Continente #059 - Corrupção

Page 1


Anúncio


Reprodução

EDITORIAL

Da essência da corrupção O camponês Giges: invisibilidade e impunidade

N

o mito de Giges, Platão demonstra que as pessoas, normalmente, sentem-se tentadas a cometer gestos reprováveis quando estão seguras de que não sofrerão punição. Estaria aí a gênese da corrupção que, no momento, torna-se no Brasil escândalo midiático. Endêmica, estrutural, sistêmica ou radical, a corrupção é fenômeno antigo a afligir a humanidade a ponto de inúmeros autores, desde o filósofo grego, dela terem tratado, investigando sobretudo se se trata de fenômeno inerente à natureza humana. Nesta edição, apresentamos diversos aspectos da questão, em vasta reportagem assinada pelo jornalista e mestre em Filosofia Fábio Lucas, que ouviu historiadores, filósofos, sociólogos, cientistas políticos e militantes contra a corrupção de várias partes do mundo, abordando o tema com a profundidade impossibilitada aos jornais e revistas direcionados para a cobertura do dia-a-dia dos meandros da nossa política. Entre eles, os professores Stephen Morris, da Universidade do Alabama do Sul, Manuel Villacorta, doutor em Sociologia Política pela Universidade de Salamanca, Marco Villa, professor de história da Universidade Federal de São Carlos, e Pablo Capistrano, professor de Filosofia no Rio Grande do Norte, além de Cláudio Weber Abramo, diretor da Transparência Brasil, e Luis Fernando Jiménez Illescas, diretor da Fundação Internacional de Valores Contra a Corrupção, do México, entre outros. Os fundamentos históricos, filosóficos, sociais e políticos do desvio de conduta dos homens na vida pública é discutido à luz das precárias instituições humanas. O tema é ainda abordado em outros ângulos pelo professor José Arlindo Soares e pelo jornalista Eduardo Maia. Uma conclusão salta desse esforço de interpretação dos fatos: a discussão teórica sobre se a corrupção é ou não inerente à natureza humana não exime os criminosos de culpabilidade. O crucial é descobrir e mudar os fatores que alteram, enfatizam ou direcionam a natureza humana, para traçarmos os rumos de uma sociedade mais justa e eqüitativa. Esta edição traz ainda reportagem especial encerrando os registros sobre os 60 anos do fim da 2a Guerra Mundial, apresentando as discussões provocadas na Alemanha pela inauguração de um grande monumento às vítimas do Holocausto e artigo sobre os (hoje) obscuros intelectuais que apoiaram o regime nazista. • Continente novembro 2005

1


2

CONTEÚDO Mariana Camarotti

12

Mar de lama: a corrupção é inerente ao homem?

38

Calcinhas, sutiãs e corpetes na História

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CONVERSA

04 Professor português fala da fina fronteira entre tradição e modernidade

CAPA

12 Corrupção: fundamentos filosóficos, históricos e políticos 19 A captura do Estado no Brasil 22 O mito platônico de Giges

LITERATURA

24 Uma primorosa edição da Eneida 26 Milton Hatoum inter-relaciona vida e arte 28 Mulher-satanás inferniza vida de crente 32 Agenda Livros

COMPORTAMENTO

CINEMA 51 Filme pernambucano resgata luz brasileira 56 Pasolini: 30 anos de uma morte emblemática

CÊNICAS 60 História teatral de Pernambuco ganha livro 62 Agenda Cênicas

ESPECIAL 68 Alemanha expia o Holocausto 74 Os intelectuais nazistas esquecidos

REGISTRO 82 Dois autores dão voz à terra do Nordeste

SOCIOLOGIA 88 Um estudo da cordialidade do brasileiro

38 Exposição de roupas íntimas femininas na Argentina

MÚSICA

ARTES

90 Sanfoneiros se reúnem em homenagem ao Rei 92 Academia Pernambucana comemora 20 anos

44 Pernambuco manda minibienal a Paris 50 Agenda Artes

Continente novembro 2005


CONTEÚDO Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle

Divulgação

51

3

Peter Ketnath e João Miguel em Cinema, Aspirinas e Urubus

68

Monumento às vítimas do Holocausto causa polêmica na Alemanha

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 Este século é tão sombrio quanto o anterior

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 Quando se declamava ao som da dalila

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 48 Duchamp é o dadaísta por excelência

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 64 Os pratos de que Fernando Pessoa gostava

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 67 Lembranças do doutor Getúlio Vargas

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 A permanência das pessoas mortas

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Novidades da Bienal do Livro de Pernambuco Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente novembro 2005


4 Divulgação

CONVERSA


CONVERSA

ADRIANO DUARTE

“Cultura popular é uma vivência”

E

O professor português Adriano Duarte Rodrigues procura explicar o quão invisíveis são as linhas que separam o que entendemos como tradição e modernidade Carol Almeida

xperiência é um termo que volta e meia surge nas palavras escritas e faladas de Adriano Duarte Rodrigues. Professor da Universidade Nova de Lisboa e primeiro nome de referência quando se fala em estudos da comunicação nas terras lusas, ele sabe que é pela linguagem que o homem constrói sua realidade. Para sintetizar toda essa vivência em uma só palavra, nada melhor do que dispor de uma nunca palpável, porém sempre próxima: experiência. É com ela que Rodrigues procura explicar o quão invisíveis são as linhas que separam aquilo que entendemos como o tradicional e a modernidade. No Brasil, a convite de um evento que tinha como proposta discutir a cultura popular, Adriano Duarte Rodrigues falou com exclusividade à Continente sobre a nossa experiência externa de observar essas manifestações culturais e, claro, sobre como as mesmas manifestações respondem a uma ordem, ao mesmo tempo, tradicional e moderna.

Quando debatem o tema multiculturalismo, os estudos culturais observam que, muitas vezes, expressões, como culturas populares, são toleradas como uma expressão do outro, mas nunca aceitas como algo interno. E isso acontece, por exemplo, no Nordeste do Brasil, onde algumas manifestações são enten-

didas mais como artefato do que como cultura própria. Gostaria que o senhor falasse sobre isso. A cultura popular é uma vivência. É uma coisa que faz parte do dia-a-dia e, nesse sentido, a cultura popular como que se dispersa por tudo aquilo que é vida das pessoas. Quem é que fala da cultura popular? Não são as pessoas que a vivem propriamente, mas as pessoas que, de fora, olham para ela com estranheza. Ao falarmos de cultura popular, estamos de certa maneira a falar de fora dela. Este é um aspecto que torna os estudos sobre cultura extremamente ambíguos e paradoxais. Muitas vezes, ao querermos projetá-la e valorizá-la, podemos também ir contra ela própria. E isso acontece com a cumplicidade dos próprios atores dessa cultura, pois é natural que eles queiram se valorizar, queiram atrair apoios que facilitem a sua vida. Porque muitas vezes essas culturas estão em comunidades muito carentes. E é o contraste que cria todas as distorções de que é feita a nossa sociedade. Distorções econômicas, sociais, culturais e também políticas. Somos nós que, perante à estranheza de várias vertentes da cultura popular, criamos uma série de processos de convivência com ela. Multiculturalismo ou hibridismo são palavras perigosas, pois são palavras Continente novembro 2005

5


6

Fred Jordão/Imago

CONVERSA

"Eu pergunto: isto é cultura popular, ou é cultura pop? Entramos numa zona cinzenta de expressões. Pop vem de popular, mas o que chamamos hoje de cultura pop tem pouco a ver com aquilo que se chama de cultura popular" Chico Science & Nação Zumbi

que observam a cultura popular de fora e a mitificam. A cultura popular não tem nada de mitificante. Seu simbolismo é mítico, mas ela não. O sentido que o homem dá à sua vida cotidiana, é isso cultura popular. Precisamos ter muito cuidado para não endeusarmos as coisas, não a retirarmos de seu contexto e não lhes dar sentido que elas não têm. Os próprios grupos que se apresentam vivem este embuste, a duplicidade e o paradoxo de exprimirem uma cultura desenraizada de seu próprio meio. Gostaria que o senhor citasse um exemplo. Na Europa, todas essas manifestações, danças, músicas e rituais têm em sua origem algo muito funcional e, sobretudo, ligado ao mundo rural e aos trabalhos do campo. Por exemplo, certos rituais de ceifar o trigo, hoje, foram substituídos por máquinas que fazem o mesmo trabalho. Mas o gesto em si terminou sendo esquecido enquanto parte do processo de uma atividade econômica, para ser colocado como uma pura manifestação simbólica sem enraizamentos funcionais. Ceifar o trigo manualmente virou cultura popular. Chamo isso de um processo de folclorização. E vejo nesta palavra um aspecto negativo. Trata-se de uma ritualização, desenraizada de qualquer função, que serve apenas para espetáculo. Mas nas origens daquela manifestação não havia nada de espetáculo. Vejo isso acontecer, por exemplo, em Lisboa, onde restaurantes para turistas contratam grupos que vêm apresentar danças folclóricas das aldeias, quando na verdade aquilo já não faz parte de uma vivência. Eles estão ali apenas para ganhar Continente novembro 2005

um dinheiro a mais. Isso é um aproveitamento de restos de expressões que acompanhavam a vida das comunidades e que hoje não têm mais razão de ser. Penso que é preciso inventar um novo tipo de cultura ligada a novos tipos de atividades. Em Pernambuco, nos anos 90, surgiu uma banda chamada Chico Science e Nação Zumbi que, a partir do rock, resgatou uma batida que estava até esquecida no Estado, que era o maracatu. Ou seja, por uma manifestação urbana, essa banda conseguiu valorizar uma expressão popular que, não fosse pela projeção que o grupo teve, talvez permanecesse esquecida. Como o senhor observa esses movimentos que agregam valores da cultura popular? Eu pergunto: isto é cultura popular, ou é cultura pop? Entramos numa zona cinzenta de expressões. Pop vem de popular, mas o que chamamos hoje de cultura pop tem pouco a ver com aquilo que se chama de cultura popular. De repente, essa mistura é cultura popular sim, mas urbana, mesmo que ela vá buscar na cultura rural algumas formas de expressão assimiladas e transformadas. Não tenho nada contra, muito pelo contrário, a que se criem essas novas formas de expressão. Mas, acredito, há algum equívoco na hora de falar em cultura popular no Brasil, pois nunca se sabe exatamente o que se está a dizer. Não se sabe se cultura popular é maracatu e boi, ou se são também essas manifestações urbanas que, na verdade, não resgatam. Você não pode imaginar que essas danças de


Pedro Rampazzo/Sambada/Divulgação

CONVERSA

7

"Quem é que fala da cultura popular? Não são as pessoas que a vivem propriamente, mas as pessoas que, de fora, olham para ela com estranheza. Ao falarmos de cultura popular, estamos de certa maneira a falar de fora dela"

Ciranda de ritmos: brincadeira de integrantes de várias manifestações populares

apenas no nível da experiência tradicional. Não é uma questão de ou-ou, mas e-e. A experiência do homem não é disjuntiva, é conjuntiva. E essas pessoas têm que criar a partir de rupturas, como qualquer ser humano. Ou seja, de conflitos que acontecem entre o Qual é o papel da mídia na projeção dessas ma- tradicional e o moderno. Naturalmente, em um honifestações? mem de São Paulo prevalece a experiência moderna. A mídia não cria produtos culturais novos. Na maior Ao passo que no homem de uma aldeia perdida no parte dos casos, ela vai alimentar-se daquilo que já existe. Sertão, prevalece a experiência tradicional. Mas, ao fazer isso, ela contribui para essa ritualização. E, Alguns meios ligados à experiência moderna, sobretudo, fornece a públicos novos expressões que escomo por exemplo, a internet, podem contribuir para tavam confinadas a grupos distintos. E esses grupos novos têm a característica de não terem fronteiras concretas mui- que se deixe uma memória maior sobre essas mato definidas. Globalização cultural não é a criação de pro- nifestações populares? Um dos aspectos que a experiência moderna tem é o dutos culturais novos, é a criação de novas fronteiras, indefinidas de interpretações. Sou contra a idéia de que a fato de ela ser uma experiência do escrito, ou seja, do mídia dissolve as culturas populares em nome de uma cul- registro. Na experiência tradicional, a memória é resultado tura globalizada. Não há cultura globalizada, é um absur- de uma manifestação oral, ela passa de uma geração para do falar nisso. O que é globalizado é a informação que se outra sendo contada. Ao passo que, na experiência moderdá sobre essa cultura. Por exemplo, vejo uma dança chi- na, há sempre a invenção de dispositivos técnicos que nesa. É óbvio que não vou dar um sentido àquela dança registram externamente essa memória. Daí porque a expeque os próprios chineses dão, porque não faço parte dessa riência moderna, na verdade, nasce com a escrita. A internet e outros meios intensificam isso. E qual a imcomunidade. Mas estarei lá, assistindo à dança chinesa. portância que isso tem para a cultura tradicional? Existem Quando o senhor fala de linguagem, frisa que dois motivos. O primeiro é porque esse registro é uma todo homem vive, paralelamente, a experiência tra- maneira de preservar as formas da cultura tradicional. E dicional e a experiência moderna. De que modo a ex- segundo, a cultura moderna tende se tornar tradicional. periência moderna está na vida de, por exemplo, Ela só é moderna enquanto projeto, e não como uma reamestres da cultura popular? lização cultural plena. E daí os seus limites de articulação É impossível um homem funcionar cem por cento com a cultura tradicional. •

aldeias são feitas com aquelas luzes que estão no palco de um show. Essa adaptação tem muito que ver com a autopoiesis, ou seja, toda expressão cultural e simbólica faz parte dessa recriação constante.

Continente novembro 2005


CRÉDITOS

Corbis

8

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo e Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1808-7558 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente novembro 2005

Novembro | 2005 Ano 05

Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista, crítico de cinema, mestre em cinema pela ECA-USP, doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle. BETÂNIA UCHOA CAVALCANTI-BRENDLE é arquiteta e PhD em História e Desenho Urbano pela Oxford Brookes University. CAROL ALMEIDA é jornalista. CLÁUDIA NINA é jornalista e professora de Teoria Literária na UERJ. EDUARDO CESAR MAIA é jornalista. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e Armada América, entre outros, e cineasta. JOSÉ ARLINDO SOARES é sociólogo, professor do programa de pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba. KLEBER MENDONÇA FILHO é cineasta e crítico de cinema. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARIANA CAMAROTTI é jornalista e faz especialização em Jornalismo Econômico na Universidade de Buenos Aires (UBA). PAULO GADELHA é desembargador federal do TRF da 5ª Região. SÉRGIO LUZ é jornalista e radialista. WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de artes plásticas.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretorgeral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder, Saudades de 60 e Parece que foi assim. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.


CARTAS

Quebra de preconceitos

Enquanto pagava um livro no caixa da Sodiler do Aeroporto, percebi a Continente Documento entre as revistas semanais. Por pouco não a ignorei, como costumeiramente eu faço, pelo simples “pré-conceito” em julgar, sem conhecê-la, tratar-se de mais uma revista “cult” para satisfação dos egos de meia dúzia de intelectuais, jornalistas, políticos e artistas. A capa me chamou a atenção para o tema “contos”, do que eu gosto. Tive uma grata surpresa ao ver contos de Moacyr Scliar, W. Faulkner e D. San Martín. Estranhou-me o preço. Muito baixo para o padrão de qualidade da Revista. Mas o que mais me surpreendeu foi saber que essa excelente Revista é publicada aqui na nossa terra! Caiu mais um preconceito meu em imaginar que as melhores publicações são editadas no eixo Rio-São Paulo. Sérgio de Miranda Costa, Recife – PE

Tesouros Tendo lido a Revista Continente, ano V, nº 50, interessei-me muito por “Os Tesouros Vivos de Pernambuco” porque mostra a nossa cultura, as nossas tradições. Bem, gostaria de que vocês colocassem mais textos sobre nosso Nordeste, sobre as nossas culturas. É muito importante lembrar tudo isso, pois é nosso patrimônio, nossa herança. Diego Marques da Silva, Sanharó – PE O menor conto Na pós-modernidade, quase tudo se permite. Até arroubos de dadaísmo tardio... Se assim, eu é que entrarei no Guiness como autor do menor conto do mundo. Esta a minha obra: A grande explosão Pum! Janilto Andrade, Recife – PE Carmen Miranda Recebemos a Revista Continente Documento, trazendo Carmen Miranda como edição especial. A FUNARJ, juntamente com sua Assessoria de Comunicação Social, agradece e cumprimenta toda a redação pela edição em tela. Estamos diante de uma rica, aprimorada e histórica edição, tanto pelos textos quanto pelo rigor e alta qualidade visual. Ana Lúcia Germano, Assessora Chefe de Comunicação Social/FUNARJ Carmen Miranda 2 Parabéns pela Revista Documento Carmen Miranda! Muito bonita e trouxe várias novidades, inclusive para quem se diz admiradora de uma das mais importantes figuras públicas que o Brasil já teve. Gostaria que a revista fosse melhor distribuída, são poucas as bancas que têm exemplares da Multicultural e Documento. Daniela Guimarães, via e-mail

Distribuição Sou assinante da Revista Continente Multicultural e Documento e o recebimento das mesmas se faz cada dia pior. Mês de outubro, enquanto já estava em todas as bancas, eu não as recebia em minha casa. Onde moro (Boa Viagem), não é costume os porteiros ficarem com nossa correspondência. O prédio é vigiado e monitorizado 24 horas por 18 câmaras e acredito que porteiro algum se arriscaria a perder o emprego por causa da Revista que, para eles, talvez não tenha a mesma importância que tem para mim. Sou letrada, estudo literatura, filosofia e já tenho alguma coisa publicada. Mandem minha Revista e prometo não incomodar mais nunca. Ao final da assinatura, vou comprar nas bancas. Sonia Just, Recife – PE Nota da Redação Recebemos muitas reclamações do gênero, durante a greve dos Correios. Telenovelas É muito comum à intelectualidade limitada afirmar que não gosta de telenovelas, como bem afirma Paulo Polzonoff no artigo “A academia na sala de aula”. Que Rei Sou Eu?, Roque Santeiro e Vale Tudo, são obras primas. E os textos do Manoel Carlos? Ele é maravilhoso no que faz. É claro que existe muita porcaria na televisão brasileira. Mas é preciso assistir para poder criticar, ou não. Fiquei muito feliz com a matéria de capa da edição nº 57, pois vi que telenovela pode ser um bom meio de análise do momento de um país. Viram A Lua me Disse? Miguel Falabella e Maria Adelaide Amaral conseguiram falar em Camões, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Shakespeare, Greta Garbo, CPIs e até em mensalão, em pleno horário das 19h. Maria Luísa Vieira, Recife – PE

Carinho Gostaria de parabenizá-los e agradecer por todo carinho que a Revista Continente tem para com seus leitores e também dizer que eu amo o Recife de coração! Marinalva Francelina Franca, Goianésia do Pará – PA Sabores Gostei muito da coluna “Sabores Pernambucanos” que traz o texto sobre pinha (edição nº 56). Tenho 13 anos e é a primeira vez que leio a Continente, como eu amo cozinhar, essa é a parte que eu mais gostei. Rejane Silva Nunes, Sanharó – PE Silêncio Cultural Conheci a Continente Multicultural, através de um amigo de Minas Gerais que, quando chegou ao Recife, mostrou-me a Revista, comprada no aeroporto. Na semana seguinte, eu já era assinante dela. Decepciona-me, no entanto, que há quase dois anos de assinatura, vendo desfilar uma galeria de pintores da região, como João Câmara, Gil Vicente, Delano, Cícero Dias, Antonio Dias, Zuleno, entre tantos grandes nomes, não vi até o presente número uma matéria sobre a obra de Ivonaldo Veloso de Melo. Tal “silêncio” é incompreensível, partindo de uma Revista considerada um patrimônio da cultura pernambucana. Fica-nos até difícil explicar aos brasileiros e estrangeiros admiradores da arte de Ivonaldo como uma grande publicação local não prestigia seus próprios conterrâneos. Estou certa de que principalmente os pernambucanos e todos os admiradores da arte naif gostariam de saber mais sobre este extraordinário pintor de nossa terra. Verônica Costa Romão – Recife – PE

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

Continente novembro 2005

9


Anúncio


CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes

Valores em desconstrução A nova geração perdeu a referência da família e a possibilidade da utopia coletiva

O

século 21 continua a ser marcado pelo avanço da materialização da vida cotidiana, pela invasão das esferas do conhecimento, da vida privada e da religião, pela lógica do comércio global. Entre luzes e sombras, este século apresenta-se, no tocante a valores sociais, tão sombrio quanto o século que o antecedeu. Esse non sense faz com que a utopia do futuro seja superada por uma afirmação fraudulenta, porém convincente, da necessidade da transcendência material, da construção aqui e agora de condições objetivas de uma vida melhor, mesmo que para isso a natureza humana tenha de ser sacrificada. Assim, em nome dessa transcendência, a nação, o amor, a liberdade e a própria felicidade são prejudicados pela estupidez dos desejos ilimitados impostos pelas limitações da racionalidade humana. O cenário do futuro apresenta-se como um desdobramento similar do presente pontilhado pelos excessos dos valores produtivistas, pela violência e pela negação da utopia da felicidade para todos. A impossibilidade do controle de conseqüências da “racionalidade humana” mostra que, nesse hiato civilizatório, o futuro está sujeito às próprias vicissitudes da história. Infelizmente, os conflitos geracionais, sejam familiares, religiosos ou entre nações mantêm-se, mesmo com os avanços progressivos no processo de desenvolvimento social. Malgrado os avanços da tecnologia, a nova geração, por ter perdido a referência da família e a possibilidade da utopia coletiva, faz com que se desenvolvam novos mecanismos de socialização, baseados numa contracultura que rompe com a escala social padrão dos nossos costumes. Esse fenômeno se acirra com a crise de inflexão de valores iniciada a partir dos anos 80 do século 20 – coincidentemente, ano da criação do Consenso de Washington, quando entra em cena a ética do capital financeiro em detrimento dos valores do

capital produtivo. Esta nova dialética econômica abriu mais espaços para a flexibilização dos costumes, ou a ditadura do relativismo, como diria o Papa Bento XVI, expressas no individualismo, no enfraquecimento dos valores comunitários e da família, na medida em que permite o avanço das possibilidades do desejo e nas imensas perspectivas materiais de consumo que nos oferece a sociedade afluente. Todavia, esses desejos não devem abrir espaço para ações ilegítimas e antiéticas; nem tampouco podem ser resultado da assunção, pela sociedade, das noções produtivistas de eficiência e qualidade, como parâmetros da própria condição humana, legitimada, de forma enganosa, pela perspectiva de aumento de bens materiais. Esse vácuo de valores que atinge os jovens, a família, governos e nações, e é recheado pela incoerência entre o falar e o fazer, não deve legitimar a demagogia, a mentira e o populismo. É preciso combater o mal pela raiz, pois as massas, através da mistificação da propaganda, ainda são estimuladas a acreditar que a felicidade fugaz existe e que alguém usará da mão invisível, que certamente não será a de Adam Smith, para alcançar o céu. Fiquemos alerta, pois é em meio a esses novos padrões de comportamento, onde coexiste um fosso entre a formação da personalidade e as expectativas sociais, que uma geração fica marcada, por um profundo materialismo e uma leitura individualista do mundo. O pragmatismo macroeconômico exclui a formação dos jovens da pauta política. Nesse contexto, a alienação espiritual das pessoas (de qualquer credo), a busca da própria identidade através do olhar sobre o outro, ao invés do olhar sobre si mesmo, a procura do sucesso fácil e a qualquer preço, e a tolerância com todas as formas de violência, faz-nos ingressar num vácuo que desconstrói no presente e no futuro valores substantivos da sociedade afluente. • Continente novembro 2005


12

CAPA

A discussão teórica sobre se a corrupção é ou não inerente à natureza humana não exime os criminosos de culpabilidade. O crucial é descobrir e mudar os fatores que alteram, enfatizam ou direcionam a natureza humana Fábio Lucas / Ilustrações: Nelson Provazi

E

ndêmica, estrutural, sistêmica, radical, a corrupção que estampa as manchetes em quase todos os países da comuna global nas últimas décadas não é fenômeno novo, nem simples. Porém a história e a complexidade explicam mal, e nunca justificam, aos olhos do cidadão comum, o comportamento viciado que se apropria daquilo que, seja por mérito, seja por lei, não lhe pertence. É de tal forma a sua natureza que muitos se apressam a chamá-la de costume, no sentido definido por Hume como hábito repetido coletivamente, que traz desde a fonte a causa psicológica e dispensaria ou prescindiria da armação racional. Neste caso, a referência para o mal não está no mundo, e sim no imaginário de todos e na índole de cada um.



14

CAPA Os corruptos estão em toda parte, e faz tempo. No Brasil, a Carta de Caminha já consigna o nepotismo que aportaria nos novos domínios do reino português, quando o enviado da corte pede sem meias palavras o emprego para um parente. Foi só o começo. “A República nasceu corrupta. Basta recordar os escândalos financeiros do governo Deodoro da Fonseca”, diz o professor de história da Universidade Federal de São Carlos, Marco Villa. “E seguiu no século 20 tão corrupta como no século anterior. E parece que no terceiro milênio continuamos neste trágico caminho”, observa. O colonialismo deve ser levado em conta na hora de se contar a história da corrupção. No entanto, sua relevância nos séculos posteriores à independência das nações é menos convincente, de acordo com Stephen Morris, professor de ciência política e diretor do Programa de Estudos Internacionais da Universidade do Alabama do Sul, nos Estados Unidos. De modo geral, na América Latina, “a corrupção é fruto de instituições fracas e um obstáculo à criação de fundações sólidas que fortaleçam o sistema político”, avalia Morris. Além disso, é sempre bom lembrar que a corrupção foi embarcada da Europa para as colônias, como ressalta o professor Manuel Villacorta, doutor em Sociologia Política pela Universidade de Salamanca, na Espanha: “As raízes da corrupção se estabeleceram com o modelo político e os hábitos dos colonizadores”, sustenta Villacorta, e sua afirmação surge em acordo com o episódio do nepotismo de Caminha. Até no reino dos céus a corrupção tem história, como se vê no marketing das indulgências da Igreja no século 16, feito pelo frei Tetzel: “Tenho aqui os passaportes para levar a alma humana para as alegrias celestiais do Paraíso”, prometia, arrematando com efeito: “Assim que a moeda A Carta de Pero Vaz Caminha: antecedente de nepotismo

Continente novembro 2005


Arquivo pessoal

CAPA o seu afeto das divindades que de outros seres humanos, o que resultaria em maior comportamento ético e respeito à vida social. Todo indivíduo com uma vida mais espiritual que material é muito menos corruptível.

ENTREVISTA LUIS FERNANDO JIMÉNEZ ILLESCAS Diretor da Fundação Internacional de Valores Contra a Corrupção, do México

A venda da alma O que é corrupção? Por princípio, é o abuso do público por um elemento privado. Mas no fundo se trata de uma maneira de enxergar a vida em que o afeto é vendido, ao invés de merecido. Levado à complexidade das finanças públicas, traduz-se no interesse de todas as partes envolvidas no manuseio do dinheiro público de ter mais dinheiro para comprar mais afeto.

Por que nos países da América Latina a corrupção sempre ameaça, de alguma forma, a democracia? Na minha opinião, a democracia é ainda um sonho da humanidade nos países ricos e pobres, enquanto vigorar a mercadocracia, a venda de políticos como produtos, com slogans e não com compromissos políticos. A democracia implicaria que as campanhas fossem feitas com a história dos candidatos e seus argumentos, e que os eleitores estivessem plenamente informados dos detalhes destas histórias e de suas propostas. Hoje as pessoas decidem seu voto com base em uma foto e numa frase estúpida repetida milhões de vezes. Enquanto a ignorância é majoritária, a democracia é apenas um bom projeto, nos países ricos e pobres. E a corrupção é a mesma nos dois casos? É claro que num ambiente de carência, tanto material quanto cultural, é mais fácil ter maior competitividade, o que se traduz em maior sede de êxito no que quer que seja. Isto é um agravante para a venda do afeto para a cidadania em geral. É possível que nos países ricos não se suborne um guarda de trânsito, mas a venda do afeto, que é a origem da corrupção, está mais na consciência dos países ocidentais ricos do que nos países pobres. Neste sentido, a ordem maior e a aparência de perfeição cultural é uma desvantagem ética importante. Em um país como o México, e certamente no Brasil, principalmente nas comunidades rurais, as pessoas dividem o pouco que têm na mesa com qualquer estranho que chegue sem aviso. Nos países ricos, é preciso um convite.

O sr. poderia dar alguns exemplos? Dou três. Quando os pais trocam seu afeto por notas de rendimento escolar dos filhos. Quando as pessoas que trabalham têm como objetivo principal o dinheiro. E quando pessoas que se relacionam afetivamente enxerO homem não é, então, um animal corrupto e mesgam o carinho como uma troca de tipo comercial, e não quinho por natureza? como oportunidade de aproveitar algo que deveria ser O ser humano nasce sedento de amor, e se transforma inesgotável. Nos três casos, o plano de fundo de valoriza- em um provedor de amor. Mas a sociedade baseada no ções e da ética é o mesmo. ter, e não no ser, baseada no consumismo e no individualismo, é presa fácil das organizações mercantis e desta A cultura ocidental é culpada pela disseminação da forma de ver o mundo que criticamos. Tal sociedade não corrupção, através da colonização? é “naturalmente” corrupta: ela reproduz um esquema Precisamos saber aí duas coisas. Se as culturas au- que torna a sociedade corrupta. Enquanto não formos tóctones vendiam seu afeto mais que a cultura ocidental, capazes de reinventar a afetividade dos pais, a chantagem e se uma comunidade com uma visão de mundo mais das instituições escolares, e enquanto não formos capazes espiritual que material tende a vender mais o afeto que de viver em comunidades não consumistas, o ser humaganhá-lo. Talvez as culturas antigas “comprassem” mais no “naturalmente” seguirá sendo o lobo de si mesmo. Continente novembro 2005

15


Divulgação/Rocco

16

As ocorrências de “mar de lama” na história antiga são associadas a períodos de decadência. No caso contemporâneo, em que se usa a mesma imagem aplicada a vários países – EUA, URSS, Itália, Brasil, Argentina – o significado é o mesmo? É porque talvez o Hegel esteja errado e o Marx esteja certo (dizer isso parece uma heresia nesses tempos de falência da esquerda, não é?). Explico melhor. O que o Marx vai apontar é que não existe esse suposto “bem público” da legalidade hegeliana. É uma ilusão achar que alguém vai guiar o Estado a fim de promover o bem geral e cuidar dos interesses de todos. Mas não é a definição de Estado? Essa seria uma ilusão que vem desde de Platão (com a República) e que é reforçada por Hegel na sua oposição Professor de Filosofia no Rio Grande moralidade pública X legalidade privada. Marx vai do Norte apontar para o fato de que o Estado serve sempre aos interesses de uma determinada classe ou de um determinado grupo (conveniência do mais forte). Então “o mar de lama” que você citou é a consciência do engodo a que somos submetidos, de achar que o Estado existe para promover o bem comum e não para atender aos interesses de determinados grupos políticos. A perplexidade é quando a gente descobre que Hegel está errado e que não há legalidade pública, nem no Brasil nem na Itália, EUA, Alemanha ou Currais-Novos (cidade no interior A corrupção como problema surge com Hegel? Hegel estabelece, analisando a peça de Sófocles, An- do Rio Grande do Norte). tígona, uma distinção fundamental entre a moralidade Então se trata de uma definição utópica? privada (Sittlichkeit) e a legalidade pública (Legalität). A É uma utopia que precisa ainda ser construída, em idéia é de que existiria um aspecto normativo derivado dos costumes familiares e um aspecto derivado dos inte- alguns países o serviço de construção dessa utopia está resses dos cidadãos como um todo, independente de vín- mais adiantado do que em outros, mas em nenhum o ediculo sanguíneo e familiar. Aqui surge uma oposição entre fício está pronto. o que é privado (do ponto de vista daquilo que diz resO sr. concorda com a idéia de que a corrupção só peito a mim mesmo e à minha família) e o que é público (aquilo que diz respeito aos interesses da cidade). Nesse existe quando aparece – ou seja, quando o ato corrupto é sentido, o problema da apropriação do Estado para aten- descoberto pelo “outro”, seja o chefe da repartição ou a opinião pública? der interesses privados realmente tem esse marco. O ato lesivo existe independentemente de termos ou não-consciência dele. Mas o corrupto talvez não tenha E antes dele, como se encarava a corrupção? Antes do século 18, o Estado se confundia com a um senso de justiça tão apurado a ponto de sentir culpa figura do rei e de seus parentes (as famílias nobres que vi- ou vergonha de seu próprio ato. Daí a tragédia de termos viam ao redor da realeza como moscas no mel). Então uma flexibilidade moral tão disseminada abaixo do equanão fazia sentido propor esse problema, porque a idéia de dor (aquela idéia de que não existe pecado abaixo do uma “coisa pública” e uma outra “coisa familiar” não ha- equador). No carnaval isso é ótimo (não ter pecado), mas via ainda sido formulada (a não ser na antiguidade clás- o problema é quando essa falta de comprometimento com o senso de justiça se ausenta da sociedade. sica com os gregos e os romanos). ENTREVISTA PABLO CAPISTRANO

A tragédia da flexibilidade moral

Continente novembro 2005


Arquivo pessoal

CAPA

"É a fragilidade das instituições em perseguir aqueles que detêm poder econômico e político tão avassalador que garante a seus ocupantes a certeza da impunidade, a mola-mestra da corrupção" Gustavo Ioschpe tilintar dentro da cuia, a alma pela qual ela for depositada sairá voando do purgatório e irá direto para o céu”. Na formação das antigas colônias ou na arregimentação do rebanho religioso, talvez a desigualdade propicie os motivos dessa tragédia humana que não é privilégio de nenhuma raça ou nação. Para o economista Gustavo Ioschpe, a desigualdade econômica gera um substrato social que paira acima da lei. “É a fragilidade das instituições em perseguir aqueles que detêm poder econômico e político tão avassalador que garante a seus ocupantes a certeza da impunidade, a mola-mestra da corrupção tanto na vida pública quanto na privada”, aponta o autor do livro A Ignorância Custa um Mundo – o Valor da Educação no Desenvolvimento do Brasil (W11 Editores), que fez seu mestrado em Yale, nos Estados Unidos. Opinião semelhante possui Cláudio Weber Abramo, diretor executivo da Transparência Brasil: “O problema é mais de desenvolvimento do que qualquer outra coisa. Um município pobre não tem condições de gerir eficientemente a administração, e portanto ali a corrupção acontecerá com mais probabilidade do que num município mais organizado”. O mesmo vale em relação ao indivíduo que é atingido pela corrupção e não se move em direção à reação, segundo Abramo, graças à pobreza e à má-distribuição de renda. “Não é razoável esperar de uma pessoa que mal subsiste que possa se nteressar pelo que acontece no Estado. Essas pessoas sequer conhecem seus direitos, e portanto não têm idéia de que podem e devem defendê-los”. Para complicar ainda mais, os paraísos fiscais existem na terra, e lá não se cobram impostos nem para entrar, como na época das indulgências para acessar o paraíso celeste. “A corrupção global precisa de uma legislação global para combatê-la”, recoContinente novembro 2005

17


CAPA Divulgação

18

"O problema é mais de desenvolvimento do que qualquer outra coisa. Um município pobre não tem condições de gerir eficientemente a administração, e portanto ali a corrupção acontecerá com mais probabilidade do que num município mais organizado"

Cláudio Weber Abramo nhece Manuel Villacorta. “Os paraísos fiscais devem ser extintos, porque são contraditórios com a ética pública e a função social dos governos”. Então quer dizer que a culpa é do sistema, como defendem alguns? Isso não resolve o problema, tampouco dá salvo-conduto, segundo Ioschpe. “Nem pobres nem ricos são desculpáveis por seus delitos. A fragilidade institucional não é desculpa para o roubo”, avisa ele. “A minha impressão – e é apenas uma impressão, sem qualquer sustentação empírica – é de que há um instinto humano natural pela satisfação de seus impulsos, quer seja por dinheiro, por status ou por sexo. Cabe à civilização refrear esses instintos, para possibilitar a convivência em sociedade”, defende, numa referência indireta às forças da cultura contra o indivíduo, como falou Freud em seu famoso Mal-Estar da Civilização. A alegação da natureza deturpada do homem também está na filosofia de Hobbes e Rousseau, e se mostra como explicação simples demais, bem adequada para eximir responsabilidades. “Eu não estou convencido de que tal natureza ou inclinação exista”, discorda o professor Stephen Morris. “Se a natureza básica do homem determinasse a corrupção, seríamos todos corruptos em graus equivalentes, e todas as sociedades teriam os mesmos níveis de corrupção”, pondera. “Mas nenhuma das duas coisas ocorre, o que significa que existem outros fatores que alteram, enfatizam ou direcionam a natureza humana. O crucial é descobrir e mudar estes fatores”, acredita Morris. O professor Villacorta reforça a dissociação. “A predisposição ao crime não se dá na totalidade dos seres humanos. Se uma cultura ética e moral existe em uma sociedade, a ordem prevalecerá. Aceitar que os homens são corruptos por natureza é descartar a possibilidade de construir sociedades éticas e honestas. É deixar o caminho livre para a corrupção e, com ela, facilitar o colapso da humanidade”. • Continente outubro 2005


E A CAPTURA DO ESTADO A democracia como valor estratégico, a ética como princípio indivisível e o reconhecimento da universalização dos direitos sociais básicos são valores muito recentes no Brasil e por isso pressionados por velhas e novas forças políticas José Arlindo Soares

Continente outubro 2005


20

CAPA

N

a ausência de uma revolução democrática e republicana mais profunda, o Brasil teve sua evolução política marcada pela combinação de padrões patrimonialistas e corporativistas na intermediação de interesses, simbiose entremeada, ora pelo autoritarismo, ora pelo populismo. Do estado oligárquico à democracia das corporações, foram trilhados os caminhos para a banalização de relações promíscuas entre as esferas pública e privada, dificultando o avanço de um ideário plural e ético, próprio de sociedades modernas que se constroem na diversidade de valores e no reconhecimento do primado do bem comum, em oposição aos interesses individuais ou de pequenos grupos. Na matriz ideológica do patrimonialismo, estão a concepção do espaço público como uma mera extensão dos negócios pessoais e a política como um estágio especial de transacionar interesses de clientelas. Uma primeira reação a esse modelo veio pelo viés de uma modernização inconclusa, através do corporativismo urbano, que incorporou categorias empresariais, assalariadas e uma incipiente burocracia estatal na partilha dos bens públicos, sob a batuta do Estado nacional, mas sem a devida preocupação com o enorme déficit deixado pelas ausências de princípios universais de acesso a direitos e de um claro reconhecimento da ética como princípio, e não como mero instrumento de obtenção de resultados. A democracia como valor estratégico, a ética como princípio indivisível e o reconhecimento da universalização dos direitos sociais básicos são valores muito recentes no Brasil e, por isso mesmo, são muito pressionados pela força inercial das velhas estruturas ou pela retórica de novas forças que, através do discurso de defesa dos interesses populares, agem na presunção de que uma causa virtuosa justifica qualquer desvio moral. Hoje, ficou mais fácil entender por que o grupo hegemônico do pensamento de esquerda no Brasil negouse a assinar a Constituição de 1988, que trazia como principal avanço a institucionalização de regulação do controle democrático. Na verdade, a tática estabelecida parecia ser a de manter o discurso cínico da contestação e exercitar a prática recorrente de subordinar a moral aos ditames da simples reprodução do poder. Isso ocorre, não apenas pela pura e simples expropriação de fundos públicos, mas, também, pelo exercício de angariar simpatias, através da distribuição de benesses a corporações, como se estivessem agindo no in-

Continente novembro 2005


Ronaldo de Oliveira/CBPress/PAGOS

CAPA

Estrela símbolo do PT ornamenta o jardim do Palácio da Alvorada: usurpação da coisa pública

A resistência endêmica ao aprofundamento de mudanças mais substantivas no Brasil esbarra no exercício de duas concepções: de um lado, a tradicional usurpação da coisa pública pelo fisiologismo oligárquico e do outro, a gramática do partido-máquina, que expropria fundos públicos e aprofunda a ambigüidade entre democracia e corporativismo

teresse da maioria. São práticas que obstruem a consolidação de um processo de formação de uma sociedade menos desigual e de uma classe política diferenciada, para onde será canalizada a representação de interesses, mediante a formação de grupos de pressão transparentes, que reflitam as matrizes heterogêneas da sociedade. A resistência endêmica ao aprofundamento de mudanças mais substantivas no Brasil esbarra no exercício de duas concepções que terminaram, agora, encontrando-se na mesma gramática usurpadora do ideário libertário da democracia republicana: de um lado, a tradicional usurpação da coisa pública pelo fisiologismo oligárquico e do outro, a gramática do partido-máquina, que expropria fundos públicos e aprofunda a ambigüidade entre democracia e corporativismo. Nas duas concepções, falta o princípio democrático universal de que as regras que não podem ser feitas para todos não devem ser feitas para alguns. Por isso, flagrada na tentativa de capturar o Estado pelo caminho do partido-máquina, a primeira reação do Governo foi apelar para uma espécie de “identidade nacional do atraso”, ou seja, para a velha cultura oliquárquica de que “todos fazem a mesma coisa.” Uma tentativa de estabelecer uma identidade com a parcela mais atrasada do senso comum que considera a coisa pública como o espaço banalizado da corrupção. O imbróglio estatizante da captura do Estado em nome de uma causa virtuosa tenta se refugiar no discurso cínico e promíscuo de que, afinal, todos passam pelo estereótipo de um estigma nacional de corrupção, esquecendo o discurso de sua própria ascensão, como produto do avanço de parte da sociedade brasileira que vem se esforçando para conceber a política como um processo regido por um código de ética que tem validade, tanto para a moral do homem comum como para a conduta dos dirigentes. •

21


O MITO DE GIGES As pessoas, normalmente, sentem-se tentadas a cometer gestos reprováveis, quando estão seguras de que não sofrerão punição Eduardo Maia

“D

izem que Giges era um pastor que servia ao então rei da Lídia...” Assim Platão começa o relato mítico que narra a saga de um humilde e até então honesto camponês que, após encontrar um anel mágico que lhe dava o poder da invisibilidade, começa a cometer toda sorte de crimes e injustiças, “seduziu a rainha, atacou e matou o rei com ajuda de sua própria mulher e se apoderou do reino”. Giges havia percebido que o anel lhe garantia um poder ilimitado e que as convenções morais já não precisavam ser respeitadas. A opinião comum entre os homens, segundo Platão, é a de que se existissem dois anéis como o de Giges e se um fosse dado a um homem reconhecidamente justo e o outro a um homem injusto, ambos acabariam tomando o mesmo caminho – o da corrupção. Se nos voltamos para a etimologia do termo corrupto – ter um coração (cor) rompido (ruptus) – percebemos na origem do termo também essa quebra de valores pelo vislumbre de poder e não uma possível maldade inata em certos homens. A oportunidade faz o ladrão, diz a máxima popular.


Corbis

CAPA

"O poder tem a tendência a se corromper e o absoluto poder a se corromper absolutamente" resume seu pensamento de que todo o poder deve ser limitado

John Dalberg-Acton

Com o seu sarcasmo característico, o jornalista americano H. L. Mencken consumou: “A consciência é uma voz interior que nos adverte de que alguém pode estar olhando”. A crença de que aqueles que praticam a justiça não o fazem por uma convicção íntima, senão por não terem o poder de fazer o que realmente desejam, pode soar um tanto pessimista ou mesmo niilista. Mas não se quer aqui entrar na discussão improfícua em torno da afirmação de que todos os homens são corruptíveis. A questão pode ser abordada de forma mais pragmática: o mito do anel aponta no sentido de que as pessoas, normalmente, sentem-se tentadas a cometer gestos reprováveis, quando estão seguras de que não sofrerão punição. John Emerich Edward Dalberg-Acton (1843-1902), mais conhecido como Lord Acton, é o pensador que sempre é usado como referência quando se trata de corrupção. Geralmente utilizada em situações como a atual crise política brasileira, a sua frase “O poder tem a tendência a se corromper e o absoluto poder a se corromper absolutamente” resume seu pensamento de que todo o poder deve ser limitado. Mesmo se tratando de um liberal católico, Lord Acton fez profundas críticas à Igreja Romana e aos papas. Condenou o abuso de poder da Igreja e de suas principais autoridades, que acabavam muitas vezes justificando suas más-ações utilizando como “argumento” somente a autoridade sob a qual estavam investidos. Essa indissociável ligação entre poder e corrupção levou Acton a combater todas as formas de concentração de poder, seja na Igreja ou no Estado. O mito platônico e o pensamento de Lord Acton podem indicar dois caminhos, ainda que incipientes, para uma redução da lama que vemos hoje na política brasileira. Primeiro, para começar a combater a corrupção, não é saudável permitir anéis mágicos nos dedos de políticos – é preciso garantir uma maior transparência, uma visibilidade, em todos os procedimentos políticoadministrativos do País, assegurando punições severas aos que forem pegos fraudando o erário. Em segundo lugar, deve-se limitar a ação da instituição que acumula mais poder – o Estado – sobre a economia e a vida privada dos brasileiros. • Continente novembro 2005

23


24

LITERATURA

Eneida Traduzido por Odorico Mendes, poema de Virgílio, calcado em Homero e tornado um épico latino, 20 séculos depois, tem edição primorosa Luiz Carlos Monteiro

O

poema épico virgiliano Eneida, na tradução do maranhense Manuel Odorico Mendes, aparece um século e meio depois da primeira edição, publicada por ele em Paris. Da colaboração entre a editora da Unicamp e o Ateliê Editorial resultou um trabalho impecável, tanto graficamente quanto em relação à configuração final do texto, acrescido de novas notas e de um glossário por Luiz Alberto Machado Cabral, além da apresentação de Antonio Medina Rodrigues. Esta tradução tem como principal característica, já observada pelos contemporâneos de Odorico Mendes, o sistema de inversões sintáticas realizadas no texto. A isto, pode ser acrescido um preciosismo de linguagem como efeito retórico corrente em muitos autores do século 19. Constata-se, entretanto, que tal efeito não diminui a agilidade e a precisão com que verteu o poema. Tudo fica mais difícil quando se observa que não há termos rígidos de comparação ou correspondência entre a métrica latina e Continente novembro 2005

a portuguesa, pois na primeira todas as sílabas contam na concepção dos hexâmetros, enquanto que na segunda a última sílaba é, freqüentemente, muda. A saga de Enéias, que sobrevive a Tróia incendiada, fugindo com seus navios e guerreiros pelo Mediterrâneo, levando o pai Anquises e o filho Ascânio para fundar a nova terra romana, é narrada em 12 cantos. A época de escrita da Eneida situa-se no intervalo entre 29 e 19 a.C., durante o reinado de César Augusto, que promoveu a paz romana depois do assassinato de Júlio César. Natural de Andes, lugar próximo a Mântua, Públio Virgílio Maro (70-19 a.C.) teve como protetores o imperador Augusto e Mecenas, que deram condições para que ele estudasse e vivesse sem trabalhar enquanto elaborava seus versos. Torna-se um poeta da corte, passando a seguir em sua poesia algumas sugestões destes poderosos seus amigos. Anteriormente à Eneida, Virgílio escrevera duas outras obras que passaram à posteridade como reconhecidamente suas, as Bucólicas e as Geórgicas. As Bucó-


LITERATURA

licas, com 10 poemas escritos na terra natal mostra-se demasiado incisiva, fazendo o do poeta retratam a vida pastoril e as dispupercurso do amor até a morte, em nome de tas entre pastores na arte de improvisar verum dever e de uma piedade que eram os sos, tendo como influência geral o poeta sentimentos mais fortes do guerreiro troiano, grego Teócrito, tido como inventor do gêinterlocutor de Júpiter junto aos homens. nero. Nos quatro livros das Geórgicas, são O texto virgiliano inverte a ordem dos encontradas orientações para a agricultura, poemas de Homero: a primeira parte (seis incluindo um calendário de plantio e colheiprimeiros livros) mantém similaridades ta para os camponeses, sinais para a idencom a Odisséia, onde o herói volta para casa tificação do tempo, segredos do cultivo das (que será futuramente a Itália), saindo de árvores, da criação de gado e da apicultura. Tróia, passando por Creta e pela Sicília e Um momento marcante do lirismo chegando a Cartago; a segunda, liga-se divirgiliano na Eneida mostra-se como o enretamente à Ilíada, com a narração de nucontro entre Enéias e Dido, rainha também Eneida, Virgílio, Ateliê Editorial/Editora merosas mortes, aventuras e sofrimentos exilada e que estava a construir Cartago. Unicamp, 315 páginas, R$ 69,00. causados pela guerra. No canto XII, Dido se apaixona pelo príncipe troiano, o Enéias pretende poupar a vida de Turno, que terminará tragicamente, pois o obstinado Enéias sacrifica rei dos rútulos e seu maior desafeto, mas quando vê os tudo à idéia da fundação de Roma. O livro IV relata o despojos de Palante, troiano ainda jovem a quem seu inimiepisódio do suicídio e das lamentações da rainha, o seu diá- go matara, não hesita em executar sua vingança: “No peito logo fúnebre, pungente e dilacerado com a irmã Ana: “Já aqui lhe esconde o iroso ferro:/ Gelo solve-lhe os órgãos, e traspassada, em veias cria a chaga,/ E se fina a rainha em cego num gemido/ A alma indignada se afundou nas sombras”. fogo./ O alto valor do herói, sua alta origem/ Revolve; estam- Nestes versos finais, Enéias cumpre a sua missão e sela o seu pou n’alma o gesto e as falas;/ Do cuidado não dorme, não destino. sossega./ A alva espanca do pólo a noite lenta,/ Lustrando o Do ponto de vista expressivo, percebe-se que Virgílio mundo a lâmpada febéia;/ Louca à irmã confidente então se inaugurou, há 20 séculos, o processo poético da imitação, explica:/ ‘Suspensa que visões, Ana, me aterram?/ Que hós- quando se apropriou dos temas e do verso heróico, simétrico pede novo aporta às nossas plagas?/ Quão gentil parecer! que e cesurado de Homero. Com o passar do tempo, a Eneida vai ações! que esforço!/ Creio, nem creio em vão, provém dos se transformando na epopéia do povo latino e a genialidade deuses./ Temor vileza argúi. Dos favirgiliana vai também sendo dos jogo,/ Ai! que exaustas batalhas reconhecida. Ele introduziu no decantava!’”. Mais à frente, Dido poema, em meio às solicitações pragueja contra a paixão em que acrede Mecenas e Augusto, a sua ditou, contra o destino e o desvenverve e criatividade, fazendo turado Enéias, agora visto em distanprevalecer o seu modo de ciamento e blasfêmia: "Mas engulaescrever pessoal, embora não me o abismo, antes me arroje/ Do desse o texto por acabado quanOnipotente um raio às sombras do já estava próximo da morte. fundas,/ Pálidas sombras do enoitado O mérito inestimável de seus inferno,/ Que eu te viole, ó Pudor, e as protetores foi não ter deixado leis te infrinja:/ Quem a si conjuntouque os versos da Eneida fossem me e a flor colheu-me,/ Consigo destruídos, como recomendado minha fé sepulto guarde”. A perda pelo poeta. • Continente novembro 2005

25


LITERATURA

Lucila Wroblewski/Divulgação

26

A

Cinzas da vida Novo romance de Milton Hatoum inter-relaciona vida e arte numa só compulsão e atividade passional, tendo como resultante a inevitabilidade da morte

Continente novembro 2005

motivação central de Cinzas do Norte, terceiro livro do escritor amazonense Milton Hatoum, é o velho e às vezes não tão saudável choque de gerações. Tal conflito, como no caso desta obra, pode vir acompanhado de uma tragicidade que leva à morte e à decadência os personagens principais. Ele serve também como pano de fundo para que se aflorem outras nuances da vida social e individual da região amazônica a partir dos anos 50 do século passado e chegando até os anos 80, expondo além de costumes gerais, uma paisagem de rios, lagos e igarapés e uma tipologia humana de nativos e imigrantes, índios e estrangeiros. Uma ênfase significativa é dada, do ponto de vista da história recente, à década de 60, com a presença dos militares na política local e nacional, sugerindo coisas como nacionalismo, repressão e medo, de um lado, e de outro revolta, resistência e luta. O romance está repleto de personagens “redondas”, que provocam surpresa a cada página, sendo a mais forte delas Mundo, adolescente rebelde que tem inclinações para a pintura e não abre mão disso em nenhuma hipótese. O seu pai Jano, ao querer enquadrá-lo em um modo de vida pequeno-burguês e conformista, sofre decepções e derrotas diárias. Filho de um imigrante português, Jano continua os negócios do pai, um representante do empresariado provinciano. Ambos logram enriquecer com a exportação de juta e castanha, tendo indiretamente o apoio e a ajuda da caserna. A mãe Alícia, viciada em álcool e baralho, forma um triângulo amoroso com aquele que reivindica a paternidade de Mundo, Ranulfo. Sujeito boêmio, sem casa e profissão definida, Ranulfo é responsável pelo segundo tipo de narrativa, o monólogo interior grafado em itálico, onde fala de seu amor malogrado por Alícia e pelo suposto filho. Na posição de conciliador do embate entre Jano e Mundo, encontra-se Lavo, o grande amigo de infância e adolescência do pintor, que envereda pelo estudo do direito e faz-se guardião de alguns desenhos feitos por ele. E, como personagem “plana”, porém importante, a costureira Ramira, irmã de Ranulfo, que percebe tudo ao seu redor com senso crítico, embora se esconda numa linearidade inquietante e que trará menos novidades ao relato do que se espera. A primeira e principal forma de narrativa efetiva-se em tipos normais e é composta de 20 capítulos, onde os diálogos apresentam-se entre aspas, dispensando os travessões. Na abertura do livro, que se vincula diametralmente ao último capítulo, Lavo refere-se aos instantes finais da vida de Mundo, expondo as razões


LITERATURA

e os motivos de sua batalha artística e humana: “Talvez tenha morrido naquela madrugada, mas eu não quis saber a data nem a hora: detalhes que não interessam. Uns 20 anos depois, a história de Mundo me vem à memória com a força de um fogo escondido pela infância e pela juventude. Ainda guardo seu caderno com desenhos e anotações, e os esboços de várias obras inacabadas, feitos no Brasil e na Europa, na vida à deriva a que se lançou sem medo, como se quisesse se rasgar por dentro e repetisse a cada minuto a frase que enviou para mim num cartão-postal de Londres: ‘Ou a obediência estúpida, ou a revolta’”. Esta frase resume toda a propensão de Mundo para a pintura, seu amor à vida Cinzas do Norte, Milton Hatoum, Companhia das e sua luta por um mundo melhor, seu investimento na radi- Letras, 312 pág., R$ 39,00. calização do próprio destino ao ensejar o embate com o pai que o criou e ao recusar a missão de herdeiro dos Mattoso. Apenas no capítulo 20 é que Mundo descobre quem é seu pai realmente: Arana, pintor mercenário e vulgar a quem esteve ligado por laços artísticos e de amizade, que defendia “uma arte amazônica autêntica e pura”. Na carta de Brixton, datada de outubro de 1977, no capítulo 16, Mundo explicita o seu cotidiano em Londres, após ter passado por Berlim e França. Mostra a sua condição de “biscateiro”, sempre à procura de maneiras de sobreviver, seja desenhando pessoas ou trabalhando de ajudante num caminhão de entrega. Fala também sobre a doença que o consome, que vai tirando suas forças e alijando a vontade de deixar um testemunho escrito. A obra definitiva em artes plásticas ainda é executada como um acerto de contas com Jano, com a descrição de todo o processo criador – que se transforma em processo destruidor da imagem e da lembrança deste pai “ilegítimo” pelo próprio artista: “Em Londres me concentrei nos sete quadros-objetos, era um modo de me libertar. A imagem de Jano não ficou isolada na minha cabeça, era o processo que interessava, a vida pensada, a vida vivida, dilacerada. (...) Passei semanas no sobrado da Villa Road, sem sair, pintando dia e noite, destruindo e pintando outra vez, tentando encontrar a imagem em seu instante de plenitude. Não sei quanta coisa veio do acaso, quanta coisa veio dos estudos e esboços, esse difícil equilíbrio entre o acaso e a intenção. O que sei é que trabalhei de maneira exasperada, alucinada às vezes, às vezes rindo da minha própria desgraça. Formas mais ou menos figurativas, decompondo o retrato da família, até chegar à roupa e aos dejetos de Jano”. É difícil deixar de reconhecer que Cinzas do Norte assume aspectos mais culturais e literários que propriamente políticos. Vida e arte se confundem e interrelacionam numa só compulsão e atividade passional, tendo como resultante a inevitabilidade da morte, que não mais comove ou intimida, porque sempre presente desde os passos iniciais dos personagens. (Luiz Carlos Monteiro) • Continente novembro 2005

27


28

PROSA

O show de Wando no Recife Cícero Belmar

D

á pra fazer um filme: quem olha, vê logo, aquela mulher é o satanás de rabo. Era mulher séria. Mas, não deu importância ao nome nem à casa que tinha. Hoje, taí, com as sobrancelhas fininhas, usando baton e essa roupa dizendo “mamãe, quero ser quenga”. Mulher direita não veste cotton. Está uma desgraça. Com cabelo solto, pintado. Quem disse que mulher séria pinta os cabelos? Mulher que pinta, pra mim, perdeu o valor. A tinta no cabelo pode enganar qualquer homem, menos a Deus, que vê tudo. Com licença da palavra, aquilo não presta. E olha que ela foi criada no Evangelho. Quando eu conheci esta desgraçada, ela era uma santa. De uma santa, não se tem o que falar. Eu mesmo, por mais revolta que guarde no coração, não tenho o que falar dessa época de santa. Era uma pessoa direita. Lá em Sítio dos Pintos, bairro onde a gente nasceu e cresceu, ela era uma santa. A gente se conheceu indo

Continente novembro 2005


PROSA

para a igreja evangélica. A gente fazia parte do mesmo grupo. Onde um estava, podia ir ver. O outro também estava. Já rapazinho e mocinha, a gente começou o namoro. E começou a minha desgraça. Hoje eu sou um viciado em álcool. Depois de uns três ou quatro anos de namoro, noivamos. Ao passar do tempo, ela chegou pra mim, chorando. Dizendo que tinha pena porque eu trabalhava muito. Eu sempre fui muito esforçado. Trabalhava na Ceasa, fazendo entrega de frutas e verduras. Eu me acordava na madrugada para ir trabalhar. Três horas da manhã, já estava de pé. Alugava um carro velho, pegava as frutas, verduras e levava para uns fregueses que eu tinha em hotéis e lanchonetes do centro do Recife. Vendia bem. Deixava um lucro bom. Com o trocadinho que fui ganhando, comecei a construir nossa casa. Ela, minha noiva, não trabalhava. Aí foi da vez que ela chegou chorando. Chorava e dizia que queria me ajudar. Via o meu esforço e queria me ajudar na casa. Eu disse: não, mulher minha não pega no pesado não. Sim, porque meu trabalho era pesado. Ela disse: não estou querendo pegar no pesado. Só ajudar. Tem quem entenda mulher? Olhei pra ela e perguntei: quer me ajudar como? Primeiro pare de chorar. Nesse dia eu estava preocupado com a casa. Cadê dinheiro? O terreno da casa era muito grande, de 27 metros quadrados. Era ou não era grande? Para se ter uma idéia, esse terreno era quase todo de construção. Eu só deixei livre mesmo quatro metros do terreno, na frente da casa. É tanto que aquele povinho de Sítio dos Pintos passava e ficava com mangação: Isso aí vai ser o quê? Uma escola? De inveja. A casa era de dois quartos, duas salas, dois banheiros e uma cozinha. Gastei 14 milheiros de tijolos. Não cheguei nem a terminar. Estava fazendo por etapa. Eu iria dar uma casa deste tamanho, amor e um nome àquela mulher. E ela fez o que fez comigo. Chorando, ela chegou e continuou, só para o negócio ficar parecendo com novela. E, soluçando, disse que a forma que tinha para me ajudar era tendo uma profissão. E me pediu para que eu pagasse um curso de enfermagem para ela. Que negoção! Eu ainda pensei: ela diz que quer me ajudar, mas na verdade está querendo é me dar mais uma despesa. Gastava tudo o que eu ganhava nesta casa. Parecia que a danada lia os meus pensamentos. Aí foi que chorou mesmo, pois eu ouvia sua resenha calado. Ela disse que o curso era um investimento: a gente vai ou não vai casar? E o casamento é ou não uma coisa de futuro? No futuro, ela disse, iria me ajudar. Na qualidade de enfermeira, me ajudaria. Aquilo estava certo. E se não estava, as lágrimas convenciam. Então eu lhe perguntei: e a ajuda que você vai me dar agora, qual é? Ela me respondeu: vou lhe ajudar, mas não é agora. É no futuro. Foi aí que eu concordei: ah, entendi. Esse curso era especial, no Colégio Soares Dutra. Eu vi, naquela hora, assim: o que eu ganhava, muito ou pouco, era para nós dois. Resolvi fazer mais um sacrifício. Chore não, meu amorzinho, chore não que eu pago o seu curso. Menino! Na mesma hora as lágrimas dela secaram. Eu fiquei incrível com aquilo. Secaram. E a partir dali, muitas vezes quem chorou fui eu, sem dinheiro pra fazer mais nada. O que eu tinha era para pagar o curso ou comprar cimento. Tive que arranjar logo a primeira parcela. Ela não podia perder a inscrição. E todo fim de mês, o dinheiro da mensalidade. Sem o dinheiro das mensalidades, ela não fazia as provas no Soares Dutra. E a gente só podia se casar quando ela se formasse. Até emprestado eu peguei. Foi uma tristeza. Um ano e meio de sofrimento. Mas paguei o curso todinho. Terminou ela se formando e a gente se casando. Uma parte da casa estava construída. A gente já não ia morar de aluguel. O casamento, a festa, foi um show. Fiquei devendo até o fundo das calças. Pra festa, comprei tudo fiado. Continente novembro 2005

29


30

PROSA

Cadê dinheiro? Fiquei sujo na Ceasa e na Serasa. Mas, ela queria uma festa na igreja do Sítio dos Pintos. Fiz como ela quis. Já minha mulher, consegui um estágio pra ela no Hospital de Fraturas. Ela, muito falante e simpática, se encaixou. Terminou o estágio, foi contratada. Eu pensando: já vai ser um dinheirinho entrando. Veio o primeiro mês, nada. Veio o segundo, nada. Veio o terceiro, nada. Eu cobrei. Ela disse: o que eu ganho é muito pouco. Só dá para comprar minhas coisinhas. Um desodorante, uma calcinha, calcinha discreta, a cor dela era bege, um absorvente, um batom, essas coisas de mulher. Eu pensei: e é? Ela trabalhava, chegava em casa, e ainda ia para a igreja de noite. Com a Bíblia debaixo do braço. Foram muitas noites assim. Certa vez, um irmão da igreja me procurou. Eu estava em casa vendo a novela Mulheres Apaixonadas. O irmão perguntou: irmão, se você visse a mulher de um amigo traindo ele, o que você faria? Eu respondi: cada cabeça é um mundo. Sangue de Cristo tem poder. Esse irmão tinha uma moto. Outra noite ele voltou. Todo se tremendo e pálido. Eu vendo a novela, abestalhado com as Mulheres Apaixonadas. Ele disse: sua mulher está botando gaia em tu. Eu fiquei doido: como é, rapaz? Ele: vim lhe buscar pra lhe mostrar. Eu fiquei sem saber o que fazer. Se ia, se ficava, se corria doido, se gritava. Quem é corno, sabe o que eu passei. Subi na moto, com ele, em nome de Jesus. Fomos na Praça de Casa Forte. O irmão tinha visto ela com um motoqueiro, lá na praça. Mas, quando chegamos lá, ela não estava mais. Respirei, aliviado. Se ela não estava lá, não tinha prova das gaias. Era só eu voltar pra casa. Com certeza minha esposa já estaria lá. Tudo não iria passar de um mal-entendido. Iria ficar chato para o irmão, embora eu soubesse que ele jamais iria sair de casa para vir na minha só para arruinar meu casamento. Em casa ela não estava. Dez da noite. Até minhas orelhas queimavam. Vai ver que já eram as gaias ardendo. O irmão deu boa-noite, foi embora. Quando me achei só, fui para um canto, para o outro. Liguei a televisão, mas não entendia nada do que a televisão estava dizendo. Saí de casa e resolvi dar uma passada nas igrejas evangélicas da redondeza, todas fechadas. Falar a verdade, ainda tinha esperança de encontrar ela numa igreja, numa reunião. Quando desenganei, voltei pra casa. Já era quase meia-noite. Eu cheguei na rua e por coincidência parou um ônibus, o bacurau, do outro lado. Era Sítio dos Pintos/Conde da Boa Vista. Ela desceu, toda desconfiada. Com a Bíblia debaixo do braço, conforme eu já mencionei. Ela foi logo me perguntando: você aqui, o que aconteceu lá em casa? Aquele seu jeito, de sonsa, foi quem me cozinhou o juízo. Ela me abraçou e fomos andando até em casa. Como se não tivesse acontecido nada. Eu calado. De ódio. E fazendo de conta. Continente novembro 2005


PROSA

Em casa, eu disse: me conte a verdade ou eu lhe dou uma surra. Mas vai ser uma surra tão danada, que quando você se lembrar da surra, vai precisar ser socorrida. Ela disse: eu estava na Igreja de Apipucos. Eu gritei: mentirosa! Ela se mijou de medo. Eu chamei ela de cachorra, de traíra. Ela perguntou: tá pensando que transei com algum macho? Quer me levar para o IML para fazer exame? Eu respondi: não, deixe pra você ir no IML quando morrer. Quando eu vi que ela não ia me contar, fui num bar, um boteco safado, que tinha na esquina, bebi pela primeira vez. Aquela música de Wando estava o maior sucesso: você é luz, é raio, estrela e luar. A música tocou umas 10 vezes na radiola de ficha. E quando voltei pra casa, já de madrugada, eu sabia a música de trás pra frente. Ela estava chorando e me disse: tudo bem, vou lhe contar a verdade. E falou do motoqueiro. Do motoqueiro, não. Da motoqueira. Era mulher. Eu: você está mentindo! E ela: era motoqueira mesmo, é porque ela ter jeito de homem. Mas é mulher! Trabalhava no hospital. A motoqueira, todo dia, no final do expediente, lhe dava carona até a Praça de Casa Forte. E naquela noite, quando ela desceu da moto, a motoqueira disse: ganhei dois ingressos para o show de Wando, no Teatro Guararapes. Minha irmã não quer ir. Pode ser um pra mim, outro pra você. Como é, vai ou não vai? As duas foram. Minha mulher disse que foi um show, foi diferente. As mulheres jogando calcinhas, enlouquecidas por Wando. Eu quis saber: você jogou a sua?! Ela levantou a saia e mostrou: eu não joguei a minha não, tá vendo? Eu sou fiel a você. Era uma calcinha nova, vermelha. Ela nunca usou uma calcinha vermelha. Eu nunca tinha visto aquela calcinha. Eu fiquei meio nervoso: calcinha vermelha? Mulher séria vestindo calcinha vermelha? E de renda ainda mais. Aquela calcinha ela arranjou onde? No show? Ela disse: não, eu peguei emprestada da minha amiga. Não entendi mais nada. O quadro seguinte foi quem me fez separar dela: Ela tirou a calcinha bem devagar. E eu olhando. Enrolou na mão, cheirou e jogou pra mim, com olhar de eterno gozo. Jogou na minha cara. E ainda se atreveu a dizer: eu não joguei essa pra Wando, mas jogo pra você, meu macho. Olha o palavreado da mulher. Ela nunca me chamou de macho! Na fantasia dela, estava jogando pra mim ou pra Wando? E cadê a verdadeira calcinha dela? Se a vermelha era da amiga, deixou a bege onde? E que intimidade dos diabos era essa de pegar calcinha da amiga emprestada? Eu tinha outra alternativa? Se eu não mandasse ela ir embora iam me chamar de corno ateu. E se tem uma coisa que não sou é ateu. Sou crente. Mandar ela ir embora doeu, mas eu sou homem e suporto dor no peito. Homem é bicho que sofre. Homem sofre muito. •

Cícero Belmar é jornalista e escritor, autor do romance Umbilina e Sua Grande Rival, entre outros, e as peças infantis A Flor e o Sol e A Floresta Encantada.

Continente novembro 2005

31


32

AGENDA/LIVROS

RESENHAS Crônica do cosmos Colaborador permanente desta revista, o jornalista e mestre em Filosofia Fábio Lucas, 35 anos, tem se notabilizado pela profundidade com que aborda os temas. Ao lançar na Bienal do Livro de Pernambuco, mês passado, a compilação de suas crônicas em livro, ele reafirma de modo nítido aquela característica. O poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant'Anna afirma que a obra “já é uma releitura, porque retoma fatos e personagens que já conhecemos, mas vistos em suas dobras e nuances exibindo a correlação da parte com o todo, do homem com esse estonteante cosmos onde estamos”. E isso num estilo leve. Quaoar, Fábio Lucas, ed. do autor, 157 páginas, R$ 20,00.

Passado x presente Dois livros de Décio Freitas, lançados simultaneamente, ratificam sua visão de História “O passado é produto do presente, e não o contrário, como se alega”. A frase do historiador gaúcho Décio Freitas bem reflete seu posicionamento frente à historiografia, ressaltando o viés ideológico presente em toda reconstituição dos fatos. Fiel à sua percepção, dedicou-se com afinco à história dos excluídos, produzindo notáveis trabalhos, especialmente sobre a “República dos Palmares”. Décio deixou em Alagoas um acervo de documentos de grande importância sobre a rebelião negra de sete décadas no século 17, agora publicados pela Ufal, com pequenas e elucidativas notas esclarecedoras do autor. Essas fontes primárias revelam aspectos diversos do episódio, como o contrato entre a Coroa e o bandeirante Domingos Jorge Velho, descrito por um bispo pernambucano como “um dos maiores selvagens com quem tenho topado”; as divergências entre os palmarinos a propósito de propostas de paz; o regime comunista de produção e a adoção da poliandria entre os negros pela escassez de mulheres. Os documentos são todos dos “vencedores”, mas trazem revelações como a comunicação pelo governador Caetano de Melo de Castro das circunstâncias da morte de Zumbi que “pelejara valorosa ou desesperadamente”. Ao mesmo tempo, a editora Record lança livro de Décio sobre a Revolução dos Cabanos, no Pará do século 19, a partir da participação do francês Jean-Jacques Berthier, reconstruída pela tradução de antigos documentos escritos em bretão, cedidos por descendentes do feroz revolucionário francês. As duas obras, mais que uma homenagem ao historiador morto em março do ano passado, são valiosas contribuições para a permanente reescritura da História, como ele a entendia. República de Palmares, Décio Freitas, Editora da Ufal, 72 páginas, R$ 35,00, e A Miserável Revolução das Classes Infames, Décio Freitas, Record, 242 páginas, R$ 29,90. Continente novembro 2005

Realidade e delírio Dyonélio Machado (RS, 1895-1985) é um caso singular na Literatura brasileira. Filiado ao Partido Comunista, jamais aderiu ao “realismo socialista”. Desolação, lançado em 1944 e agora relançado, é um romance longe de panfletarismos, de apurada construção estética, onde um homem comum exerce uma memória ruminativa em que não se distingue delírio persecutório e realidade. A narrativa áspera, tortuosa, reproduz o mundo como labirinto e o tempo como opressão, fazendo de Maneco Manivela um Raskolnikoff que não matara. Desolação, Dyonélio Machado, Planeta, 320 páginas, R$ 29,90.

Crítica ao mestre O crítico e filósofo húngaro Georg Lukács esteve na moda entre a intelectualidade brasileira em fins dos anos 60. Depois, caiu num ostracismo, como ocorre ciclicamente por aqui. Agora, Carlos Nelson Coutinho traz o velho marxista à cena, numa espécie de homenagem crítica. Coutinho procede a um revisionismo não isento de carinho ao analisar a incompreensão de Lukács à obra de dois dos maiores escritores do século 20, Franz Kafka e Marcel Proust, realizando o que classificou de “desafio de compreender à luz de Lukács dois autores que o próprio Lukács não compreendeu adequadamente”. Lukács, Proust e Kafka, Carlos Nelson Coutinho, Civilização Brasileira, 256 páginas, R$ 33,90.

Amor e erotismo

A russa Lou Andréas-Salomé (1861-1937) fez furor em seu tempo. Intelectual brilhante, libertária e anticonvencional, arrasava os corações de homens que a conheceram. Homens como o poeta Rainer Maria Rilke e o filósofo Friedrich Nietzsche. Há indícios de que o próprio Freud, seu mestre em Psicanálise, não estava imune aos seus encantos. (Veja biografia por Luzilá Gonçalves). Lou deixou romances e ensaios, como este agora lançado pela Landy, em que aborda psicanaliticamente, com estilo confuso, mas de forma original, temas eternos e espinhosos como o problema do amor e o erotismo. Reflexões sobre o Problema do Amor e o Erotismo, Lou Andréas-Salomé, Landy, 127 páginas, R$ 30,00.


RESENHAS Morte de um gênio Fisicamente era pálido, tinha o cabelo descorado, nariz fino e adunco sobre uma boca contraída, olhos como os de um coelho, sem pestanas. Como personalidade, era conservador, vestia-se como um dândi e, no fundo, era infantil e inseguro. Alguma semelhança com o perfil romântico do compositor Frédéric Chopin? Mas é esta a imagem que Benita Eisler traça do grande compositor polonês no excelente O Funeral de Chopin. O livro conta sua rápida e brilhante trajetória (39 anos, apenas) e sua passagem de astro dos salões parisienses para o abandono, a miséria e a morte. O Funeral de Chopin, Benita Eisler, Edit. Planeta, 264 páginas, R$ 37,50.

Ficção envolvente Admaldo Matos de Assis, em Astúcias da Imaginação, seu terceiro livro de contos, confirma sua vocação de ficcionista. Com um estilo claro, elabora narrativas que seguram o leitor , seja pela apresentação de uma situação memorável, seja pelo desenvolvimento paulatino de um clima envolvente. Os personagens são desenhados com ponta fina, não só nos traços físicos como psicológicos. Nem os cenários nem os personagens secundários escapam da descrição detalhada, o que cria uma ambiência verossímil para os acontecimentos narrados em destaque. Astúcias da Imaginação, Admaldo Matos de Assis, Edições Bagaço, 256 páginas, R$ 25,00.

Imagens insólitas Ficcionista consagrado – recebeu o Prêmio Casa de Las Américas pelo romance O Morto Solidário –, Ronaldo Costa Fernandes volta à poesia neste Eterno Passageiro, título em que, como bem assinala Antonio Carlos Secchin no prefácio, cada um dos dois termos pode ser lido como substantivo ou adjetivo do outro, e ambos como adjetivos simultâneos de um substantivo elíptico. A criatividade do autor, já evidente neste título rico de significados, se reafirma em imagens insólitas como “Odeio as geladeiras/ que conservam corpos esquartejados”.

AGENDA/LIVROS

Versos que contam Versos geralmente cantam, mas existe um tipo de poesia em que também contam; é o que explica Braulio Tavares Durante a V Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, ocorrida no mês passado, Affonso Romano de Sant'Anna deu uma palestra sob o título “Poesia: para que serve?” Com o brilho que lhe é característico, o poeta, ensaísta e cronista mineiro deu inúmeros exemplos das serventias da poesia: desde a preservação de uma cultura, como em Homero, até a conservação dos empregos de centenas de pessoas que gravitam em torno da indústria Shakespeare, não só na cidade onde o bardo inglês nasceu como em diversas partes do mundo. Em Contando Histórias em Versos, o cordelista, escritor, ensaísta, cronista e compositor paraibano Braulio Tavares examina um aspecto, não muito falado hoje em dia, desta manifestação cultural tão importante como é a poesia: o poema narrativo, que conta uma história. E examina justamente quais os recursos técnicos que os poetas utilizam para induzir o leitor (ou o ouvinte) do poema a se envolver e se emocionar com o texto. Ele mostra a falácia de se pensar que basta estar emocionado para escrever um poema. Sem o uso de técnicas, esta experiência está fadada a gerar “uma mistura de desordem e de lugares-comuns”. Adaptação de ofici nas literárias ministradas pelo autor em São Paulo, é livro que interessa a poetas, aspirantes de poetas e todos aqueles que amam a poesia. (Marco Polo) Contando Histórias em Verso, Braulio Tavares, Editora 34, 60 páginas, R$ 27,00.

Clareando a arte

Obra de estréia do jornalista português Pedro Rosa Mendes narra a sua travessia, por terra, pela África meridional devastada pela guerra civil, miséria e fome. Um relato realista, feito em primeira pessoa, onde se misturam personagens reais com histórias fictícias, heróis anônimos, habitantes dos limites da vida com passagens de horror, como a do menino que joga bola com cabeças humanas e a do homem que faz cortes e curativos na vaca, de forma a poder ter bife sem matar a carcaça. Um livro “feito pelo simples prazer de ouvir e contar histórias”, segundo o autor. (Luiz Arrais)

A arte contemporânea, por recusar técnicas e suportes tradicionais além de se fundamentar em projetos e conceitos, freqüentemente precisa de uma explicação crítica que facilite sua aproximação com o público. Mas, sendo justamente uma arte que recusa os campos já explorados e tenta abrir caminhos em direções não percorridas, criando novos estatutos de apreciação estética, como poderá ser “criticada”, “julgada” ou “explicada”? Em Razões da Crítica, Luiz Camillo Osório explica que “Há que se julgar justamente porque não temos mais nenhuma certeza ‘a priori’ sobre como uma arte cria sentido. Julgamos em nome do dissenso, e não do consenso. Julgar implica diferenciar, produzir diferenças”. Livro que dá início à coleção Arte+, dirigida por Glória Ferreira, que reúne críticos, artistas e historiadores para pensar a prática da arte e sua recepção. Junto com o primeiro já estão sendo lançados os volumes Local/Global: Arte em Trânsito, de Moacir dos Anjos e O Legado dos Anos 60 e 70, da crítica Ligia Canongia.

Baía dos Tigres, Pedro Rosa Borges, Sá Editora, 400 páginas, R$ 39,00.

Razões da Crítica, Luiz Camillo Osório, Jorge Zahar, 70 págs, R$ 19,50.

Eterno Passageiro, Ronaldo Costa Fernandes, Varanda Comunicação e Edições, 127 páginas, R$ 15,00.

Mapa da Àfrica minada

Continente novembro 2005

33


34

MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Atrás de outra Dalila "Já que esses mistérios me ultrapassam, finjamos tê-los organizado." Cocteau (1889-1963)

V

ocês sabem o que é dalila? Não estou falando na personagem bíblica, que desposou Sansão, um hebreu mais forte do que Schwarzenegger, e num dia escabroso o capou, ó filistéia, enquanto dormia. Quando garoto, meu pai falou-me várias vezes dos tempos dos saraus, em que as pessoas declamavam poemas “ao som da dalila”, mas não me lembro se lhe perguntei o significado, apenas que me ficou na memória um significado único: dalila era um tipo de acompanhamento musical. Mas, de onde viera, quem fora seu autor? Perguntas como essas eu nunca encontrei resposta para elas em dicionários e enciclopédias famosos e em todos os outros que encontrei na Biblioteca do Estado. Comecei por dois muito bons, Webster’s e o Larousse Cultural e terminei desistindo. Creio que dalila, na acepção de acompanhamento, não consta de nenhum verbete, por se tratar de uma moda de salão, que sumiu com o fim dos recitais. Em letra impressa encontrei quase nada. Numa edição da revista recifense A Pilhéria, de 1931, o escritor Limeyra

Continente novembro 2005

Tejo publica um trecho de reportagem, onde diz: “(...) Ia recitar um soneto de sua “larva” (sic), Ingrata. A voz do bacharel sincroniza com uma dalila arranjada numa viola”. Uma vez consultei o historiador Nilo Pereira, que já tinha seus 70 anos naquela época, e ele me disse que nunca ouvira falar em dalila. Ele era do Rio Grande do Norte: será que era só praticada em Pernambuco? Algo que guarda certa relação com a palavra, mas de modo bastante individualizado, encontrei no Dicionário Musical Brasileiro de autoria de Mário de Andrade, “o maior crítico de música do Brasil”, segundo o mestre Sebastião Vila Nova. Vamos ao verbete escrito pelo poeta de 22: “Dalila – trecho orquestral que acompanhava o monólogo ‘Cerração no Mar’, declamado nos intervalos dos bailes pastoris, na Bahia de outr’ora”. Enquanto na Bahia a dalila era acompanhamento de um determinado monólogo, isso não acontecia em Pernambuco. Liguei para o grande sonetista brasileiro, Waldemar Lopes, hoje com 96 anos de lucidez, ele disse que


MARCO ZERO

assistiu a muitos recitativos ao som da dalila. Lembrase de que era uma música que podia ser tocada por qualquer instrumento e era sempre ela mesma, não importando o tipo de poema e seu conteúdo. Disse que também testemunhou recitativos cuja dalila vinha de um disco do gramofone e sugeriu que consultasse o acervo discográfico do Jornal do Commercio. Fui lá, e me disseram que todo o acervo tinha sido doado à Fundação Municipal de Cultura, aí desisti por completo, porque conheço o serviço público. Nos começos do século 20, o classicismo nas artes predominava nas elites, resquícios da aristocracia que teimava a permanecer nos espíritos. O meu amigo Urariano Mota, para ajudar-me, mandou-me pela internet umas pistas excelentes para a minha busca. Uma delas foi o sucesso no Brasil da ópera de Camille Saint-Saens, Sansão e Dalila. Um dos trechos instrumentais dela – é a hipótese – teria dado origem à dalila brasileira. A outra pista nada mais é do que a confirmação de que aquele acompanhamento musical era muito popular no Brasil. Trata-se de uma composição (polca) de José Maria de Abreu (Zequinha de Abreu) e Luis Peixoto. Eis a estrofe:

da dalila com os toques de viola dos violeiros-repentistas do Nordeste, engana-se, porque para cada gênero de cantoria há uma melodia própria, e não haveria uma dalila para cada espécie de poema (soneto, sextilha...). Não acredito que se trate de uma moda de salão existente, na época, apenas em Pernambuco e na Bahia, pois, se a hipótese da ópera é correta, ela deve ter ocorrido inicialmente no Rio de Janeiro, onde Sansão e Dalila estreou, em 1898. O Império caiu, mas os salões e suas modas continuaram por muito tempo. Depois de tantas circunvoluções em torno de um troço que já morreu, meus milhões de leitores devem estar impacientes, a perguntarem: E daí? E daí que o assunto vem despertando, há tempos, o meu interesse, porque trata de um tipo de difusão e recepção da poesia aliada à música. Poesia e música têm um gene comum: o ritmo, caso eu defina a poesia como linguagem simbólica que se expressa de modo não contínuo, rítmico e conotativo (este, aliás, já implícito no atributo simbólica). Tudo que se refere ao poema, sua estrutura, sua musicalidade e sua difusão, me interessam. Mesmo formas de tornar mais consumível aos leigos a poesia, como a dalila, que já morreu, me cha“Atenção acordes de Dalila mam a atenção. Seu Gil vai recitar A crônica deste mês tem, também, segundas intenFormam roda ções, que é envolver na conversa pessoas que saibam E o moço encalistrado mais coisas sobre a dalila do que eu. Podem escrever, Começa a gaguejar.” desancar esta crônica, contanto que coloque no lugar dela conhecimento histórico e o testemunho idôneo. Bem, parece que a contribuição de sua majestade, a Por hoje, basta de entupir os ouvidos dos leitores com a internet, ficou por aí. Para quem pensa numa identi dade filistéia Dalila. • Continente novembro 2005

35


Anúncio


Anúncio


38

COMPORTAMENTO

Debaixo do vestido A roupa íntima feminina é um símbolo que atravessa etapas da história, ora com a função de proteger o corpo ora como objeto erótico

Andres Otero/AE

Mariana Camarotti, de Buenos Aires


COMPORTAMENTO

39

Mariana Camarotti

O passar das décadas, séculos, conta sua história normalmente através dos livros, documentos, arquitetura e arte deixada pela humanidade. Mas há um outro código, mais escondido, menos convencional e nem sempre lembrado, que retrata com bastante fidelidade os valores e a cultura de cada época: a roupa íntima. Principalmente a feminina, que absorve e se molda ao que é considerado beleza no período em que é utilizado. Sob um olhar mais sociológico, o que está sob o vestido é também um símbolo que guarda (ou oferece) a mulher de acordo com o tipo de relação com o marido e sua representação na sociedade. A indumentária interior atravessa etapas da história, ora com a função de proteger o corpo, ora como objeto erótico. “As mudanças verificadas com o passar do tempo nas peças representam mudanças que vêm de dentro. Não apenas porque está perto do corpo, mas porque é o que há de mais íntimo e pessoal que uma pessoa possa vestir”, revela a professora de História da Arte da Universidade de Palermo, na Argentina, Diana Avellaneda. Especialista no assunto, ela é curadora de uma mostra bastante visitada em Buenos Aires e que agora percorre o interior do país, intitulada Debaixo do Vestido. É da região entre os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia do ano 2.900 a.C., que se têm as primeiras notícias de um protótipo de roupa íntima. Os relatos são escassos e não há uma definição exata de como eram as peças interiores dessa civilização. Já em Creta, ilha grega do Mar Mediterrâneo, em 1.600 a.C., se têm melhores registros. Cultuada pelos cretenses, a deusa da Fertilidade tem em sua imagem o primeiro espartilho da história, bem ajustado à cintura para dar uma idéia de maior quadril àquela que representava a procriação. “Não se sabe se as cretenses usavam os corsetes, mas os deuses sempre são a representação de sua sociedade. Então é bem provável que sim”, diz Avellaneda. O que se tem certeza é de que, para ter em si mesmas a imagem da deusa adorada, as cretenses usavam estruturas de armação para separar as saias do corpo e, assim, parecerem mais largas. Pela finura desproporcional da cintura dessas mulheres, acredita-se que elas usavam cinturões de metais desde pequenas. Os afrescos do Palácio de Nossos também denotam um grande gosto dessa sociedade

A estrutura de armação começou a ser usada pelas cretenses, no ano de 1.600 a.C.

Continente novembro 2005


COMPORTAMENTO

“As mudanças verificadas com o passar do tempo nas peças representam mudanças que vêm de dentro. Não apenas porque está perto do corpo, mas porque é o que há de mais íntimo e pessoal que uma pessoa possa vestir”

Reprodução

40

Kalasyris, espécie de vestido de linho usado durante a Antigüidade

com as cores – em especial o azul, o amarelo e a púrpura –, utilizadas nas vestimentas íntimas. No Egito, em 1.500 a.C., durante o Novo Império, tanto homens como mulheres usavam uma espécie de vestido de linho com pregas, chamado de kalasyris, debaixo do qual não usavam nada. A história assistiu ao auge e à queda de importantes civilizações antigas, como da egípcia, que absorveram conhecimento das decadentes e as substituíram no papel de domínio do mundo. Mas conservaram entre si o culto à beleza e a valorização da roupa que estava junto ao corpo, uma preocupação que se tornou cada vez maior com o passar do tempo na Antigüidade. Integrantes de uma civilização que valorizava a saúde, os esportes e o corpo atlético, as gregas, entre os séculos 12 e 1o a.C., cobriam o corpo apenas com uma túnica que chegava até os tornozelos, chamada de chitão. Preso por fivelas nos ombros e blusado por cintos, o chitão era rico em pregas e aberto em um dos lados, mostrando as coxas. O corte era insinuativo, pois as mulheres da Grécia não usavam nada mais por baixo. Apenas uma faixa, por aquelas que tinham grande volume de seios. A vestimenta cumpria uma função sensual, potencializando a beleza e a feminilidade. Com algumas variações, a indumentária grega foi adotada durante a Roma Republicana (século 1o a.C. ao século 4 da era cristã). Conhecida por strophium, a roupa tinha agora por baixo uma faixa que a ajustava desde a base do busto até a região dos quadris, moldando melhor Continente novembro 2005

o corpo feminino. O precário espartilho era utilizado para guardar dinheiro e outros bens da época. Um costume até hoje utilizado nas zonas rurais da Espanha. Da Idade Antiga para a Média, a mensagem oficial ao Ocidente era dada pela igreja Cristã, que desde o século 4 se contrapõe à sensualidade e valorização corporal. As túnicas com lascões são substituídos pelos camisões frouxos, que disfarçam as formas do corpo. Não eram tiradas nem para o banho nem durante as relações sexuais. Nas classes mais abastadas, essas peças têm a função de separar o corpo das roupas mais valiosas. Sinônimo de pecado, o corpo precisava ser tapado. O valor e a beleza da época estavam apenas na religiosidade e na espiritualidade. As mulheres em geral não usavam calções, apenas meias curtas, em alguns casos enfeitadas com pedras. É nesse período que surgem os cintos de castidade na Europa, para assegurar a fidelidade (pelo menos sexual) das mulheres durante a ausência dos maridos. O uso das calças pelas senhoras, até então condenado pela igreja, é visto pela transgressora e revolucionária


Mariana Camarotti

COMPORTAMENTO

Diana Avellaneda, curadora da mostra que percorre a Argentina

Joana D’Arc, que teve seu final em uma fogueira da Inquisição. As cores opacas e sem vida, utilizadas então, seguem a negação da beleza corporal. Já em Bizâncio, capital da Roma Oriental, contrapondo os costumes ocidentais, as mulheres costumavam usar tecidos ásperos e grossos, de cor ocre, adornados com bordados e detalhes luxuosos. Conta-se que a imperatriz Teodora, bailarina e atriz de origem humilde, mandou dois monges à China em busca de enfeites para serem costurados em suas prendas. Os adornos foram escondidos em caixas de bambu para poderem entrar na cidade. Os séculos avançam e chega o período do Renascimento. A calça como roupa íntima torna-se costume entre as damas e donzelas da nobreza e simboliza-se um objeto de luxo do período. Tamanho é o valor dessas peças que elas estão nos testamentos da época, assim como bicos, rendas, bordados e tecidos de seda utilizados também nas roupas interiores. A preocupação com a beleza deixa de ser apenas externa e passa a estar nos detalhes do que se vestia por baixo das saias e que não estava à mostra. Durante o século 16, uma estrutura de metal que alarga o quadril apenas nas laterais e de maneira exagerada é acrescentada às roupas íntimas. Bastante visto nas telas em que o espanhol Francisco de Goya retrata as senhoras e infantas da época, a estrutura simboliza o glamour das mulheres que formam o império espanhol. Debaixo do vestido estavam várias saias, até seis, em alguns casos, cada uma com sua beleza e enfeites. Capas e golas brancas franzidas acompa-

nhavam a vestimenta, dando um toque de riqueza e preocupação com a imagem feminina da época. O período seguinte, o Barroco, mantém a armação. Como em geral não havia nada por baixo na época, as senhoras e senhoritas tinham suas intimidades à mostra quando caíam do cavalo. Situação constrangedora, mas que, conta-se, divertia Luís XIV, que promovia tarde de cavalgadas em suas terras apenas para desfrutar dos lances femininos. Em sua segunda metade, os anos de 1600 passam a ser ricos em lingerie, com variações de algodão e linho, alguns bordados em fios de ouro, dependendo da posição social. Nos anos seguintes, os franceses dominavam os salões com seu estilo rococó, enquanto os ingleses navegavam pelos mares do mundo. A estrutura de armação cai em desuso e surge o panier – uma estrutura repartida em duas metades, também para armar o saiote, mas que dava mais comodidade às mulheres. Estão em moda também os decotes, com bustos apoiados pelos espartilhos, muito mais duros, justos e incômodos que os conhecidos hoje. O surgimento da companhia de modistas – Tecidos mais cômodos e de melhor qualidade passam a ser utilizados nas peças íntimas com a Revolução Industrial, porém apenas na aristocracia. A evolução permite uma maior aquisição de peças, o que faz com que as mulheres da alta sociedade troquem de roupa até oito vezes ao dia – vestido da manhã, da tarde, de visita, da noite, de baile, de etiqueta, de casa e roupa de dormir, que por sua vez tinha rendas e fitas. O entusiasmo pela cultura neoclássica, durante o início do século 19, toma as mulheres, que passam a mostrar uma silhueta simples e lânguida, com pouca roupa interior. No final dos anos de 1800, a roupa interior volta a ter glamour. As dançarinas de cancan escandalizam a época levantando seus saiotes e mostrando anáguas e calções. As senhoras, ditas direitas, passam a usar o polisón, uma estrutura de armação que deixa plana a parte da frente da saia e dá volume nas nádegas. No século seguinte, a art nouveau reforma mais uma vez a indumentária interior, que agora é formada por até 12 anáguas. A grande quantidade de tecidos e detalhes deformam a silhueta Continente novembro 2005

41


COMPORTAMENTO

Imagens: Reprodução

42

Mariana Camarotti

Objeto erótico: no fim do século 20, as roupas íntimas saem do anonimato e ganham as ruas

original, com espartilhos que ajustavam tanto a mulher que ela ganhava uma forma de S, com busto para frente e traseiro volumoso para trás. “O visual segue as variações da arquitetura, dos móveis e da arte. Nessa época, o corrimão das escadas e os pés das cadeiras, assim como os detalhes das fachadas, tinham a forma de S. As mulheres usavam muitas saias e os sofás e cadeiras precisavam ser grandes para acomodá-las”, comenta Avellaneda. Essa moda dura até a 1ª Guerra Mundial, quando a escassez faz com que os cuidados com a vestimenta sejam deixados de lado. As mulheres, agora, saíam para trabalhar, o que exigia uma roupa cômoda. As peças íntimas se reduzem a calças curtas e faixas que achatavam os seios, camisola e meia cor-da-pele, longe de qualquer sensualidade de outros tempos. Os anos 30 trazem de volta a feminilidade, com saias mais longas e cintura marcada. Surgem os primeiros sutiãs, confeccionados com lenços triangulares e amarrados com fitas. As estrelas de Hollywood passam a ser imitadas, com muito bege e rosa brilhante. A 2ª Guerra traz consigo materiais como nylon, tergal, tecidos acrílicos e outros mais fáceis de cuidar e vestir. Continente novembro 2005

O surgimento de Cristhian Dior, nos anos 50, revoluciona a moda com a silhueta new look: cintura fina e grandes saias rodadas, com sutiãs que deixavam os seios pontudos. A mulher havia usado pouca roupa durante a guerra e é Dior quem lhe devolve o glamour. O novo formato do sutiã tem uma representatividade importante para uma corrente de estudiosos do assunto. “Eles tinham enchimento e chamavam a atenção para essa parte do corpo das mulheres. Os homens estavam voltando da guerra e, numa visão socio-psicológica, eles queriam voltar ao colo materno, o que faz com que as figuras da época tenham o busto valorizado”. Nesse contexto, tornam-se ícones da época mulheres como Marilyn Monroe, Sophia Loren, Cláudia Cardinale e Gina Lollobrigida. Apesar da valorização da imagem feminina da época, que toma os letreiros, publicidades e capas de revistas, Avellaneda diz que isso não significa espaço na sociedade. “Através da história, vemos que quanto mais incômoda com sua roupa, mais submissa é a mulher. Nessa época, por exemplo, usavam faixas na cintura, salto alto, deformavam os seios e usavam muito tecido. Apenas cuidavam da casa e dos filhos.”


Contrapondo os anos anteriores, os 60 trazem um visual mais andrógino, com pouca valorização do corpo feminino pela onda feminista, dos direitos iguais e o surgimento da pílula. Muitas não usam sutiã, pois acreditavam que a peça era um símbolo de repressão. Também nesse período surgem minissaias, numa ruptura com os padrões. As cinta-ligas, até então comuns, são substituídas pelas meias-calças e perdem sua função inicial, passando a ocupar um lugar de fetiche e erotismo que perdura até hoje. Além da praticidade, a nova peça íntima passa a ter um valor social, pois a mulheres não tinham mais sua região íntima exposta e à mercê do homem. Com os anos 80 e a valorização do corpo atlético, da maquiagem extravagante e da feminilidade, vêm o body, uma espécie de maiô que ajustava a cintura de maneira mais cômoda e sexy, substituindo de uma vez por todas as faixas dos anos 50. Numa turnê mundial, a pop star Madona usa um espartilho criado especialmente para a ocasião pelo estilista Jean Paul Gaultier, que se inspira na roupa interior para fazer a exterior. A beleza mais andrógina volta na década seguinte, com uma moda mais minimalista – que acompanha os

valores da época – e uma roupa interior mais unissex. Calvin Klein lança modelos de calcinhas inspiradas em cuecas. Daí em diante, aflora uma variedade jamais vista na história de roupa íntima. A marca Victoria Secrets tem um papel importante nessa mudança, com venda de peças de toda forma, tamanho, cor, estampa, tecido e textura por catálogos. As prendas vão desde as minúsculas, com muita renda e sensualidade, até as usadas hoje pelas adolescentes, seguindo os modelos masculinos e que ficam à mostra propositadamente ou por descuido. As meiascalças também sofrem uma grande mudança, com desenhos e pedras usadas como adorno. A variedade e ausência de padrões a serem seguidos nos dias de hoje podem ser vistos como uma maior independência da mulher, que tem a opção de usar roupa íntima como símbolo de sedução – ou não. E como será num futuro próximo? “Acho que estamos voltando ao princípio, com pouco ou quase nada, como era no Egito e na Grécia, com muita transparência. Mas, dessa vez, usando a tecnologia dos tecidos e modelos, longe das pompas e repressões que as peças íntimas representaram até umas décadas atrás”. • Continente novembro 2005


ARTES

Imagens: Divulga莽茫o

44

Desenho de Gil Vicente

Uma pequena Bienal A mostra Territ贸rios Transit贸rios, que tenta reunir em Paris o melhor da arte pernambucana, pode ser considerada, pela diversidade de talentos e sintomas, uma minibienal Weydson Barros Leal

Continente novembro 2005


ARTES

N

este ano do Brasil na França, um dos grandes eventos de encerramento das festividades brasileiras no circuito parisiense será a exposição de arte pernambucana Territórios Transitórios. Com início neste 15 de novembro, a mostra ficará aberta até 8 de janeiro de 2006, no Musée de la Porte Dorée (293, Avenue Daumesil), e tenta reunir o que de melhor pode representar a arte feita a partir de Pernambuco. A lista dos selecionados envolve alguns dos principais nomes da arte moderna e contemporânea do Estado – incluídos aqui os que viveram apenas algum tempo em Pernambuco, como é o caso do pintor Cícero Dias (1907-2003), principal nome da mostra, que passou a maior parte da vida em Paris –, o que abrange um largo espectro de datas e tendências: desde os que atuavam no início do século passado até os mais novos nos dias de hoje. Isto totaliza um feixe de aproximadamente cem anos de arte. Também pela diversidade de estilos e linguagens, desde a boa e melhor pintura até as esquisitices contemporâneas das instalações e da videoarte, a mostra dará ao público francês uma idéia de nossa liberdade, igualdade e, em alguns casos, extrema fraternidade. O que estará sendo mostrado no Porte Dorée pode ser considerado, exatamente por essa diversidade de talentos e sintomas, uma minibienal pernambucana de arte, com todas as características de uma Bienal comum – incluindo uma sala especial, também aqui, com um nome de incontestável valor artístico e histórico (inclusive para os franceses), como é o caso, outra vez, do pintor Cícero Dias. E, assim como ocorre nas grandes bienais, a mostra também padece de ausências lamentáveis, como as dos pintores Reynaldo Fonseca, Luciano Pinheiro, Maria Carmem, Tereza Costa Rego, José Cláudio, do gravador Samico e do escultor Corbiniano Lins.

À esquerda, óleo de Vicente do Rego Monteiro, que morou muito tempo na França; à direita, desenho de Abelardo da Hora

Continente novembro 2005

45


Imagens: Divulgação

Ateliê de Cícero Dias, em Paris: ponte cultural entre Pernambuco e França

No mais, a nossa Petite Biennale reunirá artistas novos e consagrados, como Vicente do Rego Monteiro, Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Gil Vicente, Rinaldo, Christina Machado, Marcelo Coutinho, Márcio Almeida e Juliana Notari. Além desses, totalizam um grupo de 27 artistas Flavio Emanuel, Jeanine Toledo, Lula Cardoso Ayres, Paulo Meira, Aloísio Magalhães, Eudes Mota, José Patrício, Jaildo Marinho, Renato, Aprígio, José Paulo, Maurício Silva, Marcelo Coutinho, Alexandre Nóbrega, Paulo Bruscky, Bruno Vieira e Carlos Melo. O projeto e a curadoria são de Aluízio Câmara e Betânia Corrêa de Araújo. A enorme variedade de técnicas e linguagens adotadas por cada um desses artistas (incluindo aqui os já mortos), propiciou aos curadores uma distinção de temas e especificidades que, de alguma forma, atende ou se adapta a cada linguagem. A mostra foi dividida em subgrupos, abordando, a partir do elemento “rio”, a paisagem, o homem, o espaço, a matéria e o fluido. A adoção do rio, como divisor e catalisador de distâncias e diferenças, vem da óbvia geografia das duas cidades (Paris e Recife), ambas cortadas por rios: o Sena e Continente novembro 2005


ARTES

A enorme variedade de técnicas e linguagens adotadas pelos artistas, propiciou aos curadores uma distinção de temas e especificidades que atende ou se adapta a cada linguagem

o Capibaribe. Tal critério, na verdade, poderia ser usado se deixa levar ou que escapa, vazando por entre os dedos na maioria das grandes cidades do mundo, como Roma do criador, como tinta lavada após horas de trabalho. As ou Londres, que também são cortadas por grandes rios, influências que não se vêem, que não se falam, mas que por uma contingência natural da gênese das cidades. No se podem sentir. Influências que também se escondem, entanto, a semelhança ou proximidade entre Paris e Re- como rios paralelos ou rios partidos.” Como fusão ou explosão de onde emanam todos esses cife deve, quando muito, permanecer em seus rios, no plano dos espelhos que passam em suas águas e que de elementos, um contraponto literário foi ainda proposto forma bastante distinta refletem, como fazem os espe- pelos curadores como guia para a organização das obras. O poema “O Rio”, do poeta pernambucano João abral lhos, realidades invertidas. de Melo Neto, será como uma lembrança Por isso mesmo, o critério – ou símaos que visitarem os salões do museu. bolo – do rio é proposto pelos curaEmbora o poema cabralino esteja disdores de forma bastante sutil e intelitante da compreensão comum do pagente, usando-o apenas como elo, corisiense que tentar, a partir dele, commo metáfora entre o homem e sua fluiTrabalho do preender a terra de onde vêm aquelas dez, entre o tempo e o que fica ou paspernambucano obras, sua presença servirá como um sa. Dessa forma, no quesito “hoMaurício Silva, que reside em pulso vivo de onde se poderá mem”, o objetivo é buscar “a ideaParis ouvir a litania de algo ao mesmo lização, o homem social, a explotempo ausente e comum. ração do corpo como forma de “O Rio, de Cabral”, com seu auto-conhecimento. O homem lirismo seco de pedra e lama, tão como território íntimo e como distante das margens urbasíntese de expressão máxima”. nizadas do Sena parisiense ou Já em relação ao “espamesmo de um Capibaribe ço”, conclui-se que “a geocorrompido pelos restos de metria é a matemática do fábricas, favelas e cidades espaço, construção. Enpor onde passa, poderá tre linhas que delimitam levar à França um pouco campos, formando termais do que os quadros, ritórios, o artista comesculturas, filmes e inspõe. Preenche com as talações podem mostrar, cores de sua paleta, e iluminará as janelas sinaliza.” E assim se em que essas obras se definem todos os transformam, quando outros elementos, até vistas em meio à chegar ao “fluido”, música e os ruídos da como “tudo que corpoesia. • re, que escorre, que Continente novembro 2005

47


48

TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

O enigma Duchamp Para Duchamp, ser artista não era simplesmente produzir pinturas ou esculturas pelo uso de uma técnica dominada, uma maestria, e, sim, revelar o novo, o inesperado, o inabitual

S

e se considera que a característica essencial do dadaísmo é a atitude anti-arte, Duchamp será o dadaísta por excelência. De fato, por volta de 1915, quando abandona a pintura, assume uma atitude de rompimento com o conceito de arte, considera que o gosto estético é fruto de mero hábito e busca outros modos de expressão. O ready-made é um deles; o outro – de que é exemplo o Grande Vidro – procura construir a obra (ou a “coisa”, como ele dizia) a partir de procedimentos científicos, como cálculos matemáticos, evitando assim que ela se tornasse produto do gosto. O ready-made é uma manifestação ainda mais radical da sua intenção de romper com o fazer artístico, uma vez que se trata de apropriar-se do que já está feito: a escolha de produtos industriais, realizados com finalidade prática e não artística (urinol de louça, pá, roda de bicicleta), elevados à categoria de obras de arte. Nestes casos, está implícito também o propósito de chocar o espectador (o artista, o crítico, o amador de arte). Não por acaso, Duchamp afirmaria mais tarde que “será arte tudo o que eu disser que é arte” – ou seja, todo o acervo artístico que nos foi legado pelo passado só é considerado arte porque alguém assim o disse e nós nos habituamos a admiti-lo. Donde se conclui que A Gioconda, de Da Vinci, ou O Enterro do Conde de Orgaz, de El Greco, não seriam mais arte do que um urinol ou uma pá de lixo. Esta tese se explicita quando Duchamp acrescenta uma barbicha e um bigode àquela obra-prima de Da Vinci.

Continente novembro 2005

Tais atitudes e afirmações radicais de Duchamp – que o celebrizaram e o tornaram exemplo para muitos artistas de vanguarda do mundo inteiro – têm ocultado algumas questões mais complexas envolvidas na sua postura em face das questões artísticas. Tomemos como exemplo o célebre Grande Vidro, no qual trabalhou de 1915 a 1923, deixando inacabado. Quando um jornalista perguntou-lhe em que acreditava naquela época, respondeu: “Em nada”, mas corrigiu: “Não, acreditava no meu Vidro”. Sim, porque ninguém trabalha durante tanto tempo numa obra de complexa e apurada realização, sem acreditar nela. Neste sentido, o Grande Vidro é o contrário do ready-made: não era produto de mera nomeação, mas do trabalho exigente e acurado. Seria aquilo uma obra de arte? Se não, seria o quê? Não é outra coisa senão ser expressão. O que é arte senão o trabalho levado ao máximo de apuro e exigência? Nas palavras do próprio Duchamp, ele tentou ali criar uma obra que não fosse fruto do gosto estético, mas de cálculos; e que não era para ser fruída como uma pintura, mas para ser entendida nas relações simbólicas de seus elementos: a Noiva, os Nove Moldes Machos, o Moedor de Chocolate, os Tubos Capilares etc. etc. no total de 49 elementos. Noutras palavras, Duchamp tenta, no Grande Vidro, inventar um novo modo de expressão... estética. No entanto, não conclui a obra. Por quê? Responde: “Perdi o interesse. Já não me encontrava mais ali. Aquela monotonia...”. Talvez esteja aí uma chave para entender Duchamp. Abandonara a pintura de cavalete porque ela se tornara


Reprodução

TRADUZIR-SE

O Grande Vidro , 1915/1923, 277x175,8cm.

um hábito, abandonou o Grande Vidro, quando se habituara a ele, deixara de ser experiência nova, criadora, viva. Para Duchamp ser artista não era simplesmente produzir pinturas ou esculturas pelo uso de uma técnica dominada, uma maestria, e, sim, revelar o novo, o inesperado, o inabitual. Por isso, em vez da tela, um painel de vidro; em vez de tintas, matérias pictóricas; usa fios de chumbo e outros recursos tecnológicos. Mas a experiência do Grande Vidro fracassa, o vidro se trinca, o entusiasmo murcha. A partir daí, ele não se propõe nenhuma grande obra, a não ser, nos últimos 24 anos de vida, o Étant Donné, só conhecida após sua morte em 1968. Durante décadas, entrega-se ao fortuito, ao jogo de xadrez e “não faz” alguns poucos ready-mades. Esta absolutização da busca do novo, que rejeita as linguagens artísticas existentes por considerar que usá-las por si só já comprometeria a novidade do novo, teria de conduzir inevitavelmente à negação da arte, entendida como reelaboração da linguagem estética. Considerá-las como

mortas ou esgotadas, foi uma atitude arrogante que não correspondia à realidade, uma vez que eram contemporâneos de Duchamp artistas inovadores e de alta qualidade como Chagall, Schwitters, Morandi, Mondrian, sem falar em Picasso, Brancusi, Braque e Léger, além de artistas posteriores que continuam a produzir pintura, escultura e gravura de nível artístico indiscutível. Deve-se, portanto, entender Duchamp como uma personalidade muito especial, de que não se pode excluir certo ar blasé e o propósito de chocar e desafiar os valores estabelecidos. Por isso mesmo, apesar de sua inegável inteligência e sincera aversão à arte academizada e acomodada, a atitude anti-arte e o exemplo que deu geraram, talvez por um mal-entendido, uma “arte” da facilidade e do improviso inconseqüente, a que faltam exatamente exigência e rigor ético. Contraditoriamente, a rebeldia de Duchamp tornar-se-ia arte oficial, aceita e financiada por fundações e museus. A própria obra de Duchamp terminou no Museu de Arte da Filadélfia. • Continente novembro 2005

49


AGENDA/ARTES José Rufino desconstrói documentos autênticos na Amparo 60 e no MAC de Niterói

Poder da arte

E

scrituras, registros, boletos, notas fiscais e móveis de escritório foram adotados pelo artista plástico José Rufino para ilustrar a decomposição das estruturas do poder na exposição Axioma, em cartaz na Galeria Amparo 60. Ao contrário do que o título faz supor, a mostra foge de simplesmente ecoar o caráter incontestável dos documentos oficiais e redefine momentos sócio-culturais e políticos. Arquivos antigos, fichários de metal deteriorados pelo tempo, escrivaninhas cortadas e grupos de documentos presos em cepos de madeira são

Fotos: Divulgação

50

alguns dos veículos usados por Rufino para estabelecer um diálogo com o passado e com as relações de trabalho. O Rio de Janeiro também estará desfrutando das criações de Rufino, através de uma outra mostra, a Incertae Sedis, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói. Ainda ilustram o MAC 50 gravuras feitas sobre fichas originais do INSS, manuscritas e datilografadas, que foram adquiridas em um leilão da cidade natal do artista, João Pessoa (PB), e as instalações Plasmatio e Sudoratis.

Axioma. Amparo 60 Galeria de Arte (Av. Domingos Ferreira, 92 A, Pina – Recife). Fone: (81) 3325-4728. Até 30 de novembro. Incertae Sedis – José Rufino. Museu de Arte Contemporânea de Niterói ( Mirante da Boa Viagem, s/nº – Niterói, RJ) Fone: (21) 2620.2400. Até 05 de março de 2006.

Delicadeza no holocausto A memória da vivência do avô e ex-oficial alemão, Ferdinand Levi, no campo de concentração Theresienstadt encantou a artista plástica Susi Cantarino e se transformou em suporte para a mostra Anima, que está em cartaz no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Uma estrela de Davi (usada para identi-

ficar os judeus na Alemanha nazista), em tecido, cujo forro revelava uma delicada estampa floral, confeccionada pelo próprio Levy, levou Susi a refletir sobre a coexistência da delicadeza humana com o horror do holocausto. São mais de 70 obras e mais três instalações que ilustram estes sentimentos.

Susi Sielski Cantarino – Anima. Museu Histórico Nacional (Praça Marechal Âncora, s/n, Centro, Rio de Janeiro). Fones: (21). 2550.9220 / 2550.9224. Até 20 de janeiro de 2006.

O romantismo das convenções As cidades de Nantes, São Paulo e Recife se cruzam no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães para questionar as habituais relações de poder entre os indivíduos. O francês Olivier Menanteau e a alemã Christine Meisner percorreram a Europa e o Brasil buscando identificar as regras das relações hierárquicas em espaços sociais e profissionais. Enquanto Christine exibe o encontro de escravos com a liberdade, entre os séculos 18 e 19, Olivier confronta a coexistência do individualismo e da unidade, características do mundo contemporâneo. A curadoria da mostra, que já foi exibida no Musée des Beaux-Arts de Nantes e na Pinacoteca do Estado de São Paulo, é de Lisette Lagnado. Fim de Romance. Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – MAMAM (Rua da Aurora, 265, Boa Vista – Recife -PE). Até 4 de dezembro. Informações: 81.3423-2761/ www.mamam.art.br Continente novembro 2005

Arte sacra de Zé Santeiro Encerrando a seqüência de exposições sobre coleções particulares de Pernambuco, que marcou as atividades do Instituto Cultural Bandepe em 2005, José dos Santos empresta parte do seu acervo de arte sacra à Galeria Térrea do ICB. Mais de 200 peças, incluindo imagens, oratórios, santuários e sacrários revelam um pouco da trajetória do proprietário, que ainda adolescente restaurava santos e oratórios domésticos nos ateliês em que trabalhou, passando em seguida a comprar e vender peças, concretizando assim a profissão de antiquário e colecionador. Diante de tais circunstâncias, tornou-se conhecido como Zé Santeiro. Entre os destaques da mostra está uma Nossa Senhora de Belém, datada de 1794, e um São José em atitude de adoração, provavelmente modelados pelo grande ceramista e pintor José Rebelo de Vasconcelos. Coleção José dos Santos – a arte sacra do antiquário. Instituto Cultural Bandepe (Av. Rio Branco, 23 – Galeria Térrea – Recife -PE). Até 27 de novembro. Informações: 81.3224-1110 / www.culturalbandepe.com


CINEMA Fotos: Gil Vicente/Divulgação

O

diafragma é um anel na câmera que regula a entrada de luz que vem com a imagem filmada/fotografada. As regras tradicionais de fotografia indicam que o diafragma deve ser regulado para que a imagem tenha uma aparência balanceada, nem clara nem escura. O que fazer, no entanto, se se fotografa num lugar como o sertão da região nordeste do Brasil? No Sertão, o ser humano vê-se com os olhos meio-cerrados, proteção instintiva contra o mormaço e a claridade extrema, podendo ainda usar as mãos como pára-sol de emergência contra o brilho inclemente. No filme Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, essa luz é transformada em cinema com uma fotografia (de Mauro Pinheiro Jr.) que surpreende exatamente por descartar as regras do claro e do escuro, mas que mostra enorme respeito por aquela idéia de geografia e cultura. Abrir o diafragma não é exatamente algo novo no filme brasileiro, mas permanece procedimento incomum. Tanto em Central do Brasil (1998) como Abril Despedaçado (2001), ambos de Walter Salles e fotografados por Walter Carvalho, as imagens do Sertão apresentam identidade visual que pode ser vista como conservadora, talvez mais próxima de um western hollywoodiano, onde desertos da Califórnia, Texas ou Nevada são mostrados em cuidadoso e regulado Technicolor. Já os clássicos brasileiros Aruanda (1961), de Linuarte Noronha (fotografado por Rucker Vieira), e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos (fotografado por Luiz Carlos Barreto), estabeleceram o que seriam algumas das fundações do Cinema Novo, o movimento formado por um grupo de filmes que prezavam uma imagem mais real do país.

Os atores Peter Ketnath e João Miguel fazem interpretações além do comumente visto no cinema brasileiro da chamada “Retomada”

Cinema, Aspirinas e Urubus Longa-metragem de Marcelo Gomes resgata a luz e a textura dos filmes inconfundivelmente brasileiros Kleber Mendonça Filho Continente novembro 2005

51


52

CINEMA

Os casebres destelhados de Aruanda queimaram imagens indeléveis de preto e branco no cinema brasileiro, e a cadela Baleia, de Graciliano Ramos, morreu nas telas em meio a uma sinfonia de brancos predominantes em perfeita sintonia com cinzas e negros. Ver Cinema, Aspirinas e Urubus retomar essa imagem, em 2005, não apenas sugere um respeito por uma imagem real de um lugar, e de um povo, como também mexe com a nossa bagagem de um cinema que se revela inconfundivelmente brasileiro, em luz e textura. A embalagem de luz, administrada para o filme, recebe com gentil pureza os seus personagens principais, que carregam Cinema, Aspirinas e Urubus a partir de pequenas tensões culturais garimpadas a partir de suas diferenças. Um chama-se Ranulpho (João Miguel, ator baiano), sertanejo que precisa tentar outra coisa, mudar de espaço rumo ao sul do Brasil (Rio de Janeiro) e fugir de um abandono social e geográfico. O outro personagem é alemão, Johann (Peter Ketnath, ator alemão), na região como representante de uma multinacional farmacêutica, um vendedor de aspirinas a bordo do seu próprio caminhão (um terceiro personagem do filme) que usa o cinema via projetores de película 16mm que passam propagandas anunciando “O Fim Para Todos os Males”... Com o alemão chegando, e o sertanejo fugindo do seu próprio país, os dois encontram pontos que o roteiro de Gomes, Karim Ainouz e Paulo Caldas explora com sensível harmonia, e nenhuma vírgula a mais. “Se essa aspirina passar a fome desse povo, vai vender por quilo”, diz Ranulpho, personagem que Gomes baseou no seu próprio tio-avô. Ranulpho é sarcástico, franco e sonha com algo melhor para ele. Recusa sua origem mais por raiva do que por vergonha e mostra-se francamente irritado com alguém que veio de tão longe para sofrer ali, de onde ele quer sair. O trabalho de João Miguel revela-se uma jóia de sub-interpretação, escola, infelizmente, de pouquíssimos seguidores no atual cinema nacional. Johann já viu muita coisa mundo afora e revela-se um personagem perfeitamente construído por Gomes, e composto por Ketnath. Eles poderiam cair nas trilhas já tomadas uma dezena de vezes pelo cinema brasileiro da chamada “Retomada” (filmes produzidos de meados dos anos 90 até hoje), onde um estrangeiro interage com o Brasil a partir de uma visão essencialmente brasileira (Carlota Joaquina, Como Nascem os Anjos, Bossa-Nova…). No entanto, Johann mostra-se aberto para o Brasil e sua incapacidade de julgar aquela terra e os que com ele interagem revela-se um dos pontos mais positivos de todo o filme. Por fim, temos a participação do cinema em si, no filme. Os anúncios projetados para o povo da região trazem não só o produto aspirina, mas também imagens de um progresso atraente e inebriante. A idéia de trazer uma pequena luz focada para as noites de uma geografia largamente iluminada nos faz sentir mais um comentário de um filme discretamente poético. •


CINEMA

O diretor Marcelo Gomes, em Cannes

Trajetória de luz Cinema, Aspirinas e Urubus colhe prêmios e elogios mundo afora

A

companhar o desenvolvimento de um filme revela-se sempre um ato de extremo interesse. Muitas vezes, há semelhanças com o aparecimento de alguém, ao acompanharmos a notícia de uma gravidez, seguido do processo de crescimento da barriga, parto e os primeiros passos da criatura. Por um acaso patrocinado pela própria profissão, eu pude acompanhar três momentos bem distintos no desenvolvimento de Cinema, Aspirinas e Urubus, da época da filmagem à sua estréia mundial em Cannes e sua primeira sessão no Brasil, no Festival do Rio, em setembro. O filme estréia no Brasil neste mês de novembro, selando um longo processo que talvez ganhe continuidade com a ressonância que o filme poderá ter junto ao público. Pocinhos – Em novembro de 2004, Cinema, Aspirinas e Urubus estava sendo rodado no sertão da Paraíba, na localidade de Pocinhos, a 30 km de Campina Grande. O set visitado naquele dia, então já na quinta semana de filmagem, era o da estação de trem, seqüência-chave no final do filme com a participação de algumas dezenas de figurantes. A produção escolheu certo o dia para visitar o set, pois as possibilidades de fotografia para a imprensa escrita eram muitas. Marcelo Gomes, sempre ao lado do fotógrafo Mauro Pinheiro Jr., mostrava-se tranqüilo com headphones usados para checar o som e falas dos atores. Os figurantes pareciam mesclados perfeitamente com a direção de arte de Marcos Pedroso que, como o próprio Gomes (no roteiro), participou de Madame Satã, filme de Karim Ainouz (por sua vez, coroteirista de Cinema, Aspirinas e Urubus). “Conversei muito com Marquinhos sobre essa coisa de fazer um filme de época e decidimos que não seria um ‘filme de época’, mas um filme sobre uma época”, disse Marcelo sobre a administração do visual específico do filme. “Todos os objetos desse filme têm uma certa dramaturgia, eles funcionam ao remeter a uma determinada época, e não no sentido de contar a história a partir daquele objeto”, falou Marcelo. Ele também refletiu sobre a importância da direção de arte no sentido de adequar-se ao filme, sem que ela mesma tape buracos deixados abertos. “Para esse filme, há um certo minimalismo que procuramos adequar aos objetos de cena”, disse, ressaltando um aspecto que parece ter chegado intacto à versão final. Continente novembro 2005

53


54

CINEMA “Trabalhar uma época na cidade do Rio é mais fácil por causa da preservação. No interior do Brasil, pouca coisa sobreviveu, e o que sobreviveu foi mais pelo abandono”, disse Pedroso. Sobre a escolha da estação de trem, Marcelo disse ter visitado mais de 100 estações em todo o Nordeste, “mas nenhuma nos dava essa possibilidade de movimento, de filmar com 360 graus de liberdade num estilo quase documental. Aliás, fazer um filme numa determinada época com estilo documental, num país que conserva muito pouco o passado, é tarefa difícil”. Gomes disse que a direção de arte do filme foi também importante como intermediadora entre a própria equipe e o clima geral de época. “Além disso, incorpora-se um aspecto que eu chamo de documental ao nos aliarmos às pessoas dessa região. Tivemos uma cena onde o senhor dono da locação atua na cena, trazendo uma verdade de documentário para o filme, que é de época e de ficção”. Boa parte dos homens, mulheres e crianças arregimentados para a seqüência da estação de trem também eram da região, e notadamente sertanejos agalegados. Esse ponto foi levantado pelo próprio Gomes na filmagem, mas parece ter perdido importância na tela, vendo a versão final projetada. Cannes – Depois de um período de gestação de mais de um ano e seis meses entre a filmagem, montagem (realizada em Belo Horizonte, onde mora a montadora pernambucana Karen Harley) e a estréia, Cinema, Aspirinas e Urubus tem sua primeira projeção mundial no Festival de Cannes. O festival parecia estar a um milhão de anos-luz de Pocinhos, e a idéia de trazer aquela paisagem para as janelas abertas do cinema na Riviera Francesa revelou-se fascinante para quem vinha acompanhando o filme como observador. Cinema, Aspirinas e Urubus foi selecionado para a prestigiada mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar), que Gomes logo apelidou de “sertão regado”. Estavam em Cannes: Gomes, Harley, os dois produtores João Jr., da Rec Produtores Associados do Recife, e a gaúcha Sara Silveira, da Dezenove Imagem e Som, empresa de São Paulo, e Jean Thomas Bernardini, da distribuidora paulista Imovision, que lançará o filme nos cinemas brasileiros. Os atores Peter Ketnath e João Miguel também acompanharam o filme. Mesmo com a mais do que positiva recepção, Marcelo mostrava-se ainda incerto sobre a obra que acabara de parir, sensação que parece ter dissipado com os cada vez mais freqüentes pedidos de entrevistas pela imprensa especializada internacional. “É um filme tão pequeno, não acontece muita coisa…”, disse Gomes. Cinema, Aspirinas e Urubus: aproximação estética dos filmes do Cinema Novo


CINEMA

55

Marcelo Gomes e o elenco durante as filmagens, no sertão da Paraíba

A revista Variety, bíblia da indústria do entretenimento e a mais lida da indústria, publicou crítica não menos do que na capa da sua edição, um dia depois da primeira exibição do filme à imprensa. O título: História de Amizade e Guerra. O texto de Deborah Young, crítica que tem, nos últimos anos, se especializado em filmes da América Latina, estabelece que “Gomes impressiona com um filme de estréia sóbrio, desenvolvendo uma relação de amizade que se aprofunda para tocar a alma”. Ela também faz uma recomendação para o mercado, sugerindo que “o filme é candidato para compras no circuito alternativo, embora platéias precisem entrar no seu ritmo minimalista”. Cinema, Aspirinas e Urubus terminou saindo do festival com um prêmio especial do Ministério da Educação francês, prêmio que dois anos antes foi para Elefante, a Palma de Ouro de Gus Van Sant. O prêmio prevê a distribuição do filme nas escolas francesas (em DVDs) como material didático. De Cannes, Gomes saiu com a sensação de etapa bem cumprida e já um bom número de convites para mostrar seu filme em outros países. Rio – Antes da estréia brasileira de Cinema, Aspirinas e Urubus, no Festival do Rio, em setembro, Gomes esteve no Festival de Cinema Independente de Sarajevo, na antiga Iugoslávia (em agosto), e também em Hamburgo, na Alemanha, onde, disse-nos, passou por uma outra prova de fogo, “que foi mostrar um filme com um alemão a um público alemão. Para minha surpresa, eles riram muito e acho que posso ficar tranqüilo ; há uma boa comunicação entre o filme e eles”. Gomes nos falou também da morte do seu tio, Ranulpho Gomes, que faleceu em agosto, em São Paulo, aos 92 anos. Ele não conseguiu ver o filme pronto. “Ranulpho veio para o sul (São Paulo) como no fim do filme. E viveu lá a vida inteira”. Projetado no cine Odeon, na Cinelândia, na mostra competitiva Première Brasil, do Festival do Rio, Cinema, Aspirinas, Urubus revelou-se, numa revisão, mais engraçado do que na primeira vez. Resposta da platéia brasileira, captando toda e qualquer nuance do filme devolve à obra tudo o que ela traz discretamente. O filme saiu do Festival do Rio com os prêmios de Melhor Ator (João Miguel) e Prêmio Especial do Júri. (K.M.F) •

O texto de Deborah Young, crítica que tem, nos últimos anos, se especializado em filmes da América Latina, estabelece que “Gomes impressiona com um filme de estréia sóbrio, desenvolvendo uma relação de amizade que se aprofunda para tocar a alma”

Continente novembro 2005


56

CINEMA

PASOLINI

Crônica de uma morte emblemática Há 30 anos, morria de forma macabra o poeta e cineasta iconoclasta, cuja obra expôs as fraturas ocidentais Fernando Monteiro

H

á exatos 30 anos, em Óstia, um corpo trucidado chocou até mesmo os carabinieri, os legistas e os fotógrafos da polícia que acorreram à praia romana, chamados para as providências legais relativas à descoberta de um cadáver. Aquele, entretanto, não seria identificado, mais tarde, como um qualquer, algum mendigo morto por animais humanos soltos na madrugada. A massa de carne sanguinolenta viria a ser reconhecida como os restos mortais de uma celebridade italiana, um nome mundial cuja morte iria ganhar as manchetes dos jornais e dos noticiários de TV, com imagens cruas do fim do homem polêmico chamado Pier Paolo Pasolini, poeta e cineasta de 53 anos, cuja obra sempre expusera as fraturas ocidentais, as chagas vivas no corpo da Europa – que ele reabria não só com gosto iconoclasta. Estava morta – e daquela maneira – a consciência viva de uma Itália então em desacordo profundo, antes do euro e outras moedas de troca, hoje comum, do orgulho europeu pelas benesses americanas, dos herdeiros de Napoleão agora presos a compromissos com anões do tamanho de Bush. A vida de Pasolini acusara outros escândalos – ele não tinha medo, nem usava de panos quentes na hora de denunciar até o Papa –, sua história pessoal sempre fora, no mínimo, agitada, e sua arte funcionava, freqüentemente, como um clamor ameaçando se tornar um Katrina moral lançado contra as praias da ordem... porém ninguém imaginaria um epílogo tão macabro, uma espécie de sacrifício às mãos dos tais “rapazes da periferia de Roma”, por ele amados.

Continente novembro 2005

O morto incômodo, a morte escandalosa, o crime foi a grande notícia do dia de finados de novembro de 1975, e repercutiu em todo o mundo. Lembro de ter lido, por exemplo, num jornal recifense, o intelectual católico José Luiz Delgado oferecer a duvidosa piedade do seu comentário de domingo sobre o fim “merecido” do homossexual em busca de aventuras escusas, nos arredores permissivos da capital da Itália. Delgado via o cineasta de Evangelho Segundo São Mateus justiçado (antes da Aids, é claro) pelo velho deus dos judeus, certamente punindo heresias de Sodoma e Gomorra etc. A morte de Pasolini – curiosamente – tinha toda a nitidez do horror e, ao mesmo tempo, era um borrão de “manchas torturadas”, com suspeitos em fotos de delegacia, desfocados, e toda a confusão de exames, laudos, depoimentos e juízos convergindo para julgar a vítima mais do que o(s) assassino(s) do homem maduro, na sua sortida noturna à cata de ragazzi dos subúrbios de desempregados. Algo no estilo: “Diretor de filmes como Pocilga... o peito esmagado... várias vezes... certamente pelo carro que garotos fizeram rolar sobre o corpo do diretor de Decameron...” etc. Além do artigo local, lembro bem desse contexto geral, e do teor, digamos, do subtexto passado sobre os fatos e as imagens, para Delgados e delegados, todos tomando a face horrenda da morte como a natural face de um anjo vingador no caminho do sacrificado (a quem? a quê?), com crueldade mais do que extrema, às portas antigas da cidade. Os motivos do ódio – o horror, o horror – no Congo da noite italiana, interior e exterior, tudo foi sendo diluído naque-


CINEMA

la palavra pequena e grande – escândalo – menor e maior, ao mesmo tempo, do que toda a brutalidade do “caso” brutalizado, pode se dizer, por quase uma idéia só. Nota 1: Pasolini teria dado uma boa aula de política, moral e semântica, em torno do noticiário estampado sobre o seu “justiçamento” etc. Mesmo as lacunas na crônica de uma morte verdadeiramente anunciada – certas ligações dos envolvidos e alguns dos seus passos na noite do crime –, nada subiu à tona mais do que a palavra de toque do “destino” do transgressor (o cineasta) perdido na África da avventura mal-sucedida, truncando-se a investigação do delitto, por alguma razão

obscura das sombras (abaixo, acima da Justiça?), cuja pressão ainda hoje cala o fim de um absoluto contestador. Não importa. Ou não importa, tanto, celebrar a morte, a “execução”, honrosa ou desonrosa, de Pasolini, sob o carro e sob as palavras que encobrem os pregos na cruz romana de artistas crucificados de cabeça para baixo ou para cima. Importa, muito mais, compreender a inexorabilidade outra do “escândalo”, a marcha do profeta que, em 1975, vivia seus últimos dias de lamentador das desgraças do seu país – e da Europa – e de anunciador de um cenário de catástrofes (sociais, culturais), na culminância do desespero que torna o acontecimento em Óstia, passadas três décadas, um terContinente novembro 2005

57


58

CINEMA

O último profeta do nosso tempo teria que morrer como ele morreu, em tributo ao cadáver insepulto de um artista “monstruosamente infeliz”, que procurou uma vida na morte, um fim emblemático do terror que hoje nos assola

Cena de Teorema (1968)

mo, ainda impactante, de vias escatológicas, encosta abaixo, e não só para os profetas sozinhos, na busca noturna da morte. Profetas – sim – como Pasolini, antigamente, desciam do verão nas colinas, soprando nas flautas rachadas pelo lábio leporino da raiva, para apostrofar prazeres que conheciam, vícios que amavam e lamentavam (porque profetas não são sempre santos). Profetas como ele traziam a música, a arte antes das pragas de gafanhotos e outras maldições despejadas sobre as cabeças de pais e filhos, de jovens semsaída e de velhos de uma geração traída pela esperança. (Sabemos, agora, do que se trata ficar sem ela – durante o dia longo ou sob a noite curta, mas interminável.) Tenho ainda bem presente a aparência, típica de aldeão queimado dos ares do Savena, do artista, na verdade nascido em Bolonha (1922), formado em Letras, e sólido na impressão causada logo ao chegar e saudar, com voz rouca, os estudantes de duas turmas agrupadas para recebê-lo, atrasado, numa sala de aula improvisada em Cinecittà, num dia de verão de 1969. Uma presença máscula (muito mais máscula do que julgaria o Sr. Delgado) e cordial desculpando-se por se recusar, com elegância, a tomar lugar à mesa dos professores, para ficar na “planície” dos estudantes, ora severo e ora humorado, no confronto com algumas provocações que tinham por alvo Teorema, seu filme até então mais polêmico. Continente novembro 2005

Nota 2: A cena pertence a uma época em que filmes “polêmicos” não encerravam as suas proposições na garrafa de formol da indústria (“que recupera tudo”), junto com o umbigo dos cineastas. O ano anterior – quando Pasolini faltara às conversazioni do CSCR (pelo que também se desculpou), no mais aceso dos debates em torno da obra baseada na sua própria novela – fora o mais que agitado 1968, e ali estava um homem, de 47 anos, adivinhando mudanças e forças fora das previsões de Vovô Marx e, principalmente, longe do alcance do binóculo de plástico do Partido Comunista Italiano. O ex-militante estava apenas começando – no ano posterior às barricadas pequeno-burguesas da Sorbonne – a sua descida das colinas da Emília agrária e pagã, para alargar o campo de visão de nós todos, e dar partida à pregação do partigiano agora armado apenas com palavras e imagens, para lutar contra o “novo fascismo da sociedade de consumo”. É bem conhecido o discurso obsessivo do poeta, do “Pasolini-pregador”, nos ritos finais da inquietude, fazendo subversivo uso dos semanários italianos, dos encontros com qualquer tipo de público (estudantes, telespectadores, doutores, jornalistas e jornaleiros) – comovido e assustado pela morte gradual das formas dialetais em contato com o kaos urbano, inconformado com a progressiva extinção dos


CINEMA

Fotos: AE/Divulgação

Decameron (1971) provoca polêmicas até os dias atuais

modos particulares de ver o mundo, e revoltado, politicamente, com o cenário dos “compromissos”, italianíssimos, sempre concertados por socialistas-cristãos, padres, aristocratas falidos, eurocomunistas, fascistas e reformistas, todos, da mesma maneira cavilosa, interessados na manutenção do status quo, no fundo, e indiferente às razões históricas de Accatone (1961), mais tarde transferidas – na sua visão “transumanizada” – para os campos da cultura bárbara do novo subproletariado. Pasolini o sentia passível de ser seduzido, por um sedutor, a impor alguma “ordem selvagem”, pela razia dos velhos valores e pela violência, anárquica, dos bandos de “jovens infelizes”. É como eu ainda o vejo: recitando o poema da Criada – “Coda às coisas sucedidas” – que se torna numa santa dos cultos populares, no claro teorema de resposta, radical, buscada no cuore antico das coisas. Sentado entre nós (mais natural e esportivamente do que todos os jovens envelhecidos), não parecia encenar aquela “velhice de Roma” – que pudera aprender longe da colina de Osservanza – e tinha algo de um musculoso arcanjo intempestivo, enveredando pela poesia como a única resposta possível para falsas questões colocadas, ainda, em nome das cinzas do Pai Gramsci. Naquele momento, Pier Paolo Pasolini se parecia muito pouco com qualquer clichê, ainda usado, para recordá-lo como uma figura dos fulgores ilusórios de Via Veneto (que Fellini inventou, com a licença da sua imaginação de provinciano) ou das sombras degradadas dos subúrbios herdeiros de Satura..., pois o mais sincero intelectual italiano da segunda metade deste século estava se deixando impregnar, já, da missão quase religiosa de gritar, mais alto e mais escandalosamente, até chegar ao terror de Salò e aos scritti corsari da fase derradeira (que julgo ter inspirado, aqui, o Glauber da TV). O último profeta do nosso tempo teria que morrer como ele morreu, delgado e frágil – digo, com trinta anos de atraso, em tributo ao cadáver insepulto de um artista “monstruosamente infeliz”, que procurou uma vida na morte (qualquer morte), um fim emblemático do terror que hoje nos assola. Em tempo: a família de Pier Paolo Pasolini pediu a reabertura do processo, tendo em vista que o assassino (um certo Pelosi) cumpriu nove anos de pena e, ao ser libertado – em maio deste ano –, se disse “inocente” no caso da crucificação de Óstia. • Continente novembro 2005

59


CÊNICAS

Em busca da cena esquecida A história do grupo teatral Vivencional Diversiones já faz valer a publicação do livro Memórias da Cena Pernambucana Alexandre Figueirôa

N

ão podemos deixar de felicitar a iniciativa de Rodrigo Dourado, Leidson Ferraz e Wellington Júnior por mergulharem de corpo e alma neste projeto de resgate da memória do teatro pernambucano. A história do teatro brasileiro, já o afirmei aqui mesmo nas páginas da Continente Multicultural, é, lamentavelmente, comprometida por um olhar de exclusão ao que aconteceu e acontece nos palcos nacionais, caso eles não estejam situados no Rio de Janeiro e em São Paulo. Como autor de uma obra publicada pela Assembléia Legislativa de Pernambuco (mas, infelizmente, de circulação restrita) que tenta refazer os caminhos do teatro em nosso Estado – desde as primeiras encenações jesuíticas do século 16 até o início dos anos 60 – deparei-me com uma rica trajetória cultural de dramaturgos, espetáculos, atores, encenadores, mas só Deus e os amigos e colaboradores sabem como foi difícil encontrar material para dar suporte ao que descrevi.

Cena de Parabéns pra Você, do Vivencial Diversiones (1980)

Fotos:Gilberto Marcelino

60

Continente novembro 2005


61 Arquivo Pessoal de Isa Fernandes

CÊNICAS

Os Fuzis da Senhora Carrar (1978)

Ritual – Rito Atual (1980)

Os futuros pesquisadores – caso os três próximos volumes prometidos sejam realmente lançados – terão em mãos, sem dúvida, uma luz para nortear seus trabalhos e, a partir daí, revelarem a fundo o que a cena pernambucana produziu e que, não se enganem, não fosse este projeto, corria o sério risco de ser lançada no limbo da história cultural do país. Aqui poderíamos até argumentar que a opção memorialista do trabalho, reunindo protagonistas dos grupos e companhias (diretores, atores, cenógrafos, figurinistas etc.) para relatarem o que viveram, não consiga dar conta da abrangência do que o teatro pernambucano realizou. A memória sofre adaptações, cria lacunas e, por vezes, é meramente episódica, bloqueando, dessa forma, a possibilidade de nos transmitir a intensidade de algumas experiências, sobretudo, as de ordem estética. Mas, também, seria injusto afirmar que isto não deveria ter sido feito. É bom dar voz àqueles que, durante anos, empreenderam a difícil tarefa de manter a ribalta local em atividade, mesmo nos anos negros de censura, mesmo lutando contra a precariedade de recursos e confrontando-se cotidianamente com a escassez de meios para produzir encenações capazes de imprimir marcas que pudessem determinar rumos na arte teatral brasileira, como já ocorrera no passado. Contudo, ao percorrer as páginas destas memórias, não deixa de ser comovente recordar as experiências – sem obviamente desmerecer o trabalho do Teatro Hermilo Borba Filho ou do Teatro Experimental de Olinda – do Vivencial Diversiones, na minha opinião o grupo mais criativo entre os apresentados neste primeiro volume, marco de uma irreverência que contagiou a vida cultural nordestina e foi uma espécie de antena fincada na lama muito antes dos caranguejos com cérebro do manguebeat serem pescados pelas redes da pós-modernidade. Também é muito elucidativo (re)descobrir agora, neste novo século, como o Teatro da Universidade Católica de Pernambuco (Tucap) teve um papel tão valioso na cena local, apesar de tantas incompreensões e perseguições dentro da própria instituição que o abrigava, e mesmo assim lutou bravamente para sobreviver. Espero, sinceramente, que estas Memórias da Cena Pernambucana não sirvam apenas para os que dela participaram relembrarem os momentos gloriosos do passado num saudosismo estéril. Que a leitura dos depoimentos reproduzidos e devidamente editados pelos autores, junto com as fichas dos espetáculos montados por cada grupo, seja propulsora de reflexões e de novos trabalhos, não apenas de teor histórico-acadêmico, mas de abertura de outros caminhos para a cena contemporânea, oxigenando-a e estimulando-a a romper modelos caducos. •

O Fantasma Azul (1977)

Memórias da Cena Pernambucana (Vol. 1), 200 páginas, R$ 10,00.

Continente novembro 2005


62

AGENDA/TEATRO Tiago Valente/ Divulgação

Poetas do riso

Tom Zé

Palco da cultura

Poemas Esparadrápicos – O Musical é um espetáculo da organização Doutores da Alegria que conta a história do encontro de seis palhaços e dois músicos, que se reúnem para uma brincadeira chamada “Eu Sou o Poeta”. Inspirado na coletânea de poesias infantis de mesmo nome, uma proposta idealizada e organizada pelo jornalista e escritor mineiro José Santos Matos, em parceria com a organização, lançada em 2004, na qual o formato padrão do livro é substituído por um rolo de “esparadrapos” (adesivos destacáveis nos quais os poemas estão escritos e são acompanhados por ilustrações), o espetáculo é uma viagem pela delicadeza poética do cômico. Enquanto cantam os poemas musicados, os palhaços vão descobrindo inúmeras outras brincadeiras. Uma obra interativa, Poemas Esparadrápicos – O Musical é construído à moda dos palhaços, no qual “nem tudo que você vê é aquilo que você vê, mas pode ser aquilo que você quiser que seja”. Fotos: Divulgação

João Pessoa se transforma na capital da arte e da cultura com a realização da 11ª edição do Festival Nacional de Arte

A

capital paraibana se transformará no palco da arte nacional entre os dias 04 e 12 de novembro, com a realização do 11º Festival Nacional de Arte – Fenar, um dos mais importantes festivais de arte da região Nordeste, realizado pelo Governo do Estado da Paraíba, através da Fundação Espaço Cultural da Paraíba (Funesc), em vários espaços culturais da cidade. Alceu Valença, Lobão, Tom Zé; Carlos Malta, Escurinho, Cordel do Fogo Encantado, Casa de Farinha e Ariano Suassuna são apenas algumas das atrações que integram a programação do evento, que também inclui música eletrônica, feira de livros (com recitais poéticos), exibição de filmes, espetáculos de dança e de teatro, exposições fotográficas e de artes plásticas, com a realização da III Bienal da Gravura, e realização de oficinas, como a de Lambe-Lambe, que deverá percorrer as ruas da capital. Elba Ramalho fará participação especial num concerto comemorativo aos 60 anos da Orquestra Sinfônica da Paraíba (OSPB). O Fenart ainda inclui dois importantes projetos: Fenart Educação, que tem como objetivo incentivar, junto ao público jovem, o gosto pela arte; e o SemiCena de Shi-Zen, do grupo Lume (SP) nário Cena Contemporânea, que traz à Paraíba personalidades das diversas áreas artísticas no intuito de promover debates sobre o fazer cultural. 11º Fenart. Espaço Cultural José Lins do Rego, Teatro Santa Roza, galerias de arte e nas ruas de João Pessoa (PB). De 04 a 12 de novembro. Informações: www.paraiba.pb.gov.br Continente novembro 2005

Poemas Esparadrápicos – O Musical. Teatro Capiba/SESC Casa Amarela (Rua Professor José dos Anjos, 1109, Casa Amarela, Recife – PE), sábados e domingos, às 16 horas. Ingressos: R$ 10,00 e R$ 5,00 (estudantes, idosos, classe artística e associados do SESC, mediante apresentação de carteira de identificação). Informações: (81) 3267.4410 e (81) 3267.4400. Até 27 de novembro.

Inovação e tradição Depois de alguns anos sem acontecer, o Festival de Artes de São Cristóvão volta à cidade histórica de São Cristóvão, em Sergipe, fazendo com que a cidade se consolide como capital sergipana da arte e da cultura. O evento se realizará nos dias 08, 09 e 10 de dezembro, transformando São Cristóvão num palco a céu aberto, onde subirão artistas da música, folclore, circo, literatura, artes cênicas, artes plásticas, cinema e artesanato. A programação inclui nomes como Vanessa Damata, Otto, o grupo Galpão de Teatro, Mestre Salu, Balé Popular do Recife (foto), Guerreiro de Alagoas, grupos de maracatu pernambucano, Banda de Boca, além de nomes do cenário musical sergipano. Festival de Artes de São Cristóvão (SE). De 08 a 10/12. Informações: (79) 9949.9844.


Anúncio


SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Os sabores de Fernando Pessoa Com a colaboração de José Paulo Cavalcanti Filho

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, no dia de Santo Antônio – 13 de junho de 1888. E morreu em 30 de novembro de 1935. Comemorando os 70 anos de sua morte, neste mês, vale a pena lembrar os sabores de que gostava. Todos ligados aos lugares onde andou. Dos primeiros tempos, em Lisboa, não lhe ficaram maiores recordações. O pai sofria de tuberculose. E morreu pouco depois de seu aniversário de cinco anos. Depois diria: “No tempo em que festejavam o dia de meus anos/ Eu era feliz e ninguém estava morto”. A mãe logo se casou novamente, com o Cônsul de Portugal em Durban. E, ano seguinte, já estavam na África do Sul. O padrasto, em função do cargo, tinha, com freqüência, personalidades importantes à mesa. Nesses encontros, Pessoa apurou o paladar e conheceu temperos diferentes. Entre eles curry, do indiano kadhi (molho), combinação de várias especiarias – massala, açafrão, curcuma, cardamono, canela, cravo, noz moscada, folha de louro, folha de arroz, pimenta da Jamaica, pimenta do reino, pimenta vermelha em pó (ou páprica), sementes de erva doce, sementes de cominho, sementes de coentro, sementes de mostarda, sementes de paparela e sementes de gergelim. Esse tempero, que o colonizador inglês espalhou pelo mundo, em Portugal é conhecido como caril. Pessoa voltou à sua terra com 17 anos. Mas aquele curry, na Europa, tinha sabor diferente, bem menos picante que o africano. Mesmo assim gostava de um arroz preparado com esse tempero, servido em pequena cantina chamada “Pessoa”, que já não existe – dela restando hoje apenas uma placa na parede que dá para a Rua Santa Justa, onde está escrito “antiga casa Pessoa”. Arroz ao curry Ingredientes: 1 galo médio, 1 coco pequeno, 2 malaguetas pequenas, 2 colheres de chá curry, 1 colher de café de gengibre, 2 colheres de chá de cominho, 20g de coentro (sementes), 150g Continente novembro 2005

“Ai os pratos de arroz doce com as linhas de canela Ai a mão branca que os trouxe Ai essa mão ser a dela.” Quadras ao Gosto Popular, Fernando Pessoa

de polpa de tomate, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 60g de manteiga, 500g de arroz, sal e pimenta a gosto. Preparo: Refogue o galo, cortando em pedaços, com cebola, alho e manteiga. Reserve. Rale o coco e leve ao fogo, com a própria água, por 15 minutos. Esprema o coco, retirando seu leite. Tempere esse leite de coco com sal, polpa de tomate, malagueta e curry. Junte cominho, sementes de coentro e gengibre (trituradas). Acrescente o galo ao molho. Deixe até que fique bem cozido. Sirva à parte o arroz cozido em água e sal.

Pessoa não cozinhava. “Nem sei estrelar ovos”, ele mesmo confessava. Em casa da família o cardápio era bolinhos de bacalhau, fatias de carne recheadas, vários tipos de jardineira, lombo de porco, leite creme e arroz doce. Quando não estava lá, fazia refeições em casa de amigos ou em cantinas, cafés, restaurantes simples, casas de pasto e tascas de galegas. Esses cafés foram, segundo seu companheiro João Gaspar Simões, “o lugar mais íntimo que lhe era dado conhecer desde que, com poucos anos, perdera para sempre seu verdadeiro lar”. De todos os pratos de que gostava, sua preferência era, sem dúvida, “Dobrada à moda do Porto”. Tanto que lhe dedicou poema – escrito, segundo depoimentos, no restaurante “Ferro de Engomar”, no Benfica, um dos poucos daquela zona. Dobradinha à moda do Porto Ingredientes: 1kg de dobrada de vitela (tripas, folhos, favos e a touca), 1 mão de vitela, 150g de chouriço, 150g de olheira, 150g de toucinho entremeado ou presunto, 150g de salpicão, 150g de carne de cabeça de porco, 1 frango, 1kg de feijão, manteiga, 2 cenouras, 2 cebolas grandes, 1 colher de sopa de banha, 1 ramo de salsa, 1 folha de louro, sal e pimenta. Preparo: lavar bem a dobrada, esfregando sal e limão. Cozinhar em água e sal. Reservar. Em outra panela cozinhar as outras carnes e o frango. Reservar. Cozinhar também feijão com cebola e cenoura cortada em rodelas. Em um tacho grande colocar a banha e a cebola. Juntar todas as carnes cortadas em pedaços grandes. Depois o feijão. Temperar com sal, pimenta, louro e salsa. Deixar no fogo por meia hora. Servir em terrina de barro ou porcelana, acompanhado de arroz branco.

Ilustração: Biratan/Reprodução

64


SABORES PERNAMBUCANOS No almoço, era quase sempre bife. Ele próprio dizia: “Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da saudade; bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu não como”. Entre eles um, feito na chapa e servido com molho grosso, que passou a ser conhecido como “Bife à brasileira” (do Chiado, claro). Naquele tempo o nome era escrito com “z”, a Brazileira – Casa Especial de Café do Brasil, Lisboa, Porto, Sevilha, Câmbios e Tabacos. Havia duas, em Lisboa. Uma era a “Brasileira do Rossio”, ambiente estilo art-noveau, em que escrevia parte de sua correspondência. A outra era a Brasileira do Chiado, na Rua Garret, endereço das cartas que Sá-Carneiro enviava ao poeta e desenhista José de Almada Negreiros. Há lá, hoje, bem em frente a esse café, estátua de bronze em tamanho natural – mesinha de bar com duas cadeiras, numa Pessoa sentado, a outra vazia. Turistas sentam alegremente na cadeira sem dono, para previsíveis fotos. Muitos sem sequer suspeitar quem teria sido realmente aquele homem soturno, de hábitos previsíveis, e que jamais se sentaria em uma mesa daquelas, ao lado de estranhos. Entre esses bifes destacava-se um, servido em cervejaria da Rua Antonio Maria Cardoso, ponto de encontro dos poetas modernistas. Lá se discutiu o nascimento da revista Orpheu, dirigida por Pessoa durante só dois números – que, sem recursos, os poucos exemplares do número 3 foram vendidos como papel velho. Essa cervejaria era a “Jansen”. Bife à Jansen Ingredientes: 400g de carne de vaca, cortada em 2 bifes, 4 dentes de alho, 2 folhas de louro pequenas, 2 colheres de sopa rasas de banha de porco, sal e pimenta a gosto. Preparo: Tempere os bifes com sal, pimenta, louro e alho. Coloque em frigideira banha e alho esmagado. Junte os bifes. Frite dos dois lados. Acrescente sal e pimenta, se necessário.

Jantava sempre às 7h da noite. Ele mesmo dizia, “e tudo se me mistura – infância vivida à distância, comida saborosa de noite, cenário lunar”. Como entrada, apreciava especialmente uma boa sopa. Sobretudo “caldo verde” – prato que tem esse nome porque a couve, depois de cortada bem fininha, é lavada com várias águas, até quando já não fique verde, aquele caldo. A sobrinha de Pessoa, Manuela Nogueira, confirma esse gosto: “o Tio Fernando comia sempre as sopas que então se faziam lá em casa, sobretudo o caldo verde”. É uma receita simples: Caldo verde Ingredientes: 500g de batatas, 1 paio, 2 dentes de alho, 4 colheres de sopa de azeite, sal, 200g de couve. Preparo: cozinhe as batatas em 2 litros de água com o paio (cortado em rodelas) e sal. Cozidas as batatas, esprema e misture com o caldo. Junte a couve, a metade do azeite e deixe no fogo até que a couve esteja cozida. Ao servir, acrescente o restante do azeite.

Também gostava de camarões. Até fez versos dizendo isso: “Descasquei o camarão/ tirei–lhe a cabeça toda/ Quando o amor não tem razão/ É que o amor incomoda” (Quadras ao Gosto Popular). Era uma especialidade do “Leão D’Ouro”, onde se encontravam artistas plásticos, funcionários que trabalham no Teatro Nacional e seus freqüentadores. Mudou-se, depois, para uma área ao lado daquele original. Mas tem ainda hoje, como especialidade, “mariscos, lampreia, bacalhau e peixes em geral”. Seu atual proprietário, o Sr. Abreu, nos levou pelo labirinto da cozinha do restaurante até o salão abandonado daquele antigo “Leão”, ainda conservando os mesmos arcos de pedra e toras de madeira no teto. Ao fim do que nos ofereceu uma rodada de brandy. Só para lembrar brandy – é aguardente de uva, pêssego, cereja, ameixa ou cidra. A palavra se originou do holandês brandewijn (vinho destilado). O lugar estava ali, intocado. Faltava só o poeta. Ou talvez não faltasse. O prato é especial. Provamos e recomendamos: Ensopado de camarão Ingredientes: 500g de camarão pequeno, 300g de pão de trigo, 4 colheres de sopa de leite, 750g de tomates, 2 cebolas grandes, 3 colheres de sopa de vinho branco seco, 2 colheres de sopa de suco de limão, 5 colheres de sopa de azeite, 1 fatia de queijo, sal e pimenta a gosto. Preparo: Refogue no azeite cebolas (em rodelas) e tomates (em cubos). Junte o camarão descascado. Deixe ferver por 10 minutos. Corte o pão em fatias finas. Junte leite, sal, pimenta e gotas de limão. Em caçarola grande coloque azeite. Alterne camadas do pão e do refogado de camarão. Por cima da última camada de pão coloque o vinho, o restante do leite (onde o pão esteve marinando), o queijo. Tampe a panela e deixe ferver. Sirva bem quente.

No jantar, quase sempre ia ao Martinho. E dividia mesa com a família Sá Mourão, proprietária do estabelecimento. Havia outro Martinho, o “Café Martinho” – fundado em 1845, no antigo Largo Camões; e, por isso, mais conhecido como o “Martinho do Camões”. Mas esse Martinho, em que ia, ficava no Terreiro do Paço, número 3, esquina com a Rua da Alfândega. É o mais antigo café de Lisboa, inaugurado em 1782. Segundo depoimento de Luis Machado, “local de conjurações, pouso habitual de jacobinas, liberais, maçons, anarquistas e republicanos, nas suas mesas, discutiram-se regimes, contestaram-se políticas, desafetaram-se revoluções”. Mobília pesada, chão de taco, pequeno ventilador no teto, já naquele tempo era obsoleto – como o próprio Pessoa, que usa esse Martinho como escritório. Lá chegava todos os dias por volta das sete da noite, com a inseparável pasta preta debaixo do braço. Sentava-se à mesma pequena mesa de mármore escuro, cinza-escuro, e nela espalhava os papéis que trazia. Seu atual proprietário, António Barbosa de Souza, faz sempre questão de apontar essa mesa a turistas, curiosos e admiradores de Pessoa. No jantar, gostava de sopa. Com o tempo, passa a Continente novembro 2005

65


66

SABORES PERNAMBUCANOS ser apenas isso. O velho Mourão, preocupado com o amigo, então inventou uns ovos estrelados com queijo – que punha em seu prato, para dar à refeição algumas sustanças. Mas, no Martinho, a mais famosa das sopas era mesmo a Juliana. Sopa Juliana Ingredientes: 2 litros de água, 3 colheres de azeite, 2 alhos franceses (echalotte), 2 cenouras grandes, 2 dentes de alho, 1 nabo grande, 2 cebolas médias, 1 aipo, 5 folhas de couve lombarda, 2 folhas de alface, 100g de ervilhas, 50g de manteiga, 1colher de açúcar, sal e pimenta a gosto. Preparo: Coloque, em uma panela, água, azeite, sal, pimenta e açúcar. Em outra panela refogue cebola e alho com azeite. Junte ervilhas, alhos franceses, cenouras peladas, nabo descascado, aipo, folhas de couve e de alface. Junte o refogado ao caldo. Tempere com sal, pimenta, azeite e manteiga. Deixe no fogo por 10 minutos. Sirva.

Durante a vida, andou por muitos cafés. E experimentou muitas bebidas. Enquanto conviveu com SáCarneiro era o absinto. Logo o abandonando em razão dos problemas gástricos que lhe causava. Houve período em que preferiu uísque. Também apreciava vinhos, Moscatel e do Porto, bem como alguns brancos (Bucelas e Gaeiras) e tintos (Colares) de mesa. Mas gostava mesmo era de “bagaceira” (uma aguardente de uva) e do brandy de Macieira. Curiosamente, em seus tempos de publicitário, o único comercial que fez de bebidas foi da Coca-Cola, para quem criou a frase – “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Pessoa “bebia demais”, segundo sua própria sobrinha Manuela Nogueira. E em quantidades, a cada ano, maiores. Mas ele próprio justificava, “se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebedese. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto”. Assim foi. Tanto que morreu de cirrose. Entre os cafés que freqüentou, vale citar a Leitaria Acadêmica, próximo à casa em que então morara, no Largo do Carmo. Ali, segundo se acredita, terá conhecido o amigo Sá-Carneiro, que tinha residência na Travessa do Carmo. Sá-Carneiro depois se suicidou, em Paris, mas essa é outra história. Ia também ao “Tavares Rico”, mais antigo restaurante de Lisboa (1784), o preferido de Eça de Queiroz. Ao tempo de Pessoa, já não pertencia aos irmãos Tavares, Manoel e Joaquim, naturalmente, que se dirigiam aos clientes sempre em versos. Aos domingos era o “Montanha”, onde conheceu jovens estudantes de Coimbra que vieram a Lisboa só para vê-lo – entre eles José Régio e João Gaspar Simões. Também freqüentava a “Tendinha do Rossio”, famosa pelas presenças habituais do escritor Júlio Dantas ou do pintor José Malhoa. O “Nicola”, do Rossio, botequim onde se reuniam políticos Continente novembro 2005

e literatos da época desde os tempos de Manuel Maria Barbosa du Bocage. A “Adega Val del Rio”, em que passa todas as noites para recolher uma garrafinha de aguardente que, pelas manhãs, estava sempre vazia; e onde tira foto, com um copo de vinho à mão, que remeteu à amada Ophélia Queiroz com dedicatória – “em flagrante delitro”. Só não ia ao “Café Fernando Pessoa”, da Praça Cid Luso, pela razão simples de ainda não existir, àquela época. Nos meses que precederam sua morte, abandonou todos esses cafés para ir só ao “Martinho da Arcada”. De lá, ainda hoje, se vê o Tejo entre as arcadas do edifício. Foi o último café de sua vida. Naquela mesa, em que antes escreveu tantos poemas, agora ficava tardes inteiras, solitário, abúlico, sem nada fazer. Outras vezes, era como se ficasse ausente. Então passava longos minutos fixando um ponto impreciso da sala. Apenas o pigarro e a tosse, próprios de fumantes, denunciavam a sua presença. Pouco depois, era só saudade. Em sua homenagem encerra-se este pequeno texto transcrevendo não uma receita, como usualmente faz essa coluna; mas um poema seu, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos, lembrando seu prato preferido: Dobrada à moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, Serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha Que a preferia quente, Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria. Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, E vim passear para toda a rua. Quem sabe o que isto quer dizer? Eu não sei, e foi comigo... (Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim, Particular ou público, ou do vizinho. Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. E que a tristeza é de hoje). Sei isso muitas vezes, Mas, se eu pedi amor, por que é que me trouxeram Dobrada à moda do Porto fria? Não é prato que se possa comer frio, Mas trouxeram-no frio. Não me queixei, mas estava frio, Nunca se pode comer frio, mas veio frio. •


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Outras lembranças do encontro com o doutor Getúlio Vargas

O

sotaque dava um certo encanto às palavras, que pareciam deslizar mansamente, uma a uma, escorregando, sem pressa. A mão que segurei por alguns segundos era leve. Só a senti no primeiro instante, quando, num gesto breve, o Presidente tentou, nela, guardar a minha. Que estava eu fazendo ali? Que poderia querer do Presidente cujo poder, minado por frustrações, intrigas e lutas nos bastidores, começava a vacilar? Eu disse: – Bem, Presidente, não quero tomar mais o tempo de Vossa Excelência (por que Presidente da República tem de ser Excelência – serão todos obrigatoriamente excelentes?), que sei precioso (Oh! A imbatível inclemência dos lugares-comuns). Estou aqui como jornalista, trouxe um questionário (tirei o papel do bolso, fiz intenção de entregá-lo), gostaria que Vossa Excelência respondesse a estas perguntas... A voz mansa se encrespou, tornou-se rascante, fria como gelo, dura e fria como gelo, e, dura e fria e cortante, me bateu no rosto e nos ouvidos com toda a fúria de uma chicotada: – O senhor me deixe o papel com o Dr. Lourival. Ele lhe telefonará depois. O homenzinho levantou-se, esmagou no cinzeiro de cristas o que restava do charuto e desapareceu por uma porta ao lado, que bateu com força. Nem ao menos me estirou a mão. •

Continente novembro 2005

67


Bet芒nia Uch么a


ESPECIAL

69

Expiação alemã Memorial às vítimas do Holocausto, no centro de Berlim, expia crimes nazistas, provoca polêmica e causa impacto nos conceitos de memória e contemplação Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle, de Berlim

P

assados 60 anos do final da 2a Guerra Mundial, ergue-se no centro político da capital alemã o Denkmal für die ermordeten Juden Europas – Memorial aos Judeus Europeus Assassinados. Dezoito anos de polêmicas e calorosas discussões amadureceram e legitimaram a proposta do historiador Eberhard Jäckel e da jornalista Lea Rosh que, em 1987, lançaram publicamente uma campanha através da associação de moradores Perspektive Berlin apoiada por Günter Grass e Willy Brandt, entre outros, para a construcão do memorial. No discurso de inauguracão do memorial, em 10 de maio deste ano, Lea Rosh declarou: “Nós queríamos construir um memorial para honrar os milhões de judeus assassinados e dar-lhes seus nomes de volta…queríamos impedir que a Alemanha passasse por cima dos fatos como se nada tivesse existido. Foi a primeira vez que um povo tornou conhecido seu maior criminoso e documentou seus crimes”. Por que mais um memorial para lembrar o nacional socialismo e seus crimes? Três memoriais, que possuem em comum a denominação de “lugares autênticos” como os Konzentrationslager (campos de concentração), foram inaugurados nesta época: em memória da deportação dos judeus berlinenses na estação de Grunewald (projeto de Karol Broniatowsky), o edifício onde foi realizada a Conferência de Wannsee que aprovou a “solução final” de exterminação dos judeus na Europa e um memorial projetado por Renata Stih e Frieder Schnock em Schöneberg. Que mensagem teria um memorial abstrato e num lugar dissasociado diretamente com o Holocausto? Estas e outras questões começaram a ser debatidas pela população, especialistas e políticos, e continuam até hoje. Por que um memorial só para os judeus? Por que não um memorial para todas as vítimas do nacional socialismo, como os ciganos, os homossexuais, os eslavos (poloneses, ucranianos, russos brancos, etc.), os opositores do regime, as testemunhas de Jeová, as vítimas da eutanásia, entre outros? Esta foi e continua sendo a maior polêmica. Para Lea Rosh, a idealizadora do memorial, “os judeus foram o principal alvo de Hitler e, para ele, sua exterminação mais importante do que vencer a guerra”.

Prestel,2005

Vista aérea do Memorial aos Judeus Europeus Assassinados, tendo ao fundo a Potsdamer Platz


Betânia Uchôa

70

No subsolo do Memorial, fotos, textos e registros lembram as vítimas do Holocausto

Toda a história do memorial é marcada por conflitos que numa nação democrática são resolvidos pelo debate e aceitação da maioria. Essa história inclui sua concepção original, sua dedicatória, a área, o custo de 27 milhões de euros, os concursos e o escândalo ao se descobrir que uma subsidiária da firma Degussa, a mesma que produziu o zyklon B, gás letal usado nas câmaras mortíferas para o assassinato em massa dos judeus, é a produtora do material de proteção antigrafite para revestir os blocos de concreto e única alternativa contra o vandalismo antisemitista que o memorial poderia gerar. Em junho de 1999, com 314 votos a favor e 209 contra, o Bundestag (Parlamento alemão) aprovou a construção do Denkmal für die ermordeten Juden Europas no centro de Berlim, marcando o engajamento oficial do Estado alemão na homenagem aos judeus assassinados pelo nacional socialismo. A construção foi iniciada somente em 1o abril de 2003, após o longo processo de escolha de seu projeto. Em 1994 foi lançado o primeiro concurso público anônimo e aberto (onde, porém, são convidados especialmente os artistas Rebecca Horn, Dani Karavan, Fritz Hoenig, Gerhard Merz e Richard Serra) para o Denkmal für die ermordeten Juden Europas organizado pelo governo federal e pela municipalidade de Berlim. Divergências conceituais, projetuais e estéticas entre especialistas, políticos e segmentos da sociedade impossibilitam um consenso e o concurso foi cancelado. Em 1995, outro concurso reúne projetos de 528 participantes, sendo escolhido o projeto do grupo de artistas liderado por Christine Jackob-Marks, que consistia em uma placa de concreto de 11m de altura e 20.000m2, onde os nomes dos judeus assassinados seriam gravados. Considerado de extremo “mau gosto e kitsch” até pelo Conselho dos Judeus da Alemanha, recebeu o veto do então chanceler Helmut Kohl. Finalmente, após longos debates públicos e discussões no Parlamento sobre a conceituacão do memorial, sua localizacão e dedicatória, foi criada um comissão de especialistas em arte coordenada pelo prof. Josef Paul Kleihues que decide realizar um concurso fechado, onde são convidados 25 participantes. São escolhidos os projetos do arquiteto Peter Eisenman em conjunto com o escultor Richard Serra, dos arquitetos Daniel Libeskind e Gesine Weinmiller e do artista plástico Jochen Gerz. Após exposição pública dos trabalhos, a crítica e os Continente novembro 2005


ESPECIAL A firma Degussa, a mesma que produziu o zyklon B, gás letal usado nas câmaras dos campos de concentração, é a produtora do material de proteção antigrafite para revestir os blocos de concreto e única alternativa contra o vandalismo

especialistas escolhem a proposta da dupla Eisenman-Serra. A intervenção de Helmut Kohl sugerindo uma integracão do memorial com a estrutura urbana do centro da cidade irrita o escultor Richard Serra que se retira do processo por não admitir intervenção política em seu trabalho. Peter Eisenman continua sozinho e longas e complicadas negociações para as quais são produzidas três variantes projetuais são empreendidas e o memorial, originalmente concebido como um campo de 4.200 colunas ou blocos de concreto, o Stelenfeld (do grego stele, que significa coluna comemorativa ou funerária), após a intervenção do ministro da Cultura Richard Neumann, adquire uma área no subsolo denominada Ort der Information ou Lugar da Informação. A artista Dagmar von Wilcken projeta a exposição permanente sobre a história e extermínio dos judeus com a cooperação com o Yad Vashem de Jerusalem e o Holocaust Memorial Museum em Washington que permite ao visitante acesso a uma rede de memoriais na Europa e em Israel. Para Peter Eisenman, depois do Holocausto, de Hiroshima e do desenvolvimento de mecanismos de assassinatos em massa, houve uma mudanca radical no conceito de lembrança, memória e monumento, tornando impossível sua representação pela arquitetura ou símbolos tradicionais (como uma placa, pedra ou estrela). “A lembrança do Holocausto não pode ser nunca uma nostalgia”. Seu projeto para o Memorial se apresenta como uma estrutura aparentemente racional, mas que provoca uma instabilidade interior e uma gradativa desintegração deixando explícito que um sistema intencionalmente ordenado e racional perde a referência da razão humana, quando se torna muito grande ou maior do que si mesmo. O aparente sistema ordenado apresenta seu próprio potencial de caos e pertubação. A estrutura é formada por uma grande retícula com 2.700 (originalmente 4.200) blocos de concreto de altura entre 0-4metros, 0,95m de largura e 2,38m de comprimento. A distância entre blocos de 0,95m restringe a passagem para uma só pessoa, forçando assim uma experiência individual. A diferença de altura entre os blocos é intencional e o movimento plástico resultante impede a axialidade absoluta, possibilitando em seu lugar a execução de uma outra realidade, uma zona de instabilidade que perturba a ilusão de ordem e segurança. Assim, completa Eisenman, se consegue uma verdadeira divergência entre a topografia do terreno e a topografia da superfície dos blocos de concreto e esta divergência evidencia o conceito do filósofo Henri Bergson sobre a diferença entre o tempo cronológico e o tempo permanente. Está aí a origem da concepção do memorial como representação do espaço de perda e contemplação e elementos de memória. Peter Eisenman faz referência aos dois tipos de lembrança que Marcel Proust desenvolve em seu livro Em Busca do Tempo Perdido: uma lembran-

Betânia Uchôa

Placa em memória dos homossexuais assassinados pelos nazistas, na Nollendorf Platz

Continente novembro 2005

71


72

ESPECIAL Betânia Uchôa

Nas ruínas da prisão da Gestapo, exposição no canteiro de obras do futuro espaço Topografia do Terror

ça baseada na nostalgia do passado com uma forte ligação com sentimentalismo, onde os fatos não são lembrados como foram, mas como se quer lembrar; e uma lembrança viva, ativa no presente e livre da nostalgia de uma lembrança do passado. E afirma categório: “Não se pode lembrar do Holocausto com nostalgia sentimental, porque o horror do Holocausto destruiu para sempre a associação entre lembrança e nostalgia. O memorial ao Holocausto só pode ter uma forma viva, onde o passado permanece ativo no presente”. Ao contrário dos monumentos tradicionais, o Stelenfeld não tem um objetivo claro, começo ou fim, nem caminho para dentro ou para fora que até mesmo os labirintos possuíam. Além da lembrança viva da experiência individual de cada um, ao percorrer o memorial e seu vasto campo de concreto, não se espera nenhum entendimento, porque não é possível se entender o Holocausto. O Stelenfeld é um campo fúnebre simbólico, cujos elementos remetem para a tradição dos monumentos sepulcrais onde a forma e a disposição dos 2.700 blocos induzem uma associação inevitável: as coluna de concreto cinza, frio e bruto que brotam do chão e se dirigem ao céu são uma forma de

Continente novembro 2005

remeter a uma lembrança silenciosa e profunda de perda coletiva inexplicável. O memorial é um monumento nacional mas não relembra nenhum grande feito de seu povo, nem de seu soberano. Ao contrário, relembra um crime contra a humanidade perpetrado pela Alemanha e em nome dos alemães. Esta é a expurgação. Saindo da memória abstrata do Stelenfeld, ao entrar no Ort der Information o visitante mergulha na realidade do horror do Holocausto, onde as vítimas tem nome, rosto, família e história pessoal e não fazem parte de um universo distante e inatingível. Aqui não é possível ficar indiferente. O memorial está estrategicamente situado entre Potsdamerplatz e Pariser Platz (a 170m da tradicional Brandenburger Tor) onde se localizam as embaixadas da Inglaterra, França e Estados Unidos, além da recém-inaugurada Akademie der Künste (Academia Alemã de Artes), próximo ao Bundestag (Parlamento alemão) e edifícios do poder legislativo e executivo. Por outro lado, sua área de 19.000m2 encravada na Todesstreifen ou faixa da morte da parte oriental do antigo Muro de Berlin, símbolo de outra ditadura alemã do século 20, contém em sua parte norte as ruínas da Vi-


ESPECIAL la de Goebbels e seu Bunker, e, em sua vizinhança imediata, as ruínas dos principais edifícios da poderosa e temida máquina de terror do NS-Staat e da Gestapo. O Denkmal für die ermordeten Juden Europas, junto com o Jüdisches Museum (Museu Judaico) de Daniel Libeskind e a Topographie des Terrors (Topografia do Terror) de Peter Zumthor, compõem os Grand Projets der Erinnerung in Berlim ou Grandes Projetos da Memória de Berlim, sinais inegáveis de que a sociedade e o governo alemão estão determinados a incorporar na cidade capital as marcas e testemunhos do passado do nacional socialismo. Reconhecer como verdadeiros os fatos históricos deste passado de horror, tema ainda difícil e doloroso para a sociedade alemã, é, porém, irremediavelmente fundamental para uma Alemanha solidamente democrática e tolerante. Em seus quatro meses de existência, o memorial tem suscitado no grande público que o visita sentimentos, referências, associaçães e metáforas diversas. As críticas e os debates

Reconhecer como verdadeiros os fatos históricos deste passado de horror, tema ainda difícil e doloroso para a sociedade alemã, é irremediavelmente fundamental para uma Alemanha solidamente democrática e tolerante Betânia Uchôa

continuam. Crianças brincam em seus blocos e olham curiosamente este vasto campo incompreensível, enquanto adultos, velhos e jovens vivem experiências pessoais distintas. Acima de tudo, neste espaço não neutro não se pode evitar o confronto com a barbárie e a monstruosidade do nacional socialismo. É preciso tempo para que o Memorial se incorpore gradativamente ao ambiente urbano da cidade-capital e torne-se mais um elemento da história política de Berlim, da Alemanha e da Europa. Aqui “o Nazismo não é um fenômeno remoto, envolvendo um governo e partido abstrato”, mas um fato real e uma realidade difícil e indesejável com cicatrizes e marcas profundas na nação alemã. Espera-se que este espaço de reflexão, contemplação e estupefação traga consigo novos significados para as gerações futuras e que outras barbáries possam ser evitadas. A mensagem que se apreende do Memorial é que há uma esperança implícita de que as futuras gerações não sejam cúmplices passivos e resignados dos massacres como os perpetrados na África, Bósnia, Kosovo, Curdistão, Chechênia, Palestina, entre tantos outros. Assim, o Denkmal für die ermordeten Juden Europas terá um maior significado. •

73

Crianças visitam o Memorial do Holocausto: para que não se repita


74

ESPECIAL

O castigo do esquecimento 60 anos depois do fim do regime nazista, uma mirada sobre as relações entre a arte e o Nazismo revela que os perseguidos alcançaram a glória e os áulicos jazem no esquecimento Sérgio Luz

J

esus Cristo não era judeu, e, sim, um alemão ariano nascido perto de Frankfurt. Quem descobriu a América não foi Cristóvão Colombo, e, sim, um dinamarquês de origem alemã, ariano, chamado Dietrich Penning. Parece um repente de Zé Limeira, o Poeta do Absurdo (para quem Pedro Álvares Cabral inventou o telefone, e Getúlio Vargas fez o parto na mulher do rei Salomão...), mas não é. Trata-se de dois exemplos do que foi chamado de Literatura Nazista, um – digamos assim – gênero que surge depois que Adolf Hitler assumiu o poder, em janeiro de 1933. A nomeação do fuehrer para a Chancelaria é uma espécie de sinal para que uma grande parte dos intelectuais alemães da época (judeus e não-judeus) começasse a pensar em fugir da Alemanha. O primeiro a tomar o caminho do exterior é Bertolt Brecht, um dos mais importantes teatrólogos da história do teatro e militante-de-carteirinha do Partido Comunista Alemão (PCA), que pega um trem para Praga em 28 de março de 1933. Nesse dia, os jornais dão, em manchete, o incêndio do Reichstag (o Parlamento alemão) no dia anterior, crime atribuído aos comunistas e pretexto para que o novo governo lançasse uma brutal repressão, prendendo e/ou executando os principais líderes do PCA (entre eles, os 100 deputados eleitos na eleição anterior) do Social-Democrata e vários intelectuais. (Depois da Tchecoeslováquia, o autor da Ópera dos Três Vinténs morou na Áustria, Suíça, Finlândia, Dinamarca e EUA, de onde voltou para a Europa na década de 1950, por causa de outra era de terrorismo cultural, o macartismo). Na Alemanha, a repressão se intensifica depois que Joseph Goebbels é nomeado ministro da Propaganda do III Reich, em 13 de Março de 1933. Quatro dias depois, os membros nazistas da Academia Prussiana de Artes exigem a expulsão dos artistas

Continente novembro 2005


ESPECIAL Reprodução

considerados “progressistas”. Houve, por parte de dois intelectuais, uma tentativa de resistência ao Nazismo: Thomas Mann (autor de A Montanha Mágica e Prêmio Nobel de Literatura de 1929) e Kathe Kollwitz (gravurista expressionista, que tem obras no acervo de vários museus, entre eles o de Arte Contemporânea do Paraná). No início de fevereiro – já com Hitler na Chancelaria –, os dois lideram um manifesto conclamando a unidade das esquerdas, o que acabou não acontecendo, como a História registra. Kathe Kollwitz é expulsa da Academia de Belas Artes da Prússia e proibida de expor seus quadros. Morre em Konigsberg, pouco antes da rendição da Alemanha. Prisões e suicídio – Thomas Mann se exila em 1933, na Suíça, e em 1939 vai para os EUA, onde recebe a notícia de que a Faculdade de Filosofia da Universidade de Bonn lhe cassara o título de doutor honoris causa. Mann reage com uma carta ao reitor: “Nestes quatro anos de exílio involuntário, nunca parei de meditar sobre minha situação. Se tivesse ficado ou retornado à Alemanha, talvez já estivesse morto. Jamais sonhei que no fim da minha vida seria um emigrante, despojado da nacionalidade, vivendo desta maneira!” (Thomas Mann, naturalizado americano em 1944, foi vigiado de perto pelo FBI, a polícia federal dos EUA, onde teve um dossiê de 800 páginas que o considerava “comunista” ou “comunizado”, apesar de seu filho Klaus e de seu irmão mais novo Golo terem lutado na II Guerra Mundial como soldados do Exército dos EUA. Fotos do dois, fardados, constavam do dossiê de Mann.) Bertolt Brecht e Thomas Mann não foram, porém, os únicos intelectuais a fugir do Nazismo. A lista dos que deixaram a Alemanha e, mais tarde, os países dominados

Estudantes da Juventude Hitlerista promovem queima de livros, em 1933

75


76

ESPECIAL Reprodução

Marlene Dietrich com soldados americanos: repúdio ao Nazismo

pelos nazista, é grande: Sigmund Freud, Albert Einstein, Heinrich Mann (irmão de Thomas), Hanna Arendt, Erich Kästner, Erich Maria Remarque (autor de Nada de Novo no Front, execrado e proibido por Goebbels), George Gronz, Jan Petersen, Maz Reinhardt, Bruno Walter, Walter Gropius (criador da escola de design Bauhaus, considerada por Hermann Goering, o número 2 da hierarquia nazista, “um foco da cultura bolchevique” e fechada pelos nazistas em 11 de abril de 1933), Paul Klee e Wassily Kandinsky (sem falar das pernas de Marlene Dietrich, que não aceitou convite de Hitler para voltar à Alemanha e ser a grande estrela do cinema nazista: preferiu se naturalizar americana e fazer shows para tropas aliadas no front...). Alguns não conseguiram sair da Alemanha a tempo, caso do Prêmio Nobel da Paz de 1935, Carl von Ossietzky, preso no mesmo ano e morto num campo de concentração em 1939. Ossietzky não foi o único intelectual preso e/ou morto por causa do Nazismo. O pintor Hugo Meyer-Thur foi assassinado pelas SA (tropa de assalto do Partido Nazista), em Hamburgo; o escritor Ludwig Renbn foi condenado, em janeiro de 1934, a Continente novembro 2005

30 meses de prisão; Erich Muhsam morreu num campo de concentração; e se suicidaram os escritores Kurt Tucholky (na Suécia) e Ernest Toller (EUA), o pintor Kirschner (Suíça), além de Stefan Zweig (Brasil). Fuga para os trópicos – O Brasil recebeu vários refugiados do Nazismo. Os mais conhecidos foram os austríacos Stefan Zweig, autor de Brasil, País do Futuro e que se suicidou em Petrópolis, RJ, junto com a mulher, Lothe, em 1942, e Otto Maria Carpeaux. Nascido Otto Karpfen, de pai judeu e mãe católica, o autor da História da Literatura Ocidental, em oito volumes, falava, além de alemão, flamengo, inglês, francês, italiano, espanhol, latim, catalão, galego, provençal e servocroata. No Brasil, aprendeu português, tornou-se colunista e editorialista na fase áurea do extinto Correio da Manhã e foi um crítico ferrenho da ditadura instalada em 1964. Carpeaux foi um dos destaques da legendária Passeata dos 100 mil, no Centro do Rio de Janeiro, em 1968, 10 anos antes de morrer. O fogo sempre exerceu um fascínio sobre os nazistas. O incêndio do Reichstag é um bom exem-


ESPECIAL

Reprodução

O que torna mais chocante a mediocridade, a burrice e a violência da cultura da Era Nazista é o contraste com o período anterior, a chamada República de Weimar

Thomas Mann tentou, em vão, unir a esquerda alemã contra os nazistas

plo. Com os livros, não foi diferente. Estudantes da Juventude Hitlerista organizaram duas grandes queimas de obras consideradas “degeneradas”. A primeira, em 9 de abril de 1933. A segunda, a mais famosa, em 10 de maio, queima três mil títulos, com direito a discurso de líderes nazistas e a um elogio de um poeta nazista, Hans Johst, para quem tocar fogo em livros é uma “necessidade de purificação radical da literatura alemã de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã”. Entre os “elementos estranhos”, autores como Thomas e Heinrich Mann, Heinrich Heine, Bertolt Brecht, Freud, Erich Maria Remarque e todos os escritores judeus. Não só livros são queimados pelos nazistas. Muitas pinturas consideradas “degeneradas” também se perdem para sempre. Em 19 de julho de 1937, é aberta uma exposição – com 730 obras de 112 artistas – de “arte degenerada” na Casa da Arte Alemã, em Munique. Na véspera, ao inaugurar a Casa da Arte, Hitler, um artista frustrado, afirma: “De hoje em diante vamos iniciar uma desapiedada guerra de saneamento, uma desapiedada guerra de aniquilamento contra os últimos representantes de nossa dissolução cultural.” (O artista Hitler, em geral, é descrito como medíocre, mas pelo menos um historiador sério pensa diferente: John Lukacs, húngaro naturalizado americano e autor de vários livros sobre o Nazismo. Para ele, Hitler “foi um desenhista e pintor de talento e possível arquiteto. Essas habilidades foram muitas vezes injustamente desprezadas ou incorretamente categorizadas(...). Ainda assim, foram reconhecidas por outras pessoas (como, por exemplo, o cenógrafo escocês Edward Craig, que reuniu quase 100 esboços e aquarelas de Hitler)”. Contrastes com Weimer – Em 12 de janeiro de 1939, Goebbels manda Continente novembro 2005

77


78

ESPECIAL

Cynthia Hart/Corbis

Pátio Velho em Munique (1914), aquarela de Hitler: pintor frustrado ordenou queima de "obras degeneradas"

O artista Hitler, em geral, é descrito como medíocre, mas pelo menos um historiador sério pensa diferente: John Lukacs

queimar as obras exibidas na exposição “degenerada” e outras do índex nazista, mas nem todas vão para o fogo. Antes, Goering pega, para sua coleção particular, 15 quadros: cinco de Van Gogh, quatro de Munch, três de Franz Marc e um de Cézanne, Gauguin e Signac. No dia 20 de março de 1939, em Berlim, a ordem de Goebbels é cumprida, e são queimados 1.004 quadros e 3.825 aquarelas, desenhos e gravuras. O que torna mais chocante a mediocridade, a burrice e a violência da cultura da Era Nazista é o contraste com o período anterior, a chamada República de Weimar, que durou de 9 de novembro de 1918 até 30 de janeiro de 1933, quando Hitler assumiu o poder. O período é considerado os “anos dourados” da cultura alemã e gerou obras e movimentos como o Cinema Expressionista, A Ópera dos Três Vinténs Continente novembro 2005


ESPECIAL

Reprodução

(Brecht), Metrópolis, O Vampiro de Dusseldorf e Dr. Mabuse (os três de Fritz Lang), Nosferatu (Friedrich Murnau), O Anjo Azul (Josef von Sternberg), além da Bauhaus (de Walter Gropius e Ludwig Mies van der Rohe), uma das mais importantes escolas de design do mundo. Enquanto obras como os filmes do Expressionismo, as peças de Brecht e a Bauhaus (com sua mais conhecida criação, a cadeira tubular, copiada até hoje) continuam mais modernas do que nunca, quem se lembra do poeta nazista Hans Johst, aquele que elogiou a queima de livros, ou de quem disse que Jesus Cristo era alemão-ariano – um autêntico samba-doalemão doido? •

Sede do movimento Bauhaus, ícone da cultura sob a República de Weimar

Intelectuais aderentes

E

m outubro de 1933, o jornal Frankfurter Zeitung publica um manifesto assinado por 88 escritores e jornalistas em favor do Nazismo. Depois da guerra, alguns disseram que seus nomes foram colocados à revelia no documento. Por ocasião da 1ª Guerra (19141918), outros 93 intelectuais também assinaram um manifesto a favor da política de agressão do Kaiser Guilherme II. Um dos signatários do apoio a Hitler foi o advogado (e escritor) Hans Franck, governador da Polônia ocupada e condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg. A lista dos adesistas de 1933 é a seguinte: Agnes Harder, Agnes Miegel, Alfred Brust, Alfred Richard Meyer, Anton Schnack, Arnold Bronnen, Borries Frhr. von Munchhausen, Bruno W. Jahn, Bruno Werner, Carl Haensel, Dietrich Speckmann, Eckart von Naso, Eduard Stuchen, Franz Martin, Fred Eckardt, Friedr. Schnack, Friedrich Abrenhovel, Friedrich Griese, Friedrich W. Herzog , Gerhard Menzel, Gottftried Benn, Gustav Frenssen, Gustav Kohne, Gustav Schreier, Hans Caspar von Zobeltitz, Hans Fr. Blunck, Hans

Franck, Hans Ludwig Held, Hans Martin Cremer, Heinrich Lersch, Heinrich Lilienfein, Heinrich Sohnrey, Heinrich von Gleichen-Russwurn, Heinrich Zerkaulen, Helene von Nostiz-Wallwitz, Herybert Menzel, Hans Johst, Hans Knudlen, Hans von Hulsen, Heinz Schauwecker, Heinz Steguweit, Hermann Claudius, Hofrat Rehbein, Ilse Hamel, Ilse Reicke, Ina Seidel, Joh. von Leers, Johannes Gunther, Johannes Schlaf, Josef Ponten, Karl Bulcke, Karl Heinl, Karl Lange, Leo Weissmantel, Lothar Schreirer, Ludwig Frinkh, Lulu von Strauss und Torney, Magnus Wehner, Marie Diers, Max Dreyer, Max Grube, Max Halbe, Max Jungnickel, Max Karl Bottcher, Moller-Partenkirchen, MuhlenSchulte, Oskar Loerke, Otto Brues, Otto Flake, Paul Oscar Hocker, Peter Dorfker, Richard Euringer, Richard Schneider-Edenkobrn, Rudolf Brandt, Rudolf G. Binding, Rudolf Herzog, Rudolf Huch, Rudolf Presber, Schussen (Wilh.), Ruth KohlerIrrgang, Walter von Molo, Werner Beumelburg, Will Vesper, Willy Seydel, Wilh von Scholz. •

Continente novembro 2005

79


Anúncio


Anúncio


Folha Press

Vozes da terra Paraibanos José Américo de Almeida e José Lins do Rego criaram um universo na literatura brasileira em que a seca do Sertão e o drama do açúcar são os protagonistas Paulo Gadelha

Folha Press

A seca no Sertão é retratada em obras literárias


registro

H

á um sentimento revolucionário plasmando a alma paraibana. Mudar é, sem dúvida, um verbo que a gente tabajara sempre conjugou, especialmente na política e na literatura. Nos idos de 30, o cadáver de João Pessoa foi a sementeira que modificou a paisagem da vida política brasileira, objetivando dar ao país um modelo democrático de fazer eleições e uma forma disciplinada de administrar a coisa pública. Em fevereiro de 1945, foi a Paraíba, pela voz de José Américo de Almeida, em entrevista ao jornalista Carlos Lacerda, quem derrubou o Estado Novo. É, também, na literatura, que o nosso Estado se mostra inovador. Revolucionário. Dinâmico. A Bagaceira, livro publicado em 1928, foi o “Abre-te, Sésamo”, do regionalismo na literatura brasileira. Inquestionavelmente, é o mais social de todos os romances brasileiros e o que retrata a mais viva preocupação com a terra e o homem nordestinos. A visão crítica de Alceu de Amoroso Lima, o sempre lembrado Tristão de Athayde, há 77 anos, profetizava a grandeza estética e o caráter revolucionário de A Bagaceira, conceituando: “há, portanto, nesse livro, a síntese em que eu vejo o que já pode haver de realmente nosso, de realmente novo em nossa arte literária: a inteligência e o instinto, a natureza bárbara da terra e dos homens do interior da terra – e a natureza civilizada, requintada do espírito que vai transformando essa terra, que se vai fundindo com ela e transfigurando-a para uma unidade futura”. O lançamento de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, em 1928, consolida, sem dúvida, o movimento modernista, deflagrado seis anos antes com Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade. É, assim, o romance – símbolo deste ciclo de transformação literária, marcado por aguda preocupação com a forma, já que “José Américo de Almeida reintroduz a perfeição e a correção do estilo abolidas na primeira fase do modernismo”. Hoje, decorridos, repita-se, 77 anos de sua primeira edição, o romance do paraibano ilustre é um livro profundamente atual. Intensamente vivo. Jackson de Figueiredo, em sóbrio artigo escrito em 1928, sob o título “A Fisionomia Cultural do Autor de A Bagaceira”, assim define o romance: “A Bagaceira é o poema do sertão nordestino, ou melhor, o poema da humana vaga sertaneja, em seu perpétuo rolar do sertão definido, heróico e idílico, às terras mestiças, sensuais, dispersivas, cruéis e sentimentais, que se abeiram da inconstância do mar. E as duas paisagens, que se limitam, os dois homens que se mesclam no amor passageiro, no amor definitivo, assim como na rusga de momento e no ódio mortal”.

Continente novembro 2005

83


84

registro

A Bagaceira é, metáfora à parte, o grande libelo que a literatura brasileira usa para estigmatizar estruturas viciadas e atrasadas. Um livro-denúncia, com certeza. A seca no Sertão, com seu cortejo de horrores e mazelas, leva o romance de José Américo de Almeida a apontar a nódoa da injustiça social, com o grito saído da boca de um dos seus personagens: “O promotor acusou o réu em nome da sociedade. Quem é mais criminoso? O réu que matou um homem ou a sociedade que deixou por culpa sua morrerem milhares de homens? E antes de ser réu, ele é vítima da falta de solidariedade da raça. A seca chegou a aprazar suas irrupções com a lei da periodicidade. Todo mundo tinha previsão de catástrofe em datas fatais. E os poderes públicos não atalharam, não procuraram corrigir os acidentes da natureza incerta, que dá muito e tira tudo de uma vez”. Vê-se, assim, que a obra do Solitário de Tambaú era preocupação constante com o homem e a região, denunciando para despertar. Dentro deste encarte, vale a interpretação de Plínio Salgado: “o que atormenta o romancista da hora que atravessamos é a instabilidade que encontra em todas as expressões da vida presente. A inquietude que lhe vem de mil forças intelectuais que abrem o começo de nossa era, com a sinfonia de ansiedades. O romance é um índice social por excelência. É uma sintonização de energias, uma síntese de formas

sociais. Nada mais difícil ao escritor do que fixá-las agora, ou melhor, fixar-se ele próprio, no tumulto”. Daí, pois, a íntima relação entre o autor e sua obra. O romancista e o estadista se completam. Em ambos, o desejo aberto de emancipar o homem. De transformá-lo em sujeito da história. Por isso, os problemas, que uma estrutura sócio-econômica injusta insiste em manter, ainda são os mesmos, narrados com realismo e consciência pelo autor: a fome, a miséria, as desigualdades sociais. E, apesar do quadro de abandono que a insensibilidade humana fez gerar, o sertanejo, historicamente agarrado à terra, resistindo a tudo e a todos, ainda é o mesmo retirante, protestando junto a Lúcio, filho de Dagoberto: “moço, sertanejo não se adoma no brejo. O Sertão é como o homem malvado para a mulher; quanto mais maltrata, mais se quer bem. A gente é como o gado, sujeito que tirado do pasto morre de tristeza. Valentim, se não tivesse o dever de salvar a filha, não teria descido, não teria deixado a fazenda sertaneja. Queria ficar abraçado com o mourão da porteira até esticar a canela. A gente sai por esse mundão sem saber para onde vai. Quanto mais anda, menos quer chegar. Porque se fica, está de muda e tem pena de ficar. E enquanto anda, pensa que vai voltar”. Uma verdade eterna, num romance de densa sensibilidade humana, que parece ter sido escrito ontem.

Fotos: Folha Press

José Américo de Almeida incluiu o regionalismo na literatura brasileira

Continente novembro 2005

José Lins do Rego conta o “drama do açúcar” em várias obras


registro 85

Por outro lado, a Paraíba, igualmente, foi revolucionária noutro segmento da literatura brasileira. É que, outro José, o Lins do Rego, foi o grande mestre do chamado romance do açúcar. No estudo interpretativo do açúcar como presença marcante na formação da literatura brasileira, o professor Luís da Câmara Cascudo é incontestado: “o café, o sal, o algodão e o cacau não determinaram uma referência de romance talqualmente a cana-de-açúcar”. Pois bem, o romancista da Várzea do Paraíba sinaliza, no universo literário, o drama do açúcar em obras como Menino de Engenho, O Moleque Ricardo, Doidinho, Bangüê e Usina. Neste campo, ninguém o suplantou. Construiu o seu mundo cultural sem fugir às suas origens e sem esquecer a sua temática regional. Foram romances, memórias, literatura infantil, crônicas, observações de viagens, tudo sentimentalmente vinculado ao homem e à região. Todo seu poder de criar nega as dificuldades que a vida lhe impôs. As orfandades, a maneira de ser criado sem o carinho dos pais, o assomo asmático, nada disso inibiu a alegria de criar. Foi um escritor realista sem derivar para o pessimismo. Era inevitável, contudo, que uma certa nostalgia timbrasse a sua obra, fenômeno, aliás, observado por Juarez da Gama Batista, no primoroso ensaio Sentido do Trágico em José Lins do Rego – Prêmio José Veríssimo (1973) da Academia Brasileira de Letras –, quando afirma: “José Lins do Rego renova, a cada romance, o problema da solidão, como temática decisiva. A solidão das criaturas entregues a um destino que nunca se sabe qual é, como um vulcão ameaçador. E lembra Conrad, a violência que se abate sobre os seus caracteres marcados pelo confinamento, pela proscrição, e o choque que sobrevirá com o mundo que é também dos outros”. Aqui, o aspecto mais sensível de sua obra. Queria, de qualquer maneira, mostrar o drama do Nordeste, um grito que era, ao mesmo tempo, denúncia e desafio. Há, pois, nos seus livros, um explícito enfoque sociológico na abordagem serena, objetiva, meditada do homem, da terra, das relações sociais. Foi, insista-se, o grande instante de um segmento valioso da literatura brasileira: o ciclo do açúcar. Por isso, Tristão de Athayde, em estudo crítico da obra do paraibano do Pilar, observa que sua temática vinha “refletir nos painéis do seu grande mural a morte dos bangüês, a agonia dos engenhos, o domínio crescente das usinas, em suma, a desumanização da economia pela mecanização da lavoura e com isso a ruína do patriarcado e a dispersão de um povo, descendente dos escravos de outrora, e ainda não fixado no trabalho livre”. Viu, desta maneira, a ascensão e a queda do açúcar. Sofreu com a inevitável força da história: a morte dos bangüês e o silêncio dos engenhos. Sentiu tal realidade e a anunciou. Foi profeta em sua própria terra. Assim, a sua obra não morre nunca. Tem o selo das coisas imperecíveis. Ou como disse Otto Maria Carpeaux: “a obra de José Lins do Rego é mais, muito mais do que um documento sociológico; é qualquer coisa de viva, porque o seu criador lhe deu o próprio sangue, encheu-a dos seus gracejos e tristezas, risos e lágrimas, doenças, barulhos, disparates, e da sua grande sabedoria literária. Deu-lhe o hálito da vida. Essa obra não morre tão cedo. É eternamente triste como o povo . José Lins do Rego foi aquilo que ele mesmo disse do pintor Cícero Dias, em crônica memorável: um menino de engenho com a loucura da arte. •

Imagens: Reprodução


86

ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Não mora mais ninguém Pessoas e objetos se confundem e ficamos sem compreender se os mortos são lembrados por eles mesmos ou por alguma metáfora do que significavam

C

om certeza, não foi na biografia de Gabriel García Márquez Viver para Contar onde li a história de um menino que, ao perder a mãe, teve como primeiro sentimento o de que nunca mais comeria arroz doce, porque era ela quem cozinhava o seu prato favorito. Através dessa privação, aparentemente insignificante, a criança elabora a imagem da orfandade, de um futuro sem doçura. Por que estabeleci uma relação entre o fluxo de memória desencadeado pela perda, como acontece diante da constatação da morte, e a obra de García Márquez? Talvez, por algum deslizamento explicado pela psicanálise, ou porque o autor especializouse no tema, falando sobre ele com humor e tragicidade. Em Crônica de uma Morte Anunciada, o assassinato do personagem Santiago Nassar é revelado já nas primeiras páginas. A narrativa se faz pela reminiscência dos acontecimentos que levam ao desfecho trágico, um passado tornado tão presente pela recordação, que até acreditamos que o final poderia ser alterado, e a morte anunciada acabasse por não acontecer. Cem Anos de Solidão, o romance mais famoso do autor, também começa com uma reminiscência: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Em O Amor nos Tempos do Cólera, a personagem Fermina Daza só consegue chorar a morte do marido quando se encontra sozinha com as lembranças: “Tudo o que era do esposo lhe atiçava o pranto: os chinelos de borlas, o pija-

Continente novembro 2005

ma debaixo do travesseiro, o espaço sem ele no espelho da penteadeira, o cheiro pessoal dele em sua própria pele”. Chega até a abalar-se com o vago sentimento de que “as pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas”. Há um permanente deslizamento de significados. Pessoas e objetos se confundem e ficamos sem compreender se os mortos são lembrados por eles mesmos ou por alguma metáfora do que significavam. Os egípcios, e até bem pouco tempo os indianos, tinham o costume de enterrar os mortos com suas roupas, alimentos, mobiliários, porque acreditavam que eles fariam uso desses bens numa outra vida. Os motivos eram religiosos, e muitas vezes incluíam o sacrifício de esposas, escravos, parentes, animais. Foram encontrados túmulos com até cento e trinta corpos de pessoas, despachadas na companhia dos defuntos. De certa forma, cumpriam o desejo de Fermina Daza, o de levar para o além tudo o que pudesse recordá-los. Como nos romances e memórias de García Márquez, o que me impressiona no relato das perdas, independentemente de quem seja o narrador, são os detalhes que cercam os acontecimentos funestos, deixando a morte, o fato em si, num plano secundário. Da mesma forma que o Coronel Aureliano Buendía não pensou na execução, Fermina Daza preferiu imaginar um meio de livrar-se das tralhas do marido, e o menino sentiu falta de quem cozinhasse arroz doce, todos nós fazemos o inventário dos nossos prejuízos quando morre uma pessoa amada.


ENTREMEZ

O primeiro sentimento que experimentei quando me avisaram que o médico e musicólogo George Laederman havia morrido, foi o de que nunca mais escutaria música. Ao longo de muitos anos fui usuário da sua coleção de CDs e DVDs clássicos. Nossa amizade se confundia com as sonatas de Beethoven, as cantatas de Bach, os concertos de Vivaldi, as óperas de Wagner, os balés de Stravinsky. Desenvolvemos um dialeto próprio, um jeito cúmplice de nos mover na zorra do mundo, relevando apenas as notas musicais, as sinfonias em que nunca desafinavam violinos do mensalão, contrabaixos de paraísos fiscais, fagotes de políticos inescrupulosos. Com George Laederman não existia tempo ruim, apenas música ruim. Ele nunca começava uma conversa perguntando “tudo bem?” ou “como tem passado?”. Perguntava se eu já tinha escutado uma nova gravação das partituras de Bach ou se ouvira Nelson Freire tocando os estudos de Chopin ou árias seletas na voz de Kiri Te Kanawa. Se eu o consultava sobre um determinado concerto, ele me oferecia cinco versões diferentes, da sua coleção que, perfilada, ocupava cem metros lineares de estantes, uma apreciável Alexandria sonora. Ao tomar conhecimento da morte do amigo, pensei, como o menino do ar-

roz doce, que nunca mais ouviria música, que com ele haviam sido enterradas as belas sonoridades do mundo. Mas todas as músicas permaneceram, e nelas, a lembrança de Laederman, ou ele mesmo. Existe um escritor peruano, pouco conhecido no Brasil, por conta do isolamento a que foi condenada nossa América do Sul, que reforça o mesmo ponto de vista de García Márquez sobre a permanência das pessoas nas casas e objetos, depois de morrerem. Assim como em Pernambuco ignoramos o que escrevem os poetas cearenses, no Brasil desconhecemos a poesia do Peru, Chile, ou mesmo Argentina. César Vallejo, grande poeta peruano, escreveu um poema em prosa, intitulado “Não mora mais ninguém”. “...quando alguém vai-se embora, alguém permanece. O lugar por onde um homem passou nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou.” Sim, as mãos que mexiam o arroz doce partiram, mas o afeto que impregnava o açúcar, misturado ao cravo e à canela, permanece eterno. • Continente novembro 2005

87


SOCIOLOGIA

Arquivo AE

88

Afinal, o que é ser cordial? Livro de João Cezar de Castro Rocha propõe leitura comparativa das obras de Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre Cláudia Nina

D

ois clássicos da historiografia nacional fazem aniversário em 2006: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, e Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, ambos publicados pela primeira vez em 1936. A importância de tais obras reflete-se ainda hoje, na maneira de se analisar as crises do presente, especialmente no que diz respeito ao poder e à política. Repensá-las é voltar ao cenário dos anos 30, tempo em que o Brasil se redescobria sob o olhar renovado das Ciências Sociais, que traziam uma visão antropológica do desenvolvimento do país, em conexão com as modernas teorias vindas da Europa. A partir daí, nada mais seria igual nos trópicos. Hollanda e Freyre, somados a Caio Prado Jr., autor de Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, foram, nas palavras de Antonio Candido, os grandes “explicadores do Brasil”. Ensaio sobre a interpretação da formação social brasileira e o declínio da família patriarcal, Raízes do Brasil – um “clássico de nascença”, ainda segundo Antonio Candido – foi o primeiro volume da coleção Documentos Brasileiros, na época coordenada por Gilberto Freyre para o editor José Olympio. Mucambos, de

Continente novembro 2005

Para Sérgio Buarque de Hollanda o “homem cordial” é um homem dominado pelo coração

Freyre, também é um estudo sobre a formação da família patriarcal e sua decadência, mas dividido em dois eixos temáticos: a vitória histórica da rua sobre a casa e o êxito social da mestiçagem. Curioso e paradoxal é pensar que, após 70 anos de leitura e crítica, alguns elementos centrais analisados nestas obras tão singulares permaneçam à espera de uma compreensão mais aprofundada. Aspectos estes que, numa interpretação apressada, acabaram não sendo explorados em toda a complexidade com que foram elaborados. A questão da “cordialidade” do brasileiro é um exemplo. Presente em ambos os ensaios, o conceito ainda hoje desperta equívocos. É o que explica o professor de Literatura Comparada da UERJ, João Cezar de Castro Rocha, em O Exílio do Homem Cordial (primeiro volume da coleção Ágora Brasil, da Editora do Museu da República), que propõe uma leitura comparativa das duas obras, lançando novas luzes sobre o tema da cordialidade. No capítulo 5 de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda propôs que o brasileiro poderia ser mais bem entendido como exemplo acabado do “homem cordial”. Mas o que significa ser um homem cordial no


SOCIOLOGIA

Gilberto Freyre: cordialidade é produto da mestiçagem

sobrevivência das relações cordiais, provocando seu progressivo desaparecimento, como escreveu em Raízes. Ao contrário do que pensava o historiador, entretanto, o homem cordial sobrevive ao progresso e ao mundo globalizado. Para entender como as artimanhas da cordialidade ainda vicejam em plena contemporaneidade, João Cezar empreende uma outra volta ao tempo, visitando o mundo das letras em diversos momentos da história. O cenário não poderia ser mais apropriado, pois sempre esteve contaminado pelas chamadas “técnicas de inserção cordial”, e é onde o espírito crítico importa menos do que os contatos pessoais. Não se pode esquecer que Pedro II financiara a publicação de A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães (o imperador desejava que o poema fosse o grande épico da literatura brasileira), assim como, não muito distante de nós, os amigos de Manuel Bandeira supriram-lhe a falta de um editor. Nada disso se alterou muito ao longo do tempo. Alheio às regras sociais universais e acreditando com fidelidade na máxima “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”, o homem cordial seria, então, aquele para quem “o jeitinho brasileiro” (o que não exclui a violência, o desrespeito e o ódio, como foi visto no olhar perspicaz de Sérgio Buarque de Hollanda) seria sua filosofia maior de vida. Ele está, portanto, enfronhado em todas as esferas, tanto da cultura quanto do poder. E ainda mais presente onde estas duas instâncias se entrelaçam. “O conceito de cordialidade continua atualíssimo para compreender o Brasil. A formação histórica brasileira gerou um homem cordial, isto é, o homem da família, dos amigos, que trata a coisa pública como se fosse propriedade dele. E pode fazê-lo porque ele é fruto de uma ordem na qual a esfera privada predomina sobre a esfera pública”, esclarece João Cezar. Em suma, com o conceito de cordialidade, Sérgio Buarque de Hollanda oferece uma teoria para tratar da promiscuidade do público e do privado que ainda hoje é relevante para compreender, por exemplo, uma crise política como a do PT. O passado – seja ele “cordial” ou não – é sempre fonte preciosa para se entender a origem de alguns – insistentes – enigmas do presente. • Tyba

contexto abordado pelo historiador? Eis um dos pontos centrais do livro de João Cezar, que toca, corajosamente, em questões cruciais da relação cultura versus poder, desde os tempos coloniais até a contemporaneidade, e ainda aborda o tema do exílio, como sendo o eixo a e raiz da literatura brasileira, visto em obras como Os Sertões. A princípio, o adjetivo “cordial” gerou muitas querelas. Os conservadores da época acharam que associar o brasileiro à imagem de um “homem cordial” parecia desvirilizante, e o melhor seria encaixá-lo no protótipo de um Cavaleiro da Esperança, ou coisa que o valesse. Com o tempo, a polêmica cedeu lugar a um entendimento parcial do que significava, para Hollanda, a cordialidade do brasileiro que, ao contrário do que superficialmente possa parecer, não quer dizer apenas sincero, afetuoso, amigo. As paixões – egoístas e desgovernadas – estão na origem do conceito: trata-se de um homem de “fundo emotivo extremamente rico e transbordante”, segundo Sérgio Buarque de Hollanda, ou seja, um homem dominado pelo coração (cor, coração em latim). E mais importante: uma pessoa rebelde a leis abstratas e às disposições universais, pois “conduz o cotidiano com base em impulsos e emoções”, como esclarece João Cezar, também autor de Literatura e Cordialidade: O Público e o Privado na Cultura Brasileira (Eduerj). A cordialidade seria, então, uma forma especial de sociabilidade, que se opõe à polidez e à cortesia, incluindo o amor e o ódio. Para Gilberto Freyre, a concepção é um tanto diferente. Em Sobrados e Mucambos, a cordialidade é o resultado do processo de formação da própria sociedade, aparecendo como se fosse um produto da mestiçagem. Torna-se sinônimo de brasilidade, tão logo a originalidade do processo histórico brasileiro seja definida como a habilidade em desenvolver meios de convivência harmoniosa. Em outras palavras: a cordialidade é índice de nacionalidade – o homem cordial é o brasileiro por excelência. Sérgio Buarque de Hollanda, em contrapartida, acreditava que a urbanização ameaçaria a

Continente novembro 2005

89


Sidney Corrallo/AE

Oswaldinho (E) e Dominguinhos: sanfoneiros em homenagem a Seu Lua

Sanfonas enluaradas Encontro de sanfoneiros faz homenagem a Luiz Gonzaga e revela talentos e gêneros musicais que permanecem fortes no Nordeste Sara Correia

N

um universo de incontáveis instrumentos musicais, a sanfona certamente está na categoria dos que carregam a essência da saudade. Talvez seja o que melhor toca (em todos os sentidos da palavra) a saudade. Acordes do instrumento, feitos a partir do encontro sincronizado do fole com os botões, deixam no ar a sensação de que algo está no passado ou que alguém está longe. Desde que Luiz Gonzaga (1912-1989) consagrou-se como o Rei do Baião, outros músicos se dedicam ao exercício de tocar sanfona e acordeom, dando continuidade à arte genuinamente nordestina.

Continente novembro 2005

A diferença básica entre a tradicional sanfona e o acordeom é o teclado de piano, presente apenas no acordeom – ou acordeona ou acordeão ou cordeona. A sanfona comum tem botões no lugar das teclas, e recebe também outros nomes, como gaita-ponto, gaita-de-botão, concertina, harmônica, fole, gaitade-foles e realejo. Não importa o nome, os instrumentos são tocados e divulgados por músicos como Oswaldinho, Arlindo dos Oito Baixos, Camarão, Dominguinhos, Joquinha e Chiquinha Gonzaga (sobrinho e irmã de Luiz Gonzaga, respectivamente), entre outros.


MÚSICA

cantar. Ele era só instrumentista e tocava todos os ritmos com a sanfona”, lembra Marcos Veloso, um apreciador do instrumento e fã de Seu Lua. “Entre a década de 40 e 50, foi criado o ritmo que revolucionou o país: o baião. Luiz Gonzaga, que mesmo sendo nordestino, pobre e preto, rompeu barreiras e revolucionou a música do Brasil com um ritmo próprio”, analisa. Com apoio do Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura) e da Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco), o 8º Encontro de Sanfoneiros do Recife conta com verba de 70 mil reais e espera um público de 10 mil pessoas. Sanfoneiros, compositores e poetas que exercem a profissão no Recife, como Ivan Ferraz, Xico Bizerra, Elias Lourenço, Ricardo Nunes, Alcymar Monteiro, Flávio José, Flávio Leandro, Jorge de Altinho, Maciel Melo, Petrúcio Amorim e Santanna – O Cantador, também têm presença confirmada no encontro. •

Cor red

o/O

Glo

bo

8º Encontro de Sanfoneiros do Recife Espaço Cultural Alberto Cunha Melo – Restaurante Nosso Quintal (Rua Leila Félix Karan, nº 15, Bongi – ao lado da CHESF). Dias 2 e 3 de dezembro, a partir das 10h. Apresentação de 70 sanfoneiros, exposição de sanfonas e exibição de vídeos, além de barracas de comidas e bebidas típicas. Entrada franca.

Wa nia

Se nas festas dedicadas a São João os foles são usados à exaustão, é no primeiro fim de semana de dezembro – há sete anos – que os instrumentos são homenageados e tocados por cerca de 70 músicos, no Encontro de Sanfoneiros do Recife. Além das personalidades já citadas, a oitava edição, este ano, contará com a participação de Terezinha do Acordeom, Zé Bicudo, Marcelo Feira Nova, Duda da Passira, Marquinhos do Acordeom, Raminho do Acordeom, Evandro dos Oito Baixos, entre outros. A principal bandeira do encontro é homenagear Gonzagão. “O objetivo é divulgar a arte da sanfona, o instrumento que imortalizou Luiz Gonzaga, que é o grande mestre disso tudo. Mas nossa maior alegria é homenageá-lo. Para isso, teremos a participação de vários sanfoneiros, dos mais consagrados aos mais novos, além dos mirins”, explica Marcos Veloso, produtor cultural e organizador do encontro, que é pioneiro. Frutos dos encontros anteriores – DVD do 7º Encontro dos Sanfoneiros do Recife e livro de Edvaldo Arlégo – mapeiam a trajetória de instrumentos e de músicos, com relatos e histórias contadas pelos tocadores. Cenas do interior de Pernambuco se misturam a emocionadas interpretações de sanfoneiros. Além da apresentação de 70 músicos (35 a cada noite), o encontro contará com exposição de sanfonas e acordeons, com aproximadamente 40 instrumentos de colecionadores, vendedores e afinadores, e o “Cine Asa Branca”, que exibirá documentários e vídeos sobre o Seu Lua e de encontros anteriores. “Além de Luiz Gonzaga, o homenageado (em memória) deste ano será o sanfoneiro de oito baixos Abdias. Marinez e sua Gente, junto com o filho Marquinhos, farão uma homenagem a Abdias, ex-marido de Marinez e pai de Marquinhos. O outro homenageado será Dominguinhos, que vai participar do nosso 8º Encontro”, adianta Veloso. Embora tenha forte representação rural, há quem considere a sanfona um instrumento hegemônico, por conta de sua capacidade em ser usada em vários ritmos e gêneros musicais. “Até o começo da década de 40, havia os tangos, as valsas, o jazz, o blues. À época, Luiz Gonzaga era contratado para tocar, mas era proibido de

91


MÚSICA

Fotos: Arquivo da Academus

92

Guardiões da música

Academia Pernambucana de Música comemora 20 anos dedicados a guardar e renovar a memória musical pernambucana Renata Bezerra de Melo

H

á exatos 20 anos, surgia em Pernambuco uma sociedade decidida a resgatar e preservar a música local. Os “guardiões” dedicaram-se a arquivar heranças preciosas, deixadas por grandes mestres, como Luiz Gonzaga, Capiba e Nelson Ferreira. A ordem, fundada em 22 de novembro de 1985, foi batizada com o nome de Academia Pernambucana de Música (Academus) e se constituiu numa espécie de árvore genealógica da sonoridade local. Numa tarefa mnemônica, a Academus materializa a história dos sons regionais, através da reunião de partituras, CDs, LPs e fitas k-7, com destaque para o frevo, o baião e a música da câmara. Acordes escassos no mercado fonográfico, referentes aos anos 20, 30 ou a épocas anteriores, encontram-se amparados sob o teto do santuário musical, na Estância, com a benção de Santa Cecília, a padroeira dos músicos. Basta um pouco de sensibilidade para detectar a diferença que a existência da instituição faz à vida cultural do Estado. O trabalho dos 30 acadêmicos é discreto, quase religioso. A sede, outrora sem piso, teto, tampouco instrumentos musicais, cresceu com o auxílio de doações e passou a beneficiar comuContinente novembro 2005

nidades carentes da redondeza com um trabalho voluntário de profissionalização musical para crianças, através da Escola Sol Maior. A catequese sonora se estende ainda a aulas de violão e iniciação musical, um tipo de assistência social por meio da música. Esse trabalho beneficente encontra como retorno a banda Maurício de Nassau, comandada pela presidente, idealizadora e fundadora da Academia, a musicista Leny Amorim. Os toques, os batuques, a cadência e a poesia que embalam a heterogeneidade musical pernambucana deram suporte para que a Academus tomasse corpo e se consolidasse como uma coletânea da produção sonora local. De “Onde tu tá neném” (Capiba) a “Que bonito é” (Luiz Bandeira), a Academia possui representantes de quase todos os estilos musicais do Estado. As técnicas do Rei do Baião estão lá, a erudição da música de câmara, a delicadeza instrumental do Sá Grama e os famosos arranjos do maestro Duda. E, ao contrário do caráter elitista e distante que o termo Academia parece conferir à instituição, ela não é direcionada exclusivamente aos interesses de especialistas ou antenados na cultura regional. O conteúdo acadêmico está ao alcance do grande público,


MÚSICA

e deve agradar, inclusive, àqueles simples mortais, cuja intimidade com a cultura do Estado se resume ao gosto pelo carnaval. Compositores que marcaram a história do Estado têm cadeira cativa na sociedade de defesa da música, sendo presença garantida, seja na lista de ocupantes, seja na de patronos. Entre os padrinhos veteranos estão: Capiba, que é inclusive um dos fundadores, Nelson Ferreira, Luiz Gonzaga e Jaime Diniz. Nomes que consagraram Pernambuco no cenário nacional, no entanto, não excluem de participação na Academia atuantes mais discretos, porém não menos apaixonados, a exemplo de Besa Barkokebas, Edson Rodrigues, Jussiara Albuquerque ou Moisés da Paixão. O breve contato com Leny Amorim é uma oportunidade de escutá-la espontaneamente cantarolando, entre uma conversa e outra, versos do “Último Regresso”: “Não deixem, não, que o bloco campeão guarde no peito a dor de não cantar . Um bloco a mais é um sonho que se faz, nos pastoris da vida singular...” Aniversário – O início dos festejos se deu em fevereiro e trouxe novidades. Primeiro criou-se um fardão, revestindo a data com a devida pompa. Em seguida, oito novos padrinhos foram admitidos (resultando em 30 cadeiras, no lugar das antigas 22). Os novatos são: Dimas Sedícias, Amélia Brandão, Laury Bernardes (fundador), Gamaliel Perruci, Ada Limonda (fundadora), Júlio Braga, Edgar Moraes e Luperce Miranda. Na seqüência, oito novos ocupantes para representar os novos patronos. Getúlio Cavalcanti, Egerton Amaral, Ieda Lucena, Sergio Campelo e Clóvis Pereira são alguns dos recém-chegados. A intensa relação dos apóstolos da casa da música pernambucana com os sons locais ainda foi institucionalizada pela criação de um hino, assinado por Moisés da Paixão. A letra vem ratificar os valores agregados ao longo desses 20 anos, à medida que narra: “...Pantheon de valores do passado, consagrado a Santa Cecília, teus valores são sempre lembrados, por teus membros em eterna vigília...”. Dando continuidade às comemorações, Leny adianta que já está em fase final o livro A Música e os Músicos em Pernambuco, de autoria da própria presidente. A edição vai resgatar as obras de ocupantes e patronos da casa e tem lançamento previsto para 2006. Mas a festa de gala mesmo acontece no Teatro de Santa Isabel, no dia 30 de novembro, com a apresentação do Academus Coral, no espetáculo Academus in Concert. •

Carlos Ferraz, Leny Amorim e Capiba, fundadores da Academus

Leny Amorim com os alunos da Escola Sol Maior

Academus Coral

Continente Continente novembro agosto 2005 2003

93


94

AGENDA/MÚSICA

CDS Fotos: Divulgação

Samba de vela

Música para todos os sentidos Comemorando sete anos de sucesso junto ao público local, a oitava edição do Virtuosi homenageia Clóvis Pereira e vem trazendo novidades na sua programação

Há cinco anos, quatro jovens compositores da periferia de São Paulo reuniram-se no bairro de Santo Amaro, numa noite de segunda-feira. Cavaquinho, pandeiro, surdo, tamborim. Junto a outros amigos formaram uma roda e começaram a cantar seus próprios sambas. A empolgação foi coletiva e desenfreada. Quando deram por si, varavam a madrugada. Como finalizar uma reunião ambientada à música, se o que pairava em torno era a descontração e a felicidade em mostrar e conhecer novos sambas? Então, uma luz: “Vamos acender uma vela”, disse um deles. “Comecemos a cantar os sambas. Enquanto sua chama perdurar, vamos cantando, até o último facho de sua luz”, disse outro. E Samba da Vela é o primeiro disco desta turma iluminada, que faz um samba autoral, inteligente, próximo ao pagode, mas de alta qualidade. Samba da Vela. Atração Fonográfica, preço médio R$ 20,00.

Música em poesia É cada vez mais comum a presença de CDs com poesias musicadas no mercado, o que não quer dizer que todos sejam bons ou que este é um trabalho fácil. Como musicar, por exemplo, um poema de Manuel Bandeira, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Mário de Andrade, Aldir Blanc ou de Elisa Lucinda? Que melodia ou arranjos eles teriam? Esta pode não ser a única resposta, mas Moacyr Luz acerta na escolha em A Sedução Carioca do Poeta Brasileiro, que teve como fio condutor as poesias que enaltecem o Rio de Janeiro e seus encantos. Com acompanhamento do sexteto Água de Moringa, o álbum conta ainda com a participação dos comentários de Jaguar, além da bela capa assinada pelo ilustrador Lan.

O grande homenageado da 8ª edição do Virtuosi - Festival Internacional de Música de Câmara de Pernambuco é o compositor, arranjador e pianista pernambucano Clóvis Pereira. E, pela primeira vez, uma orquestra sinfônica será formada especialmente para realizar o concerto de uma das noites, apresentando solistas nacionais e internacionais. Estas são apenas duas novidades da programação deste ano. O projeto também oferecerá ensaios abertos para alunos dos estabelecimentos de ensino público, além de Master Classes para estudantes de música da região, com artistas participantes que estarão contribuindo para o aperfeiçoamento musical dos interessados. São mais de 50 artistas envolvidos no evento. Clovis Pereira merece a homenagem. Pernambucano de Caruaru, cresceu num ambiente musical, com seu pai clarinetista de banda. Foi aluno do Maestro Guerra Peixe; diretor artístico e regente da orquestra da TV Jornal do Commercio; participou do Movimento Armorial com Ariano Suassuna e Cussy de Almeida, compondo as primeiras obras representativas daquele movimento. É também compositor de inúmeros frevos de rua e um dos mais profundos conhecedores de música popular tradicional. É diplomado em harmonia moderna e orquestração, pela Berkelee School of Music (Boston); membro da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, professor da Universidade Federal de Pernambuco e detentor de diversos prêmios. Um dos poucos e reduzidos festivais que valorizam a música erudita no Nordeste, o Virtuosi, grande composição da família do Maestro Rafael Garcia, tem como finalidade levar um repertório diferenciado da música de câmara ao público nordestino.

A Sedução Carioca do Poeta Brasileiro. Lua Music, preço médio R$ 23,00.

VIII Virtuosi (Teatro de Santa Isabel – Praça da República, s/n). De 12 a 19 de dezembro, às 21h. Ingressos: entre R$ 15,00 e R$ 40,00 (Estudantes e terceira idade pagam meia-entrada). Informações: (81) 32241020.

Rebelião na Zona Fantasma. Independente, preço médio R$ 25,00.

Continente novembro 2005

Rebelião poética Preste atenção: Rebelião na Zona Fantasma é um disco de poesia. Não somente poesia falada, com leitura linear e fundo musical, mas uma jornada criativa que explora as relações entre a poesia e a música – especialmente o folk, blues, baladas e jazz, tudo com a guitarra rasgada do rock – na qual as duas linguagens se fundem e a palavra, essência de tudo, assume entonações, ritmos e divisões surpreendentes. Assinadas pelo poeta, ficcionista e letrista de música Ademir Assunção, as poesias remetem a imagens ora insólitas, ora ácidas. Com participações especiais de Zeca Baleiro e Edvaldo Santana, o álbum faz uma revolução sonora nas zonas sensoriais.


CDS

Tambores da inquietação Forma e conteúdo do projeto Vale dos Tambores não se harmonizam Vale dos Tambores é um projeto inquietante. Composto de dois CDs, um livro de partituras e um livreto ilustrativo, realizados pelo músico Carlos Henrique Machado Freitas, propõe-se a contar a história musical dos negros que trabalharam e lutaram pela sobrevivência na bacia do Rio Paraíba, a partir do século 19. No livreto, Carlos recorre a belas e raras fotos e textos sobre a musicalidade daquele lugar, falando na sonoridade típica dos africanos e afros-descendentes: toques e loas de capoeira e maracatu, lundu, ijexá, jongo, congadas, também buscando informações no resultado da mistura de povos: dobrados, choros, catiras, cirandas, calangos e folias de reis da região unida pelo rio. A questão é que quando você lê o livro, tem a impressão de que se trata de um documento fiel à musicalidade ancestral. Mas quando ouve os CDs, convence-se de que essa história musical é apenas referência para uma releitura: o que está posto ali são, em sua maioria, choros e sambas-choro. De altíssima qualidade, é certo. São composições de alto nível de concepção e execução, com arranjos de cordas maravilhosos, que se imporiam sozinhas, mesmo que não estivessem apoiadas em um projeto ou pesquisa dando-lhes aval. Mas onde estão os tambores? Se o projeto é de releitura da música tradicional, deveria colocar-se como tal, visto que a imagem tem mediação efetiva e espera-se coerência entre conteúdo e forma. Carlos Henrique Machado produziu ainda, em forma de songbook, o álbum Choro Brasileiro, com as partituras de 48 criações suas, passando por todos os gêneros citados. (Isabelle Câmara) Vale dos Tambores. Independente, preço médio R$ 50,00.

AGENDA/MÚSICA

Livro que batuca Batuque Book traz a história de música e tradição dos maracatus de baque solto e virado de Pernambuco Apesar do livro trazer em seu título uma palavra, book, em inglês, Batuque Book, em contraposição ao genérico songbook, tem um conteúdo absolutamente pernambucano (mesmo que bilíngüe): os maracatus de baque virado e solto, que tanto caracterizam o Estado para o resto do país e para o mundo. O projeto é capitaneado por Climério Oliveira, vocalista e líder da banda Chá de Zabumba (que começa sua apresentação dizendo que este projeto é fruto de “um sonho com um livro que batucava”), e Tarcísio Resende, percussionista da mesma banda, e tem um caráter inédito na área: inclui partituras; fotos; CD-rom com áudio, banco de sons (mapa de samplers), vídeo (entrevistas com os mestres e clipes), uma demo, partituras e fotos extras; entrevistas; histórico dos principais, porque tradicionais, maracatus pernambucanos e formação do batuque de cada um deles (disposição dos instrumentos), o que diferencia os toques. Batuque Book é um amplo trabalho de pesquisa e transcrição fiel do funcionamento, da gestão destes grupos. Realizado com o apoio do Funcultura, Chesf e Prefeitura do Recife, o livro representa uma valiosa referência da cultura tradicional e popular para os próprios maracatuzeiros – “zeladores da tradição”, como se autodenomina Mestre Afonso, do Maracatu Nação Leão Coroado –, e também para musicólogos, pesquisadores, compositores, arranjadores e amantes do maracatu pernambucano. Mas, como está bem posto em forma de alerta nas primeiras páginas do documento, “Quem quiser aprender maracatu, é melhor procurar os mestres, pois o Batuque Book é só uma pausa”. (Isabelle Câmara) Batuque Book. Independente, preço médio R$ 60,00. Continente novembro 2005

95


96

ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

Um toque agridoce nas letras 5ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco revelou safra de jovens escritores e aposta das editoras na literatura feminina

E

screver é uma das mais antigas formas de comunicação sentimental – principalmente quando a criação dos textos se origina da maturação do pensamento. Um exercício mental tão fantástico que elastece os anos vividos. Não é à toa que algumas centenas de milhares de amantes da literatura vêm a desabrochar suas potencialidades quando entram na chamada faixa da terceira idade. Por outro lado, a alegria de se ver jovens e jovens estreando na literatura com o pungente fulgor de enveredarem pelos difíceis caminhos da fama literária – a obstinação, as lições que trazem aos mais experientes, de novas formas de transmitir suas idéias, seus sonhos. Um mecanismo tão real quanto abstrato no trato literário. Juntos, o velho e o novo provocam aquele toque agridoce nas letras. Uma empatia necessária para se construir um mundo novo, sábios povos, belas e concretas nações. A literatura não carece de rótulos – técnicas, vez por outra, formas universais, sem fugir da imaginação, muito mais do que de técnicas. E todos os “ismos” parecem filhos do academicismo dos fazedores de bulas das antologias. A literatura atual, masculina e feminina, por exemplo, compreenda-se logo a feminista, a singela, a sensual, a requentada em bruxedos e outras conjurações, não pode e nem deve conter essa vigorosa e viva expressão literária cometida pelas mulheres escritoras. Uma das particularidades mais interessantes que encontrei durante a recente 5ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco – por sinal, a melhor dos últimos tempos, diga-se de passagem, bem curada pelo nosso amigo e editor desta revista, Homero Fonseca – foi a novidade da literatura feminina como grande aposta das editoras. O primeiro romance da escritora portuguesa Margarida Pinto, Sei Lá (Editora Record), lançado na Bienal do Livro de São Paulo, de 2004 – já best seller, repetindo o feito do anterior Não Há Coincidências, um dos maiores êxitos literários de Portugal nos últimos anos, lida com as paixões e neuroses de uma mulher de 30, revelando o talento da autora ao abordar um tema tão em moda. Em muitos outros, escritoras e heroínas são objetos de análise, Continente novembro 2005

como Heroínas Saem do Armário e Contos de Escritoras Brasileiras (GLS Edições e Martins Fontes, respectivamente). Este último, organizado por Lúcia Helena Vianna e Márcia Lígia Guidin, reúne histórias com narrativa e estrutura significativas – relativamente curtas, dando fôlego ao texto e permitindo um melhor entendimento do processo de transformação das mulheres e o modo delas escreverem no decorrer do século passado. Quanto à literatura masculina, digamos assim, Letícia Wierzchowsky extrai daquele universo mais rude toda a grandeza e força femininas, como no caso do seu Casa das Sete Mulheres, demonstrando o melhor dessa literatura jovem, rica e temperada. Abordei esta linha literária, visto ter atentado para alguns debates constituídos por homens escritores sobre estilos e formas dos gêneros escolhidos, notadamente pelas mulheres escritoras. Polzonoff, por sua verve açodada, pelo que opinou no Café Continente (ou o Colombo comandado por Renato Lima), ou é o mais completo crítico literário do país ou ainda muito cedo chegou pensando em balançar o coreto para se firmar na mídia – o que é bastante salutar, captando sua jovialidade e inteligência. Foram dez dias de prazerosos papos. Por lá desfilaram Marcos Vilaça, Affonso Romano de Sant’Anna, Pedro Bial, Cristóvão Tezza, nosso colega de coluna “continental” Ronaldo Correia de Brito, Raimundo Carrero, Luzilá Gonçalves Ferreira, Marcelino Freire, Marco Polo (também editor desta Continente), as poetas Lucila Nogueira e Maria do Carmo Barreto Campelo, Fátima Quintas, Rostand, Waldênio, Milton Lins e quase toda a APL, além do nosso Gilvan Lemos (para mim, o maior contista brasileiro vivo). Pelos finalmentes, encontrei Geneton Moraes Neto, mestre dos ensaios políticos, um tanto caladão e prestando uma atenção danada a todos os movimentos da grande feira. Quem sabe, talvez, para não revelar os segredos dos presidentes? – E olhe cá, valha-me Deus, que o homem ainda é assim, assim, com o Lula de lá. •


Anúncio



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.