o tocassado (cozido de peixe com arroz). Em Goa sobretudo arroz de coco. Garcia da Orta (Colóquios) dizia dele – “deste coco pisado e tirado o leite fazem e comem arroz”. Veio de lá também o hábito de usar óleo no preparo do prato – dos quais são exemplos consagrados o rizotto (Itália) e o riz au gras (França). Os portugueses já encontraram por aqui, ao chegar, uma espécie nativa de arroz – pelos índios chamada “milho d’água” (auati-i, abati-miri, abati-uaupé). Mas nossos índios não lhe davam importância. Sequer fazia parte de suas dietas. Assim escreveu Hery Walter Bates (O Naturalista no Rio Amazonas): “há uma espécie de arroz que cresce espontaneamente, que os índios nunca domesticaram, embora tivessem adotado a planta introduzida no país pelos europeus”. O arroz entrou em nossa culinária, portanto, a partir das mesas portuguesas. Com as primeiras plantações surgindo na Bahia, pouco antes de 1600; e, logo em seguida, no Maranhão e no Pará. Só bem depois chegou a Pernambuco, por volta de 1750. O primeiro responsável pela democratização do arroz, entre nós, foi Dom João III, “o piedoso”. Ao incluir, na dieta dos jesuítas que vieram catequizar nossos índios, “um tanto de mandioca e arroz e um cruzado cada mês” – assim escreveu Gabriel Soares do Souza (Capítulos). E, depois, Dom João VI. Ao determinar que fizesse parte da alimentação dos soldados da corte. Em Canudos Continente julho 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS (1896-1897), esses soldados comiam arroz na “bóia” (assim chamado porque alguns dos grãos boiavam na água em que eram cozidos). Enquanto os seguidores de Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Antônio Conselheiro, preferiam farinha de mandioca. Afinal, o arroz acabou se afirmando como prato indispensável na alimentação do brasileiro. Cada lugar tem seu jeito próprio de preparar. No Rio Grande do Sul, “Arroz de Carreteiro”, invenção dos tropeiros das fazendas de gado – cozido com charque, cebola, tomate e outros temperos. Em Goiás, “Arroz-de-pequi” – preparado com cozido de pequi (fruta escura, de sabor ácido), cebola, alho, pimenta e outros temperos. No Maranhão, “Arroz-de-cuxá”, receita que veio da Guiné – de consistência rala, misturado com cuxá (folhas de vinagreira cozidas e transformadas em pasta), gergelim torrado e socado, farinha de mandioca e azeitonas picadas. Na Bahia, “Arroz-de-hauçá” – cozido até virar uma papa, com farinha de arroz, sal, charque frita, molho de camarões secos temperado com cebola, pimenta e azeite de dendê. A receita desse “arroz-dehauçá” vem dos negros sudaneses mulçumanos, chamados “hauçás”, trazidos como escravos para o recôncavo baiano. Sem esquecer o arroz carioca, refogado com cebola e alho, e depois cozido. Nem o arroz-de-coco – arroz cozido no leite de coco e bem temperado. Receita de Goa, para cá trazida pelos portugueses, e que acabou virando prato obrigatório na culinária da semana santa pernambucana, acompanhando peixes e crustáceos ensopados. Há dois tipos básicos de arroz – os de grão longo e os de grão curto. Cada um devendo acompanhar pratos específicos. Os primeiros, quando cozidos, ficam mais soltos. Ideal para serem servidos como acompanhamento. Entre eles está o “parbolizado” (do inglês to parboil, que significa pré-cozido), uma invenção norte-americana. Enquanto os de grão curto ficam mais cremosos. Por terem baixa amilose, acabam absorvendo o sabor dos outros ingredientes. São ideais na preparação do risoto – que, ensinam os italianos, depois de pronto deve ser apresentado all'onda, movimentando-se no prato como uma onda. Nesse grupo estão o vialone nano, o arbório e o carnaroli. Faltando só duas lembranças. A de que o vulgarmente chamado “arroz selvagem”(wild rice), agora tão na moda, nem arroz é – mas apenas semente de uma grama Continente julho 2005

nativa da América do Norte. E a de que aquele arroz que se joga nos noivos, à saída dos casamentos, é um costume ancestral chinês. Com ele os convidados desejando, ao novo casal ali presente, votos de saúde muita e felicidade eterna – enquanto durem, claro. •

RECEITA:

Marcelo Carnaval/Globo

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RISOTO DE PITU INGREDIENTES: 2 kg de pitu, 400 gr de arroz (arbório ou carnaroli), 1 cebola picada, 3 colheres de sopa de azeite de oliva, 3 colheres de sopa de manteiga, ½ xícara de vinho branco seco, 1 ½ litro de caldo de peixe, 2 envelopes de açafrão, 2 colheres de sopa de parmesão ralado. PREPARO: ·Doure a cebola no azeite e em metade da manteiga. ·Junte o arroz e refogue. ·Coloque o vinho e deixe evaporar em fogo alto. ·Junte o pitu (descascado e temperado com sal e pimenta) e, aos poucos, o caldo de peixe fervendo com o açafrão. Mexa, e quando for secando, vá juntando mais caldo, até que o arroz esteja ao dente. Retire do fogo. Acrescente o restante da manteiga e o parmesão ralado. Misture bem e sirva imediatamente


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

A bordo de um avião, em companhia do presidenciável que tinha horror de altura

J

ânio Quadros tinha resposta pronta para tudo. Para toda pergunta, reservava sempre um afago, um elogiozinho ralo, mas o suficiente para alisar a vaidade do perguntador: – A pergunta do senhor não podia ser mais oportuna. Ou então: – À indagação do senhor, tão brilhante, devo dar uma resposta, no mínimo, digna dela. Artimanhas assim – e sempre naquele sotaque estranho, que diziam ser de Mato Grosso, dos confins lindeiros do Paraná, mas que na verdade (eu descobri pessoalmente muito tempo depois) era dele mesmo, somente dele, invenção sua. Eu já sabia que Jânio Quadros tinha pavor de avião – todo mundo sabia. E foi precisamente em uma viagem rumo ao sul que tive a oportunidade de presenciar bem de perto a quanto ia esse seu pânico pelas viagens aéreas. Logo ele subiu no avião, grudou-se silenciosamente numa das poltronas lá do fundo, pertinho de mim, apertou até o extremo o cinto de

segurança, posicionou-se ereto na poltrona, que não inclinou sequer um centímetro, e pôs-se a segurar com mãos tensas e de veias saltadas os dois braços do assento. Do Rio a Curitiba, não pronunciou uma só palavra. •

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Naná

“Pernambucano briga, carioca enrola, baiano se beija e ganha tudo”

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ESPECIAL

“N

Hans Manteuffel

Considerado pela Down Beat como o maior percussionista do mundo, por nove anos consecutivos, Juvenal Vasconcelos, mais conhecido como Naná, faz um balanço do seu percurso

ão sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”. Os versos de Hermínio Bello de Carvalho para a melodia de Paulinho da Viola, no samba “Timoneiro”, definem bem a trajetória do percussionista Naná Vasconcelos, menino de Sítio Novo, que aos 12 anos já tocava bongô e maracas na gafieira do Clube Misto Carnavalesco Batutas de São José, e hoje figura entre os principais percussionistas do mundo, mestre de um instrumento aparentemente simples, o berimbau, que, para variar, entrou por acaso em sua vida, quando participava de um musical folclórico no Recife, Memórias de Outros Cantadores. Naná viajou para o Rio em 1968, com uma passagem de ônibus presenteada por Capiba. Pensava que iria passar apenas uma semana fora de casa. Só voltou em 1980. Trocou o Rio por Paris, onde viveu cinco anos. Chegou em Nova York sem saber por quanto tempo ficaria por lá. Até hoje tem apartamento montado no Soho. Veio dos Estados Unidos, supondo que aquela seria mais uma de suas visitas de alguns dias no Brasil. Já está morando em Pernambuco há seis anos, com mulher e filha, sinal de que não pretende ir embora tão cedo. Embora, tratando-sse de Naná, nunca se sabe. Recém-cchegado de mais uma viagem à Europa, França e Bahia (na Itália fez shows e gravou disco, na França mais apresentações, e,na Bahia, foi protagonista de um documentário, rodado no Recôncavo), Naná concedeu esta entrevista numa das salas da casa ampla e confortável que comprou no Rosarinho. Entrevista reforçada com carne de bode e regada a scotch.

José Teles Continente julho 2005

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ESPECIAL

Em 1971, o artista plástico Hélio Oiticica, vivendo nos EUA, escreveu que Naná era a estrela máxima de Nova York

Você sempre teve a sorte de estar nos lugares certos. Fez música no Recife, no início dos anos 60, quando havia uma cena bem movimentada aqui de samba, jazz, musicais; foi para o Rio quando a cidade fervia musicalmente, embalada pelo Tropicalismo; saiu do Brasil com o saxofonista Gato Barbieri, e logo estava no meio de alguns dos mais badalados músicos do mundo. Não planejo nada, as coisas vão acontecendo. Naquele tempo, no Recife, tive a felicidade de trabalhar com Geraldinho Azevedo, Teca Calazans, Toinho do Quinteto (Violado), Carlos Fernando, Zélia Barbosa. A turma aqui montava musicais, como acontecia no Rio. Jomard (Muniz de Britto) escrevia os textos. Foi uma época muito rica. Cheguei ao Rio sem conhecer quase ninguém, a não ser uma cantora do Recife, Lisete Margarida, e Geraldinho Azevedo, que veio uma semana antes de mim. Minha missão no Rio era tocar num festival, O Brasil Canta no Rio, então fui direto para onde aconteceria a coisa. Como não conhecia ninguém, fiquei ali até que vi os Vocalistas Tropicais, um grupo de cegos, entrei com eles, um cara perguntou se eu era do festival, respondi Torquato Neto cita muito seu nome nas cartas que que sim, aí me deram hospedagem. Enquanto durou o escrevia para Hélio Oiticica. Comenta sobre um disco festival tive onde ficar. que queria produzir para você. Como seria este disco? Ele falava sempre nisso, tinha umas idéias, mas nunca Mas logo você se tornou bastante conhecido, é só ver as publicações da época, todo mundo cita o seu nome. gravamos nada. Se tivesse feito este álbum, acho que seria Na coluna “Geléia Geral”, que Torquato Neto escrevia mais ou menos como um happening que fizemos no Muno jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, você é sempre seu de Arte Moderna do Rio, o primeiro do Brasil. Com Hélio Oiticica, Flamarion, Torquato, Maurício Maescitado. Conheci Milton Nascimento, que estava para gra- tro, uma performance com todas as artes juntas, artistas var o primeiro LP. Estávamos no apartamento dele, um circenses, eu trouxe os tambores do morro do Cajueirimonte de gente querendo conhecer Milton, que havia nho, 20 atabaques de candomblé. Foi nesta época que acabado de participar do festival com “Travessia”. No conheci Gato Barbieri, que me chamou para fazer umas final da noite ficamos eu, Milton, Nelson Ângelo, No- apresentações com ele na Argentina. velli. Eu disse para Milton que tinha vindo de PernamEsta não foi sua primeira viagem internacional. buco para tocar com ele. Ele me olhou assim com aqueles Não. Quando eu ainda morava no Recife, fui para olhos grandes, meio fora da órbita, sem entender diPortugal com o Quarteto Iansã (Lucas, Sérgio Kyrillos e reito. Aí pegou um violão e começou a cantar, eu apanhei umas panelas, uns troços lá e comecei a acompa- Camilo Moreno), chegamos até a gravar um disco por lá, nhar. Milton ficou ouvindo aquilo e me perguntou: “O acompanhando Agostinho dos Santos. Continuei com que você vai fazer amanhã? Vamos gravar comigo? Pas- Gato, com quem trabalhei na trilha de O Último Tango em sei a fazer parte da panelinha, toquei com todo mundo, Paris. Mas o que ninguém sabe é que aquilo foi uma Mutantes (é de Naná a percussão em “Ando Meio safadeza de Gato. O último tango não é tango, é bolero. Desligado”), Gal, Os Brasões, Equipe Mercado. Hou- Quem deveria fazer a música daquela cena seria Piazve uma ocasião em que eu tocava com Milton no Teatro zola, e Gato tocaria. Porém ele fez a música, o maestro da Praia, das 9 às 11, então saía correndo para a Boate Oliver Nelson orquestrou e ele deu para Bertolucci, disse Sucata, para tocar com Gal Costa, que começava o show que o tema estava pronto, passou uma rasteira em Piazzola, que era o grande nome do tango. Le Gal à meia-noite. Continente julho 2005

Reprodução/AE

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ESPECIAL Então o nome do filme deveria ser O Último Bolero em Paris (risos). Você chegou a conhecer Marlon Brando? Conheci, conheci. Ele foi com Bertolucci assistir ao show de Gato, naquele mesmo local onde acontece aquela cena da manteiga no Ultimo Tango em Paris. Depois do show fomos jantar, com Brando e Bertolucci, que até hoje é muito amigo meu. Sempre que faço show na Itália ele vem assistir. Conheci aqueles diretores todos da época, quando morei em Nova York, dividindo um apartamento com Fabiano Canozza e Glauber Rocha, que era uma figura. Escrevia o tempo inteiro, nu. Eu tocava, Glauber escrevia roteiros e Fabiano Canozza cozinhava para a gente (ri). Esse apartamento era o centro do cinema brasileiro em Nova York. Brasileiro só, não. Aparecia gente ligada ao cinema de todos os lugares. Canozza depois virou um consultor famoso no cinema italiano. Também acabei entrando numa panelinha em Nova York, com aqueles grandes músicos de jazz, Ed Blackwell, Don Cherry, Cannoball Adderley.

Roger Viollet/AFP

Como aconteceu seu afastamento de Gato Barbieri? Comecei a descobrir que eu tinha um trabalho que interessava às pessoas, que fazia uma coisa minha, pessoal. Mas Gato, branco, latino, passou a tocar com músicos negros americanos, para ele aquilo era muito, e nos cartazes dos shows colocava meu nome lá embaixo, em letrinhas pequenas. Resolvi fazer minha música sozinho. E deixei os Estados Unidos, achei que já havia visto o que precisava lá. Fui para Paris, onde passei cinco anos, gravei meus primeiros discos individuais, e iniciei um trabalho com crianças, usando música. Não era musiGato Barbieri, com quem Naná Vasconcelos começou sua carreira internacional

coterapia, mas algo mais "Fiz um projeto livre. Não tinha regras. As chamado Pernambuco crianças usavam os instru- É. Convidei todo mentos como queriam, a mundo. Cada artista gente só precisava prestar faria uma música. atenção no que interessava a elas e entrar no ritmo. Um Gravou Antúlio, trabalho que faço até hoje, Cascabulho, Aurinha. em vários países, que tentei Então veio Alceu e fazer no Recife, com o todo mundo foi se ABC das Artes. Porém aqui afastando" tudo é muito complicado, o empresário não se interessa porque é um projeto que não lhe dá muita visibilidade. Se algum político colaborar, aí vão achar que a gente está ligado a esse político. Em Salvador chegaram a me oferecer uma casa no Pelourinho, mas no Pelourinho ninguém iria conseguir dormir, que ali se batuca o tempo inteiro (ri). Falando de política: você viveu no país na ditadura, trabalhou com pessoas de esquerda, de oposição. Você teve algum problema ligado à política? Não diretamente. Participei do Quarteto Livre, um grupo que acompanhou Geraldo Vandré, que havia acabado de defender aquela música, “Caminhando”, no festival da canção. Éramos eu, Franklin, um flautista, Geraldinho Azevedo e Nelson Ângelo. Teve uma noite em que a gente ensaiava no Teatro Opinião e saímos para lanchar, umas duas da manhã, chovia muito no Rio, e aí escutamos um negócio que pensamos que fosse um trovão. Quando voltamos para o teatro, a parede da frente estava arrasada, com umas pichações do CCC – (Comando de Caça aos Comunistas), os caras tinham metido bomba lá. Se a gente não houvesse saído, não sei o que teria acontecido. Uns dias depois, fomos com Vandré para Curitiba, quando recebemos um telefonema do empresário dele. O cara avisava que havia sido decretado o AI-5 e que Vandré desaparecesse. Comigo não aconteceu nada, mas esta foi a última vez que vi Vandré. Aliás, minto, muitos anos depois encontrei com ele, já perturbado como continua até hoje. Voltando ao começo de sua carreira: seu dom da música vem do seu pai que era músico, então, adolescente, você já tocava nas gafieiras. Como era isso? Ele tocava manola, uma espécie de violão de quatro cordas, com amplificador. Eu tinha 12 anos, precisava de autorização para tocar nos bailes do Batutas de São José, Continente julho 2005

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ESPECIAL

Reprodução

que ficava na Rua da Concórdia, mas nem podia descer do palco. Ficava ali a noite inteira, nem bebia nem fumava; as mulheres acenando pra mim, e eu lá, só tocava. Meu pai só me pedia uma coisa: para não contar em casa nada do que via ali dentro. Meu instrumento era maracas, naquele tempo os ritmos eram: muito bolero e chachachá. Toquei maracas também em gravações na Rozenblit, em discos de frevo, com Nelson Ferreira. Acompanhei algumas vezes os cubanos da Sonora Matancera, com Bievenido Granda, El Bigode que Canta, que vinha gravar no estúdio da Estrada dos Remédios. Certa vez veio um saxofonista cubano e me levou com outro músico daNaná colocou berimbau no blues de B. B. King

qui para tocar em Maceió; disseram lá que éramos todos cubanos. A gente tocava sem falar nada, para não se entregar. Ia ao banheiro, os caras falavam com a gente e ninguém respondia, como se não tivesse entendendo (ri). Naná, fica muito difícil citar esse ou aquele trabalho seu lá fora, já que você gravou com todo mundo, botou até berimbau no blues, com B.B King (no álbum Live in Mississipi), mas tem um trabalho que muitos consideram marcante, o do Codona, com Collin Wallcott e Don Cherry. Com B.B King foi interessante, porque botei berimbau e cuíca, pela primeira vez, no blues. O pessoal dele ficou assim meio cabreiro e esperou para ver se ele aprovava. B.B King até então era aquele coisa, só blues mesmo, sem misturas. Inclusive, no LP minha percussão ficou abafada lá atrás. Depois ele começou a tocar com músicos pop, como o U2, e quando o disco saiu em CD minha percussão foi mixada bem na frente com a guitarra dele. Ah, o Codona foi realmente um trabalho de que me orgulho muito. Eu era amigo do Don Cherry, já havia feito uns trabalhos muito malucos com ele, os filhos Eagle-Eye Cherry e Neneh Cherry, a mulher dele, até o cachorro, uma coisa muito estranha e divertida. Don Cherry me chamou para gravar um disco solo do Collin Wallcott, baterista. Enquanto a gente gravava, Wallcott nos chamou e disse que aquele disco não era só dele, mas dos três, um grupo. Com as iniciais da gente ele foi procurando um nome, até chegar ao Codona. Um dos grandes projetos de que você participou depois de voltar ao Brasil foi o PercPan (Panorama Percussivo Mundial, que acontece anualmente em Salvador), o mais importante festival deste tipo no país, que tinha você e Gilberto Gil como mestres-dde-ccerimônia. Mas deixou o festival exatamente na única edição que aconteceu no Recife, em 2001. Por que você se afastou do PercPan? Não era apenas o mais importante do Brasil, era um dos mais importantes do mundo. Porque tem esses festivais de jazz, no qual eles dedicam um dia à percussão. O PercPan não, era só percussão. Como eu tenho muito conhecimento, viajo muito, toco em vários lugares, convidava sempre o que há de mais importante nessa área. Porém o festival foi mudando de direção. Acabei virando bode expiatório numa história com Jorge Ben Jor. O trato com os artistas era que eles viriam ao festival mas sem o show normal, de carreira. Montariam um show baseado na percussão. Aconteceu isso com muitos deles, com Cássia Eller, com Milton Nascimento, que tocou com


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Divulgaçlão/AE

Naná saiu da organização do PercPan, um dos mais importantes festivais do mundo, por causa de divergências

Quando cheguei, quis logo participar, reunir todo mundo. Foi aí que descobri que aquela coisa do caranguejo ainda continua aqui. Aquela coisa do que está embaixo, na baixa, impedir que o de cima suba e vá embora. Fiz um projeto chamado Pernambuco É. Convidei todo mundo. Cada artista faria uma música, Fui ao Diario de Pernambuco, para ver se o jornal comprava e vendia aos assinantes. Gravou Antúlio, Cascabulho, ainda com Silvério Pessoa, Aurinha. Então veio Alceu e todo mundo foi se afastando. Porque o mangue não se juntava com Alceu. Tem isso aqui, Este ano está sendo badalado por ser o Ano do Brasil na os músicos brigam, e o pessoal encarregado da cultuFrança. Você acabou de voltar de lá, algum convite para ra não tem visão de mercado – e em Pernambuco se participar do evento? faz hoje a maior parte da boa música brasileira. É coNa verdade, os principais shows ficaram com os mo costumo dizer: Pernambuco briga, mineiro se esbaianos, a Pernambuco restaram os palcos menores. conde, carioca enrola, São Paulo propaga, mas conOfereci um projeto, que ensaiamos eu, César Michil- some, baiano se beija e ganha tudo. les e Borghetinho, dois extremos do Brasil, ligando o Você viveu tantos anos no exterior, com toda uma forró ao vaneirão, que são muitos parecidos. Mas não houve interesse. E eu nem queria ir para viajar, afinal estrutura montada, conhecimentos e tal. Volta para o Brasil e encontra uma série de dificuldades. Não lhe dá viajo o tempo inteiro. vontade de voltar para os Estados Unidos? Depois destes anos todos fora de Pernambuco, Às vezes. Ainda tenho meu apartamento em Nova você voltou nos anos 90, encontrou um cenário mu- York. Mas aqui é o lugar onde me escondo, entre uma e sical muito movimentado e foi logo se incorporando a outra viagem, e esta aqui (aponta a filha Luz Morena, de ele, gravando com todo mundo. Como está sua parti- seis anos, que acaba de chegar da escola) é uma das rescipação na cena musical do Estado? ponsáveis por eu continuar no Brasil. •

tambores, foi aí que surgiu a idéia do disco Tambores de Minas. Mas Jorge Ben veio e fez o show normal dele. Eu reclamei, e ele saiu como vítima na Folha de S. Paulo. Com esse direcionamento, preferi sair do PercPan. Depois Beth Cayres (a produtora do PercPan) deu uma entrevista para uma revista falando da importância de Gilberto Gil para o PercPan e nem me citou. Assim fica até difícil cobrar o que ainda me devem, já que passei esses anos todos no festival invisível, como um fantasma no palco, uma pessoa que ela nunca viu.

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Um músico que não recusa convite Da badalada Marisa Monte à regional Cristina Amaral, do descohecido a bambas do jazz, chamou, ele está lá

E

m carta para o amigo Torquato Neto, datada de 24 de novembro de 1971, o artista plástico Hélio Oiticica, então vivendo nos Estados Unidos, escreveu: “Naná (que agora é Nana, estrela máxima aqui, de repente; o New York Times publicou um review ótimo sobre o show de Gato Barbieri e elogia Naná à beça”. E mais à frente: “Vou entrevistá-lo para vocês, mas a estrela agora tem que ser com appointment (o que acho ótimo), pois está booked em tudo que é cidade, nos arredores e alhures, adoro ver a alegria e o sucesso de Naná, depois de tanto hassle aí, burrices da Phillips. And so on”. Oiticica testemunha o que passou a acontecer desde que Naná deixou de ser um mero ritmista e tornou-se um dos pais da moderna percussão, atraindo para si a atenção de músicos do mundo inteiro. Como raramente se esquiva de gravar, quando é convidado, é tarefa árdua

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desdobrar toda a discografia de Naná Vasconcelos. A sua própria até que não é tão extensa em relação aos anos em que está na estrada, mas suas participações, estas são uma dor de cabeça para pesquisadores ou biógrafos, com o agravante de que ele não coleciona seus discos. Em casa só reúne uma ínfima parte deles. A discografia de Naná começa na antiga gravadora Rozenblit, onde participou como músico de estúdio de vários lançamentos do selo Mocambo. Como na época não se costumava dar crédito a todos os músicos na ficha técnica dos LPs, é impossível descobrir em quais álbuns estão as maracas ou bongô de Naná. Sabe-se que ele participou de várias sessões como ritmista do grupo cubano Sonora Matancera, com Bievenido Granda como crooner. Com certeza, Naná está nos compactos das cantoras Lisete Margarida (“Infinito”/ “Severino do Sertão”) e


ESPECIAL

Leopoldo Nunes/JC Imagem

Teca Calazans (“Aquela Rosa” e pout-pourri de cirandas). As duas faziam parte da efervescente cena da MPB recifense de meados dos anos 60. Como se preconizando a futura trajetória internacional, a estréia de Naná em disco aconteceu em Portugal, como integrante do Quarteto Iansã, acompanhando o já célebre Agostinho dos Santos, encontrado, por acaso, de férias, em Lisboa. O cantor conhecia Naná Vasconcelos dos programas da TV Jornal, no Recife, onde fora acompanhado algumas vezes por ele. Agostinho dos Santos uniu-se ao Quarteto Iansã, com o qual fez apresentações também em Angola, gravando três EPs de sete polegadas (um formato estranho, com três buracos), hoje raridade discográfica. Em 1969, no Rio, Naná Vasconcelos tornou-se o percussionista preferido por nove entre dez estrelas da

MPB e do rock udigrudi da cidade. Gravou com Milton Nascimento, Jards Macalé, Luiz Eça e a Sagrada Família, Som Imaginário, Gal Costa, Os Mutantes. Ao vê-lo tocando berimbau com Milton Nascimento, o argentino Gato Barbieri convidou Naná para participar das trilhas que compunha para os filmes Pindorama, de Arnaldo Jabor, e Minha Namorada, de Zelito Viana. Com Barbieri, Naná ganharia o mundo, mas antes arrumou tempo para gravar, na Argentina, um LP, El Incredible Nana con Agustin Pereyra Lucena, um dos seus trabalhos mais curiosos: “Encontrei Agustin uns dois anos atrás. Na época foi engraçado. Eu estava com Gato em Buenos Aires, e bastante comentado na cidade. Um empresário me convidou para tocar no disco de Agustín, um guitarrista argentino, eu fui. Só que no mesmo dia iria viajar para Nova York. O problema é que o cara ficou nervoso, e não conseguia tocar. Não teve jeito. O empresário então me falou que a solução seria eu deixar minha parte gravada. Fiz isso, e só escutei esse disco alguns anos depois. Tenho uma cópia no apartamento em Nova York, conta Naná. Ao longo de 35 anos, gravando e tocando em vários cantos do mundo, Naná Vasconcelos contabiliza um grande número de prêmios (entre eles o Grammy, em 1977, com Egberto Gismonti, no álbum Danças das Cabeças), e uma discografia que se avoluma cada vez mais, principalmente depois que voltou para o Brasil. Ele tem feito discos individuais com mais freqüência (quando esta matéria estava sendo feita, ele fechava contrato com a Azul Music para lançar Chegada, mais um disco gravado no estúdio Fábrica, no Recife), e dá canja com todos, literalmente, músicos que o convidam: “Liguei para ele meio cismado, achando que ele não iria aceitar, um cara que já tocou com tanta fera. Mas Naná topou na hora”, conta o forrozeiro Maciel Melo, que tem o percussionista no seu disco Isso Vale Um Abraço (1999). Fominha de barulhinhos bons, Naná Vasconcelos, foi convidado, vai. Tanto faz a badalada Marisa Monte quanto a regional Cristina Amaral, músico que ele não conhece, o cantor Fênix ou figurinhas carimbadas do jazz como John Lurie. Chamou, ele está lá, criando seus cenários e climas percussivos.(JT) • Continente julho 2005

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Hans Manteuffel

Os mil sons do berimbau Naná Vasconcelos descobriu possibilidades antes não imaginadas para o berimbau, abrindo espaço e dando status à percussão


ESPECIAL

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aná deixou de ser um mero ritmista a partir da descoberta do berimbau, em 1966, depois que participou do musical Memória de Dois Cantadores, no Recife, em que mostrava toques de capoeira. Até 1967, 68, a percussão, não apenas brasileira, mas mundial, limitava-se aos tocadores de pandeiros, tambores, tumbadoras, maracas, bongôs. “O berimbau ficou num canto de casa, e eu olhando para ele. Pensei que não deveria parar na capoeira, poderia ter muito mais possibilidades. Então passei a explorar essas possibilidades”, conta Naná Vasconcelos. As “possiblidades” foram sendo descobertas aos poucos. Veio o stacatto (puxar a corda com os dedos), batucar na cabaça com uma pedrinha, utilizar a ressonância provocada pela cabaça com a varinha, até então usada só para o arame retesado, conseguindo efeitos harmônicos e rítmicos. Ele redefiniu também o uso do caxixi, do qual se valiam os tocadores de berimbau para fazer o contratempo. Quando foi para a França, descobriu os caxixis africanos. Maiores do que o que se empregava no berimbau. Passou a tocar com até quatro deles e o berimbau ao mesmo tempo. Já enquanto baterista Naná valia-se de instrumentos que não compunham o set tradicional da bateria, como o ganzá. Uma de suas principais inspirações veio ao escutar Jimi Hendrix. O senso de liberdade que impregnava o trabalho do guitarrista americano mostrou-lhe as ilimitadas possibilidades do instrumento: “Passei a tocar vários ritmos no berimbau. Fui transpondo, sem de início me dar conta, a técnica de bateria para o instrumento até aí mero decorador da dança da capoeira. Descobri que a mão da vareta é a mão da baqueta, e a mão da moeda é do caixa, o tarol, e fui transpondo a técnica da bateria para o berimbau. Hendrix também me fez

ver que tudo, até o barulho, era música. E com VillaLobos aprendi essa coisa de criar cenários. Nunca fui músico de tocar rápido. Meu trabalho tem mais essa coisa do lado visual, do que pensar simplesmente em fazer música. Me interessava mais fazer o som da selva, da noite. Isso eu já fazia no Recife, por causa da minha ligação com o teatro”. Explica Naná. Calhou de, no Rio, ele começar a tocar com Milton Nascimento, um músico que não se encaixava em nenhuma tendência da música brasileira em 1969: “Milton não tinha grupo, nem tinha banda. Todo mundo ainda fazia bossa-nova, ele não fazia parte da turma, mas era aceito porque fazia uma coisa nova. Ele me deixou fazer o que eu queria. Mostrou, por exemplo, ‘Procissão’, que me deu idéia de morte, velas, e usei tambores. Mostrou ‘Pai Grande’, e visualizei um navio negreiro, no Amazonas”, continua Naná. Quando começou a tocar com Gato Barbieri, ele passou a incursionar por algo que não havia na música brasileira, a improvisação: “Aqui os músicos sempre seguiam a pauta. Nem mesmo no choro era permitido improvisar, tocava-se o tema principal, segunda parte, terceira, volta-se para o tema principal. Mas quando cheguei para Gato já tinha essa coisa que começou com o berimbau, de não seguir regras”. A arte da improvisação ele foi aperfeiçoando com músicos como Leny White, Ron Carter, Jan Garbarek, Don Cherry, e com as crianças com dificuldades de locomoção motora, com as quais começou a trabalhar quando foi morar em Paris, logo que deixou o grupo de Gato Barbieri. Uma habilidade que o levou a ser premiado por nove anos consecutivos (de 1983 a 1991) como melhor percussionista do mundo pela crítica da mais importante revista de jazz, a Down Beat.(JT) •

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MÚSICA

J.L. de Zorzi

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Acadêmicos sem Fardão ABM comemora 60 anos, vivendo dos direitos de Villa-Lobos

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Julio Moura

Fardão e o chá-das-cinco da Academia Brasileira de Letras, fundada por Machado de Assis, são nacionalmente bastante conhecidos. O que nem todos sabem é que, a alguns quarteirões da ABL, funciona no Rio de Janeiro a Academia Brasileira de Música, criada por Villa-Lobos, e que completa 60 anos neste 2005. Não intencionalmente, uma sociedade quase secreta, freqüentada por músicos eruditos e amantes das salas de concerto. Na tentativa de alcançar maior visibilidade, a ABM – com 40 cadeiras, divididas entre patronos, fundadores e sucessores – conseguiu, quase seis décadas depois de sua criação, adquirir sede própria, no bairro da Lapa, implementar um site, viabilizar um banco de partituras, uma revista quadrimestral (A Brasiliana) e um selo fonográfico (ABM Digital), além de promover concertos mensais, protagonizados por seus membros. “Até 2002, todos os recursos vinham de 50% dos direitos autorais de Villa-Lobos” – explica o maestro Edino Krieger, presidente da ABM e do Museu da Imagem e do Som. “Quando morreu seu último herdeiro, a Academia passou a contar com a totalidade do dinheiro arrecadado na execução da obra de nosso patrono. Foi aí que conseguimos comprar a sede”, explica Krieger.

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MÚSICA

Inspirada na Academia Francesa, a ABM foi fundada enquanto o mundo comemorava o fim da Segunda Guerra, em 14 de julho de 1945, em assembléia realizada no Clube Ginástico Português, ao lado da Casa de Villa-Lobos, no centro do Rio. Durante quase 50 anos, a Academia tinha que contar com a boa vontade de seus membros para realizar suas sessões. Somente em 92, durante a gestão do musicólogo Vasco Mariz, a associação passou a funcionar na sede do Pen Club, na Praia do Flamengo, onde permaneceu durante 10 anos. A sede atual foi inaugurada em setembro de 2003, já na gestão de Edino Krieger. O maestro foi presidente da ABM entre 98 e 2001, voltando a ocupar o cargo com a morte de José Maria Neves, eleito em 2002. Um dos maiores orgulhos de Krieger foi ter disponibilizado um banco de partituras na internet, com mais de 200 obras de compositores brasileiros: “Organizamos e editoramos digitalmente obras fundamentais, como a Villa-Lobos: criador da sociedade dos Série Brasileira de Alberto Nepomuceno e a “Festa das Igrejas”, de Franmúsicos eruditos cisco Mignone, que só existiam em manuscritos. É uma maneira de e amantes levar este repertório às principais orquestras do Brasil e do mundo. dos concertos Na Europa e nos EUA, as orquestras não aceitam mais obras manuscritas. Mesmo algumas obras de Villa-Lobos chegaram a ser recusadas por Sinfônicas pelo fato de as partituras não apresentarem boas condições”, avalia Krieger. A iniciativa, entretanto, não permite à Academia prescindir da arrecadação das obras de Villa-Lobos: “A ABM fica com somente 20% do dinheiro arrecadado na venda e no aluguel das partituras, cujo preço varia entre R$ 300,00 e R$ 500,00. O restante vai para os autores, historicamente negligenciados”, defende o maestro. Nem sempre a relação entre os músicos e a Academia foram pautadas pela transparência. A instituição foi acusada de desvios administrativos e o compositor pernambucano Marlos Nobre chegou a impetrar um mandado de segurança para impedir a posse de Vasco Mariz na presidência. O inquérito terminou na Justiça. Desde seus primórdios, mais de 100 músicos passaram pela ABM, entre eles Radamés Gnattali, Lorenzo Fernandez, Cláudio Santoro, Camargo Guarnieri, Guerra-Peixe, Francisco Mignone e José Siqueira. Hoje, nomes como Ronaldo Miranda, Ricardo Tacuchian, Turíbio Santos, João Guilherme Ripper e Jocy de Divulgação ABM Oliveira figuram entre os Acadêmicos sem Fardão. De acordo com o Maestro Edino Krieger, o site da instituição recebe cerca de 30 mil visitas por mês, o que comprova um aumento de visibilidade e influência: “No dia 15 de julho, vamos inaugurar um auditório de 90 lugares, para recitais, audições, palestras, cursos e seminários. Mantemos viva a proposta de Villa-Lobos, de difundir, documentar e divulgar a Música Brasileira”, argumenta Edino Krieger, que não se furta a estabelecer comparações com a co-irmã mais abastada da literatura: “não temos as solenidades ou a ritualística da Academia de Letras, nem a posse de nossos membros é um acontecimento como acontece lá. Em um ano inteiro, não conseguimos os recursos que a ABL arrecada em apenas um mês. Enquanto eles tomam chá, nós bebemos no máximo um vinho ou um uisquinho das cinco” – rege, com humor, o maestro. • Continente julho 2005

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AGENDA

84 MÚSICA Imagens: Divulgação

Orquestra Acadêmica

O maestro Roberto Minczuck

Música das Américas 36º Festival de Inverno de Campos do Jordão apresentará 44 concertos em 23 dias O Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão é o maior e mais importante evento de música erudita da América Latina. A 36ª edição do Festival acontecerá entre 9 e 31 de julho em seis espaços da cidade de Campos do Jordão, situada a 167 km de São Paulo. Com a direção artística do maestro Roberto Minczuk, o Festival terá por tema Música das Américas, reunindo artistas de todo o mundo, como Kurt Masur, Beaux Arts Trio, Arnaldo Cohen, Jean-Louis Steuerman, Antônio Meneses, Camerata Bariloche, Manuel Barrueco, a Orquestra Jovem de Long Island e Almeida Prado, que realizarão 44 con-

certos e espetáculos em 23 dias, destacando a música produzida em nosso continente: Villa-Lobos, Copland, Gershwin, Piazzolla, Bernstein, Santoro, Carlos Gomes, Ginastera, Mignone e Sousa. Outra atração do Festival será a montagem da ópera A Queda da Casa de Usher, de Philip Glass, com libreto de Arthur Yorinks, baseado no conto de Edgar Allan Poe. O concerto de encerramento, regido por Kurt Masur, será realizado na Sala São Paulo com a Orquestra Acadêmica do Festival, formada pelos alunos bolsistas. A Orquestra Acadêmica deste ano também gravará seu segundo disco, no qual será incluída a obra composta por Almeida Prado especialmente para o evento, Variações Sinfônicas. 36º Festival de Inverno de Campos do Jordão. Campos do Jordão, São Paulo. Informações: www.festivaldeinverno.sp.gov.br

Caixa dos sonhos

Loopcinio

Coco do Amaro Branco

Caixa dos sonhos dele, caixinha de sonhos para quem escuta, não importa. O que importa é que a caixa Timoneiro, que reúne toda a aventura poético-musical de Hermínio Bello de Carvalho, em comemoração aos seus 70 anos, merece ser apreciada faixa a faixa. Timoneiro (título de samba de HBC e Paulinho da Viola) contém quatro discos produzidos por Hermínio – Pastores da Noite (1978), que registra sua parceria com Vital Lima, Alaíde Costa Canta Hermínio Bello de Carvalho (1982), Lira do povo (1985) e Cantoria (1995), ambos com grandes nomes da música brasileira interpretando sua obra – e um com músicas inéditas, produzido por Zélia Duncan.

Lupicínio Rodrigues, o fino do brega, consagrado por cantar as dores do nosso passado amoroso, está de volta em clima totalmente futurista. Com ares de trilha sonora de filme de Wim Wenders, ele volta na voz e na reinvenção de Thedy Corrêa, da banda Nenhum de Nós. As canções que escutamos nas vozes de Orlando Silva, Francisco Alves, Linda Batista, Jamelão, Elis Regina e Gal Costa, como “Ela disse-me assim”, “Esses moços”, “Felicidade”, “Vingança”, “Tola” e “Volta”, voltam com cara de música eletrônica. Resultou num disco melancólico e romântico e, ao mesmo tempo, moderno e dançante.

O Amaro Branco é um bairro da periferia de Olinda. Vizinho ao Sítio Histórico e próximo ao mar, é lugar de pescadores e mestres de coco, que há mais de 100 anos mantêm acesa a tradição das rodas de coco, nas quais dançam, tocam e cantam todos os integrantes da comunidade. O CD Coco do Amaro Branco é o primeiro registro fonográfico do ritmo que anima e reúne o grupo, mas que chega para alegrar e fazer dançar quem o ouvir. Compostos e interpretados por integrantes do bairro, os cocos demonstram que o patrimônio musical existente em Pernambuco vai além da cena pós-mangue e é muito maior do que se pode imaginar.

Timoneiro,Hermínio Bello de Carvalho. Biscoito Fino, preço médio R$ 95,00.

Loopicinio, Thedy Corrêa. Orbeat Music, preço médio R$ 25,00.

Coco do Amaro Branco. Independente, R$ 23,00. Contato: amarobranco@hotmail.com

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Corbis

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Miss Hellman faz 100 anos

No final da vida, a dramaturga Lillian Hellman se interessava pela memória, menos para confiar do que para duvidar daquilo que guardamos nessa caixa de surpresas Fernando Monteiro

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sta Revista está, certamente, entre as poucas que assinalam, neste julho, os cem anos de nascimento de Lillian Hellman – dramaturga, roteirista e escritora, nascida em Nova Orleans em 1905, que disse um sonoro “não” ao Comitê de Atividades Antiamericanas responsável pela inquisição política mais famosa do século 20. Miss Hellman é quase desconhecida do leitor brasileiro (só seus livros autobiográficos foram traduzidos aqui), embora o filme Julia, de grande sucesso, tenha divulgado o nome de Hellman como a autora de Pentimento, livro Continente julho 2005

no qual se baseou o diretor Fred Zinnemann para realizar uma de suas melhores obras. O diretor de High Noon, na verdade, aproveitou só parte de um dos “retratos de memória” presentes na obra literária original: precisamente aquele em que Lillian descreve, com riqueza de detalhes, como teria arriscado a vida para levar até a Berlim nazista, em inocente (e improvável) caixa de chapéu, uma alta soma de dinheiro arrecadado, na América, para “Júlia” (interpretada por Vanessa Redgrave), uma “amiga da adolescência” e ex-aluna de Freud, então envolvida com a resistência alemã.


TEATRO

Condé Nast Archive/Corbis

Jane Fonda, com seus olhos luminosos, deu vida ao escola pela qual ainda se sente atraída. Fábula por fábula, papel de Lillian – o filme foi sucesso de público e de crí- é por isso que estamos aqui, agora, a falar de um filme tica, e a imprensa americana naturalmente se interessou admirável e de uma mentira que, bem ou mal, reforçou pela antiga militante antifascista, pondo-se no encalço para o material de um ótimo livro (além de que, sem Pentimento, Muriel Gardiner Buttinger talvez fosse ser lembrada saber se a verdadeira “Júlia” ainda estava viva. Estava. Ela se chamava Muriel Gardiner Buttinger e apenas como uma socialite, com algum vago passado de era uma simpática senhora já meio esquecida dos perigos estudos em Viena, até retornar – correndo – para a Amédos anos 30, mas que se lembrava do seu codinome – rica, em 1939). Lillian Hellmann foi também a autora de outras pe“Mary”, e não “Julia” –, da luta política na sombria capital do Terceiro Reich e de nenhuma Lillian Florence ças de sucesso: The Children's Hour, com sua ousada suHellman na sua vida. Ou seja, nunca fora amiga ou co- gestão de lesbianismo, nos anos 30, é ainda atração, vez lega da autora daquele “retrato” filmado por Zinnemann. ou outra, em palcos americanos, além de ter tido duas verMuriel não fora capturada e torturada até a morte pelos sões cinematográficas, ambas assinadas por William Wyler, nazistas (como acontece no texto e no filme), e sua histó- mestre do cinema que foi grande amigo da teatróloga. ria era conhecida por poucos, dentre os quais se incluía Para o teatro, ela escreveu também as aclamadas Watch on um advogado de Nova York, Wolf Schwabacher, amigo the Rhine, The Autumm Garden e Toys in the Attic. Seu único de Lillian e de outras personalidades do teatro. fracasso no palco – My Mother, My Father and Me – leBem, Hellman usou a história real de “Mary” – que vou-a a abandonar o teatro, em 1963, para se dedicar aos Schwabacher gostava de contar –, com todos os lances relatos e aos roteiros de filmes como Caçada Humana, de nos quais enxergou, com certeza, uma boa história para se assumir na primeira pessoa, sentindo-se na Lillian Hellmann foi autora de peças de sucesso pele da “amiga” postiça para ficar, talvez, mais à como The Children’s Hour (foto), com sua ousada vontade na narrativa fabulada a partir de dados sugestão de lesbianismo, nos anos 30, ainda hoje verídicos. Um pequeno deslize da imaginação, atração, vez por outra, nos palcos americanos sem dúvida, porém nada tão grave que mereça o anátema furioso de Ruy Castro, em Saudades do Século 20, quando o bem-humorado Ruy usa o pior do mau humor para mencionar o caso como “uma das maiores fraudes do século” (aparentemente esquecido dos falsos “diários” de Hitler e outras imposturas cometidas apenas para fazer dinheiro e não para obter, com certa licença poética, um resultado artístico mais satisfatório do que a simples verdade). Foi o que T. E. Lawrence fez, do mesmo modo, com o “episódio de Deraa”, em Os Sete Pilares da Sabedoria, com um pouco do temperamento mitômano de todo escritor que valoriza a atenção do leitor arrastado pela autenticação do “eu”; e esse mesmo processo está presente na arriscada viagem imaginária da autora de Pentimento, americana tímida que se imagina correndo em socorro de uma colega perseguida pela Gestapo. O título do livro, aliás, dá uma boa pista: “pentimento” é o processo de pintar, camada após camada, sobre pintura antiga, e essa foi a maneira de trabalho da autora de The Little Foxes na criação de “Julia”: imaginou que estava dentro de um trem gelado, a caminho da Alemanha de Hitler, para levar a absurda “caixa de chapéu”, forrada com 50.000 dólares, para a amiga de

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TEATRO John Springer Collection/Corbis

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O escritor de romances policiais, Dashiell Hammett

Arthur Penn. Em muito do seu trabalho, sente-se o dedo do escritor Dashiell Hammett – com quem Lillian viveu por mais de trinta anos – tanto nos diálogos quanto em algumas situações dramatúrgicas bem desenvolvidas, com a intriga desdobrada como num bom romance policial. Quando o velho Hammett teve de comparecer perante o comitê de “Caça às Bruxas” (título de um dos polêmicos livros de LH), a escritora, mais jovem, virou uma leoa ferida e, ao chegar a sua vez, teve uma atitude inédita entre todos os convocados: recusou-se a falar “a não ser de si mesma”. Disse isso por escrito ao Comitê, avisando que não mencionaria nome algum, de amigo ou de inimigo – o que abriu caminho para a “ousadia” de outros. A mesma coragem que Lillian Florence já revelara ao se engajar, anos antes, na luta pela Causa Republi-

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cana, durante o desastre da Guerra Civil espanhola (cujo front ela visitou, naquelas levas de intelectuais atraídos, em 1936, para Madrid, Barcelona e outras cidades da península, a fim de “fazerem qualquer coisa”, fosse no volante de uma velha ambulância ou nas montanhas idealizadas pelos romances hollywoodianos de Hemingway). An Unfinished Woman é o seu relato autobiográfico mais conhecido, talvez por tratar da relação com Dashiell e da amizade com Dorothy Parker e outras celebridades que a autora madura retrata com paleta de aquarelista. Uma Mulher Inacabada foi o livro distinguido, em 1970, com o National Book Award, e dele saímos com a sensação de ter percorrido a Sibéria remota (Lillian viajou por lá – realmente – a convite de Stalin), ou que trabalhamos com o William Wyler, num agradável terraço de hotel com vista para as ruínas do Fórum, solenemente iluminado pelos tons dourados do entardecer romano. No final da vida, Miss Hellman se interessava pela memória, menos para confiar do que para duvidar daquilo que guardamos nessa caixa de surpresas. “O que retemos? O que perdemos, enquanto preservamos só uma parte das coisas? Aquilo de fato aconteceu naquela Villa toscana, debaixo do guarda-sol agora enferrujado num canto de jardim? Quem era o hóspede que acabou de sair? E que cidade é esta?”. Essas são algumas das perguntas de fundo – esperadas e inesperadas – de Maybe, o pequeno livro de 60 e poucas páginas que foi o último publicado por Lillian Hellman, em 1980. Nele, a busca do tempo perdido talvez se transforme na procura do tempo duvidoso que subsiste, de variadas formas, às vezes na mesma memória desconcertada. Quatro anos depois, viria a falecer, ainda polêmica e ativa aos 79 anos, na casa de praia onde morava – com absoluta necessidade “de ver e ouvir o mar” – no elegante balneário de Martha's Vineyard, Massachusetts. •

ALGUMAS FRASES DE LILLIAN HELLMAN: O cinismo é apenas uma maneira desagradável de dizer a verdade. Escritores são pessoas interessantes, mas, com freqüência, más e mesquinhas. As pessoas mudam e, geralmente, esquecemse de comunicar a mudança aos outros. Eu não posso (e nem quero) limitar a minha consciência para me adequar ao figurino de novas modas deste ano. Devemos perdoar os nossos inimigos, sim, mas não antes que sejam enforcados. Muita gente fantasia vitórias ou prazeres do passado para suportar o presente. Pode-se sobreviver, se se deseja isso verdadeiramente – o que é algo que só se descobre depois dos marcos da sobrevivência. Ainda não estou suficientemente idosa para gostar mais do passado do que do presente. “Dash” Hammett foi o homem mais interessante que conheci – não só porque me ensinou a escrever, mas porque nunca mentiu, nunca enganou, nunca se humilhou. Sinto falta dele! Bem mais do que sabia que iria sentir, depois de acostumada mais com os silêncios (tão sonoros!) do que mesmo com as suas opiniões, raras e valiosas.


Dança, Brasil Imagens: Divulgação

Seminário Internacional de Dança de Brasília é, ao mesmo tempo, congresso acadêmico, festival e programa de profissionalização

De 9 a 31 de julho, Brasília será palco para a 15ª edição do Dance Brasil – Seminário Internacional de Dança de Brasília, evento que é, ao mesmo tempo, festival, congresso acadêmico e programa de formação e profissionalização. Concebido e coordenado pela professora e coreógrafa Gisele Santoro, este ano o Dance Brasil apresentará coreografias criadas especialmente para a obra do compositor e regente Cláudio Santoro; espetáculos da Dance 2000 Cia. de Dança, companhia oficial do Seminário, fundada em 2000, que tem como finalidade levar a outras cidades o trabalho de criação e remontagem coreográfica realizados durante o Seminário (a turnê começa em agosto); e uma

programação alternativa, com maratona de dança e concurso com Júri Popular. O principal objetivo do Dance Brasil é estimular o desenvolvimento da dança e do bailarino brasileiros, para isso conta com a participação de professores como Hans-Joachim Tappendorff e Valdimir Klos (Alemanha), Kim Sato (Canadá), Beatriz Barceló (Espanha), Alexander Gorbatrevich e Vera Timachova (Rússia). Do Brasil, Carlinhos de Jesus, Mônica Proença e Luiz Blumenschein. 15° Dance Brasil – Seminário Internacional de Dança de Brasília. Teatro Nacional Cláudio Santoro - Esplanada dos Ministérios. De 9 a 31 de julho.

Alegoria insana Saudado pela crítica especializada como o novo teatro de revista, o espetáculo Terça Insana estará se apresentando no palco do Centro de Convenções da UFPE no final desse mês. A montagem revela um risível crítico, por vezes hard core, mas sempre inteligente. Seis atores criam seus próprios textos, fomentando a singularidade dos personagens e abordando temas cotidianos, que variam a cada apresentação. Há quatro anos em cartaz, todas as terças-feiras, em

Coiteiros Baseado na obra homônima de José Américo de Almeida (autor de A Bagaceira, considerado marco da literatura social nordestina), Coiteiros é o novo espetáculo da Cia. Spectrus de Artes Cênicas (PE). Em forma de musical, a trama acontece em algum lugar nos longínquos do Sertão nordestino, onde um romance juve-

SP, o show de humor parte para sua primeira turnê nacional, trazendo ao Recife as melhores cenas da temporada paulista no Terça Insana – Grandes Momentos. No elenco estão: Grace Gianoukas, Ilana Kaplan, Luis Miranda, Octávio Mendes, Roberto Camargo e Marcelo Mansfield. Terça Insana. Teatro da UFPE (Campus da Universidade Federal de Pernambuco Cidade Universitária. Fone: 81.3453.4344 ). De 29 a 31 de julho.

Jorge Clésio/ Divulgação

nil floresce em meio a luta entre senhores exploradores donos da terra e cangaceiros, abordando o fenômeno que transformou dezenas de homens em heróis e/ou vilões do Sertão, com seus respectivos coiteiros que os acobertavam na fuga da polícia. O espetáculo tem direção de Max Almeida.

Coiteiros. 16 de julho a 14 de agosto, aos sábados e domingos, 20h, Teatro Armazém (Armazém 14, Bairro do Recife. Tel. 81. 34245613). Ingressos: R$ 10,00 e R$ 5,00 (estudantes e maiores de 65 anos). Continente julho 2005

AGENDA

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HISTÓRIA

O fator Nabuco

Imagens: Reprodução

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Desiludido com a política com “p” minúsculo, após a Abolição, Joaquim Nabuco abandonou a ação partidária, ao contrário do que fizeram os abolicionistas americanos com a “Reconstrução” Marc J. Hoffnaguel

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historiador que tem a oportunidade de refletir sobre as diferenças que marcaram o processo de abolição da escravatura no Brasil e nos Estados Unidos fica surpreso pela rapidez com que o movimento abolicionista desapareceu no Brasil após a passagem da Lei Áurea. Enquanto nos Estados Unidos militantes do movimento contra a escravidão continuaram a lutar em favor dos negros, bem depois da Guerra Civil e da libertação dos escravos, no Brasil líderes abolicionistas se recolheram da vida pública depois de 13 de maio de 1888.

É importante ressaltar que abolicionistas brasileiros não ignoravam a necessidade de implantação de reformas que indo além da mera extinção da escravidão proporcionavam condições econômicas, políticas e sociais para que o contingente dos ex-escravos e a massa em geral da população exercessem os direitos de cidadania. Joaquim Nabuco, por exemplo, via a libertação dos escravos como o primeiro passo para uma profunda transformação da realidade brasileira. Para esse líder abolicionista, além da libertação dos escravos era preciso destruir a “obra da escravidão” através da eliminação do latifúndio, da democratização do solo, da promoção de indústria, da valorização do trabalho manual e a proteção dos direitos econômicos e políticos do trabalhador. A realização destas reformas porém, dependia do surgimento de uma agremiação política resistente aos vícios da vida política brasileira e independente dos partidos políticos existentes. Mas como criar um partido reformista independente em uma sociedade como a brasileira, onde não existia cidadania nem opinião pública comprometida com a reforma da sociedade capaz de pressionar o governo? Para Nabuco, a própria campanha abolicionista serviria como mecanismo para inverter essa situação.

“Por certo não temos povo, politicamente falando, mas é preciso supor que ele existe: a agitação acaba por fazer nascer a consciência.” Foi este o sentido das campanhas eleitorais de Nabuco realizadas no Recife em 1884 e 1887, expresso quando pronunciava seus discursos diante de milhares de pessoas. Ocorre, entretanto, que o sucesso de Nabuco como político não dependia apenas de

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discursos. Além de ser praticamente um desconhecido no Recife de 1884, Nabuco era avesso ao cotidiano da política. Na sua autobiografia admite: “Nesses anos de mocidade a que me estou referindo, a política era decerto, para mim, uma forte excitação; em qualquer cena do mundo o lance político interessavame, prendia-me, agitava-me: por isso mesmo eu não era, nunca fui o que se chama verdadeiramente um político, um espírito capaz de viver na pequena política e de dar aí o que tem de melhor. Em minha vida vivi muito da política com P grande...” Uma observação merece ser feita: cabia ao deputado liberal José Mariano Carneiro da Cunha “a primeira força eleitoral e a força mais pujante do Partido Liberal no Recife” praticar a pequena política em benefício de Nabuco. Além de ter sido instrumento em colocar Nabuco na chapa Liberal, Mariano arregimentou os eleitores e mobilizou multidões que ouviam os discursos de Nabuco nos teatros e praças da capital pernambucana. Senhor de escravos até 1884, José Mariano declarou-se “um abolicionista intransigente”, endossando a pauta de reformas apresentada por Nabuco, e insistiu que liberais da província as adotassem como bandeira de combate. Esta última foi rejeitada pelo chefe do partido, Senador Luís Filipe de Sousa Leão por “roçar próximo ao socialismo” . Para Nabuco, a aliança com Mariano servia como elemento de formação do tão almejado Partido Abolicionista. Porém a união entre eles terminou logo depois da assinatura da Lei Áurea. Isto ocorreu provavelmente porque a nova conjuntura do Brasil pós-abolicionista não era muito propícia à prática de uma política com “P grande”, tão prezada por Joaquim Nabuco. O fato é que as decisões de Nabuco em não participar das manobras parlamentares que acabaram por derrubar o Gabinete Conservador do Conselheiro João Alfredo Correia de Andrade, responsável pela aprovação final da Lei Áurea, e a de fazer oposição ao novo Ministério Liberal chefiado pelo Visconde de Ouro Preto, causaram estranheza entre vários dos seus companheiros abolicionistas em Pernambuco, incluindo entre estes José Mariano. Assim, enquanto José Mariano defendia a necessidade de capitalizar politicamente a vitória abolicionista para transformar o Partido Liberal em veículo de execução das reformas pretendidas, Nabuco se recolheu, ausentando-se da vida partidária. A explicação foi a seguinte: “Eu hoje luto por idéias e não por partidos. Nas idéias sou intransigente; quanto aos partidos políticos não me presto mais a galvanizá-los” . Tudo leva a crer que Joaquim Nabuco não percebeu que a “destruição da obra da escravidão” no Brasil exigia tanto o exercício de uma política com “P grande” como o de uma política com “p pequeno”. Que sem esses dois tipos de política o sonho de transformar a realidade brasileira permaneceria apenas isso: um sonho. É interessante observar que nos Estados Unidos a vitória do Partido Republicano na Guerra Civil desencadeou um longo período de corrupção e o exercício de práticas que passavam muito distante de uma política com “P grande”. Contudo, este mesmo partido político foi responsável por um dos experimentos sociais mais audaciosos realizados em uma sociedade pós-abolição. Trata-se de uma tentativa do Estado de integrar os ex-escravos do Sul como cidadãos. Esta tentativa, conhecida como a “Reconstrução”, fracassou após uma década de vigência. Porém não caiu no esquecimento.Assim é que a luta pelos direitos civis dos negros iniciada na década de 1960, naquele país, é conhecida, até hoje, como a “Segunda Reconstrução”. •

Acima, Joaquim Nabuco, em 1901. Na página ao lado, o abolicionista, aos 15 anos, em 1864

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Tudo ou nada É comum perguntar-se: – Como não vi antes? Toda a vida esteve na minha frente e eu não enxerguei!

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ão existe sensação melhor do que uma descoberta. Não precisa ser a teoria da relatividade, nem as minas do rei Salomão, nem um programa de computador. Falo de coisas simples. De pequenas surpresas. Um livro esquecido na prateleira da estante, folheado com displicência. O Legado de Ezster, de Sandor Márai. Lê-se. Vem o assombro. Meu Deus, ganhei este romance quando completei 21 anos! Por que só agora ele caiu nas minhas mãos? Ninguém me recomendou que o lesse, e por acaso... Será mesmo por acaso? Entra-se no cinema para preencher o espaço de tempo entre o almoço e a reunião marcada para as quatro horas. Fazer o quê? Não dá para descansar em casa, o trânsito nunca esteve tão engarrafado como naquele dia de chuva. No cinema, tem o ar condicionado. Pode-se tirar um cochilo. Qual é mesmo o filme? Esquecemos de olhar. Antes do sono, as primeiras imagens. Chocantes. Não desgrudamos os olhos. Puxa! Quem é o diretor? Não conheço. Jean-Pierre e Luc Dardenne, lemos no final. L'Enfant, O Filho, numa tradução canhestra. Que filme! Quase um ano depois ganha o festival de Cannes. Eu previa a glória, meu faro de cinéfilo nunca me enganou! Frevo? Esgotaram o repertório. Levino foi profético quando compôs o seu “Último Dia”. Por que não batizou a música de último frevo? Caixão e vela preta para o ritmo pernambucano. Quem disse que está morto? Está! Não está! A mulher esqueceu um CD no porta-luvas do carro. Um disco de frevo? Não é possível! Fazer o quê? “A estrada é longa e o caminho é deserto...” Na falta de coisa Continente julho 2005

melhor, taca o disco. E é o maestro Spok. Espanto! Isto é frevo ou jazz? Jazz-frevo. O frevo não jaz. Ressuscitou. É novo. A constatação de que você chegou sozinho à fonte, de que ninguém lhe mostrou o caminho; de que algo curou a cegueira dos seus olhos, revelando o que esteve diante deles por muito tempo, é a prova suficiente do seu espírito investigador. Não desista! Você tem o que descobrir. É comum perguntar-se: – Como não vi antes? Toda a vida esteve na minha frente e eu não enxerguei! Igual a Scarlet O’Hara, no filme E o Vento Levou, perseguindo um amor imaginário, quando sua grande paixão estava ao lado, o maridinho, e ela obcecada por outro. Mas nem quero deter-me nas descobertas amorosas, nesse desvelar-se súbito, como um raio que se precipita do céu sobre nossa cabeça. Ou no coração, eu lá sei. Convivemos anos com uma mulher, e um dia, como se fosse uma reação química em sistema aberto, por interferência de não sei qual enzima ou catalisador, acontece a misteriosa descoberta. – Mas você está falando de Joana? – Sim, dela mesma! – Aquela magra que se formou em odontologia, com você? – Ela, a que nunca parava de mascar chicletes. E eu odeio chicletes. – Não acredito! – Nem eu. Mas juro que estou apaixonado e vou casar com ela.


ENTREMEZ

Não se espante com o big bang. Voltamos ao empirismo da alquimia, à busca da pedra filosofal, ao tempo em que se pesquisava o ouro na merda. Reflita sobre o número de vezes em que você sentiu o comichão do descobrimento. Agora, constate que todos os dias isto lhe acontece, em coisas bem simples como constatar que a rúcula não é tão amarga, é até saborosa, lembra um fruto verde que você comia na infância. Sim, é verdade! Dá para encarar o prato cheio de folhas à sua frente, para o bem do colesterol, dos triglicérides, das coronárias, dos intestinos, do que for preciso. Basta acionar o botão do “achei”. O grito de “eureka!” de Arquimedes, quando estava imerso numa banheira e descobriu o braço de alavanca. Haverá maior genialidade do que encontrar sabor na rúcula? Só mesmo apreciar o amargo da cerveja. Fomos subestimados, sempre. Tratam-nos como se não fôssemos os engenhosos inventores da nossa vida, dos pequenos artifícios que engendram a sobrevivência. Existem os que escalam o Monte Everest, sujeitos ao frio, aos perigos das avalanches de neve. Os que trabalham em salas fechadas, de iluminação artificial, anos a fio diante de um computador. Os que representam papéis de atores, acreditando que repre-

sentam bem. Os que vendem pitomba nos sinais, ou ingá, ou jabuticaba, dependendo da safra. Os que assistem a um show de Reginaldo Rossi, espremidos no meio da multidão, e juram divertir-se. Em todos, essa motivação por continuar vivendo prevalece sobre a vontade de pular fora do jogo. Agarram-se ao mote do poeta Luís de Camões, que nunca leram mas sabem de cor: “E aqueles que por obras valerosas/ Se vão da lei da Morte libertando”, e recitam e proclamam aos brados: “– Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.” Batizem com o nome que quiserem a moenda que tritura o nosso tempo – Maya, Ilusão, Pulsão de Eros –, pois continuaremos ocupados com as nossas descobertas diárias, os fazeres que se abrem para outros afazeres. Como na música “Malandragem”, de Cássia Eller, “dirijo o meu carro, tomo um pileque, mudo uma planta de lugar”, de modo rotineiro e indiferente. Talvez, a única maneira de garantir o nosso engenho e arte seja permanecer atento ao que jaz oculto sob a aparência do nada. E descobrir sempre mais alguma coisa, mesmo que em nada. • Continente julho 2005

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TRADIÇÕES

Bacamarteiros, senhores do ribombo e da paixão

Geyson Magno/Ag. Lumiar

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O jornalista e pesquisador Olímpio Bonald Neto relança Bacamarte, Pólvora e Povo, pesquisa rara sobre os “sublimados guerreiros da caatinga” Isabelle Câmara

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uando falou na montaria espetaculosa dos vaqueiros em Os Sertões (“Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde o desgarre folgazão – largamente expandido nos sapateados, em que o estalo seco das alpercatas sobre o chão se parte nos tinidos das esporas e soalhas dos pandeiros, acompanhando a cadência das violas vibrando nos rasgados – e cai na postura habitual, tosco, deselegante e anguloso, num estranho manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.”), Euclides da Cunha certamente poderia se referir a outros brincantes que alteram a paisagem bucólica do Agreste e do Sertão: os bacamarteiros, atiradores festeiros que saem pelas ruas ribombando, especialmente durante o período junino, e dançando xaxado ao som das bandas cabaçais. A fogueira já virou cinzas, os bacamartes estão dependurados atrás das portas, mas os pequenos exércitos de tiros e festejos continuam brilhando como objeto do livro Bacamarte, Pólvora e Povo (Edições Bagaço, 164 págs.), do jornalista e pesquisador Olímpio Bonald Neto. Lançado originalmente em 1965 e apresentado como, ainda, a única obra da literatura especializada que trata desta manifestação popular, Bacamarte contém uma ampla pesquisa antropológica e sócio-cultural sobre os bacamarteiros.


TRADIÇÕES

Assim como Pereira da Costa e Mário Souto Maior, Olímpio Bonald Neto apresenta uma obra não sistematizada, mas que se não as tivessem feito, muitas informações sobre as culturas populares estariam perdidas. Sobre os senhores do ribombo e da paixão, Bonald começa com o significado da palavra, alertando para o fato de que o termo ainda não foi cunhado nos dicionários brasileiros. Discorre sobre a origem da brincadeira; sobre o Sertão; a tradição como esporte “de macho” (assim como a vaquejada); o município de Caruaru, que reúne o maior número de grupos bacamarteiros de Pernambuco (existem 28 batalhões em todo Estado, cada um com mais de 60 homens; seis deles estão na área urbana de Caruaru); a co-relação entre bacamarteiros e passistas de frevo, classificando-os como “agressores sublimados”. Segundo o pesquisador, os homens que saem às ruas vestidos com seus uniformes de brim azul ou cáqui, lenço vermelho no pescoço, chapéu de couro, cartucheiras, armas de cano curto e grosso – bacamartes, riúnas ou reiúnas – para desfiles e exibições de bravura são reminiscências simbólicas dos embates sertão adentro e país afora (especialmente da Guerra do Paraguai): adotam uma estética e conduta similar às tropas oficiais; a hierarquia dos grupos é militar e os atiradores só descarregam as armas sob as ordens do comandante. Sertanejo e bacamarteiro são um só; um não vive sem outro. O homem trabalha o ano todo para manter a brincadeira de alguns dias e transcender suas angústias por meio dos estrondos. Bonald afirma que eles mantêm uma conexão quase ritualística com o folguedo: “À medida que vão descarregando suas armas ao comando do apito, escutando o reboar dos ribombos pelas grotas e serranias, e os gritos dos companheiros e os seus próprios gritos com que fazem acompanhar os disparos (gritos e exclamações assemelhadas aos dos cangaceiros e policiais em luta nas caatingas), a excitação coletiva atinge estados paroxísticos. (...). “Não vamos a ponto de dizer que haja perda completa de consciência no transe bacamarteiro. Porém, que o atirador em determinadas circunstâncias especiais, chega a um estado de êxtase, desligando-se, parcialmente, da realidade do mundo exterior, todo preso ao automatismo de disparar, rasgar o cartucho, carregar a arma, colocar a espoleta no ouvido, armar o cão, tomar a posição e novamente disparar, gozando o estrondo, aspirando a fumaça branca para recomeçar a sucessão de movimentos automatizados, isto parece-nos indiscutível”. E explica que o bacamarteiro também estabelece uma relação simbiótica com a arma. “Cada atirador, para se incorporar aos batalhões e praticar o esporte, necessita ser dono de sua própria arma. (...). Quem, por qualquer motivo, não quer mais atirar, por um pudor especial, não oferece seu bacamarte a ninguém. Aguarda a oferta”. E prossegue: “O atirador faz sua própria pólvora. A fórmula é simples e eficiente: 1 kg de salitre do Chile, 200g de enxofre em pedra, 200g de carvão vegetal moído e pisado no pilão doméstico junto com uma garrafa de cachaça (que também serve como “combustível” para os brincantes), para dar a liga”. Mesmo na sua reedição, o livro tem uma apresentação gráfica rudimentar; narrativa cheia de idas e vindas (o que ficaria muito bom em uma ficção), não atualizada (“Em 1928, uma arma boa custava 150 réis, hoje custa Cr$ 10.000,00”) e não revisada – contém erros de acentuação, pontuação e digitação. Mas é um importante documento sobre a tradição mágica dos estrondos e o modo de vida deste outro sertanejo – como diz Euclides da Cunha, batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte. •

Bacamarte, Pólvora e Povo, Olímpio Bonald Neto. Edições Bagaço, 164 páginas. R$ 15,00.

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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

Jograis da indecência Quando foram sérios os políticos deste país?

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stão podres os poderes constituídos do nosso Brasil. Todos que são o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Políticos sem estirpe, sem história, sem-vergonhas. Os poucos, que são quase nada, restam ainda com patranhas, omissões e oportunismos. Em vez de formarem, como na Idade Média, grupos de trovadores ou de intérpretes de poemas e canções românticas ou até dramáticas, declamadores de fábulas de cunhos moralizadores. Que coisa nenhuma. Os políticos que o povo vê hoje, na mídia, não passam de pivôs reais de escândalos, os mais horripilantes, explodindo-se em farsas. Falsos comportamentos típicos dos melhores representantes dos caras lisas em jogralescas de arrepiar e denegrir a honrada vida de qualquer pobre, tal Barnabé de Compiègne – um jogral personificado em contos universais, que atraía as crianças e os basbaques com graciosos recitativos e malabarismos empolgantes através de bolas de cobre jogadas para o alto, reluzindo-as ao sol. Ao Poder Executivo, o sempre chororô dos governantes traídos – presidentes, governadores e prefeitos – que, de jeito e maneira, jamais deixaram de tomar conhecimento dos atos de corrupção e vandalismo à consciência de seus legítimos eleitores, sempre e sempre enganados por esperanças que continuamente estão de volta a cada pleito democrático aos corações animados da plebe rude marginal – exclusos do social e da dignidade de parecer um ser humano. Do Legislativo, cruz credo, a usualíssima performance de enganar o povo que às urnas compareceu para exaltar seus senadores, deputados e vereadores em suas promessas nunca cumpridas. E, pior, esses parlamentares permanecem se defendendo, sem convencimento, de todas as denúncias formuladas de enriquecimento ilícito, negociatas, vendas de votos e locações de partidos – que não mexem nem em 1% das chocarrices que se escondem a partir das tapadeiras dos círculos oficiais do Planalto Central.

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E o nosso Judiciário, hein? É de fazer chorar. Homens que gostam e se enroscam em togas pretas das mais vestais a engrolarem bestiais termos jurídicos em suas falas enroladas e pernósticas (com, repito, exceções de quase nada dos que sobram). Estou me referindo principalmente e quase exclusivamente àqueles “donos” da verdade absoluta – acima de todos nós pobres mortais –, juízes e desembargadores indicados pelas diversas instituições para o STF, TSJ e judiciários estaduais, sancionados e festivamente aplaudidos por chefes de governo. Óbvio que não merecem a confiança do povo, pois ao serem nomeados por ditas autoridades, voltam-se contra os contribuintes que pagam seus pomposos salários, contemplando os desejos políticos dos seus “padrinhos” em outros poderes (lembra, caro leitor, do acordo que protagonizaram com o presidente Lula e seus barbudinhos do PT na votação da taxação dos inativos?). O que assistimos nos últimos dias pela Imprensa é não só revoltante, mas, mesmo ainda não havendo a comprovação das safadezas denunciadas nos vários segmentos políticos e empresariais do País, faz com que ninguém de sã consciência desacredite nos tantos desmandos acumpliciados por aqueles que, deslavadamente, têm a coragem de falar em abalo da democracia. Imaginem, dizem os personagens destes pífios episódios, que estão querendo desestabilizar a democracia – frágil ainda por estas bandas – como se democracia fosse sinônimo de corruptela. Cobertos de chinquilhos do mal, cada um destes muitos desabonadores de nossa Pátria de nenhuma forma poderá desempenhar um Jogral como Barnabé de Compiègne, um bem-aventurado, que Anatole France levou à benção de Nossa Senhora, beijando o chão dos veneráveis e concedendo-lhe o Reino dos Céus. Aos maus políticos, deles será a prosápia irreversível do inferno. •




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