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EDITORIAL Flavio Lamenha
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Spok Frevo Orquestra: sopro de renovação na música pernambucana
O novo no frevo e as utopias
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úsica definidora, por excelência, do caráter pernambucano, o frevo (corruptela do verbo ferver), como todo patrimônio imaterial de uma comunidade, tendeu a se cristalizar. Daí ao conservadorismo é um passo. Foi o que aconteceu. Não obstante experiências isoladas, a começar pelo célebre solo da segunda parte do Vassourinhas, espécie de hino do Carnaval pernambucano, pelo saxofonista Félix Lins de Albuquerque, o Felinho (1895-1980), e de outras, mais recentes, como certas inovações saídas das batutas dos maestros Clóvis Pereira e José Menezes, basicamente a estrutura e a execução desse gênero musical tendiam para imutabilidade. Com isso, cedia precioso espaço, entre aqueles de mentes mais inquietas, para outros tipos de música. A sombra circunspecta do pensamento conservador parecia cobrir nosso ambiente musical, como se proclamasse: “Não mexam no frevo!” Há cerca de dois anos, num festival de jazz no Pátio de São Pedro, o público atento ficou estupefato, quando subiu ao palco a orquestra do jovem maestro, arranjador e saxofonista Inaldo Cavalcanti Albuquerque, o Spok. Não apenas pela presença de uma orquestra de frevo no
evento em si, mas pela verdadeira revolução que se desenrolava à vista (e aos ouvidos) de todos. Já conhecido e respeitado no meio musical, Spok começava a projetarse ali diante do grande público. Não havia dúvidas: o som do seu saxofone e dos instrumentos dos demais competentes e criativos integrantes da orquestra era um sopro renovador, vigoroso e potente, na história do nosso ritmo “nacional”. Nesta edição, a reportagem principal apresenta a trajetória, o perfil e o trabalho de Spok, assim como depoimentos de seus pares sobre a renovação, não isenta de polêmica, encarnada pela Spok Frevo Orquestra. O maestro Edson Rodrigues analisa tecnicamente o impacto de seu trabalho e o professor Jarbas Maciel expõe as semelhanças genéticas entre o frevo e o jazz, pondo por terra certos purismos equivocados. Completando este número, trazemos uma pensata sobre o papel da utopia (que, como a História, já teve seu fim proclamado) no mundo contemporâneo. Sonho impossível, capaz de deflagrar fanatismos ou ponto de referência essencial para transformação do mundo, as utopias são aqui discutidas numa abordagem pluralista e instigadora. • Continente agosto 2005
Reprodução
CONTEÚDO Hans Manteuffel
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08 Spok e seu saxofone
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De Paris, a arte de Juarez Machado
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CAPA
08 A evolução do frevo tem nome: Maestro Spok 14 Improvisação mantendo a qualidade 16 As raízes comuns do frevo e do jazz
LITERATURA
ARQUITETURA 60 Há 40 anos morria Le Corbusier
CINEMA 66 Carla Camurati brilha novamente
18 Reinvenções e "reescrituras" no texto
MÚSICA
contemporâneo 24 Festival celebra a literatura no Recife 25 Poesia de José Mário Rodrigues 26 Prosa de Daniel E. San Martin 28 Agenda livros
71 Lirinha: parceiro de José Celso Martinez 74 Agenda música
CONVERSA
32 Suíço mostra que filosofia pode ensinar o bem viver
TEATRO 76 Em busca da utopia perdida 80 Os estragos da utopia 83 A cidade-de-nuvem 84 Tristes tempos pós-utópicos 86 O sono da razão
ARTES
REGISTRO
38 O universo exuberante de Juarez Machado 50 Agenda artes
90 A preservação da memória de Thoreau
QUADRINHOS
94 O aniversário do mais antigo mercado público brasileiro
52 O erotismo de Carlos Zéfiro em novas edições
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TRADIÇÕES
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Edifice/Corbis
CONTEÚDO
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Reprodução
A volta dos “catecismos” de Carlos Zéfiro
56 A arquitetura revolucionária de Le Corbusier 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96
Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 Quando jovens médicos são submetidos a choques éticos
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 30 Os humanos estão classificados quanto ao potencial de consumo
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 48 A elétrica energia do artista reinventor de mitos
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 A pinha: fruta-do-conde, ata, anona, “cabeça de negro” etc.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 65 O que realmente gosto de fazer é ver a banda passar
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 A Bíblia, o mais visceral de todos os livros
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 De repente, irrompe na suíte presidencial o mordomo do Palácio... Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente agosto 2005
CONTRAPONTO Carlos Alberto Fernandes
Morte sem dignidade A profissão médica no Brasil é cheia de escolhas, e decidir deixar viver ou deixar morrer é das mais duras Através dessa alternativa de escolha que fere de morte o sentimento da governabilidade e da democracia, o desabrochar de uma profissão agoniza de esperanças, dado que a realidade das carências governamentais faz uma escolha em vida pela morte. Não foi para escolhas desse tipo que educamos nossos filhos. Suas vidas merecem caminhos melhores. Suas primeiras experiências não podem incorporar deformações congênitas. Os pilares éticos de uma vida profissional não podem ser construídos em terreno pantanoso. Não se podem construir sonhos num castelo de horror. Que suas lágrimas cicatrizem as feridas de sua alma, mas apóiem-se em Hipócrates e não deixem macular sua vida e sua arte. Na história, situações desse tipo parecem acontecer somente nas guerras. É evidente que a insegurança, a corrução dos governos, a incompetência consentida e o capitalismo predatório – onde todos querem levar vantagem – tornam a vida uma guerra. E o pior é que é uma guerra não declarada e o inimigo convive conosco nas sombras. Nas sombras do poder. Nas sombras dos orçamentos. Nas sombras dos programas de inclusão social. Nesse ambiente, é em nome da democracia e da governabilidade que o Parlamento e suas alianças espúrias se mantêm; e dos excluídos, que se mantêm os discursos dos avanços nos programas sociais. Em nome da saúde do povo e da eficiência edificam-se hospitais que não funcionam, recursos astronômicos viram pó e se agigantam o empreguismo e as máquinas burocráticas. Em nome de Jesus Cristo a mercantilização da fé mobiliza massas enormes de crentes e fiéis. Em nome dos Santos se reza para curar doenças, fazer cego enxergar e aleijado andar. Mas é em nome de Deus que são projetadas esperanças de uma vida melhor, no paraíso. Mas, minha filha, conforme você tem sido testemunha, é em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo que se constroem catedrais e se enterram os mortos vítimas de toda essa indignidade que é a saúde no Brasil. • Ilustração: Lin
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ça de Queiroz certamente diria que a desilusão de suas profissões pode fazer suas almas tediosas, encher seus corpos de uma moleza errante, de desesperos lentos, de angústias frias. Pode minar suas energias, suas vontades e sua coragem. Pode transformá-los em espantalhos diante da impotência de não poder salvar a vida de quem agoniza. Na profissão médica, escolher entre deixar viver ou deixar morrer é uma das decisões mais tenebrosas. Imagine o choque ético provocado em uma jovem médica de 27 anos, quando é submetida ao constrangimento profissional de decidir quem vai para a vaga da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Escolher, entre pacientes graves, quem deve viver ou morrer. São desafios que não se comparam ao competitivo vestibular, ao longo e exaustivo curso de seis anos, nem tampouco aos concursos de seleção para residência médica. Nos hospitais públicos, os pacientes são muitos. As condições de atendimento, precárias. As vagas nas UTIs, para os doentes graves, limitadas. Inexistem possibilidades de atender a todos. Trata-se de uma incompatibilidade entre recursos e necessidades, realidade e virtualidade. Sem capital financeiro, político ou social, muitos entrarão na estatística dos excluídos. Sem recursos médicos, muitos não sobreviverão. Daí ser preciso escolher entre aqueles a quem pode restar uma esperança de vida e os que nem a mínima oportunidade de esperança lhes é dada – posto que não há vagas. Para quem assumiu o compromisso inalienável de salvar vidas, trata-se de uma alternativa vil e constrangedora. Decisões desse tipo, deixadas nas mãos de jovens médicos, agridem a consciência, maltratam a alma e corroem sentimentos. Desacredita os humanos, desespera, desumaniza e mata. Assassina os mais pobres, os mais humildes, os indigentes. Minimiza a grandeza de uma profissão e os sonhos humanitários dos nossos jovens médicos. Violenta a dignidade de nossos filhos, agride os princípios éticos e coloca por terra nossas esperanças de um país melhor.
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Flávio Lamenha
CAPA
O renovador do frevo
Spok
Desconstruindo e reconstruindo o frevo, jovem maestro protagoniza com os músicos de sua orquestra uma revolução musical não isenta de polêmica José Teles
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O
adolescente Inaldo Cavalcanti Albuquerque caminhava por uma rua de Olinda, no carnaval de 1986, quando foi atraído por um frevo vindo de um carro de som. Era a versão de “Vassourinhas” interpretada pela orquestra do maestro Nelson Ferreira com o antológico improviso de saxfone de Felinho (1896/1980): “Parei na hora. Fiquei de bobeira, e fui até o carro pedir para o cara tocar novamente a música”, relembra Inaldo, o hoje aclamado saxofonista e maestro Spok. Ele é considerado, como Felinho, um renovador da linguagem do frevo, por conta do seu trabalho com a Spok Frevo Orquestra, cujo primeiro CD, lançado no início deste ano, já virou cult entre músicos de todo o país. A novidade da orquestra partiu de uma obviedade, que Felinho havia descoberto na década de 50: em vez de seguir rigorosamente a partitura, por que não enriquecer o frevo com improvisos? Spok foi ainda mais longe. Na Spok Frevo Orquestra todos os músicos improvisam. No clássico ensaio Frevo, Capoeira e Passo, o teatrólogo e músico Valdemar de Oliveira condena as inovações que paulatinamente iam sendo introduzidas no frevo. E ao comentar sobre a “Marcha n°1 de Vassourinhas” tece críticas, sem citar nomes ao improviso de sax, o mesmo que encantou e influenciou o maestro Spok: “Há a lamentar, na execução dessa marcha, hoje em dia, o andamento extremamente rápido e os floreios de saxofone da segunda parte, coisa improvisada por certo virtuose do sax e logo aperfeiçoada por outros. É uma desfiguração lamentável, que responde pelo aceleramento incômodo do andamento”. Mais na frente Oliveira enfatiza sua convicção de que o frevo não é de aceitar inovações, a não ser as que ocor-
Maestro Duda: por ele passaram os jovens inovadores
ram como parte de sua evolução natural: “Repita-se o conceito: o frevo-de-rua em Pernambuco vem evoluindo naturalmente. Será erro introduzir nele valores novos, que o povo refugará, com a mais absoluta certeza...no dia em que lhe meterem ingredientes de bossa-nova, de iêiê-iê, de bop e quejandos, por mais belos, ricos e importantes que sejam, perderá o grau de concentração de que precisa para atiçar a chama do passo”. Os floreios do tal virtuose do sax, ou seja, Felinho, revitalizaram o frevo, a ponto de hoje não se conceber a execução de Vassourinhas sem eles. Por sua vez, Valdemar de Oliveira, e aí o próprio Spok admite, tinha razão quanto a um frevo turbinado por elementos de outros gêneros continuar sendo apropriado ao passo: “A gente faz frevo-de-rua de palco. Alguns falam em frevo-de-rua jazz. O que eu sei é que quase ninguém dança quando Fotos: Flávio Lamenha
CAPA
Chico Porto/JC Imagem
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CAPA tocamos, preferem ouvir. Já aconteceu de a orquestra estar tocando, pessoas levantarem para dançar e as outras reclamarem”, comenta Spok, acrescentando que a intenção é mesmo esta: “Quando a gente vai assistir a uma exibição de frevo na Casa da Cultura, por exemplo, o que se vê são os passistas à frente da orquestra, da música. Com a minha orquestra, a música é que fica na frente de tudo o mais”. O apelido pelo qual é conhecido vem do personagem do seriado Jornada nas Estrelas, o doutor Spock. “Porque, na sala de aula, em Abreu e Lima, eu costumava mexer com as orelhas. Acabou pegando. Hoje em dia, tem músico da orquestra que não sabe meu nome verdadeiro”, esclarece o maestro que, além desta mobilidade auricular, tem pouco do carrancudo doutor Spock. É amável, acessível e tímido. Nascido em Igarassu, um dos 21 filhos de Leonilo Pessoa, entusiasta por música, mas que nunca tocou nenhum instrumento, Spok acha que a veia musical dele vem de “tio Pessoa”, irmão do pai e músico profissional: “Mas meu pai me levava para ver bandas, orquestras, apresentações de cantadores”, recorda. A primeira música que Spok aprendeu a tocar foi a toada “Asa Branca” (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira): “No ginásio, havia na classe uns caras que estudavam música, viviam falando em música e eu por fora. Um deles, Ademário Vieira, foi quem me ensinou a tocar “Asa Branca” numa flauta doce. Ensinou também como tocar a música por partitura, que escreveu uma folha de caderno. Ele hoje está na orquestra”.
“Outros músicos já deram tratamento diferente ao frevo. Conseguimos a liberdade no frevo sem perder a essência”
O próximo professor seria um maestro de banda, Policarpo Quaresma, o Maninho (que vive atualmente na Austrália). Com ele, Spok aprendeu a escrever e a ler música, e seguiu os passos que praticamente todos os grandes maestros de frevo seguiram: entrou para uma banda de música, foi integrante, inclusive da lendária Saboeira, de Goiana, de onde saíram, entre outros, o seu futuro mestre, o maestro Duda (é casado com uma neta do maestro): “Para mim, esta é a verdadeira escola. Minha vida durante muito tempo foi banda de música”, continua Spok. Ele se profissionalizou com 14 anos, idade em que garotos costumam escutar pop/rock: “O rock que eu conheci era o que tocava no rádio, mas a minha música era a das bandas, hinos, dobrados. Foi com esta idade que meu pai me deu o primeiro sax”. “Na Pancada do Ganzá” – Foi exatamente com um artista considerado conservador, avesso a inovações, Antonio Nóbrega, que Spok reuniu pela primeira vez os músicos que formariam sua já famosa orquestra. Na década de 90, o carnaval pernambucano dividia-se entre a folia sem cordões de isolamento de Olinda, onde predominavam os ritmos pernambucanos, e o carnaval baiano, da Avenida Boa Viagem, cuja trilha era a axé-music. Em 1997, Nóbrega decidiu enfrentar os trios elétricos criando um bloco, o “Na Pancada do Ganzá” (título tomado emprestado a Mário de Andrade) e ousou convidar Chico Science, do Nação Zumbi, para desfilar com ele na avenida. Spok, que já havia tocado em várias orquestras, como as de, entre outros, Duda, Dimas Sedícias, Ademir Araújo, Edson Rodrigues, foi também convidado pelo criador de Tonheta, com quem já havia gravado, para animar o “Na Pancada do Ganzá”.
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Hans Manteuffel
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Arnaldo Carvalho/JC Imagem
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Nóbrega chamou Spok para gravar e desfilar no Carnaval
No entanto, no dia 7 de fevereiro, uma tragédia frustrou os planos de Antonio Nóbrega. Chico Science faleceu num acidente de carro, no Complexo de Salgadinho: “Fizemos um ensaio com Chico, no Teatro do Parque”, conta Spok. Em reverência a Science, o bloco fez um desfile silencioso e comovente na passarela dos barulhentos trios. Foi o primeiro e único. Mas deixaria como fruto a Spok Frevo Orquestra, montada com a ajuda do primo do maestro, o também saxofonista Gilberto, com quem ele já havia tocado na orquestra de Duda. Foi mais uma vez acompanhando Nóbrega que Spok mudou o curso de sua música “Essa coisa da improvisação aprendi com Edson Rodrigues, para mim um dos melhores músicos do país. Com ele comecei a gravar frevos, jingles, a ganhar dinheiro. Mas foi viajando com Nóbrega, em festivais no exterior que comecei a pensar em fazer uma coisa diferente. Eu via aqueles músicos improvisando, e me perguntava por que não se poderia fazer o mesmo com o frevo, que eu tocava tão tradicional, seguindo a partitura, enquanto aqueles músicos faziam jazz”. Spok faz questão de esclarecer o sentido que ele dá ao termo jazz: “Não é o jazz de Charlie Parker, John Coltrane, tem mais a ver com liberdade. Outros músicos já deram tratamento diferente ao frevo. Só que a gente é daqui, pernambucano, conseguimos a liberdade no frevo sem perder a essência”. E novamente Spok concorda com o conservador Valdemar de Oliveira, para quem o frevo não era planta que se transplantasse para outra região: “Às vezes vou tocar fora, encontro mestres e eles vêm me perguntar como é possível que a gente toque desta forma. Querem saber tocar feito Adelson Silva, baterista da orquestra. Não adianta, tem que ser de Pernambuco para saber”, diz Spok, um músico sem preconceitos. Seu sax alto pode ser escutado numa miríade de discos. O cearense Fagner não prescinde de Spok quando está em turnê: “Ele também é uma prioridade minha. Cheguei a Fagner levado por João Lyra (o violonista) e Zé Milton (o produtor), até agora consegui compatibilizar o meu tempo com a orquestra e com ele”. Quem acha que Spok já foi muito longe na sua mexida no frevo não perde por esperar: “Tenho umas idéias aí, não sei se já dá para falar sobre isso. Não sei se terá elementos eletrônicos. O que posso adiantar é que umas idéias novas para o frevo-canção vamos ver se vão funcionar”. • Continente agosto 2005
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SOBRE SPOK ED MOTTA (cantor, compositor e músico) “Costumam dizer que não escuto nada novo. Nada disso. Escuto. Por exemplo, nos últimos tempos, tenho escutado o tempo inteiro a orquestra de Spok. A primeira vez que ouvi me perguntei: o que é que é isso? É o único disco recente que está no meu iPod (60 gigas de capacidade de armazenamento)”. LÉO GANDELMAN (saxofonista) “É sensacional. Acho o trabalho de Spok maravilhoso, poderoso. Tenho divulgado bastante o que ele está fazendo. A verdade é a seguinte: a maior escola de sopros do Brasil vem daí, por causa do frevo, e Spok está trazendo uma luz nova para o frevo”. ANTONIO NÓBREGA “Spok vem nesse caminho de revitalizar o frevo, incorporando bastante o universo da improvisação. Agora, a própria banda e ele estão se divulgando com um conceito que acho mal empregado: frevo-jazz. Se há alguma coisa, se algum músico emprega algum tipo de procedimento jazzístico, acho que não é motivo para se afirmar que se está fazendo frevo-jazz. Não vejo razão de dignificar o que fazemos através do paradigma americano” . CUSSY DE ALMEIDA (maestro e compositor) "O improviso no frevo não é novidade, é até bastante antigo, muitos solistas de orquestra de frevo fazia isso, como Jones Johnson, Zumba, Lourival Oliveira, Zé Menezes, Felinho.Era comum Nelson Ferreira parar a orquestra, ficar só no piano enquanto Felinho fazia improvisações. Isso estava em desuso porque a qualidade dos músicos caiu muito nos últimos anos, mas Spok tem condições de fazer isso novamente porque está com músicos muito bons em sua orquestra". ZÉ MENEZES (maestro e compositor) Gostei muito, porém não é disco para o carnaval. É para mostrar ao mundo. ADEMIR ARAÚJO (maestro e compositor) É o frevo com tudo, do jazz ao free. Tem essas variantes que foram iniciadas por Felinho. Ele pode repetir o que fez Gershwin com a música negra”. HUGO MARTINS (radialista e pesquisador de frevo) Felinho fez uma inovação danada e Spok continua renovando. Claro que é mais uma música para ouvir, mas eu aprovei, achei muito bom, tanto que estou tocando no meu programa de rádio”. CLÓVIS PEREIRA (maestro e compositor) “O frevo vem progredindo através dos anos, mas muito lentamente. Os músicos têm sido menos informados do ponto de vista técnico. Esse frevo de Spok é uma tentativa válida, mas para quem quer ouvir em teatro. Na minha opinião vai demorar para pegar na rua. Pode ser comparado ao jazz pela forma orquestral. NANÁ VASCONCELOS (percussionista e compositor) Spok é maravilhoso, é uma pena que more aqui em Pernambuco, onde se valoriza pouco a música local. Ele está fazendo o que deveria ter sido feito há muito tempo. Spok é rebelde, mas está pensando no jazz, e com isso não sou de acordo. Tem que tirar o jazz da cabeça e sacar que no Brasil existe uma música que pode ser tocada com improvisos, sem os mesmos fraseados dos americanos. Continente agosto 2005
Hans Manteuffel
Um fenômeno chamado Spok Foi uma avaliação da situação do frevo nas últimas décadas que o fez enveredar pelo caminho da improvisação, do modo diferente de tocá-lo, mudando o invólucro, sem macular a dignidade e a qualidade do produto Edson Rodrigues
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naldo “Spok” Albuquerque, 35, é a nova sensação da cena musical pernambucana à frente da Spok Frevo Orquestra. Nascido em Igarassu, na área metropolitana do Recife, teve o seu primeiro contato com a música através de Maninho (Policarpo Lira), mestre da banda de música de Abreu e Lima. Com o seu jeitão de garoto, Spok encarna a nova fase do frevo, o que o tem feito dele a bola da vez no meio artístico musical nordestino. A partir do seu talento, carisma e muita simplicidade, reuniu um grupo de músicos, homogêneo e de muita competência, o que nos garante que o frevo estará bem vivo e mutante, pelo menos, nos próximos decênios deste novo século. Quem diria? Órfão de pais vivos, o frevo estava vivendo das composições do maestro Nunes, grande batalhador, formador de muitos dos músicos que suam tocando e garantindo a sobrevivência do frevo-de-rua para os que curtem a música tocada nas ladeiras de Olinda ou nas poucas ruas estreitas do Recife, uma vez que os grandes bailes dos clubes sociais da metrópole são coisa do Continente agosto 2005
passado. Spok nos conta que a orquestra foi, inicialmente, Banda Pernambucana. Isso lá pelos idos de 1997, acompanhando Antônio Carlos Nóbrega no show Na Pancada do Ganzá. Com esse espetáculo o frevo foi à Áustria, a Montreux e à França. Em 2000, com o novo show de Nóbrega, Pernambuco Falando Para o Mundo, a orquestra fez um novo giro pela Europa. A essa altura, já com o suporte de produção de Zé da Flauta e Wellington Lima, que sugeriram ao maestro que colocasse o seu nome na orquestra, coisa muito em voga em Pernambuco. Spok tentou reagir à idéia, mas rendeu-se às argumentações da produção e aí surgiu a Spok Frevo Orquestra, composta de quatro saxofones (dois altos e dois tenores), quatro trompetes, três trombones, teclado, guitarra, baixo, bateria e dois percussionistas. A orquestra resgata a dignidade do frevo, pela grandiosidade da sua estrutura. Afinal, o frevo nasceu no seio das bandas de música, quando a expressão banda significava uma estrutura de grande porte. Tal estrutura não é mais freqüente entre as
CAPA até da Europa – França, Áustria, Holanda e Suíça, fazendo-nos lembrar o que Capiba preconizava, ao dizer que “se o frevo fosse americano dominaria o mundo”. O saudoso compositor referia-se aos norte-americanos, mas somos americanos do sul e estamos chegando. Segundo Spok, foi uma avaliação da situação do frevo nas últimas décadas que o fez enveredar pelo caminho da improvisação, do modo diferente de tocá-lo. O primeiro passo foi avaliar como estava sendo composto, harmonizado e tocado; como mudar o invólucro, a capa, sem macular a dignidade e a qualidade do produto. “A partir desses elementos, a gente caiu em campo e selecionou o time”, conclui o maestro. Após a avaliação, veio a prática. Enquanto na maioria dos casos o tema é exposto para em seguida ser improvisado, Spok escolheu inverter o processo. Cada solista, seguindo uma ordem pré-determinada para os solos, improvisa como se fizesse um recitativo – a parte que dava início às árias que eram apresentadas pelos solistas, nas óperas européias e nas canções, nos Estados Unidos, nos anos de ouro da Broadway. A arte da improvisação é coisa bem conhecida pelos músicos da banda. Todo músico é um compositor, porque o improviso é uma composição que se faz sobre outra. Depois dessa jam sesssion prévia, acontece a melodia do frevo. Aí vêm outros detalhes, tais como acordes dissonantes que antecedem o tema, o modo de distribuição dos metais e palhetas, feito de modo estreito (o intervalo entre as vozes dos naipes é mínimo, fechado), por fim, uma releitura harmônica, dando nova cor à música. Há também frevos Flávio Lamenha
orquestras que tocam o frevo nos dias atuais. Apesar de estar provocando toda essa movimentação, Spok continua com o seu jeitão simples, e quando é perguntado sobre essa inovação, responde: “Eu não estou inovando nada. Foi Felinho que, na década de 60, criou as variações de Vassourinhas, possibilitando-nos seguir o caminho que estamos trilhando – um frevo com a qualidade e a dignidade que sempre mereceu”. Alguns puristas dizem que ele está “jazzificando” o frevo. A esses, Spok responde que “não é nada disso”. Na sua concepção, o termo jazz que adjetiva a música negra americana é, hoje, de domínio universal e significa improvisação. De fato, essa rotulação que alguns querem conferir ao trabalho de Spok é equivocada. A improvisação na música popular brasileira vem desde a época dos chorões, no Rio de Janeiro do século 19. É coisa cultural. As fontes, onde ele encontrou elementos para o seu trabalho, diz ter ido buscá-las em Felinho, Guedes, Duda, Levino, Zumba, Nelson Ferreira, Dimas Sedícias e grupos como a Recife Banda Show e Banda Sushi, além dos muitos professores com os quais aprendeu a elaborar, reelaborar e valorizar as coisas da terra. Como resultado dessas informações, estamos vendo o surgimento de um frevo revigorado, novo e vibrante ao qual Spok prefere chamar de “frevode-rua para palco” – é inviável tocá-lo na rua. Rotulações à parte, a mudança trazida ao frevo tem feito a Spok Frevo Orquestra ser prestigiada nas suas apresentações, levando um grande e diversificado público a casas noturnas, teatros e praças daqui, das regiões Sul e Sudeste e
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CAPA
que têm improvisações após a exposição dos temas. Nessas ocasiões, ouve-se a guitarra de Cacá, o trompete de Alexandre (Papa-légua), o trombone de Nilsinho, o baixo de Helinho, o próprio saxofone do maestro e até os solos de Adelson Bombardino e Augusto que se revezam na bateria. É essa a novidade que Spok está dando ao frevo e mostrando a competência dos seus comandados. Em 2004, ele fez o seu primeiro trabalho fonográfico, ao qual deu o nome de Passo de Anjo, título do seu frevo em parceria com o guitarrista João Lyra. Ao todo, são onze frevos que constituem uma amostra do que há de melhor no frevo. Podem ser ouvidos desde o seu “Passo de Anjo”, feito em parceria com o guitarrista João Lyra, até as 10 faixas que se seguem, onde estão Duda, Levino Ferreira, Clóvis Pereira, Luciano Oliveira, Hermeto Paschoal e outros. A seleção de Spok mostra que ele não é gerófobo (odeia idosos). Essas inovações têm feito os tradicionais do frevo torcerem o nariz. Spok ri e diz que está fazendo as coisas coerentes com o seu tempo. O importante é que o frevo está sendo mostrado às mais diferentes platéias, inclusive além-fronteiras. Ele sabe que não há o novo sem que haja o velho. Reconhece e cita todos os que o têm influenciado seu trabalho. No momento, ele está vivendo a efervescência dessa boa fase por que passa a cena instrumental do Recife, dividindo o seu tempo entre os arranjos que faz para a Banda Sinfônica da Cidade do Recife e a sua própria orquestra, além das apresentações com o cantor Fagner, na qualidade de saxofonista. Ainda está ensaiando o seu grupo para as apresentações que fará na França, em setembro. Agora, o frevo está de casaca e passaporte para vôos intercontinentais. Já não mais se pensa somente em mostrá-lo por aqui. A sua roupagem é digna dos mais bem montados cenários. Os europeus estão descobrindo a música dos pernambucanos, e adorando. Isso é bom porque também os chamados portadores de folclore, pessoas simples e humildes, estão viajando ao Velho Mundo, repetindo a época de ouro do baião, quando o velho Lua o levou à corte de Saint James, na Inglaterra, e Paris, pelas mãos de Assis Chateaubriand. Hoje são violas caipiras, rabecas, alfaias, sanfonas, triângulos, zabumbas e cantores de forró que mostram a nossa diversidade cultural. •
As raízes do frevo e do jazz Como jazz, o frevo é um amálgama de uma música de raiz extra-européia (via ritmos de maracatu, xangô e principalmente capoeira) com os dobrados derivados da música tonal oriunda da Europa Jarbas Maciel
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onheci o maestro Spok, quando trabalhava com Lúcio Azevedo nas “noites do Recife”. Lúcio ainda era aluno da graduação do Departamento de Música da UFPE, para onde eu havia me transferido a fim de dar um curso básico de violino. Lúcio me pediu para “dar uma força” e passamos a tocar juntos os grandes melodistas da música popular clássica – Rodgers & Hammerstein, Lorenz Hart, Gershwin, Duke Ellington, Cole Porter, Hoagy Carmichael, Jimmy van Heusen, Jerome Kern, Victor Young, Michel Legrand, Manzanero, Tom Jobim, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, todos enfim (sem esquecer o nosso grande Capiba, naturalmente). Lúcio havia adquirido um teclado poderoso (a workstation Korg) e, para ampliar e reforçar o seu repertório, chamou o maestro Spok. Talento extraordinário, Spok executava solos magistrais ao saxofone. Pela densidade técnica e beleza de seus improvisos, senti logo que estava diante de um músico de excepcional poder. Comentei com Lúcio, que me falou : “Spok sabe tudo”. Com grande alegria vi, recentemente, Spok estourar nas paradas de sucesso, trazendo ao frevo pernambucano (permitam-me o pleonasmo) o sangue novo de que nossa mais espetacular expressão musical estava de há muito carente. Dupla alegria, aliás, porque isso aconteceu justamente no momento em que o maestro Clovis Pereira, inconformado com a opinião de alguns críticos,
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segundo a qual o “frevo já estaria esgotado como forma musical”, também se punha a compor frevos, explorando as suas verdadeiras possibilidades técnicas, desconhecidas e/ou negadas por esses mesmos críticos. Essa é, na realidade, uma longa história, se tivéssemos de descer aos detalhes, mas que tentarei, dentro do possível, resumir em poucas palavras. O frevo nasceu de um natural inconformismo de nossos músicos com o ritmo quadrado dos dobrados marciais executados pelas bandas de música. E nasceu, a bem dizer, de mãos dadas com o jazz band, que brotava espontaneamente dos blues, realizando esse milagre notável que foi o amálgama de uma música de raiz extra-européia (a música dos escravos negros norteamericanos) com a música européia trazida pelos colonos brancos. Aqui no Recife, nosso rico aporte de elementos extra-europeus (via ritmos de maracatu, xangô e principalmente capoeira) aos dobrados seguiu a mesma linha. O parentesco histórico do frevo e do jazz band, aliás, é apenas o aspecto local do profundo laço de consangüinidade cultural que liga toda a música popular brasileira ao jazz. Nestes últimos anos (aliás décadas), infelizmente, generalizou-se o preconceito de que a música de jazz seria mais uma forma de “dominação cultural” dos Estados Unidos, contra a qual se deveria lutar para manter “puro” o nosso frevo. (Já pensou, prezado leitor, que, se os alemães do século de Mozart condenassem a ópera, cuja história é essencialmente italiana, hoje não estaríamos assistindo ou escutando ao Dom Giovanni ou à Flauta Mágica?). Pois bem, como tantas outras manifestações preconceituosas de um nacionalismo político equivocado, esta é, na realidade, a motivação que se esconde por
trás da crítica maligna que quer o nosso frevo esgotado, congelado, mero fóssil no panorama de nossa expressão musical mais autêntica. Ledo engano. O jazz – e, portanto, o frevo –, graças a essa consagüinidade cultural que é eminentemente histórica, é uma forma musical imanentemente inextinguível, pelo simples fato de conter o melhor dos dois mundos: a música (tonal) européia e a música (modal) extraeuropéia dos escravos negros. Acontece que, da mesma forma que a MPB teve de acompanhar a evolução técnica do jazz, com o advento da bossa-nova, também o frevo teria de se superar (atenção: superar, no sentido aristotélico do termo, quer dizer conservar os elementos estruturais válidos e seguir adiante, incorporando novos elementos). E é esse justamente o trabalho que o maestro Spock vem realizando, paralelamente – e, o que é impressionante, independentemente – do “novo frevo” do maestro Clovis Pereira . (Significativamente, há todo um trabalho precursor, nos maravilhosos frevos de Senô, ou, mais recentemente, nas incursões de Luiz Guimarães nos domínios de uma linguagem harmônica mais moderna para o frevo). Tal como aconteceu com a bossa-nova, que representou um espetacular alevantamento da qualidade técnica da MPB e que, por isso mesmo ainda hoje não foi assimilada “de coração” por grande parcela da crítica, bem assim o novo frevo de Spock coloca o frevo pernambucano em um patamar bem mais elevado, libertando-o das amarras de um falso purismo nacionalista e mostrando o caminho para a exploração de suas verdadeiras possibilidades internas, que são o legado de sua herança histórica. • Continente agosto 2005
LITERATURA
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A escrita reinventada Da “reescritura” das formas do passado em diálogo com as reinvenções das vanguardas, os bons ficcionistas brasileiros estão tramando uma história que só o tempo vai poder ler melhor Cláudia Nina
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Roland Barthes fez a distinção entre texto de prazer e texto de fruição
Ed. Martins Fonte/Divulgação
or volta dos anos 60, o crítico francês Roland Barthes dizia que escrever já não era mais contar. E questionava: “A literatura contemporânea desinteressa-se verdadeiramente pela narrativa?” Em O Prazer do Texto, de 1973, o autor de S/Z e O Império dos Signos avançava em suas reflexões, traçando um paralelo entre os vanguardistas e os autores clássicos; entre textos de fruição – antinarrativos, nos quais “não ocorre nada” – e textos de prazer, o “modelo forte” das grandes narrativas, ou seja, as histórias cuja estrutura está fortemente ligada à antiga tradição do “era uma vez”. Tal distinção é ainda hoje oportuna, principalmente para acomodar obras avessas ao enquadramento dos gêneros, livros que ficam no sem-lugar das definições. Na verdade, as formas em prosa, em especial o conto e o romance, passaram por mudanças profundas ao longo dos séculos e, entre As Mil e Uma Noites e o contos modernos; entre Dom Quixote e Ulisses existe um enorme abismo separando mundos quase incomunicáveis. O romance – o mais lawless de todos os gêneros – foi talvez o que maiores mudanças sofreu, até por ser maleável e ambivalente por natureza. Sua destruição foi preconizada em vários momentos desde o século 19. Mesmo nos tempos de grandes renovações, como no modernismo inglês ou francês, quando renascia de suas próprias cinzas, suspeitava-se de que o gênero estaria fadado ao abandono completo por parte dos leitores, o que, obviamente, jamais ocorreu. O mais curioso e contraditório é que foi sob o signo da suspeita que floresceu na França o nouveau roman, também chamado de anti-romance. Apesar do prefixo “anti” ter exaltado os ânimos dos que defendiam o fim do gênero, esse conseguiu sobreviver às suas próprias regenerações. Dizer que a narrativa tradicional está em crise não é, portanto, nenhuma novidade. A crise faz parte do desenvolvimento da literatura para que novas formas de expressão possam surgir a partir daí. A dúvida é se o velho contador de histórias ainda respira na poeira (salutar) das inovações. A pergunta de Barthes mantém-se atual: “Escrever ainda é contar?”
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LITERATURA Celio Júnior/AE
“Não se pode mais escrever como se contava histórias à beira do fogo. É preciso explorar ao máximo as possibilidades de mudança formal, como a intertextualidade” Luiz Ruffato
Panorama mutifacetado – No cenário nacional, boa parte da criação literária contemporânea em prosa não obedece à maneira clássica de se contar uma história. São estruturas não-lineares e anti narrativas, que renegam a fórmula início-meio-fim, fugindo às regras básicas dos gêneros. É evidente que não se pretende aqui dizer que se trata de “inovação” ao rigor da letra, uma vez que tudo parece ter sido inventado há décadas. Mas, como diz o poeta Marcelino Freire, autor de Balé Ralé, “sempre é possível mexer na paisagem, fazer a roda rodar muito longe de Dublin”. Experimentando o já experimentado, sem a ingênua intenção de originalidade, autores como o mineiro Luiz Ruffato vêm apostando no viés não-linear da prosa em textos que se esfacelam em múltiplos fragmentos. Não quer dizer que Ruffato rejeite a narrativa; ele apenas recusa sua forma mais convencional. Um exemplo disso é Eles Eram Muitos Cavalos, no qual até a consciência dos personagens está em frangalhos. O livro – romance? – é ambientado em São Paulo num único dia. O enredo se reduz a flashes que são como lampejos, néons ou faíscas de pensamento de quem vive nas cidades grandes, nelas se perde e se confunde. A (anti) história tenta ser um reflexo desta perda e desta confusão. Seu mais recente projeto – a “saga” Inferno Provisório composto de cinco livros, sendo dois deles já publicados, O Mundo Inimigo e Mamma, Son Tanto Felice – caminha na mesma direção. A opção pelo experimental, segundo o autor, é uma escolha fincada na certeza de que a forma clássica do romance era adequada para resolver os problemas do início da Revolução Industrial, mas tornou-se obsoleta diante da quantidade de informações da vida moderna – “Não se pode mais escrever como se contava histórias à beira do fogo. É preciso explorar ao máximo as possibilidades de mudança formal, como a intertextualidade”, afirma Ruffato, que Continente agosto 2005
LITERATURA
Epitacio Pessoa/AE
“Se compreendemos a ficção, em especial o romance, como uma 'linguagem', um modo de conversar esteticamente com o mundo, o romance é absolutamente inesgotável” Cristóvão Tezza
diz faltar ousadia aos autores contemporâneos que poderiam estar experimentando muito mais do que vêm fazendo. O autor aconselha cuidado. Isso porque até mesmo a experimentação aparentemente mais audaciosa precisa ter alicerces na tradição. Jamais se pode partir do zero. “O experimentalista não é um desavisado que entra em um caminho por acaso ou desinformação e nele se perde”, diz Ruffato. Para abstrair a fórmula tradicional das narrativas é preciso conhecer bem a cultura dos gêneros e de suas formas. E, sobretudo, ler muito antes de se pretender revolucionar qualquer coisa. Outro oportuno exemplo de uma história contada aos fragmentos é Curva do Rio Sujo, de Joca Reiners Terron, que traz a memória em pedaços – como as “tranqueiras” jogadas num rio – em episódios que se juntam sem muita conexão, montando um álbum de lembranças esparsas. A trama é como um mosaico em que as pedrinhas coloridas vão sendo montadas sem que haja a necessidade de formação de um desenho pronto e acabado. O leitor pode entrar no “romance” por onde quiser e fazer o seu próprio itinerário. Assim como em Ruffato, que escolheu o interior de Minas para ambientar seus personagens em alguns de seus livros, Terron também foge do caos urbano, ao recriar o Mato Grosso de seu passado familiar, mitificando-lhe a geografia e as gentes. A ficção de Luiz Ruffato e de Joca Terron insere-se num panorama multifacetário, em que estilos diversos se conciliam. A lista de autores que estão produzindo ficção de ótima qualidade no Brasil – seja contemplando a tradição ou recusando-a terminantemente – é tão extensa quanto caleidoscópica e inclui nomes como Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Cecília Giannetti, Santiago Narzariam, Tatiana Salem Levy, João Paulo Cuenca, Amílcar Bettega Barbosa, Adriana Lisboa, sem falar nos mais experientes, como Sérgio Sant’Anna, Cristóvão Tezza, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, João Ubaldo Ribeiro, João Gilberto Noll, entre muitos outros. Só nesta pequena lista há de tudo um pouco: desde o estranhamento meio gótico de Narzarian em A Morte Sem Nome; o terreno movediço das narrativas sempre instáveis de Bernardo Carvalho em Nove Noites; o fantástico revisitado em Amílcar Barbosa ou a retomada do histórico em Antônio Torres. Continente agosto 2005
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LITERATURA
Ed. Rocco/Divulgação
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"O momento não é de rupturas abruptas, mas, sim, de uma 'transgressão silenciosa'. É uma movimentação sem estardalhaço, que vem roendo por dentro os esquemas da tradição" Flávio Carneiro
A máquina do tempo – O que parece unir todos eles – adeptos ou não da tradição – é a certeza de que não se pode escrever à la Balzac no século 21, mesmo que se conte uma história linear. “Como recuperar os extraordinários enredos, a pintura dos cenários e dos personagens, a ambiência social?” – pergunta-se Antônio Torres. A volta no tempo é realmente impossível e uma narrativa inteiramente produzida nos moldes clássicos – seguindo o “modelo forte” de que falava Roland Barthes – soa, mais do que obsoleta, artificial. É claro que existem autores que não praticam a fragmentação e preferem o esquema coeso do “era uma vez” – como o próprio Antônio Torres, por exemplo. Mas é preciso esclarecer que mesmo quando se opta por contar uma história em que o conteúdo é mais importante do que a experimentação da forma, a roupagem deste narrador precisa ser renovada, assim como os temas que o autor irá abordar, mais antenados com a contemporaneidade, ainda quando em diálogo com o passado. Uma das vertentes que poderia ajudar a entender a literatura nacional é a “reescritura”. É o que pensa o professor de literatura da UERJ, Flávio Carneiro, autor de No País do Presente: Ficção Brasileira no Início do Século 21. Breve panorama da prosa brasileira, o livro traz um mapeamento crítico da ficção produzida no Brasil, incluindo resenhas de obras escritas nos anos 2000. Para Flávio, o momento não é de rupturas abruptas, mas, sim, de uma “transgressão silenciosa” – “É uma movimentação sem estardalhaço, que vem roendo por dentro os esquemas da tradição”, diz o autor, apostando na reescritura até mesmo com relação aos romances históricos. Para Nelson de Oliveira – autor de Geração 90: Manuscritos de Computador – a palavra “transgressão” é a que melhor define a criação literária recente. Pesquisador de textos contemporâneos há mais de uma década, o crítico acredita que as distinções formais não dão conta de definir a qualidade do que se produz atualmente. A transgressão, argumenta, traduz-se aqui pelo apego “ao bizarro, ao mórbido, ao grotesco, à violência e ao pornográfico, que aproxima muitos dos autores de hoje, cada qual tentando dar conta, à sua maneira, do mesmo mundo devastado, pobre, amaldiçoado, sem ética nem honra, desobedecendo a certas leis e se afastando dos interditos”. Continente agosto 2005
LITERATURA Robson Fernandjes/AE
"Os autores de hoje tentam dar conta, à sua maneira, do mundo devastado, pobre, amaldiçoado, sem ética nem honra, desobedecendo a certas leis e se afastando dos interditos” Nelson de Oliveira
Entender por quais caminhos anda a narrativa contemporânea é, sobretudo, aceitar a multiplicidade de opções formais que se estende da experimentação à transgressão, da reinvenção do histórico à incorporação do fantástico; do narrador clássico recauchutado à recusa absoluta da linearidade. A ficção, muito mais do que a poesia, é capaz de absorver inovações trazidas por ventos de todas as direções. Como observa o romancista Cristóvão Tezza, autor de O Fotógrafo: “A prosa é uma interminável ‘esponja de linguagens’. Se entendermos o romance como uma forma acabada, assim como o soneto, Joyce teria esgotado alguns aspectos desta forma. Se compreendemos a ficção, em especial o romance, como uma ‘linguagem’, um modo de conversar esteticamente com o mundo, o romance é absolutamente inesgotável”. Concorrendo com essa realidade mais visível das produções literárias que aproveitam o aquecimento do mercado, há ainda um outro terreno submerso: a internet, que vem fazendo desaguar na praça uma grande quantidade de novos autores e ainda vários sites, como o www.paralelos.com.br. A contribuição dos blogs para a configuração de um panorama da narrativa contemporânea não pode ser ignorada. As revistas eletrônicas produzem muito joio, é verdade, mas também bom trigo. É o caso, por exemplo, de um autor como João Paulo Cuenca, autor de Corpo Presente. No que vai dar tudo isso que está sendo criado e publicado nos últimos anos ainda não se sabe. A literatura parece ser a menos instantânea das artes. Da “reescritura” das formas do passado em diálogo com as reinvenções das vanguardas talvez possa surgir uma nova forma, quem sabe, já prefigurada pelo trabalho de alguns bons ficcionistas brasileiros, que estão tramando uma história que só o tempo vai poder ler melhor. • Continente agosto 2005
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Imagens: Reprodução
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Mauro Mota, Hermilo Borba Filho e Celina de Holanda serão homenageados pelo Festival
Celebração da literatura O 3º Festival Recifense de Literatura ocupa diversos locais da cidade, com grande variedade de eventos e convidados internacionais
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eminário, mesas redondas, oficinas de leitura, recitais poéticos e musicais, sessões de autógrafos, leituras de ficção e de poesia, homenagens e exibição de filmes marcam a realização do 3º Festival Recifense de Literatura – A Letra e a Voz. O evento acontece de 14 a 21 deste mês de agosto, ocupando a Praça do Arsenal, a Livraria Cultura, o Teatro de Santa Isabel, o Teatro Hermilo Borba Filho, a Biblioteca Pública Estadual, o Gabinete Português de Leitura, a Fundaj, o Sesc, a Fafire e a Unicap. A abertura será no Teatro de Santa Isabel, com homenagem à memória dos escritores pernambucanos Mauro Mota, Hermilo Borba Filho e Celina de Holanda. Na ocasião serão revelados os contistas selecionados pelo Concurso Osman Lins de Contos – versão 2005. Cerca de 50 bancas destinadas a livros, revistas e jornais de qualquer natureza literária estarão montadas na Praça do Arsenal, no Bairro do Recife Antigo. Continente agosto 2005
Nas diversas atividades, estarão presentes, entre escritores, professores, dramaturgos, ensaístas e críticos, os poetas peruanos Hildebrando Pérez e Marco Martos, e, vindos da França, Jean-Claude Pinson, poeta e filósofo, Roger Guilloux, professor de lingüística, e Rita Godet, professora de literatura brasileira na Universidade de Rhennes. De São Paulo vem o poeta Frederico Barbosa; do Rio o pesquisador Jarbas Mantovanini; da Bahia, o poeta Washington Queiroz; e da Paraíba o crítico Hildeberto Barbosa e os poetas Antônio Mariano e Lau Siqueira, entre outros. De Pernambuco vão participar Abdias Moura, Alexandre Figueirôa, Anco Márcio Tenório, Ermelinda Ferreira, José Rodrigues de Paiva, Lula Arraes, Luzilá Gonçalves, Lourival Holanda, Lucila Nogueira, Marcus Accioly, Nagib Jorge Neto, Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito, Maria de Lourdes Hortas, Nelly Carvalho e Virgínia Leal, entre outros. •
e d s a m e o p s o r e t u a g u i r Q d o R o i r á M José A ELEGI
rte e da mo d a d l i m idade. ma hu Na extre ssa excessiva va a a no para nad eróis repousa r a g u l á Não h ir de h nos vest s o m a s i . c nem pre ncipes ou poetas prí a e começ a b a c a o Pois tud ueno espaço num peq e um epitáfio. não cab em que s ão somo n e s o s om O que s amos que somo s n e p fio. e o que um epitá n e b a c não es as estaçõ sonho e t n a r u Se d aeo a fantasi o m o c s o ci ra convivem dia vem o silên finito pa n i o a um z ue cru minho q a c m u re o e nos ab eterno . o eterno d m é l a ou para TÃO SUGES redos teus seg ixão s a g i d o Nã posta pa a uma su lavras as pa e livra tu utilidade. de in ância m a dist izonte. o c a s r e Conv o hor gua até á a s s e d veres que vai sposta ti e r a m u Se nenh lo menos pe erteza terás a c stá contigo oe u mund e gastou. e t e u q de r não s e o amo
POESIA
CÇÃO CONVI os meus an . s o s o d To s dias dos meu os o t s e r o e ad s imagin Os livro o da alegria. elaçã na const ou que rest a. o o d u T ari o da calm o mar p m e t o D vindos d s o t n e v . Ou dos ma vazia l a a o d Varren escrita palavra a a d esia o T se fez po e u q e u No sang ção derramada E a emo ue amanhecia. sto q Num ge elado nho desv rias: o s o d o T s-ma o das trê de amor: h l i r b o n ento um mom desejo, e l a v o ã n entre o travessia r e a dor. o praze M IMAGE o é começ o p m e t O m faz para que avesso. ho pelo o camin o desesper Às vezes sentido exato édeas e o uero. sem as r que q do viver o. eu destin alumia, m é e s s E e me a luz qu m u r o p Selado o sonho a m a form fazia. já não te eu em que g a m i a da nítid
José Mário Rodrigues nasceu em Flores (PE), em 23 de julho de 1947. Pertencente à Geração 65, é autor de vários livros de poesia, entre os quais Os Motivos, Alicerce de Ventania e Trem de Nuvens. Continente agosto 2005
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PROSA
Filho meu, por que me abandonaste? Daniel E. San Martin
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iz a árvore, e duas maçãs caíram da árvore. Com uma inventei o pecado, com a outra a gravitação universal. Foi ao terceiro dia que me pus a trabalhar; nos dois primeiros dormir. No quinto descansei, e no sétimo vi que o mundo não estava pronto. Me apressei, decidi criar plantas com flores, animais de sangue quente, novas montanhas. Me deu vontade de criar o fogo, e eu gostei. Como os animais o temiam, criei um que o pudesse admirar, por vaidade. Então, dei-lhe o entendimento, e aproveitando isto, resolvi lhe atribuir alguns deveres, como manter o fogo e inventar ferramentas. Não sei quantos dias se passaram, já iam longe os sete a que me havia proposto no princípio; mas não me importava, cada vez estava mais orgulhoso da minha criação, de como tomou movimento e do como ia se modificando por si mesma, de acordo com as leis que me ocorreram. Por isso o homem foi o que eu mais gostei, porque me surpreendia: fazia vilas e as destruía, inventava histórias, se organizava... Sobretudo me reconhecia: me fazia sentir importante.
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PROSA
Um dia pediu uma companheira, porque viu que os animais tinham. Dei-lhe a mulher, e pôs a mulher a seu lado, ao dormir, e tiveram outros homens e mulheres. E foi a mulher instrumento de justiça entre os homens, porque assim todos, tanto os mais fortes como os mais fracos, tiveram alguém para mandar e por quem serem obedecidos. O homem estava satisfeito: mulher, fogo, cavalo, maçãs, guerras. E eu estava satisfeito. Dediquei-me a fazer peixes para o oceano; provei formas novas, cores atrevidas, condutas sanguinárias. O homem, nesse tempo, inventou a televisão (fiquei orgulhoso!). E então fiz a lua, para lhe dar, para que ele a visse e a admirasse e me admirasse nela; mas também para que não esquecesse, para que não se esquecesse de qual é o seu lugar. Prefere ver o televisor! E às vezes até ridiculariza o olhar a lua! Pela primeira vez em toda uma eternidade conseguiu me fazer sentir mal. Ingrato: dediquei-lhe mais atenção do que a qualquer outra criatura, pedra e vento, pus nele meus valores mais apreciados... Até cheguei a considerá-lo um filho! E quando começa a se sentir um pouco seguro, a soberba o invade e me vira a cara; quando mais preso a ele eu me achava, quando a situação já era oposta e era eu que precisava de atenção, aí fez pouco caso da clemência que eu tantas vezes lhe tive e bateu onde mais me doía; cevado como um animal, assanhado pelo mero gosto de se crer independente, renegou quem lhe deu de comer, quem lhe deu maçã, carne e religião, quem o abrigou e cedeu às suas lamúrias, e vem reclamar por uma costela, pela velhice, pelo frio... Por acaso ele poderia ter feito algo melhor? Por momentos me invade o desejo de mandar-lhe um dilúvio até que se afogue irremediavelmente (eu posso fazê-lo, ainda que esteja velho!). Mas claro, de nada importam minhas queixas, agora é tarde demais: afeiçoei-me. Na verdade deveria dizer que me apaixonei, me apaixonei por aquilo que fiz. E sou fraco. • Daniel E. San Martín, nascido em 1962, em Buenos Aires, Argentina, é formado em Letras pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora. Em 2004 publicou Contra la Histeria (poemas de desamor). Em 2005, está publicando Amoralizas, que compreende grande parte dos seus contos, com o prólogo do prestigiado acadêmico e crítico literário Jorge Dubatti.
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Como envelhecer uma caçarola Torniamo all’antigo sarà un progresso. Giuseppe Verdi
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ão sei se contei aqui o fato que segue. Não importa. O Estatuto do Idoso permite ao velho contar mil vezes uma anedota e ainda se zangar se não escuta as caridosas risadas. Estava eu numa locadora, alugando uma fita de ação (sim, uma fita, e não um DVD, porque faz muito tempo, uns três anos) e um menino de uns seis anos enchia o saco do pai para levar a droga de uma fita de Mickey, enquanto o inditoso genitor suplicava que ele levasse outra, de Pato Donald, por exemplo, porque ninguém em casa suportava mais nem o som daquela porcaria. Aquele endiabrado pirralho, seguindo talvez apenas seus sentidos, ensinou-me mais sobre resistência cultural do que o magnífico Peter Berger. Todo mundo naquela locadora dava prioridade Continente agosto 2005
absoluta aos lançamentos, havendo para eles filas de espera, enquanto os denominados “catálogos” ou eram alugados em virtude do preço da locação (muito mais barata) ou porque o cliente já alugara todos os lançamentos. Eu estava enquadrado nas duas categorias: em tempo de carne de boi, dava prioridade aos lançamentos; em tempo de frango congelado, alugava “catálogos”, dando preferência àqueles a que não tinha assistido. Homem do século 19, eu pensava que menino só sabia fazer duas coisas: raiva e cocô. Com a historinha da locadora, acrescentei mais uma: ser fiel à sua sensibilidade estética. A partir daquele episódio, mesmo no tempo de carne de boi, eu só alugava um lançamento pela qualidade do elenco e pelo diretor, normalmente. Passei a alugar
MARCO ZERO
uma, duas, três, ene vezes as fitas antigas de que tinha gostado. Estou certo de que algumas delas, até desaparecer da locadora, eram alugadas apenas por mim. Lembro-me das duas que foram campeãs de minhas relocações: Depois de Horas, de Martin Scorsese (o filme mais kafkiano a que já assisti) e Sob o Domínio do Medo, de Sam Peckinpah (onde aprendi que a violência não tem pátria, ela mora no homem). Como aquele garoto aporrinhava o pai e o resto da família com o seu Mickey, eu vivo aporrinhando meu pessoal com fitas e DVDs repetidos à exaustão. Certa vez escrevi um poema de encomenda, intitulado “Ponta Verde”, para servir de prefácio a um romance do mesmo nome, de autoria de Alves da Mota, grande alma, grande amigo. Pedindo misericórdia aos meus milhões de leitores, cito um trecho daquele poema: “A mudança,/ a mudança,/ eis o mais recente/ nome da pressa e da aflição”. Na época em que o compus, o tema estaria ligado ao mundo das idéias, das análises precipitadas, dos Fukuyamas da vida anunciando o fim da História, e por aí vai. Hoje, ele me faz lembrar o esforço tecnológico para atualizar os produtos industriais, acrescentando-lhes em curto lapso de tempo um novo designer para acelerar o consumo, mudando-lhes a aparência e não a essência, reduzindo-lhes a resistência e impondo, através da publicidade, a cultura do novo. Para mim, a arte é a eterna novidade. A tecnologia industrial não faz objetos realmente novos, o que faz são repetitivas extensões dos sentidos. E quando muda, muda o invólucro, a embalagem, com monstruosas devastações no meio ambiente (a latinha de alumínio derruba montanhas). Instala-se, nesse anômico mundo burguês, uma falsa filosofia, a do lucro, do juro, do carro do ano. Sustenta-a, o envelhecimento precoce e premeditado dos produtos, a chamada obsolência planejada, o triunfo do supérfluo e do desnecessário. Lembro-me de outros tempos, da máquina de costura Singer de minha tia Albertina, funcionando plenamente, centenária, ainda na década de 70 do século passado. A obsolência planejada, para o prof. José A. Lutzenberger, é “uma das maiores trapaças da tecnologia moderna”. Somos uma civilização trapaceada, onde as pesquisas de mercado definem, para ser atacadas, as categorias ainda imunes à mais recente trapaça. Alugar só os últimos lançamentos nas locadoras alimenta a vaidade idiota de estar atualizado, mesmo que os DVDs alugados sejam
puras titicas de urubu. Essa numerosa fauna do carro do ano, se tem algum hábito de leitura, que não a revista Caras, quando lê um livro pode apostar que é um best-seller de Frederick Forsyth, J.K. Rowling, Sidney Sheldon, Stephen King ou, de quando em quando, para dar uma pitada nacionalista, o rococó de Paulo Coelho. Hoje em dia eu já não sei se as pessoas compram coisas ou são compradas por elas. Quando menino, eu vi na fazendola de meu avô, em Lajedo/PE, um velho agricultor acender um cigarro de fumo plantado lá, enrolado em palha de milho, com um isqueiro pré-histórico: duas pedrinhas, uma delas cavada, onde colocava um capuchinho de algodão impregnado com óleo de carrapateira, e a outra servindo para lançar faíscas, com batidas na primeira. Um cordel feito com casca de árvore servia para que as pedrinhas não se dispersassem. Quando adolescente, e já fumante, surpreendiame com a curiosidade dos primos, comendo com os olhos a minha caixinha de fósforos. Eis a era da pedra polida reinventada, em plena segunda metade do século 20, na era da matéria plástica que nos rodeia por todos os lados. No entanto, estou no tempo da internet e não sei o que faz um ferro elétrico, de engomar, aquecer. Literalmente perdido entre miríades de brinquedos eletrônicos, neste setor em que os feitores da obsolência planejada pintam e bordam. Tempo em que os valores da honra, da autenticidade, da fidelidade e do sentido cósmico da vida já não estão mais no display do mundo cristão. Mundo em que os 30 dinheiros, com correção monetária de dois mil anos e juros sobre juros soterraram a última inocência e um resto de paz de espírito, que a “área da mediocridade” aristotélica poderia nos reservar, a nós, fantasmas, do século 19. Mas não se enganem! A anomia só se instalou no âmbito dos valores e normas espirituais. Os sentidos serão bem servidos, sim, senhor. Os humanos estão devidamente classificados quanto ao potencial de consumo. Necessidades são criadas do dia para a noite e, para atendê-las, “novos” produtos são colocados no mercado. Milhões de consumidores, bem comportados com seus babadores, esperam sair arrotando de satisfação. Bem-vinda a bomba de nêutron (ou cobalto?) que mata as pessoas e deixa as coisas em paz. Tudo tem vida. Uma pedra é uma colônia viva de átomos. E daí? • Continente agosto 2005
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ALAIN DE BOTTON
Somos famintos por dignidade e respeito
Escritor suíço volta às livrarias brasileiras com Desejo de Status, em que afirma que por trás da corrida pelo sucesso existe uma tremenda carência afetiva Schneider Carpeggiani
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eza a lenda que os homens não gostam de discutir relacionamentos. Bem, se isso é verdade ou não, mais certo ainda é que para toda regra há exceção. E ela responde pelo nome de Alain de Botton, o escritor suíço de 36 anos, radicado na Inglaterra, que em meados dos anos 90 decidiu investigar os rumos dos relacionamentos humanos. Sua estréia foi com a “enciclopédia” de como se apaixonar e lidar com isso em Ensaios de Amor. Depois fez o improvável: provou que o complicado e notório enfermo Marcel Proust poderia sim, por que não?, ser um exemplo de como as pessoas deveriam amar e fazer sucesso, no divertido Como Proust Pode Mudar Sua Vida, que até virou especial pela BBC. O flerte entre cotidiano e citações eruditas, discutidas de forma simples e bem didáticas, continuou em As Consolações da Filosofia, em que tomou como exemplo as obras de grandes filósofos como ponto de partida para a resolução de problemas bem banais. Este mês, Alain de Botton volta às livrarias brasileiras com Desejo de Status, em que afirma que por trás de qualquer corrida pelo sucesso existe uma tremenda carência afetiva. Sobre seu novo livro, sobre as dores e prazeres do casamento e até como os estóicos estavam certos em desconfiar de longos tempos de bonança, Botton conversou com a Continente Multicultural. Em seu novo livro – Desejo de Status – você diz que a falta de amor é o que faz as pessoas correrem atrás, por exemplo, de um emprego melhor, de distinção social, de dinheiro. Quer dizer que o desejo de status é só um sintoma de carência afetiva? Há um senso comum dizendo que nós trabalhamos duro apenas para conseguir mais e mais dinheiro. Seria mais verdadeiro dizer que a razão de muitos dos nossos esforços – as noites em claro, os encontros cheios de esperança, os sorrisos políticos – são na verdade motivados por algo que raramente os economistas falam a respeito em seus discursos, o amor. Uma vez que conseguimos comida e abrigo, o nosso impulso principal pode não ser as coisas materiais que compramos nas lojas ou mesmo o poder que dispomos, ele está, sim, no amor que recebemos como conseqüência da nossa posição social. Dinheiro, fama e influência podem ser vistos como meios para se conseguir amor, e não como fins. Talvez nós possamos definir amor, tanto nas suas formas familiares, sexuais e de status, como um tipo de respeito, a sensibilidade de uma pessoa em relação à existência da outra. Receber demonstrações de amor nos faz sentir objetos de preocupação alheia. Há diferenças entre romance e as formas de status do amor – esse último não tem dimensão sexual, pode não acabar em casamento, e em geral aqueles que o oferecem têm razões secundárias para isso – e ainda assim o amado no campo do status, assim como os amantes do amor romântico, irá se sentir seguro diante do olhar benevolente dos outros. Aqueles que não têm status não são vistos, são tratados de forma grosseira e suas identidades são ignoradas. O impacto da falta de status também se aplica em termos de respeito da pessoa em relação a ela própria. Os benefícios do status dificilmente podem ser limitados à riqueza material de quem o possui. Todos nós somos famintos por dignidade e respeito; se as sociedades futuras irão oferecer amor como um prêmio pelo acúmulo de pequenos discos de plásticos, não vai demorar muito para que esses objetos de pouco valor recebam um lugar central em nossos desejos e aspirações. Continente agosto 2005
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CONVERSA Você consegue lembrar o momento exato, quando o assunto status virou tópico para um livro? Lembro de um encontro com alguns amigos. Nós tínhamos acabado de deixar a universidade, e todo mundo começou a falar em empregos. De repente, não importava mais como você estava e, sim, o que você fazia para ganhar a vida. Percebi, então, a verdade por trás da frase de George Orwell: “Após 20 anos, ninguém se preocupa mais se você está simplesmente bem”. A partir desse momento, comecei a perceber o papel do status nas relações humanas.
de nós mesmos. Com exceção de uns poucos exemplos (Sócrates, Jesus), todos nós dependemos de sinais de respeito do mundo para nos sentirmos tolerantes com a nossa própria imagem. O nosso ego pode ser visualizado como um balão furado, eternamente precisando de amor externo para permanecer inflado, vulnerável aos menores sinais de rejeição. Somos tão frágeis que achamos que a vida vale a pena porque alguém lembrou o nosso nome e enviou um presente.
Vários autores estão lançando livros que misturam Quando a gente fala em status, uma das primeiras filosofia e cultura pop, como Os Simpsons e a Filosofia e coisas que passam pela nossa cabeça é o desejo específico Buffy e a Filosofia. É possível dizer que a filosofia virou pela fama. O melhor exemplo disso são os reality shows, um assunto mais acessível hoje em dia? em que as pessoas querem ser famosas por serem faAcho que em muitas áreas de cultura estamos em mosas e só. Como você explica esse desejo de status? busca de um novo tipo de democratização. Isso faz parte Mais uma vez, por trás do desejo pela fama reside o de um longo caminho onde a alta cultura está sendo aberta desejo por amor. A fama é um sinal do amor. Mas por que para as pessoas comuns. Você percebe isso na maneira precisamos tanto de sinais de amor e de aprovação dos como os museus arrumam as suas coleções, como as bioutros? A atenção alheia importa porque nós todos somos bliotecas são pensadas etc. É claro que boa parte dessa vítimas de uma incerteza nata em relação ao nosso próprio abertura é feita de uma maneira infeliz, de forma redutiva, valor – como resultado disso, o que os outros pensam de que simplifica as coisas. No entanto, uma outra parte desse nós determina um papel central em como somos capazes projeto é realizado de um jeito coerente e cuidadoso. de julgar a nós mesmos. A nossa identidade depende do Você teve bastante sucesso com os livros As Consojulgamento ao redor. Se as pessoas gostam das nossas piadas, crescemos com o poder de fazer os outros rirem. Se lações da Filosofia e Como Proust Pode Mudar sua Vida. somos elogiados, desenvolvemos a impresão de que temos Conte as suas próprias experiências de quando um livro um mérito sobrenatural. Da mesma forma, se as pessoas mudou a sua vida. Eu sou uma pessoa que se frustra muito fácil – se o nos evitam, se desviam o olhar quando entramos em uma sala, nos tornamos vítimas da baixa estima. Nós devería- avião atrasa, se o telefone não toca, etc., fico logo receoso. mos, em um mundo Por isso eu tenho tanta confiança no estoicismo. No diperfeito, ser mais cionário, filosófico é definido como “algo inerente ou caseguros. É in- racterístico do filósofo; sabedoria; calma”. Nem é precrível como um ciso dizer que a maioria dos filósofos de hoje está longe olhar desaten- de ter esses atributos. Eles são pessoas ansiosas, nervosas cioso ou um (e raramente do sexo feminino), que assombram univeraperto de mão calo- sidades com vácuos transatlânticos nas suas conversas. roso pode mudar ra- Historicamente, pelo menos um grupo específico de pidamente a visão que filósofos floresceu com o que costumamos atribuir ao temos termo filosófico. Esse grupo surgiu na Grécia antiga e em Roma, entre o terceiro século antes de Cristo e o segundo depois de Palavras de George Cristo, e sua doutrina foi chamada de Orwell inspiraram o autor a escrever estoicismo. Em uma sala próxima ao sobre status mercado central de Atenas, seu fundador, Zenão de Cício, começou a ensinar. Ser um estóico, pelo menos de acordo com o dicionário, é quase o
CONVERSA
“Para o pai do estoicismo, Zenão de Cício, o homem nem sempre controla o mundo e deve estar pronto a encarar que uma tragédia pode ocorrer a qualquer minuto”
mesmo que ser um filósofo: “aquele que pratica a repressão da emoção, a indiferença ao prazer e à dor, e se preocupa em ser paciente.” É incrível como conceitoschaves modernos batem de frente com aquilo que os filósofos do estoicismo acreditavam. Os estóicos criaram a sua filosofia a partir de dois pontos centrais: primeiro que nós nem sempre controlamos o mundo; segundo que temos de estar prontos a encarar que uma tragédia pode ocorrer a qualquer minuto. O estoicismo se tornou popular em Roma durante os primeiro e segundo séculos depois de Cristo. Como no ocidente moderno, o Império Romano era extraordinariamente sofisticado, política e tecnologicamente. Suas grandes cidades eram invejadas mundo afora. Havia otimismo e sensação de controle. Ainda assim as coisas continuavam a dar errado: terremotos destruíram Pompéia, um incêndio colocou Roma abaixo, bárbaros germânicos fizeram terrorismo nas suas fronteiras do lado norte. As cidades de Roma eram, com freqüência, vítimas desse tipo de coisa. Os filósofos estóicos ajudaram os romanos a lidar com esses problemas. Quando lhe surgiu a idéia que alguém como Marcel Proust, com todos os seus problemas e limitações, poderia ser tratado como um modelo de vida para os seus leitores? Pode parecer estranho usar Proust como um modelo de vida, porque ele era muito neurótico e doente, mas o próprio Proust achava que os melhores exemplos vêm de pessoas que tiverem vidas difíceis. Ele costumava dizer que quando você escolhe um médico, você sempre deve escolher um que
já enfrentou toda sorte de doenças. Só assim ele irá compreender o que significa a doença para um enfermo. É seguro dizer que você deixou a ficção pra trás de maneira definitiva e que agora é um autor de não-fficção? Eu não coloco um limite entre ficção e não-ficção. Meu primeiro livro, Ensaios de Amor, foi vendido como um romance, quando era uma coletânea de ensaios. Meu livro A Arte de Viajar era uma espécie de romance, mas foi vendido como um ensaio. Dessa forma, eu acredito na mobilidade entre os gêneros. Sou um autor mais interessado em idéias do que na arbitrária divisão entre os gêneros de ficção e não-ficção. Se você tivesse de escolher só um personagem (em um romance, um poema, uma peça) para escrever um livro a respeito, qual seria? E por quê? Eu acho Hamlet sempre fascinante, porque ele era muito confuso e apavorado com tudo. Ele foi um dos primeiros e um dos melhores anti-heróis da literatura. Você já disse que pensa em escrever um livro sobre o casamento. Comente um pouco esse tópico em particular e quais os outros assuntos que os leitores, daqui para frente, podem esperar encontrar em seus livros? Eu sou inspirado por coisas que considero, ao mesmo tempo, belas e dolorosas. Acho que um casamento é as duas coisas ao mesmo tempo. Agora estou escrevendo um livro sobre arquitetura. Aqui volto à idéia de contrastes, porque os prédios à minha volta são ao mesmo tempo lindos e horrorosos, afinal, eu moro em Londres. • Continente agosto 2005
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Imagens: Divulgação
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Camilo Soares
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Juarez Machado
“Eu sou o próprio espetáculo” Desde 1986 instalado em Paris, o artista de Joinville verte na pintura sua energia, expressando com cores sua necessidade de narrar histórias Camilo Soares, de Paris
O artista em seu atelier, em Paris
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arcando uma geração com suas mímicas no Fantástico, o Juarez Machado pintor está longe do silêncio. Bom de papo e prolífico em seu trabalho, ele não tem meiaspalavras nem falsa modéstia. Desenhista de Oscar Niemeyer, colaborador do Pasquim, finalmente verte na pintura sua energia, expressando com cores sua necessidade de narrar histórias. Desde 1986 instalado em Paris, o artista de Joinville volta a encontrar o grande público após o cineasta Jean-Pierre Jeunet revelar a influência de sua pintura sobre a estética d’O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e, mais recentemente, Un Long Dimanche de Fiançailles (Eterno Amor). Machado me recebe em seu simpático atelier de Montmartre com um truque de mágicas, o preto-e-branco de duas moedas se transformam em cores, metáfora de sua arte.
to confortável, pois eu sou muito teatral. Comecei minha carreira de artista aos 20 anos, na televisão brasileira, que na época era uma televisão “a vapor”, em preto-e-branco, ao vivo, que começava às seis horas da tarde e terminava à meia-noite. Só tive três patrões na vida, os três mais ou menos geniais, na comunicação. O primeiro foi Assis Chateaubriand, dos Associados; o segundo foi Adolfo Bloch, da Manchete, eu desenhava a última página de várias revistas; e depois Roberto Marinho, na Globo.
O que você fazia na televisão? Fazia cenografia dos grandes musicais, dos programas de humor e depois para o Fantástico. No meio disso, acabei fazendo mímica. Fui o segundo mímico do Brasil, depois do Bandeira. Mas eu não sou mímico, eu não sou pintor, eu sou o próprio espetáculo. É pretensioso isso, mas eu sou o próprio circo, o próprio show. E não é só quando pinto, mas é na Fale sobre sua pintura. minha maneira de vestir, na maneira de me comportar, nas Eu não sou um pintor que pinta quadros, eu sou um minhas casas, que são teatrais, espetaculares. Esse atelier é um artista que conta histórias, usando a pintura como show, minha casa no Rio é um espetáculo. linguagem. Então, acabo emprestando meu corpo para o espetáculo. No vernissage fui com uma fantasia do século 17, tipicamente veneziana, La Bauta, que era usada tanto pela nobreza quanto pela pobreza, tanto por homens quanto por mulheres, para se esconder na noite e fazer merda sem ser reconhecido. Então, eu que passei esse período todo estudando a história de Veneza, pois queria pintá-la dentro de seus pintores, como Carpaccio ou Canalleto. Mas acabei caindo muito também na Comédia de l’Arte. Usei isso, então, de forma muito teatral. Fora o teatro, sua pintura também tangencia o cinema, prova disso seria seu contato com o Jean-P Pierre Jeunet. Esse trabalho que você está fazendo, para o qual você está chamando diretores de fotografia de cinema, o pessoal ligado às artes visuais, não sei se você deu sorte ou azar, mas Da série foi cair com um A Festa Continua. pintor que transita Na página ao lado: quadro da série no meio de tudo isVeneza so de maneira muiContinente agosto 2005
Fotos: Reprodução
Nesta e na outra página, quadros da série O Grande Circo
Em Veneza, você levantou uma pesquisa histórica, para só depois pintar. Seu modo de criação é bem similar a de um roteirista de cinema. Isso acontece sempre. Veneza foi a última. Antes disso, fiz uma exposição quando o bairro de Copacabana fez 100 anos, em 1992. Que me desculpem os outros, mas no mundo só existem sete bairros, entre os quais Copacabana, apesar de toda sua violência e decadência. Nada existe mais de sete. São sete avenidas, são sete cidades. O resto é porcaria, é imitação. Quando o bairro fez 100 anos, li tudo que falava sobre ele, dentro da música, da poesia, do teatro, escrito por pessoas maravilhosas, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga... Inspirado nesses textos, fiz uma exposição de quase 150 quadros. Pintei os quadros todos aqui, em Paris. Trouxe não sei quantos quilos de livros e vídeos e pintei aqui, nevando, mas pintando a praia, com o aquecedor no máximo e a camisa do Botafogo para entrar no clima. Essa coisa é muito do teatro e do cinema. Esse negócio do ator se concentrar para ser uma pessoa em cada peça ou filme. Para mim também, eu sou outra pessoa, minha paleta muda, mesmo que a grafia continue a mesma. Eu sinto que quando vou beber água de uma fonte, acabo oferecendo líquido de inspiração a outros artistas. Como foi seu encontro com o Jean-P Pierre Jeunet? Por acaso, fui a um jantar na casa de uma americana e levei de presente para ela um livro meu. Ele, que não é espalhafatoso como eu, ficou folheando discretamente e caiu de paixão. Pegou o endereço e, por acaso, nós éramos vizinhos aqui em Montmartre. Então ele se inspirou na minha paleta de cores para fazer o Amélie Poulain e depois o Long Dimanche de Fiançailles, que em português ficou, e eu contei a ele e ele ficou puto, Eterno Amor. Parace novela das 6! Eterno Amor é muito ruim, não é? É título de música caipira. Mas bem... Muitas pessoas entram no meu site e me mandam e-mail dizendo: “Obrigado pelas cores que você me deu nesse dia”. Aí, eu sinto que inspiro, e entra uma outra vontade minha que é ser fada. Não para resolver o seu problema, mas para lhe provocar um desejo. Quando você fala de cinema, eu vou para mais perto de mim, meu filho. Tenho um filho de 27 anos, João Manuel, que fez um longa-metragem espetacular com pouco dinheiro, que se chama Champagne Club – ganhou vários prêmios no circuito alternativo. Nesse filme tem muito do meu universo, começando pelo Champagne. Nos
Você consegue identificar características de seus quadros nos filmes do Jeunet? A cor, com certeza. O vermelho e o verde fechados. O preto muito preto, aveludado. E a personagem, a Tattou, não tem olhos, como as minhas figuras. É uma bola preta, não tem íris. Não tem a menina dos olhos. Acho que até usaram uma lente de contato preta para negar os olhos. É gozado que ele tenha utilizado minhas cores, pois eu não me sinto um colorista, pois minhas cores são muitos baixas. Se fosse pianista, só tocaria nas teclas pretas, nunca nas brancas. Sinto que sou um pintor de meios-tons. Não haveria igualmente uma influência contrária, nas suas pinturas, depois dos filmes dele? Minha teoria é muito simplória: a arte se alimenta da arte. Como sou contador de histórias, vou contar uma historinha. Em 1981, eu estava morando na Alsácia, perto de Estrasburgo, no castelo de um milionário que recebia artistas por temporadas de três meses. Tinha dois artistas italianos que me contaram que, quando garotos, iam jogar bola num cemitério etrusco. Eles viam sempre lá um senhor com um caderninho, copiando os desenhos dos túmulos. Eles cresceram e foram para Roma estudar Belas Artes e descobriram quem era aquele senhor. Era o Picasso. Ele ia lá “roubar”, inspirar-se nos desenhos etruscos, como ele fez com as máscaras africanas. Então, a teoria é muito simples: arte se alimenta da arte. É como uma cobra que começa comendo o rabo e acaba na cabeça. É claro que o cinema sempre me inspirou. Porque o cinema foi a primeira coisa forte, visual, em um país, como o Brasil, onde, quando fui educado, a maioria era analfabeta. Não tinha nada de visual, só tinha o rádio. Os dois cinemas de minha cidade foram de extrema importância para mim. Um deles era do meu tio. Tenho 65 anos, ainda gozo pelos olhos. Eu preciso ver. Até quando faço amor é de luz acesa.
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meus quadros as pessoas bebem champagne o tempo todo. Nesse filme não tem água, só champagne. O que é interessante é que a gente troca figurinha, eu o inspiro e ele me inspira. Fiz uma escultura, A Filha da Chuva, baseada num curta dele. É muito gratificante para mim, como pintor, inspirar outros a escrever. Juca Chaves, grande amigo, quantas coisas escreveu inspirado em mim: “Vou pintar o sete, como Juarez Machado...”.
Na seqüência, cenas das séries O Libertino, Copacabana, Ilha de Santa Catarina e A Festa Continua
Você acha que ainda há essa carência visual no Brasil? Na minha cidade, colocaram meu nome numa escola. Primeira coisa que fiz foi dar de presente à escola um acervo só com livros de arte para a biblioteca. Pois era a grande angústia de minha infância não ter livros de arte para ver figurinhas de quadros. Para ver imagens. É uma coisa até atrasada, pois deveria ter dado computadores para os meninos entrarem na internet. Mas o livro tem um outro toque, outra sensualidade, outro cheiro. Você pega e abre página por página, tem a descoberta, tem um outro prazer.
minha passagem pela televisão, pois nos meus quadros não existe a luz do sol. Existe a luz do spot, artificial, do estúdio de televisão ou de cinema. Minhas mulheres são bailarinas, são mulheres de palco, como as de Toulouse Lautrec. Os olhos do Modigliani, que ele não inventou, pois já havia nas estátuas greco-romanas. Esse não-ter-oolho é que dá um certo mistério, pois o olho define o olhar e não dá para o espectador a possibilidade de continuar a história que te dei no começo e que você deve terminar segundo a sua imaginação, sua cultura, suas evidências, suas vergonhas, seus tesões. Há também os ângulos altos de Degas, bem cinema? Pois é, eu brinco de diretor. Eu me ponho em cima de uma grua. Eu não sei se sei pintar, mas eu sei que desenho pra caralho. Eu sou um grande desenhista. Desenho como um cirugião corta com um bisturi. Meu traço é preciso, é correto. Eu não procuro o traço. Eu faço um exercício desde pequeno, que é desenhar como se eu fosse uma mosca que, do teto, observasse as pessoas.
Há, em seus quadros, muito do modernismo parisiense. A temática festiva de Toulouse Lautrec, os rostos de Modigliani, as perspectivas quebradas e insólitas... Pode ser. Mas eu também passei pela arquitetura, depois de me formar em Belas Artes, em Curitiba. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, fui trabalhar com os grandes arquitetos, com o Sérgio Rodrigues, Oscar Niemeyer, Sérgio Bernardes, doutor Lúcio Costa. Para ganhar miEntão, mais do que ser uma continuidade histórica, a nha vida, numa miséria franciscana, eu fazia as perspectivas deles. Em três anos, fiz mais de cinco mil. Como modernidade em sua pintura é mais uma característica sei a perspectiva pelo coração, como dizem os franceses, adquirida através de experiências de vida, de seus dieu brinco com isso na minha pintura. Também se vê a versos trabalhos. Continente agosto 2005
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Quando cheguei formado no Rio de Janeiro, em 1965, eu caí na praça General Osório, que estava ditando o comportamento novo do Brasil: Vinicius de Moraes, Garota de Ipanema, Tom Jobim, Chico Buarque, Carlos Drummond, Rubens Braga, Stanislau Ponte Preta, Juscelino Kubitschek, Leila Diniz, ditadura militar, AI5, psicanálise, liberação sexual, muita droga, tudo isso ao mesmo tempo naquela praça de Ipanema. E foi lá que eu fiz amizade com os grandes humoristas gráficos da época, que eram o Millôr Fernandes, Ziraldo, Fortuna, Jaguar, Henfil, todo o movimento para falar, com humor, o que estava se passando na ditadura. Assim, foi feito o Pasquim, no qual trabalhei. Mas também veio pela curiosidade e por meus delírios individuais. Eu brinco comigo mesmo. Isso é típico de filho único. Minha mãe é uma mulher muito especial, pois teve dois filhos únicos, pois meu irmão é 13 anos mais novo, é muito. Então fomos criados os dois como filhos únicos. Eu sempre brinquei sozinho. Eu faço mágica para mim mesmo no espelho e me divirto com isso. Afinal, dormimos juntos todas as noites, habitamos no mesmo corpo, temos que ter uma boa relação. Sua inspiração vem mais das artes gráficas, do humor, do que dos pintores modernos?
"Eu sou figurativo. Eu não sou um pintor moderno, Hoje, isso é sou um pintor contemporâneo. Eu palavrão. Os sou figurativo, uso a figura humana. Hoje, isso é palavrão, é coisa feia. Os pintores partiram pintores partiram para outra linha. para outra linha. Eu Eu não, pois preciso da figura hu- não, pois preciso mana. Não tenho cachorro, não tenho da figura humana" gato, não tenho planta, não tenho peixe, não tenho porra nenhuma. Eu gosto de gente, então pinto as pessoas. Assim, acabei inspirando outros fazedores de arte. Porque eu estou dando o começo da história. Eu brinco um pouco como um diretor de cinema. Cada exposição é um filme. As pessoas dizem: “Ah, você mudou as cores!” Eu não pinto com as mesmas cores. É como um diretor de cinema. Cada filme é uma outra história, é um outro olhar, uma outra iluminação, outros atores, outra música, é outro tudo. Os pintores normalmente se repetem. Não estou falando mal de pintor, mas eu não me repito, e isso é até mau, pois a crítica se perde. Perde-se na quantidade também. Foi um crítico francês que falou: “Pô, Juarez, você parece uma escola de samba, pois você não pendura numa exposição 15 ou 20 quadros, você pendura 100 ou 120”. Eu preciso de mais páginas para contar a minha história. Penso como um diretor de cinema ou como uma escola de samba que sai todos os anos na avenida com um novo enredo. Continente agosto 2005
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ARTES Por que Paris, então, apesar desse recuo de seu passado artístico? É como o que eu te disse, no mundo tem sete cidades. Eu venho de uma geração para a qual a França ditava a moda. Depois da guerra, passou para os americanos, que, graças a Deus, já estão em decadência. Eu cresci ouvindo música francesa e vendo filmes franceses em pretoe-branco, que não chegam mais, pois os americanos não deixam. Tudo que aprendia na escola de Belas Artes estava no Louvre ou no Jeu de Pommes, que virou Musée D’Orsai. Paris vive mais do prestígio do passado do que da qualidade de sua paisagem artística atual? Sim, isso é verdade. Paris vive do passado. Mas aqui também tem um lado maravilhoso que é o respeito pelo artista e pela arte. Claro que isso também é malandragem da França, pois aqui se sabe que isso dá muito dinheiro. O mundo inteiro vem para cá ver arte. Para consumir arte, até na mesa, com os queijos e vinhos. Paris é onde há mais clubes de jazz. É onde mais se escuta jazz no mundo. Muito mais do que Nova Orleans, de onde os músicos
Cenas da série A Festa Continua
negros foram expulsos. Aqui eles são deuses, começando por Jacqueline Baker, a Carmem Miranda deles. Paris sempre recebeu de portas abertas os artistas e vive, muito bem, obrigado, às custas deles. O mundo inteiro vem ver aqui Picasso e Modigliani, que nem eram franceses. Esse respeito eu sinto por mim mesmo. Eu sou muito querido aqui na minha rua, no meu bairro, por ser pintor. No Brasil, o artista é respeitado quando ele está fazendo sucesso. Eu sinto isso pelos meus próprios amigos. Quando trabalham em novela das nove, todo mundo pede autógrafo, quando passam para a das sete, já acham que estão decadentes. Aqui não, a padeira daqui da frente não sabe se meu quadro é bom ou se eu sou premiado. Ela só sabe que eu sou pintor. Ela me trata muito bem por isso: “Bonjour, Monsieur le peintre!” Só porque eu sou pintor. Porque a vó dela já vendia o pão para um Toulouse Lautrec que morava aqui na esquina, o Van Gogh que morava na outra esquina com seu irão Théo, ou Picasso que morava mais em cima. O senhor acha que podemos realmente falar de independência artística brasileira?
Fotos: Reprodução
ARTES genial. Nós temos a solução não só financeira, mas também de comportamento de vida. O senhor, que já fez de tudo um pouco, arrepende-sse de algo em seu trajeto? Uma história muito bonita aconteceu no dia em que fiz 30 anos. Já tem tempo, pois hoje tenho 64. Morava no Rio, na Lagoa, aí eu acordo me questionando se tinha valido a pena todo esse esforço, todo esse caminho. Nisso, entra no quarto a empregada, maravilhosa Teresa, trazendo café e jornal. Começo a ler o Jornal do Brasil e a primeira coisa que vejo é o texto de Carlos Drummond de Andrade, que começa sua coluna dizendo: “Vamos aprender a fazer silêncio como o Juarez Machado, na sua mímica tão eloqüente”. E pensar que minutos antes eu estava me questionando se teria valido esse esforço de querer ser artista.
Algum projeto em vista? Fiz há alguns anos a exposição Libertino, quando estava completando 60 anos, uma idade importante para o homem, que coincidiu com o nascimento de minha primeira neta, Vitória, uma nova estrela em meu firmamento. Tudo aquilo mexeu muito comigo e me permitiu fazer uma exposição libertina. De uma forma ainda meio Acho que houve um rompimento desde a Semana de tímida, pois vou esperar completar 100 anos para fazer Arte Moderna e hoje já existe uma arte brasileira figuuma exposição pornográfica. • rativa e abstrata reconhecida no mundo, porque temos talento. O que ainda não temos, por falta de estímulo de Camilo Soares governo, é fazer parte do mercado mundial de arte. Acima, quadro da série Ilha de Santa Catarina. Nossos artistas não conseguem vender por culpa de nosso governo. Ok, tem que ter esparadrapo nos hospitais, Ao lado, Juarez Machado esgoto e tudo, mas não esqueçam os artistas! Deveriam aprender com a França, que ganha muito dinheiro com isso. Artista é uma classe genial, porque não faz greve, não pede aumento, não tem direito a 13° salário. Só paga imposto. Quando eu morrer, no dia seguinte, vai chegar a fiscalização e pegar 60% das obras de arte que houver aqui. Foi assim que fizeram o Museu Picasso de Paris. A arte pode ser nossa bomba atômica? Claro! Temos a solução para tudo, pois o Brasil sabe administrar de uma forma maravilhosa o trabalho e a preguiça. O ócio produtivo. O francês trabalha até os 60 anos e depois vai morar no interior, mesmo sabendo que quer ficar na cidade. Nós ganhamos pouco, mas quando chega o final de semana, sabemos administrar o ócio: vamos jogar uma pelada, fazemos uma roda de pagode, vamos à praia, vamos jogar dominó no banco da praça ou bater um papo na janela com a vizinha. Há essa coisa Continente agosto 2005
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Imagens: Orlando Azevedo/Divulgação
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O universo de Brennand Francisco Brennand é exemplo de personalidade criadora, complexa e ambiciosa que, ao contrário de outros escultores e pintores, não se satisfaz com a realização de peças isoladas
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ou de longa data um admirador da arte de Francisco Brennand, sobre a qual tenho refletido e volto a fazê-lo, agora, diante do catálogo de sua mostra recente no Museu Oscar Niemeyer de Curitiba. Salta à vista a diferença de suas criações cerâmico-escultóricas, com respeito às obras de outros artistas contemporâneos, daqui e lá de fora. E até certo ponto, esta diferença envolve a própria cidade do Recife, que também se distingue no contexto nacional, como núcleo de vida cultural e artística. Em que pese às manifestações de arte conceitual – que se encontra por toda parte –, o universo cultural da capital pernambucana é peculiar. Esta afirmação tem a ver com o fato de que, no meu entender, não houvesse este universo cultural específico, certamente não teria surgido a personalidade artística de Brennand com as características específicas que o distinguem. Convencido que estou de que o homem é uma invenção de si mesmo, ser cultural que habita o mundo que ele próprio criou, não pretenderia afirmar que Brennand é fruto do Recife, mas, sim, que, dialeticamente, um influísse sobre o outro, porque, depois deste artista e de sua obra, a cidade que o tornou possível tornou-se um pouco outra por causa dele, pois assim se faz a história humana, que cada um inventa ao inventar-se.
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TRADUZIR-SE Dentro deste enfoque, sou levado ainda assim a me perguntar que relações tem a obra de Brennand com a tradição escultórica brasileira, e vejo que são escassas. Aliás, nem sei se cabe falar de tradição a propósito desta sucessão de estilos importados da Europa e que aqui ganharam um tom próprio, apesar da falta de continuidade: pulamos do barroco para o neoclássico, deste para a modernidade que redescobre o Brasil primitivo em busca de autenticidade. Mas nos anos 50 dá-se a ruptura com a arte dita modernista na erupção do concretismo e em seguida do neoconcretismo, que leva a conseqüências últimas as propostas implícitas na vanguarda construtiva européia. Cabe então perguntar: que tem Brennand com toda esta história? Muito pouco, ainda que, no fundo, a busca do arcaico e do pré-lógico – que está na base de sua expressão – seja um dos componentes do processo artístico do século 20. Acredito que o fulcro de toda criação artística é a personalidade, muito embora não surja ela do vazio, mas, sim, do contexto social como sintetizadora original de elementos e valores coletivos. Mas, se a personalidade fosse apenas a expressão mecânica e inevitável daqueles elementos, dificilmente poderia atuar como fator de mudanças e criações originais. De fato, a personalidade – conforme o menor ou maior grau de originalidade que possua, além da criatividade, impulso visionário etc. – se inventa a partir da realidade em que está surgindo e a modifica na medida mesma em que se inventa e a reinventa. Impossível dizer como surgem tais personalidades, quais fatores determinam seu surgimento que é, segundo creio, aleatório, mais perto do princípio de incerteza da física quântica que das relações de causa e efeito da física newtoniana. Francisco Brennand é exemplo de uma personalidade criadora complexa e ambiciosa que, ao contrário de outros escultores e pintores, não se satisfaz com a realização de peças isoladas que, se no final configuram um conjunto, uma “obra”, raramente alcançam a grandeza e a monumentalidade que encontramos no complexo arquitetônico cerâmico escultórico da Várzea, antigas ruínas de Cerâmica São João.
Coerente com a teoria de que o homem se inventa e inventa seu mundo, creio que a obra que ele cria não seria inevitavelmente criada nem exatamente aquela que ele criou: poderia não ter sido feita e poderia ter sido feita diferente; mas jamais por outro. Assim, o conjunto da Várzea só existe porque ali Brennand encontrou as ruínas da fábrica de cerâmica de seu pai que lhe inspiraram a realização de um templo da arte. Não fora isto e a obra de Brennand teria sido outra, mas não o foi porque ele era quem era: filho de um fabricante de cerâmica, herdeiro de uma fábrica falida, mas, sobretudo, uma personalidade criadora de alto vôo. Se em vez de Francisco Brennand, o herdeiro das ruínas fosse Josef Beuys, este possivelmente, arraigado a seu niilismo de ex-combatente da Luftwaf, teria arruinado ainda mais as ruínas para mostrar que a vida e a arte de nada valem. Já a Brennand, aquelas ruínas inspiraram a criação de uma gigantesca metáfora, imitação e paródia dos sagrados templos erguidos por finadas civilizações. Uma interpretação irreverente e violentadora do sagrado, desmistificadora, uma vez que a imitação do sagrado é a sua negação. Leda cruza as pernas obscenamente como uma depravada. Diana é uma fêmea de eróticos seios, deusas e deuses como Mercúrio, Palas Atenea e Netuno misturam-se a ovos de serpentes e serpentes, nádegas e falos e aves fantasmais. De fato, a impressão que dá é que Brennand se valeu das ruínas para ali construir um cenário onírico onde tudo é possível. Leda e o Cisne, Este é um aspecto; o outro 182cm, 1980, diz respeito às obras em si mescoleção do artista mas, o que significam na sua rudeza e primitividade aparentes, e na sua indefectível identificação com os ícones, símbolos e personagens de uma realidade em que se misturam o mágico e o erótico. Essas obras, de insondáveis significados, são certamente produto de uma personalidade em que, como no artista do paleolítico, imagem e realidade se confundem e para quem a imagem funda uma nova realidade. Neste espaço povoado de personagens da mitologia e da história, frutos de pulsões e aspirações inconfessáveis, circula a elé-trica energia do artista reinventor de mitos. • Continente agosto 2005
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AGENDA
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ARTES
O híbrido harmônico de Samico O artista plástico Gilvan Samico revê sua trajetória em exposição no Mamam A poética do artista plástico Gilvan Samico – reconhecível pela abordagem do romanceiro popular através da literatura de cordel e da xilogravura – estará presente nos três pavimentos do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães até 2 de outubro. A mostra destaca a incorporação de elementos da arte erudita ao contexto da cultura popular, traduzindo a amadurecida resolução formal de Samico. Noventa e quatro gravuras (pertencentes ao acervo do Museu e selecionadas pelo diretor Moacir dos Anjos) compõem um panorama da simétrica produção do xilogravurista da década de 50 até os dias atuais. Gilvan Samico. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife-PE). Fone: 3423.2761. Até 2 de outubro.
Traços despretensiosos O desenho, em seu conceito de “início”, matériaprima para a imaginação, é a proposta da exposição Os Olhos Vão Palmilhando Esse Caminho Estreito, do artista plástico pernambucano Alexandre Nóbrega. O preto e o branco dão contorno às idéias do artista em 15 desenhos inéditos, cujos traços sugestivos permitem ao público
divagar livremente por interpretações diversas. Vários tipos de papéis, carvão, nanquim, esmalte sintético, crayon e tinta acrílica, entre outros, dão textura às obras que não são nem abstratas nem figurativas, mas, segundo o artista, “Traços simples, como origem de uma idéia, como os rabiscos feitos na agenda telefônica, ou as formas que imaginamos ao mirar uma nuvem”.
Anos 80 sob a ótica artística
O quarto recorte curatorial da coleção Marcantonio Vilaça de arte contemporânea, intitulado Pinturas, revela as expressões, impressões e intenções vigentes na produção artística dos anos 80. Nove telas, selecionadas por Moacir dos Anjos, caracterizam a mostra, sem a pretensão de criar identidade com um tema único. As obras fazem referência aos vários estilos, técnicas e motivações temáticas Os Olhos Vão Palmilhando Esse Caminho Estreito. Galeria Mariana Moura (Av. Rui Barbosa, 735, que, simultaneaGraças, Recife-PE). Fone:3421.3725. Até 3 de setembro. mente, traduzem o interesse do colecionador e identificamas Sobre a relevante perspectiva de uma tendências dominantes na época. Beatriz escultura de nove metros de comprimento, Milhazes, Courtney Smith, Cristina o artista plástico Luiz Zerbini imprime o Canale, Daniel Senise, Lari Pittman, elemento primordial de sua mais recente Leda Catunda, Paulo Pasta, Sálvio Daré obra: a intenção. Alumínio, fotografia, cole Valdirlei Dias Nunes são os autores das méias de plástico e MDF materializam a obras de grandes formatos, que estarão idéia do autor de permitir a interferência do arte contemporânea, através de peculiares decorando a Galeria Marcantonio Vilaça espectador no material que estará exposto no pontos de vista, poderão decodificar a do Instituto Cultural Bandepe até o final Espaço Maria Bonita. A dimensão da insta- escultura, conferindo-lhe o significado que do ano. lação e a sobreposição de elementos provo- acharem conveniente. A obra de grande cam efeitos ópticos, capazes de confundir a porte é resultado de uma série de trabalhos Pinturas. Instituto Cultural Bandepe visão do observador. Os admiradores da que o artista vem realizando desde 2004.
Tamanho detalhe
Luiz Zerbini. Espaço Maria Bonita (Rua Oscar Freire, 702, São Paulo). Fone: (11) 3062.6049. Até 8 de setembro.
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Galeria Marcantonio Vilaça (Av. Rio Branco, 23 - 2º andar, Recife-PE). Fone: 3224-1110. Até 30 de dezembro.
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QUADRINHOS
Zéfiro, o erótico Carlos Zéfiro, esse sucessor, à sua maneira, de Hans Staden, Gregório de Matos e da parte boa (e mais sincera) da obra de Gilberto Freyre, tem seus gibis eróticopornográficos relançados por uma carioca Fernando Monteiro
QUADRINHOS
O nosso Zéfiro foi mesmo um zéfiro (“Zephyr. s. m.: espécie de tecido muito fino para vestidos de senhoras; Zephyro. s. m.: vento brando e agradável; viração, brisa”). No tempo de “o petróleo é nosso” – tempos de certa inocência política que também se perdeu entre compras de votos e mensalões –, sua produção secreta significou, talvez, um equivalente moralmente inofensivo daquela era do presidente aloprado que “abriu” o antigo país no qual a bula de Regulador Gesteira podia servir de estimulação erótica para adolescentes cheios de espinhas nas caras ainda não pintadas para clamar pelas diretas (que só nos trouxeram sub-presidentes, até agora, sem exceção). Há uma radiografia qualquer, ainda por ser feita, entre moral, política e sexo em ambas as cabeças, de baixo e de cima. E deve-se partir, no Brasil, do fundo Monique Cabral/Ag. O Globo
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alvez seja difícil – nos tempos permissivos de hoje – imaginar o impacto dos “catecismos” de Carlos Zéfiro sobre duas gerações de brasileiros: os malsaídos da atmosfera do Estado Novo para o clima novacap de Juscelino e aqueles que, depois, iriam se tornar adultos na atmosfera pós-Woodstock do “liberou-geral”. “Catecismos? De Carlos Zéfiro? E quem foi esse Zéfiro? Um padre?...” Nos círculos mais jovens, só não farão tais perguntas os antenados com a boa MPB, que certamente conhecem Barulhinho Bom – Uma Viagem Musical, CD de Marisa Monte, de 1996, com capa e encarte produzidos em cima da obra de Zéfiro, o pornógrafo autor dos tais “catecismos” (livrinhos eróticos que circularam, sim, num tempinho bom). Vai uma distância enorme entre saber ou não saber sobre CZ. Os que sabem de primeira mão (ôpa), são contemporâneos de “Banho de Lua”, na voz escolar de Celly Campello, e se escondiam no banheiro, nove entre dez, com algum dos catecismos de Zéfiro entre os joelhos. Coisa de meninos e coisa de velhos – se os velhos não tivessem, hoje, revistas de um erotismo sombrio e explícito demais (como nos vídeos pornográficos que matam o erotismo) para oferecer as alegrias das revistinhas de outrora. Estou chamando de erótica a obra de Carlos Zéfiro porque o conteúdo “pornô”, digamos, das publicações desse fino desenhista não só parece até inocente, em retrospecto, mas porque carrega, ele, uma espécie de “descoberta” brasileira do sexo, até hoje – quando “a sinistra maré de sangue está solta e, por toda parte, submersa está a cerimônia da inocência”, nos versos proféticos do poeta Yeats.
Carlos Zéfiro: breve celebridade no fim da vida
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QUADRINHOS Reprodução
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do tapete debaixo do Vestido de Noiva – do pernambucano Nelson Rodrigues – passando pelas chanchadas do “teatro de revista” (tipo Tem Bububu no Bobobó etc.) até chegar ao ponto em que nos situamos, pós-modernos e integrados entre lulas & urnas, malícias eletrônicas e escândalos horrendos, na política e na vida íntima hoje devassada pelos reality shows. É por aí que Zéfiro dá saudade do Brasil de antes, pobre e cheio de uma bossa que já foi nova. Perdemos o antropofagismo que reinava nos desenhos brasileiríssimos de Carlos Zéfiro? A nossa paixão de comer – no país do fracasso do Fome Zero – se tornou um rito que já não nos redime? O nosso Pindorama, aliás, começou comendo um bispo chamado Sardinha (comendo-o literalmente, os índios tupinambás ou caetés, já não me lembro quais, da lição de escola levemente sexual nesse capítulo escabroso do jantar dos índios quinhentistas que fomos). Aqui, não havia “pecado” – abaixo do equador etc. – e tudo era verde, amoral e quase permitido, não fosse a pesada catequese jesuítica a remeter direto para cabeças como a do Bandido da Luz Vermelha do aviso piscando há muito tempo: há qualquer coisa nos transformando em tarados e políticos ineptos (porém, para os primeiros ainda há salvação)... Voltando a Zéfiro: foram os ventos da moral cristã portuguesa, para começar – e não a luz crua sobre as ínContinente agosto 2005
dias (e negras) – que nos perderam nas sombras do hardcore. Parece claro que a relação do brasileiro com a sexualidade poderia ter sido uma lição de “desencucação” perfeita, caso a história local houvesse caminhado pela alegria metafórica dos índios nus comedores de gente, a partir de quando Cabral aqui aportou, vestido até o pescoço com sedas e golas de renda, elmo de ferro e fivela nos sapatos de comandante da esquadra com a cruz pesada sobre a esfera armilar das Índias transformadas em colônias fornecedoras de pau (ôpa, de novo), ouro e açúcar exportados por mares navegados para isso mesmo. “Em se plantando, tudo se dá”, e, em tudo se dando, tudo tomamos ó pá! Era aqui o El Dorado – como hoje é o Hawaí (“seja aqui/ e onde tu sonhares/ todos os lugares”)... da pele dos meninos (e das meninas, Caetano) mais tarde cantada em prosa & verso, de São Salvador ao território livre de Carlos Zéfiro, esse sucessor, à sua maneira, de Hans Städen, Gregório de Matos e da parte boa (e mais sincera) da obra de Gilberto Freyre, o amante dos mamoeiros. Mas, enfim, quem foi esse Zéfiro? Nascido em 1921, o funcionário público carioca Alcides Aguiar Caminha é, hoje, uma mera ficha – impecável, é verdade – nos arquivos do antigo Departamento Nacional de Imigração, orgão vinculado ao Ministério do Trabalho getulista. Entre burocráticos registros do gozo de
QUADRINHOS Estou chamando de erótica a obra de Carlos Zéfiro porque o conteúdo “pornô”, digamos, das publicações desse fino desenhista não só parece até inocente, em retrospecto, mas porque carrega, ele, uma espécie de “descoberta” brasileira do sexo
Encarte para o disco de Marisa Monte
merecidas férias, liçença-paternidade e aposentadoria compulsória, nada há que revele, por trás de Caminha (parente remoto do Pero Vaz que viu os índios completamente nus?), o pornógrafo Carlos Zéfiro, que faleceu em julho de 1992 como um mestre do erotismo nacional, um herdeiro visual do melhor apetite das populações nativas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Ele manteve, o tempo todo, vida dupla: durante o dia, era Caminha, no máximo um funcionário boêmio, com incursões pela música (compôs quatro sambas em parceria com Nelson Cavaquinho). De noite, entretanto, debruçado sobre a prancheta, no escritório caseiro, assumia a persona de Carlos Zéfiro, autor e ilustrador de mais de 500 “catecismos” desenhados em preto e branco, no tamanho de um quarto de folha ofício, com 24 ou 32 páginas e tiragens de 30.000 exemplares de um erotismo franco e cândido ao mesmo tempo, ou francamente pornográficos de um modo que hoje pode até ilustrar um CD de MPB. Siglas & lacanismos (e lacanagens) à parte, as revistinhas – vendidas, dissimuladamente, em bancas de jornais – eram o produto das viagens mentais do carioca tímido e sereno, casado aos 25 anos com Dona Serat Caminha, mãe dos 5 filhos que cresceram ignorando a atividade paralela do pai barnabé. Pela Lei 7967 (que regia, então, o funcionalismo público), Alcides teria perdido o cargo caso se envolvesse em “escândalos”, e, na época, o que Caminha fazia em casa, clandestinamente, era considerado um escândalo. A lei não vigorava mais – e o nosso herói já estava aposentado, por sinal, quando deixou de vigorar – ao
tempo em que uma reportagem da revista Playboy afinal revelaria, em 1991, a verdadeira identidade de “Carlos Zéfiro”. Alcides Aguiar Caminha morreu no gozo de uma breve celebridade, que durou menos de um ano. Durante esse período de exposição da “face secreta”, ele deu entrevistas, foi convidado de honra de festivais de humor & quadrinhos e recebeu até o Prêmio HQMix, “pela importância da sua obra”. Agora, essa obra – com ou sem aspas – está sendo relançada pela editora A Cena Muda, de propriedade da carioca Adda Guimarães, dona de uma banca de revistas de Ipanema que se transformou em selo editorial e acaba de lançar seis títulos zeferianos vendidos sem subterfúgios, o primeiro dos quais: O Viúvo Alegre, a história de um cinqüentão que se apaixona por uma jovem prostituta... Por fim, viajem pelas ilustrações aqui per- Coleção Carlos Zéfiro, volume 6, mitidas (as demais não Editora A Cena Muda, Rio de Janeiro, R$ 12,00. o seriam) e leiam atrás do subtexto das imagens criadas, com quase ingênua franqueza tupiniquim, pelo único “Henry Miller” visual que tivemos. • Continente agosto 2005
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A invenção da arquitetura moderna Autodidata e pensador, Le Corbusier percebia os espaços construídos pelo homem como uma pura criação do espírito Geraldo Santana
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Paul Almasy/Corbis
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extos sobre arte e arquitetura ilustrados com desenhos do próprio autor, assinados por Le Corbusier, aparecem publicados em Paris pela revista L' Esprit Nouveau, a partir do seu primeiro número, em 1920. Usando pela primeira vez esse pseudônimo, o jovem “homem de letras” começava a definir a arquitetura como “o jogo sábio, correto e magnífico das formas reunidas sob a luz”. Autodidata e pensador, assim percebia ele os espaços construídos pelo homem – uma pura criação do espírito. Suas reflexões, descobertas e pensamentos se formavam a partir de anotações e croquis colhidos em viagens de estudos, que registrava em pequenos cadernos. Aos 24 anos, na ida para Grécia, passou pela Turquia, por Istambul e Brousse, em 1911. Observou que na Mesquita Verde de Brousse, vous êtes assujetti, par um rythme sensoriel (la lumière et lê volume) et par dês mesures habiles à um monde em soi qui vous dit ce qu'il a tenu à vous dire (você é levado por um ritmo – a luz e o volume – e por medida própria a um mundo em si que lhe diz aquilo que tinha a lhe dizer). Este parece ser o registro do pensamento que lhe deu suporte para sua famosa definição de arquitetura. Os doze primeiros artigos de sua autoria, publicados por essa revista, foram reunidos, em 1923, e constituem o conteúdo essencial do seu primeiro livro, Vers Une Architecture, seu mais famoso livro-manifesto. Descendente de franceses, pai relojoeiro e mãe musicista, nasceu em La Chaux-de-Fonds – Neuchâtel, Suíça, em 6 de outubro de 1887, recebendo o nome de Charles-Édouard Jeanneret. E naturalizou-se como francês em 1930. Aos dezoito anos, constrói sua primeira obra (em 1905), uma casa em La Chaux-de-Fonds. Pôde então iniciar suas viagens de estudos pelas cidades italianas (Pisa, Florença, Siena, Ravena, Pádua, Ferrara, Verona) e, em seguida, Budapeste e Viena. Nesses lugares, diante de seus monumentos, registra, em seu caderno, as primeiras reflexões e temas, que mais tarde viriam formar as grandes constantes do seu pensamento sobre arquitetura e urbanismo. Muda-se em fevereiro de 1908 para Paris e ingressa no atelier de arquitetura de Auguste Perret. Esteve em temporadas e viagens na Alemanha (1910), com estágio no atelier de Behrens, de onde seguiu para a citada viagem pela Turquia (Istambul e Brousse), Grécia (monte Athos, Atenas, Delfos e Patras), retornando a La Chaux-de-Fonds pela Itália (Bríndisi, Nápoles, Pompéia e Roma). Ingressa como professor na Escola de Arte de La Chaux-De-Fonds (1912), publica o Étude sur le Mouvement d’ Art Decoratif en Allemagne e dirige, em 1914, os Ateliers d’Art Reunis (arts du bâtiment). Em 1915, concentra-se em investigação sobre urbanismo na Biblioteca Nacional de Paris.
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Edifice/Corbis
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Villa Savoye, casa sobre pilotis com terraço e jardim
Instala-se em Paris, na rua Jacob (1917), e com Amédée Ozenfant publica Après le Cubisme e abre a 1ª Exposição Ozenfant-Jeanneret na galeria Thomas, rua Penthièvre (1918). A 2ª e a 3ª exposição da dupla foram, respectivamente, na galeria Druet, em 1921 e na galeria l’Effort Modern, em 1923. Com seu primo Pierre Jeanneret (nove anos mais moço), abre em 1922 um atelier de arquitetura, reinstalado definitivamente, em 1924, na rua de Sèrvres nº 35, aí funcionando por 38 anos. Corbusier e Pierre Jeanneret participam dos salões de arte, o Salon d'Automne e o Salon des Indépendants, onde expõem o plano teórico de uma cidade de três milhões de habitantes, a maquete da casa Citrohan (a invenção do pilotis), e os immeubles-villas. Como se pode ver, nesses 37 primeiros anos de vida, além de homme des lettres, bom escritor e pensador, era arquiteto, pintor, escultor, compulsivo desenhista, e urbanista. Embora sua profissão declarada permanecesse como homme de lettres, somente 16 anos mais tarde, em 1940 – ao lado de Aguste Perret e Eugène Freyssinet – foi distinguido pelo Governo Francês, como único profissional sem diploma. Então, foram autorizados a projetar e construir. Sua relação com o Brasil se inicia na viagem (de sua própria iniciativa) à América do Sul, em 1929, quando Continente agosto 2005
fez várias conferências, quatro delas no Brasil – duas no Rio de Janeiro e duas em São Paulo; viagem que incluiu a Argentina, o Uruguai e o Chile. É desse ano o início da construção de uma de suas mais famosas obras, a Villa Savoye (Poissy, próximo a Paris), concluída em 1931. A obra que melhor representa a nova estética arquitetônica – “a revisão dos valores plásticos tradicionais” – possibilitada pela estrutura independente (um esqueleto de concreto). Essa nova arquitetura se definia por “Cinco Pontos”: a planta livre, desvinculada da estrutura, sem necessidade de correspondência vertical das paredes; a fachada livre podendo ter abertura de diferentes dimensões e formatos; a janela corrida, contínua, podendo atingir toda extensão da fachada; o pilotis, o pavimento térreo vazado, com colunas e poucas paredes, permitindo interpenetrações entre pisos e jardins internos e externos, com maior ventilação, ao nível do chão; e o teto-jardim, um terraço como cobertura. Sua grande contribuição para a arquitetura brasileira se deu com a sua presença no Rio de Janeiro, em 1936, a convite do Ministro Gustavo Capanema, entre 12 de julho (dia da chegada, no dirigível Hindemburg que fizera escala no Recife) e 15 de agosto (retorno no navio Conte Biancanate); tendo pronunciado seis conferências
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(realizadas no auditório da Escola Nacional de Música). Simultaneamente, foi o consultor de duas equipes: a do projeto do edifício do Ministério da Educação e Saúde –MES (depois Ministério da Educação e Cultura – MEC, o atual palácio Gustavo Capanema); obra emblemática, considerada “o marco de partida da grande renovação da moderna arquitetura brasileira”, como disse Joaquim Cardozo em 1956; “o perfeito retrato do Modernismo quando jovem”, como disse Ítalo Campofiorito, em 1995; a outra equipe encarregada do plano urbanístico da Cidade Universitária do Rio de Janeiro, primeira aplicação, entre nós, dos princípios do Urbanismo Moderno. Essas duas equipes eram coordenadas por Lúcio Costa, reunindo os mesmos arquitetos: Oscar Niemeyer, Alfonso Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcelos. Seu pensamento (e sua rápida ação-resposta) sobre arquitetura e urbanismo está fortemente condicionado pelas grandes transformações sociais e tecnológicas decorrentes da industrialização; das novas tecnologias da
eletricidade e das máquinas, da intensa urbanização e dos novos modos de vida, que sua geração vivenciou na Europa desde o final do século 19. E também pela evidente inadequação e insuficiência dos espaços urbanos e arquitetônicos para esse novo estágio de civilização e progresso, que determinava e exigia um novo padrão de vida, outra cultura, nova estética. Como conciliar a civilização da máquina com a cultura e os valores humanistas? A engenharia se antecipara com as grandes estruturas industriais, portuárias e viárias: silos de concreto, fábricas, gares, pontes; os grandes transatlânticos, os aviões, os automóveis. Enquanto as artes, a arquitetura, o urbanismo se atrasavam estagnadas, repetindo os velhos estilos e usando técnicas ultrapassadas. A resposta veio como uma decorrência lógica: Uma arquitetura feita por máquinas. A casa funcional, fabricada com materiais industrializados, construtiva e moralmente sadia, e bela – “uma máquina de morar”. Une Maison est une machine à habiter, um dos seus axiomas, que geraria grandes polêmicas.
Capela de NotreDame-d du-H Haute em Ronchamp,1950
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Interior concebido por Le Corbusier
Para a escala urbana, ainda se repetiam as soluções do velho urbanismo, dos modelos Hausmman para Paris e Cerdá para Barcelona, com os edifícios contínuos, alinhados pelo paramento da quadra, sem afastamentos frontais ou laterais, quadras fechadas com pouco espaço para os automóveis (novas máquinas) e pouca área verde, pouca insolação, deficiente ventilação; e trama viária (rua-corredor) com muitos cruzamentos e conflitos crescentes entre veículos e pedestres. Em 1928, Le Corbusier lidera um grupo de arquitetos que, reunidos no Castelo de La Sarraz na Suíça, realiza a 1ª reunião do CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna). A 2ª reunião foi realizada em Frankfurt (1929); a 3ª em Bruxelas (1930); e a 4ª em Atenas (1933), quando se consolidou a doutrina do urbanismo moderno no documento conhecido como Carta de Atenas. O CIAM existiu por 30 anos, até 1958. A idéia de “cidade-jardim”, ou “cidade-parque”, zoneada pelas três funções básicas: habitar, trabalhar e recrear, representava a síntese desse novo urbanismo. Tanto como novo modelo para a tradicional “cidade-horizontal”, como para a nova “cidade-vertical”, que já surgia, viabilizada pelas estruturas em esqueletos verticais de concreto (ou aço) e pelas máquinas e motores movidos à eletricidade (elevadores e moto-bombas hidráulicas). Em ambos os casos, esse novo urbanismo introduzia uma expressiva ampliação dos espaços públicos e vazios de uso comum, sobretudo vias e áreas verdes; e buscava a total separação e maior hierarquização entre vias para veículos Continente agosto 2005
Seu atelier de pintura, Recherche patiente
Imagens: Reprodução
e pedestres. A conjugação desses dois princípios determinou um novo desenho do tecido urbano, com o radical abandono da tradicional “rua-corredor”. Brasília representa (ainda hoje) a primeira e mais importante realização de uma grande cidade, com a coerente aplicação dos princípios do novo urbanismo. Esse novo modelo de cidade (horizontal ou vertical), preconizado pela Carta de Atenas, foi chamado por Le Corbusier, Cidade Radiosa. Com muito verde, muita luz e muito ar puro, anunciava uma nova natureza, a ser construída, em integração com a cidade. A recíproca seria verdadeira? O novo espaço para os estabelecimentos humanos da nova era e do “espírito novo” – da Civilização da Máquina – deveria romper com o padrão urbanístico da cidade antiga (tradicional), que dava sinais de esgotamento, de irreversível congestionamento, insuportável densidade e sufocante poluição. A melhor aplicação prática do conceito de Cidade Radiosa, construída por Le Corbusier, é, sem dúvida, a Unidade de Habitação de Marselha, um bloco de habitação coletiva com 337 apartamentos (de sete tipos de diferentes tamanhos), sobre pilotis, implantado em terreno de três hectares, ampla área verde, com serviços, rua de comércio no 5º andar e cobertura-terraço para o lazer, play-ground e jardim de infância. A estratégia de viabilização desse plano se inseria no esforço de reconstrução de cidades européias, após a Segunda Guerra Mundial. Outras unidades, projetadas
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de-A Açúcar Em viagem à America do Sul, 1929, O Pão-d
no seu escritório, embora com simplificações no programa enquadrando-se no programa habitacional econômico, foram construídas na França e na Alemanha. Como urbanista, Le Corbusier (ou L-C – outra forma usual de sua assinatura) teve a sua melhor oportunidade de aplicação prática no Plano de Chandigarh, a nova cidade-capital do Punjab e outro projeto na cidade de Ahmedabad, na Índia, a partir de 1951. Infelizmente, a implantação do plano não abrangeu a dimensão total da cidade. Seus projetos ficaram restritos aos palácios do núcleo central de administração e governo. Podemos entender (talvez melhor) a sua idéia de Cidade Radiosa e o seu compromisso com a natureza, recorrendo às suas palavras, em carta de 1936 a Gustavo Capanema. Referindo-se à cidade do Rio de Janeiro, como a de mais bela paisagem e integração com os elementos da natureza: “Devo a ela as mais importantes idéias urbanísticas que já tive”.
A Mulata
Em conferência na Sorbonne, (em 4 de fevereiro de 1960), 3.000 pessoas, entre arquitetos, urbanistas, professores e estudantes das escolas de Medicina, Letras e Artes escutaram: Il n’y a pás de vérite aux extremes. La vérite coule entre deus rives, mince filet d’eau ou masse croulante dês fleuves, à chaque jour différents!. Depois desse evento, ainda fez projetos, como a igreja de Firminy, somente agora concluída (em 2005), 40 anos após sua morte; livros, exposições e viagens, inclusive ao Brasil, para o projeto da Embaixada da França, quando conheceu Brasília, em 1962. Viveria ainda pouco mais de três anos. Habitualmente, passava dias de suas férias em praia no Sul da França, onde construíra uma cabana. Aos 78 anos, com o mesmo espírito do jovem que descobriu (e abraçou) a arquitetura na Mesquita Verde de Brousse, deu seu último mergulho, último abraço, nas águas do Mediterrâneo. •
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Pinha, a fruta-do-Conde de Miranda "O meu amor Tem o sabor Doce da pinha Venha provar Desse manjar Senhora minha". Quadra ao gosto popular
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os jogos de palavras cruzadas, pinha é ata. Assim a conheciam na Espanha. Com a apropriação desse nome ibérico, sendo mesmo natural por aqui, dado que o Brasil chegou a ser possessão espanhola nos reinados dos Felipes II, III e IV. De 1580 a 1640. Mas pinha, nas palavras cruzadas, é também frutado-conde. Segundo versão corrente, e equivocada, homenagem a Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, mais conhecido como Conde D’Eu. Marido da Princesa Imperial Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon. Em verdade devendo o nome, essa fruta, a Dom Diogo Luís de Oliveira, GovernadorGeral do Brasil (1627 a 1635). Segundo seu título de nobreza, Conde de Miranda. Fruta-do-Conde de Miranda, pois. Por estar entre os hábitos do casal o de cultivar essa fruta, em seu quintal. Único local em que podia ser encontrada por aqui. Em alguns escritos da época é também fruta-da-condessa – sendo essa denominação, hoje, mais usada para a graviola. Na administração do Conde de Miranda vieram os holandeses, ao Brasil, em busca de fumo e açúcar – o “ouro branco”. Por conta de um comércio que, na Continente agosto 2005
Europa, rendia fortunas. Primeiro chegaram à Bahia, sede do governo provinciano. Salvador foi, várias vezes, atacada por tropas chefiadas por Pieter Van Heyn. Sem sucesso. Numa dessas tentativas dirigiuse a esquadra holandesa à Ilha de Tinharé (sul da Bahia). Era comandada por um brasileiro conhecido pela alcunha de “Mãozinha”. Recusando-se o tal Mãozinha a desembarcar na ilha, sob o argumento de lá ter visto um batalhão de soldados portugueses, prontos para a batalha. Não havia soldado nenhum. Segundo crença generalizada, um milagre – logo atribuído a Nossa Senhora da Luz. Dom Diogo resolveu não esperar por outro milagre. E construiu, naquela ilha, a Fortaleza do Morro de São Paulo.
SABORES PERNAMBUCANOS
Geyson Magno/Ag. Lumiar
Não saiu barato, aos nativos. Obrigados que foram a fornecer farinha de mandioca para abastecimento da guarda local e das armadas que ali aportassem. Os holandeses também tentaram a sorte em Pernambuco – por esse tempo, maior produtor mundial de açúcar. Aqui chegaram em 1630. Queimaram Olinda e se instalaram na planície do Recife. Em 1637, aqui veio o alemão Johann Mauritius van Nassau-Siegen, dito Mauricio de Nassau, e a tentativa de construir uma civilização holandesa nos trópicos. Esse domínio holandês chegou a Sergipe, Paraíba e Maranhão. O fim da aventura conhecemos bem. Nassau volta à Europa, em 1644, para ser sagrado Príncipe de Sacro Império. Sendo as tropas holan-
desas afinal derrotadas na Batalha dos Guararapes (1654). Mas essas são outras histórias. PINHA DE MUITOS NOMES Pinha é fruta nativa das Antilhas. Provavelmente das Ilhas Trinidad. Contam-se, hoje, 118 espécies diferentes – 108 cultivadas na América Tropical, 10 na África tropical. Apenas 13 são comestíveis. Os índios da América Central chamavam anon à variedade que mais apreciavam. Por serem muito parecidas entre si foram todas, indistintamente, designadas pelo conquistador espanhol como anone ou anona. Daí vindo o próprio nome da espécie, anonáceas, referindo toda uma família de frutas com semelhanças entre si, na forma e no sabor – anona squamosa (pinha), anona muricata (graviola), anona crassiflora (marolo), anona cherimola (cherimóia), anona atemoya (atemóia – híbrida, resultado de cruzamento entre pinha e cherimóia). Foi-se o Conde de Miranda e ficou uma fruta que acabou caindo no gosto popular. Em 1811, Dom João VI trouxe, ao Rio de Janeiro, agrônomo francês especialmente encarregado de fazer plantação dessa fruta. Deu certo. É cultivada, hoje, por todo o país. Na Europa, recebeu nomes diferentes. “Ata” na Espanha, como vimos. Em Portugal “pinha”, por sua semelhança com a fruta do pinhão. Na França pomme canelle, na Inglaterra sugar apple. Na África é pinha em Angola, e ata em Moçambique. No Brasil, dependendo da região, é pinha, ata, pinha-ata, pinha-da baía, anona, coração de boi, cabeça de negro. Além de fruta-do-conde, claro. A árvore pode chegar a cinco metros de altura. Aprecia regiões quentes e secas. Prefere pouca chuva. Mudas podem ser feitas por semente ou enxerto. Usualmente são postas em saco plástico e só depois transplantadas ao seu local definitivo. No primeiro ano recomenda-se uma poda – com a retirada do excesso de galhos, para garantir a robustez da planta. Atinge a maturidade a partir do terceiro ano. Produção anual de 150 a 200 frutos. Uma pinha, em verdade, é a reunião de muitas frutas agregadas – originadas dos carpelos separados de uma mesma flor. Acontece coisa parecida com o abacaxi. A polpa é macia, cremosa, suculenta, doce, perfumada, sem nenhuma acidez. Continente agosto 2005
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SABORES PERNAMBUCANOS A semente é escura, lisa e brilhante – mas já existe variedade sem semente, ainda pouco conhecida por aqui, denominada pitaguari ou ata-ceará. Milagres da globalização, ofertando ao consumidor um produto como por ele desejado (assim também fizeram com a uva). A casca é grossa e escamosa. Por conter muita frutose, não se recomenda a quem faça regime. Para amadurecer em casa, basta deixá-la em local protegido da luz. Quem tiver pressa, pode embrulhar em jornal. Não tem erro. Na hora de comprar, evite as que já estiverem pretas, rachadas, muito moles ou com sinais de mofo. Prefira as mais firmes, de coloração verde-clara. Maduras, trocam essa coloração para verde-acinzentada. Pinha pode, e mesmo deve, ser consumida ao natural. Nesse caso, ficará ainda mais saborosa se estiver ligeiramente gelada. Basta lavar bem, parti-la com as mãos, e comer com garfo. Para separar a polpa das se-
mentes, melhor passar na peneira ou no liquidificador – ligando e desligando várias vezes, sem deixar triturar as sementes. Dessa polpa se faz também suco, sorvete, creme, mousse, gelatina, souflé, doce, geléia, compota. E purê, acompanhamento para carne assada ou filé de peixe grelhado. É também usada em batidas, licores e remédios. O líquido que sai do caroço esmagado, por exemplo, é usado para eliminar piolho. Segundo crença popular, não fica piolho nenhum na cabeça de quem passar por baixo de um pé de pinha. Até hoje, no Sertão, é conhecido como eficiente estimulante sexual. Predecessor, portanto, do Viagra. Só não se sabe é se nosso Conde de Miranda conhecia essa característica da fruta. Os registros da época não confirmam a tese. Mas o zelo com que cultivavam a planta, ele e a Condessa, autoriza a versão. Si non è vero, è bene trovato. •
Leo Caldas/Titular
RECEITA:
MOUSSE DE PINHA INGREDIENTES: 5 pinhas maduras, 5 claras batidas em neve, 5 colheres de sopa de açúcar, 1 caixa de creme de leite, 5 folhas de gelatina incolor. PREPARO: Retire os caroços das pinhas. Passe no liquidificador com o creme de leite. Reserve. Bata as claras em neve bem firme. Junte açúcar, gelatina dissolvida e o creme de pinha com creme de leite. Misture delicadamente. Leve à geladeira. Na hora de servir, cubra a mousse com um doce feito da polpa de 2 pinhas.
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LICOR DE PINHA INGREDIENTES: 4 pinhas bem maduras, 1 litro de água, 1 kg de açúcar, 1 garrafa de álcool de 40º , suco de 1 limão. PREPARO: Retire os caroços das pinhas. Machuque a polpa, em vasilha de vidro. Junte água, açúcar, álcool e suco de limão. Passe três vezes em peneira fina. Filtre (em filtro de papel) e engarrafe. Sirva depois de 15 dias.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Eu, Samuel Wainer, o vidente e a banda
A
o pessoal do meu tempo (se é que ainda existe pessoal do meu tempo), o nome de Sana-Khan não deve ser desconhecido. Era enorme sua fama como quiromante, profeta, astrólogo e tudo o mais. Instalado numa suíte do Hotel Avenida, na Galeria Cruzeiro, lá ele recebia os grandões da época: ministros, banqueiros, gente de dinheiro e de prestígio; inclusive artistas famosos do teatro e do rádio, na década de 40 – e parece que também na de 50. Pequeno, franzino, pele acobreada, cabelos negros, o requestado quiromante falava, quase num sussurro, que ninguém nunca lhe arrancou um sorriso. Diziam até que Getúlio Vargas de vez em quando requisitava seus serviços, só que, ditador, todo-poderoso, não era Getúlio que ia a Sana-Khan. Quando convocado, SanaKhan é que ia ao Palácio do Catete. Certa vez, na redação do semanário Diretriz, do qual era um dos diretores, Samuel Wainer me disse que finalmente havia conseguido ser recebido pelo mago. – Quer ir comigo? Claro que eu queria. Depois de ler demoradamente na
mão esquerda de Samuel Wainer mensagens que somente ele poderia ler, Sana-Khan aproximou-se ainda mais de Samuel e lhe ciciou qualquer coisa no ouvido. Poucas palavras me chegaram daquele diálogo – na verdade, eu nunca soube o que Samuel perguntou ao mago e o que este lhe respondeu. Jamais saberia, já que da entrevista, tão solicitada, nada foi publicado em Diretriz. Depois, Sana-Khan colou quase os lábios no meu ouvido e sibilou: “O senhor vai viver muito. É quase certo que chegue aos 60 anos”. Já na rua, Samuel comentou: – Que charlatão! Comigo, não acertou uma! E com você? Hoje, é como vocês sabem: emplaquei os 60, depois emplaquei os 70 e estou tirando de letra os 80. Nunca me faltou material com que encher o tempo. Aliás, cada vez me convenço de que a única finalidade da minha vida, a verdadeira, é esta: ver a banda passar. Todo mundo está indo embora – e aqui continuo eu debruçado na janela e fazendo o que sempre fiz, o que realmente sei e gosto de fazer, que é ver a banda passar. E, afinal, o que o babaca teria dito a Samuel que o deixou tão macambúzio, tão sorumbático, acendendo um cigarro atrás do outro? •
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CINEMA
Fotos: Divulgação/Copacabana Filmes
A Luz de Carla Carla Camurati coleciona êxitos: comemora os 10 anos da retomada do cinema nacional com Carlota Joaquina; é tema de biografia e está prestes a lançar mais um longa, Quem tem medo de Irma Vap? Valéria del Cueto
C
hamar-se Luz Natural o livro sobre uma pessoa como Carla Camurati pode parecer estranho para alguém que analise seu currículo. Afinal, é entre holofotes, refletores, sun guns e flashes que ela circula com maior desenvoltura. As luzes mais comuns à atriz, roteirista e diretora são as dos estúdios, locações cinematográficas e bocas de cenas. É sob este tipo de iluminação que Carla brilha para o público externo em suas atuações na televisão, no teatro e no cinema, em suas criações para as telas e palcos. Mas Luz Natural é um título que faz justiça e sintetiza a história de Carla Camurati, contada pelo crítico Carlos Alberto Mattos, autor, entre outros, de Walter Lima Jr. – Viver Cinema( Casa da Palavra, 2002) e Eduardo Coutinho – O Homem que Caiu na Real (Festival de Santa Maria da Feira/ Portugal, 2003) . O livro, de 311 páginas, é lança-
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mento da Coleção Aplauso/ Perfil, concebida e editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Foram mais de 20 horas de conversas gravadas em oito encontros, entre novembro de 2003 e março de 2004. Deste material nasceu um livro-depoimento, ilustrado com fotos biográficas, onde Carla conta suas histórias, origens, infância e juventude, descobertas, lugares, pessoas comuns, personalidades, estrelato, ofício de atriz, opção pelo fazer cinema, o prazer em produzir e distribuir. Se Carla pensou que, ao se deixar desnudar biograficamente (fotograficamente isso já aconteceu duas vezes), estaria fornecendo elementos que acabassem com os mitos que envolvem sua trajetória, enganou-se. Ao expor suas verdades e defender suas escolhas, desvenda as pontes construídas entre as diversas atividades em que se envolveu neste percurso, mas acaba tornando-se refém de uma
CINEMA
nova imagem: a que se deixa iluminar por esta verdadeira Luz Natural. É impossível não admirar a forma clara e direta como ela se relaciona com seus medos e fantasmas (mesmo que, confessadamente, a custa de muita análise e terapia): encara seus desafios e derruba o que, para outras pessoas, poderiam ser barreiras intransponíveis. A cara bonita ajuda? Os olhos de anjo favorecem? Engano. Da própria beleza, apenas o desafio de fazer o belo. E, isto, se tiver um objetivo mais profundo, de preferência ligado às questões e indagações artísticas e sociais do seu tempo. Sua infância e adolescência na Zona Sul, remete a lugares e situações comuns à juventude carioca dos anos 70 e já desperta um objeto de desejo: quem não gostaria de, quando criança, “apagar” de tanto comer doces feitos pelo avô Enrico, sentada numa bancada de mármore na cozinha do Copacabana Palace, fazendo o papel, junto com sua irmã Carina, de provadora oficial dos quitutes servidos no tradicional chá de domingo do famoso hotel, ícone da cidade do Rio de Janeiro? E foi como outros de sua geração que largou a Biologia pelo curso de teatro de Gilda Gilhon e Buza Ferraz, anunciado num cartazete colado na parede da lanchonete, em frente a qual jogou – literalmente – no lixo todos os cadernos e anotações das aulas da faculdade. Carla chegou ao estrelato. Começou no teatro, fez programas especiais para televisão, brilhou em novelas.
Mas continuou procurando. Foi parar em São Paulo onde descobriu o cinema e, nele, se sentiu em casa. Lá, fez seus dois curtas-metragens: A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal, 1987, e Bastidores, 1988. Em plena “desmontagem” do cinema brasileiro, começou a produzir Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil,1995. Passada uma década, o filme e a diretora são aclamados como responsáveis pela retomada do cinema nacional. A história da vinda da corte de Dom João VI para o Brasil, estrelada por Marco Nanini e Marieta Severo, atraiu às salas de exibição brasileiras um público superior a um milhão e trezentos mil espectadores. Ela divide os louros: “Não me vergo ao peso do título de heroína da retomada. Carlota fez um movimento de virada, resultado de uma química coletiva, em que eu apenas segurava a bandeira. Bárbara mesmo foi a distribuição do filme” acrescenta com um brilho no olhar. O tom dado a Carlota a levaria a dirigir óperas. É La Serva Padrona (1998) nas telas. Teoricamente, o filme teria um público restrito. Apostando na formação de um novo público, Carla o faz chegar às escolas. O Projeto Escola apresentava às crianças um mini-cenário de ópera e desvendava alguns dos segredos do “fazer” o espetáculo. O lucro da bilheteria do filme foi redirecionado para a compra de mais ingressos, distribuídos gratuitamente nas escolas públicas. No livro, estão descritas algumas características do seu jeito de fazer cinema: a preferência em filmar
Da própria beleza, apenas o desafio de fazer o belo. E, isto, se tiver um objetivo mais profundo, de preferência ligado às questões e indagações artísticas e sociais do seu tempo
O mesmo Nanini de Copacabana (foto) e Carlota Joaquina volta em Quem Tem Medo de Irma Vap, novo filme de Carla
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Em plena “desmontagem” do cinema brasileiro, começou a produzir Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil,1995. Passada uma década, o filme e a diretora são aclamados como responsáveis pela retomada do cinema nacional “quebrado” (no caso de Carlota Joaquina, foram seis semanas de filmagens, divididas em oito meses); uma prática complicada hoje em dia, já que, com tantas produções acontecendo no país, dificilmente seria possível manter uma equipe disponível por tão longo período. Outra peculiaridade é o tratamento dispensado a seus colaboradores: alimentados com vegetais vindos diretamente do seu sítio em Teresópolis, no Estado do Rio, e tratados à base de florais medicinais. Tantos cuidados atestam a conhecida doçura de Carla, contrabalançada com uma vontade férrea e muita persistência. Agora é a vez de Quem tem medo de Irma Vap?, projeto que está finalizando. O espetáculo já havia sido tema de seu segundo curta, Bastidores. Novamente, Marco Nanini é peça importante do quebra cabeças filmográfico de Carla. Foi Dom João VI em Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, o fotógrafo Alberto, em Copacabana (2001), e volta em Irma Vap ao lado de Ney Latorraca, seu parceiro no sucesso estrondoso da Continente agosto 2005
peça de Charles Dullam, O Mistério de Irma Vap, que gerou o filme. O mesmo Nanini (e Fernanda Badauê) protagoniza um dos planos-seqüência preferidos da diretora, no filme Copacabana: a cena do grande baile, onde dança iluminado pelos lustres do salão. Não por acaso, o salão do Hotel Copacabana Palace da sua infância. Em entrevista exclusiva à Continente, Carla fala dos novos projetos e sobre a arte de fazer cinema no Brasil. “Ninguém destrói uma atividade a não ser os que a exercem”. Qual a sua análise do cinema nacional, que está comemorando os 10 anos de retomada com Carlota Joaquina? A grande transformação feita por Carlota Joaquina, na realidade, foi na distribuição. Estamos muito bem no quesito produção de filmes. A produção brasileira é muito interessante, rica e diversificada. Você tem filmes completamente comerciais, documentários que não vão atingir
CINEMA um público enorme, mas que são muito especiais. A Pessoa é Para o Que Nasce (Roberto Berliner), por exemplo. Quisemos distribuir. É claro que quando entro neste filme, eu não estou querendo ganhar milhões. O mais importante é distribuir um filme como esse. Porque, com certeza, as pessoas que forem ver vão ter o que pensar. Seu trabalho tem uma característica: é cada vez menos factual e mais estrutural... Eu sempre trabalhei com o olhar nas pessoas. Quando eu faço comédias ou coisas assim é por que eu acredito que é muito importante cultivar a alegria. Não como bobo, mas como opção. Sempre que você opta por estar mais alegre, apesar de tudo o que você está passando, melhora o que está acontecendo. É a única coisa que eu posso garantir para todo mundo. Embora pareça uma cretinice, uma coisa “Pollyana”, burrinha...(risos), não é. É efetiva. A liberdade maior que a gente tem, de alcance maior, está sempre dentro da gente.
a Deus, esqueço. Porque tenho este lema “não reclama, não perpetua, vamos em frente que atrás vem gente, porque, senão, piora” Acaba que esqueço a intensidade do sofrimento. Também acho que o pior da desgraça não é você ter um problema. É disseminar a desgraça, reclamar, dizer que está mal, que coisa horrorosa que está te acontecendo....Se cada um guardasse suas coisas horrorosas para si, deixava o mundo menos cheio de coisas horrorosas.
Você vai acabar virando Forest Gump: primeiro a retomada, com Carlota, agora Luz Natural. Nunca pensei nisso, nem sei pensar nisso direito. Adorei fazer o livro. Sempre me recusei a falar da minha vida no jornal, em revista, como é minha casa, como foram as minhas relações... Quando recebi este convite da Imprensa Oficial de São Paulo, fiquei muito honrada de ser selecionada. Achei que não deveria fazer uma biografia sem falar da minha vida. Que era o momento para falar. Prefiro falar da minha vida no espaço de um livro que custa R$ 9,00, do que numa revista semanal que custa R$ Trabalhar muito também é um bom remédio... 15,00 e que vira lixo na semana seguinte. Na realidade, o Não agüento gente que fala que trabalha muito do meu livro mostra o que é você. Pude falar de verdade, colocar lado. Eu gosto muito de trabalhar. Eu sou muito feliz. O meu os meus sentimentos, as histórias que eu vivi. Para mim foi trabalho ao longo dos anos só me devolve alegrias. Não que muito saboroso. Mas eu não vou virar santa do pau oco ele só me dê alegrias. Tem momentos muito duros que, graças (risos). Sou uma pessoa vibrante, emotiva. Nem tudo o
Cena de La Serva Padrona, filme em tom de ópera
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CINEMA
Cena do grande baile de Copacabana, um dos planos-seqüência preferidos da diretora
Tenho o 3º Festival Internacional de Cinema Infantil. No ano passado botamos 52 mil crianças no festival, no período de nove semanas. É um projeto que eu prezo muito
que fiz foi tão exemplar assim...Entre mortos e feridos, eu consigo me salvar de mim mesma. Como vão seus novos projetos? Estou terminando Irma Vap que agora entra na parte de finalização. Uma parte bem delicada que ainda demora uns quatro ou cinco meses. Tenho o 3º Festival Internacional de Cinema Infantil. No ano passado botamos 52 mil crianças no festival, no período de nove semanas. É um projeto que eu prezo muito. Eu quis desenhar um festival que pudesse ser nacional.
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Este projeto tende a se ampliar? São Paulo nos procurou para fazer A Tela na Sala de Aula, e Minas também. Não sei se este ano ou só no ano que vem. Este ano, queremos botar, antes de cada filme, um curta feito por crianças. O cinema ser usado como instrumento na educação é uma coisa muito boa. A perspectiva do mundo é ser cada vez mais audiovisual. No cinema a criança absorve mais a informação. Ela tem televisão em casa, um veículo que não é seletivo e não concentra a atenção. No cinema, há a experiência de estar numa sala enorme, com aquela tela, o espaço escuro. Durante duas horas você não é interrompido. Ele “afina” a percepção. •
Dafne Sampaio/Gafieiras.com.br
MÚSICA
A Luta de Lirinha No momento em que José Celso Martinez decide encenar todas as partes de Os Sertões (A Terra, O Homem e A Luta), o músico Lirinha conta sobre o desafio de ser diretor musical de “A Luta”
O
Dafne Sampaio
jovem José Paes de Lira Filho assumiu há pouco um dos maiores desafios de sua vida. Pernambucano de Arcoverde e músico, José é mais conhecido como Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado. Em pouco mais de sete anos, a banda lançou dois discos, Cordel do Fogo Encantado (2001) e O Palhaço do Circo sem Futuro (2003), fez inúmeros shows pelo Brasil e exterior, participou de trilhas sonoras e se consolidou como uma das bandas mais originais da segunda onda do manguebeat. Mas nada disso havia preparado Lirinha para o convite que o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa fez à queima-roupa: ser diretor musical das duas últimas partes da saga Os Sertões, épico criado pelo Teatro Oficina que esquadrinhou o livro homônimo de Euclides da Cunha em cinco partes. Tudo começou como no livro. Primeiro, “A Terra”, e na seqüência, “O Homem”, dividido em duas partes. O ano de 2005 marca o fim da saga com “A Luta”, dividida também em duas partes. Continente agosto 2005
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MÚSICA Fotos: Divulgação/Teatro Oficina
Cena de “A Luta”, última Os parte da encenação d’O Sertões, realizada por José Celso Martinez
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Mas como surgiu o convite? “Já havia lido o livro, visto as outras partes d’ Os Sertões e, no segundo disco do Cordel, eu e Clayton Barros fizemos uma música chamada “A Matadeira”, sobre o canhão alemão usado pelos militares em Canudos, mas só fui conhecer o Zé Celso ano passado, quando ele me chamou para compor algumas músicas para o “O Homem – parte 2”, explica Lirinha em entrevista por telefone para no mesmo fôlego completar que “as coisas ficaram assim até Lírio Ferreira me chamar para atuar no novo filme dele, Árido Movie, como o assessor de um profeta. As filmagens aconteceram na minha cidade natal, Arcoverde. Quando cheguei lá, descobri que o profeta ia ser interpretado pelo Zé. Depois das filmagens voltamos para São Paulo juntos, conversando o tempo todo. Faltando 20 dias para estréia da parte 1 de “A Luta”, veio o convite”. Detalhe: foi Lírio Ferreira, co-diretor do premiado Baile Perfumado, que descreveu a música do Cordel do Fogo Encantado como “um som vulgar e silvestre”, definição que cabe também ao teatro de José Celso Martinez Corrêa. Mas o convite não foi de todo uma surpresa. Os shows do Cordel do Fogo Encantado sempre foram marcados por uma forte teatralidade na iluminação, no cenário, na construção do repertório e na interpretação de Lirinha que sempre recita poemas de artistas populares nordestinos entre as músicas do grupo. Ao vê-lo, no palco, é impossível não lembrar de profetas, apocalipse e fé louca. O mesmo se dá quando nos deparamos com um intenso José Celso na pele de Antônio Conselheiro. São coincidências por todos os lados, semelhanças em todos as veredas. O encontro Lirinha, Os Sertões e José Celso realmente tinha que acontecer, mas o que o deixa mais forte é o fato de ter acontecido no final de “A Luta”. “Fui seduzido pela leitura que o Zé faz do livro. Critica uma certa visão regionalista que teima em afirmar que o Sertão é arcaico. Já tinha pensado em algumas coisas que estão na peça, mas nunca havia concretizado isso numa obra”, diz. De volta às semelhanças. Outro fator que uniu dois artistas de gerações tão diferentes foi o crescente desejo por uma arte plural que envolva o público. Há muitos anos o Teatro Oficina colocou seu teatro numa intensa orgia com vídeo, música, circo, artes plásticas e arquitetura. O jovem Lirinha sabe que estamos em um mundo onde as mídias estão cada vez mais interligadas e dependentes umas das outras. Um show não é apenas música. Um filme não é apenas imagem. O teatro não está mais no palco italiano. José Celso que o diga.
MÚSICA
Pela primeira vez, “A Terra” e “O Homem” (foto ao lado) serão encenados juntos com a “A Luta”
A peça Os Sertões é mais que uma luta pessoal do Zé Celso, é uma metáfora da própria luta do teatro brasileiro
Junto com o impacto do convite veio o susto com o tamanho da empreitada. “Venho de um grupo com cinco pessoas e agora tenho que lidar com uma multidão, ao todo devem ser umas 60 pessoas, e organizar quase uma centena de músicas, mas não me sinto confortável com o termo direção musical porque a saga já tem uma direção e é do Zé Celso. Eu me limitei a valorizar o que o Oficina já tinha construído e trazer a opinião de quem assiste”, afirma. Quem assiste a uma peça no Oficina sabe que é necessário uma entrega de tempo, sentidos e emoções, pois todas as últimas montagens do grupo duram entre 5 e 8 horas. Lirinha mergulhou em ensaios que chegavam a durar 12 horas, sete dias por semana, mas a experiência foi reveladora de certas particularidades do teatro orgiástico de José Celso e do modo como ele trata atores e não-atores, cantores e não-cantores: “Concordo quando ele diz que todo ser humano é uma potência artística, afinal de contas, ser ator, ou ser qualquer outra coisa, é desejar ser”. Entre os mortos e feridos de Canudos, uma das muitas guerras brasileiras que nunca terminou, surge
um Lirinha satisfeito. “Foi muito positiva a experiência e desenvolveu ainda mais em mim uma paixão pelo tema que se trabalha, um sentimento sobre o que se está construindo e a certeza de que estou participando de um capítulo importante da história teatral nacional. A peça Os Sertões é mais que uma luta pessoal do Zé Celso, é uma metáfora da própria luta do teatro brasileiro”, conclui. Pode-se acrescentar ao raciocínio de Lirinha que esta luta não é apenas do teatro, pois todo artista brasileiro tem um pouco do desespero e da fé cega dos favelados de Canudos. A luta de Euclides da Cunha, Lirinha, José Celso e de tantos outros não tem hora para terminar, mas é certo que eles sobreviverão ao massacre de Canudos fortes o bastante para continuar perseguindo uma arte brasileira popular, antropofágica, mestiça, plural, carnavalesca e, acima de tudo, viva. • Os Sertões (todas as partes). Teatro Oficina (Rua Jaceguai, 520, Bela Vista, São Paulo-SP), de 11 a 21 de agosto. Continente agosto 2005
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AGENDA
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Música sacra Mostra Internacional de Música de Olinda volta em edição revista e ampliada
Altar-mor da Igreja do Mosteiro de São Bento Ao lado, o pianista Abdel El Bacha.
Mimo. Igrejas de Olinda (Cidade Alta, Olinda-PE). De 7 a 11 de setembro. Programação completa e senhas: www.mimo.art.br
Já imaginou se deparar com o maestro Isaac Karabitchevsky pelas ruas de Olinda? Certamente, quem decidir freqüentar as ruas e igrejas da cidade durante os dias 7 e 11 de setembro, corre o risco de vê-lo. E também o cravista Roberto de Regina, o "escultor do vento" Carlos Malta, entre outros. É que a segunda edição da Mimo – Mostra Internacional de Música de Olinda chega ampliada, fazendo a cidade respirar música erudita durante cinco dias. A exemplo do que aconteceu no ano passado, quando mais de seis mil pessoas disputaram um espaço nas igrejas ou nos telões postos frente a elas para assistir Nelson Freire ou o Blas Rivera Trio, a Mimo vai abrigar grandes nomes da música erudita nacional e internacional nas igrejas de Olinda, unindo o patrimônio arquitetônico da cidade ao patrimônio musical da humanidade. “Estamos devolvendo às igrejas a música que historicamente lhe é peculiar”, explica a produtora carioca Lu Araújo, idealizadora do projeto. O concerto de abertura, dia Independência do Brasil, será inteiramente dedicado aos compositores nacionais. Músicos da Orquestra Sinfônica do Recife e da Paraíba interpretarão obras de Guerra-Peixe, Radamés Gnatalli e peças inéditas de Pixinguinha. Nos dias seguintes, o pianista franco-libanês Abdel El Bacha, que toca no Brasil pela primeira vez, se une à OSR para tocar o concerto “Imperador nº 5”, de Beethoven. Já Egberto Gismonti traz dois movimentos da sua peça Sertões Veredas. Além de estender a programação, que prevê 40 apresentações, entre concertos, óperas e recitais, inclui novas igrejas (agora são 20) e uma programação diurna, com exibição de filmes, saraus, workshops, oficinas, palestras e masterclasses também nas igrejas, ateliês, escolas municipais da cidade e Centro Musical de Olinda. E mais uma boa notícia: as senhas para aquisição dos ingressos serão distribuídas com uma maior antecedência, também pela internet. O Mimo é uma realização da Lumearte Projetos Culturais, com o apoio da Prefeitura de Olinda, Funarte e Infraero.
Capital da ópera Durante 37 dias, Belém do Pará se transformará na capital do canto dramático, com a realização do 4º Festival de Ópera do Theatro da Paz. O evento tem início no dia 9 de agosto, com uma montagem inédita da ópera Madame Butterfly, de Puccini, e segue até 16 de setembro, quando faz uma homenagem aos 60 anos da morte do compositor Pietro Mascagni. A programação inclui uma montagem inédita da ópera Bug Jargal (baseada na obra de Victor Hugo) e a comemoração dos 400 anos de Dom Quixote, de Cervantes. O restaurado Theatro da Paz, fundado em 1878, também receberá recitais, concertos, exposições, palestras e lançamentos de livros. Continente agosto 2005
Eiko Sam interpreta Cio-Cio Sam em Madame Butterfly
4º Festival de Ópera do Theatro da Paz. Theatro da Paz (Praça da República, s/n° - Centro Belém-Pará. Fone: (91) 40098757 /4009-8758). De 9 de agosto a 16 de setembro. Informações: www.spimagem.com.br
Brasil em som e cor
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Samba de bambas
A belíssima coletânea Piano Brasileiro inaugura o selo Biscoito Clássico, da Biscoito Fino. A coleção reúne 10 discos, com interpretações do pianista Miguel Proença, de grandes nomes da música brasileira de concerto, como Villa-Lobos (em CD duplo), Alberto Nepomuceno (CD duplo), Lorenzo Fernandes (CD duplo), Ernesto Nazareth, Edino Krieger, Fructuoso Viana, Guerra-Peixe, Marlos Nobre, Radamés Gnatalli, José Araújo Viana, Natho Henn, Paulo Luiz Viana Guedes e Louis Gottschalk (única exceção estrangeira). Cada CD traz consigo o resgate de um trabalho de 20 anos do pianista que, com seus dedos ágeis e suaves, revela o Brasil em cirandas, choros, valsas, tangos, peças líricas, prelúdios, fugas, suítes, operetas, sonatas, estudos, rojões, sambas, martelos, choros, improvisos e serestas, ritmos que compõem o país continental e parecem projetar suas imagens. E, se parece, por que não projetá-las? A caixa é ricamente ilustrada por pinturas de Glauco Rodrigues. Piano Brasileiro, Miguel Proença. Biscoito Fino, preço médio R$ 162,00.
Com um repertório de primeiríssima linha, o quinteto carioca Arranco de Varsóvia lança seu terceiro CD (depois de sete anos longe da indústria fonográfica), Na Cadência do Samba, estreando também nova formação: Andréa Dutra, Cacala Carvalho e Elisa Queirós se juntam, com grande sintonia, a Paulo Malaguti e Muri Costa. Entre os sambas, pérolas como “Força da Imaginação” (Dona Ivone Lara/Caetano Veloso), “Eu Vou Botar Teu Nome Na Macumba” (Zeca Pagodinho/ Dudu Nobre), “Não Quero Mais” (Arlindo Cruz/ Sombrinha/ Marquinho PQD) e “Cabelo Pixaim” (Jorge Aragão/Jotabê), além de duas inéditas de Dorival Caymmi: “Falou Com a Moça?” e “E o Que Me Importa Se Eu Tiro o Domingo Pra Sambar?”, e a deliciosa “Badêjo ou Badéjo” de Ronaldo Barcellos e Charlles André. O grupo apresenta um disco harmonioso na sua proposta de arranjos vocais que vão do lirismo à picardia, e cheio de alegria e suingue. Certamente um dos grandes lançamentos de 2005. Na Cadência do Samba. Dubas, preço médio R$ 25,00.
Grande encontro
Piano e voz
Cantos ancestrais
Rolandro Boldrin e Renato Teixeira, dois dos maiores ícones da boa música caipira, reuniram-se para gravar um disco (homônimo) que, além de reuni-los, junta a nata do gênero: composições dos dois e de Geraldo Vandré e Hilton Acyoli (“Ventania”), Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto (“Funeral de um Lavrador”), João Pacífico (“Três Nascentes”), Patativa do Assaré (“Vaca Estrela Boi Fubá”) e até a quadrilha “Acorda Maria Bonita” de Volta Seca, companheiro de Lampião; e participações de Almir Sater, Dominguinhos e Heraldo do Monte. Como João do Vale e Raymundo Evangelista dizem na faixa “Minha História”: “Bate palma e pede bis”.
Piano e Voz reúne, pela primeira vez, a voz preciosa de Ná Ozzetti (ex-Rumo) e o talento do compositor e multiinstrumentista André Mehmari em um conjunto de canções que esquadrinha a música brasileira (exceção com Lennon e McCartney) quase em tom de meditação. O repertório inclui composições do próprio Mehmari e vai até os ex-Beatles com “Because”, visitando Pixinguinha (“Rosa”), Caetano Veloso (com “Queda d'Água” e uma bela e suave interpretação de “O ciúme”), Luiz Tatit e Dante Ozzetti (“Nosso Amor”), Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves (“Pérolas aos Poucos”), Nelson Cavaquinho (“Luz Negra”) e Tom Jobim (“Gabriela”).
São poucos os povos indígenas no Brasil que conseguem atrair as atenções da indústria fonográfica. Donos de uma musicalidade reveladora do sentido das suas vidas, os cantos estão fortemente presentes no seu dia-a-dia. Não são músicas fáceis. As do povo Caiapó, registradas em álbum duplo homônimo, por exemplo, não fosse o CD Fusion – que une a complexa sonoridade a contribuições de Egberto Gismonti e Gilberto Gil, entre outros (“Ethnic” apresenta cânticos puros) –, causaria um estranhamento aos desavisados. Vencedor do Prêmio TIM de Melhor Projeto Visual, Caiapó é um incrível registro da memória e da cultura indígena.
Rolando Boldrin e Renato Teixeira, Kuarup, preço médio R$ 20,00.
Piano e Voz, André Mehmari e Ná Ozzetti. MCD, preço médio R$ 24,00.
Caiapó, Metutire, Dialeto Latin American Documentary (Distribuição Azul Music), preço médio R$ 55,00.
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AGENDA
MÚSICA
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ESPECIAL
Por que utopias? O fim das utopias se casa com a tese do “fim da História”. Se a História tivesse que se limitar ao marco da economia capitalista de mercado e do sistema político liberal, seríamos condenados a viver em sociedades de opressão política, de exploração econômica, de discriminação e de alienação Emir Sader
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Ilustrações: Nelson Provazi
ESPECIAL
É
e a utopia é o não-lugar, por que utopia? Por que precisarmos de um não-lugar? Em janeiro deste ano, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, deu-se – entre tantos outros – um debate entre José Saramago e Eduardo Galeano, justamente sobre este tema. O escritor português abriu o debate dando o que ele chamou de uma má notícia: as utopias tinham morrido. Ele não queria utopias, queria realidades. Queria que se pudesse mudar o mundo ainda no seu período de vida. Criticava a utopia, porque ela apareceria como o contraponto da realidade, o seu oposto, quando não o seu substituto. Sonharíamos com a utopia, por não podermos transformar a realidade conforme nossos sonhos. A utopia seria um escape, para não enfrentarmos o mundo na sua dura realidade, mas que é o ponto de partida incontornável para construir um mundo melhor. Não há dúvida de que os mecanismos religiosos do sofrimento no vale de lágrimas e da compensação na salvação eterna tiveram sempre um papel de consolo, desviando as energias transformadoras. As utopias, conforme são encaradas, podem ter esse papel. Desenhar sociedades perfeitas em um futuro longínquo, desviando o olhar da realidade imediata, pode ser negativo. Principalmente se esses modelos não contêm a forma pela qual é possível construir pontes entre as sociedades realmente existentes e os objetivos que se buscam. Se quisermos somente pão, de fato talvez a utopia não seja necessária. Mas se não quisermos apenas comida, então precisamos de pão e de fantasia, de comida e de beleza, de alimento e de utopia. Continente agosto 2005
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ESPECIAL Hector Guerrero/AFP
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José Saramago: “As utopias morreram. Queremos realidades”
A utopia assumiu, nos dois últimos séculos, a forma do socialismo, de uma sociedade pós-capitalista. Este século representa o mundo do dinheiro, da riqueza, do consumo e, também, o das armas, do poderio da força. Qualquer utopia, desde então, assumiu a forma da negação do capitalismo e de seus valores. Foi assim com os chamados comunismos ou socialismos utópicos, com o anarquismo, com o socialismo – na origem das suas correntes políticas – e com o comunismo. A esquerda se definia como anticapitalista. A trajetória histórica concreta fez com que o capitalismo se consolidasse no centro do capitalismo e as possibilidades de ruptura com esse sistema se dessem na sua periferia: primeiro na Rússia, meio européia, meio asiática, meio capitalista, meio feudal. Daí em diante, ao invés de se propagar na direção da Europa avançada economicamente, só conseguiu se difundir na direção da Ásia, com a revolução chinesa. A incorporação ao “campo socialista” dos países do leste europeu não mudou substantivamente essa dinâmica, inclusive porque esses países haviam sido em grande parte destruídos pela Segunda Continente agosto 2005
Guerra e não significavam uma contribuição decisiva para aliviar o atraso herdado pela revolução russa. A utopia emancipadora terminou se restringindo – dado o atraso relativo de que partia – para a conquista de direitos elementares básicos, que o capitalismo não havia propiciado, nem à Rússia, nem à China. Em comparação com a Turquia, no primeiro caso, e com a Índia, no segundo, a Rússia e a China representaram verdadeiros “milagres” de avanço material. Porém o próprio modelo social e político, dando-se em um terreno de atraso material relativo e de cerco militar e econômico do Ocidente, ressentiu-se disso e não se revelou como um modelo democrático e emancipador. A utopia foi ganhando um caráter econômico – a capacidade de promover o desenvolvimento de países atrasados – e social – a capacidade de afirmar direitos sociais da grande maioria da população –, mas despojada dos seus outros elementos originais – democracia política, emancipação ideológica. E, posteriormente, nem sequer o desenvolvimento econômico foi garantido, levando à
Leonardo Aversa / Agência O Globo
ESPECIAL
O paradoxal é que nunca como na atualidade a humanidade dispõe de tantos recursos técnicos e científicos, para poder mudar o mundo conforme seus desejos e seus sonhos. E nunca como atualmente as pessoas sentem os destinos do mundo e de si mesmas tão fora do seu alcance, tão alheios e nunca houve tanta impotência das pessoas diante de tudo o que as rodeia
Eduardo Galeano: “As utopias são iluminadoras”
crise dos modelos econômicos de economias centralizadas, mas sem planejamento democrático. A tese do “fim da história” se casa com a do “fim das utopias”. Se a história tivesse que se limitar ao marco da economia capitalista de mercado e do sistema político liberal, as utopias não teriam lugar, seríamos condenados a viver em sociedades de opressão política, de exploração econômica, de discriminação e de alienação. O paradoxal é que nunca como na atualidade a humanidade dispõe de tantos recursos, técnicos e científicos, para poder mudar o mundo conforme seus desejos e seus sonhos. E nunca como atualmente as pessoas sentem os destinos do mundo e de si mesmas tão fora do seu alcance, tão alheios e nunca houve tanta impotência das pessoas diante de tudo o que os rodeia. Para nos perguntarmos sobre os destinos da utopia, temos que responder a que se deve isso. Se de fato os destinos do mundo e dos homens no mundo são determinados por leis inexoráveis, independentes da sua vontade e do seu controle, então as utopias morreram definitiva-
mente, ficarão relegadas a livros de ficção científica, a filmes fantásticos e a sonhos delirantes de alguns. Essa impressão nos aparece como realidade, não porque seja inevitável, mas porque se fundamenta em um tipo determinado de sociedade. Uma sociedade construída pelos homens e que, se for entendida historicamente, pode ser desconstruída e reconstruída, livrando-nos do risco da sua perpetuação. Compreender esse mecanismo é condição da possibilidade de realização das utopias, do “outro mundo possível” que prega o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Na luta por um “outro mundo possível”, no debate de janeiro de 2005, Eduardo Galeano reivindicou a atualidade e a perenidade das utopias. Diz que as utopias estão no horizonte, quanto mais achamos que nos aproximamos delas, então mais se distanciam. Então – pergunta-se ele –, para que servem as ideologias? E responde: servem para indicar-nos a direção correta em que devemos andar. São iluminadoras dos projetos possíveis no presente, que nos permitem aproximar-nos dos ideais. • Continente agosto 2005
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Oswald Eckstein/Corbis
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O estrago da utopia Utopias não são viáveis, pelo simples fato de que representam ideais abstratos, portanto inatingíveis por uma sociedade que se constitui da matéria falível e flexível chamada ser humano Daniel Piza
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o maior dos lugares-comuns dizer que o homem não vive sem esperança, sonho, fé. Dos comerciais de tênis aos livros de Paulo Coelho, das reportagens de esportes às palestras em empresas, dos finais de filmes e novelas às conversas em praças e bares, somos expostos continuamente a esses “chamados”, ora com palavras da moda (“auto-estima”, “motivação”), ora com slogans lucrativos (just do it, “guerreiro da luz”), ora com provérbios antigos (“a última que morre etc.”). Há tantas “mensagens de esperança” que a ansiedade por elas só faz aumentar. Pode-se parafrasear La Rochefoucauld: se não se falasse tanto em esperança, as pessoas não esperariam tanto. Por isso mesmo, quanto mais bichos-papões, melhor, pois a mídia vive desse pêndulo perpétuo entre assustar o público com tragédias, crimes e guerras e consolá-lo em seguida com a idéia de que “a fé não costuma falhar”. Daí o sucesso de filmes-catástrofes e épicos históricos, que voltaram a dominar o cinemão depois do 11 de setembro; eles dão ao espectador uma sensação de proximidade com o apocalipse e, em seguida, como desfecho, uma garantia de paz, amor e reequilíbrio. O otimismo dá as cartas em nosso mundo e, mesmo que este tenha Continente agosto 2005
ESPECIAL
Fernando Henrique Cardoso – escorregadela sociológica ao defender “uma utopia viável”
seria encanto, e que dá corda para um desencanto que parece dar o tom maior; em suma, a eterna espera por uma redenção, e não apenas pelo instante seguinte de alegria e bem-estar. A questão, portanto, não é aceitar a realidade, conformar-se com as mazelas e fatalidades, abaixar a cabeça para os revertérios da vida; mas é ser mais forte, é reagir com mais rapidez, é ter um lembrete mental de que aquilo pode ser um engano. Freud, no final da carreira, chegou a falar em uma “ansiedade realista”, em um estado de espírito que reconhece a carência essencial da condição humana e, no entanto, resiste aos apelos por uma solução plena, por uma panacéia, por um emplastro de todos os emplastros. Como bem ilustram os brasileiros, fatalismo (“isto aqui não tem jeito mesmo”) e ilusão (“o país do futuro”) são irmãos siameses, inseparáveis. No caso de um conceito como utopia, a complicação é maior. O próprio livro de Thomas Morus, de 1516, é um projeto... utópico: seu anseio era descrever um mundo ideal em que prazeres e virtudes se somassem, em que os valores do paganismo grego se harmonizassem com os do cristianismo medieval, em que epicurismo e estoicismo se conciliassem de modo definitivo, para que assim se renovasse a sociedade européia em todos os aspectos – moral, econômico, político, religioso. Trata-se da obra de um humanista, influenciado pelo grande Erasmo (autor do Elogio da Loucura), e que ao mesmo tempo é um político e crente que sonha preservar a Igreja. More, embora defendesse eleições democráticas e tolerâncias religiosas, queria abolir, por exemplo, a propriedade privada, numa espécie de pré-comunismo (o que confirma o quanto há de impulso religioso na ideologia comunista). Bem, hoje sabemos que não foi assim que uma boa parte Orlando Brito / Tyba
melhorado em muitos aspectos, a ênfase é sempre nas razões para exacerbar aquele. É óbvio que um indivíduo e um grupo de indivíduos precisam desse sentimento de que é possível atenuar sofrimentos e obter avanços materiais e espirituais. Precisam de ânimo, auto-respeito, autoconfiança, disposição em seguir adiante. Mais ainda, precisam fazer uso desse diferencial que constitui a natureza humana: a capacidade de imaginação, não no sentido de fantasia, mas no sentido de criatividade, de elaboração de hipóteses, cenários, reformulações. Nossa biologia é dotada da capacidade de perceber padrões na realidade exterior, estimar previsões a partir deles e tentar influir ou reagir de alguma forma. Tal atributo mental se traduz na linguagem, na consciência, na habilidade de dar nomes, identificar processos, inventar instrumentos de observação, construção e adaptação. E isso seria impossível sem um impulso vital, que se origina da necessidade de sobrevivência, mas que se desdobra em uma variedade inigualável de modos de convívio, expressão e prazer. O mais amargo dos filósofos se agarra à vida; em geral, é amargo porque queria que ela fosse melhor e, logo, importa-se profundamente com ela. “O positivo já nos está dado”, escreveu Franz Kafka, o escritor que melhor enxergou que o desejo de esperança é como a cobra que morde o próprio rabo, um ciclo de auto-alimentação que nos convence de que a fome é sempre maior que a satisfação. “O que nos falta é consumar o negativo.” O que nos falta é poder ter maior resistência às frustrações, é de alguma maneira conseguir atenuar o jogo de polarizações, o teatro de compensações: o desespero que gera a esperança que gera o desespero; o encanto que, por definição, sempre se quebra, senão não
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ESPECIAL Hoje já não faz o menor sentido um sujeito se sentar diante de um papel e começar a alinhar os itens que comporiam seu mundo ideal, até mesmo porque a sociedade contemporânea tem níveis de complexidade e liberdade antes inimagináveis
Roosewelt Pinheiro/Abr
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das sociedades modernas resolveu seus principais problemas... A própria utopia desenhada por Marx e Engels não é nada hoje, até mesmo porque suas profecias sobre a decadência inevitável do capitalismo não se realizaram. Pressões operárias por melhor repartição do capital podem existir sem a fantasia socialista. Pode-se dizer que utopia, etimologicamente, significa não-lugar, ou seja, que os utopistas realizam apenas exercícios de imaginação, sendo secundário se possuem ou não aplicação prática. Mas por trás de todo utopista há a vaidade pessoal de quem julga saber como resolver os problemas do mundo num esquema só. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, numa escorregadela sociológica, disse certa vez que “precisamos de uma utopia viável”, o que é uma contradição em termos. Utopias não são viáveis, pelo simples fato de que representam ideais abstratos, portanto inatingíveis por uma sociedade que se constitui da matéria falível e flexível chamada ser humano. Hoje já não faz o menor sentido um sujeito se sentar diante de um papel e começar a alinhar os itens que comporiam seu mundo ideal, até mesmo porque a sociedade contemporânea tem níveis de complexidade e liberdade antes inimagináveis. Não que nosso mundo não tenha muitos problemas e conflitos para resolver, que a imaginação de uma sociedade melhor não tenha seu papel permanente. Mas um desses problemas é justamente o de ajudar as pessoas a viver sem o vício da utopia, sem a submissão a um ideal salvacionista; ajudá-las a tolerar e lidar com as incertezas da vida moderna, as quais estão corroendo sua segurança psicológica. Os defensores históricos do PT, por exemplo, sempre disseram que o partido poderia ter todos os problemas menos um: seu idealismo, sua vontade de mudar, de “romper com o que aí está”. Mas o idealismo não passava de outros de seus problemas. Primeiro, porque em muitos casos era nada mais que uma fachada, já que seu comportamento no poder foi em quase todas as ocasiões Continente agosto 2005
A utopia petista: “sabonetes da esperança embalados pela retórica”
extremamente semelhante ao dos outros partidos, pautado por falhas de ética e de competência, rendido à mesma visão do Estado como mãe das minorias e madrasta da maioria. Segundo, porque os resquícios de uma ideologia morta, o socialismo, se traduziram em projetos que não ultrapassaram a fronteira do demagógico, como o Orçamento Participativo (lembra?), o Fome Zero e tantos mais, sabonetes da “esperança” devidamente embalados pela retórica – ora, veja só – cristã de Lula, Frei Betto ou Patrus Ananias. Daí a decepção, o choque, o desolamento que vemos hoje no Brasil, inversamente proporcional ao otimismo bobo, infundado, tupiniquim, visto no início de 2003. O brasileiro é antes de tudo um crédulo. Como em toda cultura subdesenvolvida, exagera a inclinação da natureza humana a aderir às promessas de felicidade coletiva e eterna, a querer sempre mais do que precisa. Há que se distinguir idealismo e inconformismo. O inconformismo é o gesto de cidadãos críticos e criativos que querem uma sociedade mais justa e educada. O idealismo é a suposição de que precisamos de um sistema capaz de solucionar tudo de uma vez. Quanto mais bela a utopia no papel, mais estrago causa. •
Marcus Accioly
A cidade-dde-nnuvem
ESPECIAL cidade-de-nuvem sobre as Ilhas Ó (miragem de uma Atlântida suspensa ou jardins babilônicos?)
vigiam teus umbrais
mil anjos
(que se refletem em côncavos espelhos) trinta sóis te circulam de luz (em vez de muros) cem luas (às piscinas dos teus pátios) nas águas se congelam ou evaporam (Néfele)
mãe-de-nuvem dos centauros (Íxion dormiu na tua gaze os sêmenes ou rodou todo o Inferno em sua roda?) Odisseus te cruzou (como se o apport) para ouvir das sereias os seus ecos que nas tuas cisternas se repetem sobre a face das águas que pararam suas ondas de pedras que eram mar? (o rei Alcínoo ao ver entrar Nausícaa trazendo pela mão um estrangeiro perturbou-se) “outro rei em meu palácio?” (indagou de si mesmo e deu a ordem) “quero o menino-guia e o cego-aedo” (trouxeram) dez salões foram tomados pelas palmas do rei (e dos seus súditos) pois a Musa guiava o cego e o guia (Demódoco cantou até que as lágrimas copiosas correram contra as faces do estrangeiro) “não é seu nome Homero?” (Odisseus perguntou porém o aedo deteve a lira e disse ao guia) “vamos”
(e saíram os três)
houve um silêncio que perturbou de novo o rei Alcínoo pois o mar trouxe à filha um estrangeiro (ó país)
quando as chuvas transbordaram teus cântaros abertos para os céus (quando a raiz da terra na folhagem da água sucumbiu a tua árvore) quando giraste aos vórtices dos ventos (“a força que por verde caule impulsa a flor”) tu imergiste ou emergiste entre as nuvens do mar e o céu de espumas? (és a fata-morgana?)
do avião eu te vi da janela de viagem e saltei sob a flor do pára-quedas nos teus montes macios (nos teus campos de lírios entreabertos) e umas garças voaram muito brancas quando viram meu vulto pendurado ao guarda-chuva (como se Abasalão) pelos cabelos (ou Altazor) “poeta sem cavalo que come alpistre” de Vicente Huidobro (caí em pé e em pé gritei) “Nausícaa!” (não havia Nausícaa e o a em as se prolongou com a força de uma vaia) “Alcínoo!” (nem tampouco havia Alcínoo e o o em os e em ohs alçaram vôos ao silêncio) “não é seu nome Ulisses?” (era a voz de Demódoco e eu disse à Musa) “vamos” (sim) nós dois saímos
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ESPECIAL Reprodução
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Tristes tempos pós-utópicos O descrédito das utopias sociais não impede sua permanente ressurgência – e até sua forma de insurgência contra as limitações do real Lourival Holanda
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desmedida é má avaliadora: o porre que segue à bebedeira não ajuda ninguém a avaliar bem a qualidade ou quantidade de bebida consumida. Nosso tempo parece sair de um período de porres ideológicos recentes e começa enfim a fazer o processo das próprias utopias. Mas o que poderia ser um salutar exercício de dessacralização vem, quase sempre, pela via radical da iconoclastia, ou mesmo da renegação radical. Lembra aquela veemência da promessa que segue todo excesso de bebedeira: nunca mais caio nessa... O século 20 já começou com o descrédito da Razão: os países tidos como baluartes da cultura se entregavam a um movimento irracional – a 1ª Guerra. No entanto, pouco depois, o século conhece a grande esperança de 1917. Era mais uma vez o sonho de uma sociedade de igualdade econômica e jurídica para os cidadãos. Diferia da Utopia de Thomas Morus (1516) ou dos utópicos dos começos do 18º (Saint Simon, Fourier, Owen, Proudhon) porque o credo político que viria suceder àqueles acredita na superstição da cientificidade das coisas sociais: isso daria garantia à luta de classe como meio de mudança e à inevitabilidade da revolução. Cedo as esperanças se petrificam em doutrinas – que adormecem o senso crítico. Os credos políticos e religiosos caducam e continuam, mesmo assim, a percutir em eco de ventríloquo. Cristianismo, positivismo e marxismo continuavam um projeto de promessa de salvação. Não esperamos Lyotard para perceber o cansaço das ideologias, dos grandes relatos. Mas o que restava, Continente agosto 2005
ESPECIAL
depois da crise das ideologias? O mesmismo resultante de um marasmo mental imposto por uma sociedade que parece substituir, de modo perverso, o sonho de tudo pôr em comum (comunismo), por um consumismo – que reduz tudo e todos, ao comum. O desencanto parecia apontar o apagar das Luzes, o descrédito da Razão, por trazer em seu bojo um otimismo excessivo que não resistiu ao real. Então, teríamos chegado aos horários de encerramento dos Jardins do Éden, como se pergunta Cyril Conolly – onde cada um será julgado pela ressonância de sua própria solidão e pela qualidade de seu desespero? O fim da História, fim da Filosofia e outros agouros anunciados mais por cansaço que por rigor: o descrédito das utopias sociais não impede sua permanente ressurgência – e até sua forma de insurgência contra as limitações do real. No mundo contemporâneo, a utopia se repropõe: com Adorno (A Dialética Negativa) ou alguns escritos de Habermas, fazendo eco ao Bloch (O Espírito da Utopia, 1918; e mais perto de nós, em 1956, O Princípio Esperança). Já Rousseau chamava a atenção, no Émile, para o risco de reduzir tudo ao factível, e depois, pior ainda: o real reduzido a ser só o que se faz. Ora, há a dimensão do possível, bastando manter sempre em guarda o espírito crítico, para fazer o sonho compor com o possível. É neste sentido que Kant encontra um fundamento conceitual à utopia: a razão vem da experiência, é certo; mas aquilo que nos transcende pode orientar e guiar o mundo dos fenômenos. Daí um sentido “progressivo”: podemos imaginar um mundo mais justo, podemos pretender à preponderância do direito sobre a força. Aqui, um possível acicata o real. A utopia leva, concretamente, à vontade de violentar o real e de transcendê-lo. A utopia é uma forma de resistir à autocomplacência, à auto-satisfação como compensação ao pior do presente. Dar forma a um sonho social ainda é um modo tônico de resistir ao caos, sempre mais próximo. A utopia pré-fabrica a História, superando-a. Como abdicar da esperan-
Thomas Morus, autor e criador da palavra utopia
ça? Sem esperança não surge o inesperado. O improvável não é o impossível. Antes, falei do pior no presente: o pior é uma consciência passiva, mecânica, que abdicou de fabricar significações. A utopia é um modo de desbloquear o imaginário social, de não deixá-lo petrificar pela estrutura imposta à realidade. Utopia e liberdade se conjugam para conjurar o determinismo social pela poética do possível. Há, é certo, umas Cassandras tristes cantando o fim das utopias apenas porque uma aposta desmedida – ou a falta de vigilância crítica – tornou certos sonhos inexeqüíveis. E então transformam os fracassos circunstanciais em utopias negativas, bloqueando a esperança num beco sem saída de qualquer projeto social possível. No entanto, o povo sente que um mau momento não pode ser definição de um mundo. O poeta Maciel Melo diz bem o que poderia ser o pior: “a dor pior dessa gente é nunca poder sonhar” – por isso importa crer, mesmo quando há cheiro de podre por toda Casa, como no Brasil deste momento. Mas é preciso a aposta de que um pouco, ainda que um pouco, a coisa pode melhorar. É uma forma de impedir o seqüestro do sonho social. Não há por que renegar o porre. Mas a rude realidade do dia seguinte nos devolve o cabresto da vida na medida de nosso punho. • Continente agosto 2005
Greg Smith/CORBIS
A utopia é um modo de desbloquear o imaginário social, de não deixá-lo petrificar pela estrutura imposta à realidade. Utopia e liberdade se conjugam para conjurar o determinismo social pela poética do possível
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O Sono da Razão Produz Monstros, Goya, gravura, 1797/1798
O sono da razão Para os utopistas, a sociedade existente passa a ser vista como inteiramente pervertida e injusta e a única solução é a destruição total do que existe e sua substituição por um modelo que já está pronto no intelecto Eduardo Cesar Maia
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ara Platão, a verdadeira realidade – ou a realidade superior – é a que se encontra no mundo das idéias. As aparências são apenas distorções enganosas para os sentidos. A República platônica é a imagem ideal de um Estado que, como uma Idéia, deve ser eterno e imutável. Esparta foi o modelo empírico – o filósofo ateniense admirava a rigidez militar, a alta hierarquização e a estrutura política daquela cidade de guerreiros. A utopia platônica não admite dissidência: uma das primeiras providências é a expulsão dos poetas, pois cantam Deuses imperfeitos, que não podem servir como exemplo a homens virtuosos. O nome utopia só surge muito tempo depois, com Thomas Morus, mas essa obstinação humana em construir um mundo exemplar mais perfeito do que o Real se configura sempre que o “racionalismo” se exacerba e tenta suplantar a complexidade do existente. O percurso na história do pensamento ocidental das formulações em torno de qual é o Estado Ideal e de como uma concepção teórica sempre é um modelo frágil frente à realidade foi feito por Karl Popper no seu A Sociedade Aberta e seus Inimigos. O problema dessas sociedades funcionalmente indefectíveis é que não consideram o fator humano, que é gerador de incertezas e divergências. Por isso, o utopista é levado a ampliar o poder estatal até que Estado e Sociedade quase se identifiquem. Platão, Hegel e Marx são, na opinião de Popper, os exemplos mais importantes do que ele denomina “engenharia social utopista”.
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ESPECIAL
O apelo moral junto ao povo das ideologias utopistas tem sido sempre sua fonte maior de vitalidade e atração. Em qualquer sociedade é possível encontrar uma grande variedade de defeitos, de injustiças e de desigualdades, justamente porque não se parte de uma construção ideológica
Karl Popper: modelos são frágeis frente à realidade
Não se trata, nesses casos, de ir ajustando aos poucos e com cuidado os problemas que vão sendo identificados nos sistemas políticos (numa “engenharia gradual”), mas de uma “remodelação” ou reconstrução completa, a partir do zero, através da elaboração teórica de uma mente “superior”. Apesar de ser fruto de uma concepção individual, a engenharia utópica nunca é de caráter privado, sempre de caráter público, pois deve abarcar de uma só vez todo o conjunto da sociedade. O poeta alemão Höelderlin escreveu: “O que sempre fez do Estado um verdadeiro inferno foram justamente as tentativas de torná-lo um paraíso”. Karl Popper, em consonância com essa idéia, explica que as origens do totalitarismo moderno estão ligadas a essa impossibilidade de submeter o Real a nossos estéreis desejos e aspirações. Basta lembrar que Hitler, Mussolini e Stálin lutaram por suas utopias – e, como as suas idéias políticas, econômicas e sociais não se adequavam ao mundo, eles tentaram adequar o mundo a elas. O problema maior e mais perigoso do utopismo não é que apresente falsas soluções aos problemas políticos ou científicos, senão que não aceita o problema (nem o Real) conforme se apresenta. A completa negação dos dados empíricos é outro elemento essencial na construção de ideais utópicos. Tome-se, por exemplo, a bonita idéia da coletivização das terras: a princípio, seria a maneira mais simples de realizar justiça social. O problema é que a experiência prática mostrou que a coletivização não traz abundância, mas escassez, e que é um equívoco econômico fatal à agricultura. Quer dizer, não se trata de uma verdade agrícola, mas de um dogma ideológico. O apelo moral junto ao povo dessas ideologias utopistas tem sido sempre sua fonte maior de vitalidade e
atração. Em qualquer sociedade é possível encontrar uma grande variedade de defeitos, de injustiças e de desigualdades, justamente porque não se parte de uma construção ideológica. Desse fato surgem os sentimentos, perfeitamente compreensíveis e justos, de insatisfação e de indignação; a sociedade existente passa a ser vista como inteiramente pervertida e injusta, e a única solução passa somente pela destruição total do que existe e pela substituição por um modelo que já está pronto no intelecto. Karl Popper reitera que não é possível imaginar uma sociedade humana em que não existissem conflitos, “só numa sociedade de formigas”. Achar que é possível suprimir totalmente esses conflitos significa presumir que as vontades individuais podem se somar num projeto coletivo homogêneo, resultando num sistema social perfeitamente programado para atender aos anseios de todos os seus participantes. Para Popper, a impossibilidade de um projeto como esse se dá, entre outras coisas, por uma questão de valores morais: “há muitos problemas morais insolúveis, porque pode existir conflito entre princípios morais”. Portanto, qualquer sistema de valores que impossibilite alternativas de arbítrio aos indivíduos não é ético, mas coercitivo – e só pode ser viável numa sociedade fechada e autoritária. Claro que podemos empregar o termo utopia de forma mais branda – a utopia como um sonho distante que serve de alvo longínquo para nos orientarmos nas decisões cotidianas. Assim, com uma visão reformista, aliada aos valores de justiça e liberdade, é possível uma redução desses conflitos com os quais estamos condenados a viver, se não quisermos abrir mão da prerrogativa de contarmos com a liberdade e a possibilidade de reformulação, de correção e de ampliação de nossas concepções éticas. • Continente agosto 2005
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Meu livro de cabeceira Sempre vi os livros como entidades vivas, pulsantes, cheias de peripécias
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ediram que eu falasse sobre o meu livro de cabeceira, na Festa Literária Internacional de Parati. Pensei nos muitos livros que li, naqueles que releio sempre, nos livros dos quais não posso me apartar, como As Folhas de Relva, do poeta Walt Whitman; O Mahabharata indiano, na versão do americano William Buck; o Tao Te King, de Lao Tse; o Elogio da Sombra, de Jorge Luis Borges. Mas o que é mesmo um livro de cabeceira? Aquele que lemos antes de dormir? Neste caso, eu não possuo nenhum, pois não gosto de livros no quarto, nem tenho o hábito de ler à noite. Sempre vi os livros como entidades vivas, pulsantes, cheias de peripécias. Temo que os personagens saiam das páginas, movimentem-se fora das frases em que foram urdidos, e perturbem o meu sono. Não os quero nem na porta do meu quarto. Já bastam as impressões que os seus autores deixam em mim, nem sempre agradáveis. Por isso não leio à noite, nem vejo filmes, e até evito o teatro. “A noite fez-se para dormir”, diz um personagem de Garcia Lorca. Qual seria este livro de cabeceira que sem freqüentar o meu quarto, sempre esteve ao meu lado? Que livro se confunde comigo a ponto de eu misturar os seus personagens com a minha existência? Sem dúvida, uma velha História Sagrada, que nada mais é do que uma seleta de textos da Bíblia hebraica, solenemente apresentada em dois subtítulos: Antigo Testamento e Novo Testamento. Não sei se a minha memória confundiu-se, ou se os dois volumes eram mesmo ilustrados por Gustave Doré, o ilustrador da Divina Comédia, do Dom Quixote, dos Contos de Perrault, das Aventuras do Barão de Munchausene das Fábulas de La Fontaine. Continente agosto 2005
ENTREMEZ
Minha mãe trouxera para o Sertão essas duas preciosidades, guardadas como jóias num caixotezinho em que também se espremiam os livros de história, geografia, português e aritmética, seu resumido espólio de professora primária. Naquele mundo ermo, os livros eram verdadeiras relíquias, a ponto de serem inventariados em testamentos, como as terras, os bois e as casas. De noite – nesse tempo eu lia à noite –, meu pai consertava arreios e celas, minha mãe tecia varandas para as redes, e eu, deitado no chão de tijoleira, folheava os dois livros sagrados, à luz de uma lamparina. Ainda não emendava as letras em palavras, mas seduzia-me pelas gravuras de traços finos, em que predominavam os tons do preto, acentuando o fantástico. Possuía vagas idéias do que significavam. Instruído pela minha avó, soube da existência de um Cristo, o mesmo homem barbudo e de olhar sereno que ocupava a parede principal da nossa sala, o coração coroado de espinhos. No livro, ele aparecia carregando uma cruz, açoitado, caído ao chão. Tamanha barbaridade contra o pobre inocente merecia castigo. Os algozes não podiam ficar impunes e eu estava ali para exercer a justiça, embora tardia. Orientado por meu pai, impaciente com o couro e a sovela, identificava os homens cruéis, vez por outra errando o culpado e castigando um inocente apóstolo. – E esse? – perguntava. – Esse é ruim, pode matar. Impiedoso, eu molhava o pequeno dedo no cuspe da boca e esfregava a figura do soldado até que não restasse sombra do facínora. E, assim, dizimei legiões inteiras, num precoce aprendizado de leitura. Antecipei em muito as pedagogias modernas, os métodos de aprendizado em que se valoriza o tato, o olfato e o paladar. A Bíblia tornou-se o meu livro de cabeceira, ou o mais visceral de todos os livros de que me aproximei. Alheio aos significados religiosos, aos cânones de judeus, católicos e protestantes, pude deliciar-me em sua vasta literatura, na poesia, na história, no mar de narrativas emendadas umas nas outras, como nas Mil e Uma Noites. Decifrando suas páginas, tive ciência da leitura e da escrita, que considero os mais elevados conhecimentos legados ao homem. Reconheci, nas paragens bíblicas, os mesmos desertos de sertões nordestinos. Nos pastores de bois, carneiros e cabras, os meus familiares. Nas leis de hospitalidade e nos códigos de honra, as semelhanças sertanejas. Até as histórias se repetiam. Um tio da primeira leva de povoadores, padre e vaqueiro, amancebou-se com uma índia jucá, e gerou 12 filhos. Imaginei-os homens, e suas casas como as 12 tribos de Israel. Se foi ou não assim, não tem a menor importância, pois os livros se escrevem misturando realidade e mentira. Preenchemos com literatura o “buraco da falta”, afirmaria um psicanalista lacaniano, querendo dizer com isto que as certezas são fragmentárias, talvez nem existam, e que a nossa história pessoal se refaz com muita fabulação. Ou de maneira bem mais simples, o poeta Pinto do Monteiro recitava: “Eu só comparo esta vida / à curva da letra ‘s’/ tem uma ponta que sobe / tem outra ponta que desce / e a volta que dá no meio / nem todo mundo conhece”. “A volta que dá no meio”, seria o “buraco da falta”? A Bíblia, um livro possível de se ler de todas as maneiras, é o lastro de histórias a que podemos recorrer sem credo religioso ou com fé religiosa. Inesgotável, possui as imagens dos sonhos, a épica, a tragédia, a poesia, a sabedoria, a invenção, a genealogia, a retórica e os números. Livro que contém todos os livros. Merece ser lido como eu o lia na infância, imaginando-o escrito pelo povo sertanejo, pessoas como o meu pai ateu e o meu tio procriador, que povoaram as terras cearenses de gado e de filhos, num novo Gênese. • Continente agosto 2005
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REGISTRO
Nos passos de Henry David Thoreau A histórica cidade de Concord, no nordeste dos EUA, preserva a memória do pensador que estimulou a desobediência civil e a defesa da natureza Marcelo Abreu
Caricatura de Henry Thoreau aos 37 anos, feita pelo amigo W. H. Furness
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a primeira metade do século 19, o vilarejo de Concord, na Nova Inglaterra, foi palco de uma pequena revolução. Dessa vez, a rebelião não era contra os ingleses, como no século anterior, quando os minute men colocavam-se de prontidão para lutar pela independência americana. O que estava em jogo agora eram alguns dos valores e práticas mais caros à sociedade norte-americana em formação: a escravidão, a industrialização e o crescente distanciamento entre o homem e a natureza. O personagem que reagiu contra tudo isso foi um excêntrico pensador radical, o fabricante de lápis Henry David Thoreau. Em 1845, Thoreau decidiu se isolar numa cabana nas margens do lago de Walden, no interior do Estado de Massachusetts, para viver apenas com o básico e observar a natureza. Entre um passeio e outro nas margens do lago, acabou escrevendo o livro Walden (no Brasil, Walden ou a Vida nos Bosques – Editora Aquariana). Foi publicado originalmente em 1854 e tornou-se um dos clássicos da literaContinente agosto 2005
tura americana. A obra de Thoreau viria a influenciar o pacifismo em várias partes do mundo, a contracultura dos anos 60 e o movimento ambientalista. Hoje, em tempos de guerra e governos conservadores, Thoreau é cada vez mais lembrado nos Estados Unidos pela capacidade de pensar diferente. Apesar de sua proposta de vida radical raramente ser seguida, ele elaborou uma vasta teoria da dissidência e do pensamento livre. Concord é ainda uma pacata cidadezinha, situada ao norte de Boston, que cultiva seu passado de “centro literário dos EUA”. Chegou a ser chamada de “Atenas do norte” durante algumas décadas do século 19. Por lá moraram escritores como Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e Nathaniel Hawthorne (1804-1864). Na sua geração, Thoreau teve como contemporâneos próximos Edgar Allan Poe, Herman Melville e Walt Whitman, grupo que o crítico Wyck Brooks qualificou como parte do “florescimento da Nova Inglaterra”. Mas é Henry Thoreau quem personifica melhor o espírito rebelde da época e o escritor que deixou mais marcas na região.
REGISTRO Marcelo Abreu
Acima, o autor em desenho de Samuel Woscester Rowse. Uma das casas onde o pensador norte-americano morou, no centro da cidade de Concord
Apesar de continuar sendo quase um vilarejo bucólico, Concord não conseguiu preservar a casa onde Thoreau nasceu em 1817, no número 215 da Virginia Road. A casa acabou sendo removida para o número 341 e é nesse endereço que agora ela está sendo restaurada pela Fundação Fazenda de Thoreau. Também já desapareceu o liceu municipal, onde apresentava suas idéias em conferências. Ficaram, no entanto, a casa onde o escritor viveu com a família entre 1835 e 1837, onde hoje funciona o hotel Colonial Inn, na Monument Square. Na rua principal, há a casa onde ele viveu seus últimos anos. Existe também na cidade a casa de Ralph Emerson, onde Thoreau morou durante alguns anos, hoje aberta à visitação. O lago – O marco mais importante da vida do escritor também ficou: é o próprio lago de Walden, localizado a cerca de 2,5 quilômetros do centro da cidade. A forma mais apropriada para se apreciar a paisagem que inspirou Thoreau é caminhar da estação ferroviária de Concord até o lago. O nome das ruas não deixa margem de dúvidas sobre o caminho: inicialmente, anda-se pela Thoreau Street e depois pela Walden Street. Evidentemente, o caminho agora é asfaltado. Mas o pequeno trânsito e as áreas ainda não ocupadas ao longo do
trajeto permitem que se sinta um pouco do idílio naturalista vivenciado pelo escritor há um século e meio. Walden é, desde 1902, uma área de preservação gerida pela Divisão de Florestas e Parques de Massachusetts. O lago é usado no verão por centenas de banhistas, de Concord e de cidades vizinhas, que nadam em suas águas ou tomam sol nas margens. Para evitar a erosão do terreno, há trilhas determinadas em torno do lago por onde as pessoas podem andar, numa área preservada que abrange 163 hectares. Nas proximidades da área conhecida hoje como Enseada de Thoreau, fica o local onde o escritor construiu a sua cabana no início de 1845. Ele se mudou para o local em julho daquele ano e ficou até setembro de 1847. Não foi, como muitos pensam, um período de isolamento total. Thoreau ia regularmente a Concord visitar a família e chegou a se meter em polêmicas políticas durante o período. A sua recusa em pagar alguns impostos lhe rendeu até uma noite na cadeia. Era nas margens de Walden onde ele achava tempo para refletir, observar a natureza e escrever. “Meus amigos perguntam o que vou fazer quando chegar lá. Não é suficiente estar ocupado observando o progresso das estações?”– perguntava Thoreau no diário que manteve durante duas décadas. Continente agosto 2005
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REGISTRO Marcelo Abreu
O filósofo, em foto de 1857, aos 39 anos
Visão atual do lago Walden
A obra de Thoreau viria a influenciar o pacifismo em várias partes do mundo, a contracultura dos anos 60 e o movimento ambientalista. Hoje, em tempos de guerra e governos conservadores, Thoreau é cada vez mais lembrado nos EUA pela capacidade de pensar diferente
Capa da primeira edição do livro Walden, lançado em 1854
Idéias atuais – Thoreau achava que seus contemporâneos levavam uma vida de “desespero silencioso”, imersos na luta diária para adquirir bens materiais que, uma vez conquistados, tornavam-se uma carga sobre seus donos. Defendia uma “vida simples de pensamentos elevados”. Interessava-se por filosofia indiana, Platão, poetas do século 17 e biologia das espécies. Não respeitava a autoridade, recusava-se a pagar impostos, gostava do mato, dos animais e da solidão. Foi um anarquista individualista, místico, intransigente e, às vezes, contraditório. Com 28 anos, Henry David Thoreau já era conhecido por sua personalidade extremamente diferente dos padrões da época. Havia se formado em Letras na vizinha Harvard. Na universidade havia feito amizade com Emerson, líder do grupo de intelectuais conhecidos como transcendentalistas, no meio dos quais encontrara respaldo intelectual para suas idéias. Foi precursor na defesa do respeito à natureza, do direito das minorias. Defendia o fim da escravidão e os direitos dos índios norte-americanos. Thoreau refletia em seus escritos sobre todas as armadilhas trazidas pela industrialização incipiente. Tinha posição firme contra a idéia de rotina trazida pelo trabalho industrial. Certa vez escreveu sobre seus vizinhos: Continente agosto 2005
“Se eu passar o dia cortando árvores, serei considerado por eles um trabalhador digno. Mas se passar o dia observando a natureza, serei considerado um preguiçoso”. Abominava o “rei preconceito”, o que hoje seria traduzido por “opinião pública”. Ele considerava o período em Walden como uma experiência consciente para viver com o mínimo possível. Na pequena cabana, onde viveu dois anos, tinha apenas uma cama, uma cadeira e uma escrivaninha. Levou papéis, lápis e alguns livros. Cozinhava a própria comida. Acordando com os pássaros e dormindo com o brilho da lua, em meio ao silencio do lago, escreveu muito. É dessa época o livro Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack, no qual sistematizou anotações de uma viagem que fizera seis anos antes. Observando a fauna e a flora nas margens de Walden, fez novas e muitas anotações em seus diários. Algumas das notas se tornariam a base para Walden e para livros posteriores. Thoreau alcançaria fama em 1849 com o ensaio A Desobediência Civil, no qual se insurgia contra o direito do governo de interferir na vida dos cidadãos – idéias cada vez mais atuais. Morreu de tuberculose aos 44 anos, em 1862.
REGISTRO Marcelo Abreu
Local original onde Thoreau ergueu sua cabana, ao lado do lago Walden. Acima, mapa atual da área de preservação em torno do lago
Influências – O seu legado é defendido com entusiasmo por alternativos de várias correntes. Ele é citado freqüentemente como influência sobre o pacifismo do Mahatma Gandhi, Liev Tolstói e Martin Luther King. A “Thoreau Society”, sediada em Concord, realiza anualmente um encontro para especialistas e fãs do escritor. Em 2005 o tema das discussões foi Thoreau: Natureza, Ciência e Leis Supremas. A única livraria existente na cidade tem nas prateleiras nada menos que 17 edições diferentes e recentes do clássico Walden, além dos outros livros escritos pelo autor e de biografias sobre sua vida. Nas margens do lago, o historiador Roland Wells Robbins descobriu em 1945 o local exato onde havia sido
erguida a cabana de Thoreau. O lugar foi marcado e desde então tem sido visitado pelos admiradores. Uma réplica da cabana original foi erguida nas margens da rodovia 126, que margeia o lado leste da lagoa. No Museu de Concord, objetos de Thoreau ocupam uma sala especial. Lá se encontram uma cama e uma escrivaninha usadas pelo escritor em Walden, e alguns lápis fabricados artesanalmente por ele. Curioso também é exibição da tranca da cela da cadeia onde Thoreau foi preso em 1847 por defender publicamente o não-pagamento de impostos. Hoje, a cadeia está demolida e a tranca é peça de museu. As idéias de Thoreau estão vivas e soltas, percorrendo o mundo. •
Lendo mais sobre Thoreau A melhor publicação com obras de Henry David Atualmente encontram-sse disponíveis os seguintes Thoreau, no Brasil, ocorreu em 1986, quando a editora títulos: Rocco publicou Desobedecendo – A Desobediência Civil & Walden ou A Vida nos Bosques – Editora Aquariana Outros Escritos, uma coletânea de textos traduzidos e (www.ground.com.br), 346 páginas, R$ 36,00 (2001). anotados por José Augusto Drummond, com prefácio de A Desobediência Civil – Editora Martin Claret Fernando Gabeira (o livro, que tem 210 páginas, está (coleção Obras-P Primas de Cada Autor), 133 páginas, atualmente esgotado). Nele se encontram os textos “A R$ 10,50 (2001). desobediência civil”, “A vida sem princípio”, “CamiA Desobediência Civil – L & PM Editores (coleção nhando”, “A escravidão em Massachusetts” e “Uma Pocket), 80 páginas, R$ 7,00 (1997). semana nos rios Concord e Merrimack”.
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s mágicos, homens da cobra, acrobatas e ventríloquos; os sons de pandeiros, zabumbas, cavaquinhos e sanfonas; os poetas cantadores, emboladores e da literatura de cordel já quase não aparecem mais por lá. Mas a magia do “vuco-vuco”, do burburinho, das cores e aromas, dos sons de feira, permanece (dentro e em torno) no primeiro e mais antigo mercado público do país, o Mercado de São José, microcosmo da vida e da cultura popular recifense. Erguido à época do Império de Dom Pedro II, no antigo Largo da Ribeira do Peixe, e inaugurado no dia 7 de setembro de 1875 para ser o centro de compras da cidade do Recife, o Mercado de São José é um exemplo típico da industrialização da arquitetura no século 19: projetado pelo arquiteto da Câmara Municipal do Recife, J. Louis Lieuthier, em 1871, que se inspirou nas linhas do Mercado de Grenelle, Paris, e construído pelo engenheiro Louis Léger Vauthier (o mesmo do Teatro de Santa Isabel), o mercado teve sua estrutura de ferro toda pré-moldada na França.
Primeiro edifício pré-fabricado de ferro do Brasil, ele já passou por reformas, como a de 1906, cujas obras duraram 10 meses, e a de 1941, quando foram colocados os combogós, em substituição às venezianas de madeira e vidro, e foi vítima de um incêndio, em novembro de 1989; só sendo reinaugurado em 1994, depois de ficar quatro anos em ruínas e um ano em reformas. Mas é o único do tipo ainda existente – na época de sua construção, foram erguidos outros dois no país; um na Guanabara (já demolido) e outro na Bahia, destruído por um incêndio – e que conserva as características art-noveau, como os bicos do telhado em forma de animais. A relevância do mercado não se esgota no fato de ser uma referência arquitetônica para a humanidade (tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em 1973). Atualmente, com seus 46 pavilhões, 561 boxes cobertos e 80 compartimentos na sua área externa, além de 24 outros destinados a peixes, 12 a crustáceos e 80 para carnes e frutas, o Mercado de São José é um centro de abastecimento para o bairro de
Mercado de São José: a feira da memória O primeiro e mais antigo mercado público do país comemora 130 anos e é tema do X Festival do Folclore do Museu do Homem do Nordeste
O Mercado conserva características da arquitetura art-n noveau
Eduardo Queiroga/Ag. Lumiar
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Arquivo pessoal de Liêdo Maranhão
Geyson Magno/Ag. Lumiar
Barbeiro e Homem da cobra, tipos populares que faziam parte do cenário do Mercado de São José
pode ter a impressão de que as formas tradicionais de identidade não foram afetadas pela modernização. Em torno do aniversário de 130 anos do mercado, a Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, através do Museu do Homem do Nordeste, adotou-o como tema do X Festival do Folclore, evento que se realiza em comemoração ao dia do folclore, 22 de agosto. Sob a curadoria do pesquisador Liêdo Maranhão de Souza, documentos, materiais iconográficos, fotografias e acervos vivos – tipos populares do mercado, como o lambe-lambe e o vendedor de ervas – estarão reunidos no museu da Fundaj entre os dias 23 e 26, compondo um panorama cultural O Mercado tem mais de 500 boxes destinados à venda do e antropológico do Mercado de São José. O patrimônio artesanato regional histórico de ex-locatários, de barraqueiros, juntamente São José e também um ponto comercial da Região Me- com o acervo sonoro da Fonoteca da Fundação e uma tropolitana do Recife (não só para turistas), onde se pode mostra de vídeos também integrarão a exposição, cujo encontrar o melhor do artesanato regional, brinquedos objetivo é valorizar e manter as tradições regionais. • populares, roupas, sapatos, artigos para costura, ervas medicinais, carne, peixe, comidas típicas (como buchada, panelada, cozido, mão-de-vaca, feijoada, sarapatel, doMercado de São José (Praça Dom Vital, s/n, São José. Telefone: 81. ces, caldo de cana etc.), folhetos de cordel, artigos para 3424.2322 / 8221). Funcionamento: de segunda a sábado, das 6h às cultos afro-brasileiros, entre outros, vendidos a preços 18h, e domingos e feriados, das 6h às 12h. justos e por comerciantes – patrimônios vivos – que Informações: www.mercadosaojose.com.br mantêm o mesmo método de vendas há anos: conhecem X Festival de Folclore do MUHNE. Fundaj (Av. 17 de agosto, 2187 – os fregueses pelo nome, reconhecem seus gostos e dis- Casa Forte, Recife-PE). De 23 a 26 de agosto. Informações: (81) 34415500 ou muhne@fundaj.gov.br ponibilizam produtos frescos. Um visitante mais atento Continente agosto 2005
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Malas infernais Parece que foi assim...
C
hega a madrugada e o sereno vai caindo em Brasília. Exausto, há 24 horas sem dormir, o presidente, aspirando uma noite de paz, apaga o último abajur do Palácio da Alvorada e recolhe-se ao silêncio dos seus aposentos. Toca o telefone da cabeceira, sobressaltando o chefe da nação (que já cochilava) – era o segurança de prontidão bastante assustado. – Senhor presidente? Desculpe, mas é que encontrei aqui no portão uma mala. – O quê?... Quem deixou esta desgraça nas minhas barbas e soleiras?... – Não sei, senhor. Só sei que é muito pesada e tem a estrela do seu partido no fecho. – A essa hora?... Mande buscar o detector de bombas... Já!... – O que houve Lula?... Você está gritando!... E me assustou!... – É da guarita e não sei de nada direito!... Vá dormir, você está cansada... – E você muito agitado... Já tomou seu lexotan?... – Quatro, de três miligramas – e não consigo relaxar... Alô, segurança?... – Aqui não tem o detector... Só se o senhor mandar buscar no aeroporto... – Não!... Ai, meu Deus do céu, Marisa... Uma mala!... Alô!... Chame meu ajudante-de-ordem... Logo!... Rapidinho, no meu quarto!... É grave!... –Pronto, senhor! Apresenta-se o major ainda abotoando a camisa engalanada. –Ligue pro Chefe do Estado Maior!... Urgente, urgentíssimamente!... Vá, vá!... –O general está na vigília da praça dos Três Poderes, aderindo ao movimento das mulheres dos soldados por melhores salários para a tropa... Compreende, não?... –Localize-o pelo celular!... Ordena o presidente, de pijama listrado, logo vestindo por cima um vistoso chambre de seda presenteado pelo colega Chirac, lá em Paris. –Só diz que o telefone chamado encontra-se fora da área de cobertura ou temporariamente desligado ou programado para não receber ligações... –Então, chame o Zé Alencar pelo direto!... Ele é empresário e está sempre esperto... Alô? Zé?... Estou na iminência de receber uma mala perigosa!... Sinistra, perturbadora, e pior: com o escudo do PT carimbado nas trancas, ouviu?... –Presidente? Com respeito... O senhor bebeu aquela branquinha lá de Caetés?... –O quê, Zé?... Até agora só bebi desgostos e agonias com essas malas, mensalões, caixas dois, Marinhos, Valérios, Delúbios, Sílvios, Valdomiros e Cachoeiras... O diabo!... Faça alguma coisa! Seu Estado Maior se juntou àquelas bate-caçarolas de uma figa... Convoque todas Continente agosto 2005
as Armas... Afinal, a Pasta não é sua?...Ora cebola! –Presidente? Deixe-me fora disso... Eu entendo mesmo é de gado e de juros baixos para minhas aplicações na Bolsa... E ademais, se resolverem pedir seu boné no Congresso, vai sobrar sua cadeira preta pra mim... E eu tenho de estar limpinho nessa jogada, não acha?... Você entende, não é mesmo?... A ligação caiu. –Minha Nossa Senhora Aparecida!... Até meu vice tá torcendo contra mim!... Achem o ministro Thomaz Bastos imediatamente... Ai, minha bursite!... O tumulto ganha força no quarto e a primeira-dama, de roupa trocada, entra com uma chávena de chá de camomila com folhas de maracujá e uma aspirina. –Lulinha, meu amor, estás com dor no ombro?... Vou chamar o Humberto Costa!... –Não, Marisa, querida, ele é psiquiatra e ainda mais do SUS... E o Bastos, major? –Ele tá na Federal, presidente, contando o dinheiro das malas da Universal... –Busquem o engomadinho do André Singer e liguem pro Palocci... Preciso que ele examine essa maldita mala e veja se ela contém dólar ou real dos caras lisas do Reino de Deus ou se são contratos de empréstimos avalizados pelo Genoíno, Delúbio e aquele carequinha mentiroso e desgraçado lá das Minas do Aécio... De repente, irrompe na suíte presidencial, calmo e alheio àquela pinóia toda, o mordomo do Palácio, empinado e enfatiotado e, solenemente, dirigindo-se ao patrão maior da República: –Senhor presidente, gostaria de informar-lhe que o seu filho mandou avisá-lo e à madame que ele brigou com a mulher e mudou-se para cá e que foi dormir no quarto de hóspedes... A mala dele eu já peguei na guarita e guardei no seu quarto...E também lhe dizer que o seu porta-voz acaba de chegar, senhor... –Isso é hora?... Caia em campo ligeiro, seu Singer, para que nem o Jabor nem o Jefferson saibam deste episódio, ou estou perdido... São 6 da manhã e, agora, todos pra fora do meu quarto, que estou irritado e precisando dormir!... Vamos, xô!... Todos se retiram e o presidente se joga na cama quase desmaiado de tensão e ao mesmo tempo de alívio, quando o telefone toca de novo, alto e aterradoramente. Alô! Quem é?... –Sou eu, companheiro, o Zé Dirceu!... –Era o que me estava faltando... Meu Pai do Céu!... Alô? É você mesmo Zé?... –Sou eu mesmo, presidente Responde prazeroso. –Pois então, pegue também essas merdas dessas malas do PT com os mensalões dos seus colegas deputados picaretas e... Vão todos pra puta que pariu!... •
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