Continente #058 - Nélida

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EDITORIAL

Hans Manteuffel / Divulgação

A hora das letras

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rimeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Academia Brasileira de Letras, em 1996, doutora honoris causa em universidades da França, do Canadá e da Espanha, a carioca e descendente de espanhóis Nélida Piñon vem colecionando as maiores honrarias a que um escritor pode almejar. Em 1995, foi a vencedora do Prêmio Internacional de Literatura Juan Rulfo, concedido então pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa. Em 2003, recebeu o Prêmio Internacional Menéndez Pelayo e, em junho passado, foi a vez do cobiçado Prêmio Príncipe de Astúrias, que receberá, este mês, na Espanha. Agora, acaba de ganhar o Jabuti, o mais prestigiado prêmio literário brasileiro, com o romance Vozes do Deserto, em que recria o clássico árabe As Mil e Uma Noites. Nélida também já foi apontada pela New York Review of Books como a melhor escritora brasileira, além de ter sido capa da revista acadêmica americana World Literature Today, o que costuma ser um degrau para o Nobel de Literatura. Uma das vozes que se levantaram com mais vigor em defesa dos direitos humanos e contra a opressão política durante o regime militar, Nélida Piñon é uma especialista no tema da resistência. É sobre a resistência dessa paixão incorruptível, a literatura, num mundo tomado pela pressa, que ela fala em entrevista exclusiva à Continente, assumindo posição também sobre a escrita feminina, experiência versus imaginação no processo criativo e a influência da oralidade em seus livros. A figura da escritora ganha destaque no momento em que se realiza, no Recife, a V Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, cujo foco este ano será a literatura brasileira contemporânea e os nomes que a impulsionam. Esta edição traz, ainda, a pensata sobre a globalização, fenômeno tido por todos como irreversível, cujas conseqüências, entretanto, ensejam visões antagônicas dos que pregam que a mundialização econômica e cultural não tem contra-indicações até os que denunciam o veneno que ela pode trazer para as soberanias nacionais e as identidades culturais dos povos. •

O escritor Raimundo Carrero na Bienal do Livro de Pernambuco/2003

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CONTEÚDO Reprodução

12 Nélida: paixão pela literatura

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Coréia ganha espaço nas Letras

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CONVERSA

04 Sábato Magaldi: Crítica deve atingir público e criadores

CAPA

ARQUITETURA 58 O espaço nas cidades e a integração humana

ESPECIAL

18 Nélida Piñon e a literatura de resistência 21 As fúrias da paixão

68 Globalização: a sobrevivência de João Grilo 72 Indiano Bhagwati crê em processo positivo 75 Universalidade é pluralidade 77 Submissão econômica e disseminação cultural

LITERATURA

FILOSOFIA

12 A mais premiada escritora brasileira

22 A quase desconhecida literatura coreana 27 Palavras-chaves em Manuel Bandeira 30 Bienal, sob o signo da contemporaneidade 34 Quatro poetas peruanos 38 A felicidade alheia de Luiz Ruffato 40 Agenda Livros

ARTES 46 49 50 51

Percurso dos pés em Roberto Lúcio A beleza de um palácio pernambucano As danças de Abelardo da Hora Agenda Artes

INTERARTES 54 Lula Cardoso Ayres, Gilberto Freyre e Osman Lins

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80 Meio século da morte de Ortega y Gasset

MÚSICA 82 Os 90 anos do Cantor das Multidões 86 Sociedade e crítica na música popular 88 Agenda música

TRADIÇÕES 92 O saber sem fronteira dos mestres populares


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Bienal de Pernambuco se renova

3 Nelson Provazi

Hans ManteuffelDivulgação

CONTEÚDO

68 Globalização ainda é tema controverso

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 É salutar o contraponto entre globalização e tribalização

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 42 O discurso subversivo do fabulista Esopo

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 52 A Figura Reclinada como fulcro da criação em Henry Moore

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 Dizeres e maldizeres sobre uma carne controvertida

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 65 A morte de meu pai me ensinou a ser livre

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 90 Por mais que o mercado insista, livros não são "produtos"

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Gosto de escrever como gosto de ler, num estilo irreverente Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente outubro 2005


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CONVERSA

SÁBATO MAGALDI

“Se não há qualidade, a crítica deve denunciar” Professor afirma que o papel do crítico teatral é denunciar até que criadores realizem uma cena pulsante e de alto nível Luís Augusto Reis

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ersonalidades como o professor Sábato Magaldi parecem desmentir o famoso dito de Nelson Rodrigues: afinal, nem sempre “toda unanimidade é burra”. Dificilmente se encontrará alguém de teatro que não reconheça sua fundamental contribuição para o desenvolvimento dessa arte em nosso país. Para a imensa maioria daqueles que fazem a cena teatral brasileira, como também para o público realmente afeito às artes cênicas, Sábato é, sem dúvida, um dos nomes mais expressivos do nosso pensamento teatral. A solidez de seu conhecimento, a clareza de seu raciocínio e, sobretudo, o equilíbrio de seus posicionamentos o tornam uma leitura indispensável para quem ama o teatro, ou para quem pretende conhecer melhor essa forma de expressão artística. Todavia, além de reconhecer sua monumental competência, quem se aproxima de Sábato certamente se encantará com seu caráter franco, com a elegância de suas atitudes e com a alegria de sua perene disposição para falar de teatro. Em sua

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recente visita ao Recife, a fim de participar de um seminário de crítica teatral, ele demonstrou também possuir um enorme carinho pelos jovens, sejam artistas ou críticos, que tentam dar seus primeiros passos no mundo do teatro. No auge de sua maturidade intelectual, construída ao longo de mais de 50 anos de intensas atividades, como crítico, ensaísta e professor, na entrevista que se segue ele reflete sobre o papel da crítica, e do próprio teatro, na atualidade; revisita alguns dos mais importantes momentos da história do teatro brasileiro; fala sobre dois de seus dramaturgos favoritos, Nelson Rodrigues e Oswald de Andrade; comenta a relação entre o teatro e a Academia Brasileira de Letras, da qual é membro desde 1994; e ainda faz algumas revelações inéditas sobre seus primeiros contatos com a arte teatral. O senhor é bacharel em Direito, como teve início seu interesse pelo teatro? Quais foram as principais referências em sua formação teatral?


Alex Silva/AE

Sábato: “entreguei uma peça a Paulo Mendes Campos. Ele sumiu com o texto. Foi a crítica mais justa”

Não sei bem por quê, mas ainda jovem eu comecei a me interessar por teatro. Eu sou de Belo Horizonte, onde havia um pequeno movimento, que não chegou a pesar muito na minha escolha. Porém, como na adolescência todo mundo tem um interesse múltiplo, eu cheguei a cometer um pecado, que eu estou confessando agora, pela primeira vez: eu escrevi uma peça chamada Os Solitários (risos). Felizmente, eu passei a peça para Paulo Mendes Campos, que era meu amigo – na época ele era crítico do Diário Carioca, a quem eu viria substituir –, e ele sumiu com o texto. Eu acho que essa foi a crítica mais justa para a peça (risos). Dou graças aos céus que ele tenha feito isso, pelo menos eu não deixei, nesse campo, nenhum rastro negativo. Mas o fato é que nós fazíamos uma revista literária, lá em Belo Horizonte, e todo mundo pedia que eu desse opinião sobre os textos, então eu terminei como uma espécie de revisor de todas as matérias que saíam, e isso foi apurando o meu gosto pela crítica. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, eu via muito teatro, e o Paulo Mendes Campos sofria em ter que sair de uma mesa de bar para assistir a

um espetáculo às 9h da noite. Aí ele me perguntou: “Você não quer ficar no meu lugar, não?”. A essas alturas, Décio de Almeida Prado já estava escrevendo críticas teatrais em São Paulo, ele já era uma referência para mim. Aliás, não só para mim, mas para todos que vieram depois dele. Por todos os motivos, em primeiro lugar, pelo conhecimento; depois pelo caráter, que é fundamental; e ainda por saber escrever – como escrevia bem! Nós fomos grandes amigos, e quando assumiu a direção do Suplemento Literário do Jornal O Estado de S. Paulo, ele me chamou para escrever a coluna de teatro. Eu acho que aquilo que eu fiz de mais interessante, do ponto de vista de opinião, eu fiz lá no Suplemento Literário. No Diário Carioca, como o espaço era muito pequeno, eu fazia crítica à prestação: escrevia sobre o texto num dia, sobre a direção no outro, sobre a interpretação no outro etc., e isso atrapalhava muito o raciocínio da crítica. Já no Jornal da Tarde, o espaço era variável, e às vezes ligavam para mim e pediam, de última hora, para eu diminuir a crítica, ou para aumentá-la em 10 ou 20 linhas, e eu achava isso um inferno. Continente outubro 2005


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CONVERSA Divulgação/AE

tagem de Vestido de Noiva, em 1943. Então ele fez um núcleo enorme de diretores, algo quase impossível de se imaginar, além de trazer para o TBC os melhores atores do Brasil. Tivemos Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Tônia Carrero e tanta gente de grande valor que não dá nem para listar. Mas, infelizmente, o Zampari achou de investir também em cinema, e isso acabou consumindo toda a fortuna dele, tornando inviável a continuidade do TBC. Qual tem sido o papel da crítica no desenvolvimento do teatro em nosso país? Eu acho que a crítica, num certo momento, tomou consciência de que estava havendo uma revolução teatral. Até então havia muitos críticos que eram, na verdade, publicistas das empresas teatrais. Quando alguns críticos começaram a tomar maior conhecimento do fenômeno teatral e passaram a criticar os espetáculos de forma mais severa, e com total liberdade, então a situação melhorou muito, a crítica pôde acompanhar a evolução do próprio teatro brasileiro. Hoje um crítico que não seja preparado, que não tenha uma boa formação teatral, não tem condições de ocupar um posto na imprensa. Mas, agora, o problema maior é o espaço cada vez mais reduzido nos jornais e nas revistas, o que torna quase impraticável uma crítica de qualidade. Eu acho isso lamentável.

“Oswald (de Andrade) foi uma descoberta posterior porque ele era um ótimo escritor, mas não se conhecia sua dramaturgia. Acho que minha descoberta de suas peças talvez tenha ajudado um pouco a repercutir seu teatro”

No seu exercício de crítico teatral, com quem o Sr. tentava dialogar prioritariamente: com a classe artística ou com o público? Eu acho que sempre tentei falar com os dois. Claro que uma crítica é voltada prioritariamente para o leitor do jornal, agora a gente também espera ter uma repercussão junto da própria classe teatral. Se a crítica não tem um vínculo com os criadores, ela fica no ar, não tem uma real concreEm sua opinião, qual foi o momento mais expressivo da ção. Por outro lado, eu acho que se não há uma cena de qualidade a crítica deve denunciar isso até que esse quadro recente história do teatro nacional? Por quê? Historicamente, foi fundamental a presença do grupo se reverta. Mas não se pode negar que é muito melhor, até “Os Comediantes”, no Rio de Janeiro. Eles deram um gran- para própria evolução da crítica, quando há um teatro pulde estímulo para a nova geração. Ao lado disso, houve o mo- sante e de alto nível. vimento do Teatro do Estudante, de Paschoal Carlos Magno, Como pesquisador, o Sr. estudou profundamente a obra e tudo isso acabou influenciando muito um italiano, industrial em São Paulo, Franco Zampari, que adorava teatro. Então, de Oswald de Andrade e a de Nelson Rodrigues. Como esses ele reuniu pessoas de grupos amadores paulistas, o que ele jul- dois autores se inserem na história da dramaturgia nacional? Cheguei a conhecer o Oswald, participei da famosa congava como mais importante, e fundou o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Nessa ocasião ele trouxe da Argentina ferência dele em Belo Horizonte, em que ele foi contestado um jovem diretor italiano, o Adolfo Celi, que depois acabou pelo meu amigo Otto Lara Resende, e a Sra. dele acabou deschamando outros italianos, como Luciano Salce, o Flamínio maiando na platéia, mas para mim o Oswald foi uma descoBollini, e por fim, o próprio Ziembinski, polonês que tinha berta posterior porque ele era um ótimo escritor, mas não se participado de “Os Comediantes”, dirigindo a histórica mon- conhecia sua dramaturgia. Acho que minha descoberta de Continente outubro 2005


CONVERSA suas peças foi algo muito pessoal e que, de algum modo, talvez tenha ajudado um pouco a repercutir seu teatro. Também, para isso, houve um momento fundamental que foi a estréia de O Rei da Vela, no Teatro Oficina. Eu fui convidado, antes, para fazer uma palestra sobre Oswald. Foi quando eu reli seus textos e tomei um susto: achei ótimo. Então eu falei muito bem dele, e acho que o espetáculo do Zé Celso foi fundamental para dar a Oswald o papel que ele merece no teatro brasileiro moderno. Agora o Nelson, que era também muito polemizado no começo, quando o chamavam de “pornográfico” e de outra porção de besteiras, transformou-se numa unanimidade nacional. Todo mundo toma Nelson como o exemplo de dramaturgo. E ele exerceu uma influência que eu posso atestar, porque Jorge Andrade, que foi meu aluno, ficou apaixonado quando eu indiquei a leitura das peças de Nelson – e a obra de Jorge tem a marca de Nelson. Plínio Marcos, outro dramaturgo da maior importância, também nunca escondeu que tinha paixão pelo Nelson Rodrigues.

Não vamos nem falar da importância de Nelson Rodrigues, que afinal de contas era pernambucano. Mas lembro que a ida do Teatro de Amadores de Pernambuco ao Sul do País foi algo extremamente importante. Todo mundo gostou muito, foi muito elogiado pela crítica, e se notava que havia ali possibilidade de um teatro, embora centrando numa família (os Oliveira), que tivesse uma grande unidade, uma grande responsabilidade e um grande resultado artístico também. Além disso, tivemos Hermilo Borba Filho, meu colega de crítica teatral em São Paulo nos anos 50, que juntamente com Ariano Suassuna, que é um dos maiores dramaturgos brasileiros de todos os tempos, e também com meu saudoso amigo Joel Pontes, fundaram o Teatro do Estudante de Pernambuco, que depois resultaria no Teatro Popular do Nordeste. Ou seja, são nomes que não deixam nenhuma dúvida em relação à qualidade do pensamento teatral de Pernambuco. É um Estado que possui uma grande tradição teatral, então isso tinha mesmo que se espalhar pelo resto do Brasil.

Adriana Medeiros/Divulgação

Augusto Boal (c): “Todo teatro é político”

“Eu prefiro um teatro mais engajado. Não somente um engajamento político, mas com a eterna tentativa de desvendar o que é o ser humano”

Que espaço tem o teatro na atual configuração da Academia Brasileira de Letras? A Academia gosta de teatro? Eu não diria enfaticamente que a Academia gosta de teatro. Mas a dramaturgia faz parte das Letras, então penso que poderia haver mais pessoas dessa área entre os acadêmicos. O que acontece, também, é que em geral as pessoas vão para a Academia com uma certa idade, em que já não vão tanto ao teatro, ou que saem pouco de casa (risos). E o teatro termina ficando um pouco marginalizado nas discussões. Mas não se deve esquecer que o grande Machado de Assis, fundador da Academia, foi dramaturgo e crítico teatral. Como o Sr. avaliaria a contribuição de Pernambuco para a consolidação do teatro moderno no país?

Para o diretor Augusto Boal, “todo teatro é político”. O Sr. concorda com essa afirmação? Qual o verdadeiro poder do teatro? Boal talvez use essa expressão para dizer que o teatro não engajado também é político porque ele termina fazendo uma propaganda reacionária. Mas eu acho que a gente pode ir ao teatro por um gosto, por um divertimento. Todo mundo tem o direito de se divertir, de fazer um passeio de barco, de passar uma bonita tarde num parque, e eu acho que também cabe perfeitamente um teatro mais ameno, digamos. Porém, eu prefiro um teatro mais engajado. Não somente um engajamento político, mas também um engajamento com a eterna tentativa de desvendar o que é o ser humano. E isso é fundamental. • Continente outubro 2005

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Outubro | 2005 Ano 05

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo e Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1808-7558 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente outubro 2005

Capa: Nélida Piñon, escritora Foto: Leonardo Aversa / Agência O Globo

Colaboradores desta edição: ANA LUIZA ANDRADE é professora da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora e autora de Osman Lins: Criação e Crítica, entre outros. ANDRÉ CERVINSKIS é escritor. CARLOS NEWTON JÚNIOR é escritor, doutor em literatura e professor da UFRN DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Perfis & Entrevistas, entre outros. EDUARDO DUARTE é jornalista, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor do Departamento de Comunicação Social da UFPE. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. FERNANDO GUERRA é arquiteto, acadêmico, membro da UPE/PE, do IAHGP, doutorando e professor da UFPE. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e Armada América, entre outros, e cineasta. FRANCISCO BRENNAND é artista plástico. FRANCISCO JOSÉ CHAGUACEDA é formado em filosofia pela Universidade de Salamanca (Espanha). JOSÉ CASTELLO é jornalista e escritor, autor de Inventário das Sombras (Record) e O Poeta da Paixão (Companhia das Letras). JUDITE BOTAFOGO é professora e mestra em Teoria Literária pela UFPE. LUCIANO TRIGO é jornalista, escritor e autor de Engenho e Memória eTodas as Histórias de Amor Terminam Mal, entre outros. LUÍS AUGUSTO REIS é jornalista, professor de teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura. MARCELO ABREU é jornalista. RENATO LIMA é jornalista e editor do Café Colombo, na Rádio Universitária.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.


CARTAS Malas infernais Rivaldo, não ouso escrever com tanta desenvoltura como você, mas por certo você encontrou o melhor caminho para mostrar a sua estupefação no artigo “Malas infernais” (edição nº 56 – agosto/2005). Conhecedor das coisas da lei que você é, memorialista dedicado, criou de fato e de direito uma pequena peça de nonsense que, por certo, ficará como exemplo de como tratar um fato histórico e grave. Você, corajoso como sempre, polêmico por natureza, escreveu sobre as malas infernais maravilhosamente bem. Charles Andrade, via e-mail Malas infernais 2 Caro Rivaldo Paiva, escritor de boa cepa e humor ferino, fiquei feliz com o seu recente “Últimas Palavras” (edição nº 56 – agosto/2005). A demonstração de verve e humor ferino que alegoricamente mostra a atual crise de Brasília é com certeza uma das mais cáusticas e, ao mesmo tempo, deliciosas, que na enxurrada de ilações publicadas na grande imprensa pode mostrar toda essa nossa indignação e espanto. Com Lula nascia a grande esperança mudancista, esperança esta repetida nas campanhas e solidificando na sua vitória que “a esperança venceu o medo”. E ela agora titubeia e não avança, pois vacila na aplicação das políticas sociais e reafirma o modelo macroeconômico preexistente de corte conservador. Logicamente, a eleição de Lula foi um marco importante na história republicana e é natural que as esperanças de mudanças depositadas em seu governo foram desproporcionais com o que era factível de ser feito. “Desculpe, mas é que encontrei aqui no portão uma mala” é quase que um grito dos excluídos, que nunca participariam desse festim de aliados nem um pouco confiáveis. Raul G. Branco, São Paulo – SP

Sugestões Sou leitor da Continente Multicultural há mais de dois anos e gosto muito da linha editorial e de pensamento da Revista. Mas há algumas sugestões que eu gostaria de dar a vocês: em primeiro lugar, é sobre a distribuição da Revista. Não são muitas as bancas em que encontramos a Continente, e em diversas situações tive que procurar com insistência as edições mais recentes. Outra coisa é a dificuldade de adquiri-la em outras cidades. Alguns amigos que moram em Brasília e em Belo Horizonte já tentaram comprá-la e não conseguiram. Uma pena privar outras cidades da qualidade da Continente. Gilberto do Nascimento, Recife – PE PT – Partido Trash? Estava eu tentando ler a última Continente (edição nº 57), enquanto o bar em frente a minha casa, na rua Cardeal Arcoverde, tocava um "pagodão" em pleno domingo. Lia e pensava como a Prefeitura administrada pelo PT me trata como cidadão de quinta categoria e permite tal fato, não obstante minhas queixas formalizadas. Num primeiro momento, me solidarizei com Rivaldo Paiva: a “armadilha” daquela gestão que deveria zelar pela nossa qualidade de vida, resultou naquela “calamidade” em frente à minha residência. Ao mesmo tempo, esperançoso como Ronaldo Correia de Brito, passei a acreditar que o “final rocambolesco” pode ser evitado, afinal, 2006 vem aí e o “culto ao lixo” pode ser superado. Porém, segundo José Teles, não confundamos o conceito de trash. Dizer que o PT é um Partido Trash poderia ser distorcido e aproximá-lo de alguma conotação popular. O PT é “grossura pura e simples”, além de “infame”. Adelino Montenegro – Recife – PE

Estandarte Jesus salva, Cafu passa a bola e Pelé acerta na rede. Saudações! Sempre achei que os pernambucanos salvam a gente da mediocridade. Principalmente, quando fiquei sabendo que vocês elegeram um bode na década de 40 para prefeito. E eu que só fiquei sabendo de vocês através da edição 56. Pronto, só falta fazer um cartaz A3 e pendurar feito um estandarte em mim. Não me canso de divulgar vocês. Sou baiana e apaixonada pelos pernambucanos desde o sotaque até a malícia de desinventar as grandes estruturas de poder a serviço da mediocridade. Rita Cajaiba, Salvador – BA Trash Quero parabenizar o professor Fernando Fontanella (“O culto ao lixo”, edição n º 57 – setembro de 2005), por suas colocações pertinentes e atuais. A mídia, as universidades, a sociedade em geral, necessitam de pessoas que consigam associar em seus pensamentos e atitudes autenticidade e coerência ao falar de cultura e de pós-modernidade. Betânia Moura, Recife – PE Turismo em francês Li a Continente Turismo em francês e achei bem bacanas as matérias e a parte gráfica, mas queria lhes avisar que achei vários erros de francês, a tradução não está perfeita. Emilie Lesclaux, Recife – PE Denise Stoklos Gostei muito da matéria da Denise Stoklos (edição nº 57 – setembro/2005), assinada pela Sara Correia. Tinha até coisa que eu não sabia – e olhe que eu sou fã!!! Luís Augusto Reis, Recife – PE

Spok

Leitor desta brilhante Revista, fiquei muito interessado no artigo sobre o Maestro Spok (edição nº 56, agosto/2005 ). Tendo morado no Recife, é sempre com muito prazer que escuto os frevos e cultuo seus compositores. Fernando Luiz Carneiro Rila, Rio de Janeiro – RJ

Linguagem O que mais me encanta na Revista Continente é a competência dos autores das diversas matérias: têm conhecimento, são profundos nos temas abordados e utilizam uma linguagem absolutamente clara. O trabalho de vocês nos faz orgulhosos de sermos pernambucanos. Jussara Freitas Baía, Recife – PE

Bibliografia Gostaria que vocês acrescentassem a bibliografia dos assuntos abordados no final de cada matéria, pois muitos estudantes precisam saber onde encontrar esses grandes acervos históricos. Luiz Cláudio Barroca, Jaboatão dos Guararapes – PE Tiragem Gostaria que vocês aumentassem a tiragem da Revista. Sugiro sua leitura aos meus alunos, mas eles nunca a encontram! Carla Andréa Pereira, Recife – PE

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes

O diálogo das diferenças A globalização representa a força marcada pela supremacia do capital e a potencialização da demanda por singularidade e por espaço para a diferença

O

mundo como conhecemos hoje, mesmo após a queda do muro de Berlim – transformada num sinal emblemático da vitória do capitalismo sobre o socialismo –, é composto de sociedades diferenciadas, caracterizadas por culturas singulares, cuja diversidade enriquece as relações sociais. As raízes dessas culturas são tão antigas quanto o processo de formação dessas sociedades. Elas retratam sentimentos religiosos e costumes, às vezes, milenares. Refletem formas consolidadas de convivência e códigos de conduta cristalizados que expressam através da cultura o caráter de cada povo. Em O Choque das Civilizações Samuel P. Huntington trata a cultura como um recurso de recomposição no mundo globalizado, afirmando que, “no mundo moderno, as distinções mais importantes entre os povos não são ideológicas, políticas ou econômicas, são culturais”. Para o autor, é a cultura através de suas peculiaridades que os diferenciam e ao mesmo tempo cria os espaços para sua integração. Nesse sentido, a globalização representa, ao mesmo tempo, a força marcada pela supremacia do capital e do mercado, entre regiões e nações, e a potencialização da demanda por singularidade e por espaço para a diferença, gerando a dicotomia entre a padronização e a diversidade. Se nas instâncias econômicas a globalização significa o retraimento da soberania dos Estados sobre essas, nas instâncias culturais o processo encontra a necessária resistência à perda das identidades e à anulação de culturas. É salutar e natural que ao movimento de globalização surja como contraponto o movimento da tribalização, no sentido da preservação das identidades culturais imprescindíveis ao equilíbrio vital das sociedades humanas. As diferenças são componentes de um contexto que se alimenta delas para a sua sobrevivência. O diálogo dos contrá-

rios gera espaços dialéticos e permite avanços de entendimento nas relações sociais. Na lúcida defesa de uma ordem mundial baseada no conflito entre civilizações, originada pelas diferenças culturais, Huntington diz que o entendimento entre pessoas e entre nações emerge das diferenças. A retórica de um mundo igualitário é fantasiosa e desnecessária para um entendimento global. No mundo real, vê-se que ele tem razão, pois a unidade das pessoas de uma família não é ameaçada pelas diferenças entre seus membros. O tecido social da unidade de uma nação não se esgarçará pelas peculiaridades de seus costumes. A integração da sociedade global não será atingida pelas diferenças preexistentes nos seus contextos culturais. O relacionamento articulado entre as pessoas e entre as nações não pode ser construído sob o jugo da dominação econômica, ideológica ou cultural. A globalização não pode permitir esse erro estratégico. Assim, recorremos às lições de Lawrence e Lorsch, para dizer que as diferenças são essenciais para se manter a integração entre os elementos de uma instituição, considerando que elas são fontes de estímulo para o alcance de objetivos, desde que sejam preservados, simultaneamente, graus de integração e de diferenciação. Destarte, fica claro que globalização não pode ferir a lógica da sobrevivência política e da convivência social das sociedades humanas. A conformação de uma cultura global comunitária e homogênea além de não ser desejável está inserida no que chamamos de teia de impossibilidades. A diversidade cultural deve ser preservada no sentido de se manter, segundo os preceitos naturais da vida, a sobrevivência das civilizações. Para tanto, sob quaisquer pretextos e mesmo sob quaisquer ameaças, tem-se que manter incondicionalmente a liberdade do arbítrio no diálogo das diferenças. •

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CAPA

“A memória e a invenção têm uma fonte comum”

Nélida Piñon Em seus contos e romances, a escritora integra as tradições e raízes culturais do continente latinoamericano, numa prosa que recorre a diversos estilos para combinar realidade, fantasia e memória Luciano Trigo


Fernanda Fernandes/AE

CAPA 13


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CAPA

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A Galícia, terra da família de Nélida, está presente em sua obra com suas lendas e oralidade

alando ou escrevendo, Nélida Piñon demonstra o mesmo cuidado com as palavras. Seu próprio nome é um anagrama do nome do pai, Daniel, um comerciante originário da Galícia. Para Nélida, a palavra é o instrumento que mais diretamente põe o homem a nu, em contato consigo mesmo, com seus problemas individuais, com suas dramáticas contradições enquanto ser social e político, cultural e economicamente determinado. Daí a sua consciência da função do escritor, que não deve se limitar apenas a criar, sua tarefa máxima, mas também deve emprestar sua consciência à consciência dos seus leitores, sobretudo num país como o Brasil, onde é preciso fazer com que o povo reflita sobre a sua existência e reivindique uma realidade melhor e mais justa. Carioca de Vila Isabel, a escritora se formou em jornalismo pela PUC-RJ e ampliou seus estudos na Universidade de Colúmbia. Como jornalista, trabalhou nas revistas Cadernos Brasileiros e Tempo Brasileiro. Foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, onde ocupa, desde 1989, a cadeira de número 30. Doutora honoris causa em universidades da França, do Canadá e da Espanha, Nélida vem colecionando as maiores honrarias que um escritor pode almejar. Em 1995, foi a vencedora do Prêmio Internacional de Literatura Juan Rulfo, concedido então pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa Em 2003, recebeu o Prêmio Internacional Menéndez Pelayo; e, em junho de 2005, foi a vez do cobiçado Prêmio Príncipe de Astúrias. Agora, acaba de ganhar o Jabuti, o mais prestigiado prêmio literário brasileiro. Além disso, já foi apontada pela New York Review of Books a melhor escritora brasileira, além de ter sido capa da revista acadêmica americana World Literature Today, o que costuma ser um degrau para o Nobel de Literatura. Em seus contos e romances, Nélida integra as diversas tradições e raízes culturais do continente latino-americano, numa prosa que recorre a diversos estilos para combinar realidade, fantasia e memória. Ela também ficou conhecida como uma firme defensora dos direitos humanos, especialmente os da mulher, e exerceu funções em diversas entidades culturais do Rio de Janeiro. H. Spichtinger/Zefa/Corbis


CAPA É uma viajante contumaz, freqüentadora assídua de congressos, seminários e encontros internacionais, proferindo conferências sobre temas ligados à cultura, à literatura e à criação literária. Deu cursos na City University of New York, na Columbia University, na Johns Hopkins University em Baltimore, na Universidade Católica de Lima, na Sorbonne, na Universidade Complutense de Madri, e em outras universidade internacionais. As viagens para outros países foram fundamentais para sua biografia e sua obra e para melhor mostrar-lhe o Brasil, país que é para ela a preocupação maior, a razão da sua inquietação intelectual. A estréia literária de Nélida foi com o romance Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que trata do tema do pecado, do perdão e da relação dos mortais com Deus, por meio do diálogo entre a protagonista e seu anjo da guarda. Desde então a escritora vem introduzindo em sua ficção uma preocupação com a renovação formal da linguagem literária. No romance Fundador, de 1969, Nélida abandona a base realista para misturar personagens históricos e ficcionais, criando um mundo eminentemente estético. Em 1972, publica A Casa da Paixão, romance em que irrompe o tema do desejo e da iniciação sexual. Publica a seguir livros de contos e mais dois romances, até lançar o ambicioso romance autobiográfico A República dos Sonhos, em 1984, que narra a saga de uma família da Galícia que emigra para o Brasil. Em A Doce Canção de Caetana, romance de denúncia política publicado em 1987, a autora faz uma incursão ao universo de uma cidade do interior, Trindade, na época do milagre brasileiro, no começo dos anos 70. Já no livro O Pão de Cada Dia, de 1994, Nélida Piñon deixa de lado a moderna ficção na qual se consagrou para empreender uma reflexão profunda sobre as inquietações do homem, através de fragmentos. Em mais de 40 anos de atividade literária ininterrupta, Nélida publicou ainda Madeira Feita Cruz (romance, 1963), Tempo das Frutas (contos, 1966); Sala de Armas (contos, 1973); Tebas do meu Coração (romance, 1974); A Força do Destino (romance, 1977); O Calor das Coisas (contos, 1989) e A Roda do Vento, romance infanto-juvenil (1996). No momento ela está concluindo O Ritual da Arte, ensaio sobre a criação literária.

configuram uma “singular teoria da mestiçagem”. A senhora concorda? Como esta mestiçagem se manifesta? A mestiçagem a que me refiro excede à estreiteza étnica, que pouco importa frente ao legado civilizatório, de que somos irrenunciáveis herdeiros. A cultura coletiva é frutífera e poderosa, quando se deixa infiltrar pelas instâncias representativas da condição humana. Penso que viemos de longe. Nossas irradiações são aparentemente latinas e ibéricas. Elas integram o nosso ser e o mistério que o cerca. Mas, de fato, somos múltiplos, dispersos, mestiços. Fomos visigodos, iberos, celtas, gregos, romanos, árabes, africanos, antes de sermos qualquer coisa, antes de sermos ibero-americanos. E como originários Considera-sse uma possível vencedora de uma das deste universo abrasivo, desta fermentação fáustica, a próximas edições do Prêmio Nobel? nossa carnalidade é o berço de bárbaros e civilizados. Isto é, para mim, algo impensável, abstrato e lon- Assim, a frase que ora pronuncio traz em seu bojo ingredientes cuja etimologia cultural não traduzo, pois pergínquo. tence à esfera de um impenetrável enigma poético. O júri do prêmio Príncipe de Astúrias destacou que, Homero só chega a nós, se aceitarmos o seu advento em sua obra, confluem diversas tradições literárias, que narrativo, se acatarmos seus mitos, seus aedos, o espírito

Recentemente, a senhora foi capa da revista World Literature Today, o que só acontece com escritores mundialmente consagrados, e recebeu os Prêmios Juan Rulfo e Príncipe de Astúrias. Qual a importância desse crescente reconhecimento internacional de sua obra? A trajetória individual do escritor é paulatina, sobretudo para quem vive no Brasil e escreve na amada língua lusa. Não fugi a uma lenta e penosa ascensão que deixou seqüelas em minha alma. São muitos anos de carreira, de irrestrita devoção à literatura. Quanto aos fatos mencionados, eles me comovem. Sinto-me honrada por representar meu país nos cenários internacionais.

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CAPA da aventura que a sua Odisséia implantou no espírito humano. Existe uma literatura feminina e outra masculina? Ou o texto não tem sexo? O escritor é dono eventual de uma genitália. Sua imaginação, porém, circula pelos meandros sociais, o que o torna uma criatura proteica, capaz de ser homem, mulher, animal, mineral, vegetal ao mesmo tempo. Não há interdições e pruridos falsamente morais no desejo humano. Se uma versão humana não alcança plenitude na obra literária, o autor falhou. Flaubert esboça Emma Bovary com a convicção de ser a mulher que o romance requeria. Invadir a carne alheia, e tratá-la com os distúrbios que o personagem requer, é o ofício do escritor. Claro está que as características dominantes do seu gênero prevalecem em certos grotões da narrativa. E não há que privar o discurso narrativo destes estigmas naturais, provenientes do sexo de cada qual. Mas acredito no poder da linguagem, da imaginação, dos desígnios da arte , que facilitam o trânsito pela espécie humana sem medo, com raiva, com irrenunciável compaixão . Realidade e memória de um lado, fantasia e sonhos do outro. Seriam estes os ingredientes de sua obra? De que maneira a senhora os equilibra? Não há situações estanques na arte. O filtro é impuro e complexo. Ao nascer o texto do caos humano, ele traz em seu bojo imposições estéticas que engendram equívocos ou acertos. A memória e a invenção têm uma fonte comum, são indissolúveis. O equilíbrio provém do saber narrativo, de um manancial que propicia o advento da obra de arte. Não há, pois, discrepâncias entre as noções que guardamos da realidade. De que forma a tradição da cultura da Galícia influencia sua obra, temática e estilisticamente? Eu sou mulher de dupla cultura. Digo com isto que tive o privilégio de crescer sob o feitiço do Brasil e da minúscula Galícia, terra da minha família. Para esta Galícia fui levada menina, quando aprendi suas lendas, sua língua. Assimilei sua poderosa oralidade, pois ali é o território onde as histórias, uma vez iniciadas, não merecem parágrafo. Além do mais, estudei em colégio alemão, sofri a influência de várias culturas que amo e sem as quais não teria o imaginário que sustenta minha visão de mundo. Sou herdeira de tudo que penso e imagino. Continente outubro 2005

Reprodução

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“Vila Isabel foi minha casa espiritual por muito tempo. Mesmo quando nos mudamos para Copacabana, íamos à casa dos avós visitar as raízes familiares. A cultura popular me enriqueceu”


CAPA Quanto mais me infiltro de matéria espúria, melhor me Botafogo, quase vizinhas de Alceu Amoroso Lima...Via também o filho do cantor Francisco Alves... E quantos apresento diante da página em branco. delírios mais não pratiquei em nome da vida que me Fale sobre sua participação na luta contra o regime impulsionava a tocar os seus limites? militar no Brasil e sua defesa tenaz dos direitos humanos A senhora foi a primeira mulher a presidir a Acadeem geral, e da mulher, em particular. Fiz o que pude. Fui reforçando minha consciência à mia Brasileira de Letras. Que balanço faz de sua gestão? medida que enfrentava uma realidade adversa, cobrando A senhora acha que a ABL deve se popularizar, acolhenDivulgação/ABL do autores de sucesso como Paulo Coelho? E Jô Soares? A presidência da ABL, no ano do seu primeiro centenário, foi um desafio e uma prova de amor pela instituição. Servi à casa com exemplar devoção, seguindo as regras que imponho à minha vida de escritora e de mulher. A instituição ocupa um espaço privilegiado no imaginário brasileiro e deve acolher aqueles autores, aqueles notáveis que, de verdade, correspondem à elevada expectativa de uma nação.

nossa desistência social. Penso que é inevitável lançar-se às campanhas humanas que preservam a justiça, os direitos humanos. O silêncio está em desacordo com a visão que tenho do escritor . E, como mulher, jamais deixei de defender os direitos deste ser tão ofendido historicamente. É um assunto profundamente caro ao meu coração. Não sou nada sem o apetite incomensurável pela compaixão, que é o estado puro do amor . A senhora passou sua infância em Vila Isabel, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Em que medida a cultura popular carioca a influenciou? Vila Isabel foi minha casa espiritual por muito tempo. Mesmo quando nos mudamos para Copacabana, íamos à casa dos avós visitar as raízes familiares. A cultura popular me enriqueceu. Poucos sabem que fui freqüentadora da Rádio Nacional, do programa do César de Alencar, do Trem da Alegria, e, sob o nome de Tereza, instada pela própria, que era meia-irmã de meu pai, telefonava para a cantora Marlene. Com que interesse via as irmãs Batista passarem, moradoras da rua Dona Mariana, em

Foi a busca por suas raízes que a levou progressivamente do jornalismo à literatura? Fale sobre isso. Desde menina eu quis ser escritora. Penso que cheguei à escritura levada por uma irresistível atração pela aventura. Sonhava em jamais dormir uma segunda noite sob o mesmo teto, ainda que no lar fosse uma menina feliz. Eu queria ser Simbad, singrar sem jamais me deter. Acreditava que, para escrever, era preciso viver com ferocidade, arriscarse, conhecer a solidão do navegante, do cavaleiro perdido no descampado. Ser o herói ou a heroína que segue as pegadas que o levam ao Graal ou ao Velocino de Ouro . Fale sobre o contexto da cultura brasileira em 1961, ano em que a senhora publicou seu primeiro livro, Guia Mapa de Gabriel Arcanjo. A meu juízo, era um contexto pobre, limitado, desestimulante. O país parecia alijado dos grandes centros civilizatórios. No entanto, em meio a esta inocência e incredulidade culturais, havia uma fascinante matriz que protegia nossas discretas utopias. A realidade, sem dúvida mais modesta que hoje, não expulsava os artifícios maravilhosos da arte. Eu jamais senti que aquele marasmo e a ditadura militar posterior tivessem roubado minha capacidade de pensar, de ler, de suprir-me com informações, de compensar as carências culturais com intenso Continente outubro 2005

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Nélida, à direita, de casaco preto, em chá na Academia Brasileira de Letras


CAPA

Reunião de talentos: Jorge Amado, o escritor peruano Mario Vargas-Llosa, mulher não identificada, Nélida e, de perfil, Caetano Veloso

A identidade brasileira está obrigatoriamente preesforço intelectual. Éramos mais coerentes com a nossa pobreza do que somos hoje, com a nossa falsa noção de sente em minha literatura. Se não estiver na língua que escrevo, na linguagem que engendro, nas paixões que progresso registro e capto, onde mais haveria de estar, para mim Em 1970 a senhora inaugurou a primeira cadeira de mesma? Eu sou o que penso, e o que penso é também a criação literária na UFRJ. É possível ensinar alguém a pátria que forjo. Não tenho outros recursos senão o risco ser escritor? de esclarecer o Brasil para mim e para meus contemO escritor nasce de uma conjuntura excepcional. porâneos. Se me faltar esta convicção, mais vale mutilar o Mas acredito que sim, que se pode fazê-lo entender que meu corpus narrador. sua arte cresce à medida que ele domina as regras intenVamos falar um pouco sobre a situação do escritor. sas do seu ofício. Penso que é possível ajudá-lo a queimar etapas, a se dar conta de que sua aprendizagem o municia As editoras funcionam cada vez mais segundo razões de com um conhecimento que irá servi-lo até o final do seu mercado. Isso coloca em risco a emergência de novos talentos? Como a senhora avalia o estado atual da liteprocesso criativo. ratura brasileira? Existe renovação? Quais são os seus livros mais confessionais? Existe O mercado, como um todo, amplia o seu controle literatura que não seja confessional? Existe memória que estético, com isto desonerando o escritor do risco criativo. não seja também invenção? Se o sistema literário se contamina, o escritor pode sofrer Todo romance arrasta consigo alguns lampejos con- o agravante de, como um novo Fausto, entregar sua alma fessionais. A literatura se faz a partir de um corpo que le- ao mercado. Torna-se mais difícil, para ele, oferecer a va nome, biografia, tradições literárias. Penso que O Pão reação que deve estar presente naqueles com real vocação de Cada Dia, que é uma espécie de diário do pensamento, pela literatura. Convém enfatizar que, em qualquer época, nunca foi fácil devotar-se à literatura. Se o mercado tem esta característica. atual nos alicia com facilidades pecuniárias, o do passado A senhora considera que sua literatura é uma nos desestimulava pela falta de perspectivas. Conclusão: forma de refletir sobre a identidade brasileira? Em o verdadeiro criador entrega-se mesmo é à paixão da liteque sentido? ratura, que é incorruptível. • Continente outubro 2005

Matinas Suzuki Jr./Folha Imagem

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Dadá Cardoso Folha Imagem

CAPA

A força do arcaico A literatura de Nélida Piñon, toda ela, conserva caráter de permanência e de resistência José Castello

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omo no clássico árabe Mil e Uma Noites, também o premiado romance de Nélida Piñon, Vozes do Deserto (editora Record) – que acaba de receber o prêmio Jabuti 2005 – trata das difíceis e, muitas vezes, sangrentas relações entre a imaginação e a tirania. Que limites devemos impor às fantasias? Elas devem combinar com o real, a ele se submeter, ou simplesmente descartálo? Qual o lugar ocupado pelo poeta na cada dia mais turbulenta república dos homens? É um embate antigo, que vem de tempos remotos, e se perpetua sem perspectiva de desfecho. Ele faz parte, enfim, da própria condição humana, e é travado não só no campo da história, mas também na vida íntima de cada um de nós. Uma das vozes que se levantaram com mais vigor contra a opressão política durante o regime militar, Nélida Piñon é uma especialista no tema da resistência. Vozes do Deserto é, de certo modo, uma recriação livre das Mil e Uma Noites, a longa história de Scherezade e as intermináveis históContinente outubro 2005


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CAPA rias que ela desfia para acalmar seu Califa, na esperança de conter, ou pelo menos adiar, uma condenação à morte. A narração contra a opressão: é uma luta velha, que nunca se esgota. E são os temas arcaicos, as fixações mais antigas, que interessam a Nélida. Em Vozes do Deserto, Nélida Piñon tem a ousadia de retomar a narrativa clássica, tornando ainda mais inesgotável a história da infeliz Scherezade, que ela agora observa por dentro. A sem cerimônia, mas também a elegância com que ela se apropria das Mil e Uma Noites, efeito de um princípio segundo o qual as palavras não pertencem a ninguém e estão aí para serem repetidas e amadas, é o grande trunfo do romance. Mil anos depois,

de retornar. Carioca de Vila Isabel, Nélida escreve relatos nos quais, como na história presente – basta pensar no noticiário da imprensa, nos flashes instantâneos da TV a cabo, ou nos depoimentos nas CPIs –, verdades e lendas se misturam de um modo perturbador. Seus críticos, algumas vezes, se incomodam com a proximidade de seus relatos com a retórica; mas essa restrição se desfaz, se pensarmos no tom expressivo, na linguagem próxima das lendas e dos contos imaginários, com que Nélida narra seus romances. Com essa estratégia, ela transforma a literatura numa espécie delicada de arqueologia, já que, em um mundo fluido e que nos escapa por entre os dedos, só as fic-

Nélida Piñon luta em defesa de uma literatura densa e culta em um universo no qual predominam as narrativas de desafogo, as confissões egocêntricas e as aventuras de fôlego curto

Nélida se coloca no lugar de Scherezade para relatar sua aventura interior. A literatura de Nélida, toda ela, conserva esse caráter de permanência e de resistência. Resistência da força da língua e de sua potência expressiva, em um mundo cada vez mais apressado, mais seduzido pela linguagem sintética e pelos clichês. Luta em defesa de uma literatura densa e culta – para escrever Vozes do Deserto, Nélida pesquisou por cinco anos a cultura e a literatura árabes – em um universo no qual predominam as narrativas de desafogo, as confissões egocêntricas e as aventuras de fôlego curto. Resistência para retomar o espírito das sagas, já experimentado em seu monumental A República dos sonhos, de 1984, romance em que ela recria a lenda dos imigrantes heróicos que vieram da Galícia, Espanha, uma das regiões mais pobres da Europa, de onde veio também sua própria família e para onde ela não se cansa Continente outubro 2005

ções, muitas vezes, podem desencavar e reter aquilo que se perdeu. Desde Fundador, romance publicado em 1969, Nélida abandonou suas primeiras experiências realistas para praticar uma literatura gerida pela imaginação e na qual a ficção ombreia com a memória e com a história. Essa experiência amadurece em livros como Tebas do meu Coração, de 1974, e, em particular, em A Doce Canção de Caetana, de 1987, narrativa na qual a história se confunde com a denúncia política. Seu livro de discursos, O Presumível Coração da América, de 2002, reafirma sua vocação para a oratória, a linguagem veemente e o pensamento reflexivo. Fato que se cristalizou, quando, em 1996, Nélida se tornou a primeira mulher a ocupar a presidência da Academia Brasileira de Letras. Os preconceitos contra a literatura de Nélida, que começam por certo na repulsa difusa, mas persistente, à escrita feminina, se explicam também por algumas


CAPA de suas ousadias, como a de vasculhar a História sem se converter em historiadora, e a de tornear a língua, muitas vezes com o preciosismo e a sedução dos barrocos, sem a chancela dos filólogos e lingüistas; ou simplesmente a de escrever longos romances, repletos de desvios e de bifurcações, em uma época em que também os escritores andam apressados, e cultivam a ilusão de sincronizar com a volatilidade de seu tempo. Nélida é, provavelmente, a escritora brasileira mais premiada no exterior – como atestam os prêmios Juan Rulfo, recebido em 1995, e Príncipe de Astúrias das Letras, em 2005. Está traduzida em mais de 20 países, e em 10 línguas. Desde 1990, é também professora catedrática da Universidade de Miami. A carreira internacional parece ter como efeito perverso uma certa desconfiança no meio literário brasileiro.

Custamos, de fato, a penetrar em um romance de Nélida – assim como não é fácil sincronizar com as longas e tortuosas narrativas de um José Saramago. A preguiça, na maior parte das vezes, vence; mas isso não é um problema da literatura, e, sim, do mundo de hoje. Nélida – como Saramago – faz uma literatura “antiga”, que ainda acredita na persistência da narração, em seu peso doloroso e em sua presença perturbadora; que a vê como uma floresta que deve ser atravessada passo a passo, com prudência e firmeza, ou seremos devorados na primeira curva. Não é fácil ler Nélida Piñon, talvez não seja mesmo cômodo, e pode ser até que a leitura nos desperte mais desconforto que prazer. Mas nada disso rouba a força com que ela se atira, de corpo inteiro, no mar das palavras. •

O revólver da paixão Nélida Piñon

E

u sei que errei, mas não me deixes agora. Eu protestei contra o que me parecia tua culpa. Tu me olhaste afiando os olhos no meu rosto. Me senti retalhada, diferente das vezes em que me cortaste e não sofri. Bem ao contrário, a carne me sorria, eu deixava que tu me tivesses, porque a carne era minha alma. Por favor, compreende o meu ciúme, é ele, voraz e nervoso, que me proíbe liberar o teu corpo para os corpos inimigos. E aconselhas-me a matar-te. Mas matar com cuidado de ourives traçando mil desenhos em tua carne para que mesmo morto deixes o mundo enfeitado com meu estigma. Meu Deus, sei que prometi controlar-me. Não te seguir mais. Deixar-te livre para a vida. Mas que vida é esta que tu reclamas onde eu não ocupo a melhor porção? Como podes pensar que agüento ver-te tragando vida com chope, sem que eu passe pela tua boca, te beije, te lamba, e tu sorrias ligado à terra, porque sou o teu húmus, o teu esperma, eu sou o teu membro, eu sou tu.

Não, não reclames, tu me queres assim mesmo, ainda que selvagem eu te cause medo, ameace a tua liberdade. Ou me querias selvagem só na cama? E no espaço da vida me exijas atada por tuas próprias mãos? Mas eu me rebelo. Ou serás só meu, ou te mato. Não, eu não quero te matar, como haveria de viver sem a tua alegria, o modo com despertas jovem e jubilado. Eu te tomo nos braços, sou tão ansiosa, tão perdida na própria paixão. Tu brincas comigo, dizes que não tomo jeito, mas tu estás povoado de orgulho do mesmo modo como te povôo de lendas. Eu te enfeito com histórias que ninguém, senão eu, leu em ti. Tu sabes o poema que farei amanhã, a palavra que perderei no futuro se me escapas agora. Não te autorizo a deixar-me. Ouviste o que eu disse? Não te dou licença de passear pela terra, de ter um futuro em que eu não esteja inteira. Abertura do conto que integra a coletânea de literatura erótica Intimidades, reunindo cinco escritoras brasileiras e cinco portuguesas, sob coordenação de Luísa Coelho, publicada este mês pela Editora Record. •

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LITERATURA

Delicadeza e violência na literatura coreana

Tradição literária da Coréia se espalha pelo mundo, é homenageada na Feira do Livro de Frankfurt e chega ao Brasil Marcelo Abreu


LITERATURA Imagens: Reprodução

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O

desenvolvimento econômico da Coréia do Sul, que começou com a mãode-ferro militar fabricando aço e navios nos anos 60, chega agora ao Ocidente também através de suaves formas literárias que exploram a poética do pêssego e do crisântemo, imagens recorrentes nessa literatura. A vasta tradição literária do país asiático é a grande homenageada na 57ª versão da Feira do Livro de Frankfurt, a mais importante reunião da indústria editorial do mundo, que ocorre neste mês de outubro na Alemanha. Escrita em uma língua de pouca difusão mundial, a literatura coreana tem se expandido através da tradução de obras de seus principais romancistas e poetas. Das mais de 1000 obras já traduzidas, mais de 300 foram publicadas, nas últimas duas décadas, em línguas de grande difusão como o inglês, francês e espanhol. Somente para a Feira de Frankfurt deste ano, cerca de 20 novos trabalhos serão lançados em alemão. São números expressivos, quando comparados, por exemplo, às traduções de livros brasileiros no exterior. O Brasil não fica fora do avanço coreano. Desde 1993, três livros foram publicados no Brasil, traduzidos diretamente do coreano para o português, e outro deve sair em 2006. A Coréia se orgulha de ter uma longa tradição na impressão de livros. Desde o século 8 eram usados blocos de madeira para imprimir escrituras budistas. Em 1234, mais de 200 anos antes de Gutenberg fazer a primeira impressão da Bíblia, foi publicado na Coréia um livro impresso com tipos móveis de metal, fato reconhecido pela Unesco em 2001. Um dos tesouros nacionais mais bem guardados até hoje é a Tripitaka Koreana, uma extensa coleção de textos budistas impressos entre 1236 e 1251.

Pintura do século 18, mostrando a dança de espadas


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LITERATURA

A partir da esquerda, a tradutora coreana-brasileira Yun Jung Im, o poeta Yi Sang, aspirante a pintor, e Hwang Sok-Yong

Para o estágio atual da literatura, contribuiu a invenção de um sistema de escrita próprio, o único que se conhece no mundo inventado por encomenda. Até o século 15, os coreanos utilizavam exclusivamente os milhares de ideogramas chineses para grafar a sua língua. Em 1446, o rei Sejong estabeleceu por decreto o uso de um alfabeto que havia sido criado por uma comissão de estudiosos, especialmente reunida para inventar um sistema de escrita que pudesse ser dominado com facilidade por toda a população. Após três anos de estudos, os especialistas apareceram com o hangul, uma escrita extremamente simples e prática, que começou a ser introduzida na época. Porém, apenas no início do século 20 é que o alfabeto suplantou os caracteres chineses, difundiu-se e passou a ser usado em todos os tipos de publicação. Para conseguir difusão de sua literatura no exterior, o governo coreano estabeleceu nas últimas décadas instituições de fomento à tradução que patrocinam edições no exterior e dão bolsas a tradutores. É o caso da Fundação de Artes e Cultura Coreana e do Instituto de Tradução da Literatura Coreana. A Coréia do Norte, que desde 1945 vive sob um regime dogmático de partido único, tem uma literatura voltada para o culto à personalidade e o nacionalismo. O romance Cano de Uma Arma, lançado em 2003, é um exemplo disso. Mas é a Coréia do Sul, potência capitalista emergente, que tem um mercado editorial movimentado e em expansão. Em 2004, por exemplo, foram vendidos 110 milhões de exemplares e publicados 35.394 novos títulos (71% dos quais de autores coreanos). No Brasil, que tem uma população mais de três vezes maior, o número de títulos publicados no mesmo ano ficou em 34.858 (incluindo reedições e didáticos). Continente outubro 2005

A Coréia do Sul tem 1.715 editoras em atividade permanente e 3.589 livrarias e papelarias que vendem livros (86 delas com área de mais de 600 metros quadrados). Seul tem, pelo menos, três lojas que figurariam facilmente numa lista das maiores livrarias do mundo. A ameaça das novas tecnologias (a Coréia é um dos países mais avançados no uso da internet) tem sido enfrentada com criatividade pela indústria do livro impresso: as editoras investiram na criação de novas tipologias, mais atrativas, papel mais agradável para o contato táctil com os dedos e diagramação inovadora. A venda online de livros impressos cresce continuamente. Calcula-se que cada coreano lê em média 11 livros por ano, o que os coloca entre os grandes leitores do mundo. Um mercado grande também para autores estrangeiros como Umberto Eco, Paul Auster e Paulo Coelho, que são avidamente consumidos por lá. Dentro desse contexto, o reconhecimento de Frankfurt é uma oportunidade rara para mostrar o que o poeta Ko Un chama de “literatura da adversidade”, que sobreviveu a séculos de invasões chinesas e mongóis, a 35 anos de dominação japonesa, à guerra da Coréia (1950-53) e à ditadura militar na parte sul da península. Entre as dezenas de escritores coreanos conhecidos nos meios intelectuais da Europa e dos Estados Unidos, Yi Mun-Yeol é talvez o de maior prestígio. Seus livros, editados em uma dúzia de línguas ocidentais, têm chamado a atenção pelas alegorias e fábulas que usa para falar de política. Viva o Imperador, por exemplo, conta a história de um homem que acreditava ter sido escolhido pelos céus para fundar uma nova dinastia que, a exemplo da dinastia Yi, duraria 800 anos. Uma parábola sobre o poder e a transcendência e os mecanismos pelo quais o ser humano tenta escapar das situações difíceis.


LITERATURA

“Escolher temas como a guerra, o universo feminino ou o mundo dos idosos pode ser mais interessante para revelar visões de uma cultura sobre um determinado tema” O poeta So Chong-Ju, nascido em 1915, e o romancista Yi Munyeol, muito traduzido no Ocidente

Nosso Herói Desfigurado, uma das obras coreanas mais traduzidas no exterior, narra a história de um aluno que trata de forma violenta os colegas na escola, com a aprovação do professor. O aluno reaparece como adulto na segunda metade do livro para atormentar o narrador. MunYeol mostra como as pessoas podem ser governadas e desfiguradas pela ideologia. Nascido em 1948, Yi Mun-Yeol recebeu os maiores prêmios literários em seu país e tem sido lembrado para um eventual Nobel de Literatura. Como o Prêmio Nobel muitas vezes volta suas atenções para literaturas pouco conhecidas fora do eixo EUA-Europa Ocidental, não é improvável que um coreano venha a receber o prêmio. Outra vertente do trabalho de Mun-Yeol são os livros que utilizam memórias autobiográficas para examinar a perda da identidade e o colapso da idéia de comunidade, como é o caso de Você Nunca Voltará à Sua Pátria. Outro coreano sempre citado como eventual ganhador do Nobel é o poeta Ko Un. Nascido em 1933, Ko teve seus estudos interrompidos pela Guerra da Coréia e tornou-se um monge budista em 1952. Depois de anos vagueando pelo país, passou a ter uma vida sedentária e voltou-se para a literatura, produzindo trabalhos de cunho místico. Nos anos 70, participou ativamente de movimento pró-democracia na Coréia do Sul, e escreveu dois poemas épicos. Em um deles, Genealogia de Todos Nós, descreve cores e contornos dos personagens, descartando restrições de tempo e espaço e desvendando “camadas da consciência nacional”. O maior nome da poesia coreana no século 20, para muitos, é So Chong-Ju. Nascido em 1915, So Chong-Ju foi também um poeta andarilho na juventude. É considerado um grande manipulador da linguagem e praticante de uma estética refinada. Articula emoções populares e sensuais a uma

profunda reflexão filosófica. Influenciado por Baudelaire no início (no livro Serpente da Flor, de 1938), depois se converteu à tradição budista e se tornou mais introspectivo, como nos poemas do livro A Essência de Silla, de 1960. Outra figura proeminente é o romancista Hwang SokYong. Nascido em 1943 na Manchúria, sob ocupação japonesa, a vida de Hwang se mistura com a tumultuada história coreana. Como se não bastasse a Guerra da Coréia, a divisão do país, ele ainda serviu na Guerra do Vietnã, ao lado das tropas pró-americanas, e combateu a ditadura militar na Coréia do Sul. Em 1993, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional de seu país e encarcerado por ter visitado a Coréia do Norte. Ficou cinco anos na prisão. Em meio a toda essa turbulência, tem escrito romances históricos e livros que falam da vida devastada por guerra e militares, obras em que expressa o desejo de uma volta a alguns valores do passado. Há 20 anos a literatura coreana começou a chegar ao Brasil com a coletânea Contos Coreanos, que apresentava textos traduzidos do inglês pelo diplomata Luís Palmery e foi publicada pela editora do projeto RioArte. Mas foi em 1993 que trabalhos mais refinados começaram a ser publicados. Naquele ano, saiu a antologia O Pássaro que Comeu o Sol – Poesia Moderna da Coréia (Editora Arte Pau-Brasil), com tradução de Yun Jung Im, uma coreana que vive no Brasil desde os 10 anos de idade e é doutora em Semiótica pela PUC-SP. O livro traça um panorama da poesia no século 20,com trabalhos de 40 poetas, entre eles o célebre So Chong-Ju e Kim Guwag-Gyum, que incorpora elementos urbanos modernos à sua visão poética. O Pássaro... teve a apresentação do poeta Paulo Leminski, que se encantou com a “doce melancolia que impregna tudo” na poesia moderna coreana. Leminski escreveu na introdução que o livro é um “ramo de flores, iluminado”. Continente outubro 2005

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Coleção de textos budistas Tripitaka Koreana

Um ano depois, Yun voltou à carga com a antologia Sijô – Poesiacanto Coreana Clássica (Editora Iluminuras), traduzido em parceria com Alberto Marsicano e com apresentação de Haroldo de Campos. Yun Jung Im conta que foi justamente o contato com Haroldo de Campos que a fez se aproximar da literatura. Contrariando o desejo do pai, que queria que ela estudasse Letras, Yun foi estudar Química na USP, mas durante o curso acabou conhecendo um rapaz chamado Ivan, que – viria a saber depois – era filho de Haroldo de Campos. Quando passou a freqüentar a casa do novo amigo, Campos, sempre muito interessado pelo Oriente, começou a lhe indagar sobre a literatura coreana. Acabou fazendo Yun descobrir a sua vocação no campo das Letras e incentivando seu trabalho em tradução. O sijô, tema da segunda antologia, é uma forma poético-musical de três versos de cerca de 45 sílabas que se desenvolveu durante a dinastia Yi (1392-1910). Fortemente influenciada pela moral confucionista, foi também utilizada para descrever a natureza e as sensações de uma forma que lembra o haicai japonês, mas sem a mesma concisão. Sobre os sijôs, Haroldo de Campos escreveu na apresentação: “Essas canções lírico-meditativas, reflexivo-imagéticas, provindas de um Oriente extremo e reContinente outubro 2005

moto, nos evocam, por vezes, a fluidez pré-socrática do pánta rhei (“tudo riocorrente”) heraclitiano”. Em 1999, Yun Jung Im apresentou um trabalho ainda mais ousado. Organizou e traduziu Olho-de-Corvo e Outras Obras de Yi Sang (Editora Perspectiva), volume crítico que faz um apanhado do poeta e contista coreano que viveu entre 1910 e 1937. Poeta de estilo radical e maldito, trabalhou como arquiteto antes de cair na vida boêmia. Só publicou em vida a novela Asas, em 1936, e 10 poemas da série Olho-de-Corvo em um jornal, no ano de 1934. A série foi interrompida devido aos protestos dos leitores. Até agora, o livro dedicado a Yi Sang (com revisão poética de Haroldo de Campos) é o projeto de maior fôlego dedicado à literatura coreana no Brasil. Para 2006, Yun Jung Im promete o livro Conto Moderno Coreano, coletânea que deve sair pela editora Landy. Yun acha que uma forma de aproximar uma literatura distante de um leitor como o brasileiro é fazer antologias por tema, em vez de selecionar trabalhos por autor. “Escolher temas como a guerra, o universo feminino ou o mundo dos idosos pode ser mais interessante para revelar visões de uma cultura sobre um determinado tema.” •


LITERATURA Reprodução

O maravilhoso mundo das palavras Para Manuel Bandeira, poesia é palavra e “uma (sílaba) dental ao invés de uma labial pode estragar o verso”o André Cervinskis

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LITERATURA

Reprodução

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C

omo todos os grandes poetas, Bandeira também brincou com as palavras; criou neologismo (e, a respeito disso, temos um poema com esse título): “O Maravilhoso Reino das Palavras”: “Beijo pouco, falo menos ainda./ Mas invento palavras/ Que traduzem a ternura mais funda/ E mais cotidiana/ Inventei, por exemplo, o verbo teadorar:/ Teadoro, Teodora”. O próprio poeta explica o valor que a palavra representa em sua obra: “cotejos como esses foram me ensinando a conhecer os valores plásticos e musicais dos fonemas; me foram ensinando, por exemplo, que uma dental ao invés de uma labial pode estragar o verso”. Nesse “maravilhoso reino das palavras”, tão presente em Bandeira, existem algumas palavras-chaves que servem de instrumentos constantes dos quais o poeta muito se utilizou para exprimir seu estado d’alma. Exemplos disso são as palavras: “Volúpia”, “tísico” e “Sacha”, como veremos a seguir.

Volúpia – Dentre os significantes mais usados por Bandeira, especialmente na sua primeira fase, prémodernista, talvez em decorrência da tenra idade, está o termo “volúpia”. Se olharmos o sentido desse termo no Dicionário Aurélio, constataremos que é: “grande prazer dos sentidos; grande prazer em geral; o mesmo que sensualidade”. Mas em Bandeira a palavra “volúpia” muda de sentido a cada poesia; é o que vemos em “Desencanto”, em que o poeta expressa o auge do sofrimento: “Meu verso é sangue. Volúpia ardente”. Ou pode esconder a tristeza, a melancolia, o prazer disfarçado; enfim, objeto de fuga, em “Pierrot Místico”: “A volúpia é bruma que esconde/ Abismos de melancolia.../ Flor de tristes pântanos onde/ Mais que a morte a vida é sombria”. Noutros trechos, especialmente no Carnaval, “volúpia” toma um tom sensual, designando o conjunto das sensações advindas do contato com o sexo oposto no mesmo “Pierrot Místico”: “Toma o meu leito, Colombina!/ Não procures em outros braços/ Os requintes em que se afina/ A volúpia dos meus abraços!” O termo “voluptuoso(a)”, porém, possui um sentido mais dicionaresco, um tom luxurioso: “Sangrenta rosa/ Que evoca a louca,/ A voluptuosa,/ Volúvel boca/ De sua amada. A “volúpia” é cantada, às vezes, de forma violenta: “Se bate, então, como o estremeço!/ Oh, a volúpia da pancada!/ Dar-me entre lágrima, quebrada,/ Do seu colérico arremesso”. Ou evocada pelos elementos: “Volúpia de água e de chama”. Mais tarde, em Ritmo Dissoluto, o êxtase dos sentidos retorna: “Oh, quisera não ser tão voluptuoso!/ E todavia/ Quanta delícia nosso amor traz a volúpia”. Com o passar dos anos, essa “volúpia” foi aplacada; ou meContinente outubro 2005


Arquivo/AE

"Em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias e sentimentos" Manuel Bandeira

lhor, diluída num conceito mais maduro, embora se mantendo incompleta; no tocante ao amor físico e o espiritual, como no poema “A Arte de Amar” do livro Belo Belo: “Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a alma/ A alma é que estraga o amor./ Só em Deus ela pode encontrar satisfação./ Não noutra alma./ Só em Deus – ou fora do mundo./ As almas são incomunicáveis./ Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo/ Porque os corpos se entendem, mas as almas, não”. Tísico – A palavra tísico é incorporada na poesia bandeiriana com o negativismo que lhe é peculiar; a ela o autor sempre associa um fim trágico: “Não posso crer que se conceba/ Do amor senão o gozo físico!/ O meu amante morreu bêbado,/ meu marido morreu tísico!” Sempre a desesperança, desespero. É isso que a doença evoca sempre à mente do autor, a ponto de fazê-lo exclamar: “E enquanto a mansa tarde agoniza,/ Por entre a névoa fria do mar/ Toda minh'alma foge na brisa:/ Tenho vontade de me matar!” Mais tarde desabafará em tom mais calmo: belo belo minha bela/ tenho tudo que não quero/ não tenho nada que quero/ não quero óculos nem tosse/ nem obrigação de voto”. E o menino Bandeira, criança ainda em muitas de suas atitudes (“Deus me conserve essas criancices!”), de novo volta-se para os braços da mãe, em busca de refúgio: “O menino dorme/ Para que o menino/ Durma sossegado,/ Sentada ao seu lado/ A mãezinha canta:/ ‘Dodói, vai-se embora!’/ ‘Deixa o meu filhinho’/ ‘Dorme... dorme... meu...’/ Morta de fadiga,/ Ela adormece/ Então, no ombro dela,/ Um vulto de santa/ Na mesma cantiga,/ Na mesma voz dela,/ Se debruça e canta:/ ‘Dorme, meu benzinho...’/ E o menino dorme”. No entanto, depois, o nosso poeta vai se acostumando a conviver com a enfermidade. Como pessoa cheia de humor e de vida que sempre foi – este sentimento de vida o fez seguir adiante –, Bandeira satiriza a doença e o próprio doente. Em seu poema “Pneumotórax”, muito conhecido entre a crítica, como também no poema “Auto-retrato”, de Mafuá do Malungo, brinca com sua rima, dizendo: “em matéria de profissão, um tísico profissional”.

Sacha – Certa vez, conta Bandeira, um professor escreveu para ele enviando-lhe a interpretação pessoal que fizera sobre o poema “Sacha e o Poeta”: “Quando o poeta aparece/ Sacha levanta os olhos claros,/ onde a surpresa é o sol que vai nascer./ O poeta a seguir diz coisas incríveis,/ Desce ao fogo central da terra,/ Faz gurugutu pif paf,/ Dança de velho/ Vira Exu/ Sacha sorri /como o primeiro arcoíris./ O poeta estende os braços, Sacha vem com ele:/ A serenidade voltou de muito longe/ Que se passou do outro lado!/ Sacha mediunizada/ Ah - pa - papapá-papá-/ Transmite em morse ao poeta/ A última mensagem dos anjos”. Bandeira respondeu que Sacha não passava de um bebê, filho de um casal amigo, que muito o fazia sorrir com suas palhaçadas; o encontro desse tipo singelo fê-lo compor “Sacha e o Poeta”. Com a explicação desse fato, constatamos o dom que Bandeira possuía para brincar com as palavras, acima de fatos banais por ele vividos. Ora, “Sacha”, no poema, é nome bastante chamativo; evoca mil interpretações, todas, porém, válidas. Nisto consiste a beleza da palavra na poesia bandeiriana: leva o leitor ao “reino das palavras” descrito por Drummond. É isso que fez ao continuar em outro poema a brincar com a palavra “Sacha”, no Mafuá do Malungo: “Sacha Muchacha/ Nariz de bolacha”./ (Meu estro não acha/outra rima em sacha./ Por isso se agacha,/ Se cobre de graxa,/ Se amarra, se racha,/ Se desatarracha/ E pede em voz baixa/ Desculpas a Sacha)”. Essa atitude lúdica é explicada pelo próprio poeta de forma inusitada: “Em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão de espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia”. Belo ensinamento de Bandeira, que consiste no acúmulo de experiências por ele apreendidas durante sua convivência diária com o verbo, que o fez brincar com seu desejo, sua doença e sua abstração pessoal como nenhum outro. • Continente outubro 2005


LITERATURA

Roberta Mariz

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Feira contemporânea

A quinta versão da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, evento já consolidado no calendário cultural do Brasil, faz o foco na literatura contemporânea brasileira e traz filósofos e autores franceses


LITERATURA

A

V Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, de 7 a 16 de outubro, reúne em sua programação cultural uma forte presença de autores representantes da prosa e da poesia contemporâneas brasileiras, de idades, regiões, estilos e filiações estéticas as mais diversificadas. Também levanta temas que vão do ofício de escritor às questões filosóficas da época, passando por alguns assuntos pragmáticos como a relação autor-editor ou a importância da capa para o livro. São presenças confirmadas, como convidados, os romancistas Luiz Ruffato, Cristóvão Tezza, Rodrigo Lacerda, Clara Averbuck, Marcelo Mirisola, Marcelino Freire, os contistas Pedro Bial e Marília Arnaud, os poetas Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colassanti, Fabrício Carpinejar, Jussara Salazar, Frederico Barbosa, Floriano Martins, Claufe Rodrigues, Mônica Montone, Antônio Mariano de Lima, Lau Siqueira e Amador Ribeiro, que participarão de palestras, debates e leituras de texto em interação com os autores locais. Os jornalistas Ricardo Noblat, Fernando Morais, Geneton Moraes Neto e Paulo Polzonoff Jr virão lançar livros e/ou participar das discussões espalhadas por dois auditórios dentro do pavilhão e no Café Continente.

Cepe e Café Continente – Este ano, a Cepe – Companhia Editora de Pernambuco, responsável pelas revistas Continente Multicultural e Continente Documento, estreitou sua parceria com a Bienal, ocupando um estande com 100m2, onde exporá seus produtos e fará lançamentos de livros, e administrando o espaço informal de encontro entre escritores e leitores no Café Continente, com programação que inclui o Livro Aberto, em que prosadores fazem leituras de textos; o Bate-Papo, para troca de idéias entre autores e leitores; e o Bem Dita Poesia, com recitais na voz dos próprios poetas. Editores e colunistas das revistas trocarão idéias com o público e a equipe do Café Colombo da Rádio Universitária conduzirá a maior parte dessa programação. Os freqüentadores do Café Continente poderão, assim, ouvir, na própria voz dos autores, trechos de textos e poemas de escritores como Fernando Monteiro, Ronaldo Correa de Brito, Raimundo Carrero, Gilvan Lemos, César Leal, Ângelo Monteiro, Esman Dias, Débora Brennand, José Paulo Cavalcanti Filho, Weydson Barros Leal, Luiz Carlos Monteiro, Delmo Montenegro, Luzilá Gonçalves, Marcelo Mário Melo. No estande da Cepe serão lançados os livros Parece que foi assim (Rivaldo Paiva), Visão Política de Machado de Assis e Outros Ensaios (Fernando da Cruz

Reprodução

Cartaz de divulgação da V Bienal Internacional do Livro de Pernambuco

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Todo o pavilhão de exposições do Centro de Convenções de Pernambuco será ocupado pela feira

Gouvea) e Quaoar (Fábio Lucas) e relançados Coleção 350 anos – Restauração Pernambucana, com seis títulos; Folk-Lore Pernambucano, de Pereira da Costa, acompanhado de CD ROM, e Pereira da Costa o Homem e a Obra (Manuel Correia de Andrade). França e Brasil – Aproveitando a bilateralidade proporcionada pelo Ano do Brasil na França, filósofos, escritores e cineastas franceses, farão palestras e exposições de assuntos que vão da capoeira como filosofia do corpo às questões envolvendo filosofia e estética, além de abordar a obra filosófica e literária de JeanPaul Sartre, dentro das comemorações mundiais pelo centenário do seu nascimento. Uma grande mesa-redonda reunirá intelectuais franceses e os pernambucanos Nelson Saldanha e Lourival Holanda para discutir a globalização sob a ótica dos dois países. O hoContinente outubro 2005

menageado, este ano, no evento, será o escritor Marcos Vinícios Vilaça, cuja obra Coronel, Coronéis, em parceria com Roberto Cavalcanti de Albuquerque, será objeto de uma mesa-redonda com a participação de sua tradutora para o francês, Dominique LeMoing. Registros como os 400 anos do Dom Quixote, de Cervantes, e os 70 anos da História Universal da Infâmia,Jorge Luís Borges, serão celebrados. A V Bienal terá ainda uma intensa programação destinada ao universo infanto-juvenil (o Dia da Criança ocorre no meio do transcorrer da feira), com uma Arena Estudantil e um Espaço Pedagógico abertos às atividades de jovens e crianças que se somarão ao auditório destinado a exposições, conferências e oficinas com professores, pedagogos e psicólogos sobre questões educacionais. Pela primeira vez, a feira, que congrega editoras, livrarias e distribuidores de todo o País, ocupará todo o espaço do pavilhão


Fotos: Hans Manteuffel/Divulgação

LITERATURA

Autores representantes da prosa e da poesia contemporâneas brasileiras, de idades, regiões, estilos e filiações estéticas as mais diversificadas, foram convidados Os leitores terão oportunidade de conhecer os últimos lançamentos das editoras brasileiras

Uma vasta programação é dirigida ao público infanto-juvenil

de exposições do Centro de Convenções de Pernambuco, sara Salazar e Jomard Muniz de Brito; “A Arte da Capa”, por Moema Cavalcanti; “A Solidão n(d)a Lina divisa entre o Recife e Olinda. teratura”, por Cristóvão Tezza; “A Poesia e o Terreno Programação – Algumas das conferências e me- Baldio da Linguagem”, por Fabrício Carpinejar; “O sas de debates serão: “Editores – Escritores: Manual Fim das Utopias”, por Geneton Moraes Neto e o de Convivência”, por Rodrigo Lacerda (Cosacnaify), deputado Roberto Freire. Cinema, Teatro, Humor, LiTarcísio Pereira (Livro Rápido) e Arnaldo Affonso teratura Infantil e Poesia Popular também estão con(Bagaço); “Inferno Provisório: a Construção de uma templados nas atividades. Oficinas literárias serão ofeSaga Brasileira”, por Luiz Ruffato; “Poesia: Para que recidas pelos escritores Raimundo Carrero, Marcelino Serve?”, por Affonso Romano de Sant’Anna; “O Sig- Freire e Frederico Barbosa. Durante a Bienal, as Academias de Letras do Norno e o Ser”, por Lourival Holanda e Maria do Carmo Barreto Campelo; “Linguagens no cyber-espaço”, deste farão uma reunião conjunta em que discutirão a por Paulo Cunha (“Possibilidades”) e Clara Averbuck produção literária regional e a seccional da UBE – (“Literatura); exibição do filme Retrato Cruzado de Sar- União Brasileira de Escritores congregará um Encontre e Simone, com palestra da autora, Madeleine Go- tro dos Escritores do Interior. Programação completa da Bienal pode ser acessabeil-Noel; “Literatura e Liberdade de Expressão”, por Fernando Morais; “A Poética da Imagem”, por Jus- da no saite: www.bienalpernambuco.com • Continente outubro 2005

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POESIA

Poetas

Peruanos Arrastran sin piedad tu corazón Por calles y hospitales. Las flores Del mal incendian tu piel, tus bagatelas literarias. Te dicen que el láser es un rayo milagroso. Y Tienden puentes, caracolas, esperanzas Bajo el temblor de tu agonía. Ahora solo hablas Com el lobo gris que siempre te acompaña. Y me preguntas si el futuro aún existe, O es tan solo el último cigarrillo Que se apaga entre mis labios.

LOBO cinzento

Arrastran sin piedad tu corazón Por calles y hospitales, mientras Mastico abochornado, tan callando, Tu silencio insoportable.

Hildebrando Pérez Grande

GALLO ciego

LOBO gris

Sem piedade, arrastam teu coração Por ruas e hospitais. As flores Do mal incendeiam tua pele, tuas bagatelas literárias. Te dizem que o laser é um raio milagroso. E Estendem pontes, caracóis, esperanças Sob o tremor de tua agonia. Agora só falas Com o lobo cinzento que sempre te acompanha. E me perguntas se o futuro ainda existe, Ou é apenas o último cigarro Que se apaga entre meus lábios. Sem piedade, arrastam teu coração Por ruas e hospitais, enquanto Mastigo modorrento, me calando, Teu silêncio insuportável.

Tradução de Everardo Norões

Un gallo ciego canta En la terraza de la noche. Y su esforzado arte No se pierde en el olvido. Igual a ti, confunde El olor de la madrugada Con el triste respirar de la magnolia. ¿Y entonces, donde está la Poesía? Un gallo ciego ilumina la noche Con el cuchillo limpio de su canto.

GALO cego Um galo cego canta No terraço da noite. E sua esforçada arte Não se perde no esquecimento. Igual a ti, confunde O cheiro da madrugada Com o triste respirar da magnólia. E então, onde está a Poesia? Um galo cego ilumina a noite Com a limpa faca de seu canto.

Hildebrando Pérez Grande nasceu em Lima, em 1941. Entre suas obras, está Aguardiente (1978), Prêmio Casa de las Américas (Cuba). É professor na Faculdade de Letras da Universidad Mayor de San Marco, onde dirige, juntamente com o poeta Marco Martos, uma oficina de poesia, conhecida tradicionalmente como Taller de Poesía. Continente outubro 2005


POESIA

Marcos Martos

EL Perú No es éste tu país porque conozcas sus linderos, ni por el idioma común, ni por los nombres de los muertos. Es este tu país porque si tuvieras que hacerlo, lo elegirías de nuevo para construir aquí todos tus sueños.

Não é este o teu país porque conheces os seus lindes, nem pelo idioma comum, nem pelos nomes de seus mortos. Este é o teu país porque se tivesses que escolher, o elegerias de novo para construir aqui todos os teus sonhos.

O Peru

RITO Hoy, ayer y mañana, hoy, en este instante, En el punto inmóvil donde todo y nada sucede, para purificar el dialecto de la tribu colocando cada palabra en su lugar, habla la poesía, habla poco, cumpliendo su obligación, y sin que nadie la invente, esparza o desordene, orden y desorden y furor. Y para que la tribu quede contenta usa palabras del lenguaje de hoy pues las palabras del año pasado pertenecen al lenguaje del año pasado y las palabras del próximo año esperan otra voz. Y en el punto inmóvil donde todo y nada sucede, esa voz es esta voz.

Hoje, ontem e amanhã, hoje, neste instante, no ponto imóvel onde tudo e nada acontece, para purificar o dialeto da tribo colocando cada palavra em seu lugar, fala a poesia, fala pouco, cumpre sua obrigação, sem que ninguém a invente, espalhe ou desordene, ordem e desordem e furor. E para que a tribo se contente usa palavras da linguagem de agora, pois as palavras do ano passado pertencem à linguagem do ano passado e as palavras do próximo ano esperam outra voz. E no ponto imóvel onde tudo e nada acontece, essa voz é esta voz.

RITO

Marcos Martos nasceu em Piura, Peru, em1942. Entre suas obras, destacam-se: Casa Nuestra (1965), Cuaderno de Quejas y Contentamientos (1969), Carpe Diem (1979), Muestra de Arte Rupestre (1990), Sílabas de la Música (2002), Dondoneo (2004). Prêmio do Instituto Nacional de Cultura. É diretor da Academia Peruana de la Lengua. Continente outubro 2005

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POESIA

Arturo Corcuera

LO fatal

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Por este arisco atajo – oh hueco negro – adónde iremos, de qué estrella venimos, el Arca que nos trajo dejó caer sus remos, aún no legamos y ya fuimos

Por este áspero atalho – oh! negro poço – onde iremos, de que estrela viemos, a Arca que nos trouxe deixou cair seus remos, ainda nem chegamos, já fugimos.

FÁBULA del leon de la Metro Goldwyn Mayer Doméstica melena tridimensional rugiendo en colores, estereofónico león yanqui con Tarzan de domador en circo de celuloide.

Maquillado Rey de Hollywood: Frankestein, Drácula, Buffalo Bill, James Bond, Johnson, Mac Carthy, John Wayne, Marines, Chita, Kin Kong. Cinemascope. León estrella de feroces reflectores. Rey de la selva.

O fatal

Doméstica melena tridimensional rugindo em cores, estereofônico leão ianque com Tarzan de domador em circo de celulóide. Maquilado Rei de Hollywood: Frankestein, Drácula, Buffalo Bill, James Bond, Johnson, Mac Carthy, John Wayne, Marines, Chita, King Kong. Cinemascope. Leão estrela de ferozes refletores.

FÁBULA do leão da Metro Goldwyn Mayer Rei da selva.

Arturo Corcuera nasceu em Salaverry, Peru, em 1935. É autor de: Noé Delirante (1963), Poesía de Clase (1968), Puente de los Suspiros (1976), Prosa de Juglar (1992), Puerto de la Memoria (2001), Poesía al Paso (2004). Prêmio Nacional de Poesía (Peru), Prêmio Atlántida (Espanha), Prêmio Trieste (Italia). Continente outubro 2005


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PROSA

Felicidade Luiz Ruffato

À

cadeira, dona Darcy equilibrou com desvelo o retrato do general Costa e Silva, verdamarela faixa, alunos enfileirados, Hora Cívica, Ouviram do Ipiranga às margens plááácidas, esganiçadas vozes, acumuladas fomes, meio-dia cozinhando cabeças, duas vezes Zezé desmaiara, outro tempo, firma-se então, berros, José Teixeira Pedro!, puxões de orelha, José Teixeira Pedro!, espancamentos, Fedamãe!, estuda não, é? Vai ver só!, esculachos, Tão pobrim, nem comida em casa, tadim! Ansiosa, a mão direita ouve o coração. À frente, Dinim, fortudim, saliente, De um poveróico brado retumban-ttí!, peida, ovo-quente, amizade-de-visgo, pelada, papagaio, bilosca, pissepisse, loca, fieira de lambari, nadação no Rio Pomba, vidro quebrado, peito de folhinha, buceta de mulher-dama, matinê, punheta, álbum de figurinha, revistinha de sacanagem, braço quebrado, dente idem e um segredo: s nc vs dxar e srr eam oouios A noite preta chicoteia os nervos e Zezé seu desincômodo arrasta passeio enfora Vila Teresa. Acoitado, acua moleques extraviados que irrompem oriundos do Colégio Cataguases ou do Ginásio Comercial, um trêmulo Dinim a isca: cerca a passagem, implica, desafia, provoca, e eis Zezé das sombras que exsurge escoriando o desavisado a pauladas, e fogem ambos, internam-se esporeando troncos da chácara, resfolegantes. Aonde a luz do poste finda em farfalhantes folhas, caga,

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PROSA

aguardando o seronista da fábrica, ensonado, esmagar o toloco e bravo escoicear o breu, xingatório indignado, fedorento, entre risos aparvalhados. À mão, pedras atiram-se contra raros carros que passejam, empoleirado nas grimpas do jatobá, lânguidos galhos espichados por sobre a rua. Ratos e gatos mata-os e, amarrados em barbante, arrasta-os assustando moças, desejoso de no medo escapulir uma cor em sob o vestido, a saia. E Dinim, indiscutível, faz seus os sobrepassos de Zezé, a astúcia, a audácia, o atrevimento, o arroubo. Poderiam imolar-se, preciso, um por outro. No porão, tarde, aguarda uma mãe, coração demente, nem dois degraus de fôlego, azuis olheiras, cabelos envassourados, a negra lã esburacada da blusa vicentina recobre as alças frias da camisola, à porta encosta, à cama deita, onde o peste? onde o raio?, à porta encosta, onde o descoraçãozado?, ar avinagrado, Quer me matar de desgosto? É isso? Desgramado!, berra, brame o chinelo, quede força meu deus?, lábios descoloridos, que será deste?, cachorro indomado, cínico, deboche pregado nos olhos vadios, desdenha-a, e arfando lamenta o dia em que nasceu, Que mal eu fiz, meu deus?, que mal eu fiz?, na escuridão o corpinho ajeita os retalhos da colcha, exausto cerra a jornada, amanhã, irritado, cabeça latejando, o pai, após o boldo, despertará corrião em punho, estapeando couros, puxando orelhas, chutando bundas. Feliz do Dinim... Feliz do Dinim, mãe hospiciada, queimadeira de dinheiro, pai negligente, sem emprego, biscateando bobiças cá e lá para o de-comer, sem pulso para ordenar, ouvindo a chegança noturna do filho, passos cobiçando tampas de panelas, plac, plac, plac, vazias, fogo que não arde, silêncio de ruídos irradiados em distantes aparelhos, sem ânimo para se descobrir e abordar São horas, menino? e ralhar para empós caçoar Levado! e acender a luz e o cigarro e sentar no tamborete, ele no colo, Vam fazer um mexido?, e regalar os olhos tão lindo, meu rapazote!, e crescido, e ladino, e os dentes cariados arrancam nacos de um pão-de-ovos dormido e deitam e rolam insones e o pai, parede-e-meia, afunda a calva no trabesseiro. Feliz do Zezé... • Luiz Ruffato é escritor, autor de Eles Eram Muitos Cavalos e Inferno Provisório (pentalogia da qual foram publicados Mamma, Son Tanto Felice e O Mundo Inimigo), entre outros.

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AGENDA/LIVROS

RESENHAS Entranhas do poder

Grande painel Coletânea faz um mapeamento da produção poética em Pernambuco, desde o século 16 até a atualidade Tendo como subtítulo “Um painel da poesia pernambucana dos séculos XVI ao XXI”, Pernambuco, Terra da Poesia reúne 160 poetas, 128 nascidos neste Estado e 38 que fizeram dele o seu domicílio literário. Escapando ao caráter seletivo de antologia, assume o papel de “uma coletânea, de uma reunião, de um mapeamento, de um panorama”, como explicita Hildeberto Barbosa Filho, no prefácio. A vantagem do recorte de coletânea sobre o de antologia é que, ainda segundo o crítico, “numa coletânea os textos não se perfilam como fim, mas como meios que se podem prestar a diversos objetivos em função da perspectiva do projeto. Seja didática, seja histórica, seja meramente documental, a coletânea é inclusiva e firma no registro de dados e na presença deste ou daquele autor o seu compromisso informativo, a sua razão ontológica. Seu campo de cobertura descortina-se, assim, bem mais elástico, bem mais flexível, podendo, por isto mesmo, tocar em variados ângulos do fenômeno cultural e literário”. Desta forma este livro constitui-se num importante documento, num “belo exemplo de emulação à investigação literária regional, estimulando-a na direção de um futuro painel da literatura brasileira, onde serão vistos, num mesmo nível de observação, todas as formas e valores genuinamente regionais, evitando-se deste modo a visão estrábica dos historiadores e críticos literários do Rio de Janeiro e de São Paulo”, conforme propõe, na orelha, o poeta Gilberto Mendonça Teles. A partir de Bento Teixeira, nascido por volta de 1550, até Antônio Marinho, que veio ao mundo em 1987, a coletânea abriga nomes inevitáveis, por sua importância, como Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Carlos Pena Filho, Joaquim Cardozo e João Cabral de Melo Neto; além de alguns mais conhecidos por outras atividades, como Frei Caneca, Vicente do Rego Monteiro, Dom Hélder Câmara, Ariano Suassuna e Gilberto Freyre. Avaliza Targélia Barreto de Menezes e Edwiges de Sá Pereira, e, passando pelos nomes da Geração 65, capitaneados por César Leal, além dos novos, como Cida Pedrosa, do Movimento de Escritores Independentes, e Francisco Espinhara, do Movimento de Poesia Marginal, chega aos novíssimos, representados por poetas como Micheline Verunschk, Pietro Wagner e Delmo Montenegro. (Marco Polo) Pernambuco, Terra da Poesia, org. Antônio Campos/Cláudia Cordeiro, IMC Editora / Editora Escrituras, 600 páginas, R$ 54,00. Continente outubro 2005

É mais que oportuna a publicação de Os Segredos dos Presidentes, de Geneton Moraes Neto, um dos últimos remanescentes da fauna de repórteres no País. Traz a íntegra das entrevistas parcialmente divulgadas no Fantástico com os ex-presidentes Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique, nas quais ele arranca confissões como a de Collor pensando em suicídio e Sarney considerando a presidência da República “um cargo perigoso”. O conjunto é uma incursão às entranhas do poder, leitura indispensável hoje para os simples mortais habitantes da planície. Dossiê Brasília – Os Segredos dos Presidentes, Geneton Moraes Neto, Globo, 268 páginas, R$ 29,00.

Mulatos e caboclos O antropólogo Arthur Ramos dedicou sua vida ao estudo do Brasil, pautando-se pelo mais rigoroso instrumental científico de sua época (primeira metade do século 20). Ao morrer, estava sendo impressa na França sua última obra, A Mestiçagem no Brasil, livreto-síntese de suas idéias anti-racistas. Nela, resume cientificamente a questão da mistura de raças e analisa com brilho as opiniões estereotipadas de autores brasileiros e estrangeiros sobre a questão, curiosamente omitindo Gilberto Freyre. O texto é publicado em português pela primeira vez. A Mestiçagem no Brasil, Arthur Ramos, Editora da Ufal, 180 páginas, R$ 20,00, informações: 82-3214.1111

Paixão pelo palco Hermilo Borba Filho (1917-1976), além de romancista, contista e professor, foi dramaturgo e diretor de fundamental importância para o moderno teatro brasileiro. Suas peças e suas encenações nos célebres Teatro do Estudante de Pernambuco e Teatro Popular do Nordeste – TPN formaram toda uma geração de atores, diretores e autores, sob o signo do incondicional amor ao teatro. Hermilo também escreveu reflexões sobre o palco, inclusive em forma de diálogos, que agora vêm editados, juntamente com palestras e o texto integral da peça A Donzela Joana, reunidos sob o título geral de Diálogo do Encenador. Diálogo do Encenador, Hermilo Borba Filho, Editora BagaçoMassangana, 299 páginas, R$ 30,00.

Cinema escrito

Cinevertigem, romance de estréia de Ricardo Soares, é o tipo de prosa contemporânea em que as fronteiras dos gêneros tornam-se nebulosas. Sem enredo, sem personagens definidos, pode ser um romance-fragmentado ou um texto de prosa-poética em que alguém experimenta possibilidades de Ser, conjecturando sobre as vidas de outras pessoas, entre a memória e o delírio. Inovador, escorre num ritmo de turbilhão, numa cadência que comporta rimas internas e aliterações, com fusões cinematográficas. A experimentação chega a certo maneirismo ao abusar da repetição do “quem, quem, quem, quem?” Cinevertigem, Ricardo Soares, Record, 124 páginas, R$ 21,90.


RESENHAS Caso português Nascido em 1970, o escritor português Gonçalo M. Tavares é um caso à parte. Aos 31 anos publicou seu primeiro livro e em mais três lançou 14, de poesia, romance, conto e teatro. Ganhou diversos prêmios e seus livros estão sendo traduzidos para Holanda, Bélgica e Hungria. Este volume é a reunião de oito livros de poemas que caminham da autobiografia à metafísica. Cotidiano, ironia, humor, observações sagazes, aproximações inusitadas permeiam seus textos, sempre escritos como que na urgência, numa linguagem ágil e veloz 1, Gonçalo M. Tavares, Bertrand Brasil, 217 páginas, R$ 33,90.

Filósofo brasileiro Em uma aula-espetáculo ministrada diante de seis mil pessoas, durante a Jornada de Literatura de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em agosto passado, Ariano Suassuna lamentava o colonialismo das universidades brasileiras que citavam Platão, Kant e Sartre enquanto ignoravam Mathias Aires, o primeiro filósofo brasileiro. A Editora Escala, dentro de sua coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, sana em parte esta falha. Aires, paulista nascido em 1705, há 300 anos, é considerado por muitos o maior nome da filosofia de língua portuguesa do seu tempo. Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, Mathias Aires, Editora Escala, 176 páginas, R$ 4,90.

Crônica da MPB Jornalista, cronista e poeta, Ricardo Anísio vem, há muitos anos, dedicando-se ao estudo da música popular brasileira. Agora ele junta em livro críticas, crônicas e entrevistas em que desenvolve o tema, com democrática imparcialidade: do rock dos anos 80 ao manguebeat, dos autores polêmicos, como Geraldo Vandré, aos nomes consagrados de um Cartola ou um João Gilberto. Respeitado por músicos tão díspares quanto Herbert Vianna e Sivuca, Anísio analisa o valor de quem tem, ao mesmo tempo em que acusa “o neopagode, o forró de plástico e o sertanejo de butique”.

AGENDA/LIVROS

Sertão trágico Romance épico de Cláudio Aguiar conta a história do massacre da comunidade de Caldeirão, no Ceará No início da década de 30, do século passado, o beato Lourenço, seguidor do Padre Cícero Romão, começou a acolher na comunidade de Caldeirão, no interior do Ceará, desterrados e desamparados que estivessem dispostos a trabalhar para o bem de todos ali, numa ação cooperativa inspirada na regra socialista de dar a cada um o que cada um mais necessitasse. Por volta de 1936 a comunidade já possuía cerca de 10 mil pessoas, sendo o local chamado como a “Pátria do Sertão”. Segundo o crítico Franklin de Oliveira, “essa comunidade não podia continuar: era um desafio à selvagem estrutura agrária do Nordeste. E sua gente foi massacrada – 40 anos depois, Canudos repetia-se na chapada do Araripe”. Em 1936, forças militares cearenses começaram a invadir e destruir a comunidade, sem qualquer justificativa legal. O povo que seguia o beato era pacífico e mesmo as acusações de que este praticava ritos exclusivos dos padres católicos eram falsas, pois tudo que Lourenço fazia era vestir uma espécie de bata e entoar orações aprendidas nas missas. Em 1937, em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas, foi ordenado o ataque final, utilizando até mesmo bombardeio aéreo contra civis, algo que até então nunca tinha acontecido na América Latina. É essa história trágica que o romancista cearense radicado em Pernambuco, Cláudio Aguiar, conta em seu romance épico Caldeirão. Sobre este livro Franklin de Oliveira especificou: “A verdade que nele se instala, comunica a 'Caldeirão' uma qualidade transliterária ausente na maioria de nossos romancistas, politicamente neutros”. (MP) Caldeirão, Cláudio Aguiar, Editora Calibán, 432 páginas, R$ 40,00.

Leitura divertida

Imagine um Japão sem samurais, quimonos e jardins. Ao fundo, pitadas de Beach Boys, Dylan, Beatles e County Basie entremeados com doses de Cutty Sark, vodka, carrões, assassinatos e Dunkin’ Donuts. Tudo isso narrado em primeira pessoa por um escritor free-lancer à procura de Kiki, um antigo amor que some misteriosamente do hotel em que viviam. Nesta busca, envolve-se em um universo de realismo fantástico com personagens que vão de uma ninfeta clarividente, um astro de cinema, garotas de programa, detetives a um poeta maneta, num policial ambientado em atmosfera oriental, mas com toques de noir americano. (Luiz Arrais)

Num tempo em que o conto volta a passar por um boom de interesse das editoras e do público, e em que a maioria dos escritores se divide entre experimentalistas e seguidores da narrativa urbana de traços rápidos, palavrões e violência, Rivaldo Paiva estréia, apostando no conto tradicional, com princípio, meio e fim. Seu método é o da narrativa linear, começando com um clima cotidiano que a certa altura é alterado por um engano surrealista ou uma mutação fantástica, provocando o riso ou o espanto. Onde mostra seus melhores dotes de narrador, entretanto, é no conto longo, ou pequena novela de cunho naturalista “A botija suspirada”, onde há surpreendentes ecos da ironia de Eça e do escárnio de Nelson Rodrigues. Um livro de contos de leitura divertida. (MP)

Dance, Dance, Dance, Haruki Murakami, Estação Liberdade, 504 páginas, R$ 58,00.

Parece que foi Assim, Rivaldo Paiva, Cepe Editora, 188 págs., R$ 20,00.

MPB de A a Z, Ricardo Anísio, Idéia Editora, 296 págs., R$ 25,00.

Noir oriental

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Fiapos de um fabulista "As fábulas foram criadas por narradores anônimos, os escritores de um tempo anterior à escrita". Deonísio da Silva

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sujeito era feio, gago, corcunda, cabeça pontuda, nariz chato, pescoço curto e grosso, beiços gordos, barriga grande, torto, bufão e feridento. Esta coleção de atributos eu a montei de consulta a várias enciclopédias, a partir do Lello Universal, edição muito antiga, organizada por Coelho Neto e João Grave. O nome do sujeito é um só: Esopo, o pai da fábula e grego do século 6, com duvidoso nascimento da Frígia. Pensando nos pequenos relatos alegóricos de Kafka, fiquei desconfiado de que ele deveria ser um atento leitor de fábulas, apólogos e parábolas, coisas que considero uma só: alegoria. Daí meu interesse imediato por Esopo. Depois de consultar as enciclopédias, que livro me ocorreu procurar senão As Vidas dos Homens Célebres, de Plutarco? Pois bem, Esopo está fora daquele livro excepcional, em edição francesa de 1826. Aparece em vôo de caga-sebito, quando Plutarco o cita ao relatar a vida de Pelópidas. Meus milhões de leitores estão buchudos de saber que me esforço para não levar nada a sério, mas não tem jeito, sou mesmo um maníaco. Fiz Cláudia, minha mulher, e Josefina, minha colega de trabalho, escarafuncharem na internet e cheguei à conclusão de que sobre o pobre do Esopo, passando a maior parte de sua vida como escravo, o abandono apagou seus ancestrais, todo o seu passado. E não se sabe sequer com que idade seu último dono o alforriou, espantado com a sua inteligência. Na belíssima edição francesa de Fábulas de La Fontaine, em dois volumes, de 1883, há um texto sobre Esopo que faz coro a todas as referências sobre o Continente outubro 2005

fabulista, e que começa assim: “Não há nada de seguro em relação ao nascimento de Homero e de Esopo; apenas o que deles nos chegou de mais indelével”. Isso é, as obras. No entanto, assim como sobre Homero, há quem diga que suas fábulas já faziam parte das tradições populares gregas. E ninguém pode defender o misterioso monstrinho. Ora, um criador de que ninguém conhece a vida é pasto aberto para todo tipo de calúnia e difamação, e é até mesmo mais caluniado e difamado do que os pardais, estes “cheira-cola dos passarinhos”. Como dispunham de pouca vida para caluniar, castigaram seu corpo físico e parece até que cataram nos léxicos as feiúras mais extravagantes, para grafitar sua imagem esfíngica. Estou tentando fazer uma colagem de tudo que fui encontrando pelo caminho, para recuperar pedaços de episódios da passagem de Esopo sobre a Terra. Da sua obra não falo. Não conheço o grego para ler o original que só foi escrito (as fábulas eram contadas oralmente) 200 anos após sua morte, que convencionaram em 560 a.C.. Limito-me, portanto, aos fiapos de supostos acontecimentos sobre a sua vida. Depois de liberto, e supõe-se que, já adulto, correu mundo e terminou sob o mecenato de rei Creso. Diz o Lello, que tem o verbete mais simpático, que incumbido pelo rei, a entregar oferendas a Apolo, no seu templo, em Delfos, terminou denunciando por toda a parte as fraudes dos sacerdotes de Apolo. Para se vingarem, os religiosos não esconderam um mensalão na cueca de Esopo, como acontece na CPI Mista de nosso Congresso, mas puseram um cálice de ouro em seus alforjes, e o


MARCO ZERO

delataram depois por crime de sacrilégio e furto. Sua pena de morte teria consistido em jogarem-no do alto de um precipício. Se essa história tiver um pingo de verdade, lamentamos que o fabulista se tenha esborrachado lá nas pedras, e não tomado civilizadamente um copo de cicuta, entregue por seus algozes, como aconteceu com o filósofo Sócrates, por fazer discursos subversivos para a garotada. O primeiro exemplar de Fábulas de Esopo, eu o encontrei no setor de obras raras da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco. Era um livrinho quase sem asas, papel amarelecido, mas intacto e flexível, com o título enorme, em vários tipos tipográficos: Fabulas de Esopo traduzidas em lingua portugueza e applicadas ao uso das escolas de primeiras letras. No rodapé da página de rosto: Pernambuco. Typographia de M. F. Faria, 1846. Não registra o nome do tradutor, nem o nome do autor dos textos que acompanham o final de cada fábula, sob o título de “Moralidade.” Em ortografia anterior à mudança de 1942, como viram, nem “fábula” nem “língua” têm o acento agudo. O livrinho me interessou demais, pela sua humildade editorial, pelo seu tamanho de missal ou luz de velho castiçal. Ainda me espanta um autor da Antiguidade ser ensinado a meninos de primeiras letras. Quanto aos

textos chamados de “Moralidade”, eu fiquei com uma pulga atrás do orelhão, pois eles cheiram a socialismo, e aqui em Pernambuco, em 1846. Vejamos, como exemplo, em resumo, a fábula L, O Pinheiro e a Arvorezinha. Um grande pinheiro gabava-se de sua altura e de sua utilidade, tentando humilhar uma pequena árvore, quase arbusto. Diz o pinheiro que, com sua madeira, fazem-se embarcações, palácios e templos, e faz-lhe a pergunta humilhante: “tu, vil e pequeno arbusto, que utilidade podes dar?”. A arvorezinha responde que nenhuma, mas que teme menos o lenhador que se aproxima. O lenhador abate o pinheiro e deixa em paz a arvorezinha. Agora, a “Moralidade”: “Os homens poderosos e ricos he verdade, que desprezão os pobres e proletários, mas quando, no meio da anarchia, o povo toma as armas, he contra os ricos e contra seus bens que elle as emprega”. Os meios, meus irmãos, podem não justificar os fins, mas, sim, a beleza. O livrinho, em sua formosura material, me fez quase esquecer Esopo. •

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ARTES

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texto da curadora e artista Maria do Carmo Nino está perfeitamente integrado ao espírito da última exposição de Roberto Lúcio. Impossível concebê-la sem essas indispensáveis legendas, onde o espírito procurou sempre a maré mais alta, a começar do nome da exposição, manuscrito pelo artista: Para Caminhar te Dou meus Pés, além do título para o texto, “Um banquete de Roberto Lúcio para Diotima”. Da mesa posta para o banquete, com estranhos pés comestíveis – o pé de cada dia –, às anatômicas formas de sapatos com inscrições ou, simplesmente, penduradas so-

litariamente ou aos pares, ou atiradas, sobrepostas como cadáveres abandonados numa vala comum em contraste com um precioso “par de sapatos para a noite” – curiosamente quinhentista –, o círculo não se fecha. Veja-se que, no início do catálogo, o texto de Gabriel Bechara Filho nos induz a leituras dissonantes sobre algumas citações, embora ressalve que, para Roberto Lúcio, “o pé não é nenhum objeto de culto fetichista, nem instrumento pelo qual o artista constrói um libelo acusatório ou mesmo uma proposta de ação”. Entretanto, as figuras que ilustram o prefácio são extremamente fetichistas e igualmente ambíguas. As

Do banquete à caminhada Breves considerações sobre a série Para Caminhar te Dou meus Pés, do artista plástico Roberto Lúcio Francisco Brennand


ARTES citações pertinentes de Bechara, carregadas de significação e erudição, nos remetem para vários capítulos da história da arte, dos artistas, dos pés e sapatos e, de imediato, nos levam a recapitular um livro editado em Nova York, em 1976, cujo título Sex Life of Foot and Shoe, tem como autor William A. Rossi, obra ilustrada, inclusive, com a proverbial deformação dos pés chineses, do chamado “pé de lotus” e tantos outros aleijões motivados por botas e sapatos esquisitíssimos. Esse trabalho – apesar da extensa bibliografia americana sobre o mesmo tema – talvez pudesse esgotar o assunto.

Na verdade, Roberto Lúcio nos demonstra o quanto, nesta cidade do nordeste brasileiro, estamos em perfeita consonância com tudo que há de mais moderno, nas interpretações de um tema tão complicado e, ao mesmo tempo, tão terra-a-terra, porque, finalmente, é com os pés que nós começamos a caminhar e caminharemos até o fim dos tempos. Emily Dickinson, escreveu: “Oh! léguas de permeio entre os meus pés e o dia...” Como Roberto Lúcio é um artista independente – no bom sentido –, suponho que, em sua presente caminhada, a parte mais enganosa se resume nas admiráveis fotografias da sola dos pés, ampliadas numa escala de uma Roberto Lúcio/Divulgação

Matheus Mendonça/Divulgação

O artista plástico Roberto Lúcio Ao lado, Montagem de Formas com Fundo Azul, 2005, montagem (detalhe)

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ARTES Chamou-se atenção que todos esses pés, tão iguais e tão diversos entre si, tenham o seu nome próprio ou, melhor, funcionam como pessoas precisão matemática, 1,00m x 1,50 cm, não podendo ser maior nem ser menor e, de resto, fotografias singularíssimas. Apesar de representar a parte mais rude e secreta dos pés, por ser aquela que entra em contato com a terra, é, a planta, menos conhecida de todos nós ou de nós outros. Esta visão inusitada que determina o fim do corpo, configura-se anormal quando lançam seus pezinhos para cima, ou, então, o que não parece o caso, os pés dos cadáveres nos necrotérios. Chamou-se atenção que todos esses pés, tão iguais e tão diversos entre si, tenham o seu nome próprio ou, melhor, funcionam como pessoas; dois deles são de Amanda, dois de Lili, outros dois são de Nina, um outro par de W.R. e o seguinte de Marly. Os pés entrelaçados de Lu II assemelham-se a uma escultura, aliás, dignos de uma escultura, como também os de Aneska, outra escultura. Acontece que esse batismo fulminante implica um envolvimento total do público, revelando, enfim, o motivo maior da exposição: depois do banquete, cada um deve aprender a caminhar com os próprios pés. •

Para Caminhar Sobre as Águas, 2002, madeira

Fotos: Roberto Lúcio/Divulgação

Lu em Amarelo e Lu em Vermelho, 2004, fotografias

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Pedro Ribeiro/Divulgação

Artes palacianas

ARTES

Livro registra histórias e relíquias guardadas no Palácio do Campo das Princesas, que agora abre suas dependências para visitação Sara Correia

A

beleza externa do Palácio do Campo das Princesas, o Palácio do Governo de Pernambuco, chama a atenção e desperta a curiosidade de quem o olha apenas por fora. Em seu interior está uma série de obras de arte que, depois de anos guardadas, são colocadas pela primeira vez à mostra ao público, e registradas no livro Campo das Princesas – O Palácio do Governo de Pernambuco, dos autores José Luiz Mota Menezes e Ronaldo Carneiro Leão, com edição de Maria Lúcia Montes. Misto de obra literária e registro artístico, é impossível falar do livro sem destacar dependências e objetos do palácio. A edição bilíngüe traz, em 192 páginas, arte, memória e história do terreno que já dispôs de várias edificações e que foram sede dos governos de Pernambuco, como o Palácio Friburgo, o Erário Régio, o Palácio do Conde da Boa Vista e, agora, o Palácio do Campo das Princesas. Dividido em quatro partes – “Dois Palácios e uma história”; “Crônicas de Palácio”; “O que contam as alfaias”; e “O Palácio hoje” – o livro conta também a história de Pernambuco, dos governadores do Estado e dos bens patrimoniais abrigados no Palácio. É ilustrado luxuosamente com algumas obras de arte, como o mobiliário neorococó do marceneiro alemão Remigio Kneip (1860-1870), na Sala de Visitas, e os grandes vitrais fabricados no início do século 20 por (Gastão) Formenti & Cia., localizados nas escadarias do Palácio. O Campo das Princesas abriga também outras relíquias (naturais, inclusive). No jardim do Palácio, projetado por Burle Marx, há um belíssimo baobá (que foi tombado em 1986); e a escultura em mármore Alegoria à Primavera, construída em 1870; já no Salão das Bandeiras, uma mesa estilo Luís XIV (madeira torneada e entalhada com douramento – folheada a ouro) dá o brilho ao lugar destinado aos grandes tratados do governo. O Salão de Banquetes guarda cristais, louças e mobiliário em estilo eclético. A estrutura do Palácio do Campo das Princesas é a original (construída em 1841) e depois de repintada, traz em “detalhe” imediatamente notável, o estilo rococó no teto das dependências. Na Sala dos Embaixadores há uma mesa estilo “Império Tardio” (madeira e mármore de Carrara, 1880) e jarros chineses do período Chieng Lung (século 19). Já no ambiente destinado a receber as embaixatrizes, a mobília é composta por cadeiras estilo Luís XVI, e abriga uma peça de M. Fohnrich, Violinista Art Nouveau, de marfim, bronze e mármore negro. Quadros de Fédora Rego Monteiro Fernandes também embelezam o ambiente. Na ala residencial do Palácio, móveis do final do século 19 e início do século 20 completam a “coleção” do Palácio do Campo das Princesas. •

Escadaria nobre do Palácio, com trabalho em ferro fundido e aplicações em bronze dourado

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ARTES

Álbum inédito de Abelardo da Hora traz 17 desenhos de foliões populares

Danças de Carnaval Abelardo da Hora, 81 anos, é desses artistas que marcam época. Não apenas pelos inegáveis méritos artísticos de suas gravuras e esculturas, mas por ser um agente catalisador de movimentos de vanguarda, como o Ateliê Coletivo e o MCP – Movimento de Cultura Popular de Pernambuco. Além disso, sua obra, além do valor estético, tem um aspecto documental importante, ao registrar a vida do povo, quase nunca protagonista nas telas e nas letras nacionais. Foi assim com a série Meninos de Rua do Recife, dos anos 60, e agora com o álbum recém-lançado Danças Brasileiras Populares de Carnaval com 17 bicos-depena, coloridos e em preto-e-branco, de cenas do Carnaval, particularmente o pernambucano, criados também na década de 60, mas somente agora publicados com apoio do Funcultura – sistema de incentivo à cultura do Estado. Trabalho para deleite e aprendizado. (HF) •

Danças Brasileiras Populares de Carnaval, Abelardo da Hora, Publikimagem, R$ 130,00, informações: 81-3223.4400, iki@iki.com.br


AGENDA/ARTES

Paulo Freire na memória Imagens: Divulgação

Fundação Banco do Brasil homenageia vida e legado de Paulo Freire com o Projeto Memória

D

epois de homenagear nomes como Castro Alves, Juscelino Kubitschek e Oswaldo Cruz, o Projeto Memória chega à 9ª edição, relembrando os ensinamentos do filósofo e educador Paulo Freire. O desejo de construção da identidade nacional e fortalecimento da cidadania brasileira, inerentes ao pensador, serão destacados em uma grande exposição de painéis ilustrados com fotografias e textos, que está circulando por 800 municípios brasileiros, desde o dia 19 de setembro. Propondo uma educação voltada para conscientização, Freire acreditava que a função fundamental do ensino seria viabilizar a mudança social. O projeto é uma realização da Fundação Banco do Brasil, em parceria com a Petrobrás e com o Instituto Paulo Freire.

Fotos: Canal 03

Projeto Memória 2005. Paulo Freire – Educar para Transformar. Informações: (61) 3321.5209 / www.fundacaobancodobrasil.org.br Daniel Santiago lidera intervenção

Spa para ver e pensar A diversidade da produção plástica nacional será objeto de reflexão para apreciadores e artistas na quarta edição da Semana de Artes Visuais do Recife – SPA 2005. O evento espalha o conceito de arte pela cidade através de intervenções urbanas, exposições e palestras com críticos de renome nacional. A proposta é pensar a produção atual. As melhores ações artísticas serão contempladas com bolsas de incentivo à viabilização dos projetos, as semanas SPA. Como resultado do momento de análise do contexto local e nacional, serão produzidos ainda um mapa das Artes Visuais do Recife e uma revista, a ReviSPA, a título de registro, mas, sobretudo, de potencialização da subjetividade local. O SPA é uma realização da Fundação e Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, em parceria com a SociePerformance Isolante, de dade de Amigos do Museu de Amanda Melo Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM. Semana de Artes Visuais do Recife – SPA 2005. De 10 a 14 de outubro. Informações: 81.3232.4476 / www.blogspa2005.blogspot.com

Paulo Feire em sua biblioteca (1995)

Do Renascimento ao século 20 Imagens: Divulgação

O Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) apresenta um panorama da arte sacra italiana, do Renascimento ao século 20, na exposição “Calábria”. Pinturas, esculturas em mármore, prata e peças executadas para igrejas, conventos e outros edifícios religiosos da região da Calábria compõem a mostra. São San Nicola da Bari, de Francesco Solimena 104 obras, produzidas a partir do século 14, que foram reunidas pelos especialistas italianos Rosella Vodrett e Giogio Leone, com a assessoria do historiador brasileiro Luís Marques. Giovan Battista Caraccicolo, Mattia Preti, Francesco Guarini, Ippolito Borghese, Luca Giordano, Stefano Pozzi e Benedetto da MaiaCrucifisso, de Alessandro no são os destaques da exAlgardi posição, que visita o Brasil pela primeira vez. O estilo barroco, com criações dos séculos 17 e 18, é predominante nas peças expostas. Calábria. Museu de Arte Brasileira da Faap (R. Alagoas, 903, Prédio 1 – São Paulo, SP). Até 13 de Novembro. Informações: (11) 3662.71.98. Continente outubro 2005

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Moore e suas múltiplas vozes Escultura de Chac Mool – a Figura Reclinada – constitui o fulcro do processo criador de Henry Moore, que descobre nela elementos escultóricos, cujo desenvolvimento irá enriquecer seu universo plástico

É

muito difícil, senão impossível, definir em poucas palavras a escultura de Henry Moore, tantos são os caminhos que explora, tantas as faces que revela de uma nova maneira de lidar com a massa escultórica, com as relações de matéria e espaço, volume e vazio. Por outro lado, numerosas são as fontes em que bebe, as influências que absorve, as heranças que adquire, assimila e transforma. Nascido em Yorkshire, Inglaterra, em 1898, Henry Moore, um dos sete filhos de um casal de mineiros, estudou arte, inicialmente, graças a uma bolsa de estudos, na School of Arts, de Leeds, donde se transferiu para o Royal College of Arts de que se tornaria professor anos depois. Cedo descobriu sua afinidade com a linguagem moderna da escultura e nela buscou inventar sua própria linguagem. Em 1928 realizou sua primeira mostra individual, que suscitou polêmica e críticas adversas. Naquela época, ligou-se a um grupo de artistas que também havia optado por uma arte inovadora, de que faziam parte Barbara Hepworth, Ben Nicholson e o crítico de arte Herbert Read. Na década de 1940, sua arte começou a ganhar prestígio junto ao público e à crítica, sendo convidado a participar da Bienal de Veneza, em 1948. Nos primeiros anos de sua carreira, quando ainda tateava em busca de seu próprio rumo, abriu-se ao experimento de linguagens distintas, mas que já davam a indicação do gosto pela forma primeva, não naturalista ainda que figurativa. A certa altura, influenciado pelo pintor Ben Nicholson,

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explora um vocabulário em que predominam a pureza e a abstração geométrica, de ascendência cubista, mas sem nunca perder-se do valor propriamente escultórico da forma. A descoberta decisiva, porém, que vai determinar um dos rumos mais fecundos de sua escultura, dá-se em 1929, quando em visita ao Britsh Museum se deixa fascinar por obras da arte pré-colombiana, particularmente a escultura de Chac Mool, a deusa da chuva. Trata-se de um figura reclinada de mulher, meio sentada meio recostada, com os pés para a frente. Esta figura reclinada torna-se um tema constante e recorrente de sua obra, como se pode ver nesta exposição da Henry Moore Foundation, que se encontra aberta no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, depois de ter sido apresentada no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, e na Pinacoteca de São Paulo. A Figura Reclinada, a meu juízo, constitui o fulcro do processo criador de Moore, que descobre nela elementos escultóricos, cujo desenvolvimento irá enriquecer o universo plástico do escultor. A disposição do corpo da deusa Chac Mool, reclinado, que implica o desdobramento horizontal da forma no espaço – o volume da cabeça, das coxas, dos joelhos, das pernas, dos pés – e as concavidades resultantes desse desdobramento, revela a Moore novas relações de cheios e vazios, que o levarão a cavar a forma e perfurá-la, desencadeando uma reinvenção da figura humana e sua progressiva transformação em composição abstrata e vazada. O desenvolvimento horizontal da Figura Reclinada provoca, em Moore, a sensação do desdobrar-se da forma não


TRADUZIR-SE

para o alto, mas para diante: as esculturas que ele cria ao longo dos anos têm o claro propósito de explorar esse desdobramento horizontal dos volumes, como movimento virtual. Não será certamente por acaso que uma de suas obras, expostas no Paço Imperial, intitula-se Large Slow Form, ou seja, Grande Forma Lenta, numa alusão à expressão slow motion (movimento lento). Esse desdobrar-se horizontal da forma o conduz a acentuar o contraste entre os volumes que constituem a escultura, como um encadeamento de volumes em slow motion. Chega um momento em que, nesse desdobrar-se, a forma se fragmenta e torna-se uma justaposição de volumes independentes. Entre os dois extremos – da “figura reclinada” horizontal única desdobrada em volumes e a forma fragmentada

– há uma rica variação de “figuras reclinadas” em que a invenção plástica de Henry Moore cria formas inusitadas, onde o vazio e a figura, transfigurada, gera insólita beleza. O trabalho de Moore com a figura humana é uma permanente reinvenção desta, que aos poucos se abre para acolher outra forma menor (à semelhança de útero que abrigasse um feto), dando origem a uma nova exploração das relações do dentro e do fora, do vazio e do prenhe. Em alguns casos, Moore abandona a figura para criar formas totalmente abstratas, marcadas pela tensão interna da forma. Mas essas são apenas algumas das linhas de criação deste artista, cuja obra prolífera e vital veio enriquecer o universo escultórico do último século, melhor dizendo, veio enriquecer o universo imaginário da humanidade. • The Henry Moore Foundation Archive/Divulgação

Figura Reclinada , 1978

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Roberta Mariz/Acervo Mary Queiroz

Entre a espiral e o quadrado Um quadro de Lula Cardoso Ayres na moldura de obras de Gilberto Freyre e Osman Lins Ana Luiza Andrade

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quadro de Lula Cardoso Ayres Sinhazinha na Janela contrasta o redondo e o retilíneo, evidenciando respectivamente o massapê associado ao feminino e a geometria seca de formas masculinas de que fala Gilberto Freyre em seu famoso Nordeste (1937): a “doçura das terras de massapê contrasta com o ranger de raiva terrível das areias dos sertões.” Exuberante, Freyre preenche a secura do discurso euclidiano ao falar de seu repúdio às curvas, como divisor sexual de uma paisagem patriarcal. As linhas mestras em perfil no quadro, contrastando raso e fundo, dentro e fora, estático e dinâmico, redondo e geométrico, colam figuras à paisagem como no discurso plástico de Freyre: tal leque fechado, de seu perfil desdobram-se outros como em Perfil de Euclydes e Outros Perfis (1944). Lula Cardoso Ayres contrasta dois planos: o da casa-grande e o da usina com a igrejinha no meio. E seu âmbito se circunscreve à sinhazinha em primeiro plano, evocando o modelo sagrado de dona de casa, com seu vestido azul de santa, o inalcançável de mulheres como em “Quadrinho de Estória” de Guimarães Rosa, o que se estende às mulheres de trabalhadores, também dependentes de um sistema patriarcal. Aparentemente, um modelo de nobreza de casa-grande. Porém, quando se observa com cuidado a cadeira de balanço, percebe-se nela um quê de barroquizante espiralado, mas sugerindo uma tendência geometrizante. De fato, esta espiral, interrogação deitada, sinal de desequilíbrio, parece assinalar para as figuras femininas longilíneas de Lula, inconformadas ao padrão da prole patriarcal, o“gordo” do massapê como exigiria a tradição fertilizante da cana ao se espalhar. Ao invés, as figuras femininas emagrecem com a decadência das casas e a concomitante verticalização dos sobrados, nos inícios da urbanização, figuras cada vez mais fantasmagóricas, de tempos idos. Assim a mulher neste quadro, e em muitos outros do autor, parece residual de uma presença antiga, denotando o declínio social da casa-grande. Não à toa Lula foi o ilustrador (principalmente nos desenhos das sinhazinhas e dos sobrados) de Sobrados e Mucambos de Freyre. Mas a leitura desta cena da senhora na cadeira de balanço é mais sugestiva quando se pensa o declínio social da casa-grande. O conto “Cadeira de Balanço” (Os Gestos,1966), de Osman Lins, ao trazer, coincidentemente, a cena de uma mulher sentada em uma cadeira de balanço, atualiza e complementa a outra. Enfoca o problema social dentro da casa, quando as funções masculinas e femininas entram em conflito com o declínio do poder patriarcal e a ascensão do trabalho assalariado. Aqui os pensamentos de uma grávida oscilam entre dentro e fora, a dificuldade dos afazeres domésticos e o prazer do descanso: “Ah! era bom estar sentada ali. E como estava silenciosa a tarde e que sossego tão grande havia no mundo! (...) Não fizera o jantar, não lavara as camisas. E quando ele chegasse... Quando chegasse, iria reclamar. Não responderia, não diria uma palavra – e mais tarde, quando morresse, ele teria remorsos, se arrependeria de tudo. Quando eu estiver morta, nesta sala... (...) Não faltavam mulheres, ele se casaria novamente – e seus cabelos, suas mãos, até aqueles silêncios enormes, que tanto a incomodavam, tudo pertenceria à outra”. Aqui a certeza de ser substituída por outra é inapelável como a tragédia substitutiva e sempre “mais moderna” das galinhas de Clarice Lispector, quando o moço distraído as redesenha, ao telefone. Pois, “para a galinha, (...) está na sua condição não servir a si própria” (“O Ovo e a Galinha”). Osman Lins faz a sua cadeira oscilar com os pensamentos, para a frente e para trás, entre o passado e o futuro, até a mulher ser obrigada, finalmente, a cedê-la ao marido. No vai-e-vém da cadeira ela se pergunta sobre o futuro do filho: “– Nascerá? – pensou. Terei forças, fraca, depauperada como estou? (...) Tinha que lavar ainda as camisas de Augusto, acender o fogo, pôr a mesa, preparar o jantar, servi-lo. (...) Sentiase bem ali, mas não era possível balançar-se a tarde inteira.” O narrador penetra-lhe a intimidade semeContinente outubro 2005

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A mulher, neste quadro, e em muitos outros do autor, parece residual de uma presença antiga, denotando o declínio social da casa-grande

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lhantemente ao que faz o pintor em sua tela, quando se retoma a leitura do quadro de Lula Cardoso Ayres. Aí um narrador-pintor também penetra o interior da casa onde está a mulher sentada, desvirginando seu íntimo ao romper o seu segredo de antiga guardiã. Fantasmático, o corpo se cola ao fino contorno da cadeira, desvanescente, residual. Sua infertilidade é substituída pelas montanhas férteis, redondas com a proliferação das canas a engordar as terras de massapê, cuja disseminação, pelo bueiro fálico da usina, centro de produção, coincide com o ponto alto da paisagem vista da janela: “o gordo, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê” (Freyre, Perfil de Euclydes). Independente da prole do senhor, a usina, sendo agora o centro da casa antiga, desloca a mulher para o sobrado urbano. Embora a oscilação de seus pensamentos possa indicar o contrário, esta figura, substituída, será fantasma do passado que se dobra ao presente capitalista, sem que haja sensível alteração no quadro, do campo (em Lula) para a cidade (em Osman). Gilberto Freyre parece intermediar o (des)equilíbrio entre o engenho e a usina: as duas linhas correspondentes à da espiral (da cadeira) e à geometrizante (da janela, do bueiro), respectivas tendências patriarcais discursivas de uma paisagem nordestina, ressurgem nas correspondentes linhas mestras das cidades, as gordas e as magras (Sobrados e Mucambos). E Manuel Bandeira ao escrever a crônica “Um grande artista pernambucano”, referindo-se às pinturas do pintor Bandeira, também coloca o Recife como cidade magra que se verticaliza. Para ele, Recife é a cidade mais magra do Brasil, tão magra quanto o seu próprio nome, um nome magro como a arma de sua predileção: a faca.


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Um narrador-pintor também penetra o interior da casa onde está a mulher sentada, desvirginando seu íntimo ao romper o seu segredo de antiga guardiã

No entanto, essas linhas mestras, residuais de uma estética barroca, e ao mesmo tempo “enquadrada” na economia industrial de cortes, ressurgem no quadrado mágico do romance Avalovara (1973), convergindo, na plasticidade dos escritos de Osman Lins, para o hibridismo singular entre um construtivismo abstracionista mondrianesco, representativo de uma estética colonizadora européia, e a linha espiralada, barroca e latina, divergente da primeira quanto a seus pontos de fuga. Mais especificamente, esta fuga em espiral é tributária de uma tradição pernambucana que se pode perceber no plástico ensaísmo gilbertiano em seus reflexos fundacionais. De fato, José Lins do Rego marca suas crônicas com a frase: “A presença do Nordeste na literatura brasileira começa com as artes plásticas”. Explica: “Entramos na história das artes com os engenhos, os crepúsculos de Post” referindo-se à sua marca na paisagem nordestina. Em O Brasil e os Holandeses (1999) Luis Perez Oramas observa sobre a paisagem de Post: “Duas serenas linhas retas que se cruzam perpendicularmente no canto direito da paisagem de Forte Frederico – a vertical de uma palmeira, a eloqüente horizontal do horizonte com o perfil da ribeira se multiplicando em sombras e reflexo aquosos – constituem toda a chave de composição de uma paisagem surpreendentemente simples, e a fazem compartilhar, com 300 anos de antecipação, uma familiaridade ‘mondrianesca.’” Este efeito retardatário das linhas da paisagem de Post no holandês abstrato Mondrian e seus outros desdobramentos plásticos parecem definitivos nas linhas do quadrado de Avalovara. De fato, a montagem do romance de Osman Lins confunde-se à do próprio objeto livro como antiga casa do romance arquitetado num quadrado, ao expor publicamente o que lhe era original: a privacidade. Intrínseca aos valores do antigo ato de leitura, assim como aos da casa, desauratiza-se, perde-se para o espaço consumidor. A imprensa dispensa até o corta-papel, a faca com que se desvirginava o caminho nas páginas, assinalada por Mallarmé como instrumento necessário a um antigo ato de leitura. Automatizados, visíveis no xadrez do Avalovara os fragmentos se opõem à nova matriz industrializada e prostituída do best-seller: pedem cumplicidade no ato de leitura. Mais ainda, a espiral, forma residual de cadeira de balanço ou de portão de ferro forjado, contrastada ao quadrado geometrizante e racional, sem começo ou fim, pode ascender ou descender... Inconclusiva, ela é diferente da repetição do balanço da cadeira: busca um desequilíbrio que acrescenta mais uma volta à história, questiona suas certezas. Como retorno diferido, ela se reencarna novamente na forma de serpentes, cabelos, teresas e tranças de Tunga, este outro artista pernambucano contemporâneo e de renome dentro e fora do Brasil. Retomadas de Osman Lins, as montagens de Tunga (Barroco de Lírios,1997) também se baseiam em quadrados e espirais, como observa Marta Martins Lindote. E tudo sem mencionar Cícero Dias... Mas isso já é uma outra história. • Continente outubro 2005

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Cidades, espaços e convivência Adros, pátios e praças são espaços que carregam elementos históricos e formas físicas do organismo urbano que desencadeiam episódios de convivência entre as pessoaso Fernando Guerra

Vista da Praça Tiradentes, em Ouro Preto (MG): centro histórico e de convivência

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construção das cidades remonta há mais de cinco mil anos no Oriente Próximo, onde se estabeleceram as primeiras civilizações. A organização social e sua integração de funções, além de seu espaço físico, onde se desenvolvem todas as suas convivências, caracterizam a palavra cidade. O espaço físico de uma sociedade, segundo Benévolo (A Cidade na História), é mais duradouro do que a própria sociedade, e pode ainda encontrar-se reduzido a ruínas ou em pleno funcionamento – quando a sociedade que o produziu já há muito desapareceu. Outros espaços da cidade, entretanto, permanecem vivos e ricos de sociabilidade, mesmo tendo sido, alguns deles, adulterados em benefício do progresso urbano, modificando a sua traça original, como os adros de São Francisco (de Olinda e do Recife). Mas a cidade deve criar e reunir espaços e condições de habitabilidade e de sociabilidade, entre acontecimentos e sua ambiência cultural. Assim, tentamos abordar e refletir sobre alguns elementos históricos e sobre as formas físicas do organismo urbano, procurando, no espaço cívico, aproximar os episódios de convivência entre as pessoas. Diante da fragilidade física que acompanha o homem, o abrigo foi peça fundamental em sua sociabilidade. Com a reunião, o diálogo e a convivência dos homens no abrigo, permitiu-se criar o que chamamos de sociedade, com seus costumes, regras e culturas diversas. A cultura de aldeia, que nos recorda Roberto da Matta quando aborda, por exemplo, a tribo dos Kayapós: "Essa aldeia redonda, essa parte


externa do círculo, onde você tem as casas, é a parte feminina, porque as casas pertencem às mulheres. No centro, onde você tem a praça – contínua – são realizados os discursos, onde se socializam os mais novos e os valores masculinos. É o lugar do homem na aldeia, expressando assim a organização social da sua comunidade”. A aldeia proporcionava, como revela Munford, uma vida estável e tinha uma vantagem sobre as formas itinerantes e mais frouxas de associação. Funcionava, portanto, como uma espécie de colônia, uma associação permanente entre as famílias e os vizinhos, e onde cada um dos seus membros desempenhava todas as funções apropriadas a cada fase da vida. Evidências dessa associação permanente como a ordem, a vida estável, a intimidade e o convívio com a natureza, que foram transmitidas à cidade, podemos encontrar, ainda, em alguns bairros ou distritos da vizinhança, que guardam e acalentam inúmeros costumes e hábitos conservadores da aldeia. Um salto a partir da cultura de aldeia verificou-se onde seus antigos componentes foram transportados a um novo plano e incorporados na nova estrutura urbana. E graças à ação de novos fatores é que seriam levados a promover as transformações e desenvolvimentos posteriores. Com a introdução de uma nova leva populacional, com tipos diferenciados, novos hábitos e complexidade, a cidade cresce, transforma-se e cria uma unidade superior. A partir da transformação da cultura de aldeia nessa unidade superior urbana, a cidade pode ser descrita, segundo Munford, “como uma estrutura especialmente equipada para armazenar e transmitir os bens da civilização, e suficientemente condensada para admitir a quantidade máxima de facilidades num mínimo de espaço, mas, também, capaz de um alongamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de abrigo às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma sociedade crescente, e de sua herança social acumulada”. E cita, ainda, como feitos mais antigos e característicos da cidade, “o registro escrito, a biblioteca, o arquivo, a escola e as universidades”.

A cidade tornou-se, portanto, um símbolo do possível e o lugar das relações entre o homem e o espaço circundante. Mas, por outro lado, a cidade introduziu a segregação de classes, a falta de sentimentos e a insensibilidade, a dissimulação, o controle autoritário e a violência extrema, levando as pessoas a uma fragmentação e a um individualismo acentuado, traduzido pelo isolamento em seu próprio espaço. Mas a cidade deve criar condições para que as pessoas possam viver, definir os espaços muitos dos quais qualificados e específicos, ter os seus elementos simbólicos e com expressão de poder como nos revela Munford, uma vez mais: “através da arquitetura monumental exibida na reunião de custosas matérias de construção e de todos os recursos da arte, bem como num domínio de todos os estilos de acessórios sagrados, grandes leões, touros e águias, era a certeza de poder ininterrupto e de autoridade inabalável”. A arquitetura monumental da cidade antiga, outrora expressão de poder, deve conviver agora, na cidade moderna, como processo de urbanização crescente de novas estruturas e instalações, inteiramente adversas ao seu aspecto original. Esses edifícios, os palácios, os mosteiros, os conventos, os templos, as igrejas e tantos outros, entretanto, mesmo inseridos nessa nova definição da cidade, encerram, ainda hoje, e somente porquanto são revestidos de uma feição monumental, determinados espaços, indubitavelmente importantes de formas e funções as mais adversas: religiosas, políticas e sociais. São os adros, pátios e as praças abertas e públicas. O estudo dos adros, pátios e praças públicas, do ponto de vista político e religioso, e como espaço de lazer conferido através da integração de funções e como cenário de encontro, é um quesito que nos motiva a escrever algumas linhas. Em muitos casos, esses elementos encontram-se situados dentro do centro histórico, onde habita e trabalha uma população, “que guarda uma relação de vida com tais ambientes, ainda comparável àquela da cidade antiga e com uma história

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Fernando Braga/Folha Imagem

ARQUITETURA


Chico Porto /JC Imagem

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Sociabilidade: Pátio de São Pedro, no centro do Recife, com diversos bares ao redor da igreja

Alexandre Campbell/Tyba

que se liga sem descontinuidade aos acontecimentos do passado” (L. Benévolo), a exemplo do que ocorre em Florença, Veneza, Pisa, Siena e Tiradentes, formando um sistema coerente e de equilíbrio. Cenários de encontros, esses espaços nas cidades integram-se às atividades da vida urbana como lugares das mudanças, em suas diversas formas e ordenados, segundo os elementos de composição urbana e paisagística. Além da integração de funções, que se processa através da relação população x cidade, verifica-se, na verdade, uma sedimentação que se refere ao modo de vida e aos valores tradicionais e culturais da população, formando, mais tarde, o que chamamos de ambiência cultural. Quando nos referimos aos adros e pátios, lembramo-nos de imediato das Ordens Religiosas. Os jesuítas, os beneditinos, os carmelitas, os franciscanos e outras ordens, que legaram à história brasileira exemplares magníficos de edificações erigidas em todas as partes, a exemplo das construções seiscentistas que povoaram o Brasil, de início na faixa litorânea e depois no sentido oeste, para o interior, criando e proporcionando espaços mais agradáveis, encontro de ritos, crenças e manifestações. Nesse sentido, os jesuítas e os franciscanos criaram os seus espaços políticos e religiosos, defronte das suas casas religiosas, terreiro e adro, respectivamente. Benedito Lima de Toledo (USP) nos revela que o arquiteto Francisco de Paula Dias de Andrade (SP) destaca a importância das edificações religiosas na ordenação dos espaços abertos em função de seu partido: em primeiro lugar, compunham-se de alguns elementos exteriores, o adro (atrium) ao qual se associaContinente outubro 2005

Mosteiro e Igreja de Santo Antônio, e a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no Rio de Janeiro

ram ou não (os porlieus) e o cemitério (caemiterium) (TOLEDO, 1985). O adro, conforme o arquiteto, é um espaço de transição, ponto focal de onde se encaminha ou para igreja, passando pelo pórtico, ou para o cemitério; é partido adotado pelos


ARQUITETURA conventos das ordens regulares e de mendicantes, sobretudo pelos franciscanos (TOLEDO, 1985). Os jesuítas, que se tornaram os núncios de uma doutrina segundo a qual a perfeição poderia ser atingida não apenas mediante o êxtase sobrenatural, mas, também, que poderia ser aspirada com aptidões naturais do homem, ensinaram, de conformidade com o espírito do fundador da Ordem, Inácio de Loyola, que também aquele que não possuísse a contemplação infusa e sobrenatural, tão altamente louvada pelos místicos, poderia, apesar disso, alcançar a perfeição por meio de seus próprios esforços e anseios. Na Espanha, pátria de Santo Inácio de Loyola, a sua arquitetura não poderia permanecer alheia às tendências estéticas que conduziam a Europa Ocidental para as formas barrocas. Construíram, portanto, os jesuítas, um grande edifício em Loyola, (no próprio local onde nasceu Inácio, na província de Guipozcor, ao Norte) o solar do Õnaz y Loyola, um pequeno castelo que passaria às mãos da Companhia de Jesus, em 1682. Conforme João Boltshauser (Escola de Arquitetura da UFMG), é o chamado Colegium Regium, cuja igreja tem planta circular, formando capelas internas, à moda da Igreja de Gesu, em Roma, que apresenta, além de pátio externo, três pátios internos, um dos quais voltado para a fachada medieval do solar dos Loyola, ainda conservado (Boltshauser, 1969. Vol. V, p. 2.622). Alguns outros jesuítas arquitetos trabalharam na Espanha, dedicando-se à construção de edifícios pertencentes à Companhia de Jesus, entre os quais: Bartolomé de Bustamante, que atuou no sul da península e é o autor dos projetos

da Igreja da Professa (1565-78), em Sevilha, e da Igreja do Salvador (1564-89), em Córdoba; Juan de Tolosa (15481600), autor do projeto do Hospital (1591) em Medicinadel-Campo, na velha Castela; Francisco Batista (15941679), autor do projeto de igrejas jesuítas em Toledo e Madri; e Lorenzo Nicolás, autor de uma obra erudita, Le artery uso de la arquitectura. (Bolshauser, 1969. Vol. V, p. 2.623). Os pátios internos, decorados com arcadas superpostas em dois pavimentos, são elementos obrigatórios em residências e edifícios públicos na arquitetura da Espanha – exemplos nos palácios de Contreta e Picos, em Segóvia. Dos mais belíssimos, são os pátios internos do Mosteiro do Escorial em Guarderrama, que traz a historicidade política de Felipe XI, em fins do século 14. Em Portugal, pertencentes à Casa de Avis, construíramse vários pátios como o de Almérin, de Santarém e da Ribeira, nas margens do Tejo, todos diante de uma praça que passou a se chamar “Terreiro do Paço”. As praças principais da Antigüidade eram de uma necessidade vital impressionante – como uma história que se liga sem descontinuidade aos acontecimentos do passado, os hábitos, as recordações familiares e sociais, que são testemunhos vivos da vida de uma certa época, onde tinha lugar uma grande parte da vida pública. Alguns adros, pátios e praças das cidades de Olinda e do Recife, em Pernambuco, e Ouro Preto, na região das Minas Gerais, são belos exemplos: como o Adro da Praça da Matriz do Salvador (Olinda); Pátio de São Pedro (Recife); e Praça Tiradentes (Ouro Preto), espaços históricos e de relevantes convivências. •

Maurício Simonetti/Tyba

José Luis da Conceição/AE

Vista da cidade de São Paulo: espaços de convivência Ao lado, professor Benedito Lima de Toledo: importância das edificações religiosas Continente outubro 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

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Porco – Uma história marcada por amores e desamores “Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho de orelha de um anjo louro". Rubem Braga (200 Crônicas Escolhidas)

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Granja do Solar era, por fora, igual a tantas outras da Inglaterra. Mas os animais, ali, sonhavam viver livres da exploração dos homens. Guiados por um porco, o Velho Major, expulsaram de lá o bêbado Sr. Jones, seu proprietário; e criaram naquela granja, que agora se chamava “dos Bichos”, um novo regime – o Animalismo. Em que era proibido matar outros animais, andar sobre duas pernas, usar roupas e beber álcool. Não haveria mais propriedade privada, todos os animais seriam iguais, os frutos do trabalho repartidos fraternalmente e as decisões tomadas em assembléias, sem privilégios. Assim foi até quando outro porco, Napoleão, assumiu a administração da granja. Passando logo a mentir, a trair e a ter outros vícios humanos. Já não sendo mais possível “distinguir quem era homem e quem era porco”. Com essa fábula, A Revolução dos Bichos (Animal's Farm), George Orwell retrata ambições e misérias próprias da alma humana. Não por acaso Orwell escolheu um porco para liderar os outros animais, nessa revolução. Por lhe sobrar esperteza e malícia. Assim foi desde o princípio dos tempos, quando sobreviviam em florestas de sobreiros e azinheiras. Estão nos desenhos rupestres das cavernas pré-históricas. Esses primeiros Continente outubro 2005

porcos, ainda selvagens, se assemelhavam na aparência aos javalis de hoje. Eram só, claro, mais ferozes e mais robustos – presas afiadas, visão pouco precisa, audição e olfato bem desenvolvidos. Os machos mais velhos só se juntavam ao bando na época da reprodução. Sanglier, nome francês do javali, vem do latim singularis, que significa, precisamente, solitário. Segundo a arqueologia contemporânea, foi dos primeiros animais a serem domesticados pelo homem. Depois da ovelha, do cão e da cabra; mas antes da vaca, do burro, do cavalo e do dromedário. A primeira receita conhecida vem da China (500 a.C.) – porco recheado de tâmaras, envolvido em palha misturada com argila; assado em buraco com brasas, coberto com terra. Um jeito de preparar até hoje reproduzido em algumas ilhas da Polinésia. A história do porco é marcada por amores e desamores. Até nos textos sacros. O Levítico (11, 2 a 8) cristão ensinava aos judeus que “entre todos os animais da terra, eis os que podereis comer: podereis comer todo animal que tem a unha fendida e o casco dividido, e que rumina. Mas não comereis aqueles que só ruminam ou só têm a unha fendida... como o porco que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina; tê-lo-eis por impuro. Não comereis da sua carne e não


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tocareis nos seus cadáveres...”. O Alcorão (2, 168) mulçumano diz que “estas coisas Ele te proibiu: carniça, sangue e carne de porco”. Na Índia a deusa Kali é representada por enorme porca que cria, mata e engole seus filhotes, perpetuando o ciclo da vida. Sem esquecer que, segundo as más-línguas, Buda morreu de indigestão. Empanturrado com carne de porco. No Egito, fama ou desgraça dependiam de seu sexo. Carnes de porco macho não podiam ser consumidas. Por ser tida como impuras – posto se acreditar, então, serem responsáveis pela transmissão da lepra. Enquanto fêmeas, símbolo de abundância, eram oferecidas em sacrifício a Osíris; com o privilégio discutível de serem em seguida devoradas pelos sacerdotes. Na China o ideograma lar corresponde ao desenho de um porco, sob o teto de uma casa. Na Grécia é citado por quase todos os pensadores. Homero se refere na Odisséia a Eumeu, o “divino porqueiro” (aquele que trata dos porcos); e foi em casa deste que Ulisses se abrigou, no retorno a Ítaca e à sua Penélope. Ainda na Odisséia, Circe transforma os companheiros de Ulisses em porcos. Hércules enfrenta o javali de Erimatéia. E Teseu, a porca de Crommyon. Aristóteles desce de sua filosofia para observar que, “bem alimentado, o porco está apto sexualmente em todas as horas, da noite e do dia”. Aristófanes se deliciava com “fígado do porco cozido entre dois pratos, temperado com ervas”. Mas o prato presente nas mesas gregas, em todas as festas, era mesmo o koiridión – leitão (previamente alimentado com mosto de uva) recheado com ervas e assado no forno. Sem esquecer os enchidos – invenção dos povos bárbaros (celtas, godos, visigodos, ostrogodos e vândalos), que desenvolveram essa técnica de conservar carne durante o inverno. Sendo esses enchidos, na Grécia, feitos por allantaupolés – peritos na arte de corte e conservação do porco. Romanos também eram grandes apreciadores de porcos. Tanto nobres (nobilis), quanto gentes do povo (ignobilis). Não havendo banquete, por lá, em que não se encontrasse vulvas e tetas de porcas – virgens, estéreis ou parideiras, segundo a importância do homenageado. O Imperador Heliogábalo, durante meses, se alimentou apenas desses manjares – segundo Plínio, o naturalista. Sugerindo este, em seus estudos, o “abate do leitão aos cinco dias, cordeiro aos oito e vitela aos trinta”. No capítulo denominado “Cozinha Suntuosa”, de sua Arte Culinária, Apícius fornece numerosas receitas de porco – molhos para acompanhar leitões assados, chouriços, presuntos, rabos guisados, recheios de pés de porco. Petrônio descreve, em Satíricon, banquete de javali recheado com pássaros vivos, acompanhado de botulus (espécie de chouriço). Ainda referin-

do lugares fantásticos, em que era possível “encontrar porcos já assados passeando”. Ao porco chamavam então chacim – donde “chacinado”, nos primórdios, era só um porco defumado. Faltando apenas lembrar que, para os romanos, o mais nobre dos esportes era a caça ao javali. Na Idade Média a carne de maior prestígio, em toda a Europa, era a de porco. Em Portugal também. Além de saborosa essa carne definia, nos tempos da Inquisição, cristãos (os que a tinham à mesa) e judeus (proibidos desse consumo). Porcos eram engordados com restos de comidas, na “corte” – nome dado a pocilgas situadas junto às casas. Sendo a matança desses porcos “exemplo supremo de festa lúdica”, segundo o antropólogo português Ernesto Veiga de Oliveira. Essa festa era carregada de simbolismo, significando fartura para a família, o ano todo. Fazia-se “o cozido da matança” com carnes frescas ou salgadas (rabo, orelha, barbela, focinho), além de enchidos (chouriço, lingüiça, cacholeira e farinheira), de porco morto no ano anterior. Na dieta dos doentes se prescrevia porquinho novo, “carne sem pecado”. Por ser consumida nos primeiros dias do luto, carne de porco era também conhecida como “comida de dó”. Ainda hoje é, por lá, preferência nacional – fresca, salgada, defumada, em forma de enchidos. Cada região tem sua receita especial – Açorda de Medrões (Trás-os-Montes), Arroz de Golada (Estremadura), Bucho Recheado (Alentejo), Cachola de Porco (Ribatejo), Cabidela de Leitão (Beira Litoral), Chouriço Mouro (Torres Nova), Debulho (Açores), Leitãozinho Assado (Mealhadas), Porco de Forno (Madeira), Sarrabulho (Entre Douro e Minho). Sem esquecer jeitos doces de fazer esse porco: Chouriço de Mel – temperando a carne com mel (Bragança); e Morcelas – lombo, sangue cozido e ralado, amêndoas, canela, banha e açúcar, recheando tripa de porco, tudo por fim defumado (Arouca). Prática comum também na Irlanda (black pudding), na Inglaterra (blood pudding) e na França (boudin noir). Os primeiros porcos domesticados chegaram à América espanhola com Cristóvão Colombo. No Brasil, apenas com Martim Afonso de Souza, em 1532. Passando a carne mais clara, mais gorda e mais tenra daquele “porco rosa” a ser mais apreciada por nossos índios que a magra, escura e fibrosa dos similares nativos selvagens – antas, caititus, capivaras, queixadas e outros porcos-do-mato. Sem contar que, enquanto os da terra davam (quase todos) apenas uma cria por ano, os porcos europeus tinham ninhadas de até 12 filhotes. Eram economicamente mais aptos. Primeiros sinais de uma globalização que, séculos depois, se converteria em praga. Continente outubro 2005

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SABORES PERNAMBUCANOS

Leo Caldas/Titular

RECEITA: PERNIL COM MEL INGREDIENTES: 1 pernil de 4 kg, 2 garrafas de cerveja preta, 3 colheres de sopa de mel, ½ copo de whisky, 1 cabeça de alho amassado, 1 bouquet garni (salsa, alecrim, louro, salsão e alho-poró), 1 punhado de pimenta em grão, sal a gosto, folhas de manjericão para a decoração, batatas com casca (semicozidas em água e sal) e cebolas com casca para o acompanhamento. PREPARO: Tempere o pernil, em vasilha funda, com todos os ingredientes e deixe na geladeira por 24 horas. Coloque o pernil em assadeira, com o líquido da

Do porco tudo se aproveita – carne (lombo, filet, carret, pernil, costela, paleta, pá), barriga (toucinho, banha, torresmo). Fígado, coração, língua, toucinho e sangue são ingredientes do sarapatel. Rabo, orelha, costela e pé (salgados ou defumados), da feijoada. Esse pé (cozido, e esfriado em sua gelatina) é também petisco muito apreciado na França (pied de cochon). Joelho, servido com chucrute, é prato típico alemão (eisbein). Do porco ainda se aproveita cabeça, miolos, nervos, cartilagens. E tripas, usadas na fabricação de enchidos; ou fritas, insuperáveis como tira-gosto. No Nordeste esse porco é também usado em doces – Chouriço (lingüiça de sangue com açúcar e temperos) e o Doce de Chouriço (sangue de porco com rapadura, farinha de mandioca, erva-doce, pimenta do reino, gengibre pisado, cravo, castanha e banha de porco derretida; tudo no fogo até que solte do fundo da panela). Do pernil se faz também presunto – a palavra presunto vem do latim perexutus (privado de todo líquido). Servidos crus, não estragam porque são “curados” – processo que inibe o crescimento de bactérias. Salga, defumação, secagem, condimentação e maturação são etapas na fabricação do presunto. E “há quase tantos presuntos quantas sejam as combinações entre esses cinco procedimentos”, explica Robert Wolke (A Ciência na Cozinha). Destaque para os presuntos crus italianos de Parma e San Daniele, os espanhóis Pata Negra (cevados, quase sempre, no norte de Portugal), os ingleses de York, os belgas de Ardennes, os alemães da Floresta Negra, os chineses de Yunnan e os norte-americanos de Kentucky, Vermont, Geórgia, Carolina do Norte e Virgínia. Todos bem diferentes dos presuntos processados, usualmente encontrados em nosContinente outubro 2005

marinada. Cubra com papel alumínio e leve ao forno quente por 2 horas e meia. Retire o papel, acrescente batatas e cebolas (com casca), e continue assando por mais 40 minutos. Regue, de vez em quando, com o líquido da assadeira. Decore com folhas de manjericão.

sos supermercados – de preço mais em conta por usar, entre outros ingredientes, sobras de carne de porco prensada. Com o porco se preparando ainda vários tipos de embutidos – dos quais o mais antigo deles, já com 3.500 anos, é a salsicha. São, só na Alemanha, mais de 1.500 tipos. O porco vem mudando, com o tempo. O de hoje é light. Tem menos gordura, mais músculo e mais carne no lombo (a mais apreciada). Por meio de cruzamentos e mudanças na dieta, perdeu cerca de 30% de sua gordura primitiva, 14% de calorias e 10% de colesterol. A espessura do toucinho passou de seis cm para 1,5 cm. Segundo a FAO (Food and Agriculture Organization) são hoje cerca de um milhão, em todo o mundo. Mais de cem milhões de toneladas de carne, portanto. Como se não bastasse, o porco também fornece órgãos para serem transplantados no homem – tendo suas válvulas para implante no coração melhor qualidade, e mais aceitação, que as de material sintético. Com tantas qualidades, já se vê o quanto de injustiça há na fama que têm os porcos em nossa cultura. “Porco” é sempre alguém sujo. Diz-se ter “espírito de porco” aquele que é inconveniente. “Porco chauvinista” designa homem intransigente, que vê o mundo a partir do seu umbigo. Talvez pensando nessa injustiça, em sua defesa veio o estadista inglês Winston Churchill. É dele a observação, generosa, de que “cães olham para você de baixo para cima. Os gatos olham para você de cima para baixo. Só os porcos olham para você olho no olho, como iguais”. Mas não se leve esse glutão inglês demasiadamente a sério. Que, apesar de tantos arroubos, um de seus pratos preferidos era precisamente porco. •


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Confissão antiga sobre o meu pai

A

primeira sensação que tive quando meu pai morreu foi a de que o tempo passara a não ter fronteiras, não limitava mais, nem proibia, os minutos gotejavam sem pressa do carrilhão em forma de pilastra, na sala – e as horas, reunidas, pareciam tecer uma correia elástica que me levava por itinerários subitamente improvisados. Acordava no meio da noite. A sensação que eu tinha, ao escutar o tique-taque que soava dentro do silêncio como o barulho de dois pequenos martelos alternados, era a de que o relógio estava a me dizer que o tempo era meu – noite, dia, manhãs, tardes, todo meu. Eu podia saltar da cama, me vestir, abrir a porta da frente e sair para a rua, para os mil caminhos do mundo lá fora. Era como se a morte do nosso pai, que durante anos reinara na casa como um pequeno e intolerante monarca, tivesse transformado todos nós em seres atarantados, sem direção, estranhos uns aos outros, embriagados pela súbita liberdade com a qual nenhum sabia ainda o que fazer. Hoje, tenho certeza: foi a morte de meu pai que me ensinou a ser livre. •

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Nelson Provazi

ESPECIAL

GLOBALIZAÇÃO

De Magnum a João Grilo O problema cultural da globalização não é que ela ponha as identidades nacionais em risco; às vezes, ela até as acentua indevidamente. O problema é que ela pulveriza critérios, propaga rótulos, dilui valores Daniel Piza

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uem era jovem em meados dos anos 80 e ligava o rádio ou a TV quase só encontrava produtos estrangeiros, quase sempre americanos. Na TV, depois da novela das oito da Rede Globo, em pleno horário nobre, o domínio era dos “enlatados”, de seriados de todo tipo, como Casal 20, Magnum etc. No rádio, como nas lojas de discos, o pop de Michael Jackson e Madonna parecia onipresente. No cinema, a mesma coisa: filmes como ET e Super-Homem mal deixavam espaço para outras nacionalidades. Também os best-sellers das livrarias eram importados. A cultura brasileira vivia num beco, em quartinhos alugados e mal-iluminados. Hoje, 20 anos depois, essa realidade mudou e muito. Pegue a lista dos CDs mais vendidos: são quase todos brasileiros, com destaque para os sertanejos. Entre os 10 livros mais vendidos, na ficção, na não-ficção ou na auto-ajuda, em geral cinco são de autores brasileiros. A TV Globo, depois da novela, exibe sempre programas de humor ou jornalismo e partidas de futebol, seguidos em certos períodos por minisséries adaptadas de romances nacionais. O cinema brasileiro ainda patina, mas já produz algumas dezenas de títulos por ano, incluindo documentários, e atingiu patamares de alguns milhões de espectadores em alguns casos. Esse contraste tem muitos fatores. Mas dele ninguém pode tirar o apanágio de desmentir a tese de que a globalização destrói as identidades nacionais, alienando o público de sua própria produção cultural. Fatos são fatos. O que ocorre é que o próprio fenômeno batizado com essa palavra imprecisa, globalização, continua malcompreendido. De um lado, foi tido por seus defensores como uma marcha inexorável da história em direção a um modelo universal, planetário, um conjunto de princípios e regras que teriam valor idêntico em todas as partes. Muitos se intitularam neoliberais, mas o fato é que esse pressuposto de um figurino sócio-econômico único – essa espécie de monismo econômico – só pode ser apoiado por conservadores, por pessoas que acreditam que a história tem fim, que um dia as coisas param de mudar e se harmonizam num acorde perfeito. Do outro lado, os críticos da globalização decretaram que ela é um processo inevitavelmente deletério, que liquida soberanias, que delega a riqueza à ciranda financeira. Mas o máximo que esses fóruns pós-socialistas conseguiram foi propor coisas como perdão da dívida do Terceiro Mundo, controle do capital de curto prazo e outros ajustes pontuais.

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ESPECIAL

Imagens: Divulgação/AE

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Assim como a globalização reforça o lado ruim do capitalismo de consumo, ela favorece uma mentalidade que privilegia o espetáculo em prejuízo da crítica, o modismo em prejuízo da profundidade, a celebridade em prejuízo do contexto

Magnum: enlatado no horário nobre da TV nos anos 80

Se definirmos globalização como a internacionalização financeira, comercial e tecnológica que se acentuou principalmente a partir dos anos 90 – depois da queda do Muro de Berlim, do advento da internet e das transformações econômicas ocorridas na Ásia – o conseqüente aumento da desigualdade entre os países e dentro de muitos países é uma realidade estatística. Isso, porém, não pode ser interpretado como uma transferência de renda dos pobres para os ricos. Na verdade, os países desenvolvidos, apesar de problemas como desemprego e deficit previdenciário, se beneficiaram de sua superioridade educacional, pois a economia de hoje depende muito mais do conhecimento e da inovação do que dependia antes; basta ver que setores como a informática e o entretenimento estão entre os que mais cresceram. Mesmo nos chamados “tigres asiáticos”, as crises financeiras do final do século 20 foram superadas de modo rápido porque durante uma geração o investimento em educação, tecnologia e infra-estrutura havia sido feito com intensidade e rigor. Países menos desenvolvidos, como o Brasil, saem atrás no xadrez da globalização justamente porque não definiram tais prioridades. O Brasil derrubou a hiperinflação, inclusive resistindo à receita de dolarização do Continente outubro 2005

FMI (que provocou grande estrago na Argentina), fez a abertura econômica e criou alguns instrumentos de controle fiscal; mas deixou a educação, a pesquisa e a infra-estrutura em plano secundário. Sobrevive com dívida pública alta e taxa de poupança baixa porque não criou o ambiente social e institucional para que a economia crescesse de modo contínuo. Avançou, sim, mas em ritmo muito lento, principalmente se comparado com países em desenvolvimento de outros continentes. É essa diferença de velocidade e consistência que explica em grande parte o aumento da desigualdade. Isso tudo tem a ver com os valores culturais também. A América Latina continua pagando o preço de sua cultura estatizante, de máquinas públicas obesas e corruptas (o governo FHC, dito neoliberal, aumentou a carga tributária para quase 40% do PIB), atrelada à glamourização da contravenção, à inclinação pela impunidade, ao elogio da ignorância travestida de “intuição” ou “esperteza”. Certo, os avanços registrados na democracia e mesmo na economia e na sociedade (como o salto no número de pós-graduados em universidades) foram e são reais; e isso teve reflexos na cultura. Desde a abertura política em 1985, por exemplo, as editoras se multiplicaram, produ-


ESPECIAL

A globalização pode estimular também o autoconhecimento nacional, ora por resistência a ela, ora por conseqüência de sua ênfase em lazer e entretenimento

João Grilo (Matheus Nachtergaele): sucesso contra o preconceito

zindo muitos livros de história, biografias e jornalismo sobre questões e personagens brasileiros. Canais de TV por assinatura produzem programas e documentários de altíssima qualidade também sobre o Brasil, e mesmo a TV aberta tem conseguido produzir coisas como os trabalhos de um Luiz Fernando Carvalho. A informação internacional circula aqui com muito mais abrangência e rapidez, e não só por causa de internet; basta você analisar qualquer banca de revistas. Bons autores e artistas surgiram nas diversas áreas. Grandes exposições e espetáculos têm chegado com mais freqüência ou sido realizados aqui mesmo. Tudo isso mostra que a globalização pode estimular também o autoconhecimento nacional, ora por resistência a ela, ora por conseqüência de sua ênfase em lazer e entretenimento. Não se deve menosprezar, porém, o fato de que esse salto na oferta de cultura local não significa necessariamente um salto equivalente em sua qualidade média. Assim como a globalização reforça o lado ruim do capitalismo de consumo, que é a corrosão da representatividade política e da competição justa em razão do poder das megacorporações, ela favorece uma mentalidade que privilegia o espetáculo em prejuízo da crítica, o modismo em prejuízo da profundi-

dade, a celebridade em prejuízo do contexto. No mundo todo, os filmes, livros e discos de maior sucesso tendem a ser ruins, pasteurizados, apelativos. Basta ver aquelas listas que citei acima: raros são os CDs que se salvam, as novelas que ficarão na história, os romances best-sellers que poderão ser relidos daqui a 10 anos. Mais do que a escassez de gênios, o que tem pesado é a proliferação dos medíocres. As boas criações contemporâneas, que não são poucas, costumam parar em “nichos”, vivendo da pequena escala. Algumas delas até fazem sucesso, como O Auto da Compadecida, com Matheus Nachtergaele de João Grilo; mas para isso precisam derrubar os preconceitos dos populistas que dão as ordens em gravadoras, produtoras e redações. O problema cultural da globalização, em suma, não é que ela ponha as identidades nacionais em risco; às vezes ela até as acentua indevidamente, já que cultura é por essência aquilo que pode transpor fronteiras e estigmas. O problema é que ela pulveriza critérios, propaga rótulos, dilui valores. Mas isso não vem dos últimos 10, 15 anos. A globalização é complexa e, como tal, exige leitura de sua complexidade. A cultura precisa de sua energia, até mesmo para resistir a ela. • Continente outubro 2005

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Um processo enriquecedor

Nelson Provazi

O economista indiano Jagdish Bhagwati, professor da Universidade de Colúmbia e exconselheiro especial da ONU, nada a favor da corrente da globalização e sustenta que o processo é positivo cultural e economicamente Renato Lima

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m 1999, o produtor francês José Bové invadiu uma McDonald’s na França e destruiu uma unidade da cadeia de lanchonetes símbolo da cultura americana. Na época, Bové declarou se tratar de uma ação contra o fast food e a globalização. Como se sabe, poucas coisas estão mais dentro da cultura francesa do que a gastronomia e a McDonald’s é vista como uma ameaça ao modo francês de se alimentar. Essa ação ganhou manchetes internacionais e projetou José Bové para o estrelato mundial contra a globalização, que tem como sua Broadway ou Hollywood os encontros do Fórum Sócio-Mundial em Porto Alegre. Mas a globalização é de fato uma ameaça às culturas locais ou um potente mecanismo enriquecedor tanto economicamente quanto culturalmente? Se você perguntar a Jagdish Bhagwati, professor da Universidade de Colúmbia e ex-conselheiro especial sobre globalização da ONU, a resposta será a segunda alternativa. Não por acaso ele é autor do livro Em Defesa da Globalização – como a globalização está ajudando ricos e pobres, editado no Brasil pela Campus.

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ESPECIAL tivismo. E o francês tinha uma presença nas letras maior do que a existente hoje para o inglês. Mas a própria hegemonia de um poder, e de sua língua, faz surgir uma reação que é a valorização de culturas locais e seus idiomas. “O surgimento do multiculturalismo e a celebração das etnias – em lugar de extinção dos mesmos – são fenômenos modernos que desafiam as sombrias previsões dos pessimistas globais”, diz Bhagwati, ele próprio um indiano que estudou e lecionou em vários locais do mundo. A manifestação de José Bové poderia ter sido o início de uma reação contra o fast food, mas esse não foi o caso. “O ataque rocambolesco de Bové à McDonald’s não sobreviverá muito tempo. Para cada manifestante existem vários outros franceses que apóiam a existência da rede de lanchonetes. De 1972, quando chegou a esse país, para cá, os fregueses franceses converteram a McDonald’s local na terceira maior da Europa. Sua filial do Champs-Elysées rendeu quase US$ 5 milhões só em 2001.” Já a McDonald’s também teve que se adaptar aos padrões franceses, adicionando nos cardápios brioches, café expresso e lojas em formatos de chalé de esqui com tetos de madeira. Mas se a orgulhosa cultura francesa pode se dobrar ao fast food americano, as culturas de países em desenvolReprodução

Bhagwati retoma o episódio Bové e as reclamações de líderes indígenas contra a globalização para perguntar se eles estão certos em dizer que a globalização ameaça tanto as culturas dominantes quando as periféricas e que instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), editam regras que contribuem para a destruição dessas culturas. Para ele, isso é por demais simplista e a globalização é um processo muito mais enriquecedor. Um dos exemplos é a própria literatura. Enquanto os críticos vêem na presença massificante do inglês uma forma de exterminar as outras línguas, Bhagwati prefere ver a formação de híbridos de língua, tomando emprestados termos – e até estilos – de diferentes regiões. “Na realidade, não há melhor exemplo dessa hibridização – a cooptação e reformulação do idioma inglês, em sua gramática e pronúncia para adquirir a cor local – do que o fornecido por Salman Rushdie, que une de forma extravagante a gíria de Bombaim com um inglês impecável em seus romances tingidos de realismo fantástico que, por sua vez, é emprestado dos talentosos escritores sul-americanos.” É também bom lembrar que a literatura brasileira foi formada no esteio de importar a cultura européia, como nos movimentos do Romantismo, Simbolismo e Posi-

"O surgimento do multiculturalismo e a celebração das etnias – em lugar de extinção dos mesmos – são fenômenos modernos que desafiam as sombrias previsões dos pessimistas globais", diz Jagdish Bhagwati

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ESPECIAL Divulgação

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O índio e o computador: globalistas querem o oposto dos antropólogos

vimento também ganham mundo. Segundo estudo da Unesco, citado pelo livro, a participação dos países em desenvolvimento no comércio mundial de música, material impresso, artes visuais, fotografia, rádio, televisão e outras mídias subiu de 12% para 30% nos 20 anos que precederam 1998. Ou seja: tamanha corrente de comércio sugere um fluxo de mão dupla, longe de idéias como pensamento único ou dominação. Quanto ao perigo da liberalização econômica destruir culturas locais e povos indígenas, o especialista acha improvável. Até porque essas comunidades já estão distantes da economia principal desses países, o que é ruim. Dessa forma, o ponto de vista dos economistas é de estender aos povos indígenas a prosperidade proporcionada pela globalização, enquanto os antropólogos querem o oposto. “No final das contas, uma causa incontornável da discórdia é o fato de que os economistas aceitam e estimulam as mudanças, ao contrário dos antropólogos.” Bhagwati é um acadêmico e não um ideólogo, o que faz a sua leitura ainda mais importante. Em relação à discussão sobre mercado de audiovisuais, ele diz reconhecer a chamada “exceção cultural” e é contra a defe-

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sa dos Estados Unidos de tratar filmes simplesmente com bens e serviços – o que impedirá os países de incluir cotas mínimas e subsídios. O professor indiano lembra que existem na vida objetivos não-econômicos e a defesa de uma exceção natural é válida. Apenas não é eficaz a imposição de cotas e restrições (até pela disseminação da tecnologia, como ver filmes em DVD ou baixar da internet). “A política de permitir a importação livre de filmes e ao mesmo tempo subsidiar a produção cinematográfica nacional com certeza seria uma opção melhor”, defende. Em 2001, em palestra na Fundação Joaquim Nabuco, o ex-ministro da fazenda Pedro Malan lembrou de uma frase vista em cartazes de militantes contra a realização do Fórum Econômico Mundial de Davos: Join the global network agains’t globalization (Entre para a rede global contra a globalização). Globalizou-se uma cultura contra a globalização, formada de estrelas como José Bové, Noam Chomsky, Rigoberta Menchú e José Saramago, entre vários outros. Já os defensores são poucos. Por isso melhor ainda ler Jagdish Bhagwati. •


Ral

Globalização e identidade cultural A verdadeira universalidade resulta do diálogo de culturas nacionais cada vez mais fortalecidas Carlos Newton Júnior

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fenômeno de globalização da economia e das comunicações – conseqüência inevitável da expansão da economia mundial e do desenvolvimento da tecnologia – vem se constituindo numa das características mais marcantes do nosso tempo. Trata-se de fenômeno universal, irreversível (até onde se possa pensar na irreversibilidade de todo processo histórico), que se firma dia após dia independentemente da vontade de povos e governos. Tal constatação, porém, ao contrário do que os apóstolos mais radicais da globalização querem fazer crer, não significa que se tornaram anacrônicas certas preocupações ligadas ao campo da arte e da cultura e que apontam para a necessidade de valorização das peculiaridades nacionais. De fato, imaginar uma cultura globalizada a partir de modelos pretensamente universais é seguramente uma atitude tão ingênua quanto a dos que defendem culturas hermeticamente fechadas sobre si mesmas. A não ser, é claro, que se tenha em mente um programa muito bem delineado de introdução “pacífica” dos valores culturais dos países desenvolvidos nos países pobres do terceiro mundo – hipótese em que a ingenuidade acima referida se constituiria tão-somente na máscara de um maquiavelismo criminoso, e o termo globalização não passaria de um neologismo de sonoridade mais adocicada para disfarçar a milenar prática do colonialismo cultural, ponta-de-lança do imperialismo. Continente outubro 2005


Beto Figueirôa/JC Imagem

ESPECIAL

Tully Nola/Corbis Sygma

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Os escritores Octavio Paz e Ariano Suassuna: convergências apesar de incompreensões

A bem da verdade, as culturas são unidades pensadas a partir de enormes variedades. Muitos já chamaram atenção (lembro-me, de imediato, do grande Thomas Mann na sua Viagem Marítima com Dom Quixote) para o fato de que isso a que chamamos “cultura ocidental”, por exemplo, é um enorme e complexo edifício erguido a partir de dois pilares fundamentais – a antiguidade mediterrânica e o cristianismo. A cultura brasileira, por sua vez, enquanto episódio da cultura ocidental, é outra união de contrários, outra unidade pensada a partir de uma pluralidade de culturas regionais extremamente ricas e diversificadas, com uma homogeneidade lingüística que deve ser defendida até a exaustão. Sempre que me vejo às voltas com essas preocupações, costumo recorrer a dois pensadores pelos quais nutro uma profunda admiração, o mexicano Octavio Paz e o brasileiro Ariano Suassuna. Diga-se de passagem, aliás, que há uma identificação cristalina entre as visões que os dois demonstram possuir acerca do problema da identidade cultural, muito embora, curiosamente, alguns dos críticos mais ferrenhos de Suassuna (daqueles que adoram tachálo de conservador e acusá-lo de xenofobia) idolatrem Octavio Paz como um exemplo de intelectual politicamente correto e de vanguarda. Das duas uma: ou não leram Suassuna ou não entenderam Octavio Paz. Bastaria, de fato, cotejar algumas reflexões delineadas em O Labirinto da Solidão, ou mesmo em textos mais recentes de Octavio Paz, com certas passagens de A Onça Castanha e a Ilha Brasil, para constatar a concordância de visão que une os dois escritores, e que se origina, antes de qualquer coisa, da consciência de que a verdadeira universalidade resulta do diálogo de culturas nacionais cada vez mais fortalecidas. Continente outubro 2005

Não me parece apropriado falar de influência de Octavio Paz em relação a Suassuna, mas, para reforçar a expressão usada acima, de pura concordância de visão entre dois escritores latino-americanos de uma mesma geração e legitimamente preocupados com a imposição dos valores culturais estrangeiros, principalmente norte-americanos, sobre as suas respectivas culturas. “Temos pensado muito pouco por conta própria” – afirma Paz em certa passagem de O Labirinto da Solidão –, pois “tudo ou quase tudo temos visto e aprendido na Europa e nos Estados Unidos”. Trata-se, convenhamos, de uma afirmação que se aplica como uma luva ao caso brasileiro. Do ponto de vista específico da arte, não há, como tem afirmado Suassuna em diversas ocasiões, um modelo a priori para a criação da obra universal. A grande obra de arte, partindo sempre de uma reflexão do artista sobre o seu estar-no-mundo (e este “mundo” nada mais é do que a aldeia de cada um), universalizase pela qualidade, pela capacidade do artista de captar a sensação de eternidade do seu chão e transpô-la para a sua obra – como ocorre, entre tantos outros que poderiam ser citados, com o próprio Suassuna, ou como ocorreu com o poeta grego Seféris, que, nos anos 30, nas palavras de Henry Miller, “começava a amadurecer como poeta universal por se arraigar apaixonadamente ao solo da sua gente”. Universalidade, portanto, é acima de tudo pluralidade. E, nesse sentido, o avanço das tecnologias de informação, possibilitando o melhor conhecimento do outro, de tudo aquilo que é diferente de nós, possibilita também, em tese, um maior respeito à diversidade, saudável diversidade que funciona como uma espécie de antídoto para a esclerose do pensamento. •


Alan Marques/Folha Imagem

Meios de comunicação de massa disseminam valores culturais importados

O fenômeno da sedução Atreladas ao processo de submissão econômica, chegam sucessivas ondas de valores culturais, uma disseminação por sedução que introduz modificações no comer, no vestir, nas formas de sentir e até mesmo na linguagem Eduardo Duarte

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cada nova era uma velha procura por uma nova idéia. Uma procura por uma filosofia que nos aproxime mais da condição humana que nos permita pensarmos, sermos livres e justos. Fazemos isso todas as eras, mesmo que não saibamos que fazemos. Atrás de uma referência de pensamento por onde se guiar, por onde a humanidade se faça mais justa com ela mesma. Vivemos atualmente as promessas de um mundo globalizado. Maior circulação de bens e serviços, maior parceria tecnológica de países ricos com países pobres, maior deslocamento de valores culturais por todos os povos. Chegamos no momento em que não parece haver rival à lógica liberal do capital que se oferece como saída democrática aos regimes centralizadores dos Estados. Mas de forma estranhamente inversa às promessas, o que se assiste dessa possível parceria cultural e tecnológica entre ricos e pobres é um aprofundamento gradativo das diferenças que um dia poderiam se acabar no reino do fluxo global de bens e capitais. A discrepância econômica funda a discrepância tecnológica e por conseqüência a discrepância dos hábitos e dos valores que resistem a processos de globalização em todo o mundo. Existe um fosso abissal entre os poucos países empreendedores de pesquisa e aplicações em tecnologias e Continente outubro 2005


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ESPECIAL todo o resto do planeta que não resolveu questões básicas de sobrevivência. Um fosso que se amplia a cada dia um pouco mais a partir do enriquecimento dos mesmos países e do empobrecimento das mesmas macro regiões. Segundo o relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas, na sua edição do ano 2000, a discrepância da renda dos países ricos e pobres que era da proporção de 3 para 1, em 1820; passou a 44 para 1, em 1973; foi a 72 para 1, em 1992; e chegou em 80 para 1 por volta do início do século 21. Entre 1990 e 1998 a renda per capita caiu nos 50 países mais pobres e aumentou nos 28 mais ricos. Cerca de 1,2 bilhão de pessoas, o que equivale a um quinto da população mundial, vivem em nível de miséria absoluta. A partir dos dados do mesmo relatório da ONU, Nicolau Sevcenko analisa ainda que os 200 maiores multimilionários acumularam 1,113 trilhão de dólares no ano 2000, e que o total de renda de toda a população dos países do chamado Terceiro Mundo chega a 146 bilhões de dólares. Ou seja, menos de 10% do montante controlado pelos 200 maiores bilionários. No final do século 20, 1,5 bilhão de trabalhadores na região Ásia-Pacífico ganhavam entre US$2,5 a US$44,0 de salário diário médio, enquanto que na Europa Ocidental, EUA e Japão o salário nunca é inferior a US$95,0. Como seria possível, então, que as tecnologias pudessem promover saltos de reorganização complexa de conjuntos sociais e culturais subdesenvolvidos, quando a grande maioria do planeta não tem poder sobre a circulação do fluxo de capital? Atualmente a forma mais comum para o estreitamento desse fosso vem da política dos organismos econômicos internacionais, que não cedem ajuda aos países em desenvolvimento sem intervir diretamente na autonomia de gestão dos Estados com uma extensa cartilha de obrigações. Essa é uma maneira de suprir econômica e tecnologicamente as necessidades dos países em desenvolvimento, criando um alinhamento econômico no qual os pobres mantêm-se cada vez mais pobres para pagar suas contas aos ricos, que continuam cada vez mais ricos. Essa é a lógica de atuação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM) que cria uma submissão incondicional a uma nova forma de colonialismo. Trata-se de uma forma perversa de disseminação de regras, de técnicas administrativas, permitindo uma porosidade gradativa dos mercados nacionais que perdem na competitividade comercial para a produção industrial Continente outubro 2005

Parceria entre ricos e pobres tem aprofundado gradativamente as diferenças

eficiente das multinacionais. Os Estados aceitam respeitar as instruções gerais da política econômica desses organismos e acabam por não ter meios para enfrentar a ação dos mercados contra seus interesses e de seus cidadãos, nem para frear os formidáveis fluxos de capital. Isso implica inevitavelmente em demissões em massa de funcionários públicos, cortes drásticos nos orçamentos da educação, habitação e saúde, e a desmobilização de conquistas raras numa estrutura social já muito frágil. Esse alinhamento econômico-administrativo é um dos pilares dessa forma de disseminação chamada globalização. Mas, atreladas ao processo de submissão econômica chegam sucessivas ondas de disseminação de valores culturais, através dos meios de comunicação de massa, criando novos hábitos, importando novas tecnologias que criam novos costumes. Uma disseminação por sedução que introduz modificações no comer, no vestir, nas formas de sentir e até mesmo na linguagem. A globalização como referência humanista – Esse fenômeno de sedução da população dos países em desenvolvimento pelo gosto estético, pelos produtos, pela tecnologia, pelo saber e valores das potências econômicas e tecnológicas são formas da expansão humanista, uma referência de pensamento por onde se guiar, por onde a


Juca Varella/Folha Imagem

ESPECIAL

humanidade se faça mais justa com ela mesma. Segundo Peter Sloterdijk, o humanismo se disseminou como uma carta de intenções aos povos. Inspiração de uma filosofia escolástica que nasceu com a idéia do filósofo como um pastor que conduz as ovelhas, em Platão. Dos gregos, portanto, viriam os primeiros ecos da tentativa de elevação do espírito a um grau de excelência dos deuses. Uma carta que foi assumida como uma intenção de conduzir o homem para longe da barbárie de sua espécie e foi ampliando seu repertório ao longo da história, passando pelos romanos, pelos povos da cristandade, pelo Iluminismo e vários outros acenos amigáveis à elevação dos espíritos. A filosofia e a literatura clássica que se acumularam desde então, evocam as idéias e as luzes de milênios e séculos distantes, convocando a uma superação da condição bárbara humana pela reflexão filosófica, pelas artes e ciências. Isso levou a uma formação do gosto no Ocidente de uma cultura elevada, a ser seguida. As idéias constitucionais, os ideais de liberdade e democracia de uma nação foram transmitidos em inúmeros textos jurídicos, filosóficos e de ficção e incorporaram-se ao repertório de intenções de conquista das nações que emergiam e formavam seus espíritos nacionais. O humanismo reuniu os critérios do conhecimento elevado em indicações de leitura para a formação dos jovens capazes

Existe um fosso abissal entre os poucos países empreendedores de pesquisa e aplicações em tecnologias e todo o resto do planeta que não resolveu questões básicas de sobrevivência de administrar os rumos de seu povo compreendido em nações. Eram essas “cartas amigáveis”, no dizer de Peter Sloterdijk, que convidavam o homem a superar sua natureza bestial. Essa sedução de seguir os sinais de um espírito elevado da espécie aceita a carta e através dela estabelece vínculos com outras culturas. A preocupação ética desse grande debate remete aos cenários totalitários do próprio humanismo. Em diversos momentos da História, valores que surgiram marginalmente como novos caminhos ao sentido de humanidade, assumiram a hegemonia política e tornaram-se totalitários, mostraram sua face ditatorial e intolerante para com outras formas de pensamento. Assim foi com o Cristianismo, com o Nazismo, com o Comunismo, propostas morais que elevavam e redimiam a história de seus povos, mas que assumiram um rosto bestial em suas atuações no mundo. A certeza da verdade é intolerante e tenta subjugar os descrentes, tornando o humano desumano. A certeza da verdade elege hoje americanos como o grande Satã. Do outro lado, a certeza da verdade reduz a profundidade mítica do Islã apenas aos seus fanáticos religiosos. Como se terroristas não fossem gestados no útero das próprias vítimas. Ninguém acorda um dia e decide ser homem-bomba. Terroristas extremistas e fanáticos são filhos da mesma lógica, e nascem justamente como reação à lógica da força terrorista hiper racional e invisível, que atualmente mata silenciosamente milhões sob a força do capital e ainda se autoproclama democrática. Essa é uma herança do Humanismo com a qual temos que lidar, quando pensarmos em éticas e valores universais, pois o mundo não se tornou mais humano após 2.500 anos de pastores de alma. Não há novo humano por trás do capital sem que haja uma nova dinâmica que denuncie nesse Humanismo o que de perverso, portanto, de humano, se esconde por trás dele. Não para que se possa estar livre do bestial dos humanos, pois se assim fosse, não seríamos humanos, mas para que estejamos conscientes, sem demagogia, nem falsas ilusões de liberdade, daquilo que somos realmente e das conseqüências de qualquer das opções que assumimos. Somos insanos e lógicos, pois somos homens e qualquer de nossas escolhas trará nosso pertencimento à longa família dos primatas. • Continente outubro 2005

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filosofia

Atualidade de Ortega y Gasset

Reprodução

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Reconhecido como um dos maiores estudiosos da obra de Ortega y Gasset, José Luis Molinuevo, catedrático da Universidade de Salamanca, fala em entrevista exclusiva à Continente Multicultural sobre a atualidade e a importância do legado orteguiano Francisco José Chaguaceda e Eduardo Cesar Maia

Agora em outubro completa meio século da morte de José Ortega y Gasset. O senhor considera que depois de todo este tempo continua vigente entre nós seu pensamento, tanto fora como dentro do meio acadêmico? Mais fora do que dentro do âmbito acadêmico. Trata-se de uma filosofia criadora com estilo próprio que tem difícil encaixe na desvitalizada Universidade. Entretanto, está muito presente no ensino médio e na pós-graduação de investigação. Sua influência social é muito grande, sendo citado como autoridade nos mais diversos assuntos. E fora da Espanha, Ortega também é um autor importante? Qual é sua influência na Europa e na América Latina? A influência de Ortega na Europa foi especialmente importante depois da Segunda Guerra Mundial, quando impulsionou a reconstrução do Velho Continente a partir dos ideais da grande cultura devastada pelos nazistas. A influência na América Latina foi sendo amplamente documentada, e falta um desafio por alcançar: sua herança para uma modernidade latina como alternativa à anglo-saxônica. Continente outubro 2005

Sobre o pensamento filosófico de Ortega o senhor poderia descrever, em primeiro lugar, qual foi sua forma de fazer filosofia? Método e conteúdo da sua filosofia estão unidos no seu programa de salvação das circunstâncias, tanto espaciais quanto temporais, em meio às quais temos que viver. Salvá-las significa levá-las a sua plenitude desde uma distância crítica. O núcleo de sua filosofia é a vida. Por outro lado também afirma que a vida é um gênero literário – filosofia e literatura estão indissociavelmente unidas. Em 2005 se comemora também o quarto centenário da publicação da primeira parte do Quixote. De que maneira o senhor acha que Ortega leu a novela de Cervantes e que tipo de relação o senhor considera que ele teve com o próprio personagem, com D. Quixote? Desde a comemoração de 1905, Ortega leu a novela dentro do contexto dos problemas da Espanha: se deveríamos ou não ser quixotes. Numa primeira época, Dom Quixote é o símbolo de uma vida de aventura em busca de aventuras, ou seja, com muito entusiasmo, mas com falta de reflexão. Num segundo momento, e a partir da experiência do naufrágio, Dom Quixote é o símbolo de


filosofia que uma vida plena não é a soma de êxitos, mas, sim, de honradas tentativas. A melancolia do personagem acaba sendo sua própria melancolia. O pensamento político de Ortega y Gasset girou em torno ao chamado problema da Espanha, sobre a noção da Espanha invertebrada. Quais foram as propostas políticas de Ortega? Como ele quis fazer da Espanha uma sociedade vertebrada? Acredito que Ortega acertou na sua metapolítica e fracassou, como se tem conhecimento, na sua política com minúscula, nessas estratégias que ao serviço da primeira ensaiou honradamente em algumas ocasiões. Existe em Ortega uma tese pré-política: para que uma sociedade, uma nação, possa estar vertebrada ela necessita antes estar sadia. Este é o sentido do ideal da saúde orteguiano que se projeta em todos os terrenos. E é algo muito simples. Diante dos nacionalismos o autor pensa que a pátria é o que pensamos pela manhã sobre o que temos que fazer durante o dia. E a “vertebração” tem lugar articulando as minorias e as massas. Não se entendeu bem a utopia das minorias seletivas, por isso é mais preocupante o niilismo das minorias ineptas. Ao longo da sua vida J. Ortega y Gasset se apoiou em dois emblemas. Duas figuras que foram expressão do seu pensamento: o arqueiro e o náufrago. Por que estas figuras? E a que se deveu a mudança de uma à outra? O arqueiro é o símbolo da vida tensa, em forma, dirigida a um ideal. A experiência do naufrágio vem da constatação de que não somos seres naturais, de que a vida mesma é um naufrágio na circunstância. A mudança de um emblema a outro tem lugar em momentos diferentes da sua biografia, nos quais tem um papel determinante a experiência de dor do exílio. Mas existe uma relação: somos arqueiros desde a experiência do naufrágio. Ortega dedicou muito tempo ao pensamento estético ao mesmo tempo em que analisou com precisão a arte de seu momento. O senhor poderia falar da proposta estética de Ortega e da importância desta proposta em sua filosofia? O núcleo da estética de Ortega é o sentimento estético da vida, contrário ao sentimento trágico da mesma. Consiste em um prazer inteligente da vida. Para Ortega, a arte levava diretamente ao coração do homem. E a cada momento é o anúncio de uma nova sensibilidade vital para nosso tempo. Deve responder a uma exigência da verdade, de possibilitar a compreensão do mundo, e não de embelezá-lo.

Ortega esteve em contato com a filosofia européia, em especial a alemã. Quais foram os pensadores que mais o inspiraram? E qual foi sua importância dentro da Geração de 1914? No que concerne à sua importância, aumentou enormemente a influência alemã na Espanha. Sua sensibilidade já estava marcada pelos escritores franceses antes de ir para Alemanha. Foi influenciado pelos neokantianos, em especial Cohen, entretanto, foi influenciado mais profundamente pela grande cultura clássica alemã, Goethe em particular. Em relação à geração de 14: nesse ano de 1914 Ortega publicou três ensaios que são o Manifesto Geracional, em que ficam definitiva- Duas importantes obras mente marcadas as distâncias de Molinuevo sobre o pensamento de Ortega y com a geração de 1898, talvez Gasset de um modo não muito justo. Ortega resumiu “o tema de nosso tempo” na superação do idealismo. Pensando no tempo atual, se J. Ortega y Gasset ainda estivesse vivo, como o senhor acha que opinaria sobre fenômenos como a globalização, as novas tecnologias ou a arte atual? Do mesmo modo que esteve à altura de seu tempo, acredito que também pode estar à altura do nosso. Concretamente, propostas suas como o sentimento estético da vida ou a possibilidade de um humanismo tecnológico, em minha opinião são muito atuais. E qual opinião o senhor acha que ele teria sobre o momento político e social presente tanto na União Européia quanto na América Latina? Talvez lamentasse que não se tenha seguido uma recomendação sua: a construção cultural da Europa, antes ou ao mesmo tempo em que se fez a construção econômica e política. E em relação à América Latina, acredito que continua vigente sua proposta de uma modernidade latina diferenciada da anglo-saxônica. • Continente outubro 2005

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Há 90 anos, nascia o tenor de timbre macio e cristalino que ainda encanta os ouvidos mais atentos Fernando Monteiro

Orlando Silva O Cantor (não só) das multidões


Fotos: Reprodução

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á exatos 90 anos, nascia – no bairro carioca de Engenho de Dentro (mais carioca, impossível) – um menino magro e moreno, batizado com o suburbano nome de Orlando Garcia da Silva. Seu pai era um operário, de nome também cinzento: José Celestino da Silva. No livro de registro dos funcionários das oficinas da Estrada de Ferro Central do Brasil, tal nome não fazia suspeitar que Celestino fosse exímio violonista nas horas vagas, e um animado participante das rodas de choro de Pixinguinha, o mestre livre para voar nas asas da boêmia e da música. Nessa época, este se preparava para fundar um conjunto do qual o pai do garoto Orlando certamente iria fazer parte, caso o destino não tivesse colhido o operário Celestino entre as vítimas fatais da gripe espanhola, um ano antes da estréia do legendário “Oito Batutas” (em 1919), sob a inspirada direção do criador de “Carinhoso”. Assim, Orlando ficou orfão de pai aos três anos, não engordou quase nada e seguiu pela vida dizendo que Celestino chegara a figurar no conjunto de Pixinguinha – isso quando o menino já havia se tornado um jovem cantor consagrado, no cenário musical brasileiro, como o mais perfeito da sua época, revelação máxima dos anos 30, intérprete insuperável e afinadíssimo de canções que, naquele tempo, podiam ser rebuscadas e populares ao mesmo tempo. (Dou como exemplo “Rosa”, música de Pixiguinha e letra de um mecânico do Méier – Otávio de Rosa – que foi buscar longe versos assim, tornados naturais na voz de Orlando Silva: “Tu és de Deus a soberana flor/ Tu és de Deus a criação/ Que em todo coração/ Sepultas o amor/ O riso, a fé, a dor/ Em sândalos olentes cheios de sabor/ Em vozes tão dolentes/ Como um sonho em flor/ És láctea estrela/ És mãe da realeza/ És tudo enfim que tem de belo/ Em todo resplendor/ Da santa natureza” etc.). O assunto aqui, porém, é o naipe masculino da Era dourada do rádio, com concentração máxima no moleque de Engenho de Dentro que saiu do nada para concorrer com o “Rei da Voz”, Francisco Alves, e o desbancar (justo o “rei”, que lhe havia dado a primeira oportunidade, em 1934, no seu programa da Rádio Cajuti). Do subúrbio de empregos sem cor – entregador de marmitas, estafeta, aprendiz de sapateiro, operário numa cerâmica etc. –, o novo talento descoberto pelo compositor Bororó (que foi quem apresntou Orlando a Chico Alves, no lendário Café Nice) cedo tomou conta do território das massas, quando esse nome ainda não era usado para multidões livres de escolher, sem os futuros truques da mídia. Direto ao coração delas, o tenor de timbre macio encantou seus ouvidos educados para o raro dom da perfeita divisão das frases musicais, das passagens de agudos suavemente transformados em graves (e vice-versa) e outras características do imbatível Orlando Silva cristalino em hits como “Juramento falso”, “Amigo leal”, “Boêmio”, “Nada além”, “Meu consolo é você”, “A última canção” e outros Continente outubro 2005

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MÚSICA campeões de vendagem, no lado A e B dos antigos 78 rotações, todos cantados com a aparente facilidade de quem tirava cigarros de um maço de Astória escangotado no bolso de imaculado paletó branco sobre camisa usada uma única vez. Quase ninguém fuma mais e há pouca gente (mas há!) ouvindo os velhos discos de Orlando Silva, nas tardes brasileiras de sábados alongados para a melancolia – antes dos domingos duros das peladas e da voz de sovaco dos apresentadores de TV. Seja como for, o que hoje ainda se percebe, retrospectivamente, é que Silva foi a mais acabada lição vocal de sutileza e delicadeza oferecida ao “milagre” do microfone elétrico, quando os cantores já não precisavam se esgoelar para imprimir a voz nos jurássicos discos de cera. Comemorar Orlando não é um gesto de saudosismo enfadonho, ou de alguma monomania que teime em ver tudo muito melhor no passado, tudo mais dourado lá, no ambiente esfumaçado do ontem onde se encrava a voz perdida – cedo perdida – do mulato manco e metido a besta (Orlando se achava o cão-

chupando-manga), que estaria completando 90 anos, neste mês, se vivo fosse para receber as homenagens dos seus admiradores fanáticos. Orlando é Orlando – Os admiradores de OS são parecidos com os de Elvis – embora nenhum sustente que o brasileiro não morreu. Ele, entretanto, vive na admiração resistente dos “orlandófilos” de carteirinha como o cronista Arthur Carvalho, que destaca o fato de a velha guarda mais fanática do cantor “supremo” ser contra Chico Alves, Sílvio Caldas e Carlos Galhardo (os demais nomes do quarteto encabeçado por Orlando). Os votos da admiração fidelíssima precisam de exclusividade, neste caso, embora tal admiração leve em conta, geralmente, não mais que sete anos de apogeu artístico – de 1935 a 1942 – do ídolo de ar ensonado a respeito do quem todos apelam para um argumento quase místico: “Orlando é Orlando”. A lacônica afirmação não é apenas tautológica: ela inclui a certeza de não ser preciso explicar o mito, mas somente ouvilo, nas gravações antigas, com as quais simplesmente “não há comparação possível”. Pois Orlando é Orlando, e isso deve bastar, ser suficiente, primar pela evidência elementar, transparente e indiscutível. E o pior – ou o melhor? – é que Silva merece, mesmo, ser admirado dessa forma devota pelo menos dos breves sete anos de “perfeição” digna de Bing Crosby, o cantor que ele deve ter escutado (para “superar”?) desde 1929, em casa, sadio e, depois, com o pé operado (perdeu quatro dedos num acidente de bonde) e, um pouco, a vida toda. Crosby foi mestre de Sinatra e maior do que The Voice, todos sabem. Aí, você tem a sorte – ou o azar? – de sentar, num ônibus Recife-São Paulo, ao lado de um velho fã de Orlando, o qual, durante a viagem, resolve ultrapassar do misterioso “Orlando é Orlando”... e tentar provar que o brasileirinho foi maior,

A verdade é dura para os "orlandófilos": aos 27 anos, Orlando Silva já não era mais Orlando Silva

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melhor e mais adorado do que Crosby e Sinatra juntos (essa viagem já faz tempo, mas lembro que cheguei na estação da Praça República quase convencido). Até que, no começo da década de 40, algo aconteceu com a voz do nosso cantor, e ele desabou das alturas, perdeu o diamante raro da garganta, quando ainda vivia a glória absoluta, antes dos 30. Pelos bairros do vício – A verdade é dura para os “orlandófilos”: aos 27 anos, Orlando Silva já não era mais Orlando Silva. Entre outros problemas, um grave mal dentário, identificado pela sigla Guna - Gengivite Ulcerativa Necrosante Aguda, isto é, “piorréia” – acometeu o artista em 1942, e a morfina (que Orlando havia conhecido no hospital, ao operar o pé) novamente viria ajudá-lo, dessa vez a suportar as terríveis dores da infecção das fibras que ligam os dentes ao osso. É possível que o inimitável intérprete de “Lábios que beijei” já apreciasse o efeito da droga, e, supõe-se, do tratamento em diante passou a usar morfina por ter se acostumando à sensação de relaxamento e tranqüilidade, no meio boêmio onde o álcool imperava. Ou seja, Orlando viria a encarar as duas drogas, e de nada adiantaria que sua companheira, a atriz Zezé Fonseca, lutasse contra os vícios do marido (uma vez, até se internou com ele). Durante anos, Zezé se viu acusada no mínimo de indiferença diante do que acontecia com um homem de quem ela colecionava até as unhas e os cabelos cortados daquela cabeça a certa altura dependente do alívio artificial da morfina e da bebida. De fato, nada foi mais forte do que elas, na vida do cantor das multidões afastadas nesses momentos.

Sabe-se que um dos efeitos mais danosos da morfina verifica-se nos chamados nervos periféricos, no domínio dos quais estão as cordas vocais, atacadas duramente pela primairmã da heroína e do ópio. Derivada da papoula, a droga como que “afrouxa” os instrumentos da voz, a partir do seu uso sistemático ou agravado pelo consumo paralelo de bebidas álcoólicas. Tudo leva a crer que a combinação de ambas – uma para agir sobre a outra? – foi o que arruinou a carreira de Orlando Silva, ao comprometer o cantor puro das apresentações para mais de 10 mil pessoas (como no teatro Colombo, no Brás, em 1937) e das gravações do período áureo, hoje remasterizadas para que ainda se possa ouvir o carioca de Engenho de Dentro que poderia ter galgado o tapete vermelho das escadarias dos melhores teatros do mundo. Não foi possível, infelizmente. Quase nunca é (nos tristes trópicos). Como Augusto Calheiros – ídolo nordestino daquele tempo – cantava, com a sua voz fanhosa: “Cai a tarde/ tristonha e serena...” O pano caiu para o “cantor das multidões”. No meio-dia pleno da carreira, ele se apresentou mudado, diminuído e triste. Depois disso, a sua vida profissional iria ser quase uma sobrevida humilhante para quem havia restado com um “pigarrão” (disse um crítico) como sombra da antiga voz que apagara as de todos os demais astros do firmamento da música popular brasileira, onde jamais voltou a brilhar uma estrela igual à do filho de Zé Celestino. Orlando Silva continuou a viver no Rio de Janeiro, separado de Zezé Fonseca e casado com Maria de Lourdes – seu principal apoio dos longos anos, praticamente de ostracismo, até vir a falecer no dia 7 de agosto de 1978. • Continente outubro 2005

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Othon Bastos, Caetano Veloso, Nana Caymmi, Chico Buarque e Gilberto Gil: artistas engajados

França/AJB

O tecido social da canção As canções populares podem ser entendidas como a leitura do momento convertida em signo musical Judite Botafogo

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os anos 60, a MPB representou força viva de expressão, instrumento de evocação, brado de alerta, sinônimo de cores, ares, luzes, de movimentos, de ritmos, de sentimentos, de intenções e de ação. Foi um veículo de denúncia e crítica dos problemas humano-existenciais, bradando por uma reflexão acelerada contra as arbitrariedades sócio-políticas e contribuindo para uma politização maior de seu público; aquilo que os artistas “fisgavam” das representações que circulavam no imaginário de uma geração. A canção buscava o sentido que não estava na camada manifesta do texto, e esse era o grande impasse para a compreensão do momento. A canção popular, naquele contexto, representava uma ousadia em que os artistas eram agentes do seu tempo, posicionando-se criticamente em um dos momentos duros de sua história. Na canção popular o texto é uma estrutura de apelo, e por causa desta, converte-se numa peça essencial da obra, que pode ser compreendida enquanto uma modalidade de comunicação. A canção de Geraldo Vandré (1962) transmite este apelo: “Vem vamos embora que esperar não é saber, Continente outubro 2005

quem sabe faz a hora , não espera acontecer. “O homem faz a sua história sendo sujeito das transformações sociais, visando atingir aquele fim que desponta teleologicamente no horizonte temporal. A crítica tecida em Vandré, Gil, Caetano, e tantos outros contemporâneos é consolidada na canção popular nessa atuação do intelectual numa esfera pública, em defesa das causas humanitárias e de interesse coletivo, utilizando basicamente da formulação e afirmação de idéias críticas e coerentes. Como objeto de reflexão histórica a canção popular tenta equacionar os impasses surgidos em torno do nacional-popular. As canções populares em seu aspecto crítico permitemnos depreender que as mesmas não só transmitem algo para os que as escutam, bem como viabilizam a reflexão, enquanto manifestações de mudanças, para a geração de hoje; é o compreender-se no texto e pelo texto, através dessa relação entre o homem e o mundo que o artista granjeia e projeta para fora de si; esse modo de ver o mundo associando o saber ao agir. Essas canções podem ainda ser entendidas como a leitura do


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levante lembrar a república de Platão: não se podem alterar os gêneros musicais sem afetar as mais altas leis políticas de modo tão pregnante e tão rente ao corpo dos significantes musicais que, na maioria das vezes, passam despercebidos. “Deslizando mansamente pelo meio de costumes e “usanças”, elas são capazes de atingir as convenções sociais e as constituições e, conforme os movimentos que insinuam, podem “subverter todas as coisas na ordem pública e privada”. Lançar um olhar crítico sobre as canções populares consiste em estabelecer relações político-sociais entre o texto e o mundo; é compreender o texto, é ler-se, lendo o texto. É essencial buscar o significado de suas expressividades, impressões de sentido e significados, ou historicizá-las, através de uma leitura diacronicamente cuidadosa como forma de identificar o compromisso com a realidade. É essa reflexão que nos permite reconhecer que as canções populares tornaram-se, sem dúvida, portadoras de uma “mensagem crítica”, reforçada pelo arranjo musical ao longo da história desse país. As canções populares, portanto, modificam e transformam nosso olhar sobre a literatura, à medida que exerce hoje em dia, a escuta ativa da linguagem, e como diz Barthes, dedica-se a desfazer o “tecido” do texto para mostrar como nele se superpõem os diversos “códigos” constitutivos de todos os seus sentidos possíveis ou secundários subjacentes e que apontam para o reconhecimento ou consciência de mensagens questionadoras e estetizadas do que somos e do que não somos. •

Arquivo /Agência O Globo

Geraldo Vandré (fim dos anos 60) e banda Calypso: retratos dos seus tempos

Divulgação

momento convertida em signo musical. Uma espécie de descrição e interpretação da realidade, um repensar da realidade nacional por outro prisma, a liberdade expressa em sua forma mais extrema. O não dito, o não permitido estava ali subentendido, insinuado nos textos das canções com proveito e prazer. A canção popular precisa ser vista como essa forma de tentar apreender a diversidade entre as temporalidades distintas a partir das mudanças sociais. Ela reinterpretou em termos primitivos os mitos da cultura urbano-industrial, misturando e confundindo seus elementos arcaicos e modernos. É a capacidade de fundir os mais diferentes elementos do discurso musical (frevo/solo/bolero/samba/canto lírico) e outros ritmos, o profano indo ao encontro do sagrado, o branco e o negro numa harmonia de sentimentos em que tudo se conflui numa forma de condensar o próprio sentido que dá sustentação à vivência de brasilidade. Era a maneira de fortalecer a construção de nossa cultura e propiciar aos contemporâneos, no centro de produção da chamada cultura de massa, extrair problematização de caráter estético, político e existencial. A situação de milhões de brasileiros foi devidamente assumida nas canções. A identidade, o “eu” coletivo e o “outro” tiveram aqui o relacionamento profundo. O “eu” insubmisso, o grito à distância, que, segundo Gilberto Gil, não agüenta e rebenta e chega às ruas, e à boca do povo através da música que numa forma de contestar a impossibilidade de se transpor as fronteiras entre o erudito e o popular, entre o escrito e o oral, o presente e o passado vai dizendo tudo no seu não dizer. A canção é um processo contínuo que acompanha as mudanças sociais e com elas se batem e se conflituam. É re-

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CDS Fotos: Divulgação

Santa Teresa

Maestro Jorge Antunes

Especulação sonora O maestro Jorge Antunes promove a fusão de estilos entre a música eletroacústica e gêneros tradicionais em série musical no CCBB Investigação. Esta é a palavra que melhor define o projeto Speculum Brasilis, uma idéia do maestro Jorge Antunes, considerado líder da vanguarda musical brasileira, para especular as possibilidades de fusão do erudito com o popular. Speculum Brasilis (cuja tradução pode ser “o espelho que reflete as vanguardas musicais brasileiras”) promete promover a fusão da música eletroacústica desenvolvida por Antunes com a viola caipira, o choro, a canção folclórica e o bumba-meu-boi. O evento vai integrar os instrumentistas a equipamentos eletrônicos, fundindo estilos, indo do experimental de hoje ao tradicional. Além dos sons gerados em tempo real, oito microcâmeras projetarão imagens cortadas e editadas também em tempo real. Haverá ainda uma fusão tecnológica do som, na qual o maestro fará uso de dois equipamentos separados por décadas: o sintetizador analógico Synthi A, criado em finais da década de 60 e início dos anos 70 – atualmente, um equipamento que já é peça de museu; e um Powerbook G4, com o programa GRM-Tools, considerado tecnologia de ponta no universo da música eletrônica. Os palcos são os Centros Culturais Banco do Brasil de Brasília e do Rio de Janeiro. Jorge Antunes convidou o bandolinista Hamilton de Holanda e o violeiro Roberto Corrêa, além de membros do Madrigal de Brasília e o grupo do Boi do Seu Teodoro. A série acontecerá durante todas as terças-feiras do mês de outubro, em Brasília, e de novembro, no Rio de Janeiro. Speculum Brasilis. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil Brasília. Dias: 04, 11, 18 e 25 de outubro, às 13h e 18h30. Rio de Janeiro: CCBB Rio de Janeiro: Rua 1º de Março, 66, Centro. Ingressos: às 13h00, entrada franca; às 18h30, R$ 15,00 e R$ 7,50. Informações: www.bb.com.br Continente outubro 2005

Ela é devota dos cantos de umbanda e das origens ancestrais do samba. Mas também ícone da reaproximação do samba com a juventude de classe média. É intérprete de peças de Chico Buarque e é, ainda, a cantora que forma com D. Ivone Lara e Leci Brandão uma espécie de santíssima trindade das mulheres entre os nossos compositores de samba. Sendo tudo isso, nada mais natural que Teresa Cristina lançasse um projeto musical (que inclui CD e DVD) belo, contagiante e reverente aos seus mestres, que inclui pérolas como “O Mar Serenou” (Candeia), “Pra que Discutir com Madame” (Haroldo Barbosa/Janet de Almeida) e “Com a Perna no Mundo” (Gonzaguinha); e “Gorjear da Passarada” (Argemiro/Casquinha), “Se Tu Fores na Portela” (Ventura), dos seus guias da velha-guarda da Portela, além um repertório próprio: “Acalanto” e “Candeeiro”, entre outras. Teresa Cristina e Grupo Semente, ao vivo. Deckdisc, preço médio (CD) R$ 26,90 e (DVD) R$ 39,90.

Grande reunião A grandiosa parceria entre Jards Macalé e Wally Salomão ganha um disco à altura. Composições que sempre estiveram dispersas entre álbuns de seus intérpretes chegam agora aos nossos sentidos na voz densa e embargada de Macalé, reunidas no disco Real Grandeza. O álbum também conta com a participação de Adriana Calcanhoto, intérprete de “Anjo Exterminado”, música lançada por Maria Bethânia em 1972, no disco Drama; Luiz Melodia no reggae “Negra Melodia”, carregado dos seus estilo e suingue; Frejat; Maria Bethânia, em “Berceuse Criolle”; e o grupo Vulgue Tolstoi, que dá a Vapor Barato um ar de filme de Wim Wenders, fazendo a música navegar na modernidade. Real Grandeza. Biscoito Fino, preço médio R$ 25,00.

Rigor e leveza Baden Powell está em uma vibrante performance no disco Baden – Live à Bruxelles. Gravado ao vivo em outubro de 1999, em Bruxelas (Bélgica), um ano antes de sua morte, o álbum faz um apanhado da carreira deste que é um dos melhores artistas brasileiros de todos os tempos – tinha um jeito único de tocar violão, fazendo caber no instrumento o rigor técnico da música erudita e o suingue da harmonia popular. Em cada música, Baden dedilha as cordas do instrumento, revelando sonoridades mágicas, como nas suas “Violão Vadio” e “Marcha Escocesa”; nas parcerias com Vinicius de Moraes, ou nas canções de Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, Pixinguinha, Antônio Maria e Bach. Baden – Live à Bruxelles. Lua Music, preço médio R$ 21,90.


CDS

AGENDA/MÚSICA

Cabeça e coração Há mais de um ano que Silvério Pessoa pretendia fazer um CD que juntasse todos os “traços de uma cultura, interior das nossas recordações”, que misturasse coco, baião, samba, embolada, frevo e, claro, música eletrônica. Mas ele foi além. No novo Cabeça Elétrica, Coração Acústico, seu trabalho mais autoral, Silvério também mistura reisado com cadência de capoeira, coco, baião, aboio; repentistas e violeiros; e também baião com maxixe, “forró de gafieira”, maracatu, rojão, associados a letras que remetem à vida do pernambucano que viveu o interior do Estado e que pôde brincar pelas ruas do imaginário, “fugindo das lapadas do cipó de goiabeira”. O disco conta ainda com participações especiais de Dominguinhos, Lenine, Alceu Valença, Siba, Lula Queiroga, entre outros. Um disco respeitoso às tradições e antenado nas novas tendências. Simplesmente inteligente e emocionante. Certamente um dos grandes lançamentos de 2005. Cabeça Elétrica, Coração Acústico. Independente, preço médio R$ 22,00.

Doce e bárbara Hoje, novo CD de Gal Costa, é o emblema de algumas comemorações: 60 anos de vida e o ingresso numa gravadora independente, a Trama. Representa também a retomada das inéditas no repertório da cantora, que há quatro discos só trazia regravações, e a percepção de que têm muitos músicos bons no circuito alternativo: o pernambucano Junio Barreto, os baianos Tito Bahiense, Péri e Moreno Veloso e os paulistas Hilton Raw e Nuno Ramos assinam algumas composições. Mas também os já consagrados Lokua Kanza (africano), Carlos Rennó, Caetano Veloso, Chico Buarque e José Miguel Wisnik, além do pianista César Camargo Mariano, diretor musical do álbum. Em Hoje, Gal reaparece com o seu lirismo e suave suingue, retomando a sua ousadia – doce e bárbara ao mesmo tempo. Hoje. Trama, preço médio R$ 25,90.

Bossa-nova lounge O lounge pode ser considerado um conceito “guarda-chuva”, onde quase tudo cabe dentro; o que termina sendo um complicador na hora de definir um estilo e qualificálo, mas, digamos, pode ser chamado como música para degustação. Porém Bossa Nova Lounge, da Dubas, traz, como detalhe saboroso, uma seleção surpreendente, descartando quase que totalmente os standards para priorizar os “lados B” dos discos da bossa-nova e do samba-jazz, como “Os grilos”, “Tema Feliz”, “Samba de Verão”, “Rio”, “Doralice”, “Adriana”, “Meditação” e “Andorinha”, em tons mais jazzísticos do que o normal, mas nem por isso de fácil digestão. Bossa Nova Lounge. Dubas Música, preço médio R$ 29,00.

Brincadeira de roda Lia de Itamaracá reafirma seu papel de embaixatriz da ciranda no Espaço Cultural Estrela de Lia Lia de Itamaracá é a cicerone do palco e faz ecoar a tradicional manifestação dos terreiros dos trabalhadores rurais através do projeto Ciranda de Lia. Acompanhando o movimento de reativação dos núcleos de ciranda em Pernambuco, a cirandeira estará recebendo no Espaço Cultural Estrela de Lia, na praia de Jaguaribe, Ilha de Itamaracá, artistas como Cátia de França (PB), Roberto Mendes (BA), Carlos Zens (RN), Grupo Fethxá e Dona Selma do Coco para dar o compasso às rodas da dança. A batida do bombo, as mãos dadas e a atividade de translação características das cirandas praieiras do litoral norte de Pernambuco emprestarão seus movimentos às quartas-feiras e aos sábados, que integram o projeto. Há mais de 40 anos entoando cirandas, Lia já se prepara para gravar seu segundo CD, Estrela de Lia. O repertório traz 13 composições, incluindo o hino da ciranda: “Quem me deu foi Lia” – “essa ciranda/quem me deu foi Lia/que mora na Ilha de Itamaracá” – de Antônio Baracho, além da participação de outros parceiros, como Carlos Zens, músico paraibano que também fará a direção artística do disco. O projeto já está em tramitação no MinC. Ciranda de Lia. Todos as quartas,a partir das 12h, e sábados, a partir das 21h. Praia de Jaguaribe, Ilha de Itamaracá. Informações: 81.3439 0619. Continente outubro 2005

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

A voz do livro Livros não são tubos de katchup, maionese ou mostarda, por mais que a economia de mercado insista em considerar a mesma coisa

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s vésperas da V Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, nada melhor do que falar de livros, assunto controverso, quando insistem no desprestígio da literatura, se comparada ao cinema e a televisão, ou mesmo à música popular. O valor de uma obra de arte, pelas novas leis de mercado, se mede exclusivamente através do número de vendas e alcance de público. O escritor contemporâneo está mais sujeito do que nunca ao gosto do leitor, e já existe quem escreva, como nas novelas de televisão, orientado por pesquisas sobre assuntos e tendências da moda. Será que o sucesso diminui a liberdade do autor, interferindo na qualidade do que ele produz? Dostoiévski teve grande êxito e nunca mudou o estilo. Escreveu romances sombrios – Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázovi, Os Demônios, lidos e apreciados pelo grande público. Eram outros tempos. Kafka Continente outubro 2005

quase não publicou, não fez sucesso em vida, mas também criou em absoluta liberdade. Os gostos variam, e não é de agora que os editores preferem publicar autores que vendam bem. Já se fala de Paulo Coelho como um romancista de linguagem universal, ao alcance de todas as pessoas, em qualquer lugar do planeta. Compreendem-se os investimentos milionários feitos nos seus lançamentos. Mudam os leitores, as escolas, as modas, a ponto de nos parecer estranho que em algum tempo se interessaram pela poesia artificiosa de Racine ou Quevedo. Um poeta como o italiano Dante Alighiere, mergulhado no inferno da Divina Comédia, se consumindo e morrendo ao final da criação, é cada vez mais impensável nos tempos atuais. A imagem mais próxima desse exemplo seria a dos roqueiros drogados. Mas divagaríamos por outras estratosferas, escandalizando os puristas.


ENTREMEZ

Ernesto Sábato e Jorge Luis Borges, em conversa com Orlando Barone, forjam o conceito de escritores que escrevem para escritores, referindo-se aos que atingem um público especializado em literatura. Kafka, Joyce e o próprio Borges seriam desse time. Em contrapartida, existem os que atingem o grande público, provocando a seguinte pergunta: é de melhor qualidade a literatura que agrada a muitos leitores? Ou o contrário: a literatura que alcança apenas um público especializado é superior a outra literatura? E ainda: qual o valor da literatura que agrada tanto ao grande público como aos especialistas? Só o tempo dará essas respostas. Ou nunca dará. Não podemos exigir o bom desempenho de vendas de um autor. Livros não são tubos de katchup, maionese ou mostarda, por mais que a economia de mercado insista em considerar a mesma coisa. Livros são obras de arte, e peças publicitárias não, mesmo que nos enganem com truques. Uma fábrica de cervejas pode exigir que a empresa de publicidade venda o seu produto. No caso de uma obra de arte, no máximo pode-se desejar que ela se venda bem. Tratamos com outra medida de valor e grandeza. Nunca esqueçam que Van Gogh só vendeu um único quadro na vida. Numa entrevista, João Cabral de Melo Neto achava irrelevante a baixa vendagem de um livro seu. Pedia aos leitores que considerassem os movimentos e transformações que a sua poesia era capaz de desencadear. Se fosse possível contar o número de exemplares vendidos das Folhas de Relva, de Walt Whitman, desde a sua publicação, chegaríamos a uma cifra insignificante, se comparada ao que vendeu algum dos best-sellers da moda, como Harry Potter. No entanto, nenhuma obra foi

tão revolucionária, provocou tantas mudanças de costumes. Ela antecedeu o feminismo, a luta contra o racismo, a liberdade sexual, para não ficar apenas na análise da qualidade poética. Whitman não pode ser avaliado apenas pelo seu livro, mas por toda a literatura que não teria existido sem as suas Folhas de Relva. Apesar da fama alcançada, o Dom Quixote de Cervantes não é uma obra muito lida, nos dias de hoje. Os tropeços se dão por conta dos verbalismos, os períodos longos e os arcaísmos. Mas o Quixote permaneceu atual como modelo do humano, de nossos sonhos e ridículos. Isto prova que os livros também sobrevivem através de seus personagens. Mesmo que a linguagem se torne anacrônica, Édipo, Medéia, Macbeth, Hamlet, Enéias, Madame Bovary, Natasha, Raskólnikov e Diadorim, continuarão vivos. Cervantes não criou um idioma próprio como Joyce. Nem Machado de Assis reinventou o português como Guimarães Rosa. Alguns autores escrevem da forma menos artificiosa possível, e outros preferem transformar a língua num laboratório de experiências. A linguagem escrita possibilitou uma infinidade de combinações das palavras, desde os seus primeiros registros, e a cada dia se mistura a novas formas de arte. No ato solitário da leitura, quando escutamos a voz do autor como se fosse a nossa própria voz, o livro se recria. É uma voz que não cala, silencia por tempos, se perde, se oculta, mas ressurge como o fogo do ato de criação. Muitos livros que se perderam e foram reencontrados, atestam a veracidade dessa voz. Para que isto aconteça, basta que a obra tenha nascido com a força do que é eterno. O que só o gênio, o acaso e o tempo lapidam. • Continente outubro 2005

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TRADIÇÕES Mestres Tradicionais da Cultura Popular do Ceará representam o saber sem fronteiras e a capacidade de invenção e reinvenção dos brincantes populareso Isabelle Câmara Fotos: Júnior Panela

Mestre Juca do Balaio: maracatu lutuoso com vasto repertório de informações ancestrais

Mestres sem academia

cena era, no mínimo, surreal: um senhor, aparentando 70 anos, dançava ao som de uma batida fúnebre – cadenciada pela zabumba da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto –, equilibrando uma garrafa de refrigerante de dois litros, cheia de água, na cabeça. “Quem é?”, questionei. “Mestre Juca do Balaio”, respondeu-me um observador mais atento. Mas, ainda assim, quem é este intrigante Mestre Juca do Balaio, que conseguiu dançar imponentemente com uma garrafa cheia de água na cabeça e hipnotizar uma platéia de cerca de 200 pessoas, de crianças a velhos? E que dança lutuosa era aquela? Mestre Juca do Balaio, 82 anos, é o mais antigo brincante em atividade do maracatu cearense. Compositor e tirador de loas, ele coordena, há 35 anos, e desfila como balaieiro no Maracatu Az de Ouro, formado por mais de 300 pessoas. Participou do I Encontro Mestres

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TRADIÇÕES

Dona Gerta e brincantes da dança da caninha-verde, que representa os bailes de casamentos portugueses

do Mundo, evento realizado no município de Limoeiro do Norte (CE), distante a 199 km de Fortaleza, entre os dias 23 e 28 de agosto passado, apresentando-se e explicando o seu ritual tradicional, que contém um universo de informações sobre o nosso passado histórico e cultural. O maracatu cearense é bem diferente do de Pernambuco, longe daquele baque virado, ou solto, de som exuberante e contagiante, que não deixa ninguém ficar parado. No Ceará, o maracatu tem a batida dos cortejos fúnebres, com ritmo dolente, pesado, grave. Assemelha-se ao pernambucano apenas no fato de representar o cortejo que precedia a coroação dos Reis de Congo. “Eu mantenho a tradição de ele ser lento, não é tristeza, é porque ele é lento. É uma coisa que representa, mostra bem, o que a gente tem. Sem aquela loucura do maracatu pulando como uma escola de samba, como um bloco... eu nunca me acostumei com isso. Isso não entra na minha cabeça. Pra mim o maracatu tem que ser aquela coisa calma, para a pessoa dançar... vendo o que que a pessoa tá fazendo”, explica Mestre Juca. E o da “terra da luz” inclui balizas, índios, feiticeiros (Pai Velho e Mãe Velha) e o balaieiro, aquele que representa a fertilidade da terra ao levar o cesto com oferendas para os reis. Os maracatuzeiros cearenses também pintam o rosto de preto, por ser esta uma manifestação da cultura ancestral negra e porque, no Ceará, devido à sua formação histórica e etno-cultural, existem poucos negros e afro-descendentes.

“Eles pintam também como máscara”, salienta o jornalista, pesquisador da cultura popular, dramaturgo e doutorando em sociologia Oswald Barroso. O I Encontro Mestres do Mundo teve o grande mérito de reunir mestres detentores do saber e do fazer tradicional de vários lugares do país e do mundo num lugar inóspito, encravado no Vale do Jaguaribe. Do Japão (ou quase), o Teatro Nô com Ângela Nagai. De Portugal, Pedro Mestre (que leva o mestre até no nome de batismo), único luthier no mundo, e um dos raríssimos tocadores, de uma viola chamada campaniça. Da Angola, o grupo de danças carnavalescas típicas Chinguilamento Dimba Dya N’gola. Do nosso continente, o trovador argentino Don Gustavo Guichón e o conjunto mexicano de músicos-pescadores Mono Blanco. Do Brasil, bandas cabaçais, profetas, foliões de reis, bois, penitentes, quadrilhas juninas, cirandeiras, coquistas, capoeiristas de angola, artesãos do barro, madeira, couro e palha, apresentações de “marabaixo” (coco pulsante do Macapá, uma mistura de ijexá e lundu), de vaqueira e aboiadora (isso mesmo, no feminino), poetas repentistas, do improviso, cordelistas, xilógrafos etc.; mestres que nunca freqüentaram o Continente outubro 2005

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universo acadêmico, mas que trocaram saberes e fazeres com seus pares e com mestres titulados, estudantes, pesquisadores e curiosos (impossível não ficar) durante debates e apresentações; situações que se tornaram espaços educativos e proporcionaram um diálogo entre as várias culturas e os vários saberes. A reinvenção da memória – Mestre Juca é um dos 24 Mestres da Cultura Tradicional Popular do Ceará, escolhido através da Lei Estadual 13.351/2003, de preservação e proteção do patrimônio cultural imaterial. Inspirada na lei pernambucana (de 2002), a lei cearense está em funcionamento desde 2004, registra 12 mestres por ano e oferece uma bolsa vitalícia de um salário mínimo, enquanto a local ainda está em fase de escolha dos “Patrimônios Vivos” (elegerá três) e oferecerá uma bolsa vitalícia de R$ 750,00 para um artista e de R$ 1.500,00 no caso de um grupo popular. Iniciativas importantes, mas não fundamentais, para o reencontro e a valorização do saber ancestral. São muitas as brincadeiras que fazem parte do cenário e do imaginário cultural cearense. Mas existem algumas que ou têm parentesco com outros folguedos ou mudam de nome de acordo com o local de ocorrência. E que acontecem em poucos lugares. É o caso da dança da caninha-verde, brincadeira que se assemelha aos reisados de bailes e casamentos de quadrilhas e que é capitaneada por Gertrudes Ferreira dos Santos, a Dona Gerta. Aos 78 anos, D. Gerta mantém e participa da brincadeira desde os 18. Viúva do ex-líder do grupo, José dos Santos, ela assumiu a liderança e é quem ensina a dan-

ça, música, o figurino, os adereços e o significado da dança para 34 brincantes – incluindo filhos, netos e bisnetos –, todos da comunidade de Mucuripe, em Fortaleza. “A caninha-verde começou no tempo da I Guerra Mundial. Naquela época os navios iam todos a fundo, né? O submarino furava o fundo do navio e ele afundava... quem tinha a oportunidade de se salvar, se salvava, quem não tinha... Quem inventou foram alguns sobreviventes que chegaram numa praia aqui do Ceará. Lá na mata apanharam a folha da cana e fizeram um tipo de short; pegaram outras e fizeram a blusa, depois o chapéu. A flor da cana põe no chapéu, que é essa que a gente tem em cima da cabeça da gente (aponta para o próprio chapéu). E daí começou a dança da caninha-verde, porque eles brincavam que nem o índio na mata”, historia D. Gerta. “A caninha-verde é uma dança quase portuguesa. É uma paródia de um casamento em uma corte. A base dela são danças coletivas e dramas líricos, com doses de comédia. Vamos dizer que é uma alusão às contradanças, que na verdade é um baile de casamento”, esclarece Barroso. O maneiro-pau é um parente próximo do maculelê, mas que também mantém uma relação com os bacamarteiros. “É uma brincadeira que traz a tradição de Lampião... uma brincadeira de matuto, lá de dentro do mato. Aí eu aproveitei a luta dos cangaceiros de Lampião”, esclarece Mestre Bigode, que se autoproclama criador da tradição. Aos 82 anos, pai de cinco filhos e avô de “já perdi as contas”, Mestre Bigode é considerado pelos acadêmicos cearenses um “doutor da natureza”, que mantém a tradição do maneiro-pau há mais de 60 anos. A dança imita os passos do maculelê, mas com a diferença de ser uma “brincadeira de cacete que não pode jogar pesado, tem que ser maneiro-pau”.

Mestre Bigode, um "mestre da natureza"

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TRADIÇÕES

Mestre Zé Pedro mantém a tradição do reisado de couro

“Maneiro-pau ocorre no sertão do Cariri, porque lá tem uma tradição de cacete. Aí, criaram essa coisa de maneiro-pau para dar uma estilizada, transformar a briga numa dança. O que vale mais, além dessa coreografia que bate no pau que marca o ritmo, são os improvisos (em verso) que o puxador faz. O Mestre Bigode também participa da tradição de bacarmarteiro, mas isso não foi inventado por ninguém. Ninguém sabe como começou. Ele é mestre porque ele inventou a forma dele fazer. Mestre é aquele que reinventa e inventa o significado das coisas”, define Oswald Barroso. Uma outra brincadeira rara de ser vista na sua forma original é o reisado de couro, mais conhecido como reisado de caretas. Hoje, existem muitos reisados país afora, mas que misturam a tradição do de congos e do de caretas, quando não incorporam elementos de uma terceira brincadeira. Segundo Barroso, o reis de couro representa o cortejo dos Reis Magos na volta de Belém. “O reisado de congo é o cortejo da ida, porque nesse foram todos paramentados, mas como Herodes, na época, pediu que eles, quando voltassem, dissessem onde estava o menino Jesus, a fim de matar o menino, era preciso disfarçar. No reisado da volta, eles se encantam com aquelas caretas. E passam pelo palá-

cio de Herodes, bem na frente, e ele não reconhece. É o cortejo de volta encantado. São reis encantados”. O exponencial da folia no Ceará é Mestre Zé Pedro, 78 anos. Natural do município de Barbalha, pai de 12 filhos e avô de 58 netos, Mestre Zé Pedro mantém o folguedo há 16 anos. No seu reisado, as máscaras são de couro de bode, as roupas imitam couro de onça e o repertório é quase todo de baiões, harmonizados por um trio nordestino. Os bichos, uma tentativa de desmistificação dos medos coletivos, são os mais tradicionais: boi e carrancas, além dos vários personagens que criam os dramas. “No reis de congo e no reis de couro tem muitos elementos indígenas e africanos. Isso faz com que o elemento não doutrinário esteja mais próximo, porque outros folguedos têm muito da catequização: pastoril é catequização pura, fandango é catequização pura. E esse reisado é uma espécie de obra, tem muitas partes e variedades; tem coisa vinda de todo lugar do mundo, não há um fio único, um sentido único. É uma obra muito aberta, uma obra mais libertária: inclui dança, canto e encenação. E é um cortejo onde tudo pode acontecer”, antecipa Barroso. E num país onde muito há que se conhecer. • Continente outubro 2005

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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

Desde as histórias de Trancoso

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“Gosto de escrever como gosto de ler – num estilo romântico, irreverente e fantasioso...”

ontar histórias é uma arte. Das mais difíceis de executar. Talvez mais do que todas as que povoaram a imaginação de qualquer ser que se dedicasse a tal proeza. Desde o português Trancoso, de Guarda. É como se fosse uma criação literária digna de tempos imemoriais. Tempos em que os mares ainda estavam em formação, segundo os comentários de Almiro Rolmes Barbosa e Edgard Cavalheiro, quando da seleção e introdutório das Obras-Primas do Conto Universal, em 1942. Essa arte vem de muitos séculos e de muitos lugares, datando de a.C., da Caldéia, difundida na Grécia clássica, onde os helenos contavam as façanhas de seus deuses e heróis em narrativas épicas, no que foram, depois, imitados pelos romanos. Em todos os recantos do Mediterrâneo eram encontrados bardos peregrinos que narravam assombrosos sucessos. Assim, com essa arte se alastrando pelo resto do mundo, na velha Índia ela surgiu sob a fórmula de fábula. Na Pérsia como lendas folclóricas. E nessa época surgiu a Bíblia. Na França, por exemplo, em plena Idade Média, surgiram os fabliaux, narrativas curtas, picarescas e engenhosas, que os contadores repetiam de castelo em castelo e de vila em vila. Por conseguinte, surgia na Itália o grande Boccacio, um escritor satírico e que viria dar forma definitiva ao gênero sob o nome de novella. Na Alemanha, na Espanha, na Boêmia, tornou-se a novela o rito mais popular de se narrar acontecimentos, florescendo nas Novelas Exemplares de Cervantes – ainda considerada modelo. Dando uma volta por outros países do mundo, a arte de contar formou um elo entre gerações e os povos. Do ponto de vista técnico, todavia, a sorte de narrar histórias curtas só teve grande desenvolvimento no começo do Século 19, na França, onde havia um grupo de escritores, destacando-se Honoré de Balzac. Essas pequenas histórias saíram das ruas e logo ganharam os salões, dando-lhes dignidade artística e foros de nobreza. Na pátria do criador de Voutrin, o gênero prosperou extraordinariamente – e ao findar do século contava entre seus cultores, gigantes das letras como Flaubert, por sua vez transmitindo o segredo dessa arte a seu pupilo Guy de Maupassant.

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Nós, brasileiros e portugueses, empregamos o vocábulo conto para designar o que os franceses chamam conte, os norteamericanos short-story, os alemães erzählung, e os italianos novella – em certos casos usando a palavra raconto, aproximando-se do tale britânico. Por oportuno, nos últimos séculos, lembramos que a palavra raconto tem adquirido pronunciada tendência para designar algo como “contos de fadas”, dizia Rolmes. O ponto de partida para uma conclusão é que um “conto conte” alguma coisa mais ou menos razoável. Afinal, há "contos" nos quais nada sucede. Mas serão realmente contos? Ou apenas dissertações, ensaios ou trechos de romances? indaga Cavalheiro. Como sucede com todas as artes, pode-se escrever um bom conto mesmo sem técnica nenhuma. Respondendo, certa ocasião, a um jovem principiante sobre a melhor técnica ou fórmula a empregar para se escrever um conto, Maupassant respondeu: “– É fácil... É só você arranjar um bom começo e um bom fim... E no meio... Ah!... Aí é que entra o artista!...” Quando o escritor se senta para escrever um conto, já deve tê-lo desenhado na mente. Porém, tudo que se deve exigir de um conto é que seja interessante. Nenhuma outra modalidade exige do artista tão intensa concentração e virtuosismo. No conto, porquanto a pintura, deve ser definitiva desde o primeiro momento. A diferença entre o romance e o conto é, decididamente, a existente entre a pintura e a escultura. “Pintar é a arte de aduzir; esculpir, a de eliminar.” No equilíbrio entre essas duas realidades é que se reconhece o verdadeiro artista. Essa é, também, a divisão existente entre o conto e o romance. O que não é absolutamente necessário num conto - como na escultura - só pode comprometê-lo. Portanto, caros leitores, sem escolher técnicas ou táticas, apenas no sentimento de criação, estou lançando nesta 5ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, de 7 a 15 de outubro, o meu Parece que Foi Assim (Cepe Editora), com cinco modestos contos, ou historietas, distraídos. Gosto de escrever como gosto de ler - num estilo romântico, irreverente e fantasioso, sobretudo na base do sonho. Um conto para mim é um sonho. Que bom, não?... •


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