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Reprodução
EDITORIAL
Detalhe do quadro A Sagrada Família com um Gato, de Rembrandt, 1646
A simbologia do fogo e a luz de Rembrandt
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o homem das cavernas ao jovem que, em sinal de protesto por sua exclusão social, incendeia automóveis em Paris, o fogo sempre habitou o imaginário dos seres humanos. Como nas polêmicas pré-socráticas, a história do uso do fogo pela humanidade espelha uma essencial ambigüidade. Vai da adoração dos primórdios, passa pela cremação dos mortos (e dos vivos, se fossem hereges ou “bruxas”), pela fogueira de livros, pelo incêndio de casas e vilas inteiras, pela domesticação das tochas, da lareira e do fogão, até chegar aos dias de hoje, em que o protestoespetáculo surge como a maior imagem contemporânea do fogo. A Inquisição acreditava exorcizar o demônio entregando às chamas as suas vítimas. Destruir o mal pelo fogo era o seu desígnio. A ferro e fogo se fundaram os reinos e as nações. Em diferentes culturas de variados recantos do planeta e em variadas épocas, a relação do homem com o fogo migra do respeito reverente ao desejo dominador – numa rota de ida e volta que o tempo não consegue diluir: medo e fascínio se alternam no olho que fita a chama. A posse do fogo é muito mais simbólica hoje. Ele deixou, em boa parte, de ser uma experiência do sagrado, mas continua a exercer a sua influência. De maneira diferente, claro. Às vezes, surpreendente. A professora
Danielle Perin Rocha Pita, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudo do Imaginário, da UFPE, aplicou, certa vez, um teste baseado em Jung e Bachelard, em grupos de índios fulniô, do interior de Pernambuco, e em estudantes universitários. Ela achava que, na cidade, porque o fogo é domesticado, seu significado fosse alguma coisa positiva. E que para os índios seria uma coisa negativa. Pois foi o inverso. A história social do fogo, que se nos traz surpresas também reafirma tendências atávicas expressas no protesto, na destruição ou na purificação, é o tema da nossa reportagem de capa. O fogo do gênio, que se fortalece mesmo na adversidade, está exemplarmente expresso na trajetória do pintor holandês Rembrandt. Rico e famoso enquanto pintava de acordo com o gosto da época, diferentemente de seus colegas buscou um estilo próprio, o que acabou afastando os compradores. Empobreceu e foi desprezado, mas tornou-se um precursor da pintura moderna. Isso, há 400 anos. Seus retratos, em que o caráter do retratado é mais importante do que a figura física, sua técnica de iluminação dramática, seus grupos em atitudes dinâmicas, são algumas das contribuições deste artista que ficou quase 200 anos esquecido, para ser redescoberto como um mestre de mestres. • Continente março 2006
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CONTEÚDO Nélio Chiappetta
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O fogo como mito em pleno século 21o
Camilo Soares
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Amílcar Bettega ganhou o Prêmio Portugal Telecom
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CONVERSA
FOTOGRAFIA
04 Luiz Ruffato: “Toda arte é engajada”
59 Passageiros do Galo nas estações do Metrô
CAPA
CINEMA
12 O fogo como espetáculo contemporâneo
62 Brokeback Mountain traz à tona a discussão sobre a
15 O fogo entre o mito e a razão 18 A predominância da luz sobre o calor 20 Uma psicanálise do fogo 22 Além do fast food televisivo e da ditadura da informática
LITERATURA 24 Amílcar Bettega cria bolhas de ficção em Paris 28 Convergências entre os pré-socráticos e o faroeste 32 Cláudia Ahimsa recria itinerário de imagens e viagens 33 A poesia do italiano Emilio Coco 34 Prosa: Quando Castro Alves desceu do pedestal 36 Agenda Livros
ESPECIAL 40 Rembrandt, barroco, moderno, acima de classificação 45 O banal e o sublime no claro-escuro magistral 45 Um texto de Joaquim Cardozo sobre “o gênio universal” 45 Até o século 19, o pintor era celebrado como gravurista
ARTES 54 Exposição mostra evolução da arte cubana 58 Agenda Artes Continente março 2006
existência de uma estética homoerótica
IMPRENSA 72 Apontamentos para uma história das colunas sociais em Pernambuco
PERFIL 77 Bárbara Heliodora, a grande dama da crítica teatral
CÊNICAS 80 A aplaudida temporada de Caetana no Rio 82 Agenda Cênicas
MÚSICA 84 Obra de Radamés Gnattali ganha o espaço virtual 88 Agenda Música
TRADIÇÕES 94 Livro celebra a verve do grande Pinto do Monteiro 95 Coleção faz multiabordagem do maracatu rural
CONTEÚDO
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Reprodução
Divulgação
86 O maestro Radamés Gnattali está na internet
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Os 400 anos de Rembrandt, que produziu quase 80 auto-retratos
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 A transição da cultura tradicional para a de consumo é realidade em todo o mundo
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 38 Mozart, 250 anos X Dom Quixote, 400 anos
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 A cor-silêncio de Milton Dacosta
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 68 Carambola, jambo, jaca, figo, romã e uva à mesa
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 71 O dândi Guimarães Rosa no meio do “Bogotazo”
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 92 Torturas de um colunista quando acabam os truques
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Renovar ou morrer: é bem melhor renovar Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente março 2006
João Wainer/Folha Imagem
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CONVERSA
LUIZ RUFFATO
“Dou voz aos anônimos” Autor da pentalogia O Inferno Provisório fala de seus planos e diz por que acredita em literatura engajada Homero Fonseca
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po, mas, grosso modo, poderia afirmar que a idéia de leitura é a seguinte: o 1º volume abarca os anos 50, o Brasil rural, o êxodo para as pequenas cidades pela impossibilidade fundiária. O 2º volume trabalha alguns dos personagens vivendo num cortiço, numa pequena cidade industrial, Cataguases, na década de 60 e começo da de 70. O 3º volume, no qual me encontro terçando armas agora, intitula-se Vista Parcial da Noite e se passa na década de 70, numa periferia de Cataguases, com personagens que conseguiram algum dinheiro, saíram do aluguel e moram em pequenas casas num bairro novo, o Paraíso. O 4º volume, O Livro das Impossibilidades, também bastante adiantado, passa-se na década de 80, entre Cataguases, Rio e São Paulo: agora, Cataguases ficou pequena e houve a migração para as cidades maiores. Finalmente, o último, década de 90, sem título ainda, também se passa entre Cataguases, Rio e São Paulo. A melhor Você já tem planejada a continuação da pentalogia das hipóteses seria que o 3° volume saísse no final desInferno Provisório? Como serão os próximos três volu- te ano e os outros dois na seqüência, com espaço de mes (temas que abordarão, seqüência, datas de um ano de um para outro. publicação)? Você defende que a literatura é uma Antes dos dois primeiros volumes (Mamma, Son Tanto Felice e O Mundo Inimigo), eu havia já estabe- missão. Pode explicar melhor em que lecido um mapa dos cinco volumes, com personagens, consiste essa missão e de onde vem sua histórias e seqüência. Passei quatro anos fazendo isso, outorga? Acho que a Arte tem que entre o lançamento de Eles Eram Muitos Cavalos, em 2001, e o lançamento dos primeiros volumes, ano pas- transcender a realidade, tem sado. Eles não têm uma cronologia fechada, já que as que ser testemunha de uma éhistórias se inter-relacionam e se desenvolvem no tem- poca, de uma sociedade. Eu mineiro Luiz Ruffato, 45 anos, é um caso diferenciado entre os novos autores que estão fazendo a literatura contemporânea no Brasil. Enquanto a maioria, com maior ou menor grau de competência, tem refletido, em seus escritos, o universo da classe média ou, no outro extremo, o mundo dos completamente marginalizados, ele optou por trazer para o centro de sua prosa um personagem historicamente pouco abordado: o homem comum, o(a) brasileiro(a) proletário(a) ou de classe média baixa, que forma a imensa maioria da população e que permanece quase invisível, inclusive na literatura. Ruffato, que crê ser o ato de escrever uma missão, também se diferencia por rejeitar a forma tradicional do romance, criação burguesa inapta para representar a realidade atual, fragmentada e precária.
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CONVERSA nasci no Brasil, falo português-brasileiro, venho de uma família de proletários... Ora, não dá para renunciar às minhas origens. A minha literatura é programática. Antes de começar a escrever, em 1996, eu me perguntei se valia a pena, porque não tenho vaidades mesquinhas de escrever para aparecer em jornais e revistas, ser conhecido, essas coisas. Tanto que minha literatura é totalmente dependente das minhas experiências pessoais. A literatura brasileira, com honrosas e raras exceções, não tem uma tradição de representar a classe média baixa (não digo o marginal, pois esse está bem retratado). Então, resolvi encarar esse problema. Me dispus a dar voz e rosto e vida àquelas pessoas todas que participaram da minha vida e que se afundaram no mais profundo anonimato, aquele de que fala Manuel Bandeira, dos que sequer possuem um nome inscrito na lápide. É um compromisso político meu... Quem me outorgou essa missão? Penso que da mesma maneira que nas tribos mais distantes da nossa história, onde cada um tinha uma função, havia também o contador de histórias, que funcionava como uma memória viva das tradições do povo. Não tenho talento para nada a não ser escrever. Então, a mim foi dada a missão de contar a História do Brasil do ponto de vista de quem nunca participou da festa. Você acredita em literatura engajada? O que vem a ser? Entre Gorki e Tchekov você disse que ficaria com o segundo. Por quê?
Máximo Gorki: personagens divididos em bons e maus
Toda arte é política. Acho mais honesto explicitar as minhas posições, do que me esconder atrás delas. Então, é evidente que acredito em literatura engajada, porque toda literatura é engajada, toda literatura é expressão de uma ideologia, de um ponto de vista, defende algum tipo de interesse. Só que a ação do artista é exatamente tentar dar vida a seus personagens, e a vida é mais complexa que a divisão entre bons e maus. Às vezes me parece que Gorki, defendendo um ponto de vista, esquece-se disso e transforma sua literatura em atividade ideológica pura e simples: os pobres são bons, os ricos são maus, uma visão bastante romântica do problema que se propôs enfrentar. Tchekov, um dos maiores, senão o maior contista de todos os tempos, sabe que não é assim. Seus personagens são riquíssimos, têm “alma” e ele consegue, muito mais que Gorki, nos mobilizar contra as injustiças do mundo, porque o que ele pretende revolucionar não é a sociedade abstratamente, mas cada um de seus componentes... O que expressa seu estilo fragmentado, não linear e multifacetado? O nascimento do romance moderno é o nascimento da ideologia burguesa. A burguesia ascendente precisava de um canal de expressão de seus pontos de vista e o romance serviu-a de maneira brilhante. Foi um grande salto formal, sem dúvida alguma. Mas, como eu queria expressar a História a partir do ponto de vista proletário, não poderia usar o gênero romance, tal qual foi conce-
Anton Tchekov: visão mais complexa do mundo
Imagens: Reprodução
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Renato Stockler/Folha Imagem
“Forma e conteúdo são a mesma coisa. A precariedade formal dos meus romances reflete a precariedade temática – a sociedade é que é precária...”
bido, porque estaria traindo a proposta em sua raiz. Daí, verifiquei que, junto com o romance, no século 18, nasceu o anti-romance, com Sterne, Xavier de Maistre e outros. Hoje, em pleno século 21, é muito estranho tentarmos captar todas as mudanças espaciais e temporais, sem lançar mão de formas alternativas. Foi assim que me dediquei a procurar uma forma que expressasse meu descontentamento – forma e conteúdo são a mesma coisa. A precariedade formal dos meus romances reflete a precariedade temática – a sociedade é que é precária... O que você diz da insinuação de que estaria se repetindo, em forma e conteúdo, a cada novo livro? Eu tenho um respeito enorme pela crítica. Leio tudo que escrevem sobre meus livros. Evidentemente, não respondo a qualquer uma delas, pois não cabe a mim fazer isso. O livro tem que ter autonomia suficiente para se defender. Agora, se não respondo a críticas, muito menos a insinuações...
inúmeros, mas citarei alguns de minha predileção: Ronaldo Correia de Brito, Cíntia Moscovich, Marçal Aquino, Mário Araújo, João Anzanello Carrascoza, Adriana Lisboa, Adriana Lunardi, Maria José Silveira, Ronaldo Cagiano... Na poesia, falaria de Donizete Galvão, Tarso de Melo, Iacyr Anderson Freitas, Claudia Roquette-Pinto, Fabrício Carpinejar... Gosto muito da literatura contemporânea portuguesa (Filipa Melo, Inês Pedrosa, Possidónio Cachapa), de uma autora cubana, Karla Suárez, do americano Paul Auster... Enfim, citar nomes é sempre complicado e difícil. Existe uma identidade nacional dos povos? A literatura tem a ver com isso? Evidente que existe. O fato de eu falar português e não espanhol ou inglês já modifica meu lugar no mundo. E o fato de eu estar na América do Sul e não em outro continente modifica também. A literatura, para ser universal, tem antes que ser local, nacional. A literatura é expressão dessa contradição...
Como você vê a influência pop (cinema, quadrinhos, Politicamente, você é otimista ou pessimista em games, rock) na literatura? Acho que, sob pena de se tornar obsoleta, a literatura relação a construirmos uma sociedade civilizada no tem que dialogar com todas as formas de linguagem, mas Brasil? Otimista. Temos construído uma sociedade civilizada, nunca abrindo mão de sua essência. Ou seja, a literatura pode e deve dialogar, mas incorporando linguagens, não apesar da nossa elite predatória. Não acreditasse nisso, teria renunciado, há muito, a escrever livros. se submetendo a elas. Um pouco filosoficamente você acredita que o ser Da literatura que se faz contemporaneamente, no humano é viável ou não? Brasil, quem você destacaria? E no mundo? Sim. Afinal, temos sobrevivido, estamos aqui, não No Brasil, hoje, temos uma literatura maravilhosa, uma ebulição de criatividade fantástica. Eu destacaria estamos? • Continente março 2006
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta
Colaboradores desta edição: CAROL ALMEIDA é jornalista. DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Machado de Assis, um Gênio Brasileiro, entre outros. EDUARDO MAIA é jornalista. FÁBIO ARAÚJO é jornalista FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia. FABRÍCIO CARPINEJAR é poeta, autor de Como no Céu/ Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005), entre outros. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e Armada América, entre outros.
Editoria On-line Isabelle Câmara
IVANILDO SAMPAIO é jornalista, diretor de redação do Jornal do Commercio, do Recife.
Revisão Maria Helena Pôrto
LUCIANO TRIGO é jornalista, escritor e autor de Engenho e Memória, Todas as Histórias de Amor Terminam Mal, entre outros.
Estagiários Karolina Melo e Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente março 2006
Março | 2006 Ano 06 Capa: foto Russell Underwood/Corbis
LUÍS AUGUSTO REIS é jornalista e professor de teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon, Vigílias, Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MÁRCIA BEATRIZ BELLO é diretora teatral, atriz formada pela UniRio, e professora do Centro de Extensão da PUC e da Fundação Getúlio Vargas – RJ. MARIANA OLIVEIRA é jornalista. NÍZIA VILLAÇA é professora da UFRJ, pesquisadora do CNPq, autora de Paradoxos do Pós-Moderno: Sujeito/Ficção e Em Nome do Corpo, entre outros. SCHNEIDER CARPEGIANI é jornalista. WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de artes plásticas.
Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA foi correspondente de Guerra na Europa, em 1945. É autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que foi assim. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.
Educação e cultura Acompanho com regularidade a Revista, já há algum tempo, e sempre me parece muito interessante. Mas desta vez queria lhes dar os parabéns pelo número dedicado a Guimarães Rosa. E pela excelente entrevista com Alcione Araújo. O ponto de discussão que ele levanta é fundamental: não dá para continuarmos separando educação e cultura dessa forma e imaginando que é possível formar professores dignos desse nome fora da vida cultural. É tudo uma farsa, assim não dá para ninguém ser professor. No máximo, serão adestradores. Não lêem, não ouvem música, além da que lhes é imposta ouvido adentro pela mídia, não vão a teatro, não freqüentam cinema. Concordo com Alcione: isso é um escândalo. E a culpa não é do pobre professor a quem não se dá nada e de quem não se exige mais. É de todos nós, que não nos escandalizamos com isso e continuamos engolindo o que Darcy Ribeiro já diagnosticava: professores que fingem que ensinam e alunos que fingem que aprendem. Ana Maria Machado, Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro – RJ Perfil Parabéns pela belíssima reportagem sobre Maria do Carmo Tavares de Miranda (edição nº 61). Contemporâneas que fomos desde a infância pelas mãos das Irmãs Dorotéias, ela se fez esconder, mas, agora, ressurge, merecidamente. Geninha da Rosa Borges, Recife – PE Esquecimento Sem dúvida, a Continente Multicultural está entre as melhores do continente. Gosto muito de seus temas e de suas matérias, apesar de ter esquecido dos in (teriores) de nosso Estado, onde a identidade cultural do nosso povo ainda resiste. Fiquei um pouco decepcionado por não ter uma matéria especial sobre os 25 anos da morte de John Lennon, matéria que José Teles, com certeza, teria escrito muito bem; e também sobre o escritor, poeta, cineasta, tropicaliente, universal Jomard Muniz de Brito. Ainda há tempo. Flávio Magalhães, Sertânia – PE Pensata 1 Recebi a Continente Multicultural e a Pensata. Ótimos exemplares. Evaristo de Moraes Filho, Rio de Janeiro – RJ Pensata 2 Grato pela excelente Pensata e os melhores votos para 2006. Arnaldo Niskier, Rio de Janeiro – RJ
CARTAS
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Excepcional
Estou para escrever-lhes já há algum tempo, mas estes dois últimos anos, período em que exerci a presidência da Academia Brasileira de Letras, deixaram-me sem tempo até para cogitar do que seria, exatamente, o tempo. Mas, agora, dispondo de tanto tempo que já não tenho mais tempo para nada, aproveito para louvar-lhes esta revista excepcional que é a Continente. E eis-me aqui, entre pasmo e extasiado, diante da excelência cultural, gráficovisual e jornalística desta publicação exemplar e que, em certo sentido, é a melhor que se edita entre nós nesses tempos de tamanha indigência, que, como dizia Hölderlin, não merecem o privilégio da poesia. Tudo é bom, e não raro excepcional, neste nº 60 (dezembro de 2005), ao qual se acrescenta ainda uma suculenta Pensata. Como poucas – ou nenhuma outra –, Continente conjuga, de forma soberba, a cultura e o estilo jornalístico, sempre leve, direto e fluente, sem que com isso incorra na leviandade de certas congêneres. Parabenizo a todos os colaboradores da Revista e, muito especialmente, a Carlos Fernandes, Marco Polo e Homero Fonseca, que a editam com tanta garra, competência e bom gosto. Ivan Junqueira, Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro – RJ
Grande Sertão: Veredas Parabéns pela belíssima reportagem dos 50 anos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. É sempre bom elogiar revistas como a Continente Multicultural, que se compromete com a nossa arte e cultura, com matérias ricas e consistentes acerca desses assuntos e de um projeto gráfico esplendoroso. Paulo Ângelo, Vitória – ES Luiz Mendonça Isabelle, muito obrigado por ter escrito sobre o livro Luiz Mendonça: Teatro é festa para o povo. Fiquei muito feliz. Apesar do prazo impossível que nos foi dado pela prefeitura do Recife (um mês), acho que ele cumpre o seu papel. Gostei muito do seu texto: em poucos parágrafos, capturou tudo que há de mais relevante no livro. Luís Augusto Reis, Recife – PE Vício Gostaria de enfatizar a minha admiração e o meu vício escancarados pela Continente. Revista de qualidade e bom gosto! Parabéns a toda equipe que faz esta obra-prima brasileira. Cecília Sarinho, Recife – PE
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A crença no estranho “A suprema e divina onipotência Que criou e governa os hemisférios Com seus grandes arcanos e mistérios Desafia dos homens a ciência Busca o sábio com sua inteligência Descobrir, entender esta grandeza Mas perdido na vala da incerteza Fica cego ante as trevas do abstrato E murmura vencido, estupefato: Quanto é grande o poder da natureza.” (Poema de Dimas Batista inspirado na matéria “A crença no estranho”, edição nº 61) Câmara Cascudo Prezado amigo Carlos Fernandes, o que me intriga até hoje é porque a Continente, cujo diretor é nascido em Mossoró (RN), ainda não fez uma Continente Documento sobre Câmara Cascudo. Anchieta Alves, Mossoró – RN Data Gosto muito da Revista e gostaria de saber em que mês e ano ela foi publicada pela primeira vez. Marcela Lino, Jaboatão – PE Nota da Redação A primeira edição da Continente foi publicada em dezembro de 2000.
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
Artes do mercado O direito de comprar bens torna-se expressão bem mais significativa de liberdade pessoal do que o exercício do voto
artista plástico brasileiro de maior sucesso no exterior, o pernambucano Romero Britto, inspirado em Andy Warhol, tem revelado suas produções artísticas através de imagens populares e de consumo na comercialização de produtos que vão da vodka ao sabão Omo. A arte-pop de Britto ainda não é mostrada em museus tradicionais e sofre restrições de críticos consagrados, mas já é conhecida em mais de setenta países. Isso mostra que a transição da cultura tradicional para a cultura de consumo já é realidade em todo o mundo. Semelhanças à parte, Picasso ou Salvador Dali, vivos, talvez enveredassem pelo mesmo caminho. A introdução e o uso disseminado de produtos, com suas marcas, e o aumento da propaganda de massa servem para sublimar o ato de consumir. A Arte que antigamente se opunha aos valores do mercado passa a ser hoje o principal instrumento de comunicação de seus valores. Ela incorporase ao mercado como qualquer outro produto de consumo. Theodor Adorno um dos mais ácidos críticos dos processos de comunicação de massa atribui esse fato ao fenômeno da industrial cultural. Daniel Bell, ao mostrar que a civilização moderna pode ser compreendida através das esferas econômica, política e cultural observa que os valores políticos e culturais cada vez mais são transformados em mercadorias e arrastados para a esfera econômica. Até as noções de participação democrática e de direitos individuais encontraram seu caminho até o mercado, onde renasceram em função do poder do consumo e dos direitos do consumidor. Para muitos brasileiros, o direito de comprar bens torna-se expressão bem mais significativa de liberdade pessoal do que o exercício do voto. Nesse aspecto, para mui-
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tos políticos, até esse direito democrático pode ser comprado, impunemente. Compram-se votos nos currais eleitorais, nas comunidades carentes, e nas câmaras baixas e na alta. O ideal de participação cívica, embutida na retórica dos discursos oficiais torna-se menos importante do que as opções de compra, disponíveis nos luminosos das lojas de departamento. A “participação” deixa de ser destaque no âmbito político para se transformar na idéia de consumo ilimitado no âmbito comercial. Para Jeremy Rifkin, os críticos sociais ainda anseiam por uma transformação pessoal, em vez das limitações ao espírito humano causadas unicamente pelas conquistas relacionadas ao mundo material. As pessoas têm consciência de que as artes são os meios mais sofisticados da expressão humana. As artes democratizam a experiência social de uma forma que penetra muito mais no espírito humano do que as formas econômicas e política de comunicação. Os efeitos duradouros do rock e de novas formas de arte e dança na psique social da geração baby boom, nas décadas de 60 e 70, são o testemunho do poder das artes de transmitir significado social e criar uma noção de valores compartilhados. A cultura, cujo valor maior é a realização e o crescimento pessoal, continua a ser o refúgio daqueles críticos que advertem quanto à predominância dos valores materiais na vida das pessoas. Os românticos ainda procuram a auto-realização na natureza e nas artes, esperando encontrar uma via não materialista para o progresso pessoal e social. Todavia, no mundo real, paradoxalmente, os desejos de realização também estão sendo dirigidos para a arena comercial, como está ocorrendo com a desvalorização da participação como um valor cívico na esfera política. Atenção escritores, artistas, poetas e boêmios uni-vos, pois o mercado os espera para aquele abraço. Para comercializar as experiências vividas... ou não, as emoções provocadas... ou sentidas e os alumbramentos permitidos pelo último estágio do endeusamento das mercadorias na circulação do capital. Os homens desejam, hoje mais do que nunca, consumir bens. Saciada a fome de compras materiais, desejam consumir bens culturais.. Desejam viajar no tempo e no espaço. Desejam viajar... em todos os sentidos. E para se fazer essa viagem, parece só existir um caminho: o mercado. Com suas contradições e paradoxos. Suas conveniências e competências. Seus ritos e mitos. Suas artes e manhas. • Continente março 2006
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O espetáculo do
FOGO A história social do fogo registra uma relação profunda, primordial, ambígua, que permanece até hoje, como no espetáculo dos protestos parisienses Fábio Lucas
CAPA B.Bird/zefa/Corbis
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centro da Terra guarda a lembrança da época em que o nosso planeta era pura pedra quente, derretida, envolta por uma atmosfera densa que fazia do ambiente uma sauna inabitável. Somente milhões de anos mais tarde, o vapor começou a se condensar. Choveu. Por tanto tempo que os oceanos se formaram, tomaram a superfície, e possibilitaram aos nossos ancestrais de carbono a combinação propícia para a replicação e o surgimento da vida. O núcleo de rocha quente também nos recorda o fogo presente nos astros ao redor de nós, a começar pelo Sol, talvez a primeira divindade a que os homens recorreram para pedir proteção. A vida que veio do calor olha para cima e agradece, temente, à criação. Na Antiguidade, o poder exercido aqui no chão só valia se referendado pelo poder brilhante lá no alto: faraós e sacerdotes dominavam através de sua relação com o Sol. A revelação de Krishna é descrita assim: “Se milhares de Sóis espalhassem juntos no céu o seu brilho, seria como a luz do magnânimo”. Os poderes políticos e religiosos mantiveram a tradição dos indivíduos ungidos pela “iluminação”. Na Grécia e na Roma antigas, como narra o historiador Fustel de Coulanges, as residências possuíam altares que deviam ter sempre cinzas e brasas. O “fogo sagrado” era o deus do lar, representava a família, o culto doméstico e os antepassados, e em seu louvor se davam todos os rituais, preces e sacrifícios da casa. Se não estivesse aceso, era certo, pelo caminho vinha uma desgraça. No alvorecer da filosofia, o fogo desempenha um papel central na busca do homem pelo entendimento do mundo. Para Heráclito – aquele pré-ssocrático que disse que não podemos entrar Continente março 2006
CAPA
Nélio Chiappetta
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duas vezes no mesmo rio, porque não serão as mesmas águas, nem seremos os mesmos –, o mundo é puro movimento, nada é estático. Panta rhei era o seu lema, e nesse fluxo se encaixava o princípio de tudo: “Todas as coisas são uma troca do fogo, e o fogo uma troca de todas as coisas”. Será que há semelhança com o “fogo sagrado” dos antigos e sua posterior elaboração religiosa? “Não há dúvida de que o fogo ganhou um status interessante nas religiões. Como a água. Mas de um modo metafórico somente. Não como os primeiros filósofos fizeram. Eles não usaram de metáforas. À cosmologia deles cabia uma fusão entre uso literal e metafórico. De modo que Heráclito pensava que “tudo é fogo” em um sentido que não era alegórico apenas. Essa comparação é fundamental para entendermos a diferença entre um pensamento religioso e um pensamento filosófico”, explica o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr, editor da revista Contemporary Pragmatism. Como nas polêmicas pré-ssocráticas, a história do uso do fogo pela humanidade espelha uma essencial ambigüidade. Vai da adoração dos primórdios, passa pela cremação dos mortos (e dos vivos, se fossem hereges ou “bruxas”), pela fogueira de livros, pelo incêndio de casas e vilas inteiras, pela domesticação das tochas, da lareira e do fogão, até chegar aos dias de hoje, em que o protesto-eespetáculo surge como a maior imagem contemporânea do fogo. Basta lembrar dos homens-bbomba, das Torres Gêmeas em chamas, do ambientalista suicida do Pantanal, do índio assassinado em Brasília e dos ônibus e carros queimados no levante de imigrantes nos arredores de Paris. “A Inquisição acreditava exorcizar o demônio entregando às chamas as suas vítimas. Destruir o mal pelo fogo era o seu desígnio. A ferro e fogo se fundaram os reinos e as nações”, lembra José Augusto Mourão, professor de Semiótica da Universidade Nova de Lisboa. A rebelião imigrante na Europa não foge ao contexto. “Motivos de revolta houve sempre em todas as culturas. A questão reside apenas no porquê “agora” e não antes, “ali” e não algures. O fogo é uma das técnicas mais arcaicas, mais perto da vida nua. De resto, o destino normal de qualquer objeto de consumo é ser destruído. Pelo fogo, de preferência”, atiça Mourão. Até porque ele vai “iluminar a revolta”, completa Danielle Perin, da UFPE. Na trilha da história humana contada pelo fogo, no entanto, nem tudo são cinzas. A começar pela imagem, permanentemente acesa, em nossas mentes. •
CAPA
O símbolo, entre o mito e a razão A mitologia do fogo independe de época e lugar. O que muda é a percepção. Culturas diferentes o vêem de forma distinta
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m diferentes culturas de variados recantos do planeta e em variadas épocas, a relação do homem com o fogo migra do respeito reverente ao desejo dominador – numa rota de ida e volta que o tempo não consegue diluir: medo e fascínio se alternam no olho que fita a chama. Na vasta mitologia que nasce com os deuses antigos, deparamo-nos com uma lista tão extensa quanto a diversidade dos povos sobre a Terra: Ícaro buscando o sol; Prometeu roubando uma centelha do Olimpo, na tragédia de Ésquilo que data de cerca de 500 anos antes de Cristo; as lendas indígenas de origem do fogo, em que os animais são os personagens principais; as apropriações cristãs do “batismo de fogo”, ou das “línguas de fogo” que desceram sobre os apóstolos, nas visões cheias de luz, ou mesmo na demarcação simbólica do inferno... Sem contar a própria “invenção” do fogo no Paleolítico, símbolo de controle humano sobre a natureza e marco zero da chamada civilização tecnológica. “A concepção do fogo entre os povos primitivos parece ter seguido um trajeto que levou da supremacia do simbolismo mítico à instrumentalização da racionalidade científica, progressivamente dominante na contemporaneidade”, avalia a professora e pesquisadora Nízia Villaça, da UFRJ. “Há, nessa operação contemporânea, se considerarmos a opinião de Bachelard em seu livro A Psicanálise do Fogo, um programa de sublimação e pureza feito à custa da produção de refugo. O fogo perde a dialética da pureza e da impureza presentes em suas representações: era o mal que castigava no inferno; o pecado que ardia nos instintos sexuais. Seus excrementos eram as cinzas. Sua pureza, por outro lado, tinha ação desodorizante e a carne cozida, vencendo a putrefação, era oferecida nas refeições comunitárias. Na terra estéril, sua ação era benéfica: abria-lhe os poros. Foi assim, sobre as formas fenomenais mais elementares que se constituiu a fenomenologia da pureza e impureza do fogo”, resume Nízia. Para a antropóloga Danielle Perin, da UFPE, a vivência que se tem do fogo é bastante variável. “Não é uma questão de antes ou depois. Hoje temos uma série de culturas, orientais, indígenas, com vivências do fogo diferentes da visão ocidental. E como toda vivência simbólica, ela também se modifica dentro de uma mesma cultura, inclusive na ocidental”, alerta. E dá o exemplo: “Os protestos na França são feitos por imigrantes. Qual a visão simbólica que eles têm do fogo?” A violência pelo fogo já exprime uma diversidade cultural. É preciso ressaltar a diferença entre os incendiários. “Bárbaro não queima bruxa. Queima de bruxa é, ao contrário, uma prática dos “civilizados”. Livros, quando queimados, são coisas de gente que pode, inclusive, ser intelectual – em geral o são”, sublinha o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Mas pode haver um elo de fogo entre o tempo antigo e o atual: “Com a globalização, a manipulação da máquina Continente março 2006
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CAPA do mundo movida por uma lógica material, que não considera a natureza humana, amplia a esteira da violência. Para Joseph Campbell, os mitos fazem falta na violência das cidades. Estarão voltando com o movimento das tribos e seus elos simbólicos?”, indaga Nízia Villaça. Quando brilha sem queimar é que o fogo é todo pureza, e se dá a todas as transcendências, segundo Bachelard. A hipótese da professora Villaça implicaria num retorno ao transcendente pela brasa, ou seja, num retorno, ao menos em parte, impuro. E também significaria a ocorrência de mais ou menos simbolismo de acordo com o instante histórico. De fato, a impressão é que o nosso cotidiano parece bem menos chamejante que no passado. Esta é a opinião de Jean-Pierre Duteil, da Universidade Paris 8, para quem o fogo, na cultura antiga, era uma questão de sobrevivência. “Creio que a posse do fogo é muito mais simbólica hoje, claro”. Ao que complementa José Augusto Mourão: “O fogo deixou, em boa parte, de ser uma experiência do sagrado como tremendo e fascinante. Continua a ser terrível (um incêndio), mas o seu lado fascinante – houve quem interpretasse o 11 de Setembro como experiência do sublime – continua a exercer a sua influência”. Mourão faz coro à visão evolutiva de que a conquista do fogo desgastou o mito, afirmando que agora ele “só alumia os vastos palácios da memória dos que resistiram à droga rainha que é atualmente a televisão”. Assim como a antropóloga Danielle Perin, para Alexander Freitas, doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, não se pode dizer que há épocas com maior ou menor simbolismo. “Símbolos e mitos podem assumir um determinado valor, podem ter uma repercussão particular, em um certo tempo-espaço histórico, podendo assumir um significado oposto, concorrente ou complementar em outros momentos”, pondera. “Isto acontece também com os simbolismos do fogo: há momentos de emergência de uma constelação de significados e repressão de outros sentidos, de modo que o símbolo está submetido a uma alternância cíclica de semantismos patentes (expressos porque estão em consonância com o paradigma dominante) e
Pesquisa entre índios fulniôs e estudantes universitários revelou diferença surpreendente de percepção entre os dois grupos Roberta Mariz
Arquivo pesoal
Danielle Perin ressalta diferenças culturais
Nízia Villaça flagra desrespeito contemporâneo
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CAPA Christian Hartmann/EFE/AE
Protestos de imigrantes na França: espetáculo para chamar atenção da mídia
latentes (recalcados porque estão na “contramão” deste paradigma)”. A pesquisa feita para a tese de doutorado de Danielle Perin pode ser vista como prova das divergências culturais que provocam visões distintas quando se fita o fogo. Em 1976, de chegada ao Recife, Perin aplicou o mesmo teste, baseado em Jung e Bachelard, em grupos de índios fulniô, do interior de Pernambuco, e em estudantes universitários. O resultado foi, para ela, uma surpresa. “Eu achava que na cidade, porque o fogo é domesticado, seu significado fosse alguma coisa positiva. E que para os índios seria uma coisa negativa. Pois foi o inverso”, conta. “Para a vivência dos índios fulniô, o fogo é um local de aconchego, é calor, é amizade, é reunião, praticamente todos os simbolismos são positivos. Enquanto é a destruição, o incêndio, o perigo, na cidade. Para você ver que variedade há na percepção do fogo”. De acordo com a antropóloga, “a mitologia é extremamente viva, muda com o tempo, não de uma forma linear, ela não vai adiante: vai e volta”.
Também no meio urbano há a presença do fogo, em costumes que se repetem e ganham novo significado. Como no São João, a festa por excelência da tradição nordestina. É onde se vê uma espécie de “arquitetura ígnea” nas relações sociais. “O fogo é testemunha e causador de compadrio. Você pula o fogo junto, passa a ser comadre e compadre. Quer dizer, o fogo arquiteta as relações sociais. É uma dimensão que tem aqui que eu nunca vi em outro lugar”, frisa Danielle Perin. O São João traz a reminiscência da vida no campo e resgata a idéia de regeneração. “Poucas pessoas têm consciência desse significado. Quando se tratava de uma festa agrária, que é a sua origem, era a regeneração da natureza, a regeneração vegetal. Na cidade ela tomou a dimensão de regeneração espiritual, afetiva, familiar. Há toda uma relação estabelecida entre acender a chama e a condição de vida”, compara Perin. O medo urbano detectado pela antropóloga é uma das faces da moeda. Do outro lado, a atração elementar atinge o fogo alto na civilização do espetáculo. • (F.L.) Continente março 2006
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Reprodução
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Da caverna às câmeras A contemporaneidade reflete a predominância do fogo-luz, em detrimento do fogo-calor
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o Mito da Caverna, de Platão, o real é visto através de sombras no fundo de uma caverna, sombras que são confundidas com a realidade para quem nunca pôs os pés do lado de fora. Enquanto o homem da caverna platônica é alienado, o homem da civilização do conhecimento e da técnica pode ver no fogo que dança à sua frente o espectro de sua animalidade. “O bicho-homem é confrontado hoje com duas figuras: o zôo e a catedral. O seu lado simiesco pesa mais do que a sua aspiração angélica. Logo, o apelo à divinização está cada vez mais longe do seu percurso na cidade”, defende o professor Mourão. “A técnica dá ao homem a ilusão da sua independência relativamente aos elementos primordiais – a terra, o ar, a água e o fogo. Delimitar é exorcizar e santuarizar. Toda clausura faz isto.” Por outro lado, o fogo que assustava os outros animais na Pré-História continua em nossa memória, de acordo com Jean-Pierre Duteil. “Além disto, somos conscientes de nossa animalidade na medida em que o fogo carrega um grande simbolismo sexual”, diz ele. O animal no humano é fonte de eterna contradição, e apesar de ser ícone da pureza, “o fogo pode exibir uma imagem contraditória, porque a chama está sempre mudando”, afirma o francês. Além da aniquilação dos restos mortais, o fogo perpassa a tendência do protesto na sociedade do espetáculo. “A morte do fogo é a morte dolorosa. Quem se queima vira durante algum tempo
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CAPA espetáculo e, portanto, é uma forma boa de protesto. A morte de qualquer outra maneira não pode ser fotografada, filmada – ao menos não até bem pouco tempo. O fogo, que consome o corpo lentamente, e ao mesmo tempo ilumina, se presta bem ao protesto. O gesto aqui é menos simbólico do que parece”, analisa o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Danielle Perin diz que a dor se mistura ao desejo de mostrá-la: “É um grito desesperado. Os orientais muitas vezes se imolam, mas como sempre tem vários significados. De qualquer maneira tem o significado do espetáculo. Quem se queima, queima-se para os outros, muito mais do que para si”. Neste sentido, para Mourão, não é estranho o evento terrorista que se apropria do espetáculo. “A religião está associada à violência no passado e continua a estar ligada à violência no presente. O terrorismo de inspiração religiosa surge misturado com a violência perpetrada pelos fundamentalismos mais diversos, passando pelo terror exercido sobre as populações ou por pressões políticas e morais por parte de minorias ditas “morais”. Mourão ressalta ainda que foi este tipo de martírio que inspirou nacionalismos e patriotismos diversos, como as Cruzadas, e está na essência do terror suicida. “O suicida (que não veste sempre o aspecto do mártir) precisa de uma cena pública para que o seu ato seja visto e valorizado. Fora desse contexto, o seu gesto seria inútil. Significará o seu gesto a expressão do sacrifício de si pela
sobrevivência do próprio grupo? Será uma reativação do mecanismo sacrificial por uma causa? Significará a imolação pública do próprio Eu, o batismo de sangue do adepto ou o gesto vazio do niilista?”, pergunta, certamente sem esperar definitiva resposta – já que todas elas poderiam ser válidas. Alexander Freitas chama a atenção para o fato de que a contemporaneidade reflete a predominância do fogo-luz, em detrimento do fogo-calor. “O paradigma da modernidade parece ter conduzido ao exagero o simbolismo do “fogo-luz”, que acabou por suscitar um ideal esquizofrênico de pureza e de transcendência. Portanto, esta convicção arquetípica na capacidade do elemento ígneo em promover a destruição total, reforçada por sua forte carga semântica de purificação e transcendência, e, ainda, hiperbolizada pelo paradigma da modernidade, pode nos ajudar a entender o genocídio nazista nos crematórios, o suicídio por auto-incineração praticado com finalidade ascética, desde os primórdios da humanidade, e, também, o terrorismo por incineração do ônibus, do índio e do morador de rua, a que assistimos ultimamente”. Danielle Perin lembra Baudrillard, que diz que tudo é espetáculo hoje em dia: “queimar ônibus é do nível do espetáculo. É para que a mídia preste atenção”, aponta. E a mídia somos nós mesmos, fora do tempo, hipnotizados pela imagem real e pelo símbolo que se realiza. • (F.L.) Nasa/Divulgação
Explosões no Sol: fascínio e enigma
O animal no humano é fonte de eterna contradição, e apesar de ser ícone da pureza, "o fogo pode exibir uma imagem contraditória, porque a chama está sempre mudando
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Uma psicanálise do fogo A ciência começa a incorporar o conhecimento da imaginação, em que o fogo tem grande importância simbólica
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omo o amor dos versos de Camões, “que arde sem se ver”, a imaginação ficou de fora do raio da ciência por muito tempo. Um dos grandes méritos do trabalho do filósofo francês Gaston Bachelard, autor de A Psicanálise do Fogo, de 1939, teria sido demonstrar que a poesia é uma fonte de conhecimento tão válida quanto a matemática. Epistemólogo que voltou sua atenção para a “psique” humana, Bachelard analisou os elementos da natureza – os quais chamava de “hormônios da imaginação” – em obras que se tornaram referência de um novo campo de estudo. Os centros do imaginário se espalharam pelo mundo. No Brasil, são 35 deles, segundo Danielle Perin, que integra o da Universidade Federal de Pernambuco. “Apesar de o financiamento para o imaginário ainda ser uma coisa bem difícil, esses grupos estão vinculados à universidade, o que já é uma grande reviravolta no predomínio da razão como meio de conhecimento”, atesta a antropóloga, que não se cansa de condenar esse predomínio: “O viés evolucionista é perigoso nas ciências humanas. Nem todas as sociedades de hoje são industrializadas. Tem um monte de gente que vive na floresta amazônica, nas florestas da África, e não são de outro tempo, são do nosso tempo. Elas usam o fogo para afastar os animais. Não é passado. E só o contexto cultural vai dar a dimensão do ato. É preciso se aproximar da realidade para ver a vivência das pessoas. Se não se levar em conta o nível simbólico, não se vai saber o que está acontecendo”. STF/AFP
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Para Gaston Bachelard, autor de A Psicanálise do Fogo, a poesia é uma fonte de conhecimento tão válida quanto a matemática
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A ambigüidade do objeto de estudo contaminou o epistemólogo para quem a poesia e a filosofia são dois eixos inversos e complementares. “No início, Bachelard foi muito positivista”, critica Perin. Alexander Freitas aproveita para destacar o objetivo da Psicanálise do Fogo: “Bachelard propõe uma psicanálise contra a invasão das imagens, símbolos e metáforas que contaminam a racionalização do fogo, atrasando sua conceituação científico-rracional, ao longo da história da ciência”, afirma. Esta é, de fato, a proposta do próprio Bachelard na apresentação do livro, que serviria para ilustrar as teses defendidas anteriormente na obra A Formação do Espírito Científico. Entre as afirmações do filósofo francês encontramos, por exemplo, a de que “o amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo”, através da fricção da madeira. Para Freitas, o objetivo de Bachelard era dissociar a imagem poética do discurso científico, a fim de purificar a ciência. De uma forma ou de outra, a valorização do imaginário para o conhecimento é um ganho para “uma sociedade que, na ânsia do upgrade consumista, vem perdendo o devaneio junto à lareira, o ludismo da fogueira e as passagens e milagres de uma luz de vela”, acredita a professora Nízia Villaça. • (F.L.)
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A matéria desrespeitada Apesar dos resquícios do pensamento mítico, o que domina no cotidiano das grandes metrópoles é um grande desinvestimento simbólico Nízia Villaça Nélio Chiappetta
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s cosmologias pré-socráticas fixaram um instante de transição entre a visão primitiva e o logos filosófico. O úmido, o indiviso, o ar, o fogo, aí citados como matérias primordiais da natureza, são já sentimentos racionalizados da intuição mítica. A seguir, com Platão, os deuses patriarcais do Olimpo foram capturados também e o esclarecimento viu no legado platônico-aristotélico e na autoridade dos conceitos universais o medo dos demônios, cujas imagens eram o meio de que se serviam os homens no ritual mágico para tentar influenciar a natureza. Contra as fantasias da subjetividade, cresce o recurso à quantificação e à destruição da qualidade. O despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como princípio das relações. Entre os primitivos, os ritos aproximavam os homens da pluralidade da natureza, enquanto o olhar científico unificou e petrificou a própria natureza. A magia visava fins pela mímese e não pela distinção e classificação como veio fazer a ciência, quer em relação à natureza propriamente dita, quer em relação aos homens. Continente março 2006
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Autores como Eliade, Moscovici, Gilbert Durand, Bachelard, sublinharam a importância psicológica e/ou sociológica da diversidade do imaginário das matérias, imaginário desdobrável para o bem e para o mal, para o alto, para a exterioridade, para a interioridade, através dos rituais e sacrifícios. Nos mitos, a palavra era símbolo, mas é como signo apenas que chega à ciência. A natureza exigia submissão e todos participavam da magia. Posteriormente o comércio com os espíritos foram divididos em diferentes classes e os símbolos transformam-se em fetiches imobilizantes. Na seqüência, o próprio sujeito ficou privado não só do pensamento mítico, como de toda significação, administrado pela aparelhagem econômica. Na sucessão dos comportamentos miméticos, míticos e metafísicos, o medo era que o Eu revertesse à mera natureza. A reflexão sobre o imaginário do fogo se inicia, portanto, pela sua potência e simbologia entre os povos primitivos que lhe prestavam homenagens. O homem primitivo dispunha dos mitos, ritos e do tempo cíclico. Com o advento do homem moderno e da história e o desligamento do horizonte dos arquétipos e da repetição, a fé cristã se coloca como a religião do homem integrado na história e no progresso. No tempo cíclico, por exemplo, o fim do mundo como catástrofe provocada por seres divinos, seja pelo fogo ou pela água, o importante era a imergência de uma terra Entre os primitivos, os virgem, simbolizando a regressão ao caos e à cosmogonia. É impor- ritos aproximavam os tante assinalar na estrutura mítica que o conhecimento da origem da homens da pluralidade coisas e a capacidade de controlá-las não era algo exterior e abstrato, da natureza, enquanto mas vivido ritualmente. Era uma experiência religiosa. Voltava-se ao o olhar científico tempo primordial para orientar a vida cotidiana. Nas civilizações unificou e petrificou a primitivas, o mito preenchia função indispensável, codificava as própria natureza crenças, protegia a moral e oferecia regras práticas, não era uma fabulação vã. Gilbert Durand, em seu livro sobre as estruturas antropológicas do imaginário, define o imaginário como nada mais que um trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito e no qual, reciprocamente, as representações subjetivas se explicam pelas acomodações anteriores do sujeito ao meio objetivo. Para Bachelard, os quatro elementos são os hormônios da imaginação e o faz acentuando a pluralidade do sistema quaternário e seus aspectos antitéticos e ambíguos. No contemporâneo, não me parece haver simbolismo ou brilho, mas sobretudo desrespeito ao simbolismo da matéria e alienação diante da natureza, apesar de todas as comissões e discussões em torno do eco-ambientalismo. As queimadas da Amazônia nada têm a ver com o espírito de renovação presente nos povos primitivos. O mito de Prometeu e a captura do fogo como desejo de conhecimento foi desembocar no medo de autodestruição. Obviamente, encontramos resquícios do pensamento mítico em diversas religiões e nas tradições populares, mas o que domina no cotidiano das grandes metrópoles é um grande desinvestimento simbólico que se conecta com a obscenidade do material distribuído pela mídia. A tônica é a visibilidade, grande tótem de uma sociedade, cuja ausência causa mesmo depressão. Ana Maria M. C. Lopes, em artigo na internet, faz considerações sobre as possibilidades de reconciliar a pós-modernidade tecnocientífica com o conceito de mito e faz referência a Capra e a Bachelard, e acredita que, como uma fênix renascida, a linguagem resgatará o fogo ardente que várias décadas de fast-food televisivo e ditadura informática terão esmaecido, mas não extinto. • Continente março 2006
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As bolhas de ficção de Amílcar Bettega O vencedor do maior prêmio brasileiro de literatura vive em Paris uma nova experiência, criando uma prosa que flerta com a poesia Fabrício Carpinejar
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ão caiu do céu. Custou muito sangue, solidão e incertezas. Pode-se concluir precipitadamente: jovem escritor de 42 anos, completados em 14 de fevereiro, recebe o maior prêmio literário do Brasil, o Portugal Telecom, e a quantia de R$ 100 mil. Mas a juventude aqui não desmerece o gaúcho Amilcar Bettega, que penou sucessivas profissões até se firmar na literatura. Ele é a prova de que as dificuldades estimulam o talento. Sem querer ser um exemplo, torna-se um espelho para iniciantes que quebram a cara mandando originais e recebendo negativas. Seus pais, Paulo de Macêdo, ex-pecuarista de pequeno porte, e Maria Marly, professora aposentada, são gente simples de São Gabriel, município da Campanha Central do RS, com cerca de 60 mil habitantes. Além do prato predileto, o churrasco, de preferência carne malpassada e sangrando, do lugar de nascença guarda suas imagens mais inspiradas. “Um entardecer na BR 290, nas coxilhas, ou o amanhecer no campo, no inverno, com o sol cortando a bruma”, recorda.
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Camilo Soares
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O gaúcho Amílcar Bettega em Paris: prêmio e timidez
Amílcar parte para estudar na capital e se sustentar de qualquer jeito. “Sempre senti o trabalho como uma prisão, mesmo quando ainda não pensava em escrever, sentia que ele me roubava um tempo que poderia utilizar só para mim, do jeito que quisesse – sem fazer nada, por exemplo. Mas ao mesmo tempo incorporava a pressão que a sociedade mete na gente: trabalho regular, salário fixo, de preferência um bom salário, uma profissão respeitável (Quando crescer vai ser o quê? Médico, engenheiro ou advogado?)...”, lembra. É óbvio que a coerção saiu ganhando. Vantagem inicial da estabilidade versus vocação. Formou-se em Engenharia Civil e exerceu a função de engenheiro de obras de 1987 a 1992. Durante cinco anos morou em hotéis, em via-crúcis digna de caixeiro-viajante. Passava a semana em cidades como Vera Cruz, Santa Cruz, Uruguaiana, São Borja, Santa Maria e retornava aos sábados para Porto Alegre. Em seguida, trabalhou no outro lado do balcão, como vendedor da Livraria Ao Pé da Letra. Quem diria que aquele guri franzino, caladão, com as sobrancelhas grossas como óculos de leitura, um dia estaria ocupando as estantes? Nem sonhava. Entre hoje e o período de balconista, mantém apenas o temperamento retraído, ouvinte. Sofre com sua timidez mais pelo desconforto dos outros do que com o seu. “Sim, gostaria de ser mais expansivo. Tenho a impressão de que nunca consigo expressar aos outros o que sinto. E por vezes acho que deixo as outras pessoas pouco à vontade diante da minha falta de jeito.” Se ninguém puxa a conversa com ele, é capaz de ficar em silêncio horas, procurando uma entrada. Ou saída. “Perdi de namorar muita guria bonitinha”, brinca. Seu percurso rodou todas as páginas de classificados. Foi o responsável pelo setor de compras de um restaurante, deu aulas de Física e Matemática para vestibulandos e atuou discretíssimo como recepcionista noturno de hotel no Algarve, em Portugal. De 1994 a 2000, cobria a área de seguros no Banco do Brasil. “Estive também na programação da Casa de Cultura Mario Quintana, e experimentei bicos de que já nem me lembro”, confessa. “Eu me sentia meio incompetente para tudo. Foi na escritura, no trabalho com a palavra que encontrei um pouco da minha competência, onde me sinto mais em casa.” Via-oficina de Luiz Antonio Assis Brasil, laboratório literário que já completou 20 anos de sucesso na PUC, ele despertou seus
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fantasmas e diminuiu o isolamento. “Comecei a escrever relativamente tarde, por volta dos 26 anos. Sempre gostei de literatura, mas até lá nunca tinha pensado em escrever, muito menos para publicar. Foi num momento de crise existencial (mais do que profissional) muito grande. Eu tinha me formado, trabalhava como engenheiro, mas aquilo não tinha nada a ver comigo e com o que queria fazer. Havia um grande vazio, e eu me disse ‘não posso continuar levando adiante essa farsa até o fim da vida’. De repente, eu me ‘flagrei escrevendo uma história’. Foi isso mesmo. Sem premeditação, sem me dizer ‘vou escrever algo’, quando me dei conta eu tinha já umas 30 páginas. A partir dos meus primeiros textos, que são desse tempo, comecei a ver que eu era capaz de escrever e que escrever era uma maneira de me encarar de frente, de ser mais honesto comigo mesmo. Escrever foi e é uma maneira de tentar me entender, uma maneira de me organizar, de me dar um sentido, de preencher o meu vazio. Foi também uma maneira de encontrar minha competência, minha serventia. Como vê, é uma viagem puramente pessoal.” Atualmente, Amílcar mora em Paris. Faz pouco tempo que se mudou, depois de três anos em Orléans. O escritor ensina português na Sorbonne (Paris III) desde setembro e viajou à França em busca de seu amor, Emilie, francesa, formada em Filosofia e mestre em Literatura, funcionária pública na área cultural. A primeira filha do casal, Maria João, nasceu em 24 de janeiro. Não é sua primeira experiência literária no exterior. Em 1999, participou como escritor-residente do programa Ledig
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House – International Writers’ Colony, nos Estados Unidos. O prêmio recebido pelo seu terceiro livro Os Lados do Círculo (Companhia das Letras), em novembro, o pegou de surpresa. “Nunca espero esse tipo de coisa, para evitar a frustração, nem penso muito”. O que não significa falsa modéstia. Afinal, já recebeu outras premiações como Açorianos por O Vôo do Trapezista (WS Editor, 1994) e Menção Honrosa no Prêmio Casa de las Américas de Cuba por Deixe o Quarto Como Está (Companhia das Letras, 2002). “Mas sabia que meu livro não estava lá por acaso, como todos os outros nove, aliás. Nesse sentido eu tinha a esperança legítima de ganhar.” Com seus contos impregnados da atmosfera de Porto Alegre, superou escritores consagrados, como Manoel de Barros. O 2º lugar ficou com o veterano Silviano Santiago, com O Falso Mentiroso, e o 3º colocado, Edgard Telles Ribeiro, com Histórias Mirabolantes de Amores Clandestinos. O que fazer com o dinheiro? Nada de luxo, prosseguir sobrevivendo da literatura. “Vou quitar o apartamento em que morava em POA e que ainda faltava uma parte para pagar, vou dar uma mão aos meus pais que vivem com uma aposentadoria michada, como tantos brasileiros, e vou usar para ir completando o orçamento mensal, porque sempre se tem que buscar em algum lugar. E vale lembrar que os 100 mil que fazem a festa das manchetes já vêm capados pelo ‘Leão’ em 32,5%.” Os Lados do Círculo havia sido premiado com bolsa pela Fundação Biblioteca Nacional, em 1997, incentivo público para ser finalizado. Garantia de edição? Não, livro pronto, esteve para sair por várias vezes, por várias editoras, mas na última hora sempre acontecia algo e a coisa dava para trás. Situação perfeita para alimentar o ranço, mas Amilcar, entretanto, suspira aliviado: “Ainda bem. Isso permitiu que eu retrabalhasse inteiramente. Foi como fazer um novo livro. Suprimi contos, inseri outros, reescrevi todos. Não tenho dúvida de que ficou bem melhor. Cada texto está escrito num registro diferente, utilizo-me de recursos de outros tipos de escritura, como o roteiro de cinema, a entrevista, o tratado de economia, a linguagem dos verbetes de dicionário, é uma das formas de dar uma unidade ao livro: pela variação”. A metamorfose é um estado permanente do ficcionista. Entre a larva e as asas. Entre o carvão e a cinza.
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realidade cotidiana, e que paire, pelo menos por um instante, na imaginação do leitor. Mas é um projeto que está apenas no comecinho, nem sei se vai vingar. Tenho já uns 30 textos escritos, mas para fazer um livro teria que ter uns 110, 120, para poder descartar uns 20 ou 30.” Como sempre, a atitude não partiu de uma intervenção consciente, porém do instinto de adaptação, de contornar as circunstâncias inseguras fora do país de origem. “Procurei esse tipo de texto para tentar escapar do buraco negro em que me senti quando mudei para a França. Mudança de língua, ambiente, de repente me vi em meio a uma enorme cratera. Fiquei muito tempo sem escrever absolutamente nada. A saída foi tentar esses textos curtos, com uma angústia menor”. Ana Branco/ Agência O Globo
Sua obsessão é mudar de alma enquanto o corpo é fiel. “Tento sempre não me repetir, mudar de livro para livro. O que dá graça à coisa é experimentar o que ainda não se fez. Apesar de meus livros serem coletâneas de contos, não os quero como um saco onde cabe tudo. Penso um livro sempre em conjunto, sempre dentro de uma unidade, e essa unidade normalmente passa pela forma.” Em Paris, não mudou a rotina. Ou melhor, a falta de rotina. Prefere o papel caseiro de observador e procriador de animais imaginários no papel, onde escreve à mão, sempre. Não existe texto de Amílcar que não passe por releituras e emendas ao lado com sua caligrafia em estilo árabe. Minucioso, concentrado, paciente. Sua folha suja é a mais limpa. “Sou acostumado a estar sozinho desde muito tempo e posso dizer que adoro estar sozinho. Não é exatamente aquela solidão de quem sabe que não tem ninguém com quem contar. Essa solidão é medonha e felizmente não a sinto. Mas sou um cara difícil de sociabilizar, não gosto de estar no meio de muita gente, sinto-me pouco à vontade com os outros. Sou capaz de passar dias sem sair de casa.” De sua estada na Europa, conheceu a generosidade do escritor argentino Juan José Saer, de livros como O Enteado e Ninguém Nada Nunca, que morreu no ano passado. “Nas vezes em que falamos, falamos pouco de literatura, eu estava ainda chegando, sem trabalho, tentando me arranjar e ele queria me ajudar, talvez revivendo ali a sua própria experiência de 30 e tantos anos atrás: escritor latino-americano chegando na França e tendo que se virar”. Se, em Os Lados do Círculo, Porto Alegre está inteira como cenário e linguagem, agora a nova vida em novo lugar deve render uma mudança abrupta em sua ficção. Está de flerte com a poesia, a soprar bolhas de ficção. O trabalho como tradutor da Companhia das Letras e do Atelier Européen de la Traduction vem ajudando-o a reparar bem mais nas nuances do português, suas colorações escuras e recursos escusos. “Tenho escrito uns textos muitos curtos, uma ou duas páginas no máximo. São textos que partem quase sempre de uma imagem, e que tentam cristalizá-la a partir de uma linguagem mais poética, uma espécie de prosa poética. Mas sempre com o pé na ficção, na história, no conto. Mesmo que no final não dê conto, a idéia é guardar certa tensão poética, criar uma espécie de “bolha de ficção” que se desgarre da
O escritor argentino Juan Saer: generosidade em Paris
Amílcar é pacato e quase invisível. Usa roupa branca e jeans de propósito. Pouco chama atenção para si, muito menos para o que faz. Nada o tira do sério. Corrigindo, uma única afirmação o perturba. E não é provocação esportiva. Quando alguém, pela enésima vez, o imputar o rótulo de cortazariano. Ele não é de planejar a vida. Deixa rolar. Assim a vida o conduz para onde ela quer. Ao topo. •
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Ken Redding/Corbis
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Westerns pré-socráticos Literatura do faroeste, que começa a ser lançada no Brasil, constitui o “regionalismo” americano e tem pontos de contato com Homero e Parmênides Fernando Monteiro
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Imagens: Editora Rocco/Divulgação
erta vez, um amigo (leitor de Vico, Joyce e Gadda, entre outros) descobriu, na minha estante – meio escondidos –, aqueles bons westerns que eu importava dos EUA, em edições de bolso com toda a pinta de leitura popular, de segunda. O meu amigo PhD não ficou menos que chocado. Ele, que chegava a apreciar os filmes do genial John Ford e do misógino mestre Howard Hawks, não conseguia entender como a estima do gênero cinematográfico podia se estender aos “romances do Oeste” (mesmo que alguns deles houvessem gerado obras-primas cinematográficas). E eu improvisei, na hora, uma explicação para distraí-lo: faroestes (de qualidade) me ajudavam a entender os filósofos pré-socráticos. Surpreso, meu amigo não entendeu, mas desistiu de aprofundar a questão. Alguns anos mais tarde, quando afinal selecionei Parmênides (Sobre a Natureza) para ler, foi a minha vez de ficar surpreso: as distinções do sábio de Eléia – mundo aparente, mundo da verdade etc. – estavam na base da “tábula rasa” de pioneiros, pistoleiros e xerifes angustiados em meio a um mundo selvagem onde é impossível sonhar com a ordem, a moral e a lei, sem se questionar sobre o absoluto capaz de nos situar fora da Desordem. Entre o fogo e a noite, o caos e a pluralidade das coisas, o homem do Oeste é o “fisicista” que Parmênides O escritor Ellmore Leonard, cuja obra vem tenta recolocar em perspectiva filosófica sendo lançada no Brasil: faltam outros para além da materialidade, num deserto físico e moral (a pradaria), onde há que decidir sobre a liberdade, seus limites, o tipo de sociedade desejável sobre o nada e outros questionamentos embutidos, em essência, na ação de um gunfighter como Shane, por exemplo, quando ele “reordena” o rincão de brutos do Wyoming, ao preço da própria expulsão daquele “paraíso” sem lugar para os heróis perigosamente armados com pistola e hábitos de individualistas solitários. Tudo isso (chocante?) é necessário para dizer que os melhores westerns finalmente estão chegando ao Brasil. Com intervalo de meses, a Editora Rocco lançou oito, em duas fornadas – todos assinados por Elmore Leonard –, além do ensaio Publique–se a Lenda: a História do Western, do brasileiro A. C. Gomes de Mattos. A coleção se chama “Faroeste” (e deveria intitular-se Coleção de Westerns de Leonard), em comemoração dos 100 anos do gênero, no cinema. Para isso, a editora carioca deu sóbrio trata-
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mento gráfico aos livros bem traduzidos, no simpático formato 14x21, tudo no lugar, ou quase, se não fosse pela falta, gritante, de outros autores além do bom Elmore, autor da pequena obra–prima que é Hombre (o número um do conjunto). Uma primeira “coleção” brasileira do gênero teria que incluir títulos como Shane, de Jack Shaefer (Os Brutos Também Amam, de 1952), The Searchers, de Alan Le May (Rastros de Ódio, de 1956), e outras novelas admiráveis, a partir das quais foram desenvolvidos os roteiros de filmes estimados pela crítica e pelo público. Na “Faroeste” é de se esperar que o arco largo dessa rubrica venha a incluir mestres do calibre de A. B. Guthrie, Charles Portis, Walter Van Tilburg Clark, Robert Krepps, Will Levington Comfort, Mari Sandoz, Charles Locke, Benjamin Capps, Elmer Kelton e outros nomes ainda desconhecidos no Brasil. Aqui, os leitores só tiveram acesso a torpes livrinhos de bolso, escritos na Espanha e traduzidos para editoras que os vendiam em bancas, assinados por “J. Mallorqui”, “Marcial Lafuente Estafania” e pseudos semelhantes. Ninguém pôde conhecer, em tradução, a saga escrita por A. B. Guthrie, por exemplo, em dois volumes – The Way West e The Big Sky –, que Hawks levou para a tela, e é literatura de primeira ordem, distinguida com o Prêmio Saddleman (1978). Há outras lacunas, ou exemplos de apatia editorial inexplicável na área, sem esquecer que o próprio Elmore Leonard, com todo o seu sucesso no “policial”, só agora se vê retirado do fundo da gaveta (apesar do êxito do filme homônimo, produzido e dirigido por Martin Ritt, em 1967). Continente março 2006
A lacuna dos bons faroestes, nas estantes brasileiras, tem mais de 100 anos, uma vez que data de 1902 a publicação da novela inaugural do gênero: The Virginian, de Owen Wister. Antes, o western fora apenas anunciado naqueles folhetos e historietas de cowboys que circularam – como a nossa “literatura de cordel” – de Leste a Oeste, na América de Búffalo Bill. O livro de Wister começou a vender, aos milhares, tão logo apareceu como narrativa um tanto ingênua, porém completa e cheia da observação “documentária” pioneira. Isso atraiu a atenção de Dustin Farnum e outros atores de teatro que iriam levá-la para os palcos populares, antes do cinema se interessar pelo romance que viria a pôr, na trilha aventureira, o também “clássico” Zane Grey, autor de 63 faroestes escritos a partir de 1904. Wister nasceu em Ohio (1872), formou–se em Harward e estudou música em Paris. Advogado profissional, costumava passar férias no Wyoming e, lá, apaixonou–se pelo mundo dos vaqueiros, índios e pistoleiros que constitui, literariamente, o “regionalismo” norte–americano mais autêntico. Depois dele e de Grey, William McLeod Raine – o terceiro nome entre os “maiorais” da fase ingênua – viria de Londres (onde nasceu em 1871), bem longe da pradaria, para escrever sobre a vastidão misteriosa. O fundo maniqueísta primitivo e a candidez “matuta” dessas primeiras obras seguiram explorados por B. M. Bower (cujo nome verdadeiro era Bertha Sinclair, a primeira autora do filão), Peter B. Kyne, Clarence Mulford e Frederick Faust, mais conhecido como Max Brand. Alguma complexidade psicológica, além do alar-
Bettmann/Corbis
A ocupação do Oeste durou pouco, mas ficou cravada no imaginário popular americano, criando um gênero no cinema e na literatura
gamento antropológico daquela visão documental de Wister, só viriam com os livros de Frederick Glidden (ou Luke Short) e Ernest Haycox, até chegar à idade da razão, extra-folk, de escritores maduros, que talvez assimilaram até do cinema uma “cultura western” consciente de si mesma, como mitologia moderna. Exatamente como na tela, a ficção da fronteira só atravessa para os territórios mais complexos – e ganha estatura –, quando passa por mãos, refinadas, de autores trabalhando num desvio de 180 graus da “horse opera” típica, costumeiramente associada a Gene Autry, Roy Rogers e outros. Uma novela densa como Hombre tem pouco a ver com Destry Rides Again, de Max Brand, ou com os livros de far-west idealizado do alemão Karl May e do norueguês Kjell Hallbing. Hombre figura entre os 25 melhores westerns de todos os tempos – na lista da WWA (Western Writers of America) – e é, sem dúvida, a mais vigorosa das obras do Leonard, capaz de abordar diferenças raciais e culturais que lançam a sua aventura do Oeste pelos caminhos ásperos até do tema sartriano (“o inferno são os outros”). True Grit, de Charles Portis, alcança aquele respiro largo do melhor Mark Twain, sendo o seu humor menos direto e temperado pela visão retrospectiva; Watch for Me on
the Mountain, de Forrest Carter, foi chamado de “espantoso romance”, por Budd Schulberg, e The Searchers, de Alan Le May, tornou-se paradigmático como o belo Shane. Podemos ir mais longe, e dizer até que a “conquista do Oeste” – curto período de menos de meio século – ofereceu a escritores, a diretores de cinema (de Anthony Mann a Fritz Lang), algo como um platô comparável ao fornecido, a Homero, pelas façanhas de alguns guerreiros brutais, naquelas refregas gregas. Cantando os seus feitos, o poeta dos heróis assentou o marco épico inicial da nossa literatura (se houvesse cinema naquela época remota, hoje veríamos Tróia como uma espécie de Tombstone do Peloponeso). Viajando por lá, nos anos 40, Henry Miller escreveu, em Colussus of Marussi, que, a toda hora, esperava ver “índios siouxs, não sabia por quê, saltando acima das pedras colossais da Micenas arcaica”. Não é de espantar: afinal, há “pré-socráticos” na essência da mitologia americana, talvez a última capaz de ainda nos inspirar para a frente, go to West, no espaço silencioso das últimas fronteiras. No Pindorama de cangaceiros (armoriais ou não) que somos, este artigo saúda a coleção de westerns que, certamente, não será lida por Ariano Suassuna... • Continente março 2006
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A vida decifrada Novo livro da poeta gaúcha, Cláudia Ahimsa, recria um itinerário de viagens e imagens ao redor do mundo
Leonardo Aversa / Agência o Globo
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Weydson Barros Leal
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primeiro prazer é estético. A foto de uma mulher – auto-retrato idealizado e produzido pela poeta Cláudia Ahimsa – faz da capa de seu novo livro A Vida Agarrada (Cacto Editora, Rio de Janeiro, 2005) uma janela que se abre e acende a nossa curiosidade. O que insinua essa mulher sem cabeça, vestida para festa, com os braços manchados de púrpura, a erguer uma rede onde se agarram nove caranguejos? Seus poemas remexem questões que habitam o insólito cotidiano de nossas vidas. Dessas questões evidencia-se uma originalidade de construção, de percepção, a originalidade que está numa poesia de temas não recorrentes, quase incomuns, mas que estão à nossa vista pela janela do carro ou na televisão, que podem ser silenciosos e estranhos ao olho comum, e só revelados ao olho da poeta: “... e o que é fundo vem à tona e será topo/ e o que é força será fóssil”. A Vida Agarrada é uma coletânea de poemas escritos nos últimos 10 anos durante ou após viagens ao redor do mundo. Em alguns casos, não sabemos se este ou aquele texto é resultado de uma experiência vivida ou apenas imaginada, mas que não perde a força de um itinerário poético, de um atlas geográfico e humano de cidades, distâncias, tudo depurado pelo olho vertiginoso da autora. Há nessa poesia algo de uma sensibilidade fraterna, altruísta, ainda que seja apenas observação, ou algo da “generosidade” de que faA Vida Agarrada, Cláudia Ahimsa, lou Oscar Niemeyer no Cacto Editora, 97 páginas, breve comentário reproR$ 27,00. duzido no livro.
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A poeta Cláudia Ahimsa
Por um instante, uma excessiva elaboração ou demasiado vigor de vocabulário pode perturbar um outro verso que já seria poesia em sua forma mais pura, dispensando a palavra difícil. Mas logo, o surgimento de imagens simples, inusitadas e sofisticadas reanima a melhor poesia: “Vou pela sala de estar que agora é passadiço/ para o quarto onde o mofo amplia seus jardins”. Ou ainda: “Vou pelo ir/ Além das belas planícies escutar/ a tristeza do lugar/ Que a falta de superfície/ dos buracos entre as estrelas/ não é mais falta que as coisas/ para sempre desaparecidas entre as pedras/ e o capim/ – nossa superfície”. Reside aqui a mão lírica e bucólica de um Walt Whitman universal, o olho agudo de uma Emily Dickinson íntima e cotidiana, a metafísica de um Drummond reflexivo, o ecoar dos primeiros poemas de um Rimbaud atravessando cidades ou o olhar enxuto e sofisticado de um Wallace Stevens e seu conterrâneo William Carlos Williams. Às vezes abusando de recursos técnicos como as aliterações, Cláudia Ahimsa não perde nunca de vista a verdadeira poesia, a poesia agarrada em cada sílaba de suas palavras. •
POESIA
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O mal obscuro Deixo apenas a ti a porta aberta. Os outros busquem o mundo, à descoberta – ou no Palmar ou no Ascoli Pileno – de um lugar ao sol ou ao sereno. Mas tu a fechas sempre, deprimida e golpeada por um mal obscuro, que te anula, implacável. E estranha à vida passas o tempo a reforçar um muro de desespero, de suspeita e espanto que em tua alma encontram acolhida. Move essa pedra que te oprime tanto. Chora, se crês aliviar teu pranto, porque malgrado todo o desencanto mais a desprezas, mais te ama a vida.
Il male oscuro A Francesca, 13 anni dopo. Lascio solo per te la porta aperta. Gli altri sparsi nel mondo alla scoperta – chi a El Palmar, chi ad Ascoli Piceno – caparbia d'uno squarcio di sereno. Ma tu la chiudi sempre, rattristita e bastonata da quel male oscuro che ti spegne implacabile. Stranita, trascorri i giorni a rafforzare il muro della disperazione e del sospetto che nel tuo animo penetra e s'avvita. Smuovi il macigno che ti opprime muto. Piangi pure se il pianto t'è di aiuto, perché malgrado tutto e a tuo dispetto più la disprezzi e più t'ama la vita.
Canibais Nos anos de nossa juventude amar era enfrentar uma batalha feita de beliscões e de mordidas. Dos encontros guardávamos feridas em nossos colos e em nossos braços, e as exibíamos em casa e nas ruas como prova de nosso devorar-se. Nossos corpos exaustos agora travam tantas outras batalhas, que a vida nos reserva sem dó a cada instante, sem a suavidade de outrora, com pérfidos ardis e baixos golpes. O mau-trato tornou-nos mais ferozes, deu-nos dentes e garras de leão, e cada um por si tenta repor de tudo aquilo o pouco que restou do nosso cotidiano espedaçar-se.
Cannibali Negli anni della nostra giovinezza amarci era affrontare una battaglia data a colpi di pizzichi e di morsi. Di quegli scontri portavamo i segni sul collo e sulle braccia e con orgoglio li esibivamo in villa e sopra il viale come prova del nostro divorarci. Ora ingaggiamo con i corpi esausti ben diverse battaglie che la vita ci riserva spietata ad ogni istante, senza il gioco pulito di una volta, con perfidi sgambetti e colpi bassi. Le scorrettezze ci hanno inferociti e con artigli e zanne di leone ognuno per suo conto ci affanniamo a ricomporre alla men peggio i resti del nostro quotidiano dilaniarci.
Emilio Coco
A Francesca, 13 anos depois.
Emilio Coco (1940), poeta e crítico italiano, é um dos mais importantes estudiosos da literatura espanhola na Itália. Recebeu, em 1999, o prêmio de tradução e ensaio Annibal Caro, e, em 2002, pelo conjunto de sua obra, o Premio Speciale Torri di Quartesolo. Tradução: Everardo Norões
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PROSA
A morte do poeta Mayrant Gallo
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escia a Avenida Sete e, em lugar de dobrar na rua Carlos Gomes, virei em direção à praça Castro Alves. Às vezes, como um autômato, obedecemos a uma voz inaudível. No meu caso, naquele momento, a voz era a do vício. Tentava parar de fumar, mas volta e meia, escondido, me aliviava, quase sempre em ambientes fechados, de modo que alguém logo descobria minha recaída, e vinha a repreensão. Quem mais me vigiava era Lídia, minha namorada. Mas também minha ex-mulher e minha filha, desde que fui parar no hospital, vinham se preocupando, e me repreendendo. Assim, passei a fumar na rua, de preferência a caminho do trabalho, um cigarro apenas. E porque avistei o vendedor de cigarros em frente ao cinema Glauber Rocha, hoje banheiro público, dobrei para a Castro Alves, embora me dirigisse à Carlos Gomes. Quando acendi o cigarro e me voltei, vi que o poeta descera do pedestal e seguia pela rua. Era o início da tarde de segunda-feira de carnaval, aquele momento em que os trios-elétricos dor-
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mem e os foliões se refazem, enquanto o sol desinfeta a arena. Atravessei a rua e o agarrei pelo braço. Ele se voltou e me olhou com uma fisionomia de culpa. Nunca fui muito de ler poesia, que para mim não passa de uma doença de efeminados, mas reconhecia o valor do poeta e sabia o quanto era cultuado, mesmo nos dias atuais. Sabia, inclusive, de pessoas que tinham enlouquecido por causa dele, homens e mulheres. “Que pensa que está fazendo?”, perguntei. Ele apertou os lábios, as pupilas injetadas, o cabelo revolto: “Fugindo, ora!” Pensei que seria uma catástrofe se o poeta desaparecesse. Então não pensei duas vezes e lhe pus as algemas. Quando, pouco depois, cheguei ao posto policial montado provisoriamente no largo Dois de Julho, não hesitei em trancá-lo no xadrez, àquela hora vazio, pois os malandros da noite já tinham sido transferidos. Os outros policiais quiseram saber o que ele tinha feito.
PROSA
“Estava recitando poesia na rua, atrapalhando os foliões”, respondi, sério. E fui vestir o uniforme. Era melhor que o poeta ficasse preso. Livre, certamente não passaria daquela noite, ainda mais com aquelas roupas, que logo seriam tomadas por fantasia, piração. De manhã, eu o levaria comigo. E foi o que fiz, depois de passar toda a noite, relativamente calma, pensando nele. Pensei tanto, que nem me lembrei de fumar. À tarde, fomos caminhar no Dique. Emprestei-lhe um calção e uma camiseta, mas ele não queria sair vestido daquele jeito. Dizia que era roupa de dormir. Precisei gritar com ele, lhe dizer que estávamos no alvorecer do século21. O Dique estava quase vazio, e nem fomos notados. Tentamos correr, mas logo nos cansamos, os dois mais parecendo duas carcaças com o pé na cova. Eu não sabia o que lhe dizer, nem ele a mim. E pensei que era assim hoje na sociedade. Há um abismo entre as pessoas, em especial entre o poeta e o homem comum, que já não se respeitam, nem se admiram. Nosso silêncio, como se diz, era sintomático. O ponto nevrálgico de um problema insolúvel. Passamos a tarde diante da tevê. Ele perguntava, e eu explicava, sonolento. Comentou que era uma infâmia que, para a diversão e o prazer de algumas pessoas, outras ficassem ali dentro, naquela nau, em regime escravo. Foi difícil convencê-lo de que não eram pessoas de verdade, mas simples imagens de pessoas de verdade. Por fim, fez do controle remoto um brinquedo. Não parava em nenhum canal. E ria se o programa era engraçado, chorava se era triste e se excitava quando lindas mulheres surgiam em trajes sumários, nos bailes de carnaval. Por duas vezes foi ao banheiro e lá ficou por muito tempo... De noite, quando o telefone tocou, ele se aproximou do aparelho, com os olhos arregalados, expressão de pavor. Era Lídia. Estava saindo do trabalho e pretendia passar a noite comigo. Como eu, ela sempre trabalhava durante o carnaval, às vezes virando a noite. E nos intervalos de folga sempre ficávamos juntos: ou na sua casa ou na minha. Não falei nada sobre Castro Alves, a não ser depois que ela chegou, me beijou e desabou no sofá, já sem os sapatos, a calça jeans aberta. “Estou com um amigo...” “Quê?” “O Castro.”
Ela correu até o quarto, onde a tevê continuava ligada a todo volume. Voltou espantada, um meio sorriso nos lábios levemente trêmulos: “Mas aquele é Castro Alves...” “O próprio. Desceu do pedestal ontem...” “E agora, que vamos fazer?” “Sei lá”, falei, “deixá-lo aí até amanhã. Ele adora tevê, não vai atrapalhar.” E a arrastei para o outro quarto. Enquanto lhe tirava as roupas, ela dizia que era para eu tomar cuidado com o coração. Dizia isso e me provocava, ria, fazia charme, esquecida de que no quarto principal o poeta estava vivo. Quando despertei, já dia claro, a tevê estava ligada, mas o poeta tinha desaparecido. Fui achá-lo caído no banheiro, com minha garrafa de uísque ao lado, vazia. O poeta ria, ria até perder o fôlego. E em seguida chorava, ao ponto de ficar com o rosto congelado, como as crianças. Abri o chuveiro e lhe dei um banho frio. Depois o levei para o quarto e lhe vesti suas roupas. Penteei seu cabelo conforme me lembrava dele nas gravuras dos livros de escola e o instalei diante da tevê. Ele acabou adormecendo, e eu também, ao seu lado. Acordei com Lídia me sacudindo, enrolada num lençol. “Cadê o poeta?” Saímos pelas ruas a procurá-lo, mas foi em vão. Havia muita gente tombada pelas calçadas, dormindo, homens em sua maioria, mas nenhum dos que incomodamos era o poeta, que tirara suas roupas, pusera uma das minhas e sumira. Enfim, voltamos para casa. Naquela tarde, com o fim do carnaval, a tevê descobriu que a estátua do poeta fora “roubada” e começou a pisar o acontecimento. Mesmo a garota do tempo, um autômato, falou qualquer coisa com o casal de terroristas do jornal das oito. E por todo o país, no dia seguinte, se comentava o desaparecimento do poeta. Oportunistas recitaram seus versos entre lágrimas, e hipócritas o elogiaram, gratuitamente, a voz embargada. Em várias cidades, multidões se reuniram para homenageá-lo, estudantes pararam o trânsito. Até em São Paulo o crítico Alfredo Bosi deu sua penada. Foi assim que compreendemos, Lídia e eu, que o poeta estava morto, a merecer uma estátua. • Mayrant Gallo é contista e poeta baiano. Autor de O Inédito de Kafka (CosacNaify) e Dizer Adeus (Edições K).
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AGENDA/LIVROS Saga de pescadores
As entranhas da esquerda Antologia de 1950 é relançada e instiga a necessidade de continuação do assunto
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polêmico escritor paquistanês Tariq Ali lança, no Brasil, Redenção, romance publicado originalmente em inglês em 1990. O marco temporal do livro é o período 1989-1990, que trouxe a lume a fragmentação da esquerda mundial, com acontecimentos como a queda do Muro de Berlim. Um congresso mundial é convocado para Paris por Ezra Einstein, líder trotskista setentão, para discutir os rumos do comunismo. São chamadas tendências do movimento internacional de esquerda, que têm siglas e nomeações desconcertantes como PPISTA, agitadores, satanistas ou arruaceiros. No relato de preparação e execução do congresso são expostas todas as mazelas da esquerda tradicional, suas brigas internas e públicas, comportamentos sexuais e autoritários. A dicotomia ficção e história é colocada em termos de inserções históricas desde a revolução de 1917, passando pelo marxismo-leninismo, o trotskismo e o stalinismo, misturados ao improvável de lideranças desorientadas em sua vida individual e que pregam as mais diferentes posições e atitudes reformistas e anti-revolucionárias à época, caso de alianças com a Igreja Católica e o trabalhismo. O romance tem ambientação em vários países e, no capítulo 27, por exemplo, momentos de diário, diálogo teatralizado, texto jornalístico e até um poema atribuído a Goethe. O autor, ele mesmo um militante radical de esquerda, certamente quis mostrar que nada ficou de pé no movimento esquerdista tradicional, após aqueles fatos da última década do século 20. Se pensarmos no Brasil de nossos dias e na sua política (referida de passagem no livro), tão antiética quanto predadora dos interesses da população mais carente, a narrativa de Ali não terá sido mera coincidência. (Luiz Carlos Monteiro) Redenção, Tariq Ali, Record, 350 páginas, R$ 46,90. Continente março 2006
O romance O Dono do Mar, de José Sarney, lançado originalmente em 1995, ganha relançamento em grande estilo, estampando comentários elogiosos de nomes como Darcy Ribeiro, Lévi-Strauss e Maurice Druon. Narra a saga de uma comunidade de pescadores de São Luís, onde se destaca o capitão Cristório Antão, o dono do mar. A história é narrada num registro de realismo mágico e ao mesmo tempo realista, em linguagem regionalista elaborada. O livro, baseado num ensaio de 1953, traz ao final a relação dos 141 personagens e glossário de 140 termos. O Dono do Mar, José Sarney, Arx, 271 páginas, R$ 24,90.
Guerra & Cinema Ótima idéia de livro de referência, A Segunda Guerra no Cinema mostra duas faces: na positiva, como um crítico brasileiro pode ser completo no trabalho de mineração de um assunto, e, na negativa, como o mesmo crítico pode ceder à tentação de expressar algumas opiniões puramente pessoais etc. É o que faz Bilharinho, nesse livro em que se deve ignorar, por exemplo, o seu juízo sobre a obra do norteamericano Robert Wise – recentemente falecido –, resolvida em poucas linhas de menosprezo ao talento do diretor de Punhos de Campeão e Amor, Sublime Amor, entre outros. A Segunda Guerra no Cinema, Guido Bilharinho, Instituto Triangulino de Cultura, Uberaba, 300 páginas (Informações: institutotriangulino@yahoo.com.br)
Um romance urbano O enredo deste romance de André Resende é, na verdade, bastante simples. O tema da incomunicabilidade entre as pessoas, da dificuldade em transmitir sentimentos, bastante recorrente na literatura, é o ponto de partida de Amor Vário. Um rapaz passa a viver de favor na casa de uma mulher, Violeta, e lá acaba conhecendo outra mulher, Rosa. Mas não se trata de um triângulo amoroso. O protagonista movimenta-se pela cidade, experimentando cheiros e sensações. Vê sempre as mesmas pessoas e os mesmos lugares, mas nunca da mesma maneira, numa narrativa veloz. Amor Vário, André Resende, Editora Altana, 95 páginas, R$ 22,00.
Mestres do povo
Zé Lopes, Manoel Maurício, Barachinha, Zé do Mestre, Ana das Carrancas, Manuel Eudócio, J. Borges e Mestre Salu são mestres da cultura feita pelo povo, reunidos no livro Pernambuco Popular – Um toque de mestre. O catálogo traz, em 143 páginas, imagens de Fred Jordão e Roberta Guimarães, as quais narram, com o texto de Raul Lody, o que os artífices viram, descobriram e inventaram, como interlocutores e intérpretes do mundo. Pernambuco Popular – Um toque de mestre, edição da Celpe – Companhia Energética de Pernambuco, 143 páginas, R$ 100,00
AGENDA/LIVROS Crítica da crítica
A professora de literatura comparada Élisabeth Rallo faz neste livro uma análise de diversos métodos de crítica, partindo da leitura que cada crítico faz de um determinado autor e obra. Ela especifica o método utilizado pelo profissional, seus pressupostos e suas limitações. Para tornar o assunto ainda mais didático, divide o livro em abordagens que relacionam o homem e a obra, o texto e seu contexto, mais outros instrumentos de trabalho do crítico como o formalismo, a retórica, a psicanálise, a filosofia e a semiótica. Complementa o estudo com uma reflexão sobre a crítica feita pelos próprios escritores. Métodos de Crítica Literária, Élisabeth Ravoux Rallo, Martins Fontes, 290 páginas, R$ 42,50.
Cruel e sensível O primeiro livro de contos do poeta Francisco Espinhara (pertencente ao Movimento dos Escritores Independentes, que eclodiu no Recife da década de 80) surpreende pela técnica – textos enxutos e eficazes – e pela densidade humana. São contos ora curtos, quase poemas em prosa, que apreendem uma impressão, ora mais longos, em que se faz mais presente a narrativa, o diálogo, a descrição e o traçado dos perfis psicológicos. São bichos e pessoas habitantes de um mundo periférico e cruel, mas passível de uma sensível compreensão por parte do narrador. O que não o isenta de também ser cruel na ironia. Sangue Ruim, Francisco Espinhara, Edição do Autor, 87 páginas, R$ 10,00.
Pintura, ainda
Apesar da precipitada anunciação de sua morte, a pintura continua resistindo e se reafirmando como arte, pelo menos em alguns poucos artistas que a retomaram sob um viés crítico de aproximação e estranhamento. Um dos mais talentosos destes artistas é o carioca Daniel Senise. Em um texto curto, mas muito esclarecedor das posturas e processo de trabalho do pintor, Moacir dos Anjos assina o catálogo da exposição ocorrida no Mamam. Também, no mesmo formato, estão sendo lançados os catálogos do alagoano Delson Uchoa e do pernambucano Eudes Mota. Daniel Senise, Moacir dos Anjos, Mamam, 32 páginas, R$ 10,00.
Escritor polêmico
Amigo pessoal de Monteiro Lobato, Paulo Dantas faz uma “biografia” em primeira pessoa do escritor paulista, a partir de uma colagem com trechos de livros, artigos e cartas, a fim de revelar o pensamento deste polemista desabusado e criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, do Jeca Tatu e dos fortes contos do livro Urupês. Bom editor, defensor do petróleo como riqueza nacional, é também lembrado, negativamente, como crítico feroz do modernismo de 22. Certo ou errado, uma coisa é evidente: Lobato não se esquivou aos problemas do seu tempo nem ao papel crítico e cívico do intelectual. Presença de Lobato, Paulo Dantas, RG Editores, 214 páginas, R$ 31,40.
Vozes do exílio Em romance fragmentado, escritor argentino radicado na França tenta entender a Buenos Aires dos anos 60, na qual começou a vivenciar o mundo
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romancista e cineasta argentino, radicado em Paris, Edgardo Cozarinsky, realiza, em Vodu Urbano, uma narrativa retrospectiva a uma época em que era jovem na Buenos Aires dos anos 60. Sempre na terceira pessoa, na primeira parte do livro vê-se transportado no tempo e no espaço, encontrando com velhos amigos e amigas, com quem discute e rememora a Copa do Mundo, a perseguição na ditadura, os hábitos, os tédios. A segunda parte é composta de “cartões-postais” datados da segunda metade dos anos 70 e antecedidos por epígrafes de outros autores, que iluminam o sentido do que se vai ler. A partir da imagem de certos lugares – praças, prédios, instituições –, que ele descreve sempre em termos críticos, vai rememorando uma série de episódios ao mesmo tempo em que tenta refletir sobre a realidade argentina, tanto em termos de comportamento, como de cultura e política. Os textos foram escritos em inglês, depois traduzidos para o espanhol, para caracterizar bem a visão do “estrangeiro”: ao utilizar outra língua, que não a nossa, inevitavelmente estaremos manipulando um instrumento alheio, e que termina interferindo não apenas na visão como na narração. Acontece que o autor é, de fato, um cosmopolita, e sua volta à velha Buenos Aires não pode ser pacífica. O resultado final é um mosaico de imagens, narrativas e digressões de um exilado, que fala ao mesmo tempo com saudade e raiva de sua pátria, como se quisesse que ela fosse diferente, mas continuasse sua. (Marco Polo) Vodu Urbano, Edgardo Cozarinscky, Iluminuras,128 págs, R$ 29,00.
A importância da cultura Para Michael Denning, professor de Estudos Americanos na Universidade de Yale, de 1945, com o final da Segunda Grande Guerra, até 1989, com a derrocada da União Soviética, havia três mundos: o primeiro, o mundo capitalista; o segundo, o comunista; e o terceiro, o dos países em descolonização. A partir daí começa o mundo único da globalização, que vai exigir novas perspectivas de reflexão e compreensão. O foco do seu livro, entretanto, é como naquela segunda metade do século 20, em que a cultura deslocou-se para o centro da vida política e intelectual, o que obrigou a esquerda a “enxergá-la” como elemento de importância e não uma “mera superestrutura” condicionada pelo economicismo. O autor se dispõe a analisar a questão por todos os ângulos, incluindo os divergentes aos seus, citando, entre outros, de diversas partes do mundo, autores brasileiros. A Cultura na Era dos Três Mundos, Michael Denning, Francis, 296 páginas, R$ 45,90. Continente março 2006
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Gênios, corram! Salieri está vivo! "Um homem de gênio raramente foi arruinado senão por ele mesmo". (Samuel Johnson 1709-1784)
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posto um samba de Lupicínio Rodrigues que o 250º aniversário de Mozart vai ser mais celebrado no planeta do que o 400º aniversário da primeira edição do Dom Quixote de La Mancha. Não tem para onde correr: em toda parte o público da música é sempre maior que o público da literatura. Não dou a mínima importância a isso, mas o precoce e polêmico Mozart, com essa história de tocar – e bem – cravo e violino, aos cinco anos, espanta até um boneco de Vitalino. Toco nesse conhecido fenômeno, para beliscar a curiosidade de meus milhões de leitores. Mozart talvez seja o tema desta crônica. O mundo anda tão falto de assuntos, todo dia é a mesma coisa: violência urbana, milhares de mortos, milhões de assaltos e as guerras de sempre, essa rotina que dá tédio. Bem, meu pai vivia dizendo que Beethoven era o filósofo da música, Bach, o matemático, e Mozart, o poeta. Continente março 2006
Durante os meus 63 anos de baixíssimo índice de desenvolvimento humano, segundo a ONU, todas as referências e citações que li sobre o compositor austríaco eram fanaticamente elogiosas. Eu, de longe, porque não era o meu curral, continuo seguindo o aboio geral. O compositor nasceu no século 18, em 1756, e houve muito tempo para ser despejado da corte dos maiores. Se o não fizeram, é que o artista mereceu, mesmo, seu bosque de loureiros, ou seus advogados eram desses que libertariam o próprio Saddan Hussein. Estava eu suando como burro velho, quando PUM! Levei um soco no olho. Quando zonzo o abri, estava lendo o artigo “O Rei da musak”, de Norman Lebrecht, no caderno “Mais” do jornal Folha de S. Paulo. Eu não sabia o que era musak, felizmente o próprio articulista se encarregou de definir: “som ambiente de escritórios e elevadores” e, portanto, de salas-de-espera, de espera telefônica,
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essas coisas. Como Lebrecht denominou Mozart rei dessa droga, seria bom saber quais de suas seiscentas e tantas obras se prestam a tal subestimação. O artigo é um soco, um pontapé, uma cabeçada na memória universal de um dos maiores ícones da música ocidental. “A Hulk modo”, cheguei a listar 17 observações negativas sobre aquele artista. Não vou citá-las uma a uma, até porque o Salieri de bordel certamente não sabia que, quem toca no santo, apanha. Vejamos o que saiu de sua cloaca: “Mozart é uma ameaça ao progresso musical!” Outra: “Ele não foi tanto reacionário quanto retrógrado”. Outra (esta comparou chimpanzé com agulha de crochê): “Mozart pode ter sido um gênio musical, mas não foi um Einstein!”. Tocou no santo, tem de apanhar. E a primeira pisa, quem a deu, no Brasil, foi o jornalista Alberto Dines, no artigo “Contracultura & Contramão” – “Folha se Atrapalha com Mozart”, na bucha e no site Observatório da Imprensa. Para a legião de brasileiros “mozárfilos” (será escrito assim?) indignados com a cafagestada do citado crítico, mas impotentes para reagirem, a resposta virtual de Dines foi uma lavagem de burro. Procura desancar aquele oxímoro ambulante, num de seus ódios a Mozart, o da Áustria vender certo tipo de chocolate com a efígie do compositor. E pergunta: “A associação do nome de Bach com um bar pode desmerecer a qualidade do gigante da música?” E quanto a ser ele qualificado como “Rei da muzak”? Dines usa um argumento semelhante para os casos de música-ambiente que usa composições de Tchaikovisk, Schubert, Bizet e Haendel. E, fugindo do gênero música, ainda pergunta: “O teto da Capela Sistina deve ser considerado ‘arte menor’ apenas porque algumas de suas imagens são usadas e abusadas pelos programadores visuais?” No seu rastro, a Folha de S. Paulo presenteou o público leitor com uma enxurrada de matérias sobre o composi-
tor. Na verdade, Alberto Dines fixou-se mais na atitude do citado jornal, por publicar tão velhacas e inverídicas acusações a Mozart, no ano em que o planeta celebra seu 250º aniversário de nascimento. Tem sido o papel de Dines criticar a ética do jornalismo brasileiro. No que se tem revelado um mosqueteiro imbatível. Ele lembrou que, originalmente, o pífio texto fora publicado em outro país, em 2005. Com toda a certeza, no periódico La Scena Musicale, traduzido por Luiz Roberto M. Gonçalves e publicado neste 2006, Ano de Mozart. Meu pai, que, praticamente, só ouvia música clássica, mas gostava de alguma coisa popular, como Chico Buarque e Luiz Gonzaga (e quem não gosta?), fez-me ouvir, na infância, Mozart e outros compositores clássicos. Desse tempo lembro ter gostado de Liszt, Beethoven, Schubert, Vivaldi e Chopin, mas só pedaços esparsos de sonatas, sinfonias e músicas ligeiras. Da vida deles ficaram alguns flashes paternos já opacos, em especial de Beethoven e Chopin. Só nos meados da década de 80, tive contato com a vida tumultuada e breve (35 anos) de Wolfgang Amadeus Mozart. Foi através do filme Amadeus (8 Oscars) de Milo Forman. O filme é uma adaptação de uma peça de Peter Shaffer, que também foi seu roteirista. Aos que reclamavam das imprecisões históricas, Shaffer alegava que não estava querendo ser propriamente um biógrafo do compositor, o que pretendia era criar, na peça e no roteiro, uma fantasia em torno de sua vida.Tenho um LP com a trilha musical. Lembro-me de que o filme castigava nas presepadas de Mozart e no roer de unhas da inveja de Salieri, principal maestro da corte austríaca. Hoje, parece que tomando carona nas celebrações, as locadoras já exibem a versão em DVD do filme. Para mim, ele não é uma fantasia, nem uma elegia, mas uma alegoria. Apesar de assisti-lo como a uma comédia, gostei do filme de Milos. • Continente março 2006
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Fotos: Reprodução
A modernidade A combinação de sensibilidade e reflexão, de arte e pensamento em Rembrandt, é o que grão-modernos como Kafka, Mann e Proust perseguiram a vida toda. Barroco e austero, ele não se encaixa em classificações Daniel Piza Continente março 2006
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A Aula de Anatomia do Doutor Tulp, 1632
roponho ao leitor um exercício curioso: tome um livro importante que trata de definir o que é arte moderna, como o de Giulio Carlo Argan ou o de Herbert Read (A Arte de Agora Agora), para ficar em apenas dois exemplos, e aplique os conceitos a uma pintura qualquer de Rembrandt, de preferência dos seus últimos anos, pondo um pouco de canto a identidade do autor e seu período histórico. Bingo: Rembrandt vai parecer ser o mais moderno dos pintores. A descontinuidade formal pode ser vista na maneira como Rembrandt divide a luz, e não há área luminosa em suas telas que não tenha um sombreado e não há áreas escuras que não sugiram luz. A presença tanto de elementos clássicos como dos românticos ou “anticlássicos” é comprovada pela maneira como suas figuras e cenas parecem mesclar o rigor da composição e a intensidade da paixão. A fusão entre figura e fundo é tão fundamental que não se pode extrair de nenhuma pintura de Rembrandt um único dado secundário, sem que ela não seja afetada por essa ausência. O jogo entre realidade e ficção e o uso da auto-referência são tão óbvios na sua série de auto-retratos, por exemplo, que Rembrandt parece um precursor dos pós-modernos na multiplicação de si mesmo, na polifonia de suas identidades. Barroco e austero ao mesmo tempo, Rembrandt nos faz pensar em gênios equivalentes de outras artes, que como ele são eternos e, por extensão, modernos. Sua consciência das ironias da natureza humana é igual à de Shakespeare. O domínio e o distanciamento de sua fase final permite paralelo com os últimos quartetos de Beethoven. A combinação de sensibilidade e reflexão, de arte e pensamento, é o que grão-modernos como Kafka, Mann e Proust perseguiram a vida toda. É claro que Rembrandt não é tecnicamente um moderno: nos modernistas, aquelas características – elipse, simultaneidade, metalinguagem – são predominantes e, mais fundamental, chamam a atenção para si mesmas, expondo-se na própria superfície de forma mais angulosa e lúdica. Mas é que ele não se encaixa em classificações. Rembrandt derruba diversos outros tabus da crítica de arte. Em vida, por exemplo, foi reconhecido por seus talentos. Mas também foi criticado quando velho, por estar fazendo uma pintura “voltada ao passado” – o que confirma que raramente a geração seguinte é indicada para dar o veredicto sobre a grandeza de uma obra. Rembrandt, como Mozart, também teve uma vantagem concreta sobre seus contemporâneos: o apoio do pai, desde cedo. Nascido em Leiden, na Holanda, em 1606, quando Shakespeare escrevia Rei Lear, na Inglaterra e Cervantes concluía Dom Quixote, na Espanha, aos 7 anos ele foi matriculado na Escola Latina pelo pai, dono de um moinho à beira do rio Reno. Seus irmãos,
de Rembrandt
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A Ronda Noturna, 1642
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provavelmente porque menos dotados intelectualmente, foram aprender ofícios em vez de freqüentar a escola. Mas os planos do pai não eram ver o filho se tornar o maior artista da Europa. Era vê-lo doutor, autoridade. E Rembrandt largou os estudos aos 15 anos, para se tornar um pintor. Mesmo assim, os pais o levaram para estudar com um pintor acadêmico, com quem Rembrandt passou três anos. E o enviaram para Amsterdã, quando atingiu a maioridade, cientes de seu promissor talento. Naquele momento, a Holanda vivia desenvolvimento acelerado – descrito magistralmente pelo historiador britânico Simon Schama em O Desconforto da Riqueza – e os ricos queriam absorver o melhor da cultura européia, especialmente os frutos do Renascimento italiano, que nesse momento tinha como capital a Veneza de Ticiano, Tintoretto e outros, além de Caravaggio em Roma. Os primeiros professores de Rembrandt em Amsterdã lhe ensinaram técnicas de cor, claro-escuro, desenho e perspectiva. Era nessa tradição que bebia também Rubens, o grande pintor flamenco, 29 anos mais velho que Rembrandt. Produzindo uma pintura por quinzena, Rembrandt era mais e mais procurado pelos comerciantes da cidade, o que elevou sua cotação no mercado rapidamente. Ele desenhava com a perfeição de um Leonardo ou Dürer e praticava os gêneros estabelecidos, como a naturezamorta, as cenas bíblicas ou o retrato de aristocratas. Num deles, o retrato de grupo, já mostrou a que viera ao mundo: na Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), distinguiu-se da convenção, ao dar uma dinâmica à posição das figuras e uma expressividade a seus semblantes que eram
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inéditas. Suas inovações foram bem aceitas. Rico, casou-se em 1634 com Saskia, prima de seu marchand, e o casal logo montou uma mansão e a povoou de obras de arte, móveis antigos, porcelanas e muito luxo. Rembrandt retratou Saskia em pinturas tomadas por bom humor e sensualidade, apesar da feiúra do casal e da perda sucessiva de três filhos, em média aos dois meses de vida. Mas a morte da mãe, em 1640, e de Saskia, em 1642, lançá-lo-iam em melancolia. A sorte foi nossa, porque a partir daí a obra de Rembrandt atinge uma maturidade extraordinária. Uma de suas telas mais famosas, A Ronda Noturna, um tour de force em termos de composição e luminosidade, data precisamente de 1642, quando Rembrandt completava 36 anos. O quadro tem um movimento tremendo, os olhares se dirigem para todos os lados, e a sensação é de que ouvimos suas vozes. Há uma grandeza cênica nela, com suas medidas 3,65 x 4,37 metros, mas é preciso notar que há uma espécie de contenção que não se encontra em um Ticiano, por exemplo; seu drama não precisa de tantas vibrações de luz e contorno. E isso apontava para o futuro – o seu e o nosso. Nos anos seguintes, sua obra ganha mais liberdade, as linhas deixam de ser uma separação entre claridade e escuridão, os retratos ganham introspecção e sutileza. Uma revolução estava contida na forma como passou a distribuir os focos de luz: eles podiam estar em partes aparentemente menos importantes da figura. Num retrato como o de Jan Six (1654), as sombras ocupam metade de seu rosto, sem tirar nitidez de seus olhos, e ora as sombras parecem tomar a frente do quadro ora a roupa em vermelho e marrom parece ganhar um volume imponente. Como Balzac, Rembrandt produzia em todos estilos e com uma rapidez impressionante. Gravuras em água-forte nasciam uma atrás da outra,
Auto-rretrato com Saskia, 1635
Retrato de Jan Six, 1654
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O Artista em seu Estúdio, 1629
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bastando uns poucos traços com pena de junco para criar uma cena ou uma variação. Sua velocidade não era resultado da pressa, mas da busca de concisão, de síntese. Ao ver uma seqüência de seus auto-retratos gráficos, temos a sensação de que Rembrandt se reinventava sem cessar, ciente de que a verdade nunca se apreende, apenas se aproxima. Ou ao ver seu auto-retrato de 1658 na Coleção Frick, em Nova York, sentimos que aquela austeridade não elimina a noção de que o ser humano se leva muito a sério. Talvez por isso sua fase final, das obras cada vez mais ambíguas e fortes que faz ao longo dos anos 1660, tenha sido tão incompreendida pelos contemporâneos. Seu valor só seria resgatado por românticos como Delacroix, mais de 150 anos depois, sem que o Romantismo pudesse explicar como ser tão carnal e espiritual ao mesmo tempo – o que Van Gogh tanto perseguiria. Concubinado com Hendrickje, sua “noiva judia” (título de outra de suas telas mais conhecidas, de 1665), que em 1654 lhe dera uma filha, Cornelia, Rembrandt vinha enfrentando dificuldade financeira. As encomendas cessavam. Ela estava “fora de moda”. Foi obrigado a vender sua propriedade e a leiloar suas obras. Mas enfrentou tudo com uma energia que gênios sabem onde buscar. Passou a viver modestamente, num bairro pobre da cidade, e se sentiu mais livre ainda para as ousadias plásticas. Num auto-retrato de 1669, vemo-lo entristecido e também seguro de si; e a própria pintura é um prodígio de drama sereno, em que o colete vinho parece se diluir no fundo marrom, refletindo esses tons na face vivida do autor. Ele estava a poucos meses do fim. Sabia que tinha aberto fronteiras entre luz e sombra como ninguém.
Entre a luz e a escurid達o Do modesto e banal, at辿 o sublime e transcendente, tudo se converteu em um objeto de vis達o e reflex達o na obra de Rembrandt Mariana Oliveira, de Madrid Boi Esquartejado, 1655
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á 100 anos, na comemoração do terceiro centenário de Rembrandt, o historiador alemão Horst Gerson, especialista em sua obra, declarou que era muito difícil conhecê-lo em sua totalidade. A afirmação relativista batizou os três séculos em que as obras do artista foram estudadas de várias formas, com perspectivas completamente distintas, variando de acordo com o período. Contudo, a idéia de chegar a uma imagem coerente desse grande gênio sempre animou os historiadores da arte e segue até hoje, ano em que se comemoram os seus 400 anos. A idéia usual vinculada a Rembrandt está baseada, em boa medida, na maneira como o pintor era visto por alguns dos seus contemporâneos. Ele ainda é considerado um “herege da arte”, um artista que encontrou um estilo totalmente pessoal, no qual a expressão dramática, a luz e a representação fiel da natureza eram pontos chaves. “Deveríamos talvez lembrar de Rembrandt como o grande pintor das emoções e dos afetos, dos estados da alma, dos espaços e das luzes que nos submergem em sentimentos e emoções, dos retratos de personagens que estabeleciam entre si laços de empatia e lançam ao espectador sua humanidade”, opina o professor Fernando Marías, catedrático de História da Arte da Universidade Autônoma de Madrid. A luz na obra de Rembrandt exerce um papel fundamental. O pintor holandês resgatou o jogo entre claroescuro proposto por Caravaggio (1571-1610). A influência do pintor italiano sobre Rembrandt é bastante notória. O quadro São Jerônimo, de Caravaggio, e o São Paulo na Cadeia, de Rembrandt, tratam de temas parecidos. Comparando-os, percebem-se as similitudes e as diferenças entre os dois artistas. Caravaggio utiliza a luz de forma mais violenta e com mais intensidade, deixando bem marcada a separação entre o campo de luz e o de sombra. Em Rembrandt, a luz é mais difusa, tudo está mais misturado, não há uma distinção forte entre as duas zonas. Contudo, ambos valoravam mais a verdade e a sinceridade em detrimento da beleza e da harmonia, aventurando-se pelo caminho do Naturalismo. (Dentro das comemorações dos 400 anos do pintor, desde fevereiro, a exposição Rembrandt-Caravaggio reúne obras dos dois mestres, pela primeira vez, no Museu Van Gogh, em Amsterdam, até junho). Segundo Fernando Marías, Rembrandt encontrou uma maneira de, num mundo escuro (século 17), jogar Continente março 2006
Os Síndicos dos Tecelões, 1662
luz sobre alguns elementos, provocando sombras e deixando alguns objetos na penumbra. Os seus quadros podem ser entendidos como um grande negativo, que, com a entrada da luz durante algum tempo, começa a captar um pouco da realidade. Dentro desse contexto, as cores ficariam subordinadas à luz. O tipo de luz que determinado quadro recebia (diurna, de velas) impunha a sua coloração. Todo esse jogo entre o claro e o escuro e o aparecimento de sombras e penumbras são fatores diretamente ligados à dramaticidade dos quadros e de suas situações – uma verdadeira obsessão do pintor. O acervo deixado por Rembrandt é vasto: retratos, auto-retratos, retratos de grupo, temas bíblicos, históricos e mitológicos, pinturas de gênero e de natureza, sem falar nas suas gravuras. Em tudo que fazia, a busca por seu estilo próprio sempre o diferenciou dos pintores da sua época. Ele pode ser considerado um pintor fundamentalmente moderno. O artista talvez tenha sido um dos primeiros pintores a prescindir o cliente e pintar com liberdade o que queria. Rembrandt buscou inspiração no passado, na mitologia e nos temas bíblicos, mas estava sempre em diálogo com o presente. Poussin, por exemplo, resgatava temas antigos, parecidos com os escolhidos por Rembrandt, em uma pintura que era arqueológica. O pintor de Leiden levava os temas ao seu mundo contemporâneo. Também sua postura em relação às gra-
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vuras era eminentemente moderna. Ele tinha uma visão econômica do mercado (que poucos tinham) e queria levar sua arte a muitas pessoas. A ação moralizante, presente em muitas obras do período, não era encontrada em seus trabalhos. De acordo com Marías, a pintura de gênero holandesa possuía uma aura moral muito forte, enquanto as de Rembrandt simplesmente representavam o que ele via, sem nenhuma carga doutrinária. “Na Holanda protestante do século 17, nem tudo tinha que ser história menor de comédia, jogando com a moral. Também houve espaço para a história trágica, a descrição da natureza humana em sua grandeza e miséria, mas com um olhar isento de moral”, explica. Os desnudos femininos do pintor são naturais, quase reais. Suas musas não têm uma pele firme e uma beleza singular. Elas simplesmente são reais, têm carne, têm a marca da roupa nos braços, nas pernas, como uma mulher que realmente acaba de se despir, demonstrando a importância dada à naturalidade. Alguns dos retratos mais famosos pintados por Rembrandt são aqueles em que ele representa grupos e corporações. Ele passou do retrato individual ao retrato de grupo, e soube como nenhum outro pintor destacar as virtudes artísticas do conjunto e do coletivo humano. Soube incrementar o movimento, a narratividade, a teatralidade, tornando suas pinturas
uma narrativa. Em Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), Ronda da Noite (1942) ou em Os Síndicos (1661) há uma sensação de que realmente está acontecendo algo, que uma trama se desenrola e que seus personagens não estão apenas posando. Há uma integração entre as várias figuras, algo realmente teatral. Estudos recentes acerca da vida de Rembrandt apontam que uma das suas grandes paixões foi o teatro. A natureza-morta era um gênero bastante explorado na Holanda do século 17. Rembrandt pintou alguns poucos quadros que ficaram no meio do caminho entre uma pintura de gênero e a natureza-morta. Rembrandt era um pintor muito focado na natureza humana e, portanto, a figura humana está presente na grande maioria de seus quadros, mesmo que de forma secundária, mas sempre imprimindo certa dramaticidade à cena. No quadro Menina com Pavões Mortos (1636), por exemplo, uma menina (ao fundo) contempla os pavões mortos que estão em primeiro plano. Porém, não há dúvida que um dos quadros mais impactantes e misteriosos produzidos por Rembrandt foi O Boi Esquartejado (1655). Aqui, o papel da figura humana é ainda menor (uma mulher aparece sutilmente na porta entreaberta, ao fundo). Toda a atenção está voltada para o boi esquartejado, no primeiro plano, pintado de forma cruelmente realista. A cor densa e táctil dá a impressão da verdadeira consistência da carne, sobre a qual incide a luminosidade do quadro, provocando sombras reais. O quadro demonstra que o pintor não tinha limites na sua busca pela representação da realidade e na sua audácia na expressão pictórica e colorista. Além da forte característica moderna, a obra é um típico Rembrandt, pela harmonia das cores e pela sensação de mistério que o artista deu a um tema tão trivial como esse. Essas fortes características fizeram com que a obra fosse bastante estudada e reproduzida, inclusive, por pintores modernos como Delacroix, Chaïm Soutine e Daumier, que terminou pintando uma série inteira sobre um matadouro. Historiadores da arte de todas as partes já propuseram uma leitura simbólica da obra: na pintura de gênero a presença de um animal desarticulado remeteria ao tema da prudência, virtude que alerta para a importância de preparar-se para as necessidades futuras. Especula-se que ele, com isso, queria referir-se à sua grave situação financeira que o levaria a bancarrota no ano Continente março 2006
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seguinte; outros vêem o quadro como uma metáfora da morte. Além de pintar, Rembrandt também teve uma grande atuação no campo das gravuras, destacando-se em relação aos seus colegas Jusepe Ribera, Abraham Bosse, Benedetto Castiglione o Salvator Rosa. Ele sabia que para fazer suas obras chegarem a um maior número de pessoas precisava de um suporte mais barato, mesmo que menos duradouro. As temáticas se repetiam nas telas e no papel e seu foco na luz também era prioridade nas gravuras. Para Fernando Marías, as gravuras de Rembrandt conseguem ser ainda mais interessantes que alguns dos seus quadros. Ele desenvolveu uma arte de água-forte sem perfis lineares, à base de traços livres, que lhe permitiam imitar toda a riqueza de iluminação da pintura. “Deu às suas estampas um trato que até então só era concedido à pintura, tratou-as como verdadeiras obras de arte, nas quais levantava problemas expressivos e formais, como as figuras queimadas pela intensidade da luz em Os Banhistas (1651), ou seus jogos de pele negra sobre o branco e suas profundas penumbras na fantástica Negra Tombada (1658)”, ressalta Marías. Com o passar dos anos, seus olhos já não lhe ajudavam mais como antes. Mesmo com dificuldades, ele seguiu pintando, seguiu deixando seu olhar, sua visão do mundo, filtrada por sua personalidade. “Um velho ‘cego’ que não podia deixar de olhar, de ver e entrever, e de pintar o visto e o sentido”, descreve Marías, referindo-se aos últimos anos de vida do artista que, enquanto pintava, vivia. Rembrandt foi um artista que pintou não apenas a natureza humana, com suas contradições, mas toda a natureza, desde o mais imaterial (uma nuvem, um raio de luz), a algo densamente material como a carne de um idoso, de um boi. Do modesto, banal, até o sublime, transcendente, tudo se converteu em um objeto de visão e reflexão desse holandês e de sua arte de luz e sombras. “O velho filósofo Rembrandt unia, em seu saber, passado e modernidade, escondia na sua arte o segredo da vida e da posteridade”, conclui Marías. Continente março 2006
Jacó abençoando os filhos de José, 1656
Rembrandt A pintura do holandês é o drama puro e simples do nascimento e da morte Joaquim Cardozo
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embrandt, filho do moleiro van Rijn, nasceu em Leyde em 1606; completa-se, assim, este ano, o sétimo cinqüentenário do seu nascimento; pode-se dizer ainda que esta data registra o terceiro centenário do apogeu da sua atividade artística, pois, como é de aceitação geral, com a execução, no ano de 1656, da Bênção de Jacob, o artista teria alcançado o domínio absoluto de sua arte. No momento em que, na Holanda, para comemorar praticamente esse duplo acontecimento, os museus de Amsterdã, de Roterdã e de Leide estão promovendo grandes exposições das suas obras, não é demais repetir, diante das reproduções de suas pinturas e águas-fortes, agora apresentadas no Museu Nacional de Belas Artes, as extraordinárias virtudes desse pintor unanimemente considerado como um dos maiores da humanidade. A pintura de Rembrandt é o drama puro e simples do nascimento e da morte: dos espaços de sombra dos seus quadros surgem figuras – incertas e imprecisas – caminham para uma região iluminada, aos poucos se organizam em formas seguras e exatas, para logo se dissolverem destruídas de novo pelo impacto violento da luz – como os seres vivos que assomam da escuridão do desconhecido, expandem-se, por certo tempo, em pleno
ESPECIAL fulgor da existência, e depois desaparecem queimados pela luz da consciência, desfeitos pelo ardor da própria vida. Há gravuras de Rembrandt em que esse ciclo é exatamente representado como um traço de uma linha que atinge, em sentidos opostos, dois infinitos que se confundem, em que a luz é revelada, numa graduação crescente e alcança a mais intensa vibração, como se resultasse de uma queda vertiginosa de altos níveis de energia: essa luz que ora desce do céu como um raio, ora penetra por uma janela como um jorro, uma chuva de partículas fulgurantes, ora explode no centro da tela como a desintegração instantânea de substâncias nucleares, luz para onde avançam, atraídos e dominados, todos os seres que aspiram viver e dentro da qual são abrasados e consumidos. A pintura de Rembrandt é o drama da própria consciência do pintor, que, para maior clareza, na série de pinturas em que se retrata a si mesmo e a Titus, e a Saskia, e a Hendrijke, reproduz o mistério do nascimento e da morte em termos de luz e sombra; basta olhar-se o seu último auto-retrato, de 1668, já próximo da sua morte – que sucedeu um ano depois –, para se ver um rosto não mais surgindo, mas se desfazendo na sombra, corroído pela luz. A série dos seus retratos dá ainda uma idéia da pintura religiosa e do realismo de Rembrandt que representam talvez o último termo da interpretação dos motivos religiosos que, segundo Dvorak, teve na arte cristã um sentido em tudo diverso do dos antigos, por desprezar a representação isolada dos tipos de divindade, e fixar a ação, o sucesso, a “história figurada de acontecimentos passados”, “sempre baseada na observação da vida ou da fantasia”. Foi um pouco na fantasia e muito na observação da vida que o grande pintor holandês encontrou aquele sentido humano e habitual das cenas religiosas que pintou. Como já o fizera Caravaggio, na Morte da Virgem e na Conversão de São Paulo, Rembrandt descreve os episódios bíblicos como se fossem cenas cotidianas, numa afirmação poderosa das condições ambientes, numa sinceridade sempre presente e atual: Jesus e a Samaritana, O Evangelista São Mateus, os Discípulos de Emaús diferem pouco dos seus retratos e quadros de gênero. Com isto, em verdade, ele apenas se adaptava à tendência geral da arte holandesa do seu tempo, arte que já usava largamente o “tenebrismo” caravaggesco, que assimilava e refletia as aspirações e exigências de uma nova maneira de sentir e compreender a vida. E era essa mesma compreensão objetiva, imediata e utilitária, tocada ainda por uma luz de idealismo, de audácia e de aventura, que animava os arrojados navegadores e os
Auto-rretrato, 1659
hábeis comerciantes dos Países Baixos, pioneiros da burguesia como classe revolucionária e triunfante. Mas essa integração no espírito realista do seu tempo, como a sua adesão à técnica do claro-escuro, não se verifica em Rembrandt sem o sinete da sua grande personalidade, sem que tivessem do seu espírito magnífico a marca inconfundível e impressionante, expressa na afirmação da própria vida como o sentido coletivo da existência, na substituição silenciosa de todos os seres pelo seu próprio ser, na redução do Cosmos ao seu eu corajoso, autoritário e comunicativo, imenso e solidário com as fraquezas e virtudes humanas. Desse “Miguel Ângelo que não teve Julio II”, como a seu respeito tão bem se exprimiu André Malraux, poder-se-á dizer que foi a expressão mais perfeita do sentimento e da cultura holandesas, a imagem mais verdadeira e harmônica de sua época e o modelo mais legítimo de um gênio universal. Artigo publicado em Para Todos, quinzenário da cultura brasileira, Rio de Janeiro, São Paulo, v. 1, n. 6, 1ª quinz. ago. 1956. Continente março 2006
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Na gravura, uma arte independente Até o século 19, Rembrandt era muito mais conhecido mundialmente como gravador Luciano Trigo
Auto-rretrato, 1630
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onsagrado ainda em vida como pintor de fama internacional, Rembrandt desenvolveu uma técnica tão sofisticada como gravador que se pode atribuir a ele a elevação da gravura ao status de gênero artístico de primeira grandeza. A utilização da água-forte em sua obra ultrapassa em muito os limites alcançados por seus antecessores. Seus temas eram os mais diversos: aproximadamente, entre as 400 gravuras que o artista deixou, incluem-se obras bíblicas e religiosas, retratos, paisagens e nus. As mais impressionantes foram feitas na maturidade, como o retrato de corpo inteiro de Jan Six, as famosas Cristo Curando o Enfermo e Cristo Pregando e a paisagem Três Árvores. A água-forte usa como suporte uma chapa fina de cobre, coberta com um verniz composto de piche, resina e cera. Os traços do desenho são marcados sobre a chapa com uma ponta seca (agulha com ponta afiada e resistente) ou buril (instrumento de aço, em forma de V), de modo que o cobre fique exposto onde a ponta penetra o verniz. Expostas a um banho de ácido, as partes não protegidas pelo verniz (ou seja, os traços do desenho) são corroídas, criando sulcos na superfície do metal. Quanto mais tempo a chapa permanece imersa no ácido, mais profundos são os sulcos. Para obter traços mais fortes que outros, a chapa é removida do banho de imersão. Os traços que já apresentam um nível adequado de corrosão são cobertos com uma nova camada de verniz, e a chapa é novamente imersa no banho. Atingido o resultado desejado, o verniz é removido da placa que, limpa, é recoberta de tinta. A tinta acumula-se nos sulcos, o excesso é removido da superfície e o papel úmido, colocado sob a matriz, é prensado e estampado. A técnica surgiu na Idade Média e foi aprimorada pelos árabes para ornamentar armamentos. As primeiras gravuras impressas em papel datam do século 15, produzidas no sul da Alemanha, mas por muito tempo essa técnica foi considerada inferior à xilogravura e à gravação em cobre. Nos século 16 e 17, gravadores da Antuérpia passaram a recorrer à água-forte com buril, na reprodução de trabalhos gráficos. Artistas holandeses como Esaias van de Velde, Jan van de Velde II e Willem Buytewech buscavam realçar as tonalidades nas gravuras de paisagens, quebrando as linhas longas de contorno em traços curtos. Já Hercules Segers obteve um maior efeito pictórico ao fazer a impressão sobre tela ou papel colorido, que retrabalhava com o pincel. Especialista nas gravuras de Rembrandt, o holandês Pieter Tjabbes veio ao Brasil pela primeira vez em 1984, para trabalhar como estagiário do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Foi
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ESPECIAL
Crianças sendo atraídas por Jesus, 1649
contratado logo depois pela Fundação Bienal e, desde então, passou por várias instituições brasileiras ligadas às artes plásticas. Em 2004, ele foi curador da exposição Rembrandt e a Arte da Gravura, que apresentou ao público brasileiro 83 gravuras do artista holandês. – Rembrandt via a gravura como uma arte completamente independente da pintura – declarou Tjabbes. – Não se tratava de um estudo, esboço ou mero exercício. Para Rembrandt, a gravura era muito importante. Tanto que até o século 19, ele era muito mais conhecido mundialmente como gravador. Rembrandt criou um verniz especial, mole e pastoso, que permitia traços mais livres, produzindo um efeito semelhante ao do desenho à pena. Ele desenhava diretamente sobre a chapa, mas antes fazia estudos detalhados no papel. Também utilizava uma solução diluída de ácido hidroclórico, de efeito corrosivo mais lento, evitando que traços leves se tornassem muito grossos. Pela sua perfeição, as águas-fortes de Rembrandt sempre tiveram excelente aceitação, e, no último ano de vida, muitas de suas gravuras foram vendidas a um colecionador italiano. Apesar de Rembrandt não ter produzido novas gravuras depois de 1661 (com algumas exceções), as gravuras antigas continuaram a ser reproduzidas e comercializadas até o início do século 20. – Rembrandt era um exemplo a ser seguido por todos os gravadores. Ele fez da técnica da águaforte uma forma de expressão artística maravilhosa, com a vantagem de poder ser reproduzida. Nas gravuras com cenas bíblicas, as figuras são bastante humanizadas. Ao contrário de muitos artistas da época, ele tratava as figuras da Bíblia como pessoas, e não como personagens. As primeiras matrizes de Rembrandt foram elaboradas sem o recurso da ponta-seca, só utilizada esporadicamente para fazer pequenas correções ou acrescentar detalhes. A partir de 1640, ele se interessou pelo potencial pictórico do traço aveludado da ponta-seca, muitas vezes em conjunto com o buril, obtendo impressionantes efeitos de claro-escuro. Mas algumas de suas gravuras foram elaboradas exclusivamente com a ponta-seca, desenhadas diretamente sobre a chapa de cobre. Rembrandt aplicava a técnica de tonalidade de superfície às suas gravuras para dar maior profundidade às sombras. A partir de 1650, ele passou a fazer experiências com diferentes tipos de papel. Mas seu preferido era o papel japonês, por sua cor amarelada e quente, adequada às paisagens em estilo italiano. • Continente março 2006
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ARTESTRADIÇÕES
Panorama da arte cubana Pela primeira vez, no Brasil, uma grande exposição mostra como as artes plásticas evoluíram em Cuba, desde o início do século passado até a contemporaneidade Marco Polo
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ARTES
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s raízes da tradição, o compromisso social e a expressividade pessoal muitas vezes aliada ao experimentalismo são alguns dos vetores que guiam a exposição Arte de Cuba que, depois de ser exibida no Rio e em São Paulo, chega agora ao Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília. São 117 obras de 61 artistas que trabalharam e trabalham desde o início do século 20 até agora. Com curadoria de Ania Rodrigues, a mostra foi possível graças ao esforço conjunto da Associação Cultural Guantanamera, que divulga a cultura cubana no Brasil, e do Museu Nacional de Bellas Artes de Cuba, que reuniram trabalhos de seus acervos e das coleções dos próprios artistas. A mostra, organizada cronologicamente, mostra como a arte cubana começa a ganhar realmente uma identidade própria com o surgimento das vanguardas e a consolidação da arte moderna nas primeiras décadas do século passado, passando pelo abstracionismo, o engajamento na Revolução Cubana, e, finalmente, chegando à experimentação que se torna a tônica dos anos 80 até a contemporaneidade. A Exposición de Arte Nuevo, acontecida em 1927, é o ponto de partida do movimento modernista cubano. É quando artistas como Victor Manuel e Eduardo Abela rompem com a camisa de força acadêmica, procurando uma expressão artística nacional autêntica e variada. A consolidação deste movimento revela Wifredo Lam, hoje, provavelmente, o artista cubano mais reconhecido internacionalmente. Entre os anos 40 e 50 surgem os grupos “Los Once” e “10 Pintores Concretos” que desenvolvem a abstração, acompanhados de Sandú Darie e Luis Martínes Pedro, que combinam rigor e imaginação em obras de estilo geométrico. Na década de 60, já emerge uma produção vinculada aos problemas políticos, sociais e econômicos cubanos, bem como à vida cotidiana, sob nítida influência da Revolução Cubana. A arte pop de Raúl Martinez e a nova figuração de Antonia Eiriz são emblemáticas deste Guido Llinás é um dos melhores representantes do abstracionismo dos anos 60
Marcelo Plogotti faz parte do grupo que iniciou e consolidou o Modernismo na ilha
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ARTESTRADIÇÕES
Bélkis Ayón é contemporâneo
Amelia Pelaez vem dos anos 60
período. Esta geração também vai buscar uma temática autenticamente nacional nas tradições camponesas e nos mitos afro-cubanos. Os anos 80 trazem para Cuba uma efervescência cultural refletida não apenas entre os artistas, mas também entre críticos e curadores que se dedicam a estruturar um novo ponto de vista teórico. Formam a “Geração dos Oitenta”, como ficou conhecida, nomes como José Bedia, Humberto Castro e Leandro Soto, que assumem posturas críticas e transgressoras. Segundo Ania Rodriguez, “tudo é indagado, desde a memória pessoal até as estratégias do poder, em obras que se caracterizam por uma acentuada densidade conceitual”. Para ela, a partir daí o artista cubano se assume como integrante de um contexto político e social muito particular, conquistando espaço nas mais importantes coleções do mundo. Nomes como Carlos Garaicoa, Tânia Bruguera, Los Carpinteros e Kcho pensam seu entorno por uma perspectiva mais abrangente e geral, fugindo de referências locais para dialogar ao redor dos dilemas do homem contemporâneo, conforme análise da curadora. Em contraponto à exposição coletiva Arte de Cuba, neste mês de março estará acontecendo a nona edição da Bienal de Havana, que deverá servir para marchands e instituições de todo o mundo como portal para um mercado até pouco tempo de difícil acesso. • Continente março 2006
Sandú Darie é um dos representantes do abstracionismo geométrico
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Trabalho do artista contemporテ「neo Josテゥ Bedia
A delicadeza do trabalho de テ]gel Acosta Leon
Eduardo Abela foi um dos modernistas de Cuba
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
A cor-silêncio de um artista Imagens: Divulgação/Galeria Ipanema
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Milton Dacosta não lança mão de nenhum outro recurso para construir seus quadros, a não ser a própria pintura
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ecente exposição de Milton Dacosta na Galeria Ipanema, no Rio, levou-me à seguinte constatação: eis aqui um pintor-pintor, ou seja, um pintor que não lança mão de nenhum outro recurso para construir seus quadros, a não ser a própria pintura, a expressão inerente à natureza mesma do plano, da linha, da cor, da matéria pictórica. Sei que essa afirmação implica certa simplificação, uma vez que Dacosta, ao longo de sua carreira, passou por várias etapas, desde certo expressionismo da primeira fase figurativa, seguindo-se aquela que Flávio De Aquino definiu como “cubismo lírico” até a etapa “mondriânica” e, no final, retornou à figura já agora marcada por certo refinado barroquismo. Sem dúvida, a noção de purismo pictórico, a que me referi, não se ajusta a todas essas fases; não obstante, se há um traço que define o que tem de específico a obra desse artista é, certamente, o despojamento de elementos outros – “expressionistas”, diria eu – em função da expressão essencialmente pictórica. Pode-se dizer que esse processo se inicia nos anos 40, quando Dacosta substitui a figura de origem expressionista pela figura estilizada, geometrizada, que se afasta da realidade natural do realismo e da subjetividade da fase anterior. A partir de então, ele substitui a noção de pintura como expressão pela de pintura como construção. É esse caminho que o levará às “construções”, que realiza a partir da década de 50. Antes de chegar às “construções”, ele passa pela etapa das figuras de mulher e menina, liricamente estilizadas e onde a linha reta dá lugar à linha melódica, e o plano ári-
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Menina e Borboleta, óleo sobre tela, 1967, 24x19cm
do, a planos que se interpenetram suavemente. Talvez seja esta a fase áurea da obra de Milton Dacosta, quando ele atinge a mestria do desenho figurativo estilizado dentro de uma linguagem rica de conotações pictóricas, de sutil equilíbrio entre racionalidade e lirismo, regra e emoção, para usar a expressão de Georges Braque. Guardo na memória algumas dessas figuras que são verdadeiras invenções – criações, no pleno sentido da palavra – uma vez que não se referem a nenhuma pessoa em particular, nem mesmo guardam a referência imediata à forma humana natural: aquelas mulheres e meninas, pintadas por Milton Dacosta, só existem ali em
TRADUZIR-SE
mente horizontais (paralelogrâseus quadros, são pura e simmicas), onde a composição, plesmente “pintura”. obedecendo a essa horizontaSegue-se a etapa das cabelidade, adquire uma densidade ças (ou “cabeçudas”), quando a pictórica incomum. Nessas geometrização da figura se socomposições, a bidimensionalibrepõe ao desenho inventivo e dade atua como um fator que solto da fase anterior. A geomesublinha sua natureza puratrização rígida das “cabeças” mente pictórica, desligada de gera, no meu entender, um es- Figura com Chapéu, óleo sobre tela, 1961, 24x19cm quase toda referência às frutas quematismo que, de certo modo, compromete a harmonia gráfica da obra. Algumas reais, mudadas em arquétipos geométricos. Mais que dessas figuras ele as intitulava de Alexandres, em refe- as frutas das naturezas-mortas de Cézanne, as de rência a seu filho recém-nascido e de quem fizera um Dacosta são meros seres gráfico-pictóricos. E essa disretrato dentro dessa estilização. Havia nessa designação tância que as separa do mundo real, em vez de esvaziácerta dose de humor que era, aliás, um traço simpático las, intensifica, pela ruptura drástica, o conflito seda personalidade do pintor. A verdade, porém, é que mântico entre a obra e o mundo. Tal conflito desaparece nas “construções” da etapa esses Alexandres são o início de um período crítico de posterior: são pura geometria, sem qualquer alusão ao sua pintura, em que parece sentir dificuldade de optar entre a figura natural e sua geometrização. Noutras pa- mundo figurativo: são concepções autônomas, regidas lavras, sente a necessidade de levá-la às últimas conse- por relações simples de equilíbrio, proporção, ritmo e asqüências, mas teme romper definitivamente com a simetrias que se compensam no diálogo, que o pintor esfiguração. Pode-se dizer que a fase das “cabeças” cons- trutura, progressivamente, entre as formas e as cores. titui um processo crítico de ruptura com a figura, para Essas “construções” erguem-se sobre cada uma delas, chegar às construções abstratas, puramente geométri- sobre um fundo de uma só cor, ora cinza ou azul, ora cas dos anos 70. Mas antes dessa abstração radical, branco ou vermelho, ora negro ou marrom. Dacosta reDacosta ainda percorre uma etapa, no limite do figura- feria-se a esses fundos, que ocupavam a maior parte das tivo, quando realiza uma série de naturezas-mortas, em telas, dizendo: “é preciso deixar a cor ser cor”. E acresque o domínio de sua arte de pintor de novo se revela centava: “uma cor é um silêncio”. Depois sorria e falava: em toda a plenitude: são, em geral, telas acentuada- “Não nos quadros de Picasso. Ele faz muito barulho”. • Continente março 2006
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AGENDA/ARTES Sob a entropia solar
Daniel Giannani/Divulgação
Máscaras de antigas civilizações latinoamericanas integram o acervo de Por Ti América
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Mostra revela evidências de uma ocupação de 15 mil anos atrás
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Daniel Giannani/Divulgação
uando os europeus chegaram à América, os habitantes estavam num estágio de “véspera de civilização” ou, pelo menos, foi assim que os descobridores encararam a situação das sociedades nativas. Em conseqüência, enraizaram tal idéia de primitivismo na cultura ocidental. O Centro Cultural Banco do Brasil abre espaço para uma mostra que desmistifica essa tese. Por ti América apresenta 252 peças, feitas – de pedra, metal, madeira, concha, osso, algodão, lã e cerâmica – pelos primeiros habitantes do continente americano. A exposição evidencia civilizações sofisticadíssimas que vão além dos povos maia, inca e asteca, passando pelos calima, musica e marajoara. Vasos, urnas funerárias e jóias revelam a compreensão de dualidade. Nesses objetos aparecem representados símbolos opostos, que para eles eram sinais de equilíbrio, da natureza e do cosmo, a exemplo de sol-chuva, vida-morte, noite-dia, frio-calor. A exposição está dividida em quatro grandes regiões, chamadas regiões culturais da América indígena – Mesoamérica, Andes, Circuncaribe e as terras baixas da América do Sul. Por Ti América conclui uma trilogia iniciada em 2003/ 2004 pelo CCBB sobre a formação da cultura brasileira. A curadoria é de Márcia Arcuri e as peças foram cedidas por museus da Colômbia, Guatemala, México, Peru e Brasil. Por ti América. Até 23 de abril. Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília (SCES Trecho 2, lote 22). Informações: 61.3310.7087 / www.bb.com.br/cultura Continente março 2006
Divulgação
De 16 de março a 29 de abril, a Amparo 60 Galeria de Arte vai estar sob efeito de um clarão. Trata-se da exposição do artista plástico alagoano Delson Uchoa. Sob o impacto luminoso das cores quentes, da saturação de tons e da intensificação de certas temperaturas, Uchoa reúne seis pinturas em acrílico com suportes variados. As obras são: Varal, uma pintura sobre lona de algodão, feita em 1998; Quaradouro, uma referência à luminosidade tórrida dos trópiCatolé cos; Boca de Forno, na qual o tom encarnado domina todo o entorno da pintura, atraindo o olhar do público para quatro pontos em hologramas; Catolé, feita sobre lona de algodão e fibra vegetal; Flamboyant, uma paisagem com floração ardente e Tudo que reluz é ouro, uma trama de diversas fitas de plástico, tecida e adornada com alfinete, em que o amarelo transborda como o clarão dos trópicos.
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Uma Luz Calorosa. De 16 de março a 29 de abril. Amparo 60 Galeria de Arte (Av. Domingos Ferreira, 92 A – Pina, Recife – PE). Informações: 81. 3325-4728.
Rumos contemporâneos
Daniel Araújo/Divulgação
Depois de vistoriar todas as capitais brasileiras e algumas cidades do interior em busca de artistas plásticos contemporâneos (cuja trajetória tivesse se iniciado depois de 1990), a equipe curatorial do Itaú O Quarto – O Mundo Bate Cultural selecionou 78, de do Outro Lado da Minha 1.342 trabalhos inscritos. Porta, 2005, Ticiano Monteiro, vídeo O resultado é a mostra Rumos Artes Visuais 2005/2006, focada no mapeamento da arte contemporânea brasileira. O apanhado geopolítico ausculta a diversidade da produção brasileira atual. Instalações, performances, pinturas, esculturas, desenhos, fotografias, som e vídeos estarão distribuídos pelos três andares do Itaú Cultural, em sua sede da Avenida Paulista, em projeto museográfico de Felipe Tassara e Daniela Thomas. Depois de São Paulo, haverá uma apresentação de todos os selecionados no Rio de Janeiro, no Paço Imperial. No segundo semestre, quatro exposições parciais serão realizadas em uma capital de cada região brasileira: Campo Grande (MS), Fortaleza (CE), Belém (PA) e Florianópolis (SC), cada uma a cargo das diversas curadoras, respectivamente Aracy Amaral, Luisa Duarte, Cristiana Tejo e Marisa Mokarzel. Rumos Artes Visuais 2005/2006. De 21/03 a 28/05. Itaú Cultural (Av. Paulista, 149 – São Paulo – SP). Informações: (11) 2168-1777 /1776 www.itaucultural.org.br
FOTOGRAFIA
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Trem da alegria Livro de fotografias registra passageiros do Metrô com destino ao Galo
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assado o Carnaval, resta o registro de imagens, muitas vezes repetitivas ou estandartizadas. No caso de Pernambuco, o foco vai para a multiplicidade de fantasias nas ladeiras de Olinda, o sincretismo do maracatu de baque virado, os indefectíveis caboclos de lança, os papangus de Bezerros e a torrente humana comprimida nas ruas do Recife no desfile do Galo da Madrugada. O artista plástico e fotógrafo Carlos Vasconcelos teve uma idéia original: nos carnavais de 2003, 2004 e 2005 foi ao Metrô do Recife, flagrar o embarque e desembarque de milhares de foliões que, no Sábado de Zé Pereira, pegam o trem, em sucessivas levas, para brincar no Galo da Madrugada. Espremidos em vagões e estações, desfilam sozinhos, em casais ou grupos grandes e pequenos. O Galo Viaja de Metrô. Carlos Vasconcelos, edição do autor/CEPE, De camisetas, shorts ou ber- 80 páginas, R$ 48,00. mudas, fantasiados a caráter, rostos limpos ou pintados, fazem da plataforma um palco, como salienta o fotógrafo. Naqueles comboios esquisitos, em que entre os passageiros viajam reis e rainhas, a Morte, Diabas de tridentes, árabes de cinema, múmias, palhaços, bebês crescidos, dançarinas, travestis, um denominador comum une as cenas de delírio: a alegria, perpetuada pelas lentes de uma Pentax e uma Sony digital e impressa em livro lançado mês passado na Livraria Cultura. • Continente março 2006
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CINEMA
Do mesmo lado do arco-íris Com oito indicações ao Oscar, O Segredo de Brokeback Mountain traz à tona a discussão sobre a existência de um estética homoerótica Carol Almeida e Schneider Carpeggiani
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elo retrovisor, a dor aumenta na mesma medida em que a imagem vai perdendo tamanho, tornando-sse mais e mais turva até o ponto onde o espelho reflete apenas a angústia de ter um coração cheio diante de uma estrada vazia. Trata-sse de uma história de amor, como qualquer outra, com os mesmos sentimentos de conquistas e perdas, tão nobres e, algumas vezes, tão caros a todos aqueles que um dia acordaram mais completos. A cena descrita acima está no filme Brokeback Mountain, vencedor da última edição do Globo de Ouro e candidato favorito ao prêmio maior da indústria do cinema hollywoodiano: o Oscar. Se levar a estatueta, Brokeback certamente não será o primeiro filme de amor a ganhar tamanha honra, mas será, sim, o primeiro grande vencedor que fez do amor a plataforma para o relacionamento entre dois homens. Ao lado de Capote, biografia do escritor homônimo que era homossexual, e de Transamerica, história de uma transexual, a história dos cowboys abre alas para uma possível edição gay do Oscar. Mas Brokeback é um filme gay? É, da mesma forma que o grande clássico Nosso Amor de Ontem, com Barbra Streisand e Robert Redford é um filme hétero. Ou não? Streisand foi e sempre será um dos maiores ícones do imaginário gay por qualidades que vão muito além de sua atuação como par romântico de Redford (seu histórico como cantora e a posição política em defesa dos homossexuais ajudam a explicar essa relação). Além de Barbra, vários outros ícones foram sendo criados a partir do pós-gguerra, tanto na Europa como principalmente nos Estados Unidos, onde o mercado exigia subterfúgios para adentrar nos guetos de um sentir-eem-ccomum gay. No entanto, diante do sucesso aparentemente inesperado de Brokeback Mountain entre o público heterossexual, a pergunta que fica é: o sentir-eem-ccomum gay existe de fato enquanto um corpo simbólico, ou estaria ele a serviço dos tão lucrativos rótulos de uma indústria que, até então, precisava enquadrar para ser vendável? O professor da Universidade de Brasília, Denilson Lopes, é autor de O Homem que Amava Rapazes, coletânea de artigos pioneira no Brasil na tarefa de procurar uma afetividade gay em diversos segmentos artísticos. Para ele, pensar numa estética homoerótica
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CINEMA
Divulgação
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Fotos: Divulgação
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Em Brokeback Mountain, o diretor não recorre a clichês para falar de amor entre dois homens
Temas como homossexualidade, Velho Oeste e apego às tradições fazem de Brokeback Mountain um filme complexo
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na cultura de massa é pensar também numa estratégia de consumo. “Podemos compreender a questão de uma estética homoerótica, paralela ao surgimento na segunda metade do século passado de uma cultura gay transnacional associada, ao mesmo tempo, a uma sociedade de consumo, e a transformações decorrentes da Revolução Sexual nos anos 60”. A idéia que o desejo possa sinalizar uma estética é polêmica. “Não creio na existência de uma estética homoerótica unívoca, pelo simples fato de que é totalmente incongruente determinar uma estética a partir do desejo. O que existem, sim, são temas homossexuais e, no máximo, um ponto-de-vista homoerótico, mas com diversos e múltiplos olhares, a partir das diversas e múltiplas maneiras de ser homossexual. Isso é o oposto de uma estética ou uma escola ou um estilo determinantes, como se ser homossexual obrigasse alguém a ter uma estética x ou y”, opina João Silvério Trevisan, autor de Devassos no Paraíso, livro que resgata a trajetória dos movimentos gays no Brasil, e colunista da revista de nus masculinos G Magazine. Se Trevisan nega a existência de uma estética, ele pelo menos aceita a existência de um “olhar” homoerótico, que pode se configurar de diversas maneiras. Nos cowboys de Brokeback Mountain; na roupa de ginástica rosa do clipe “Hung Up” de Madonna; ou nas letras sobre desamparo do cantor Anthony and the Johnsons, que se apresenta vestido de mulher e, no ano passado, ganhou o mais importante prêmio de música da Inglaterra, o Mercury Prize; ou ainda no personagem Júnior (interpretado pelo ator Bruno Gagliasso) que, na novela América, preferia moda a montar em touros. Todos esses exemplos, mesmo distintos entre si, são facilmente identificados com o universo gay. Isso acontece em primeira instância por um fator político. Enquanto comunidade, gays, lésbicas e transexuais fazem parte de um grupo minoritário, não exatamente em um sentido quantitativo, mas no qualitativo. Explica-se: assim como outras comunidades ditas minoritárias, caso, por exemplo, dos negros nos Estados
RN/AFP
Já na segunda metade do século 19, Oscar Wilde faz apologia à arte e ao desejo entre homens no livro O Retrato de Dorian Gray
Unidos (para citar o caso de uma comunidade com expressivos elementos de coesão simbólica), os homossexuais não têm representatividade no processo de tomada de decisões. Em função disso, para se legitimar enquanto uma comunidade e, assim, exigir seus direitos, é preciso também construir esse espaço estético de identidade. “Os processos de apropriação cultural são muito complexos e variam conforme o contexto histórico-social e mesmo geográfico. Cada contexto cultural tem processos próprios e é difícil generalizar. Além disso, é preciso lembrar que gay designa um universo identitário peculiar, marcadamente urbano e de afirmação de imagens e comportamentos masculinos , em contraste, no Brasil, com construções mais tradicionais, como a ‘bicha’,” explica o professor Bruno Souza Leal, da Universidade Federal de Minas Gerais, que trabalha com o espaço homoerótico. Apropriações – “Brokeback Mountain não é a primeira grande produção do cinema a mostrar o amor entre dois homens. Talvez seja a primeira a apresentar uma relação gay entre dois cowboys sem recorrer a um tom humorístico. No caso do ‘imaginário gay’, ele é certamente composto pela apropriação – irônica e/ou como culto – de imagens de masculinidade. Lembra-se do Village People, por exemplo, com os tipos machões e letras levemente ambíguas servindo à dança das discotecas. Talvez a ousadia do filme de Ang Lee seja exatamente levar essa apropriação gay do cowboy ‘a sério’, sem conformá-la como paródia ou fetiche”, destacou Bruno. Da mesma maneira que cowboys se tornaram imagens ligadas ao mundo gay, artistas como Madonna e Cher também. “Existem vários estudos que tentam associar o fascínio de um público gay, particularmente masculino, sobre mulheres de personalidade forte, as divas, em que o fascínio é menos pelo desejo de ser como elas, fantasia mais recorrente num horizonte transexual, e mais desejar ser livre como elas são. As divas representam a superação de preconceitos numa sociedade que as poderia excluir e um desejo de liberdade”, acredita Denilson. Em O Retrato de Dorian Gray, escrito na segunda metade do século 19, o escritor inglês Oscar Wilde fez uma apologia à arte e ao desejo entre homens a partir da possibilidade de uma juventude eterna. Para Wilde, nada além do Belo interessa à arte. E “arte”, neste caso, é uma palavra ampla o suficiente para guardar a idéia do amor que transcende ao sexo e responde apenas à castidade de uma estátua de mármore ou de um óleo sobre tela. O vínculo entre a beleza congelada e essa percepção iluminista da arte tem, no entanto, suas implicações sociais: em geral, é no final da adolescência que a maioria dos gays costuma iniciar uma vida sexual e afetiva. E é nessa fase que se preservam símbolos do imaginário gay. “Creio que o medo de envelhecer está ligado ao fato de que nossas relações ainda não são institucionalizadas, não há casamento, não vamos ter netos que possam cuidar de nossa velhice...talvez por isso exista o culto à eterna juventude e o medo da velhice”, atesta o editor da revista G Magazine, Sergio Miguez. Diante da condição política hoje dada aos grupos homossexuais em boa parte do mundo (mesmo em alguns países onde o casamento gay já foi autorizado), todos esses elementos simbólicos podem transformar-se facilmente em recursos ideológicos usados ora em nome do consumo, ora em nome de uma identidade. “A questão é cada vez mais multiplicar as histórias para que o público mais amplo quebre visões preconcebidas e tenha acesso a uma diversidade de visões sobre a homosBarbra Streisand, um dos maiores ícones do imaginário gay
Frederic Brown/AFP
sexualidade. Assim como não existe ‘a’ heterossexualidade, não existe ‘a’ homossexualidade”, conclui Denilson. Antes que a noite termine – É 21 de junho de 1969 e Judy Garland acaba de ser enterrada. Ícone gay, a cantora e atriz recebe homenagens por todo circuito de clubes e bares homossexuais de Nova York. Nesta noite, um grupo de travestis está reunido num deles, o Stonewall, em Greenwich Village. Como é de costume, a polícia aparece para fazer sua ronda e molestar os freqüentadores. Esse Elenco da série lesbian chic, The L Word, um dos cinco seriados com protagonistas gays da TV norte-americana
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dia, no entanto, não foi como os outros. Cansados da violência e deprimidos pela morte de Judy, travestis se rebelam contra os policiais, jogam pedras e garrafas ao som do grito de guerra “we’re the Stonewall girls!”. Os jornais da manhã seguinte estampam com destaque a história da noite em que os gays de Nova York foram às ruas e começaram uma revolução. Nas redondezas do Stonewall, uma outra revolução também ganhava forma. Entre as viradas das décadas de 60 e 70, em clubes que um dia foram templos de jazz, como o Café Society, after-hhours ilegais davam início ao primeiro grande movimento surgido no underground gay a ganhar audiência de massa, a disco music. Essas festas eram movidas por soul music dos anos 60, pelos novíssimos sons sintéticos que surgiam na Europa e por música africana. Ainda não havia Donna Summer. Além da música, o movimento disco envolvia novos rituais de sociabilidade, roupas, códigos de dança, a hora certa para se chegar no clube, o melhor lugar na pista para se dançar e o mais importante: quem conhecia você em meio aos notívagos. A idéia era: ligadas as luzes estrobo, deixar de ser mais um na multidão. Muitas dessas regras continuam valendo até hoje. A disco music ganhou repercussão mundial em 1977, com o filme Os Embalos de Sábado à Noite, com John Travolta. À essa altura, o lado mais underground do movimento já havia sido “domado” e vendido às massas. No longa, o personagem de Travolta é heterossexual e branco, quando na verdade a disco music foi obra de homens gays, negros e latinos. Perfil semelhante ao do personagem que de fato inspirou essa história, escrita pelo jornalista inglês Nik Cohn depois de uma série de aventuras pelo submundo noturno das periferias de Nova Iorque. A disco music entrou em decadência no começo dos anos 80, pouco antes da Aids surgir em cena. Antes da doença ser chamada de “praga gay”, a disco já recebia essa alcunha. Para se ter uma idéia de como o movimento foi alvo de preconceito, em 1981 uma pesquisa, realizada na Polônia, afirmava que ratos de laboratório expostos a sucessos de Donna Summer e ABBA passavam a apresentar comportamento homossexual. Até hoje, a cultura pop lança mão de elementos próprios da disco music, sempre que precisa vender algum produto que remeta a noites sem-ffim numa pista de dança e a muito hedonismo. Os anos 70 entraram para a imaginação coletiva como a década das discotecas e do prazer sem limites sob a luz estrobo. Foi nesse período que Madonna buscou inspiração para o seu novo CD, Confessions on a dancefloor, todo voltado à música dançante. Não foi por menos que ele ficou conhecido como o “álbum gay” da cantora.
CINEMA Ellen e Elton – Depois de Ellen e depois de Elton. São assim, com dois marcos referenciais da cultura gay, a atriz Ellen DeGeneres e o cantor Elton John, que dois dos principais sites dedicados a falar sobre filmes, seriados e figuras públicas de uma maneira geral, dão nome a seu endereço virtual: www.afterellen.com e www.afterelton.com, respectivamente. No canto esquerdo da página, o slogan do grupo: “porque visibilidade importa”. Em tempos de casamentos gays sendo gradativamente oficializados em alguns dos países mais ricos do planeta e, principalmente, em uma época que se discute cada vez mais a identidade dos gêneros e de comunidades afins, falar em visibilidade é sintomático de uma discussão que, bem distante dos processos semióticos, começa e termina com um forte conteúdo político. A indústria do entretenimento é pródiga em criar laços simbólicos entre comunidades. No caso de grupos minoritários, isso tende a tomar proporção ainda maior já que, como minorias, esses grupos poucos se vêem representados. Isso, no entanto, tende a se transformar a partir de um setor muito específico do showbusiness: o mercado audiovisual, entendendo com isso cinema e televisão. Ao contrário da música, que não precisa constituir narrativas diacrônicas, com começo, meio e fim, tanto o cinema quanto a televisão são responsáveis, em termos de cultura de massa, por contar as histórias que vão muito além de um plano estético e atingem diretamente o ponto neural político da questão. Se música representa identidade, o cinema e a TV representam a própria representação.
Exemplos não faltam para entender como a visibilidade, muitas vezes, é mais importante que todo o resto: segundo o censo do próprio afterellen e do afterelton, nos últimos dois anos a TV norte-americana produziu cinco seriados com protagonistas gays. Os casos mais notórios são da série lesbian chic The L Word, que chegou a ter sua primeira temporada exibida em canal pago no Brasil, o drama Six Feet Under e a comédia Will and Grace, também exibidas no Brasil por TV a cabo. Casos mais próximos têm sido acompanhados no horário nobre da TV aberta brasileira, a partir de personagens que não mais precisam morrer em desabamento de shopping. Júnior, da novela América, é o exemplo mais recente disso. No cinema, particularmente em Hollywood, gays sempre foram centrais não exatamente na frente da câmera, mas por trás dela. O livro Bastidores de Hollywood, de William J. Mann, revela como a indústria se movia camuflando e, simultaneamente, vivendo em função de minorias tais como gays e judeus. Foi somente a partir dos anos 90 que personagens assumidamente gays puderam entrar em cena sem precisar das famosas entrelinhas e frases dúbias (a lembrar o “ninguém é perfeito” de Quanto Mais Quente Melhor). Hoje, existem festivais de filmes gays e, quem diria, um Oscar com indicações para três produções de protagonistas homossexuais. Para André Fischer, criador do portal Mixbrasil, bem como do festival de filmes homônimo, tanto o cinema quanto a TV são “sem dúvida, as mais eficazes formas de criar visibilidade, pois permitem uma identificação com personagens e uma profundidade de acesso maior que outras mídias”, opina. • Sebastian Willnow/AFP
Elton John, marco referencial da cultura gay
Madonna exerce fascínio sobre o público gay por representar superação de preconceitos e desejo de liberdade Continente março 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti Fotos: Roberta Mariz
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"Neste empenho os seios ambos/ deixam ver inconhos jambos/ de algum celeste pomar..." Tobias Barreto (Dias e Noites)
Mais frutas que vieram de longe
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rutas fazem parte, hoje, dos hábitos alimentares de toda gente. Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo, na Europa, não estavam nas refeições propriamente ditas. Eram apenas guloseimas, alimentos de brincadeira, consumidos a qualquer hora. Com as grandes navegações e o contato com outras culturas, tudo foi, aos poucos, se modificando. No século 16 começaram a chegar, à Península Ibérica, especiarias, temperos e frutas. Vinham da África, Índia e China. Alimentos desses países começaram a se espalhar no grande império português em construção – Angola, Cabo Verde, Timor Leste, Moçambique, Macau, Goa e Brasil. Assim deram, por aqui, frutas vindas de vários lugares. Como carambola, jambo, jaca, figo, romã e uva. Fruta, bom lembrar, vem do latim fructa – plural de fructum, fruto. Com essa forma plural latina, curiosamente, passando em português a designar o singular. A fruta. Carambola (Averrhoa carambola Linn) – É originária da Índia, onde é conhecida como Kamranga (do sânscrito kurmurunga, aperitivo). As primeiras mudas foram trazidas a Portugal por Vasco da Gama (1489), vindas de Calicute. Árvores foram plantadas por portugueses em suas colônias africanas (Angola e Moçambique), já com a denominação aportuguesada de “carambola”. Ao Brasil, chegou no século 17. Primeiro para o Nordeste,
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mais precisamente Pernambuco. Daqui se espalhou por todo o litoral. Mantém-se, até hoje, como fruta de pomares caseiros. E continua não sendo plantada em escala industrial. Pequenas flores da caramboleira, violeta no centro e esbranquiçadas nas bordas, cobrem a árvore, prenunciando seus frutos. Essas flores são muito usadas, na Europa, como ingrediente de saladas – hábito que não incorporamos, no Brasil. O fruto, quando cortado em sentido transversal, adquire o aspecto de uma perfeita estrela de cinco pontas. Por isso é chamada, pelos ingleses, de star-fruit. A coloração vai do verde-claro ao amarelo-gema – dependendo do grau de maturação. Pode ser consumida ao natural ou em sucos, geléias, doces, compotas, sorvetes e em coquetéis. Sendo seu caldo muito usado, no interior, para eliminar manchas de ferrugem em panos e objetos de metal. Não se sabe por quê, mas na sinuca se chama de carambola a batida de uma bola em duas. DOCE DE CARAMBOLA Ingredientes 20 carambolas, 1 copo de água, 1 kg de açúcar. Preparo Lave as carambolas, corte em rodelas e retire as sementes. Leve ao fogo com água e açúcar. Deixe cozinhar por mais ou menos 40 minutos.
Jambo (Eugenia Jambos Linn) – Veio da Índia. Em Goa, era conhecido como djamún. Em Bombaim, jambul. Em Malaca, “jambo”. A primeira referência a ela, em português, foi feita por Garcia da Orta (“Colóquio XXVIII”, em 1563) – “essa fruta que vos mostro é muito estimada nesta terra”. Ao Brasil foi trazida
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no início do século 16. São muitas as DOCE DE JACA variedades desse jambo. O vermelho, Ingredientes 1 jaca dura, açúcar e água. “jambo do Pará”, se come ao natural ou Preparo dele se faz compota. Rosa é o mais co- Parta a jaca ao meio e retire os caroços dos bagos. Coloque a água no fogo e junte a jaca. Deixe até que ferva. Retire do mum de todos – o preferido das crian- fogo. ças. Há também amarelos e brancos, mais Em uma panela coloque jaca, açúcar (mesmo volume da jaca) e um raros. Estes últimos “são muito belos, parecendo feitos pouco de água. Deixe no fogo até que cozinhe e fique com uma calda rala. de porcelana ou parafina”, segundo Pio Correa (Dicionário das Plantas Úteis do Brasil). Câmara Cascudo Figo (Fícus carica Linn) – Não se sabe ao certo seu observa que esses jambos pertencem às predileções lugar de origem – Sudeste da Ásia ou Norte da África. populares. E “não aparecem em mesa de gente fina Há registros do cultivo de figos, pelos egípcios, desde o nem são saboreados por criaturas eminentes”. (História ano 4.000 a.C. Tanto que seu desenho aparece em muitas da Alimentação no Brasil). Não sabem, coitados, o que pirâmides. À Grécia chegaram bem estão perdendo. antes da era cristã. Depois foi para Roma. Lá, o naturalista Plínio COMPOTA DE JAMBO DO PARÁ “O Velho” (23 d.C.), autor de Ingredientes 24 jambos bem maduros, 4 xícaras de chá de açúcar, 2 xícaras de chá História Natural (em 37 livros), de água. catalogou 27 tipos diferentes de figos. A loba que aliPreparo mentava Rômulo e Remo descansava sob uma figueira, Corte os jambos ao meio e retire os caroços. Leve ao fogo, bem baixo, com água e açúcar. Deixe cozinhar até que que passou a ser planta sagrada para os romanos. Figos fique ainda com a calda rala. secos foram encontrados em Pompéia. O poeta latino Publius Ovídius Naso (7 d.C.), mais conhecido como Jaca (Antocarpus integrifólia Linn) – Árvore nativa Ovídio, nos dá conhecimento que, nas celebrações do do Sul da Índia. Seu nome vem do malaio chakka. Ao primeiro dia do ano, romanos davam figos como Brasil foi trazida no século 17. Por ter sido plantada presente. São muitas vezes referidos na Bíblia. As folhas na Bahia, muitas vezes recebe o nome de “jaca-da- da figueira, por exemplo, foram as primeiras roupas a bahia”. Nascem grudadas ao tronco das árvores e cobrir Adão e Eva – “e vendo que estavam nus, tomaram podem atingir até 20 kg – o maior de todos os frutos. folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si” Tem casca grossa e cheia de picos. A polpa é mole, (Gênesis 3, 7). A mesma Bíblia ainda menciona suas cremosa, amarelada, envolvendo caroços grandes. virtudes medicinais – “que tragam um cataplasma de Tem cheiro forte – anunciando, desde longe, que o figos para aplicar sobre a úlcera e Ezequias sarará” fruto está maduro. São dois tipos. Um é a “jaca mole” (Isaías 38, 21). As árvores têm grande longevidade – (ou “manteiga”), consumida ao natural. Exige cuida- tanto que velha figueira, plantada por Pizarro, vive ainda do porque escorrega pela garganta e pode engasgar. hoje em Lima (Peru), no pátio do Palácio do Governo. Outro é a “jaca dura” – consumida ao natural, em ge- Foi uma das primeiras fruteiras aqui plantadas pelos léias e em doces. Na Índia, na Malásia e no Paquistão portugueses. O fruto é comumente identificado com o acabou ingrediente de pratos salgados requintados. figo, propriamente dito. No entanto, não passa de um Suas sementes são, por lá, também muito apreciadas receptáculo carnoso, de casca fina e macia, em cujo in– cozidas, assadas ou como ingrediente de sopas. terior encontram-se os verdadeiros frutinhos. São serA madeira da árvore é usada na fabricavidos em saladas ou como entrada, acompanhando preção de móveis e sua resina tem prosunto fatiado. Segundo Pio Correa “elas se adaptam às priedades cicatrizantes. Na condições mais diversas e até às mais opostas”. São gíria do Nordeste, “cortarencontradas do Rio Grande do Sul a Pernambuco – jaca” é bajular. E abobaaqui, sobretudo em Gravatá. São muito delicados e se lhado é “jaca-mole”. machucam com facilidade, o que dificulta seu acondiContinente março 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS cionamento e transporte. Por conta disso, desde os primeiros tempos da colonização, são transformados em compotas. Figos colhidos verdes são ideais para essas compotas; inchados, acabam usados para a produção de passa; e maduros, nos doces em pasta. Podres, não prestam para nada. Daí vindo o provérbio, “isso não vale um figo podre”. FIGO EM CALDA Ingredientes 1 kg de figos, 1 limão cortado em rodelas, 800 g de açúcar, 500 ml de água Preparo Congele os figos. Com eles ainda congelados, raspe a pele. Cozinhe em água até que fiquem macios. Jogue fora a água. Faça um corte em forma de cruz, na base de cada figo. Coloque na panela água e açúcar e deixe ferver. Junte os figos e as rodelas do limão. Deixe ferver. Retire do fogo e deixe descansar por um dia. Volte a panela ao fogo e deixe ferver novamente. Retire do fogo e deixe descansar por mais um dia. Cozinhe de novo até que os figos fiquem translúcidos.
Romã (Punica granatum Linn) – Originária do Sul da Ásia, foi inicialmente cultivada pelos fenícios. Para eles, o fruto da romãzeira simbolizava prosperidade e riqueza. Razão pela qual, até hoje, essa romã é consumida no AnoNovo e no dia de Reis. Os caroços, manda a tradição, devem ser chupados e guardados na carteira até o ano seguinte. Ao Brasil chegou no início do século 16. Seu fruto é consumido ao natural, usado em saladas ou para decorar pratos. Dele se faz um xarope – o grenadine, base de muitos coquetéis. Também se usa como remédio: as flores, em infusão, tratam males da garganta; a polpa e a casca da raiz, como diurético e vermífugo; o chá feito das folhas, para lavar olhos inflamados. Seu nome, lido de trás para frente, resulta na palavra amor. Inspirando o poema-palíndromo “Amor a Roma”, de Pedro Nava – “Amora, romã/ Amor a Roma/ Amor, aroma:/ Amor a Roma”. CAROÇOS DE ROMÃ Usar os caroços da romã, bem madura, para decorar saladas de frutas e de folhas.
Uva (Vitis vinifera Linn) – Originária da Ásia. Há notícia de que foi cultivada, desde o quarto milênio a.C, na Síria e no Egito. Fenícios levaram essa uva para a Grécia, Roma e região que depois veio a ser a França. Eram, por essa época, destinadas só à fabricação de vinho – em todas as culturas antigas, uma bebida sagrada. Para os gregos, presente do deus Dionísio. Para romanos, do Continente março 2006
deus Baco. Eurípides (século 4 a.C.), poeta trágico grego, dizia que “se o vinho cessasse, acabaria o amor e todos os prazeres”. Na cultura hebraica, vinho simboliza sabedoria. Para a cristã, o sangue de Cristo. Até hoje, 80% da produção de uva são destinados à fabricação de bebidas – vinho, brandy, cognac, armagnac, jerez. Vinho tinto e vinho branco podem ser feitos, indiferentemente, com uvas escuras ou claras. O que os diferencia é a fermentação. Vinho tinto é obtido pela prensagem do bago da uva – Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Merlot, Pinot noir, Malbec, Shiraz, Tempranillo, San Giovese. Depois, todo o mosto (casca, sementes, sumo) é fermentado por algum tempo. Vinho branco vem da prensagem da uva – (Chardonnay, Sauvignon blanc, Riesling). Afastando-se caroços e cascas, e sendo colocado para fermentação apenas o sumo da uva. Vinho do Porto é vinho licoroso, obtido de uva muito doce, ao qual se junta álcool até atingir 20º. Champanhe é vinho produzido na região de Champagne (França), usando uvas Pinot noir, Pinot gris e Chardonnay, submetido a uma dupla fermentação. Os outros 20 % da produção de uva são assim distribuídos – 5% para fabricação do suco, 5%, para passas e geléias, e os restantes 10% consumidos ao natural (uvaitália, rosada, preta, moscatel, dedo de dama, sem caroço). No Brasil, essas uvas chegaram com os primeiros colonizadores portugueses. Por muito tempo, segundo Pio Correa, “predominou por aqui a idéia de que as condições ambientais não permitiriam a cultura da videira, planta que era considerada muito delicada”. Um erro que o tempo desfez. É hoje plantada em todos os lugares. Especialmente no Nordeste, ao longo de todo o vale irrigado do Rio São Francisco. Na cultura popular, está presente desde os primeiros anos de alfabetização. Que todos nós aprendemos a ler, repetindo “Ivo viu a uva”. Segundo mestre Mário Souto Maior (Alimentação e Folclore), também “uva é mulher bonita, bem feita, tentadora”. Uma uva. GELÉIA DE UVA Ingredientes uva, açúcar e água. Preparo Amasse com as mãos as uvas, usando bem pouco açúcar. Leve ao fogo, juntando um pouco de água. Deixe ferver bastante. Coe, amassando bem, em peneira fina. Junte em outra panela a massa de uva e a mesma quantidade de açúcar. Junte pouca água. Deixe apurar no fogo até que fique com a consistência de geléia.
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DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Guimarães Rosa nos pergunta: “Como vão os sobreviventes?”
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rimeira semana de abril de 1948. Instala-se em Bogotá a IX Conferência Interamericana. O propósito da reunião era um só, embora não estivesse dito explicitamente no temário: agregar todos os países da América do Sul e da América Central para que, juntos e sob (é claro) a liderança norteamericana, incrementassem a luta contra o comunismo. Os jornalistas brasileiros – Antônio Callado, Nahum Sirotsky, Murilo Marroquim, Octávio Thyrso e eu – encontramos Bogotá fervilhando. O Partido Liberal havia se cindido. A ala mais à esquerda lançara um candidato próprio: Jorge Eliécer Gaitán. Só se falava nele. Sua popularidade era imensa. Gaitán recebeu os jornalistas brasileiros que haviam solicitado uma entrevista dois dias antes. Falou de tudo, uma voz pausada, grave, desancou a IX Conferência, “um expediente dos Estados Unidos para reforçar a presença
norte-americana na América Latina”. Confessou ter como certa a vitória: – Não tenham dúvida. Eu serei o próximo presidente da Colômbia. Não foi. Três após o nosso encontro, precisamente às 13h15 do dia nove de abril de 1948, quando deixava o escritório em companhia de dois amigos, o carismático líder popular era abatido pelo revólver de Juan Roa Sierra, figura anônima, que o baleou pelas costas. O que aconteceu em seguida, em Bogotá, é conhecido. O “Bogotazo”, a incontrolável rebelião popular, espontânea, explosiva e sem liderança aparente, praticamente pôs fogo ao centro da cidade. Passado o furacão, Antônio Callado me convidou: – Vamos até a Embaixada conversar com Guimarães Rosa, saber o que ele está achando de tudo isso? Famosa gravata borboleta, rosto bem barbeado, aquele eterno sorriso nos lábios, Rosa nos recebeu com alegria: – Como vão os sobreviventes? Quando lhe pedimos a opinião sobre as terríveis ocorrências dos últimos dias, ele me fez um ar de enfado e disse: – Querem saber mesmo o que é que eu acho? Pois aí vai: para mim, este povo colombiano é muito semmodos, muito mal-educado. E mudou de assunto. • Continente março 2006
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Colunas e colunistas De como o colunismo social evoluiu, no jornalismo brasileiro e pernambucano, para colunas ecléticas, com informações de diversas fontes Roberta Mariz/Cortesia: Nova Noiva
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Ivanildo Sampaio
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izem os mais antigos – e mais irreverentes – que, no início dos anos 50, duas pessoas tinham força em Pernambuco: o governador Agamenon Magalhães, que voltava ao poder pelo voto direto, depois de ter sido interventor durante o Estado Novo, e cultivava ainda o mesmo caciquismo de antes; e Altamiro Cunha, colunista social do jornal Diário da Noite, temido, respeitado, invejado e depois copiado por 10 em cada 10 profissionais que tentavam seguir o mesmo caminho, nos diversos jornais da Região, desde a Bahia até o Maranhão. O bom Altamiro escolhia as mais elegantes, promovia bailes, era confidente de “bonecas e deslumbradas”, anunciava amores feitos e desfeitos, falava de artes, de espetáculos, de diversões, fazendo jus, integralmente, ao que se chamava de “mundanismo”, no jornalismo d’antanho. Era tudo muito bom, muito bonito, mas havia um pequeno porém: Altamiro brilhava no Diário da Noite, o jornal vespertino do empresário F. Pessoa Queiroz, dono igualmente do circunspecto e tradicional Jornal do Commercio, matutino líder do sistema, e de uma cadeia de emissoras de rádio Continente março 2006
espalhadas pela capital e pelo interior de Pernambuco. Entendia Pessoa de Queiroz que colunismo social não ficava bem nas páginas do seu jornal mais nobre – e que estava muito bem posto, portanto, no irreverente Diário da Noite, que cultivava manchetes apelativas e abrigava em suas páginas um farto noticiário esportivo e policial, também naqueles idos considerado um “jornalismo menor”. Sabem todos que nenhum jornal sobrevive sem leitores – e o sucesso de Altamiro entre os remanescentes de uma aristocracia açucareira, já meio démodé, mas que entre jantares e saraus representava o mundo social e econômico de Pernambuco, desviava para o Diário da Noite o sucesso e os comentários que Pessoa de Queiroz gostaria de ouvir sobre o Jornal do Commercio, enfim o carro-chefe do sistema. Verdade que o JC editava uma vez por semana uma pequena crônica (suelto) sobre um acontecimento social, assinada pela jornalista Isnard de Moura, provavelmente a primeira mulher em Pernambuco a trabalhar no dia-a-dia de uma redação de jornal. Mas não tinha o “molho” nem a diversidade de temas que marcavam o espaço de Altamiro, dono de uma página inteira para falar daqueles assuntos.
IMPRENSA Nessa mesma época, começavam a despontar no jornalismo nacional os nomes de Ibrahim Sued e Jacinto de Thormes (pseudônimo de Maneco Muller), no Rio de Janeiro, e de José Tavares de Miranda, em São Paulo, fazendo o mais puro e mais sofisticado colunismo social. Foi o argumento utilizado pelo jornalista Esmaragdo Marroquim, secretário de redação do Jornal do Commercio (como eram chamados os editores-chefes) para convencer F. Pessoa de Queiroz a abrigar, nas páginas do matutino, a sua primeira coluna social. Para assiná-la, convidou-se José de Souza Alencar, um jovem bacharel recém-formado na velha e tradicional Faculdade de Direito do Recife que, ainda estudante, já fazia crítica de cinema e assinava no Diário da Noite uma coluna com o título de “Night & Day”. José de Souza Alencar adotou o pseudônimo de “Alex”, com o qual, 50 anos depois, continua tendo um espaço cativo no Jornal do Commercio, embora já não seja o titular de sua coluna principal. E com poucos anos o discípulo desbancava o mestre: o referencial do colunismo deixava de ser Altamiro Cunha, para ser o respeitado Alex que, mais jovem, mais culto, muito bem-informado e circulando nas camadas sociais mais privilegiadas do Estado, dava feição nova e dimensão maior a essa modalidade de jornalismo no Nordeste.
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E Alex fez escola: Jota Epifânio, no Rio Grande do Norte; Cândida Palmeira, em Alagoas; Lúcio Brasileiro, em Fortaleza; Pergentino Holanda, em São Luis; Rômulo Maiorana, em Belém; foram alguns dos seus mais fiéis seguidores, todos adotando a mesma fórmula do jornalista pernambucano, todos assinando colunas sociais onde ricos e famosos disputavam espaços – até que eles próprios começassem a descobrir que já não se fabricam colunáveis como antigamente e, aos poucos, passassem a diversificar o noticiário de seus espaços. Antes disso, porém, outras colunas já estavam aparecendo no dia-a-dia dos jornais, algumas influenciadas pela prestigiada “Informe JB”, quando o Jornal do Brasil, editado por Alberto Dines e Carlos Lemos, era o grande referencial para a imprensa brasileira. No final dos anos 50, naquele espaço nebuloso de tempo em que o romantismo das redações começava a ser substituído por algo mais profissional – e quando os repórteres deixavam de ver o jornalismo como “bico”, para encarar a atividade como profissão, proliferavam os espaços cativos e assinados nos jornais. Havia cronistas de várias cores e credos, comentaristas políticos, críticos de arte, palpiteiros. Mas havia muito pouca informação no espaço de cada um deles: elogiava-se por simpatia; criticava-se por antipatia ou pirraça, e muitas vezes não cabiam nem elogios JC Imagem
Alex, primeiro colunista do Jornal do Commercio, onde ainda permanece
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nem críticas nos assuntos ventilados. Em resumo: as colunas não noticiavam. Dizem também os que viveram a época que tais colunas eram muito boas para os colunistas – mas pouco acrescentavam aos jornais. O jornalista Fernando Chateaubriand, filho do fundador dos Diarios Associados, designado pelo pai, no final dos anos 50, para dirigir o tradicional Diario de Pernambuco (mais antigo jornal em circulação na América Latina), teve papel importante na modernização do jornalismo pernambucano, assim como a Última Hora/Nordeste, de Samuel Wainer, no início dos anos 60, foi decisiva no profissionalismo do setor. As colunas, assinadas ou não, passaram a ser, nos jornais pernambucanos, mais informativas e mais críticas – “Periscópio”, no Diario de Pernambuco; “Política & Políticos”, no Jornal do Commercio, “Na Hora H”, em Última Hora, são três bons exemplos. Aliás, o Última Hora tinha também o seu colunista social local, que usava o pseudônimo de Marcel, provavelmente inspirado no imortal Proust, embora alguns mais maldosos afirmassem que ele colocava acento circunflexo na palavra “oito”, segundo afirmava, para que não se lesse “óito”. Intriga dos invejosos... Algumas dessas colunas e dos espaços assinados refletiam a própria linha editorial do jornal, como era o caso do Última Hora em defesa do presidente João Goulart e do governador Miguel Arraes, ambos cassados em 1964, quando o jornal de Samuel Wainer foi igualmente fechado e os líderes de sua redação foram parar na cadeia (Múcio Borges da Fonseca, Ronildo Maia Leite e Pascoal Céglia Neto, entre outros). Os outros dois jornais se mantiveram em cima do muro e aderiram ao golpe militar já nos primeiros momentos; diz-se também que dando graças a Deus por se livrarem de um concorrente incômodo como era o Última Hora, jornal que o próprio Wainer apelidara de “A Furiosa”. Fernando Chateaubriand não ficou muito tempo em Pernambuco, Esmaragdo Marroquim deixou o cargo, substituído pelo jornalista Wladimir Calheiros – o jornalismo e o colunismo foram mudando e evoluindo. O Jornal do Commercio, em meados dos anos 60, passou a publicar diariamente uma coluna informativa com o título de “Nordeste Confidencial”, produzida por uma equipe de repórteres, sob coordenação geral de Fernando Luiz Cascudo. Eram os tempos áureos da Sudene, com reuniões mensais do seu Conselho Deliberativo, realizadas no Recife, quando compareciam
Reprodução
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João Alberto, do Diario de Pernambuco, no início da carreira Continente março 2006
Arquivo JC Imagem
Ibrahim Sued, o mais comentado colunista
todos os governadores do Nordeste, havendo, portanto, um rico filão de informações para ser explorado. Foi essa, certamente, a primeira coluna no jornalismo regional a adotar a fórmula de sucesso do “Informe JB” (um pequeno comentário na abertura e cerca de 12 ou 15 notas exclusivas, quase sempre garimpadas junto a fontes ligadas a órgãos de governo – Sudene, Sudepe, Dnocs, DNOS, Refesa, BNB, Cacex, escritórios dos governos do Nordeste em Pernambuco etc.) e, com pouco tempo, tornou-se uma das mais lidas na Região. Fernando Cascudo, que acumulava também a chefia da sucursal da Editora Bloch em Pernambuco, foi transferido para o Rio – e a responsabilidade da coluna, que foi rebatizada de “Nordeste Dia a Dia” e, posteriormente, apenas “Dia a Dia”, passou por vários profissionais, entre os quais, além deste escriba que vos fala, os jornalistas José Carlos Rocha, Antonio Martins e Aldo Paes Barreto, entre outros. O Diario de Pernambuco também tinha sua coluna informativa, chamada “Periscópio”, e começava, a partir de 1966, a investir num jovem repórter que passaria a assinar sua coluna social: era João Alberto Sobral, titular desse espaço até hoje. Queiram ou não queiram os puristas da informação, o colunismo social foi, durante anos, um dos espaços mais lidos dos jornais – não só porque lidava com a vaidade humana, mas porque publicou muitas vezes informações preciosas em primeira mão, e ainda, porque era de bom-tom aparecer naquela página dedicada à gente VIP. Mesmo nos tempos bicudos da ditadura, os colunistas sociais não tiveram maiores problemas. Exceção talvez seja o nosso já citado Alex, cujo episódio que aqui agora se conta, revela bem a intransigência daqueles tempos: presidente da República e viúvo de dona Argentina já há algum tempo, o marechal Castello Branco passou a cultivar um discreto romance com uma professora, já quarentona, da Universidade Federal de Pernambuco, a quem conhecera quando chefiara o antigo IV Exército, e que o impressionou pela erudição e pelo discreto charme. Alex noticiou em sua coluna que o presidente estava de casamento marcado com a citada professora, e deu o maior bode. O então coronel Hélio Ibiapina, um dos radicais do regime, mandou prender o jornalista, que ficou dois dias à disposição da 2ª seção. Mais tarde, o próprio Castello, de passagem pelo Recife, telefonou ao colunista e se colocou à sua disposição em Brasília. Como Castello morreu pouco tempo depois de deixar a Presidência, não se sabe se a notícia do casamento que não houve era, de fato, para valer. Mas, como foi dito, problemas com a censura na área social eram exceção.
Rodrigo Lobo/JC Imagem
Altamiro Cunha: coluna e poder
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O crescimento e o mercantilismo das Agências de Notícias, todas elas tendo por trás um grande jornal (AJB/Jornal do Brasil; Agência Globo/O Globo; Agência Folha/Folha de S. Paulo; Agência Estado/O Estadão) fizeram um mal tremendo ao jornalismo das regiões periféricas: quase todos os jornais de quase todos os Estados brasileiros passaram a comprar e editar colunas e colunistas do Rio e São Paulo, que muitas vezes nada tinham a ver com a realidade do local onde estavam sendo publicados. É evidente que os colunistas nacionais, tomando conhecimento de que estavam sendo editados simultaneamente noutros Estados da Federação, tiveram, também, o cuidado de “nacionalizar” mais os seus espaços – de publicarem notas que pudessem ser entendidas tanto em São Paulo quanto no Pará, cabendo igualmente às agências uma pré-edição do material que passaram a liberar para os seus clientes. Alexandre Severo/JC Imagem
Orismar Rodrigues, atual colunista do Jornal do Commercio
E, tanto lá como cá, o noticiário diversificou-se: deixou de ser essencialmente social para converter-se, também, num espaço onde cabem perfeitamente informações políticas e econômicas, observações críticas sobre a administração pública, roteiro cultural etc. Os três jornais pernambucanos têm os seus colunistas locais – sociais, econômicos e políticos – bem como comentaristas esportivos, críticos de arte, de cinema, de – literatura e de teatro, mas ainda continuam, bem menos, é verdade – publicando colunas e colunistas adquiridos de agências do Rio e São Paulo. Continente março 2006
Tome-se o Jornal do Commercio e encontra-se lá, entre os “forasteiros”, as colunas de Claudio Humberto, Ancelmo Gois e José Simão, diariamente; Elio Gaspari, aos domingos. Diariamente, com altos índices de leitura, o jornal publica a coluna política “Pinga Fogo”, produzida pelo jornalista Inaldo Sampaio; “Repórter JC”, sucedânea da pioneira “Nordeste Confidencial” e editada por Paulo Sérgio Scarpa; “JC Negócios”, coluna de economia a cargo de Fernando Castilho; “JC nas Ruas”, um espaço de denúncia das mazelas diárias de uma cidade cheia de problemas; e uma página inteira, no seu Caderno C, escrita pelo colunista social Orismar Rodrigues. Alex continua presente em cinco dias da semana, ocupando um espaço bem menor do que aquele que ocupou no passado. No Diario de Pernambuco, o espaço também se divide entre “locais” e “nacionais”. São locais a coluna “Diario Político”, escrita pela jornalista Marisa Gibson; “Diario Econômico”, assinada por Aldo Paes Barreto; “Diario Urbano”, editada por Luce Pereira; e uma página inteira diária produzida pelo colunista social João Alberto. São “estrangeiros” Luís Fernando Veríssimo, Sebastião Nery e Míriam Leitão (Economia). Como se vê, entre um e outro não há maior diferença. A Folha de Pernambuco, fundada há oito anos, compra os mesmos colunistas editados na página 2 da Folha de S. Paulo e publica-os simultaneamente; tem uma página social diária, editada por Paula Imperiano (uma ex-assistente de João Alberto, assim como Orismar Rodrigues); e o colunista político da Folha é experiente repórter político, Magno Martins. Para concluir: não fez mal ao jornalismo brasileiro – e nordestino – a cultura do colunismo social, até porque cativou e fidelizou leitores que avançaram também para outras seções e editorias dos jornais. Quando ampliou o leque de cobertura para noticiar fatos políticos, econômicos e culturais, passou a trazer para as redações novas fontes de informação que ajudaram a ampliar o noticiário desses mesmos setores. E nas pesquisas de opinião, que os jornal fazem hoje, com muito mais freqüência do que faziam no passado, eles estão lá, firmes, com altos índices de leitura, porque, afinal de contas, “os cães ladram e a caravana passa”. •
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Alex Larbac/Tyba
PERFIL
A doce Bárbara A crítica teatral Bárbara Heliodora, tida como uma das mais severas do país, possui também um lado doce: quando fala em público, esbanja simpatia, bom humor e um enorme amor pelo teatro Luís Augusto Reis
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PERFIL
H
á alguns anos, ao manifestar-se a respeito de uma montagem de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues, dirigida por um dos mais renomados diretores da atual cena teatral carioca, a crítica Bárbara Heliodora, que escreve há mais de 15 anos para o jornal O Globo, afirmou o seguinte: “Não há dúvida de que Senhora dos Afogados seja um dos piores textos de Nelson Rodrigues (...). Tudo nessa montagem é enganado, gratuito, injustificado e presta um enorme desserviço a Nelson Rodrigues, em primeiro lugar por montar o texto, em segundo (mais grave ainda), pela forma por que o faz”. Talvez esse trecho sirva como uma boa ilustração do estilo direto, por vezes quase irreverente, porém invariavelmente corajoso, que se tornou a marca registrada dessa senhora que há quase 50 anos se dedica ao ofício de criticar espetáculos. Sua carreira teve início na Tribuna da Imprensa, no final dos anos 50. Durante a primeira metade da década de 60, assinou uma coluna especializada sobre teatro no Jornal do Brasil. Nesse período, foi uma das lideranças do movimento que resultou na fundação do Círculo Independente de Críticos Teatrais. “Antes disso, bastava a pessoa ter escrito uma apreciaçãozinha qualquer sobre um recital de poesia de um grupo escolar e ela já era tida como um crítico de teatro”, explica, com a simpática mordacidade que lhe é peculiar. Ao lado de Paulo Francis e Yan Michalski, no Rio, e de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, em São Paulo, entre outros importantes nomes, ela faz parte de uma brilhante geração de estudiosos que, alternando-se entre a academia e a imprensa, muito contribuíram para a modernização do teatro brasileiro. Esse grupo rompeu com a chamada “crítica de divulgação”, quando os espaços dos jornais eram ocupados por pessoas vinculadas aos empresários teatrais. Foram eles que estabeleceram um diálogo aprofundado
O que a torna uma das personalidades mais fascinantes do teatro nacional é o fato de que, embora implacável em seus comentários críticos, o que já lhe rendeu vários desafetos, ela é capaz de conquistar a simpatia de qualquer platéia
PERFIL
Bábara Heliodora faz parte de uma brilhante geração que modernizou o teatro brasileiro
Aldriana Elias/Folha Imagem
com a constelação artística do Teatro Brasileiro de Comédias (TBC); foram eles que acompanharam as iniciativas revolucionárias do Arena e do Oficina; discutiram o advento do “besteirol”; testemunharam o aparecimento dos novos grandes diretores dos anos 80, como Gerald Thomas, Gabriel Villela, Cacá Rosset, por exemplo; e viram ressurgir, nos anos 90, um teatro de grupo, com interesse renovado pela literatura dramática. Como pesquisadora, Bárbara Heliodora se especializou nos estudos sobre William Shakespeare, sendo, no Brasil, certamente uma das maiores conhecedoras da obra deixada pelo “grande bardo”. Além de sua tese de doutoramento, intitulada A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare, reeditada recentemente, ela já publicou diversos artigos sobre o autor de Hamlet, alguns deles em renomadas revistas especializadas, como a britânica Shakespeare Survey. Além de estudiosa, ela talvez seja a tradutora brasileira mais prolífica das peças de Shakespeare: já verteu para o português várias tragédias, comédias e dramas históricos do autor. Mas, no campo da tradução, ela não se restringiu à literatura dramática, também prestou serviços de grande valor para o pensamento teatral no país, ao traduzir livros teóricos fundamentais como, por exemplo, alguns dos trabalhos mais relevantes do crítico húngaro-bbritânico Martin Esslin, famoso por ter cunhado o rótulo de “teatro do absurdo”. Porém, o que a torna uma das personalidades mais fascinantes do teatro nacional é o fato de que, embora implacável em seus comentários críticos, o que já lhe rendeu vários desafetos, ela é capaz de conquistar a simpatia de qualquer platéia, com seu inegável carisma de professora, ou de palestrante – algo parecido com o extraordinário talento para falar em público que possui o escritor Ariano Suassuna. Exalando competência, fala com alegria, com firmeza e com um vigor de fazer inveja aos jovens de vinte e poucos anos. Como acontece com Ariano, pode-sse discordar de alguns de seus pontos de vista, mas não se podem negar a coerência de suas verdades e a seriedade de seus propósitos. Na classe artística, mesmo quem não aceita o tipo de crítica defendido por ela, “que jamais pode ser conivente com um espetáculo de má qualidade”, tem que reconhecer seu incondicional amor pelo teatro. E é justamente esta a principal mensagem que ela faz questão de enfatizar, sempre que tem oportunidade: que “o teatro é ótimo”, desde que feito com muito amor e com muito rigor. •
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Imago
Vida e Morte Caetana Uma rezadeira é visitada pela morte. Paradoxal e intrigante, Caetana faz sua temporada no Rio Márcia Beatriz Bello
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Movimento Armorial foi lançado oficialmente em 1970, no Recife, sob a direção de Ariano Suassuna, tendo como objetivo valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro. Sua característica principal é a ligação da Literatura de Cordel (ou os folhetos do romanceiro popular do Nordeste) com a música (o canto dos versos acompanhado pela viola) e a xilogravura (a ilustração das capas dos folhetos), sendo desta maneira uma manifestação de expressão do espírito do povo brasileiro. Tal movimento inova trazendo dramaturgia, encenação e representação típicas do Nordeste brasileiro, onde o teatro de bonecos também desempenha um importante papel. De Pernambuco para o Rio de Janeiro, passando por festivais europeus, Caetana já pode ser considerada um marco do teatro brasileiro, mesmo com tão pouco tempo de vida. Segundo o programa da peça, Caetana é a maneira poética, dentro da linguagem da Arte Armorial, com que Suassuna denomina a morte em suas obras. Significa também o encontro do pernambucano Weydson Barros Leal com o espanhol Moncho Rodriguez, e que, através de textos de sensível carpintaria, nos proporciona um “Teatro de Celebração, de Encantamento e Diversão”. Continente março 2006
CÊNICAS
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O texto, merecidamente premiado, impressiona pela simplicidade e poesia com que trata um tema universal como o medo da morte, sem, no entanto, deixar de lado o regional através da linguagem e tradições nordestinas
Assim que os primeiros acordes da trilha sonora inundam o teatro de forma impactante, juntamente com o baile da iluminação através de lâmpadas dicróicas no lugar de velas, já se anuncia uma montagem fora do lugar-comum. O cenário, assinado pelo diretor Moncho Rodriguez, conotação e símbolo. Uma estrutura negra toda em ferro forma este circo, o circo da vida, em sua estrutura rudimentar e seca, como a vida no Sertão por onde Moncho adentrou em sua pesquisa sobre o teatro nordestino, de tradições populares, com um olhar apurado sobre nossa arte armorialista. Não somente o cenário e direção, como figurinos, bonecos, adereços, som e luz são de sua autoria, orquestrando uma encenação impecável. Trata-se de um espetáculo sobre o universo de Benta, a rezadeira, e sua tentativa de fugir da morte (Caetana) no dia em que é visitada, para ser levada rumo ao desconhecido. Benta (Lívia Falcão) trava um duelo com Caetana (Fabiana Pirro), através das palavras, numa tentativa de persuadir a morte a não levá-la desta vida. Como numa competição de Cordel, num delicioso exercício de interpretação, somos envolvidos por esta magia teatral, onde as duas atrizes brincam em cena numa perfeita harmonia e tons exatos. O texto, merecidamente premiado, impressiona pela simplicidade e poesia com que trata um tema universal como o medo da morte, sem, no entanto, deixar de lado o regional através da linguagem e tradições nordestinas. As falas, em prosa, cursivas, soltas, mescladas com poemas construídos, em 6, 7 ou 8 sílabas nos levam a uma viagem divertida, e ao mesmo tempo, elaborada. As talentosas atrizes contracenam tão intimamente com as palavras, que não se percebe à primeira vista de que se trata de dramaturgia de tamanho rigor. Deve-se isto a um verdadeiro trabalho de pesquisas, acertos e desacertos, próprios de um processo incessante do lapidar teatral. Durante 1h20 podemos ser testemunhas do trabalho árduo de Fabiana Pirro, que traz ao “picadeiro” não somente Caetana e o Anunciador (que abre e encerra a peça), como também cinco personagens-bonecos, chamando a atenção para as diferentes interpretações em cada um deles. Do outro lado deste cativante jogo cênico, está Lívia Falcão e sua magnífica construção da personagem Benta, passando do cômico ao dramático com um total domínio de suas ações. Cada gesto, olhar, movimento, inflexão vocal de Lívia contagia pelo “mundo que cabe no narizvermelho” e que ela tão bem consegue expressar. Certas palavras do texto muitas vezes nos chegam como um sopro ou mesmo um cântico, talvez para amaciar a dureza da realidade do que é dito. Benta, quando se vê sem saída diante da dança com a morte, diz: “De onde veio essa coisa de viver para se acabar?”. A busca por respostas para questões como essa é que nos faz continuar neste circo da vida. Até a próxima dança com Caetana. •
Fred Jordão/Imago
Benta (Lívia Falcão) e um dos personagensboneco: drama e comédia no mesmo palcopicadeiro
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AGENDA/CÊNICAS Fotos: Divulgação
Projeto Bonecos no Apolo-Hermilo. Durante os meses de março, abril e maio. Centro de Formação e Pesquisa nas Artes Cênicas ApoloHermilo (R. Do Apolo, 121, Bairro do Recife-PE). Fone: 3224.1114 – 3424-5429
Mãos que falam Companhia Mão Molenga faz aniversário e leva a arte dos bonequeiros ao palco, auditório e foyer do Centro Apolo-Hermilo
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ompanhia Recifense Mão Molenga Teatro de Bonecos decidiu comemorar os seus 20 anos de atividades artísticas com uma vasta programação no Centro de Formação e Pesquisa nas Artes Cênicas Apolo-Hermilo. Entre os meses de março e maio, a casa de espetáculos estará tomada pela poética dos bonecos populares. No palco, no auditório e no foyer, o mamulengo será o centro das atenções. A idéia é valorizar essa expressão popular pernambucana, cada vez mais distante do grande público. A programação inclui espetáculos teatrais, exposição de bonecos, aulademonstração, curso de bonecos para atores, e oficinas para educadores, adolescentes e jovens de baixa renda. O Projeto Bonecos no Apolo-Hermilo será inaugurado no dia 8 de março com a aula-demonstração “Bonecos no Mundo”, que deverá explanar o teatro de formas animadas, sua história, a tipologia de bonecos e as diferentes técnicas de manipulação. No dia 11, estréia o espetáculo Babau ou A vida desembestada do homem que tentou engabelar a morte, com direção de Mar-
condes Lima. A peça narra passagens da vida e da obra de bonequeiros reconhecidos, a exemplo de Doutor Babau, Mestre Ginu, Zé Lopes, entre outros. O texto, da jornalista Carla Denise, foi montado a partir de uma pesquisa de Hermilo Borba Filho e se desenrola em torno de Babau, um boneco que (numa situação inversa a dos manipuladores, muitos dos quais morrem esquecidos) consegue enganar a morte e acaba passando pelas mãos de várias gerações de mamulengueiros. A Companhia Mão Molenga é especializada em bonecos e formas animadas, cujo trabalho em teatro se iniciou em 1986. O grupo tem usado escolas, casas de espetáculos, centros comerciais e espaços públicos, como praças e feiras, para veicular sua arte. O repertório do grupo contém 16 peças com texto original e algumas premiações na bagagem, entre elas a do Festival de Humor da Cidade do Recife, e do concurso para Teatro de Bonecos da Fundação de Cultura da Cidade do Recife. Luciana Prezia/Divulgação
Fernanda Torres afrodisíaca Ela precisava dizer ao mundo que ousou, e foi levada ao teatro para fazê-lo. No palco, sentada, acompanhada apenas de alguns objetos, entre os quais, o livro Nossa Vida Sexual, de Fritz Khan e dos dois budas ditosos, estatuazinhas em miniatura de dois budinhas praticando sexo, uma baiana sexagenária conta durante uma hora e meia suas aventuras sexuais. A Casa dos Budas Ditosos, em cartaz no teatro da UFPE, trata de sexo de uma forma não cliche-
rizada, sem caricaturas, apelos, nem intenção de chocar. A peça é uma adaptação do livro homônimo de João Ubaldo Ribeiro. No papel da baiana, está Fernanda Torres, na condição de uma atriz de meia-idade, capaz de simular toda as fases dessa vida libertária. Assistido por mais de 150.000 espectadores, o espetáculo já rendeu à atriz o Prêmio Shell em São Paulo e Prêmio Qualidade Brasil de melhor atriz, diretor e comédia, em 2004.
A Casa dos Budas Ditosos. 11, 12 e 13 de março. Teatro da UFPE (Av. dos Reitores, s/n, Campus Universitário – Universidade Federal de Pernambuco). Informações: 81.3453.4344. Classificação etária: 18 anos. Continente março 2006
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MÚSICA
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um de seus contos, “Um homem célebre”, Machado descreve as agruras de um músico, o Pestana, compositor de polcas adorado por todos. Mas o pobre tinha uma mágoa: queria ser um criador de “música séria”. Ninguém, porém, queria ouvir nada seu sério, só as melodias alegres. Há muitos Pestanas na nossa música (como Ernesto Nazareth), mas, talvez, o mais desafortunado dentre eles seja, paradoxo, o mais talentoso: Radamés Gnattali. “O Radar (seu apelido) é concertista, compositor, pianista, orquestrador, maestrão. Ajuda a todo mundo e mais ajudou a mim”, escreveu, num poema, um de seus pupilos, Tom Jobim. Ele foi, mesmo, tudo isso e, hoje, no mês em que se deveria estar celebrando com muita música o seu centenário de nascimento, quem se lembra do arranjador de “Aquarela do Brasil”, de “Carinhoso”, o maestro fundador da Rádio Nacional e também autor de oito sinfonias e um sem-nnúmero de concertos (até para caixa de fósforos)? Só nossos ouvidos ingratos. Há, no entanto, uma luzinha lá no fim do túnel: há pouco, lançou-sse o primeiro CD ROM do Catálogo Digital Radamés Gnattali (interessados devem escrever para robgnattali@terra.com.br), que reúne boa parte da sua produção de música erudita (270 títulos,
Usina de sons Obra do maestro, compositor e arranjador Radamés Gnattali ganha catálogo eletrônico que disponibiliza acesso ao seu monumental acervo Carlos Haag
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MÚSICA
Fotos: Reprodução
O maestro e compositor em sua mesa de trabalho, s/d
quase sete mil páginas) e traz, de quebra, fotos, recortes, imagens, áudios, vídeos, discografia e informações sobre a vida e obra da “usina de sons”, como o chamava o crítico Hermínio Bello de Carvalho. Era uma necessidade. A maioria de sua música, escrita a lápis, estava para se perder em velhos envelopes guardados pela viúva em casa. Enquanto não chega o segundo volume do catálogo, com suas composições e arranjos para música popular, dentro do mesmo projeto, batizado de Brasiliana (título de um grupo de peças compostas por ele para diversas formações e gêneros populares e folclóricos), entra na rede o sítio oficial de Radamés Gnattali na internet, com tudo o que CD ROM oferece mais depoimentos de amigos e críticos, links para outros sítios, material de imprensa sobre ele, fotos e tudo o que couber para esquentar a memória nacional. “Apesar da amplitude e da diversificação de sua obra, até hoje não se tem a medida exata da importância de sua criação, tão genial quanto generosa”, avi-
sa Roberto Gnattali, coordenador do projeto Brasiliana e sobrinho do compositor. “Temos certeza de que o mais importante a fazer, para garantir o repasse do legado artístico de Radamés para as gerações futuras é salvar o acervo, transcrevendo-o, nota por nota, para a partitura digital e disponibilizando-o para que possa ser estudado, conhecido e, acima de tudo, gravado”, explica. Afinal, quase não existem edições de suas músicas e escassas gravações de uma carreira que durou 60 anos e que inclui 12 concertos para piano, quatro para violino, quatro para violão, sinfonias, quartetos de cordas, além de obras para harpa, acordeão, harmônica de boca, bandolim, cavaquinho, só da chamada “música de concerto”. Mas também foram décadas produzindo MPB: assinou a direção musical de 52 filmes, compôs para teatro e foi uma verdadeira abelha no rádio, meio para o qual foi um experimentador constante e responsável pela inovação nos arranjos de sambas. Além da “Aquarela”, celebrizou, por exemplo, “Copacabana”, na voz de Dick Farney, com um conjunto ousado de violinos, violas, Continente março 2006
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MÚSICA Radamés foi responsável pela invenção de uma nova forma de orquestração para o samba, mais sofisticada e, ao mesmo tempo, muito brasileira, distante do que faziam os americanos
Partitura do Concerto nº3 para Violino e Orquestra
celos, oboé, piano, baixo, bateria e violão, em tempos que, no máximo, se usava um regional, que batucava marimbas e pandeiros ao fundo das melodias. “Houve época de escrever mais de 10 arranjos por semana e para grande orquestra. Eram partituras ricas, complexas, que exigiam horas de ensaios dos músicos. Para se ter uma idéia, havia um programa na Rádio Nacional chamado “Quando os maestros se encontram”, toda sexta-feira, e Radamés brilhava. Nos bastidores, era conhecido como “Quando os maestros se encontram, os músicos se f.”, lembra o crítico João Máximo. “Quando levei para ele uns LPs para autografar, ele reclamou: ‘Cadê os clássicos, porra?!’ Por sorte, tínhamos na vitrola alguns discos com arranjos seus e o fizemos ouvir “No Rancho Fundo”, “Carinhoso”, “Nuvens”. Fui notando que ele estava todo feliz com aquele seu trabalho. Só não gostava de demonstrar”. Mesmo. Quando Walt Disney o convidou para trabalhar com ele, fazendo Continente março 2006
arranjos para seus filmes, Radar recusou o convite. Não era “música séria” e como ele iria ficar sem o chope do bar Lucas? Vitória do proletariado – Nascera predestinado ao brilho nos concertos. O pai, anarquista italiano, era um marceneiro que, no fim da vida, no Brasil, virara maestro. Todos os filhos tinham nomes de personagens de ópera de Verdi: Radamés, Ernani, Aída. Queria o filho no Scala de Milão. Mas Radar gostava da boemia e saía pela cidade natal, Porto Alegre, com um grupo de músicos de rua. “Como não podia levar o piano, comecei a estudar cavaquinho e viola”, contava o maestro. Foi, ainda assim, um dos maiores pianistas de sua geração. “Poucos pianistas no mundo (da música popular) tem um estilo tão marcado. Como lamento que ele não tenha conseguido realizar o seu projeto de gravar o melhor de Nazareth”, diz Máximo. Ernesto e Radar, aliás, eram colegas de
MÚSICA
Radamés com seu gato siamês e o violinista Raphael Rabelo, s/d
cinema. Radamés tocava no Cine Colombo e, sempre que podia, fugia para ouvir o autor de “Brejeiro” tocando no Odeon. Lá, o moço aprendeu com o ídolo que era possível ser um homem célebre tocando música que nem sempre era séria. No Rio, conheceu Luciano Perrone, um baterista que foi o amigo e conselheiro valioso por toda a vida. Foi dele a idéia de, nos arranjos, não se concentrar tanto nos músicos de percussão e usar os outros instrumentos da orquestra para fazer ritmo. “Não vai dar certo”, resmungou Radamés na hora, mas, no dia seguinte, trouxe um arranjo naqueles moldes e foi um sucesso, a invenção de uma nova forma de orquestração para o samba, mais sofisticada e, ao mesmo tempo, muito brasileira, distante do que faziam os americanos, com muitos metais e base rítmica de piano, baixo e bateria. Graças a Radamés, a MPB conseguiu uma voz própria e não se deixou levar totalmente pelo “modelo jazz” de orquestrar. Mesmo a bossa-nova, responsável pela decadência do império do Rádio (onde Radamés reinava) devia muito a Radar, apesar de ele recusar-se a participar do movimento, mesmo com os convites constantes de Tom. Bem antes do banquinho e do violão, o maestro já fazia arranjos suaves, modernos, com a bateria acari-
ciada com escovinhas. “Ele era uma alma adiantada, um espírito avançado, um precursor que escrevia música para o futuro, um pai”, elogiava Jobim. Rafael Rabello elogiava-o no mesmo diapasão. “O que o Villa fez com o Brasil folclórico, rural, Radar fez com o folclore urbano, algo como o que Gershwin realizou nos EUA.” E, no fundo, tinha mesmo orgulho disso. Certa vez, o cantor de protesto Taiguara lhe pediu um arranjo. Radamés, com boa vontade, fez e muito bem. Com os olhos cheios d’água, Taiguara exclama: “Radamés, esse arranjo é uma vitória do proletariado.” Sem retribuir o entusiasmo, Radar responde: “Vitória do proletariado, uma porra. Esse arranjo é meu!” Levou o mesmo espírito para a Globo, onde trabalhou por anos, até ser demitido, ele e sua orquestra, como “inúteis”. “Tudo para canonizar os sintetizadores”, critica Máximo. Aos 80 anos, voltou a excursionar com seu quinteto e foi, subitamente, relembrado pelas grandes figuras da MPB, como Caymmi, João Gilberto, entre outros. Estava feliz. Duas esquemias, porém, o deixaram na cama nos dois últimos anos da vida e, em 1987, morre. “Porra, agora que estava ficando bom”, foram suas últimas palavras antes de deixar de conhecer as pessoas, resultado do derrame. • Continente março 2006
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AGENDA/MÚSICA
CDS Fotos: Divulgação
Encontro polifônico Nova série musical do Centro Cultural Banco do Brasil reúne cantoras populares e cantoras líricas brasileiras
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antoras líricas interpretando um repertório popular e cantoras populares passeando pelo erudito. Esta é a proposta do projeto Divas, que vai unir cantoras líricas brasileiras e grandes nomes da canção popular no país. Em quatro shows, de 7 a 28 de março, sempre às terças-feiras, o projeto vai reunir as cantoras populares Ná Ozzetti, Tetê Espíndola, Maria Alcina e Vânia Bastos e as cantoras líricas Céline Imbert, Adélia Issa, Regina Elena Mesquita e Magda Painno no palco do CCBB-Brasília. Juntas, elas vão romper os limites entre o clássico e o popular. Serão quatro shows distintos, com direção artística e musical da soprano Adélia Issa, nos quais as cantoras interpretarão canções populares e eruditas do repertório brasileiro e internacional e terão o acompanhamento de instrumentistas vindos igualmente das áreas da música erudita e popular. No primeiro show da série, no dia 7 de março, estarão no palco as cantoras Ná Ozzetti e Céline Imbert, acompanhadas do pianista André Mehmari. Na semana seguinte, no dia 14 de março, Magda Painno e Vânia Bastos apresentam-se ao som dos pianistas Fábio Caramuru e Marco Antonio Bernardo e de Pedro Baldanza (baixo elétrico). O terceiro show, no dia 21 de março, reunirá as cantoras Maria Alcina e Regina Elena Mesquita e os instrumentistas Marco Antonio Bernardo (piano), Pedro Baldanza (baixo elétrico) e Edson Ghilardi (percussão). A série termina no dia 28 de março, com a apresentação de Tetê Espíndola (voz e craviola) e Adélia Issa, ao lado de Ricardo Ballestero (piano). Os shows acontecem sempre em dois horários: às 13h, com entrada franca, e às 21h, com ingressos a R$ 15,00 e R$ 7,50. Divas. Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília, nos dias 7, 14, 21 e 28 de março, às 13h e às 21h. Ingressos: às 13h, entrada franca; às 21h, R$ 15,00 e R$ 7,50. Informações: 61.3310.7087. Continente março 2006
Tributo a Radamés No ano em que completaria 100 anos, Radamés Gnatalli ganhou várias homenagens que trouxeram à memória nacional a lembrança de quem foi o maestro e compositor que transitava naturalmente entre o popular e o erudito, colocando, por exemplo, violinos em arranjos de samba. Mas poucas são tão originais como o relançamento do álbum Radamés Gnatalli, da pianista Fernanda Chaves Canaud, discípula direta de Radamés. São 12 temas, compostos entre 1940 e 1955, enfatizando o aspecto erudito da obra de Gnattali, mesmo quando este os classificava como choros, valsas (“Carinhosa”, “Vaidosa” números 1 e 2), ou “Samba Canção” (título da obra de 1949, registrada pela primeira vez neste disco de Canaud). Radamés Gnatalli, Biscoito Fino, preço médio R$ 28,00.
Da festa e dos mistérios O Reinado do Rosário é uma festa da tradição popular brasileira que une o culto aos santos católicos com práticas rituais africanas. Em Itapecerica (MG), o Reinado é festejado desde o séc. 19, quando foi fundada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. O disco Reinado do Rosário de Itapecerica MG – da festa e dos mistérios, é um CD duplo gravado em DAT, no local de ocorrência da brincadeira. Grupos de moçambique, catopé, marinheiro e vilão (ternos que “trabalham” para os santos, cantando e dançando) apresentam as músicas e os versos que homenageiam Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Nossa Senhora das Mercês e Santa Ifigênia. Da Festa e dos Mistérios, Independente, preço médio R$ 20,00.
Poetas encantadores Para quem não sabe, vates são poetas que perambulam pelos sertões cantando versos, acompanhados por suas violas. Mas, “Vates e Violas” é o nome da banda formada, em 1984, pelos irmãos Luiz Homero e Miguel Marcondes, filhos do repentista Zé de Cazuza e netos do cordelista paraibano Cazuza Nunes. Nesse terceiro álbum, Tudo Que é Bom Presta, quase todas as canções iniciam em tom de aboio. Luís e Miguel combinam sanfona, bateria, guitarra, triângulo, violão, pandeiro e zabumba de barro para interpretar xotes, reggaes, baiões, toadas e, claro, versos. Um álbum bom para se dançar e se ouvir. Tudo Que é Bom Presta, Independente, preço médio R$ 10,00.
DVDs
AGENDA/MÚSICA
Flores em vida Caixa-homenagem a Nelson Sargento reúne sucessos e inéditas em quatro discos
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le é escritor, ator e pintor primitivista – atividade que desenvolveu graças ao conhecimento obtido na profissão de pintor de paredes, que exerceu por vários anos. Mas é como sambista que Nelson Sargento é conhecido, e muito. Autor de pérolas como “Agoniza mas não morre” (lançada por Beth Carvalho, em 1978, é até hoje considerada um hino de resistência do samba carioca), “Falso Amor Sincero” e “Idioma Esquisito”, o sambista tem esses e outros sucessos relançados pela Rob Digital na caixa Nelson Sargento 80 Anos, que inclui os discos Sonho de um sambista, Encanto da paisagem, Só Cartola e Flores em vida. Sonho de um sambista foi lançado em 1979 pela gravadora Eldprado, contou com participações de Maurício Carrilho e Luciana Rabello e traz sucessos ainda cantados nas rodas de samba, como “Falso Moralista” e “Cântico à Natureza” (Primavera), considerado o mais belo sambaenredo de todos os tempos da Estação Primeira da Mangueira, do carnaval de 1955. Em 1986, Encanto da paisagem foi lançado no Japão. Inédito em CD no mercado nacional, o disco traz Raphael Rabello, Henrique Cazes e Marcos Suzano na interpretação de “Agoniza mas não morre” e “Vim lhe Pedir”, parceria com Cartola. Só Cartola saiu em 1998, fruto do encontro do sambista com Elton Medeiros e o grupo carioca Galo Preto que resultou no memorável show-homenagem aos 90 anos de Cartola. Entre as memoráveis composições do saudoso Cartola, cinco faixas inéditas: “A Mangueira é Muito Grande” , “Velho Estácio”, “Ciúme Doentio” e “Deixa”, interpretadas pelo parceiro Nelson Sargento, além da instrumental “Sol e Chuva”. Já Flores em vida, lançado em 2001 pelo selo Rádio MEC, reuniu grandes músicos sob a direção de João de Aquino, que também assina os arranjos. Item obrigatório em qualquer coleção de bom gosto, a caixa é um tributo em vida a um dos últimos sambistas vivos dessa geração excepcional.
Nelson Sargento 80 Anos, Rob Digital, preço médio R$ 75,90.
Dramas do pós-guerra Aurora DVD lança dois clássicos de Wajda e Cayatte, focalizando dramas sociais e de guerra
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cineasta André Cayatte (1909-1989), também advogado e escritor, dirigiu 30 filmes, além de quatro telecines, sempre com temática social, vários abordando questões de direito, justiça e preconceito. É o caso do impactante Somos Todos Assassinos, de 1952, película em preto e branco que narra a história de René, um pária que se incorpora aos maquis por acaso durante a Segunda Guerra Mundial, tornando-se criminoso no pós-guerra. Julgado e recebendo a pena máxima, vai para o corredor da morte, onde conhece outros tipos condenados e mandados para a guilhotina. O filme, de narrativa convencional, tem, porém, uma carga dramática poderosa e assume-se, abertamente, como um libelo contra a pena de morte. Pela primeira vez em DVD no Brasil, Somos Todos Assassinos ainda apresenta cartazes, críticas e biografias. Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda, segue Geração e Kanal e fecha a trilogia não planejada do diretor (também de teatro) sobre os acontecimentos da Segunda Guerra. Também ambientado no pós-guerra, o filme narra a história de um jovem mercenário contratado para matar um líder comunista (de fato um dos “assombros” poloneses), mas sua missão é tumultuada pela paixão por uma garçonete. Baseado no livro homônimo de Jerzy Andrzerjewski, Cinzas e Diamantes, de 1958, mas ambientado em 1945, é um dos filmes da Polônia que expressam a relação com o seu tempo e o seu espaço e refletem a tragédia do anseio. Teatralmente, o início da película é marcado pelo assassinato de homens errados. A fotografia merece uma análise compartilhada: toda em preto e branco, ela tem foco profundo e consegue fazer do meio e do fundo da cena elementos tão importantes quanto o 1º plano. Com uma luz dramática, o filme gera tensões constantes. Assim como Os Melhores Anos de Nossas Vidas, Cinzas e Diamantes é um dos melhores filmes já feitos sobre a transição da guerra para a paz. Lançado em DVD pela primeira vez, o filme chega numa edição especial com entrevistas, comentários de especialistas, todos com legendas em português, entre outros itens. Somos Todos Assassinos, Aurora DVDs, preço médio R$ 37,00. Cinzas e Diamantes. Aurora DVDs, preço médio R$ 37,00.
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Sobre quase nada Quem sabe, ao longo de quase seis anos levei vocês na conversa mole, tapeei-os como os autores de truques, e já não existem coelhos na minha cartola?...
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epois de 63 artigos publicados nessa coluna, pergunto-me se ainda existem assuntos para um novo texto. Os leitores esperam que sejamos originais, escrevendo crônicas bem-humoradas ou contundentes, que mexam com as suas entranhas. Às vezes, um artigo rápido, redigido às pressas, sem nenhuma pretensão, faz o maior sucesso. Outras vezes, trabalhamos horas a fio sobre conceitos difíceis, desenvolvendo raciocínios complicados, verdadeiras teses, e o resultado é pífio, ninguém comenta. Parece até que silenciam de propósito, por puro sadismo. É difícil ser original. Mais difícil ainda manter um padrão de qualidade sem cair nas repetições. A escrita, como a representação teatral, possibilita os truques, os jeitinhos, os cacoetes. Mas eles se esgotam como as caretas de um palhaço ruim. E o falsário cai na síndrome do Bartleby de Melville, no esgotamento. Repete o eterno “acho melhor, não”. Segundo o argentino Jorge Luis Borges, só existem sete temas básicos na literatura. O resto são desdobramentos e variações em torno da mesma e repetida história. Pergunto quantos temas existem no jornalismo, essa fábrica de notícias de última hora, sujeitas ao esquecimento. Nele, também é preciso imaginação e uma das seis virtudes propostas por Ítalo Calvino para o próximo milênio: rapidez. Sim, é necessário correr contra o tempo, ou melhor, antecipar-se a ele. E, às vezes, arriscar profecias. O relógio dos jornais diários não é o mesmo das revistas de circulação mensal. Nestas, trabalhamos com um tempo depurado. O diário é um vinho verde, a coluna mensal um bordeaux de safra antiga,
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guardado em tonel de madeira. Não entra na comparação nenhum critério de valor, apenas de ponteiros. Nariz de cera é o nome dessa enrolação que precede o corpo do artigo, espécie de entrada servida antes do prato principal. Mas, que prato eu irei servir a vocês, leitores? Juro que não sei. Será que sofro do mal de Montano, um lapso de criatividade? Quem sabe, ao longo de quase seis anos levei vocês na conversa mole, tapeei-os como os autores de truques, e já não existem coelhos na minha cartola?... Há algum tempo, penso seriamente em mudar para o ramo da auto-ajuda. Mas, se penso seriamente, não penso sobre auto-ajuda. Puxa, já estou sofismando! Meus leitores, bom-dia! As palavras se unem em frases para elevar os corações à plenitude do ser. (Que tal? É um bom começo?) Principiemos com uma pequena fábula zen-budista. (O zen pega bem.) Um discípulo desejava aprender o que é o zen e procurou um mestre que morava ao pé de um lago, numa pequena casa cercada de bambuzais (bambu é perfeito, porque lembra a música de flauta). – Mestre, ensina-me o zen! – pediu o rapaz. O mestre, sentado sobre uma esteira de palha, olhou ironicamente o discípulo (geralmente, esses mestres são irritados, mas não fica bem eu escrever – olhou irado –, melhor imaginá-lo levemente irônico). – Já tomaste a tua sopa hoje? – perguntou. – Já! – respondeu o rapaz com humildade (talvez seja importante supor o discípulo humilde, uma das virtudes do tao. Desculpem, a fábula é zen-budista, e não taoísta. Sempre nos atrapalhamos no começo de
Artur Lopes
ENTREMEZ
uma nova carreira. Desculpem novamente, a humildade não é virtude no tao e, sim, a modéstia. Mas, deixemos como está). – Então, volta e lava a tigela! – ordenou o mestre. É só isso, não esperem mais texto. Vamos à interpretação. Essa fábula ensina a não buscar sentido para a vida apenas nas grandes realizações. Em coisas simples, como lavar uma tigela, pode esconder-se o real significado da existência. Concentrem-se nos pequenos afazeres e encontrarão a alegria e a tranqüilidade. Não se iludam com a maia do fazer por fazer (outra escorregada, maia é do hinduísmo). Façam fazendo. Estejam no que fazem e só assim atingirão a plenitude do ato. Olhem os lírios do campo, eles não semeiam nem colhem (caramba, essa é do Sermão da Montanha! Tenho de remendar)... mas são belos porque repetem a milenar ciência de ser flor, sem nenhuma outra pretensão além disso. Lavem a tigela. Se possível, arranjem emprego num restaurante japonês e lavem muitas tigelas, vão lavando, lavando, que um dia vocês estarão todos zen. Acho um começo razoável. Prossigamos com uma fábula taoísta, para impressionar os leitores e mostrar
erudição. Um homem morava com o filho único numa casinha ao pé da montanha. Uma noite, fugiu do seu curral o cavalo que puxava o arado. Os vizinhos lamentaram o infortúnio, mas o homem, praticante do taoísmo, não percebia distinção entre lucros e perdas. Dias depois, o cavalo retornou acompanhado de nove potros e éguas selvagens. Os vizinhos, ao saberem da fortuna, correram à casa do felizardo. O homem dispensou-os com a serenidade de sempre, falando sobre a riqueza do ser e a pobreza do ter. No dia seguinte, quando amansava os cavalos, o filho caiu e quebrou uma perna. Os vizinhos correram aos prantos, lastimando o pai infeliz. Mas ele sabia que os infortúnios não tardam a passar. No meio de fanfarras, chegaram os emissários do rei, convocando os rapazes da vila para a guerra. Somente o rapaz não foi levado, porque se encontrava enfermo. Os vizinhos aclamaram o pai pela sorte. Porém ele enxotou-os, lembrando que a vida verdadeira é como a água, que em silêncio se adapta às alturas e planuras, não se opondo a nada. E assim por diante, até se completarem os quatro mil e quinhentos toques desse artigo, que trata sobre quase nada, como tudo na vida. • Continente março 2006
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TRADIÇÕES
O Pinto que cantava de galo Novo livro do pesquisador Joselito Nunes faz um resgate da vida e da obra de Pinto do Monteiro Eduardo Maia
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herança européia do Trovadorismo, que remonta à Idade Média, aclimatou-se muito bem ao sertão nordestino. Os cantadores, violeiros e repentistas fazem parte da rica tradição cultural sertaneja, marcada fortemente pela oralidade. O pesquisador Carlos Jatobá informa que a tradição da cantoria tem origem provável no século 11, em Provença, no sul da França, mas que “veio até nós, adicionada com um leve sabor mourisco, um tanto aboiado, quase islâmico”, pois teria se desenvolvido e florescido na Península Ibérica. No Brasil, o cantador Severino Lourenço da Silva Pinto, conhecido como Pinto do Monteiro, foi um dos maiores poetas entre os seguidores dessa tradição. Especialista em improvisos e pelejas, Pinto do Monteiro, em suas andanças pelo Sertão, enfrentou muitos improvisadores e, segundo testemunhos, parece ter levado a melhor na maioria dos casos. A obediência à métrica e à rima são importantes, mas a velocidade de raciocínio, a memória e a ironia são as peças-chave para um bom pelejador. A vida e a obra de Pinto do Monteiro fazem parte do trabalho de resgate cultural realizado pelo pesquisador Joselito Nunes e transformado em livro, recentemente, no Recife. Pinto Velho do Monteiro – Um Cantador Sem Parelha, recolhe depoimentos, passagens biográficas, versos e pelejas do cantador nascido em Carnaubinha, uma propriedade próxima ao município de Monteiro (PB). Pinto homenageou o seu lugar de nascimento com versos de um lirismo simples, que lembram até o romântico Casimiro de Abreu: “Parece que eu estou vendo / um homem cortando cana / uma engenhoca moendo / Continente março 2006
os três dias da semana / fazer cerca, queimar broca / raspar milho e mandioca / da massa fazer farinha / comer mel de engenho / ai que saudades que eu tenho / da minha Carnaubinha.” Perguntado certa vez sobre o porquê de ter trocado a viola por um pandeiro, respondeu em versos: “Ninguém deve ignorar / Por que Pinto do Monteiro/ Deixou de usar viola / para conduzir o pandeiro: / o volume é mais pequeno / e o pacote é mais maneiro!” Em outra ocasião, provocado por um cantador que afirmava que ele não chegaria aos 80 anos, Pinto retrucou: “Eu vivo é cento e quarenta / achando a vida moderna / escorado na bengala / coxeando duma perna / quem me domina é Jesus / corno nenhum me governa.” Para Pinto, poeta é aquele que “tira de onde não tem pra botar onde não cabe”. Com quase 100 anos de idade, no dia 28 de outubro de 1990, falecia Severino da Silva Pinto, deixando a maior parte da sua obra, devido à oralidade, somente guardada na cabeça daqueles que tiveram a sorte de escutá-lo. O livro de Joselito Nunes, que conta com ensaios de vários colaboradores, é baseado em uma extensa pesquisa, não deixa de ser também uma homenagem e um alerta para que nomes como o de Pinto do Monteiro não se percam como versos que só foram cantados uma vez e esquecidos no tempo. • Pinto Velho do Monteiro: Um Cantador Sem Parelha. Joselito Nunes. Editora Coqueiro, 102 páginas, R$ 15,00.
Olhares para o maracatu
Hans Manteuffel/Divulgação
TRADIÇÕES
Coleção oferece três abordagens sobre o maracatu de baque solto
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Sara Correia
uando criança, Severino sentia sensação estranha ao ouvir o som dos chocalhos dos caboclos. Se não se comportasse, escutava: “Vou chamar o caboclo”. Com o tempo, aprendeu que os caboclos de lança não são folclóricos, mas recriações da história que os livros não ensinaram. Esta vivência que durou anos – sua infância e adolescência foram acompanhando o passar de caboclos na porta de casa – e a curiosidade de saber de onde vinham e para onde iam os caboclos seriam suficientes para que o pesquisador Severino Vicente da Silva, pernambucano de Carpina, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, se dedicasse ao estudo sobre a cultura popular, especialmente o maracatu rural. Graduado em Teologia e História, mestre e doutor pela UFPE, Severino é autor de Festa de Caboclo, primeiro de três livros que compõem a coletânea Maracatus e Maracatuzeiros, da editora Associação Reviva, e que tem apoio do Funcultura. O livro faz um apanhado sobre os caboclos e sua dança, o maracatu. Dos tempos em que viviam em tribos, passando pela época em que deram vida aos maracatus de engenho, à ida dos caboclos para o Recife, onde passaram a se encontrar e originaram o maracatu rural, de baque solto ou de orquestra.
Coleção Maracatus e Maracatuzeiros, Edit. Ass. Reviva / Funcultura – Festa de Caboclo, de Severino Vicente da Silva; João, Manoel e Maciel Salustiano – Três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, de Mariana Cunha; e Maracatu Rural – O espetáculo como espaço social, de Ana Valéria Vicente. Preço: R$ 8,00 (cada livro).
A segunda obra da coletânea, intitulada João, Manoel e Maciel Salustiano – Três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, apresenta João, pai de Salu; o próprio Salu (Manoel Salustiano); e Maciel, um dos 15 filhos de Mestre Salu. A jornalista e pesquisadora Mariana Cunha Mesquita do Nascimento conviveu com o artista popular de 1997 a 2000 com a finalidade de descobrir a história do clã Salustiano. Seu livro traz essa história, que revela um dado interessante para uma família de origem rural: o sucesso junto ao grande público, aos meios de comunicação, ao governo e aos próprios mestres de cultura popular. Mariana, pernambucana nascida no Recife, fala das mudanças e permanências culturais das três gerações de artistas. De novos hábitos para conviver com uma realidade diferente, a da cidade grande, preservando e divulgando as raízes do interior. Mostra o mundo criado na Cidade Tabajara, em Olinda, para manter a identidade popular e cultural da família Salustiano. Mas mostra, acima de tudo, os diferentes caminhos trilhados por pai, filho e neto, e como se relacionam com o mercado cultural na era da globalização: a cultura massiva. Terceiro e último número da coletânea, Maracatu Rural – O espetáculo como espaço social, da bailarina e jornalista Ana Valéria Vicente, tem no subtítulo: Um estudo sobre a valorização do popular através da imprensa e da mídia. E é justamente sobre essa valorização que o livro discute. Valéria buscou coletar informações sobre como, quando e através de que discursos e configurações da sociedade, o maracatu rural assumiu um posto de destaque nas propagandas oficiais e no imaginário sobre Pernambuco. Uma busca por respostas para perguntas como: “Por que o caboclo de lança foi usado, em 2001, como símbolo do Baile Municipal, espaço tradicional da elite pernambucana?”. • Continente março 2006
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Renovar ou morrer Continuo a favor da liberdade de pensamento como um direito fundamental do homem
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o meio de leituras, das mais simples às antigas ou contemporâneas, como, por exemplo, um trecho de João Ribeiro em suas histórias do Brasil, em que nos induzia a não pensarmos que o homem de cor, conseqüência semihíbrida do contacto heterogêneo de raças tão distanciadas, fosse considerado como espécie. Frisava, o mesmo, do assentimento de eminentes cientistas tal Haeckel – uma excomunhão em regra para os miscigênicos, segundo Lima Barreto –, de que essas espécies emergiam de uma peste epidêmica da cultura norte-americana, assim como as divisões étnicas, suas castas, suas religiões são as dos povos do Oriente. A evolução da ciência, por incrível que pareça, nos mete medo. Não só pela possibilidade de nos aumentar a expectativa de vida em valiosas descobertas da medicina, por isso nos dando mais tempo para nos indignarmos com a falta de respeito dos detentores de verdades absolutas, todavia vem a arrebentarem nossas esperanças de outros tempos menos velozes e mais pacíficos. Há uma frase que diz: “renovar ou morrer”. É bem melhor renovar. Não é isso que vemos hoje, apesar do modernismo da globalização, incentivando o conhecimento amplo dos fatos que sugere um maior entendimento e interação cultural do mundo. O cheiro é de sucessivos conflitos e, por fim, lamentavelmente, de mortes. Como se falar tanto em liberdade – uma democracia ocidental bêbada, defendida com o ódio e a guerra pelos países que detêm o controle das armas mais perigosas da Terra – se somos forçados a assistir ao maior espetáculo de hipocrisias democráticas de paz e de ridículos fanatismos religiosos? Ninguém pode mais rir, ser inventivo – na mais prolífica das criatividades do homem: a arte. Ninguém pode mais discordar dos preconceitos, das leis draconianas, das mulheres lascivas e dissolutas em excesso ou, pior, acreditar no saudosismo messiânico herdado com o sangue
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judaico. E quando não mais pudermos festejar a estroinice dos folguedos ruidosos – a pândega que transforma a tristeza numa alegria ao jeito de cada cultura – recolhernos-emos à maldita insignificância. O que vaticinarmos? Um fim dos tempos próximo – numa fogueira gigante engolindo judeus e palestinos, sunitas e xiitas, católicos e muçulmanos, Hamas e Likud, veementemente estendendo-se aos comunistas e tirânicos, socialistas e imperialistas – lá para as bandas da caixa-prego? Está muito fácil, hoje, de acertarmos predições que até hoje, por séculos, serviram de profissão e de histerismos aos passadores de búzios, os das bolas de cristal ou dos que viviam sonhando acordados aos auspícios do torpor do ópio óbvio do delírio. De novo lembro Lima Barreto que, por volta de 1905, previu então, em seu Diário Íntimo, que se espalhava pelo mundo a noção do surgimento de umas certas raças superiores e umas outras inferiores e que essa inferioridade, longe de ser transitória, seria "eterna e intrínseca à própria estrutura da raça e que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais" – (...) "Tudo isso se diz em nome da ciência e coberto da autoridade de sábios alemães". Urgia, pois, ver o perigo dessas idéias. Nada mudou, asseverava Lima, pois como dantes, essas idéias já saíram dos gabinetes e laboratórios infernais de inúmeros "Abrantes" ferozes, passaram definitivamente para as mãos dos políticos e caem sobre as rudes cabeças da massa. Daí vermos e sofrermos matanças criminosas às alturas das mais hediondas. E não podemos fazer nada. Sou contra a censura e também a libertinagem. Não se brinca com dogmas religiosos, pois, "segundo o dogma calvinista, o homem perdeu, pelo pecado original, todas as forças do bem". Entretanto, continuo a favor da liberdade de pensamento como um direito fundamental do homem. Ou renovamos o mundo por amor ao paraíso infinito do bem comum ou morreremos nas cinzas do purgatório de Carpeaux. •
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