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Hans Manteuffel
EDITORIAL
Contrabanda, jazz com sotaque recifense
Jazz, Adorno e universalidade
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o encerramento da 22ª edição do Festival Jazz Plaza de Cuba, em dezembro passado, o pianista e compositor Chucho Valdés, uma espécie de Duke Ellington cubano, executou em primeira mão a sua peça Canto a Deus, um tributo à cidade norte-americana de Nova Orleans, berço do jazz, devastada no ano passado pelo furacão Katrina. À parte alguma eventual intenção política, a peça expressava sinceramente o pesar do maestro cubano, em vista do seu histórico de admirador e praticante aplicado daquele gênero musical americano, assim como de muitos jovens seus compatriotas que se apresentam regularmente nos dois templos jazísticos da capital cubana, La Zorra y El Cuervo, em Havana Centro, e o Jazz Café, no Vedado. O episódio demonstra a universalidade do jazz, capaz de unir por fortes laços emocionais dois povos que as diferenças políticas e ideológicas separaram tão fundamente há quase meio século. E exemplificada, ainda, pela existência de clubes e ajuntamentos de amantes da música em Oslo, em Tóquio, em Lima, em Paris, em Xangai, em São Paulo ou no Recife. Paradoxalmente, o jazz, que entre os anos 20 e 40 do século passado, chegou a ocupar as “paradas de sucesso” nos EUA, hoje sobrevive lá em guetos, como a pouco conhecida JFA – Jazz Foundation of America, de Nova York, instituição criada em 1989 para ajudar velhos músicos em dificuldades financeiras. De um lado, este último fato expõe
dramaticamente a decadência comercial da música criada pelos negros americanos, ao fundir os princípios da música tonal européia com a modal africana, decadência já constatada há muitos anos pelo historiador Eric Hobsbawn, ao narrar emocionado a participação da orquestra de Count Basie nos intervalos de um show de rock no Village nova-iorquino. De outro, entretanto, mostra como essa manifestação artística, depois de ter sido apropriada pela indústria cultural e por ela ter sido descartada, continua a existir como uma cultura de resistência. E que se transformou em linguagem universal, constituindo-se ironicamente numa das mais importantes contribuições americanas à arte do século 20 em diante, não obstante a opinião preconceituosa do filosófo alemão Theodor Adorno, que, apesar de sólida base musical, não compreendeu a diferença entre o fenômeno em si e sua exploração comercial, confundindo-os, em célebre artigo de 1936, com indisfarçável sabor elitista. Resta a ironia de um conjunto de jazz de vanguarda americano ter adotado o nome de Theodor Adorno Jazz Quartet. A permanência e a universalidade do jazz são o tema da reportagem de capa desta edição, que traz ainda como matéria especial a antiga e nunca esgotada tensão entre a forma e o conteúdo na arte, especialmente na literatura. Como sempre, vários autores oferecem visões diferenciadas, para usufruto dos leitores. • Continente fevereiro 2006
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CONTEÚDO Fotos: Divulgação
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Escultura de Braque que criou o Cubismo com Picasso
Confinado em guetos nos EUA, o jazz ganha o mundo
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CONVERSA
CÊNICAS
04 Armando Freitas Filho desanca o Concretismo e os
52 Teatro brasileiro ganha um Catálogo de Dramaturgia
irmãos Campos
CAPA 14 Descartado no berço, o jazz sobrevive no mundo 19 Música fornece modelo estético ao cinema 22 Uma ponte entre Cuba e os Estados Unidos 24 O sotaque do jazz pernambucano 26 Estruturas harmônicas de grande tensão dissonante 28 Agenda Música
LITERATURA
ESPECIAL 58 A arte clama por inovar, sem esquecer a tradição 62 Função poética, o sentido construído pela forma 65 Entre a mímesis e a poiesis 68 Um histórico das tensões entre forma e conteúdo
CARNAVAL 76 O Galo no Reino do Pernambucarnaval 82 História de blocos e de saudade
30 World-fiction inglesa: a nova literatura anglo-saxônica
PERFIL
34 Poemas de Dione Barreto 36 Agenda Livros
84 Edson Guedes de Moraes, o amigo da poesia
ARTES
88 Morre Julián Marías, o filósofo "vitalista"
40 Braque, o outro pai do Cubismo, ganha visibilidade 45 Agenda Artes
ARQUITETURA 48 Os equívocos da moda de decoração de interiores
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FILOSOFIA TRADIÇÕES 92 A invenção da cachaça, brasileira de 400 anos
CONTEÚDO
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Arquitetura de interiores: entre a arte e a espontaneidade
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Travers/Le Floch/EFE/AE
76 Galo da Madrugada,
paradigma de convivência
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 13 A necessidade de preservar os valores democráticos
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 38 A lenda dos artistas miseráveis
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 46 Por que dificilmente a antiarte é arte
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 70 Os pratos do presidente JK
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 73 Um uísque com Juscelino
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 90 Jovens excluídos caçam cidadãos
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Promessas de Jucelino Kubitschek Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente fevereiro 2006
Gabriel de Paiva/Ag. O Globo Divulgação/Editora Record
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CONVERSA
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ARMANDO FREITAS FILHO
Atrito entre a vida e a palavra Poeta fala de seu novo livro, dos movimentos de vanguarda Práxis e Concretismo, dos contatos com Bandeira e do impacto do suicídio da amiga Ana Cristina César Luciano Trigo
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os 65 anos de idade e 42 de poesia publicada, Armando Freitas Filho nem pensa em se aposentar. Depois de reunir seus 12 primeiros livros em Máquina de Escrever, o poeta carioca inicia uma nova etapa na sua poesia. Trocou de editora e já anuncia o lançamento de um novo livro de inéditos pela Companhia das Letras em 2006, Mar Raro. Voz significativa na poesia brasileira contemporânea, Armando Freitas Filho publicou seu primeiro livro, Palavra, em 1963. Em 1986 recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro 3x4. De lá para cá, cada novo livro seu desmente uma declaração que o próprio Armando fez numa entrevista recente: “Com a idade modifica-se tudo, geralmente para pior”. Longe da facilitação e da diluição em fórmulas testadas e aprovadas, a sua poesia continua sendo de atrito e risco. Uma poesia sem pontos finais, que nunca acaba nem se cansa de registrar flagrantes, acasos, ambigüidades e outros elementos de que é feito o cotidiano. Poesia de corpo presente, difícil e necessária como a vida. Distante da geração-mimeógrafo e da poesia marginal – das quais, contudo, esteve cronologicamente bastante perto –, o poeta carioca gosta de dizer que Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto formam a “Santíssima Trindade” de sua poesia. Ferreira Gullar é outra voz maior que o influenciou decisivamente.
Nesta entrevista ele passa a limpo sua trajetória poética: fala de sua participação no movimento de vanguarda Instauração Práxis, dos contatos com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar e, ainda, da relação de sua poesia com as artes plásticas. Fale sobre seu próximo livro e outros projetos futuros. Como é escrever novos poemas depois de lançar sua obra poética “completa”? Eles têm um sabor de “pós-eescrito”? Ainda bem que você colocou “completa”, entre aspas! Máquina de Escrever tem um subtítulo: poesia reunida e revista. Reunida, já que muitos poemas escritos durante esses quarenta e tantos anos, e que não entraram, por uma razão ou por outra, em nenhum livro meu, clamam por justiça (não sei se merecida) nas gavetas e em jornais velhos. Não senti, ainda, o terrível e amargo “sabor do pós-escrito”, mas sei que ele pode vir, de repente, amanhã, quem sabe? Por enquanto, mantenho a ilusão, quase intacta. Por isso, quero crer que Raro Mar, que vai ser lançado em 2006, se não é melhor, não fará feio junto aos outros. Vai sair, depois de 24 anos de Nova Fronteira, pela Companhia das Letras. Tenho outros “futuros” esboçados; aliás, planejar é o mais fácil, realizar é que são elas.
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CONVERSA Lewy Moraes/Folha Imagem
Como você definiria a sua poesia? Muitos dos meus contemporâneos estritos são herdeiros dos poetas do Modernismo. Não sou diferente. É uma herança e tanto. Foi um momento muito rico para a literatura no Brasil. Afinal, Mário, Oswald, Luiz Aranha, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Raul Bopp, Augusto Meyer, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Schmidt, Cassiano, Cecília, Joaquim Cardozo poetavam juntos, cada um variando ou potencializando o outro na nossa leitura, 30 anos depois. A eles se juntou o “sangue bom” de Vinícius e João Cabral. Minha poesia nasce desse caldeirão e se orienta, desde o começo, por uma linha de inspiração mais construída que me acompanha até hoje. Costumo dizer que meus livros, Palavra, de 1963, Dual, de 1966 e Marca Registrada, de 1970, são de formação e exercício. De Corpo Presente, de 1975, é livro de transição para a maturidade. Em sua obra há uma obsessão com a dificuldade de se exprimir. Essa busca de superação está na raiz da sua poesia? Está na raiz da minha vida, antes de mais nada. Bem que gostaria de ser menos ávido, menos gago, mais cursivo. No entanto, a essa altura, não dá mais para procurar uma ponte mais lenta e mais plausível, com menos obstáculos, entre palavra e vida, intenção e expressão, que nunca achei, talvez porque nunca tenha existido para mim, aflito por natureza. Sua poética revela sempre algo de visceral, contundente e agressivo. Você é mais vísceras que cérebro? De onde vem sua raiva? Sim, mas tenho coração, que é uma víscera, por sinal. Gostaria também de saber de onde provém essa raiva. Drummond diz que a raiva é o melhor dele. Comigo, seguramente, não! Ela incomoda mais a mim do que a seus alvos; me faz mal, escurece o pensamento, me trava, ruminante. Não sou dado a escrever à toa, tudo o que escrevo visa publicação, mas nesses dias de revirar arquivos revirados, para esse dossiê, encontrei uma página, típica de diário, se tivesse um, que fala dessa raiva original, furiosa. O texto é de novembro de 1978 e só falta espumar. Não me lembro mais do que me levou àquilo. Deveria me lembrar. Esquecendo o motivo, vejo que é uma raiva básica, fundamental, que vem do paraíso, mas não é amada. Às vezes, gostaria de ser um fortão desses que resolvem pendências no tapa. Descarregaria mais rápido, creio.
“O suicídio de Ana Cristina César foi a coisa mais selvagem que me aconteceu”
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Que impacto teve o suicídio de Ana Cristina César na sua vida? Minha Ana querida foi um dos encontros da minha vida. Foi um encontro não só literário, mas intimamente existencial,
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no sentido alto, mas também, pedestre. Seu suicídio foi a coisa mais selvagem que me aconteceu e espero em Deus que não me seja dado viver uma miséria comparável a essa, outra vez. Penso nela sempre. Carrego sua morte. Nunca a desculparei por ter feito isso com ela, comigo, com todos, com seus pais e irmãos. Quem se mata, mata tudo ao derredor. Não merecíamos. Ela não merecia isso! Não me conformarei nunca e nunca poderei saciar a falta que ela me faz. E o nosso convívio nem sempre foi ouro sobre azul, mas foi necessário, substancial, de intercâmbio intenso, mesmo na negatividade. Convívio como dos viciados em drogas, que aliás, não tomávamos. Marcelo Carnaval/Ag. O Globo
“Waly Salomão combinava, com extrema originalidade, o escracho com a escrita fina. Era pop até a medula, de nascença. A importância de sua poesia está nesse mix de linguagem libertária, colada à fala, informação e leitura eruditas”
Fale sobre três amigos seus: Tite de Lemos, poeta injustamente esquecido, Waly Salomão e Torquato Neto. Tite foi o irmão que eu não tive. Amizade absolutamente essencial, de homem para homem, de confiança plena e cumplicidade extrema. Assim como fiz com os papéis da Ana, organizando-os e tirando três livros póstumos deles: Inéditos e Dispersos, Escritos da Inglaterra e Escritos no Rio; arrumei os de Tite, menos numerosos. Em meio a eles tinha um livro magnífico deixado por ele, pronto para edição: Beladona. Quando entreguei o arquivo aos seus herdeiros, chamei a atenção para isso. Para minha surpresa, nada até hoje foi feito. Agindo assim, como que matam o poeta outra vez: é inaceitável e incompreensível um descaso tamanho. Waly foi se fazendo meu amigo, nos seus últimos anos. Combinava, com extrema originalidade, o escracho com a escrita fina. Era pop até a medula, de nascença. A importância de sua poesia está nesse mix de linguagem libertária, colada à fala, e informação e leitura eruditas. Melhorava a cada livro, sem descaracterizar a explosão primeira de Me Segura que Eu Vou Dar um Troço, livro datado, mas importante, das colagens de Babilaques. Sua presença transmitia, à la Glauber, vitalidade e fantasia. Ter morrido tão precocemente, abatido em pleno vôo, faz da vida um acontecimento injusto, sem explicação. Torquato teve menos tempo ainda; menos tempo do que a Ana, que morreu com 31 anos. Sua obra está mais realizada nas canções do que nos poemas calados. Mesmo assim, tão breve, tão moço, tão meteórico, foi uma figura poderosa, no cenário, em geral conformista, da cultura brasileira, deixando a marca de sua interferência, inovadora, também no jornal, através de sua coluna “Geléia Geral”. Como o período da ditadura militar afetou sua poesia? Você acredita numa função política e social da poesia? Diretamente, mutilou um livro meu, de 1970, Marca Registrada. A censura prévia, então vigente, fez com que eu retirasse daquela coletânea alguns poemas que não foram incluídos agora, quando reuni minha poesia em Máquina de Escrever. Por quê? Ficaram, irremediavelmente, datados. Então a censura, nesse caso, foi um bom crítico literário? Errado. Os poemas tinham sua função naquela época em que foram banidos. E por essa razão o foram: cumpriram o seu papel. E eram poemas de um semidesconhecido, quase clandestinos. Quem sofreu mesmo foi o pessoal do cinema, teatro, música, dos Continente fevereiro 2006
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CONVERSA jornais e das revistas. Mas, reconsiderando, quem sofreu mesmos fomos todos nós, em plena juventude, com aquele clima opressivo de fedorento verde-oliva. A função política, social e o engajamento da poesia hoje, na minha alternativa, que obviamente não é a única, se dá, como escrevo em poema de cerca de 20 anos atrás. “Na mesa morta”: “Na idade mídia de todos os meios/ espremo o que escrevo/ e o que sobra, só/ é o nu sem nuvens/ tão no extremo terrível do trampolim/ que é expresso somente por si:/ o mínimo múltiplo comum/ sol, sinal, soul/ eu, íntimo/ exprimo o que escravo/ ficou no fim, e não foi ao ar.” Sintetize os conceitos da PoesiaPráxis. Eles permanecem atuais? Quando lancei meu primeiro livro, Palavra, em 1963, ainda não conhecia o autor de Lavra Lavra, Mário Chamie, criador da Instauração Práxis. Fui convidado por ele para colaborar na revista Práxis, e tomei conhecimento do que se tratava. Dentre as vanguardas estabelecidas foi a que me pareceu mais conveniente: não abolia, senão o verso, a frase, a sintaxe. Tinha um acento político mais forte, até por isso mesmo. Afinal, os poemas falavam e não soletravam. José Guilherme Merquior que me tinha dado toda força, com sua leitura generosa dos meu originais, escrevia na revista e tudo foi natural e coerente. Os princípios teóricos praxistas, hoje, não têm validade, como de resto os das outras vanguardas: concreta, neoconcreta e poemaprocesso. Mas deixaram vestígios em todos aqueles que os praticaram. Dual, de 1966 e Marca Registrada, de 1970 são os meus livros que seguiram, à minha maneira, os postulados da Práxis. Em De Corpo Presente, de 1975, já estava em mutação, firmando minha identidade, como deve ser. Como foram seus anos de formação? Meu primeiro contato com a poesia brasileira foi através de um disco, feito por Irineu Garcia para a Editora Festa, de sua propriedade. Lado A: Manuel Bandeira lia seus poemas, lado B, Carlos Drummond de Continente fevereiro 2006
Andrade fazia o mesmo. Drummond, então, superou tudo e todos e continua insuperável: “Drummond é Deus”. Desde os 15 anos, quando meu pai me deu Fazendeiro do Ar & Poesia Até Agora dele e as Poesias Completas de Bandeira, minha vida mudou; um ano mais tarde, em 1956, ganhei Duas Águas, de João Cabral e um querido e saudoso amigo, Camargo Meyer, pseudônimo de Aloysio Santos Filho, me emprestou A Luta Corporal, de Ferreira Gullar, que acabei copiando à mão, pois ele deu um prazo muito curto para a devolução do livro, que eu não encontrava em parte alguma. Quando consegui juntar os poemas para fazer Palavra, os originais passaram das mãos de Cleonice Berardinelli para as de Manuel Bandeira: fui visitá-lo no seu apartamento do Castelo, levado por meu pai, já que não tinha pernas para ir sozinho, tal a emoção. Nesta tarde memorável para mim, de 18 de julho de 1963, ele nos recebeu maravilhosamente: de veston, camisa de um branco que só o anil alcança, e que tinha um cheiro bom e limpo de goma, gravata de seda bordeaux, da mesma cor do veston, calça cinza-chumbo de tropical inglês e sapatos pretos de atacar, engraxados, impecavelmente. Era chic pra chuchu, verdadeiramente racé. Papai, que era um causer exímio, fazia as despesas da conversa falando do Rio antigo, e eu ali mesmerizado: livre da gagueira, porque mudo. Bandeira, então, me disse: Gostei do seu livro, achei interessantíssimos certos poemas, mas, assim como Cleonice, não tenho um juízo certo sobre o conjunto; isso você vai conseguir procurando gente mais moça que compreenderá melhor suas levadices, e riu alto, dentuço que não escondia os dentes, irresistível. Procure o Ferreira Gullar ou o José Guilheme Merquior, em meu nome. Escolhi o Zé, dois anos mais moço do que eu, pois ainda não tinha coragem para encarar o Gullar. Arquivo/AE
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CONVERSA Paulo Jares/Tyba
Para Freitas Filho, Drummond (na página anterior) e João Cabral (acima) formam com Manuel Bandeira uma Santíssima Trindade da poesia brasileira O que acha do movimento concretista? Sempre achei que a arte concreta tem melhor rendimento nas artes plásticas e na música; por isso nunca dei muita bola para o poema concreto em si, por entendê-lo, como um expediente sem possibilidade de desenvolvimento verdadeiro, repetitivo e pontual, ponto. A poesia concreta, nos seus anos de vigência maior, de 1958 a 1964, aproximadamente, afetou a poesia brasileira mais por atemorização, e conseqüente paralisia, do que por sedução produtiva. Afinal, seus cultores sempre funcionaram como uma microempresa familiar blindada, onde o fazer literário só interessa quando usado como poder, incompartilhável, pela própria lógica do empreendimento, com os de outro sangue. O que não aprecio neles nem é sua teoria manipulada, nem são seus poemas, alguns curiosos, outros ginasianos e datados, nenhum esplêndido; o que não gosto, de verdade, nos
dois Campos, cada qual no seu, é a mão fechada de pão-duro, a maneira dicotômica, simplista e excludente de ver o mundo da cultura, montando Fla x Flus arbitrários e infantis (Mário x Oswald, Drummond x Cabral, Chico x Caetano etc.), a falta de generosidade com seus contemporâneos, em geral, e com os seus poucos epígonos em particular. Espero que um bom crítico possa mostrar, tantos anos passados, o que deu certo e o que não deu, no projeto deles. Muito dos críticos atuais não têm pruridos ao revisar a obra de Drummond, sem nenhuma cerimônia. Gostaria que acontecesse o mesmo, no que diz respeito ao espólio concretista. Esperar que alguém possa fazer um balanço sensato e independente sem ser domesticado ou pautado pelos próprios textos teóricos dos autores criticados, dizendo só o que já foi dito por eles, de uma outra forma, seria salutar e surpreendente. • Continente fevereiro 2006
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais
Fevereiro | 2006 Ano 06 Capa: Músico de Jazz de Nova Orleans,USA Foto: Bob Krist/Corbis
Colaboradores desta edição: ARTUR
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ATAÍDE é graduado em Letras.
CARLOS JATOBÁ é escritor, autor de A Cachaça e os Gênios da Garrafa. CLÁUDIO DANIEL, poeta, jornalista e autor, entre outros títulos, de Figuras Metálicas (poesia) e Romanceiro de Dona Virgo (contos). DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Machado de Assis, um Gênio Brasileiro, entre outros.
Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra
DANIELA ARRAIS é jornalista.
Ilustrações Zenival
EDUARDO GRAÇA é jornalista.
Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo e Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente fevereiro 2006
EDUARDO MAIA é jornalista. FERNANDO DINIZ MOREIRA é arquiteto, Ph.D. em Arquitetura (University of Pennsylvania) e professor do Depto. de Arquitetura e Urbanismo da UFPE. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e Armada América, entre outros, e cineasta. GUILHERME AQUINO é jornalista. GUSTAVO KRAUSE é político, escritor e folião. JARBAS MACIEL é matemático, filósofo e músico. LOURIVAL HOLANDA fez Filosofia, é professor na Pós-Graduação de Letras e de História da UFPE. LUCIANO TRIGO é jornalista, escritor e autor de Engenho e Memória, Todas as Histórias de Amor Terminam Mal, entre outros. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Vigílias, entre outros. MARIANA OLIVEIRA é jornalista. RODRIGO DOURADO é jornalista e diretor teatral. WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de artes plásticas.
Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretorgeral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA foi correspondente de Guerra na Europa, em 1945. É autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que foi assim. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.
CARTAS Carinho Quero agradecer-lhes a gentileza de me terem telefonado, o que demonstra o alto nível de profissionalismo dos que fazem a CEPE. Tive, há cerca de três meses, problemas com a chegada da Revista, por duas ocasiões. Na primeira vez, havia a greve dos correios. Esperei um mês, após a greve, e a Revista não chegou. No segundo mês, já sem greve, o mesmo problema. Nas duas situações, fui atendido com uma presteza ímpar pelo Departamento Comercial, fazendo com que as Revistas chegassem às minhas mãos o mais rápido possível. Algum tempo depois, recebi um telefonema do mesmo departamento para saber se eu continuava com problemas, ou não. Esse carinho com o leitor é deveras gratificante. Pernambucano, radicado em São Paulo, assinante da Continente Documento, confesso ficar impaciente pela chegada da mesma à minha casa, Revista essa que, indubitavelmente, reforça o sentimento de pernambucanidade de qualquer um de nós, nascidos e formados nessa terra. Aproveitando o ensejo, quero agradecer o envio da Revista Pensata e da edição de Natal da Documento que coroam primorosamente o trabalho realizado nesse ano que findou, e que mais uma vez evidencia o esmero com que esse trabalho é realizado. Parabéns!! Samuel Lima dos Santos, São Paulo – SP Carinho 2 Queridos amigos e editores da Revista Continente, queria lhes agradecer o carinho que vocês tiveram comigo quando visitei a empresa em dezembro de 2005. Marinalva Francelina Franca, Goianésia do Pará – PA Toninho Vaz Sempre bom ler Toninho Vaz (edição Nº 60, Conversa “Marco Nanini”), o cara manda muito bem, tanto quanto Nanini. Sucesso!!! Lena Villela, Curitiba – PR
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Artista em pauta Conheci a Continente Multicultural através de um amigo de Minas Gerais que, quando chegou ao Recife, me mostrou a Revista, comprada no aeroporto. Na semana seguinte, eu já era assinante dela. Decepcioname, no entanto, que há quase dois anos de assinatura, vendo desfilar uma galeria de pintores da região, como João Câmara, Gil Vicente, Delano, Cícero Dias, Antonio Dias, Zuleno, entre tantos grandes nomes, não vi até o presente número uma matéria sobre a obra de Ivonaldo Veloso de Melo. Tal “silêncio” é incompreensível, partindo de uma Revista considerada um patrimônio da cultura pernambucana. Fica-nos até difícil explicar aos brasileiros e estrangeiros admiradores da arte de Ivonaldo, como uma grande publicação local não prestigia seus próprios conterrâneos. Muitíssimo conhecido em São Paulo (Jacques Ardies Gallery) e Rio de Janeiro (Jean Jacques Gallery), Ivonaldo o é também internacionalmente (Julich Gallery, Dusseldorf, Germany; Porte de Jade Gallery, Brussels; Nederland Museum For Naïve Art, Rotterdam, Holland; Debret Gallery, Paris; International Salon of Naïve Painting, Levallois, France; só para citar algumas de suas exposições dentre tantas outras). Estou certa de que, principalmente os pernambucanos e todos os admiradores da arte naïf , gostariam de saber mais sobre este extraordinário pintor de nossa terra. Verônica Costa Romão, Recife – PE Calendário 2006 Olá! Vim aqui só para parabenizar pelo grande trabalho dos calendários 2006. Estão simplesmente lindos!!! Parabéns!!! Juliana Pedrosa, Recife – PE Preciosa Agradecendo a remessa da preciosa Revista, que é aplaudida pelos seus leitores, desejolhes um Natal feliz e um venturoso 2006. Evanildo Bechara, Rio de Janeiro – RJ
França – Olinda Viajei pelo Brasil um pouco (e falo português um pouquinho). Gosto bastante desta Revista! Sou amigo da Laura e do Paulo (Rua Aracia, 118, Jardim Atlântico, Olinda), já parece muito! E também sou quase noivo da Luciana, Prefeita de Olinda (mas ela talvez não se lembre de mim). Quero assinar a Revista! Philippe Drouzy, França – Paris Abelardo da Hora Marco Polo, só você mesmo para fazer uma matéria tão interessante para o Abelardo da Hora (matéria “A vida de um mestre de muitas obras”, edição Nº 60), mais que merecida, pois se trata de um dos artistas mais interessantes do mundo. Sim, falo do mundo e sei que não estou exagerando. Vamos acabar com esta falácia que somos menores: o resto do mundo nos impõe artistas, dizendo que são as melhores coisas que existem, mas nós também temos os melhores. Abelardo é um deles. E é preciso ter talento para ver o talento dos outros, e você já provou demais isto. Fred Svendsen, João Pessoa – PB Atrás de outra Dalila Realizei uma pesquisa sobre o assunto (citado na coluna “Marco Zero”, de Alberto da Cunha Melo, de novembro de 2005) e acredito ter achado a “Dalila” perdida (c. 1870) e a partitura correspondente, já vertida em arquivo sonoro MIDI. Carlos Torres, Salvador – BA Agenda 2006 Quero parabenizar a qualidade da Revista. Excelente. Recomendo a todos os meus amigos. No ano passado fui presenteada com uma belíssima agenda da Continente. Gostaria de saber se já foi confeccionada a de 2006 e onde posso comprá-la. Socorro Freire, Recife – PE
Geração beatnik
Todos os pensamento e atos, em especial o intelectual misturado com as emoções fortes, conjugados com as tintas do desequilíbrio, podem levar a uma série de conseqüências imprevisíveis. Lembrando que tudo que é bom na vida custa, e a busca do equilíbrio não é diferente. Quando as cordas estão frouxas, o instrumento não vibra; e se as esticam demais, rompem-se. Constituindo o caminho do meio. Infelizmente, muitos seguem tais idéias, mas terminam num esvaziamento total; não é possível viver inconformado e em êxtase permanente. Realmente, é uma loucura. (Sobre matéria “As garras de Ginsberg”, edição Nº 60). José Sérgio Tomaz de Souza, Mogi das Cruzes – SP
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Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 13 Carlos Alberto Fernandes
A verdade política e seus símbolos Apesar dos sinais de esgotamento do modelo democrático, os valores, símbolos e padrões de comportamento da civilização moderna devem ser preservados cultura política como qualquer outra cultura sobrevive verdadeiramente de símbolos e simbolismos. E nesse contexto a verdade tem que representar um símbolo real e transformar-se em simbolismo concreto para a vida em sociedade. Expulsos os fantasmas das utopias absolutistas e os sistemas fechados de pensamento, que produzem o fanatismo e a intolerância, a modernidade passou a incorporar os sistemas de pensamento que suportam a falta de uma verdade absoluta. O Nazismo, experiência-limite da loucura da racionalidade moderna, já nos ensinou que, se existe um mal absoluto, ele está justamente ao lado daqueles que se acreditam autorizados a agir em nome de um bem absoluto. A nossa realidade política reflete a agressão aos símbolos democráticos pelos desvios de conduta perpetrados em nome do poder por aqueles que agem partidariamente através do monopólio da verdade absoluta. Representando o eixo bárbaro da modernidade, os esforços da imposição autoritária de um pensamento único e da manutenção do poder a todo custo desmoronaram o edifício ético. Nessas circunstâncias, a cultura política deixa de ser patrimônio para transformar-se em dívida social. Como patrimônio, estaria sustentado em toda uma estrutura ética de valores sociais e culturais. Como dívida, assenta-se em toda uma infraestrutura de desvios éticos realizados em nome da manutenção do poder político. O seu enquadramento conceitual nesta categoria agudiza a urgência do enfrentamento dos problemas afetados pelo esgarçamento do poder político e pela erosão das relações sociais. A crise ética por que passa essa cultura é uma crise de verdade que atinge ao governo e à oposição. Ao governo que se permite negar evidências. À oposição que se presta a contemplar essa negação. A desconfiança e o ceticismo são alimentados por declarações socráticas do tipo “só sei que nada sei” – que nos deixa sem uma bula confiável para dirigir nossos destinos.
A
A história política mostra que, no mundo real, o tempo e os fatos colocaram por terra desde as teorias da propaganda de Goebels, baseada em repetições de mentiras, até as negações de desvio de conduta de Clinton, passando pelas declarações de Nixon de que o Governo não tinha nenhuma relação com o caso Watergate. Diante dessa realidade histórica, o direito à verdade assume uma centralidade jamais vista. A verdade das relações políticas passa a ser um direito inalienável, essencial para a vida em sociedade e fundamental para a busca das utopias. Apesar dos sinais de esgotamento do modelo democrático, os valores, símbolos e padrões de comportamento da civilização moderna devem ser preservados. As pessoas anseiam pela sobrevivência, mas também desejam fruir bens simbólicos. Além de habitarmos construções de concreto, vivemos com a mesma intensidade sob a proteção de edifícios simbólicos – valores que dão sentido a nossa existência individual e coletiva e que são a razão de ser de toda sociedade. Espera-se que, com as experiências feitas, adotemos as reflexões de Michel de Montaigne no sentido de que os conceitos de verdade sejam finalmente restabelecidos através do diálogo e da busca incessante da ética. A afirmação da dúvida não pode ser vista como dúvida cínica do tipo não saber e por isso não reconhecer verdade alguma. Não existe verdade de um homem só. O sentido da palavra só se completa quando o outro escuta. O desamparo intelectual de quem quer que seja não pode transformar mentiras em verdade. A verdade é o símbolo que enobrece a alma das instituições democráticas – simbolismo institucional dos valores éticos e sociais; símbolo essencial para a cidadania – simbolismo de que sem ela a civilização volta à barbárie. • Continente fevereiro 2006
O jazz vive
Quase sumido em seu próprio berço, a América do Norte, o gênero musical continua ganhando adeptos em todo o mundo, firmando-se como linguagem artística universal Eduardo Graça, de Nova York
Continente dezembro 2005
Continente dezembro 2005
Alan Schein Photography/Corbis
CAPA
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sfinge repleta de suíngue, o filho mais danado da sofrida Nova Orleans dribla com brio a questão crucial: mas ele, o jazz, morreu mesmo? A pergunta batiza o livro do crítico britânico Stuart Nicholson, da revista Jazzwise, que acaba de chegar às prateleiras americanas. Em seu subtítulo, o jornalista oferece assim o esboço de uma resposta: “O Jazz morreu ou se mudou para um novo endereço?”. O leitor certamente já imaginou que, para Nicholson, o novo CEP do jazz está localizado do outro lado do Atlântico – mais precisamente no norte da Europa. Em determinado momento, ele chega mesmo a afirmar que os noruegueses, hoje, interpretam Duke Ellington melhor que as novas gerações de músicos norte-americanos, ainda chocadas com a perda, depois do desastre causado pelo furacão Katrina, de parte da história oral e documental de uma das poucas formas artísticas genuinamente americanas. Brancos, branquíssimos, os virtuoses da Escandinávia estariam mais abertos às novas ondas. Mais: lá a subvenção pública é praxe e há um grande público consumidor, profundamente interessado pelo que se faz de mais experimental. Um dos ídolos de Nicholson é o pianista nórdico Tord Gustavsen. Seu trio lançou em 2005 “The Ground”, saudado pelas revistas ao mesclar música folclórica escandinava, gospel e ritmos caribenhos com o velho e bom cool jazz. Mas será que o jazz mudou mesmo de cor? Quando afirma que o “tom nórdico” do saxofonista norueguês Jan Garbarek é uma revolução comparável ao cinema do sueco Ingmar Bergman, Nicholson mexe com os brios dos americanos. Mas seu provocador ensaio não foi uma experiência solitária no ano que passou. Ao menos para uma instituição o jazz nunca foi tão valorizado: a academia. Dezenas de livros foram publicados este ano, levando o professor David Yaffe, da Universidade de Syracuse, ele mesmo lançando Ritmo Fascinante, a lembrar, em artigo na revista semanal The Nation, a famosa frase de Louis Armstrong, quando desafiado a definir o jazz: “Se você precisa fazer tal pergunta, então jamais saberá a resposta”. Entre os destaques, Jazz, o livro do fotógrafo Jim Marshall, lançado em edição de luxo pela Chronicle, já considerado o documento definitivo sobre o ritmo musical, e Jazz On The River, de William Kenney, da Universidade de Chicago, uma deliciosa e dolorosa história do gênero narrada rio Mississipi acima. O preciosismo de Kenney é tal que, pela primeira vez, até mesmo os construtores dos barcos que levaram os conjuntos de jazz rumo ao norte industrializado foram entrevistados.
Ilustrações: Herb Lubalin/Reprodução
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Notimex/AFP
A principal estrela do selo Blue Note é a artista Norah Jones, hoje mais ligada ao pop e ao folk-country do que propriamente ao jazz
Mas os fatos não mentem, e Yaffe sabe disso. Os quatro grandes selos de jazz andam à mingua. A principal estrela do outrora mítico Blue Note é Norah Jones, uma artista mais ligada ao pop e ao folk-country do que propriamente ao jazz. A série musical mais importante de Nova York dedicada ao gênero é comandada pelo que Nicholson chama de “neo-conservadores” da música, em um debochado paralelo com a tropa de choque ideológica do governo Bush. O “Jazz at Lincoln Center”, comandado por Wynton Marsalis, cujo legado, de acordo com o jornalista inglês, “é o de simplesmente encaixar a identidade cultural negra dentro do status quo cultural norte-americano, essencialmente branco”, teria há muito virado as costas para o que seria a vanguarda do gênero. Até mesmo a série documental de Ken Burns, veiculada na tevê pública americana há cinco anos e apresentada no Brasil pelo canal GNT, da Globosat, inicialmente louvada pelos fãs do jazz, acabaria gerando uma “absorção de gênero pelos grandes conglomerados, MTV à frente”. As coletâneas, lançadas no mercado com a “etiqueta Burns”, não teriam respeitado a historiografia do gênero, tão cara aos cultores do jazz. E os conservatórios musicais – “uma indústria altamente lucrativa” – espalhados por todos os Estados Unidos parecem dedicados a suprimir sistematicamente a inovação de seus bolorentos currículos. Mas o jazz nunca esteve preso a escolas. Sua infinita capacidade de se enfronhar em geografias aparentemente hostis, rio acima, sempre foi um de seus trunfos mais sólidos. Não por acaso, as listas dos melhores álbuns do ano nas principais publicações de música pop em 2005 inclui um grupo de jazz. Ou quase. O The Bad Plus é um trio que ousou apresentar jazzycovers de “clássicos” de Black Sabbath a Gloria Gaynor e foi visto com desconfiança por cultores mais ortodoxos temerosos do que consideram ser mais uma rendição a uma “estética kitsch engraçadinha” do que uma nova revolução na seara de Miles Davis. Mas a música de “Suspicious Activity?”, o mais recente disco do The Bad Plus, é mesmo jazz? Batizado de post bop, às vezes é tratado como musica pop influenciada pelo jazz, outras como jazz rendido ao rock.
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CAPA LC Leite/AE
Ao menos para uma instituição o jazz nunca foi tão valorizado: a academia. Dezenas de livros sobre o gênero foram lançados nos EUA em 2005
Ilustração: Herb Lubalin/Reprodução
Winston Marsalis: "neoconservador"?
Mas este não é apenas mais um sinal dos tempos? Ora, na mesma Nova York do The Bad Plus não há nada parecido com a Jazz Foundation of America (JFA), instituição criada em 1989 para ajudar músicos de jazz em apuros financeiros. A JFA é hoje palco de um dos mais bem guardados segredos da cidade: a jam session que reúne cobras do ritmo todas as segundas-feiras em sua sede, na rua 48. Lá o público encontra gente como o baterista Billy Kaye, 73, que correu mundo com Count Basie e George Benson. Ou o pianista Zeke Mullins, 80, que estrelou na banda de Lionel Hampton por um quarto de século e chegou a se apresentar, na Casa Branca, para os presidentes Eisenhower, Nixon e Carter. Ou ainda John Ore, o baixista favorito de Nat King Cole. E por aí vai. O que atrai os iniciados é a sensação de que se está escutando, de fato, “o autêntico jazz”. A pequena sala de espetáculos da JFA fica sempre abarrotada e os retratos de monstros sagrados do jazz como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, John Coltrane e Miles Davis pairam marotos sobre o público e os músicos. Diretor-executivo da JFA, Wendy Oxenhorn instituiu o único evento ligado ao jazz na cidade que não cobra entrada, não exige consumação mínima nem couvert musical. É claro que a própria proeminência do club da JFA às segundas-feiras reflete a decadência do ritmo na cidade. Clubes de jazz foram desaparecendo, tirando o emprego de muita gente bamba. O que nos faz voltar à pergunta inicial: mas o jazz afinal, não morre por quê? A melhor resposta, lembra Yaffe, segue sendo a do trompetista Lester Bowie, o fundador do Art Ensemble de Chicago que, em 1968, compôs “Jazz Death?”, que diz algo como “a morte do jazz? Bem, tudo depende do que você entende disto que nós resolvemos chamar de jazz”. •
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Lightscapes Photography, Inc./Corbis
Um modelo estético Professor francês, estudioso das relações entre jazz e cinema, considera a música um modelo estético Mariana Oliveira, de Madri
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illes Mouëllic, professor da cadeira Jazz e Cinema da Universidade Rennes II, na França, é também um saxofonista amador. Autor de Jazz e Cinema (Cahiers du Cinéma, 2000), O Jazz – Uma Estética do Século 20 (Éditions Presse Universitaires de Rennes, 2000), e co-autor de All that Jazz: um Século de Acordos e Desacordos com o Cinema (Cahiers du Cinéma/Festival International du Film de Locarno, 2003), entre outros – todos sem edição no Brasil, Mouëllic não se limita a fazer um levantamento histórico das várias participações do jazz na sétima arte. Sua análise foca a música como um modelo estético aproveitado pelo cinema. Para ele, o jazz teria contribuído para renovar a questão do gesto artístico no cinema, como declara nesta entrevista. Qual a relação entre o jazz e o cinema? Os vínculos entre jazz e cinema são de muitas ordens: histórica – o cinema é uma memória do jazz; estética – os cineastas se interessam pela questão da captação da performance do jazz, mas também por contar a história do jazz – como utilizar o jazz como música de filme? Política – o jazz está ligado à historia dos negros no território americano e isso é um ponto que traz conseqüências na presença do jazz no cinema. Continente fevereiro 2006
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Em Manhattan, de Woody Allen, o jazz impregna todo o filme
Seu livro Jazz e Cinema vai muito além de entender o jazz apenas como uma música para trilha sonora. Meu livro trata também do jazz como modelo estético e essa questão vai além da utilização do jazz na trilha sonora. Eu acredito que o jazz contribui na renovação do gesto criador, do pensamento da arte em geral. E o cinema não é uma exceção. Existe uma natureza do jazz no cinema? Para responder a essa questão, é necessário recorrer à história do jazz e à do cinema. Nos anos 30, a Jazz Symphonique foi inventada pelo cinema hollywoodiano, notadamente nas comédias musicais. Era o “jazz de cinema”. Mas, na verdade, havia uma grande diversidade: o jazz orquestral, o jungle, o bepbop, o free jazz... Todas as correntes do jazz estão representadas no cinema, cada uma à sua maneira. O jazz e o cinema se desenvolveram ao mesmo tempo, chegando à modernidade juntos. Isso ajudou no estabelecimento da relação entre essas duas artes? Eu responderia da mesma forma: a modernidade do jazz está vinculada à sua improvisação e ao seu gesto criador. A importância dada à expressão do corpo, à espontaneidade, à criação coletiva. Qualidades que uma parte do cinema moderno tenta adquirir. O jazz se tornou um modelo para o cinema? A questão do modelo é complexa para explicar em poucas palavras. Posso dizer que o jazz tem uma atitude específica no processo de criação artística (improvisação, performance, espontaneidade, movimento do corpo) e certos cineastas buscam encontrar no cinema essa relação moderna do imediato, do improviso. O jazz contribuiu para renovar a questão do gesto artístico no cinema (Cassavetes, Rozier, Rouch, Van der Keukenâ). Em que tipo de filmes podemos encontrar o jazz da forma que você propõe? O jazz é uma música que remete o corpo à arte. É a partir daí que encontramos a teoria de Gilles Deleuze sobre o Cinema do Corpo. É o ponto de partida para responder a essa questão. Continente fevereiro 2006
CAPA O jazz é geralmente vinculado a um cinema underground, alternativo, ou Hollywood também pode fazer um bom uso desse estilo musical? Todos os tipos de cinema utilizam o jazz, desde o cinema mais underground (Michael Snow) ou experimental ao cinema mainstream (Hawks, Minnelli, Eastwood, Allen, Scorsese), sem esquecer o cinema de animação (de Disney a Norman McLaren). Mas não é o mesmo jazz e muito menos a mesma Photos 12/AFP forma de utilizar ou de se inspirar. Quando houve a maior produção de jazz/cinema? Entre os anos 60 e 70. O jazz/cinema tem alguma ideologia política? Eu penso que o jazz é um ato de resistência ao controle absoluto, ao domínio, ao medo da vida. Nesse sentido, o jazz no cinema pode também caracterizar um ato de resistência e ao mesmo tempo um sinal de confiança no mundo dos humanos. O que você pensa do trabalho de Woody Allen, Clint Eastwood e Martin Scorsese? Difícil responder em poucas linhas, cada um tem um relacionamento específico com o jazz. Woody Allen tem um relacionamento que resgata sua infância e que faz com que ele nutra uma infinita paixão pelo jazz dos anos 20 e 30. Allen é o cineasta do amor pelo jazz. Para Eastwood, o jazz é a beleza da América, sua riqueza. O jazz é uma maneira de encontrar a contribuição dos negros na cultura americana, como o western é uma maneira de encontrar a contribuição de todos os pioneiros. A escravatura e a segregação por um lado e por outro os grandes massacres indígenas. Para Martin Scorsese, o jazz é, em grande parte, uma maneira de dentro do entretenimento, das lantejoulas e do glamour, contar uma outra história da América. Uma história de sombra e sem esperança. O jazz é um signo dessa história subterrânea.
Clint Eastwood dirige Forest Whitaker em Bird
Você assistiu a série produzida por Scorsese? O que achou? Eu não posso avaliar a série de maneira general, ela é muito diversa. Eu acredito que a iniciativa é mais que justificada. É uma maneira, para os grandes cineastas, de realizar um tributo à música negra americana. Mas cada filme reflete a sensibilidade do seu diretor e precisa ser comentado dentro das suas outras produções. Nessa nova geração existe algum cineasta que continua a carregar a bandeira do jazz/cinema? Os cineastas como Jarmush, Scorsese, Eastwood continuam carregando esse lema, mas em parte. O espírito do jazz é mais presente numa parte do cinema contemporâneo que tenta resistir aos efeitos especiais, ao formato dos grandes estúdios. Os cineastas que confiam no humano, na improvisação, na gravação como performance – são esses que estão mais próximos do jazz, mesmo quando não estão conscientes disso. • Continente fevereiro 2006
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CAPA Luciano Rossetti Phocus
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Chucho Valdés, o "Duke Ellington de Cuba": tributo a Nova Orleans
Acento cubano O jazz une o que a política separa: cubanos produzem música com sotaque próprio
Homero Fonseca, de Havana
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aquito D’Rivera, o saxofonista cubano exilado nos Estados Unidos, anticomunista ferrenho, conta um episódio do tempo em que ainda morava em Cuba e fazia parte, ao lado do celebrado Chucho Valdés, da famosa Orquestra Cubana de Música Moderna. Uma vez, um burocrata do regime chegou para o grupo de dedo em riste e acusou: “Isso que vocês estão fazendo é jazz! Ao que Chucho, malandramente, negou de mãos juntas: “De jeito nenhum! Isto não é jazz.” Verdade ou folclore, há pelo menos 22 anos o jazz é cultuado na ilha de Fidel: em dezembro passado fez-se em Havana a 22ª edição do Festival Jazz Plaza, reunindo músicos cubanos, americanos (poucos, pois muitos foram proibidos, pelo governo Bush, de participar), canadenses, africanos, argentinos, peruanos, mexicanos, hondurenhos, colombianos. Até o Brasil esteve representado (de forma controversa, penso) pelo compositor Ivan Lins, muito aplaudido. Foram três dias em que a música de origem americana dominou em vários lugares, como o Teatro Mella, o Teatro Amadeo Roldán, a Sala de Teatro do Museu Nacional de Belas Artes e a Casa da Cultura, sempre lotados por turistas estrangeiros e cubanos de todas as idades, famílias inteiras, atentos não apenas aos recitais como às oficinas, colóquios e filmes sobre o gênero musical. Como é o jazz cubano, quem toca e quem ouve? Numa jam session a que assisti no Café Jazz, localizado no Galerias Del Paseo, um centro comercial ao estilo dos modernos shopping centers (mais modesto, mais modesto), na sexta-feira, 2 de dezembro, pude ter as respostas a essas perguntas. Reunidos ao léu, seis músicos ocuparam o pequeno palco do café: Yasek
CAPA Manzano (trompete) Carlos Millares (sax-tenor), Chris Mitchell (sax-alto), Tony Rodríguez (teclado), Abi García (baixo) e Roni Barrelo (bateria). Todos jovens e cubanos, à exceção de Mitchell, maduro e canadense. Não ouvi nenhum standard no repertório. Era música contemporânea, deles e de compositores de todo o mundo. Identifiquei logo na bateria o sotaque (acento, como eles dizem) cubano. Como em todo o mundo, hoje, o jazz é ouvido por um público pequeno e fiel, principalmente estudantes universitários. Além do festival, apenas duas casas em Havana têm programação jazística permanente: a La Zorra y El Cuervo, em Havana Centro, e o Café Jazz, no Vedado. Se houve um dia preconceito político contra o jazz (como no início, nos próprios EUA; na Alemanha, de Hitler, e na Rússia, de Stalin), esse tempo já passou. “Não temos nenhum problema em tocar jazz. A dificuldade maior é a falta de informação. O que se ouve por aí, além de música tradicional cubana, é o lixo internacional” – atesta Millares, um negro de 25 anos, nascido em Santiago, que estudou na Suíça e se apresentou em vários países da Europa. Como no Brasil e muitos lugares, para sobreviver eles tocam a música demandada pelo público (no caso, a salsa). Mas fazem do jazz sua opção preferencial. O tecladista Tony Rodríguez, 24 anos, premiado num festival no Canadá, explica por que tocam jazz contemporâneo: “Porque a música está sempre mudando”. O trompetista Yasek Manzano, 24 anos, graduado em música em Cuba, com estudos em Nova York, estudou música erudita até a adolescência, quando ouviu o compatriota Bobby Carcassés tocando composições jazísticas e se apaixonou por aquele tipo de música. Formou um quarteto e pretende excursionar pelo mundo. Mas frisa: “Quero ser um músico de minha terra. Ir e vir pelo mundo.” Sobre se existe um jazz cubano, Manzano não titubeia, confirmando minha impressão: “Existe, sim. Principalmente na rítmica, na percussão”.
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Homero Fonseca
La Zorra y El Cuervo, clube de jazz no centro de Havana
Um festival é um festival – Festival que se preze levanta questões como os critérios de seleção dos participantes. Além de Ivan Lins, outra presença pouco ortodoxa era o célebre cançonetista cubano Pablo Milanês no palco do 22º Festival Jazz Plaza, de Havana. Mas ninguém questionou a presença do Chico Buarque cubano. Muito pelo contrário. As palmas foram entusiásticas para todos, até para esses estranhos no ninho do jazz, se é que pode existir isso. Pois o jazz é, justamente, para muitos, sinônimo de liberdade. Foi o que se viu na “gala” (sessão de encerramento), quando o coordenador da festa, o pianista, compositor e maestro Chucho Valdés, o Duke Ellington de Cuba, apresentou duas novas composições suas, com seu quarteto dividindo o palco com a Orquestra Sinfônica Nacional, regida pelo maestro Tony Taño. A primeira, “Shaka Sul” (“Tributo à África”), contou ainda com a participação do percussionista sul-africano africano Dreiser Durruthy, empunhando um tambor cerimonial chamado bata. A segunda, acompanhada ainda pelo Coral Entrevozes, com solo da diva Mayra Caridad Valdés (irmã do maestro), chamava-se “Canto a Deus” (“Tributo a Nova Orleans”). O compositor e pianista dedicou-a às vítimas do furacão Katrina, que devastou a cidade, berço do jazz. À parte a estocada política, havia sinceridade nas palavras do grande músico. Por fim, uma jam session, que reuniu ainda Jesús Chuchito Valdés (filho do maestro), o excelente trompetista canadense Nick Ali Brownman, Yasek Manzano, Roberto García (no flughorn) e Roberto Martinez (no saxofone), que, entre outros números, desfiaram com paixão “Song for my father”, de Horace Silver. Quando as coisas estavam no auge, com o público que lotava o teatro batendo palmas e sapateando no ritmo, Chucho fez um sinal e as cortinas se fecharam abruptamente. Sem dúvida, um jeito especial de encerrar um show de jazz. • Continente fevereiro 2006
CAPA
Hans Manteuffel
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Com jeito de Pixinguinha Como em outras partes, no Recife o jazz é cultuado por público pequeno e fiel e tem sotaque local Daniela Arrais
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jazz praticado no Recife também aspira a uma cor local. Os grupos existentes afirmam tocar jazz com identidade pernambucana, que mistura ritmos da região, como frevo, coco e maracatu, a arranjos consagrados. Na estrada há 18 anos, a Contrabanda é um dos maiores expoentes da cena de jazz recifense. Com apenas um disco gravado de forma independente (Contrabanda, de 1995), o grupo formado pelos irmãos Nando (contrabaixo) e Miltinho Rangel (guitarra), Enoque Souza (bateria) e Edson Rodrigues (sax) mistura referências diversas, do frevo ao choro, de Villa-L Lobos a Beatles. “A gente faz estudos do jazz, da música improvisada. A diferença é que acrescentamos a eles a música regional, o que deixa nosso jazz com sotaque daqui”, explica Nando, 54 anos.
Continente fevereiro 2006
Maestro e professor Edson Rodrigues, decano do jazz no Recife
CAPA Com poucos espaços fixos onde possa ser tocado e, conseqüentemente, agregar público, o jazz recifense depende de iniciativas isoladas, desenvolvidas por entusiastas que buscam mais satisfação pessoal do que retorno econômico. É o caso do Festival de Jazz do Recife, idealizado pelo saxofonista Alex Corezzi, 32. Desde 2002, ele realiza, no Pátio de São Pedro, entre o fim de setembro e o começo de outubro, um festival dedicado à música instrumental. “O Festival surgiu da necessidade de se criar um espaço profissional para que as bandas de jazz pudessem se apresentar e mostrar suas identidades, com qualidade sonora”, explica. A terceira edição do evento (que é gratuito e movimenta, em média, cinco mil pessoas ao longo de três dias), realizada este ano, trouxe para Pernambuco uma atração internacional, o pianista americano Jeff Gardner, além dos grupos Treminhão, Marquinhos Diniz Trio e os maestros Zé Gomes e Edson Rodrigues. Este último funciona como elo entre diversas gerações de jazzistas recifenses. Músico profissional desde 1958, o saxofonista é professor do Conservatório Pernambucano de Música. Muitos músicos em atividade já foram seus alunos, como Ivan do Espírito Santo, que se dedica à música gospel, e Spok, o maestro da Spok Frevo Orquestra. Para Rodrigues, a maior dificuldade que a cena de jazz encontra por aqui é a falta de articulação. “Nós não nos comunicamos, não trocamos experiências com outras pessoas que fazem jazz. Então, a cena encontra dificuldades para se mostrar ao público”. Enquanto a cena não se solidifica, os jazzistas se desdobram em inúmeras atividades para garantir a sobrevivência. “É possível viver de jazz, mas tem que se correr um bocado. É preciso viajar, pois não dá para ficar só no Recife”, indica Alex Corezzi. Fred Andrade, por sua vez, dá aulas, faz gravações com artistas e trabalhos de publicidade. “Não dá para sobreviver só de música instrumental, é preciso trabalhar também com música comercial”. Breno Lira acrescenta: “A gente precisa tocar com várias bandas, acompanhar cantores, dar aulas, tocar em orquestra de baile. Só assim a gente consegue viver de jazz no Recife”. • Divulgação
Na mesma linha, sob os pilares da pesquisa, do improviso e da criação, a banda Noise Viola faz a ponte entre o erudito e o popular. “Nós começamos em escolas de música, onde nos aproximamos da linguagem erudita. Ao mesmo tempo, nunca nos distanciamos das raízes nordestinas”, lembra Fred Andrade (guitarra), 35, que toca com Breno Lira (viola, violão, guitarra), Paulo Barros (violão) e Tomás Melo (percussão). Breno Lira, 26, que também toca na Treminhão, avalia que a cena de jazz recifense é bem diversificada. “Enquanto o Treminhão faz jazz mais pesado, misturado com rock, a Latin Jazz apresenta standards misturados com música latina. Já o Noise Viola mescla jazz com música nordestina. Cada grupo tem uma história, ninguém imita ninguém”. O maestro e saxofonista Edson Rodrigues, 63, se une ao coro. “Não posso tocar como Wayne Shorter, pois faço jazz à minha maneira. Eu toco jazz como quem toca MPB, Pixinguinha. Do mesmo jeito que pernambucanos não fazem samba feito cariocas, nem cariocas fazem frevos como pernambucanos, a gente não faz jazz como os norteCorezzi, americanos. E isso é uma grande Alex idealizador do Festival de Jazz qualidade”. Apesar da sintonia com seu lugar de origem, o jazz feito em Pernambuco não encontra muito espaço para divulgação. A gravação de discos é independente, os shows, esporádicos, e os lugares com noites de “jazz fixas”, raros. “Existe um público que curte jazz, que compra discos e DVDs, mas que simplesmente não encontra lugares onde possa ouvir jazz, analisa Miltinho Rangel, 55. “O espaço para o jazz não é dos melhores. Música instrumental é uma bronca no Brasil, porque as pessoas estão acostumadas à letra”, acrescenta Nando Rangel, que cumpre, desde outubro, temporada no UK Pub. A exemplo do bar, localizado em Boa Viagem, algumas casas investem em noites dedicadas ao jazz. É o caso do restaurante Lalatesh, no Shopping Paço Alfândega, onde Edson Rodrigues e Renato Bandeira tocam toda sexta-feira, desde novembro. No Pedra de Toque, em Parnamirim, a banda Don Corleone se apresenta, uma vez por mês, desde junho.
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A caixa preta do jazz
A mistura da música tonal européia com o modalismo dos cantos de trabalho dos escravos negros, acrescida das incursões impressionistas em estruturas harmônicas de grande tensão dissonante, constitui o núcleo essencial da música de jazz Jarbas Maciel
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Philippe Halsman/Reprodução
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e abríssemos a caixa preta da música de jazz – o que encontraríamos? Uma vibrante e vertiginosa base rítmica quase totalmente sincopada, que lhe garante seu inconfundível “balanço”; uma linha melódica caracterizada pelos contornos de uma canção geralmente de fácil compreensão, e bela, a que se acrescentam as infinitas variações do improviso de um solista; e, o que é, talvez, mais importante, um acompanhamento vazado basicamente na linguagem da harmonia tradicional espetacularmente estendida pelo uso das chamadas “tensões” (dissonâncias como a sétima maior e menor, a nona maior e menor, a décima primeira aumentada etc.) e notavelmente ampliada através da utilização de acordes tomados de empréstimo aos modos (dório, frígio, lídio, mixolídio e lócrio) ou, alternativamente, a um sem-número de escalas típicas (escalas pentatônicas, escalas de blues, escalas de bebop, escalas cromáticas, escalas de tons inteiros etc.). Mas a caixa preta não estará definitivamente aberta até que se esclareça a seguinte indagação: o que é, mesmo, que move a música de jazz – o que é que impulsiona para a frente a sua linha melódica e sua base harmônica associada, ao longo do “discurso” musical? Mais uma vez, o jazz surpreende, porque tanto a sua marcha harmônica quanto sua linha melódica seguem os mesmos princípios da harmonia tradicional . O grande Vincent D’Indy, no primeiro volume de seu monumental Traité de Composition – escrito quando ele era o diretor da Schola Cantorum de Paris –, mostrou como toda a base harmônica da música ocidental está contida no chamado “ciclo de quintas”, construído com base no modo jônico (o nosso modo maior atual). Na prática do jazz, a maioria dos músicos prefere seguir o movimento oposto, quer dizer, o do “ciclo de quartas”, que parece mais natural. Por exemplo: as cordas do violão, que é um instrumento de harmonia, estão afinadas em 4as sucessivas, do bordão mi em diante. Pois bem, o “motor” que move a harmonia, gerando as progressões de acordes que “acompanham” a linha melódica, é pura e simplesmente o acorde de sétima dominante, que consiste em um acorde maior (isto é, formado pela superposição de um intervalo de terça maior e de um intervalo de quinta justa) a que se acrescenta um intervalo de sétima menor. Miraculum in musica! É com esse acorde que os músicos geram suas progressões modulantes que, dependendo de sua imaginação criadora, alcançam níveis de complexidade e de satisfação estética notáveis. As balizas ao longo dessas “estradas” harmônicas são justamente os acordes como eles se sucedem no “ciclo de quartas”. Partindo do acorde de Dó (C), basta transformá-lo em um “dominante”, acrescentando-lhe uma sétima menor (C7), para ver que ele se move em direção à nota seguinte do ciclo, que lhe está um intervalo de quarta acima – o Fá (F). Da mesma maneira, acrescentando uma sétima menor ao F, quer dizer, transformando-o num “dominante” (F7), vê-se que ele “marcha” irresistivelmente para a nota seguinte – o Si bemol (Bb), e assim por diante. Os músicos dizem simplesmente que C7 “resolve” em F; F7 em Bb; Bb7 em Eb etc. Fiado nessas balizas, o músico de jazz “viaja” à vontade pelas harmonias construídas sobre os diversos graus da escala, em função da linha melódica da canção em cima da qual ele vai improvisar e, de olho – ou melhor, de ouvido! – na progressão harmônica associada à canção que será “comentada” (progressão essa que ele tem de saber de cor!), ele cria suas próprias linhas melódicas “paralelas”. Assim, o improviso, no jazz, é nada mais, nada menos do que... composição na hora! A mistura da música tonal européia correspondente ao período romântico (séculos 18 e 19) com o modalismo dos cantos de trabalho dos escravos negros, acrescida das incursões impressionistas (Debussy e Ravel) em estruturas harmônicas de grande tensão dissonante, constitui, portanto, o núcleo essencial da música de jazz – uma forma musical de grande poder, que haverá de varar os séculos. Quem viver, verá. • Continente fevereiro 2006
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AGENDA/MÚSICA
Na pisada do frevo Nóbrega lança Nove de Frevereiro, o primeiro de dois CD´s em homenagem ao frevo
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Música de exportação Alguns ingredientes têm feito da MPB um sucesso no exterior. Artistas responsáveis pelo transporte dos sons nacionais em suas bagagens estarão reunidos no Brasil para apresentar o diálogo da MBP com as novas tendências do pop planetário e a original equação de ritmo, harmonia e melodia, determinantes da bem-sucedida exportação cultural. Marcos Valle, Ed Motta, Bossacucanova, Céu, Clara Moreno e Kiko Klauss e Jaramillo são alguns artistas que apresentarão as novidades sonoras brasileiras, em Brasília. Três shows integram o projeto MPBC – Música Popular Brasileira Contemporânea, uma iniciativa do Centro Cultural Banco do Brasil. A direção artística e a curadoria são de Antonio Carlos Miguel (editor de música do jornal O Globo), e a programação ocorre entre os dias quatro e 19 de fevereiro no CCBB de Brasília. A divisão dos shows é a seguinte: Bossa & Eletrônica (Bossacucanova e a cantora Clara Moreno); Pernambucolômbia (cantor e compositor pernambucano Kiko Klauss e o guitarrista e produtor colombiano Carlos Jaramillo, com participação especial de Fred Zero Quatro); Bossa Renovada (Marcos Valle e cantora Céu). Depois de Brasília, o projeto segue para São Paulo e Rio de Janeiro, nos meses de abril e dezembro, respectivamente. A cantora Céu é convidada do Bossa Renovada
MPBC – Música Popular Brasileira Contemporânea. CCBB Brasília (SCES Trecho 2 – conj. 22 – Brasília-DF). Bossa & Eletrônica, 04 e 05/02; Pernambucolômbia, 11 e 12/02 ; Bossa Renovada, 18 e 19/02. Informações: 61. 3443.8891 / 3242.9805.
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Continente fevereiro 2006
Porto Musical – Convenção Internacional de Música e Tecnologia. Recife – PE. De 19 a 22/02. Informações: www.portomusical.com.br.
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Nove de Frevereiro, Antônio Nóbrega. Independente (apoio cultural: Chesf e Philips), preço médio R$ 29,50.
O Porto Musical ancora mais uma vez no Recife, promovendo uma convenção internacional de música e tecnologia. Gravadoras, produtoras, representantes de selos, profissionais de tecnologia da informação, instituições culturais e artistas estarão reunidos entre os dias 19 e 22 de fevereiro para discutir o assunto. Trata-se da segunda edição do evento, que propõe uma interação entre os profissionais do mercado musical e tecnológico por meio da realização de mais de 30 palestras com especialistas de todo o mundo, uma feira de negócios e showcases locais, nacionais e internacionais. Tudo acontecerá no Bairro do Recife. Um palco montado na Praça do Arsenal abrirá espaço para apresentação de nomes da música tradicional e contemporânea. Na Torre Malakoff, estará sediado o Trade Fair and Networking Hour, uma novidade deste ano, que consiste em espaço para que as pessoas marquem encontros, troquem idéias e façam negócios, com tradutores disponíveis no local. No Teatro Apolo e na sede do Porto Digital acontecerão as palestras do evento. A programação será distribuída em três plataformas – Go International!, Go Brasil! e Go Digital! A primeira aborda temas ligados à exportação de música brasileira; Go Brasil! propõe o inverso: mostrar os rumos do mercado para quem pretende lançar artistas no Brasil. Por fim, a Go Digital! trata da interação cada vez maior entre tecnologia e música.
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ultiinstrumentista apaixonado pelas manifestações culturais brasileiras, Antônio Nóbrega adianta as comemorações dos 100 anos do frevo com o lançamento de Nove de Frevereiro, o primeiro de dois CD’s em homenagem ao ritmo pernambucano. Seduzido pelo frevo, no carnaval de 1972, ele sempre se dedicou ao gênero musical, mas só o utilizou em seus trabalhos a partir do espetáculo Na Pancada do Ganzá (1995). Incluir seu violino nos frevos é uma outra história, que começou à época do Quinteto Armorial, e que se Arquivo Continente mostra viva – e magnífica – nas 15 faixas de Nove de Frevereiro. O resultado é um álbum primoroso, com elementos que o transforma num disco de frevo barroco. Tem violino com quinteto de metais, violino com conjunto de sax, com regional de cordas, com orquestra de frevo. As músicas, com novos arranjos feitos por vários compositores, a pedido de Nóbrega, fazem um resgate aos carnavais de outrora, num repertório que inclui frevos instrumentais e frevos cantados. “Último Dia/ Mexe com Tudo”, de Levino Ferreira (e arranjo de Clóvis Pereira), “Sonhei que Estava em Pernambuco”, de Clóvis Mamede (com arranjo de Maestro Duda), “A Pisada é Essa”, de Capiba (também com arranjo de Clóvis Pereira) são algumas das canções cujos compositores têm trajetória importante na criação da linguagem do carnaval e, em especial, do frevo. Elas dividem o “palco” com compositores mais recentes, como Cláudio Almeida (autor de “Transcedental”, com arranjo de Maestro Duda) e Wilson Freire (parceiro de Nóbrega na autoria de Garrincha, que tem arranjo de Zezinho Pitoco). A primeira vez que a palavra frevo saiu publicada em um jornal foi em 9 de fevereiro de 1907, no Jornal Pequeno, no Recife. Por isso a comemoração do centenário em 2007 e a escolha do trocadilho que dá nome à coletânea. O músico, que também é dançarino e cantor, inclui três vertentes do frevo no trabalho: frevo-debloco, frevo-canção e o frevo-de-rua.
Convenção musical e tecnológica
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Literatura inglesa: mistura doce-azeda Escritores estrangeiros mudam o cenário e dão verve “mundial” às letras, lançando a world-fiction inglesa: a nova literatura anglo-saxônica Fernando Monteiro Fotos: Bassouls Sophie / Corbis Sygma
Ben Okr
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Derek Walcott
oi-se o tempo em que a literatura inglesa se encontrava representada por brancos cidadãos geralmente de faces rosadas, vestindo tweed e bebericando sherry em clubes abafados onde corriam piadas sobre preferências sexuais e/ou fidelidades políticas de colegas britânicos até a medula, como Somerset Maugham, Compton Mackenzie, Graham Greene, Lawrence Durrell e outros. Citei esses quatro (e poderia citar E. M. Forster, Evelyn Waugh, Angus Wilson e outros) porque tal quarteto é, para bem ou para mal, profundamente inglês até na passagem comum pelos serviços de espionagem de Sua Majestade, que os empregou ora como elementos ativos, ora como agentes de ligação no vasto território das antigas colônias do Império - algumas das quais viriam a lhes fornecer preciosos temas de novelas e romances dessa passada época em que era, sim, visceralmente “inglesa” a english literature. Desde então, a perda de mandatos, protetorados e “zonas de influência” na África e na Ásia, mudou esse cenário, substancialmente, em vários planos, e ela, a literatura da metrópole, transformou-se na world-fiction de Derek Walcott, Michael Ondaatje, Vikran Seth, Ben Okri, Salman Rushdie, Kazuo Ishiguro e outros escritores de língua inglesa, reportando-se, nas suas obras, a países e contextos distantes ou, no mínimo, à Inglaterra multicultural de hoje, na qual pouco ou nada resta daquele “Reino
LITERATURA
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ex-sem-teto que a um – i kr O en B astigo Nas mãos de ar lendo Crime e C ndência gr pe fla a de av in um da st co l, ta ca (data, fa lícia britâni de Charing Cross o çã ta es na Unido” pré-1947 idade precariamente saída da po ) o! tig poderia Crime e Cas mun ”) –, Londres não novas da (logo ha s õe tin indiana), uma co aç en tu qu si s ai as m a ra o Guerra pa na (“porque era ene, menos de mei re m G ve m e ha qu ra a Segunda Grande G rn te de in y glês, a desagregação se parecer com a cit Caso totalmente in riais. um pe de im Guerra Fria e para as m Fi ad oc O rr de de a is de todas as angústia metafísic obel século depo da (N tt a ic co al típ seqüência, sempre, W a iv ek at er como narr ssaram o antilhano D guerra, que atrave sureado de ainda, Escrevendo sobre la pó – do ky s ds ce ro an B m ro ph s russo Jose apenas para se torr das peculiar do or la ad cu st us va ep de de 1992), o judeucr o ei ão rd aç os de bomba quecidos uito bem a situ lidos de Verdun es deixam de os an vá s in 1987 – definiu m ro o nt m ce co s os do uj ua “c culturas, narem antiq civilizações e das que as impede, “o , ky ds ro B a ar discutir unquerque. P is”. as a língua. em D de um ferroviário que gostava de m funcionar como ta a, rç fo a é o i, nã Filho egrarem, inna, 1959), mas fo com a (M , la ia de ér s ig então, de se desint te N an na e, eu a, ando seu o, Okri nasc teceu com Rom ra a Inglaterra, qu sustentada Platã é pa , Foi isto o que acon ão os aç an liz is vi ci do a , u de as estas époc e a com menos r Direito. Ele falo m da So tu es (O . ra a” Grécia helênica. N pa ri a fe ls ri bo pe repórter ovíncias, de sua pai ganhou uma is da sua família, ao ta por homens das pr en in nt co ). as 93 nç va 19 da dos sobre as an t: “Quando eu esta Maré, J. Brodsky, en (e nd tt pe co de al In W e de Th ês do gl e minha ter Davies, Desse modo, o in rmou em Direito fo , hoje, uma Hun se uz i od pa pr eu s) m do , ta os tei ci ra a Nigéria. Con outros estrangeiros dres, com sete an pa r on L lta vo de os a m ía nd e vi al” ciou qu , e eles literatura “mundi s da tal Commonwealth mãe anun cola de Peckham es da os ig de am da s ões e eu Ontário e outras ci a África. Lá tem le olônias para m ra -c ex pa ir às ve de do o ga nã le ma ‘Você a minha mantida pelo idio il, porém à mercê das disseram: s’. Aí eu disse para re vo ár s na am ág o or fr m de estava, mas nã tro”, as pessoas como um elo não on en “c er o ec ra an pa rm a, pe rn to ia las re viver na que quer mentes. O inglês de m navio, e fomos la visão de mãe nu pe os m do ar ca rc ifi ba od m m E uirei . de algum modo e pelas adiantou civil. Nunca conseg ra es er um gu st co da s o lo sã lo pe a, éria até a ec capazes de mundo da periferi nizados em Nig seres humanos são lo os co e os qu i tig Se an . s lo ui do que s aq formas dialetai e eu vi supera tudo s frotas esquecer la qu o pe s m da ré di po vi a, di is as co s trevas...” r qualquer busca das suas alm nos jardins faze orrer no coração da os oc a ad ss lh po pa e es qu s a õe in seph nh e pelos ca useum você imag ao país de adoção do polonês Jo M ar W al ri pe Im 14 anos e, De volta melancólicos do donou a escola aos da Torre de an ab ém al en B ra m pa e ve jo nd o Conrad, que se esco . es dr Lon
s britânicas (e do por seis editora sa cu re , ce an m ro Soyinka, u primeiro crever como Wole es ar nt te aos 17, concluiu se m ra da itora Longman que lhe recomen tempo depois, a ed algumas africanas, um lg A ). 86 to a ser 19 geriano de como adiantamen s ra lib 0 30 o prêmio Nobel ni as en ver infernos bora oferecesse ap talento para descre l ve aceitou o livro, em gá ne “i de o mance hecido negr na rua, com um ro u vi se i kr pago a um descon O , ou xotá-lo de estações esse dinheiro acab en a ia líc po a lh ve a raciais”. Quando os) e utaram, s para sair (dois an a recentemente exec rn te in a nç demorando demai ra gu se al agentes da an Charles. como aquela na qu ricista brasileiro Je et el africano o , os en m m ismo, o escritor or rr sem mais ne te tian a er e s da ished Road, livro qu m Fa Uma década ante e Th de o ss ce inglês) e tiros pelo su te prêmio literário an escaparia de tapas rt po im s ai m (o te r Prize s ruas da seguin na a ci conquistou o Booke ên ri pe ex a ndo do resume a su em 1991. Okri o Minotauro no fu vi , da vi da za re até a du asso humano, ou ac fr maneira: “Aprendi ao o çã en at ta áquina guém pres poço da rua. Nin fui, com a minha m eu o m co o, ad ac at me cê é tes que pudesse an , mesmo quando vo ue ng sa de ja ada e su de escrever rebent de ma coisa...” se parece com nada levantar e dizer algu da na s, liá A a. ad mud boa, são Sim, Londres está los que, em Lis pe s ita fe es çõ fic , são s uguesa) e, na Itália “antigamente”, na rt po a ic fr Á a (d ornados” do bugichamados de “ret os camelôs venden : s” io íb “l r po os ad Veneto osas lojas de Via genericamente tom xu lu a nd ai s da idades a de gangas nas proxim s da ajuda do sistem te en nd pe de os ra (noves fo seguridade social). rá sair alguém Dentre eles, pode ido em r nasc como um escrito ka), descenColombo (Sri Lan landeses dente de ingleses, ho é hoje e indianos, e que nto morador em Toro
Harrison David / Corbis Sygma
Kazuo Ishiguro
LITERATURA
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(Canadá). Ele existe, essa verdadeira súmula multicultural cujo nome se tornou bem conhecido dos brasileiros, depois do enorme sucesso de The English Patient no cinema. Estamos falando, é claro, de Michael Ondaatje, o autor do romance que a Editora 34 lançou, aqui, sem que ninguém prestasse atenção no título muito antecipado à estréia do filme do inglês Anthony Minghella. Ondaatje traz na carne a marca das contradições do personagem do indiano que é o único com alguma promessa exígua de felicidade, ao final do Paciente, um bom romance que até lembra os de E. M. Forster. O sapador moreno que desarmava bombas (também culturais?) pertencia à população de 300 milhões de pessoas nascidas naquela Índia sobre a qual, por volta de 1930, se impunha – segundo lembra Edward Saïd (palestino que teve de acomodar sua etnia nos EUA) – um ralo contigente de “apenas 4.000 servidores britânicos assistidos por 60.000 soldados ingleses e 90.000 civis (homens de negócios e missionários, na maioria)”. A duras penas, os países que se meteram na aventura colonial estão aprendendo a contabilizar ganhos e perdas políticas, econômicas e culturais que são, agora, o terreno mais propício tanto para homens-bombas quanto para livros originais (que também podem explodir no colo das consciências do cidadão comum, locomovendo-se de ônibus ou de metrô). Manoj Kesharwani / AFP
Vikran Seth
Christopher Felver/Corbis
Kathia Tamanaha / AE
Michael Ondaatje
Salman Rushdie
Voltando à literatura, veio de Calcutá um dos maiores fenômenos do mercado editorial inglês: Vikran Seth, 53 anos, que estudou en Oxford e fez dourado em Stanford (Califórnia), defendendo tese sobre a poesia chinesa na qual é especialista. Depois de Salman Rushdie (escorado menos no talento do que na onda da perseguição muçulmana movida contra seus Versos Satânicos), foi Seth quem recebeu a maior quantia já paga a um autor nãobritânico ou americano, como adiantamento de direitos autorais por um romance: nada menos que um milhão de dólares pelo caudaloso A Suitable Boy (1.349 páginas)... Alargando a geografia, deveria se incluir nesse rol de sucessos da língua inglesa “escrita por outros”, também o japonês Kazuo Ishiguro, nascido em Nagasaki (1955), a cidade tristemente famosa pelo castigo da primeira grande bomba terrorista da história, lançada pelos americanos sobre os “formigueiros” humanos da cidade natal de Ishiguro e da vizinha Hiroshima, mon amour. O terrorismo é velho como o mundo. Novos são os seus artefatos, e também a world-fiction inglesa implodindo o velho edifício da prosa de Albion, na qual só pode se encontrar talvez um Ian McEwan (autêntico talento britânico da gema), para rivalizar com os “estrangeiros” escrevendo a nova literatura anglo-saxônica com o sabor oriental inesperado da melhor cozinha doce-azeda. •
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POESIA
Poemas de
Dione Barreto A Despedida
A Despedida não me perguntes que a esta hora fatídica o juízo é pouco e a palavra, quase nada
há lírios nesta foto ainda possível. se puderes, grava
na kodak digital a imagem do tempo em que tu eras cá, deste lado de mim tudo é nordeste e mesmo quando os braços se abrem sobre o mapa o atlântico, sem piedade, tudo em mim devora
aqui, no meio de mim o coração é terra improdutiva mas os lírios estes que apuram o afeto terminal deitam sobre mim um olhar e só por eles faço este poema
O Desespero
O Desespero
Para Alfredo Montebelo
tu sabias que não era certa esta volta desesperada menos certo ainda este desmanche do meu corpo sobre o teu sem alma alguma tu és o meu amor por isso somos óbvios no poema e mais não posso que servir ao meu consolo não me peças civilidade nem comedimento
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diz-me: que personagem ousaste pôr no meu lugar quem vai cuidar de ti, como eu inclusive nas horas burocráticas
e volta que eu sem ti sou tão somente urbanidade utópica
não quero nada de ti quero a ti, ainda e longamente esquece a partilha do que julguei reuníssemos em dobro
assim é, se a ti parece este amor incapaz de eternizar-se
volta para que eu possa ler cecília meireles sem a dor desta ausência ficaste com o melhor de mim e talvez transfigurar tão suficientemente que dou-me por satisfeita se conseguir a perda de tudo aquilo a que chamei de amor salvar-me
POESIA
Teu Aniversário
Teu Aniversário
sempre quis fazer-te umas palavras nesta data mas não palavra apenas, jogada ao vento. talvez poema desses que plantasse o homem que és e que a minha alma habita um telegrama, então. mas telegrama é notícia não é palavra que arde a não ser que construísse uma canoa
e remasse para onde os telegramas estão chamando. mas uma canoa não atravessa o mar, só o poema de drummond
não posso dar-te um presente embrulhado em papel colorido não posso. por causa do mar que me quer longe de ti e por uma incapacidade de juntar coisa e sentimento
– presente buscado em loja não serve para ti. ouso dar-te o que distância alguma ou sequer o gesto permite significar pois que a distância qualquer é reencontrar-se o meu presente é o que sinto palavra que atravessa o oceano.
de vista O Sonho Golpe Golpe de vista
O Sonho
É longe o tempo do sonho E até eu sou longe no que digo
da varanda do meu apartamento recife é eterno. quase moderno
o sonho era a casa e eram duas e um grande vão expunha os objetos da casa ainda por desvelar
há poesia em tudo: da elegância planar à desigualdade social
de um lado, cadeiras de outro, cadeiras a mais onde sentar tão pouco corpo entrelonga matéria vazia?
– tirante o fato de que estou no décimo sexto andar e não enxergo bem à distância – mas os que acordam cedo, chafurdados no cidade-subúrbio não enxergam como eu vivem.
já fui mais sonho e não memorava a mim – desprecisava disso. eu, era o tempo e era o mundo a casa agora são filmes que assisto sem lágrimas a carregar por dentro
Dione Barreto é poetisa paraibana e vive no Recife. Tem quatro livros publicados: Círculo Vazio, Feitiço do Silêncio, Do Amor e suas Perversidades e Desiguais.
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AGENDA/LIVROS
Negritude brasileira Antologia de 1950 é relançada e instiga a necessidade de continuação do assunto
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a ficha catalográfica de Antologia do Negro Brasileiro, informa-se que a obra contém “de Joaquim Nabuco a Jorge Amado, os textos mais significativos sobre a presença do negro em nosso país”. Trata-se de uma vasta coletânea, reunindo 157 textos, de ficção a ensaios, de documentos oficiais a correspondência pessoal. Reúne nomes como Nina Rodrigues, Artur Ramos, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Mario de Andrade, José do Patrocínio, Solano Trindade, Manuel Diegues Junior, Castro Alves, Donald Pierson, Jorge de Lima e outros. Lançada em 1950 pelo folclorista baiano Edison Carneiro (1912-1972), é um esforço respeitável de registro da negritude brasileira, sem critérios bem definidos: traz de poemas a decretos, interpretação histórica e muito registro folclórico. Também peca pela falta de indicação mais detalhada das fontes do material. No entanto, é obra fundamental, escrita por negros, brancos e mulatos, enfocando um dos aspectos mais importantes da nossa formação nacional, a participação dos escravos e seus descendentes. Não é trabalho neutro. Carneiro proclama no prefácio sua posição em prol da igualdade das raças e na defesa das liberdades democráticas no País. Tem momentos pungentes, como a descrição do final miserável da vida do grande abolicionista negro José do Patrocínio e a carta de Henrique Dias ao rei de Portugal pedindo para ser tratado com mais respeito pelo governador Francisco Barreto. Merece uma continuidade, incorporando a produção pós-50 sobre o tema. (Homero Fonseca) Antologia do Negro Brasileiro, Edison Carneiro, Editora Agir, 510 páginas, R$ 55,00. Continente fevereiro 2006
Assombrações O poeta cearense, radicado no Recife, Majela Colares estréia na ficção com o pequeno volume de contos, O Fantasma de Samoa. São 11 histórias curtas, em linguagem econômica, que recriam o universo fantástico das histórias de assombrações ouvidas na infância, no sertão do Ceará. Entretanto, o autor assume um distanciamento que torna as narrativas curiosas, ao alternar uma visão “de fora” ao contexto interno dos contos. Um clima onírico perlustra o livro, arraigado no imaginário rural do Nordeste. O Fantasma de Samoa, Majela Colares, Editora Calibán, 84 páginas, R$ 17,00.
Sob o cotidiano A certa altura, o narrador-personagem de O Viúvo especula sobre a existência de “ações humanas com formas e desenhos anormais”. Mas é ele mesmo quem cria ou revela, sem pausa, através de sua obsessão pelo raciocínio e de sua sensibilidade lingüística, o desenho anormal sob as coisas mais cotidianas. A metáfora se torna um meio de matização de objetos, ambientes e sensações, e dramatiza ao nível do detalhe a história de alguém que aceita, pouco a pouco, o convite à incomunicabilidade que a morte de alguém próximo lhe traz. O Viúvo, Ronaldo Costa Fernandes, LGE Editora, 151 páginas, R$ 25,00.
Em busca do eu Os poemas de Arqueolhar compartilham de uma causa primeira: o reencontro, vivido de fato pelo autor, com um brinquedo de infância e com a história lírica nele inscrita. A lição de poesia que essa experiência enseja vai se repetir ante uma carta antiga, um quintal, uma vitrola: como a madeleine de Proust, objetos, lugares e pessoas precipitam o eu-lírico nos campos difusos da memória, fixados então numa linguagem simples, sem artifícios que saltem à vista, e cujo maior mérito está menos na musicalidade que no tom evocativo, dotando cada coisa de uma aura subjetiva. Arqueolhar, Alexandre Marino, LGE Editora, 106 páginas, R$ 20,00.
Poesia conceitual
“Minusculofilia mórfica”, “Pós-modernismo e arte mole”, “Analfas morfossintácticos”, “De ‘Lebenswelt’ a ‘Schnecke’” são títulos que já revelam um tanto desse livro de poemas. A impregnação conceitual e o tom explicitamente combativo dão a tônica dos 24 sonetos escritos pelo filósofo, gramático, filólogo e poeta. São sonetos-comentário que destilam o pensamento e a cultura atuais, baseados, temática e estilisticamente, em uma razão crítica sem concessões. Não há lugar mesmo para a sugestão, pois “Pontilhismo de letras há nos restaurantes”, não em poemas. Poética em Razão Crítica, Amadeu Torres, Escrituras, 62 páginas, R$ 16,00.
AGENDA/LIVROS Visitação variada
Existem visitas ansiadas e visitas inconvenientes, visitas de surpresa e visitas que falham, visitas rotineiras e visitas que provocam grandes mudanças. Também, ao invés de se receber, pode-se fazer visitas: a alguém, a algum lugar, até mesmo a uma lembrança; visitas devidas, visitas cobradas, à maternidade, ao cemitério, a um site na internet. Foi pensando nas diversidades deste ponto de encontro que a Barracuda pediu a 13 escritores brasileiros que escrevessem contos sobre o tema. A edição é muito bem cuidada, com desenhos de Wagner Malta Tavares que, mais que ilustram, criam novos sentidos de visitação. A Visita, Vários Autores, Editora Barracuda, 176 páginas, R$ 23,00.
Visões do Brasil Assim como durante certo tempo Gilberto Freyre esteve estigmatizado por sua posição favorável ao golpe militar de 64, o sociólogo carioca Oliveira Vianna, por sua aderência a um pensamento autoritário que inspirou o Getúlio Vargas do Estado Novo, permanece alijado de uma ampla análise sobre a formação do Brasil. Entretanto, como tal análise tem que passar pelo pensamento de Freyre, terá que também incluir o seu, ao lado das visões de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. É o que sustenta este livro, defendendo um diálogo despido de preconceitos entre os grandes intérpretes do Brasil. O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade, Maria Stella Martins Bresciani, Unesp, 501 págsinas, R$ 59,00.
Poesia instigante O poeta carioca Renato Rezende faz, em seu novo livro, Ímpar, um percurso de dissolução do eu em que se imbricam a tautologia de Alberto Caeiro, o ser-no-mundo de Heidegger e as teorias orientais do não-ser. É, entretanto, uma poesia clara, sem nenhum tipo de hermetismo. E o que poderia resvalar para o niilismo, na verdade é desejo de purificação e a busca de uma percepção iluminada do mundo. Ao mesmo tempo, há uma materialidade crua em certos versos que dá à realidade uma presença impositiva. Ímpar, Renato Rezende, Lamparina Editora, 96 páginas, R$ 21,00.
Edição rica
Uma das melhores revistas de arte e literatura do país, a Coyote está com nova edição nas livrarias. Um destaque é a poesia contemporânea do escocês Edwin Morgan, bem traduzido por Virna Teixeira. Outro é a tradução de Alberto Mussa para poemas compostos por mulheres árabes beduínas, que viveram entre a segunda metade do século 6 e a primeira do século 7. Dois momentos de reflexão: o artigo de Cláudio Daniel sobre a poesia brasileira e um dossiê sobre Paulo Leminski. Também em primeira mão, a tradução de um texto do norte-americano David Foster Wallace, considerado o “novo Joyce”. Coyote, Coyote Edições/Iluminuras, 52 páginas, R$ 10,00.
Arte com bula Francesa explica a arte contemporânea a partir de Duchamp, Andy Warhol e Leo Castelli
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arte contemporânea tem sido uma pedra no sapato de críticos, jornalistas, artistas mais tradicionais e também do público em geral. Chata, incompreensível, pulha, são alguns dos adjetivos que muita gente usa para se referir a ela. No entanto, cada vez mais jovens artistas se entregam a essa nova expressão que parece hegemônica, hoje, em todo planeta. De tal modo que, bem ou mal, se faz necessário primeiro entendê-la para, depois, aceitá-la ou rejeitá-la. A jornalista francesa e professora de filosofia Anne Cauquelin propõe-se a guiar o público num pequeno livro introdutório sobre o assunto. Em primeiro lugar, ela diz que não se pode mais utilizar as referências estéticas da arte moderna para a arte contemporânea, que exige do espectador um novo modelo de compreensão. Para explicitá-lo, utiliza três personagens fundamentais para a nova arte: os artistas Marcel Duchamp (1887-1968) e Andy Warhol (1928-1987), e o galerista Leo Castelli (1907-1999). O primeiro, por criar o conceito de que a arte é um sistema de signos entre os demais que independem de qualquer estética. O segundo, por considerarar a obra de arte como um produto de consumo igual a qualquer outro. O terceiro, por ter criado uma rede de comunicação internacional para valorizar a antiarte que os dois artistas anteriores privilegiaram. A partir desses três pontos, Anne defende a arte contemporânea para além dos valores estéticos e morais. É aceitar e se integrar ou rejeitar e espernear. (Marco Polo) Arte Contemporânea, Anne Cauquelin, Martins Fontes, 70 páginas, R$ 29,50.
Assassinatos dantescos Na Boston recém-saída da Guerra de Secessão, em que o Norte lutou contra o Sul dos Estados Unidos, defendendo a libertação dos escravos, um grupo de intelectuais se reúne em torno do poeta Henry Wadsworth Longfellow, que faz a primeira tradução de A Divina Comédia, de Dante, para ser publicado em terras da América. Quando uma série de assassinatos, repetindo os castigos do Inferno dantesco, começam a acontecer, o próprio Longfellow, o médico Oliver Wendell Holmes, o jornalista James Russel Lowell e o editor norte-americano J. T. Fields, têm que abandonar suas torres literárias para descobrir quem está por trás das trágicas mortes. Utilizando personagens e circunstâncias reais, o jovem Matthew Pearl criou um romance engenhoso, que mistura literatura policial com perfis biográficos de teor psicológico, história e exegese literária, numa trama que se desdobra em surpresas até o final. (MP) O Clube Dante, Matthew Pearl, Editora Francis, 408 páginas, R$ 39,90. Continente fevereiro 2006
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Tempo e Arte na pindaíba "Meus sonhos estão morrendo" (Dona de casa, pobre, de Salvador. Jornal A Tarde, 08.03.98)
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unca acreditei que a miséria favorecesse a Arte ou que fosse uma fonte rica de temas. A riqueza não impediu que Goethe escrevesse uma obra gigantesca. Coisas assim: “Sobre todos os cumes,/ quietude./ Em todas as árvores mal se percebe/ um alento./ Os pássaros emudecem na floresta./ Espera só um pouco, breve/ descansarás também.” Sempre desconfiei de que aqueles que atribuem à pobreza do artista a excelência de sua arte estão em busca de motivos para não ajudá-lo. A miséria é um tema como Continente fevereiro 2006
outro qualquer: a sombra de uma cadeira, a bunda de uma mulata. O que interessa em Camões é sua estética, não a sua pindaíba ao voltar da Índia, onde ganhou muito dinheiro e o gastou como bem quis, e o que sobrou o mar levou. Que foi sepultado em cova rasa da qual não ficou vestígio, eu acredito. No entanto, naquela história de que chegara a um extremo em que mandava o escravo Jáo (Antonio de Java) sair à noite para mendigar comida, não acredito mais. Quem me tirou aquela mentira da cabeça, colocada por não sei mais que biógrafo, foi o assombroso
MARCO ZERO
Camilo Castelo Branco, um verdadeiro chato, como crítico. Vejam, meus milhões de leitores, o que diz Camilo, no prefácio de 1880, à sétima edição do livro de Almeida Garrett: Camões: “Eu creio tanto na mendicidade de Homero como nos peditórios noturnos de esmola de Antonio de Java para sustentar Camões (...) É a lenda da miséria em que se comprazem as imaginações sombrias”. Eu cheguei a chamar de cretino o rei D. Sebastião, por ele ter concedido a Camões, por exaltar em suas virtudes reais, n’Os Lusíadas, a tença (pensão periódica, para comida) de 15$000 réis. Camilo me mostrou que a quantia era significativa, pois um tal de Diogo Botelho, que brilhou na África e na Ásia, recebia 12$000 réis. Quebrei a cara porque as enciclopédias consideram aquele dinheiro “irrisório”, e me deixei levar pelo soldo dos soldados rasos: 2$500 réis, em Portugal do século 16. Não sei como me tornei escritor. Sempre com dois expedientes durante quase toda a minha vida, creio hoje que a matéria-prima da Arte, qualquer arte, é o tempo. Neste mundo maluco, onde o capitalismo triunfou, só se tem acesso ao tempo com muito dinheiro ou... aposentadoria. Sei que há poetas pobres que se recusam a ter um emprego, para dedicar-se à Poesia. No entanto, perdem todo esse tempo mendigando. Podem, ainda, no que lhes dou toda a razão, tomar poerradas de porres, usando o tempo como tira-gosto, mas perde horas e horas com a ressaca, ou atrás de mais dinheiro para beber. Claro que o tempo não faz o artista, mas este precisa daquele para desenvolver seu potencial. Entre os poetas significativos do Brasil, está Augusto Frederico Schmidt, o único considerado rico, que ficou marcado pelos versos longos e sonetos em verso branco. Tenho dele o Poesias Completas (1928-1955) publicado pela José Olympio, nos seus gloriosos tempos. Já que citei o alemão Goethe, obrigo-me a citar um brasileiro: “A tristeza da tarde vem das agonias diárias,/ Dos pequeninos doentes, dos amorosos infelizes, das lágrimas dos pobres”. A Arte é democrática, mas só pode mover-se com o tempo. Ah! Nas sarjetas geladas, onde cambaleia o poeta Edgar Allan Poe. O poeta pode tomar aguardente, cocaína, crack, ecstasy, ou fumar maconha até fumaçar pelos ouvidos, a Arte pouco está ligando. O sujeito pode ser banqueiro ou ilustre calunga de caminhão, se tiver talento e tempo, a bactéria da Arte faz deles hospedeiros oficiais.
Quando jovem, fui marcado, com meus amigos e ex-amigos poetas, pelo livro do dinamarquês Knut Hansun, Fome. Éramos, menos um, uns “pés-rapados” de Jaboatão, no Grande Recife. O anti-herói de Hansun era um escritor em começo de carreira, que zanzava pelos bancos de praça, com fome, e tendo alucinações. Quando uma revista, por fim, publicou um conto dele e pagou-lhe uma ninharia, ele comprou – o dinheiro só dava pra isso: uma torta ou um pastelão (não lembro), e se viu psicologicamente forçado a colocar a iguaria ao lado de uma criança que desmaiara faminta. Era o nosso anti-herói perfeito, e como estávamos na fronteira da merda dos 20 anos, atrás de emprego, o problema da alimentação era diário, crucial. Não sei se para eles, mas, para mim, Fome, que deu ao autor o Nobel, tornou-se um livroícone. Com fome se pode fazer arte, sem tempo, não. Às vezes, nas minhas tolas elucubrações, chego a pensar que o talento desperta mais inveja do que o dinheiro. Os fãs-clubes são, na verdade, umas quadrilhas de invejosos. Quando o vírus fascista os ataca, pode nascer o assassino de John Lennon. Neste mundo cretino, até um mendigo tem inveja do outro que tem um bom “ponto” na calçada. Tempo e distância deste mundo, eis uma boa pedida. Aqui mesmo, neste lugar, caí de pau nos prêmios literários de 1, 2 ou 3 mil reais. Tais quantias, geralmente financiadas por medíocres intelectuais de classe média alta, não passam de gorjetas num hotel de luxo de Nova York. Histórias de pobreza de artistas poderiam encher muitos volumes. Não estou interessado propriamente nisso, mas no destino daqueles, como eu, que tiveram de trocar o seu tempo por comida e ter de escrever, nas brechas, nos dias destinados ao descanso. Eis um dos motivos por que todos os poetas e artistas clássicos tinham dotes da aristocracia, cujo código de honra vedava o trabalho comum, pois o trabalho era algo indigno de um nobre. É certo que muitos dos artistas comiam com os criados, mas tinham todo o tempo do mundo para desenvolver sua arte: de Simônides (séc. 6 a.C.), que era protegido pelos arcontes que dominaram Atenas, até Camões, que citou D. Sebastião n’Os Lusíadas e recebeu em troca aquela tença. Camões deixou uma obra enorme. Teve gênio e tempo para escrevê-la. Mas acho que Camilo exagerou, pois a pensão era irregular, sempre fora de tempo, como tudo que vem do governo. Até hoje. • Continente fevereiro 2006
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ARTES
Fotos: Divulgação
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Braque
O outro lado do Cubismo
Atalante, escultura de Braque em metal laqueado a ouro, com base em mármore negro
Exposição mostra obra do pintor francês, explorando também suas esculturas e jóias, e dando ao artista a visibilidade ofuscada por seu amigo Picasso Guilherme Aquino, de Milão
ARTES
O
Cubismo é filho de dois pais: o espanhol Pablo Picasso e o francês Georges Braque (1882-1963). E se um cubo tem seis faces, três devem ser pintadas por um e as restantes pelo outro. Talvez, uma pincelada a mais faria justiça a Braque, o primeiro a perceber a ponte entre o Impressionismo e o futuro Cubismo, “desconstruída” por Paul Cézanne (1839-1906). A deformação da prospectiva foi a senha para se dar um passo adiante na arte de representar o espaço tridimensional numa superfície plana. “Braque, impregnado com a arte de Monet e Boudin, compreende logo as concepções de vanguarda da obra de Cézane que, nos últimos anos de vida, desestrutura as paisagens, afirma Armand Israël, curador da mostra Metamorfose, de Georges Braque, na Fundação Luciana Matalon, em Milão. Em uma das suas cartas a um jovem pintor, Cézanne aconselhava-o a olhar para natureza e traduzi-la em esferas, cones e cilindros, quer dizer, “pensar” o elemento visível decomposto em figuras geométricas. No verão de 1906, Braque participou de uma retrospectiva em homenagem póstuma a Cézanne. Em apenas um ano e meio ele viajaria três vezes a Estaque, cidade muito freqüentada por Paul Cézanne. Entre dezembro de 1907 e junho de 1908 nasceu a sua primeira obra cubista, Le Grand Nu, pouco depois de Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, realizada entre 1906 e 1907. Ambos os pintores tinham captado a mensagem pictórica de Cézanne e, por trilhos paralelos, acabaram
O artista plástico Georges Braque Abaixo, Le Grand Nu, primeiro quadro cubista do francês
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ARTES Imagens: Reprodução
Homem com um Violão, de Braque
Juntos, Braque e Picasso desenvolveram o cubismo analítico, que multifaceta o objeto e o distribui em diferentes pontos de vista sobre a tela. Cada fragmento de um todo, girado sobre o próprio eixo e reagrupado em seguida, forma uma nova imagem
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O Acordeonista, de Picasso
se encontrando em Paris. Os dois foram apresentados em abril de 1907, pelo poeta Guillaume Apollinaire. Juntos, desenvolveram o cubismo analítico, que multifaceta o objeto e o distribui em diferentes pontos de vista sobre a tela. Cada fragmento de um todo, girado sobre o próprio eixo e reagrupado em seguida, forma uma nova imagem, carregada com símbolos da imagem de origem. Um mosaico formado por ângulos e formas ímpares e díspares, aparentemente sem nexo, vai criando uma nova interpretação da realidade. Georges Braque se aproximava do Abstracionismo, quando decidiu incorporar elementos externos à pintura. Este movimento foi a foz natural do cubismo sintético. Em 1912, o papier collé ganha espaço nas telas do artista. A técnica dos papiers-collés permite misturar numa mesma obra o Abstracionismo com o figurativo e vice-versa. Neste momento, Braque ilumina com força ainda maior o movimento que nem ele e nem Picasso procuravam, mas que apenas “encontraram”, como admitiriam mais tarde. Segundo o historiador de arte e
ARTES
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Fotos: Divulgação
Escultura Hermes, de Braque
Escultura Helios, de Georges Braque, com um grande topázio ao centro
grande amigo de Picasso, Douglas Cooper, “Braque se antecipou a Picasso na execução de esculturas de papel”. “Muitos fatos e vários documentos finalmente desmonstraram, de maneira incontestável, que Braque foi o pioneiro em realizar esculturas-construções cubistas”, afirma William Rubin, autor do livro Picasso e Braque, l’Invention du Cubisme. Uma das obras de Braque, expostas na mostra de Milão, é a escultura Hermès, feita no tempo em que o pintor estava mergulhado no cubismo analítico. Primeiro ele a sintetizou em guache e somente muitas décadas depois realizou a escultura. O artista francês retomaria a produção das esculturas, interrompida em 1931, apenas três anos antes da sua morte. Ocorre então o período chamado de “Metamorfose”, daí o nome da mostra milanesa, entre 1961 e 1963, ano da sua morte. Entre as peças de menor dimensão, estão jóias usadas por personagens como Jackie Kennedy e Grace Kelly. As pedras preciosas revelam a ligação
"Muitos fatos e vários documentos finalmente desmonstraram, de maneira incontestável, que Braque foi o pioneiro em realizar esculturasconstruções cubistas", afirma William Rubin, autor do livro Picasso e Braque, l’Invention du Cubisme
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Fotos: Divulgação
Escultura Hermes, em vitrine parisiense
Anel Hecate, de Braque
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a mais entre o artista e Heger de Loewenfeld, que também era dono de uma mina na ilha de Madagascar. Um grande impulso ao trabalho de ourivesaria e artesanato puro veio da parte do ministro da Cultura da França, André Malraux, encantado com a delicadeza e a criatividade das peças que eram levadas a ele pelas mãos de Heger e do próprio Georges Braque. “Quero cem jóias para uma exposição”, disse ele em setembro de 1962. Georges Braque não tinha tempo a perder e, para “construir” o período apoteótico de sua obra, iniciou uma fértil produção. “Não se deve apenas mostrar aquilo que se pinta; se deve tambem tocar”, afirmou o artista para quem a escultura preenchia o espaço assim como a música ocupava o silêncio. •
AGENDA/ARTES
Cajus, reticências...
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Jobalo
Telas do atista plástico Jobalo propiciam variadas interpretações
“É
uma atitude para não ter que dar muita explicação do que estou dizendo com a mão, com o braço, com o estômago”, simplifica o artista plástico Jobalo, sobre a mostra As Rosas Não Falam. Residindo em Milão desde 1997, ele está de passagem pelo Brasil e expõe na Dumaresq Galeria de Arte. Em poucas palavras, adianta que suas telas apresentam estampas e gravuras abertas às mais variadas interpretações. “Se faço um caju, ele não aparece tropical como de costume, mas aliado às lágrimas, as quais podem ser de tristeza ou de alegria. São ‘cajus reticências’, ou seja, imagens que sugerem significados e levam o espectador a questionar a representatividade de ícones das mais variadas regiões”, define. Na tentativa de traduzir em poesia conflitos pessoais e universais, Jobalo tam-
Áreas Nuas, técnica mista sobre tela, 1,35 x 70cm
Lágrimas, técnica mista sobre tela, 1,40 x 2,10cm
bém destaca a presença das flores em suas telas. Entre outras espécies, aparecem os lírios indicando louvação, seja de morte ou de vida. A mostra faz parte de uma série de trabalhos iniciados em 2003 e se utiliza de signos da contemporaneidade para reproduzir reflexões.
As Rosas Não Falam, de Jobalo. Dumaresq Galeria de Arte (Rua Professor Augusto Lins e Silva, nº 1033, Boa Viagem – Recife-PE). Até 25 de fevereiro. Fone: 81. 3341.0129.
Reflexos na areia
Humor em bronze
As areias de Copacabana foram transportadas para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O artista plástico Roberto Cabot fez uma parceria com o escultor das praias cariocas, especialista no uso da areia, Isaac, para criar a instalação Museu-Praia-Reflexo. Trata-se de uma pintura na parede do foyer do Museu, em composição com um reflexo desenhado com areia no chão e adicionado da continuação do reflexo natural do piso de granito. A obra mistura planos: o físico do museu, o virtual do reflexo e a praia por meio da areia. A alquimia multidimensional revela a complexidade do espaço perceptivo no qual vivemos.
Zico, Pixinguinha, Noel Rosa e Cartola, traçados com toque de humor pelo cartunista Lan, ganharam volume e transformaram-se em esculturas de bronze pelas mãos do artista plástico Wellington Fernandes. Ao todo, 15 esculturas retratam os mais expressivos tipos cariocas criados por Lanfranco Vaselli e compõem a mostra Sempre Carioca, em cartaz até o dia quatro de março na Casa França Brasil, no Rio de Janeiro. Nascido na Itália, Lan acumula prêmios de caricaturista desde 1958, quando foi considerado um dos cinco mais importantes do mundo, na Inglaterra. Esse é o início de uma nova fase para o cartunista, que, inspirado nas esculturas criadas por Wellington Fernandes, desenvolveu uma série abstrata de pastéis, revelando um lado “mais artista plástico”. Seis mulatas, uma lavadeira, outra com a lata d'água e quatro batizadas de Olívia, Marisa, Isaura e Isabel ilustram o uso inédito do pastel.
Divulgação
Museu-Praia-Reflexo, de Roberto Cabot. Museu de Arte Moderna – MAM Rio de Janeiro (Av. Infante Dom Henrique 85, Parque do Flamengo, Rio de Janeiro-RJ). Até 2 de abril. Fone: 21. 2240.4944.
Divulgação
Sempre Carioca (Esculturas de Wellington Fernandes / Desenhos de Lan). Casa França-Brasil (R. Visconde de Itaboraí, 78, Centro, Rio de Janeiro-RJ). Até 4 de março. Fone: 21. 2253.5366. Informações: www.casafrancabrasil.rj.gov.br. Continente fevereiro 2006
Pixinguinha: caricatura, escultura e pastel
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Impasse da antiarte Manifestações que dispensam os suportes tradicionais da expressão artística e, com eles, as próprias linguagens da arte, dificilmente podem ser tidas como obras de arte
O
crítico de arte não é como um juiz, que emite seu veredicto baseado nos artigos da lei. Do juiz espera-se impessoalidade a fim de que seus sentimentos e pré-juízos não interfiram na apreciação da coisa a ser julgada. Já, do crítico, não. Como pedir impessoalidade a alguém que julga a partir da emoção que a obra lhe transmite? Certamente, a emoção artística implica, da parte do crítico, uma visão teórica, uma compreensão do que seja ou não seja uma obra de arte, mas jamais partirá ele de normas e princípios em que deverá enquadrar a obra que tem diante dos olhos. Há, sem dúvida, críticos, cuja visão será mais ou menos abrangente, mais ou menos flexível, mas nunca poderá ele demonstrar, como um juiz no tribunal, que o autor desta ou daquela obra está indiscutivelmente errado ou certo. Seu juízo é sempre parcial e, por isso mesmo, discutível. Isto vale tanto para o crítico que, por exemplo, questiona o valor artístico de determinada tendência de vanguarda como para aquele que a defende, já que nem um nem outro tem condições de demonstrar de modo indiscutível o acerto de sua opinião. A tendência atual, conhecida como arte conceitual ou “arte contemporânea”, cujas primeiras manifestações surgiram na segunda década do século 20 com as mani-
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festações dadaístas e, mais particularmente, com os readmades de Marcel Duchamp, constitui a mais radical ruptura com os conceitos artísticos, a ponto de ter sido designada por seu inventor como “antiarte”. De fato, as manifestações que dispensam os suportes tradicionais da expressão artística e, com eles, as próprias linguagens da arte, dificilmente podem ser tidas como obras de arte. Isso não significa que não expressem nada, que não tenham qualquer significação. A questão é saber se tal modo de expressão pode ser considerado arte. Não resta dúvida de que, para os defensores dessa tendência, tal questão já não tem cabimento: para o antiartista, o que até aqui se chamou de arte não importa; o que vale é a expressão pura e simples – e tudo é expressão. Isso que, de meu ponto de vista, tiraria qualquer sentido a tal escolha (se toda e qualquer expressão é arte, nada é arte), constitui a base teórica da antiarte. Por isso mesmo entendo que essa negação da arte pela afirmação da antiestética expressará, talvez, a rejeição de uma concepção da existência como invenção de um universo significativo fundado no imaginário e na fantasia. Não por acaso, a maioria das expressões anti-arte apoia-se na banalidade do cotidiano e a ela remete ou a elementos materiais destituídos de transcendência.
Fotos: Wilton Montenegro
TRADUZIR-SE
Performances Alviceleste (2003) e Lavou a Alma com Coca-C Cola (2003)
Tomemos como exemplo a arte de Márcia X, de que vi recentemente uma retrospectiva aqui no Rio. Uma de suas “obras” consistiu em mergulhar numa banheira cheia de coca-cola; uma outra era ela manipulando, em condutos de vidro transparente, tinta líquida azul. Tanto num caso como noutro, está evidente o caráter gratuito da atitude. Que significação pode ter mergulhar numa bacia cheia de refrigerante diante de meia dúzia de espectadores? Trata-se, sem dúvida, de uma ação inusitada, mas que nenhuma conseqüência teve (ou terá), seja na vida cultural ou na vida social. O mesmo pode dizer-se da manipulação de tinta líquida. Acaba a exibição, acabou-se tudo. Disso sobrarão, como sobraram, fotografias, um modo de registrar um fato que em si não tem qualquer importância. Alegar que os espetáculos de teatro e dança também são efêmeros, seria desconhecer a natureza estética daquelas duas formas de expressão. Quando se trata das artes plásticas ou da literatura, nenhuma importância tem se o pintor ou o escritor trabalhou em pé ou sentado, se estava nu ou vestido ao pintar ou escrever: o que importa é a obra que resulta de seu trabalho. Já na antiarte, que nega o objeto artístico, o que importa é a performance. É verdade que há antiartistas que produzem objetos, mas não objetos estéticos, resultantes do domínio técnico da
linguagem artística; são, quase sempre, objetos não-estéticos, às vezes na linha dos read-mades. Cabe então indagar o que leva uma pessoa, com vocação artística, a consumir sua vida em atos gratuitos, inteiramente desvinculados uns dos outros, efêmeros por natureza e sem qualquer peso cultural. Essa mesma artista empregou grande parte de seu tempo a criar cenas eróticas com bonecos e a fazer do falo um tema constante. Numa época em que a repressão sexual já perdera força e importância, voltar-se tão insistentemente para tal temática indica pobreza de imaginação e superficialidade no trato dos assuntos. Ao dizer isso, não emito um juízo estético. Apenas constato o que é óbvio, situando-me no mesmo plano nãoartístico em que a autora de tais obras se colocou. Certamente, não se podem levantar questões estéticas em face de expressões que, por opção, as excluem. Se diante de uma obra de Morandi ou de um Pevsner, não teria cabimento adotar uma análise psicanalista ou sociológica em lugar da apreciação estética, no caso da antiarte, isto é perfeitamente cabível. Resumindo, diria que tais manifestações são expressão de um impasse em que se encontram muitos daqueles que, negando a obra de arte, não sabem o que pôr em seu lugar. • Continente fevereiro 2006
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ARQUITETURA
A casa do pobre homem rico A tendência de tratar a decoração de interiores como uma obra de arte tira dos moradores a humanidade necessária ao conforto e aos gestos espontâneos do dia-a-dia Fernando Diniz Moreira
S
empre que uma mostra de decoração tem lugar em nossa cidade, lembro-me de um pequeno artigo de Adolf Loos publicado em 1900, intitulado “O Pobre Homem Rico”. Nesse artigo, Loos conta a parábola de um rico vienense, um próspero e feliz homem de negócios que se sentia um tanto negligente em relação a assuntos artísticos. Visando preencher a vida de sua família com arte, encomendou ao mais sofisticado e famoso arquiteto da cidade o projeto de ambientação de sua residência e frisou: “Traga a arte para dentro de minha casa, o custo não deve ser levado em conta.” O arquiteto aceitou com uma condição: que ele obtivesse carta branca para desenhar tudo, tudo, até os mínimos detalhes. O cliente e sua esposa teriam assim de se livrar de todos os seus pertences, inclusive roupas e objetos pessoais, já que não lhes seria permitido levar nada para o novo ambiente que o arquiteto estaria cuidadosamente a lhes preparar. Ansioso para conviver com arte e para obter um reconhecimento social entre seus pares, o cliente aceitou tais condições. Após meses de trabalho, a casa ficou finalmente pronta e o seu proprietário maravilhado. Respirava-se arte na nova casa. Tudo era concebido enquanto arte: armários, cinzeiros, cortinas, até mesmo roupas, tudo harmonicamente integrado como uma sinfonia. Nas primeiras semanas, o arquiteto até supervisionou a família para ter certeza de que estavam usando corretamente os novos ambientes e móveis projetados, que tudo estava sendo guardado em seu devido lugar. Bastante satisfeito, o cliente mostrava orgulhosamente aos seus convidados os
ARQUITETURA
novos ambientes, que eram também reproduzidos e elogiosamente comentados em revistas. No entanto, após alguns meses, o cliente convida o arquiteto à sua casa. Logo na chegada, o arquiteto repreende seu cliente por estar usando uma espécie de pantufa: “Mas como?! Como pode estar usando este sapato que não combina com a decoração que carinhosamente projetei?” E o cliente responde: “Mas, senhor arquiteto, essas pantufas foram criadas pelo senhor mesmo!” O arquiteto prontamente rebate: “É claro que eu sei! Mas elas foram projetadas para serem usadas no quarto e não na sala! Não está vendo que toda a harmonia da sala está sendo comprometida por esses dois pontos de cores?” Para apaziguar os ânimos, o cliente retirou suas pantufas, mas, por sorte sua, logo se dirigiram ao quarto, onde ele pôde calçá-las novamente. Lá, o cliente revela o motivo do convite ao arquiteto: Gostaria de saber onde poderia guardar os presentes de aniversário que tinha recebido no dia anterior. Para sua surpresa, o arquiteto teve um novo ataque: “Mas como?! Como você pode dar-se ao luxo de receber presentes? Eu não projetei tudo, tudinho para você? Você não precisa de nada! Você está completo, envolto em um trabalho de arte.” O arquiteto termina por frisar que o cliente não poderia nem receber um desenho que seu netinho teria feito na escola. O rico vienense, diante de sua autoproclamada ignorância em termos artísticos, terminou por humildemente acatar as ordens do arquiteto, mas não pôde esconder sua tristeza. Deprimido e entediado, passou a perambular por cafés e restaurantes e evitar, na medida do possível, sua nova residência. Fotos: Simone Marinho/Ag. O Globo
À esquerda, escritório com painel de cópias de jornais: espaço desconcentrador
Abaixo, exemplo da gesamtkunstwerk, de Josef Hoffmann, que prega que o ambiente deve ser tratado como objeto de arte
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ARQUITETURA Rogerio Cassimiro/Folha Imagem
Fotos: Casa Cor/Divulgação
Banheiro para adolescentes: objeto de dedicação e detalhamento, mas pouco adequado às atividades humanas
“Por que não paramos de criar displays e cenários e criamos ambientes que realmente deixem as pessoas à vontade?”
O ataque de Loos era dirigido contra a art nouveau vienense, que ele desprezava, e particularmente contra seu desafeto, o arquiteto Josef Hoffmann. O Palais Stoclet de Hoffmann, obra máxima do refinamento art nouveau, ilustra perfeitamente a crítica de Loos. Apesar da aparente despretensão, o artigo de Loos encerra um conflito em torno da forma de projetar interiores, o qual atravessou toda a cultura arquitetônica no século 20. Este seria o conflito entre a gesamtkunstwerk, ou seja, a tendência de tratar o interior como obra de arte, como objeto de profunda dedicação e detalhamento, e a visão de Loos, que privilegia a arquitetura, criando espaços flexíveis para que os clientes coloquem sua própria mobília e pertences, ou seja, espaços que sirvam como uma moldura para se viver plenamente uma vida moderna. Loos colocou tais idéias em prática em seus interiores domésticos, como nas vilas Scheu, Duschnitz e Muller. Embora efetivamente menos fotogênicos do que os interiores de Hoffmann, e também daqueles interiores que aparecem em nossas revistas de decoração atualmente, os interiores de Loos foram uma referência fundamental para os arquitetos da geração seguinte, como Le Corbusier, Mies van der Rohe e Eileen Grey. Le Corbusier foi enfático ao defender a necessidade de se criarem espaços amplos para que seus clientes dispussessem suas mobílias, os objets-types produzidos pela indústria. Parafraseando Aristóteles, que afirmou que a arte imita o que os homens fazem, a arquiteta moderna irlandesa Eileen Grey admitiu que a arquitetura deve tomar como princípio os gestos espontâneos do dia-a-dia, como sentar à mesa sorvendo uma xicara de café e olhando pela janela, ou ler um jornal em uma espreguiçadeira na varanda, e coisas do tipo. Assim, a arquitetura é a arte que deveria imitar o que os humanos fazem, que deveria propiciar espaços adequados para as atividades humanas.
ARQUITETURA À esquerda, ambiente flexível de Adolf Loos, que foi uma referência para as linhas de Le Corbusier Abaixo, sala de jantar por Josef Hoffmann, ícone da art nouveau, idealizador da gesamtkunstwerk e desafeto de Loos
Esse conflito entre a gesamtkunstwerk de Hoffmann e os ambientes despojados de Loos e seus seguidores não está tão distante de nossa realidade. Se nossos interiores, tão propalados em revistas e mostras de decoração, refletem ou não o que realmente fazemos, sentimos e vivemos, é uma questão de difícil resposta. À primeira vista, pode-se conjecturar que esses espaços não conseguem cumprir esta missão, pois parecem estar em contradição com a nossa espontaneidade, nossa vida familiar e nosso clima. No entanto, se considerarmos outra faceta de nossa sociedade, aquela que privilegia uma postura quase teatral, que vive de aparências e que procura obsessivamente símbolos de distinção social, temos de admitir que esses interiores refletem fielmente nossa sociedade, ou pelo menos uma boa parte dela. Modificar arraigadas convenções e práticas sociais não é propriamente tarefa do arquiteto, mas o que podemos fazer talvez seja repensar a forma como projetamos nossos interiores. Aliás, será que estes devem ser tão meticulosamente projetados assim? Por que não tentamos voltar às nossas necessidades básicas, aos nossos atos do dia-a-dia, e procurar, a partir daí, criar um ambiente despojado e flexível que nos possibilite uma vida plena e prática? Por que não paramos de criar displays e cenários e criamos ambientes que realmente deixem as pessoas à vontade? Móveis e ambientes não foram feitos para ser percebidos ou admirados “esteticamente”, mas, sim, para ser vividos, usados, sentados, surrados. Se estivermos percebendo os móveis é porque eles estão obstruindo nossa visão e não estão funcionando adequadamente. Por que não deixarmos os clientes decidirem como querem viver e nos concentrarmos naquilo que é mais importante, encontrar uma forma mais humana de morar, adaptada a nossa cultura e clima? •
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CÊNICAS
Em cena, o dramaturgo Teatro brasileiro ganha um Catálogo de Dramaturgia que relaciona os autores de todo país Rodrigo Dourado
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CÊNICAS
U
m feito monumental. Esta é a melhor descrição para o trabalho realizado pela pesquisadora mineira, radicada no Rio de Janeiro, Maria Helena Kühner: inventariar a produção dramatúrgica brasileira desde o século 16 aos nossos dias. Trata-se do primeiro Catálogo da Dramaturgia Brasileira, cuja versão eletrônica já está disponível no endereço www.dramaturgiabrasileira.org. Os números são impressionantes: lá estão reunidos mais de dois mil autores nacionais e cinco mil peças escritas por brasileiros. O mapeamento teve início em 1995 e só foi lançado em setembro último, durante o Festival Porto Alegre em Cena. Desde então, os acessos diários chegam a 200 ou 250. Mas esse número deve aumentar consideravelmente, já que Maria Helena pensou numa estratégia de divulgação que contempla visitas aos diversos Estados brasileiros. Isso porque, enquanto apresenta a pesquisa, ela aproveita para dar continuidade ao trabalho, confirmando dados e levantando nomes eventualmente omitidos do Catálogo. O projeto começou a ser pensado ainda em 1994, quando a pesquisadora dirigia a Revista de Teatro da Sbat (Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais). Naquela época, ela constatou que as produções brasileiras acabavam pagando mais caro pela importação de textos estrangeiros, por ignorar a existência de obras nacionais de qualidade, muitas vezes, superior. “Para montar uma peça de fora, paga-se tradutor, percentual de bilheteria, além de um avaloir altíssimo. Com a criação do Catálogo, pensei que poderia ajudar os autores, que não têm como divulgar seus textos, e ainda os produtores”, lembra. Para realizar o trabalho, Maria Helena contou com a ajuda de consultores em 18 Estados. O objetivo era buscar a referência de pesquisadores, historiadores, encenadores e artistas sobre nomes de relevo que mereciam registro no Catálogo. Aos consultores coube a tarefa de listar dramaturgos de seus Estados de origem, considerando a qualidade e a importância das obras. Ao final desse trabalho, as listas eram confrontadas e os nomes selecionados. “Apesar de ter participado do júri de dezenas de concursos de dramaturgia, achava que não era justo avaliar sozinha o trabalho desses dramaturgos”, pondera. Mesmo com o suporte da consultoria, a pesquisadora chegou a ler nesse período cerca de oito mil textos, que foram posteriormente doados à Funarte e à Uni-Rio. Ainda para garantir a fidelidade dos dados, foi preciso recorrer a notícias de jornal, revistas, programas de
Hans Manteuffel
Maria Helena Kühner, no lançamento do Catálogo em Garanhuns
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Noelia Ipe / AE
Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues – obra pioneira da moderna dramaturgia brasileira
Abaixo, Catálogo na versão eletrônica
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espetáculos, publicações sobre teatro local e regional e acervos de inúmeras bibliotecas. “Passei vários dias na Biblioteca Nacional, por exemplo, e encontrei textos manuscritos, datilografados e muitos deles sem data”, lembra. A falta de referências foi uma das grandes dificuldades da pesquisa, daí a necessidade de lançar mão de fontes indiscriminadas, considerando que qualquer pista era rastreada até se chegar à informação procurada. Além disso, a quantidade de obras perdidas, extraviadas e sem registro é assustadora. “No Rio Grande do Sul, de uma lista inicial de 68 autores, só conseguimos encontrar trabalhos de oito deles”, lamenta. Graças à tenacidade de Maria Helena e de seus auxiliares, no Catálogo é possível identificar o autor e seu Estado de origem, o título da peça, o gênero e o número de personagens da trama. Está disponível ainda uma breve sinopse do texto (algumas delas escritas pelos próprios autores), a data em que ele foi publicado ou encenado, e os prêmios que lhe foram conferidos. Nele, está representada a diversidade da cultura brasileira. As obras retratam a realidade nacional, traduzindo na dramaturgia as feições muito próprias de cada região. “Não é possível dizer que há uma identidade nacional harmônica, mas a riqueza está na pluralidade das raízes culturais e das temáticas presentes nas peças”, afirma a pesquisadora. Entre os nordestinos, destaca-se a força da herança ibérica e do popular. Pernambuco conta com 96 autores no Catálogo, de períodos diversos, projeções diferenciadas e orientações várias. Entre eles, figuram os célebres Ariano Suassuna (natural da Paraíba), Hermilo Borba Filho, João Cabral de Melo Neto e Joaquim Cardozo. O mais que carioca Nelson Rodrigues. Os também encenadores Antônio Cadengue e João Denys. Os novíssimos Adriano Marcena, Luís Felipe Botelho e Luís Reis. Os que se dedicam e se dedicaram ao teatro para a infância e juventude, como Didha Pereira e Pernambuco de Oliveira. O mamulengueiro
CÊNICAS
Fotos: Arquivo Continente
Lançamento do Catálogo permite, também, perceber que nunca houve a tão propagada crise da dramaturgia, mas, sim, momentos em que o surgimento de novos textos foi ofuscado por razões diversas, como no período do regime militar em que a censura patrulhava a criação
Os dramaturgos Joaquim Cardozo, Ariano Suassuna, João Denys e Nelson Rodrigues (de cima para baixo)
Ginu. E tantos outros nomes curiosos, cuja produção é desconhecida mesmo por seus conterrâneos. Para Maria Helena, o Catálogo será uma forma de tirar do ostracismo autores de valor como esses citados. Ela aponta o exemplo do paraense José Leal que, desde 1981, tem sua peça Ver de ver-o-peso encenada com grande sucesso em Belém, mas cujo trabalho não chega ao conhecimento do restante do país. Por essa razão, a pesquisadora prefere não destacar autores individualmente e tão pouco estabelecer marcos para a dramaturgia brasileira. “Os textos escritos aqui são muito bons e deveriam ser lidos na escola. Nossa dramaturgia tem parâmetros próprios, não é preciso compará-la ao que se faz na Europa ou nos EUA”, assegura. O lançamento do Catálogo permite, também, perceber que nunca houve a tão propagada crise da dramaturgia, mas, sim, momentos em que o surgimento de novos textos foi ofuscado por razões diversas, como no período do regime militar em que a censura patrulhava a criação. Ainda assim a dramaturgia permaneceu viva porque, como toda linguagem, ela é absolutamente necessária para aqueles que nela se aventuram. O estímulo à criação de novas peças deve, no entanto, ser permanente. As premiações e concursos são apenas uma maneira de fomentá-la, mas a crescente prática das leituras dramatizadas pode se tornar uma alternativa não só para criação, mas também para as dificuldades financeiras dos produtores. Diante de panorama tão rico, ao avaliar as tendências da produção contemporânea, Maria Helena identifica maior fragmentação e reversibilidade da trama, revalorização da palavra (como sonoridade), do corpo e do sensorial, a prática da intertextualidade e o intercâmbio de linguagens. Procedimentos pós-modernos que, no entanto, não garantem a formação de um bom dramaturgo. “Não há regras para a criação. No entanto, um bom dramaturgo será sempre aquele que fala de si, do outro e do contexto em que essa relação se dá. Será sempre aquele que consegue, especialmente, falar para o outro, já que o teatro é para ser visto”, conclui. Para conhecer essas e outras tendências da dramaturgia brasileira (em todos os períodos), basta acessar o site. Lá é possível também enviar para a pesquisadora dados sobre dramaturgos não registrados. No mais, é esperar a publicação impressa que deve sair pela Editora Aeroplano, ainda sem data prevista. •
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Mais clareza, mais inquietude Questão antiga, a tensão entre forma e conteúdo resulta em que a arte clama por inovar, sem esquecer o que foi construído pela tradição Daniel Piza Ilustrações: Nelson Provazzi
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debate antigo, polarizado e esquemático sobre forma e conteúdo ajudou a nos colocar numa situação paradoxal das artes neste início de século. Por um lado, temos a ainda grande presença de um pensamento formalista nos meios intelectuais; por outro, há nos criadores a forte sensação de que todas as formas já foram experimentadas. Esse hiato tem os efeitos mais esdrúxulos. Um exemplo: acadêmicos em busca de originalidade se debruçam sobre mensagens subliminares de celebridades da música pop ou filmes de grande bilheteria. Outro: grupos de teatro de vanguarda são subsidiados pelo dinheiro público para encenar textos sobre a “incomunicabilidade da condição humana” para uma platéia de meia-dúzia. Procurar conteúdos sutis em formas convencionais ou vice-versa é um sinal da bagunça de idéias vigente. Um caso brasileiro a estudar é o do Concretismo. O movimento vai comemorar meio centenário neste ano como se ainda fosse dotado de idéias novas. Seus seguidores não se deram conta de que ele foi uma tentativa de ruptura que não gerou uma tradição, nem mesmo para ser usada como antiexemplo. Um poema como o “Luxo/Lixo” de Augusto de Campos parece aos jovens de hoje não mais que um trocadilho com produção gráfica. Para os teóricos do movimento, no entanto, o objetivo era nada menos que romper com a tradição aristotélica da linguagem, abandonando a sintaxe aprisionadora e fundando uma fábrica de design poético. A forma deveria se sobrepor ao conteúdo, a construção à expressão. O que restou do movimento? Alguns versos cheios de aliterações na MPB ou alguns truques “verbovisuais” na publicidade. Só Arnaldo Antunes ainda acredita nele. Essa corrente se celebrizou por supor que a inovação estética consiste em inventar procedimentos inéditos. Desvirtuou, assim, as idéias de seu suposto guru, o poeta e crítico americano Ezra Pound, que, numa famosa classificação dos escritores, colocou em primeiro lugar os “inventores”, que descobriram um novo “processo” (não confundir com “procedimento”) de carregar palavras com significados. Havia dois equívocos aí. Pound defendia o make it new e o it desta expressão significa a “tradição”; ou seja, inovar é, na verdade, renovar, e só com o reexame contínuo do que já foi criado é que se poderão criar coisas Continente fevereiro 2006
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pertinentes e duradouras para o homem moderno. E ele diz com todas as letras que o segundo tipo de escritores, os “mestres”, são os homens que “combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores”. Logo, são eles os maiores criadores, como Dante, Chaucer, Shakespeare, Flaubert; são eles que ocupam o topo da escala. Pound também dizia que o método literário mais evoluído, mais sofisticado, é a “logopéia”, em que não apenas as imagens e os sons são densos, mas também as associações e as idéias que as palavras trazem. É por este caminho – pelo uso das palavras numa relação especial com os costumes, “ao tipo de contexto em que o leitor espera ou está habituado” a encontrá-las – que o escritor corre os maiores riscos. Ou seja, Pound não queria uma poesia concentrada apenas em seus elementos sonoros e visuais, mas que utilizasse uma linguagem enriquecida pelo universo cultural. Um singelo exemplo que ele mesmo dá é o da palavra “bicicleta”, que tem um sentido preciso porque em qualquer lugar associamos a ela um objeto fisicamente muito semelhante. Se dizemos tandem, que é aquela bicicleta com dois lugares, então vamos associar a palavra a alguma época ou a algum filme ou a um determinado país onde pela primeira vez vimos esse objeto. Multiplique essa observação para frases inteiras, não apenas palavras. Uma forma implica diversos conteúdos. Esses formalistas – chamem a si mesmos concretistas, estruturalistas, pós-estruturalistas ou o que for – dizem, porém, que qualquer variação na forma implica um significado diferente. Raymond Queneau, num livro famoso, fez um exercício de 96 variações sobre uma mesma frase. É assim que se desenvolve um estilo, palavra esta que designa desde os elementos mais característicos de um autor (seja pela recorrência, seja pela peculiaridade), como o uso da pontuação, registro vocabular ou freqüência de adjetivos, até o que percebemos como sua visão de mundo (ansiosa ou serena, por exemplo). Mas não se pode atribuir a cada variação uma diferença essencial de significado. Uma frase pode ser escrita de muitos modos sem deixar de comunicar a mesma coisa. Exemplo: podemos escrever uma frase de muitos modos e obter o mesmo resultado na comunicação. Os conteudistas cometem o erro contrário, ao supor que a forma serve apenas como instrumento exterior de uma mensagem. “O tema é o autor do autor”, dizia Nelson Rodrigues. A escrita tem uma dimensão essencialmente funcional, não devendo chamar atenção para si mesma, como se pudesse ser 100% transparente. Esse tipo de pensamento tem renascido nestes tempos neoconservadores. Depois de muitas décadas, principalmente dos anos 20 aos anos 60, em que ser de vanguarda era de rigor, as artes se viram obrigadas a redescobrir a clareza, a sintaxe, a harmonia. Tal movimento foi e é importante. A obra de Saul Bellow, digamos, Continente fevereiro 2006
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Saul Bellow, obra vivaocas
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está mais viva do que a de muitos escritores franceses do pós-guerra – como os do nouveau roman – que se esmeraram em fazer uma literatura ensimesmada, estática, auto-referente, sem “mensagens” ou “sentido”. E é importante notar que Bellow foi um mestre, dono de um estilo único, inventivo, complexo, não um autor antiquado ou ortodoxo. Certa dose de linearidade não é sacrifício de complexidade; ao contrário, talvez seja um requisito, visto que a mente humana se caracteriza por ver as coisas em cadeia, como filmes interiores. Por falar em filmes, o cinema também foi uma tábua de salvação para a narrativa no sentido concreto deste termo (começo, meio e fim, não necessariamente nesta ordem, e não necessariamente com um fim moral), assim como a canção popular ajudou a manter a música nos trilhos da sensibilidade tonal, inerente à percepção humana, enquanto os eruditos adotavam o autismo legado pelos excessos da dodecafonia e por outras teorias. Só nas artes plásticas ficou faltando esse retorno saudável à representação legível, embora as bienais deixem claro para todos o sentimento de beco-sem-saída numa área em que praticamente tudo já foi inventado (incluindo vitelas cortadas ao meio e prédios públicos embrulhados) e embora a fotografia e a pintura estejam de novo em alta. Isso não significa que a arte tenha que repetir o que já foi feito, literalmente, e deixar de procurar formas mais ousadas. O Modernismo já faz 100 anos, mas dá saudades em quem acompanha a produção atual – não por suas utopias e “ismos” (os movimentos que queriam revolucionar a arte e o mundo e não duravam mais que uma década), mas pelo poder de contestação e pela aventura lingüística. O uso do ensaio por Proust, o uso da alegoria por Kafka, o uso da poesia por Joyce, o uso da filosofia por Mann – tudo isso parece perdido hoje em dia, quando os melhores escritores, como Philip Roth e Ian McEwan, raramente escapam do realismo descritivo em linguagem corrente, por mais brilhante que seja. A mistura de gêneros é uma marca modernista que deveria ser retomada sem medo. Inquietude formal não precisa ser sinônimo de obscuridade, de hiperintelectualismo. O debate sobre a arte moderna do início do século passado deveria estar no centro da nova controvérsia entre forma e conteúdo. Muitos analistas declararam que sua marca era a “descontinuidade”, entendida esta como uma forma não-linear, que usa recursos como a elipse, a colagem, o fragmento etc. Mas essa descontinuidade pode ser exposta numa forma que se caracteriza, por exemplo, por longas frases que ligam todas as coisas, num movimento do micro para o macro e de volta, como ocorre em Proust; ou pode vir numa escrita límpida, correta, sem termos inacessíveis, como em Kafka. Não há neles uma frase que não se compreenda. Mesmo assim, eles são perturbadores por sua visão da natureza humana como insuficiente, incapaz de totalidades, por sua crítica aos sistemas perfeitos que tudo querem explicar – ou seja, por sua noção da realidade como descontínua e irredutível, por sua consciência de que é preciso ordenar o possível para mostrar o impossível da ordem. Nos grandes autores como eles, forma e conteúdo se enriquecem mutuamente, como dois pólos que se atraem e atritam o tempo todo – e só assim produzem magnetismo eterno. •
Ezra Pound, inovando a tradição
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Palavras criam realidades A ampliação das formas de representação estética tem como corolário uma outra visão da realidade. Toda mudança de paradigma provoca o entusiasmo e o desconforto, a apologia e a negação furiosa Claudio Daniel
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aul Valéry, em conhecido ensaio publicado em 1939, estabelece uma distinção entre a prosa e a poesia, afirmando que a primeira assemelha-se ao andar, e a segunda ao dançar. Estas imagens remetem ao caráter mais utilitário da prosa, onde importam a clareza e o sentido, enquanto na poesia contam mais o andamento rítmico, a construção de paisagens, a estranheza vocabular e sintática, o trabalho com a metáfora e outros recursos lingüísticos, que atribuem ao texto seu valor artístico. Na prosa, está em primeiro plano a função comunicativa, conforme o conceito de Roman Jakobson: o que vale é a informação, e podemos pensar aqui num manual de medicina, num código jurídico, num tratado de filosofia ou em livros de sociologia ou contabilidade. Já na poesia, onde o artesanato semântico é ele mesmo a informação a ser transmitida, temos a função poética, o sentido construído pela forma. Sem dúvida, essa distinção entre prosa e poesia admite exceções: obras como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, as Galáxias, de Haroldo de Campos e o Catatau, de Paulo Leminski, são textos em prosa permeados de poeticidade, numa voluntária superação de dicotomias, sinalizando também a dissolução das fronteiras entre os gêneros (tendência, cujos precursores foram o Fausto de Goethe e os Pequenos Poemas em Prosa de Baudelaire). Por sua capacidade de fluidez, simbiose e mutação, a poesia relaciona-se com outras formas de escrita, perturbando-as, criando uma instabilidade textual, distante de qualquer idéia de imobilidade ou permanência. Sendo um pouco mais audaciosos, podemos pensar na poesia além da própria literatura, manifestada na canção, no balé, na pintura, no drama cênico, enfim, em todas as criações onde a linguagem está enamorada pela linguagem. Tudo é a arte da poética, de certa forma, quando o dançarino, a dança e o dançar são um único e inquietante movimento. Como afirma
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Antonio Risério, em seu Oriki Orixá, a poesia não se restringe ao código escrito, inclusive por ser anterior a ele: os primeiros poemas de que temos notícia pertenciam à tradição oral (como os mitos fundadores indígenas, africanos ou escandinavos) e eram transmitidos na forma de canto, com a colaboração da música, coreografia, vestuário, mito e símbolo: arte mágica, onde cada palavra não era apenas a representação de uma coisa e, sim, a própria coisa, na forma de som. Não se tratava de imitar, mas de criar realidades, numa síntese entre estética e teurgia. Disso resulta o caráter sagrado, de invocação, dos mantras indianos e dos orikis nagôiorubás: ao pronunciarem o nome de seu deus, este era corporificado como vibração sonora (o que hoje chamaríamos de isomorfismo, o conteúdo igual à forma). O caráter mágico ou encantatório da poesia, sem dúvida, estava relacionado a formas de pensamento analógico e ritualístico, mas podemos ver suas irradiações em toda a evolução da escritura poética, que nunca renunciou à vocação taumatúrgica de construir universos “com sua própria fauna e flora”, no dizer do poeta chileno Vicente Huidobro, protagonista do criacionismo. Coube às vanguardas históricas, aliás, a recuperação da visualidade, do gesto e do movimento na poesia, aliando a pesquisa fônica a toda sorte de recursos expressivos. Podemos recordar as experiências dadaístas de Kurt Schwitters, dissolvendo as fronteiras entre poesia e pintura em sua arte MERZ; os textos mais radicais de Antonin Artaud, onde todo o sentido está na sonoridade abstrata (Katanam anankreta karaban kreta); as performances de Raul Zurita, que faz da mutilação pública do próprio corpo um recurso poético; e a recente incorporação da tecnologia digital nas criações de Augusto de Campos e Arnaldo Antunes, que criam poemas visuais com efeitos de sonoridade e movimento, ampliando a capacidade de geração e multiplicação de mensagens e rotas de leitura. De certo modo, a vanguarda retoma e atualiza a vitalidade (e a virtualidade) das poéticas ancestrais, emancipando-se do espaço bidimensional da página impressa para projetar-se em outras dimensões, inclusive holográficas, exigindo do leitor ou espectador uma sensibilidade e compreensão diferentes daquelas requeridas para a leitura de textos usuais. Essa ampliação das formas de representação estética tem como corolário uma outra visão da realidade: mutável, não estática; descontínua, não linear; espiralada, não retilínea. Toda mudança de paradigma provoca, em medidas diversas, o entusiasmo e o desconforto, a apologia e a negação furiosa, nem sempre por motivos estritamente literários, mas também ideológicos (no sentido original dado por Marx aos pressupostos de Feuerbach). Quando se censura a vanguarda por seu suposto hermetismo ou obscuridade, os anátemas são aplicados à sua “extravagância” formal, mas também a sua “ausência de conteúdo” ou “alienação” (para recuperarmos uma acusação de heresia habitual nos anos 60 e 70). Os poetas
Ao lado, Paul Valéry Acima, obra de Kurt Scwitters
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experimentais estariam distantes da “realidade” e do “mundo”, isolados em modernas torres de marfim. Caberia perguntar, aqui, quais são os conceitos de “realidade” e de “mundo” defendidos por esses críticos, e que estão na essência de textos literários de imediata compreensão, mas escasso valor artístico. Para os acadêmicos de forA dança está mação sociológica, discípulos do modelo desenvolvido próxima da poesia, segundo por Luckács, a realidade é um fato imediato e objetivo Valéry sujeito à investigação científica, enfatizando aspectos econômicos ou sociais, dentro de uma linha histórica evolutiva. Essa concepção, que dominou o cenário europeu nas primeiras décadas do século passado, está eivada de certo determinismo (diríamos até fatalismo) que considera todas as criações intelectuais ou estéticas como subprodutos da cadeia produtiva. A partir dessa visão, de indiscutível miopia, surgiram propostas como a do realismo socialista, que intentou ser o “espelho do real”, refletindo as injustiças do capitalismo e projetando, ao mesmo tempo, a futura redenção socialista (considerada inevitável, dentro de uma perspectiva retilínea e darwiniana da história). Política e estética estavam ligadas, de modo umbilical, a essa hipótese de “realidade”, hoje insustentável não apenas pelas mudanças no campo internacional, mas também pelas atualizações conceituais e de paradigma no campo da ciência (em especial com o advento da física quântica). O pensamento científico é hoje menos dogmático e mais propenso a aceitar a realidade como uma caixa de Pandora, que possui em seu interior uma imensa variedade de eventos e transformações possíveis. Em sintonia com esse espírito teórico renovado, podemos afirmar que a poesia experimental não está distante da “realidade” e do “mundo”, mas sim de concepções lineares e limitadas de realidade e mundo, que o tempo se encarregou de enterrar. Ao afirmar a impermanência, o paradoxo, a ambigüidade e a mutação no campo semântico, o poeta não está apenas recusando certa previsível normalidade da escrita e visões estáticas e anacrônicas de mundo, mas também indicando, em sua materialidade significante, uma compreensão do real como um ciclo incessante de deslocamentos, aproximações e metamorfoses. Temos aqui outro tipo de mímese: não a imitação ingênua de objetos e situações, com seus significados e desdobramentos definidos a priori, mas um ícone do real como ser em travessia. Na literatura brasileira contemporânea, essa expansão do sentido pela construção inusitada ou excêntrica é visível em autores como Horácio Costa, Wilson Bueno e Josely Vianna Baptista, precedidos pelo Haroldo de Campos de Galáxias e dos estudos sobre o barroco. Em seu livro A Arte no Horizonte do Provável, o poeta paulista fez uma interessante distinção entre a abordagem diacrônica da literatura, baseada num fio evolutivo histórico, e a sincrônica, que busca relações de proximidade entre autores de diferentes períodos epocais. Esse é o método que utilizou em seu estudo “Uma Arquitextura do Barroco” (em A Operação do Texto), que aponta afinidades entre autores tão diversos como o cubano Lezama Lima, o grego Lícofron, o brasileiro Sousândrade e o chinês Li Shang Yin, distanciados na geografia e no tempo regular, mas muito próximos em seu ostinato rigore e capacidade imaginativa. Essa aproximação, que a princípio pode parecer arbitrária e impulsiva, é fundadora de uma concepção literária e filosófica que animou os autores mais inventivos da América Latina, a partir dos anos 70, dentro dessa vertente que se convencionou chamar de Neobarroco. Num poema como “O Napoleão de Ingres”, de Roberto Echavarren, por exemplo, temos uma collage de signos de diversos territórios e culturas, apontando a mestiçagem, a impureza, o paradoxal e o ambíguo como elementos constituintes de nossa realidade: “A cor da seda, sua textura / são quase metálicos: um zepelim no céu / azul-daprússia, um dragão chinês / voando em seu troar de metais”. Essa mescla de elementos díspares remete à própria formação social e cultural latino-americana, que cozinhou no mesmo caldeirão signos e referenciais europeus, asiáticos, indígenas e africanos, numa antropofagia que perdura até os dias de hoje. Além da diversidade, a desigualdade da convivência entre tecnologia e subnutrição, crescimento industrial e miserabilidade, erotismo e religião, entre outras manifestações contraditórias do nosso continente, colaboram com o conceito do Neobarroco e sua visão de um mundo plural, irregular, multifacetado, sublime e trágico. • Continente fevereiro 2006
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Mímesis e Poética: entre criar e imitar O ponto fraco da tradição foi interpretar a mímesis como o mundo. Já a função da poiesis é operar uma outra configuração do mundo Lourival Holanda
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a circularidade das discussões temáticas, vez por outra volta a questão da forma que toma a arte para expressar a realidade ou interagir com ela. O debate vem de longe, de longa memória cultural, mas é reacendido sempre que muda a percepção e sobremodo a sensibilidade social. Nos anos 70, sob o impulso do formalismo, os ventos avançavam a favor da autonomia do poético: os textualistas reivindicavam uma maior liberdade do texto em detrimento do compromisso com o real empírico. Era uma forma de reagir às coações da expectativa de transitividade de determinada “mensagem” do texto. Isso vinha do apego da tradição clássica à concepção de um real único. Os românticos se insurgiram contra tal concepção porque sentiam nela um entrave à livre expressão das possibilidades em aberto, no sujeito. Depois, foi a vez das vanguardas desconstruirem a noção de real como racional. Hoje, depois das teorias da relatividade, da física quântica, das energias dissipativas, da astrofísica, a realidade é vista como mais complexa e escapa a um conceito único. O universo físico é permanentemente poético (no sentido grego da palavra) – o assim chamado bom senso é uma cegueira sensorial que nos protege do choque com a realidade real. Como a arte daria conta desse real complexo? Essa, a questão aberta desde a segunda metade do século passado. A tradição clássica optou por uma interpretação da mímesis que a reduzia a representação. A arte, acreditava-se, imitava o mundo. A poética assumia a substituição do real pela mediação do signo. Nosso tempo tende a ver na mímesis uma forma de reapropriação do mundo. Continente fevereiro 2006
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O não-cachimbo de Magritte: ironia À direita, Platão: poética com ética
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Reconstituir o real é uma forma de conhecimento: uma maneira de agenciar os elementos da realidade num modo que lhe dê outra inteligibilidade. Chico Buarque, em “Bom Conselho”, reverte a sabedoria suposta nos provérbios, propondo uma outra atitude: “Ouça um bom conselho que lhe dou de graça: inútil dormir que a dor não passa. Espere sentado e você se cansa. Está provado: quem espera nunca alcança”). Assim, a arte pode produzir uma atitude, um efeito fora do texto. No modo de perceber e agir sobre o mundo. O ponto fraco da tradição foi interpretar a mímesis como o mundo, resultado de um consenso e de uma ideologia, e não como um mundo, podendo ser acrescido de outros. Essa já é a função da poiesis: não decalque do real existente, mas pela mediação do signo, operar uma outra configuração do mundo. Mudadas as perspectivas, os tempos atuais procuram mais um ponto de co-incidência, sacrificado pela paixão das posturas extremas. Busca agora o elo perdido entre a mímesis e a poiésis – entre a representação de realidades (já que toda ficção paga sempre um dízimo ao real) e a criação, entendida enquanto re-ordenamento da realidade (que resulta já em uma outra realidade). Mímesis é recriação lingüística e, ao mesmo tempo, é representação de uma dada percepção social. Daí porque resulta na produção da diferença. Tanto tem razão Magritte, quando institui a ironia na reprodução do cachimbo – “Isso aqui não é um cachimbo” – porque o artista se sabe um modificador da realidade, quanto tem razão Erasmo de Rotterdam, quando traduz mímesis por aemulatio: retomar um tema e dá-lo modificado pela percepção do ponto de vista do artista. Por isso o David de Donatello difere do de Michelangelo, e as Ceias-largas, tema tão batido, resultam num diálogo de cores e matizes cada vez único, na tradição da representação pictórica. A arte, mesmo quando se pretende a mais realista, como em Zola, não é uma catalogação do real, mas sua reestruturação. Tampouco a poiésis é pura perícia técnica, divorciada do real. Mesmo a poesia de um João Cabral não se restringe a uma ordem nocional e um arranjo puramente cerebral dos vocábulos: sua força reside em poder despertar o leitor para além da convenção, em recuperar o frescor das coisas soterradas pelas camadas de significações do automatismo cultural. É assim que, surpreendendo, reconquista mais espaço no horizonte do sensível. Em todo debate poreja seu tempo, sua historicidade. Não há nenhuma imaculada percepção: vemos da altura do nosso tempo. O artista, quando grande, diz seu tempo e ao mesmo tempo é seu crítico. Assim, é possível medir a distância que vai de Alexandre Dumas a Flaubert. O Realismo, que se supõe mimético, é ainda um idealismo: parte de uma dada idéia do que seja o real. As indagações a respeito do real e de pretender dirigi-lo vêm de longe. Platão começa um debate que as gerações seguintes levaram adiante: a mímesis, a pura representação do real, é condenável – porque seria cópia do que o mundo sensível, posto em suspeição, poderia apenas entrever. A cópia fiel, diz Platão no Crátilo, só caberia a um deus, nunca a um homem. No entanto, na República (III, 396 e) ele concede: só se imite o melhor, nunca o inferior. É que Platão leva a poética a imperativos éticos: ela deve servir a uma causa; aqui, metafísica; como mais tarde, com Taine ou Madame de Stael, ela deve formar e elevar o espírito dos povos. O marxismo não escapa a essa teleologia, a esse finalismo, basta ver o assim chamado “realismo socialista”, dirigindo a arte à reprodução de uma idéia – a da sociedade por vir. Esse realismo não se equivoca por ser um projeto, uma utopia, mas por fundir em ferro um sonho, dogmatizado num sentido único.
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ESPECIAL Platão suspeita da arte porque ela toca os afetos e obscurece o intelecto. Diz explicitamente isso no livro X da República (603 e). Didático, Platão pensa poder guiar a vontade para que esta eduque o desejo (597d/601 b). É querer enxugar a praia... Ora, um grande poema não nos deve dizer o que fazer – mas não é pouco se consegue descongelar nosso imaginário, liberando em nós diversas outras possibilidades de ser. “A vida, a vida mesmo, só é possível reinventada” – como quer Cecília Meireles. Mas é justamente isso o que Platão parece temer: que o homem se meta a inventar e inverter formas de conceber o real. No Sofista ele reconhece o estudo das relações internas do objeto imitado, que pressupõe uma ciência; ao mesmo tempo teme que o receptor se deixe enredar pelas aparências das imagens sedutoras, portanto perigosas, da arte. Aristóteles parece crer que o homem aperfeiçoa, completa o que está na natureza. Mais: admite que se possa ter prazer estético mesmo se desconhecemos a coisa imitada. Porque ressalta a habilidade do poeta (1460b). O artifício não se opõe ao real: completa-o, alarga-o. Por isso um filme de ficção científica aponta as insuficiências do presente enquanto nos faz imaginar saídas possíveis. A modernidade responde a isso com a consciência fabril do artista (que já não se crê um iluminado, mas um artífice – o que acentua o caráter de construto da arte, retomando o étimo grego poiein: fazer; e, sobretudo depois do século 19, com a consciência crítica que o artista ora espera, ora desperta em seu interlocutor. Aristóteles quer que o discurso mimético exerça um efeito direto sobre os afetos. Tomar uma referência é um primeiro passo. Já não estamos diante de uma metafísica, mas de uma contingência da natureza humana: o imitar, despertar a vontade de ser, é congênito ao homem. A concepção moderna retoma esse passo aristotélico: a mímesis é uma atividade poética – e não apenas eikon como temia Platão. Uma atividade produtora de possíveis e não apenas duplicadora do real. Em alguns momentos a tradição ensaiou outra direção, como em Montaigne que, mais que a erudição ou a eloqüência, quer a sabedoria. E prefere isso às disposições lógicas e aristotélicas tão pertinentes (“Ensaios”, II, cap X. No entanto, já era aqui uma interpretação redutora, que via em Aristóteles um normativista). Nem sempre a tradição falou em uníssono: Protágoras desafia Sócrates a interpretar um poema de Simônides. É que Protágoras não acredita que haja uma realidade objetiva – numa postura muito próxima das novas ciências. A realidade é a construção de dada comunidade, tentando tornar o mundo inteligível. Por isso a literatura refrata esse real e, ao mesmo tempo, faz refletir sobre a consistência do real, sempre relativo e conjetural. É o mundo mesmo que solicita e suscita o poeta em nós. Um poema, um romance, são formas especiais de conhecimento do mundo humano; modos de transfigurar a experiência, no esforço de lhe dar a densidade de um sentido. Ponto de intersecção entre mímesis e poiésis: o barro e a mão do oleiro; na circulação das palavras, a seleção singularizada no poema – corpo novo que é imagem da permanente recriação do mundo. •
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Forma, conteúdo Qualquer escritor autêntico tende a ir buscar um equilíbrio entre estas partes que se complementam, entre esta velha e ainda não descartada dualidade Luiz Carlos Monteiro
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ara que alcance sua plena realização, um texto exige uma linguagem interna que o veicule e um código sígnico que permita a sua decifração externa. Isto remonta à questão forma-conteúdo, que aparece já no século 4 na Poética de Aristóteles, quando são estabelecidas distinções entre os metros de versos heróicos e jâmbicos e entre os ritmos mais comuns da poesia e da narrativa, tendo como base os gêneros da epopéia e do drama. Mesmo que algo do que escreveu tenha perdido o impacto inicial, a obra aristotélica prossegue sendo modificada, substituída, acrescida e adaptada ao longo do tempo. A poesia estrutural de Homero encontra uma continuidade formal em Virgílio na reutilização dos hexâmetros. Mas, quando se passa da épica virgiliana ao esforço gigantesco da obra de Dante, há uma mudança expressiva que vai envolver a terza rima como metro preferencial. Posteriormente, a oitava de Ariosto e o soneto petrarquiano serão amplamente usados e trabalhados. Os herdeiros de Dante serão, nas primeiras décadas do século 20, Eliot e Pound. A ficção assistirá ao desempenho conteudístico-formal inovador de Joyce, inigualável para a época, que mudará totalmente as maneiras literárias tradicionais de escrever prosa e poesia. Em termos de França e Brasil, a distância ficará menor entre Baudelaire e os simbolistas e pré-modernistas, Valéry e João Cabral, Mallarmé e os concretistas. Cada tendência crítica e analítico-interpretativa institui o seu próprio sistema de elaborar esse binômio, que recebe também denominações como forma e fundo, significante e significado, forma e evento, sentido e expressão, texto e contexto entre outras. Em Questões de Literatura e Estética, num capítulo escrito em 1924, o filólogo russo Mikhail Bakhtin afirma veementemente: “O conteúdo representa o momento constitutivo indispensável do objeto estético, ao qual é correlativa a forma estética que, fora dessa relação, em geral, não tem nenhum significado”. Bakhtin aplicou seus
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conhecimentos e teorizações literárias principalmente ao romance, veiculando conceitos novos (polifonia de vozes, por exemplo) para os inícios do século passado e investigando a prosa de ficção desde a Antiguidade. O que ele chama de conteúdo do objeto estético é a realidade do conhecimento e do ato estético, ou seja, o mundo exterior visto pelo escritor e internalizado na obra que este executa, aliado a uma forma que dá sentido e função a seres, paisagens, vivências e objetos. O fechamento de certas afirmações bakhtinianas será combatido impiedosamente, do mesmo modo que sua melhor contribuição aos estudos literários e lingüísticos será acatada e adotada por muitos críticos e escritores que o sucederam. A teoria pós-moderna envolve conceituações de paródia e intertextualidade para definir o que Linda Hutcheon chama, em Poética do Pós-Modernismo, de metaficção historiográfica: “Em seu aspecto exterior, poderia parecer que o principal interesse do Pós-Modernismo são os processos de sua própria produção e recepção, bem como sua relação paródica com a arte do passado”. Ainda conforme ela, “é exatamente a paródia – esse formalismo aparentemente introvertido – que provoca, de forma paradoxal, uma confrontação direta com o problema da relação do estético com o mundo de significação exterior a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas semânticos socialmente definidos (o passado e o presente) – em outras palavras, com o político e o histórico”. Deste modo o Pós-Modernismo, apesar da inconsistência teórica que o cerca, neste momento melhor definida para a arquitetura que para as outras artes e a literatura, logra inaugurar uma relação seminal entre arte e mundo, entre linguagem e realidade. A paródia serve de referência principal para se fixar a ligação intertextual entre formas ficcionais ou poéticas do presente com os textos de autores clássicos e modernistas, transformando-os, renegando-os e retrabalhando influências. Há uma proposta como a do crítico Alfredo Bosi em sua coletânea crítica Céu, Inferno, baseada em definição do filósofo italiano Carlo Diano para forma e conteúdo, na qual este último deveria ser substituído por evento. Assim evento seria, na adaptação de Bosi da filosofia para a literatura, “todo acontecer vivido da existência que motiva as operações textuais, nelas penetrando como temporalidade e subjetividade”. No entanto, ao se pensar na funcionalidade de “evento”, ele não resultaria tão objetivo assim, pois estaria situado também no campo das probabilidades, no âmbito de algo que ainda viria a acontecer. A problemática forma-conteúdo sinaliza, ao fim, de acordo com os teóricos ingleses Richard Freadman e Seumas Miller em Repensando a Teoria, para uma relação de aparente oposição que se sustenta, por sua vez, numa indeterminação flagrante. Não se pode precisar, por exemplo, a anterioridade ou a hierarquia de um conceito sobre outro. Além disso, ambos vêem “um excesso de componentes” para esta relação como inconsistência lógica e pragmática, incomensurabilidade e diferenças conceituais. Seja como for, quando um autor se excede na forma, o resultado pode vir a ser a esterilização do texto, com uma inserção totalizante e exagerada do real. No sentido contrário, quando ele se revelar excessivamente intimista ou inspirado quanto ao conteúdo de sua obra, o seu texto pode ficar impossível de ser lido pelas numerosas divagações metafísicas, hermetismos desnecessários ou afrouxamentos expressivos. Qualquer escritor autêntico – seja ele poeta, crítico, ensaísta ou ficcionista – tende a ir buscar, dentro dos moldes particulares de sua própria concepção literária e de estilo, um equilíbrio entre estas partes que se complementam, entre esta velha e ainda não descartada dualidade forma-conteúdo. O que apenas o fará um autor mais eficaz e cuidadoso e tornará bem mais compreensível e preciso o texto que elabora e escreve. •
O filológo russo Mikhail Bakthin em pintura de Jan Valentin Saether
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Os pratos preferidos do presidente JK Reprodução
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"Lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino". Juscelino Kubitschek (primeira vez que esteve em Brasília, 2 de outubro de 1956)
“F
oi em Diamantina, onde nasceu JK” – assim diz a única frase historicamente correta de um bem conhecido samba de Stanislaw Ponte Preta, inesquecível pseudônimo de Sergio Porto. Nele, a princesa Leopoldina casou com Tiradentes – que, por sinal, elegeu Pedro II; e da união deles dois, foi proclamada a escravidão. “Samba do crioulo doido” acabou sendo um dito popular que veio dessa música. Diamantina, como o próprio nome diz, é terra de diamantes. Berço da própria culinária mineira – formada aos poucos, sobretudo a partir do início do século 17, quando o bandeirante Fernão Dias Paes Leme andou por lá. Era o tempo de garimpo, em terras de Minas Gerais. Na sacola, cada tropeiro levava comida que pudesse durar por longas travessias – açúcar, sal, carne-seca, porco defumado, toucinho, farinha, feijão, milho, trigo, azeite, vinagre. Além de aguardente, claro. Depois dessa fase da mineração, vieram as fazendas (século 19) com seus currais. Do leite ali produzido faziam “queijo de minas” – branco, redondo, presente em todas as mesas da região. Vieram também as plantações – de feijão (“a escora da casa”, segundo refrão popular), mandioca, arroz, canade-açúcar e milho. “Enquanto houver milho e água, os mineiros não morrerão de fome” – assim escreveu John Mawe, primeiro viajante estrangeiro a poder penetrar no território mineiro. A tanto autorizado pelo próprio Príncipe Regente, em 1809. A cozinha mineira aproveita ainda galinha, lombo de porco, lingüiça, e alguns peixes de rio – dourado, mandi, surubim, traíra, pacu, bagre, piranha. Usando criatividade muito especial, transformando esses ingredientes em preciosas iguarias. “O jeito mineiro de fazê-los, como um ritual; o jeito mineiro de servi-los, como uma liturgia; o jeito de saboreá-los, como uma comunhão”, assim descreveu Guimarães Rosa.
SABORES PERNAMBUCANOS
Da pequena Diamantina veio nosso mais popular Presidente da República. Cresci ouvindo meu pai falar, sempre, em Juscelino Kubitschek. Foi quase tudo na vida – telegrafista, médico, deputado federal (1934), prefeito de Belo Horizonte (1940), deputado constituinte (1946), governador de Minas (1950) e Presidente (1955). Tinha os olhos no futuro – “50 anos em 5”, como dizia o lema de seu governo. Reacendeu a fé do povo. O otimismo tomou conta do país. Tem início, com ele, mais um ciclo de substituição de importações que produz um salto em qualidade na economia brasileira. Começaram a chegar as primeiras fábricas de automóveis. A Romi-Izeta fazia nosso primeiro carrinho, de três lugares, que toda gente conhecia só como “romizeta”. Também veio a Dampf Kraft Wagen, mais conhecida por sua sigla DKW – que o povão, por dificuldades na pronúncia, logo simplificou para “decavê”. E a Volkswagen, com seu “fusca”. Lembro de meu pai, então deputado federal, viajando para Brasília num fusca begeclaro. A industrialização começava a mudar o rosto de um país ainda rural. JK também fez hidrelétricas, duplicou a rede de estradas e construiu Brasília. De lá via o mundo – “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais”. Quando encomenda seu projeto a Oscar Niemeyer recomendou – “Tem que ser a capital mais bonita do mundo”. Foi feita a sua vontade. Tudo parecia dar certo, para o Brasil: Adhemar Ferreira da Silva ganhou seu segundo ouro olímpico no salto triplo (1956), ganhamos a Copa do Mundo (1958), Éder Jofre foi campeão mundial de boxe; Maria Esther Bueno campeã, no torneio de tênis de Wimbledon (1960). Começava um tempo novo. Surgiu o cinema novo e a bossanova. Vinicius de Moraes e Tom Jobim assinaram a trilha musical de Orfeu Negro – produção franco-brasileira que, em 1959, conquistou a Palma de Ouro (em Cannes) e o Oscar de melhor filme estrangeiro (em Hollywood). Vi o presidente Juscelino poucas vezes. A primeira, em Brasília, no pátio da escola pública onde estudávamos. Democraticamente freqüentada por filhos de operários (que trabalhavam na construção dos edifícios), de deputados, de senadores, de ministros. Chegou de helicóptero, numa tarde ensolarada. Vestia terno escuro e gravata azul-clara. Guardei, para sempre, sua figura magra, alta e alegre. A segunda vez que o vi foi em meu
casamento. Convidado, por meu pai, para ser padrinho. Neste tempo, a perseguição que lhe fazia a ditadura ainda era rude. Era obrigado a depor, diariamente, na Policia Federal. Já não tinha, então, o mesmo vigor. Nem a mesma alegria dos tempos de Presidente. Dia seguinte ao casamento, viajamos no mesmo avião que o levaria de volta ao Rio de Janeiro, escala do nosso vôo para Buenos Aires. José Paulo comprou no aeroporto, como que para perpetuar aquele momento, um livro sobre a construção de Brasília. Assinou dedicatória que colocamos em um quadrinho: “Aos queridos afilhados, cujo convite nos encheu de honra e prazer, os nossos votos de felicidades neste pequeno álbum que evoca a epopéia de Brasília”. Mas JK era também, e sobretudo, um amante das boas coisas da vida. Não bebia muito. Gostava de champanhe rosé e de uísque. Nesse ponto, contrariando o dito popular segundo o qual, em Diamantina, todos bebem muito – “na Diamantina nasci,/ É minha terra pois não./ Bebendo pinga cresci/ E hei de morrer no pifão”, ainda hoje se diz por lá. Sua fama de boêmio, galante e pé-devalsa corria o país. Herança do pai, o caixeiro-viajante João César de Oliveira. Mas era, sobretudo, um apreciador da cozinha de sua terra. “Comia com alegria e valorizava a comida”, diz Dona Lucinha, dona de restaurante em Belo Horizonte, que lhe preparou várias refeições. Gostava de comida caseira, bem simples, temperada com folhas de cheiro e pimenta malagueta. Preparadas com gordura de porco e urucum. Comida feita em panela de pedra e de ferro, colheres de pau e tachos de cobre, lembranças de sua infância pobre. Apesar de naturalmente elegante, era homem de hábitos simples. Sem formalidades. Gostava de ir até a cozinha antes das refeições, para cumprimentar os cozinheiros e cheirar a comida. Antes de começar a se servir, tinha o hábito de tirar os sapatos. Justificava, dizendo ser por conta de um dedo quebrado. “Este dedo vai te incomodar para o resto da vida”, preveniu Dr. Matta Machado. Entre os pratos de sua preferência, tutu à mineira, costelinha com orapro-nobis, leitoa assada, lombo de porco com fios de ovos, frango ao molho pardo, lombo de panela, empadão de galinha, macarronada. “Frango e costelinha, costumava pegar com as mãos”, lembra Dona Lucinha.Tudo acompanhado de angu, polenta, couve, batata inglesa, batata-doce, feijão, farofa e arroz. Sobremesa quase sempre era geléia de jabuticaba, doce-de-leite, de laranja-daterra, figo e goiaba com queijo de minas. Além de babaContinente fevereiro 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS de-moça – seu doce preferido. Sem esquecer o berrante, cincerro, café com rapadura e, claro, pão-de-queijo. Mas nem sempre era possível ter à mesa, em Brasília, seus pratos mineiros. Especialmente nos grandes banquetes da época. Que no Palácio, segundo o protocolo da época, continuava-se a reproduzir uma cozinha internacional – lagosta ao termidor, strogonoff de carne, camarão à Newbourg, supremo de frango à Kiev, supremo de frango à cubana, lombo à Califórnia, peixe à belle Meunière, coquetel de camarão, camarão à grega, arroz de Braga. Nem havia, naquele tempo, as opções de carne que temos hoje. Essa carne era, então, basicamente contra-filé, alcatra, costela e filé – tornedo, medalhão, acebolado, à cavalo, à Chateaubriand e à parmegiana. Sobre esta última receita, uma curiosidade. É que seu nome sugere se trate de prato originário da cidade de Parma, na Itália. Embora, na verdade, deva-se apenas, ao fato de ser preparado com o famoso queijo de lá – o parmegiano. Trazido ao Brasil pelos italianos da região da Campania (Napoli). Nos muitos banquetes oferecidos por Juscelino, começaram também a aparecer os primeiros réchauds – para cá
RECEITA: LOMBO DE PANELA INGREDIENTES: 1 kg de lombo de porco, 200ml de suco de limão, alho amassado, 1 cebola cortada em rodelas, 250 ml de vinho tinto seco, 1 folha de louro, 2 colheres de sopa de gordura, 1 colher de chá de açúcar, sal e pimenta a gosto. PREPARO: •Tempere o lombo de véspera com suco de limão, alho, cebola, vinho, folha de louro, sal e pimenta. •·Aqueça panela de fundo grosso, junte gordura e açúcar. Doure levemente. Coloque o lombo na panela, virando até que fique dourado. •Despeje na panela o líquido dos temperos e cozinhe, até que o lombo fique macio. Se for preciso, junte um pouco de água •Sirva com arroz, farofa, tutu, fatias de abacaxi e ameixas pretas sem caroços. Lombo de panela preparado no restaurante Ô Mineiro
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trazidos, em 1952, por Fabrizio Tatini, um cozinheiro de Florença. E que, em Santos, acabou abrindo o restaurante “Don Fabrizio”. Faltando só lembrar que a bebida oficial desses banquetes de JK era o White Horse, uma das primeiras marcas de uísque a chegar por aqui. E também Cuba libre (rum com coca-cola), licor de menta, o pastis Pernod (de sabor semelhante ao absinto, feito com anis estrelado) e o “Rabo de Galo” (mistura de vermouth Cinzano com cachaça). Em 22 de agosto de 1976, recebemos a triste notícia de sua morte. Elliot disse, em “Terra Devastada”, que “abril é o mais cruel dos meses”. Aqui, no hemisfério sul, esse mês é agosto. Sempre agosto. Mês em que também morreram Getúlio Vargas e Agamenon Magalhães. Ainda hoje não sabemos se foi acidente ou atentado. Por coincidência, ou não, em menos de um ano morreram os principais lideres de oposição à ditadura – João Goulart, Carlos Lacerda e Juscelino. Com ele perdemos a mais perfeita imagem do brasileiro cordial e otimista. Para sempre seja lembrado. •
Bárbara Wagner
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
O “remédio” que JK me deu
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uziânia, pertinho de Brasília, fazenda de Juscelino Kubitschek, julho de 1976. Andamos uma tarde inteira pela sua propriedade, ele galhardamente montado num alazão, eu me sacolejando num jipe pessimamente dirigido. Voltei moído, os músculos maltratados. Desabei, um tanto arfante, numa das largas poltronas da varanda, à espera de retomar o fôlego e as forças. Vendo-me assim, amarfanhado e derreado, Juscelino falou: – Espere só um minuto que seu remédio já está vindo. Adolpho (Bloch) me preveniu e já tomei as providências. – Que remédio, presidente? Tenho horror a remédio. Não tomo sequer aspirina. Ele riu: – Ora, Joel, comigo você não precisa ter constrangimento. Tome seu remédio. E naquele instante exato surgia na varanda um bem-posto garçom, todo de branco, trazendo numa bandeja um balde de gelo, um copo de cristal e uma garrafa intacta de um soberbo uísque. Era o meu remédio. Que consumi até a última gota – antes e depois do jantar, horas a fio, noite adentro em conversa com JK, o qual, diga-se de passagem, naquele tempo todo não bebeu mais que dois copos d’água. Se tanto. •
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Hans Manteuffel
CARNAVAL
O Galo
da Madrugada e o Reino do Pernambucarnaval O Galo da Madrugada é um fenômeno de resistência cultural, de explosão popular, de convivência pacífica e harmoniosa da massa humana com todas as diferenças, grandezas e misérias Gustavo Krause
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á quem diga que, 10 mil anos antes de Cristo, nossos ancestrais carnavalizaram ritos para espantar os demônios que ameaçavam as boas colheitas. Qualquer que tenha sido origem, tempo ou espaço, a verdade é que o carnaval, a exemplo do futebol, foi abrasileirado. É uma produção cultural de gente mestiça, musical, malemolente. Transformou-se numa paixão nacional com essência e estética própria. Com efeito, a essência/estética desta festa verde-amarela é sincrética e polimorfa; é pagã e cristã; mistura o profano com o sagrado; tem a alegria dos arlequins e a tristeza dos pierrôs; dança ao ritmo alucinante do frevo-de-rua e aos acordes plangentes do nostálgico frevo-de-bloco; ao tempo em que subverte as regras sociais, devota irrestrita obediência à liturgia das tradições; une traços de confronto social com irresistível pendor democrático, tanto que, uma vez instaurada a efêmera monarquia momesca, se integram pacificamente a “nobreza” e o “terceiro estado”, sob o dístico revolucionário “liberdade, igualdade e fraternidade”, dizendo melhor, no reinado da majestade Momo, todos são livres, iguais e irmãos. Antes de chegar aos pagos brasileiros, o carnaval passou por um estágio de dominação lusitana com o nome de entrudo e o famoso “Zé Pereira” foi o apelido dado a um português chamado José Nogueira de Azevedo Paredes que, em 1846, fez uma barulhenta passeata na segunda-feira do período momesco, na cidade do Rio de Janeiro. Por aqui, o entrudo e Zé Pereira foram tomando forma à nossa imagem e semelhança: a festa nasceu como uma concessão dos senhores aos escravos; dos patrões para empregados; da elite para a ralé. Continente fevereiro 2006
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A simples concessão para o folguedo, logo, logo, foi sendo reelaborada, de baixo para cima, incorporando traços e costumes dos elementos formadores da cultura brasileira e fundindo ritmos, danças e gingados, de tal forma, que explodiu como um espetáculo belo e contagiante, sem similar no planeta Terra. Em Pernambuco, particularmente no Recife e Olinda, sem qualquer ufanismo, a festa é um caso muito especial no mapa do carnaval brasileiro. Por aqui, continua sendo festa do povo e seu berço é a rua. Sua propagação se deu por meio de troças, blocos, associações recreativas; seu território cresceu e foi das ruas para os bairros e dos bairros tomou a cidade inteira; os salões dos clubes elegantes não resistiram à “ofegante epidemia” que se chama carnaval. É verdade que, de muita coisa boa e bonita, resta, apenas, o registro da memória histórica. Também, pudera, a urbanização enlouquecida afetou (e para pior) as várias dimensões da convivência humana nas cidades desfiguradas. É aí que entram em cena o bairro de São José e um punhado de almas que, faz 28 anos, resolveu, como os heróis de Guararapes, resistir e vencer a guerra que mata a tradição e a identidade cultural da nossa gente. Continente fevereiro 2006
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Fotos do primeiro desfile do Galo da Madrugada, pelo bairro de São José, em 1978
FOGO DO GALO (Letra: Gustavo Krause / Música: Luís Bandeira) O sol do sábado vai me tostar Fogo do Galo vai me queimar (refrão) Mas eu não paro de brincar Belisca o mé pra me calibrar Vou todo ano A Padre Floriano Fantasiado de alegria Embriagado de folia O Galo canta
E anuncia A madrugada de um novo dia Acorda Recife! Ao som dos clarins E o carnaval fervendo em mim Desperta Recife! História De belas ruas e muita glória Evoca Recife! Saudade Dos meus amores Da minha cidade.
Rodrigo Lobo/JC Imagem
Fotos: Arquivo do Galo
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Arnaldo Carvalho/ JC Imagem
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Hoje, a multidão se comprime nos megadesfiles que ocupam parte do centro do Recife
Sob o comando de Enéas Freire, eu, no meio deles, prefeito do Recife, autoridade desmascarada pelo faro do insuperável repórter Francisco José, era um simples folião, amedrontado – é verdade –, com o que podia pensar e dizer a implacável opinião pública. Aos poucos fui sendo perdoado pelos pecados cometidos em nome da folia e ganhei a indulgência de freqüentar o desfile do Galo, abraçado aos primeiros raios do sol do sábado de Zé Pereira, sem a paga de um Padre-Nosso de penitência. A paixão à primeira vista transformou-se no amor incondicional de todos os sábados de carnaval. Não abro mão dos hábitos (café regional, regado a vodka com cuscuz) e da liturgia (chego muito cedo na Padre Floriano). E se chego cedo é para não perder um espetáculo deslumbrante: o Recife se espreguiçando; o bairro acordando; as pessoas chegando sozinhas ou em grupos, fantasiadas e dispostas a integrar uma população inteira que, durante horas, se entrega ao devaneio de uma vida que só conhece alegria. O Galo da Madrugada é um fenômeno de resistência cultural, de explosão popular, de convivência pacífica e harmoniosa da massa humana com todas as diferenças, grandezas e misérias. Neste sentido, já ouvi muitos depoimentos sobre o Galo. Entretanto, o mais expressivo veio de famoso cineasta judeu que, ao contemplar a multidão incalculável, do alto do Trianon, disse, boquiaberto: “Agora, eu acredito que a paz é possível”. De fato, ali estavam presentes todos os ingredientes da confusão: bebida, sensualidade, libertinagem, revogação de limites. No entanto, o congraçamento em nome da folia une mais do que separa as pessoas. Continente fevereiro 2006
Fotos: Beto Figueirôa/ JC Imagem
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No meio da massa, centenas de grupos exercem a sua criatividade
Isto tem uma explicação: o Galo da Madrugada é especial personagem de uma utopia chamada “O Reino do Pernambucarnaval” que assim pode ser descrito: Território: “Recife, cidade lendária” e “Olinda, cidade eterna”. Governo: ginecocracia absoluta exercida pela Rainha do Maracatu com poderes mágicos de fada-madrinha e de Santa. O Rei Momo é o bobo da corte. Constituição: “Art.1°- Fica instituído o reino da alegria e decretada a folia, em todo o território do Pernambucarnaval, sob os acordes do Frevo e do Maracatu. Art. 2°- Esta constituição estará em vigor do sábado de Zé Pereira até a Quarta-Feira de Cinzas, revogados a tristeza, o mau humor, o pessimismo e o azar”. Neste reino, não haverá saudades. Todos estarão vivos, “de braços para o alto/frevando sem parar”, assim na terra como no céu. As mulheres serão “morenas da cor de canela”, “diabos louros com cara de gente”, “mulatas da alma cor de anil”. E todas terão “pele macia, carne de caju, saliva doce...” Os homens serão bons e pacíficos. Sairão fantasiados de anjos, dizendo a uma só voz: “Olinda, quero cantar a ti esta canção”.
(O amor será livre, leve e louco). Todos comerão o Pão que Deus amassou. Beberão “bate-bate com doce”. Provarão do vinho que Baco ofertou. E a sobremesa será filhós. À noite, serão iluminadas as casas e as ruas (em vez de lâmpadas) por pedaços de lua. “Na madrugada do terceiro dia”, choverá um minuto de cinzas para lembrar que somos pó e que ao “Bacalhau na vara” retornaremos. Depois, todos dormirão em paz. Durante 361 dias, sonharão com “serpentinas partidas”, até que “o Galo canta e anuncia a madrugada de um novo dia”. •
Mariana Guerra/JC Imagem
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Uma história de blocos e saudades, focalizando o contexto histórico e social onde nasceu, decaiu e renasceu o frevo-de-bloco pernambucano
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Evoluções!
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á coisa de 10, 11 anos, um movimento começou a tomar conta do carnaval do Recife: a “retomada” de manifestações tradicionais, como o maracatu e o frevode-bloco. Da manifestação carnavalesco-religiosa dos negros pernambucanos, trazida de volta ao palco principal da festa pelos garotos conhecidos como mangueboys, à frente Chico Science e Fred Zeroquatro, já se registrou alguma coisa, fruto de pesquisas publicadas recentemente. Do ritmo lento e nostálgico que reconquistou de vez a classe média recifense, a ponto de tornar-se um fenômeno marcante, pouco se estudou. Essa lacuna começa a ser parcialmente corrigida com recente trabalho do jornalista Amilcar Bezerra e do historiador Lucas Victor, Evoluções! Histórias de Bloco e de Saudade. O trabalho centra-se especialmente na história do Bloco da Saudade, surgido no carnaval de 1973, tendo como inspiração a obra do compositor Edgar Moraes e mentor o músico Zoca Madureira. A ele se sucederam outros e mais outros, que, congregados no Encontro dos Blocos, a partir de meados dos 90, tomaram grande visibilidade e passaram a mobilizar público considerável no bairro do Recife Antigo, estendendo depois praticamente a toda a região metropolitana. O livro de Amílcar e Lucas não apenas registra com minúcias a história do bloco-líder desse renascimento carnavalesco, como contextualiza a evolução do gênero, relacionandoa à história social da cidade, à economia da música e do carnaval, às relações entre as classes, sem desprezar a distinções estéticas entre os vários tipos de frevo. Os blocos líricos surgiram nos anos 20 no carnaval do Recife, como uma manifestação da “elite de responsabilidade”, em contraposição ao carnaval “bárbaro” dos clubes pedestres (onde se tocavam os dobrados que se transformariam no frevo-derua) e dos maracatus dos negros ex-escravos. Mas não tinham um tipo específico de música. Seu repertório incluía lunduns, polcas, tangos cateretês, cantigas, modinhas, marchinhas, fados e canções em voga. Foi da mistura destes gêneros que surgiu o
Fotos: Divulgação
CARNAVAL
O Bloco da Saudade na Praça Dezessete, em 1976
frevo-de-bloco, mais lento e de temas nostálgicos. Os autores acentuam inovadoramente a possível influência das jornadas de pastoril na composição desse amálgama musical, salientando a semelhança melódica entre eles. É uma pista que representa uma contribuição e tanto para trabalhos posteriores. Por outro lado, menosprezam a influência do fado, que está patente no leitmotiv de toda composição de bloco – a saudade, como já registrado no artigo “Fado e frevo, uma saudade só”, de Antonio de Campos (Continente nº 50, fevereiro de 2005). Outro aspecto curioso enfatizado pelos autores é o fato de o frevo-de-bloco não haver entrado no circuito comercial da indústria fonográfica e de rádio-difusão, sendo ouvido somente durante os ensaios e as apresentações das agremiações durante o carnaval. Somente no final da década de 50, com a gravadora Rozenblit, que conquistou seu primeiro sucesso nacional com o “Evocação”, de Nelson Ferreira, em 1957, o ritmo entrou no mercado fonográfico. A Evoluções! Histórias de gravadora pernambucana, fundada em 1952, foi fechada em 1986. MesBloco e de Saudade, Amílcar Bezerra e Lucas mo divulgado pela Rozenblit, o frevo-de-bloco não era executado nas Victor, Edições Bagaço, rádios, nem nos salões dos bailes. O sucesso viria com o Baile da Saudade, 121 páginas, com CDo Bloco da Saudade e o Festival Frevança, nos anos 70, com intensa Rom, R$15,00. Informações: 9966.9764. cobertura jornalística e publicitária. O Bloco da Saudade foi fundado em 1974 como uma tentativa de “resgatar” o brilho e a autenticidade dos velhos carnavais. Claro que o brilho e a autenticidade dos velhos carnavais não eram aqueles idealizados pelos responsáveis pelo seu renascimento. É que, como salientam muito apropriadamente os autores, “o resgate de qualquer tradição implica na sua reconstrução”. É essa abordagem, muito mais do que a história do Bloco da Saudade, narrada entretanto com detalhe e paixão, que tornam o livro peça importante na reconstituição dessa festa tão única por aqui, que é o carnaval. • (Homero Fonseca)
Amílcar Bezerra e Lucas Victor, os autores
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EDSON GUEDES DE MORAIS
Com um livro
no coração Depois de abandonar a arquitetura, a pintura, o cinema e o teatro, o paraibano Edson Guedes de Morais, apaixonado por literatura, tornou-se um “fazedor de livros” Weydson Barros Leal
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dson Guedes de Morais, 75, é um apaixonado por livros. É escritor e fazedor de livros. Desde muito jovem, despertou para a literatura como todo adolescente, primeiro escrevendo poemas e, depois, se aventurando pelo conto, a novela, o teatro. A tudo dedicou sua paixão pelas palavras e pelo objeto livro. Além de seus próprios escritos, já publicou em casa, de forma artesanal, mais de uma centena deles. Em geral, são poemas de amigos poetas ou daqueles que passou a admirar como leitor. A todos, dedica horas ou dias em sua pequena oficina – um quarto de seu apartamento, na praia de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, município vizinho do Recife – onde edita com um computador, impressoras, réguas e esquadros suas pequenas obras-primas. Seus livros são verdadeiros objetos de arte. Sua técnica é a do artista gráfico, que ele também é, de formação. Edson nasceu em Campina Grande, na Paraíba, em 23 de janeiro de 1930. Devido à atividade de seu pai, que era transportador e tinha caminhões, aos seis anos mudou-se com a família para o Crato, no Ceará. Ali passou dois anos. Em pouco tempo foram para Jequié, no sertão da Bahia e assim mudaram-se para Belo Horizonte e depois Montes Claros, interior de Minas Gerais, onde viveu sua adolescência – dos 12 aos 18 anos – e de onde traz algum sotaque. Depois da estadia mineira, viveu por alguns anos no Rio de Janeiro, onde estudou, antes de seguir para Brasília, trabalhando como professor e funcionário público por quase 30 anos até se aposentar e mudar-se para Pernambuco. Ao tentar recompor esses anos de viagem, Edson lamenta tantas mudanças. Diz que mudar tanto “é ruim, pois deixa a memória toda esfacelada, e a gente lembra tudo
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PERFIL Fotos: Roberto Pereira
Edson Guedes prepara edição dos poemas preferidos, ilustra, edita, imprime e manda cópia para o autor
misturado”. Os anos no Rio de Janeiro lhe deram as primeiras definições do que queria fazer, mas também mostraram os caminhos por onde não deveria seguir. Começou um curso de arquitetura, do qual tinha muito orgulho no começo, quando entrava nos ônibus com sua inseparável régua T, mas que em pouco tempo abandonou, por causa dos horários. Precisava trabalhar. Perto do trabalho, no entanto, ficava a Escola Nacional de Belas Artes, que Edson passou a freqüentar em pequenas fugas do expediente, para assistir às aulas de Darel Valença e outros pintores já famosos na época. Logo se tornou aluno oficial da Escola e concluiu os cursos de Desenho, Pintura, Modelagem e Artes Gráficas, em quatro anos. Mesmo com uma formação acadêmica e uma (curta) carreira de pintor, Edson evita falar sobre sua produção em artes plásticas. Chega a desconversar, e apenas diz que pintou pouco. Mas se justifica: considerava a orientação dos professores da ENBA muito acadêmica, o que não lhe dava liberdade para inventar. Tornou-sse professor de Artes Gráficas. Nesse período fez cursos de gravura com Goeldi e Darel Valença. Depois foi ser professor na Escola de Comunicação da UFRJ, ensinando Tipologia Gráfica. Já em Brasília, Edson foi professor de Comunicação Visual e História da Arte na UNB. Como quase todo artista, para assegurar seu sustento, também era funcionário público federal, tendo iniciado a carreira administrativa ainda no Rio de Janeiro. No serviço público, seu trabalho era normalmente ligado às artes gráficas, embora trabalhando em órgãos da Previdência Social e do Ministério da Fazenda. Após a aposentadoria, Edson também decidiu abandonar a atividade de professor. Continente fevereiro 2006
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Na década de 70, ele esteve nos Estados Unidos, fazendo um curso de dois meses, na área de artes gráficas, em Boston, com professores ligados à Universidade de Harvard. Nessa época já escrevia pequenas histórias imaginadas. Seu segundo livro de contos foi premiado pelo Instituo Nacional do Livro, em 1975. Alguns críticos e amigos, como Assis Brasil, Antonio Olinto e Fausto Cunha, escreveram artigos e ensaios sobre seus livros, tratando-o como um dos melhores contistas do meio. Escrevendo para teatro, teve sua primeira peça apresentada em Brasília, por 15 dias, com casa cheia. Quando ainda morava no Rio de Janeiro, também atuou como ator, mas somente por um dia, numa única apresentação. Atribui sua desistência à timidez e péssima memória para decorar os textos. Decidiu ser roteirista e diretor de cinema. Vinte anos antes, em 1956, fizera curso de cinema no Museu de Arte Mo-
ilustra, edita, imprime e manda cópias do novo livrinho para o autor, como presente. Não se importa com julgamentos sobre o trabalho, mas fica triste se não recebe um telefonema acusando o recebimento. No entanto, se o escritor presenteado decide pedirlhe uma edição extra, Edson responde: “Não aceito encomendas”. Ou seja, seu prazer é editar por prazer, e pronto. Quase todos os livros que faz são ilustrados. Assim como o artista multimídia Paulo Bruscky, Edson Morais desenvolveu um tipo de gravura em xerox muito pessoal e sofisticada, com multiplicações de imagens, quase à maneira do último Escher. Chegou a fazer uma exposição em Brasília e tem, em sua casa, algumas dessas obras pelas paredes da sala. Com elas também ilustra diversos títulos. Por seu temperamento reservado, sendo visto normalmente como um escritor recluso, quase um out-
"Algumas pessoas acham cafona os livrinhos e as caixinhas de poemas que eu faço, mas eu gosto. E eu faço para agradar o poeta. Recentemente fiz umas caixinhas de madeira, que mandei para cada poeta, cheias de cartões com poemas do autor. Jaci Bezerra fez um poema falando disso. Fiquei sensibilizadíssimo com o poema" derna e no Museu da Imagem e do Som, no Rio. Na época, comprou uma câmera e saiu pelas ruas, filmando o roteiro que inventou. Carecia de um texto condutor para ser narrado sobre o filme. O texto foi feito pelo amigo escritor Assis Brasil e gravado por outros dois amigos. O filme foi um documentário sobre a feira do livro, que acontecia no centro do Rio. A montagem e os cortes do filme foram feitos em casa, com uma tesoura. Mas conseguiu terminar e mostrar o filme para os amigos. Encerrou-se aí sua carreira de diretor cinematográfico. Para cinema, Edson escreveu dois roteiros, mas nunca chegou a filmá-los. O título de seu primeiro livro de poesia indica bem o espírito multifário do autor: Dispersão. Assim ele se divide, com alguma angústia, nas várias artes a que se dedicou e por vezes abandonou: arquitetura, pintura, cinema, teatro. O fazedor de livros Edson Guedes de Morais começou a fazer livros por paixão. Quando lê um poeta e gosta de seus poemas, prepara em casa uma edição especial dos poemas preferidos, Continente fevereiro 2006
sider, Edson considera suas edições uma homenagem àqueles que, por mérito ou destino, se mantiveram longe do grande público. Para esses, além de livros encadernados, ele pode inventar livros em caixas, placas de rua com seus nomes, placas de praças batizadas com os mesmos nomes ou diplomas fictícios. Mas entre todas as maneiras de homenagear os seus poetas, uma, talvez, seja a mais original: Edson compra garrafas de vinho – “de um bom vinho, é o vinho que eu bebo”, defende – e imprime novos rótulos, com um poema de cada homenageado. Além dos poetas e escritores eleitos em suas pequenas obras de arte, Edson Guedes de Morais também edita seus próprios livros de contos, poemas, além da novela Outras Lembranças, Outra Casa, Outros Mortos – título inspirado em Dostoievski. Tem “uma porção de romances imaginados”, mas não tem vontade de escrevê-los e editá-los como faz com obras de outros escritores. Ao ser indagado se as edições para os outros seriam um gesto de altruísmo e admiração, ele desconversa: “Na verdade, acho que é mais uma auto-afirmação.
Gaiola com livro cantando
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Jaci Bezerra
Confessou um dia a um íntimo amigo: Tem, no lugar do coração, um livro. Um livro sem rasuras, embora antigo, Que canta, aberto, como um pássaro vivo. E canta tanto e com tanto amor Que dele fez autor e editor. Certo é que cedo se entregou ao vício De criar espantos: é esse o seu ofício.
Quando eu era criança, ouvia muito aquela frase: ‘Você não sabe fazer isso, deixa que eu faço...’; já nos departamentos em que trabalhei, ligados às artes gráficas, eu era obrigado a fazer aquilo que todo mundo fazia... Tem outra coisa: acho que também é vaidade; eu prezo e valorizo muito as coisas que faço; nenhum dinheiro vai pagar isso. Eu posso passar dois meses para resolver uma idéia. Vou cobrar por isso? Eu sei que todo mundo poderia pagar, mas aí eu deveria fazer concessões. E se eu não gostar? Eu só faço o que gosto”. Entre os poetas pernambucanos, admira imensamente a obra de Jaci Bezerra, de quem já publicou pequenos livros e fez homenagens impressas. Também já sensibilizou César Leal com atitudes semelhantes. É alheio a grupos e reuniões de poetas, não suporta “a mediocridade bajulativa”, muito comum em associações de classe e, por isso, procura admirar aqueles de quem gosta quase secretamente, à distância. Ele sabe que muita gente o acha “esquisito”, mas não se importa: “Eu tenho mania de colocar poesia em tudo. Algumas pessoas acham cafona os livrinhos e as caixinhas de poemas que eu faço, mas eu gosto. E eu faço para agradar o poeta. Todo Natal eu faço algum presente para os poetas amigos. Recentemente, fiz umas caixinhas de madeira, que mandei para cada poeta, cheias de cartões com poemas do autor. Tinha uns 70 poemas de cada um. Mandei uma caixinha para cada um. Jaci Bezerra fez um poema falando disso. Fiquei sensibilizadíssimo com o poema”. •
E também tanto entregou-se à poesia Que em seu ateliê é sempre dia. Tudo o que imprime canta, ano após ano, Impregnado de sentido humano. Dele se diz, em frente à sua lavra, Que é uma ilha cercada de palavras. Mas há quem diga, alheio a sol e vento, Que é um porta-fólio de deslumbramentos. E digo eu que, sem mancha de ferrugem, Sua arte é pássaro, mas também é nuvem. Porém só imprimindo o que encanta O livro ave do seu peito canta.
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FILOSOFIA
Julián Marías e o pensamento como ofício Fotos: Arquivo/AE
No dia 15 de dezembro de 2005, faleceu em Madri, aos 91 anos de idade, o filósofo espanhol Julián Marías, um dos mais importantes pensadores do século 20 Eduardo Maia
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filósofo, sociólogo e ensaísta Julián Marías, discípulo de Ortega y Gasset, autor de 60 livros, dedicou sua vida ao estudo e à filosofia, sempre com um sentido de independência e autenticidade que, por mais de uma vez, o levou a se isolar do ambiente acadêmico do seu país. “Fui deixando passar as vigências e as modas acadêmicas: escolásticas, existencialismo, estruturalismo, filosofia analítica, marxismo”, afirmou. Para Julían Marías, o seu professor Ortega y Gasset foi a grande figura intelectual do século 20 em filosofia – e não somente na Espanha. Nascido em Valladolid, em 1914, o pensador espanhol, que após a Guerra Civil passou três meses na prisão, delatado por alguém que nunca teve a identidade revelada, só entrou como professor em uma universidade espanhola em 1980, aposentando-sse quatro anos depois. Costumava dizer que a cultura oficial nunca o admitiu, nem sequer após a morte de Franco, fato que deve ter contribuído ainda mais com sua independência intelectual e política.
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A originalidade do pensamento de Julián Marías e da chamada “Escola de Madri” está na proposição de uma visão de mundo mais “latinizada” à filosofia continental européia. Essa característica se reflete de forma clara quando se confronta, por exemplo, o pensamento hispânico com o germânico. Na filosofia hispânica não se fala tanto do Ser, como em Heidegger, mas do Estar, da situação e da circunstância, e, por fim, da radicação do Ser na vida humana. Sempre endossou a opinião de que a função primeira do intelectual é “ver as coisas e dizer o que viu, aconteça o que acontecer”. Expressou sua esperança em que, no século 21, superada a desorientação que ele via à sua volta, se daria o renascer da filosofia. Em um ensaio intitulado “O ofício do pensamento”, Marías critica o que ele acredita ser uma tendência: “Os intelectuais do nosso tempo fazem coisas demais. Têm cargos públicos, fazem vida social, presidem comissões, fazem declarações aos jornalistas, falam pela rádio e pela televisão e ainda se metem em política”, escreveu. O que estaria faltando aos pensadores, na visão de Marías, é parar realmente para refletir. E ele não está falando simplesmente em parar para ler ou pesquisar, mas para verdadeiramente produzir pensamento em solidão e tranqüilidade. Em resumo, Julián Marías distingue o pensador autêntico daqueles que ganham mérito pela quantidade de citações em notas de rodapé. Perguntado em entrevista recente sobre o que ele pensava sobre o controvertido conceito de pós-m modernidade, Julían Marías disse que o termo só serve para gerar uma confusão tremenda. Para ele, pensar em pós-m modernidade na filosofia como relativismo, como negação da idéia mesmo de verdade, é simplesmente renunciar à filosofia, “Eu tenho paixão pela verdade e, além disso, creio que a verdade é acessível, que a verdade é possível; só que a verdade não é absoluta. Quer dizer, nenhuma verdade esgota a realidade e há verdades que são distintas e são conciliáveis, porque são visões parciais da realidade, mas nenhuma delas a esgota”, disse. Julián Marías acredita que o homem está condicionado por um ponto de vista, que é parcial, mas sem dúvida verdadeiro.
Julián Marías foi o principal discípulo de Ortega y Gasset
O grande diferencial de pensadores do porte de Julián Marías é justamente não estarem limitados a lidar somente com muitas informações e erudição, que são grandes simuladoras, porque, segundo o próprio Marías, “fingem vida intelectual onde só existe manejo de inertes objetos intelectuais”. Este problema está na raiz mesma do seu pensamento “vitalista”. O verso do poeta Antonio Machado, “A distinguir me paro / las voces de los ecos”, poderia muito bem servir como divisa para o pensamento de Julián Marías. Perguntado sobre o que a idéia de finitude causava nele como pensador cristão, Marías respondeu que a morte, mais do que medo, produzia-llhe tristeza, porque a vida, dizia, “sempre vale a pena; ser pessoa é poder ser sempre mais”. • Continente fevereiro 2006
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Mortes gratuitas Esparta serviu de modelo para o nazismo e o stalinismo, e não seria excesso de imaginação tecer paralelos inversos com o nosso país, onde jovens engendraram um sistema de caça aos cidadãos comuns
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e alguém se der ao trabalho de ler os muitos volumes da História em Revista, da Time-Life Books, começando na era dos reis divinos e chegando à contemporaneidade, ficará com a impressão de que a história do homem nesses 5000 anos não passou de uma sucessão de guerras, massacres e destruições. Dos rudimentares tacapes à bomba atômica, mesmo que tenham avançado nas ciências e nas artes, os povos de todas as regiões do planeta se especializaram em matar, pondo o seu gênio criador a serviço da ruína. É bem verdade que nos encaminhamos para a morte a cada segundo, desde a
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nossa fecundação. Mas além das doenças e do envelhecimento natural das células, paira sobre nós um espectro de bombas, tiros e facadas, desferidos pelos nossos semelhantes. É como se em cada homem, além do instinto de sobrevivência se manifestasse uma pulsão destrutiva de intensidade variável, mas sempre presente na História, mesmo nos períodos de maior pujança. Morremos e matamos, de forma real ou simbólica. Os contos de tradição oral e os mitos cumprem uma função simbolizadora. Quando Iahweh, deus dos judeus, pede a Abraão que sacrifique o seu filho Isaac, como prova de obediência, ele aceita a vontade divina. Prepara o
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altar, a fogueira, a faca, mas é impedido de cumprir a promessa. O Deus aceita a oferenda de um cordeiro, no lugar de Isaac. O mito bíblico ilustra para os judeus o fim de um tempo em que se sacrificavam seres humanos aos deuses, significando uma evolução da espécie, uma capacidade de representação. Mais tarde, até mesmo o sacrifício animal é abandonado. No cristianismo, a morte do cordeiro pascoal, o Cristo, é simbolizada no pão e no vinho, carne e sangue do deus feito homem. Cometemos os nossos pequenos assassinatos de mil formas simbólicas, nos jogos infantis de guerra, nos vídeo-games, no cinema, na televisão. Dizimei os soldados que açoitavam o Cristo, esfregando suas caras maldosas com o dedo molhado de cuspe, até que não restasse nem sombra deles, nas ilustrações em papel de uma velha História Sagrada. Mais tarde continuei matando personagens na literatura e no teatro, nunca tanto como Shakespeare, para quem os padioleiros eram insuficientes, tamanha a carnificina de suas tragédias. No teatro isabelino não existiam cortinas e retiravam-se os mortos em cena aberta. Em muitas sociedades tribais, e Estados como o espartano, matar um homem representava a condição para se ter acesso à vida adulta. Era um dever instituído, uma lei bastante ritualizada. Um adolescente de uma tribo do Quênia, até bem pouco tempo, tinha de caçar um animal selvagem e matar um guerreiro de outra tribo rival para se tornar guerreiro. Em Esparta, os meninos da antiga aristocracia, os espartíatas, separavam-se da mãe ao completarem sete anos, sendo entregues ao Estado, de quem recebiam uma educação cívica. Aos 12 anos eram enviados para o campo, sustentavam-se por conta própria, dormiam ao ar livre, aprendiam a roubar. Desse modo, fortaleciam o físico e desenvolviam habilidades. Aos 17 anos, passavam por um ritual que consistia em se esconderem durante o dia e, à noite, degolarem o maior número possível de escravos. Quem sobrevivia a essa prova era considerado adulto, recebia um lote de terra, e tinha direito a servir como soldado, morando num quartel. A matança criava um permanente estado de terror entre a população escravizada, cuja condição de vida era das mais miseráveis no mundo antigo, além de limitar o seu crescimento.
Esse relato abominável parece perdido na História. Mas Esparta serviu de modelo para o nazismo e o stalinismo, e não seria excesso de imaginação tecer paralelos inversos com o nosso país. Aqui, os jovens abandonados pela sociedade civil e pelo Estado engendraram um sistema de caça aos cidadãos comuns. Armados de todas as maneiras possíveis, eles roubam e matam, em idades cada vez mais precoces, autodidatas das ruas, de favelas e invasões, bando miserável e psicótico, que encontrou na violência o único meio de sobreviver. Só que esses jovens, a maioria usuários de drogas, também são caçados por rivais do mesmo grupo social ou pela polícia, supostamente a serviço da lei, mas igualmente marginal. Cansei de violência, enfraqueço a cada novo relato de violência. Torno-me melhor à medida que mato menos personagens em contos, novelas e peças de teatro. Do hábito infantil de destruir soldados nas ilustrações de uma velha Bíblia, restou apenas o exercício de apagar da agenda o nome, o endereço e o telefone dos amigos que se foram. Com borracha ou corretivo, transformo em vazio as linhas cobertas de letras. Em mim, os nomes não se apagam nunca: Horácio Carelli, George Laederman, Natércia Campos, Zilah Mota, Renato e Lourdinha Antunes... O mais recente, Antonio Carlos Escobar. Ele morreu porque era um cavalheiro. “Como pode um ser humano participar tão intensamente do perigo ou da dor que aflige o outro a ponto de, sem pensar, espontaneamente, chegar a sacrificar a própria vida?”, pergunta Joseph Campbell. Eu não sei responder. Talvez Antonio Carlos Escobar, que dedicou a vida a escutar a dor alheia, e que até o último instante quis ajudar uma pessoa, soubesse. Mas ele foi morto por um rapazinho que saiu à caça do não sabe o quê, nem para quê. Esse jovem não era espartano, nem queniano. Nem era movido pela educação rígida de um Estado ou Tribo. Movia-se no escuro da indiferença da sociedade e da ausência do Estado. Caçava, de revólver em punho, nas ruas do Recife, uma cidade do Brasil, nação que não se envergonha de possuir uma das maiores concentrações de renda do planeta. E o rapazinho matou. E todos nós morremos um pouco com esse estampido. • Continente fevereiro 2006
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A invenção da cachaça De alimento para cavalos, cabras e ovelhas, a cachaça saiu das senzalas e tornou-se símbolo nacional Carlos Jatobá
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cachaça nasceu aqui, é brasileira, com matéria-prima e mão-de-obra nacionais, ainda que com alambiques lusos. Assim pode ser definida a história da cachaça do Brasil, que há mais de 400 anos saiu da tosca biboca dos escravos para ser servida, nas casas-grandes, aos senhores de engenho. Cachaça é uma aguardente de cana-de-açúcar (ou da borra de mel de açúcar) produzida a partir do mosto fermentado. Significa, também, em sentido figurado: mania, inclinação forte, obsessão ou, até, paixão dominante. O produto destilado (o álcool da cana-de-açúcar antes de virar a cachaça) pode ser dividido em três frações: a cabeça (a primeira, em torno de 10% do total destilado, é rica em aldeídos e desaconselhada para o consumo); o coração (a segunda, ao redor de 80%, é a que contém a menor quantidade de impurezas voláteis, como ácidos, álcoois superiores, furfurol
REGISTRO Imagens: Reprodução
Casa de engenho
e outros, constituindo, dessa forma, a melhor fra- Também, nos dias úmidos e frios, tornava-se ção do destilado); e a cauda (a terceira e última, essencial a ingestão de uma dose da cachaça. Era outros 10%, constituídos de água fraca, em que a também excelente lenitivo para cativos adoenquantidade de álcool é pequena em relação à tados. Dizia-se que podiam passar malvestidos e mal-alimentados, mas jamais sem um gole de quantidade de água). A cachaça era, tão somente, a espuma da cal- aguardente. Entre os muitos aspectos folclóricos do seu deira (denominada tiborna em português e cachaza, em espanhol-castelhano da América do uso, propagam-se os de natureza medicinal, coSul), em que se aquecia o caldo de cana a fogo mo as inúmeras receitas caseiras elaboradas de lento, que era retirada com grandes escumadeiras remédios à base de cachaça. Ela esquenta no frio, para a purificação do líquido, e servia como ali- refresca no calor, afoga mágoas, atenua saudade mento para cavalgaduras, cabras e ovelhas. Nu- e, também, cura doença do corpo e da mente. ma outra versão explica-se que esta espuma era Misturando-a com alguns tipos de ervas, recodenominada cagaça, em corruptela de pronúncia menda-se seu uso para um sem-número de doen– por parte dos escravos – do nome original. Por ças: picadas de cobra, astenia, reumatismo, sífilis, fim, a versão de que é aceita como sinônimo de maleita e outras. Até mesmo para o vício da bebiporco ou cerdo (cachaço) e porca (cachaça). Ou da dizia-se ser ela eficaz: ao bebedor renitente, ainda, caitatu ou caititu (porco-do-mato: animal nada como aguardente acompanhada de rodelas da família dos suínos característicos da América de caju com sal, de limão com mel de abelha ou do Sul) chamado, também, de cachaço – o macho com hortelã, da folha-miúda, macerado. Os cachaceiros contumazes reprodutor da espécie e que, “derrubam a branquinha”, dando por possuir a carne muito duum forte estalo com a língua no ra, era comum o uso de acéu da boca, fazendo careta e guardente da cana para amarebatendo guturalmente: “Eita ciá-la. coisinha ruim, ‘fia-da-peste’, mas No Nordeste, os senhores eu gosto dela assim mesmo...”. de engenho passam a servir a A cachaça não poderia ficar cachaça, para acalmar os ânide fora de um dos aspectos mais mos dos escravos na primeira importantes da vida do brasileirefeição do dia, a fim de que ro: a religião ou, mais precisapudessem suportar melhor o mente, o sincretismo religioso. trabalho árduo dos canaviais. Rótulo da cachaça “Degolada viva” Continente fevereiro 2006
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Acima, Moenda, de Raineri (água-forte aquarelada, séc. 19) Ao lado, caldeira de melaço, foto de Lula Cardoso Ayres
Nos cultos afro-brasileiros, por exemplo, é sobejamente utilizada nos “despachos” das encruzilhadas, nos “banhosde-descarga” e nas incorporações pelos “cavalos” (médiuns), em estado de transe, durante os “trabalhos-de-terreiro”. Já a famosa “parte do santo” é o nome dado ao ritual do degustador que, antes do primeiro gole, faz a oferenda ao “santo”, derramando o equivalente a um gole, em torno de um imaginário “círculo de proteção” à sua volta. A cachaça remonta aos primórdios do século 16, como sendo a primeira bebida destilada entre nós. Inicialmente, era consumida pelos escravos e evoluiu posteriormente como produto nacional do meio rural e de cidades do interior. O êxodo rural levou para a cidade o gosto interiorano pela bebida dos escravos. O regionalismo e a pulverização em pequenos fabricantes ainda são características principais do mercado de aguardente, embora já haja algumas marcas nacionais famosas. Dos meados do século 16 até metade do século 17, as famosas “casas de cozer méis”, como está registrado, multiplicam-se nos engenhos. A cachaça torna-se moeda-de-troca corrente para compra de escravos na África. Em conseqüência de sua valorização, alguns engenhos começaram a Continente fevereiro 2006
dividir atenções entre a fabricação do açúcar mascavo e da cachaça. O que era para ser originalmente bebida para os escravos, para amenizar o banzo (saudades da terra natal), foi ganhando aprimoramento e passou a ter grande importância econômica no período Brasil-Colônia. Porém, tal fato tornou-se uma ameaça aos interesses lusitanos, pois a aguardente “bagaceira” passou a ser consumida em menor escala, enquanto que a cachaça saiu das senzalas e se introduziu não só na mesa do senhor do engenho, como também nas casas de mazombos (filho de portugueses aqui nascidos) e de portugueses. Em 1756, a aguardente de cana-de-açúcar foi um dos gêneros que mais contribuíram com impostos voltados para a reconstrução de Lisboa, abatida por um grande terremoto em 1755. Para a cachaça são criados vários impostos conhecidos como “subsídios”, como o literário, para manter as faculdades da Corte portuguesa. No final do século 18, por exemplo, a cachaça se tornou popular entre os intelectuais que sonhavam com um país independente de Portugal. A presença da bebida em reuniões clandestinas, nas primeiras tentativas de rebelião
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contra Lisboa, era obrigatória. A produção da cachaça já tinha se firmado e estava sendo exportada para Angola (só no final do século 18 e início do 19 estima-se que seguiram, para Portugal e África, em torno de 50 mil litros de aguardente brasileira), insurgindo-se contra o “exclusivo comercial” da Metrópole. Na Revolução Pernambucana de 1817, bem como nas lutas precedentes, de Independência, a cachaça representou um grande papel. Sua produção e consumo já estavam tão disseminados e identificados com a terra que a cachaça tornou-se, então, sinônimo de brasilidade, sendo a bebida da nacionalidade brasileira. A situação tornou-se tão extrema que, em certos lugares, não beber cachaça era considerado pouco patriótico. Em 1819 já se podia dizer que a cachaça era a aguardente do país. Com a modificação no panorama das classes no Brasil, após a libertação dos escravos em 1888, a aguardente de cana torna-se a bebida mais consumida no país. A grande massa composta por ex-escravos possuía uma vida minguada e a cachaça era uma forma de sobrevivência, sendo usada largamente em rituais religiosos africanos, folguedos populares e no consumo diário. No Brasil, recém-republicano, o hábito do consumo da cachaça pela classe alta demorou muito. Os antigos aristocratas, almofadinhas, janotas e “narcisos afrancesados” envolvidos pelo charme europeu da belleépoque, rejeitavam o produto nacional. Hoje, a cachaça é marca nacional brasileira e tem sua importância, além de cultural, econômica e política: o beber e produzir cachaça invadiu todas as esferas da vida brasileira. Calcula-se que mais de 70 milhões de doses de cachaça sejam consumidas diariamente no Brasil. • Divulgação/Museu da Cachaça
Acervo do Museu da Cachaça, em Lagoa do Carro – PE
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Palavra de estadista Só Nonô cumpria o que prometia
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inda abalado com o inesperado suicídio de Vargas dez meses antes, o Brasil, apesar de sua complicada democracia, fervia seu povo com avidez pelo voto livre novamente. Uma porção de pretendentes ao poder maior corria o país, choramingando apoio dos chefes políticos – principalmente nos currais eleitorais, bem comuns nas “sesmarias” de coronelatos sertanejos. Em comícios e cochichos de pé-de-orelha, homens como Juscelino Kubitschek de Oliveira, Juarez Távora, Adhemar de Barros e Plínio Salgado andavam do Arroio ao Chuí, mas a parada federal estava entre JK e o marechal. Eu vi Juscelino candidatíssimo, em 1955, nos grotões do sertão nordestino. Ainda meninote, assisti a sua chegada bem cedo ao município do Salgueiro, descendo de um lustroso Studbaker preto do coronel Veremundo Soares, que o acompanhava seguido de uma ruma de carros da sua comitiva e marinetes cheias de entusiastas eleitores. Ele buscava o apoio decisivo no território pernambucano do coronel – o “senhor dos votos” em quase toda região sertaneja, visto ter, o mesmo, alianças partidárias e de amizade com outros chefes políticos vizinhos, tais os coronéis Chico Romão, Seu Quelé Coelho, o prefeito Raul Soares, o ex, Osmundo Bezerra, cabos eleitorais... O escambau a quatro. No Chalé Villa Maria, dos Soares, a esperá-lo uma festa daquelas. Ruas cheias e engalanadas, foguetórios e o povo animado e elegante – os homens metidos nos seus engomados ternos de linho, paletós exibindo bogaris na lapela, chapéus em punho a saudá-lo, e as mulheres trajadas de vestidos floridos, embainhados abaixo dos joelhos, sorridentes e garbosas no atendimento aos convidados. Nesta onda atual de tributo aos 30 anos do trágico falecimento do maior de todos os presidentes da República que o Brasil já teve em sua história política, nada mais oportuno do que relembrar essa passagem alvissareira de JK, que bem poderia ter figurado na atual minissérie da Globo. Ao lado do coronel e sempre acenando com seu chapéu de feltro branco, JK tratou de cumprimentar a matrona Dona Maria e aboletou-se numa cadeira de balanço, pediu licença, tirou
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os sapatos e esfregou os pés embotados de meias no chão frio e escorregadio do terração ventilado. Um cafezinho aqui, um charuto acolá, muito falante e sorridente, JK elogiou a construção do Chalé, deliciou-se com o ponche de serigüela e abriu a conversa. – Estou muito honrado de estar aqui, coronel, e certo do seu apoio inestimável à minha candidatura, uma vez que o seu partido coligou-se... – Olha aqui, Juscelino, eu vou recomendar a todos do PSD daqui para votarem em sua chapa fechada, chefe partidário que sou... Mas me desculpe quanto ao meu voto e de minha mulher. Serão para o Adhemar de Barros que é nosso amigo particular... – O senhor está corretíssimo. O seu amigo e meu cordial adversário Adhemar é um homem que merece... Parabéns pela fidelidade partidária e pela sua lealdade – arrematou JK com simpatia e elegância diplomática, num raposismo fouchetiano. Após uma suculenta panelada, um digestivo digno de um proveitoso diálogo. – Agora, coronel, gostaria de retribuir ao senhor tamanha atenção e sinceridade. O que eu poderia fazer pelo amigo, caso seja eleito presidente?... – Para mim, nada... Agora, para minha terra, sim. Mande fazer um açude grande, pois já é tempo do meu povo ter fartura de água, e encanada, para todas as casas. – Pode ficar certo que, se eu chegar ao Catete, o povo do Salgueiro terá o açude sonhado e o senhor a minha palavra cumprida... E, abraçando o velho “pessedista”, já de saída, no portão, virou-se e acrescentou: “Eu vou construir a nova capital do Brasil, coronel, quanto mais o seu açude!” – e abriu aquele sorriso contagiante. Obviamente que ninguém acreditou. No dia três de outubro, JK foi eleito presidente (1956/60) e quatro anos depois a população do Salgueiro ganhou o açude do Boa Vista. O coronel Veremundo Soares conferiu a palavra de um estadista e o Brasil ganhou a mais moderna capital do mundo. – Só Nonô fazia tudo isso de uma vez só – diria, mais tarde, sua mãe Dona Júlia. •
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