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EDITORIAL
Montagem/Imagens: Reprodução
Os intelectuais de olho na TV
Glória Menezes e Tarcísio Meira na TV Globo, 1970
A
teledramaturgia brasileira tornou-se o principal produto televisivo brasileiro, mobilizando milhões de telespectadores, com suas tramas folhetinescas, suas incursões em temas da realidade, a interatividade com o público (que faz com que enredos e personagens sejam mudados para atender às suas expectativas). A linguagem própria criada ao longo do tempo, por autores, produtores, diretores e atores, faz da telenovela aqui produzida um gênero tipicamente brasileiro, sem similar no mundo (bem diferente dos melodramas televisivos mexicanos ou da soap opera americana, por exemplo). Historicamente olhada com desconfiança pelos intelectuais, a ficção audiovisual brasileira se afirma como fenômeno social e começa a ser levada a sério como manifestação artística, sujeita aos limites impostos pela sua estrutura narrativa, pelos interesses comerciais das emissoras e pela demanda crescentemente acrítica da população iletrada ou subeducada. Entretanto, parece ter-se atenuado hoje a célebre divisão dos intelectuais vis-à-vis à televisão entre apocalípticos e integrados (Umberto Eco). Na realidade, são cada vez mais freqüentes os estudos e teses sobre a telenovela brasileira em nossas universidades, a ponto de a mais reputada delas, a USP, contar, desde 1992, com um Núcleo de Pesquisas de Telenovela (NPTN) que reúne docentes, pesquisadores, alunos de graduação e de pós-graduação de vários departamentos. Essa discussão sobre a telenovela como manifestação cultural é o tema da matéria de capa desta edição, que traz ainda como destaque o fenômeno pós-moderno da estética trash, palavra que em inglês significa lixo, mas que passou a designar obras de arte tão ruins que terminam sendo apreciadas, pelo que proporcionam de humor e non sense. Parente próximo do brega e do kitsch, o trash surgiu no cinema dos filmes B, contaminou o vídeo e a cultura televisiva dos jovens do final do século 20 e ganhou sua força definitiva no universo da internet, tendo se espalhado por outras áreas, como a música e a literatura. •
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CONTEÚDO
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12 Telenovela: a conquista de um novo status
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A arte alegre de Edineusa Bezerril
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CONVERSA
04 Alberto Oliva e as relações entre ciência e filosofia
CAPA
ARTES 54 A arte colorida e mágica de Edineusa Bezerril 60 Agenda Artes
12 TV: integrados superam apocalípticos
ARTE SEQÜENCIAL
17 Academia abre espaço para a telenovela 20 Ficção audiovisual, gênero brasileiro 22 No início, era o teleteatro
61 As mulheres sensuais de Crepax, Manara e Serpieri
CÊNICAS 24 A entrega total, em cena, de Denise Stoklos 28 Num desabafo, a crítica à crítica 30 Agenda Teatro
LITERATURA
34 A poesia vasta e inspirada de Cecília Meireles 36 O ritmo desafiador na poética de Yeats 38 Um poeta de impossíveis dizeres 40 Variações sobre o Dinossauro 42 Poemas de Maria Lúcia Chiappetta 44 Agenda Livros
CINEMA 48 Greta Garbo: os mistérios de um mito inesquecível
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ANTROPOLOGIA 65 Pescadores como um setor do campesinato
ESPECIAL 74 O avanço do trash no mundo pós-moderno 78 O trash no cinema e na televisão 82 Brasil kitsch, Brasil brega, Brasil trash 84 A preferência pelo canto do horrível
MÚSICA 88 O embate entre o sentir e o pensar em Debussy
CULTURA 94 As culturas se alimentam de conflitos, na visão de Vargas Llosa
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CONTEÚDO
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Sensualidade à italiana em quadrinhos
74 A invasão do trash
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 Sem apoio governamental a Continente não sobreviveria
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 32 O livro seduz pelos sentidos, principalmente pelo olfato
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 58 Weissmann, um dos radicais transformadores da matéria
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 68 A simbologia dos banquetes ao longo dos séculos
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 71 Um ministro feliz e plantador de desgraças
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 Édipo Rei e a realidade que nos cerca
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Ameaça à esperança do povo brasileiro Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente setembro 2005
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Para o fil贸sofo, ainda estamos longe de uma Grande S铆ntese do Saber
Marco Antônio Rezende
CONVERSA
ALBERTO OLIVA
“A filosofia avança ao interagir com a ciência”
P
ara o filósofo da UFRJ, o valor Alberto Oliva diz que os momentos mais fecundos de uma teoria científica mora na da história da filosofia são aqueles em que os pensua capacidade de influenciar os modos como o homem pensa o sadores, levando em conta as conquistas alcançamundo em que vive. Por outro lado, a filo- das em outros domínios do saber, elaboram uma sofia é mais fecunda quanto mais souber espécie de reflexão-síntese aproveitar os avanços do conhecimento paFábio Lucas ra refletir sobre o lugar do homem no mundo. A dificuldade do “saber enciclopédico” dos antigos fiPor que o chamado “conhecimento enciclopédico” lósofos, bem como a ambição – bem filosófica – de uma parece-nnos agora inviável? “teoria de tudo”, e os impactos de teorias científicas como Hoje está cada vez mais difícil, de fato, construir a da Relatividade são alguns dos temas percorridos por formas enciclopédicas de saber. Talvez não faltem gênios Alberto Oliva nesta entrevista. da estatura intelectual, por exemplo, de um Leibniz. É que a dispersão do conhecimento e a hiperespecialização A filosofia pode se alimentar dos avanços científicos? são a tônica. Talvez nunca tenha sido tão fácil juntar – no Os momentos mais fecundos da história da filosofia sentido de empilhar – os conhecimentos e informações são aqueles em que os pensadores, levando em conta as existentes nas diversas áreas da pesquisa. O desafio é conquistas alcançadas em outros domínios do saber, promover a integração entre elas, é identificar o impacto elaboram uma espécie de reflexão-síntese. As correntes que os resultados obtidos em cada uma delas pode ter filosóficas magistrais são as que destacam a questão re- sobre as teorias das demais. lativa às condições de possibilidade do conhecimento. A agenda de problemas de Platão, à qual a filosofia até O senhor se refere a uma sobreposição do conhecihoje está presa, se forma em íntimo contato com a ma- mento que permita o avanço na direção de uma “teoria temática. A epistemologia platônica se constitui em de tudo”? torno do ideal de um conhecimento demonstrativaEstamos longe de uma Grande Síntese do Saber. Talmente certo só encontrável nas ciências formais. De vez jamais venha a ser alcançada. Só que a reflexão filoAristóteles à Filosofia Analítica – passando, entre ou- sófica de alto coturno não tem o direito de negligenciar tros, por Descartes, Hume e Kant – a filosofia faz gran- as implicações epistemológicas e éticas dos avanços des avanços quando entabula formas intensivas de in- feitos em vários domínios da pesquisa científica. Por teração com a ciência. mais que se proclame que os futuros avanços da ciência Continente setembro 2005
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Alberto Oliva acha que talvez não faltem gênios da estatura intelectual de um Leibniz; o problema é a dispersão do conhecimento e a hiperespecialização não promoverão novas e dramáticas reviravoltas nos modos de o homem se ver e ver o mundo, grandes e extraordinárias descobertas estão por ser feitas em áreas cruciais como a da genética humana. E todas terão enorme impacto sobre os modos viver, e a filosofia será convocada a participar dos debates sobre os tipos de atitude – normativa e valorativa – que cabe assumir diante do admirável mundo novo.
de Einstein é a de que “a coisa mais incompreensível acerca do mundo é que ele é compreensível”. Por que a compreensão da capacidade cognitiva humana não pode ser científica? Wittgenstein estava coberto de razão quando afirmou no Tractatus que ainda que a ciência resolvesse todas as suas questões, os problemas da vida permaneceriam intocados. A ciência tem tido um papel importante no avanço gradual da razão sobre o território da superstição. Só que as questões que mais afligem o ser humano – como viver, que fim buscar etc. – não são suscetíveis de tratamento cientifico. Os reduzidos quebra-cabeças com os quais lida a ciência não têm uma clara área de interseção com os dramas (inter)pessoais e os conflitos coletivos. O equacionamento dos puzzles científicos não ensina ninguém a viver nem a enfrentar com sabedoria a dor e a finitude da existência.
Um século depois de sua descoberta, pode-sse dizer que a Relatividade não mudou o mundo, mas alterou a nossa compreensão dele? A Teoria da Relatividade foi extremamente importante para o avanço do conhecimento físico. Há quem considere Einstein o maior físico de todos os tempos. Mas as Teorias Geral e Restrita da Relatividade não exerceram sobre o Lebenswelt (o mundo da Vida) grande influência. Não produziram mudanças intelectuais que leA ciência esbarra nos limites da razão e em obstáculos vassem a uma radical alteração da visão de mundo antes prevalecente. Seu impacto global foi bem menor que o do como a adoração religiosa. abandono do geocentrismo e o da entronização do helioPor isso o influxo da ciência sobre a existência humana centrismo. As teorias de Copérnico, Kepler e Galileu ti- é, no que tange à força explicativa de suas construções veram implicações filosóficas em geral, e antropológicas teóricas, pequeno. Esta a razão pela qual na era da ciência em particular, muito maiores. o poder da religião sobre as consciências não tem declinado substantivamente. Há inclusive um nítido fortaleO que significa uma “visão de mundo” relativística? cimento do religioso, do místico e do esotérico. Afinal de Ficou patente que até o que há de melhor em ciência contas, a humanidade viveu a maior parte de sua história pode vir a fracassar, que não há como evitar a falibilidade vendo a si e ao mundo com as lentes da religião. A raciodo conhecimento humano. Kant dissera que a física de nalidade cientifica foi introduzida há muito pouco Newton era o alfa e o ômega do conhecimento da natu- tempo e é parcamente utilizada no cotidiano das pesreza porque supunha que era uma teoria definitiva. De- soas e das sociedades. pois da teoria de Einstein já não cabe mais conferir eterToda grande teoria científica expande o universo à nidade a nenhum produto intelectual. Mas não porque a Teoria da Relatividade tenha implicações cognitivas rela- custa da diminuição da importância do homem? tivistas e, sim, porque fez desmoronar aquele que seria o O fato de o universo ficar cada vez maior, e o homem castelo do conhecimento mais perfeito jamais construído e sua morada parecerem um grão de areia na praia do insobre o mundo físico. Uma das mais sábias observações finito, não acarreta necessariamente o rebaixamento da Continente setembro 2005
CONVERSA
Pessoas famosas por feitos numa área do conhecimento passam a ser ouvidas pelo que dizem sobre temas fora de sua especialidade. Um exemplo é Chomsky pensamento logicamente uniforme”, é difícil de ser praticada e mais ainda de ser entendida pelo leigo. Para a maioria, o apelo dos sentidos é sempre mais forte que a ourivesaria dos frios conceitos matematicamente formulados. Aliás, há uma passagem de The Evolution of Physics, escrito com Infeld, muito elucidativa sobre a natureza da investigação científica: “os conceitos físicos são livres criações do intelecto humano. Não são, como se poderia pensar, determinados exclusivamente pelo mundo exterior. No esforço de entendermos a realidade muito nos parecemos com o indivíduo que tenta compreender o mecanismo de um relógio fechado (...). Se for engenhoso, poderá formar uma imagem do mecanismo que poderia ser responsável por tudo quanto observa, mas jamais poderá estar totalNão basta a disseminação da informação para a mente certo de que tal imagem seja a única capaz de exaquisição do conhecimento? plicar suas observações. Jamais poderá confrontar sua Uma característica distintiva do mundo atual é que a imagem com o mecanismo real”. maioria das coisas é “conhecida”, mas não compreendida. Qual o valor filosófico que uma teoria científica pode A foto de Einstein é quase tão popular quanto a de um pop star. Mas a esmagadora maioria das pessoas cultas alcançar? O valor filosófico de uma teoria cientifica pode ser desconhece sua contribuição ao avanço do conhecimento. Muitos leram textos seus sobre faits divers; dispen- aferido por sua capacidade de influenciar os modos de saram atenção, quando muito, às suas opiniões sobre pensar e as visões de mundo e de homem. Uma filosoeducação, liberdade, política, governo e pacifismo. É ou- fia da mente pode, por exemplo, se beneficiar dos retro traço característico de nossa época: aquele que se tor- sultados alcançados em neurociência. Mesmo os imna famoso por feitos numa área do conhecimento (eso- perativos da análise conceitual não podem desprezar o térica) passa a ser mais lido e ouvido pelo que diz sobre que foi empiricamente comprovado. Por mais que a temas e assuntos que se colocam fora de sua especialida- ciência não chegue a resultados explicativos definitide. Exemplo notório é o do grande lingüista Chomsky. vos, a filosofia não deveria contrariar suas constatações ao formular suas reflexões. A filosofia pode Por que ocorre essa inversão entre o crédito e a funcionar como alter ego da ciência, apontando-lhe os credibilidade da informação? pressupostos nos quais se baseiam suas práticas. Se os É que hoje atrai mais atenção e audiência, quando es- cientistas fazem, por exemplo, inferências indutivas, tão em questão os problemas da vida, a opinião do famoso podem os filósofos indigitar o quanto a indução é que a do especialista. A ciência, por ser, como tão bem en- problemática e como se assenta em pressupostos mefatiza Einstein, “uma tentativa de transformar a diversi- tafísicos como o do curso uniforme da natureza. É asdade caótica de nossa experiência sensorial num sistema de sim que avança o conhecimento. • estatura cósmica do ser humano. É difícil determinar a “importância cósmica” desse grão de areia porque não sabemos se é uma extraordinária singularidade, única expressão da vida inteligente, ou se é apenas mais um e inferior aos demais. Cristo diz: in domus patris mei mansiones sunt multae. A verdade é que o modo de pensar cientifico, e seus rebentos teóricos, exercem influência muito circunscrita sobre os modos de pensar e agir que estão sob égide do senso comum. A ciência muda o cotidiano das pessoas mais pelas aplicações tecnológicas que enseja que pelas sofisticadas teorias que elabora. A vida cultural de uma sociedade é mais refém de certas ideologias; pouco é moldada pelas explicações científicas.
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
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Setembro | 2005 Ano 05
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival
Capa: Montagem sobre fotos Corbis, Roberta Mariz e divulgação
Colaboradores desta edição: BRENNO KENJI KANEYASU MARANHÃO é mestrando em Letras pela UFPE. CARLOS BARTOLOMEU é encenador, professor da UFPE e autor do livro Testemunho de Atores: Panorama do Teleteatro da TV Jornal do Commercio. DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Perfis & Entrevistas, Mistérios da Literatura, entre outros. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. ELÁDIO PÉREZ-GONZÁLEZ é professor da Fundação de Educação Artística de Belo Horizonte, autor do livro Iniciação à Técnica Vocal. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em filosofia.
Edição de Imagens Nélio Chiappetta
FERNANDO FONTANELLA é mestre em comunicação pela UFPE e professor de comunicação social na Universidade Católica de Pernambuco.
Editoria On-line Isabelle Câmara
FERNANDO MONTEIRO é escritor, cineasta e autor de Armada América, entre outros.
Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo e Renata Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens de Almeida Câmara Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE
JOÃO HÉLIO MENDONÇA é antropólogo. JOSÉ TELES é jornalista, escritor e autor do livro Do Frevo ao Manguebeat. KLEBER MENDONÇA FILHO é cineasta e crítico de cinema. LOURIVAL HOLANDA fez filosofia e é professor na Pós-Graduação de Letras e de História da UFPE. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MÁRIO HÉLIO é jornalista, ensaísta e escritor. PAULO POLZONOFF JR é jornalista. RENATA PALLOTTINI é professora-doutora da Escola de Comunicações e Artes da USP, vice-coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovela da USP.
Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”.
Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco
RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial. de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60.
Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.
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MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.
CARTAS Luiz Lisboa No meu artigo publicado na edição nº 55 (julho de 2005), “Falar difícil é fácil” (pág. 57), refiro-me e transcrevo o soneto do poeta Luiz Lisboa, “cujo nome não figura nos compêndios didáticos nem consta nas enciclopédias”. O historiador Leonardo Dantas Silva, a quem muito agradeço, apressou-se em esclarecer o mistério. Como fui informado, acho justo que os leitores também fiquem sabendo. Com a palavra Leonardo: “O poeta se chamava Luiz Carlos da Silva Lisboa. Nascido na Bahia (desconhecidas as datas de nascimento e falecimento), onde fez o seu curso de humanidades, iniciando-se na vida literária. Em 1870 transferiu-se para Sergipe, passando a servir na secretaria da Presidência da Província, com passagens no magistério e no jornalismo, tendo sido colaborador do Jornal de Sergipe e da Gazeta de Sergipe. Em 1898 era titular na cadeira de Geografia e Astronomia do Ateneu Sergipano. Quase toda sua produção literária é datada de Sergipe (Aracaju): Madeira – drama histórico; Andaluza – drama realista; Suzana (romance abolicionista) 1878 – Antes publicado em folhetim no Diário de Sergipe, sob o título Liberta; As desgraçadas (romance abolicionista); O Homem de ouro (romance de costumes); Paraguassu (romance histórico, também publicado em folhetim); O Rei dos Beócios (1897); Geografia do Estado de Sergipe (1897); além de outros encontrados no Sacramento Blake”. (Augusto Victorino Alves Sacramento Blake: Autor do Diccionario Bibliografico Brazileiro, 7 v.Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899). Duda Guenes, Lisboa, Portugal Nascimento do Passo Na Revista Continente Multicultural de janeiro de 2002 (edição nº 13) tratou-se, com muita maestria, do tombamento do saber na matéria "Patrimônio Imaterial". Excelentes o texto e as fotos. Gostaríamos, entretanto, que vocês procurassem localizar tantos outros mestres populares que estão no anonimato, como Nascimento do Passo, pois todo mundo que faz cultura neste Estado sabe da sua contribuição ao nosso ritmo maior, o frevo. Ele sempre lutou pela divulgação e ensino da dança, mas agora, devido a acusações não comprovadas, está relegado ao esquecimento. Ana Paula Souza, Olinda – PE
Onde a reinvenção? No texto “A escrita reinventada” (edição nº 56 – Agosto-2005), Cláudia Nina, referindo-se à literatura nacional contemporânea, afirma que Luiz Ruffato vem “apostando no viés não-linear da prosa em textos que se esfacelam em múltiplos fragmentos”. E de Joca Terron diz que, em seu livro Curva do Rio Sujo, “O leitor pode entrar no romance por onde quiser e fazer o seu próprio itinerário.” Porque ando interessado na literatura brasileira da “modernidade líquida” (e porque estimo e respeito o que Cláudia Nina escreve), gostaria de saber: o que os referidos autores, de fato, reinventam em sua escrita? Se indago, é que, em tudo isso – nos textos dos citados autores e no metadiscurso de Nina –, fica uma sensação do déjà vu, uma vez que não-linearidade e fragmentação já li em autores de décadas passadas – por exemplo, para citar um, entre nós: Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. Quanto ao leitor poder “entrar no romance (Curva do Rio Sujo, de Joca Terron), por onde quiser e fazer o seu próprio itinerário”, já vivi essa experiência estética, lendo autores como Julio Cortázar. Janilto Andrade, Recife – PE
Morte sem dignidade Magnífica visão de um grave problema nacional (coluna Contraponto, edição nº 56 – Agosto de 2005). Infelizmente, como médico, sofro com tal situação, pelo descaso governamental. O dinheiro que circula nos caixas 2 das campanhas eleitorais de nosso país serviria para resolver tais problemas. E o pior é que ainda somos, por vezes, incompreendidos, e muito malremunerados. Carlos Leite, Recife – PE Erratas As fotos publicadas na página 95 da edição nº 56 pertencem ao Arquivo de Liêdo Maranhão, mas foram tiradas pela fotógrafa Roberta Mariz. A foto publicada na página sete da edição nº 36 da Continente Documento – “Os caminhos da cultura jurídica” é de Machado de Assis e não de Rui Barbosa. Na mesma edição, a legenda da foto publicada nas páginas 24 e 25, é: Mosteiro de São Bento, em Olinda, local onde funcionou inicialmente a Faculdade de Direito.
Percussão Gosto muito da Continente, para mim ela é cheia de adjetivos, muito interessante, totalmente cultural, diversificada. Mas o mais interessante são as edições especiais.Vocês estão de parabéns. Gostaria de dar uma sugestão: por que não fazer uma reportagem com Erasto Vasconcelos, irmão de Naná Vasconcelos, que está no mês de julho na Revista? Garanto que não irão se arrepender, pois além de ser um compositor e um percussionista maravilhoso, tem um carisma genial. Itamis Alves, Paulista – PE
“
A escrita reinventada Trata-se de um estudo profundo da literatura (edição nº 56 – Agosto de 2005), sob uma visão contemporânea. Texto rico para ser estudado. Leônidas Arruda, Goiânia – GO
Dogma Surpreso diante do conteúdo da edição nº 55 da Revista Continente, senti-me provocado a emitir minhas idéias, juntando-me aos meus conterrâneos. O dogma me lembra da fé. Misteriosa e inatingível para alguns, mas isso lembra também algo que vejo na minha prática como médico; um instinto diferente do de sobrevivência (natural e intrínseco do homem), tão antigo e que suscita uma esperança poderosa, conhecida por instinto de eternidade. O encontro inopinado aconteceu com muitos, como clarões no túnel, e os deixou perplexos, entre eles Dr. Alex Carrel, André Frossard e Alfonse Ratisbone. Com certeza causará muita polêmica. Parabenizo pela excelência do material que traz recordações de Pernambuco em todas as áreas culturais. José Sérgio Tomaz de Souza, Mogi das Cruzes – SP
”
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
Inclusão cultural Os escritores, de uma maneira geral, conseguem viabilizar seus projetos com apoio privado, quando não usam seus próprios recursos individuais
O
Ilustração: Lin
s escritores e os poetas já têm plena consciência de que a questão econômica é basilar e que a nossa cultura econômica tem pontos contraditórios, na medida em que assume a dicotomia clássica de fazer a ponte entre necessidades e possibilidades. Historicamente conservadora, atualmente essa cultura mantémse intervencionista e autoritária, incorporando contradições entre os desafios racionais da social democracia e os desejos históricos do socialismo democrático, uma vez que manter o Estado mínimo e o Equilíbrio Fiscal é incompatível com o atendimento, pelo Estado, de todas as demandas sociais. Inspirados na modernidade dos discursos de Von Mises e Hayek, entre outros, os liberais e neoliberais valorizam o mercado e as liberdades individuais, mas concretamente clamam pela intervenção nas questões econômicas e sociais, por acreditarem ser o Estado o principal responsável pela felicidade coletiva. Nos discursos fazem o endeusamento do mercado, mas na prática defendem o catecismo e rezam pela cartilha do Estado. Por sua vez, os socialistas do poder – que se mostram pouco democráticos – expõem a incompatibilidade entre o falar e o fazer e o governo joga seu destino em todo um feixe de contradições sem ter consciência da impossibilidade de agradar a todos os seus senhores. Um bom exemplo disso é a legislação de apoio à cultura com subsídios financeiros e fiscais que beneficiam o setor de audiovisual. Com um discurso em defesa do cinema brasileiro, atores, cineastas e produtores culturais firmam convicção de que sem o apoio do Estado “a vaca vai pro brejo”. O que de fato está comprovado pelos dados de realidade, considerando que até nas grandes organizações de teledramaturgia o apoio financeiro do Estado encontra-se presente, seja para fomentar a geração de lucros, seja para socializar prejuízos. Em realidade, apesar dos discursos de eficiência do setor privado, poucos vivem distante dos benefícios resultantes das relações “fraternais”com o Estado.
Cultuando as contradições entre os interesses públicos e privados, cristalizadas pelo setor de audiovisual, alguns escritores mantêm-se mobilizados para que os projetos de edição de livros recebam o apoio paternal do Estado. Consideram que, sem a interferência do Governo, não há desenvolvimento social, tampouco cultural. Criam mais um segmento a ser incorporado aos discursos de inclusão social. Mais uma conta para o contribuinte. Mais um sindicato em formação, agora, em nome da leitura. Neste aspecto, ressalte-se que, sob o manto do Estado, passamos pela formulação dos discursos da inclusão social, pela inclusão digital e, hoje, com esse pleito para o fomento, pelo Governo, para a edição de livros, estamos literalmente formatando o discurso da inclusão cultural. E isso tem algum sentido posto que, sem o apoio e a sensibilidade do Governo de Pernambuco, a própria Revista Continente não sobreviveria, porque o pragmatismo e a visão de curto prazo do setor privado são restritivos tanto para apoiar projetos quanto para fazer publicidade em produtos editoriais desta natureza. Todavia, com relação à edição de livros, diga-se de passagem que, desde Homero até Drummond, os escritores de uma maneira geral conseguem viabilizar seus projetos com apoio privado, quando não usam seus próprio recursos individuais. As relações que alguns tinham com o Estado geralmente se limitavam a empregos públicos conseguidos através de concurso, a exemplo do próprio Drummond, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Vinícius de Moraes, João e Evaldo Cabral de Melo, entre outros. Enfim, os recursos essenciais a um escritor para a edição de seus livros são talento e trabalho. E recursos desse tipo, nenhum governo é capaz de repassar para terceiros, mesmo sob a égide virtuosa de uma política pública de inclusão cultural. • Continente setembro 2005
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CAPA
Ao largo da dicotomia intelectual entre apocalípticos e integrados, as telenovelas são um fenômeno digno de atenção porque elas mesmas viraram parte do Brasil que tentam retratar. O que faz toda a diferença é que elas, mais do que contar Daniel Piza histórias, criaram um hábito nacional
De olho gru
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CAPA Tyba
A
dado na T
Oswald Eckstein/Corbis
televisão sempre foi coisa complicada para intelectuais. Antes os apocalípticos predominavam, com sua noção de que ela é um instrumento diabólico de massificação, de manipulação, de controle tirânico dos valores e idéias de toda a sociedade. Uma exceção famosa foi o canadense Marshall McLuhan, que viu nos meios de comunicação de massa (mídia) extensões do indivíduo, capazes de tirá-lo da visão linear e nacionalista da Era Industrial e dotá-lo de uma percepção mais complexa e cosmopolita das mensagens humanas. Atualmente o número de integrados – que Umberto Eco, em livro famoso, distinguiu dos apocalípticos por acreditarem que a cultura de grande escala poderia democratizar arte e pensamento de qualidade – vem aumentando, como se nota em cadeiras como as dos “estudos culturais” das universidades, onde comparar Plantão Médico com Shakespeare é corriqueiro. Acho que os dois lados pecam por levar a TV a sério demais. Na verdade, a discussão deriva das grandes dicotomias que chacoalharam o século 20, em que o fenômeno das sociedades “de massa” – multidões aclamando Roosevelt ou Hitler ou Lênin – foi interpretado da mesma forma: ou como a morte do indivíduo ou como sua libertação histórica. Hoje, no século 21, sabemos que o individualismo “venceu”, porém o conformismo tomou outras formas, a ideologia do Senso Comum passou a ditar um modo de vida frívolo, amarrado a modismos e rótulos, a contatos superficiais com os outros, a alienações e vulgaridades. As pessoas perderam capacidade de concentração; a leitura de um livro, por exemplo, soa para a maioria como esforço equivalente a correr na esteira, como disse o presidente Lula. Ao mesmo tempo, a oferta de bons produtos culturais do presente e do pas-
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CAPA sado é ampla e diversa como nunca antes, e a TV atinge em alguns momentos um patamar inédito de sofisticação narrativa e informativa. Séries como Seinfeld, Os Sopranos e Sex and the City fazem o papel que os romances faziam no século 19, para não falar de adaptações literárias como as de Luiz Fernando Carvalho; documentários e entrevistas como os da GNT e Globonews, além de programas sobre natureza e ciência ou sobre conflitos como o palestino-israelense, se igualam à imprensa escrita em seus melhores momentos. É possível passar uma ou duas horas por dia à frente da TV e sair mais inteligente. Na maior parte do tempo, porém, a TV não é isso. Ela se alimenta da curiosidade mais banal do ser humano: da mesma curiosidade – digamos – que faz os motoristas dos carros diminuírem a velocidade para ver o resultado de uma batida ou capotagem, ou você comentar com sua mulher no elevador que a filha do vizinho não pára quieta, ou ficar olhando para a linda moça que começou a trabalhar na empresa, ou descansar a cabeça jogando baralho, cozinhando um prato, contando piada ou olhando as pombas na praça. Pegue o controle e dê um zapping pelas dezenas de canais: a maioria terá um pro-
grama de fofoca sobre celebridades (para atender à nossa curiosidade por pessoas bonitas que, de tanto revermos, começamos a achar que são íntimas), gincanas de auditórios (como brincar de pega-pega com seus filhos), shows e clipes (quem canta seus males espanta), mesas-redondas (na mesma base de palpites que damos no dia-a-dia sobre políticos, ídolos e crimes), partidas de futebol (para você, no dia seguinte, jogar na cara do colega a vitória do seu time), pastores evangélicos, filmes de sexo ou violência, notícias de 30 segundos, programas cômicos etc. TV, em geral, é 60% circo, 30% papo furado e 10% informação. No Brasil e nos países latinos em geral, há algo que supera isso tudo em termos de curiosidade coletiva: as telenovelas. (Nos países anglo-saxões, são os sitcoms que fazem esse papel.) Antes de mais nada, porque elas reúnem tudo que os outros apresentam separadamente: como folhetins eletrônicos que são, mesclam humor, amor, ação, celebridade, temas do momento, música, moda, torcida. As da Globo, historicamente, encontraram essa fórmula ao abandonar o melodrama excessivo de sua raiz hispano-americana – mexicana, sobretudo – e lhe dar Fotos: Reprodução
AG O Globo
O Bem Amado (acima) e Beto Rockfeller: marcos da ficção audiovisual brasileira Ao lado, os autores Janete Clair e Dias Gomes, pilares da teledramaturgia global
MARCO ANTONIO TEIXEIRA / AG O GLOBO - TV
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Os dois lados pecam por levar a TV a sério demais. Na verdade, a discussão deriva das grandes dicotomias que chacoalharam o século 20, em que o fenômeno das sociedades "de massa" foi interpretado ou como a morte do indivíduo ou como sua libertação histórica
Raul Cortez, em O Rei do Gado: de lá para cá, a qualidade média caiu
respiro com cenas engraçadas e questões atuais. Também tiveram a esperteza de alternar enredos urbanos (geralmente no Rio e São Paulo) e rurais (cidadezinhas no Nordeste), abrindo espaço para diferentes “Brasis”, ainda que caricaturizando sotaques, costumes e classes sociais. Janete Clair e Dias Gomes talvez tenham sido os grandes pilares dessa teledramaturgia global que se tornou hegemônica dos anos 70 para cá; são o José de Alencar e o Jorge Amado da escrita para TV. Criaram uma galeria de tipos e tramas que calou fundo na cultura nacional, reforçada por uma mão-de-obra qualificada – atores, diretores, técnicos – que o cinema e o teatro nunca puderam absorver e por um cancioneiro popular de primeira grandeza. Sim, novelas não resistem a um exame crítico, estético, mais agudo. Suas histórias se arrastam por quase 200 capítulos, quando poderiam ser contadas em apenas 20 (embora só dêem lucro a partir do centésimo); suas soluções narrativas são pífias ou toscas, além de quase sempre previsíveis (afora os grandes mistérios tipo “quem matou Salomão Ayala” ou “quem matou Odete Roitman”); a maioria das atuações, especialmente nos últimos tempos, constrange por amadora ou canastrona; o conflito nuclear é sempre uma oposição entre o bem (em geral,
pobre) e o mal (em geral, rico); as campanhas “politicamente corretas”, cada vez mais presentes, não ultrapassam a demagogia sentimental (em particular, as de Glória Perez); e o desserviço cultural também pode ser enorme, como a noção recorrente da ciência e da tecnologia como produtos da ambição de alguns malévolos. No entanto, ao contrário da maioria das previsões, as novelas continuam a ser uma mania do país, a manter índices de audiência impressionantes, mesmo que tenham perdido qualidade média e hoje existam muito mais canais na TV concorrendo com a Globo. Isso porque elas mesmas viraram parte do Brasil que tentam retratar. O que faz toda a diferença é que as novelas, mais do que contar histórias, criaram um hábito nacional. Não se pode subestimar a importância da grade de horários na TV; a Globo, em especial, acertou em cheio, quando estabeleceu uma novela para as 18h, quando as mulheres estão em casa, outra para as 19h, quando os filhos chegam da escola, e outra para 21h (depois que o pai viu o jornal), dirigida a toda a família. Claro que esses padrões de comportamento estão mudando e ainda vão mudar mais – as mulheres não são mais donas de casa, os jovens não estão assim tão ligados em novelas etc. –, mas o fato é que a Globo oferece um cardápio de distrações emotivas para o brasileiro que Continente setembro 2005
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O cenário principal da novela América, o mundo dos peões de rodeio, é pouco interessante para a maioria dos brasileiros; e as campanhas humanitárias, como a defesa dos direitos dos cegos, são ou didáticas ou fantasiosas demais
Reprodução
AG Globo
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Cenas de América (no alto) e Roque Santeiro, enredos sensíveis ao “espírito de época”
chega cansado do trabalho e quer morgar diante da TV. E as novelas permitem que ele acompanhe tudo em ritmo morno, aqui e ali pontuado de reviravoltas (mortes, explosões, traições), de tal forma que você pode perder um, dois ou três capítulos e ainda continuar entendendo a história. Ao contrário dos sitcoms, elas criam forte vínculo sentimental do público com o elenco. Tome como exemplo a atual novela das 21h da TV Globo, o programa mais popular do país (que pode atingir 60 pontos no ibope na fase final), América. O casal principal (Murilo Benício e Deborah Secco) tem baixa química e, especialmente ela, está mais interessado em fazer pose do que em atuar; o cenário principal, o mundo dos peões de rodeio, é pouco interessante para a maioria dos brasileiros; e as campanhas humanitárias, como a defesa dos direitos dos cegos, são ou didáticas ou fantasiosas demais. Porém, depois dos ajustes iniciais (erros no tempo das cenas e na escolha das músicas), a novela caiu no gosto do povo com apenas alguns ingredientes básicos: gente bonita, talentos cômicos (Matheus Nachtergaele, José Dumont), algumas históricas “picantes” (a viúva bonitona e rica com o peão simplório e apaixonado), núcleos pobres decentes (a vila onde solidariedade e forró dão o tom, e a pensão mexicana às voltas com romances Continente setembro 2005
e salsa), vilã loira (Camila Morgado, outro talento subaproveitado) e o assunto que voltou à pauta dos jornais, a emigração de brasileiros. É tudo que o espectador precisa; os papos do dia seguinte, tal como o futebol mais especificamente para os homens, estão garantidos. Mesmo assim, é preciso notar que, apesar do sucesso, qualquer pesquisa que se fizer entre os brasileiros com mais de 30 anos sobre as melhores novelas que viram terá resultado semelhante: a maioria vai responder Roque Santeiro, que marcou com muito humor a transição do Brasil para a democracia, Vale Tudo, que encarnou a revolta contra a corrupção dessa mesma democracia, e poucas mais. Outro trunfo das novelas, afinal, é esse: por seu tempo estendido e pelo trabalho de pesquisa junto ao público que ajuda a definir os rumos da sua história, elas são muito sensíveis ao espírito de sua época, como uma Polaroid de oito meses de duração. Podem, assim, refleti-lo de forma interessante, tornando-se até um campo de observação muito rico para o intelectual sem preconceitos. Ali se jogam muitos dos valores e signos em voga no momento da nação. Mas isso significa também que só os autores com grande poder de observação, como foram Janete Clair e Dias Gomes e é Aguinaldo Silva, e as circunstâncias históricas mais determinantes, como não deixa de ser a do atual governo Lula, podem dar a uma novela o selo de durabilidade. Novelas têm a ver com o que o grande contista americano John Cheever mostrou com The Big Radio, em que uma dona de casa vai mudar a estação do rádio e descobre que começou a captar as conversas dos apartamentos vizinhos. Ouvindo dramas e felicidades alheios, ela começa a repensar sua própria vida, especialmente a submissão a seu marido que está no trabalho e quer chegar em casa e encontrar o jantar, os sonhos de juventude que não realizou etc. Novelas são como acompanhar a vida do próximo: algo que pode ser bem tedioso, mas também inevitável e expressivo. Elas moldam e são moldadas pelas pessoas. Encarnam seus sonhos e também suas limitações. Promovem tanto a alienação como a integração. E funcionam. •
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A academia no sofá da sala
Reprodução
As telenovelas, cujos enredos e carpintaria já foram mais complexos, cada vez mais são objetos de estudos acadêmicos Paulo Polzonoff Jr
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arece que os acadêmicos descobriram um novo brinquedo para fazer rodopiar entre os corredores das universidades: a teledramaturgia. Nos últimos 10 anos, surgiram vários grupos de estudos pelo país, todos preocupados em investigar os diversos aspectos deste produto cultural genuinamente brasileiro. Sim, porque a novela feita por aqui adquiriu, ao longo dos anos, características que a individualizam. Há uma distinção clara, por exemplo, entre a novela brasileira e a mexicana – o que faz desta última até motivo de chacota. Para Ricardo Linhares, co-autor de sucessos como Porto dos Milagres, Pedra Sobre Pedra e Tieta, o interesse da academia pelo assunto mostra que novela é coisa séria. “O preconceito foi deixado de lado. Eles (da academia) perceberam que num país com poucos cinemas e poucos teatros a novela tem importância na formação cultural do brasileiro”. Ainda assim, em geral o interesse da academia pela teledramaturgia nacional é bastante crítico. Os doutores e mestres no assunto não assimilam muito bem a novela como um hábito saudável. Quase todas as teses e livros disponíveis sobre o assunto fazem uma abordagem bastante ácida do tema. A idéia da novela como instrumento de alienação, o velho jargão marxista adaptado que diz que o dramalhão é o ópio do povo continua em voga. Ao menos entre as colunas jônicas da academia. “O preconceito não acabou. Porque os acadêmicos não vêem a novela de forma isolada. Ela está no meio da televisão e tudo o que vem da televisão, para os intelectuais, parece coisa menor”, afirma Linhares. O embate é antigo. Dias Gomes, ainda nos anos 80, já denunciava o olhar obtuso com que os acadêmicos olhavam suas criações para a televisão. E cutucava, dizendo que, no Brasil, a novela evoluiu para um produto cultural mais sofisticado e culturalmente mais pretensioso. Aí é que as coisas se complicam. Porque inteligência não parece combinar com teledramaturgia. Pergunte a qualquer pessoa com pretensões intelectuais ao seu lado e ela se defenderá: “não assisto noAna Paula Arósio, na novela Terra Nostra
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CAPA vela”. Se, por algum acaso, for pega em flagrante delito, assistindo a uma cena qualquer, dirá em sua defesa que estava passando pelo canal e viu, sem querer, a mocinha dar um beijo no mocinho. E que até chorou. A verdade é que a aceitação da telenovela, carro-chefe da teledramaturgia nacional, como produto cultural choca-se com a necessidade de auto-afirmação que é o grande estigma da nossa intelligentsia. A telenovela na USP – Este cenário começa a mudar, ainda que a passos muito vagarosos. Desde 1992 funciona na USP o Núcleo de Pesquisa de Telenovela, sob o comando da doutora Maria Aparecida Baccega. O útero da intelectualidade paulista se rende à cultura popular, num movimento que parece ser o caminho encontrado pela academia brasileira para se aproximar das questões mais atuais. Ao se decidir por criar um núcleo de estudos voltados somente para a teledramaturgia nacional, a academia reconhece a necessidade de se aproximar de produtos culturais menos sofisticados ou, por outra, mais consumidos e, por conseqüências, de maior impacto e influência na vida das pessoas comuns. Afinal, nem só de Machado de Assis vive o homem. Ainda assim, interessa mais à academia os aspectos sociais das novelas. Por isso, são várias as teses que unem a novela a aspectos exteriores à trama, estrutura ou lin-
guagem. O que intriga ainda a academia é a capacidade que a teledramaturgia, em especial a novela, tem de mobilizar o espectador. Este aspecto se intensificou a partir da década de 90, quando se tornou uma regra para as novelas, o chamado merchandising social. Isto é, a inserção, na trama, de assuntos que despertem na população um sentimento social, por assim dizer. Crianças desaparecidas, câncer, alcoolismo, deficiência visual, homossexualismo, racismo, migração ilegal para os Estados Unidos e a eterna e recorrente gravidez na adolescência são exemplos do merchandising social. Esta ação tornou explícita a influência que a teledramaturgia exercia na sociedade. Se durante as décadas de 70 e 80 havia espaço para a especulação, da qual nasceram inúmeras teorias conspiratórias, envolvendo autores e a alta cúpula da Rede Globo, a partir da década de 90 as coisas parecem ter ficado mais claras: a teledramaturgia é, sim, um veículo de educação e alcance inimaginável, a serviço não de uma maléfica mão opressora, capaz de manipular até o voto dos eleitores por meio de um personagem simplório, Sassá Mutema, de remota semelhança com um Presidente também simplório, e, sim, da criação de um espírito crítico. Ao menos em tese. A verdade é que o merchandising social também fez crescer os índices de audiência das novelas. Desde então, tornou-se regra. “Não é algo imposto”, diz RiReprodução cardo Linhares. Mas é a tal história: em time que está ganhando, não se mexe. Mas falta o reconhecimento artístico. Para Ricardo Linhares, a telenovela deve ser encarada como uma obra coletiva, sem muito espaço para o autoral. “Isto é uma vaidade boba”, diz ele, que trabalha com até quatro colaboradores para escrever nada menos do que 30 páginas por dia e conduzir cerca de 40 personagens em vários enredos individuais. “Muita gente diz que escrever novela é seguir uma fórmula. Besteira. O autor tem que ser criativo o tempo todo para manter a trama interessante por seis, oito meses. É um trabalho intelectual e braçal muito grande”, afirma. “O problema é que há alguns acadêmicos que ainda esperam que a novela seja algo que ela não pode ser. Ela não pode ser um livro de Thomas Mann. Ela é uma indústria, um produto feito para vender espaço publicitário”, completa. Escrava Isaura, sucesso internacional
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CAPA Reprodução
Linguagem transparente – Mesmo os acadêmicos mais progressistas no que diz respeito à teledramaturgia concordam em usar a palavra catarse para explicar o fenômeno. Catarse é uma palavra de origem grega, aplicada ao teatro da época. Ela diz respeito ao transbordamento de sentimentos que uma tragédia ou comédia são capazes de provocar no espectador. No século 20, o termo ganhou outra conotação, mais passiva. Como explica o professor de comunicação da USP, José Marques de Mello: “O fascínio das multidões que seguem os capítulos das telenovelas se Sônia Braga, em Gabriela: o fascínio vem da consciência de que se trata de um passatempo alimenta também pela consciência de que estão parti- das tramas. A cegueira é tanta que grupos gays atacam cipando de um passatempo, de um divertimento. Trata- tramas que tratam do homossexualismo e grupos de dese de uma trégua no ritmo de vida intenso das grandes fesa dos negros atacam tramas nas quais o racismo é excidades ou na monotonia experimentada nos subúrbios e posto com humor. Até um movimento de defesa dos ínvilas do interior. As histórias fluem, lentamente, criando dios andou sugerindo ações contra uma trama na qual suspenses diários e motivando os telespectadores a reto- uma índia é maltratada por patroas sem escrúpulos. O mundo da teledramaturgia parece um mar de romarem o fio da meada no dia seguinte. É o que se pode sas, um avião em céu de brigadeiro ou que outro lugarchamar de catarse coletiva. Tudo isso facilitado pela completa inteligibilidade: a novela fala a linguagem da trans- comum o leitor quiser usar para descrever uma rota sem desvios, rumo ao sucesso. Mas não é bem assim. O que parência, para todo mundo se sentir por dentro”. Catártica ou manipuladora, o fato é que a teledra- falta, hoje em dia, é senso crítico do telespectador. Ou maturgia, em especial a telenovela, não dá sinais de can- melhor, capacidade para compreender tramas mais comsaço. Depois de algumas oscilações graves nos índices de plexas e refinadas. As tentativas neste sentido mostram o audiência durante a década de 90, quando muitos acadê- tamanho do desnível entre o que os autores são capazes micos apostaram no fim das telenovelas, elas retomaram de produzir e o que o público é capaz de assimilar. Os o fôlego nos últimos cinco anos. Atualmente, cerca de Maias, adaptação do romance de Eça de Queiroz, foi um dois bilhões de pessoas assistem a telenovelas no mundo. fracasso de audiência, para os padrões globais, ainda que Neste mercado, o Brasil tem posição de destaque. A tele- fosse algo de qualidade impecável. “Muitas novelas de novela é o principal produto de exportação da Rede Glo- sucesso não seriam aceitas hoje. O Rebu, por exemplo, foi bo – e suas tramas são reconhecidas internacionalmente uma novela que se passava, inteirinha, em uma noite, dupor fugirem do padrão mocinha-que-dá-a-volta-por-ci- rante a qual houve um assassinato. Que Rei Sou Eu? tamma das produções latinas, ou então das intrigas, ressen- bém não faria sucesso hoje”, acredita Linhares, referintimentos, ódios e reviravoltas inverossímeis dos soap ope- do-se às novelas de Bráulio Pedroso e Cassiano Gabus Mendes, respectivamente. ras americanos. No final das contas, a telenovela é espelho daquilo que Viva e pulsante, não é à toa que a telenovela atraia um séquito de detratores. Se um dia as universidades foram a sociedade é capaz de compreender e assimilar. Tão pior o antro de um espírito crítico cheio de neuroses, que ne- será a novela quanto for desqualificado seu público. E gava a telenovela para não lhe dar a importância devida, nem a Academia, com suas toneladas de teses, nem tamhoje em dia são os movimentos sociais engajados na lin- pouco os autores mais criativos serão capazes de subverter guagem do politicamente correto os maiores inimigos esta assertiva óbvia como um final feliz. • Continente setembro 2005
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CAPA Stephanie Maze/CORBIS
Regina Duarte, heroína de Roque Santeiro
cela das pessoas que vivem entre a pequena classe média e o universo dos milionários, mas que, de qualquer forma, procuram tocar cada vez mais um mundo real de carências, vícios e miséria. A construção dos personagens aperfeiçoou-se também; procura-se criar caracteres que tenham raízes na realidade, que sejam verossímeis e que, evoluindo ao longo da história – que em geral se estende por mais de seis meses no ar –, conservem em sua trama o mínimo de coerência desejável. Deve-se conceder que os principais problemas da criação dessa longa história “aberta” (ou seja, que se vai escrevendo à medida que vai à tela) recaem, exatamente, sobre a criação dos personagens . Já se tem falado profusamente sobre as origens da telenovela, mas sempre se pode voltar ao tema. Originária da narrativa oral, fragmentada, aventurosa, cheia de imaginação, repetitiva, maniA trama da produção da ficção audiovisual brasileira queísta, nem sempre coerente, a telenovela vem carregando na sua história as entre os vícios e as virtudes do folhetim eletrônico virtudes e os vícios da novela literária, Renata Pallottini do folhetim do século 19, do teatro de todos os tempos e principalmente do meatual estágio da telenovela brasileira, sem dúvida a lodrama, além, nos últimos tempos, do rádio, da fotomais bem-sucedida produção do gênero em todo novela, das histórias em quadrinhos, do vídeo, do o mundo, carrega consigo, como conseqüência obriga- computador, do cinema em geral. tória, um aperfeiçoamento continuado da construção draE dessas fontes múltiplas a telenovela traz caractematúrgica dessa forma de ficção audiovisual. rísticas, virtudes, mas também, obviamente, defeitos. Não poderia ser de outra maneira: mais de quatro dé“...o melodrama é o gênero mais convencional, escadas de exercício constante da arte dessa construção, a- quemático e artificioso que se possa imaginar; mantém crescidas do aprimoramento das exigências de um público um cânon no qual dificilmente podem ter entrada os cativo e atento, que acabou por se tornar perito na arte da novos elementos, encontrados de maneira espontânea e decodificação do produto, fizeram com que seus realiza- natural. Manifesta uma estrutura tripartida estrita, com dores – autores, diretores, técnicos, atores – cercassem, ca- um vigoroso antagonismo como situação inicial, uma coda vez mais, de cuidados a concretização da telenovela . lisão violenta e um desenlace que representa o triunfo da Às histórias de um romantismo primitivo, que se pas- virtude e o castigo do vício; em suma, uma ação muito savam em lugares e épocas distantes e exóticos, com per- clara e desenvolvida com muita economia, com a prisonagens esquemáticos e nenhuma ligação com o mundo mazia da fábula sobre os caracteres, com figuras tópicas, brasileiro, sucederam enredos mais realistas, reconhecí- como o herói, a inocência perseguida, o vilão e o persoveis pelas pessoas comuns dentro do seu mundo comum, nagem cômico”. (Arnold Hauser, Historia Social de la enredos que cobrem, é verdade, quase tão somente a par- Literatura y el Arte)
Os bons e os maus
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CAPA
Reprodução
Ora, sabemos já, nos dias que correm, que essa pesA existência, exatamente, das figuras tópicas a que se refere Hauser é um dos defeitos primordiais da teleno- soa não existe ou, se existe, deve ter, em termos de criavela-padrão brasileira, defeito contra o qual já começam ção ficcional, explicitadas as razões de sua ação. Permia erguer-se autores de ímpeto inovador, como Gilberto tindo-nos usar um exemplo clássico, diríamos que RiBraga (Celebridade), Lauro Cesar Muniz (Aquarela do cardo III, de Shakespeare, tem boa parte de sua vilania Brasil), Silvio de Abreu (A Próxima Vítima), entre outros. explicada pelo fato de haver, efetivamente, sofrido uma Tem faltado, à maioria dos personagens criados por injustiça quando da sucessão monárquica inglesa e, nossos autores, composição psicológica crível, verossímil e além do mais, por sua deformação física, que lhe traz o coerente. E é neste último aspecto, a coerência, que a própria que, hoje em dia, chamaríamos de sentimento de inferiomaneira de construção da telenovela ridade, que ele tenta combrasileira conspira contra seus criadores. pensar pela bravura, pela De fato, escrita a partir de uma conquista de mulheres e pela sinopse inicial, que quase nunca ultracompulsão de morte. passa as 20 páginas, com lista de perA caminhada do vilão, sonagens, de cenários, e resumo da mesmo em Shakespeare, história básica, a telenovela começa a acaba por levá-lo à destruiser gravada com, pelo menos, 20 capíção; mas essa destruição é tulos iniciais já escritos. alçada à categoria de justiça A partir daí, o autor (hoje em dia divina (seja qual for o deus auxiliado por uma equipe de co-aujusticeiro) e carrega consigo tores), passa a produzir seis capítulos uma grandeza que o vilão já por semana, até chegar aos cerca de apresentava em suas ações. 220 capítulos totais. Macbeth é um guerreiro heOcorre que os acontecimentos coróico, Ricardo III é um vilão tidianos, as opiniões de público e de hábil até o extremo, as facrítica, a visão do próprio autor, a reamílias Capuleto e Monteclidade das interpretações de atores inchio pagam a sua vilania fluenciam sempre, de maneira decisi- Detalhe do cartaz da peça Macbeth, de Shakespeare, com a perda de seus filhos, e va, o andamento da história. O mundo pelo artista polonês Wiktor-Sadowski a pagam, ainda, reconciliandiegético é influenciado e modificado pelos aconteci- do-se, o que refaz o equilíbrio danificado. mentos da vida real. Às vezes, a interpretação mais briEsse castigo do Mal, próprio do folhetim e do melhante de um ator ou de uma atriz faz transformar-se o lodrama, tem sido contestado, de certa forma, pelos autoestatuto do personagem, em pleno andamento da ação: um res mais audaciosos. É clássico o final de Vale Tudo, novecaráter que deveria morrer, na história original, acaba por la de Gilberto Braga, de 1988, em que o vilão, represensalvar-se, mercê do brilho que lhe é dado por um ator. O tado por Reginaldo Farias, despede-se do Brasil com um contrário também pode acontecer, de modo que alguém gesto grosseiro, e foge com o resultado de seus golpes. que tinha desenhada uma história alongada vê diminuir No caso, o Mal não foi castigado e, como na vida real, sua participação no enredo atual. A coerência psicológica, estabelece-se a norma de que, às vezes, os vilões dão-se nesses casos, e a partir destas influências, vê-se prejudicada muito bem. • • e, muitas vezes, decididamente abandonada. Curioso é, também, o problema do vilão de uma história; o vilão da telenovela, como sabemos, é o personagem Lendo mais sobre teledramaturgia: encarregado de cumprir as ações negativas, de se constituir Brasileira: Arte ou Espetáculo? – Ana Maria Camargo no adversário do herói, aquele que vai tentar impedir o seu Teledramaturgia Figueiredo, Editora Paulus. R$ 10,00. caminho, a consecução de seus fins. Dentro do esquema Memória da Telenovela Brasileira – Ismael Fernandez, Brasiliense. 69,40. melodramático e folhetinesco que, apesar dos avanços, a R$ A Hollywood Brasileira: Panorama da Telenovela no Brasil – Mauro telenovela conserva, o vilão deve ser uma espécie de mal- Alencar, Senac-Rio. R$ 60,00. feitor (como aliás o chama Wladimir Propp), uma pessoa O que é dramaturgia – Renata Pallottini, Brasiliense. R$ 14,80. destituída de princípios morais, totalmente má. Continente setembro 2005
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Fotos: Reprodução do livro Testemunho de Atores: panorama do teleteatro da TV Jornal do Commercio
A atriz Laura Prado, em A Prostituta Respeitosa: Sartre na tevê
Do teleteatro à telenovela O teleteatro, que teve papel importante nos primórdios da tevê, perdeu espaço para a telenovela, como se documenta no caso da TV Jornal do Commercio, do Recife Carlos Bartolomeu
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nos 50: a urbanização, a crescente industrialização, a dinâmica da vida nacional são marcas de uma época cujo brilho e efervescência alcançavam os olhos e ouvidos da nação, através das ondas sonoras da rádio e das notícias estampadas nos jornais. Se, no cinema e no teatro, a burguesia triunfante de São Paulo se encontrava nas realizações da Companhia Cinematográfica Vera-Cruz e nas produções dramatúrgicas do Teatro Brasileiro de Comédias – o TBC, o país, como um todo, nesse sentido, demandava um veículo que promovesse à altura o movimento renovador que se instalava. Um instantâneo dessa época foi o surgimento da TV Tupi de São Paulo. A instalação de uma emissora de TV no sul do país foi o núcleo propulsor do aparecimento de outras emissoras ao longo da década. Em 1960, são inauguradas, no Recife, duas estações: a TV Rádio Clube, o Canal 6, e a TV Jornal do Commercio, o Canal 2. Entre 18 de setembro de 1950, data oficial da inauguração da TV Tupi, em São Paulo, e 20 de junho de 1960, dia inaugural da TV Jornal do Commercio, no Recife, transcorreram 10 anos de exercício televisivo. Continente setembro 2005
No início da década de 60, o público televisivo da capital pernambucana era constituído, em sua maioria, pelos então denominados televizinhos. Esta nova massa de espectadores, aos poucos, foi se postando diante das janelas das casas de família ou em frente das tradicionais lojas de aparelhos de eletroeletrônicos, do centro da cidade. Eles, os televizinhos, eram membros de uma confraria interclassista, uma nova irmandade composta por voyeures, consumistas de imagens. A sala das casas e as vitrines formavam, portanto, os dois espaços iniciais de acolhida do público telespectador, ávido pela nova mídia. Assim, um novíssimo mercado se instala, e dentro dele emerge uma outra expressão de cultura, a cultura popular de massas. É criado o mercado e a audiência da televisão brasileira. Uma ação de folhetim que deflagra o ingresso da nação na modernidade visual. Do folhetim de rodapés de jornal ao folhetim dos rádios e da TV, será ao teleteatro que caberá a tarefa pioneira de experienciar e maturar atores e técnicos egressos de mundos tão diferentes: de conduzir a vivência do Rádio em paralelo com o sonho do Cinema, e a intelectualidade da gente do Teatro.
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É de origem radiofônica o termo teleteatro, conforme documenta Renato Phaelante. Segundo ele, a Rádio Clube de Pernambuco, primeira sociedade radiofônica do Brasil, batizou a representação teatral na rádio de teleteatro devido à influência do processo de comunicação em moda: a telegrafia sem fio. Isso teria acontecido em 04 de abril de 1932. Infelizmente não é citado o texto teatral levado ao ar. A TV em Pernambuco soube aproveitar a experiência radiofônica tanto quanto outras tevês nascidas no país. Nesse sentido, a TV Jornal do Commercio foi exemplar. Apostando na convivência com o universal e nas novas tecnologias, enviou seus técnicos para estagiarem fora do Brasil. Reunindo atores do sul, com experiência televisiva, aos atores de sua empresa, propiciou uma realização deveras eficiente no trato estrutural de emissora de TV, com uma dimensão que O ator Graça Melo, antes não se tinha visto no em O Massacre nosso país. No período em que o teleteatro dominou a programação, seu sucesso foi garantia de fama e notoriedade para os atores envolvidos nesta realização. Tais profissionais conheceram o renome, embora, segundo o testemunho deles, nem sempre obtivessem êxito financeiro, notadamente se comparamos com os contratos e possibilidades dos grandes nomes da atualidade. De 1950, data inaugural da televisão no Brasil, a 1960, ano de inauguração da TV Jornal do Commercio, no Recife, a programação evoluiu, e assimilou influências do cinema, incorporando também os sucessos da radiofonia, e muito da experiência que ela proporcionara, o que na maioria das vezes, chegava a dar o próprio tom das imagens televisadas. Nesse percurso, o teleteatro ocupou amplo espaço e desfrutou imensa respeitabilidade artística, qualificando-se como segmento da programação cultural mais importante. Todavia, o teleteatro não foi devidamente aceito ou apreendido como produto, tendo essa, mais à frente, se tornado uma das razões do processo de sua trajetória na televisão, talvez a mais importante delas: a incapacidade do veículo em incorporar esse tipo de criação e submetêlo ao seu crivo mercantilista.
O teleteatro, dentro do espaço em mosaico que a TV construiu, ao longo de sua experimentação com o entretenimento, o jornalismo e diversos outros gêneros, não logrou incorporar-se a ela. O status elitista vivido pela construção inicial da dramaturgia televisiva condenou-o a tornar-se a peça fundamental contra o discurso da programação comercial das emissoras. A longa narrativa teatral e sua clássica divisão em atos foi repelida por essa TV. O poder de síntese imagética da cinematografia, através da montagem, e do uso da roteirização, propiciou a aceitação de produtos como as séries e especiais. Todavia, esse desenvolvimento ou alteração de circuito da representação na TV encontra seu ápice em um produto de inquestionável aceitação: a telenovela. A extensão dessa realidade pode ser medida através da revolução econômica operacionalizada por ela, dentro e fora dos meios de comunicação que atinge, e pelo impacto emocional que alcança junto à grande massa. Ao contrário do teleteatro, que ensejava ao seu público a reflexão, a face internalizadora da telenovela promovia uma acarinhamento do telespectador, apelando para o seu lado emocional. Também é importante observar que esse processo, da forma como foi instituído no país, privilegiou uma política de desmonte da regionalidade e do “particular”, detendo em pouquíssimos redutos a possibilidade de uma TV criativa e atuante, esquecendo que a imagem de um povo e a identidade de uma nação são construídas na diversidade e na diferença. A paulatina substituição do teleteatro pelas telenovelas apontava para a mesma direção que a sociedade como um todo iria tomar. A construção de imagens para o grande público não excluiu essas tensões e é indicadora do fazer histórico de uma época. Através da leitura propiciada por esse fazer, é possível reconstituir a memória das imagens, os vestígios dessa arte e documentar a idéia que uma sociedade faz de si mesma em um determinado período. • Continente setembro 2005
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TEATROLITERATURA
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uando Denise Stoklos entra no palco, algumas perguntas invadem o intelecto. Cadê o cenário? Onde estão os objetos que deveriam estar em cena? Que figurino é este? Nenhuma destas perguntas será respondida nos espetáculos de Denise Stoklos – pelo menos de forma visual. “Sou um instrumento que leva o público a entender o que o teatro quer mostrar. No Teatro Essencial não há a tentativa de o ator ficar parecido com ninguém. O ator, por meio da fala, dos gestos e da sua entrega, vai transmitir uma figura que fará com que o espectador seja
tocado e construa seu próprio entendimento”. Com essas palavras Denise Stoklos explica por que não prioriza cenários, figurinos e efeitos em seus espetáculos. Ao ressaltar voz, corpo, inteligência e intuição, o Teatro Essencial propõe em seu manifesto trabalhar o mínimo possível com efeitos e ter a máxima teatralidade no próprio ator. O Teatro Essencial é um método usado (e criado) por Denise Stoklos, há 35 anos, quando, depois de descobrir o mundo das artes na cidade de Irati, no Paraná, onde nasceu e cresceu, começou a se dedicar ao palco. Ela conta que não sofreu influências de teatrólogos para criar o
Por um teatro visceral Atriz, diretora e autora, Denise Stoklos faz de seu Teatro Essencial – no qual o forte é a entrega total do ator em cena – instrumento de busca ao amor e à liberdade Sara Correia
Imago
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TEATRO método. “Essa é uma linha criada pela minha própria história. A minha influência foi a de ser de uma cidade de interior, onde não tinha teatro. Eu via circo e cinema. Assisti a filmes brasileiros com grandes comediantes, como Oscarito, Dercy Gonçalves e Zezé Macedo, que eram mambembes. Com eles eu aprendi a política da representação, onde questiono coisas da vida”, conta Denise. Desta forma, a atriz descobriu uma nova ótica de trabalho, em que utiliza a técnica do palhaço, do clown, “que tem a característica de rir de si mesmo”, completa a atriz.
Como utiliza a mímica para passar seu recado, a relação palavra-gesto passou a ser onipresente no trabalho de Stoklos. “Eu não gosto dessa mímica que só mostra o virtuosismo do mímico. É importante a mistura com a palavra e sempre gostei de usar o som, a voz. Quando voltei do exterior, o Antônio Abujamra brincou: ‘Ué, a melhor voz do teatro brasileiro voltou mímica, o que é isso?’”, lembra. Denise conta que tanto a fala quanto o gesto necessitam de esforço físico para que sejam realizados em cena. “Para me movimentar, fazer o gesto, luto contra a gravidade, e com a fala é a mesma coisa. Coloco Thais Stoklos Kignel
Denise Stoklos trabalha o mínimo com efeitos e prioriza a teatralidade no próprio ator
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TEATRO força de ar em uma expressão”, ensina a diretora, sobre o seu teatro físico. “Na representação dos circenses havia uma crítica às injustiças que ocorrem com as diferenças de classe. Como eu não via teatro, eu não tinha noção do trabalho de iluminação, cenografia, figurino. Eu conhecia mais o trabalho do ator, carregado de valores”, completa a diretora, justificando a principal característica do Teatro Essencial: a entrega total, quase visceral, do ator em cena. No teatro de Denise Stoklos o ator não tenta reproduzir o personagem de forma imitativa. Ela lembra que, em uma peça de ficção normal, geralmente há um autor, que cria o personagem com suas características já definidas, um diretor que lê o texto e sabe como vai conduzir a encenação, e o ator que é chamado para executar o papel e reproduzir exatamente aquilo que o diretor acha que deve ser feito. Para Stoklos, o trabalho de escrever, dirigir, pro-
duzir e atuar deve ser de uma só pessoa. “O ator carrega valores. Ele leva coisas desde os tempos de criança, da sua vivência, da cidade onde nasceu, o que viveu, e com isso tem informações políticas, sociais e culturais, que lhe darão condições de viver um personagem”, explica. No universo do Teatro Essencial quem faz a dramaturgia é o ator, que sente e que busca elementos dentro de si para fazer a cena. “O público percebe que a dramaturgia é aquela que está ali, em cena. Queremos que o público saia do teatro mais revigorado nas suas buscas por amor e por liberdade. Cada um tem uma mensagem de vida, com seus problemas, suas felicidades, seus entendimentos. É por isso que, com as metáforas, apresento um mesmo espetáculo em diferentes partes do mundo e todos entendem e se tocam”, define ela. Mesmo que prefira trabalhar com monólogos, onde tem a oportunidade de explorar gestos, palavras e coreo-
“O público percebe que a dramaturgia é aquela que está ali, em cena. Queremos que o público saia do teatro mais revigorado nas suas buscas por amor e por liberdade. Cada um tem uma mensagem de vida, com seus problemas, suas felicidades, seus entendimentos” Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Antônio Abujamra foi um dos primeiros diretores de teatro a receber Denise Stoklos nos palcos do Rio de Janeiro
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Daniela Nader/OlhoNu
TEATRO
Para o Teatro Essencial de Denise Stoklos o ator é apenas instrumento, e não tem ego
“No Teatro Essencial o ator segue os mesmos princípios, mas cada um tem sua experiência pessoal de vida. O importante é ser original, mostrar como sente determinada cena e fazer o público sentir a cena deles”
grafias, Denise Stoklos conta que o seu método pode ser feito por grupo de atores. A criação individual e coletiva no Teatro Essencial é possível porque, como define a diretora, cada ator faz um Teatro Essencial diferente. “O ator segue os mesmos princípios, mas cada um tem sua experiência pessoal de vida. O importante é ser original, mostrar como sente determinada cena e fazer o público sentir a cena deles”, conta. Presente dado pela filha de Denise, o livro Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, inspirou a diretora a montar uma peça, juntamente com idéias do pensador norte-americano Henry David Thoreau, partindo do livro Desobediência Civil. “Thoreau tentou dar aula para crianças no jardim, pois elas eram presas e era necessário estimular a criatividade delas. Mas como os pais não deixaram, ele desistiu, foi morar no mato, e se transformou num estudioso em história natural. A obrigação primordial do teatro é, usando metáforas, permitir ao expectador que ele faça o jogo, crie e brinque”, explica Denise. O que ela quer é mostrar que o ator é responsável por transmitir uma mensagem ao público e mostrar onde foi tocado. O espectador se remete ao personagem e faz a sua cena. “Ele (o público) atualiza os personagens e o discurso deles. O público é quem cria o teatro. Este é o fundamento do Teatro Essencial, onde o ator é apenas um instrumento, e que não tem ego”, conta Denise Stoklos, ao lembrar que o Teatro Essencial propõe uma linguagem vertical. “É necessário que o público entenda as metáforas e veja que aquilo tudo não é apenas aparência”, completa a diretora. Se parece maniqueísta, isso pouco importa. Denise se considera uma excluída. • Continente setembro 2005
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TEATRO
O eu de cada um Monólogo Calendário da Pedra mostra, por meio de um diário anual, pensamentos, emoções e queixas, e traz à tona elementos do subconsciente humano
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Claudio Edinger/CORBIS SABA
alendário da Pedra estreou no Rio de Janeiro, em 2001, e a estrutura do texto é originária do poema “Book of Anniversary”, de Gertrude Stein. Mostra, por meio de um diário anual, pensamentos, emoções, queixas, ações próprias relativas mais ao interior do personagem que ao tempo cronológico. À medida que o tempo vai passando, a personagem vai levantando questões ora simples ora importantes. Passeia por lembranças fúteis, corriqueiras, e outras sérias e marcantes. No geral, traz nos momentos diversificados o que está no seu íntimo, mas no íntimo coletivo, no subconsciente da natureza humana. Talvez por isso o público se identifique tanto com a personagem de Calendário da Pedra. Louise Bourgeois assina esculturas de A música é instruespetáculo de Stoklos mento pouco explorado no monólogo de Denise, que somente no final traz a canção “Paciência”, do pernambucano Lenine, para dar uma pitada de realismo a tudo aquilo que ficou dito nas entrelinhas do espetáculo. O último trabalho de Denise Stoklos é a peça Louise Bourgeois: Faço, Desfaço, Refaço, em que a atriz e diretora utiliza três esculturas de ferro criadas pela artista plástica norte-americana Louise Bourgeois em cena. • Continente setembro 2005
O desentendi Proposta de levar um teatro que faz pensar agrada
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s espetáculos de Denise Stoklos têm sempre casa cheia – durante o Festival de Inverno de Garanhuns (PE), onde Denise fez duas apresentações no último mês de julho, os ingressos acabaram e muita gente não conseguiu assistir ao monólogo Calendário da Pedra. Não por acaso. A proposta de levar um teatro que faz pensar agrada ao público, mas parece contrariar boa parte da crítica. Durante a peça, Denise desabafa, nas entrelinhas, e deixa escapar que não é citada por críticos do eixo RioSão Paulo. Fora do palco ela explica: “Existe sempre uma grande confusão, acho que de minha responsabilidade. Com o público eu tenho a oportunidade de trocar idéias, mas com a coisa já escrita em jornais eu só posso constatar o que é compreendido (ou não) do meu teatro. Tenho notado que há um grande desentendimento”. Denise reclama que, muitas vezes, a crítica só conhece as escolas tradicionais e não abre os olhos para novos movimentos. “Eu não tenho oportunidade de esclarecer o que se pode buscar e esperar do meu teatro. Qual o approach (abordagem) desse teatro. Então, muitas vezes ele é visto como repetição de uma linguagem”, lamenta a diretora. Mas Denise não se abala e tem como proposta levar seu teatro para o público. “A maioria dos críticos não compreende esse teatro. Acha que é pobre, não tem figurino, é repetitivo. É que os métodos existentes não falam disso, claro, pois o Teatro Essencial é novo, criado por uma mulher, numa cidade do interior do Brasil”, desabafa. Quando Denise saiu de Irati e foi morar em Curitiba, conseguiu escrever, montar, produzir e apresentar uma peça com alguns amigos e recebeu convites de diretores de teatro para trabalhar. “Eu fazia as coisas ao meu modo, com muita dedicação física, e eu fui me desenvolvendo cada vez mais. Resolvi ir pro Rio de Janeiro e lá
TEATRO
mento da crítica ao público, mas parece contrariar parte da crítica Thais Stoklos Kignel
me relacionei com muita gente boa”, conta Stoklos. Ela já trabalhou com diretores como Ademar Guerra, Antunes Filho, Antônio Abujamra, Fauzi Arap e Luis Antonio Martinez Correia, entre outros. “Aí começou um momento em que eu precisava de mais liberdade, em 1977, quando a ditadura estava terrível. Resolvi ir estudar em Londres e descobri que estava grávida”, lembra a atriz. Mãe de dois filhos (Thaís, de 26, e Piatã, de 24), Denise lembra que a gravidez foi fato fundamental para que a atriz se conscientizasse do estilo de teatro que fazia. “A maternidade foi a revelação da minha vida. Eu aprendi, primeiro, que aquilo tudo que ingeria não era só pra mim. Você descobre que você não é mais só você. Você passa a conduzir dois egos. O seu ego vai se diluindo e dá pra ter a verdadeira noção do que é a perda de ego”, explica, ao lembrar que a perda de ego a ajudou no teatro. “Eu já fazia esse teatro há anos, mas só reconheci o Teatro Essencial depois da maternidade, 10 anos depois de ter participado de grupos de teatro e ser dirigida por outros diretores”, lembra a atriz, hoje com 54 anos. Ao trabalhar em cima desse “novo” conceito sobre a perda do ego, Denise Stoklos identificou outros elementos de seu teatro. “A perda de ego te faz descobrir que, dessa forma, você desenvolve em si algo que o leve ao amor e à liberdade. Descobri que isso é teatro, o meu teatro”, define. No Teatro Essencial a vida imita a arte e vice-versa. Mas como explica Denise Stoklos, o engajamento sócio-político de um ator é fundamental. “Se esse engajamento não acontecer na vida pessoal, não acontece no palco. No palco o ator não tem ego e, quando o público está aplaudindo, ele não está aplaudindo o ator, mas o que temos de criativo na natureza humana”, lembra. •
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AGENDA/TEATRO Fotos: Divulgação
Cena Contemporânea
Solo No 1
Escambos e intercâmbios Festival de Teatro de Guaramiranga chega à sua 12ª edição consolidado como um dos mais importantes do Nordeste O Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, um dos mais tradicionais da região, chega à 12ª edição com o mérito de figurar entre os principais do gênero no país. Prova disso é o crescimento do interesse das companhias teatrais do Nordeste na hora das inscrições: este ano foram 67, dos quais 11 foram selecionados. O Estado anfitrião, Ceará, participa da Mostra Competitiva com três espetáculos: O Realejo, quem Dará o Veredicto?, e Solo Nº. 1 – Babel. Rio Grande do Norte chega com Barra Shopping e Guarda-Chuva de Prata. A Bahia leva Braseiro, Cinderela Black Power, como você nunca viu e Jardim. Caboré, a Ópera da Moça Feia e Patelin, Fé e Tramóia são as produções de Alagoas. Já Estrelas ao Relento vem da Paraíba. Além dos inscritos e selecionados para a Mostra Competitiva, o FNT conta em sua programação com espetáculos convidados do Nordeste e outras regiões, que participam do evento na Mostra Paralela e nas noites de abertura e encerramento. Ao longo de mais de uma década realizando também debates, fóruns, residências e oficinas, o FNT tornou-se um importante pólo de discussão e formação teatral. Com o tema “As matrizes das culturas norJardim destinas no teatro”, o FNT, este ano, promove também com o II Encontro de Gestores de Teatro, o III Encontro de Artistas Pesquisadores e a I Feira de Artes Cênicas, Câmbios, Escambos e Intercâmbios.
Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga (CE). De 16 a 24/09. Informações: www.agua.art.br Continente setembro 2005
O espetáculo Dance on Glasses, o de maior sucesso e que também gerou grandes controvérsias no cenário do teatro contemporâneo do Irã (principalmente porque seu autor e diretor, Amir Reza Koohestani, um jovem nascido em 1978, foi convocado pelo exército iraniano e não poderá vir ao Brasil) vai aportar no Brasil pela primeira vez, para duas únicas apresentações, dentro do Cena Contemporânea 2005, o mais importante festival de teatro contemporâneo da região Centro-Oeste. O evento ainda promete os espetáculos El Nino, do grupo polonês Stowarzyszenie Teatralne A Part, também inédito no Brasil, e uma seqüência de espetáculos nacionais: A Voz de um Provocador, de Antonio Abujamra, e Arena Conta Danton, da Cia. Livre, ambos de São Paulo. No total, serão 11 dias de programação, ocupando vários espaços de Brasília – Centro Cultural Banco do Brasil, Teatro da Caixa e Teatro Garagem do SESC. A edição 2005 do evento acontecerá de 28 de setembro a 09 de outubro, contando também com a participação de grupos da Polônia, Argentina, Portugal e Brasil, além da realização de espetáculos em teatros e locais alternativos, oficinas, debates e palestras.
Dance On Glasses
Cena Contemporânea 2005. CCBB-Brasília, Teatro da Caixa e Teatro Garagem do Sesc. De 28 de setembro a 9 de outubro. Informações: www.objetosim.com.br
A volta de Fernando e Isaura Um romance proibido às margens do Rio São Francisco. Assim é Fernando e Isaura, montagem que, pela primeira vez no mundo, leva para os palcos uma adaptação do primeiro romance homônimo escrito por Ariano Suassuna, em 1956, que recria a lenda irlandesa de Tristão e Isolda. O espetáculo, estreado ano passado, cumprirá temporada popular no Teatro Armazém. A adaptação e a direção são de Carlos Carvalho, com realização da Remo Produções e financiamento do Funcultura. Fernando e Isaura. Teatro Armazém (A. Alfredo Lisboa, 14, Recife Antigo). De 17 de setembro até dezembro, aos sábados, 21h e domingos, 20h. Ingressos: R$ 5,00 (preço único).
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
O livro e a borboleta
“O que ainda não está escrito desaparecerá" Psístrates (séc. VI a.C.)
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uando eu era mais otário do que sou hoje, acreditava que a política (a partidária) era uma escolha entre valores alternativos visando ao bem comum.”Valores” sempre os tive como os da ética, da justiça e da fraternidade, principalmente. Como a minha proposição está longe de ser um postulado ou, muito menos, um axioma, os políticos brasileiros poderiam concordar com ela, mexendo no sentido da palavra “valores”, que se reduziriam aos monetários, e substituindo “comum” por próprio ou individual. Não se deixem enganar, meus milhões de leitores. O arranca-rabo atual, entre os pinóquios do Congresso, é por dinheiro ou por poder, ou as duas coisas juntas, os únicos valores que estão em causa. Esta crônica, como outras transgressões verbais de minha autoria, não é incoerente ou muda de tema de propósito, mas por incompetência mesmo. Digo-o por auto-comiseração e não por modéstia, este orgulho disfarçado. Meu mundo é o mundo das letras, também cheio de safados (se vocês lessem o que li sobre Bacon...), e para ele volto quando quero, e estamos conversados.
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MARCO ZERO
Estou em Natal e vim para cá conversando com meu amigo-irmão, Pedro Vicente, sobre o melhor suporte para se ler um texto, se o venerável livro ou o janota monitor eletrônico. Gosto se discute, “sim senhô”. Conheço professores que gostam de cada droga... Bem, sou da gang do livro, e uma das razões de minha escolha foi apresentada pelo genial Millôr Fernandes: “livro não enguiça”. Quando menino, o livro me seduziu primeiramente pelos sentidos, ou melhor, pelo sentido do olfato. É difícil reaver pelas lembranças o perfume do primeiro livro que li, Dom Quixote das Crianças, de Monteiro Lobato, um exemplar novo em folha. Às vezes tento recuperar no mundo em volta o perfume daquele livro. Veio do pinheiro de que fizeram o papel? Outros perfumes, os dos gibis, climatizando as fantasias. Nada chega ao intelecto sem antes passar pelos sentidos (nihil est intelectu quo non fuerti in sensu), disse um velho pensador, Tomás de Aquino? Como só vivo liso, não posso comprar livros novos, mas aqueles que recebo de presente não têm o aroma dos de antigamente. “Mudou o livro ou mudei eu?” Trabalho, hoje, no setor de Obras Raras, da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco. Há muitos livros que os jesuítas deixaram por aqui, quando expulsos pela corte portuguesa. Sou uma obra velha entre obras raras, mas sinto que livros daquela coleção não têm perfume, têm cheiro, o cheiro do tempo e dos insetos mortos pelo nitrogênio. Li não sei quando e não sei onde que a leitura silenciosa começou no século 10. Descobriram um frade, que depois virou santo (como era costume na época), lendo calado, no seu canto. Por susto e não por preconceito de cor dos frades, quase derrubaram a imagem de São Benedito (já era nascido nesse tem-
po?). O que o pré-santo tinha diante de si deveria ser um rolo de pergaminho ou de papiro manuscrito, pois Gutemberg estava longe de nascer. Eu sequer imaginara que antes do século 10 os poucos alfabetizados que existiam liam todos em voz alta. Posso imaginar a balbúrdia da Biblioteca da Alexandria. Se alguém me perguntasse quais os maiores prazeres da vida, eu responderia que, por ordem de preferência, são: o sexo, a bebida alcoólica e o livro. Do livro feito de trapo (mais resistente), ao feito de celulose (fragílimo), há toda uma história de amor. É a única fonte de prazer que, na velhice, pode substituir uma mulher ou uma garrafa de aguardente. Erradicar o analfabetismo e incentivar o hábito de leitura não é só preparar o homem para a vida, mas também para a velhice e a morte. Na base da história do livro está a base da intercomunicação humana. Se combinarmos informações de Marcel Cohen e Walter A. Neves, chegamos à conclusão de que, presumivelmente, a linguagem articulada começou há 400 ou 300 mil anos, a escrita há seis mil anos e o alfabeto há 3.500 anos. Quando temos um livro na mão, temos a história de nossa espécie, deste sujeito tão maldenominado de homo sapiens. Os jovens – quase tudo lhes é permitido, exceto serem burros – olham com desprezo o livro e vão pilotar o seu computador, esquecidos de que esse troço, considerado de última geração, vai ser um ninho de ratos, amanhã. Virão outros ninhos, mas o livro, como o conhecemos, permanecerá. Todo sujeito que consegue comer com garfo e faca, sem lambuzar o bigode, sabe que os meios de comunicação são complementares e não excludentes. Sim, o livro é uma coisa velha. Um lírio e uma borboleta também são. • Continente setembro 2005
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LITERATURA
Lançamento simultâneo de três livros daquela que é considerada a maior poetisa brasileira propicia encontro com uma poesia vasta e inspirada Luiz Carlos Monteiro
Poesia em tripla dose
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poesia de Cecília Meireles sempre transitou entre um lirismo pungente e delicado e as manifestações de um real desvestido de máscaras ou engodos. Em três livros lançados simultaneamente pela Nova Fronteira, Canções, O Estudante Empírico e Solombra, alguns de seus temas afloram e formam um mosaico poético diferenciado e expressivo que apenas vem enriquecer a totalidade de sua obra. O leitor vai encontrar nesses livros, que se desdobram em 11 outros, tanto poesia religiosa e mística como poemas históricos e de viagens, canções do mais alto lirismo e poemas infanto-juvenis. Em Poemas de Viagens (1940-1964), por exemplo, que aparece como parte de Solombra (1963), a poetisa revela outra faceta de sua obra, que se abre para o exterior, para o Continente setembro 2005
ambiente circundante e os numerosos lugares e países que visitou. Mais de 30 páginas têm o poema “U.S.A. - 1940”, onde ela dialoga, em redondilha menor, com uma certa Cristina Christie, exprimindo o mundo metálico, opressor e de culto extremado ao progresso dos norte-americanos: “Quinta Avenida/ com canivetes/ de 20 dólares,/ capas de pele/ de mais de mil.../ Fragor das ruas/ cheias de pressa./ Tropel dos ônibus/ – Torre de Pisa/ fora de prumo –/ com os passageiros/ que oscilam sobre/ jornais, charutos,/ trusts, empresas,/ sonhos de nafta,/ câmbio, eleições...”. Outra surpresa é um livro pouco conhecido, O Estudante Empírico, de versos brancos, livres e completamente desmetrificados, que servem para o exercício da filosofia e de um didatismo questionador dos problemas gerais que desafiam os alunos mais aplicados e diligentes, mesmo os
LITERATURA
que querem apenas aprender poesia, como no trecho final do poema “Para que a escrita seja legível”, onde ela proclama que “para começar a dizer/ alguma coisa que valha a pena,/ é preciso conhecer todos os sentidos/ de todos os caracteres,/ e ter experimentado em si próprio/ todos estes sentidos, e ter observado no mundo/ e no transmundo/ todos os resultados dessas experiências”. Estão incorporados a O Estudante Empírico os poemas infantis de Ou Isto ou Aquilo, que encarnam um ludismo envolvente e prazeroso, sem deixar de mostrar comportamentos irreverentes e enviesados de crianças. Trabalhados em fluência musical que se sustenta em tons de aliteração e efeitos anafóricos, tais poemas contêm versos circulares atados do início ao fim por uma melodia áspera ou suave. Aqui, o seu desempenho se centra bem mais na sonoridade que alegra os ouvidos infantis, chegando a cometer versos que demonstram uma facilidade demasiada e bastante visível, do que nos conteúdos e na significação que atendem ao intelecto, como se pode constatar em “A Flor Amarela”: “Olha/ a janela/ da bela/ Arabela.// Que flor/ é aquela/ que Arabela/ molha?// É uma flor amarela.” Os versos de feição histórica sugerem uma Cecília comprometida com os movimentos políticos e sociais, caso do Romanceiro da Inconfidência, ou em aspectos fundacionais do país, como no poema de título longuíssimo “Crônica Trovada da Cidade de Sam Sebastiam do Rio de Janeiro no Quarto Centenário de sua Fundação pelo Capitam-Mor Estacio de Saa”, publicado originalmente em 1965. O capitão é flagrado em vários instantes de sua
Canções, Cecília Meireles, Editora Nova Fronteira, 224 páginas, R$ 35,00. O Estudante Empírico, Cecília Meireles, Editora Nova Fronteira, 144 páginas, R$ 29,00. Solombra, Cecília Meireles, Editora Nova Fronteira, 208 páginas, R$ 33,00.
vinda colonizadora e breve estadia no Brasil, quando é flechado e morto em plena ação de conquista guerreira: “Este é o herói sem rosto, o herói com olhos cheios/ de índios e inimigos, danças, mortandade,/ entregue a alta empresa – sem gente e sem meios –/ de dar o seu sangue para uma cidade.// De que família vem? Que nome traz?/ Estácio, Estácio foi – dos grandes Saas.” Em outra vertente, situam-se os textos místicos, contemplativos e metafísicos de Canções. Neste livro, o seu lirismo atinge um grau máximo de eficácia, sem metro definido, mas, por outro lado, sem dispensa de rima. Um lamento solitário e perplexo diante do mundo e da noite, da vida e da morte, da ausência e do sofrimento atravessa praticamente todos os versos não-titulados de Canções: “Única sobrevivente/ de uma casa desabada/ – só eu me achava acordada.// E recordo a minha gente,/ na noite sem madrugada./ Só eu me achava acordada.// Minha morte é diferente:/ eles não souberam de nada./ Só eu me achava acordada.// Mas quem sabe o que se sente,/ entre ir na casa afundada/ e ter ficado – acordada!?” Este poema trágico explicita a condição de abandono e orfandade de Cecília, que teve na infância, em pouco tempo, vários parentes próximos mortos. Ela absorvia tais acontecimentos de um modo sensato e lúcido, mas sem acomodação nem conformismo. E, nisto, demonstrava o seu preparo diante da vida, devolvendo a esta todo o sofrimento e dor em forma de poesia, numa poesia vasta e inspirada, o que a faz ser considerada, ainda hoje, 40 anos após a sua morte, a maior poetisa brasileira. • Continente setembro 2005
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LITERATURA
O ritmo em Yeats
Reprodução
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“Com uma balada na cabeça...” A forte musicalidade e uma oralidade quase intuitiva fazem da obra do poeta irlandês um desafio aos tradutores Brenno Kenji Kaneyasu Maranhão
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m 7 de janeiro de 1884, John Butler Yeats escrevia uma carta ao seu amigo, o professor Edward Dowden, na qual comentava uma certa característica de seu filho, então com 19 anos incompletos: “De que ele é um poeta, há muito estou seguro – até onde poderá chegar é outra história. Para que a dúvida possa ser resolvida por si mesma, incentivo seu desejo de ser um artista – seus maus metros se devem em grande parte ao seu hábito de compor em voz alta, manipulando, evidentemente, as sílabas ao seu gosto. Não foi preciso muito para que a dúvida se resolvesse. Em poucos anos, William Butler Yeats era tido como um dos expoentes literários da Irlanda, e a seu respeito, mais tarde, T. S. Eliot escreveria: “W. B. Yeats é certamente um dos maiores poetas da língua inglesa, e, até onde posso afirmar, de toda a literatura”. Irlanda, língua inglesa, literatura. Gradualmente, Yeats se libertou das amarras do particular, sem no entanto renegá-lo jamais. Os motivos irlandeses – seu folclore, seus conflitos, seu presente – nunca o abandonaram, e por meio deles ele os ultrapassou. Desde cedo, preocupou-se em não se deixar perder em generalizações – via, como poucos, a diferença entre o geral e o universal: este, eliminando fronteiras; aquele, ignorando-as. Escreveria certa vez: “O talento percebe as diferenças, o gênio a unidade”. Não seria exagero afirmar que no artista completo encontramos um pouco dos dois. Também com desconfiança enxergava as abstrações das quais foram vítimas Continente setembro 2005
alguns poetas vitorianos, geração que o antecedeu, e não poucas vezes expressou o receio que tinha de se isolar em sua arte and learn to chaunt a tongue men do not know (“e cantar um idioma estranho aos homens”). Sua obra poética – que vai de 1889 a 1939, ano de seu falecimento – é comumente dividida em três momentos, correspondentes cada um às etapas de sua vida: juventude, meia-idade e velhice. Inegáveis as diferenças que justificam a divisão: os poemas da juventude, alguns dos quais revelando ainda certa imaturidade na técnica e na abordagem dos motivos, dariam lugar, na meia-idade, à busca pela simplicidade e naturalidade de discurso e temas, estes mais próximos do autor e de sua realidade; essa busca alcançaria seu fim em sua velhice, marcada, também, por uma aparente despreocupação quanto ao estilo: luxo que somente aqueles que dominaram, à perfeição, sua arte são capazes de se dar. Todavia, alguns traços em comum entre as diversas fases imprimem à sua obra uma marca de continuidade, e um deles, fusão perene de busca e resultado, merecerá nossa atenção: o ritmo. O hábito de compor em voz alta, que seu pai teria apontado como um defeito, Yeats o conservaria por toda a vida. Nele, tínhamos um prenúncio daquelas que seriam duas das principais marcas de seu verso: a forte musicalidade e uma oralidade quase intuitiva. Recitada e ouvida no momento mesmo de sua concepção, não é de se espantar que sua poesia tenha como destinos naturais a voz e o ouvido. Espantoso, talvez, é o fato de que Yeats
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Herdeira das muitas e cortantes consoantes do anglosaxão, a língua inglesa presenteia suas vogais, talvez como forma de compensar essa mesma herança, com uma plasticidade extraordinária. Palavras como way e you, libertas das consoantes, parecem almejar o infinito. Yeats utiliza-se como nenhum outro dessa particularidade de sua língua, e faz surgir, desse modo, versos que se assemelham a ondas ou a curvas no ar, as mesmas curvas que Henri Bergson utilizaria, mais ou menos na mesma época, para ilustrar a graciosidade: That you were beautiful, and that I strove To love you in the old high way of love… (Em tradução literal: “Que tu eras bela, e que eu tentei/ te amar na nobre e velha via do amor”.) Recursos como esses estão indissociavelmente ligados à língua do poeta. O movimento das vogais, a ondulação das linhas e a fusão dos monossílabos uns nos outros são características do verso de Yeats, e isso implica dizer do verso como concebido em sua língua original, o inglês. Essas assertivas não são, certamente, encorajadoras para quem o deseje traduzir. A tarefa de um tradutor que se proponha a verter a música do verso yeatsiano para a sua língua bem poderia ser traição, se houvesse má-fé. Mas não há: o que se lhe apresenta é um trabalho duplo, e duplamente improvável – capturar um movimento, uma curva, um ritmo desenhado pelo poeta. E o sucesso do tradutor, se houver, será apreender do desenho um esboço; e do ritmo, sutileza irredutível às metáforas, a sugestão do movimento, a anunciação de uma curva. •
Um desenho, um esboço: The Cold Heaven (W.B. Yeats)
O Céu Gelado (tradução: Brenno Kenji Kaneyasu Maranhão)
Suddenly I saw the cold and rook-delighting heaven That seemed as though ice burned and was but the more ice, And thereupon imagination and heart were driven So wild that every casual thought of that and this Vanished, and left but memories that should be out of season With the hot blood of youth, of love crossed long ago; And I took all the blame out of all sense and reason, Until I cried and trembled and rocked to and fro, Riddled with light. Ah! When the ghost begins to quicken, Confusion of the death-bed over, is it sent Out naked on the roads, as the books say, and stricken By the injustice of the skies for punishment?
Súbito eu vi gelado o céu de vivos pássaros, E o gelo, como em chama, a congelar-se mais, E num momento sonho e peito se agitaram De tal maneira que os cuidados mais banais Se foram, e a memória restou, distanciada Do sangue outrora jovem, do amor contrariado; E logo me culpei, sem prumo e sem razão, Até que em pranto extremo, em trêmulo acalanto, Varou-me a luz. Ah! Quando o espírito se anima No seu leito de morte, é ele encaminhado Desnudo estrada afora – os livros nos ensinam – Ferindo-o injustamente os céus por punição? Continente setembro 2005
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LITERATURA
Poesia no ritmo do tempo
Roberto Pereira
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Luiz Carlos Monteiro se revelou um autor que guarda acurado conhecimento técnico, e ritmo poético próximo ao popular. Resultado pode ser visto no livro de poesias O Impossível Dizer e Outros Poemas Lourival Holanda
A
O pernambucano Luiz Carlos Monteiro lança o quarto livro de poesias
continuidade da poesia não se fez de modo tranqüilo: a poesia que no momento permanece – aberta entre a tradição e o transitório – traz, em maior ou menor grau, a marca dos grandes percalços causados pelo abalo sísmico no chão social, pela aceleração das transformações culturais. Foi um meio-século frenético, fremente. E a poesia percute o ritmo de seu tempo – ainda que o leve além. Nos meados do século, uma geração embalada com as esperanças desenvolvimentistas traduzia essa euforia na profusão de liberdades dadas às formas poéticas. Era ainda um reflexo do vivo estandarte levantado por Manuel Bandeira. Depois, o movimento concretista dava a essa liberdade um compromisso mais radical com a forma. Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Pedro Xisto e J. L. Grünewald exigiam da poesia um cuidado técnico quase exclusivo que tornava difícil evitar a tentação de cenas de formalismo explícito (Antonio Carlos Secchin). O assim chamado poema-processo, abolindo a palavra, era o extremo do arco vanguardista. A poesia de Luiz Carlos Monteiro vem mediada por essa tradição. (Crueza do tempo: as vanguardas referenciadas e já recuperadas enquanto tradição). Sua dicção poética é um desafio entre receber o rigor recente e dizer o descompasso do seu mundo imediato. Buscar um tom condizente com o seu tempo, particularmente rico de tensões. Isso já havia levado outros poetas a romper com o cuidado quase performático dos concretistas, em prol de uma participação mais
LITERATURA
imediata. Mário Chamie (Poema-Praxe, 1962) conclamava a participação do poético nas formas de atividade política. Um poeta de Pernambuco, Solano Trindade, trazia em sua dicção a mesma generosidade (na coletânea Violão de Rua, 1963). De modo mais tarde mais nuançado, tinha sido também o empenho de Ferreira Gullar (A Luta Corporal, 1954). A pedida aqui é que se levante a palavra como um punho. Volto à correspondência entre o tom que um poeta traz e a necessidade de seu tempo. Há um silêncio em Luiz Carlos que é como a crítica de sua própria voz – e sinal de seu tempo. Ele havia dado conta disso, num poema a Poe: “de como escrever a poesia de uma época/ e a saga da inteligência moderna”. (p.32). Há um tempo para ser concretista – e uma circunstância, mais dura, para fazer eclodir a raiva da geração-mimeógrafo. (Por isso, há, em muitos momentos, mais firmeza de propósito que elaboração de linguagem. E muita coisa se perde, no amontoado de imagens e repetições mal geridas.) Surgida de uma urgência, essa poesia era marginal porque posta à margem das edições correntes; marginal porque mais independente da linha política; e marginal porque do outro lado dos experimentalismos concretistas. Mais que um tom, trata-se aqui de uma atitude diante dos fatos. Luiz Carlos guarda, de leituras e paixões poéticas, um acurado conhecimento técnico - e, ao mesmo tempo, um ritmo próximo ao popular, leve. A poesia vem numa outra formulação porque o tempo é outro: até os ventos recentes varrerem a tranqüilidade e o conforto governamentais, a economia e a poética do possível ainda regem nosso cotidiano. Porque a poesia é uma teimosia vital, um exercício sempre renovado, de humanização. Os poetas voltam, como a vida, e enriquecem o chão social ao propiciarem possibilidade de essa cultura se ver diversa e se refazer. A despeito da violência, do desgoverno, da exploração, do desencontro do país. Criação das possibilidades do dizer, que levam a conceber e buscar, a partir do presente, um alargamento do possível. Ou, como melhor diz o poema, “Algum outro lugar: onde tudo haverá de se dar/ de uma outra forma que aqui nunca vista”. O poeta delineia seus fantasmas num traço de luz. Porque a linguagem poética é aquilo de que se fala e também aquilo de que não se pode falar: “As palavras que eu não te disse/ e os gestos que não foram feitos/ na contração dos meus lábios/ e na escuridão do meu peito/ se escondem” (p.9). Há em Luiz Carlos o pudor da palavra – e a secreta crença de que ela possa recriar o real. Poesia é, portanto, necessidade de encarnação: de dar ao corpo social um certo sonho que imante o mundo, como um corpo amado imanta e ilumina o desejo de melhor em nós. “É tão ínfima a distância/ quanto viva a lembrança/ E é tão vivo e tão próximo teu corpo/ que não se perde a esperança”. (do livro Poemas – publicado pela Editora da Universidade de Pernambuco, 1999, p.51). A poesia insufla o espírito no caos cotidiano. Com o propósito de criar todo um mundo de possibilidades e alternativas – que a rotina encobre. O mais grave, face aos tempos duros que atravessamos, seria a submissão ao caos – por desistência de opor a ele a criação de um sentido que nos afaste da sensação mediana do viver: quando, cada manhã, O Impossível Dizer e Outros no cansado espelho familiar, não é mais que um mero Poemas, Luiz Carlos sobreviver-se. A poesia de Luiz Carlos Monteiro tende ao Monteiro, Edições Bagaço, 88 páginas. Preço sob leitor atual um espelho dos desacertos do tempo – e o milagre consulta. dos recomeços. •
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As cores do sonho refletindo mistérios de lassidão e loucura – violentos lampejos a recortar o silêncio no fulgor das manhãs.
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PROSA
O que pensava Monterroso? Luiz Arraes
“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” A. Monterroso Augusto Monterroso (1921-2003), guatemalteco, é considerado um dos maiores escritores latino-americanos do século. Seu mais famoso conto, considerado sua obra-prima, é tido como o mais curto jamais escrito. Não é. O conto “nada” de Raimundo Carrero, publicado na Antologia dos Contos Mínimos, merece este título.
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PROSA
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Variação Quando acordou, os olhos pregados, a vista turva, a boca seca; ela ainda estava lá, ao pé da cama, segurando com as duas mãos a camisa dele com a marca de batom na lapela.
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Variação Quando acordou, viu a mulher com um sorriso aberto e a bandeja do café da manhã, como era de costume.
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Variação Quando acordou, pensou que havia se transformado em uma barata; mas rapidamente percebeu que era só uma impressão. Não precisava escrever um livro. Variação Quando ele acordou – e o tempo tem seu dedo nisso Vestiu-se e foi ao trabalho. o dinossauro ainda estava lá. Variação Ele, que precisava acordar cedo, dormia para sempre o Variação sono eterno. Ela permanecia em pé, sem cansar-se. Por Augusto Monterroso sonhava repetidamente com um horas, assim ficou, com a faca ensangüentada abraçada dinossauro, que o espreitava ao pé da cama. Um dia, decidiu que aquilo era um conto e escreveu-o. em seus braços.
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Variação Quando acordou, o dinossauro não estava lá. Não mexera na comida, o que lhe causou estranheza. A lavagem que enchia a gamela dele já exalava um azedume. Com a preguiça que eu estava, limpar aquilo era a última coisa que eu queria.
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Variação Quando o Dinossauro acordou, ele ainda estava lá.
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Variação Os dinossauros, como se sabe, foram extintos há séculos. Não se sabe por que uma espécime vive escondido na casa do escritor A. Monterroso. O escritor gosta de, ao acordar, ver que ele ainda está lá.
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Variação O dinossauro não sobreviveu mais que poucos dias à morte do escritor Augusto Monterroso. Dessa forma, descobriu-se o que as ossadas existentes não revelaram: os dinossauros eram dotados de sentimentos.
Variação Naquela noite, ele não conseguiu pregar os olhos. Viu o Variação dia nascer, conversando com o dinossauro. Quando ele acordou, a primeira coisa que fez foi: escovar os dentes e barbear-se. Em seguida tomou baVariação Quando o dinossauro acordou o outro dinossauro nho e vestiu a sua velha farda, foi ao trabalho como de costume. ainda estava lá.
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Variação Quando ele acordou, o outro ainda estava lá.
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Luiz Arraes é pernambucano, contista e autor, entre outros títulos, de O Remetente, O Que Faz Um Homem Rir? e O Desaparecido (todos pela 7 Letras Editora). Os contos acima fazem parte de Anotações para um Livro de Baixa Ajuda, a ser lançado este mês.
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Poemas de
Maria Lúcia Lauria Chiappetta
Pálidas mãos À memória de Josefina Aguiar
Pálidas mãos ressurgem, quando o véu do tempo te oculta, lívida, no ataúde. E atendias à amplitude nos sons eternecidos: noturnos, sonatas repercutiam em recitais e magistrais concertos ainda refluem um acalanto nos sonhos amantes que vigoram. Tecias no teclado, sonoridade e limpidez, em clarões intempestivos que cobriam o ambiente de ressonâncias.
Nesta fenda que se dissemina, por ausência invernosa, cremos que o cultivo, na presteza do talento, levantará ânimos no pulsar agraciado. E nós, uníssonos, na cidade do Recife, pela luz que emanaste iluminados permaneceremos na clareira que se alevanta, porque acendeste nos sequiosos a grande e secreta chama.
POESIA
verduras no ocaso
Lâmpadas e Dádivas
Não se espantem: sou a rica mendiga que espalha auroras, que arrasta vendavais de doçuras, que empresta o sol ao ocaso.
Esta rosa dolorosamente amarela amordaçada de auroras pendida, estendida neste torçal de jardim afirma-me como absoluto sonho que o misterioso amor ronda as minhas entranhas e que o jardim se abre em copas e que tu aí estás a me estenderes os dons.
Não duvidem: creio no envio dos desígnios (venho de longínquas esfinges): velo as coisas do amor, ouso as palavras, revestidas de seara. Sou da montanha e suas levas, da saudade, no aguardo de menina, das verduras amanhecendo no cercado, de um adeus em tons de prata. O limite do ser é tão voraz choro meu hino desgarrado: esta lágrima brilha no vórtice da flor. Desculpem-me a voz em semente: Vejo o brilho das estradas, na aguda serra deste olhar.
Mas, enquanto avanço sobre este atapetado espelho de rubras maçãs em não pressentidas colheitas, olho-te em cisma: as verdades da vida descobertas, o peito mudo em anseio de destino. E presa em dádivas, aguardo-te na esquina desta estrela luminosa, audaz, rouca de sol e de verbenas e sento-me sobre este enigma enevoada de brumas, entre as marcas desta lâmpada cosida às minhas vestes.
Maria Lúcia Lauria Chiappetta é poetisa recifense, autora de Corcéis da Espreitada Noite e A Colheita do Silêncio, entre outros.
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AGENDA/LIVROS
RESENHAS Palavras em negrito A tarja vermelha com os dizeres “autor revelação da Flip 2004” na capa do novo livro do escritor pernambucano Marcelino Freire, Contos Negreiros, é merecida. A obra se mostrou forte e autêntica, trazendo, em seus 16 contos, textos carregados de humor e ironia, em que são retratadas as diversas formas de preconceito racial e social. Marcelino se inspira em clássicos para fazer uma releitura moderna do preconceito, abordando, principalmente, questões como o homossexualismo e o conflito de classes, usando um tom engajado na narrativa. Contos Negreiros, Marcelino Freire, Record, 126 páginas, R$ 21,90.
O primeiro anti-herói Lazarilho de Tormes, primeiro romance picaresco, tem edição bilíngüe com perspicaz estudo crítico Avô de João Grilo, Cancão de Fogo, Pedro Malasartes, Macunaíma, Quaderna e do tio Atauhalpa, entre outros personagens de uma vasta progênie, Lazarilho de Tormes é o primeiro anti-herói da Literatura. Antes dele, Ulisses já constituía a persona da astúcia, mas sua linhagem nobre e sua bravura o colocavam no panteão dos autênticos heróis. Todos os outros citados, entretanto, com exceção parcial do personagem de Ariano Suassuna, vêm de baixa extração social e buscam a ascensão ou a simples sobrevivência pelas artimanhas aprendidas ao longo da vida, quase sempre às custas de bordoadas, usando estratégias em que a ética pode ser dobrada pela necessidade. Lazarilho de Tormes, primeiro romance picaresco, escrito por um anônimo, cujas edições mais antigas datam de 1554, é considerado obra-prima da Literatura espanhola. O famoso episódio da divisão das uvas entre o cego esperto e o guia trapaceiro ouvi-o, em criança, contado pela avó – num exemplo de apropriação de obra pelo imaginário popular. Denúncia da hipocrisia social da época, especialmente da Igreja Católica e da aristocracia falida, Lazarilho rompia com o modelo de romance de cavalaria e nisso serviu de inspiração ao próprio Cervantes na construção do Dom Quixote, em que é citado pela boca de Ginés de Pasamonte, no capítulo 22 (ao ser questionado sobre seu livro: “Tão bom que há de enterrar Lazarilho de Tormes”). Uma nova edição da preciosa narrativa acaba de ser lançada no Brasil, bilíngüe e com abalizado estudo crítico de Mario M. González. (Homero Fonseca) Lazarilho de Tormes, anônimo do século 16, Editora 34, 224 páginas, R$ 32,00. Continente setembro 2005
Vidas amargas Em sua segunda novela, Davi Arriguci Jr. reconstrói o mundo da infância na cidadezinha estagnada do interior em que as pessoas se engolfam no universo sufocante de memórias em ruínas e onde os jovens escolhem entre a embriaguez e a masturbação ou ambas. O autor faz um jogo narrativo em que as vozes do narrador e das personagens se superpõem, com efetivo efeito rítmico. O livro é todo ilustrado pelo artista Paulo Pasta e, na capa, ao invés do título, há o desenho impressionista de um rocambole. O Rocambole, Davi Arrigucci Jr., Cosacnaify, 120 páginas, R$ 36,00.
Obra de arte A terceira obra de ficção da psiquiatra e escritora Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque é um romance genealógico, tecendo com delicadeza e requinte um mergulho nas memórias de uma família rural pernambucana. Dele, afirma o crítico Wilson Martins, com entusiasmo: “Luz do Abismo é uma narrativa polissêmica, se esta for a expressão apropriada, não só pelas linhas que se cruzam e entrecruzam ao redor do núcleo central, mas também pela sólida estruturação que as unifica em obra de arte literária.” Luz do Abismo, Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque, A Girafa, 252 páginas., R$ 31,00.
Iniciação a Freyre
A polêmica obra-prima de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, é aquele tipo de livro mais comentado do que lido. Análise multifocal da formação da sociedade patriarcal brasileira, o calhamaço amedronta os menos afeitos à leitura. A antropóloga Fátima Quintas teve a idéia de reunir suas melhores frases, numa eficaz iniciação ao estudo da obra freyriana. Catalogou cerca de 1.000 frases, como “a virtude da senhora branca apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra” e “o açúcar matou o índio”. As Melhores Frases de Casa-Grande & Senzala, seleção de Fátima Quintas, Atlântica Editora, 330 páginas, R$ 35,00.
RESENHAS
AGENDA/LIVROS
Viagem até o ser Até que ponto poesia e filosofia se aproximam? Para Marco Aurélio Werle, o conhecimento e a interpretação da poesia de Hölderlin foi fundamental para Heidegger formular uma questão básica de todo seu pensamento: o sentido do ser. A certa altura de sua trajetória, o filósofo percebe que o pensamento conceitual não bastaria para desenvolver a questão do ser; para transitar pelas regiões tortuosas do ser, ele vai precisar da linguagem poética que encontra emHölderlin. Poesia & Pensamento em Hölderlin e Heidegger, Marco Aurélio Werle, Editora Unesp, 212 páginas, R$ 39,00.
Quatro escritas O jornalista e ensaísta Daniel Piza traça neste livro uma espécie de memória de sua formação literária e existencial, centrando seu foco na obra de quatro escritores: o brasileiro Machado de Assis, o tcheco Franz Kafka, o norte-americano Edgar Allan Poe, e o polonês de nacionalização inglesa Joseph Conrad. Em Machado, Pisa identifica a tentativa de traçar um retrato realista do Brasil; em Poe, o advento da consciência moderna em arte; em Conrad, a tentativa do homem em dar um sentido à sua existência; e em Kafka, uma lucidez implacável. Mistérios da Literatura, Daniel Piza, Mauad Editora,120 páginas, R$ 27,00.
Visões do cartaz Reedição de uma obra que praticamente esgota o assunto, este livro de Abraham Moles aborda o cartaz sob diversas perspectivas: social, cultural, econômica e técnica. Questões como o futuro do cartaz, o cartaz na cidade, publicidade e consumo, o emissor e o receptor, são amplamente dissecadas, indo-se desde o cartaz como objeto funcional de venda até como obra de arte. Ao integrar tantas angulações diferentes, o autor consegue interessar desde artistas gráficos até sociólogos, teóricos da comunicação e economistas, urbanistas e sociólogos. O livro vem com ilustrações que facilitam a compreensão dos argumentos. O Cartaz, Abraham Moles, Editora Perspectiva, 258 páginas, R$ 32,00.
Poeta original
O poeta argentino Aníbal Cristobo (Buenos Aires, 1971) reuniu neste livro sua produção poética de 1997 a 2004. É uma poesia substantiva, que oscila entre a clareza e o hermetismo, da mesma maneira como se equilibra entre o registro erudito e referências à cultura de massas. É também uma poesia cosmopolita que dissolve qualquer traço local num panorama globalizante. Outro aspecto dos textos é a mistura de visualidade com anotações rápidas das estranhezas que se escondem por trás do cotidiano. Para Cristobo, “a poesia não é/ tudo; há/ a fuga, o gelo, as/ árvores em chamas”. Miniatura Kinéticas, Aníbal Cristobo, Cosacnaify, 174 páginas, R$ 25,00.
Recriando um tempo perdido Umberto Eco cria romance ilustrado em que mapeia o imaginário dos jovens às vésperas da Segunda Guerra Combinando memória afetiva com cultura de massas, Umberto Eco constrói um romance-tributo ao nascimento do pop: as revistas em quadrinhos, as canções populares, o cinema norteamericano, a literatura policial e de aventura, ou seja, Mandrake, Sherlock Holmes, Fred Astaire, O Corsário Negro, Buffalo Bill, O Conde de Monte Cristo, Bing Crosby, Ali Babá. O livro parte de uma doença que faz o personagem principal, Yambo, perder a memória. Recolhido numa casa de seu avô, nas montanhas, encontra um acervo de revistas, jornais, gravuras e discos que o fazem retornar à infância e início da juventude, nas décadas de 20 e 40, quando a Itália estava entrando na Segunda Grande Guerra. A recriação de sua memória, a partir destes itens, é o recurso usado por Eco para desfilar sua erudição e elaborar comentários inteligentes. Retorno nostálgico, encantamento, curiosidade e inocência, num vaivém hipnótico, conduzem o leitor junto com Yambo, em busca da memória de um tempo perdido. (Marco Polo) A Misteriosa Chama da Rainha Loana, Umberto Eco, Editora Record, 456 páginas, R$ 49,90.
Universo beat
Desde garoto, Sam Kashner se sentiu fascinado com o mundo dos beatniks, onde pontificavam Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac, entre outros. Assim, quando descobriu que Ginsberg havia criado a Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, convenceu seus pais de que deveria fazer um curso ali, antes de entrar para a faculdade. O resultado foi a amizade com seus ídolos e que resultou neste livro, um registro daquela experiência, cheio de revelações não censuradas dos hábitos de uma turma para quem sexo, álcool, drogas e literatura eram consumidos sem freios. Quando Eu Era o Tal, Sam Kashner, Editora Planeta, 354 páginas, R$ 39,90. Continente setembro 2005
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CINEMA
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Persona Greta No centenário da atriz que se tornou o mais duradouro mito da história do cinema, uma recordação do encontro, há 20 anos, com o seu fantasma de carne e osso Fernando Monteiro
O "fantasma" de carne e osso que inspirou Fernando Monteiro Reprodução
Foi a frase “Greta Garbo, quem diria, acabou de se sentar...” que, há 20 anos, eu murmurei para a minha mulher, numa tarde de julho de 1985. Estávamos caminhando ao longo das margens do Hudson, num daqueles passeios arborizados que acompanham as amuradas do rio novaiorquino, quando Cristina propôs que sentássemos um pouco. Vimos um sólido banco de ferro, repintado de verde, e esperávamos ficar sozinhos nele, na quietude daquela área onde os habitantes da megalópole podem tomar o sol esquivo entre choupos e tílias. Ali – mais ou menos da 51 para cima – eram ruas menos permeadas de turistas, naquela época, e, suponho, não parecíamos com eles, sem sacolas de compras e sentados não para os lanches improvisados dos cucarachas. Não me passou pela cabeça, então, a proximidade de um dos endereços mais gritantes de silêncio do cinema: o de Greta Lovisa Gustafsson, número 450 da rua 52 de passantes indiferentes uns aos outros, nos domingos e nos outros dias da semana (se você não for um daqueles vagabundos profissionais, olhando para o nada como se olhasse para as portas do fundo de alguma antiga vida). Foi então que veio sentar-se, no mesmo banco, uma senhora também cansada. –“É ela. Eu juro. É ela, sim!” – foi o meu murmúrio seguinte, para a incrédula Cristina. –“Quem?” –“Greta. Greta Garbo”. Eu não podia me enganar com aquele formato do rosto e com a boca, embora o nariz... Não, não era nada que se pudesse apontar: seria, antes, a reminiscência de uma aura magnética, o resto do halo da “Divina”, naquela face devastada. Sei lá por que, mas algo da sua personalidade misteriosa estava ainda presente, e não deixava dúvidas sobre você estar diante da Estrela Absoluta dos Céus Frios da Perdida Idade de Ouro do Cinema, persistente nas retinas. Por falar em retinas, seus olhos – a prova definitiva – estavam infelizmente velados pelos óculos escuros, de modelo antiquado. Apoiava-se numa bengala preta, e se aproximara com a leve hesitação de uma senhora bem-educada, para se sentar justo no nosso banco lustroso da tinta nova, onde o ferro estivera, quem sabe, tão descascado quanto ela própria, Greta Garbo.
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CINEMA
Jamais iria romper com as derradeiras regras da educação e apresentar-me como cinéfilo e perguntar a Greta Garbo: "Por que razão a senhora abandonou o cinema no auge da fama?"
“Greta Garbo?” Minha mulher não acreditava. Mas, era. Era a Garbo, aquela anciã em quem ninguém estava prestando atenção, exceto nós – com o cuidado extremo dos disfarces inúteis para olhos talvez implacáveis, atrás daquelas lentes grossas. O canto esquerdo dos seus lábios, num ricto, passou a fugidia impressão da pessoa que fica nervosa, ao se saber reconhecida. “Não olhe assim!”. Cristina tinha razão. Eu estava a examinar muito diretamente a estranha que ela tentava proteger da minha curiosidade. De pouco adiantava, entretanto: qualquer um ficaria vidrado na figura de cabelos escorridos, sem estilo (aparados pela própria?) e sem o brilho que, um dia, haviam ostentado na noite artificial dos estúdios. Estava vestida com o desleixo de quem saíra apenas para esticar as pernas e caminhar ao longo das amuradas, calçada com tênis meio sujos, talvez grandes demais para uma mulher. Minha atenção era, portanto, fascinada e irreprimível. Ou maleducada, numa palavra que são duas (você deixa de saber contar, diante do fantasma de uma Diva). E daí? Você só vai estar sentado junto de Greta Garbo uma vez – se é que vai estar, alguma vez na vida. Ficamos ali, portanto, trocando olhares oprimidos pela certeza de saber quem era aquela senhora pálida e descolorida como o casaco machucado que ela usava sobre o corpo antigamente escultural, com mais um lenço desbotado na cabeça... Quando o tirou (para receber o sol atenuado), eu tive, então, a mais plena certeza: era, de fato, a atriz retirada do cinema há 44 anos, puxando do bolso um saco de milho para dar aos pombos privilegiados, alguns dos quais acostumados, acercando-se para se alimentar das mãos de dedos nodosos – como pequenos galhos castigados – de um dos seres humanos mais belos e mais enigmáticos que já haviam nascido sobre a superfície do planeta, quase tão exausto quanto a solitária senhora de Nova York, quem diria, Greta Garbo, 80 anos, acabou se sentar... I want to be alone... Muitos garantiram que ela nunca disse isso, “eu quero ficar só”. Sua frase (a um jornalista) teria sido: I want to be let alone – “eu quero que me deixem sozinha”. Ou seja, em paz (ela que tinha horror de entrevistas e mexericos). Eu sabia do reparo feito à frase tão famosa, e podia estar olhando, sendo indiscreto, até incômodo etc., porém jamais iria romper com as derradeiras regras da educação e apresentar-me como cinéfilo e perguntar a Greta Garbo: “Por que razão a senhora abandonou o cinema, no auge da fama?” Claro que era humanamente impossível indagar isso, sem mais nem menos, à gentil alimentadora de pombos tristes entre seus pés (ela sorrindo, a sombra daquele sorriso iluminado pelos mais aclamados mestres da fotografia).
Continente setembro 2005
CINEMA Photos 12/AFP
Tudo que eu fazia era olhá-la, sem tentar virar o rosto ou disfarçar – como se olha para o busto da rainha Nefertiti, no museu egípcio de Berlim. Só que ali, próximo das águas Hudson, estava uma contrafação da beleza imóvel da genial escultura da 18ª dinastia: um rosto vivo, e não de pedra calcária, cujas linhas devastadas pouco correspondiam àquelas imortalizadas em 24 quadros por segundo nas telas e no rio do tempo, que faz escorrerem os minutos, as horas, os meses, os anos e as décadas, sepultando tudo sobre a pedra-pome de Pompéia há séculos soterrada. Greta Garbo – então, você existe? E nasceu de mulher, como se diz na Bíblia, no dia 18 de setembro de 1905? Cresceu num bairro pobre, a terceira filha de um gari de Estocolmo? Perguntas possíveis. As respostas – bem, as respostas poderiam variar um pouco, de acordo com o humor da jovem sueca, cujo primeiro emprego havia sido a mais que subalterna função de ensaboar os rostos dos clientes de uma barbearia. Você ainda se lembra do seu primeiro filme longo? Eu sei qual foi (caso você já tenha esquecido): Pedro, o Vagabundo, uma comédia dirigida por Erick Petschler, em 1922. Com o pouco dinheiro que ganhou nesse filme ridículo, Senhora dos Pombos da Paz Impossível, você foi estudar na Real Academia de Arte Dramática, onde seu belo rosto anguloso logo chamou a atenção de Mauritz Stiller (1883-1928), cineasta nascido na Finlândia, e não na Suécia, como muitos imaginam. Foi Stiller quem a dirigiu num filme baseado num livro de Selma Lagërlof – A Saga de Gösta Berling – que chamou a atenção para a novata. Mauritz queria chamá-la “Mona Garbor”, nos letreiros onde você mesma escolheu chamar-se Greta Garbo (e não Garbor). O sucesso de Gösta Berling a levou para as mãos do diretor alemão G. W. Pabst. Com ele, você fez o seu segundo filme – Rua das Lágrimas (1925) –, porém Stiller a recuperou para si, quando recebeu, naquele ano, convite de Louis B. Mayer para trabalhar em Hollywood. Você se lembra? O seu descobridor impôs,
Cartaz de Romance (1930), do diretor Clarence Brown
Photos 12/AFP
Cena de Ninotchka, 1939
Continente setembro 2005
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CINEMA ao produtor, uma única condição para viajar rumo à loucura da América: contratar também a “querida Greta”, com salário de 300 dólares por semana. Quantas “verdinhas” mais você terá ganho, minha linda sovina, para aparecer em mais 24 filmes, na maioria grandes sucessos de bilheteria? O mordomo Gustav, serviçal na sua mansão de Beverly Hills, mais tarde iria revelar: “Eu nunca vi Miss Garbo comprar um vaso para a casa; ela me dava 100 dólares mensais para a comida e isso era tudo; se eu comprasse algo a mais, ela reclamava como uma caixeirinha”. É verdade, senhora? E é verdade, também, que você nunca amou ninguém? Nem o astro de A Carne e o Diabo, aquele rapaz de bigodinho chamado John Pringle? Ídolo da tela com o nome de John Gilbert, ele chegou a comprar um palácio em Los Angeles e um iate de 200 mil dólares, para recebê-la na terra e no mar. Deu em água: você desapareceu, em 1927, depois que ambos atuaram em Love, a primeira versão de Ana Karenina. Gilbert ficou esperando, durante anos, até se afogar em uísque, depois de filmar Ana, de novo, consigo, oh, Senhora Sempre Sozinha. Você não amou nem sequer aquela amiga íntima, Mercedes de Acosta, roteirista e aristocrata de luminosa inteligência? (Você admirava as mentes brilhantes.) E, confesse, gostava mais das mulheres do que dos homens. E mais dos jogos de espírito do que dos prazeres do corpo? O que sentiu, no fundo, por “Stoky”? (Se ninguém adivinha, esse foi o apelido que ela pôs no maestro Leopold Stokowski, seu amante 23 anos mais velho). E o fotógrafo inglês Cecil Beaton – que todos chamam de o seu “último amor” – poderia lhe dar prazer? Ele que, sim, preferia os rapazes, mas viria a abrir exceção, em 1932, para amar uma única mulher em toda a sua longa carreira de paixões masculinas? Vocês dois nunca foram (todo mundo sabe) “apenas bons amigos”, por favor. A senhora passou o final da guerra com Beaton, e, já envelhecida, fez cruzeiros seletíssimos com ele, nos mais luxuosos transatlânticos gregos. Até que acabou (você acabou). Senhora Dureza, quantas vezes luziu o diamante do seu coração gelado do norte europeu? Cecil, o artista delicado, fotografou-a como ninguém. Dizem que você possui todas essas fotos fechadas num arquivo. E também dizem que Beaton, para os melhores
Photos 12/AFP
Rainha Christina, 1933 Continente setembro 2005
Reprodução
amigos, reconhecia ser você “uma excêntrica e uma chata” que ele amara sem restrições, até sofrer um derrame em 1974, quando ficou semiparalítico e com a fala travada, na Inglaterra. Um dia, anunciaram-lhe a visita de Miss Greta. Ele autorizou, e ela subiu as escadas de mármore, entrou no quarto do doente, para uma conversa por sinais e palavras truncadas do homem de robe de chambre na cama estilo Tudor. Depois, a atriz de Ana Karenina assinou o livro de visitas (que o educadíssimo Beaton disponibilizara no saguão repleto de obras de arte). E nunca mais se viram. Para se livrar de algumas dívidas, a sua amiga Acosta escreveu um livro de memórias que consta ter irritado a senhora profundamente, no seu retiro do apartamento da rua 52 aqui perto – isso procede? Você não desejava que fossem divulgadas coisas como a pequena Greta se ver como um “homenzinho”, desde a infância, quando se referia a si mesma na terceira pessoa, como “ele”... Enfim, minha cara senhora, quem é ou, melhor, quem foi você, mito vivo e incomodado com meus olhares insistentes? Mas ela já não estava ali. Com dificuldade que não pedia por qualquer ajuda, Greta Garbo havia se levantado do banco de ferro e partido, com seu caminhar inseguro, firmando a bengala para prosseguir rumo à solidão escolhida. Cinco anos depois, iria falecer num hospital de Nova York, no dia 15 de abril de 1990, mais só do que jamais havia sido. •
Greta Garbo em uma das raras fotos tiradas na sua fase madura, pelo fotógrafo e então namorado Cecil Beaton
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ARTES Fotos: Divulgação
Uma conjugação mágica
A artista plástica Edineusa Bezerril reafirma sua opção pela pintura, mostrando quadros em que o colorido oscila entre a efusão e a contenção Marco Polo
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J. M. Bezerril
o longo de 27 anos, a caruaruense Edineusa Bezerril, radicada no Rio de Janeiro desde 1971, vem percorrendo, com inquietação, os caminhos da pintura. Utilizando tinta acrílica e lápis sobre tela, papel ou cerâmica, a artista vem criando um mundo imaginário, no qual realidade e sonho se misturam. Figuras humanas e bichos são presenças constantes em seus quadros, em meio a um colorido que oscila harmonicamente entre a efusão e a contenção, em composições quase sempre dinâmicas. Com individuais em diversas cidades brasileiras, além de já ter exposto nos Estados Unidos, França, Holanda, Suíça e Argentina, Edineusa também vem experimentando a ilustração de livros, tendo participado de Outros Olhos, reunião de crônicas de Adriana Falcão, editada pela Planeta Jovem. Em sua nova série, Ah, sim. Existe em algum lugar, Edineusa Bezerril está explorando antes de tudo a memória afetiva. São casais e sobretudo mulheres que habitam estes quadros, mais plácidos que trabalhos anteriores, como a série Fragmentos, de 1999. Mas o que marca em definitivo a trajetória da artista per-
Edineusa em seu ateliê, em Santa Teresa, Rio
Fotos: Flávio Lamenha
Nesta e na outra página, trabalhos sem título, em acrílica e lápis sobre papel
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Ao lado, trabalho em cerâmica. Abaixo e na outra página, obras sem título, em acrílica e lápis sobre papel
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nambucana é a opção radical pela pintura, mesmo diante de um cenário que tem privilegiado quase que exclusivamente o conceitual, a performance, a instalação. Conforme diz o poeta e crítico Ferreira Gullar, “os quadros de Edineusa Bezerril vêm reafirmar o fato de que quando há pintor (ou pintora) há pintura. Ou seja, a equivocada tese, difundida de algum tempo para cá, de que a pintura morreu, está tacitamente contestada nas obras desta artista como na de outros pintores que souberam criar, com domínio técnico e imaginação, o seu próprio universo pictórico. Sem retórica, mas com admirável consistência, Edineusa constrói seus quadros, valendo-se de uma conjugação mágica de cores e linhas, dos volumes e luz, de nuances e de súbitos contrastes, quando alteia a voz quase sempre mansa e densa, que está mais para o silêncio que para o grito”. •
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Weissmann: rigor e vôo A escultura brasileira ganhou nova dimensão depois que nela surgiu e floresceu a obra de Franz Weissmann, seguindo uma das tendências escultóricas próprias do século 20
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descobrir a matéria como uma modalidade do espaço e vice-versa. E desse modo, a oposição massa-espaço torna-se uma relação dialética que abre ao escultor um campo novo de ilimitadas possibilidades. Nessa linha de indagação, há agora o vazio, o espaço indeterminado, e é dentro dele que nasce – como uma planta – a escultura de Franz Weissmann. E que, ao nascer, cria um novo espaço – um espaço humano no limite do espaço natural. Uma delicada transfiguração que parece buscar a justa medida do homem e da natureza, do imaginário e do real, sem violência e sem retórica. Uma poética do espaço que é, ao mesmo tempo, uma ética da expressão: o mínimo de recursos para que, sem ênfase, a poesia, a beleza, enfim, o espírito do homem se construa fora dele, no ar, aqui, agora, no espaço da cidade. Um audacioso exercício nM
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ma coisa – uma pedra, por exemplo – é uma indevassável concentração de matéria. A vista não a penetra, a luz não a penetra. O escultor encontra nela o seu contrário, a sua negação. Ela é massa, peso, matéria inerte. Incutir-lhe vida foi o desafio a que ele se propôs: transformou a pedra em atletas, deusas, personagens de um mundo alegórico que a História se encarregou de dissipar... O homem foi de novo devolvido ao real – massa, peso, opacidade. A sua luta agora se dá nos limites da percepção, sem mitologias. É o começo da escultura moderna: Brancusi, Boccioni, Pevsner, Gabo, Max Bill... Franz Weissmann, austríaco de nascimento e brasileiro por opção, veio juntar-se a essa família de radicais transformadores da matéria. Eles são os recuperadores do espaço – espaço interior à coisa, a sua massa compacta. Começam por perfurá-la e por
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Franz Weissmann com uma de suas obras na oficina Pontual, no Rio, em 2003
Divulgação
TRADUZIR-SE
da liberdade em que o artista se põe incessantemente à prova: o espaço vazio oferece-lhe todas as direções, aceita toda e qualquer forma. Sem a referência figurativa, sem delimitações a priori, ele está entregue unicamente a sua capacidade de intuir as significações potenciais da forma abstrata no espaço abstrato, vale dizer, torná-los concretos, de inseri-los no espaço social como expressão estética. A escultura de Franz Weissmann é, assim, uma permanente redescoberta do espaço e da forma que, a cada nova obra, parecem despontar pela primeira vez diante de nossos olhos. Foi a Unidade Tripartida, de Max Bill, exposta na I Bienal de São Paulo, em 1951, que mudou o rumo da arte de Franz Weissmann, até então um escultor figurativo em cujas obras os elementos naturais apareciam mudados em retas e curvas. O conhecimento da obra do escultor suíço reveloulhe novas possibilidades da expressão escultórica, que adotou em parte, sem, no entanto, desvincular-se inteiramente da linguagem anterior. Pouco depois, passou a trabalhar com chapas de metal ora planas ora cilíndricas, criando estruturas que já em nada aludiam ao mundo natural. Nos anos que se seguem, Weissmann elabora e requinta essa expressão, descobrindo ritmos cada vez mais econômicos e incisivos para energizar o vazio. Chega finalmente a conceber estruturas de grande leveza, que oferecem ao espectador uma multiplicidade de perspectivas, de ângulos de visão, reveladores das inesperadas e ricas direções do espaço redescoberto. É a partir de então que Weissmann, chegado
a essa economia limite da forma, volta a enriquecer suas construções, já agora preocupado com as orquestrações desses ritmos de linhas e vazios. Mas são muitos os caminhos que ele descobre, as inovações que introduz, sem alarde, em suas esculturas. A descoberta do espaço adquire um significado mais substancial, à medida que encontra a unidade interior entre a forma e o vazio, uma relação dialética, sutil, Weissmann em que dá as suas obras um signiseu ateliê de ficado novo, como se, de súbito, Laranjeiras, no Rio, em 1958 forma e espaço se mostrassem a nós pela primeira vez. A escultura brasileira mudou, ganhou nova dimensão, depois que nela surgiu e floresceu a obra de Franz Weissmann. Não há dúvida de que essa mudança seguiu uma das tendências escultóricas próprias do século 20 e que se caracteriza pela substituição do volume pelo plano e o fio, pela valorização do espaço e não da massa. Trata-se de uma tendência internacional, mas dentro dela, Weissmann é uma voz de inconfundível lirismo. E se esse lirismo expressa-se na delicadeza e ambigüidade de volumes virtuais e planos de cor, adquire ainda maior sutileza nos Fios que ele reuniu nessa última mostra individual. O fascínio de Franz Weissmann pela relação fio-espaço pode-se perceber já em alguns de seus trabalhos figurativos dos anos 40-50, mas só depois que livrou o fio de toda referência figurativa, pode fazer dele um instrumento de exploração e revelação das múltiplas dimensões do vazio. Costumo dizer que uma das características da arte do século 20 foi a eliminação da fantasia em favor da construção racional. Isto é verdade, até mesmo para a escultura de Weissmann, mas só até certo ponto, pois ele soube, aos poucos, superar a racionalidade simples das primeiras obras construtivas para, finalmente, fazer dela instrumento de sua invenção espacial. Na verdade, as esculturas aqui expostas mostram-nos como o escultor consegue, sem romper a lógica da forma racionalmente concebida, revelar-nos sua potencial ambigüidade. Com sua morte, em julho passado, a arte brasileira perdeu um mestre. • Continente setembro 2005
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AGENDA/ARTES Imagens: Divulgação
Continente artístico Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, explora todas as formas de artes visuais da América Latina
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Explorando o tema Histórias da Arte e do Espaço, a 5ª Bienal do Mercosul reúne artistas do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, México e Uruguai, além de alguns convidados da Europa e dos EUA, para difundir a arte latinoamericana. Com curadoria de Paulo Sérgio Duarte, esta é a edição com maior participação brasileira: 173 artistas, entre eles Hélio Oiticica, Marcelo Silveira, Abraham Palatnik, Adriana Varejão e Daniel Senise. A mostra é composta por quatro vetores: Da Escultura à Instalação, Transformações do Espaço Público, Direções do Novo Espaço e A Persistência da Pintura. Os artistas “não latino-americanos” estarão expondo no salão especial, intitulado Fronteiras da Linguagem. Diferente das edições anteriores, a alocação dos expositores independe da nacionalidade. “Escolhi um tema aberto e clássico da História da Arte: a questão do espaço, para permitir livres abordagens tanto pelos artistas como pelos curadores dos diversos países participantes”, antecipa o curador. 5ª Bienal do Mercosul. De 30 de setembro a 4 de dezembro, em Porto Alegre (RS). Informações: www.bienalmercosul.art.br / Fone: (51) 3228.4074.
Sem titulo (2005) de Elcio Rossini
Esculturando a existência Coleções de Baccaro A sensibilidade, o detalhismo e o caráter explorador de um dos maiores marchands de arte de Pernambuco, Giuseppe Baccaro, estão representados por sua indescritível coleção de arte, exposta na Galeria Térrea do Instituto Cultural Bandepe. Gravuras, pinturas, esculturas, documentos, mapas, livros raros, arte popular, revistas e curiosidades ilustram a simplicidade com que Baccaro transforma pequenos detalhes em motivos grandiosos. A mostra está organizada em cinco módulos: Oriente, Europa, Mapas, Índios e Negros, Publicações raras nacionais e internacionais e Arte no Brasil.
Coleção Giuseppe Baccaro – A Arte de Ver o Mundo. Até 19 de setembro, Instituto Cultural Bandepe. Informações: www.culturalbandepe.com.br
Um dos precursores da escultura moderna no Brasil, Bruno Giorgi, terá seu legado exposto até 29 de outubro na Pinakotheke Cultural (RJ). A compilação de suas peças na mostra que leva seu nome foi organizada em comemoração aos 100 anos de seu nascimento. Afirmando a vida e a beleza, mesmo quando explora a dramaticidade da existência – como conceitua o poeta Ferreira Gullar –, Giorgi deixa transparecer tal mensagem em materiais como bronze, pedra-sabão, terracota, madeira e mármore. A atmosfera criativa do escultor ainda emerge com maior intensidade na sala onde fica a reprodução do seu ateliê: objetos pessoais, desenhos inéditos e moldes em gesso das suas mais importantes peças. Bruno Giorgi (1905-1993). Até 29 de outubro, Pinakotheke Cultural (R. São Clemente 300, Botafogo, RJ). Tel: (21) 2507-6692.
Patrimônio vivo Manuel Eudócio, patrimônio vivo de Pernambuco e um dos artistas populares mais expressivos do país, está expondo suas esculturas em barro na mostra Manuel Eudócio, Patrimônio Vivo, que acontece na Sala do Artista Popular do Museu de Folclore Edison Carneiro (RJ). A exposição destaca o universo, os costumes e tradições do povo nordestino, incluindo personagens clássicos como Maria Bonita e Lampião. No local também serão comercializadas cerca de 200 peças do artista. Manuel Eudócio, Patrimônio Vivo. Até 19 de setembro, Museu de Folclore Edison Carneiro – Sala do Artista Popular (Rua do Catete 179, estação Catete do Metrô, RJ. Telefones: (21) 2285-0441, 2285-0891).
ARTE SEQÜENCIAL
Valentina, de Guido Crepax: clima onírico
Erotismo à italiana Os mestres da arte seqüencial que puseram no papel as mulheres presentes nas fantasias de todos os homens do mundo Homero Fonseca
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Druuna, o colosso de Serpieri
alentina. O que há nesse nome? Para a geração 68, aqueles que entre uma passeata e um chope discutíamos McLuhan e Sartre, assistíamos a Bergman, Fellini e Godard, líamos Marguerite Youcenar e Antônio Callado e tomávamos partido entre Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré, Valentina era a mulher idealizada: bonita, gostosa, inteligente, misteriosa, livre e mansa. Pena que não morasse ali na esquina, nem sequer existisse. Valentina era criação do italiano de Milão Guido Crepax, que nos anos 60 revolucionou o mundo da arte seqüencial (ou, mais prosaicamente, das histórias em quadrinhos), trazendo para o campo dos admiradores adultos de gibi um erotismo de extrema sofisticação. Até há pouco, na própria Itália, em toda a Europa, sexo e erotismo eram submetidos à severa censura. A partir dos anos 50, cineastas como Fellini, Pasolini, Visconti, Roger Vadim começaram a ampliar os limites da liberdade. Os desenhistas de quadrinhos, fortemente influenciados pelo cinema, seguiram-lhes as pegadas. O primeiro a alcançar notoriedade foi o francês JeanClaude Forest (1930-1998), ao criar em 1962 a heroína de ficção científica Barbarella, envolvida em excitantes aventuras espaciais Crepax seria o mais rutilante. Em 1965, publicou na revista Linus as aventuras de Valentina. “Em suas histórias, Crepax foi além do mero quadrinho erótico, com citações e referências musicais, literárias e cinematográficas que levaram sua arte a um outro patamar na história dos quadrinhos” – assegura o jornalista Gonçalo Junior, autor de Tentação à Italiana, bela obra que traça um perfil dos mestres do erotismo gráfico contemporâneo, contextualizando e constatando a evolução. Crepax trouxe Kafka e Freud para os quadrinhos, nas aventuras barrocas da fotógrafa Valentina, com freqüência envolvida num clima onírico. E tudo apresentado de forma à Italiana, Gonçalo altamente criativa, com uso de closes, Tentação Junior, Opera Graphica Editora, cenas repetidas por ângulos diferentes, capa dura, 311 páginas, tamanho cortes cinematográficos. É ainda Gon- 36 x 26,5 cm, R$ 98,00.
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ARTE SEQÜENCIAL
Crepax: ruptura na linguagem dos quadrinhos
çalo Junior que classifica suas histórias, que conhecemos aqui no Brasil no início dos anos 70 pela revista O Grilo, como “manifestações delirantes de pesadelos barrocos, cuja decomposição gráfica marcou uma ruptura com a narrativa tradicional”.
Hugo Pratt, adquiriu traço próprio e criou a mais despudorada galeria de mulheres de papel. “Não seria exagero afirmar que o conceito de pornografia teve de ser revisto depois que chegou às livrarias italianas em 1983 o álbum O Clic, de Milo Manara” – afirma Gonçalo Junior. Com efeito, a galeria de personagens feministas exibicionistas, com doses cavalares (às vezes no sentido estrito) de perversão, em cenas de sexo explícito, causou enorme polêmica. Manara criou o que se denominou “erotismo total, sem limites de pudor, num estilo inédito e arrebatador”.
Mulheres de Manara – Outro mestre do erotismo gráfico italiano é Milo Manara. Estudante de Arquitetura, Manara apaixonou-se pelos quadrinhos e, de início, fortemente influenciado por Crepax, Moebius e
Garota de Manara: erotismo total
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Manara e Fellini: parceiros na criação de mulheres sem pudor (ao lado)
Fã do diretor Federico Fellini, incorporou às suas histórias um clima de delírio e aventuras mirabolantes, com claras referências ao mestre do cinema. Desenhou inúmeros cartazes para seus filmes (A Voz da Lua I, por exemplo) e produziu dois álbuns em parceria com seu ídolo – Viagem a Tulum e A Viagem de Giuseppe Mastorna, ambos com roteiro de Fellini e desenhos de Manara. Também fez adaptações de obras literárias como As Viagens de Gulliver, de Swift, fazendo de uma mulher a protagonista e acrescentando forte carga erótica ao original, e o Kama Sutra (que dispensa comentários). O criador de mulheres sempre ativas e disponíveis, como Lou-lou, Claudia, Jolanda, Cloé, Beatriz, também fez uma adaptação para quadrinhos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, em 1987, a pedido da Anistia Internacional. Uma explosão chamada Druuna – O terceiro mestre focalizado no livro, que no final aponta outros artistas contemporâneos da arte seqüencial na península itálica, é o veneziano Paolo Eleuteri Serpieri, conhecido sobretudo pela criação da personagem Druuna, em 1985. Serpieri era pintor, escultor e ilustrador e, depois de um tempo criando tirinhas de faroeste, enveredou no rumo do erotismo, também influenciado por Crepax. Sua personagem célebre, no entanto, reverte a tendência Continente setembro 2005
dos seus dois antecessores de criar mulheres enxutas e retorna ao biótipo exuberante e voluptuoso das atrizes dos anos 50 (Sofia Loren à frente), sintetizando o que seria “a mulher latina”, com traços das brasileiras, até: morena, cabelos encaracolados, bunda monumental, Druuna é a protagonista de uma saga de ficção científica delirante de aventura e erotismo, à qual não faltam influências dos próprios gibis, do cinema e da literatura. Em meio a monstros, aparatos tecnológicos, viagens no tempo e no espaço, a heroína do século 21 desfila o corpo colossal por planetas e galáxias, com direito a uma visita ao Louvre em que, defrontada com a Mona Lisa, classifica seu sorriso de malicioso. Uma delícia para os apreciadores de arte erótica e que, faz-se mister avisar, pode ser ofensiva para pessoas mais conservadoras. •
ANTROPOLOGIA
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vida dos pescadores sempre chamou a atenção de cronistas, navegadores, escritores, poetas e cantores. O cantor baiano Dorival Caymmi se impressionou com a vida praiana dos pescadores e cantou versos para eles: “O pescador tem dois amor,/ um bem na terra, um bem no mar...” e “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento e a jangada voltou só...”. Os pescadores são produtores de comidas que mantêm um tipo de vida própria e inconfundível. Existem há milhares de anos, conservando seu estilo peculiar de cultura, e são identificáveis com todos os outros pescadores no mundo inteiro, apesar das diferenças de caráter étnico, cultural e político, como raça, língua ou nacionalidade. A pesca artesanal como subsistência e meio de vida é amplamente praticada por milhões de indivíduos no Brasil. Difícil a cidade brasileira, costeira ou ribeirinha, que não seja pontilhada de indivíduos pescando, ou catando crustáceos: caranguejos, ostras, unhasde-velho, mariscos e outros. No Nordeste divulgou-se o ciclo
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do caranguejo, com o homem nos mangues e nos braços de rios, catando o que comer. A presença desses pescadores é ubíqua nas nossas cidades e, no nosso caso, é “o homem na sua luta pela obtenção de seu pão do dia-a-dia”, como diz Josué de Castro, na Geopolítica da Fome. A pesca é uma das atividades mais antigas do homem e a caça e a coleta determinaram seu primeiro modo de vida, pois antes da invenção da agricultura e do criatório, o homem primitivo dependia exclusivamente da caça e da pesca. O peixe, de início, era fisgado com a própria mão e só muito depois surgiram a lança, o arco e a flecha. Instrumentos, como redes e anzóis, apareceram milhares de anos após. Mesmo nos dias atuais, na região amazônica, onde subsistem culturas préhistóricas, o peixe ainda é capturado com flechas. No Brasil, das 30 mil embarcações registradas, cerca de 60% são utilizadas na pesca, e essas embarcações estão distribuídas nas diversas comunidades pesqueiras, muitas representando, ainda, um sistema adaptativo e ecológico, intera-
Pescador, pescadores: vamos chamar o vento O barco de pesca a motor é, hoje, a embarcação mais freqüente
Fotos: Roberto Rômulo
Com as vidas divididas entre o mar e a terra, os pescadores são produtores de alimentos quem mantêm uma cultura própria e inconfundível João Hélio Mendonça
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ANTROPOLOGIA
Pescadores chegando à praia: vidas entre o mar e a terra
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gindo com a natureza circundante, para tirar daí o que é necessário para se nutrir e para viver. A jangada, quase em extinção, as caiçaras, o mocambo de palha, também em extinção, as canoas, as redes, as iscas, os mastros, as cestarias, os covos e muitos outros traços culturais, são adaptações às circunstâncias locais. Em Pernambuco, existem 26 colônias de pescadores, não só nas regiões costeiras, mas também em cidades interioranas como Ibimirim, Lagoa Seca e outras. Beirando a faixa costeira de Olinda, existem as colônias Z-2, na praia de Pau Amarelo, e a Z-4 que se inicia a partir da Escola de Aprendizes de Marinheiros, e compreendem núcleos nas praias do Carmo, Farol, de Casa Caiada e de Rio Doce. É certo que não cogitamos daquele pescador incluso nas frotas pesqueiras oceânicas transnacionais, de alta tecnologia de captura e de distribuição do pescado. Para esses tipos, hauridos de suas tradições, seu estilo de vida se aproxima mais do operariado. Nosso foco é o pescador chamado artesanal, não absorvido pela grande empresa, tipificado, assentado em núcleos ou sítios próprios e característicos, com uma economia camponesa, fornecendo gêneros alimentícios e com seu estilo de vida e sua auto-imagem de “gente-singulares”, preservando suas técnicas e tradições (mutáveis, mas continuadas e transmitidas de geração para geração). Segundo levantamento realizado nas colônias de pesca brasileiras, 60% dos pescadores artesanais ingressaram na profissão com menos de 10 anos de idade, introduzidos pelos pais. Nas praias do Nordeste, entre as embarcações para a pesca, estão, em primeiro lugar, os denominados barcos de pesca, que são construídos de madeira, medindo entre seis e 10 metros de comprimento e equipados com motor diesel. Contêm um pequeno porão com tampa para armazenar o peixe congelado, um beliche para abrigar o motor, que serve também como local de dormida e, na popa, uma cabine usualmente com bancos e com cobertura , onde ficam o piloto ou o mestre para dar a direção do leme e controlar o motor. Sua tripulação é de dois a cinco homens: o mestre, o contramestre, o proeiro ou os peões. São, esses barcos, os mais encontrados nas costas pernambucanas, alagoanas, paraibanas e rio-grandenses-do-norte. Segundo depoimentos de pilotos de navios e de embarcações maiores, juntos às barras e portos, é preciso muita atenção para não haver colisão com esses barcos, pois são inúmeros. Durante a noite, eles utilizam candeeiros de gás, para iluminação e balizamento. Nunca penetram mais de 30 milhas mar adentro e suas jornadas não excedem seis dias. Os pescadores usam também as bateiras (pronunciam baiteiras) a remo, para pescarias mais próximas das praias, as canoas com velas ou a vara e algumas jangadas remanescentes. Existem também nos núcleos pesqueiros (colônias) pequenas embarcações tripuladas por um homem só, denominadas catraias. As técnicas de pesca mais utilizadas pelos barcos a motor são a pesca de linha com anzóis, a de espinhel, a de rede e a de covos. O espinhel é um aparelho de pesca que consiste numa corda comprida, ao longo da qual são fixadas linhas munidas de anzóis com bóias. As redes são tecidos de malhas largas destinadas a apanhar peixes, e os covos são armadilhas deixadas em determinados locais sinalizados no mar, durante dias, e são formados por esteiras em paus que não permitem a saída da lagosta após ela ter entrado, e a de linha de fundo, que consiste numa linha com três anzóis e com pesos para chegar ao fundo do mar. Usam ainda, noutras embarcações, as pescarias de batida, de facho e de arrastão. A de batida é usualmente praticada em águas represadas ou dentro de barras e consiste em arremessar a vara no mar, com força, ou bater no mar com força para espantar o peixe ou fazê-lo aparecer, e capturá-lo. Utilizam nessa técnica bateiras movidas à vara ou remo, com dois ou três homens. A pesca de facho consiste em encandear o pescado
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para facilitar a sua apreensão. Os peixes mais comuns, pescados pelos pescadores das costas nordestinas, são: garopa, corvina, guaiuba, cavala, xaréu, camorim, cioba, serra, dourado, sardinha, agulha, cangulu, saramunete, arabaiana e outros. O atum é pesca de alto mar, realizada por embarcações de maior porte, pertencentes às frotas pesqueiras e introduzidas aqui por companhias da Coréia e do Japão, há três ou quatro décadas. Condição em extinção? – Muitos núcleos de pescadores estão em desaparecimento, porém como eles “produzem”, pescam e fornecem gêneros alimentícios especiais e sofisticados – como peixes não congelados, crustáceos finos e vegetais não industrializados –, vêm aparecendo vilas de pescadores incrustadas em pólos turísticos.
Os mocambos de palha de coco já não existem mais
A crescente urbanização e a descontrolada valorização imobiliária têm descaracterizado e dispersado as vilas de pescadores, expulsando-os para outras áreas, fora da orla marítima. Como a atividade pesqueira é de natureza essencialmente grupal, envolvendo tarefas como preparo das iscas, das redes, das linhas, dos anzóis, conservação das embarcações, tirar e botálas no mar etc., os pescadores no seu dia-a-dia, se agrupam nos seus aglomerados ou núcleos, mesmo quando eles não são mais vilas. Aí são mantidas suas caiçaras, seus depósitos, as balanças, baiúcas, redes, mastros, cestarias, velas, embarcações e barracas. Os pescadores têm a vida dividida entre o mar e a terra. Saem pela madrugada afora, nas ondas e, às vezes, só voltam dias depois. Guiam-se pelas estrelas, pelos morros, pelos ventos, por torres de igreja. São homens mais para calados, porém cheios de crenças e histórias. Acreditam em Iemanjá, São Pedro, nos orixás e em vários sinais. Reúnem-se nas suas poucas baiúcas, quando bebem, contam e ouvem suas histórias. Vamos chamar o vento (estribilho assobiado como o sibilo do vento). Os pescadores não assobiam mais para chamar o vento, mas ligam seus motores ou saem remando mar adentro, nas madrugadas. “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento e a jangada voltou só”... • Continente setembro 2005
Caiçaras em vila de pescadores: obras quase extintas
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Banquetes da cortesia "Feliz o homem que come comida, bebe bebida e por isso tem alegria".
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rimeiro os homens aprenderam a plantar e a colher. E logo aprenderam também a agradecer por essa colheita em celebrações aos deuses da fartura (Saturno) e da fertilidade (Ceres). Esse convivium continuou, através dos tempos, mudando só os jeitos de festejar. No começo sacrificavam animais. Depois repartiam o pão, alimento sagrado. “Companheiros” se dizia dos que comiam juntos o mesmo pão. Pão e vinho, claro, que esses dois sempre andaram juntos. Acabaram simbolizando o corpo e o sangue do que veio ao mundo para nos salvar, mas essa é outra história. Aos poucos os homens passaram a celebrar também nascimentos, batizados, casamentos, vitórias. Segundo culturas ou crenças religiosas de cada povo. As festas acabaram conhecidas por banchettos – referência a pequenos bancos usados pelos cristãos nas ceias comunitárias das catacumbas romanas. Civilizações em decadência têm, como traço comum, os exageros à mesa. Inclusive por aqui. No Baile da Ilha Fiscal, último suspiro da monarquia, foram servidos 500 perus, 64 faisões, 18 pavões, 800 kg de carneiro, 300 presuntos, 1.300 frangos, 1.200 latas de aspargos, 12.000 sorvetes, 500 pratos de doces variados. Pode ter sido coincidência, mas não custa lembrar que o ex-presidente Collor consumiu, em seu último ano na Casa da Dinda, duas toneladas e meia de camarão. Desenhos rupestres na Mesopotâmia (3000 a.C.) mostram Pu-abi (rainha de Ur) e seus convidados segurando uma única taça de vinho. Beber na mesma taça – como depois partilhar sal ou pão cozido sob as cinzas – representava compromisso. Nos hieróglifos egípcios o símbolo de um homem levando a mão à boca tanto significava “falar” como indistintamente “comer”. Há registro de festa dada por Ramsés II (1301-1235 a.C.) em que foram consumidos 1.200 pães, 100 cestos de carne seca, 300 peças de carne, 250 porções de vísceras de boi (vaca não, que era animal sagrado), dez gansos, 40 patos, 70 carneiros, 12 espécies diferentes de peixe, repolhos, cogumelos e, iguaria das iguarias, gafanhotos. Nas pirâmides ainda hoje se vêem pinturas de faraós morContinente setembro 2005
Fernando Pessoa
tos em meio a alimentos que lhes acompanhariam por toda a eternidade – cozido de cereal, pão de cevada, queijo, peixe (sem cabeça) e rins cozidos (provavelmente de carneiro). Os egípcios foram o povo mais sofisticado dos tempos antigos. Antes das refeições lavavam mãos e pés com água perfumada. Usavam pratos individuais, espetos de metais (em lugar do talher) e copos de bronze. Serviam vinho e cerveja em ânforas. Animavam as festas com música e dança. Usavam, durante a cerimônia, coroa de flores na cabeça. E comiam reclinados em algo como leitos, em volta da mesa. Esse costume acabou imitado por gregos, que cobriam esses leitos (kline) com tapeçarias; e por romanos, que passaram a denominar esse jeito de comer de lectisternium. Na Grécia, os banquetes ganharam esplendor. A literatura da época registra isso. Plutarco dizia que os habitantes de Atenas lembravam os primeiros camponeses – “nós não sentamos à mesa para comer, mas para comer junto” (Vidas dos Varões Ilustres). Homero escreveu que, no Olimpo, “durante todo o dia até o pôr-do-sol os deuses se banqueteiam em festa” (Ilíada). Platão relata experiência de Sócrates e amigos que se embriagam, em um dos seus Diálogos (O Banquete). Eurípedes descreve com riqueza de detalhes jantar oferecido a todo o povo de Delfos (Ion). Banquetes menores aconteciam dentro das casas, em espaços conhecidos por andron – por ser proibida, ali, a presença de mulheres. Banquetes maiores eram celebrados em lugares públicos, como praças e ginásios. Freqüentemente com regras aprovadas em assembléias. Os pratos eram apresentados em um grammatidion (cardápio). Primeiro vinha a refeição propriamente dita, com todos os alimentos servidos ao mesmo tempo, em mesas retangulares e baixas – peixe, boi, carneiro, bode, porco, centeio, arroz, aveia, trigo, mel, azeite, alface, pinhões, tâmaras, amêndoas, sementes de papoula. Tudo temperado com os condimentos da época – sálvia, tomilho, alho-poró, cebolinha, alcaparra, raiz-forte, orégano, coentro. Comiam os gregos com as mãos – limpando dedos em pedaços de pão, animais amarrados a seus pés ou no cabelo dos escravos. Usavam colher para ali-
SABORES PERNAMBUCANOS
RV/AFP
mentos líquidos e faca para trinchar carnes. Depois vinha o symposion – quando se bebia uma mistura de vinho com água, até a embriaguez. O ambiente era de euforia (euphosyne). Cantavam, dançavam, declamavam poesia (skolion), discutiam filosofia, literatura e política; além de contar façanhas de guerra. Os jovens, ao longe, apenas contemplavam os mais velhos – “era comum crianças assistirem a essas refeições; eram levadas como para uma escola de temperança; aí ouviam falar da política e assistiam a divertimentos dignos de homens livres”, escreveu Plutarco (Vida de Licurgo). Mas essas festas não eram tão democráticas assim. Porque só alguns, os aristos (melhores), podiam participar delas. Romanos, em seus primórdios, não conheciam qualquer sofisticação à mesa. E assim foi até quando conquistaram a Grécia. Então tudo mudou. Para Roma vieram oradores, filósofos, poetas, escritores, artesãos e também cozinheiros com suas receitas extraordinárias. A mesa romana passou a ser povoada por ingredientes de todos os cantos – galinhas do mato e trufas (África), coelhos (Espanha), faisões e vinhos (Grécia), pavões (Índia), damascos (Armênia), pêssegos (Pérsia), marmelo (Sídon), framboesas (vales do Monte Ida) e peixes transportados em vasos cheios de mel. As regras desses banquetes foram definidas em lei (tapulla). Convidados deveriam se preparar tomando banho, em ritual de purificação. À cabeça portavam coroa de flores ou folhas. Levavam seus próprios escravos, para lhes servir. Durante a refeição era permitido fazer massagens e usar vomitório – expediente muito usado para poder continuar a comer. Provadores testavam alimentos e bebidas, antes de serem servidos, prevendo o risco de envenenamento. Profissão perigosa. Muitos deles morreram na primeira mordida (ou gole). Como os gregos, também dividiam o banquete em dois momentos. Primeiro a comida – frangos, patos, gansos, galinha d’Angola, pavões, pássaros silvestres, codornas, perdizes, gralhas, avestruzes, flamingos, garças, papagaio, porcos (alimentados com figos para ficarem com gosto especial), peixes, rãs, mexi-
lhões, ouriços, ostras e muitas frutas (cereja, abricó, limão, melão), tudo servido em cômodo da casa conhecido por triclinium. Depois o comessatio – imitação, sem brilho, do symposium grego. Dançarinas, músicos, menestréis e poetas animavam o ambiente. Como os gregos, sempre exageravam no vinho – “para soltar a língua e a alma”. Nero engordava suas moréias com escravos, para comê-las depois. Lúculo chegou a servir, numa mesma noite, miolos de quinhentas avestruzes e línguas de 5.000 aves falantes. Trimalcião servia vinhos acondicionados em ânforas por 100 anos, pastelões recheados por pombos vivos, galinhas de madeira chocando ovos de farinha de onde saiam pintos nadando em gemas apimentadas. Depois vieram os bárbaros, mais preocupados com quantidades que com a qualidade da comida. Na Idade Média, Carlos Magno (742-814), rei dos francos e Imperador do Ocidente, retomou o costume dos grandes banquetes. Chegando essa prática ao delírio com a nobreza francesa dos Luíses XIV, XV e XVI. No Palácio de Versailles se exigia dos cozinheiros que tivessem “diversas qualidades, ou seja, o gênio para inventar; o conhecimento para decidir; o julgamento para proporcionar; a sagacidade para descobrir; a firmeza para se fazer obedecer e a pontualidade para não fazer esperar”, segundo Brillat-Savarin (A Fisiologia do Gosto). Esses banquetes tinham hora para começar (uma da tarde). Terminando só quando já não havia mais comensais sóbrios. Eram servidas centenas de pratos diferentes. Novidades gastronômicas foram então surgindo: molho Béchamel (homenagem ao marquês Louis de Béchamel), sorvete, café, shoyo (tempero, no Japão, usado apenas como conservante de alimentos). Vinho também, claro. E, maior de todas as invenções, o champagne. Conta-se até que Dom Perignon, ao descobrir o mistério da dupla fermentação, gritou enlouquecido aos monges de seu mosteiro - “venham todos! Depressa! Estou bebendo estrelas”. Foi surgindo aos poucos um novo jeito de servir, “à francesa”, com os pratos sendo apresentados em uma ordem precisa e obrigatória – potage (sopas), hors-d’ouvres (frios, picles, azeitonas, sardinhas), rôtis (prato principal), entremets (sorvetes e gelados), dessert (soContinente setembro 2005
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Leo Caldas/Titular
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RECEITA: LAGOSTA COM VINHO MADEIRA INGREDIENTES: 1 kg de filé de lagosta, 100 gr de manteiga, 150 ml de vinho Madeira (ou Marsala), 700 ml de creme de leite fresco, 5 gemas, sal e pimenta a gosto. PREPARO: Derreta a manteiga e passe nela a lagosta cortada em fatias grossas. Deixe cozinhar, em fogo baixo e panela tampada, por três minutos. Junte o vinho Madeira e deixe evaporar. Acrescente 400 ml de creme de leite e deixe no fogo, por dois minutos. À parte, misture o restante do creme de leite às gemas batidas. Junte este creme à lagosta, mexendo sem parar. Tempere com sal e pimenta. O fogo deve ser baixo e não pode ferver. Sirva imediatamente.
bremesas). O costume se espalhou por todas as cortes européias. A língua registra prestígios e preconceitos dessa época – vilania vem do latim villa (aldeia), sendo villanus (vilão) o habitante dessa aldeia; e cortesia vem de corte. Em Portugal não foi diferente. Da França importavam todos os ingredientes necessários para aqueles banquetes – perfumes, roupas, porcelanas, cabeleiras, tapetes, sofás, caldeirões, armários, mesas, cozinheiros e mulheres. Champanhe também, a peso de ouro. Os reis portugueses chamavam essas festas de sumptuarias. D. João II as oferecia em Évora, numa sala construída especialmente para isso – com mesa real no centro e mais 14 mesas, sete de cada lado. Os convivas ocupavam só um dos lados dessas mesas, para que pudessem ser servidos pela frente, inclusive por mordomos a cavalo. O chão era forrado com flores. A iluminação vinha de castiçais e tochas de cera seguras por mãos escravas. Trombetas anunciavam a entrada dos convidados, que se sentavam em bancos. “Água-mãos” só depois de todos estarem à mesa. “O banquete foi grande e belo e bem provido de todas as coisas e houve grande quantidade de menestréis que fizeram o seu oficio”, escreveu o cronista flamengo Froissard. Depois, também os nobres passaram a oferecer banquetes, dando novo sentido à vida noturna de então. Com Dom João VI vieram ao Brasil essa corte e essas festas. Desfiles militares ou cerimônias religiosas (batizados, casamentos, procissões) terminavam sempre em banquetes. Tudo segunContinente setembro 2005
do regras do Calendrier Nutritif ou do Almanach des Gourmands, de Grimod de la Reynière. Era de bom tom, por essa época, conversar em francês. Com o cardápio (menu) sendo sempre escrito nessa língua. D. Pedro I manteve a tradição, embora preferisse mesmo uma comidinha mais simples – frango, arroz corado com açafrão, pão de trigo, laranjas. Além de prosaicas melancias. De Pernambuco, em apenas quatro anos (1813 a 1817), o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro enviou 3.450 delas para deleite de Sua Majestade – segundo a Revista de História de Pernambuco, dirigida por Pereira da Costa. Padre Lopes Gama (o Carapuceiro) lembra influência das modas francesas no Recife: “Já se vai pegando o uso/ De muita satisfação/ D’homens saudarem senhoras/ Com apertinhos de mão/ E alguns vindos de França /De mentes inovadoras,/ Vão querendo introduzir/ As beijocas nas senhoras”. Banquetes oficializaram todas as candidaturas a presidente da República, de Prudente de Moraes até Jânio Quadros. A disposição das mesas, nesses banquetes, era a mesma do Império. Em “U”. O menu continuava sendo impresso em francês – consommé ambassadeur, suprême de robale avec sauce cardinale, noisettes de mouton aoux palmites, punch à l’ananas, dindonneau à la brésilienne, salade suédoise, asperges avec sauce mousseline, Charlotte russe au Chantilly, Glacê à la Reine. Esse banquete de Jânio foi o último. Passou o tempo. Saiu de moda. Ainda bem! •
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
O agourento de dentes amarelos
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u vinha de uma entrevista com o ex-ministro. Trazia dele uma impressão penosa. O questionário que eu levara falava dos desastres que estavam acontecendo no campo da economia – e de outros tantos que fatalmente iriam acontecer. Quando eu os enunciava diante do ex-ministro, não via nenhuma tristeza lhe anuviar o semblante. Pelo contrário: o ex-ministro se tomava de uma súbita euforia, como se eu lhe estivesse contando histórias alegres. É uma esquisita maneira de ser patriota, pensava comigo. Certamente, se um milagre qualquer pudesse acontecer, neste país e naquela hora, e o que era míngua passasse a ser fartura, quem mais sofreria com a risonha metamorfose teria sido o ex-ministro, plantador de desgraças. O homem as profetizou, anunciou-as, teve para cada uma os cuidados de um jardineiro para com as suas flores melhores e mais belas. Eu dizia ao ex-ministro: – Tudo está acontecendo como o senhor previu... O ex-ministro ria, esfregava as mãos, mostrava os enormes dentes amarelos: – Tudo! Tudo! Nunca tive diante de mim ninguém mais feliz, mais sinistramente feliz. •
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ESPECIAL
O CULTO
AO LIXO
Questionamentos para um estudo sobre a sensibilidade trasher da pós-modernidade Fernando Fontanella
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xistem diversos sintomas culturais que são associados à pós-modernidade, que acompanham o conceito desde o seu surgimento; muitos deles se manifestam como estilos formais, agrupados pela teoria em categorias quase sempre instáveis. E, por isso, talvez, uma das maiores dificuldades de se desenvolver uma crítica acadêmica no campo da estética é um certo constrangimento ao se referir a sensibilidades particulares, sem poder confiar em conceitos inflexíveis, que possamos usar com a segurança plena de outros tempos nas ciências humanas. Sintomas percebidos por Mike Featherstone, quando indica que existe “cultura demais com que se lidar e para organizar através de sistemas coerentes de crença, meios de orientação e conhecimento prático”. Aqueles que se aventuram na tarefa devem ter a prudência de não exigir demais de suas delineações: cito um exemplo no trabalho de Susan Sontag sobre o camp, com um certo mal-estar presente no texto. Uma dessas categorias estéticas atende pelo nome de trash: o culto ao lixo, às formas toscas, àquilo que “de tão ruim é bom”. Fenômeno surgido no cinema dos filmes B, contaminou o vídeo e a cultura televisiva dos jovens do final do século 20 e ganhou sua força definitiva na cultura surgida com a Internet. Poderíamos também facilmente dizer que se espalha por outras áreas, como a música e a literatura. A crítica cultural na imprensa fala com facilidade de um “gênero trash”. De fato, atualmente o trash tornou-se uma estratégia eficiente de comunicação, principalmente quando direcionada às gerações mais jovens. Mas com Continente setembro 2005
uma observação cuidadosa, podemos ver que o trash goza da sorte que Eco, citando Croce, identificava no maugosto: todos sabem muito bem o que é e não hesitam em individuá-lo e apregoá-lo, mas atrapalham-se em defini-lo. O termo trash, na verdade, surge para denominar o cinema dos filmes B, produções de baixo orçamento que, a partir da década de 30, começam a ser produzidos nos Estados Unidos. Como aponta A.C. Gomes de Mattos, apesar de ter resistido relativamente à Depressão, devido à novidade dos filmes falados, a indústria cinematográfica passa a enfrentar uma grave queda no número de espectadores depois de 1931. Com os cinemas sendo obrigados a baixar os preços dos ingressos e os custos de produção aumentando, muitas empresas tiveram que se reorganizar financeiramente para continuarem produzindo. Uma das soluções, inicialmente utilizada por produtores e distribuidores independentes que tinham dificuldades em entrar nos mercados dominados pelas majors, foi uma espécie de promoção “pague 1 leve 2”, em que, pelo preço de um ingresso, o espectador poderia ver dois ou três filmes: geralmente um título principal bem produzido (chamado filme A) e outro de baixo custo e de menor qualidade (os filmes B). Estes eram filmes produzidos com pouco tempo e poucos recursos, utilizando um mínimo de cenários e figurinos e apresentando roteiros, na maioria das vezes, enquadrados em gêneros mais populares, como o faroeste e os policiais. Após a Segunda Guerra Mundial, com a melhoria da economia americana, a produção cinematográfica passou a ter melhores condições para produção e distribuição, e
John Springer Collection/Corbis
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Cena do filme A Mosca: puro trash movie
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ESPECIAL entrou na era das superproduções. E, embora as superproduções cinematográficas fossem direcionadas ao grande público, quem comparecia com mais freqüência aos cinemas eram os adolescentes. Segundo Mattos, a partir da segunda metade década de 50, a indústria cinematográfica começou a produzir filmes direcionados a esse público, com temas “juvenilizados”, produzidos com orçamentos baixos. A Guerra, com seus heróis militares americanos lutando contra os terríveis nazistas; os primeiros tempos da Guerra Fria e sua concorrência científico-armamentista; as narrativas difundidas entre os americanos sobre a União Soviética, ideologicamente preparadas para pintar um inimigo terrível contra o qual todos deveriam estar preparados; a energia atômica e o risco de uma guerra nuclear de conseqüências incertas; e, por fim, a corrida espacial: diversos temas passaram a fazer parte do imaginário americano. Enquanto isso, a juventude americana vivia as primeiras experiências de uma nova cultura pop, com o rock e suas grandes estrelas, e um conflito de gerações estava se construindo. Estes fatores influenciaram enormemente a produção dos filmes B direcionados aos adolescentes. Essa nova safra apresentava uma temática de horror, freqüentemente permeada de um fundo de ficção científica. A grande atração eram os monstros, desde a reinvenção de clássicos como Drácula, Frankenstein ou lobisomens, passando por alienígenas até os insetos gigantes (geralmente frutos de exposição à radiação). Além disso, permaneciam algumas produções de filmes de temática policial e surgiam os filmes que tratavam do universo do rock ou da delinqüência juvenil. É marcante nos filmes B de ficção científica desse período a tentativa de representar situações, ambientes ou seres fantásticos com poucos recursos. A improvisação, que sempre marcou a produção dos filmes B, nesse novo contexto, produziu efeitos bizarros, que remetem ao ótimo termo terrir de Ivan Cardoso: máscaras malfeitas, cenários que gritam sua falsidade, interpretações sofríveis de atores amadores, “defeitos especiais” (como os discos voadores sustentados no ar por fios perfeitamente visíveis). São justamente estes filmes, e as produções posteriores que seguem sua tradição, que transformaram os filmes B no “gênero trash”. Um dos maiores ícones dos trash movies, Edward Wood Jr., postumamente será “redescoberto” como o pior diretor da história do cinema. Outro símbolo do gênero é Roger Croman, com seus filmes intencionalmente malfeitos. Mais tarde, mesmo Continente setembro 2005
William Coupon/Corbis
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Susan Sontag não vê distinção entre camp e trash
podendo dispor de orçamentos e tecnologias que permitiriam melhores resultados técnicos, muitos diretores (principalmente independentes) optam deliberadamente por produzir filmes toscos: o trash vira cult. No Brasil, os filmes de José Mojica Martins e de Ivan Cardoso, embora possuam suas particularidades bastante discutidas por inúmeros trabalhos acadêmicos atualmente, também são hoje cultuados como manifestações de um cinema trash nacional. O gosto pelo trash cinematográfico, no entanto, permanece, ainda, algo underground, embora a partir da década de 70 possamos cada vez mais identificar sinais de um humor com sensibilidade trash em outras mídias, como a TV. A partir da década de 90, uma nova sensibilidade trash se difunde na cultura pop, que começa a sair de seus limites cult. A geração dos slackers, completamente integrada á cultura de consumo e ainda contaminada por uma atitude campy dos anos 80, mas que manifesta uma rejeição em relação à cultura pop que se leva a sério, “redescobre” os filmes B e as produções baratas – underground, em geral. A estética trash destes filmes se encaixava perfeitamente nas suas demandas: um humor iconoclasta, irônico; a preferência por uma estética “faça você mesmo, em sua própria casa com a ajuda de seus amigos”. Unese a isso uma apropriação irônica de formas de tudo o que era considerado lixo na cultura americana em seus elementos mais kitsch.
Robert Mapplethorpe/Divulgação
ESPECIAL
Andy Warhol ajudou a transformar o trash em cult
Um primeiro ponto de problematização sobre as sensibilidades trash me parece estar em suas relações com algumas características típicas da mentalidade pós-moderna. Nesse sentido, Mike Featherstone, ao enumerar os principais traços associados à pós-modernidade, cita três características que me parecem essenciais: a “dissolução das hierarquias simbólicas que acarretam nos julgamentos canônicos de gosto e de valor, indo em direção ao colapso populista da distinção entre a alta cultura e a cultura popular”; a “tendência à estetização da vida cotidiana, que foi impulsionada pelos esforços, no âmbito da arte, a fim de diluir as fronteiras entre a arte e a vida”; e “uma decentralização do sujeito, cujo senso de unidade e cuja continuidade biográfica dão lugar à fragmentação e a um jogo superficial com imagens, sensações e ‘intensidades multifrênicas’”. Estes três aspectos estão intimamente ligados com a atitude trasher frente às coisas. Podemos encontrar uma origem do trash na atitude frente à cultura de consumo promovida pela pop art, que realizou um crucial movimento para a transformação do trash em cult ao recodificar tudo aquilo que era o “lixo” da cultura. Se, na sua singular produção cinematográfica, Andy Warhol transformou definitivamente a falta de recursos em opção estilística, nas suas gravuras podemos encontrar ainda mais presente a referência aos elementos da cultura de consumo que são rejeitados pela cultura erudita. Fredric Jameson, em A Lógica Cultural do Capitalismo
Tardio, vai identificar esse movimento como uma das características distintivas do Pós-Modernismo, que trabalha para a diluição dos limites entre a alta e a baixa cultura. De fato, os pós-modernismos têm revelado um enorme fascínio justamente por essa paisagem degradada do brega e do kitsch, dos seriados de TV e da cultura do Reader’s Digest, dos anúncios e dos motéis, dos late shows e dos filmes B hollywoodianos, da assim chamada paraliteratura – com seus bolsilivros de aeroporto e suas subcategorias do romanesco e do gótico, da biografia popular, histórias de mistério e assassinato, ficção científica e romances de fantasia, todas esses matérias não são mais apenas “citados”, como o poderiam fazer um Joyce ou um Mahler, mas são incorporados à sua verdadeira substância. Se essa apropriação de elementos desprezados pela alta cultura é típica da pós-modernidade, podemos identificar a estética trash como a sua versão mais radical, pois é exatamente assim que se define: tudo aquilo que, intencionalmente ou não, fere de maneira gritante as normas do bom gosto agrada à sensibilidade irônica dos admiradores do trash. Ressignificando o tosco, o grotesco e o kitsch, esse culto ao lixo estabelece uma resistência quase carnavalesca ao politicamente correto e à idealização estética da qual caiu vítima a produção dos meios massivos, como a TV, onde por décadas houve uma tentativa de constituir um “cânone” e de onde se propagandeavam padrões técnicos de qualidade. Mas dessas observações surge uma nova questão. O que caracteriza o trash como uma categoria diferente de outras manifestações estéticas pós-modernas? Não seria apenas uma variável do camp, outra sensibilidade pósmoderna que se apropria das formas mais baixas da cultura de consumo? Segundo Susan Sontag, camp é uma “maneira de ver o mundo como fenômeno estético” que se referencia não pela beleza, mas pelo grau de artifício. A autora identifica não só de uma “visão camp”, mas também uma qualidade que está em objetos campy. À primeira vista, não há diferenciação entre o que chamamos trash e a atitude camp. De fato, Sontag coloca, por exemplo, o gosto por filmes ruins como sendo campy. No entanto, olhando com mais cuidado para a experiência trasher, me parece que há uma divisão significativa que necessitamos desdobrar. Sontag associa o camp a um artifício exagerado, mas que é, sem dúvida, extremamente elaborado. Para Sontag, o camp possui uma ambição em que o artista tenta fazer algo exótico, extravagante. Ou, como Continente setembro 2005
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ESPECIAL afirma mais adiante: As experiências do camp baseiam-se na grande descoberta de que a sensibilidade da cultura erudita não possui o monopólio do refinamento. O camp afirma que o bom gosto não é simplesmente bom gosto; que existe, em realidade, um bom gosto do mau gosto. Aqui aparece um ponto importante para estabelecermos uma divisão. O trash é, de maneira mais direta, a apreciação do mau gosto na sua condição de mau gosto. Não o ressignifica para torná-lo bom gosto; pelo contrário, tenta estabelecer a inversão de uma maneira anticanônica que remete às formas do carnavalesco, apontadas por Bakhtin, em que o baixo e o alto radicalmente trocam de lugar por determinado momento. Uma segunda diferença que me parece marcante é a busca constante do trash por aquilo que é malfeito. Há um certo investimento na elaboração estética do camp, enquanto os produtos trasher celebram a própria incapacidade técnica. Sobre o processo de ressignificação presente no trash, é interessante resgatar o que Stuart Hall diz sobre os processos de significação no meio televisivo. Segundo o autor: “Certos códigos podem, é claro, ser tão amplamente distribuídos em uma cultura ou comunidade de linguagem específica, e serem aprendidos tão cedo, que aparentam não terem sido construídos – o efeito de uma articulação entre signo e referente –, mas serem dados ‘naturalmente’ ”. Hall observa que o signo televisivo, mesmo unindo o discurso visual e auditivo e possuindo “algumas das propriedades da coisa representada”, depende da operação de um código e não pode ser confundido com o referente. A sua quase presença constante no nosso dia-a-dia induz a essa “naturalização” de seu código. Nas palavras de Baudrillard, essa substituição do código ao referencial produz um mundo “...de eventos, de história, de cultura e de idéias produzidas, não a partir da experiência móvel, contraditória e real, mas produzidos como artefactos a partir dos elementos do código e da manipulação técnica do meio de comunicação.” Ora, a atitude trash constitui uma denúncia dessa naturalização dos códigos ao recodificá-la; seu grande efeito humorístico está nisso. O trash não faz referência ao real, mas ao pseudo-real dos meios massivos. Uma paródia trash não parodia algo ou alguém, mas, sim, parodia outra paródia. Os filmes B faziam referência a superproduções afetadas do cinema americano ou à ficção barata dos quadrinhos de terror. •
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ma das perguntas mais difíceis de responder no atual estado de coisas da moderna cultura de massa é “o que é trash?” A dificuldade vem do fato de a noção de “lixo” ter mudado não apenas cultural, mas também socialmente. O lixo de ontem pode ser o papel reciclado de amanhã, ou o artesanato que a vizinha executa com disciplina industrial a partir de garrafas plásticas que antes eram de refrigerante. O lixo tem perdido sua carga de sujeira imunda e adquirido releituras baseadas na poliformia. De uma certa forma, isso também aplica-se à produção cultural e artística, à mídia moderna e ao olhar de quem está pronto para reciclar. Uma visão eficaz, mas que pode hoje ser tida como conservadora “do que é ou não trash”, seria a da obra de arte naïf, aplicada à produção de um artista inepto na sua articulação de idéias, e o casamento destas idéias com a técnica apresentada. O resultado final comunica de maneira eloqüente pelo incidente de expressão ali cometido. Cria-se lixo distraidamente, com uma melancólica vontade de fazer arte, de dizer alguma coisa que resulta num colorido ruído do grotesco. Estar diante de um retrato naïf, realizado com seriedade por um pintor capaz de transformar as mãos do seu objeto em dois ridículos tocos mutilados de arbusto e um rosto que lembra uma laranja mofada, pode estimular o riso, dependendo da visão que o observador tem da arte, do ser
Louie Psihoyos/Corbis
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O RUÍDO DO GROTESCO O lixo tem perdido sua carga de “sujeira imunda” e adquirido releituras baseadas na poliformia Kleber Mendonça Filho
humano e da própria postura do artista perante sua criação. Quando isso ocorre em grande estilo, teríamos um verdadeiro incidente artístico que estimula a imaginação do observador mais experiente. Esse observador, dono de um olho talvez treinado, e versado de alguma forma numa idéia compartilhada de “bom gosto”, é freqüentemente o portador de um sentimento especial guiado pelo sarcasmo. No entanto, o verdadeiro trash inspira quase sempre não apenas sarcasmo, mas também carinho e algo de admiração pelo curioso horror ali exposto. Há, claro, um mercado para o trash. Os filmes do americano Edward D. Wood Jr. (1924-1978), por exemplo, encaixam-se perfeitamente nesse trash naïf. Wood, muito mais famoso em morte do que em vida, virou ícone não apenas pela sua obra, mas principalmente pelo filme Ed Wood (1994), onde foi tratado com carinho e deferência pelo cineasta Tim Burton (do recente A Fantástica Fábrica de Chocolate). Wood acreditava ter talento nato para o cinema, fez filmes de gênero (terror, ficção científica) com orçamentos inexistentes e uma seleta troupe de colaboradores sem qualquer sinal de carisma. Ao entendermos que Wood fez sua obra-prima Plan 9 From Outer Space (Plano 9 do Espaço Sideral, 1959) acreditando que estava à John Waters, diretor do filme trash Pink Flamingos, no qual um homem estupra uma mulher num galinheiro
John Springer Collection/Corbis
O travesti Divine, que comeu fezes de cachorro no filme Pink Flamingos
frente de algo revolucionário, apenas aumenta o valor “lixo” do filme, possivelmente a obra mais ridicularizada de toda a história do cinema norte-americano. Dos diálogos (“O inspetor morreu, assassinado. E alguém é responsável!”), à direção de arte (calotas de automóvel penduradas por fios como discos voadores) e à idéia de Wood usar duas cenas filmadas com o então decadente ator Bela Lugosi, antes de o mesmo morrer, Wood fez uma obra à prova de análises otimistas. Wood, por exemplo, substituiu Lugosi pelo massagista da sua esposa nas demais cenas, homem meio metro mais alto que tentava passar-se por Lugosi, escondendo o rosto com uma ridícula capa preta. O fraco de Wood pelo transexualismo (imortalizado no seu filme Glen or Glenda) também o expôs a um olhar faminto por uma certa estranheza engraçada. E o que mais seria trash? A obra do nosso querido José Mojica, o Zé do Caixão? Nem tanto, mas, freqüentemente, sim. Mojica já oferece sinais de um artista naïf dotado de um talento nato para filmar as sombras. Se os valores de produção que seus filmes não tinham nos sugere uma estética “pobre”, ou trash, a qualidade dos seus pesadelos filmados oferece material suficiente para que argumentos a favor sejam construídos em defesa não de Continente setembro 2005
uma arte trash, mas de uma obra vigorosa, intuitiva, feita às margens do cinema dito oficial. Um artista como John Waters, por exemplo, oferece leitura ainda diferente do trash. Waters fez em Baltimore, EUA, filmes que entraram para a seleta infâmia das sessões da meia-noite em obras como Pink Flamingos (1972), onde um travesti enorme e aterrorizante (Divine) come cocô de cachorro numa cena, enquanto, em outra, um homem estupra uma mulher num galinheiro e, durante o ato, eles esmagam galinhas vivas com as mãos. De verdade. O efeito devastador do filme nas platéias (que gritavam de horror, freqüentemente às gargalhadas nervosas) era auto-explanatório: estamos diante de um artista que provoca com a audácia do mau gosto e leva a imagem de cinema em direção à performance-art. No seu filme seguinte, Divine protagoniza o que seria um número musical, mas prefere arremessar peixes mortos na sua platéia atônita. É curioso observar que, cada vez mais, produtos do passado antes restritos a um circuito off (e, assim, facilmente identificáveis como trash) fazem a ponte, freqüentemente, rumo à grande mídia, e essa ponte existe, em grande parte, na televisão. A comunicação do grotesco
Divulgação
ESPECIAL
Zé do Caixão: trash à moda brasileira
parece refletir ora um estado de coisas geral, carregado de tensão social (o trash como sendo produto de uma falta de bagagem cultural e artística, produto do povão), ora uma aceitação do precário como forma de subverter fórmulas e padrões tidos como “de qualidade” e “bom gosto”. Em 1986, por exemplo, ocorreu um fato que ainda aguarda análise aprofundada sobre os caminhos da mídia. O fortificante sexual (sic) Anemokol tornou-se uma febre sem precedentes, caindo na boca e nos olhos do povo via campanha publicitária inegavelmente trash, mas perfeita na sua execução e capacidade de transmitir o espírito do produto. “Eu tomo Anemokol!!!” virou bordão nas ruas, em VTs de 30 segundos, com Waldick Soriano (“Eu não sou cachorro, não”) num quarto de motel, ou idosos préViagra querendo um bum-bum para pegar, ou um memorável “fala-povo” na rua, onde a estrela é um anão de padaria que tenta articular o slogan com sua boca entupida de pão-doce: “Eu fomomo Fanemomol!!!” O recall foi enorme. Se o Anemokol era exceção memorável duas décadas atrás, um produto 100% trash, anunciado em horário nobre, tem-se a impressão de que hoje o trash é o horário nobre em si. A TV mudou muito em 20 anos, com a
O fortificante sexual Anemokol tornou-se uma febre sem precedentes, caindo na boca do povo via campanha publicitária inegavelmente trash, mas perfeita na capacidade de transmitir o espírito do produto
entrada da TV a cabo, UHF e mesmo demais canais abertos, foi perdida seja lá que pouca nobreza ela ainda tinha, revelando sua tendência de oferecer o pior do pior, 24 horas por dia. Nos anos 90, a Band bagunçou a noção de toda uma geração de crianças e adolescentes (que hoje estão na casa dos 20) em relação ao trash, com o seu Cine Trash. Diariamente, exibia filmes à tarde que, aparentemente, tinham alguma quantidade de sangue, o critério-base. Trash passou a significar sangue derramado, morte e mutilação. Ainda hoje os parâmetros encontram-se bagunçados, podendo ser trash o programa do João Gordo na MTV, Gordo Freak Show, ou assistir à interação planejada e editada de humanos no Big Brother Brasil, ou ainda o Pânico na TV, obra-prima trash, onde o poder da imagem televisiva é usado como arma de terror contra o tipo de gente que deveria apreciar a exposição. No entanto, o mais deprimente reality show da TV americana, ao nosso ver, chama-se Extreme Make Over, uma sofisticada obra trash que expõe o grotesco de uma sociedade que valoriza, talvez um tanto demais, as aparências. No Extreme Make Over, feios e feias, muito feios e muito feias, monstrinhos e monstrinhas (sic) passam por uma revolução física patrocinada pelos produtores nas clínicas mais caras e badaladas de Los Angeles. “Ela parecia uma bibliotecária vinda do inferno, mas agora poderá se transformar numa estrela de Hollywood” é o tipo de ambição que o programa alimenta nas suas vítimas. Dotado de uma técnica de montagem impressionante, vemos a maratona de sofrimento que cada vítima sofre rumo à desintoxicação da feiúra e da rejeição social. No final, todos são transformados em andróides do bom gosto médio, chegando para a grande revelação de seus novos “eus” a bordo de uma longa limousine. Lixo em horário nobre. • Continente setembro 2005
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Folha Press
Tiririca abriu caminho para a estética trash
A VOCAÇÃO BRASILEIRA O Brasil foi kitsch até os anos 40, depois, excetuando-se pequenos bolsões chiques, como a arquitetura de Niemayer ou a bossa-nova, foi brega até os anos 90, quando chegou ao trash José Teles
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trash é feito topada, que é involuntária, jamais premeditada. Por exemplo, uma festa que se autodenomina trash, é tudo, menos trash. Mas quando um cartaz anuncia, num badalado antro brega do centro do Recife, que haverá um baile animado por Kito Sempre Kito, Fogosas do Pará, e Banda Fura Couro, aí é trash, na vera! No Brasil, o trash mistura-se, e não raro é confundido, com o kitsch ou com o brega. Há distinções, obviamente, entre um e outros. Por vezes, apenas uma tênue linha os separa. Uma comparação entre badalados apresentadores de TV serve para exemplificar a tese. A ex-pin-up Xuxa com toda aquela pseudocandura é kitsch. É brega Raul Gil, que acha que comportar-se de modo simplório e grosseiro é ser povo, enquanto Hebe Camargo é totalmente trash (algo mais trash do que tomar um gole de uma tulipa com cerveja, que ela chama de “louruda”, e entregá-la a um rapaz na platéia pedindo que ele tome o sobejo)? Continente setembro 2005
O Brasil também serviria como exemplo. Até os anos 40, o país foi kitsch, com seus sambas-exaltação, concursos de miss, novelas mexicanas no rádio, as chanchadas da Atlântida. Um kitsch que se resume no verso de “Que será?”, página imortal do nosso cancioneiro lançada por Dalva de Oliveira: “Que será, da luz difusa do abajur lilás?” Excetuando-se pequenos bolsões chiques, como a arquitetura de Niemeyer ou a bossa-nova, fomos brega até os anos 90, quando passamos ao trash, do qual a figura mais emblemática é o cantor/comediante Tiririca, que fez sucesso na década passada e abriu caminho para a estética da favela, que cada vez mais impera no Brasil, sobretudo nas grandes capitais do Nordeste. O desdentado não perde para ninguém. Tiririca, com ar de quem só come quando dão, trajes conseguidos num Exército da Salvação, e discos com um repertório que traz a incrível
ESPECIAL cinema nacional, no qual a inépcia de diretores e atores, junto com a escassez de grana, produziu maravilhas trash, como Bacalhau, ou Bacs, a paródia nacional ao Tubarão de Spielberg (é preciso relançar urgentemente esta obraprima trash em DVD). Pior trash é o americano, porque, pelo menos, dinheiro eles têm. Os estúdios de Hollywood foram pródigos em trash na época dos seriados (espécie de novelas de aventura, que passava, em capítulos, antes do filme principal). Esses seriados tinham orçamento baixíssimo, e quase todos primam pelo trash. Especialistas apontam The Lost City, do estúdio Krellberg, como o pior seriado de todos os tempos. O enredo era mais que simples. O vilão mandava numa cidade perdida na selva.Tinha sob seu comando um exército de negros gigantes (que pouco faziam além de grunhir e revirar os olhos) que eram produzidos em série. Para tal, o vilão esticava, com uma fórmula misteriosa, os nativos. The Lost City é de 1934, e tão trash que, nos anos 50, um canal de TV americano tentou leválo ao ar, mas interrompeu a série devido aos protestos dos telespectadores. É preciso também não confundir grossura pura e simples, como é o caso da música e performance de palco de uma parte das duplas sertanejas e bandas de forró, como a infame “Coelhinho”, da Saia Rodada, cujo refrão
Lumiar
“Pescaria de Cágado”: “Essa criação de cágado, tudim/ é meu, minha filha, essa caguim/ tá vendo aquele cagão/ tudim aí é meu”. O trash não é um fenômeno recente, nem limitado a este gigante pela própria natureza, deitado eternamente em berço esplêndido. Manifestações do trash há em todos recantos do mundo, e não apenas na arte, embora o cinema e a música sejam terrenos onde o trash mais dá as suas caras. O trash aparece até nas lendas urbanas. “A Perna Cabeluda”, uma assombração que andou tirando o sono de recifenses nos anos 70, é trash até umas horas (para usar uma expressão trash), mas não tanto quanto o Momo, um mal-assombro americano – pense numa criatura trash! O nome Momo vem da duplicação da sigla MO, do Estado de Missouri. O Momo, visto pela primeira vez em 1971, mede entre 1,80 a 2,10m de altura, é escuro e hirsuto. E não tem o menor estilo, segundo os que já foram vítimas de sustos causados pelo monstrengo. Não se satisfazendo em amedrontar os contribuintes, o Momo, a cada aparição, exercita suas habilidades flatulentas, em horripilantes estrépitos, seguidos de uma fedentina não menos pavorosa. O trash no cinema já foi exaustivamente dissecado, tanto que Ed Wood, o rei do trash na sétima arte, virou até filme “cabeça”. Desconheço análises sobre o trash no
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É preciso não confundir trash com grossura pura e simples, como é o caso da música e performance de palco de bandas de forró, como a "Coelhinho", da Saia Rodada
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Folha Press
Hebe cai no trash, quando oferece sobejo de “louruda” para a platéia
é o aparentemente inocente: “O vizinho quer comer meu coelhinho”, só que o primeiro “o” é pronunciado “u”, e a primeira sílaba alongada o bastante para a vocalista dar a conotação pornô ao verso. No palco, ela arrebita o traseiro e o vizinho aprochega-se por trás. Trash são os versos: “No hospital, na sala de cirurgia/ Pela vidraça eu via/ você sofrendo a sorrir”, de Fernando Mendes. Como é trash “Little dead surfer girl”, de um grupo dos EUA chamado Incredible Broadside Brass Bed Band. A letra conta a infelicidade de um casal de namorados surfistas que foi pegar umas ondas e a moça morreu afogada por não saber nadar. Os versos finais são impagáveis: “Nunca esqueci suas últimas palavras pra mim/gurgle, gurgle, gurgle./ Vou até a praia porque sei que quando a maré encher Rhonda virá com ela”. Os americanos, aliás, são bons em trash. Recentemente foi lançado um CD de um grupo chamado Woofers & The Tweeters cujo repertório é todo composto por clássicos de Lennon & McCartney. O trash da história é que no disco inteiro só se ouvem latidos, e ganidos. O Woofers & The Tweeters é formado por cães, de raças diferentes, e até relativamente afinados. Mas os americanos curvaram-se diante de nós, brasileiros, com esse escândalo que ora assola a nação. Ou alguém aí, no sofá, conhece um troço mais trash do que aquela história do cara que foi flagrado com 100 mil dólares na cueca? • Continente setembro 2005
Augusto dos Anjos cantou a podridão física após a morte
PARA CANTAR DE PREFERÊNCIA O HORRÍVEL Os dois poetas mais populares do Brasil são mestres do excesso. Castro Alves, do oratório, romântico. Augusto dos Anjos, do mau gosto, naturalista Mário Hélio
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ugusto dos Anjos, apesar do nome inefável, é, na verdade, uma das expressões mais cruas do trash na cultura brasileira. A palavra trash aqui, naturalmente, tem um sentido muito maior do que a situação “dicionária”: rebotalho, refugo, bagaço, tolice, asneira, porcaria, droga, escória. Trash, como o kitsch, é quase um estado de espírito. Encontra na interminável massa de modelar da era moderna o seu sítio quase ideal. Sendo gosto o termo mais empregado para explicitar preferências e valores estéticos, conduz logo a uma relação direta com os sentidos os mais orgânicos. No caso do trash, por mais auditivas e visuais que sejam tantas das suas manifestações, é ao paladar e olfato que melhor remete.
Edward Holub/Corbis
No complexo e estranho casal que formam a natureza e a cultura, o trash é a expressão mais física, concreta, da dupla indústria das coisas em estado bruto e na sua elaboração pelos humanos. Um dos esforços extremos da hipercrença na estética ou na anti-estética que formou as tantas faces de narciso da modernidade (antes e depois) é revolver a poesia do imprestável, do lixo, do resíduo. “Para cantar de preferência o horrível” (expressão de Augusto dos Anjos) é necessário encontrar valores vitalizantes na morte. Autores como Edgar Allan Poe e Lautréamont vêm logo à mente quando se pensa no trash. Melhor, no entanto, é encontrar no exemplo mais próximo de Augusto dos Anjos as estranhas sinestesias do mau gosto. O livro Eu, de Augusto dos Anjos, é um desses “breviários da decomposição” dos credos estéticos do trash. Se existe uma junk art, há igualmente uma triunfante junk poetry. Baudelaire, não por acaso, um dos inventores da modernidade, está na base disso. Augusto dos Anjos é o seu herdeiro direto. Já no primeiro poema do livro Eu, “Monólogo de uma sombra”, o autor faz uma profissão de fé: “a podridão me serve de Evangelho”. E logo o corolário disso: “Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques/ e o animal inferior que urra nos bosques/ é com certeza meu irmão mais velho”. É essa familiaridade com o “animal inferior” que parece reivindicar toda a arte que nasce sob o impacto, a
ESPECIAL
perplexidade e a devoção à sociedade industrial e de consumo. De corpos em recomposição e em decomposição. São tantos os exemplos do fascínio narcísico pela decomposição em Augusto dos Anjos, que tornam este artigo quase supérfluo. Vale a pena, no entanto, referir um momento em que o trash se manifesta de modo feérico: “Como quem se submete a uma charqueada,/ ao clarão tropical da luz danada,/ o espólio dos seus dedos peçonhentos (...) e o que ele foi: clavículas, abdômen,/ o coração, a boca, em síntese, o Homem,/ – engrenagem de vísceras vulgares –/ os dedos carregados de peçonha,/ tudo coube na lógica medonha/ dos apodrecimentos musculares”. Ou neste recorte ainda mais festivo e carnavalizado: “É uma trágica festa emocionante!/ A bacteriologia inventariante/ toma conta do corpo que apodrece.../ e até os membros da família engulham,/ vendo as larvas malignas que se embrulham/ no cadáver malsão, fazendo um s.” Um dos mais notáveis recursos de Augusto dos Anjos é converter o inanimado nessa “trágica festa emocionante” a que faz referência no seu poema. Não é morte pura e simples o substrato do seu discurso, mas a morte em tensão, de contorcionista. Por paradoxal – e trash – que seja a expressão: é morte viva, em carne viva, o que se encontra nos seus versos. No seu extremo o romantismo se enamorou da morte e se avizinhou do naturalismo. Parede e meia com o trash – o contrário da elegância, da discrição, da sutileza, do sublime. O trash se harmoniza com o caos muito mais à vontade do que com o vazio. Detesta o neutro. O resíduo se diviniza. O céu é kitsh. O inferno é trash. De modo semelhante, um açougue se opõe a uma igreja e um necrotério a um cemitério. Num tempo obcecado pela assepsia o trash é uma anticatarse. Filho direto do universo decadente da cana-deaçúcar (ou “filho podre de antigos goitacases”, como preferia dizer), Augusto dos Anjos reflete esse gosto ao mesmo tempo adocicado e acre da morte. Da morte ou do amor que um dia ele comparou a uma cana azeda. Na impossível aristocracia do gosto no Nordeste, o que resta de opulento é muitas e muitas vezes trash, como algo tão natural e próprio que quase indissociável da sua ingênua vocação. • Continente setembro 2005
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Édipo Rei do Brasil Há centenas de anos, é esta a função da tragédia: ferir, punir, restabelecer. Se não cumprirmos a ordem cósmica, teremos um final rocambolesco
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s gregos, sempre os gregos, acreditavam que quando a ordem do mundo era ferida, instaurando-se o caos, somente seria refeita pela consciência e expiação do crime. Esse modelo simples e infalível serviu para a construção do Estado democrático, da tragédia, e do romance, se considerarmos que Crime e Castigo, de Dostoievski, ainda foi escrito nessa perspectiva que a pós-modernidade rejeitou. O exemplo mais perfeito foi-nos legado pelo Édipo Rei, de Sófocles, que possui uma versão e adaptação teatral moderna feita por Geir Campos, particularmente bela. Sugiro que larguem as revistas, os jornais, os enfadonhos noticiários da TV, as entrevistas, os debates, e leiam esse livro, procurando uma dimensão política e trágica para a realidade que nos cerca. Todos vocês conhecem o mito que serviu de instrumento para a psicanálise freudiana. A seca e a peste arrasavam Tebas e, por essa razão, o Oráculo de Delfos foi consultado. Segundo ele, um crime hediondo havia sido cometido, e os culpados deveriam ser identificados, banidos ou mortos. A peça se inicia com a fala de Édipo aos cidadãos que vieram ao palácio suplicar pela cidade que, como um barco “sacudido por já longa tormenta, nem mais consegue levantar a proa”. O rei ignora o autor do crime, supondo-se isento da ação que acarretou os males para o país governado por ele, desde que decifrara o enigma da esfinge. “Meus filhos, eu achei que não devia saber por terceiros: assim, eu mesmo vim, eu, vosso rei, de todos conhecido como Édipo, o Ilustre.” E novamente, mais adiante: “Meus pobres filhos, eu sei bem demais o que vos traz aqui e o que esperais. Sofreis e eu também sofro: miContinente setembro 2005
nha dor excede a vossa, seja ela qual for. Vossa dor vos aflige a um por um; eu, entretanto, sofro ao mesmo tempo pelo país e por vós e por mim...” Compassivo, de início, à medida que os acontecimentos fogem ao seu controle, Édipo enreda-se no que fala, exaltando-se e criando armadilhas para si mesmo. Sem saber o rumo que tomarão as investigações, solta impropérios e ameaça os culpados. Deseja apurar os fatos, chegar à verdade e aos criminosos, ignorando ser ele próprio o autor dos delitos que investiga, coisa que só irá descobrir ao final do processo. “Hei de lavar a nódoa deste sangue, e não só pelos outros, mas também por minha causa...” Nas peças de Ésquilo e Sófocles, o herói trágico cumpre a ação traçada pelo destino, mesmo que ela exceda o seu discernimento e querer. Resta-lhe unicamente acatar o que estava escrito, e pela consciência do ato trágico, refazer a si e ao cosmo. A partir de Eurípides, o personagem discute a ação alheia à sua vontade, introduzindo os rudimentos da psicologia do herói e do romance moderno. Em sua peça Ifigênia, Eurípides sugere que é por intriga de Ulisses e do sacerdote de Ártemis que a pobre moça é condenada a morrer. Isto, para os puristas, já não é mais tragédia e simplesmente tramóia humana. Voltemos a Édipo, e apresentemos Tirésias, um cego adivinho que conhece a desgraça do rei, mas prefere calar. Trazido à presença do soberano, ele se nega a dizer o que sabe, no intuito de poupar o rei e a si mesmo. Depois de sofrer muitas ameaças, finalmente confessa que Édipo é a maldição que pesa sobre Tebas, e afirma: “Sobre tua cabeça pende o anátema que teus lábios lançaram!”
ENTREMEZ
Édipo não acredita nas palavras do vidente. Apoiado na teoria conspiratória, afirma que Tirésias e Creonte, irmão de sua esposa Jocasta, conspiram para depô-lo do trono. Esse ardil continuará em uso pelos governantes, ao longo da história. Édipo sofre de um excesso de confiança em si e na credibilidade do povo. Mas Tirésias, depois de tentar poupá-lo, é possuído do furor dos profetas, e o fustiga sem piedade: “...os dois olhos que tens pouco adiantam, pois não vês a miséria que te cerca nem a casa em que vives, nem com quem...” Édipo se lamenta: “Não me viestes acordar de um sonho: choro e muito já tenho chorado com o pensamento a tatear saídas.” Ah, o destino! No Brasil, a tragédia apenas se fez nos grandes embates sociais, em massacres como o de Canudos ou do Carandiru. Para as nossas crises políticas, encontramos sempre fugas melodramáticas. O corte trágico implica na apuração rigorosa do crime e na punição dos culpados. Édipo procura um criminoso, chega a si mesmo, fura os olhos e se exila. Há cen-
tenas de anos, é esta a função da tragédia: ferir, punir, restabelecer. Se não cumprirmos a ordem cósmica, teremos um final rocambolesco, uma ópera bufa com brasileiros nas ruas, agitando cartazes como os tebanos agitavam ramos, recitando em coro: “As águas dos rios todos da terra talvez não bastem para lavar a imundície desta Casa – tamanhos são os males já mostrados, e os mais que se há de mostrar, premeditados, não ocasionais... E agora, ó nosso glorioso Rei, é a ti que recorremos, suplicantes, para que nos descubras um remédio, seja por nova inspiração divina ou pela tua experiência humana, pois o homem que antes agiu bem, depois, só poderá dar bons conselhos. Salva a cidade, ó melhor dos mortais! ... Não deixes que lembremos teu reinado como o que nos chegou a levantar para adiante nos deixar cair!” • Continente setembro 2005
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MÚSICA
O som controverso de Debussy Irreverente e contraditório, o compositor Claude Debussy sempre travou embates entre o pensar e o sentir em sua busca estética Eladio Pérez-González
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sentir vem antes do que o pensar. A vida é uma imposição, já que ninguém pede para nascer, mas antes de se pensar nisso, a gente já sente o prazer de viver. Debussy, pela vida afora, estará sempre envolvido no embate entre o sentir e o pensar, mas o sentir levará sempre a melhor. Era apenas um hedonista? Não. Era um contraditório, como todos nós. E afinal, sensação e sentimento, tendo suas próprias regras, não são vassalos do raciocínio. Claude Debussy nasceu no dia 22 de agosto de 1862 em Saint-Germain-enlaye, uma das comunas de Paris. Seu pai, Manuel, era capitão da guarda nacional durante o cerco de Paris na guerra franco-alemã (1870-1871), e com a vitória alemã é condenado a quatro anos de prisão. Sua mãe, Victorine, sofrendo o encargo dos quatro filhos, era de pavio curto e braço rápido. “Ainda me lembro das bofetadas que você me deu”, escrever-lhe-á um dia seu filho Claude. De origem muito pobre, não freqüentou escolas. Aos oito anos, seus padrinhos o levam a Cannes para uma semana de férias. Aí, descobre o mar. Já dizia o poeta: “o rio tem duas margens, o mar tem só uma”, e essa infinitude grava-se profundamente em seu espírito e vai influenciar mais tarde a sua concepção da forma musical. Em Cannes, ele brinca com um piano velho e os padrinhos lhe arranjam umas aulas com Jean Cerruti, músico da orquestra local. De volta a Paris, um amigo do pai o põe em contato com Mme. Mauté de Fleurville, exaluna de Chopin, a qual descobre nele um enorme potencial. Seu entusiasmo a leva a preparálo para o exame de admissão ao Conservatório de Paris. Debussy está com 10 anos de idade, e durante outros 12 de estudos nessa instituição ele conseguirá uma formação sólida. O som, com todas suas possibilidades o atrai poderosamente. Pianista sensível e de bela sonoridade, sente, entretanto, que seu interesse principal o leva à composição. E começa a manipular o timbre, a altura, o volume e a intensidade do som. É tímido, mas cioso de sua individualidade. Cônscio de sua pouca instrução, desde os 16 anos devora Musset, Verlaine, Baudelaire, e entra em contato com obras de pintores como Gauguin e Moreau. Aliás, freqüenta mais poetas e pintores do que músicos. No Conservatório, anarquiza as aulas de harmonia do bitolado Prof. Durand, disparando ao piano uma saraivada de acordes estranhos e desafia os colegas: “Gostaram? Para que perguntar de onde eles vêm e para onde eles vão? O que importa é o som. Dá prazer? Então basta”. Mostra seus primeiros ensaios de composição ao Prof. Guiraud. Ele lhe aconselha: “Controle a sua originalidade, senão não vai obter o Prix de Rome”, prêmio importante para quem,
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Montagem da ópera Pelléas et Mélisande (Califórnia, 1979): intensa dramaticidade e sucesso absoluto
Ira Nowinski/CORBIS
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sempre curto de dinheiro, ganhava algum-mas-pouco como pianista acompanhador num curso de canto. Nesse curso ele conhece Mme. Vasnier, soprano, à qual dedica várias canções. Sabendo de suas dificuldades, ela e seu marido lhe oferecem um quarto com piano em sua mansão, para ele compor à vontade. Mme. Vasnier é jovem, bela e culta, e causa impressão profunda na sensibilidade do também jovem compositor. Em sua terceira tentativa, com a cantata “L’Enfant prodigue”, ele consegue o Prix Rome, bolsa de três anos do governo francês, com tudo pago, para se dedicar exclusivamente à composição, na Vila Medicis, em Roma.
De 1885 a 1887, ele padece na capital da Itália, pois morre de saudades de Mme. Vasnier. Apesar de seu jeito arredio, Debussy chama a atenção de seus colegas pela beleza de suas canções e pelo requinte de seus gostos: consumo de iguarias caras e afeição por bibelôs finíssimos. Esta característica de sua personalidade aparecerá claramente na sua composição, onde a escolha e combinação dos instrumentos e a utilização de suas possibilidades rendem efeitos surpreendentes. Desde seu retorno a Paris ele penetra de cabeça no meio artístico, por exemplo, frequentando as “terçasfeiras” do poeta Mallarmé, reunião semanal de inteContinente setembro 2005
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MÚSICA lectuais e artistas, onde conhece André Gide, Marcel Proust, Paul Valéry, Verlaine, Pierre Louys, e tem contato direto com os compositores Chausson e Paul Dukas. (Chausson o socorrerá generosamente em suas crônicas crises financeiras.) Entre 1887 e 1889, faz duas peregrinações a Bayreuth, onde ouve várias óperas de Wagner. “Música admirável, porém teatralidade limitada”, conclui. E Wagner era estrela máxima no céu de Paris. Debussy cunha uma frase que fez carreiras: “Wagner foi um pôr-do-sol que a gente pensou ser uma aurora”. Mas sofre influência do compositor alemão e utiliza algumas de suas idéias, como pode se detectar nos Poemas de Baudelaire, de 1890 e também na ópera Pelléas et Mélisande, de 1902. Em dezembro de 1889, acontece em Paris a Exposição Universal, onde Debussy ouve pela primeira vez uma orquestra de gamelan – dos nativos da ilha de Java – e fica assombrado com a liberdade de suas improvisções e riqueza de timbres em seus instrumentos típicos, “pobres e toscos”, segundo o preconceito centro-europeu. E ele cunha outra frase que causa sensação: “O contraponto de Palestrina é uma brincadeira de crianças, comparado com o destes executantes”, e é considerada o cúmulo de irreverência. Após o semi-sucesso de seu quarteto para cordas, de 1893, Debussy apresenta em 1894 o Prélude à l’ après midi d'un faune obra orquestral baseada num poema de Stephane Mallarmé, bisada na estréia, e cuja liberdade
A infinitude do mar marcou profundamente a produção musical de Debussy, como se percebe na obra La Mer
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formal desnorteia a maioria dos críticos. Mallarmé, entretanto, fica encantado, e o compositor Paul Dukas, embora de outra orientação estética, publica uma elogiosa análise da obra. Debussy está na sua: frui intensamente o que fez, e já está preparando as Proses Lyriques, obra para o piano e canto com texto dele próprio, o que vem demonstrar a sua evolução literária, e que estréia em 1895. Segue-se um periodo longo de árduo trabalho na apresentação de sua ópera Pelléas et Mélisande, com o texto de Maurice Maeterlinck. Em 1900, estréia Nocturnes, para orquestra e coro feminino, em cujo último movimento faz seu primeiro contato musical com o mar, pois nele aparecem as sereias cantando só com vogais. O uso da voz como instrumento é novidade e, ao mesmo tempo, deixa no ar a pergunta: “Quem poderia dizer em que língua cantavam as sereias”? Críticos e alguns colegas compositores novamente perdidos: “Mas que forma é essa? Ele não usa a formasonata, não segue programa algum, portanto, também não é um poema sinfônico”. Mas o som da obra conquista mais e mais o público em cada nova execução. Vicent D’ Indy, regente e compositor, que fora o crítico mais severo, se rende ao seu encanto e rege os Nocturnes, em Roma, com sucesso absoluto. Em 1902 é a vez de Pelléas et Mélisande, ópera intimista, exatamente o oposto da ênfase wagneriana, porém de intensa dramaticidade e que não prescinde dos leitmo-
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tiven (motivos condutores), aproveitando o exemplo de cunstâncias (leiam-se dívidas), regeu suas obras na Wagner, mas realçando sempre o lado poético da carac- França e no exterior, mesmo receonhecendo não ter terização dos personagens. A estréia provoca vaias es- preparo como regente. Mecenas? Já falamos em Chausson, mas também o trondosas, mas a aceitação cresce no decorrer da temeditor Georges Hartmann foi seu mecenas entre 1895 e porada que termina com o sucesso mais completo. Outros 1900, e, posteriormente, seu editor Jacques Duran fezpaíses desejam apresentar a nova ópera. Em 1905 estréia La Mer. A orquestra, em relação aos lhe adiantamentos mensais por conta de futuras obras, ao Nocturnes e à Pelléas et Mélisande, usa muito mais instru- ponto de, chegada sua morte, a dívida ter atingido uma quantia considerável. mentos e Debussy os trata com a maior liberdade. Amores? Desde o Conservatório, Os críticos de novo: “Não é uma sinfonia! namoros vários. De temperamento Então o que é?” O som e a forma são intenso, ele não acreditava em outros, e Debussy declara numa enamor honoris causa: a entrega trevista: “Não posso ficar me repetinha de ser total. Também, a tindo. Cada nova obra tem de ser natureza só pensa naquilo... diferente”. Seu colega Paul DuEntre 1896 e 1898, kas, mais uma vez, publica aramou e foi amado por Gatigo extremamente laudatório. brielle Dupont, a “Gaby Em 1908, estréia Images dos olhos verdes”, uma para orquestra; em 1910/ costureira que pagava as 1913, os Prelúdios, para piano; contas do casal. O rompiem 1911, Le Martyre de Saint mento deu-se por causa de Sébastien, para coro e orquesuma amiga, Lily Texier, tra; em 1913, Jeux, para orque os visitava com frequestra, e até o fim de sua vida quência, e com a qual Denão deixa de compor: 1915, Sobussy se casa em 1899. O nata para cello e piano; Sonata para casamento dura quatro anos e é viola, flauta e harpa; os Estudos para interrompido quando Debussy piano; 1917, Sonata para violino e piano. Debussy: vida conhece Emma Badac, mulher fina, De longa data a situação financeira repleta de amores e dívidas cantora excelente, esposa de um bande Debussy é motivo de preocupação para queiro (lembra-se da Mme. Vasnier?) e com a os que acreditam em seu gênio, e seus amigos promovem sua atuação como crítico em jornal. Em qual, após duplo divórcio, casa-se em 1904. Em ambos os 1901, ele cria o personagem Monsier Croche (o Sr. rompimentos: as damas envolvidas tentam suicídio. Em 1905 nasce Chouchou, fato que desata em seu Colcheia), crítico musical que faz observações interessantes sobre tudo que se refere à música, o qual, infeliz- coração um mar de ternura e que dura 12 anos e meio, mente, após oito artigos em La Revue Blanche, desa- até sua morte. Portador de um câncer no intestino, contra o qual parece para não retornar. Entretanto, Debussy, usando seu próprio nome, e em estilo saboroso, faz resenha de luta, há anos, e apesar de uma operação cirúrgica, ele recitais e concertos com música de seus colegas Fauré, falece em 26 de março de 1918. Chouchou, para quem ele compusera Children’s corner, Paul Dukas, Saint-Saens, Vicent D’ Indy, e muitos outros. (ver Monsieur Croche e outros ensaios, editora Nova e que inspirara também La boîte a joujoux, descreve a sua morte: “Entrei no quarto, meu pai dormia, mas sua respiFronteira, 1989). Contradições? Sempre criticou o uso de material ração era muito curta. E foi assim por algumas horas até folclórico em obras eruditas, mas chegado o caso, ele que, de repente, parou de respirar e dormiu para sempre”. O homem para quem seu sonho era a coisa mais o usou em obras como Estampes, para piano, e em obras corais criticou também compositores-não-re- importante em sua vida, e esse sonho era o som e suas gentes que regiam suas obras, e premido pelas cir- circunstâncias, tinha partido deste mundo. •
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CDS Fotos: Divulgação
Henrique Annes (C) e Oficina de Cordas
O fruto As Árvores é o segundo disco do cantor e compositor Osvaldo Pereira, ganhador do prêmio Sharp 1999, na categoria Revelação Samba. Pereira apresenta um disco com composições próprias (“Toda Cidade” é uma parceria com Julio Moura), no qual cria um estilo autoral para marchas, sambas, baiões e choros. As Árvores é um trabalho aparentemente deslocado do seu tempo pelo requinte melódico, fruto dos sambas dos anos 20 e 30 que influenciaram Pereira – especialmente Noel Rosa –, mas que se atualiza no humor ácido e refinado das letras. As Árvores. Dubas Música, preço médio R$ 24,00.
Dedilhando Pernambuco Projeto de Henrique Annes, que inclui livro e CD, faz emergir memória musical de Pernambuco Não tem como simplesmente não copiar o nome do projeto Dedilhando Pernambuco no título de uma resenha que fale sobre o mesmo, porque é exatamente isto o que o livro e o disco que compõem o trabalho capitaneado por Henrique Annes fazem: esquadrinham os ritmos e os compositores pernambucanos. No livro, uma minibiografia de 20 compositores e as partituras das suas canções (escolhidas ou encontradas, porque únicas, com o apoio do pesquisador musical Renato Phaelante). No disco, compositor e composição ganham vida nas notas reverentemente dedilhadas nos bordões e nas primas do violão de Henrique Annes e da Oficina de Cordas. Partindo do século 19, com o pas de quatre Exposição Municipal, de Alfredo Gama (1889-1932), livro e disco passam pelo baião “Dança do Matuto”, de Alfredo Medeiros (1892-1961); pelos salões com as valsas “Silvana”, de Jacaré (1929-2005), “Risomar”, do maestro Clóvis Pereira; “Dedicação”, de Nelson Vaz (1903-?); “Ânsia”, de José do Carmo (1895-1977); “Alma e Coração”, de Luperce Miranda (1904-1977); e “Amargura”, do teatrólogo Valdemar de Oliveira (1911-1977); os festejos juninos com a quadrilha “As Cinco Irmãs”, do pouco conhecido Cláudio Carneiro Leal; indo até os frevos de Capiba, José Menezes e Ivanildo Maciel; o maracatu “Minha Loa”, de Marambá; os choros de João Pernambuco, Capiba, Nelson Miranda e do próprio Annes; até o minueto de Euclides Fonseca. Um belo trabalho de garimpagem nos arquivos pessoais e públicos do Estado, que faz raridades do cancioneiro pernambucano reviverem. (Isabelle Câmara) Tom Jobim Inédito. Biscoito Fino, preço médio R$ 31,00.
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Legado do tempo Com uma voz afinada, mas triste e tendendo para registros dramáticos e agudos, Alaíde Costa, que ressurgiu na indústria fonográfica nos últimos anos, lança Tudo que o Tempo me Deixou, que, como diz a faixa-título (“tudo que o tempo me deixou/ foi a lembrança que meu peito traz”), é uma auto-biografia musical, em comemoração aos 50 anos da sua carreira: traz as parcerias históricas com Tom Jobim, Hermínio Bello de Carvalho, entre outros, além de três canções inéditas, de autoria de Alaíde em parceria com Tom e Johnny Alf. Tudo que o Tempo me Deixou. Lua Music, preço médio R$ 26,00.
Tigres da Lapa Desde que os arcos da Lapa renasceram como pólo do samba e do choro carioca, muita música de qualidade tem saído das ruas, do encontro de músicos respeitosos com a tradição, mas atentos ao seu tempo, para a indústria fonográfica. Marcos Ariel & Tigres da Lapa é bom um exemplo. Ariel, que vivia em conflito entre a flauta e o piano, decidiu-se pelo primeiro instrumento neste CD, para sorte nossa, e lança um trabalho com músicas próprias, mas também revisita clássicos do choro, como “Tico-tico no fubá” e “Proezas de Sólon”. Marcos Ariel & Tigres da Lapa. Rob Digital, preço médio R$ 22,00.
Inédito de Tom
Lançamentos em CD com músicas de Tom Jobim, cantadas por ele ou não, nunca são demais. Especialmente quando se trata de um álbum em que ele participou de todo o processo de produção; um trabalho concretizado por um Tom maduro e realizado pessoal e profissionalmente. Tom Jobim Inédito foi realizado com o apoio da Odebrecht em 1987 e só foi distribuído comercialmente, em tiragem limitada, em 1995. Uma década depois, a Biscoito Fino relança o disco onde Tom recria 24 dos seus maiores sucessos, conferindo-lhes arranjos intensos e iluminados, exatamente como ele se sentia naquele tempo. Tom Jobim Inédito. Biscoito Fino, preço médio R$ 31,00.
AGENDA/MÚSICA
CDS Piano brasileiro A pianista Maria José Carrasqueira imprime suavidade e delicadeza ao disco que lança com a obra pianística de Ernesto Nazareth. Com um profundo senso estilístico – que respeita o modo de execução que Nazareth exigia para suas composições; para que não “fossem confundidas com outros gêneros populares, como o maxixe” –, Carrasqueira redesenha o Brasil na obra do compositor que “era a verdadeira encarnação musical da alma brasileira” (Villa-Lobos). Peças como o tango “Odeon” e a polca “Apanhei-te Cavaquinho” estão presentes nesse CD. Maria José Carrasqueira. YB Music, preço médio R$ 25,90.
Música ladina Ancorado em canções brasileiras, como as de Jacob do Bandolim (“Santa Morena”), Sinhô (“Buruncutum”), Capiba, Pixinguinha e Benedito Lacerda, o sétimo CD de Fortuna, Novo Mundo, leva o ouvinte para outra dimensão, mais humana e poética, e por vezes mágica. Sem abandonar suas origens, Fortuna traz ainda as canções “Leva eu saudade” (rojão das descascadeiras de mandioca de Alagoas), “Guilhermina” (romaceiro potiguar) e os temas tradicionais judaicos “Shemá” e “Terra”, todas acompanhadas por um belo coro de vozes masculinas. Novo Mundo. MCD, preço médio R$ 24,00.
Deitar e rolar A brava gravadora Dubas tem “deitado e rolado” na missão de devolver ao Brasil um repertório fantástico da sua música. Canções que antes só eram encontradas em LPs, hoje objetos de colecionador, agora podem ser encontradas em CD, na coleção Revisitados. Foi assim com Gil, Luiz Melodia, Chico e Gal. Agora é a vez de Elis, de quem qualquer coisa que se diga soa como lugar-comum. Neste álbum, gravações da fase na antiga Philips, mais uma gravação ao vivo de “Aquele Abraço”. Uma pequena amostra do suingue de Elis e uma aula de como cantar com emoção e naturalidade. Elis Revistada Suingando. Dubas, preço médio R$ 28,00.
Boleros
Ângela Barreto faz da noite seu palco. Em Dedicado a você, ela dedica sua voz grave, romântica e pesarosa, com influências de Maysa e Ângela Rô-Rô, e todo o seu repertório – que inclui pérolas como “Havana-me”, de Joyce e Paulo César Pinheiro, “Marajó”, de Fernanda, e a faixa-título, de Dominguinhos e Nando Cordel – às músicas feitas para dançar nos salões. A tônica do trabalho é dada pelo bolero, mas se abre para o coco, em “Coco Dendê”, e para o maracatu de baque solto, com introdução de caboclinhos, em “Guerreiros de Lança”. Dedicado a Você. Independente, preço médio R$ 15,00.
Dj Dolores
PE na França Espaço Brasil abrigará arte pernambucana entre os dias 6 e 12 desse mês Por lá já passaram artistas de quase todo o país, mas a arte que aportará no Espaço Brasil, em Paris, entre os dias 6 e 12 de setembro, durante o Ano do Brasil na França, é a pernambucana. A Semana de Pernambuco fechará a programação do Espaço Brasil, centro cultural que abrigou cerca de um terço dos mais de 300 projetos culturais que integram o evento, e terá inegável ênfase musical. É na música que o contraste entre o moderno e o tradicional se manifesta de maneira mais evidente na cultura pernambucana. E é por isso que a Trama, em parceria com a Fundarpe/Governo do Estado, irá lançar um CD com a nova música pernambucana: New Brazilian Music: Pernambuco, que condensa o que de melhor este Estado (e o Brasil) já viu (e ouviu) nos últimos 15 anos: Mestre Ambrósio, Banda de Pífanos de Caruaru, Quinteto Violado, Mombojó, Selma do Coco, Siba, Cordel do Fogo Encantado, Isaar (Cumadre Fulorzinha), Nação Zumbi, Dj Dolores, Cascabulho, Mundo Livre SA, Antonio Nóbrega, Otto, Lenine e Caju & Castanha. Do cinema, os exemplares são, em sua maioria, filmes que fazem parte da retomada do cinema brasileiro em meados dos anos 90. São três longas, Baile Perfumado, Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas e Amarelo Manga, e 17 curtas, incluindo produções emblemáticas, como História de Amor em 16 Quadros por Segundo (sobre o ciclo do Recife, de Fernando Spencer e Amin Stepple) e Filme de Percussão Mercado Adentro (1976), também de Spencer, O Bandido da Sétima Luz. Das artes plásticas, a comitiva inclui Gilvan Samico, José Patrício e Marcelo Silveira. E como Pernambuco é um pólo de produção artesanal, muitas peças em barro, madeira, tecidos, chifres, ossos, pedra, corda e couro serão levadas.
Semana de Pernambuco – Ano do Brasil na França. Informações: www.fundarpe.pe.gov.br Continente setembro 2005
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processo irreversível de globalização avança num sentido de negação das fronteiras nacionais, com uma interconectividade entre os mercados de todos os países (mesmo os mais pobres) e o intercâmbio de bens culturais. Alguns intelectuais acreditam que esse será o fim das culturas nacionais e regionais, das tradições, costumes e padrões de comportamento que determinariam a identidade de cada povo. O escritor peruano Mario Vargas Llosa entende que o ingente fluxo de informações realmente está dando um novo formato às diversas culturas, mas não acredita que isso seja um dado negativo. Os chamados “estudos culturais”, que atualmente têm lugar privilegiado em universidades em muitas partes do mundo, em geral, fazem uma defesa apaixonada e intransigente do que se denomina “identidades coletivas” – nacionais, étnicas ou mesmo de uma simples localidade, como uma cidade ou um bairro. Contrariamente a essas “defesas”, Vargas Llosa escreveu: “Fico com os cabelos em pé ao pensar em qualquer preocupação com a ‘identidade’ de um grupo humano, pois estou convencido de que isso sempre traz de forma oculta uma conjura contra a liberdade individual. É fato que as pessoas que praticam a mesma religião/costumes têm características comuns, mas discordo de que esse denominador coletivo possa definir cada uma delas de forma plena, abolindo, ou relegando a um segundo plano desdenhável o que existe de específico em cada membro do grupo”. A cultura não é uma prisão – pelo contrário, ela se alimenta de mudanças e de conflitos com outras culturas. Só nas sociedades primitivas e nos Estados sumamente autoritários com tendências nacionalistas é que a cultura é encarada como um campo de concentração, uma condição imutável. É como se os indivíduos estivessem condenados a permanecer dentro desse conjunto de valores “culturais”, sem nenhuma possibilidade de interferência pessoal. Octavio Paz dizia que a famosa busca da identidade é um passatempo intelectual, às vezes também um
A prisão das identidades coletivas A sociedade ocidental, na visão do intelectual peruano Mario Vargas Llosa, progrediu no sentido de afirmar o individual frente ao coletivo tanto no âmbito jurídico quanto no cultural Eduardo Cesar Maia Continente setembro 2005
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CULTURA
negócio de sociólogos desocupados. A sociedade ocidental, na visão do intelectual peruano Mario Vargas Llosa, progrediu no sentido de afirmar o individual frente ao coletivo tanto no âmbito jurídico quanto no cultural. Inclusive a religião, que tem sido durante a História a forma mais efetiva de negação do indivíduo, no Ocidente, após muitas lutas e reformas, foi convertida em um direito individual e não mais em um dever público; ou seja, o Estado laico possibilitou uma espécie de “privatização” das religiões, fato fundamental na formação das modernas democracias liberais. Os argumentos em defesa dessas “identidades” acabam levando a demandas políticas no sentido de que os produtos culturais merecem um cuidado especial por parte do Estado porque eles seriam fundamentais na conformação e manutenção da identidade de um povo. Os defensores de tais políticas afirmam que, se os governos deixassem a “identidade” do seu povo a mercê das regras do capitalismo amoral, haveria uma deteriorização pela invasão de produtos culturais estrangeiros – uma “colonização” cultural, perpetrada através do poder da publicidade das empresas dos países mais poderosos. Quer dizer, para um país proteger sua cultura, deveria preservar-se da competição internacional e dos males da globalização. Para Vargas Llosa, todas as culturas se alimentam de conflitos (de valores, de interesses, de ideologias...) e isolá-las significa enfraquecê-las: “Não ponho em dúvida as boas intenções dos políticos que apresentam estes argumentos em favor da exceção cultural, mas afirmo que, se os aceitamos e levamos a lógica implícita neles a sua conclusão natural, estamos afirmando que a cultura e a liberdade são incompatíveis e que a única maneira de garantir a um país uma vida cultural rica, autêntica e da qual todos os cidadãos participem, é ressuscitando o despotismo ilustrado e praticando a mais letal das doutrinas para a liberdade de um povo: o nacionalismo cultural”. Além de se tratar de uma “ficção confusa”, a noção de identidade cultural conduz inevitavelmente a uma justificação da censura, do dirigismo cultural e a subordinação da vida cultural e artística a uma doutrina política: o nacionalismo. Vargas Llosa afirma que a riqueza da cultura de um país está justamente na sua diversidade contraditória, “na existência, neles, de tradições, correntes e criadores e pensadores conflitantes entre si, que representam visões do mundo e da arte que se repelem uma a outra, e no universalismo que essas obras alcançaram em seus momentos”. •
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Pobre povo brasileiro “... essas coisas não passam de armadilhas e de uma coleção de calamidades”
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Brasil, de uma vez por todas, foi mergulhado e se afoga, pouco a pouco, no mundo irreal da China dos Mandarins. Não aquela China das mulheres de rabicho, das cadeirinhas, das muralhas centenárias, dos pórticos da castidade e das mochilas recheadas de táleres para premiar o bom e honesto comportamento das mulheres e homens que, acima de tudo, tinham obrigação de serem exemplos de honestidade para seus descendentes. Mas, essencialmente, conseguiram imergir, com gana e lama imensuráveis, o nosso País numa hipotética “China” de arrogantes “mandarins” e usurpadores – do patrimônio público nacional e da consciência do povo –, esquecendo-se dos propósitos abertos da ética e da moral. Faz-nos relembrar o Ato I de Hamlet: “... essas coisas não passam de armadilhas e de uma coleção de calamidades”. Nem Mao fez tanto mal à esperança do seu povo quanto esse partido vermelho de estrela e cinismo, ruborizando a grande maioria de seus simpatizantes e seguidores de carteirinhas cultivadas e exibidas orgulhosamente por anos a fio. Por isso resta-me procurar sair daqui logo, enquanto estiverem eles no poder, e me mandar para qualquer lugar onde eu possa, pelo menos, viver as coisas mais simples, sonhar com novos planos, liberdade, ilusão, com o próprio agitado sono, o amor e até mesmo com o ódio. Recontando o passado, tal Martins Fontes, no vago misticismo de quem sonha um sonho abandonado. Alguém já disse que o furor fornece armas. Olhem para o tempo. As horas passam depressa. Estou ficando mais velho a cada segundo. A ansiedade faz ironia com o meu coração acelerado de adrenalinas de raiva e revolta. Acho que irei para as Ilhas Galápagos – melhor conviver com calangos, calangos-tangos, camaleões irracionais (é bom frisar) e lacraias quietas e expostas a um ranzinza sol aberto. Ou ser carregado para a lua – Continente setembro 2005
o Atol das Rocas seria uma boa pedida; quem sabe surfar nos tsunamis da Indonésia; prevenir-me de sobracéus diante os pesados invernos de Ranchipur. Então, levemme para qualquer canto, como dizia Antonio Maria, mas, por favor, “sem couvert, sem couvert.” Obriguem-me a esquecer das situações, paradas federais e coisas ruins, como, por exemplo, das pessoas que comem muito, mastigam palitos e se esmeram em orgulhar-se de que sabem tudo; dos famigerados vestibulares e das óperas; das doenças para eu poder me livrar dos médicos; dos intelectuais confeitados e de toda essa gente fanática por quaisquer religiões. Deixem-me longe das guerras epidêmicas de Hobsbawm, principalmente da maioria dos políticos – que para mim não passam de podres e fedorentas matérias com toques e retoques retóricos de enriquecimentos ilícitos, sempre caramelados de negativas providenciais, falsidades daquelas de acicatar qualquer mediana inteligência – dos quais toda distância é pouca. Façam de tudo para que nunca mais me lembre das coisas que nunca consegui aprender: datilografia, com todos os dedos das mãos sem olhar para os teclados da máquina; falar japonês ou bajular a elite, um tipo de classe societária carburante de maldade e egocentrismo. No entanto, também, e com muita exaltação, me façam lembrar das coisas boas, importantes e agradáveis do início e do meio dos melhores anos do resto da minha vida, como saber através de Barthes, que a imagem é peremptória e que ela tem sempre a última palavra; ouvir e cantar “Let it Be” com os Beatles, “O Meu Pé de Serra” com Luiz Gonzaga, assim como recitar as “Evocações” de Bandeira, do paraíso onde é amigo do rei; admirar a lua e as estrelas do Sertão e vibrar com os dribles desconcertantes de Garrincha e a genialidade de Pelé. Ler os bons cachos literários de Camus e Tolstoi, assistir de novo, Z, de Costa-Gavras, e me preparar para ficar a um passo da eternidade. •
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