Continente #061 - Guimarães Rosa

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EDITORIAL

Reprodução

A reinvenção da língua

E

m maio de 1956, um mineiro de Cordisburgo, que havia publicado apenas dois livros até então, provocou o maior terremoto literário no Brasil, ao lançar um romance único em nossa Literatura: Grande Sertão: Veredas. Suas 538 páginas provocaram enorme repercussão, gerando admiração entusiástica e oposição feroz. Logo traduzido para diversas línguas, abocanhou expressivos prêmios literários e catapultou seu autor, João Guimarães Rosa, aos batentes da glória. Decorridos 50 anos, o julgamento dos contemporâneos foi depurado das incompreensões e cristalizou a percepção de que se tratava de uma obra-prima, um romance-marco da nossa Literatura, um clássico, enfim. Suas inovações estilísticas, reinventando a fala do povo brasileiro num processo de agudo conhecimento da dinâmica da língua, e seu conteúdo que tocava o coração do Brasil profundo produziram talvez a maior fortuna crítica dedicada a uma única obra entre nós: calcula-se que pelo menos 1.300 livros tratam de GS:V, em análises que vasculham seu estilo, sua estrutura e composição, sua mitologia, os aspectos metafísicos, as fontes em que se baseou, sua correlação com a história e a sociedade brasileiras. O professor Willie Bole, um estudioso da obra rosiana, colocou-o, em recente estudo, na categoria dos romances de formação, ombreando-o a obras fundadoras da Literatura, da Sociologia, da História do Brasil, e, com sua capacidade especulativa germânica, chega a considerar que Rosa, com sua escrita labiríntica, teria “intuído” o surgimento futuro da internet. Sobre essa obra aberta a múltiplas leituras, a Continente lança uma visão renovada de vários ensaístas, contribuindo, neste cinqüentenário, para a difusão do grande romance entre os novos leitores brasileiros. Outra questão abordada nesta edição é que, embora estejamos na Era da Informação, um grande número de pessoas recorre à alquimia, à astrologia, à parapsicologia e à regressão a vidas passadas, entre outras crendices, para explicar o mundo e a existência humana. Tudo porque o ser humano se inclina a ter por verdade o que prefere, rejeitando o que leva a dificuldades, pela impaciência de investigar. Ou seja, descarta a realidade pura e simples, porque deprime suas esperanças. É contra este tipo de “solução” fácil e falsa que se insurge o ceticismo, atitude filosófica que prefere viver com a dúvida a aceitar respostas que não podem ser comprovadas. É sobre esta postura que nos debruçamos, buscando não somente definir com clareza o que é de fato o método cético, mas também reafirmando-o como um real instrumento de busca pela verdade. •

A paisagem do sertão, incorporada à alma dos personagens

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CONTEÚDO Fotos: Reprodução

Marcelo Lyra/OlhoNu

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Grande Sertão, de Rosa: terremoto na literatura brasileira

Em Tempo de Verão, um sopro de criatividade na dança

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CONVERSA

04 Alcione Araújo condena separação entre cultura e educação

CAPA

12 Os 50 anos de Grande Sertão: Veredas e suas múltiplas leituras 16 Uma literatura marcada pelo grande sentimento do universo 19 Texto com camadas profundas em que se vê o trágico 22 Sertão, uma versão moderna da Idade Média

LITERATURA

24 César Leal reúne em livro toda sua obra crítica 26 Narrativa de Cláudio Aguiar 30 Poema de João Esteves Pinto 32 Agenda Livros

ARTES 38 Em Buenos Aires, a obra provocante de Hélio Oiticica 42 Agenda Artes

CÊNICAS 50 A excelência da dança de Márcia Milhazes 56 Livro registra a rica trajetória de Luiz Mendonça 57 Agenda Cênicas Continente janeiro 2006

COMPORTAMENTO 58 Revoltas na França esquentam debate sobre modelo urbano progressista

ESPECIAL 66 Por que é mais fácil acreditar nas explicações estranhas 70 O ceticismo como técnica de investigação da verdade 74 Mencken: a ironia como arma contra a ignorância 76 Fernando Pessoa, cético da realidade até do próprio eu

PERFIL 80 A filósofa pernambucana Maria do Carmo Tavares de Miranda

MÚSICA 84 O controverso e polêmico Fela Kuti, criador do afro beat 88 Agenda Música

TRADIÇÕES 92 Livro faz registro pioneiro sobre as Yalorixás do Recife 94 Manuel Eudócio, o sucessor de Vitalino


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Hieronymus Bosch/Reprodução

Travers/Le Floch/EFE/AE

CONTEÚDO

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Revoltas na França colocam em xeque arquitetura progressista

66 O valor do ceticismo na

busca do conhecimento

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 A sabedoria convencional não é mais suficiente

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 A inveja-sacanagem e a inveja-devoção na literatura

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 44 No corte e na dobra começa a escultura de Amílcar de Castro

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 As frutas que vieram de longe pelas mãos dos portugueses

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 65 A porta, escancarada ao sol, conduz ao inferno da caatinga

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 90 Ritos e festas com que marcamos a passagem do tempo

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente janeiro 2006


CONVERSA

Divulgação/Editora Record

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ALCIONE ARAÚJO

“Professores fora da vida cultural. Isso é um escândalo!” A separação entre a educação e a cultura no Brasil vem criando uma desqualificação do público e, por conseqüência, da produção cultural Regina Zappa

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CONVERSA

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escritor e filósofo Alcione Araújo tem, há muito tempo, uma inquietação permanente. Não se conforma com a deterioração da qualidade da produção cultural no Brasil e com a crise provocada por um público malformado, sem meios para exigir uma oferta melhor. A preocupação o levou a idealizar um projeto que, à primeira vista, parece simples e óbvio: voltar a vincular a cultura à educação. Alcione alega que a educação brasileira abandonou a formação do cidadão e do ser humano, para ficar apenas com a precária formação do profissional. “A educação virou um processo de adestramento para a produção.” Os números que pesquisou são assombrosos. Num país com 186 milhões de habitantes e 52 milhões envolvidos com educação, um romance é lançado com uma tiragem de apenas 3 mil exemplares; a ocupação média do teatro brasileiro é de 14% dos ingressos oferecidos, e 600 mil espectadores é considerado um êxito no cinema. A média das casas brasileiras não tem livros (só os didáticos), não tem instrumentos musicais, ou quadros nas paredes. Sua proposta, com a qual tem rodado o Brasil em conversas com prefeitos, governadores, dirigentes de instituições culturais, reitores, professores, sindicatos, senadores, deputados, é a de refazer as pontes que aproximam a educação da cultura, de forma que o mundo da educação participe da vida cultural e a produção cultural ganhe um público bem formado e com visão crítica.

Dois Filhos de Francisco, a exceção da exceção

Divulgação/Sony Pictures

Existem dados que indiquem esse declínio da produção cultural no Brasil? Dados bem concretos. O Brasil tem 186 milhões de habitantes. Está às vésperas de chegar a 200 milhões. Nesse conjunto, em torno de 52 milhões estão envolvidos com educação. São estudantes ou professores dos três níveis. E até pós-graduação. Isso é praticamente a população da França. Imagine que nossa população hoje equivale à população de sete Argentinas, duas Alemanhas, duas Itálias, duas Franças e 20 Portugais. O número de eleitores do Brasil é o maior do mundo. Vivemos uma democracia de massa. Pois bem, com esses números da população envolvida com educação e mais os eleitores, um romance lançado no Brasil tem uma tiragem de apenas 3 mil exemplares. A ocupação média do teatro brasileiro é de 14% dos ingressos oferecidos. E se considera um êxito no cinema ter 600 mil espectadores. O exemplo de Dois Filhos de Francisco é a exceção da exceção. É o maior sucesso da década. Acontece que a falta de audiências, leitores e platéias para a produção cultural faz com que ela se autodesqualifique para buscar público. A falta de um público preparado e mais qualificado não é suprida pela educação. Se observamos a produção cultural brasileira ao longo da nossa história, veremos que ela está em declínio. Não surgiram mais Gracilianos, Guimarães Rosas, Carlos Drummonds.

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CONVERSA Roberta Mariz

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Uma casa brasileira típica: tevê entronizada e a ausência de livros

É um círculo vicioso? Em qualquer lugar do mundo, a educação predispõe o estudante a ter contato com a produção cultural, naturalmente. Nenhum país avançado separa educação de cultura. Nesses países não se vive essa esquizofrenia. Nos chamados países do primeiro mundo existe uma produção que circula. Existe até mesmo a produção alternativa. Mesmo na Argentina e no México, por exemplo, a produção cultural é altamente vinculada à educação.

saber o que é o bom cinema. Essa é uma crise complicada porque os artistas começam a ficar inibidos em seus projetos mais arrojados. Se o artista for procurar seu próprio caminho ao longo do desenvolvimento da sua trajetória pessoal, ele vai falar sozinho porque tem uma sociedade que não se interessa mais por isso. E não se interessa, porque a educação não a preparou. Mas se você olhar o perfil médio da sociedade brasileira, vai ver que nas casas do brasileiro, além de ter mais televisão que geladeira, também não tem livro. Quando tem, é livro É um padrão nas sociedades com elevado grau didático. E não tem instrumentos musicais. Não de instrução, não é? tem quadros. Desde a infância, não se é colocado, Sim. A educação prepara primeiro para chegar em casa, diante das questões da estética, da cultura. às letras, também à música, às linguagens em geral, O que aconteceu que levou a essa decadência na que são todas metáforas do "A cultura melhora o mundo. É preciso ter um educação do país? nível de reflexão da grau de elaboração e percepO primeiro projeto educacional do Brasil foi o população sobre sua ção do mundo para se apro- projeto dos jesuítas, que era um projeto catequético. participação no país e ximar disso. Quem não sabe Era de uma violência cultural extraordinária. Aqui, no mundo democrático. ler não chega à literatura. E os indígenas já tinham toda a sua cosmogonia equaNão temos democracia quem não tem hábito de cionada, que era completamente ligada à natureza, se as pessoas não têm ouvir música nunca vai de- ao sol, à lua, às águas. Aí, o jesuíta chega aqui e diz: purar seus ouvidos para não é nada disso, há um Deus, que não tem rosto acesso às metáforas do ouvir uma música melhor. etc. E vai fazer a catequese deles. Esse era o projeto jogo político" Quem não vê filmes não vai educacional. Eles tentam e resulta num grande fraContinente janeiro 2006


CONVERSA casso. Mas foi daí que saiu um pouco da nossa salvação. Foi desse início que surgiram os colégios religiosos, os chamados colégios vocacionais, que começaram, mais tarde, a formar a elite brasileira. E eles traziam consigo uma cultura religiosa, que vinha do mundo grego, passava pela releitura de Aristóteles, feita por São Tomás de Aquino, e que trouxe até nós a arte sacra, o canto gregoriano, o latim, o grego, as literaturas de então. Esses colégios vocacionais vieram formando a elite desde sempre. Somos todos o legado deles. O Brasil só vai discutir educação pública na proclamação da República, no final do século 19. Onde de seu a ruptura entre cultura e educação? A orientação educacional brasileira, seguindo seu curso natural que era, originalmente, português, passou a ser, depois, francês. Portanto, nossas escolas, os modelos dos nossos cursos, até mesmos os cursos militares, de medicina, cursos muito especializados, eram de doutrina francesa. Quando chega a Segunda Guerra Mundial, os americanos saem triunfantes, do ponto de vista tecnológico. Bom, aquilo mudou o mundo. Então, o que aconteceu com a educação brasileira? Passamos a reproduzir o modelo americano, que consiste em eliminar as disciplinas chamadas de humanidades. Isso começa na universidade e instalase também no nível médio e no ensino fundamental.

E o Brasil entra, aos poucos, num modelo econômico eminentemente industrial e tecnológico. Surgiram cursos e mais cursos de formação de mão-de-obra. Cursos de curta duração, que pegam o cidadão e o aparelham para um exercício profissional imediato. Qual a solução? A idéia é singela. "Há uma produção cultural Fazer as pontes que reaproximem a edu- que está em estado de cação da cultura, de deliqüescência, exangue. forma que a produção Então, é preciso trazer esse cultural se mantenha público, antes que ela se autônoma. E também autodesqualifique que a educação crie completamente e vire mera pontes com a pro- reprodução da televisão" dução cultural. Assim se resolvem dois problemas ao mesmo tempo. Fazer com que o mundo da educação participe da vida cultural. E fazer com que a produção cultural ganhe esse público. E ela, aos poucos, vai novamente se autoqualificar, na medida em que surge uma massa crítica que é essa que está envolvida com a educação. Nas formulações que tenho feito, a primeira etapa é chegar aos professores. Os professores do Brasil estão fora da vida cultural. Isso é um escândalo. • Eduardo Knapp/Folha Imagem

O primeiro projeto educacional do Brasil foi dos colégios religiosos: fracasso e salvação

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo Janeiro | 2006 Ano 06 Capa: montagem com fotos de Guimarães Rosa (reprodução) e do Sertão de Minas (K. Weichert/Tyba)

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo e Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara Gestor da Gráfica Adailton Elias Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Eliseu Barbosa, Elizabete Correia, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira, Rojonas Egon e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1808-7558 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente janeiro 2006

Colaboradores desta edição: ARTUR

DE

ATAÍDE é graduado em Letras.

CAMILO SOARES é jornalista e estuda cinema em Paris. DANIEL PIZA é editor-executivo, colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Machado de Assis, um Gênio Brasileiro, entre outros. EDUARDO MAIA é jornalista. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia. JOSÉ MÁRIO RODRIGUES é poeta, jornalista e bacharel em Direito pela UFPE. Autor dos livros de poesia Trem de Nuvens e Alicerce de Ventania, entre outros. JOSÉ TELES é jornalista, escritor, crítico de música e autor do livro Do Frevo ao Manguebeat (Editora 34). KÁTIA AUGUSTA MACIEL é jornalista e estuda Cinema em Londres. LOURIVAL HOLANDA fez Filosofia, é professor na Pós-Graduação de Letras e de História da UFPE. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARIANA CAMAROTTI é jornalista e faz especialização em Jornalismo Econômico na Universidade de Buenos Aires (UBA). OLÍVIA MINDÊLO é jornalista PAULO GUSTAVO é escritor e mestre em Teoria da Literatura. PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. PERON RIOS é poeta, crítico e professor. REGINA ZAPPA é jornalista.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretorgeral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA foi correspondente de Guerra na Europa, em 1945. É autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Uma História de Poder e Saudades de 60. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.


CARTAS

Manoel de Barros

Aprecio demais a Revista Continente e a Continente Documento. Quando morava no Rio tinha uma assinatura. Agora que moro no Recife, compro-as na Livraria Cultura. Por conhecer bem a linha da Revista, escrevo-lhes para sugerir uma matéria. Fato é que temos entre nós um poeta maravilhoso, cuja sensibilidade e argúcia faz-nos pensar que o mundo é, ele mesmo, um poema. Seu nome é Manoel de Barros e completou aniversário dia 19/12. Vale a pena divulgar algo (muito!) sobre esse brasileiro em nossa Revista. Fátima Branquinho, Recife – PE

Manoel de Barros 2 Sou pernambucana, atualmente residindo no Rio de Janeiro e com uma assinatura da Continente Multicultural e Continente Documento. Adoro o trabalho de vocês, mas, até onde eu tenho acompanhado, não vi nenhuma reportagem sobre o poeta Manoel de Barros (caso eu tenha perdido a Revista que saiu falando do poeta Manoel de Barros – peço que me informem). Caso nada tenha sido publicado, peço uma atenção especial para esse poeta, que segundo Drummond, é o maior poeta vivo do Brasil. Estará completando no dia 19/12/2005, 89 anos. Por favor, não deixem essa data passar em branco, seria uma grande falha editorial de quem promove tão bem a cultura de nosso país. Leda Ceris, Rio de Janeiro – RJ Nota da Redação Na edição de setembro de 2001 (Ano I, nº 9) da Continente Multicultural foi publicada uma matéria de seis páginas sobre a vida e a obra do poeta Manoel de Barros. Os sabores de Fernando Pessoa Como sempre, Letícia nos traz novas informações (Coluna “Sabores Pernambucanos”, edição Nº59); já tinha lido em uma Gula antiga, uma matéria sobre Pessoa e seus hábitos gastronômicos, mas essa é quase que um tratado, isso mostra o perfeccionismo dessa maravilhosa e incansável estudiosa. Leandro Ricardo da Silva, Recife – PE Volumes Sugiro que a Continente crie volumes encadernados com os números mais vendidos, separados por temas: folclore, carnaval etc. Sandro Vasconcelos, Recife – PE

O descaso pela arte A arte como um trabalho intelectual que amplia a experiência que o homem tem do real e do imaginário se opõe ao trabalho alienante da sociedade moderna. Por outro lado, no meio da arte convivem compromissos e interesses alheios à própria arte; suas condições de produção se encontram dentro de um campo social e político, sujeito a um conjunto de pressões. O Estado, os patrocinadores e o mercado, visando interesses imediatos, privilegiam, muitas vezes, artistas cujas obras pouco acrescentam ao mundo da inteligência. Sem uma consciência crítica e sem uma convicção ética, artistas, críticos, intelectuais, administradores culturais inventados pela mídia e pelo poder político tomam posição e decidem contra a autonomia e a independência do trabalho de arte. Promovem e divulgam os bens culturais em proveito próprio, para se sustentarem de forma privilegiada numa relação de poder. Nada mais paradoxal, por exemplo, do que essas leis de incentivo à cultura. Por que incentivar a cultura, se ela é um componente essencial para o enriquecimento da sociedade? Antes de ser uma questão de lei, a cultura é uma questão de sensibilidade e de cidadania. Almandrade, Salvador – BA Todos os Contos Presentearam-me com o exemplar da Revista Continente Documento do mês de outubro – “Todos os Contos” – e meus alunos do curso de publicidade da Faculdade São Francisco, de Juazeiro, gostaram muito dos textos. Depois disso, achamos que deveríamos comprar mais exemplares, em vez de xerocar os contos. Antonise Coelho de Aquino, Petrolina – PE

Cinema, Aspirinas e Urubus Quando li a matéria de Kleber Mendonça Filho sobre o filme Cinema, Aspirinas e Urubus (edição nº 59), achei que ele estava muito “derramado”, mesmo considerando seus textos equilibrados, coerentes e profundos, bem feitos mesmo. Mas quando vi o filme, fiquei impressionada. Mesmo se tratando de uma narrativa linear, o filme tem uma luz fantástica que, de fato, ofusca os olhos (eu tive que fechá-los numa cena em que o sol é filmado quase em close, assisti ao filme com olhos meio cerrados), respeitando a imagem real do Sertão e do sertanejo. A interpretação do João Miguel, cheia de pureza e humor, é genial; ele dá vida ao trabalho. E mesmo que o ator alemão (Peter Ketnath) seja coadjuvante, sem ele a obra não teria o valor que tem. O filme faz uma verdadeira declaração de amor ao cinema – linda a cena em que Ranulpho (João Miguel) projeta um filme nas próprias mãos. Palmas para Marcelo Gomes, palmas para o cinema pernambucano! Maria Helena Perrini, Recife – PE Honra É uma honra estar mandando um e-mail para uma revista que amo de verdade. A Continente é realmente riquíssima e muito interessante. Infelizmente eu ainda não tenho a assinatura, mas me delicio na biblioteca da minha ex-escola. Parabéns pelo trabalho sério e objetivo que vocês fazem. José Leite, Ouricuri – PE Errata Na edição nº 40 da Continente Documento, pág. 35, a palavra “colchão” (nome dado ao pernil de porco, parte alcolchoada e gorda do animal) foi publicada com a grafia errada.

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes

A transdisciplinaridade desejável A sabedoria convencional não é mais suficiente para os nossos complexos problemas

A

s razões da diminuição da criminalidade em Nova York e em muitas cidades dos Estados Unidos nos anos 90, não foram necessariamente fruto das medidas baseadas nos saberes convencionais: diminuição do desemprego, inovação na polícia, controle da venda de armas, crescimento da economia e diminuição da pobreza. Todas essas razões, de fato, devem ter contribuído, mas uma das mais relevantes foi a legalização do aborto ocorrida em 1973. Esta é uma das conclusões “transdisciplinares” a que chegaram Steven Levitt e Stephen Dubner, apresentada no livro Freakonomics, e que causou comoção nos Estados Unidos, cujos métodos enfeixam os atributos da razão e da sensibilidade. Quando as primeiras universidades foram criadas, só existiam oito disciplinas. Hoje, nos Estados Unidos, são catalogadas cerca de 80.000. O mundo da ciência e da técnica ampliou a quantidade de disciplinas e consolidou a racionalidade técnica através do conhecimento especializado. Todavia, mesmo com toda a sua potência e seu prodigioso capital técnico, o mundo moderno não tem sabido estabelecer uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis que tenham harmonia com os modos de vida que criamos. Vivemos o descrédito da política, o desprezo das normas éticas e morais, o esgarçamento das relações sociais, a obscuridade na cultura e nas artes, e as “verdades” estabelecidas pela ciência e pela técnica. O crescimento sem precedentes do conhecimento e dos problemas contemporâneos, mostra que coexiste uma grande diferença entre as mentalidades dos atores sociais e as necessidades de desenvolvimento da sociedade. A sabedoria convencional, segundo J. K.Gailbraith, não é mais suficiente para a solução dos nossos complexos problemas. A emergência de soluções para essa complexidade globalizada mostra que é preciso ir além dos conceitos multi e interdisciplinares utilizados atualmente. Quando o quadro Guernica, de Picasso, pode ser estudado pela história da arte, alternando com a física, a química, a história da guerra, a geometria, e até a literatura, usa-se a multidisciplinaridade. A interdisciplinaridade tem outro foco: ocorre quando, por exemplo, os métodos da física nuclear transferidos para a medicina conduzem a novos tratamentos de câncer. Mas, todos esses enfoques se exaurem na complexidade dinâmica da vida hoje. O mundo moderno desconsidera o passado e o futuro. Nesse contexto, em que os interesses imediatos predominam, não há ideal possível. A astúcia do poder produz o

assassinato das utopias. A racionalidade técnica produz o esquecimento do passado e as atribulações do presente obscurece o futuro. Diante dessa realidade, a sociedade do conhecimento tem que quebrar os atuais paradigmas, pois além do desejo e da vontade do poder existe no homem uma força motivadora ainda mais intensa que é o sentido de viver. A alma humana pode suportar tudo, menos a falta de um significado para a vida. Tanto para os poderosos quanto para suas vítimas, a utopia é necessária. Daí ser preciso harmonizar mentalidades e saberes. Transpor limites multi e interdisciplinares, pois os desafios éticos requerem cada vez mais capacidades amplas. A interseção dos diferentes campos do conhecimento não pode ser um conjunto vazio. A transdisciplinaridade, por ir mais além, fará o diálogo entre as diferenças. Sua finalidade é a compreensão do mundo presente como um dos imperativos da unidade do conhecimento, a adaptação das mentalidades aos saberes, através da superação das fronteiras disciplinares. No caso abordado em Freakonomics, independente das relações reais de causalidade da criminalidade, é a criatividade da análise inovadora e a quebra de paradigma na busca do lado oculto dos fenômenos que este artigo procura explorar, abrindo espaço para a transdisciplinaridade como forma metodológica capaz de analisar a complexidade dinâmica dos fenômenos humanos na nossa sociedade. Polêmica à parte, os autores mostraram através de uma investigação não convencional que a transdisciplinaridade é necessária, se não ainda como método, mas como uma nova postura em relação ao conhecimento que contempla simultaneamente razão e sensibilidade. • Continente janeiro 2006


CAPA

A flor da du´ vida Grande Sertão: Veredas, romance que marca um ressurgimento moderno do Barroco, completa 50 anos permanecendo aberto a leituras múltiplas ao eleger a dúvida como leitmotiv Paulo Gustavo

R. Linsker/Livro Brasil, Terra Virgem/Reprodução

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rdido a partir de uma novela ou conto que, em princípio, pertenceria ao universo fabuloso de Corpo de Baile, no Grande Sertão: Veredas, como nos adverte Antonio Candido, tem “de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício”. Por isso, todos acharão o que ler e com que se encantar. Os cerebrais se deslumbrarão com a sua lógica interna; os intuitivos, com seu vitalismo emocional; os especulativos, com seus signos metafísicos; os céticos, com suas dúvidas; os líricos, com sua intensa poesia; os moralistas, com seus aforismas e máximas; os religiosos, com seu misticismo, e assim por diante. Tudo, em Guimarães Rosa, e, por conseguinte, no Grande Sertão: Veredas se dinamiza em torno do excepcional. Não é simples ou possível traçar-lhe uma redoma crítica ou buscar-lhe um eixo único para a gravitação plural dos seus sentidos. Todavia, alguma crítica já vislumbrou na obra um ressurgimento moderno do barroco. Em seu ensaio Técnicas, Estruturas e Visão em Grande Sertão: Veredas, Jean-Paul Bruyas, após destacar que o livro é um romance de divisão e de ambigüidade, é um desses críticos que lembram o Barroco como uma possível chave para se ler a obra: “Multiplicidade, extravagância e disparates de pormenores, relevo saliente dado a grande número deles, pulular de vibriões que os agitam, movimento em redemoinho, enfim, que anima o conjunto: temos aqui, parece-nos, as características de uma grande obra barroca.” Ainda que não utilize o termo, Antonio Candido, analisando, igualmente, a presença da ambigüidade na obra, parece também se aproximar de valores barrocos na escritura rosiana: “Estes diversos planos da ambigüidade compõem um deslizamento entre os pólos, uma fusão de contrários, uma dialética extremamente viva – que nos suspende entre o ser e o não-ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambigüidade inicial e final do estilo, a grande matriz, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e obscuro, artificial e espontâneo.”

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CAPA Imagens: Reprodução

Comentando sobre o Barroco enquanto estilo literário, Vitor Manuel de Aguiar e Silva, em sua Teoria da Literatura, lembra que Ernst Curtius, crítico e filólogo alemão, concebe, em sua famosa obra Literatura Européia e Idade Média Latina, “o Barroco (ou o Maneirismo) como uma categoria permanente dos estilos literários, verificável em autores tão distantes no tempo e no espaço como Estácio, Calderón, Mallarmé, James Joyce etc”. Anos mais tarde, Roland Barthes, numa outra chave teórica, diria que afinidades de escritura não se limitam à coexistência no tempo. Sob essa perspectiva, a obra-prima de Guimarães Rosa realiza uma verdadeira quadratura de círculo, respirando a um só tempo um vitalismo nietzschiano e um racionalismo formal e microssistematizador. Se, por um lado, há uma inspiração temática de cunho anti-racionalista, seguindo uma corrente que vem do antigo Oriente – com o Tao, os Vedas e Upanixades - e passando por Platão, Plotino, Cristo e Bergson (corrente delineada pelo próprio escritor), por outro lado, há um racionalismo exacerbado a questionar o real e a linguagem e/ou aquele através desta. Entre a luz e a reflexão apolíneas e o movimento dionisíaco-heraclitiano, abre-se, nesse jardim Barroco, Edição de 1988, da Nova Fronteira a floração da dúvida rosiana. Com efeito, é pelo exercício da dúvida enquanto forma que podemos começar a entender os paradoxos da obra e conceitos como ambigüidade, meia-verdade e dialética, sempre mencionados pela crítica rosiana para decifrar seu texto. Por outro lado, é sabido que o próprio escritor se deu conta dessa obsessão pela dúvida ao teorizar sobre o tema num dos quatro inovadores prefácios de Tutaméia. A propósito do tema da dúvida no Grande Sertão: Veredas, Augusto de Campos, em ensaio intitulado “Um lance de ‘Dês’ do Grande Sertão”, descobriu, em busca de uma temática de timbres dentro da obra, que se destaca, dentre “os principais temas-timbres que irrigam de musicalidade a narração: o fonema representado pela letra D”. Esclarecendo, entre outros pontos, que: “Sem querer esgotar a riqueza de planos semânticos do romance, pode-se vislumbrar uma de suas significaçõeschave na dúvida, a dúvida existencial, a dúvida hamletiana – ser ou não ser – que Guimarães Rosa equaciona com uma fórmula própria: Deus ou o Demo.” Parodiando o próprio Guimarães (“A flor do amor tem muitos nomes”), podemos dizer que, no Grande Sertão: Veredas, “a flor da dúvida tem muitos nomes”. Explícita ou implicitamente, ela atravessa barrocamente as 195 mil palavras do livro. Logo no começo de sua narração, Riobaldo manifesta sua dúvida sob a forma de uma reflexiva inquietação: “Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”. Também a constante meditação da personagem procura conciliar o transitório e o absoluto – pólos fundamentais da dúvida crítica – como, por exemplo, neste trecho:

Cartinha cifrada de Rosa

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Rosa, com a mãe, Francisca, a filha, Wilma e o pai, Florduardo

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Dentre as inúmeras e múltiplas veredas que cada um de nós pode encontrar no livro, duas estão bem explícitas: a que é referida como estória e a que a metalinguagem refere como idéia, a preocupação filosófica sobre o problema do mal, da existência ou não do demônio

“Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma – mas que a gente não sabe em que rumo está – em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?”. Dentre as inúmeras e múltiplas veredas que cada um de nós pode encontrar no livro, sempre entendi que duas estavam bem explícitas na metalinguagem do romance: a que é referida como estória e que dá conta do relacionamento amoroso de Riobaldo e Diadorim, bem como das virtudes líricas do texto; e a vereda que a metalinguagem refere, através da fala de Riobaldo, como idéia, através da qual desdobra-se a preocupação filosófica sobre o problema do mal, da existência ou não do demônio. Eis por que a obra tem dois finais antes de vermos o símbolo do infinito fechando o texto. No primeiro final, podemos ler: “Aqui a estória se acabou. [§] Aqui, a estória acabada. [§] Aqui a estória acaba”. Páginas adiante, o outro fecho, dessa vez para a vereda da idéia: “Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigo somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.” Dessa forma, o primeiro final dá conta do enredo propriamente dito, e o segundo, refletindo o início do livro, é uma espécie de falsa conclusão. Assim, o leitor é novamente levado à dúvida do início, quando Riobaldo afirma: “Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele (no diabo) a crença”. Por isso, a vereda da idéia não encontra um final definitivo; toda ela não é mais que um espelho para a dúvida metafísica que persiste: “De Deus, do demo? Por duas, por uma, isto que eu vivo pergunta de saber, nem o compadre meu Quelemém não me ensina”. Atente-se, neste trecho, para o mimetismo do sentido (no próprio enunciado, tão freqüente no jogo lingüístico do autor) com a própria linguagem metafórica utilizada – “vivo pergunta de saber” –, o que transporta o problema para um nível existencial. A dúvida, assim, não se apresenta apenas como um exercício intelectual e filosófico, mas, sobretudo, uma espécie de fatalidade existencial da condição transitória do humano. A perspectiva da dúvida é aguçada pela certeza da subjetividade do conhecimento, de todo o conhecimento. Assim, chegamos à fronteira da especulação filosófica sobre o problema do conhecimento do real. Mas Riobaldo, como Guimarães Rosa, não é um cético radical, parecendo, antes, estar imbuído de uma perspectiva criticista ao modo de Kant. A dúvida não o leva – como é freqüente em nosso tempo – ao niilismo (pois: “Meu duvidar é petição de mais certeza”), mas, enquanto leitmotiv, abre um caminho heurístico na redescoberta do mundo e dos valores por meio de uma mística da linguagem. • Continente janeiro 2006


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O Rosa dos ventos Uma literatura marcada pelo grande sentimento do universo, frente a uma realidade multissignificativa. Assim é que Grande Sertão: Veredas fica como um marco da literatura brasileirasLourival Holanda

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a turbulência e flutuações freqüentes das definições culturais do momento, com a superposição de planos culturais e temporais, alguns textos resistem e permanecem como norteadores seguros. E, se a literatura é, como cremos, a inscrição das representações do imaginário social, é necessário retomar, situar e celebrar esta permanência. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, faz 50 anos de sua publicação, em maio de 1956. Desde então, a reinvidicação do conceito de sertão, identidade e cultura nordestina, têm sofrido o impacto da multiplicação das conexões do nosso tempo. Três grandes textos, na literatura brasileira, marcam a representação do universo sertanejo: Os Sertões, de Euclides da Cunha; A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna; e Grande Sertão: Veredas. Eles fazem uma orquestração feliz dos símbolos sociais, sônicos e icônicos, que atravessam a cultura do sertão. Euclides da Cunha, em Os Sertões, expunha corajosamente, numa outra interpretação do episódio de Canudos, quando a República nascia fazendo sua primeira enorme besteira: a não-aceitação das diferenças culturais. Por isso Euclides da Cunha escreve um livro vingador. Euclides fala do espanto dos expedicionários, chegando ao Sertão: “Viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca”. O Brasil oficial desconhecia o Brasil real. E, como a nãoaceitação do outro traduz a estreiteza mental de quem o recusa, a República daquele momento resolve eliminar o que não cabe em seu projeto de homogeneização. Os Sertões – o primeiro sinal, em fulguração e fúria, da nossa diversidade cultural malcompreendida. O pertencimento regional se diz a partir da identidade

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Reprodução

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Rosa com vaqueiros sertanejos: fonte de tipos e linguagens

lingüística. Donde, deduz-se, toda discriminação dialetal é letal. Guimarães Rosa é sobremodo o escritor consciente de que sua responsabilidade começa com a ética da forma: “Minha língua (...) é a arma com a qual defendo a dignidade do homem.(...) Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo”. Depois, Ariano Suassuna, em A Pedra do Reino, constrói um grande texto como um estandarte, estendendo a consciência inaugural de Euclides numa outra ressignificação icônica do substrato da tradição oral, sobretudo do cordel, ainda muito viva e atuante na memória recente e renovada da cultura sertaneja. “Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol esbraseado, parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser o arquejo de gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração dessa Fera estranha, a Terra – esta Onça-Parda em cujo dorso habita a Raça piolhenta dos homens”. Ariano Suassuna recorre à estrutura do romanceiro medieval, que aportou aqui, entre suor e sonho, com as caravelas do Descobrimento, e faz uma ressignificação do imemorável na cultura. Grande Sertão: Veredas, enquanto dava conta das mudanças políticas e culturais do Brasil (entre 1880 e 1930), mostrava, também e, sobretudo, um novo norteio

narrativo que estabelece outras relações nas representações das fronteiras da identidade sertaneja. O sertão de Rosa aponta já a mudança de ventos que viriam indefinir as fronteiras, desterritorializando, ou melhor: alargando o conceito de sertão, conjugando a identidade com as mudanças de modos do mundo atual. Não há perda, apenas risco de ganho na forma permeável e produtiva de intercambiar os valores sertanejos. O Conselheiro, Quaderna e Riobaldo: homens dilacerados, a um só tempo, cultos e populares. São transregionais porque são agônicos e cósmicos - intensos. Como esse cangaceiro letrado que foi Graciliano Ramos. O trabalho rítmico-semântico a que Rosa submete a narrativa vai fazer dele o mais maduro narrador da América Latina, para dizer com o crítico uruguaio Emir Monegal. O refinamento e o poliglotismo de Guimarães Rosa, os arcaísmos (os vestígios verbais que atravessaram a língua) e neologismos (as potencialidades de alargamento do protocolo lingüístico, os modos de poder dizer) permitem alargar as fronteiras, os territórios móveis – basta pensar a contínua migração de Riobaldo – como uma retradução intelectual das maneiras outras de ser nordestino. Este modo de tomar certo distanciamento, de si e da própria língua, está na raiz do processo criativo, em Guimarães Rosa: passar para a outra margem, para, a partir daí, poder se apossar do que então passa a ser Continente janeiro 2006

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CAPA GS:V é também um romance de formação, à sua maneira: despedida dos valores medievais e formação do Brasil moderno; transformação do jagunço-súdito em cidadão; as inquietações metafísicas. E, sobretudo, há a formação de uma nova sensibilidade, na aceitação (ainda que difícil) do mistério do Outro

Casa onde Rosa morou, no interior de Minas

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próprio. O sertão não é mais apenas uma imagem em sua fixidez territorial, limitadora e soberana, mas sofre um processo de metaforização fabuladora: cada qual, quando sozinho, está em seu sertão interior. “O sertão é dentro da gente”. Ou, em outro momento: “o sertão é uma espera enorme”. Esta, uma dimensão identitária que está além-fronteiras: “O senhor sabe o silêncio o que é? É a gente mesmo, demais”. Hoje, no modo intenso como as culturas se movem e se mesclam, os grandes textos guardam a força de ser um referencial social. De divulgadores e de formadores de um sistema de representação cultural. Que tanto podem ser aprisionantes, pela imagem consolidadora que definem, reduzindo, como podem ser liberadores do permanente potencial criativo de um povo. Não há como negar: Morte e Vida Severina, de João Cabral, fez mais pelo Nordeste, pela divulgação de certa imagem local, que muitas Embaixadas juntas não fizeram. Com Guimarães Rosa é o experimentalismo feliz que funde os registros: há ali o registro histórico, como a passagem da Coluna Prestes e a crítica ao mandonismo local. É também um romance de formação, à sua maneira: despedida dos valores medievais e formação do Brasil moderno; transformação do jagunço-súdito em cidadão; há as inquietações metafísicas, tentando costurar os trapos das lembranças com o fio de ouro de um sentido que as redimam da insignificância. E, sobretudo, há a formação de uma nova sensibilidade, na aceitação (ainda que difícil) do mistério do Outro. Daí o amor-pânico de Riobaldo. Difícil dizer a intensidade do encontro mais fundo entre duas pessoas, quando se tem apenas o cobre desgastado das palavras comuns: “E eu não sabia por que nome chamar; e exclamei me doendo: – meu amor!...” Assim, ao longo do romance, um deliberado lirismo envolve a narração cada vez que Diadorim se avizinha. É aqui certamente o ponto alto do romance. Há uma rebarbarização da literatura brasileira, que a arranca do psicologismo raso da técnica narrativa anterior para mergulhá-la na intensidade das emoções abissais, indizíveis. “O sério pontual é isso, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo”. Todo um desfio está aqui implicitado: como dizer o que, de tão fundo, foge à expressão? Como resolver o enigma de dizer, em quem como Rosa, que “quer não é o caso em si, mas a sobrecoisa, a outra-coisa”. Talvez a literatura tome de empréstimo o mote de Heráclito, falando do oráculo de Delfos: também a literatura grave nada esconde, nada diz – mas significa. O sobretexto de Rosa está nas entrelinhas, pacientando, para tomar o leitor de assalto, tomar-lhe o fôlego e devolverlhe vida, entre o pânico e o epifânico. Guimarães Rosa reitera, não o prosseguimento de um mero modelo narrativo, mas a capacidade criativa do interior profundo desse país enorme e rico que é o Sertão: “Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza”. Uma literatura marcada agora pelo grande sentimento do universo, frente a uma realidade multissignificativa. Assim é que Grande Sertão: Veredas fica como um marco da literatura brasileira que inscreve essa enorme região de fronteiras indefinidas no mapa literário do mundo. Um Rosa dos ventos abertos à literatura de todos os quadrantes. •


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Rosaa do infinito

A literatura rosiana é essa prosa poética e pensativa, em que os acontecimentos sempre revelam camadas profundas em que se vê o trágico. Grande Sertão: Veredas tem um enredo – ou uma fusão de enredos – que se assemelha muito ao das tragédias gregass Daniel Piza Fotos: Reprodução

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m seu conhecido diálogo com Günter Lorenz, em 1965, João Guimarães Rosa diz ser um homem do sertão, apegado a uma região remota e estranha como só um povo sem raízes pode se apegar ao que o destino lhe oferece. “Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, o modelo de meu universo.” Mais adiante, diz: “O sertão é dentro da gente.” Não precisamos de outra chave para entrar na obra de Rosa: ela busca o que há de universal no regional. Mas isso é pouco. O sertão é para ele símbolo do universo porque ali se enfrentam abertamente os paradoxos. A vida é regida pelo descontentamento, e a função do escritor é “criar da linguagem a sua própria metafísica pessoal”. Sendo homem do sertão, é por natureza um fabulista, um contador de lendas, sagas, “contos críticos”, morais, dado a encontrar no substrato das “estórias” as contradições da alma humana. Ou seja: não é qualquer região que permite o contato tão rico com o universal. “Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito.” Mais ainda: sertão, para Rosa, é o mineiro, não o sertão da caatinga, o sertão de Graciliano Ramos e João Cabral; é o sertão cortado por buritis, vacas, cavalos, vaqueiros e rios, principalmente rios: “Os grandes rios são profundos como a alma do homem, tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens.” O São Francisco é o maior representante desse sertão, um sertão agitado e habitado que, por isso mesmo, revela o triste e o eterno. Por baixo dos deslocamentos e brilhos da superfície, há

tanto a escuridão como a tranqüilidade do sofrimento do homem. A dor humana, em outras palavras, transcende o imediato, e esse é o paradoxo fundamental. É como no conto “A Terceira Margem do Rio”, em que o pai passa a navegar no meio do rio, livre de abordar uma das duas margens, preso à solidão inerente ao indivíduo. Num sertão onde a dúvida entre ficar e partir paira sobre cada pessoa, ele quer resistir, e não desistir. Sua linguagem é o silêncio, é esse vagar “de meio a meio”, no fulcro escuro dos dilemas de uma terra tão seca que vive em torno a um rio tão grande. O mesmo se pode dizer da literatura de Rosa: ela vai ao fundo das palavras para chegar lá aonde os paradoxos não permitam que se vá adiante. Sua metafísica não é a crença nem na decifração nem na inatingibilidade do mistério. O mistério, como em Fernando Pessoa, se manifesta nas coisas, no destino de não ter destino, no choque entre afeto e razão; como tal, manifesta-se na língua, na “dualidade das palavras”, no duplo-sentido de todo nome, de todo verbo. Daí a necessidade de criar uma linguagem que, como a fala sertaneja, é sincera e especulativa, não ideológica ou prosaica. Nas cartas que escrevia para seus tradutores, como Curt Meyer-Clason ou Edoardo Bizzarri, Rosa sempre chamava a atenção para o fato de que a palavra mais corriqueira deveria trazer “algo de meditação ou aventura”. O que lhe fascinava no português brasileiro eram as possibilidades de uma língua ainda não saturada, ao mesmo tempo rica por suas misturas étnicas. Mas, do dialeto de sua região à lin-

Rosa excursionou ao sertão, convivendo ao ar livre com gente, gado e mato – que comporiam o universo de sua literatura criativa

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CAPA espécie de prosódia meditativa, tranqüila em sua consciência do pathos. Rosa diz a Lorenz que Goethe, Dostoievski, Tolstoi, Balzac e Flaubert “nasceram no sertão”, ao contrário de um Zola, que “provinha apenas de São Paulo”, ou seja, que estava preso ao contingente, ao circunstancial, portanto destituído do vigor de uma língua capaz de alcançar o ritmo de sua própria consciência e ir além dos costumes e dos lugares-comuns. “O sertão é o terreno da eternidade, da solidão”, onde interior e exterior não se separam, onde deus e o diabo pelejam ao sol com armas e palavras. Riobaldo, o professor e atirador, não consegue a mesma precisão com a língua que tem com a espingarda. A língua não é branco ou preto, é um espectro de muitos tons e dissonâncias; pode ir do entusiasmo infantil à elaboração abstrata e, mesmo assim, jamais vai chegar ao centro da verdade. Não é curioso que esse escritor – que, imerso num mundo particular, aponta para o infinito – tenha nascido em Cordisburgo, palavra que sugere coração e cidade, o conflito entre o sentimento individual e o progresso moderno? Pois Rosa, ao falar do sertão e do universo, fala também do Brasil, país ainda em formação, portanto aberto a um projeto em que a civilização não sacrifica a sinceridade. Neste caso, o Brasil tem se mostrado mais próximo da trama de Riobaldo, que de tanto sonhar culpadamente com a junção dos contrários termina órfão dele. Mas esta é outra, infinita discussão. •

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guagem moderna e científica, das línguas ocidentais e atuais às orientais ou antigas (Rosa falava seis idiomas e lia também em latim, grego, russo e chinês, entre outras), tudo poderia ser aproveitado para expandir a expressão da língua portuguesa. Eis outro paradoxo caracteristicamente rosiano: para se aprofundar no português, ele mergulhou na etimologia universal. “O idioma é a única porta para o infinito.” Sua literatura é essa prosa poética e pensativa, em que os acontecimentos sempre revelam camadas profundas em que se vê o trágico. Grande Sertão: Veredas tem um enredo – ou uma fusão de enredos a partir de um enredo principal – que se assemelha muito ao das tragédias gregas. Riobaldo é como Édipo: ignora sua identidade e carrega a culpa do mundo. Está apaixonado por um homem, Reinaldo, sem saber que ele é uma mulher, Diadorim (“di” como em “dilema”) – mulher que seria uma espécie de perfeição por unir qualidades que normalmente aparecem separadas entre as mulheres, como a doçura e a força. Diadorim, por sua vez, é como Electra, condenada a esconder sua identidade por obrigação biológica, porque seu desejo de vingar o pai impõe o sacrifício de se submeter a um código moral e abdicar do amor por Riobaldo. Quando a verdade se revela para ele, é escura: Diadorim morta no combate a Hermógenes. No sertão exterior de suas Minas Gerais, Rosa encontra o sertão interior da condição humana. Não pinta, porém, o desfecho das peças de Sófocles ou Eurípedes: não se encena uma recondução ao equilíbrio social, mas a uma

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Sertao decantado O romance de 56 extrapola o tempo e o espaço pela dimensão metafísica, universalidade temática e, sobretudo, pela tentativa de solucionar impasses vivenciais em linguagem fabulosa Peron Rios

K. Weichert/Tyba

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um livro em que comenta o Grande Sertão: Veredas, algumas mazelas encobertas. Em 1928, vem a público Walnice Nogueira Galvão assinala a presença de mais uma exceção da literatura nacional: o Macunaíma, três fases essenciais nas letras brasileiras, no que se refere de Mário de Andrade, aglutina no “herói sem nenhum ao sertão como temática. Um primeiro regionalismo, em caráter” os diversos traços de brasilidade que o fazem meios do século 19, ganha força nos romances de José de fugir às malhas de um localismo datado. A partir de enAlencar (Til, O Sertanejo ), Visconde de Taunay (Ino- tão, os escritores brasileiros contagiam-sse uns aos outros cência) e de Franklin Távora (O Cabeleira), tendo como de uma febre do regional, onde um fechamento delibeprojeto uma reação, ainda que talvez inconsciente, à rado do mundo e uma feudalização da inteligência busmodelar literatura da c orte. O sertão, ali, era um emble- cam, em vão, a sempre fugaz essência da nação. Imerso historicamente nessas águas, Guimarães Roma. A querência por uma brasilidade criava seus heróis de argila e o exotismo sempre surgia como possibilidade sa elege em sua escritura uma outra forma de narrar, vendo na localidade específica apenas uma ignição, um de status. Um segundo momento aparece como óbice a esse ponto de saída para a sua prosa. A República Velha é olhar do sertão enquanto paraíso – perdido, porque não provavelmente a época em que se desenvolve a narrativa descoberto – de um Brasil metropolitano. Agora, com do Grande Sertão: Veredas. Mas o romance de 56 extraInglês de Sousa (O Missionário) e Domingos Olímpio pola o tempo e o espaço pela dimensão metafísica, uni(Luzia-H Homem), a luz romântica se faz nublar por um versalidade temática e, sobretudo, pela tentativa de soluenfoque menos ideal, através do qual saltam aos olhos cionar impasses vivenciais em linguagem fabulosa. Continente janeiro 2006


CAPA Sob o nome genérico de sertão, o livro é emboscada aos leitores menos atentos. O romance se inscreve nos sertões de Minas Gerais, do sul da Bahia e sudeste de Goiás, que têm uma vegetação boa para a criação de gado – vislumbrada nas referências simbólicas com que o texto sempre os resgata. Ao contrário do sertão setentrional, este não é árido, mas banhado pelas veredas, pequenos rios que têm à sua margem a imponência do buriti. Nem por isso faz-sse menos revolto e repleto de barbáries que caracterizam seu correspondente nordestino. Rosa, contudo, não conforma sua escrita à mera forma de um lugar. Sendo o sertão o mundo, como afirma constantemente com variações, traz para dentro de si todos os espinhos e carências com que o universo alhures faz dele uma metonímia. Por vezes, ele, sertão, é sobretudo um sentimento, uma sensibilidade solitária: “E dez, arranchando entre Quem-Q Quem e Solidão, e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra pra trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera, digo” (GSV, p. 249). “Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? Sertão é dentro da gente.” ( GSV, p. 270 ) O romance armazena em si o espaço geográfico da travessia de Riobaldo, o latifúndio existencial em que se efetua uma busca de sentido (afetivo, religioso) e o local da pesquisa linguística, onde se demanda a expressão poética. Por esse olhar, o sertão é, da alma, os labirintos, sendo as veredas trilhas do possível, sempre pensadas na escritura barroca, de modo hamletiano: “A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver.” ( GSV, p. 445 ) As veredas, por sua vez, simbolizam o curso do estaraí (o dasein heideggeriano), o fluxo inestancável da existência, desenhada no milenar arquétipo da água. Riobaldo, com todos os seus princípios, não pôde se furtar à experiência contemplativa de um amor que ele imaginava homossexual. Exemplo candente de que o homem não “é”, ele sempre “está” – navegando na movência do mundo. Veredas, palavra anfíbia: caminhos, correntezas. E Dia-ddor-iim representa essa travessia amorosa que o narrador há de cumprir, na qual a dor é passagem obrigatória. Outro aspecto que assombra é o grau de violência do sertão que o escritor mimetiza e recria. É percorrer um terreno rastreado dizer que tal universo é uma versão moderna da Idade Média. Ali, são transmudados em va-

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lores de nobreza os atos de crueza e barbárie. O coronelismo, estrutura social da primeira república, representada enfaticamente em Zé Bebelo, reflete uma forma atualizada de um feudalismo anacrônico. O romance, aliás, faz a todo instante referências medievais, na oralidade dos causos, nas cantigas de cordel ou até na recuperação textual de escritos como a novela de cavalaria História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Lembra ainda Nogueira Galvão : “Coroa o processo o apelo feito intermitentemente a um vocabulário arcaizante, advindo da literatura medieval: justas, torneios, ginetes e corcéis aparecem acoplados a abstrações da mesma proveniência, como honra, justiça, lealdade, palavra dada, etc.”(pp. 38-99) A indumentária de justiceiro que os jagunços a todo instante assumem faz recordar, inevitavelmente, a imagem dos cavaleiros andantes, o que fica muito claro no episódio em que decide Medeiro Vaz se dedicar à jagunçagem, com uma reverberação, aqui, do Dom Quixote: “Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na distinta casa-dde-ffazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô ( ... ). Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cacho d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem, dos campos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça.” ( GSV, pp. 33-44 ) Mas se dizer apenas isso não é pouco, é mínimo, diante do que o livro reserva. A truculência alia-sse aos sentimentos mais refinados que o medievo entregou ao Ocidente – flagrados na maneira com que Riobaldo percebe Otacília ou Diadorim – e às incertezas metafísicas que os absurdos e incoerências do lugar motivam. Em 1898, Euclides da Cunha inicia a escrita d’Os Sertões a partir de uma construção barroca e figural, esquivando-sse das armadilhas e “fazendo balancê” com os encantos ou recusas que a complexidade de Canudos acumula. De modo similar, Guimarães Rosa elabora o seu romance observando as contradições que definem sistemas e indivíduos. Quer, assim, pelo caminho poético, decantar esse “mundo misturado”, no duplo senso que a palavra guarda: celebrar e separar. E poucos enxergaram o sertão de forma tão múltipla e aguda como o autor dessa obra-pprima universal, uma visão exata em linguagem de topázio – luminar e permanente. • Continente janeiro 2006


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Em dois volumes, ensaios promovem a ampliação do conhecimento literário, contemplando desde a época dos clássicos até os dias mais recentes Luiz Carlos Monteiro

César Leal, crítico

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obra crítica de César Leal acaba de ser publicada em dois volumes intitulados Dimensões Temporais na Poesia & Outros Ensaios, que somam mais de 1.100 páginas. Os textos enfeixados no volume 1, às vezes revistos, contemplam ensaios e estudos antigos já publicados em outros livros como Os Cavaleiros de Júpiter e A Palavra como Forma de Ação. São republicados estudos memoráveis sobre autores universais e de há muito consagrados, como Dante, Thomas Mann, Gil Vicente, Camões. Entre os ensaios sobre brasileiros, Machado de Assis, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Pena Filho. Este volume mantém uma certa coerência sinalizada pelos autores escolhidos, que representam uma linha de pensamento ao nível da competência poética tanto em seus aspectos clássicos como nas incursões pela modernidade. Os trabalhos mais novos, às vezes inéditos em livro, que mostram uma produção mais eclética, ficaram para o volume 2, com textos sobre artes plásticas, teoria e história literária e ainda um bloco final com diversos poemas-homenagem dedicados a outros escritores ou a amigos do autor. Podem estar juntos, neste volume 2, poetas tão diferenciados e díspares como Ezra Pound e Weydson Barros Leal, Soares Feitosa e Octavio Paz. O fato relevante é que no âmbito da crítica literária César Leal fez sempre questão de deixar clara sua opção pela crítica de poesia, desde o aparecimento dos primeiros trabalhos em forma de artigos ou conferências na década de 1950. Sob esse ponto de vista, não se esquivou à problematização dos movimentos e tendências críticas mais importantes do passado e do presente – o new criticism, o estruturalismo, o formalismo russo, o impressionismo, o desconstrucionismo. Os preceitos propalados pelos grupos literários que assinaram tais tendências o levaram a servir-se de um amplo acervo teórico para utilização analítica e interpretativa do poema, resultando numa propensão para enfatizar mais o efeito dos elementos expressivos do que os comunicativos em poesia. Continente janeiro 2006


LITERATURA

Dimensões Temporais na Poesia & Outros Ensaios, César Leal, Editora Imago, Volume 1, 483 páginas, R$ 50,00. Dimensões Temporais na Poesia & Outros Ensaios, César Leal, Editora Imago, Volume 2, 643 páginas, R$ 50,00.

No ensaio “A Crítica Literária no Brasil”, registram-se afirmações que apenas corroboram o que pensa a respeito de poesia e técnica expressiva: “Na modernidade, o importante no poema não são os seus materiais, mas a técnica expressiva. Compreender um poema é compreender sua forma, sua estrutura lingüística, seus sinais, suas obscuridades, pois a poesia moderna está escrita assim e não como desejariam seus críticos, seus autores, os apreciadores e desapreciadores de sua expressão. Expressão do poeta ou expressão do estilo que eles representam. Temos, ainda, de levar na devida conta aqueles críticos sofisticados aprisionados em seus próprios sistemas, ou os que não admitem modificações no cânon das artes”. Alguns autores imprescindíveis para ele, principalmente ingleses, alemães e norteamericanos, podem encontrar-se hoje um pouco afastados das discussões literárias, sendo, no entanto, válidos ainda em setores isolados e em compartimentos específicos de suas obras, a exemplo de T. S. Eliot, Ezra Pound, Dr. Richards, E.R. Curtius, René Wellek, e ainda Hegel e sua estética, que aparece constantemente no sistema crítico de César Leal. No exercício público da crítica, César Leal especializou-se e revelou idéias próprias a partir de suas reflexões e leituras, assumindo a defesa de uma associação poesia-crítica-ciência, com a vinculação do poeta e do crítico às tendências da Física de nossos dias, para enriquecer o instrumental científico-literário e humanista de ambos. E isto, para uma melhor compreensão do universo pós-Newton, com o acréscimo da relatividade e da multidimensionalidade do espaço-tempo. Com o elastecimento do universo, seria ideal que o homem também fosse privilegiado com a abertura da sua própria cabeça, com um pensamento que se distanciasse cada vez mais da barbárie e das práticas reacionárias e retrógradas, adquirindo uma visão voltada para o futuro e para a busca de um mundo melhor. Tal percepção cosmológica se sustenta nas mudanças que não poderiam deixar de acompanhar aquelas transformações científicas e tecnológicas socialmente benéficas e suas contribuições ao desenvolvimento, na atualidade do tempo, de um espírito cosmopolita cultivado e culto, amante da poesia e das artes. A combinação de erudição com um forte estilo argumentativo não representaria elemento motivador definitivo para que seus desafetos – a quem costuma chamar de “filisteus”, desautorizando-os pela carga de intuição que demonstram, embora decline de dizer seus nomes – afirmassem que a crítica e a poesia de César Leal seriam excessivamente intelectualizadas. A leitura de seus textos críticos, de um modo geral, se verifica no âmbito da exposição clara e da expressão compreensível, mesmo que alguns assuntos tragam dificuldades imponderáveis para serem explicados e absorvidos. O ensaio curto pode vir iluminado por uma súbita reflexão ali colocada para deleite, informação e reflexão do leitor. Outra qualidade de sua crítica é a sinceridade de propósitos que encampa, sem deixar de apontar as fraquezas de concepção ou realização de autores que ele mesmo admira, mas sem se recusar também ao elogio como reconhecimento da excelência textual. Em muitos momentos, César Leal poderá parecer alguém que detém uma boa fatia do saber literário, contudo sem ser partidário de uma prática exclusivista da retenção de idéias e afirmações, fazendo questão de alardeá-las e divulgá-las onde quer que possa chegar o seu alcance. Esta edição comemorativa dos 80 anos do poetacrítico, organizada por ele mesmo, tem uma função didática irreprimível, pela vasta informação histórica, pelo desempenho teórico sem vacilações e pela responsabilidade das opiniões e julgamentos emitidos, que apenas promovem a ampliação do conhecimento literário, contemplando desde a época dos clássicos até os dias mais recentes. • Continente janeiro 2006

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PROSA

O comedor de sonhos Clรกudio Aguiar

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PROSA

“O mais triste da velhice é carecer de amanhã." Santiago Ramón y Cajal

E

xemplo do que o esperava estava na rua. Logo cedo, Dino Silas olhou pela janela frontal de sua casa e viu o doido andando sobre os mesmos passos, numa autêntica caminhada estacionária. Durante vários anos a mania daquele homem não ganhava nenhuma variante. Seu comportamento desatinado podia até causar indiferença nas demais pessoas, mas, para Silas, que há anos também vivia no seu quarto abafado e sem apetência para nada, era prenúncio do que lhe reservava o futuro não muito distante. E o pior: os passos dados pelo doido diante de sua calçada assemelhavam-se com a sua forma de andar nos poucos metros quadrados de seu quarto. O universo de ambos se restringia a poucos metros quadrados, embora livres, soltos, como o mundo que pulsava diante deles. Por isso, Silas achava-se cada vez mais parecido com o doido de sua rua e recusava-se a sair do seu tugúrio a fim de não se transformar num ser capaz de provocar tristeza aos adultos e uma incontrolável alegria às crianças, circunstância que nos leva a pensar que nem sempre elas são inocentes como se costuma dizer. Dino Silas já perdera a conta das vezes em que prometera a si mesmo nunca mais olhar com piedade para aquele doido. No entanto, mal começava o dia, seus olhos pousavam sobre a figura sumida e nervosa do homem sem juízo a caminhar sobre os mesmos passos, indo e voltando, estonteante, inclinado para frente, quase a cair, porém, equilibrando-se a todo instante e, apesar de tudo, armando um sorriso consolador para quem observasse seus gestos sem nenhum sentido lógico. De repente, disse a si mesmo que, em muitas coisas, diferia daquele doido: “Ele fora funcionário público, e eu, um atleta.” Em muitos aspectos, sua vida, porém, não poderia ser tomada como um rosário de fracassos. Um dia, recordava, passou a ser a estrela número um do ginásio onde praticava educação física. Para surpresa de todos, ultrapassou os padrões de normalidade previstos nos manuais de halterofilia: altura, dimensões de músculos, eficiência no levantamento de pesos e halteres etc. O sonho de ser “maciste do universo”, finalmente, aproximou-se da realidade, porque conseguira o título de maciste de seu país. Seu nome passou a ser cogitado para disputar o título universal. De tanto divagar, sentiu os olhos invadidos por sombras e réstias fulgurantes. Confortavelmente sentado, embalara-se num sonho inevitável. Quase não distinguia na parede o poster amarrotado pela ação do tempo, onde ele aparecia em pose viril de autêntico halterofilista: destacavam-se os músculos à mostra, sorriso jovial e transbordante e ostentava uma convincente demonstração de força a saltar por todas as partes de seu excepcional corpo.

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Dino Silas girou mais uma vez a cadeira e não se conformou em contemplar apenas os quadros e as fotografias expostas em molduras vistosas pelas paredes. Sua vista, de leve, deslizou por algumas mesas tomadas por objetos esmaecidos pela ação do tempo e cobertos de poeira. Tudo refletia um certo desprezo pela falta de limpeza e zelo do ambiente. Sentiu, de imediato, que algo não lhe ia bem. A vista começava a turvar-se, os objetos a andar de um lugar para outro, como se mãos invisíveis e poderosas os afastassem de seus lugares. Até a parede se deslocava para lá e para cá toda vez que ele piscava os olhos. Na altura da porta, entre o vazio e a madeira da grade cuidadosamente pintada de branco-gelo, notou que fervilhavam coisinhas pequenas, irreconhecíveis. O limite entre o nada e a matéria atingia seus olhos como algo vivo, vibrante, indo e voltando, ora se inclinando, ora ficando ereto. Ele observou que aquilo poderia ser ilusão de ótica e até sorriu, fazendo-se forte. Fechou os olhos e novamente os abriu com certa cautela, olhando de novo para os objetos do ambiente. E, para seu assombro, a dança dos objetos, inclusive dos quadros e fotos na parede, continuava do mesmo jeito. Será por causa da cadeira giratória? Então, ficou completamente parado. A seguir, desconfiado de sua comodidade, achou melhor sentar numa simples cadeira de encosto. Com dificuldade, levantou-se e colocou a cadeira firme contra a parede. Testou-a e sentou-se, respirou fundo, confortavelmente acomodado, admitiu que nada mais tremeria nem mudaria de lugar. Abriu os olhos em direção dos objetos pousados sobre a mesa e, com pouco tempo, os viu outra vez se movendo, agora, com maior nitidez. De repente, a antiga fotografia em que ele aparecia com os meninos na grama da praça moveu-se de tal sorte, que, após cair espetacularmente sobre o assoalho e parar próximo a seus pés, obrigou-o a abrir mais os olhos e a inclinar-se para o chão, a fim de apanhá-la. E, censurando a si mesmo, questionou suas atitudes: “Estou ficando maluco ou será a vista que começa a apagar-se de uma vez?” Fechou bem os olhos e, pela segunda vez, os abriu devagar e tentou apanhar a fotografia... não havia nada próximo a seus pés. O assoalho permanecia limpo. Subiu o rosto e viu que a foto continuava no antigo lugar. Deu um forte muxoxo: “Ah, que merda!” E lamentou que a velhice fosse capaz de pregar tantas lições desagradáveis. Então, levantou-se decidido a testar umas tantas coisas. Encostou-se na parede do quarto e pressentiu que ela não estava firme. Afastou-se um pouco e a empurrou com a mão. Teve a nítida sensação de que não só a parede se movia, mas também tudo ao seu redor ameaçava ruir. Resolveu fazer outra experiência. Pisou, então, forte, com raiva, contra o chão e viu que o assoalho, antes rijo, imóvel, duríssimo por ser concreto armado, também se movia, ou melhor, afundava com facilidade. Juntou as pernas e, com o peso do corpo, forçou-as contra a terra, que parecia mover-se. Tudo, portanto, estava ameaçado.

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PROSA

E pensou numas tantas lições de física e astronomia que tomara no colégio, quando jovem. Então, dizia a si mesmo em voz alta: “Ora, que tolice, se a própria Terra, com efeito, anda solta no espaço, descrevendo suas conhecidas rotas, nada é firme ou imóvel no universo. Logo, por que não posso sentir tais sensações?” Foi mais além: andou em direção à sua mesa de trabalho e, de posse de lápis, papel e régua, riscou, numa folha em branco, uma linha reta, junto da qual, afastada cerca de quatro ou cinco centímetros, fez outra reta rigorosamente paralela e do mesmo tamanho. As duas retas distanciavam-se pelo centro do papel até uma razoável distância. Dino Silas, deixando correr um sorriso pelo rosto, que, até então, estivera imerso numa rigidez de homem taciturno e inquieto, inscreveu, entre as linhas paralelas, um ponto. Dali, com esmero e atenção, ainda que tremessem suas mãos, riscou vários traços para cima, para baixo, para os lados. As novas linhas funcionavam como raios a romper o paralelismo das retas primitivas. À medida que os traços se sucediam, no seu rosto se armava um riso com sabor de vitória, porque as retas, retíssimas no paralelismo extraordinário do papel branco, logo ficavam, a seus olhos, completamente tortas. “Espetacular!”, gritou. Elas já não lembravam, nem de longe, as retas antes traçadas com a régua. Eram e não eram as mesmas. Ressurgiam tortas ou quebradas. Temendo continuar a experiência, soltou o papel sobre a mesa e deu uma forte gargalhada, enquanto dizia a si mesmo: “Não há nada real. Tudo é ilusão. Ou, ao revés, não há nenhuma ilusão. Só a realidade existe...” Eufórico, gritou mais alto: “Eu não estou aqui Eu não vivo Eu já morri e no entanto respiro e vejo tenho fome e devoro os alimentos para poder continuar a sonhar As retas não existem mas eu as tracei sobre o papel Toda reta pode ser uma curva na ilusão do olhar ou na materialidade do papel riscado A luz do dia embora se projete na densa escuridão está indiscutivelmente continua sendo escuridão O mesmo acontece com a noite e o dia Estou de cabeça para baixo e para cima ao mesmo tempo A terra gira e temos a sensação de que ela permanece parada imóvel intocável Minhas paredes são fixas e balizadas com ferro cimento pedra ou cal e no entanto se movem e cairão com o simples peso do meu corpo O Cláudio Aguiar (Ceará, 1944) publicou cerca de 15 livros, entre os quais se destacam: Caldeirão, ontem poderá ser o amanhã porém nunca saio deste hoje Eis o Suplício de Frei Caneca, A Volta de Emanuel, A Corritmo da vida o ilógico a assumir as razões da lógica a te Celestial, Os Anjos Vingadores, A Emparedada, estabelecer regras infalíveis E por isso concluo que o velho Lampião e os Meninos, Franklin Távora e o seu Tempo e Os Espanhóis no Brasil. Ganhou vários louco não é louco Eu também sou velho e não estou louco isto prêmios literários nacionais e inclusive prêmio é posso estar louco Já fui uma fortaleza e agora não passo de um internacional pelo conjunto de sua obra. Já foi frágil Eu Nós sonho...” traduzido ao espanhol, francês e russo. O conto acima integra o livro O Comedor de Sonhos, a ser Cansado do tremendo esforço mental despendido, Dino publicado em breve. Silas, ofegante, voltou a cair sobre a cadeira giratória e, com o pé, deu, pela última vez, um frágil impulso contra o assoalho... sentiu o mundo rodar com tanta rapidez, que perdeu os sentidos e o sonho foi servido como alimento para que ele resistisse, mais um dia e uma noite, em sua vida. Até quando? •

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POESIA

Este

Olhar João Esteves Pinto

I

Fui eu que criei Todas as paisagens que vi. Nem uma única Existiu por si. Fui eu, E apenas eu, Que segreguei a atenção O rubor E a emoção Que dão forma E sentido E cor A esses espaços sem limites Que são meus. E aí cabe tudo: As pedras ermadas Sós Desesperadas de cigarras pelo meio-dia Sob um sol de Verão E as águas irreprimíveis de Inverno Soltas de ira De violência E de paixão. Aí cabem todos os passos Andados ou não E também as tardes cinzentas Esgotadas e sem horas E estas angústias diluentes Com uma bruma de fim Para lá do fim. Nesse espaço sem tempo O espaço sou eu.

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II

Mas, agora, Já aqui não tem lugar a descrição. Agora tudo é fragmento Grunhido Esgar Imprecação Passo rápido de emigrante Para nenhures Lixo avulso Transformação E quem pode respirar Por muito tempo A decomposição O não ser A negação? Deixem-me conferir o vento E com ele partir!... Eu quero admitir Que o sofrimento irremível Que parasita este espaço É só meu E que tudo o que é insuportável E vil Apenas veio torrencial até mim Para afogar num dia frágil Os pensamentos discursivos E conseqüentes (se o forem) E tudo que foi vivo e exaltante E que morreu Mas que ninguém viu desta maneira perturbada E dolorida como eu.


POESIA

III

Sobre esta paisagem desolada Abro a porta de uma sala branca, Há tanto esperada Lugar onde não há sol Nem chuva Nem ralo de madrugada

Lugar exigente, Apenas disponível Para exercícios geométricos Para soluções orgânicas Para fórmulas abstractas Que tudo expliquem por si, Ou que tragam a calma neutra Das ausências e do nada. Vou pelos meus passos Com sentimentos audíveis: Aonde me levam os andaimes?

IV

...Mas eu

Que tenho a autoria E a responsabilidade Por todas as paisagens diante das quais me sento E que dialogam intimamente comigo Tão intimamente Que ser íntimo É ser mais do que as paisagens Que estão comigo E do que o eu Ser íntimo É ser uma dimensão outra Carecida Elemento novo Comovido

E os teoremas?

E as construções seguras? Aonde? Senão a caminhos mais longos E a principíos mais altos Por onde me despenho sempre Com o bem e o mal Em repetidas vertigens?!..... – Por que jogo incessante o xadrez? – Por que me perco em labirintos? – Por que me consumo de solidão? As respostas sem palavras para dizê-las

Oiço um sopro abrasivo Que deixa nas coisas A persistência do seu rasto. A minha mão direita suporta rígida O meu acto de pensar, Os meus olhos abertos Afogam-se de pó e de sal No branco cego das antigas estátuas do sul E digo, como se gravasse sobre uma pedra: As raízes que me dominam Não medram no branco desumano desta sala! Vou-me embora daqui. Vou-me embora!!

– O que é a angústia?

Enlace emocionado Espantosamente barroco Chave de um mundo novo Na incerta sombra do tempo. ...Mas eu, Que de novo volto a mim Vejo que, afinal, Não sou senão este olhar Este olhar solto Despojado Instantâneo e só Ruga flectiva Génese enigmática sempre De qualquer coisa Que se revela e anuncia

Criatura contingente Fugidia Um ser Porventura assim: Pilho pertubado De Deus Com perguntas duras Pesadas Carecidas de respostas leves Benignas E de uma mão tão suave E lenta Que desenhe sem tempo Este rosto final Que é meu.

João Esteves Pinto é de Sabugal, Beira Alta, Portugal. Administra a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, S.A.

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AGENDA/LIVROS

Dom Quixote, de Gustave Doré Opera Graphica lança edição das gravuras de Gustave Doré, hoje consideradas indissociáveis do grande romance de Cervantes

O

ano de 2005, que marcou o quarto centenário do Dom Quixote, encerrou-se em grande estilo com o lançamento, pela Opera Graphica, de uma edição primorosa: as ilustrações do gravurista francês Gustave Doré para a obra genial de Miguel de Cervantes. O livro, em papel cuchê brilhoso, capa dura recortada, contém todos 375 desenhos da edição original mas, ao contrário da publicação da Editora José Olympio, de 1956, em cinco volumes, não traz o texto integral de Cervantes, apenas trechos que funcionam como legendas das ilustrações. Nem por isso a obra deve ser descartada. O trabalho de Doré (1833-1883) tem tanta qualidade que tem sido considerado como um complemento indispensável da obra mater. Quase todas as edições do Quixote apresentam pelo menos algumas das gravuras do francês. Gustavo Doré nasceu em Estrasburgo e desde muito jovem dedicou-se às artes plásticas, praticando o desenho, a pintura, a aquarela e até a escultura, mas foi como gravurista que adquiriu notoriedade pela qualidade do seu trabalho. Sua interpretação da Divina Comédia, de Dante Alighieri, é considerada magistral por expressar uma carga de dramaticidade à altura da célebre obra da literatura italiana. O mesmo pode-se dizer de seu trabalho para o romance espanhol, também inspiração para artistas de renome, como Picasso, Dalí, Cézanne, Daumier e Portinari. Mas foi ao nome de Doré que a obra terminou por vincular-se. Seu trabalho é dividido em três blocos distintos, conforme assinala o jornalista Gonçalo Junior, organizador da edição: pequenos desenhos (croquis) de personagens, espalhados com recorte pelo texto; desenhos mais elaborados em tamanho mediano e grandes gravuras que retratam cenas marcantes da novela. Vale a pena ter na estante. (Homero Fonseca) Gustavo Doré – Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Opera Graphica, 256 páginas, R$ 69,00. Continente janeiro 2006

Eros mulher São 10 escritoras brasileiras e portuguesas, de épocas e estilos diferentes, juntas numa coletânea onde o fio da costura está no erotismo feminino. Tem nomes de peso como Nélida Piñon, Lygia Fagundes Teles, Maria Teresa Horta e Teolinda Gersão, que exercem com competência seu ofício. Destaque para a apresentação da organizadora, Luisa Coelho, um ensaio curto sobre pornografia e erotismo, em que as tênues linhas que separam essas duas categorias são expostas com profundidade, clareza e equilíbrio. Uma delícia, a leitura desses textos onde o corpo de mulher uiva, como no conto de Inês Pedrosa. Intimidades - 10 Contos Eróticos de Escritoras Brasileiras e Portuguesas, Luiza Coelho (org.), Record, 176 páginas, R$ 20,00.

Poesia luminar Se caminharmos através da poética de lampejos e sombras do livro de poemas Luminar Presença e outros poemas, boa estréia do poeta, crítico literário e professor universitário Fábio Andrade, encontraremos as conquistas de um eu lírico calejado com o labor do verbo. Deixar-se levar pela obsessão do trabalho com a palavra implica numa experiência de responsabilidade, peso e cicatriz que, contraditoriamente, também perfuma e acaricia. Na poesia de Andrade, as palavras não são levianas, nem gratuitas, elas se transformam em pontos de concentração e dispersão de significados. Luminar Presença e outros poemas, Fábio Andrade, independente, 66 páginas, R$ 16,00.

Ficção mirabolante A novela Casa de Caba, do paraense Edy Augusto, é daqueles livrinhos que deveriam ter sido impressos em formato de bolso e vendidos em rodoviárias, para serem lidos durante uma viagem por terra. É uma história político-policial, em que poder, dinheiro, tráfico, prostituição e mortes, muitas mortes, se sucedem numa velocidade vertiginosa, numa trama envolvente de tão inverossímil, onde as mais incríveis coincidências acontecem com seus personagens estereotipados. Leitura divertida, exceto para os que se repugnam com aqueles jornais de onde escorre sangue. Casa de Caba, Edyr Augusto, Boitempo, 88 páginas, R$ 23,00.

Humor fino

“Os homens tristes geralmente fazem graça”. A última frase deste livro traduz o perfil do jornalista pernambucano com alma de carioca, o boêmio, boa mesa, irreverente, Antônio Maria. Do mesmo jeito que compunha tristes clássicos da música dor-de-cotovelo, como “Ninguém me Ama”, também escrevia crônicas de humor, de um jeito confessional e lírico, fino e inteligente, como as que fazem parte desta coletânea. São textos escritos entre 1955 e 1964, inéditos em livro, com um toque de travo amargo, cujo alvo, na maioria das vezes, era ele mesmo. (Luiz Arrais) Seja Feliz e Faça os Outros Felizes, Antônio Maria; organização: Joaquim Ferreira dos Santos, Civilização Brasileira, 112 páginas, R$ 22,90.


AGENDA/LIVROS Obsessões

Reunião das três primeiras novelas do escritor Raimundo Carrero, A História de Bernarda Soledade, As Sementes ao Sol e A Dupla Face do Baralho, no ano em que comemora 30 anos de atividade literária. Segundo José Castello, na apresentação, é surpreendente como os temas que obcecam Carrero já estão todos presentes em seus primeiros trabalhos: personagens acossados por sentimentos brutais e pela idéia do pecado, as fatalidades do destino, uma literatura que despreza a superfície e se atém ao sumo da vida, o escritor de alma tumultuada, que vê a escrita como salvação. O Delicado Abismo da Loucura, Raimundo Carrero, Iluminuras, 352 páginas, R$ 44,00.

Lutador O cearense Franklin Távora, além de ter lutado pela liberdade dos escravos e pela liberdade do ensino, e de ter enfrentado polêmicas em questões religiosas, políticas e literárias, criou a Associação dos Homens de Letras que gerou a Academia Brasileira de Letras. Mas seus maiores feitos são como autor dos livros O Cabeleira, O Matuto e Lourenço. Agora, Cláudio Aguiar, após detalhadíssima pesquisa, traça o trajeto de sua vida e exibe um painel das últimas cinco décadas do século 19, em que contextualiza a vida e a obra deste lutador que foi Franklin Távora. Franklin Távora e o Seu Tempo, Cláudio Aguiar, ABL, 522 págs., R$ 30,00.

Exportação Em edição bilíngüe (espanhol-português) a Editorial Francachela, da Argentina, lança para o mundo hispânico este novo livro da poetisa pernambucana Lourdes Sarmento. A versão em castelhano ficou a cargo do poeta argentino Jorge Ariel Madrazo. A escritora Norma Pérez Martín, na apresentação do livro, destaca certos símbolos e temas recorrentes ao longo do livro: o silêncio, a pedra, a preocupação social, a vida cotidiana, os amores, as lembranças, o trágico, tudo tecido em maturidade técnica e conceitual.

Poesia substantiva Novo livro de Cida Pedrosa reafirma a boa qualidade da poetisa pernambucana

D

ividido em duas partes, cada qual subdividida em quatro, casa uma dessas com dez poemas, o terceiro livro da poetisa pernambucana Cida Pedrosa revela, já nesta organização, o rigor com que foi construído. Rigor também presente no aspecto físico do objeto livro: um elegante e despojado projeto gráfico de Antonio Farias, em papel cor de areia. Na capa, como que riscado num muro verde, apenas o título Gume, impecável, e o nome da autora. Integrante do grupo Escritores Independentes, que no início dos anos 80 agitou a cena literária do Recife, Cida vem construindo uma obra altamente consistente. Seus temas: o Recife e outros ambientes urbanos ou não, a injustiça social, o amor e o sexo, o nascimento e a morte. E se existe uma poesia em que a surrada qualificação de “substantiva” pode ser aplicado com precisão, essa é a poesia de Cida. Não há gorduras, não há preciosismos barrocos, não há adjetivação enfatizante, a palavra se vale por si mesma, em seu som e sentido. Há que se registrar, entretanto, uma saudável tendência à experimentação, sem cair no formalismo estéril que tem vitimado tantos talentos. Quebra de sintaxe, enumeração seqüenciada, valorização das sonoridades são alguns dos recursos bem utilizados. Tudo a serviço de uma poesia que, com seu toque ao mesmo tempo delicado e firme, faz re-nascer nas coisas e nas palavras sentidos mortos e sentidos novos, como no preci(o)so “Epigrama para o Natal”: “nasceu ontem/ com cheiro de deus/ e a fé dos homens// é bom nascer em dia de trevas/ assim qualquer luz pode ser natal”. (Marco Polo) Gume, Cida Pedrosa, Edição da Autora, 132 páginas, R$ 20,00.

Força lírica

Embora advogado e ambientalista militante, Jayme Vita Roso reúne no livro Colocando o “I” no Pingo... E Outras Idéias Jurídicas e Sociais, artigos escritos para diversos jornais de todo o país, abordando temas econômicos, políticos e sociais: a paz, os direitos humanos, o meio ambiente, questões internacionais como o problema entre palestinos e judeus, abuso de menores, leis antitrustes e, até, internet e Pablo Neruda. Segundo a psicóloga Giselle Câmara Groeninga, o autor tem, como pessoa, qualidades que se revelam em seus escritos: capacidade de ver dimensões novas nas coisas e personalidade eclética.

Vencedora do Prêmio Osman Lins de Literatura, a novela Sofia – Uma Ventania Para Dentro, de Sidney Rocha, ganha uma esmerada edição da Ateliê Editorial: capa dura, lombada em tecido, belíssimo projeto gráfico de Patrícia Lima, versão em espanhol de Marcelo Jorge Pérez, e um CD onde Sidney e Marcelo narram o livro, também em português e espanhol. O texto revela um escritor inspirado e criativo, cuja linguagem é o próprio tema e justificativa da narração. Isto é, a rigor, a narrativa evoca uma certa Sofia, uma criatura doce e alegre como uma criança. Esta Sofia (sabedoria?) que era como uma brisa nunca é descrita exatamente em sua dimensão física, mas nas formas como seus movimentos modificavam a atmosfera em redor. Com lirismo e calma música, Sidney Rocha vai tecendo uma espécie de labirinto claro, transparente – se é que pode existir isso –, e que é, ao mesmo tempo, a narrativa, a linguagem e esta misteriosa e encantadora personagem. Livro que transmite intensamente ao leitor todo o seu lirismo. (MP)

Colocando o “I” no Pingo Jayme Vita Roso, RG Editores, 294 págs., R$ 35,00.

Sofia, Sidney Rocha, Ateliê Editorial, 202 páginas, R$ 30,00.

Rituais do Desejo, Lourdes Sarmento, Editorial Francachela, 96 páginas., R$ 20,00.

Ecletismo

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Inveja-sacanagem e inveja-devoção

É

ótimo que nossos inimigos estejam passando por uma boa fase, pois só assim eles nos esquecem. Se você peneirar a inimizade entre dois homens, sempre sobra na peneira os coliformes fecais da inveja. Não sei por que comecei querendo o garroteamento de José Dirceu e terminei torcendo para que ele derrubasse a Comissão de Ética da Câmara Federal, e escapasse da cassação. Aliás, hoje sei. Fui recapitulando a sua vida de guerreiro e vencedor, e fiquei imaginando seu chão qualhado de lombrigas invejosas e ávidas por sua queda. Como todo vencedor, foi também um incompreendido. Quando do rococó golpe militar, ele saiu da prisão para ser trocado por um cowboy americano. De imediato, os boatos correram, espalhando que casara com uma condessa suíça, que virara isso e aquilo na Europa. E ele estava, na verdade, pegando no pesado, treinando militarmente em Cuba. Continente janeiro 2006

“A inveja honra os mortos para insultar os vivos” Helvétius – 1715-1771

A crônica deste começo de ano, para tranqüilizá-los, meus milhões de leitores, não é sobre José Dirceu, cuja cassação deveu-se mais à opinião pública, devidamente orquestrada pela mídia. Nas instituições mais hipócritas, um membro pode matar, roubar, dar chifradas... desde que fique entre portas, porque, se seu comportamento ameaçar a imagem institucional, correm logo a redigir seu atestado de óbito. Isso foi o que aconteceu com José Dirceu, que levou à epilepsia, pela inveja que despertava, toda uma legião de políticos medíocres, não digo do baixo clero, porque o clero anda mais baixo do que a droga da política. É uma grande temeridade minha, tomar a inveja como tema desta crônica, logo depois de 527 páginas do tratado A Inveja Nossa de Cada Dia, de Joaci Góes. Mas sou assim mesmo, sempre me metendo onde não sou chamado, tentando, mesmo velho, encontrar minha toca de lobo suburbano. Minha saída, agora, é


MARCO ZERO

restringir o tema à área artística, já que meu pardieiro é o da cultura estética. Por dever histórico, devo lembrar, não a inveja de Caim que culminou com o assassínio de Abel, pois, para mim, a Bíblia é uma grande obra de ficção, mas a inveja do músico Salieri, satânica, que causou desgraças repetidas ao gênio Johan Wolfang Amadeus Mozart, no século 18. Salieri era um bom compositor, mas de espírito mesquinho, uma vez que só a mesquinhez espiritual pode gerar a inveja destrutiva, a que se alegra com cada insucesso, cada agonia do invejado. Já que não pode arrancar-lhe o talento, arranca-lhe a felicidade. “A inveja é alimento do ódio”, conforme provérbio ídiche, citado por Joaci Góes. E, por sua vez, o ódio é uma serpente ou verme que garroteia, com seus anéis, o coração humano. No universo artístico, as artes dos palcos (hoje, também, das telas e telinhas) e aquelas de público compartimentado, mas que geram muito dinheiro, como a pintura, são as que abrigam, epidemicamente, o maior número de invejosos sacanas. Na literatura, sua filha bastarda, a poesia erudita, que não tem público nem faturamento, é incrível que a inveja também pulule, escondida na escuridão, como os ratos de Camus, porque ela, disse o Joaci, “é o mais inconfessado dos pecados”. Hoje, perdoem-me estar citando pra chuchu, pois o assunto é muito difícil para o meu juízo, mesmo estando leso de saber que quem muito cita nada sabe. Bem, voltando à infestação da inveja no mundo maluco da poesia, gostaria de confessar, com muito orgulho, que sou epígono de João Cabral, sempre invejei a sua obra (gostaria de tê-la escrito) e sempre o considerei, ao lado de Castro Alves – seu antípoda estético –, os dois únicos gênios surgidos na poesia brasileira. Para as duas ou três pessoas, que ainda gostam de mim, quero lembrar que ser epígono não é ser plagiador, como muitos idiotas acreditam. Basta pegarem o Aurélio e lá estão seus dois significados: pertencente a uma geração e discípulo de um grande mestre. É nesta segunda acepção que me alegraria ser incluído.

Se eu tivesse autoridade para classificar o fenômeno da inveja, poderia, de início, dividi-la em dois tipos: a inveja-sacanagem e a inveja-devoção. Quando a poesia de Cabral, como o único caminho novo, depois do modernismo de 22, tomou conta do Brasil, ele já estava no exterior, de consulado a consulado, longe da legião de invejosos sacanas de sua pátria. Mas acredito que, nas vezes em que visitou o país, sentiu na carne as bicadas desses viróticos galináceos. Fui testemunha, ainda meio moleque, de um jantar-homenagem que os escritores de Pernambuco ofereciam a João Cabral. Todo mundo sentado numa mesa comprida ia enchendo a cara, antes da gororoba. De repente, um dos bons e conhecidos poetas da terra, que já ultrapassara os 40, soltou um peido-de-faquir contra o homenageado, aproveitando-se da oportunidade, como o faz todo cabra safado, para atacar o homem, já que sua obra é inatacável. E, como acontece quando pinta qualquer sujeira entre pares, tudo ficou por conta da cachaça... Entre os poetas-repentistas do Nordeste, com os quais convivi uns tempos, a inveja dos dois tipos, o sacanagem e o devoção, têm sempre chance de se mostrarem. Poetas de palco, que ganham dinheiro em cada apresentação, a competição entre eles é mais aberta, e também as intrigas articuladas pelos invejosos-sacanas. Eles causaram a inimizade entre dois poetas dos mais merecidamente aplaudidos na história do repente: Lourinaldo Vitorino e Ivanildo Vila Nova. Vou encerrar este disse-me-disse com Francis Bacon (1561-1626), filósofo e criador do método experimental, que ficou na História, acredito que através dos biógrafos-ligeiros, como autor de inúmeras canalhices e traições, e considerado um mau “elemento”, como diz a polícia, sob todos os ângulos. Aposto um livro de Kant que tais acusações vieram das calúnias (tão férteis no meio intelectual) de alguns invejosos sacanas, seus contemporâneos. Mas talvez tenha sido um invejoso do tipo devoto que tenha espalhado a história de que a obra de Shakespeare foi, na verdade, escrita por Bacon. Danou-se! • Continente janeiro 2006

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ARTES

Cosmococas

Foto, cinema, som e cocaína

Museu de Arte LatinoAmericana de Buenos Aires abriga a maior exposição de Hélio Oiticica na Argentina, com uma de suas obras mais polêmicas Mariana Camarotti, de Buenos Aires

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élio Oiticica tornou-se um dos mais estudados, comentados e expostos artistas brasileiros no mundo pelos quadros e esculturas geométricos, e, principalmente, pelas obras de cunho sensorial e participativo como a instalação Tropicália (nome depois utilizado por todo um movimento cultural) e os Parangolés, espécie de capas coloridas. Mas há um lado da sua obra, menos conhecido e mais transcendental, que são os experimentos cinematográficos realizados em Nova York, nos anos 70. Além do seu tempo naquela e nesta época, as Cosmococas são imagens projetadas em salas em que o espectador é levado a participar da instalação, para poder absorver a proposta do artista. Quatro da série de oito Cosmococas, criadas por Oiticica, formam a maior exposição já realizada do artista na Argentina, inti-


ARTES tulada de CC – Programa in Progress. A mostra, que acontece no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), desde novembro até o final de janeiro, vem atraindo a curiosidade do público e despertando paixão, repulsa e polêmica. A série rompe com a barreira que separa o espectador da obra, inserindo-o em uma experiência visual, sensitiva e sonora, num ambiente lúdico. Com um fundo musical que varia entre rock, forró e lounge, as obras são uma reflexão sobre a imagem, sua inércia e seu movimento sob a ótica da cultura pop norte-americana. As peças sintetizam várias preocupações fundamentais de Oiticica: a dissolução da relação tradicionalmente passiva entre a imagem cinematográfica e o espectador, o vínculo entre a imagem fixa e a móvel, entre a arte popular e a cultura, e a participação do público na obra, além da integração da arte e da vida, a articulação da subjetividade e dos modos de produção e da reconfiguração do espaço. “Com essa exposição de Hélio Oiticica, o Malba se propõe a contribuir para o conhecimento de um momento fundamental e menos divulgado da produção do artista”, diz o diretor executivo do museu, Eduardo Constantini. A mostra é uma das mais destacadas do calendário desse importante museu da América Latina e já esteve em Nova York, Londres, Barcelona, São Paulo e Rio de Janeiro. Cada uma das obras está dedicada a Marilyn Monroe, Jimi Rendrix, Luis Buñuel e Yoko Ono, que têm suas imagens retocadas por linhas de cocaína. Concebida nos Estados Unidos, em conjunto com o cineasta brasileiro Neville D'Almeida, a série tenta renovar e ativar a linguagem do cinema, com imagens estáticas projetadas em diferentes ângulos, com ou sem os detalhes da droga e ao lado de alguns objetos. A seqüência forma uma tira de fotos que relata o processo de construção. Imagens: Divulgação

Cosmococas insere o espectador num ambiente lúdico. Na página ao lado, retrato de Marilyn Monroe, redesenhado com cocaína

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ARTES Na sala dedicada a Marilyn, por exemplo, os visitantes caminham descalços e brincam com bolas de encher coloridas, enquanto vêem fotos da diva nas paredes laterais e no teto, ora com retoques de cocaína, ora com uma navalha ao lado do seu rosto, ora com tesoura. Já na de Jimi Hendrix, os espectadores caminham sobre areia da praia e deitam em uma das dez redes coloridas para assistir às projeções. “O melhor é que, quando entrei, afundei nessas enormes almofadas azuis. Logo depois, me senti muito confortável de deitar nelas e ficar curtindo tudo isso. Mas confesso que é estranho, uma sensação diferente”, diz a estudante argentina Natália Gimenez. A mostra não agradou tanto à dona de casa norteamericana que estava de visita a Buenos Aires. “É muito sensitiva, mexe com quase todos os sentidos. Mas não diria que gostei, apenas que achei interessante”, diz ela, que acabava de sair da sala de Yoko Ono. Nascido no Rio de Janeiro e procedente de uma família tradicional, Hélio Oiticica (1937-1980) é, desde o início, um artista performático, pintor, escultor. Em 1957, realiza seus Metaesquemas, obras que desestabilizam o plano pictórico através de uma composição precisa e irregular de quadrados e retângulos sobre um fundo branco. Em 1959, começa a abandonar a bidimensionalidade para desenvolver experimentos nos campos da fenomenologia e percepção. Também começa a se afastar dos postulados do Concretismo e se torna um dos fundadores do Movimento Neoconcretista carioca, junto com artistas como Lygia Clark, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Pape e o escritor Ferreira Gular, entre outros. Nos anos 60, torna-se uma das figuras centrais do movimento tropicalista no campo das artes plásticas.

Para os espectadores, a obra mexe com vários sentidos, provocando fascínio, encantamento e, mesmo, repulsa


ARTES

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No final de 1970, reunião de artistas e intelectuais. Da esquerda para a direita, em pé, Hélio Oiticica, Maria Helena Carneiro da Cunha, Luiz Eça, Carlos Vergara. Sentados, Luiz Carlos Ripper, Ney Latorraca e Adriano Aquino

Em constante mutação, Oiticica se muda para Nova York na década seguinte e se deixa mergulhar nas idéias que dominavam a cosmopolita cidade. Freqüenta Andy Warhol e suas inovações com a imagem, assim como o cinema experimental de Keneth Anger e as slides-performances de Jack Smith. Ele também recebe grande influência de Jean-Luc Godard naquela época e começa a sugerir uma nova linguagem cinematográfica. Produz o grupo de obras Quase-cinemas, que inclui, entre outras, as instalações Block Experiments in Cosmococa. Dentro desse grupo, as Cosmococas constituem um subgrupo fundamental. Denominadas pelo artista também como Momentos frames, as Cosmococas, como diz o catálogo da exposição, transcendem a idéia de uma simples fotografia, já que, para formar algo maior, é fragmentada como antiícones e elementos desmistificados da própria imagem fotográfica. Além disso, colocam em xeque o cinema e a linguagem, tratando de questões sociológicas e filosóficas em um determinado contexto, em um exercício de “desmistificação”, como Oiticica insistia em explicar. Ele propunha a transformação do “cinema-linguagem” em “cinema-instrumento.” Para o curador da mostra, César Oiticica Filho, sobrinho do artista, a fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty que impregna o trabalho do artista desde Bólides (caixas de madeira, plástico e vidro) e Parangolés (capas que o público vestia e tinha experiências com seu próprio corpo) está fundamentada na participação do espectador. “Oiticica abre sua obra à participação do público, para conseguir sua concretização, diria, inclusive, que para a verificação do fenômeno, o que passa a ser, em certa medida, a busca desse artista”. • Continente janeiro 2006


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AGENDA/ARTES

Instabilidade das Formas José Pedro Croft brinca com os sentidos do espectador através de estruturas geométricas não-figurativas

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ireto de Portugal, o artista plástico português José Pedro Croft faz no Recife, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), a primeira parada da exposição itinerante, que leva seu nome. Organizada exclusivamente para o Brasil, a mostra reúne 13 esculturas de piso e de parede e 12 desenhos. Sete das esculturas foram selecionadas em coleções públicas e privadas, enfatizando os principais aspectos que singularizam sua produção entre meados da década de 1990 e o início da década atual. Seis outras esculturas foram produzidas no Brasil, em 2005, especialmente para integrar a mostra. Essas esculturas permitem observar os mais recentes desdobramentos da poética do artista. Os desenhos, por sua vez, são todos inéditos, feitos para integrar a itinerância da exposição no país. José Pedro Croft explora a relação de tradução contínua que o artista estabelece entre os campos do desenho e da escultura, na qual alguns elementos são necessariamente perdidos e outros são sempre adicionados a cada um desses campos expressivos. Destaca, ainda, a necessidade da presença do observador para que as esculturas e os desenhos “existam” como proposições criativas. A exposição tem início no Mamam. Em seguida, é apresentada no Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte; no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador; no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro; e no Museu de Arte Moderna, em São Paulo. José Pedro Croft. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – Mamam ( Rua da Aurora, 265, Boa Vista – Recife – PE). Até 19 de fevereiro. Fones: 81. 3423. 2761 / 3423.2095.

Luz do Litoral – para o qual Mateus documentou, durante quatro anos, cenas praieiras do Estado. O resultado da pesquisa está impresso no recém-lançado livro Luz do Litoral, que traz 250 imagens em preto e branco. Luz do Litoral. Observatório Cultural Malakoff (Praça do Arsenal, Bairro do Recife, Recife-PE). Até 29 de janeiro. Fone: 81. 3424.8704.

Luz do Litoral A luminosidade característica do litoral pernambucano, com seu povo, seus afazeres, a religiosidade, as tradições, a transmissão dos costumes de geração em geração e a degradação ambiental estão reveladas na mostra Luz do Litoral, do fotógrafo Mateus Sá, em cartaz no Observatório Cultural Malakoff, Torre Malakoff. São 16 fotografias, impressas em tecnologia de plotagem, que também mostram a relação do homem com a natureza em Fernando de Noronha. A mostra é parte de um projeto de pesquisa maior – também chamado Continente janeiro 2006


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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

A forma sem resto A arte de Amílcar nasceu de uma radicalidade que definiu o Neoconcretismo como um movimento particularmente significativo da arte contemporânea

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mílcar de Castro pertenceu a uma geração de juntando-se ao grupo que se formou em torno do crítico artistas que promoveu a ruptura com o Mo- Mário Pedrosa, o principal defensor, no Brasil, das idéias dernismo brasileiro. Se é verdade que o movi- concretistas, originárias do grupo de Ulm, liderado por mento de 1922 nas artes plásticas não se Max Bill. Cabe observar, no entanto, que Mário não se caracterizou por uma única tendência, já que nele coexis- limitava a difundir a concepção européia – aqui chegada tiram ecos do Expressionismo, do Cubismo, do Art décor e através do grupo argentino Nueva Visión –, mas refletia do Surrealismo, é inegável que nele predominou a temática sobre a proposta de uma nova arte, desvinculada do vocanacional que, a partir dos anos 30, adquiriu um cunho social bulário figurativo e das referências nacionais e regionais que caracterizavam o nosso Modernismo. Antidogmático por e político, particularmente na pintura de Cândido natureza, o crítico brasileiro estimulava, no âmbito da nova Portinari e seus seguidores. linguagem, as buscas individuais autônomas. Isso se expresEssa linguagem figurativa e estilisticasa no surgimento de caminhos originais seguidos por cada mente eclética foi rejeitada pelos jovens um dos integrantes do grupo que em torno dele se artistas que constituíram a geração formara. Este é particularmente o caso de Amílcar dos anos 50 e da qual Amílcar de Castro que, após um período inicial de grande Castro se tornaria uma de ansiedade, logo encontrou os elementos das expressões mais destacabásicos de sua arte. das. Falecido em 2002, foi Amílcar fez parte do grupo neohomenageado recentemente concreto e pode-se dizer que sua na 5ª Bienal do Mercosul, em escultura, por suas caracterísPorto Alegre, com uma mosticas intrínsecas, constitui tra retrospectiva abrangendo um dos pólos daquele todas as etapas de sua obra. movimento artístico, Ali estavam expostas peças em contraposição realizadas nos anos iniciais de ao rumo tomasua carreira, até os derradeiros do por Lygia Clark trabalhos datados do ano de e Hélio Oiticica; tanto sua morte. No corte e a obra dele quanto a de Como se sabe, Amílcar de na dobra começa a Lygia nasceram de uma radiCastro, nascido em Minas Geescultura calidade que não existia na arte rais, foi para o Rio em 1952, de Amílcar Continente janeiro 2006


TRADUZIR-SE

Amílcar de Castro não desistiu da reconstrução

concreta e que definiu o Neoconcretismo como um movimento particularmente significativo da arte contemporânea. Lygia, ao eliminar da pintura o espaço representativo, defronta-se com a tela em branco, sobre a qual age materialmente, dando origem aos futuros “bichos”; já Amílcar, excluindo da escultura a massa, chega à placa bidimensional (a antiescultura) de que partirá para criar sua própria linguagem escultórica. Mas, ao contrário de Lygia, que caminha para a desintegração da linguagem artística e desemboca em experiências puramente sensoriais, ele se atém à placa bidimensional para explorar-lhe as possibilidade expressivas, valendo-se apenas do corte e da dobra. No corte e na dobra começa a escultura de Amílcar. A placa, invencivelmente calada e imóvel, enfim se anima e fala. Uma fala primeira, mínima, que jamais se desenvolve em discurso. Uma fala que se refere à sua própria origem e retorna incessantemente a ela, porque, na verdade, quase todas as obras que ele realizou, desde aquele remoto momento inicial, são variações daquela primeira obra. A placa muda de forma – ora é quadrada, ora circular, ora paralelogrâmica –, muda de proporção, muda de espessura, mas como conseqüência do mesmo recurso expressivo: o corte e a dobra. E é o próprio Amílcar que dirá, mais tarde, que sua escultura é a busca da origem da própria escultura. Sim,

porque, o que definia o Neoconcretismo em sua expressão essencial era precisamente a busca do fundamento da própria arte, que as vanguardas puseram em questão. Por isso mesmo, Lygia e Hélio terminam por abandonar a produção da obra enquanto objeto expressivo em si mesmo para entregar-se a experimentos sensoriais – o que significa limitar a expressão a seus elementos originários. A diferença entre eles e Amílcar é que este, chegado à cota zero, não desistiu da reconstrução. Ao longo dos anos, o procedimento da expressão mínima, em Amílcar, se enriquece com novos elementos que, no entanto, não alteram sua natureza, antes a acentuam, como ao usar a placa de ferro espessa, de grande formato que, por ser espessa e grande, valoriza tanto o corte quanto a dobra. Como se vê, é a superfície que fala e fala, conforme suas qualidades materiais, se menor ou maior, se mais espessa ou mais delgada. A partir dos anos 80, Amílcar encontrou um caminho alternativo em sua expressão, deixando de valer-se do procedimento corte-dobra, abdicando, nesses casos, da criação do volume virtual. Naqueles trabalhos, em vez da placa, usa blocos de ferro, em que o corte vale por si mesmo e não como um meio para possibilitar a dobra: é feito para permitir a penetração do espaço no bloco compacto de metal ou para possibilitar a inserção de um bloco no outro. Nesses trabalhos, que se estenderão até o final de sua carreira, Amílcar parece retomar a problemática da escultura enquanto massa, talvez a ajustar contas com o passado. Mas ainda aí mantém o extremo despojamento de meios como o fator essencial da expressão escultórica. • Continente janeiro 2006

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CINEMA Divulgação/AE

A estética do prazer e da reconciliação

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or quê, apesar de ter atraído mais de três milhões de espectadores, Lisbela e o Prisioneiro foi considerado pela crítica como produto meramente comercial, com pouco mérito artístico, enquanto Central do Brasil, que também foi extremamente popular, atraindo 1,5 milhões de espectadores em 1998, foi considerado um “filme de arte”? O que há nas entrelinhas dessa distinção? Não se trata de questionar o mérito e a enorme contribuição de Central do Brasil tanto no mercado interno como no exterior. Porém, a falta de atenção dos críticos a Lisbela aponta para um contínuo descrédito do cinema popular nos debates sobre filme brasileiro. E como essa distinção entre cultura de elite (high) e cultura popular (low), está relacionada e afeta a reconciliação entre cineastas, público e mercado no cinema brasileiro recente? É preciso esclarecer que, ao falar de “cinema popular”, estou me referindo a cinema de massa (mainstream) como entendido nos estudos anglo-americanos. Assim, o cinema popular é visto como uma manifestação de formas particulares de expressão cultural, ao invés de ser simplesmente rotulado como um cinema de manipulação de massas, comprometido meramente com interesses econômicos, e, conseqüentemente, “inautêntico”. O pesquisador inglês Steve Neale sugere que as pessoas se envolvem em escolhas cinemáticas e discursos a favor ou contra essas escolhas por interesses políticos, econômicos e estéticos. Basta lembrarmos dos filmes políticos dos formalistas russos (Eisenstein, Pudovkin), dos ideais revolucionários Continente janeiro 2006


CINEMA Reprodução/AE

Lisbela e o Prisioneiro e Central do Brasil, apesar de terem recebido avaliações críticas distintas, usam elementos estilísticos e diálogos intertextuais muito próximos Katia Augusta Maciel do Cinema Novo ou das rupturas estéticas do Dogma, para compreendermos a que Neale se refere. No entanto, embora a visão dele seja muito lúcida, há ainda um outro fator determinante a ser considerado: o prazer. Quando assistimos a um filme ou comentamos um filme, o prazer atua como força motriz em diferentes níveis. Desde a mais básica sensação de prazer provocada por movimentos de câmera, pela música e todo o espetáculo audiovisual do filme, até o prazer intelectual de críticos e cinéfilos capazes de compreender referências autorais e decodificar formas de expressão não-convencionais. Em resumo, o cinema de arte e o cinema popular coexistem por razões econômicas, ideológicas e estéticas, que estão, em última instância, interrelacionadas com a busca de cineastas e espectadores – incluindo os críticos – por prazer. A análise das seqüências finais de Lisbela e o Prisioneiro e Central do Brasil ilustra esse ponto-devista. Ao apresentarem convenções do cinema popular e do cinema de arte, enfocando o prazer e a reconciliação em diferentes níveis, as seqüências finais de Lisbela e Central do Brasil revelam estratégias para reconciliar originalidade artística e viabilidade comercial. Em Lisbela e o Prisioneiro, temos as versões paródicas da morte do vilão Frederico Evandro, interpretado por Marco Nanini. Primeiro pensamos que Lisbela (Débora Falabella) matou Frederico para salvar a vida de Leléu (Selton Mello). Depois descobrimos que quem disparou a arma foi na verdade a esposa do vilão e amante de Leléu, Inaura (Virgínia Cavendish). Essas diferentes versões da morte do vilão são construídas visualmente Continente janeiro 2006

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CINEMA e narrativamente como pastiches dos seriados hollywoodianos que Lisbela costuma assistir, oferecendo-nos a oportunidade de compartilhar com ela o prazer dessa forma narrativa. Certamente, muitos leitores vão lembrar que os seriados hollywoodianos eram extremamente populares no Brasil nos anos 40 e 50. Assim, o filme invoca o prazer nostálgico desse momento da história do cinema nacional. Após a morte do vilão, Leléu e Lisbela cruzam os canaviais pernambucanos no colorido carro-de-som de Leléu. A cena ecoa um melodramático final feliz até a interrupção de Lisbela: “Espera um minuto!”, ela diz, cortando a música não-diegética. Leléu olha surpreso para ela. “A melhor parte do filme é como ele termina”, Lisbela explica, referindo-se ao beijo final entre os amantes, mas, inesperadamente, ela vira-se para o público que está assistindo à cena: “Talvez nesse cinema tenha pelo menos um casal apaixonado que vai assistir até o finalzinho. E mesmo depois que o filme acabar, eles ainda vão ficar sentados por um bom tempo até que o cinema esteja completamente vazio. E, aí, eles vão começar a se mexer devagarinho, como se estivessem acordando depois de sonhar com a nossa história.” Tanto Lisbela quanto Leléu olham diretamente para a câmera, enquanto ela fala da experiência de assistir ao filme. “Espero que eles tenham gostado”, conclui Leléu, finalmente, Divulgação

beijando-a. Nesse momento, a música recomeça e a palavra “fim” aparece sobre a imagem. Mas ao invés dos créditos finais, vemos a imagem de uma sala de cinema com a tela vazia, luzes acesas e os espectadores levantando-se para sair. Por sobre essa imagem finalmente rolam os créditos. Em toda a sequência são claras as referências a gêneros clássicos como a comédia romântica e o melodrama, porém, ao mesmo tempo, é possível reconhecer elementos estilísticos do cinema de arte como as técnicas de distanciamento nas várias versões da morte do vilão (em contraste com a imersão total que é geralmente regra no cinema convencional de massa), assim como a estrutura metalingística do filme-dentro-do-filme, recurso também mais associado a filmes de arte. Essas referências a diversas tradições cinemáticas revelam a estratégia do filme de brincar com os prazeres do próprio cinema, ou seja, do cinema como fantasia, como um sonho em que o amor é a recompensa final evocada pelo prazer do desejado beijo final. Contudo, o filme ainda não acaba com a cena das pessoas deixando a sala de cinema e os créditos rolando sobre a imagem. Há um breve momento final que merece atenção, pois é o momento em que nós (espectadores fora do filme) somos explicitamente convidados a nos envolver. Como Lisbela sugeriu no diálogo transcrito acima, um casal fica sentado até o finalzinho. São eles, Lisbela e Leléu, que se movem devagarinho como se estivessem acordando de um sonho. Essa cena sugere a superposição de sonho (o filme) e realidade (a experiência de assistir ao filme). Os créditos rolando na tela sugerem que é o fim e que nós podemos sair, se quisermos, mas a imagem final de Lisbela e Leléu caminhando em direção à câmera e saindo do quadro convida aqueles que escolheram ficar compartilhando o prazer da reconciliação com um cinema que pode ser tanto fantástico como realístico e, por analogia, tanto artístico quanto popular. Em Central do Brasil, Dora (Fernanda Montenegro) lê para Josué (Vinícius de Oliveira) e os dois irmãos dele, Isaías e Moisés (respectivamente Matheus Nachtergaele e Caio Junqueira) uma carta do pai deles. A carta proporciona a reconciliação de Josué com sua família. Mais tarde, enquanto os três irmãos dormem, Dora busca reconciliar-se com ela mesma. Sozinha, ela põe o vestido que ganhou de Josué, põe batom e se olha no espelho. Ela coloca as cartas de Ana e Jesus (os pais de Josué) juntas ao lado de uma fotografia do casal e vai embora. Josué acorda e procura por ela, mas Dora já está no ônibus, escrevendo uma carta para ele. É também uma carta de reconciliação. Ela escreve sobre o pai dela e sobre todo o carinho que tem por Josué: “Se você sentir saudades de mim algum dia, olha a fotografia que tiramos juntos. Eu estou Débora Falabella em Lisbela e o Prisioneiro, filme considerado popular, mas pleno de recursos das películas de arte


CINEMA Divulgação/AFP

Cena de Central do Brasil: o prazer da reconciliação através de uma narrativa clássica

dizendo isso porque tenho medo que você também me esqueça. Sinto falta do meu pai. Sinto falta de tudo”. A seqüência final do filme intercala imagens do ônibus na estrada e imagens dos rostos de Dora e Josué. Ambos estão sorrindo entre lágrimas e olhando a fotografia que tiraram juntos. A imagem na foto é alegre. Eles seguram a mão de Padre Cícero num pequeno tablado decorado com luzes, flores de plástico, bonecas, retalhos de pano – uma cenografia que também faz referência direta, assim como em Lisbela, à tradição do teatro mambembe no Nordeste. Além disso, como sabemos, Padre Cícero foi um grande líder religioso do sertão nordestino no final do século 19 e ainda hoje é uma figura importantíssima na cultura da região. A imagem de Padre Cícero, assim como a imagem de Nossa Senhora e de igrejas antigas, na fotografia de Dora e Josué, são ícones, no sentido semiótico, da cultura popular nordestina. O filme, então, usa essas referências culturais invocando fé e sugerindo um simbólico reencontro de Dora, Josué e seus pais ausentes. Central do Brasil, portanto, aborda o prazer da reconciliação através de uma narrativa clássica (associada ao cinema popular), porém voltada aos conflitos interiores das personagens, que é reconhecidamente um recurso narrativo do cinema de arte. Ao explorar prazer e reconciliação em formas de expressão do cinema de arte e do cinema popular, as seqüências finais desses dois filmes tentam retrabalhar as distinções

entre o que é considerado “artístico” e o que é rotulado de “comercial”, sugerindo que, até certo ponto, cinema de arte e popular, high culture e low culture, críticos e espectadores todos se sobrepõem e intersectam. Não se trata aqui de comparar os filmes ou desmerecer o trabalho dos críticos, mas apenas de demonstrar e reconhecer que esses dois filmes, como outros da safra recente, usam elementos estilísticos do cinema de arte e do cinema popular em diálogos intertextuais, construindo pontes entre esses supostos universos distintos. Como afirma Cláudia Barbosa Nogueira, esses filmes atravessam territórios que já foram visitados e revisitados cinematograficamente, porém insistindo em que a identificação com essas tradições sejam reexploradas e que os prazeres desses reencontros sejam considerados em novas perspectivas, em constante reelaboração. Como o sociólogo francês Pierre Bourdieu observa, o gosto e as escolhas individuais moldam tanto as práticas quanto os discursos culturais e, em última instância moldam as nossas identidades. Portanto, analogamente, os finais de Central do Brasil e Lisbela e o Prisioneiro dialogam com várias tradições culturais que informam e dão forma ao cinema brasileiro contemporâneo, como estratégia para ir além de dicotomias e distinções entre cinema de arte e popular, high or low, melhor ou pior, e buscar a desejada e prazerosa reconciliação entre cineastas, espectadores e o mercado. • Continente janeiro 2006

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Tempo de dançar Espetáculo premiado da coreógrafa carioca Márcia Milhazes traz novas luzes à dança contemporânea brasileira Olívia Mindêlo


CÊNICAS

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empo de Verão, montagem mais recente da Márcia Milhazes Companhia de Dança, do Rio de Janeiro, nada tem a ver com os clichês que permeiam a estação do ano. A escolha do título do espetáculo, que segue em cartaz no Sul do Brasil, este mês, foi intuitiva e foge das associações óbvias ao período mais quente do ano: sol, calor, praia, corpos talhados em academias, cerveja. O tema está ligado a um estado de espírito em que as cores, a leveza e a poesia são os elementosbase para a construção de uma dança contemporânea peculiar. Pode-se dizer que verão, neste caso, é mais uma metáfora do atual momento vivenciado pela coreógrafa carioca e por seu grupo: de luz, renovação, energia e reconhecimento. Fotos: Marcelo Lyra/OlhoNu

O elenco, formado por três bailarinos, dança a história de um triângulo amoroso

O prestígio de Tempo de Verão pode ter várias explicações, mas está, sobretudo, ligado a esta fase especial da companhia, de reconhecimento e consolidação. No espetáculo, a maturidade de Márcia Milhazes como criadora, alinhada a seu elenco de primeira, vem com o peso de um trabalho de longos anos pela busca e elaboração de um vocabulário e um repertório próprios de dança. A evidência está não só nos elogios da crítica (Tempo de Verão ganhou os títulos de melhor espetáculo e melhor coreógrafa de 2005 da Associação Paulista de Críticos de Arte –APCA), mas muito mais na aclamação e na legitimação dada pelo público brasileiro e internacional. Enquanto a dança atual explora ao máximo o viés da chamada “não-dança” – investigações mais experimentais e ousadas, baseadas em outras linguagens artísticas –, Márcia Milhazes vai na contramão: apresenta um trabalho simples, aparentemente, delicado e despretensioso, sem deixar de ser primoroso e sofisticado na linguagem corporal, na qual a dança impera. Talvez porque ela não negue a dança para criar uma nova expressão.

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CÊNICAS

Tempo de Verão encanta, de imediato, pelos olhos e ouvidos do espectador. A trilha sonora é permeada por valsas brasileiras da década de 40, que resultaram de uma pesquisa feita pela própria coreógrafa e acabaram sendo fonte de inspiração do espetáculo. Do popular Lamartine Babo, passando por nomes como Zequinha de Abreu e Francisco Mignone, ao erudito Ernesto Nazareth. A seleção da trilha ganha ainda uma maior suavidade com sons da natureza. A atmosfera gerada pela música é reforçada pelo trabalho cênico, produzido por outras mãos, também da família Milhazes: as de Glauce, mãe da coreógrafa e professora aposentada de história da arte, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e as da artista plástica Beatriz. Ambas trabalham para a Companhia desde a sua fundação, em 1994. Beatriz Milhazes, afora irmã de Márcia, é uma artista cujo nome tem projeção na pintura contemporânea mundial. Com telas espalhadas em museus como o Metropolitan, em Nova York, e o Reina Sofía, na Espanha, Beatriz imprime, em Tempo de Verão, sua assinatura em cores fortes e tons quentes. O elenco é formado pela carioca Ana Amélia Vianna, a alemã Pim Boonprakob e o piauiense radicado no Rio, Al Crisppinn. Juntos, eles dançam a história de um triângulo

Luiz Eduardo Perez/Ag. O Globo

“A gestualidade tem o peso da palavra” Aos 43 anos, a coreógrafa Márcia Milhazes, que entrou para o balé clássico aos sete anos, é símbolo de sabedoria e experiência no cenário da dança contemporânea brasileira. Também professora nas horas vagas, a carioca é hoje um dos expoentes da área no País, ao lado de nomes igualmente expressivos, como o de Lia Rodrigues, da Companhia de Danças (RJ), e de Henrique Rodovalho, da Quasar Cia. de Danças (GO). Com formação na Escola de Balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e mestrado do Laban Centre for Moviment and Dance, centro londrino de referência em pesquisa de dança contemporânea, Márcia já foi aplaudida nos Estados Unidos, França, Portugal, Alemanha e Espanha, além de cidades do Brasil. Atualmente, capitalizada por uma bolsa anual da Prefeitura do Rio de Janeiro, dedica-se diariamente a ensaiar o espetáculo Tempo de Verão, que continua em cartaz em 2006. Entre um intervalo e outro de sua agenda, Márcia Milhazes cedeu um tempo para uma conversa exclusiva com a Continente sobre dança, carreira, bailarino, criação e, claro, sobre a sua obra mais recente, que levou um ano e meio para ser finalizada.

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CÊNICAS

amoroso, diluído numa narrativa permeada por desejo, amor, decepção, angústia, solidão, silêncio, desencontro, pureza e outras questões ligadas à alma humana. Tudo isso traduzido numa linguagem em que a dança é o código mais expressivo, o maior acerto do espetáculo. Tempo de Verão provoca fascínio através dos movimentos da dança, o que não significa que os outros elementos cênicos – cenários, iluminação, figurinos e adereços – sejam supérfluos, porém o que marca e impressiona no espetáculo é a coreografia, que busca suas referências no balé clássico. Mas, em Tempo de Verão, Márcia transgride os passos, o condicionamento comportamental do clássico, e traz para cena movimentos sutis, carregados de círculos, gestos, performances e expressões faciais, embora o teatro não seja base para o trabalho. A peculiaridade da construção coreográfica da carioca pode ter explicação no que Nirvana Marinho, mestre em comunicação e semiótica pela PUC/SP, diz em seu artigo do livro Lição de Dança 5 (ed. UniverCidade, Rio de Janeiro), sobre a importância e o papel do gesto na dança contemporânea: “é justamente neste trânsito entre o passo e o gesto que algo novo pode emergir no corpo do dançarino. Um modo de compreender a investigação de novos vocabulários”. •

Como você define a proposta da Márcia Milhazes Cia. de Dança nesse grande leque chamado dança contemporânea? A questão da cultura brasileira está muito enraizada nas minhas pesquisas, seja na literatura, ou na própria música. A arte brasileira é a minha base, é marcante em todos os trabalhos e está muito entrelaçada à minha pesquisa corporal. Tem também a questão da gestualidade, que é algo que já vem, de uma maneira mais ampla, como parte de um percurso da minha própria existência, da minha vida.

peso da palavra. O corpo do intérprete fala através do gesto, como se estivesse escrevendo um texto na cena. Isso, para mim, é algo muito vital. Qual a importância do gesto para a linguagem contemporânea? A dança contemporânea, como toda evolução da nossa história, vem questionando as gestualidades. Mas existe hoje uma moda da não-dança. Eu acho isso bastante cruel, porque você nega o fascínio próprio da dança. Por que negar o corpo, o movimento? Talvez nós estejamos vivendo num mundo medroso e fragilizado, em que as pessoas estão preguiçosas para o trabalho e a pesquisa. Eu procuro uma profunda relação com o movimento, com o corpo, esse corpo complexo, paradisíaco, em que a dança está embutida. O Brasil é um país muito rico, seja nas suas tradições, seja nos seus movimentos mais contemporâneos, mas existe ainda a utilização do corpo de uma maneira muito superficial. Eu sou contra isso.

De que forma você explora a riqueza do gestual? Isso é um ponto muito importante, porque eu venho de uma formação muito erudita. Fui bailarina clássica, depois esbarrei na dança moderna e foi na Inglaterra que eu me encontrei com a dança contemporânea, embora o clássico ainda faça parte da minha vida. Eu sou uma artista que acredita muito no movimento, no gesto. Mas não o gesto de uma maneira mais superficial, ou mais vaidosa, de um corpo mais demonstrativo. Meu trabalho já foi até observado por críticos como algo muito genuíno por ter esse Então o que é o corpo não-ssuperficial? acúmulo de gestualidade. É como se tivesse, para mim, o É um corpo que fala com a alma, de uma maneira honesta, Continente janeiro 2006

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CÊNICAS aquilo que está se propondo na cena. Eu procuro um ser humano, não um corpo. Tanto que, na minha Companhia, eu não faço audições abertas, mas individuais. É importante que este indivíduo que esteja entrando na Companhia seja uma pessoa especial, que possa contribuir pelas suas ações. Lógico que, neste corpo, existe uma questão estética, de estrutura, mas não me interessa ter um corpo bastante talentoso, se é de um ser humano que eu pouco suporto. Eu preciso ter uma pessoa que se disponha a transformar o corpo, porque os indivíduos estão em constante desenvolvimento.

espetáculo veio num momento do nascimento do meu filho. Tempo de Verão é o caminho do meu aprendizado e eu estendo isso aos meus intérpretes. Tempo de Verão é fruto de uma vida, e de muita labuta.

A obra traz aspectos como o amor, o relacionamento humano, a delicadeza, a poesia. São marcas buscadas por você? Sem dúvida. Mas isso é muito aberto à platéia, para ela poder interagir. É no sentido de trazer o público para dentro, onde ele se reconhece, emociona-se. Na verdade, eu acredito no amor, no afeto. De uma maneira muito Os seus bailarinos participam também do processo natural, isso se esboça no meu trabalho. O que as pessoas coreográfico, como acontece em outras Companhias? vêem em cena é algo que sai de uma maneira muito hoNão. Os meus bailarinos não são coreógrafos, são intér- nesta de dentro de mim. pretes. Quando você lida com um bailarino que realmente é um artista, ele destrincha a coreografia que está Você se inspirou no universo das valsas para fazer Tempo sendo colocada para ele. No meu trabalho, cada bai- de Verão. Existe na construção coreográfica do espetáculo larino tem o seu mundo muito esclarecido, é onde eu uma tentativa de desconstruir os passos da valsa no corpo destrincho os detalhes com eles. Os gestos a que a pla- do bailarino, falando no sentido mesmo de linguagem téia assiste foram criados por mim, mas a maneira como contemporânea? que se apropriam desses gestos é de cada um. Há uma A circularidade é uma marca do meu trabalho. O gesto transformação. Mas eu posso não aceitá-la. É aí que atinge vários ângulos do corpo central. Eu acho que, para está o olhar e o talento do coreógrafo, que vai, com o in- este espetáculo, eu endossei ainda mais essa questão da térprete, dissipando essa relação. circularidade, no encantamento da valsa. Mas não no sentido de ser uma maneira mais conceitual, de precisar Alguns estudiosos e críticos dizem que não existe uma desconstruir a valsa. Eu jamais vou ao pé da letra, porque dança contemporânea genuinamente brasileira. Pode-sse não é pelo fato de eu estar colocando valsas que eu precise dizer que a sua dança é brasileira? estar dançando passos de valsa. Por exemplo, nos outros É brasileira, sim, porque é feita por brasileiros. Apesar de trabalhos que eu fiz inspirados no universo de obras ter uma alemã na Companhia, a autoria é minha. Eu aca- Machado de Assis, do século 19, eu não tive que estar bei de voltar da França e meu trabalho foi considerado algo vestida de século 19. novo lá. Não necessariamente por eu ser brasileira, mas por ser diferente. E não porque me interessa a cultura A dança ainda é vista, pela sociedade brasileira, como brasileira, e porque eu estou colocando músicas ou cores espécie de “patinho feio” das artes? do Brasil. É por causa da minha própria identidade. Não A dança ainda não teve o reconhecimento que merece. Por há como negar a sua língua, você sempre vai ter sotaque. uma questão de desinformação, a dança ainda esbarra É lógico que existe uma dança brasileira, pelas suas parti- muito nessa questão de ser só entretenimento e falar do ser cularidades mesmo. Isso pode estar até disfarçado, mas eu humano de maneira mais vaidosa, não séria. Isso é um sou brasileira, não tem jeito. grande erro, uma grande ignorância, porque a dança é parte vital não só das nossas próprias tradições, mas tamO espetáculo Tempo de Verão tem um forte apelo bém no que concerne a projetos de arte contemporânea, emocional. O que há de tão especial na montagem em como formadora da cultura. E mais: já foi constatado que, relação às outras? em projetos sociais, a dança resgatou a auto-estima de Eu só posso estar aqui hoje por causa dos meus outros crianças e adolescentes desprovidos de ajuda de uma matrabalhos, porque são experiências de vida; não só particu- neira que nenhuma área artística fez. Então, não vamos lares, como também profissionais, que só o ato do trabalho mais falar que a dança é uma área mais fácil, mais divertida e da maturidade podem dar. É interessante colocar que o e não-séria dos fazeres artísticos. • (OM) Continente janeiro 2006


Inspirado em valsas brasileiras dos anos 40, Tempo de VerĂŁo tem mĂşsicas de Lamartine Babo e Ernesto Nazareth


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CÊNICAS

O arauto do teatro nordestino O encenador Luiz Mendonça, mais conhecido como “embaixador da arte e da cultura nordestina no sul do país”, ganha um perfil à altura do seu apostolado cultural e social

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oi no ano da sua morte, 1995, que o ator e diretor pernambucano Luiz Mendonça, mesmo sofrendo com as doenças (hospedeiras) causadas pelo vírus HIV, dirigiu, de fato, a sua última peça, Auréola. Este espetáculo colocou nos palcos cariocas um grupo de jovens oriundos da favela da Varginha (RJ), para contar a história de dois anjos que desciam à Terra para coroar uma santa, mas que decidem colocar o símbolo de pureza e benevolência na cabeça do busto de um traficante morto a tiros que estava sendo esculpido pelos moradores da comunidade, por ser um espécie de Robin Hood tupiniquim. Auréola teve uma recepção bastante elogiosa da crítica especializada. O crítico Leonel Fischer, à época na Tribuna da Imprensa, escreveu: (...) “segue uma linha de expressão popular que é a marca do encenador. Através de marcações simples e de uma adequada pulsação rítmica, Mendonça retrata de forma eficiente o rico e conflitante mundo dos menos privilegiados”. Já o crítico Armindo Blanco, na sua coluna do jornal O Dia, disse: “Mendonça é estimável pela cordialidade, o senso humanístico, o vezo artesanal e também pelo espírito de missão: para ele, o teatro é um meio de ajudar o mundo a transformar-se”. E prossegue: (...) “tentam alimentar a ilusão com que Mendonça morrerá: a de que o teatro é a salvação do mundo”. De fato, ele acreditava que o teatro é a salvação das pessoas. E foi fiel, durante toda a sua vida, à máxima de fazer teatro para o povo e com o povo. Desde o início da sua trajetória, quando criou com a sua mãe, Sebastiana Mendonça, o espetáculo da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, Mendonça apontou o desejo em fazer do teatro uma festa popular. E foi assim que, ao lado de Paulo Freire, Hermilo Borba Filho, Abelardo da Hora e Ariano Suassuna, funContinente janeiro 2006

dou o Movimento de Cultura Popular (MCP). O trabalho foi interrompido por conta do Golpe de 64. Exilado, Mendonça buscou refúgio no Rio de Janeiro. Lá, fundou grupos, montou inúmeras peças, ganhou o prêmio Molière pela montagem de Viva o Cordão Encarnado (Luiz Marinho) e aprofundou seu trabalho de arte-educador nas áreas mais pobres da cidade. Mas não foram só favelados que colocaram as máscaras sob a orientação de Luiz Mendonça. Nomes hoje famosos, como Elba Ramalho, José Wilker, Tânia Alves e Elke Maravilha, foram iniciados no palco por ele. E deu vida não somente a textos de autores desconhecidos, como o fez com Geraldo de Andrade, empregado do açougue de Varginha e autor de Auréola. Encenou textos de Vital Santos, Otto Prado, Ariano Suassuna, Osman Lins, José Carlos Cavalcanti Borges, entre outros brasileiros, mas também a Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht. Estas e outras histórias estão no livro Luiz Mendonça: Teatro é Festa Para o Povo, de Carlos Reis e Luís Augusto Reis, pai e filho, homens de teatro que, com rigor técnico e sensibilidade, realizaram uma obra que não é nem uma biografia nem um ensaio. Segundo eles, trata-se de “um verbete ampliado”, visto que a trajetória de Mendonça é tão rica e instigante que não se esgota nas 165 páginas. Uma obra ágil e que vale a pena ser lida como ponto de partida para uma melhor compreensão do teatro pernambucano, tão econômico em registros das suas histórias. • (Isabelle Câmara) Luiz Mendonça: Teatro é Festa Para o Povo de Luís Reis e Carlos Reis. Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 165 páginas. R$ 10,00.


AGENDA/CÊNICAS

Recife é um palco A 12ª edição do festival Janeiro de Grandes Espetáculos reúne os melhores do Estado e ainda traz novidades

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O QuebraNozes no Reino do MeioDia reinventa o sagrado balé natalino

m janeiro, o Recife é dos grandes espetáculos. São apresentações de dança, teatro para adultos e crianças, leituras dramatizadas e discussões culturais acontecendo em vários pontos da cidade. Os palcos serão os dos teatros de Santa Isabel, do Parque, Armazém, Apolo e Arraial. Em sua 12ª edição, o projeto Janeiro de Grandes Espetáculos ressalta montagens que cumpriram temporada em 2005 e apresenta ainda convidados de outros Estados. Entre os pernambucanos, As Sombrias Ruínas da Alma, novela escrita por Raimundo Carrero, que ganhou o palco sob a direção de Carlos Carvalho. A peça conta a história de três homens bêbados e arruinados, que se apaixonam pela mesma mulher. O Teatro de Amadores de Pernambuco - TAP apresenta Um Sábado em 30, peça que ficou 34 anos seguidos em cartaz até 1997, retornou em 2001 e, após outro hiato, foi novamente resgatada em 2005. A Trupe apresenta o sucesso de público As Malditas, comédia sobre três irmãs invejosas que sonham em casar. O clássico Auto da Compadecida volta ao tablado pela Dramart Produções. Seguindo a temática nordestina, a Cia. Spectrus de Artes Cênicas leva aos palcos recifenses o musical Coiteiros – um romance juvenil que acontece em meio à luta de cangaceiros e senhores da terra no sertão nordestino. Sob a direção de Carlos Bartolomeu, A Vida Diva se apropria da metalinguagem para fazer uma homenagem aos artistas do teatro, evocando o medo da possível ausência do público, com claras referências às divas do cinema. O público infantil também desfruta de uma boa programação. Entre os destaques estão: Cantarim de Cantará; Poemas Esparadrápicos, que mostra uma trupe de palhaços que brinca de encenar e cantar divertidos e singelos poemas, dos Doutores da Alegria Recife, e O Quebra-Nozes no Reino do MeioDia – reinvenção do consagrado balé de natal adaptado para a cultura pernambucana. Para os apreciadores da dança local, o balé da Cia. Trapiá faz uma homenagem ao frevo e aos carnavais de todas as épocas no espetáculo Evoé!. A Compassos Cia. de Dança critica o mundo descartável da moda no espetáculo de dança Em Anexo. A Escambo Cia. de Criação também utiliza o viés crítico e explora as relações interpessoais no âmbito privado e público, discutindo temas como violência e cotidiano, em Bolhas em Interface. O homenageado deste ano é o ator e diretor José Pimentel, que há 28 anos atua como Jesus no espetáculo da Paixão de Cristo (primeiro em Nova Jerusalém, no município de Brejo da Madre de Deus - PE, depois no Estádio do Santa Cruz Futebol Clube e, atualmente, no Marco Zero). O Janeiro de Grandes Espetáculos é uma realização da APACEPE (Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco), numa parceria entre os produtores Paulo de Castro, Paula de Renor e Carla Valença.

Cena de Bolhas em Interface, da Escambo Cia. de Dança

O Auto da Compadecida

Janeiro de Grandes Espetáculos. De 11 a 31 de janeiro. Informações: 81.3421.8456 / 3423 3186 /apacepe@bol.com.br. Continente janeiro 2006

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A modernidade em chamas As revoltas nos subĂşrbios de Paris esquentam o debate sobre a decadĂŞncia do modelo urbano progressista Camilo Soares, de Paris


COMPORTAMENTO

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s imagens ainda estão vivas na memória de todos. Em fins de outubro do ano passado, estourou nos subúrbios da cidade mais visitada do mundo semanas de verdadeira guerra civil, movida por jovens desacreditados por um sistema de exclusão e uma polícia incapaz de apaziguar o conflito. Como um incêndio que se alastra incontrolavelmente, a onda de violência e destruição na periferia parisiense ganhou o interior da França e amedrontou os países vizinhos, temerosos da expansão do fenômeno. Centenas de carros amanheciam queimados a cada manhã. De um ápice de 1.500 por noite, o número foi minguando para 900, 500, 200, até uma “estabilização” de 90 veículos incinerados, mantendo acesa uma espécie de chama perpétua, queimando em homenagem ao “imigrante desconhecido”, uma metáfora do sociólogo Jean Baudrillard, que a compara com a tocha eterna do soldado desconhecido francês, do Arco de Triunfo. Isso sem falar dos ginásios e escolas que foram completamente destruídos pelos manifestantes, normalmente muito jovens, adolescentes, moradores de grandes centros habitacionais, as cités. Mas por que queimam veículos e o comércio dos vizinhos e, pior ainda, por que motivo destroem a própria escola? O amálgama de razões remonta há 40 anos de políticas sociais e planos urbanos inadaptados à situação de uma nação em plena mudança. A partir dos anos 60, uma onda de imigração facilitada pelo governo para dar braços à indústria crescente causa uma crise habitacional evidente. Em resposta, o governo lança um plano agressivo de construção de conjuntos habitacionais populares, os HLM (Habitações de Aluguéis Moderados, em francês), chegando a erguer até 600 mil moradias por ano. Grandes torres em moldes modernos emergem nas periferias, chamadas pelo Estado de ZUP (Zonas de Urbanização Prioritárias). Porém, essas foram empurradas para longe da capital, em áreas desprovidas de comércio, lazer e serviços públicos, tornando-se grandes e fantasmagóricas cidades dormitórios. Essas grandes aglomerações humanas foram construídas seguindo a cartilha do modelo urbano progressista do grupo dos C.I.A.M (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), encabeçados por Le Corbusier e Gropius, mas com representantes do mundo inteiro, como o japonês Sakakura e o brasileiro Lucio Costa. O espírito da época era organizar os espaços buscando racionalidade e eficiência, com os métodos da estandartização e mecanização da indústria. Quase meio século depois (os C.I.A.M. datavam de 1928), torres de grande amplidão foram levantadas para criar máquinas de morar para o maior número possível de famílias desprovidas. Surgiram lugares monótonos e sem identidade, que acabam deteriorados pelos próprios moradores, que não os identificam como lar. O choque do petróleo nos anos 80 foi a última punhalada, desempregando grande parte desses imigrantes, assalariados sem qualificação. Os jovens se depararam de uma hora para outra vagando em áreas superpopuladas, sem qualquer expectativa. Um educador descreve para a televisão francesa esses centros como áreas onde os adolescentes descem de casa e encontram um ambiente onde Continente janeiro 2006

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COMPORTAMENTO Setboun/Corbis

As cités: “casernas separatistas onde ninguém quer morar”

O rapper Sofiane: “A França nos sujou”

não há lojas, padarias, lazer, famílias, ou seja, não sentem a nação em suas vidas. O sonho moderno de urbanização falhou para eles, pois esqueceu que os homens não são números, mas seres dotados de subjetividade, que necessitam extravazar ânsias e desejos. “Grandes casernas separatistas onde ninguém quer morar” – já em 1975 o arquiteto francês Emile Aillaud (19021988) assim descrevia as torres dos conjuntos habitacionais. Aillaud observava que a lógica funcional dessas construções não prestigia a carga psicológica da ocupação humana, um certo calor humano, e limita a vida das pessoas a um caráter sanitário. “A gente olha para cima e aponta: eu moro ali, naquele quadrado. Ninguém gosta disso!”, confirma o cantor de rap Sofiane, morador de Blanc Menil, uma das cidades mais afetadas pelos distúrbios. A separação física dessa população composta sobretudo de filhos de imigrantes dificulta a possibilidade de integração e estigmatiza os habitantes desses subúrbios. Pontos de transportes são distantes e raros, uma contradição em uma Paris que possui uma das maiores redes de metrôs e ônibus do mundo. O paradoxo é ainda maior, se pensarmos que a capital ocupa apenas 7,6% do território metropolitano e detém 2 milhões dos 9,6 milhões habitantes da zona. A população mais do que nunca fica isolada (talvez essa era a intenção), pois é na capital que se concentra o grosso do comércio e um terço do trabalho. A redução da circulação é outro princípio modernista: “A rua

não é somente abolida em nome da higiene, na medida em que simboliza em nossa época a desordem circulatória”, lembra a pesquisadora Françoise Choay os conceitos de Le Corbusier, em seu livro O Urbanismo. O problema é que, dificultando a circulação, o sentimento de abandono aumenta, junto com a violência e a discriminação. “Em algumas áreas de Paris, as pessoas não estão acostumadas a ver árabes”, revela Sofiane. Na busca de trabalho, a discriminação racial se faz sentir: “Quando somos empregados em telemarketing, temos que mudar de nome para nos apresentar ao telefone, pois as pessoas não gostam de ouvir: “Bom-dia, eu sou Mohamed, ou Said”, desabafa o cantor. Tudo isso faz com que esses jovens falem da França como uma entidade exterior, à qual não pertencem. É o caso do próprio Sofiane, nascido na França, de família argelina, que justifica a recente violência urbana como uma forma de expor o problema e obrigar o governo a olhar seriamente a integração dessa nova população francesa: “A França nos sujou aqui. A gente a sujou para o mundo!”. O crime é apenas mais uma conseqüência da desesperança. Tais ambientes superlotados, porém construídos ao redor de áreas desérticas, são um convite à marginalidade. As Zonas de Urbanização Prioritárias foram, uma após outra, transformando-se em ZUS (Zonas Urbanas Sensíveis). Arquitetura explosiva, monótona, sem lugar de parada, de descanso, composta de portões e passagens. O populista ministro do interior, Nicolas Sarkozy, chegou até a proibir a

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COMPORTAMENTO Fotos: Camilo Soares

Pichação no subúrbio: “A culpa é de Sarkozy”

permanência de grupos de jovens nesses lugares. Ele é considerado por muitos o verdadeiro piromaníaco da história, por adotar uma atitude cruzadística bushiana contra esses jovens filhos de imigrantes, que se sentem excluídos da República Francesa. Suas desastradas declarações, nas quais disse que iria varrer a periferia dessa “gentalha”, são comumente citadas pelos jovens da periferia como motivo maior de seus atos de vingança. As frases de efeito foram deteminantes para a revolta civil, mas, frente a uma radiografia da situação, é apenas a última gota d’água de um sistema que pouco fez de concreto para a integração dessa população. Hoje, a França apresenta 717 áreas socialmente delicadas, abrigando 4,5 milhões de habitantes, onde o desemprego atinge até 30% (40% entre os jovens), mais do dobro da média nacional. Presenciando a frustração de seus irmãos mais velhos na procura de emprego, depois de seguirem uma formação de dois a cinco anos de ensino superior, esses jovens não se sentem motivados para a escola. Ninguém emprega gente que mora nessas zonas. A escola não representa a ascensão, mas lembra o fracasso, por isso são queimadas. Essa inversão de valor não toca, para Jean Baudrillard, somente os imigrantes. Em artigo para o jornal Libération, o sociólogo aponta que uma integração não é viável, pois nem mesmo os europeus se identificam com esse modo de vida completamente banalizado, técnico e confortável. Então, integração a quê? “Uma sociedade,

ela mesma em via de desintegração, não tem chance alguma de poder integrar seus imigrantes, que são ao mesmo tempo o resultado e o analista selvagem dessa desintegração”, coloca. Assim, não assumindo tais valores, resta apenas aos franceses empurrá-los, à força, aos outros, numa forma de inexorável discriminação. Baudrillard, aliás, compara o fenômeno parisiense com os sintomas do terrorismo internacional, afirmando que, guardando as devidas proporções, são frutos da mesma ilusão de que elevando o resto do mundo ao nível de vida ocidental, a questão será resolvida. O diagnóstico, portanto, revela a conseqüência de uma tendência mundial em termos de políticas sociais e habitacionais, a maneira de agir seguindo a premissa “o que os olhos não vêem, o coração não sente”: periferias longes e isoladas. No entanto, como esse país parece cultivar essa mania de partir na frente, como na Revolução Francesa e em maio de 1968, dessa vez, depois da burguesia e dos estudantes intelectuais, chegou a hora dos excluídos, periféricos à cultura esbanjadora da grande nação, de mostrar suas armas. Alemanha e Inglaterra não precisam temer o cultivo do ódio pelos franceses, pois possuem nas próprias entranhas as mesmas sementes. Para o Brasil, a falta de alcance de civilidade e de auto-estima para a população é razão evidente de nossa violência menos declarada, mas bem mais mortal: já temos nossa Cidade de Deus. • Continente janeiro 2006

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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Fotos: Roberta Mariz

Doces frutas que vieram de longe "E lhes eram oferecidos refrescos, não limonada ou cerveja, mas de excelentes melancias..." Julio Verne (Os Revoltosos do Bounty)

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colonizador português tentou reproduzir, na terra a que primeiro chamou de Vera Cruz, os ambientes do além-mar. Com ele trouxe curral, horta e quintal – quase tudo que não havia por aqui. No curral colocou bode, boi, carneiro, ganso, pato, pombo e porco domesticado. Mais galinha, para nossos índios o mais estranho dos animais. E cão, aquele que mais disputavam. Na horta plantaram acelga, agrião, alface, berinjela, bredo, cebolinho, cenoura, chicória, coentro, couve, endro, espinafre, funcho, hortelã, manjericão, mostarda, nabo, pepino, salsa. No quintal, em volta das casas, nasceram fruteiras novas, todas elas desconhecidas de nossos índios – laranja, limão, melão, melancia, maçã, carambola, jambo, romã, jaca, figo, uva. É sobre a origem de algumas dessas frutas que vamos falar agora. Laranja (Citrus auratium Linn) – Os primeiros registros vêm da China, 2.000 anos antes de Cristo. Dessas primeiras árvores (kin-kan) se originaram todas as variedades da fruta. Conta antiga lenda grega que ninfas cultivavam, nos Jardins das Hespérides, árvores defendidas por um dragão de 100 cabeças. Por tornar imortais aqueles que provassem seus pomos de ouro. Em busca dessa fruta andou Hércules. “As Hespérides moram num maravilhoso palácio no centro do jardim. Bem na frente há uma árvore carregada dumas frutas amareloouro, disse o Visconde para espanto de Pedrinho”, assim escreveu Monteiro Lobato (Os Doze Trabalhos de Hércules). Esses pomos de ouro, na França, eram orange – por conta de sua cor. Or, só para lembrar, nessa língua é ouro. Acabou sendo o próprio nome da cidade, na Provence, onde eram cultivados. Lá a família de Nassau tinha uma grande propriedade, razão por que ele acabou conhecido como o “Príncipe de Orange”. Prestígio tinha também na Itália – tanto que os Médicis, em princípios do século 16, esco-

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lheram cinco laranjas de ouro para representar seu escudo. O nome se manteve em países como Alemanha e Inglaterra, trocando só o sotaque. O primeiro registro escrito da fruta vem do sânscrito - a mais antiga língua indo-européia. Era então naranga (perfume dentro). Os mouros, seus introdutores na Península Ibérica, a chamavam narandja. Na Espanha é naranja; na Itália, arancia; em Portugal laranja. As primeiras mudas vieram ao Brasil no inicio do século 16. Primeiro para a Bahia. Eram as “laranjas-baía”. Com o tempo, a expressão acabou designando só essa primeira variedade – uma laranja grande, redonda, com casca rugosa, de cor laranja bem forte, com uma protuberância no centro (dita “umbigo”). Depois os portugueses plantaram laranjeiras por toda a costa. E elas se multiplicaram. Em 1753, James Lind, um médico da marinha britânica, provou que essa fruta prevenia o aparecimento do escorbuto, a doença mais mortal das grandes travessias (A Treatise of the Scurvy). Passaram a ser obrigatórias, nessas viagens. Aos poucos, foram aparecendo variedades novas – pêra (para suco), da terra (amarga e de casca rugosa, ideal para doce), mimo-do-céu (a preferida das crianças), lima, natal. Sem esquecer uma variação dela, a tangerina, a “espécie mais apreciada pelos mandarins” – segundo Geoffrey Grigson (Dicticionary of English Plant Names). Razão pela qual os árabes a chamavam mandarina. Laranjas são consumidas ao natural e em sucos, sorvetes, doces, geléias, pudins, bolos, biscoitos. É também acompanhamento indispensável na feijoada, cortada em gomos ou em pedaços, servida junto com as carnes e as couves para “cortar a gordura”. A casca ralada enriquece carne assada, caldos (no crepe Suzette), molhos (pato com laranja) e pães. Também é usada como aromatizante em águas-de-colônia e chás famosos – como o “Oranje Pekoe” ou o “Queen Mary”. Sem esquecer que flores de laranjeira são usadas para enfeitar coroas e bolos de noiva. O costume vem dos gregos, que consideravam essa flor símbolo de felicidade e fertilidade. Laranja também é, hoje, sinônimo de quem esconde o verdadeiro dono do dinheiro. Em tempos de CPIs, o prato mais


SABORES PERNAMBUCANOS famoso acabou sendo mesmo pizza. Só que, nas frutas, não tem para ninguém. A laranja é campeã. Doce de Laranja-da-Terra Ingredientes: 10 laranjas inchadas, 1 kg de açúcar, 1litro de água, cravo a gosto. Preparo: Raspe levemente a casca, retire a polpa e a pele (que não serão aproveitadas). Dê uma ligeira fervura e depois deixe de molho por 3 dias, na geladeira. Escorra e retire toda a água. Leve ao fogo com água, açúcar e alguns cravos. Deixe no fogo até a calda ficar no ponto. Limão (Citrus limonum Risso) – Vem da Índia. Limões (limah) foram levados à Europa pelos árabes – que os consideravam fortificantes e afrodisíacos. Chegou ao Brasil no século 16. Mas começaram a ser cultivados em larga escala, na Europa e nas Américas, só no século 19. São muitas as variedades – limão-cravo, limão-doce, limão-francês, limão-galego. Também limão-siciliano, que não se desenvolve nos trópicos. E limão-do-taiti, que recebeu esse nome por ter sido levado do Tahiti para a Califórnia (1875) – com frutos de poucos caroços e árvore diferente de todos os outros limoeiros, sem espinhos nas hastes. Na culinária, limão é usado como condimento – sobretudo no tempero de peixes, crustáceos, ostras, galinha, carne de porco, maionese. Também substitui o vinagre, nos molhos de salada. Do sumo se faz suco, refresco, sorvete. Também se usa para evitar que frutas descascadas escureçam. A casca, em pedaços ou em raspas, é utilizada em doces, geléias, compotas, pudins, cremes, recheios, suspiros, caldas, massas, tortas, biscoitos, bolos, cremes. Limão é cultura. Toda criança canta “Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá”. Ou recita os versinhos “Lá vem a lua saindo,/ Redonda como um limão,/ Tanto sangue derramado,/ Dentro do meu coração”. Também se diz de pessoa amarga, que tem temperamento “azedo”. Sem esquecer que acabou ingrediente de invenção bem brasileira, um coquetel em que o limão é cortado em pedaços, socado com açúcar e misturado com cachaça – a famosa e popular “caipirinha”. Biscoito de Limão Ingredientes: casca ralada de 1 limão-taiti, 250g de maisena, 250g de farinha de trigo, 250g de açúcar, 100g de manteiga, 5g de fermento em pó, 1 ovo. Preparo: Misture todos os ingredientes até obter massa homogênea (se for necessário, junte mais um

pouco de trigo). Faça os biscoitos com uma colher. Coloque em assadeira untada e polvilhada. Asse em forno quente, por 15 minutos. Melão (Cucumis melo Linn) – Fruto originário da região central da Ásia e também da África. Por incrível que pareça, da mesma família das abóboras, dos chuchus e dos pepinos (Cucurbitáceas). Era muito apreciado pelos egípcios, que consideravam suas sementes afrodisíacas. Gregos e persas foram os primeiros a cultivar o meloeiro. Romanos se encarregaram de espalhar pés de melão por toda a Europa. Ao Brasil chegou nos primeiros anos da colonização. Melões variam no tamanho, na forma, na cor da casca e na cor da polpa. Mais comuns são “espanhol” (casca amarela, ovalado com carne verde-claro), “português” (casca verde, comprido, com carne também verde-claro), “gália” (casca amarela, redondo, com carne amarelada), “japonês” (casca verde-amarelada e enrugada, redondo, com carne rosa), orange, também chamado de “meloa”, (casca amarelo-esverdeada e bem lisa, redondo com carne rosa). É consumido basicamente ao natural e em saladas de frutas; ou transformado em suco e refresco. Está presente também como entrada, acompanhando presunto – receita que nos veio da Grécia antiga. Apesar de saboroso, merece cuidado por ser indigesto. Até consta que Catarina de Médicis, na França, passou mal depois de vários pratos de melão. Seu médico disse que não era de admirar, considerando as quantidades ingeridas. Zangada, explicou-se a rainha: “Não são os frutos do jardim, mas os frutos do espírito que me perturbam” – referindo a perda do marido Henrique II e problemas que tinha com os filhos. Mais razão tinha, provavelmente, aquele médico. Diferente do fruto que pode adoecer a quem exagera, no Nordeste suas folhas são usadas a valer para cicatrizar cortes e desinchar as pernas – “ferver as folhas do melão de São Caetano e lavar a perna com a água bem quente”, diz a receita popular. Melão com Presunto Ingredientes: fatias de melão, presunto de boa qualidade (de preferência de Parma), vinagre balsâmico, folhas de hortelã. Preparo: Arrume, em pratos individuais, uma fatia de melão e pedaços de presunto. Decore com folhas de hortelã e fios de vinagre balsâmico (reduzido no fogo até que engrosse). Maçã (Malus sylvestris L.) – Originária da Ásia Central. Na mitologia, representa fertilidade, beleza, amor e, desde os mais remotos tempos, a tentação do pecado. Por ela, segundo a lenda, o homem abriu mão dos prazeres Continente janeiro 2006

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do paraíso. Em verdade, essa maçã da Bíblia era a fruta do conhecimento. O homem perdeu o paraíso quando abandonou a fé e preferiu conhecer a origem das coisas. Antiga lenda grega conta que a deusa Éris não foi convidada para o casamento de Peleu e Tétis. Por vingança deixou, no Olimpo, uma maçã de ouro, dedicada à mais bela mulher presente. Por ela brigaram as deusas Minerva, Vênus, Hera, Pelar, Afrodite. Então Júpiter mandou procurar Páris, que seria o juiz da questão. A escolhida foi Vênus. Todas as outras ficaram contrariadas – nascendo, assim, a expressão “pomo da discórdia”. E passando Éris a ser a “Deusa da Discórdia”. Druidas, os antigos sacerdotes de Gália e Bretanha, usavam galhos de macieira para fazer suas varinhas de adivinhações. Uma das mais conhecidas histórias infantis, “A Branca de Neve”, conta como uma maçã envenenada foi usada pela madrasta, disfarçada de bruxa. Depois se provou ser chinesa – daí vindo sua cor da pele, branca como a neve. Mas essa é outra história. Os primeiros documentos registram a plantação de macieiras por volta de 200 a.C. O nome, segundo uns, vem do latim clássico malum (qualquer fruto com caroço). Segundo outros, vem de mattiana, em homenagem a Caius Mattium – botânico, amigo de César, que pela primeira vez fez um enxerto de maçã. Depois o nome evoluiu para pomum – vindo pomme, em francês. É considerada, pelos europeus, a rainha das frutas. Existem cerca de 5.000 variedades. Chegou ao Brasil no século 18. E as mais conhecidas, por aqui, são “argentina” (doce e bem pequena), fuji (ácida, vermelha-rajada), “gala” (doce, vermelho-claro), granny Smith (ácida, verde-brilhante), matsu (ácida, verde-amarelada), “verde” ou “golden” (doce, verde-amarelada). Maçãs doces devem ser consumidas ao natural. As ácidas, que amolecem rápido durante o cozimento, são mais indicadas para doces, geléias, purês, molhos, chutneys, bolos, tortas. Do suco da maçã fermentado se faz vinagre e sidra. Do suco destilado, o calvados – conhaque feito na região da Normandia (França). Bom lembrar que maçã é também a parte arredondada do cabo da espada, que protege o punho. Maçaneta, a parte arredondada que abre a porta. Maçã do rosto é a região molar. Maçã-de-Adão é o mesmo que o pomo de adão, gogó. E lembrar também que maçã contém feniletilamina, que libera as mesmas substâncias que o corpo produz durante o ato sexual. Dá prazer comer maçã. Literalmente.

Chutney de Maçã Ingredientes: 1 kg de maçãs verdes picadas e colocadas em água com limão, 750g de açúcar, 100g de amêndoas, 250g de cebolas roxas cortadas e deixadas na água com açúcar, 250g de passas, 1 colher de sopa de mostarda, ½ colher de sopa de pimenta (a pimenta inteira sem semente e cortada), 1 colher de sopa de sal, 2 xícaras de chá de vinagre de limão Preparo: Coloque em uma panela água e 500g de açúcar. Misture e deixe ferver. Acrescente maçãs, cebolas, passas, amêndoas e pimenta. Quando as maçãs ficarem transparentes, coloque mostarda e sal. Em outra panela junte 250g de açúcar e vinagre de limão. Faça uma calda até que fique cor de caramelo. Junte com os ingredientes da primeira panela. Melancia (Citrullus vulgaris Schrad) – Nativa da África, é cultivada pelo homem há mais de 4.000 anos. Muito apreciada pelos egípcios, figura nos menus das Mil e Uma Noites. É balancia em Portugal; pateca na Índia; maxibua em Angola. Por árabes foi levada para a Península Ibérica. Chamavam-na bateca. Ao Brasil veio no século 16, sendo muito apreciada por índios e escravos. Marcgrave diz que a chamavam, em Pernambuco, de “jaee” (muito suculenta). É outra fruta da mesma família dos pepinos. Quanto mais madura, mais doce o sabor. Escolher melancia não é tarefa fácil. Um bom método é bater nela com os nós dos dedos – se a fruta ainda estiver meio verde, o som sairá metálico. À medida que fica madura, mais surdo será o som que vem dessa batida. É usada ao natural ou em forma de suco. Por ser vermelha por dentro, e verde por fora, na Revolução de 64, passou a ser apelido de comunista disfarçado – verde como as fardas, por fora; e vermelho, como se impõem devam ser os comunistas, por dentro. Suco de Melancia Ingredientes: pedaços de melancia, açúcar, bem pouca água e gelo. Preparo: bata tudo no liquidificador e sirva imediatamente. •


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Velha cena nordestina (guardada em meu caderno de anotações)

À

noite, o céu da caatinga acende todas as estrelas – e elas brilham e tremem tão próximas e reais como a chama do carbureto que, neste instante, tenho aqui defronte da máquina de escrever. Há uma lua pela metade, quase na barra do céu, vermelha como um sol crepuscular. Chão, gente, lua e estrelas, tudo está enxuto e arde. O homem me leva pelo braço para que eu veja o pequeno riacho onde, cinco anos atrás, molhei os pés. O riacho acabou – é agora uma linha enviesada e escura, como a marca que ficou de uma ferida cicatrizada. As horas vazias e a luta impossível tangem os homens para os botecos, na ponta dos caminhos. Quando um automóvel ou caminhão rompe na estrada defron-

te, olhos indiferentes se voltam para ele – mas a densa poeira amarela já escondeu o veículo e fechou o caminho. Durante um ou dois minutos, o mundo lá fora se fecha por trás de uma porta fosca. Quando a porta de poeira novamente se abre, os homens do boteco sabem que não encontrarão nenhuma surpresa: sabem que, escancarada ao sol, ela conduz apenas ao inferno da caatinga, onde os diabos se disfarçam de mandacarus e os xiquexiques são almas penadas, morrendo de sede sem morrerem nunca. •

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Reprodução/Acervo Giuseppe Baccaro


ESPECIAL

A crença no estranho “A principal característica da natureza humana é a de se deixar levar pelo sentimento e apresentar justificativas pseudológicas para atitudes sentimentais.” Vilfredo Pareto (1848-1923), Traité de Sociologie Générale Eduardo Maia

O

ceticismo é a tendência a desconfiar daquilo que não parece suficientemente coerente com a realidade, das autoridades estabelecidas, dos argumentos sem embasamento, das explicações que carecem de provas práticas. A crítica que vem sendo feita há muito tempo aos pensadores céticos é a de que, por muita importância que tenha tal corrente, só pode ser considerada uma atividade de negação, uma eliminação de falsas afirmações. O livro Por Que Acreditam as Pessoas em Coisas Estranhas, do historiador da ciência Michael Shermer, é um instigante documento em defesa do ceticismo como genuína arma científica de esclarecimento. Não significa tão somente um exercício niilista, mas uma abertura a novas possibilidades de busca de conhecimentos genuínos. O ceticismo seria uma espécie de técnica de autodefesa intelectual. E o que são essas “coisas estranhas”? Alquimia, astrologia, comunismo científico, criacionismo científico, grafologia, ovniologia, parapsicologia, regressão a vidas passadas, entre muitas outras crendices que habitam o imaginário das pessoas em todo o mundo, ainda que estejamos na Era da Informação e do Conhecimento. O que mais surpreende Shermer é como essas crenças conseguem ainda hoje tomar o imaginário das pessoas e advogarem-se a estatura de “ciência”. Pesquisas da Fundação Gallup dos Estados Unidos atestaram que cerca de 50% dos americanos acreditam em percepção extra-sensorial. Mais de 40% acreditam em possessões demoníacas e casas mal-assombradas, e em torno de 30% crêem em clarividência, fantasmas e astrologia. O objetivo central do livro de Michael Shermer é separar o joio do trigo, quer dizer, distinguir de forma crítica e racional a ciência da pseudociência. Para enquadrar o que estaria realmente no âmbito científico, o autor explica que a ciência não é uma coisa em si, mas um método, e o progresso científico é “o crescimento cumulativo de um sistema de conhecimento ao longo do tempo, em que as características úteis são retidas e as características inúteis são abandonadas, com base na rejeição ou confirmação do conhecimento verificável”. O conhecimento científico, portanto, deve fugir de dogmatismos e estar sempre aberto a críticas e a experimentações.

William Hogarth, 1762, Credulidade, Superstição e Fanatismo. Uma Mistura. Gravura em metal, 58 x 44cm

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ESPECIAL Imagens: reprodução

Francisco Cândido Xavier, considerado o mais profícuo médiumpsicógrafo do mundo em todas as épocas

A origem de Darwin, para os seus detratores

A religião e as crenças paranormais sempre proporcionaram aos homens um conforto que a ciência nunca pôde oferecer, pois ela não pode responder a todas as perguntas, nem mesmo às que consideramos mais fundamentais

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As crenças religiosas e as afirmações pseudocientíficas possuem características que as aproximam entre si e que as diferenciam da verdadeira ciência: tentam se legitimar pela invocação de entes imateriais ou sobrenaturais inacessíveis ao exame empírico, tais como força vital, alma, criação divina, destino, memória coletiva e necessidade histórica; baseiam-se na credulidade sem submeter suas especulações à nenhuma prova; são dogmáticas, não mudando seus princípios quando falham, nem depois de novas descobertas; não encontram nem utilizam “leis gerais”; e seus cultores não aceitam submeter suas teorias a críticas da comunidade científica. Um caso polêmico analisado em Por Que Acreditam as Pessoas em Coisas Estranhas é o da verdadeira batalha que vem sendo travada nos Estados Unidos entre os evolucionistas e os que defendem a autodenominada “ciência da criação”. Estes últimos acreditam que sua “matéria” deve ser ensinada nas escolas públicas em detrimento do evolucionismo darwinista. A querela já passou pela justiça e até hoje causa apaixonados e calorosos debates. Apoiando o criacionismo radical, está a fé religiosa que é baseada nos textos bíblicos. Os porta-vozes dessa corrente sustentam a tese do “projeto inteligente”, segundo a qual os seres vivos são complexos demais para terem evoluído através de mutações aleatórias, por uma seleção natural das espécies, e atribuem a autoria da criação a um designer inteligente. O evolucionismo, por sua vez, tem como fulcro evidências arqueológicas, cosmológicas, geológicas e antropológicas. A teoria evolucionista coloca o homem numa situação “natural”, quer dizer, retira-lhe o status de transcendência e lhe situa como um ser contingente e prescindível de um processo mais amplo e global. Para alguns criacionistas, admitir o evolucionismo é abrir mão da dignidade humana.


ESPECIAL Michael Shermer, autor do livro Por Que Acreditam as Pessoas em Coisas Estranhas

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Frases “Se Deus me desse pelo menos um sinal claro! Como depositar no meu nome uma enorme soma de dinheiro em um banco suíço.” Woody Allen. “Examinem fragmentos de pseudociência e encontrarão um manto de proteção, um polegar para chupar, umas barras de saia para se agarrar. E o que oferecemos nós em troca? Incerteza! Insegurança!”. Isaac Asimov. “Deus move o jogador e este a peça. Que Deus atrás de Deus a trama começa?”. Jorge Luis Borges. “Se Noé fosse realmente precavido, não teria embarcado aquelas duas moscas”. Hellen Castle. “Por simples senso comum não creio em Deus, em nenhum”. Charlie Chaplin.

O filósofo Olavo de Carvalho afirma que a verdadeira racionalidade surge do esforço crítico do indivíduo no sentido de dar coerência às suas crenças: “Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa vontade no sentido de dar um simulacro de coerência àquilo que não tem”. Daí a facilidade com que as pessoas são persuadidas até por quem só apresenta argumentos rasos e contraditórios. Francis Bacon, ainda no século 16, defendeu que “o intelecto humano não é apenas luz intelectual (pura), pois sofre influência da vontade e dos afetos (...). Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere e rejeita o que leva a dificuldades, pela impaciência de investigar. Descarta a realidade pura e simples, porque deprime suas esperanças. Recusa os princípios supremos da natureza, em favor da superstição”. A religião e as crenças paranormais sempre proporcionaram aos homens um conforto que a ciência nunca pôde oferecer, pois ela não pode responder a todas as perguntas, nem mesmo às que consideramos mais fundamentais: De onde viemos? Por que estamos aqui? O mundo tem um sentido ou é resultado do acaso? Deus existe realmente? O cientista Marcelo Gleiser, em uma defesa da ciência como forma mais segura de atingir qualquer conhecimento, escreveu: “ela (a ciência) não terá jamais todas as respostas, pois nem sabemos todas as perguntas. O cético prefere viver com a dúvida a aceitar respostas que não podem ser comprovadas, que são aceitas apenas pela fé. (...) Essa talvez seja a lição mais importante da ciência, ensinar-nos a viver com a dúvida, a idolatrá-la. Pois, sem ela, o conhecimento não avança”. •

“O universo que observamos tem precisamente as propriedades que deveríamos esperar, se não existisse, no princípio das coisas, nenhum arquiteto, nenhum propósito, nenhuma maldade nem bondade, nada, só cega e implacável indiferença”. Richard Dawkins. “A realidade é aquilo que, quando deixas de crer nela, não desaparece”. Philip K. Dick. “Está disposto Deus a prevenir a maldade, mas não pode? Então não é onipotente. Pode fazê-lo, mas não está disposto? Então é malévolo. É capaz e está disposto? Então, de onde provém a maldade? Não é capaz nem está disposto? Então, por que chamá-lo de Deus?” Epicuro. “Um mito é uma religião na qual já ninguém acredita”. James Feibleman. “Nem os demônios nem os deuses existem, são todos produtos das atividades psíquicas del hombre”. Sigmund Freud. “Quando era criança, acreditava em Deus, mas quando consegui unir dois pensamentos, esqueci-me de que existia. Creio que Deus é uma necessidade para muita gente, o que não demonstra que exista”. Henryk Ibsen. “A razão pura não pode provar a existência de Deus”. Immanuel Kant. “Os homens são tão simples, e se submetem até tal ponto a necessidades presentes, que quem engana encontrará sempre quem se deixe enganar”. Maquiavel “Se os milagres existem, é só porque não conhecemos bastante a natureza e não porque sejam autênticos e verídicos”. Montaigne “Os grandes intelectos são céticos”. Friedrich Wilhelm Nietzsche Continente janeiro 2006


ESPECIAL

Foto: Acervo do autor

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Luiz Eva, pesquisador da Universidade Federal do Paraná

Convite à diversidade “Cético significa, literalmente, o que investiga, ainda que se trate essencialmente de uma investigação crítica, pela qual ele constrói incessantemente objeções contra os dogmáticos” Fábio Lucas

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cético, na compreensão popular, é aquele que não acredita em nada. Mesmo se vir, o cético não crê. Mas a tradição filosófica grega atribui ao ceticismo um outro significado, o da suspensão do juízo, que veio de Pirro e nos foi transmitido por Sexto Empírico. Ao longo dos séculos, o conceito foi reaproveitado e remodelado por filósofos como Montaigne, Descartes, Hume, Locke e Wittgenstein. Para o professor Luiz Eva, da Universidade Federal do Paraná, pesquisador do CNPq, o ceticismo que é listado nos manuais como uma espécie de “exotismo” traz problemas fundamentais para a formação do pensamento moderno. Autor de Montaigne Contra a Vaidade (Humanitas, 2005), o filósofo da UFPR chama a atenção, nesta entrevista, para a atualidade do ceticismo, e diz como o antigo pirronismo pode ser visto como um convite à experiência e à diversidade. Qual o papel do ceticismo na filosofia contemporânea – permanece essencialmente o mesmo da Grécia Antiga? O ceticismo é hoje, principalmente, um tema na Epistemologia, mas o cético dos epistemólogos, de modo geral, corresponde a uma certa ficção metodológica, designada a examinar criticamente questões ligadas à possibilidade de conhecimento e de certeza. Não se trata de ceticismo como uma “forma de vida”, um engajamento filosófico comportando uma orientação prática, no mesmo sentido que pretenderam os antigos céticos (até Montaigne), mas, sim, de um ceticismo inspirado nas dúvidas da Primeira Meditação cartesiana, que parece ter tido um papel histórico importante nessa transformação.

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ESPECIAL Como se deu essa transformação? A partir dos modernos, foi-se criando a imagem do cético como aquele que propõe uma filosofia incompatível com a prática (gerada, na verdade, a partir de caricaturas do ceticismo que já circulavam entre os antigos); mas o cético pirrônico entendia que sua prática filosófica o conduzia à ataraxía, uma certa imperturbabilidade de alma, e à moderação das afecções inevitáveis. Havia uma proposta moral (no sentido amplo, de reflexão sobre a vida em sua dimensão efetiva) embutida no ceticismo antigo, que se converte num exercício de auto-exame em Montaigne, e posteriormente tende a desaparecer. Isso não significa, porém, que não existam hoje filósofos que pretendam atualizar a proposta filosófica do pirronismo, capazes de fazê-lo de um modo muito interessante. É o caso, em especial, de Oswaldo Porchat, professor emérito do Departamento de Filosofia da USP e autor de diversos artigos, alguns dos quais reunidos em Vida Comum e Ceticismo (Brasiliense, 1993)

costumes, o assentimento aos impulsos e às paixões, e mesmo a conhecimentos técnicos que hoje fariam parte do que denominamos ciência). O próprio Sexto foi médico, ligado a uma dissidência da escola denominada “empírica”, e hoje dispomos de indícios importantes de que essa parte positiva do ceticismo, redescoberto ao final da Idade Média, teve um papel relevante na constituição da reflexão científica moderna.

E qual o impacto na reflexão filosófica de um modo geral? O ceticismo filosófico tem um impacto indireto em filosofias “não-céticas” contemporâneas que não é devidamente levado em consideração por falta de maior conhecimento histórico. Nietzsche, por exemplo, conhecia muito bem o ceticismo antigo, e algumas de suas obras de juventude, como Sobre Verdade e Mentira num Sentido Extra-Moral, se aproximam muito de discussões céticas. Certamente o conhecimento do ceticismo permite aprofundar a reflexão sobre essas Qual o filósofo que melhor traduziu o ceticismo filosofias contemporâneas (posto que elas se forjaram, antigo para a linguagem e o mundo dos nossos dias? muitas vezes, através de um confronto mais ou menos A proposta do neopirronismo por parte de Porchat explícito com idéias céticas). merece ser melhor conhecida, especialmente na medida De que maneira o ceticismo se integra à chamada em que ela mostra a atualidade da problemática cética para a discussão de diversas questões contemporâneas (o “virada lingüística” de Wittgenstein? No caso particular de Wittgenstein, a principal obra valor da ciência, a crise da razão, a possibilidade de conhecimento da verdade etc.). Porchat critica a falsa idéia em que se discute o ceticismo é Sobre a Certeza, escrita às de que o cético não acredita em nada, insistindo no exame vésperas de sua morte. Mas o que Wittgenstein recoda parte positiva da filosofia cética, tal como nos foi le- nhece como ceticismo cabe na qualificação que fiz ao resgada por Sexto Empírico, que hoje é a principal fonte de ponder à primeira questão: trata-se de um solipsismo, pelo qual estaríamos isolados em nossas próprias idéias, que dispomos acerca do pirronismo antigo. derivado das reflexões cartesianas, e bastante diverso do Em que consiste esse ceticismo positivo? ceticismo antigo. O assim chamado problema cético do Sexto afirma que o cético suspende a crença acerca mundo exterior, pelo qual nos indagamos sobre como dos ádela, os objetos não-evidentes propostos pelas filo- podemos conhecer a existência de um mundo exterior às sofias dogmáticas, isto é, aquelas que se pretendem nossas próprias representações, uma vez que tudo a que detentoras de alguma verdade sobre as coisas. Mas o cé- temos acesso são nossas próprias representações, é um tico concilia a sua atitude de permanência na investigação problema central na filosofia moderna, mas totalmente (cético significa, literalmente, o que investiga, ainda que se estranho ao ceticismo antigo. trate essencialmente de uma investigação crítica, pela Como o autor do Tractatus desenvolveu o ceticismo? qual ele constrói incessantemente objeções contra os dogHá quem tente ver na filosofia do segundo Wittgenmáticos) com a adesão ao que ele denomina o “phainómenon”, literalmente “o que aparece”, como guia para a stein uma espécie de pirronismo, mas eu acho uma vida prática. Essa é uma noção crucial do ceticismo an- leitura forçada. De todo modo, o ceticismo é um tema tigo, pouco estudada, mas que abarca uma série de aspec- importante na “virada lingüística”, e não apenas sob o tos surpreendentes para quem não conhece o ceticismo (o viés da crítica a essa versão do “ceticismo do idealista”. uso da razão, dos sentidos, a admissão de valores e de Há um outro autor, por exemplo, que é tido como um Continente janeiro 2006

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ESPECIAL dos pais da filosofia analítica, G.E.Moore, que, ao mesmo tempo em que pretende rebater essa versão do ceticismo (com uma estratégia diversa da de Wittgenstein), afirma noutras passagens que a sua própria filosofia do senso comum estaria perfeitamente integrada com outras formas de ceticismo (mais próximas, ao que me parece, de aspectos da reflexão cética antiga). No mesmo espírito da discussão em torno do ceticismo visto como ficção metodológica, tem especial importância a leitura feita por Saul Kripke a respeito do argumento wittgensteiniano da linguagem privada, na medida em que ela envolve a discussão de um ceticismo lingüístico, acerca dos critérios para determinar a referência. A dúvida metódica que acompanha qualquer corrente cética pode levar, ao extremo, à impossibilidade do progresso do conhecimento. E, no final, a um paradoxo: o cético radical acredita nessa impossibilidade como premissa, e a dúvida perde sentido porque dela não se tem mais uso. Qual o momento em que o “juízo cético” deve ser suspenso? Em parte, penso que já respondi a essa questão: no caso do cético pirrônico, a suspensão do juízo seria inteiramente compatível com a adesão à prática e mesmo com uma certa forma de “conhecimento” no qual estariam contidos, não apenas tudo o que se ofereceria a nós segundo nossa experiência humana e comum (de um modo que o cético pretenderia depurado das ilusões que tendemos a projetar sobre a nossa existência efetiva), mas também muita coisa que estaria perfeitamente incluída no que chamamos hoje ciência. Por outro lado, parece-me importante distinguir duas coisas implícitas na sua questão: de uma parte, a dúvida cética, tal como proposta pelos filósofos propriamente céticos (como Sexto, Cícero, Montaigne e talvez Hume, dependendo de como o lermos) e o “ceticismo metodológico”, termo impreciso para designar a apropriação de idéias céticas por parte de filósofos que, na verdade, a empregaram como expediente destinado à formulação de verdades (como é o caso de Descartes e de Bacon). As apropriações metodológicas da dúvida cética divergem assim tão radicalmente do ceticismo filosófico original? Envolve uma longa discussão o problema de saber se o ceticismo recuperado com propósitos em certa medida “dogmáticos” (no sentido cético do termo: ligados à formulação de verdades filosóficas) faz jus ao potencial crítico verdadeiro das dúvidas céticas originais: alguns sustentam que elas conduzem essas dúvidas a um aperfeiçoamento lógico, para além do que os próprios céticos teriam visto; outros sustentam que tais reconstruções acabam embutindo pressupostos que, apesar das aparências, enfraquecem-nas, na medida em que as transformam numa via para a obtenção de verdades. Se a possibilidade crítica é o fundamento cético por excelência, a determinação da verdade pode estar sempre sujeita a revisões, e a dúvida há de ser sempre exercida. Mas para que a dúvida prevaleça, é preciso conhecer aquilo que se questiona. Neste sentido, o filósofo cético (ou um cidadão comum) não deve se abrir para o mundo, ao invés de se fechar? Você me parece ter toda razão. O cético que se encontra ilhado nas suas próprias idéias é aquele que é produzido pela reflexão de Descartes e que ele Continente janeiro 2006

Hieronymus Bosch, Trípitico das Delícias, Inferno, 1506, Museo del Prado


ESPECIAL Reprodução

mesmo irá, em certa medida, suplantar por meio de sua metafísica. Mas diversos filósofos céticos ao longo da história me parecem ilustrar bem essa atitude de se abrir para o mundo. O cético Sexto Empírico é hoje uma das principais fontes, não apenas do ceticismo, mas de muitas outras filosofias antigas, e isso resulta do próprio espírito filosófico do ceticismo: para a própria atitude cética é essencial conhecer e discutir no detalhe as diversas propostas filosóficas disponíveis, pois a provisoriedade de sua posição envolve a investigação contínua daquilo que os principais filósofos pretenderiam oferecer como verdade. Em síntese, o cético é aquele que investiga porque, procurando se engajar em alguma das filosofias dadas, reconhece que seria precipitado fazê-lo diante da multiplicidade contraditória dessas filosofias e da fraqueza de fundamentos que, sob um olhar mais agudo, elas passam a apresentar. Assim, ele está permanentemente interessado naquilo que o convide a revisar seu posicionamento. Isso encontraremos em céticos posteriores, como Montaigne, segundo quem “aquele que me contradiz, me instrui”. E como o ceticismo pode influenciar no olhar sobre a cultura? Eu diria que o ceticismo, devidamente compreendido, convida a um interesse radical pela experiência na sua diversidade. Um dos modos pelos quais o cético argumenta criticamente, por exemplo, contra as diversas teorias dogmáticas no campo da moral, envolve o reconhecimento de que os diversos povos possuem diferentes valores e modos de conduta e que a razão humana é capaz de secundá-los melhor do que parece à primeira vista. Isso faz com que o cético se volte essencialmente ao conhecimento da diversidade humana, como um modo de conhecer melhor os valores que ele mesmo adota. Montaigne, novamente, tornou-se um marco importante na constituição da antropologia moderna, em parte, devido ao interesse cético com que buscou reconstruir a coerência própria de culturas diversas, contrapondo-as à cultura européia, como faz no famoso ensaio “Dos canibais”. Assim como o ceticismo pirrônico pregava a suspensão do juízo como caminho para a tranqüilidade do espírito, o ceticismo moderno e contemporâneo parece levar para o outro lado, para a intranqüilidade da alma que não encontra a verdade em parte alguma. Será que isto indica a diferença gritante entre a visão do mundo dos antigos e a nossa visão de mundo? A meu ver, penso que isso seria extrair uma conclusão muito geral de um aspecto particular de como a filosofia se transformou historicamente. O que é possível dizer com segurança, e estudos recentes mostram com clareza cada vez maior, é que o ceticismo filosófico determinou tais transformações filosóficas ao longo da história, de um modo mais importante do que normalmente se tende a reconhecer. Nos manuais de história da filosofia, o ceticismo surge, por vezes, como uma espécie de exotismo filosófico, não como uma filosofia que impôs problemas filosóficos determinantes para a consolidação do pensamento moderno, como enfatiza Richard Popkin, em sua História do Ceticismo (Francisco Alves, 2000), e que autores não-céticos tão decisivos e diversos quanto Descartes, Bacon, Berkeley, Kant ou Hegel julgaram fundamental tematizar em suas reflexões. Compreender no detalhe essas transformações filosóficas, porém, deve ser objeto de pesquisa mais cuidadosa para o historiador da filosofia. • Continente janeiro 2006

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O cético Mencken “Onde fica o cemitério dos deuses mortos?” Deus (ou os deuses) era um dos alvos preferidos da ironia de Henry Louis Mencken Paulo Polzonoff Jr.

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er a obra de Henry Louis Mencken sempre é divertido. Mas, quando o assunto é ceticismo, esta diversão extrapola facilmente os limites da normalidade. Com sua brutal descrença na raça humana e em tudo o que diz respeito a ela, fico imaginando o que Mencken, como é mais conhecido, escreveria, se soubesse que seu santo nome é tomado em vão para justificar a crença na descrença, ou, por outra, esta imensa religião que atende pelo nome de ceticismo. Na Era da Informação tudo se confunde, e a definição de Houaiss para a corrente filosófica inaugurada por Hume virou uma grande sopa, na qual cabem céticos, Continente janeiro 2006

desconfiados bissextos, agnósticos, ateus e até mesmo cientistas. Todos contrariando o princípio segundo o qual o homem não pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade – a essência do ceticismo. Empunhando a bandeira da dúvida somente para reafirmar certezas com relação à crença alheia, qualquer que seja, os céticos & afins empunham, todos, a palavra de Mencken, que se tornou uma espécie de anjo da categoria. Nada poderia ser menos apropriado. Apesar do nome francês, Mencken nasceu nos Estados Unidos, mais precisamente em Baltimore, em 1880. Filho do Século das Luzes, coube a ele ser porta-


ESPECIAL voz de toda a descrença que se estabelecia como contraponto ao dogmatismo, principalmente o de fundo religioso. Em nome da liberdade e da dúvida, Mencken escreveu uma vastidão de artigos em que tudo era motivo de escárnio. Mais do que não acreditar em nada – e figurar, assim, como um cético –, Mencken via em todas as atitudes humanas, não regidas pela razão, motivo de riso. Não é à toa, portanto, que Mencken tenha se tornado, ainda no início do século 20, um dos gurus da chamada Geração Perdida. O grupo era formado por escritores ótimos e suicidas melhores ainda, como F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. O lema destes intelectuais, nascidos sob o estigma da Primeira Guerra Mundial e da opulência imoral da década de 20, era simples: morte aos deuses, quais sejam. A idéia de ser um líder incomodava Mencken, que via neste comportamento apenas um estratagema que o levaria à bancarrota suprema, isto é, tornar-se-ia ele próprio uma espécie de deus. Engana-se, porém, quem pensa que Mencken era um discípulo do ceticismo enquanto filosofia formal. Não há em seus textos qualquer tentativa de fazer algo parecido com um sistema filosófico. Mencken era anárquico e suas observações mais do que ácidas sobre tudo e todos não seguem lógica alguma, senão a da vontade do autor que, apesar de não acreditar nas coisas dos homens, era uma cria da liberdade que tanto apregoava. Mencken era um escritor anárquico. Por isso, conhecer sua obra pode levar o interessado à loucura. Curiosamente, é mais fácil encontrar o Mencken frasista por aí do que textos compilados deste autor que foi, sim, mesmo que à revelia, mestre da chamada geração perdida, mas que, no Brasil, serviu também de inspiração para jornalistas de verve crítica, sendo o mais famoso deles ninguém menos do que Paulo Francis. Apesar da confusão e da dispersão, vale a pena correr atrás de textos nos quais Mencken apregoa não só o ceticismo, sua marca maior, mas também o humor. São textos, como “A Imortalidade da Alma”, contido no Livro dos Insultos (bela organização de Ruy Castro, infelizmente esgotado), no qual Mencken discorre sobre o óbvio que insistimos em negar: nada garante que haja qualquer coisa do lado de lá da morte. Pelo contrário, todas as provas apontam para uma única conclusão: somos finitos. Mas por que insistimos tanto nesta coisa de imortalidade? Outro alvo muito caro de Mencken era Deus. Não só deus hebreu ou cristão, mas também todos os deuses de todas as religiões em todos os povos. No texto “Cerimônia Memorial”, um clássico absoluto do gênero, Men-

cken pergunta de bate-pronto: “Onde fica o cemitério dos deuses mortos?” E cita dezenas de nomes de divindades de civilizações extintas que, também eles extintos, não tem serventia qualquer hoje. Tudo isso para, evidentemente, mostrar que a importância de Jeová, amanhã, será igual à de Júpiter hoje. Ou seja, nenhuma. Num mundo que parece se voltar cada vez mais para o obscurantismo, a figura de Mencken pode soar incômoda. Mas sua inquietação intelectual é fruto de uma inquietação maior, espiritual, que moveu o homem (ele e nós) até aqui. Parece contraditório, e talvez seja mesmo, mas Mencken acreditava na dúvida – e qualquer teólogo com algum quociente intelectual concordará que a dúvida é um dos meios de se ascender a Deus. Ou melhor, deus, em minúsculas, em respeito a Mencken. Cético e debochado, a obra de Mencken, principalmente em seus diários (Bertrand Brasil), permite que vejamos um homem esperançoso, para muito além da raiva que seus aforismas podem suscitar. O mesmo homem capaz de dizer que “a mais comum de todas as loucuras é acreditar apaixonadamente no que é evidente não ser verdadeiro” dizia também: “Acredito que é melhor ser livre do que ser um escravo. Acredito que é melhor dizer o que se pensa do que mentir. E acredito que é melhor saber do que ser um ignorante”. Três crenças que podem fazer dele um cético traidor da causa, mas que, por outro lado, fazem dele algo ainda mais digno de admiração. Mencken era, enfim, humano. Quem diria? •

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Fernando Pessoa e o ceticismo do eu Se Mallarmé quis apreender “as subdivisões prismáticas da idéia”, a experiência de Pessoa revela as subdivisões prismáticas do eu, realidade igualmente ficcional e arbitrária, como qualquer idéia Artur de Ataíde

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ão foram muitos, na história, os poetas que, fazendo não mais que poesia, tiveram o privilégio de fundar, mais que uma estética, uma forma de sentir o mundo e de estar nele. Sua atividade termina por responder a muito mais que meras questões literárias ou filosóficas discutidas nas academias: captam tensões que somente a integralidade de indivíduo mergulhado num contexto pode captar. São, cada um, uma antena viva. Dão de novo inteligibilidade ao mundo, inteligibilidade que entra em crise periodicamente devido às contradições que o movimento da cultura termina por revelar nela mesma: assim como existem as aporias filosóficas, existem as aporias culturais. Fernando Pessoa participa da inauguração de um século que poderíamos chamar o “século da linguagem”, o século da virada lingüística. É quando se toma consciência da linguagem como instituinte do real, da linguagem como uma redoma de ilusão entre o humano e as coisas do mundo. Conseqüentemente, é um século de crise das grandes verdades, reduzidas então a construtos de linguagem. A arbitrariedade do signo – salto teórico aparentemente inofensivo de Saussure – é o primeiro passo no descolamento entre linguagem e mundo, e a conseqüência final, talvez mais vertiginosa desse processo, ironicamente, é antecipada na mesma época por Nietzsche, que aponta outra arbitrariedade: a dos nossos valores. Em suma: o signo é apenas o primeiro exílio do humano ante uma suposta presença pura das coisas; ao se envolver na grande rede de signos que, por sua vez, é a cultura, o exílio se completa: o humano se isola no microcosmo que ele mesmo fabrica: seu mundo de valores. Em poucas palavras: signo e cultura = ilusão sobre ilusão.

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Quando, com a derrocada das verdades, a cultura parece condenar o sujeito à irrealidade, Fernando Pessoa faz o que parecia impossível: transforma em éthos, acolhe nas camadas mais íntimas do sentir, o que até então pairava na generalidade da lingüística saussurriana e da axiologia de Nietzsche: a arbitrariedade de nossas verdades, ainda resistente à absorção lírica. Afinal, que espécie de lírica poderia ainda arrogar para si, num tempo tão avesso a verdades, a condição de autêntica, condição de que gozou toda grande lírica anterior? Talvez, uma lírica nem sincera nem falsa, mas algo de intermédio: como alguém fingindo a dor que deveras sente, mesmo fingida. Essa solução paradoxal de Pessoa é a semente de uma reforma geral na estrutura da subjetividade: cria-se o que se poderia chamar o ceticismo do eu, ou o ceticismo da pessoa. Este é, precisamente, o ponto que eleva sua poesia de um simples acontecimento estético para uma concepção integral de existência. Pessoa levou às últimas conseqüências a percepção de que a experiência humana, em sua quase totalidade, não passa de um teatro de fantasmas. Mas não só a cultura se reduz a um grande sonho compartilhado – o mais original em Pessoa é precisamente a inclusão do eu no rol das várias ficções cotidianamente adotadas como verdade. A espécie de ficcionalização que a época impõe, filosófica e teoricamente, ao mundo humano infiltra-se no mundo interno de um eu lírico e se torna vivência, vivência íntima. O princípio fundamental do ceticismo do eu está no alhear-se de si: a voz lírica não é a voz de alguém que sente, mas, sim, a de um espectador, um espectador de si, cético ante o que acontece em seu próprio mundo interno. O sujeito não sente, mas algo nele pensa sentir, sempre observado por uma razão vigilante. “Porque verdadeiramente Sentir é tão complicado Que só andando enganado É que se crê que se sente.”

Sentimentos e sensações são apenas, digamos, experiências ficcionais sutilíssimas, que brotam em alguma órbita mais longínqua, e por isso mesmo apenas difusamente inteligível, desse lugar de invenção constante que é a nossa presença. “Como inútil taça cheia Que ninguém ergue da mesa, Transborda de dor alheia Meu coração sem tristeza. Sonhos de mágoa figura Só para ter que sentir E assim não tem a amargura Que se temeu a fingir. Ficção num palco sem tábuas Vestida de papel de seda Mima uma dança de mágoas Para que nada suceda.” O mundo interno é um palco; a audiência – ou o dono solitário da voz lírica – é uma consciência tão volátil e flexível que, por vezes, se desdobra: a consciência sobre uma dada emoção, a certa altura, se vê observada pela consciência da consciência dessa emoção, e assim por diante. Esse desdobramento, que gera labirintos tipicamente pessoanos, não só afasta o eu do eu (também um paradoxo típico), mas também o afasta ainda mais do mundo exterior, que figura, sim, nesse mesmo palco do mundo interno, mas como uma espécie de extrato ideal: meros reflexos na alma, isto é, a sensação das coisas, não as coisas em si. O ceticismo do eu como que aprofunda os ceticismos do mundo e da percepção. Um eu lírico desdobrável que ordena e reordena, encastelado em sua alma, os fragmentos ficcionais de si e da paisagem externa, como um quebra-cabeça de sonhos: essa é a situação lírica essencial de onde vêm os poemas de Fernando Pessoa, através dos quais reintegrou a vivência íntima ao movimento geral da cultura. • Continente janeiro 2006

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PERFIL

MARIA DO CARMO TAVARES DE MIRANDA

A opção pelo

pensar

Dedicada ao exercício filosófico, a pernambucana Maria do Carmo Tavares de Miranda, que foi assistente do filósofo alemão Martin Heidegger, vive uma reclusão voluntária no Recife José Mário Rodrigues

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ossa Senhora me dê paciência/ Para estes mares para esta vida”. Assim começa Manuel Bandeira um poema-oração, escrito em 1926. No mesmo ano nascia, na cidade de Vitória de Santo Antão, Maria do Carmo Tavares de Miranda. Os versos do poeta pernambucano são um prenúncio de um caminhar, mas podem ser também uma forma de vislumbrar o destino de um ser que encontrou no exercício filosófico, e durante toda a sua vida, o rumo do amor à sabedoria, à compreensão dos princípios, razões e fins de todas as coisas. O filósofo alemão Martin Heidegger, considerado um dos maiores pensadores do século 20, de quem Maria do Carmo Miranda foi assistente na Universidade de Friburgo, em Brisgóvia, Alemanha, em 1955, dizia que, para pensarmos a nossa existência, imaginássemos despertando em uma floresta sem veredas ou atalhos, pois a existência de cada um de nós é uma mata fechada onde nenhuma estrada foi aberta. Construindo a sua própria estrada, Maria do Carmo Miranda desde cedo tomou gosto por ouvir estórias e histórias de viagens, de contos que descobriam mundos além do oceano. Em sua casa “entravam e fervilhavam os acontecimentos da época que falavam de religião, de política, de literatura, arte e educação”.

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Roberto Pereira

PERFIL

Maria do Carmo Tavares de Miranda em sua casa, na Boa Vista, no Recife: reclusão voluntária

Suas primeiras lembranças são auditivas, pois seus irmãos – José e Maria de Lourdes – aprenderam a tocar flauta e bandolim. Ainda muito pequena veio morar no Recife em uma casa comprida, de quintal grande e cheio de árvores. Sem saber ler, a menina, com o livro aberto, dialogava consigo mesma. Ficaram para sempre em suas lembranças o mês de maio na Capela do Ginásio do Recife e os sermões do Padre Félix Barreto, que incentivou os seus pais Hercília e André a morar no Recife. “Ouvia os sermões e tentava reproduzi-los em casa, num terraço junto à cozinha, para um público especial: plantas, animais, bonecos de galalite ou flandres e louças”. Muito jovem ainda, Miranda teve contato com a poesia de Homero, com os clássicos franceses, ingleses e autores contemporâneos. Despontava o seu desejo de sabedoria e iniciava-se o caminhar do Viandante pelo jogo do mundo do conhecimento. Houve encontro no caminhar e no encontrar, mas, sobretudo, “arrebatamento diante do mistério do homem, diante da intimidade misteriosa dos segredos humanos, diante da profundidade e genialidade dos místicos, da simplicidade dos gênios”. De temperamento esquivo e arredio para as fáceis amizades, guarda uma pureza da infância que se alongou pela adolescência e juventude e foi até as salas de aula na Universidade de Pernambuco. Continente janeiro 2006

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PERFIL Reprodução/AE

“Ouvia os sermões e tentava reproduzi-los em casa, num terraço junto à cozinha, para um público especial: plantas, animais, bonecos de galalite ou flandres e louças”

Filósofo alemão Martin Heidegger, de quem Miranda foi assistente

Delineando o percurso – A opção de Maria do Carmo Miranda pela filosofia aconteceu em um discurso em nome de sua turma de concluintes do curso secundário, quando ela questionou a vida e o seu sentido. Daí resolveu ingressar no curso superior de Letras Clássicas para ampliar os conhecimentos já adquiridos do latim e do grego, através do seu pai, o professor André Tavares de Miranda. As Letras Clássicas, segundo Miranda, seriam o instrumento indispensável para o estudo da Filosofia. Através delas eram sedimentados os primeiros sonhos e ideais, indicando os impulsos, o surgimento de um desejo de saber sobre o homem e o seu mistério, sobre a vida, a morte, a aventura do espírito humano diante de uma vastidão de coisas. “Queria abarcar um mundo de conhecimentos que se desenvolveu em mim. Era o meu desejo dedicar-me à filosofia como uma conquista a ser alcançada pela reflexão pessoal, pela perseverança e ao mesmo tempo continuar em amizade com os clássicos, com a exegese bíblica, com a ciência física”. Dois textos, um escrito em 1945, “Humanidades Clássicas” e um outro em 1950, que tem o título de “O Mistério do Ser”, surgem como os primeiros pontos centralizadores do seu pensamento, que tem o homem como ex-sistente; a verdade do ser; o tempo e seu distender-se agostiniano – heidggeriano, o tempo do homem. Miranda leu e releu seus autores preferidos: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Kant e Martin Heidegger. Com Kant, vislumbrava a descoberta da imaginação transcendental como temporalidade e fundamento metafísico. Com Heidegger, adquiria uma nova visão dos primeiros pensadores gregos e desenrolava os principais fios de interpretação hermenêutica de Platão, de Aristóteles, de Agostinho. Foram esses Mestres da conversão e do pensar que lhe permitiram, reunindo o pensamento grego, o medieval e o moderno, delinear o núcleo de sua reflexão filosófica, sempre buscando o ser e continuando sem cessar a sua busca. Poderia ter permanecido na Europa, não fosse o sentido de responsabilidade e a própria consciência do dever de retornar à UFPE para continuar a dar aqui o melhor de si mesma em estudos e orientações de trabalhos. Seguia, sem se aperceber, o conselho de Platão sobre a missão do filósofo: “o retorno à caverna para transmitir aos que nela se encontravam o que fora visto à luz do sol”. Continente janeiro 2006


PERFIL Amizade à sabedoria – Quem se dedica aos estudos, aprofunda-se nas pesquisas filosóficas ou científicas, geralmente torna-se avesso a eventos culturais. Miranda não foge à regra. Ela procura viver diante de si mesma, não dos outros. A filósofa ama o conhecimento verdadeiro e ao mesmo tempo é consciente de que não é sábia porque “esse nome só convém a Deus”. Seu modo de vida é a expressão do que é, que experimenta o caminho do seu ser que pensa, pratica a sabedoria e busca compreender a adversidade num exercício contínuo em que estão incluídas a renúncia e a doação. Não fora assim, não teria Miranda estabelecido a rota dos seus estudos, cursos e conferências: do Recife à Universidade de Sorbonne, onde foi aluna do genial Gaston Bachelard, passando pela Universidade de Friburgo, na Alemanha, e ministrando cursos, proferindo palestras na Grécia e nos Estados Unidos. A reclusão voluntária de Miranda teve um custo: seu nome desapareceu da mídia e sua obra não foi reeditada, até agora. Uma grande injustiça a quem é considerada, nos meios universitários europeus, uma das expressões mais altas da intelectualidade brasileira. Diante de sua sala de jantar, há uma litogravura do Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, Portugal, que ela se acostumou a ver desde menina, como expressão de uma lembrança de família, tecendo todos os seus dias. A filósofa de Paris, como a chamava carinhosamente Gilberto Freyre, estará completando 80 anos em agosto de 2006. A litogravura permanecerá na parede da sala. O país, sofrido e desconfiado, elegerá seus novos dirigentes. Nós continuaremos, para homenagear Maria do Carmo Miranda, a leitura do poema de Bandeira, que também iluminará o nosso dia-a-dia: “Nossa Senhora me dê paciência pra que eu não caia/ Pra que eu não pare nesta existência”. •

“Era o meu desejo dedicar-me à filosofia como uma conquista a ser alcançada pela reflexão pessoal, pela perseverança e ao mesmo tempo continuar em amizade com os clássicos, com a exegese bíblica, com a ciência física” Reprodução/Roberto Pereira

Maria do Carmo Tavares de Miranda, quando jovem

Obras

Principais títulos acadêmicos

Vida Cristã (1954) Théorie de la Verité chez Edouard Le Roy (1957) Pedagogia do Tempo e da História (1965) Educação no Brasil (1966) Fé Hoje (1966) Os Franciscanos e a Formação do Brasil (1969) Da Experiência do Pensar de Martin Heidegger (1969) Fundamentos Filosóficos da Doutrina de João Miguel de la Fuente (1969) Diálogo e Meditação do Viandante (1975) O Ser da Matéria (estudo em Kant e Tomás de Aquino) (1976) Sobre o Caminho do Campo de Martin Heidegger (1977) O Homem e o Tempo (1983) Conjugando Memórias (1987) L´Art, la Science e la Metaphysique (1993) Caminhos do Filosofar (1991) Aventura Humana (1996) Trajetória e Sentido da Vida (2005) (inédito)

Bacharela e Licenciada em Letras Clássicas e Bacharela e Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Filosofia pela Sorbonne (Universidade de Paris) Doutora e Docente-Livre em Filosofia da Educação pela UFPE. PósDoutorada em Filosofia pela Universidade de Paris e pela Universidade de Friburgo, na Brisgóvia, Alemanha. Professora Catedrática na UFPE. Membro da Academia Pernambucana de Letras. Ex-Diretora do Seminário de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco. Membro Titular da Academia Internacional de Filosofia da Arte e da Academia Brasileira de Filosofia.

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S.I.N./Corbis

Fela Kuti: obra ainda a ser descoberta


MÚSICA

FELA KUTI o criador do afro beat O controverso e polêmico músico africano é tão importante musicalmente quanto Bob Marley, mas não alcançou (nem nunca quis) o status de megaestrela José Teles

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lufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti (1938/1997), ou simplesmente Fela Anikulapo Kuti, começou a ter sua obra reavaliada e revisitada desde o ano passado. Uma série de eventos aconteceu em Londres, no complexo cultural Barbican, em outubro de 2004, o principal deles Black President, celebrando o legado de Fela Kuti, com shows de artistas como Baaba Maal, Damon Albarn (do Blur), Tony Allen (diretor musical e baterista da banda de Fela) e, claro, o filho do Presidente Negro, a estrela com luz própria, Femi Kuti. Foram lançados, também, uma biografia e a caixa The Best of Fela Kuti – Music Is The Weapon (Wrasse Records). Criador do afro beat, a contraparte africana do reggae, Fela Anikulapo Kuti não alcançou o status de megaestrela internacional, conseguido por Bob Marley, certamente pela complexidade de sua música, e por não se sujeitar a qualquer tipo de concessão. Um dos episódios mais emblemáticos das atitudes radicais de Fela Kuti aconteceu em 1973, com Paul McCartney. Quando McCartney preparava-se para gravar o que seria Band on the Run, segundo disco com os Wings, a EMI sugeriu-lhe três cidades: Rio de Janeiro, Pequim, e Lagos. A capital da Nigéria foi a escolhida. Em Lagos, Paul McCartney foi assistir a um show de Fela Kuti: “A melhor banda que já vi ao vivo... Quando Fela e seu grupo começou a canção, depois de longa, maluca, introdução, eu não conseguia parar de chorar de emoção. Foi uma experiência muito forte”, contou McCartney em uma entrevista recente ao jornal The Guardian. Conhecer pessoalmente o músico nigeriano foi uma outra experiência, e nada agradável. Fela Kuti soube que Paul McCartney pretendia gravar com alguns dos seus músicos, mesclar o seu pop refinado com o

Capa do álbum África 70

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MÚSICA Divulgação/Trama

afro beat não menos requintado dos nigerianos. Fela denunciou em um dos seus shows aquele branco que estava querendo roubar o som deles, e mais: foi pessoalmente ao estúdio onde Paul, Denny Laine e Linda McCartney trabalhavam, e caprichou no esculacho. Pouco lhe interessava se estava diante de um Beatle, o que não queria era que o branquelo colonialista se apoderasse de sua música. Paul não foi o único músico estrangeiro a ficar fascinado com a música de Fela Kuti. Uma lista que reúne talentos heterogêneos da música popular, William Bootsy Collins, Brian Eno, e o godfather do soul, James Brown, que até adaptou alguns maneirismos de palco de Fela, e pediu que seu arranjador copiasse os movimentos de braços e pernas do baterista Tony Allen. O Ministro da Cultura Gilberto Gil também não escapou da magia do astro nigeriano, a quem conheceu quando esteve na Nigéria, na sua primeira turnê africana, em 1977, que resultou no álbum Refavela. A intransigência de Fela ia a ponto de gravar músicas com 60 minutos de duração, e não incluir material antigo em shows, ou seja, nada de hits para a galera fazer corinho. O mais próximo que Fela Kuti chegou ao sucesso internacional foi ser cortejado pela Motown, em 1980. A gravadora de Detroit pretendia faturar em cima da emergente cena musical africana, e Fela Kuti seria a primeira contratação. Apesar da oferta de um milhão de dólares pelo contrato, ele passou dois anos para aceder, e só liberou para a Motown seus discos já em catálogo. Em 1985, a gravadora desistiu. Nascido numa família de classe média alta, Fela Kuti estudou no Trinity College of Music, em Londres. Ele não se considerava um músico pop. Seu ídolo era Handel, e dizia que o que fazia era música clássica africana. A política entrou na vida dele, depois de uma conturbada turnê pelos Estados Unidos, em 1969, quando namorou uma militante do Black Panther Party e fez amizades com Continente janeiro 2006

Nação Zumbi: influência declarada de Fela Kuti


MÚSICA

Eldrige Clever e Malcom X, que o influenciaram a politizar sua música. Uma das primeiras nesta linha foi “Gentleman”, na qual criticava hábitos de vestir europeus adotados pelo africanos, incompatível com o clima do continente. Preso pela primeira vez, em 1970, mal saiu da cadeia e já mandou ver nas autoridades com a música “Alagbon Close”. Em 1976, lançou “Zombie”, um libelo contra a ditadura nigeriana. O confronto com o governo chegou ao auge em 1977, quando Fela Kuti declarou que a comuna onde vivia, com cerca de uma centena de seguidores e sua família, era uma república livre e independente, um Estado dentro do Estado. A ousadia separatista resultou na invasão da comuna por mil soldados do governo, que distribuíram porradas amplas, gerais e irrestritas, seviciaram mulheres, espancaram barbaramente Fela Kuti, e pior: mataram-lhe a mãe. A resposta foi mais um par de catilinárias cáusticas contra a violência: “Coffin for Head of State”, e uma de suas mais inspiradas composições, “Unknown Soldier” (no inquérito policial para apurar o que acontecera na comuna, a conclusão foi de que ela havia sido destruída por um soldado desconhecido que enlouquecera). No ano seguinte, Fela Kuti anunciou que concorreria à presidência da república, e tornou-se notícia mundo afora, ao casar-se, numa só cerimônia, com 27 mulheres, para se divorciar de todas pouco tempo depois, e amargar mais uma prisão. Desta vez sob a acusação de passar na alfândega com uma grande quantia em dinheiro não declarada. Enquanto lançava discos cada vez mais instigantes, Fela Kuti tomava atitudes pessoais cada vez mais desconcertantes. Recebia visitas trajado apenas com uma sumária sunga vermelha, pitando um generoso charo. Em C.S.A.S (Condom Scallywag and Scatter), um de seus sucessos dos anos 90, investia contra os que receitavam camisinhas para evitar a AIDS, para ele um antiafricanismo, mais uma artimanha do colonialismo branco. Paradoxalmente, o homem que, ao divorciar-se de suas 27 esposas, declarou que ninguém tem o direito de possuir a vagina de uma mulher, parecia querer sentir prazer com todas elas. Ironicamente, Fela Anikulapo Kuti que dizia não acreditar na AIDS morreria, aos 58 anos, de complicações advindas da síndrome. Sua obra seria continuada pelos filhos Femi Kuti e Seun (formado em música em Liverpool, exatamente na academia que tem Paul McCartney como mecenas), este último à frente do Egypt 80, última banda do pai. O interesse pelo afro beat, hoje, é, nos EUA e Europa, muito maior do que quando Fela Kuti estava vivo. Alcança jovens músicos como Damon Albarn (Blur) e a turma da Timbaland. Seria o caso de ser lançado no Brasil alguns dos álbuns de Fela Kuti, como África 70, ou Egypt 80. A velha RCA, que distribuía o catálogo da Celluloid, no final dos anos 80, ameaçou lançar Fela Kuti no Brasil, mas ficou apenas na ameaça. Nunca é tarde para se conhecer a densa música de Fela Kuti, uma das influências declaradas do som da Nação Zumbi. •

Cartaz do show Black President (2004), celebrando o legado de Fela Kuti

Um dos episódios mais emblemáticos das atitudes radicais de Fela Kuti aconteceu em 1973, com Paul McCartney. Quando McCartney preparava-se para gravar o que seria Band on the Run, segundo disco com os Wings, a EMI sugeriu-lhe três cidades: Rio de Janeiro, Pequim, e Lagos. A capital da Nigéria foi a escolhida

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AGENDA/MÚSICA

CDS Fotos: Divulgação

Corpo sonoro

Música nas Montanhas Festival Música nas Montanhas reúne os prazeres de ouvir, ver e sentir

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úsica erudita num ambiente montanhoso. Se essa era uma das suas viagens mentais, quando ouvia os arranjos das sinfonias de Beethoven, dos concertos de Tchaikowsky, Gianinni, Bach e Piazzola ou as fantasias de Villa-Lobos, ela pode se tornar realidade. Durante 14 dias do mês de janeiro, Poços de Caldas (MG) recebe o 7 º Festival Música nas Montanhas, evento que levará música erudita até para o público dos hospitais e asilos locais. O 7 º Festival Música nas Montanhas promove 32 concertos gratuitos, divididos em três séries: Noturnos, Acadêmicos e Especiais (realizados em hospitais, asilos e praças), e conta com a participação de importantes nomes da música erudita nacional, como Quinteto Sujeito a Guincho, Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, Nelson Ayres, Orquestra Versatilis, Duo Gabriella Pace e Adriana Clis. O evento viabiliza ainda o acesso de aprendizes a oficinas e a um curso de preparação musical para leigos. São 48 oficinas de aperfeiçoamento sobre música erudita e instrumental. A programação terá ainda, entre outras atrações, a ópera Maroquinhas Fru Fru, do compositor alemão radicado no Brasil, Ernst Mahle. O encerramento se dará com a Orquestra Sinfônica do Festival, sob a regência do maestro Jean Reis (diretor artístico do Festival) e a participação do violinista Lyndon Taylor, da Los Angels Philharmonic.

7º Festival Música nas Montanhas. De 15 a 28 de janeiro. Poços de Caldas -MG. Informações: www.festivalmusicanasmontanhas.com.br. Continente janeiro 2006

O Seguinte é Esse é o segundo disco dos corpos percussivos do grupo Barbatuques. Depois de novas experiências corpóreo-musicais, o grupo lança um disco vigoroso e instigante, no qual o corpo e a voz – estalos, sapateados, efeitos vocais, palmas e batidas no peito e na barriga – são os únicos instrumentos que executam sonoridades que reproduzem acordes de baixo, trompete, tambores, djembes, grooves etc. E com estes “instrumentos”, eles tocam canções como “Baianá”, samba de coco da região de Alagoas, “Cheiro Verde”, uma deliciosa salsa, “Djengo”, um tema inspirado na percussão africana da região da Guiné, “Vento”, imitação do próprio, e “Abduzidos”, improvisação-tema de um retiro musical para aprofundamento e descoberta de novos recursos vocais e fonéticos, entre outras viagens sonoras inspiradas na música eletrônica, no hip-hop, no minimalismo. A grande diversão de ouvir, e certamente de tocar, o Barbatuques é saber a polirritmia do corpo e da voz em movimento. O Seguinte é Esse. MCD, preço médio R$ 29,00.

Duo para flauta e piano Pela primeira vez, a flautista Andréa Ernest Dias, que sempre emprestou seu talento aos shows e gravações de CDs de outros músicos, imprime a suavidade de seu sopro num trabalho autoral. Junto com o pianista Tomás Improta, ela fez um CD pleno de referências e de sonoridade singular, no qual a MPB dá a tônica. A abertura é dada pelo tema “Cristal”, de Jacob do Bandolim. Andréa Ernest Dias e Tomás Improta traz ainda gravações de músicas pouco conhecidas, como “Esperança Perdida”, de Tom Jobim e Billy Blanco, novidade até para os bossa-novistas, e passa pelas “coisas” de Moacir Santos, com “Coisa nº 9”, que aqui ganhou um arranjo em 12 por 8, por Pixinguinha, com “Só para mim”, que ficou com andamento de tango, pelo impressionismo francês, com “Après um rêve”, de Gabriel Fauré, pelo clássico americano, “So in love”, de Cole Porter, além de “Choro bandido”, de Edu Lobo e Chico Buarque, e “Meditando”, de Garoto, até chegar na seresta, também quase desconhecida, “Saudades da minha vida”, de Villa-Lobos, que teve a voz substituída pela flauta. Um duo de ouro. Andréa Ernest Dias e Tomás Improta. Biscoito Fino, preço médio R$ 28,90.


AGENDA/MÚSICA

CDS

O improvisador dos sentidos

Ode a Sinhô O estilo amaxixado do carioca José Barbosa da Silva, ou simplesmente Sinhô, impresso em pérolas como “Cansei”, “Gosto que me enrosco”, “Confissões de amor” e “Jura”, está presente no disco Clodo Ferreira interpreta Sinhô, realizado pelo professor de Comunicação, doutor em História da Cultura e músico piauiense-brasiliense Clodo Ferreira. O álbum é resultado de uma pesquisa de dois anos, que levou Clodo a adquirir títulos de época e outros mais recentes, e reverencia Sinhô em vários aspectos, tanto na escolha do tema, repertório, como nos arranjos – feitos originalmente para pianos, mas aqui executados por sopros e cordas –, que reproduzem o estilo de interpretação do período no qual foram gravadas (entre 1928 e 1931, um ano depois da morte dele, em 1930). A voz afinada de Clodo, apesar de pequena, traz de volta o tempo e a entonação da década de 30, além de fazer reviver um gênero e um compositor que, quando apresentados sem fricotes moderninhos, ainda balançam o coreto de muita gente. Clodo Ferreira Interpreta Sinhô. Independente (patrocínio da Eletrobrás), preço médio R$ 15,00.

Talento em estopim Lançado originalmente em 1999 e fora de catálogo há anos, Estopim é um dos melhores trabalhos-solo da cantora Ná Ozzetti, uma das vozes mais respeitadas e originais do país. Ex-integrante do Grupo Rumo, um dos expoentes da Vanguarda Paulista, Ná imprime a Estopim – reeditado pela MCD com uma nova faixa, “Batuqueiro”, parceria da cantora com Luiz Tatit – o estilo da sua escola: ousadia, originalidade e experimentalismo em letra e melodia. O disco traz sucessos como “Crápula”, “Capitu” e “Canto em qualquer canto”, além das inspiradoras “Você se foi”, “Sanfoneiros serelepes” e “Outra Viagem”. O álbum é quase todo assinado por Ná Ozzetti e seus eternos parceiros: Itamar Assumpção, Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik. Mas também conta com composições de seu irmão, Dante, e da canção “Princesa encantada”, de Antônio Correia e Cacique. Esses ingredientes, associados aos instrumentos de Caíto Marcondes (percussão), André Magalhães (bateria), Marta Ozzetti (flautas), Dimos Goudarolis (viloncelo), Kiko Moura (violão de aço) e Fábio Tagliaferri (viola), entre outros bambas, dão a Estopim o tom de eterna atualidade. Estopim. MCD, preço médio R$ 25,90.

Gravadora Kuarup lança em CD os três primeiros discos da carreira do cantador Xangai

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angai, que, segundo Elomar, “é um cantor, um artista, um menestrel, um dos maiores poucos gatos pingados e tresloucados sonhadores-de-mãos-sangrentas-contrapontasafiadas inimigas. Remanescente que teima guardar a moribunda alma desta terra”, traz de volta ao mercado fonográfico seus três primeiros trabalhos como artista independente: Qué qui tu tem canário? (1981), Eugênio Avelino (1990) e Dos Labutos (1991). Totalmente remasterizados, os CDs estavam fora de mercado há anos e compõem o início da carreira do cantador baiano. Qué qui tu tem canário? é até hoje um dos mais importantes de todos. A remasterização valoriza as parcerias com Jatobá, Capinam, Ivanildo Vila Nova e Hélio Contreiras. No repertório, as primeiras versões de sucessos como “Curvas do Rio”, “Estampas Eucalol”, “Matança” e da faixa-título. Eugênio Avelino é introduzido e finalizado por solos de uma sanfona pé-de-bode tocada por seu pai, Jany. Aqui seus tradicionais parceiros reaparecem: Jatobá, Capinam, Kátia de França, Hélio Conteriras e Juraildes da Cruz. O disco também conta com participações especiais de Jacques Morelenbaum, Paulo Moura e Armandinho, além de Elomar que apresenta uma raridade do seu cancioneiro: “O Samba do Jurema”. Também traz a bela “...De Santana”. Já no álbum Dos Labutos, Xangai incorpora fortes influências urbanas. Em “Não 'Rio' Mais”, mesmo homenageando importantes rios brasileiros, a melodia, um baião, fica com andamento de gafieira devido aos acordes da tuba. Ainda assim é um disco que nos leva para as brenhas deste imenso país: “Imbuzeiro dos Duendes”, parceria de Xangai com Juraildes da Cruz, e “Tudo aquilo que flutua feito vaca, com cabeça, rabo e refrão” (título que mais parece um cordel), falam, em letra e música, da alma, da vida e da força do povo sertanejo. Como um Dom Quixote da música, Xangai atravessa ligeiro o mato fechado e espinhoso e sai sem danos. Memória de repentistas, trovadores e improvisadores do sentido, ele refaz o tecido agreste e delicado da sua poesia. (Isabelle Câmara) Qué qui tu tem canário?, Eugênio Avelino e Dos Labutos. Kuarup, preço médio R$ 20,00, cada. Continente janeiro 2006

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Solstícios Através das festas e seus ritos marcamos a passagem do tempo...

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no Novo é igual à Copa do Mundo, desejamos que chegue logo, pensando que algo extraordinário irá acontecer. No dia seguinte, tudo volta a ser como antes. Em janeiro de 2006, eu serei diferente do que era em dezembro de 2005? Talvez não. Provavelmente sim, pelo enunciado de Heráclito, aquele filósofo présocrático que anotei para estudar, na agenda de 2003, e nunca estudei. Tudo flui, enunciou o grego. Ninguém atravessa o mesmo rio. A cada travessia mudam as águas, mudamos nós, gira o planeta. A roupa branca do reveillon estava apertada, o peru foi servido com menos sal por causa da hipertensão dos convidados, a cadeira de tio Vicente ficou vazia. Fingiam não notar a ausência dele. Insistimos em comemorar a passagem do ano, o aniversário de nascimento, as bodas, a formatura, o batizado. Através das festas e seus ritos marcamos a passagem do tempo. Quando olhamos a desarrumação da casa e as garrafas vazias, e conferimos os estragos no cartão de crédito, sentimos uma ponta de arrependimento pelos excessos. Estou curado, digo, nunca mais cometerei a tolice de dar festas. Mentira. Sou um compulsivo que não resiste aos apelos do consumo, ou um ritualista como qualquer homem primitivo, que celebrava os solstícios de primavera, verão, outono e inverno. É possível que o vazio experimentado ao término da festa seja o mesmo, em qualquer latitude ou tempo. Todos sentem que algo esteve abaixo do que desejava, ou excedeu as melhores expectativas.

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Não deixe de celebrar nunca. Retire as melhores toalhas das gavetas, a louça fina, as travessas de terracota ou faiança, os cristais Bacará e Bohemia. Não se importe se quebrarem uma taça do enxoval de casamento, deixando o jogo de doze peças incompleto. Pense no que ganhou quando o amigo abriu os braços, empolgado, rindo de uma lembrança de vocês. Nada combina melhor com o riso e a alegria do que o estilhaço de uma taça se partindo. Os russos quebravam todas. Tempos bons. Gente doida, aqueles russos dos romances de Tolstoi. Não se fazem mais russos como antigamente, nem tantos cristais finos. Nem toalhas de linho branco para se sujarem de restos de patê, farelos de bolo, café e gordura da boca de convidados mal educados, que as preferem aos guardanapos. O tempo corre mais ligeiro que antigamente, afirmamos por conta de muitos afazeres, deslocamentos, informações. Não é o contrário? Os dias monotonamente repetidos, sempre iguais nas rotinas em que nada de novo acontece, dão a impressão de que passaram rápido? Thomas Mann, no livro A Montanha Mágica, teoriza sobre isso. Ele garante que a rotina faz a passagem de 100 dias parecer a de um único dia. Por isso inventamos os cortes no tempo linear, um relógio de festas e celebrações. A memória passa a reger-se por calendários de acontecimentos. Conheci Antonio no noivado de minha irmã. Quando Francisco nasceu, comprei a casa em que moro até hoje. Tenho certeza de que no ano das bodas de sua avó, viajei à Espanha.


ENTREMEZ

Festas. Meu vizinho foi ao estádio ver os jogos do seu time. No dia da vitória, embriagou-se. Escutou o hino da agremiação até o dia amanhecer. Pôs a bandeira de cores vermelha, branca e preta no carro, e saiu para trabalhar com um resto de ressaca. Não sei o que ele sente, porque nunca torci por um time, e qualquer placar é indiferente para mim. Mas aquele homem sisudo que se embebeda e chora por causa de futebol, comove-me. Sua devoção não difere do fundamentalismo religioso. Ele aguarda o resultado de um jogo como os beatos esperam um milagre em suas vidas. Viajei inúmeras vezes em caminhões paus-de-arara, rumo a Juazeiro do Norte, na companhia de romeiros do padre Cícero. Eles juntam os minguados dinheiros e visitam todos os anos os lugares de devoção da terra do Padrinho: o Horto, os Franciscanos, o Santo Sepulcro, a Igreja do Socorro, a de N. S. das Dores, a Sé, a Casa dos Milagres. Sete lugares de penitência, via-sacra para os romeiros. Antes de percorrê-los, não tomam banho. Cantam benditos, 12 vezes cada um, para não quebrar a corrente milagrosa. Acendem velas, pagam promessas, compram bugigangas, tiram retratos. Em que acreditam? Que milagre esperam que aconteça? Não sei responder. Talvez o mesmo milagre que desejamos ao estourar a rolha de champanhe. Abraçamos amigos e desconhecidos. – Feliz Ano Novo! - gritamos eufóricos. Depois da quinta taça, beijamos qualquer um. A orquestra prenuncia o carnaval. Já?! Há uma semana era Natal. É isso, meu caro, o tempo voa. Trocamos os falsos pinheiros das ruas pelas máscaras de Momo. A decoração já é outra, a cadência do passo também mudou. Só o calor é o mesmo, em qualquer estação. Mas não desanime. Afaste-se um pouco da orquestra, dos amigos, deixe o agito para trás. Sozinho, a taça vazia na mão, contemple o mar. A embriaguez cedeu, e surgiu de repente uma consciência da passagem dos

anos, do ridículo que é viver. Retorna uma velha dúvida: o que mudou? O milagre não acontece nunca? Nem quando o seu time ganha, ou quando você percorre a pé os caminhos de São Tiago? Não existe mesmo, do outro lado...? Opa! Não faça a pergunta no primeiro dia do ano! Dá azar. Você pisa um terreno perigoso, recue, é mais seguro para a saúde. Depois da sétima taça, ninguém prevê o que acontecerá. Volte correndo para o meio das pessoas. Não se pergunte mais nada. Garantase. O milagre é só esse. Só esse? Que coisa mixuruca! Esperei tanto tempo! Mas você já sabia. No ano passado foi a mesma coisa. E nos anos anteriores, também. Apesar dos preparativos, dos anseios e da euforia, o máximo que pode acontecer é lhe desejarem um: Feliz Ano Novo! O resto fica por sua conta. Agora e sempre. •

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TRADIÇÕES

Yás: mães de fé e devoção Livro As Yalorixás do Recife, da pesquisadora e artista plástica Lia Menezes, homenageia e faz registro pioneiro sobre as mães-de-santo da cidade Sara Correia Divulgação

Yá Lia Preta assumiu o terreiro da mãe

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ierre Verger, especialista em cultura afro-brasileira, afirma, no livro Os Orixás, que a religião que presta culto aos deuses do panteão africano está ligada à noção de família. Embora um dos maiores estudiosos sobre o assunto revele que se trata de uma cultura hereditária e que propaga o bem – após o desencarne, o ancestral divinizado escolhe um de seus descendentes para incorporá-lo no orbe terreno –, há instituições que desconsideram o candomblé como religião. No livro As Yalorixás do Recife, da pesquisadora e artista plástica Lia Menezes, consta que, durante muito tempo, os terreiros (denominação dada aos templos africanos) de candomblé (cultos) foram perseguidos no Recife. Segundo afirma a autora, “associados aos demônios, à bruxaria e à loucura, os terreiros eram controlados pela Secretaria de Segurança Pública e pelo Serviço de Higiene Mental (antigo Centro Psiquiátrico)”. Essas e outras curiosidades estão na obra, resultado de pesquisa incentivada pelo Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura/ Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), que se baseia em trabalhos de estudiosos como Arthur Ramos, Nina Rodrigues, Manuel Correia de Andrade, Raul Lody e Pierre Verger. “Pierre Verger destaca muito a distribuição africana, mas me baseei mais no livro de Gonçalves Fernandes sobre os candomblés do Recife, que faz um retrato dessa época de perseguição, entre 1937 e 1939”, conta Lia Menezes. O candomblé, além de desempenhar um papel social importante, confere aos seus adeptos um enraizamento cultural e uma identidade definida fundamentais para a


TRADIÇÕES Fotos: Emiliano Dantas/Divulgação

Transe das Yalorixás no terreiro Gêge de Pai Edinho de Oyá

dade que têm com os deuses, despertam a fé e a credibilidade de muita gente. Apontadas pelos próprios orixás para ocupar esse cargo, as Yás carregam em si a cultura africana e a ancestralidade, além de estarem ligadas à saúde, às artes e à cultura popular. Lia Menezes se interessou em fazer o primeiro registro sobre o culto às divindades africanas em dignidade como indivíduo e como povo. Apesar de reco- 1997, quando fez um vídeo homônimo ao livro. Adepta do nhecer que sua religião sofre fortes preconceitos por parte candomblé antes mesmo de nascer – “ainda na barriga da das outras religiões, Lia Menezes não se interessou em minha mãe, que era mãe-de-santo”, como ela conta –, Lia repercutir o assunto no livro. “Não perco tempo falando das reuniu o acervo da mãe a vários outros documentos. “Além críticas. Preocupo-me mais em falar da esfera e da con- de prestar uma homenagem às mães-de-santo, espero tribuição do candomblé e das mães-de-santo para a vida da fornecer dados interessantes e instigar novas pesquisas. Não cidade. Ainda é descriminada, não reconhecida e, apenas sobre as Yalorixás, mas pesquisas que falem da considerando a maioria de católicos no Brasil, os adeptos do cultura africana no Recife, pois a memória registrada hoje é candomblé, mesmo sabendo que o trabalho nos terreiros pouquíssima”, afirma a pesquisadora, irmã da mãe-de-santo possui características que toda religião tem, muitas vezes Lia Preta, que deu continuidade ao terreiro da mãe, no acabam considerando-o como uma segunda religião”, bairro de Afogados, no Recife. desabafa. Além da escassez em pesquisas nessa área, Lia Menezes As Yalorixás do Recife lembra que, medida tomada com o se queixa da dificuldade em executar e em levar seu trabalho intuito de driblar a perseguição, os terreiros constituíram-se ao público. “O mercado está meio fechado, sobretudo com em sociedades carnavalescas, como o maracatu, “que perma- esse tema, que tem pouquíssimas fontes. Só temos fonte de necem vivos até hoje”, lembra Lia. No Recife, exemplos memória oral. Há muito que ser pesquisado e retratado. como as Yalorixás Dona Santa, Dona Badia, Como sou pesquisadora livre, desvinMãe Rosa Belarmina, Dona Biu do Xambá, culada a instituições, é complicado Dona Nize Beltron, Dona Betinha e Dona exercer as etapas das pesquisas”, deMadalena, entre outras igualmente citadas por sabafa. “O assunto é atraente, mas Lia Menezes no livro, exercem funções que algumas pessoas ainda são resistentes transpassam as portas dos terreiros: mobilizam ao tema. E com o problema de distria vida política, social e cultural do Recife. buição do livro para as grandes O resultado final de As Yalorixás do Recife, livrarias, é mais complicado ainda”, cujos textos são em português, com traduções queixa-se. em francês e inglês, é um registro da tradição As fotografias publicadas no livro, e mistérios que envolvem os terreiros de em preto e branco, são de Emiliano candomblé do Recife, com destaque para o Dantas (capa, aberturas e anexos), Pio As Yalorixás do Recife, Lia trabalho das Yalorixás. Consideradas mais do Figueiroa, Luiz Lourenço, Gonçalves Funcultura, 147 páginas, que mães sacerdotisas, elas são líderes comu- Menezes, Fernandes, Vlademir Barbosa, Djair R$ 20,00 - Vendas e informações: nitárias natas, chefes de família, donas de ca- 9118-6496/ 3439-0846; e-mail: Freire, Katarina Real e da própria Lia lia-menezes@uol.com.br sa, administradoras, psicólogas e, pela intimiMenezes. • Continente janeiro 2006

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Fotos:Thomas Baccaro/Divulgação

Delicadeza da arte figurativa Auto-rretrato, cerâmica policromada, 21x18x17 cm

Manuel Eudócio, tido como mestre da arte figurativa de Pernambuco, carrega talento que o identifica como sucessor de Mestre Vitalino

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ilarejo habitado por artesãos que ganham a vida modelando bonecos de barro, o Alto do Moura, em Caruaru (Pernambuco), é o maior centro de arte figurativa das Américas, título dado pela Unesco. Não é à toa, uma vez que o lugar foi o reduto de Mestre Vitalino (1909-1963) – grande ceramista criador dos bonecos de barro e um dos precursores da arte popular brasileira – e de vários seguidores, como Manuel Eudócio Rodrigues e Zé Caboclo. O trio de artistas é considerado o mais representativo na arte com barro, em Pernambuco. Manuel Eudócio, que vive e trabalha no Alto do Moura, esteve, no mês passado, com a exposição Manuel Eudócio – Um cronista do seu tempo montada na Feira Brasileira de Artesanato (Febraarte), no Centro de Convenções, no Recife. A exposição teve curadoria de Carlos Trevi, projeto arquitetônico de Zezinho Santos e André Cavendish, e projeto gráfico de Gisela Abad. O destaque do trabalho do artista é a delicadeza das suas peças, como as figuras humanas, todas pintadas num colorido vivaz, deixando apenas rostos, mãos e pés ao natural do barro queimado. São figuras que retratam profissionais (o médico, o professor, o dentista, o músico, entre outros), além de festas e comemorações populares. Atualmente, Eudócio tem introduzido máscaras em algumas de suas figuras, dando um toque misterioso às peças. Nascido no Alto do Moura, em 1931, Eudócio vem de família de artesãos que ganhavam a vida produzindo peças de cerâmica utilitária. Aprendeu com a avó a fazer brinquedos, bonecos e animais e, em 1948, com a chegada do Mestre Vitalino ao povoado, passou a modelar bonecos para vender nas feiras livres em Caruaru. “Eu já trabalhava com isso, mas foi quando Vitalino chegou no Alto Continente janeiro 2006

Mulher amamentando, cerâmica policromada, 15 x 11,5 x 15 cm

Banda de Pífanos, cerâmica policromada, 27 x 47 x 9 cm


TRADIÇÕES

do Moura que comecei a fazer os bonecos. Nunca tive aula com ele, pois eu tinha medo de ir ao ateliê dele e ouvir: ‘Não quero menino aqui não!’. Então, eu só via o trabalho dele e ia pra casa colocar em prática. Assim fui aprendendo, modificando, aprimorando. Aprendi, olhando o trabalho de Vitalino”, revela Manuel Eudócio. Hoje, aos 74 anos, o artista reconhece a importância do trabalho para ele e sua família e, embora não tenha ajudantes, conta com a filha Elizoneide, de 29 anos, que faz a pintura nos bonecos criados pelo pai. “A decoração mais difícil, eu faço. A pintura é ela quem faz. Os outros filhos também são artesãos, mas não trabalham comigo”, conta. Manuel Eudócio faz peças baseadas em personagens da cultura nordestina, como Lampião e Maria Bonita, e bonecos que já viraram marca, como o médico operando o doente, o casamento na roça, o dentista extraindo dente e a mãe amamentando o filho. Mas as peças que mais satisfazem Eudócio são os bois de barro (pintados a óleo ou sem pintura). A preocupação com o que suas peças podem representar é critério usado pelo ceramista na escolha do que vai criar. Tanto que os motivos são sempre baseados em crenças, cultura e histórias vividas. “A banda de pífano é uma peça matuta e gosto de fazer coisas que compõem motivos da roça. Na igreja que eu vou tem uma banda e resolvi fazer a escultura da banda. Saiu meio por acaso, até porque eu tinha medo de perder essa caracterização matuta. Mas agora não me importo mais, pois as pessoas já conhecem meu trabalho e sabem da minha criatividade”, revela o artista, com a vaidade de quem deixou de trabalhar com a agricultura, com o pai, para se dedicar à arte de criar. E que, como ele mesmo diz, “foi dando certo”. As peças criadas por Manuel Eudócio estão à venda em seu ateliê no Alto do Moura e os valores variam de R$ 40,00 a R$ 500,00. Com a capacidade de criação a todo vapor, o artista sabe onde pisa e está sempre se aperfeiçoando. “Gosto de criar e os colecionadores gostam do que é novidade. Às vezes, eu penso em me afastar do trabalho, mas quando paro um dia que seja, parece que eu adoeço. Enquanto meu pensamento, minha vista e minha saúde deixar, eu vou trabalhar. Trabalho porque gosto”, revela o artista. (Sara Correia) •

Banda, cerâmica policromada, 23,5 x 26 x 16 cm

Jaraguá, cerâmica policromada, 120 x 36 cm

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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

O outro lado dos modernistas

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Oswald de Andrade e Pagu eram provocadores natos e cometiam seus desatinos

ue tal iniciarmos o ano de 2006 abordando o modernismo do Terceiro Milênio, que não é nada mais do que um prolongamento do pregado pelos modernistas de 1922 no regresso ao trotskismo que é “A gaiola amarela para onde têm que saltar – expulsos do comunismo, os revolucionários tímidos, os intelectuais moles, os burgueses só ideologicamente desiludidos”? Quem nos oferece essa pérola de definição não é outro senão Oswald de Andrade em sua obra inacabada Dicionário de Bolso. E continua o comentário ácido: “Assim aparece a traição trotskista bamba, irresoluta e ao mesmo tempo caudilhista e pessoal. Por isso tudo, não atingiu a massa e tem um só adepto trabalhador – um chofer enganado”. O tema dos modernistas de 22, e sua relação com o trotskismo, poderia encerrar seu breve capítulo por aí, em um verbete cáustico. Mas a história segue trazendo outros fatos curiosos com a marca da Vanguarda Socialista. A publicação foi criada por Edmundo Moniz e Mário Pedrosa. Porém o importante é saber que o Vanguarda era um jornal que teve o marxismo como base e queria abrir um amplo debate doutrinário, não aceitando pechas de revisionista ou reformista. Opunha-se ao Partido Comunista e sua ortodoxia stalinista. O jornal sofria ataques de todas as direções e Moniz relembra, em uma entrevista, as divergências com partidarismos ideológicos eram tão profundas que “os stalinistas transformavam a coisa em ódio pessoal – como o famigerado artigo 13 do PC, que proibia os seus membros de terem amizade com os trotskistas”. No debate cultural, o caldo entornava de vez, pois a linha da arte oficial stalinista era o realismo socialista, que Moniz e companheiros tinham preferência em combater no campo artístico. E nos idos de 45/46, Pagu era quem levava mais longe a crítica e a resistência. Foi ela que teve o papel “muito importante porque enquanto nós estávamos preocupados com os problemas políticos e sociais, ela pôde atuar na crítica de arte e literatura”. Pagu foi toda a vida uma personalidade extraordinária, de espírito apaixonado, sensível, forte, combativo e surrealista. E foi desse surrealismo que surgiu, por exemplo, a publicação do Manifesto de Trotski e Breton no Vanguarda, em fevereiro de 1946. Sem querer ser infame trocadilhista, Por Uma Arte Revolucionária Independente foi para muitos como uma verdadeira picaretada na cabeça. Existem versões de que o Manifesto havia sido traduzido por Pagu, que era grande entusiasta do texto assinado por Diogo Rivera, contudo todos sabiam que na verdade era de Trotski. Maria Eugênia Boaventura, na apresentação do Dicionário de Bolso, de Oswald de Andrade, identifica a obra como datada. Por exemplo, para Stalin, Oswald escreveria: Ponte de Aço conduzindo Continente janeiro 2006

a humanidade para o futuro. É uma citação contemporânea à produção mais engajada do escritor, com as peças O Rei da Vela e O Homem e o Cavalo. Era uma época de compromisso político partidário, quando o autor empenhava-se por uma mudança radical da sociedade. Cabe ainda notar um certo ar picaresco quando Oswald refere-se a Judas como “um intelectual pequeno burguês oscilante na figueira da Judéia”, definição esta que resvalaria na crítica e autocrítica de todos os participantes do modernismo. Aos que consideram Oswald mais anarquista do que stalinista ou trotskista, ele lembrava que, no Brasil, o anarquismo ou se despe nos braços de sonhadores boçais ou veste francamente a roupa apolítica de polícia política (atenção: naquele tempo já existia patrulha ideológica). Como no Brasil tudo chega atrasado, isso se explica”. Na verdade, Oswald e Pagu eram provocadores natos e cometiam seus desatinos ora às claras, ora sob o manto da clandestinidade dos pseudônimos. Polemistas, poderiam estar muito mais próximos de Trotski do que de Stalin e seu realismo socialista. Aluizio Falcão, jornalista, autor do Crônicas da Vida Boêmia, nos conta uma história hilária, ou seria libertária, sobre Oswald. Muitos podem vê-la como cafajestada. É que Oswald não suportava perder uma discussão e, uma vez, desbocado e provocativo como sempre, desancou Villa-Lobos, unanimidade nas rodas modernistas. Todos os que ouviram, entusiastas, chocados, pediram que Oswald apresentasse argumentos técnicos para tal afirmação, ao que ele prontamente replicou – “Como posso elogiar um maestro que não sabe contraponto?” Não satisfeito, informou ter ouvido o comentário de um musicólogo acima de qualquer suspeita, Mário de Andrade, ao que todos se calaram. Dias depois, Mário, perplexo, procurou Oswald para afirmar que nunca havia dito que Villa era ignorante em matéria de contraponto, ao que Oswald, com placidez assustadora, replicou – “Eu sei, Mário, mas estava acuado, resolvi mentir. Tinha que usar seu nome. Não me desminta e seja leal”. Não mais caberia nestes novos tempos tal procedimento, ao menos que por humor. Pagu, por sua vez, cometeu outro pecadilho para seus contemporâneos intelectuais, que foi o de atentar às delícias das delícias de quem subverte a arte e que escreveria ao sabor de Breton e Trotski – “O trabalho do escritor, à margem do tempo e das tarefas imediatas, é o de alimentar a sementeira da mudança, para que quando ela germine a emoção e a esperança atormentadas dos militantes intelectuais, encontrem o que colher... A liberdade do escritor quebra as tábuas dos mandamentos partidários”. E assim o fizeram os dois. Assim deveriam proceder todos aqueles escritores ou críticos que, hoje, no outro lado do modernismo, apenas se detivessem no exibicionismo – narciso e à luz dos holofotes de festas de fandangos. •


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